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CINEMA DE FLUXO EM CONTEXTO: SHARA (2003)


Curso Online de Cinema - AULA 094

INTRODUÇÃO

Da mesma forma que houve uma aula inteira dedicada a uma obra do cinema maneirista,
após sua contextualização geral, esta aula se dedica inteiramente a uma obra do cinema de
fluxo.

Tal obra é Shara (2003) da cineasta Naomi Kawase. Assim, junto a obra, serão feitos
comentários sobre o cinema de fluxo e sua estética de modo geral.

PREMISSA DO FILME

A obra conta a história de uma família que mora em Nara, uma cidade japonesa, depois que
um dos filhos desaparece misteriosamente. O trabalho mostra momentos da família alguns
anos depois deste evento.

Apesar de ter uma premissa dramática, o plot é explorado de maneira bastante sensorial. A
obra foca no estado psicológico e na percepção dos personagens. São trabalhadas as
relações de sutileza que as pessoas têm com os espaços e entre si.

Essa postura nos remete à tradição clássica do cinema Japonês, nos remete a diretores
como Ozu e Naruse. Contudo, uma das principais diferenças de Kawase para um cinema
tradicional japonês como Ozu ou Naruse, é que esta filma Shara, quase que inteiramente,
com uma câmera na mão, passeando pelos ambientes. Os tradicionais japoneses, por sua
vez, tratavam a decupagem com um formalismo e um rigor mais convencional.

O trabalho já se inicia com um plano de uma câmera na mão, dentro de um ambiente


escuro. Após isso, a câmera mostra duas crianças brincando em um ambiente externo. As
crianças correm e a câmera corre atrás delas.

Ao continuar seguindo os dois garotos pelas ruelas da cidade, por vezes parando e os
deixando correr para longe, a câmera revela uma autonomia. Em um determinado
momento, um dos garotos entra em uma ruela e desaparece do nada.

A mãe dos garotos, Reiko (interpretada pela própria Kawase), pergunta o que aconteceu e
seu irmão, Shun, diz que o garoto desapareceu. Após o incidente, o filme dá um salto de
cinco anos e decorre daí.

A CÂMERA-CORPO x A CÂMERA-ENTIDADE

A câmera em Elefante propõe uma radiografia muito própria e independente dos ambientes
onde passa. Vale lembrar da teoria da “câmera-entidade” na aula sobre O Iluminado, que
transita em todos os ambientes e coloca os personagens como em “submissão” a ela.
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Na obra de Kawase acontece algo parecido, como se a câmera tivesse uma autonomia e
estivesse em busca de alguma coisa específica. O plano que abre o longa já demonstra
isso: a câmera começa dentro de um lugar e, por conta própria, sai deste lugar, encontra os
irmãos e aí sim passa a seguí-los.

Durante toda a obra, existem momentos semelhantes a esse. Como a cena em que a
câmera está dentro da casa da família e, ao observar os personagens, dá a sensação de
ser uma pessoa invisível observando os outros membros familiares e seus atos cotidianos.

Boa parte do longa de Kawase é formado por esse tipo de dinâmica. Uma pessoa executa
um ato cotidiano e a câmera “reage” àquela ação.

Em uma cena específica, duas mulheres estão caminhando pela cidade enquanto uma
delas conta quem é seu pai. Enquanto passeiam, a mulher mais velha conta quem é seu
pai: seu irmão mais velho, que foi embora, e ela enquanto irmã passou a cuidar da garota.

Tal revelação importante é seguida de uma informação: A mulher mais velha está usando o
calçado que era do pai da mulher mais nova.

Assim, a câmera que estava apenas filmando as duas do joelho ou da cintura para cima, faz
um movimento para baixo, como se a câmera fosse “alguém” olhando para os calçados,
como se a câmera fosse uma pessoa que, de modo espontâneo, reage ao que acontece.

Este é o principal diferencial da decupagem e da relação proposta com a câmera de


Kawase. Para se referir à obra de Kawase, tal proposta já recebeu o nome de
“câmera-corpo” por alguns teóricos do cinema.

Assim, se em O Iluminado temos a câmera-entidade, que paira e submete tudo ao seu


domínio, flutuando pelos ambientes de modo impassível, a câmera-corpo filma na altura dos
personagens e se integra à instabilidade do andar dos personagens, reagindo de maneira
bastante humana ao que mostra.

O SUTIL E O SOBRENATURAL

Uma das cenas em que mais sentimos essa reação da câmera é quando acontece uma
dança em um festival de rua. Vários pessoas estão reunidas e fazendo uma coreografia
específica enquanto Shun cuida da contenção do público.

De repente, começa a chover e a dança se intensifica. As pessoas se integram a este


momento e é possível observar Shun se entregando à esta energia e dança na chuva,
numa espécie de momento de purgação.

Ele inclusive sorri e interage com as pessoas, o que praticamente não acontece durante o
filme, já que estava sempre mais recluso e até melancólico.
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Tal momento começa como um ato cotidiano de uma celebração, porém, através das
escolhas formais de Kawase, se transforma em um momento sobrenatural. A música, a
dança e a chuva, aliadas a essa câmera-corpo, constroem uma atmosfera que beira o
místico.

Ao longo da obra este ritmo é repetido algumas vezes: não existe nada de fato sobrenatural,
mas muitos elementos formais que sutilmente sugerem isso.

Da mesma maneira que Susan Sontag sugere que Robert Bresson possui um estilo
“espiritual”, podemos dizer o mesmo de Kawase. Com estilos diferentes, mas evidenciando
uma força espiritual em gestos essenciais com ações cotidianas.

MUTAÇÃO NA NATUREZA DO PLANO

A cena final do filme é mais uma que evidencia esta autonomia da câmera. Talvez, a cena
mais explícita disso junto ao plano inicial, como um tipo de plano-espelho.

Neste plano, a mãe está tendo um parto natural em casa. A câmera se move como se fosse
uma das pessoas agachadas ao redor dela. Em seguida ao nascimento do novo membro da
família, Shun se emociona - como uma espécie de recomeço, já que a obra deixa entendido
que ele nunca mais foi o mesmo desde que seu irmão desapareceu.

Com o bebê nos braços da mãe, a câmera começa a se afastar da família, de fato como
uma pessoa mesmo faria: sai pela porta da casa, atravessa a rua, entra em outro ambiente
e, ao fundo, ouvem-se as vozes dos dois irmãos. As vozes escutadas anteriormente no
plano inicial do filme.

É perceptível que o ambiente adentrado pela câmera é o mesmo do plano inicial, dos dois
irmãos brincando. Após passar por outra porta (como se a própria presença da câmera
abrisse a porta), ela se eleva pelas casas. Mostra telhados, árvores, o céu, e existe uma
fusão para uma imagem de uma vista aérea da cidade.

Podemos dizer que este plano começa como uma câmera-corpo, ao lado dos personagens
enquanto a Reiko tem o seu parto e, após essa jornada pelo outro ambiente em que a
câmera se eleva aos céus, o plano se transforma em uma câmera-entidade

A câmera deixa de ter a natureza de um corpo físico invisível e passa a flutuar pela cidade,
como algo além de um corpo.

Tudo isso acontece em um único plano: a natureza de toda a encenação do filme vai se
modificar durante este único plano. Esta é uma característica muito forte da tendência do
fluxo de modo geral. A característica do plano, por si só, possuir uma natureza “mutante”.

Em Elefante (2003) também ocorre algo parecido quando Gus Van Sant usa o slow motion
e o ponto de vista em uma cena específica: quando um personagem passa ao lado de três
garotas, o plano de repente muda de ângulo e velocidade, as garotas olham na direção da
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câmera como se, por alguns segundos, o plano se transformasse no ponto de vista do
personagem.

Ou seja, dentro deste plano de Gus Van Sant houve construções formais muito específicas,
de tal modo que sua natureza se modificou em um mesmo take.

CITAÇÕES DA AULA

FILMES

Shara (2003) - Naomi Kawase


Elefante (2003) - Gus Van Sant
Millenium Mambo (2001) - Hou Hsiao-Hsien
Café Lumière (2003) - Hou Hsiao-Hsien

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