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PRECIOSA: A FORMAÇÃO DA SUBJETIVIDADE DA MULHER NEGRA NA

SOCIEDADE DO RACISMO MISÓGINO E DA MISOGINIA RACISTA

A partir da obra de Fanon (2008) - que foi um importante psiquiatra, psicanalista,


filósofo e militante pan-africanista e marxista, natural da Ilha de Martinica – entende-se que
os males psicológicos e subjetivos enfrentados pelas pessoas negras não podem,
absolutamente, ser compreendidos fora de uma análise socioeconômica e política mais ampla,
que aponta para os “complexos coloniais – enquanto efeitos psíquicos da situação colonial.”
(FAUSTINO, 2013, p. 220) Por outro, Fanon explicita que o estudo do racismo não depende
só da observação dos aspectos objetivos das relações sociais, mas também dos subjetivos, que
dizem respeito à formação da psique e à apreensão ideológica que os sujeitos fazem a partir
da realidade nas quais estão inseridos. Assim, em “Pele negra, máscaras brancas” (2008),
Fanon opõe-se às concepções racistas do psicanalista Mannoni - segundo o qual existiria uma
suposta tendência natural do sujeito negro colonizado a um tipo de complexo de dependência
e de inferioridade em relação ao branco colonizador - refutando tais ideias absurdas, ao
afirmar que não é o sujeito que sofre o racismo que se auto inferioriza, mas, pelo contrário,
“[…] é o racista que cria o inferiorizado” (FANON, 2008, p.90), pois, se a pessoa negra
sente-se inferior à branca, isso só acontece porque, historicamente, o branco apontou o negro
como inferior e colocou-se ele próprio, o branco, como superior, oprimindo a população
negra tanto em suas condições objetivas de vida, quanto em suas estruturas psíquicas, em sua
subjetividade, deixando no povo negro uma “ferida absoluta.” (FANON, 2008, p.93) Nesse
contexto, quando Mannoni ousa afirmar que os europeus eram “[…] esperados e até mesmo
inconscientemente desejados pelos nativos” (MANNONI 1, sd, p.87,88 apud FANON, 2008,
p.94) das terras que eles colonizavam, Fanon responde que, se o negro entende-se como
inferior ao branco e se ele deseja ser branco, isso só acontece porque ele vive numa sociedade
racista que depende, portanto, do complexo de inferioridade do negro, para perpetuar essa
estrutura social que afirma a superioridade do branco. (FANON, 2008) Assim, segundo o
autor, os negros são colocados numa “situação neurótica” em consequência das dificuldades
postas pela sociedade racista, e não por conta de características inatas ou individuais.
Fanon observa também que a pessoa negra nunca possui a prerrogativa de ser negra
por si só, pois pode apenas ser negra diante do branco, tendo o branco como referência. Nesse
sentido, o negro tem negado o seu direito de constituir-se enquanto sujeito, sendo colocado
1
O. Mannoni. “Psychologie de la colonisation”. Ed. du Seuil.
como objeto que é descrito e delimitado pelos brancos, a partir dos seus referenciais. Os
homens brancos são apenas homens, enquanto os homens negros são homens negros. Os
brancos podem enxergar-se enquanto sujeitos singulares e universais, enquanto os negros
representam um conjunto particular e homogênio de pessoas que não possuem essência
própria, só existem enquanto “o outro”2 dos homens brancos, já que não possuem
propriedades ontológicas. Enquanto o branco é universal (FAUSTINO, 2013) e pode
constituir a generidade humana contando diversas formas de subjetividade e individualidade
sem que isso o defina a partir da sua raça e lhe cause um estereótipo, os sujeitos negros não
podem ser sujeitos singulares, nem mesmo podem ser sujeitos, constituem um objeto
unívoco, sem essência própria, sem subjetividade, delimitado unicamente pela sua raça, que
sempre vai ser usada pelos brancos pra justificar as características que eles apontam nos
negros, somente por serem negros. (FANON, 2008) Assim, à luz das contribuições de
Kilomba (2019) entendemos também que, quando as mulheres negras são acusadas, no
racismo cotidiano, de serem a outra indesejada, a outra intrusa, a outra perigosa, a outra
violenta, a outra passional, a outra suja, a outra excitada, a outra selvagem, a outra natural, a
outra desejável ou a outra exótica, elas são forçadas a se tornarem aquilo que o sujeito branco
não deseja ser, aquilo que o branco nega para si mesmo. (KILOMBA, 2019)
Às pessoas negras é negado o direito de formar sua subjetividade, e fazê-lo por si
mesmos. Assim, dialogando de forma crítica com a psicanálise e, assim como Fanon,
apontando as raízes sociais das mazelas psíquicas sofridas pelos negros na sociedade racista,
Kilomba afirma que “[…] o trauma de pessoas negras provém não apenas de eventos de base
familiar, como a psicanálise argumenta, mas sim do traumatizante contato com a violenta
barbaridade do mundo branco, que é a irracionalidade do racismo que nos coloca sempre
como a outra/ o outro, como diferente, como incompatível, como conflitante, como
estranha/o e incomum.“ (KILOMBA, 2019, p.40) Sendo enxergados como “o outro” do
branco, a mulher negra e o homem negro que produzem conhecimento acadêmico têm suas
falas vivencias ignoradas e desconsideradas, definidas como específicas demais, subjetivas
demais, pessoais demais, emocionais demais, parciais demais... pois a referência de sujeito
universal e singular é sempre o homem branco. (KILOMBA, 2019) Tomando as
contribuições de Mecheril3 (1997), Kilomba identifica o processo a partir do qual os
indivíduos podem construir-se enquanto sujeitos, enquanto seres dotados de subjetividade,
assinalando que isso acontece quando a pessoa consegue, em meio às relações nas quais está
2
cf KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio
de Janeiro: Editora Cobogó, 2019.
3
Mecheril, Paul. “Halb-halb. Iza, Zeitschrift fur Migration und Sozial Arbeit, thema 3-4, 1997
inserida, ser reconhecida em todos os três diferentes níveis que compõem a subjetividade,
segundo Mecheril: o político, o social e o individual. Nesse contexto,

Ter o status de sujeito significa que, por um lado, indivíduos podem se encontrar e
se apresentar e, esferas diferentes de intersubjetividade e realidade sociais, e por
outro lado, podem participar em suas sociedades, isto é, podem determinar os
tópicos e anunciar os temas e agendas das sociedades em que vivem. Em outras
palavras, elas/eles podem ver seus interesses individuais e coletivos reconhecidos,
validados e representados oficialmente na sociedade – o status absoluto de sujeito.
O racismo, no entanto, viola cada uma dessas esferas, pois pessoas negras e pessoas
de cor não veem seus interesses políticos, sociais e individuais como parte de uma
agenda comum. (KILOMBA, 2019, p.74)

E como pode a pessoa negra, no âmbito da sua psique, subverter esse silenciamento e
alienação do próprio eu e “[…] se conscientizar de sua negritude e de sua realidade vivida
com o racismo cotidiano […]”? (KILOMBA, 2019, p.235) Bom, kilomba afirma que existem
mecanismos de defesa do ego com os quais as pessoas podem proteger-se “dos conflitos com
o mundo exterior.” (KILOMBA, 2019, p.235)
Existem, segundo a autora, cinco desses mecanismos de defesa do ego: a negação, a
frustação, ambivalência, a identificação e a descolonização.

FANON, Frantz. “Pele negra, máscaras brancas” / Frantz Fanon; tradução de Renato da
Silveira . - Salvador : EDUFBA, 2008.
FAUSTINO, Deivison Mendes. “Colonialismo, racismo e luta de classes: a atualidade de
Frantz Fanon.” Anais do V Simpósio Internacional Lutas Sociais na América Latina
“Revoluções nas Américas: passado, presente e futuro”. 10 a 13/09/2013
KILOMBA, Grada. “Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano”. Tradução
de jess oliveira. Rio de janeiro: Cobogó, 2019
SOUZA, Neusa Santos. “Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro
brasileiro em ascenção social”. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

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