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Abstract Introdução
projetos sociais nos quais predominem relações cessidades e distribuição social dos serviços de
solidárias e de cooperação entre gêneros e gru- saúde, bem como sobre natureza, formulação e
pos étnicos. A “iniqüidade” seria, para Breilh 21,22, implantação das políticas de saúde.
uma categoria analítica que marca a essência do Por outro lado, teorias sociais que subsidiam
problema da distribuição de bens na sociedade, a discussão conceitual dos determinantes sociais
enquanto a desigualdade corresponderia a evi- da saúde raramente têm sido desenvolvidas e ex-
dências empiricamente observáveis. Quando a plicitadas na profusa literatura sobre o tema 40,41.
“iniqüidade” surge historicamente, a diversidade Ambas as lacunas são centrais para a compreen-
assume um papel negativo, tornando-se veículo são acerca do significado dos conceitos relacio-
de exploração e subordinação. O termo “iniqüi- nados com diferenças na saúde-doença-cuidado
dade”, por sua vez, seria sinônimo de injustiça. em populações. Isso porque diferenças no estado
As diferenças constituiriam a expressão, nos in- de saúde de grupos e classes são resultantes de
divíduos, ou da diversidade, em sociedades soli- processos biológicos e sociais cuja explicação
dárias, ou da iniqüidade, em sociedades em que pode envolver diversas teorias sobre o social,
haja concentração de poder 21,22. com desdobramentos metodológicos e conceitu-
Esses trabalhos constituem inegável contri- ais variados, a depender do referencial adotado.
buição à temática ao fundamentarem a relevân- Exceção parece ser a abordagem de Breilh
cia da análise conceitual nas investigações acerca 21,22, de clara orientação marxista, que remete a
suas obras”; “a cada qual segundo seus méritos”; fórmula de Whitehead, de acesso igual para ne-
“a cada qual segundo suas necessidades”; “a ca- cessidades iguais, os problemas práticos serão
da qual segundo a lei”; “a cada qual segundo sua insuperáveis. Quando uma criança tem uma
posição”. Na prática cotidiana, essas diversas fór- pneumonia, precisa de uma consulta médica
mulas da justiça podem entrar em contradição. de emergência. Todavia, se a criança nasceu em
Por exemplo, se dois indivíduos, com a mesma uma família rica, seus pais somente considera-
qualificação (mérito), produzem, do ponto de rão que suas necessidades foram satisfeitas se o
vista qualitativo e quantitativo, diferentes bens acesso for imediato a um hospital limpo, moder-
(obras), pode não ser justa uma remuneração no e confortável. Se a mãe vem de família mais
equivalente. pobre, ela pode ficar satisfeita simplesmente ao
Eqüidade, no sentido que lhe é dado por Pe- ter acesso ao cuidado efetivo, em tempo hábil
relman 38, corresponde a um instrumento da jus- para a resolução do problema, com pouca preo-
tiça concreta concebido para resolver as antino- cupação com o tempo de espera ou se o hospital
mias ou contradições entre as diversas fórmulas funciona num prédio sem conservação. Para a
da justiça formal. A eqüidade corresponde, des- definição de políticas de saúde justas, que cor-
sa forma, a uma intervenção de agentes sociais, respondam ao atendimento das necessidades da
quando assumem o papel de juiz, sobre situa- população, quais as necessidades que devem ser
ções de conflito. No caso específico da saúde, o consideradas? As da mãe rica ou as da mãe po-
exercício da eqüidade pode se materializar no bre? Se, por razões econômicas e técnicas, consi-
processo de formulação das políticas de saúde e deramos as expectativas da mãe pobre, não esta-
das políticas públicas intersetoriais que podem remos satisfazendo as necessidades da mãe rica,
ter impacto sobre os determinantes sociais da e ela procurará assistência fora da rede pública
saúde. Nesse sentido, eqüidade corresponderia com implicações para os propósitos de desenvol-
à participação e governança determinada pela vimento de sistemas universais. Mais grave ain-
cidadania plena, em um contexto de liberdade e da, poderemos estar rebaixando a definição do
democracia. Ainda assim, precisaríamos definir cuidado aceitável às expectativas modestas das
melhor o que é cidadania plena. No caso brasilei- classes populares que ajustam, freqüentemen-
ro, por exemplo, os resultados das conferências te, necessidades a possibilidades, como analisou
de saúde mostram que ainda não alcançamos Bourdieu 42 em relação ao gosto popular.
graus mínimos de cidadania. Independentemen- Para resolver esse problema, Heller 39 (p. 52)
te disso, o Estado pode formular políticas mais substituiu a idéia de justiça relacionada com
ou menos promotoras de eqüidade. necessidades ou necessidades essenciais por
Heller 39 critica as fórmulas que definem ne- aquela fórmula: “Para cada um, aquilo que lhe é
cessidades como critérios de justiça e apenas devido por ser um membro de um grupo ou cate-
considera as primeiras três fórmulas, aquelas que goria essencial”. Entretanto, mesmo se a fórmula
envolvem trabalho, mérito e posição. Para Heller, “a cada qual segundo suas necessidades” não é
necessidades humanas não podem ser definidas uma idéia de justiça, ela pode ser aplicada como
de forma objetiva, e definir necessidades iguais uma idéia de justiça corretiva, como uma idéia
é, conseqüentemente, uma tarefa impossível. A de igualdade. Em outras palavras, a pessoa que
partir de uma perspectiva diversa, Perelman 38 está julgando pode levar em conta a singulari-
(p. 9) também tinha consciência de que a fórmu- dade das necessidades pessoais e distribuir bens
la “a cada qual segundo suas necessidades” não e serviços de diferentes formas para diferentes
era uma fórmula de justiça. Por essa razão, suge- pessoas. Essa forma de ação pode ser boa, mas
riu alterá-la para “a cada qual de acordo com suas não justa. O conceito ético de justiça é, portan-
necessidades essenciais” 38 (p. 9). Isso é verdadeiro to, relacionado com as noções de honestidade e
para todos os determinantes sociais da saúde, bondade.
como comida, educação e situação no trabalho, Heller 39 também discute o conceito ético
entre outros. O alimento pode ser considerado político de justiça como relacionado à tarefa,
como necessidade básica e universal. Entretan- historicamente justificada tanto por fé como
to, o tipo e quantidade variam de pessoa para pela razão, de reformar tanto a sociedade injus-
pessoa, de cultura para cultura e de classe para ta como os indivíduos injustos. Ela argumenta
classe. Há também necessidades humanas que que, nos tempos modernos, o conceito ético de
não podem ser distribuídas, como, por exemplo, justiça perde seu componente sócio-político. O
amor e amizade. que resta é referido como justiça distributiva, que
No campo da saúde, tal condição é plena- propõe liberdade igual, oportunidades iguais e
mente aplicável. As necessidades de serviços de acesso igual para recursos visando satisfazer as
saúde e mesmo as necessidades de saúde variam necessidades básicas essenciais 42. Heller então
de pessoa para pessoa. Se decidirmos aplicar a conclui que igualdade e desigualdade são am-
bos construtos sociais porque cada ser humano arena das variações sociais, um elemento mais
é único. Ela desenvolve um novo conceito ético propriamente dialógico ou interativo, referido
político incompleto de justiça. Esse conceito ten- à linguagem como mediador do valor (estético,
ta estabelecer uma base normativa comum para religioso, mítico, esportivo etc.) das diferenças.
diferentes modos de vida. O conceito é incom- Na dimensão do cotidiano, as opções mais ordi-
pleto porque cada modo de vida específico pode nárias, como o gosto alimentar ou a prática de
ser ideal para o indivíduo que o escolheu. É por esportes, revestem-se de significado social rela-
essa razão que não pode existir um modo de vida cionado com a constituição de classes sociais,
ideal. Justiça, conclui Heller, existe como recipro- classes de gênero e classes de geração.
cidade simétrica, comunicação e cooperação. Transportando essa reflexão para a saúde,
Na presente discussão, como vimos, ambos poderíamos dizer, numa primeira aproxima-
os termos “desigualdade” (inequality) e “iniqüi- ção, que diferenças biológicas produzem – para
dade” (inequity) devem ser relacionados a idéias usar a expressão de Canguilhem 45 – potenciais
de justiça de acordo com diferentes tradições teó- de reação distintos frente às infidelidades do
ricas. Assim, desigualdades em saúde podem ser meio, resultando ou não em diferenças orgâ-
interpretadas como resultado de diferentes for- nicas, fisiopatológicas. Contudo, as diferenças
mas de tratamento a indivíduos que pertencem biológicas, embora aparentemente dadas e na-
a categorias essenciais ou grupos sociais 39,40. Já turais, sempre se expressam através de comple-
eqüidade em saúde pode ser interpretada como xos processos de produção social. Se, por um
o resultado de políticas que tratam indivíduos lado, a expressão fenotípica e fenomênica dos
que não são iguais de forma diferente. Nesse sen- processos biológicos resulta da interação entre
tido, “eqüidade” e “iniqüidade” correspondem a o indivíduo e a sociedade, os mesmos podem,
conceitos relacionados com a prática da justiça por sua vez, ser percebidos e ressignificados de
e à intencionalidade das políticas sociais e dos forma diferente pelos sujeitos. Ou seja, as per-
sistemas sociais. cepções e os sentidos atribuídos aos efeitos dos
processos fenomênicos dependerão da posição
que os sujeitos ocupam em diversos campos do
O conceito de distinção espaço social, nos diferentes momentos históri-
cos, bem como das relações estabelecidas com
Um importante conceito a ser considerado nesta outros indivíduos no trabalho, na família e nos
série significante, apesar de ausente no debate movimentos sociais. Embora essas relações se-
corrente sobre o tema desigualdades em saúde, jam mais freqüentemente de luta e conflito, por-
envolve as dimensões simbólicas individuais e tanto geradoras de estresse, podem ser também
coletivas do existir humano. Trata-se da idéia cooperativas e comunicativas e, dessa forma,
de distinção, que será aqui utilizada no sentido protetoras 46.
proposto por Bourdieu 42, referindo-se a um atri- Para Bourdieu 42, a matriz que orienta essas
buto que não é nem “natural” como pretende a percepções e ressignificações é o habitus, es-
burguesia nem necessariamente corresponde a quemas de visão e de divisão do mundo social
diferenças sociais decorrentes de políticas iní- que funcionam como “estruturas estruturantes”.
quas produtoras de inferioridades. Analisando Além disso, pelo fato de estarem relacionados à
a homologia existente entre o espaço dos estilos posição que os indivíduos ocupam num espaço
de vida e o espaço social, através da investigação social e com as diversas espécies de capital que o
sobre o gosto das diferentes classes e frações de indivíduo acumula – econômico, cultural, social,
classe a respeito do consumo de bens culturais político e simbólico, tais esquemas também con-
(obras de arte, cinema, música, lazer, esporte), formam “estruturas estruturadas”.
mas também vitais (alimentação), esse autor O conceito de habitus é central na teoria das
conclui que o gosto constitui um operador práti- práticas de Bourdieu juntamente com os con-
co da transformação de coisas em signos distin- ceitos de espaço social, campo, illusio e capital
tos e distintivos. 42,47,48,49. O habitus corresponde à incorporação
A distinção faz parte das práticas dos agentes de estruturas relacionadas com a história coletiva
sociais, quer de forma individual quer de forma e com a trajetória individual no inconsciente dos
coletiva, na constituição de sua identidade e de indivíduos. Dessa forma, funciona como esque-
sua significação, o que não quer dizer que essa mas de percepção e classificação das práticas,
busca seja o motor da conduta humana como como um operador prático que ajusta condições
alerta o referido autor 42. São então incorpora- objetivas a esperanças subjetivas. O habitus de
das à análise duas novas dimensões do proble- classe ou de grupo corresponderia a um sistema
ma: a natureza simbólica do homem 43 e o seu subjetivo, mas não apenas individual, de estrutu-
cotidiano 44. A dimensão simbólica introduz, na ras interiorizadas 47.
Por outro lado, as práticas que implicam de- rizadas principalmente pela clínica, que, nesse
terminadas escolhas, gostos e estilos de vida e sentido, engendrou o aforismo idealizado – exis-
que influenciam na produção de certos estados tem doentes e não doenças –. Numa perspectiva
orgânicos são o resultado da relação entre um comparativa visando à produção de conheci-
habitus e uma situação 42. Dessa forma, o pro- mento de base indutiva, originalmente no nível
cesso saúde-doença-cuidado corresponderia ao subindividual da Patologia, importa mais a se-
produto de uma dupla relação entre os agentes melhança como operador lógico-conceitual do
sociais tanto na produção de certos estados or- diagnóstico; por outro lado, no nível individual
gânicos quanto nas percepções distintas acerca da prática clínica, ressalta-se a diferença entre os
dos últimos. Ambos os complexos de fenôme- casos que demandam intervenção profilática ou
nos são influenciados pela posição ocupada terapêutica específica.
pelo indivíduo no espaço social, pelas relações Por outro lado, ao se considerar a dimensão
sociais de luta e cooperação existentes nas redes coletiva do fenômeno saúde-doença, priorizam-
de relações dos campos a que eles pertencem e se disparidades não entre seres individuais e sim
pelas dinâmicas existentes intra e entre campos entre conjuntos de indivíduos – “populações”. Is-
sociais 46. so tem caracterizado a Epidemiologia, constituí-
da, no século XX, como abordagem científica dos
fenômenos populacionais da saúde-doença, re-
Semelhanças/diferenças no adoecer gistrando as diferenças, inicialmente em relação
ao lugar, tempo, idade e sexo, e, posteriormente,
O processo concreto do adoecimento pode ser em relação a estratos, grupos, etnias, gêneros e
apreendido, numa primeira aproximação, co- classes sociais. A busca de associações entre ex-
mo série fenomênica a um só tempo singular e postos e não expostos implica simultaneamente
particular, com grande variação entre indivíduos na identificação de semelhanças entre indivídu-
(ou espécimes), a despeito da existência de ca- os e diferenças entre grupos.
racterísticas comuns aos diversos casos de uma A Epidemiologia, enquanto dispositivo tec-
mesma doença. Consideremos como operador nológico, pode até ser capaz de medir com algum
teórico dessa primeira aproximação a díade se- grau de precisão variações na mortalidade e na
melhança/diferença. Em segunda aproxima- morbidade, porém encontra limitações para ex-
ção, doenças, padecimentos ou agravos à saúde plicar as raízes das disparidades sociais em saúde
são construídos como objeto de conhecimento e sua persistência mesmo em sociedades indus-
científico, metodologicamente, por referência trializadas. De fato, o estudo das desigualdades
a variações em coletivos humanos. Nesse caso, em saúde implica adoção de um referencial te-
estaríamos falando de igualdade/desigualdade órico capaz de relacionar essas diferenças com
de situações 38, no opus operatum no sentido de os processos através dos quais o espaço social é
Bourdieu ou no simples sentido da igualdade/ constituído e reproduzido tanto na esfera econô-
desigualdade matemática. No âmbito da saúde, mica quanto na simbólica e cultural que podem
a busca de semelhanças entre fenômenos da resultar tanto em apropriação material da rique-
natureza – inspirada na lógica formal aristotéli- za, a partir da exploração do trabalho de um gru-
ca 50 – tem norteado a construção de conceitos po por outro, quanto em violência simbólica, ge-
em ciências descritivas, tais como a Anatomia e rando, assim, diferenças que, por serem produto
a Histologia, nas ciências da função, como a Fi- de injustiças, correspondem a desigualdades.
siologia e a Patologia, bem como nos campos de Como ilustração, tomemos o campo da Ge-
aplicação científica, como a Medicina e a Saúde nética, responsável pelos exemplos mais consis-
Coletiva. Assim, da mesma forma que as diversas tentes de reafirmação das diferenças biológicas
espécies animais e vegetais foram classificadas, entre os seres humanos. Mesmo em relação a
as doenças também foram nomeadas median- essa ordem de determinação, as características
te a identificação de sintomas e sinais comuns de penetrância e expressividade dos genes tradu-
a certos indivíduos e a partir de quadros anáto- zem a variabilidade dos mesmos bem como sua
mo-patológicos correlacionados. Em sua obra expressão concreta como produto da interação
O Nascimento da Clínica, Foucault 51 assinala com o meio 52. Uma criança com síndrome de
a importância da Medicina das Espécies para a Down pode, a depender da rede de relações so-
constituição histórica de um saber racional e ins- ciais estabelecida pela família e pela sociedade,
trumental sobre os fenômenos da saúde-doen- desenvolver atividades habituais e até mesmo ar-
ça-sofrimento-morte, na Europa Ocidental, no tísticas. Pelo contrário, outra criança com quadro
século XVIII. congênito similar, cuja posição no espaço social
As diferenças individuais entre distintas ma- não lhe permite superar seu problema genético
nifestações de certas patologias têm sido valo- e ser normativa (no sentido canguilhemiano),
dependerá de políticas equânimes de saúde pa- pede politizar os seus diversos sentidos e efeitos.
ra que a diferença biológica não resulte em um A presente proposta de abordagem do problema
problema de saúde. Nesse caso, a diferença bio- da eqüidade em saúde, pelo contrário, possibilita
lógica, na ausência de eqüidade, pode tornar-se reafirmar que as diferenças de ocorrência de do-
desigualdade. enças e eventos relativos à saúde são mediadas
Também outras diferenças biológicas, e tam- social e simbolicamente. Desse modo, refletem
bém socialmente construídas, consideradas no interações entre diferenças biológicas e distin-
plano coletivo como diversidade, no sentido pro- ções sociais por um lado e iniqüidades sociais
posto por Breilh 21,22, e que repercutem na saú- por outro, tendo como expressão empírica as
de (gênero, etnia e geração), são influenciadas e desigualdades em saúde. Por esse motivo, tratar
mediadas por diferenças sociais. A cronificação teoricamente o problema da eqüidade em saú-
de idosos relacionada com o abandono familiar de toma como imperativo examinar as práticas
pode estar relacionada com as características das humanas, sua determinação e intencionalidade
relações familiares que variam, entre outros as- no que diz respeito especificamente a situações
pectos, com os grupos sociais. As repercussões concretas de interação entre os sujeitos sociais.
e a capacidade de enfrentamento da violência No plano metodológico, algumas das contri-
doméstica contra a mulher, fruto da dominação buições dos autores aqui analisados podem ser
de gênero que estrutura a sociedade ocidental, úteis para estabelecer uma terminologia mais
variam também entre campos do espaço social. precisa no sentido de construir uma matriz se-
Quanto mais bem situada no espaço social no mântica comum, passo inicial para melhores
que diz respeito à quantidade de capital cultural, práticas de pesquisa sobre o tema injustiças em
econômico e simbólico acumulados, a mulher saúde. Nesse sentido, identificamos a oportuni-
dispõe de mais recursos para enfrentar a violên- dade e mesmo urgência de restaurar as relações
cia masculina, quer materialmente, quer psico- teóricas entre os conceitos a fim de possibilitar
logicamente. uma prática social transformadora.
Em outras palavras, a pergunta que motiva As considerações feitas aqui sobre a natu-
grande parte das investigações de causalidade reza das iniqüidades em saúde mostram que,
na Epidemiologia é exatamente quais são os atri- além disso, é necessária uma reorganização do
butos comuns ao grupo doente e quais as dife- espaço social, sua estrutura e suas relações. Essa
renças em relação ao grupo que não adoece. A tese, entretanto, pressupõe a existência de atos
resposta a essa questão tem sido norteada, de desinteressados combinada com ações racio-
forma hegemônica, por uma concepção biologi- nalmente direcionadas a finalidades explicita-
cista da determinação das doenças e pelo recurso mente apresentadas. A unanimidade do discur-
ao conceito formal de risco como probabilidade so em prol da eqüidade, não obstante o amplo
de adoecer 53. Assim, o esforço de mapeamento espectro de forças políticas que o formulam, ao
do genoma humano, as tentativas de isolamento tempo em que se contempla a persistência das
de novos vírus em doenças neoplásicas e a cha- desigualdades no mundo, mostra que outras
mada epidemiologia molecular situam-se nessa lógicas devem estar orientando a formulação
direção 54. Segundo tal abordagem, homens e (ou pelo menos a implementação) das políticas
mulheres, negros e brancos, ricos e pobres adoe- públicas.
ceriam porque são constitutivamente diferentes Na atual conjuntura de debate teórico da
entre si, têm genótipos diversos e, conseqüen- Saúde Coletiva no Brasil, tornou-se consenso
temente, desenvolvem respostas imunes dife- afirmar que a superação das desigualdades em
renciadas – em outras palavras –, tratam-se de saúde requer a formulação de políticas públi-
substâncias diferentes. Não poderia haver me- cas equânimes. Isso corresponde ao reconhe-
lhor exemplo, a ser frontalmente questionado, de cimento da saúde como direito e à priorização
uma visão substancialista da ciência, no sentido das necessidades como categoria essencial para
de Cassirer 50. as formas de justiça. Priorizar necessidades não
significa impor necessidades, porém definir o
padrão tecnicamente aceitável interagindo com
Conceitos de Eqüidade em Saúde: as expectativas dos diversos modos de vida dos
conclusão diferentes grupos sociais. Introduzir, no deba-
te da saúde, o conceito de distinção, tal como
À exceção da proposta de Breilh 21,22, as perspec- definido por Bourdieu 42, significa incorporar,
tivas analisadas acima situam os conceitos da na pauta política da Saúde Coletiva, aquelas
série semântica em pauta num mesmo patamar diferenças e diversidades que, por se situarem
hierárquico, como se fossem expressões de pro- predominantemente no plano simbólico, apa-
cessos sociais históricos equivalentes, o que im- reciam como mero resíduo da vida social dos
seres humanos, como, por exemplo, a questão plicar o real para transformá-lo. Parafraseando
das condutas de risco e das heterogeneidades Bourdieu 55 (p. 736) a respeito do conhecimento
de base étnico-cultural. científico, diríamos que “a alternativa da ciên-
À guisa de conclusão, embora este ensaio cia não é entre a desmedida totalizadora de um
não pretenda ser um estudo semântico apro- racionalismo dogmático e a renúncia esteta de
fundado e sim tão somente uma anotação para um irracionalismo niilista; ela se satisfaz com
abertura de debate, portanto descomprometido verdades parciais e provisórias que ela pode con-
com prescrições e soluções, afirmamos que a quistar contra a visão comum e contra a doxa in-
temática das desigualdades em saúde, marca- telectual e que estão em condições de fornecer os
da pela iniqüidade das políticas econômicas e únicos meios racionais de utilizar plenamente as
sociais, impõe uma tomada de posição tanto margens de manobra deixadas para a liberdade,
epistemológica quanto política. Não basta ex- isto é, para a ação política”.
Resumo Colaboradores
A eqüidade em saúde tem sido estudada principal- L. M. Vieira-da-Silva foi responsável pela concepção da
mente a partir de uma perspectiva epidemiológica e arquitetura do ensaio, realização da síntese da biblio-
pouca atenção tem sido dada às questões conceituais. grafia revisada e redação. N. Almeida Filho contribuiu
Em grande parte dos estudos revisados, a eqüidade na concepção do ensaio, na síntese da bibliografia e na
tem sido utilizada como sinônimo de igualdade, e seu redação.
oposto, a iniqüidade, como sinônimo de desigualdade.
As tentativas de melhor precisar seus significados têm
sido, em boa parte, descritivas, com lacunas no que diz
respeito à discussão das relações entre eqüidade em
saúde, justiça e o processo de determinação social da
saúde-doença. Neste ensaio, pretendemos analisar cri-
ticamente a série significante diversidade, diferença,
desigualdade, iniqüidade, distinção no que concerne
à produção da saúde-doença-cuidado em grupos so-
ciais e suas possibilidades de articulação a uma teoria
social da saúde. Nesse percurso, estaremos apoiados,
por um lado, no conceito de Perelman de eqüidade e
em alguns dos argumentos de Heller sobre a justiça e,
por outro lado, na sociologia das práticas de Bourdieu,
com o objetivo de melhor desenvolver esses conceitos,
procurando discutir implicações para a formulação de
políticas públicas no campo da saúde.
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Recebido em 11/Mar/2008
Aprovado em 17/Jun/2008