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Ética e Moral não são a mesma coisa

André Brayner de Farias


PPG-Filosofia/UCS

Nosso ponto de partida é uma exposição conceitual da ética e da moral. Sobretudo


será importante revelar a diferença entre os dois conceitos e sustentar a necessidade de
demarcar essa diferença.
Uma explicação interessante e bastante convincente sobre a gênese da moral
encontramos na obra de Henri Bergson As duas fontes da moral e da religião. Diz
Bergson que a moral (e também a religião, que nunca está dissociada da moralidade)
decorre do desenvolvimento da inteligência. Acontece que a evolução da vida faz
expandir a consciência até a autoconsciência humana, abrindo caminho para o
psiquismo da vontade e da liberdade. Acontece também que a natureza nos impõe a vida
societária. Duas forças antagônicas, portanto, estão implicadas na condição humana: de
um lado vontade e liberdade com sua tendência individualizante, de outro lado a
imposição da vida social, a ordem da coletividade. A moral decorre da necessidade de
resolver o impasse da condição humana: a vontade de ser livre e cuidar apenas de si
mesmo e a necessidade de viver com os outros. A moral é o corretivo da liberdade
dissociativa. Tendemos a formar sociedade, mas também tendemos a inviabilizar a
sociedade, uma vez que não somos regidos pelo instinto, que nos imporia uma vida
automática e uma obediência cega à ordem social. Ou seja, a inteligência humana na
mesma medida em que instiga a liberdade e a individuação, cria mecanismos de
controle e de coação.
O conjunto dessas técnicas sociais de constrangimento da tendência
individualizante e a favor da vida comum é o que chamamos de moral.
Diríamos ainda, por esta lente evolucionista, que a moral é uma inteligência que se
esforça para ser instinto, pois a sua tendência é a conservação. A obediência e o hábito
são sua força. O ideal da vida moral não é a tomada de consciência dos motivos da ação,
mas a repetição automática, a obediência cega, a fidelidade ao hábito, a padronização do
comportamento. A razão da moral é o medo da liberdade, ou antes, o medo do que a
liberdade pode fazer, já que ela está associada primeiro ao indivíduo; medo da surpresa,
do futuro que se abriu ante a consciência expandida. Uma sociedade humana se forma
por uma tendência reativa: os humanos se associam na medida em que reagem ao perigo
de causarem surpresa uns aos outros, (o que inclui o perigo de causar surpresa a si
mesmo). Dessa reação é que nasce a moral.
A moral precisará eleger seus critérios de associação, suas identidades: a
consanguinidade, o solo, os mitos, as crenças. O sentimento de pertença, ao sangue, ao
solo, é, naturalmente, includente e excludente. Não há sociedade humana que não se
baseie na negação da outra sociedade, no mínimo virtualmente. Isto aparece em vários
níveis – religiosos, econômicos, políticos – e pode ser observado em organizações
pequenas como famílias e grupelhos de alunos ou professores, guangues de crianças no
parque ou na escola e gangues de bandidos no tráfico de drogas; em organizações
maiores e mais duras e duradouras como a nossa comunidade idiomática, a nossa
nacionalidade, a nossa regionalidade, as pessoas que estão nos desenhos que projetamos
do solo aos mapas e dos mapas aos solos, cada linha do território constituindo uma
potencial zona de guerra.
Onde quer que se organize o ser humano tende à territorialidade, como se na
sociedade houvesse um sedentarismo inato, pronto para se revelar e aplicar sua
irresistível força. Mas também pronto para ser reprimido por forças antagônicas, como a
do nomadismo.
O hábito é a teoria mais acessível de justificação da moral. De fato, a moral do
hábito não demanda muita inteligência, o que a torna poderosa e dominadora. É a moral
do fazemos assim porque sempre foi assim. O hábito imita e repete, está muito próximo
da animalidade instintiva e, embora não seja a mesma coisa, tem toda aparência de
automatismo instintivo. Age nele uma fidelidade supersticiosa, infra-racional. Pelo fato
de que pensa pouco, porque não precisa de muito pensamento, e quanto mais ausente e
alienado de pensamento, mais forte, o hábito permite o absurdo e trabalha exatamente
para tornar o absurdo uma coisa natural e até sagrada. É provável que essa força se
explique pela proximidade instintiva, já que o instinto é a força orgânica fundamental da
vida; é provável que o hábito ganhe de graça o capital do instinto: o instinto capitaliza o
hábito. De maneira que sempre estamos lidando com a resistência dessa força
fundamental, sempre que investimos em nossa inteligência, sempre que recuperamos o
fluxo do pensamento, percebemos o capitalismo perverso e odioso do hábito, a nossa
fábrica de preconceito. Desmascaramos o absurdo e ele se revela monstruoso,
desnaturalizamos o hábito, sempre que investimos em nossa inteligência.
Mas o problema é que este sempre que tende a ser bem mais raro. É uma
temporalidade dissonante da sociedade. Sempre que investimos em nossa inteligência,
provocamos a sociedade. Obviamente que a sociedade tira proveito disso, rouba nossa
ideia e se adapta a ela ou faz ela se adaptar. Mas o importante é que pensar provoca.
Porque o pensamento sempre traz de volta o motivo que fez a sociedade se convocar
para suprimi-lo, é uma estranheza, uma dissonância. O motivo pelo qual o pensamento
provoca é o seu grande capital, o seu tesouro.
O problema, de um ponto de vista estritamente técnico ou operacional, é que tal
capital é avesso a qualquer forma de capitalismo, não admite investidores, não admite
financistas, empreiteiros ou banqueiros. O resultado negativo é que o pensador tende à
solidão. Sua obra custa barato porque ele praticamente não tem mercado, é um outsider
econômico, um marginal. Pobre pensador.
Mas esse anticapitalismo congênito do pensamento, esse tesouro que não tem preço,
é o segredo de nossa mais autêntica força. Não há outra maneira de acessá-lo senão
tomando o próprio caminho, este que ninguém mais conhece a não ser aquele que o
produziu. Mesmo que seja o caminho de ler o pensamento de alguém, é este sempre um
caminho próprio, se é que se tratará de buscar esse tesouro de ideias. Isto já foi dito de
incontáveis maneiras e por inúmeros prosadores do pensamento, filósofos, cientistas e
artistas.
O pensamento é aquilo que individua, diferencia, faz aparecer do meio da massa
homogênea, destoa, grita. O pensamento ao diferenciar quebra o encanto da
conservação, desmitologiza a moral do hábito. A sociedade reprime e tira vantagem,
capitalista que é, expolia o pensador, massacra o indivíduo, acusa-o de traidor, desertor.
Se vai lhe render graças, condecora-lo, é sinal de que o pensamento não é mais cem por
cento dono de si mesmo. Diriam que ele se vendeu para ganhar o prêmio. O autêntico
pensamento, pelo fato de que é obra individual, jamais poderia ser reconhecido, a sua
comunicação já impõe uma certa corrupção, já precisa ceder de si. Diríamos que o
autêntico pensamento é a mais extrema e incomunicável solidão existencial, a mais alta
e a mais cara liberdade.
Mas obviamente não precisamos tomar ao pé da letra o que foi dito. Há uma série de
lições que podemos tomar de nossa dilacerante condição de potenciais desertores. A
sociedade é cruel, mas tiramos vantagens dela, não queremos abandoná-la, insistimos
em viver juntos. Investir no pensamento, produzir diferença, faz parte de nossa
configuração societária. Quando pensamos estamos engajados no desejo de comunicar o
nosso pensamento, e se não conseguimos, o que muitas vezes acontece, isto é também o
motivo que nos leva a continuar pensando e comunicando. Esta diacronia entre o
pensamento e a comunicação demonstra que o pensamento é uma solidão que se vive
socialmente.
Aqui está o elo perdido entre a força da individuação e a força societária, entre a
diferenciação e a massificação, entre a criação e a conservação. Este elo diz que o ato
criador, o ato poético, a despeito de sua rebeldia, é um ato por amor à sociedade, na
mesma medida em que é amor de si e por si; este elo é poro por onde a sociedade
respira ares novos, e é o indivíduo que o representa: ou seja, cada indivíduo é um
potencial ponto de evasão e expansão social. As forças que agem nele estão conectadas
através dele – o indivíduo é elo de forças – e se retroalimentam no circuito dessa
existência insistente, desse animal inteligente.
Chamemos a força criadora da liberdade de ética, e a força conservadora do hábito
de moral. Admitamos para essas palavras toda a bagagem de tendências antagônicas
que foi apresentada. Recriemos através desse rico antagonismo os conceitos de ética e
moral, e sobretudo ressaltemos a importância de reconhecer e valorizar a diferença entre
a ética e a moral.
A seguir ensaiamos algumas teses dessa experimentação conceitual, a título de
síntese:
I. A natureza da moral é social: sua tendência é o automatismo da repetição, seu
projeto é a semelhança com a vida instintiva e programada, a comunidade
homogênea, a massificação. A força fundamental da moral é o hábito.
II. A natureza da ética é individual: sua tendência é a diferenciação, o movimento
criador, seu projeto é a dissonância, a ruptura, a desordem, a mudança de
hábito, o desencantamento da tradição, a traição, a deserção. A força
fundamental da ética é o pensamento.
III. A ética não existe sem uma moral associada: se o seu objetivo é transvalorar, é
para criar valores novos. Na medida em que transvalora, transgride, trai a
moral vigente, a ética é imoral. Mas cria novos valores, a atitude de
transgredir é co-extensiva à atitude de criar. Transgredir valores, eticamente
falando, é ser propositivo, a ética é um gesto poético. Nesse sentido, não tem
diferença da estética. A ética é imoral, mas não é amoral.
IV. Uma sociedade apenas moral, que despreza a ética em nome da sacralização dos
valores tende ao fascismo. (O fascismo é por excelência a ausência de ética.
O fascismo está sempre pronto a se manifestar. Ele aparece em todas as
épocas e lugares, sob diversos nomes e disfarces. Temos muitas razões para
acreditar que ele jamais deixará de existir, ainda que não se manifeste. O
fascismo é um monstro que dormita na base de toda sociedade. Quanto mais
profundo é o seu sono mais chances a sociedade encontra de despertar suas
consciências individuais, maiores e mais variadas são as possibilidades da
vida livre. E vice-versa.).
V. A ética é o exercício da capacidade de amar a liberdade do outro. Não há como
afirmar a sua própria liberdade sem desejar a liberdade do outro. Não é
possível dizer o que vem primeiro, a minha liberdade ou a liberdade do
outro. A minha liberdade só pode começar onde começa a liberdade do
outro.

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