Nosso ponto de partida é uma exposição conceitual da ética e da moral. Sobretudo
será importante revelar a diferença entre os dois conceitos e sustentar a necessidade de demarcar essa diferença. Uma explicação interessante e bastante convincente sobre a gênese da moral encontramos na obra de Henri Bergson As duas fontes da moral e da religião. Diz Bergson que a moral (e também a religião, que nunca está dissociada da moralidade) decorre do desenvolvimento da inteligência. Acontece que a evolução da vida faz expandir a consciência até a autoconsciência humana, abrindo caminho para o psiquismo da vontade e da liberdade. Acontece também que a natureza nos impõe a vida societária. Duas forças antagônicas, portanto, estão implicadas na condição humana: de um lado vontade e liberdade com sua tendência individualizante, de outro lado a imposição da vida social, a ordem da coletividade. A moral decorre da necessidade de resolver o impasse da condição humana: a vontade de ser livre e cuidar apenas de si mesmo e a necessidade de viver com os outros. A moral é o corretivo da liberdade dissociativa. Tendemos a formar sociedade, mas também tendemos a inviabilizar a sociedade, uma vez que não somos regidos pelo instinto, que nos imporia uma vida automática e uma obediência cega à ordem social. Ou seja, a inteligência humana na mesma medida em que instiga a liberdade e a individuação, cria mecanismos de controle e de coação. O conjunto dessas técnicas sociais de constrangimento da tendência individualizante e a favor da vida comum é o que chamamos de moral. Diríamos ainda, por esta lente evolucionista, que a moral é uma inteligência que se esforça para ser instinto, pois a sua tendência é a conservação. A obediência e o hábito são sua força. O ideal da vida moral não é a tomada de consciência dos motivos da ação, mas a repetição automática, a obediência cega, a fidelidade ao hábito, a padronização do comportamento. A razão da moral é o medo da liberdade, ou antes, o medo do que a liberdade pode fazer, já que ela está associada primeiro ao indivíduo; medo da surpresa, do futuro que se abriu ante a consciência expandida. Uma sociedade humana se forma por uma tendência reativa: os humanos se associam na medida em que reagem ao perigo de causarem surpresa uns aos outros, (o que inclui o perigo de causar surpresa a si mesmo). Dessa reação é que nasce a moral. A moral precisará eleger seus critérios de associação, suas identidades: a consanguinidade, o solo, os mitos, as crenças. O sentimento de pertença, ao sangue, ao solo, é, naturalmente, includente e excludente. Não há sociedade humana que não se baseie na negação da outra sociedade, no mínimo virtualmente. Isto aparece em vários níveis – religiosos, econômicos, políticos – e pode ser observado em organizações pequenas como famílias e grupelhos de alunos ou professores, guangues de crianças no parque ou na escola e gangues de bandidos no tráfico de drogas; em organizações maiores e mais duras e duradouras como a nossa comunidade idiomática, a nossa nacionalidade, a nossa regionalidade, as pessoas que estão nos desenhos que projetamos do solo aos mapas e dos mapas aos solos, cada linha do território constituindo uma potencial zona de guerra. Onde quer que se organize o ser humano tende à territorialidade, como se na sociedade houvesse um sedentarismo inato, pronto para se revelar e aplicar sua irresistível força. Mas também pronto para ser reprimido por forças antagônicas, como a do nomadismo. O hábito é a teoria mais acessível de justificação da moral. De fato, a moral do hábito não demanda muita inteligência, o que a torna poderosa e dominadora. É a moral do fazemos assim porque sempre foi assim. O hábito imita e repete, está muito próximo da animalidade instintiva e, embora não seja a mesma coisa, tem toda aparência de automatismo instintivo. Age nele uma fidelidade supersticiosa, infra-racional. Pelo fato de que pensa pouco, porque não precisa de muito pensamento, e quanto mais ausente e alienado de pensamento, mais forte, o hábito permite o absurdo e trabalha exatamente para tornar o absurdo uma coisa natural e até sagrada. É provável que essa força se explique pela proximidade instintiva, já que o instinto é a força orgânica fundamental da vida; é provável que o hábito ganhe de graça o capital do instinto: o instinto capitaliza o hábito. De maneira que sempre estamos lidando com a resistência dessa força fundamental, sempre que investimos em nossa inteligência, sempre que recuperamos o fluxo do pensamento, percebemos o capitalismo perverso e odioso do hábito, a nossa fábrica de preconceito. Desmascaramos o absurdo e ele se revela monstruoso, desnaturalizamos o hábito, sempre que investimos em nossa inteligência. Mas o problema é que este sempre que tende a ser bem mais raro. É uma temporalidade dissonante da sociedade. Sempre que investimos em nossa inteligência, provocamos a sociedade. Obviamente que a sociedade tira proveito disso, rouba nossa ideia e se adapta a ela ou faz ela se adaptar. Mas o importante é que pensar provoca. Porque o pensamento sempre traz de volta o motivo que fez a sociedade se convocar para suprimi-lo, é uma estranheza, uma dissonância. O motivo pelo qual o pensamento provoca é o seu grande capital, o seu tesouro. O problema, de um ponto de vista estritamente técnico ou operacional, é que tal capital é avesso a qualquer forma de capitalismo, não admite investidores, não admite financistas, empreiteiros ou banqueiros. O resultado negativo é que o pensador tende à solidão. Sua obra custa barato porque ele praticamente não tem mercado, é um outsider econômico, um marginal. Pobre pensador. Mas esse anticapitalismo congênito do pensamento, esse tesouro que não tem preço, é o segredo de nossa mais autêntica força. Não há outra maneira de acessá-lo senão tomando o próprio caminho, este que ninguém mais conhece a não ser aquele que o produziu. Mesmo que seja o caminho de ler o pensamento de alguém, é este sempre um caminho próprio, se é que se tratará de buscar esse tesouro de ideias. Isto já foi dito de incontáveis maneiras e por inúmeros prosadores do pensamento, filósofos, cientistas e artistas. O pensamento é aquilo que individua, diferencia, faz aparecer do meio da massa homogênea, destoa, grita. O pensamento ao diferenciar quebra o encanto da conservação, desmitologiza a moral do hábito. A sociedade reprime e tira vantagem, capitalista que é, expolia o pensador, massacra o indivíduo, acusa-o de traidor, desertor. Se vai lhe render graças, condecora-lo, é sinal de que o pensamento não é mais cem por cento dono de si mesmo. Diriam que ele se vendeu para ganhar o prêmio. O autêntico pensamento, pelo fato de que é obra individual, jamais poderia ser reconhecido, a sua comunicação já impõe uma certa corrupção, já precisa ceder de si. Diríamos que o autêntico pensamento é a mais extrema e incomunicável solidão existencial, a mais alta e a mais cara liberdade. Mas obviamente não precisamos tomar ao pé da letra o que foi dito. Há uma série de lições que podemos tomar de nossa dilacerante condição de potenciais desertores. A sociedade é cruel, mas tiramos vantagens dela, não queremos abandoná-la, insistimos em viver juntos. Investir no pensamento, produzir diferença, faz parte de nossa configuração societária. Quando pensamos estamos engajados no desejo de comunicar o nosso pensamento, e se não conseguimos, o que muitas vezes acontece, isto é também o motivo que nos leva a continuar pensando e comunicando. Esta diacronia entre o pensamento e a comunicação demonstra que o pensamento é uma solidão que se vive socialmente. Aqui está o elo perdido entre a força da individuação e a força societária, entre a diferenciação e a massificação, entre a criação e a conservação. Este elo diz que o ato criador, o ato poético, a despeito de sua rebeldia, é um ato por amor à sociedade, na mesma medida em que é amor de si e por si; este elo é poro por onde a sociedade respira ares novos, e é o indivíduo que o representa: ou seja, cada indivíduo é um potencial ponto de evasão e expansão social. As forças que agem nele estão conectadas através dele – o indivíduo é elo de forças – e se retroalimentam no circuito dessa existência insistente, desse animal inteligente. Chamemos a força criadora da liberdade de ética, e a força conservadora do hábito de moral. Admitamos para essas palavras toda a bagagem de tendências antagônicas que foi apresentada. Recriemos através desse rico antagonismo os conceitos de ética e moral, e sobretudo ressaltemos a importância de reconhecer e valorizar a diferença entre a ética e a moral. A seguir ensaiamos algumas teses dessa experimentação conceitual, a título de síntese: I. A natureza da moral é social: sua tendência é o automatismo da repetição, seu projeto é a semelhança com a vida instintiva e programada, a comunidade homogênea, a massificação. A força fundamental da moral é o hábito. II. A natureza da ética é individual: sua tendência é a diferenciação, o movimento criador, seu projeto é a dissonância, a ruptura, a desordem, a mudança de hábito, o desencantamento da tradição, a traição, a deserção. A força fundamental da ética é o pensamento. III. A ética não existe sem uma moral associada: se o seu objetivo é transvalorar, é para criar valores novos. Na medida em que transvalora, transgride, trai a moral vigente, a ética é imoral. Mas cria novos valores, a atitude de transgredir é co-extensiva à atitude de criar. Transgredir valores, eticamente falando, é ser propositivo, a ética é um gesto poético. Nesse sentido, não tem diferença da estética. A ética é imoral, mas não é amoral. IV. Uma sociedade apenas moral, que despreza a ética em nome da sacralização dos valores tende ao fascismo. (O fascismo é por excelência a ausência de ética. O fascismo está sempre pronto a se manifestar. Ele aparece em todas as épocas e lugares, sob diversos nomes e disfarces. Temos muitas razões para acreditar que ele jamais deixará de existir, ainda que não se manifeste. O fascismo é um monstro que dormita na base de toda sociedade. Quanto mais profundo é o seu sono mais chances a sociedade encontra de despertar suas consciências individuais, maiores e mais variadas são as possibilidades da vida livre. E vice-versa.). V. A ética é o exercício da capacidade de amar a liberdade do outro. Não há como afirmar a sua própria liberdade sem desejar a liberdade do outro. Não é possível dizer o que vem primeiro, a minha liberdade ou a liberdade do outro. A minha liberdade só pode começar onde começa a liberdade do outro.