Pe. Rafael Fernandes INTRODUÇÃO • A noção de POVO DE DEUS não é apenas uma metáfora, mas expressa o SER DA IGREJA. • Foi resgatada pelo Concílio Vaticano II; • Apesar de ter sido entendida de um modo socializante, no primeiro período do pós-concílio, hoje busca-se utilizá-la do modo como os Padres conciliares a entenderam, isto é, a partir de seus fundamentos bíblicos. 1 Noção bíblica de Povo de Deus 1.1 Antigo Testamento
• A realidade “Igreja” não aparece no Antigo Testamento, mas
apenas se encontram manifestações diversas de sua realidade. • Povo de Deus constitui-se uma dessas manifestações do AT mais significativas; • Conforme Pié-Ninot, “λαός Θεύ” na LXX aparece cerca de 2000 vezes no A.T para designar Israel. • Ver, por exemplo, Nm 11,29; 17,6; Jz 5,11; 1Sm 1,12; 6,21; 14,13; 2Rs 9,6; Sb 2,10. 1.1 Antigo Testamento
A origem da expressão “povo de Deus” encontra-se na promessa de
Deus em Ex 19,5:
“Agora, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança,
sereis para mim uma propriedade peculiar entre todos os povos, porque toda a Terra é minha”. 1.1 Antigo Testamento
eleição (critério – descendência de Abraão)
“am Elohim” (Povo de Deus): aliança (relacionamento particular com Javé) X comunhão de vida e missão “Gojîm/ Éthne” (pagãos) 1.2 Novo Testamento: • De que modo as Sagradas Escrituras apresentam a noção “povo de Deus”?
• Como se pode entender a afirmação dos Santos Padres de que a Igreja é o
Novo Povo de Deus? 1.2.1 Jesus e a reunião do povo de Deus
• A meta de reunir o povo de Deus aparece como parte
essencial da missão de Jesus: “Quantas vezes quis reunir os teus filhos como uma galinha recolhe os seus pintinhos” (Lc 13,34)
• Para Jesus, sua missão aparece como realizada inicialmente
na comunidade dos Doze que se tornam o núcleo do verdadeiro povo de Deus e a prefiguração da futura Igreja: Jo 20,19-23. 1.2.2 Atos e cartas neotestamentárias • No Novo Testamento, citações são tomadas do A.T. para afirmar a realidade da Igreja como portadora das promessas de Israel: Lv 26,12; Jr 31,33; 2 Cor 6,16; Ap 21,3; Hb 8,10: “Vós sereis o meu povo e eu serei o vosso Deus”
• Contudo, os pagãos tomam parte desse novo povo: “Deus escolheu
para si um povo entre as nações” (At 15, 14) -Novo critério de eleição para o povo de Deus é a fé em Jesus Cristo que une os “am” e os “Éthne”. 1.2.2 Atos e cartas neotestamentárias • Vale notar que a Igreja ainda não aparece como o novo Povo de Deus no NT. Isto acontecerá no período pós-apostólico.
• São Paulo, na Carta aos Romanos 9 – 11, relaciona Israel e a Igreja no
mesmo destino: “Irmãos, quero que não ignoreis esse segredo (...): o endurecimento de Israel durará até que a totalidade dos pagãos seja incorporada. Assim, todo o Israel se salvará” (Rm 11,25-26). 1.2.2 Atos e cartas neotestamentárias • Conforme Pié-Ninot, pode-se concluir que é impróprio sustentar, a partir do N.T. que a Igreja substitui o povo de Israel. Antes, está radicada nele, levando-o à sua plenitude. • Nesse sentido, Paulo entende que a Igreja é o “verdadeiro Israel” que está em continuidade com o “resto escolhido de Israel” – fiel às promessas messiânicas. • Logo, a afirmação “novo povo de Deus” para a Igreja implica ruptura e continuidade com Israel Essa relação de ruptura e continuidade com Israel faz notar a historicidade do conceito “Povo de Deus” -Povo de Deus é sujeito histórico: o que caracteriza e distingue esse povo dos demais é o fato de pôr em exercício a memória e a espera em Jesus Cristo (o Messias esperado por Israel), com empenho para a missão. 1 Pedro 2:5-10: ⁵ Vós também, como pedras vivas, sois edificados como templo espiritual e sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo. ⁶ Por isso também na Escritura se diz: Eis que ponho em Sião a pedra principal da esquina, eleita e preciosa; e quem nela crer não será confundido. ⁷ E assim para vós, os que credes, é preciosa, mas, para os rebeldes, a pedra que os edificadores reprovaram, essa se tornou a principal, ⁸ E uma pedra de tropeço e rocha de escândalo para aqueles que tropeçam (...). ⁹ Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa; ¹⁰ Vós, que outrora não éreis povo, agora sois povo de Deus; vós que não tínheis alcançado misericórdia, agora alcançastes misericórdia. • Na Nova Aliança, a filiação divina e fraternidade ocorrem em Cristo (At 2,42-47). 2 PERCURSO HISTÓRICO
Por que a noção “Povo de Deus” assumiu particular
importância no cap. 2 da Lumen gentium 1º milênio • A noção “povo de Deus” foi utilizada pelos Padres da Igreja até o século IV sem uma maior sistematização: • Para os Padres, o povo judeu representava o tipo de apostasia – exemplificado na perda da progenitura de Esaú. • Clemente Romano, em sua segunda carta, afirma que o verdadeiro povo estava oculto até Cristo. • As Cartas de Barnabé afirmam que a Igreja é o novo Povo de Deus, em um sentido de que a Igreja é um 3º gênero, diferente dos judeus e pagãos. 1º milênio • É frequente o uso litúrgico da expressão “povo” como sinônimo de Igreja; • Agostinho realiza a passagem do conceito histórico-salvífico de povo de Deus para o conceito jurídico. A partir do séc. IV, cada vez mais “povo” significa os leigos de fronte ao clero. 2º Milênio • Lutero irá tomar a expressão “povo de Deus” como uma das mais características da sua eclesiologia: O sacerdócio comum de todos os batizados é visto por ele em paridade com o ministério sacerdotal...
• Em vista disso, os católicos irão abdicar dessa expressão...
Reaparecimento nos séculos XIX e XX • Newman (+1890): traz à luz “povo de Deus” com a doutrina do sensus fidelium; • A. Volnier (1937) • M. D. Koster (1940)
Vale lembrar que “Corpo de Cristo” e “Povo de Deus”
reaparecem em meio à eclesiologia da “sociedade perfeita” Como funcionava no período anterior ao concílio... Eclesiologia da Societas perfecta: Um esquema cristomonista (Espírito Santo quase ausente nessa Teologia de Igreja. Quando aparece, concentra-se na Hierarquia):
Cristo Hierarquia Comunidade de fé Recordando... Eclesiologia da sociedade perfeita (séc. XVIII-XX):
• Foi dominada por temas sobre autoridade;
• Possuiu fraco senso comunitário: expressões, como “povo de Deus” e “comunhão” não aparecem nos escritos eclesiais da época. • Acento na dimensão jurídico-institucional da Igreja; • Não possuiu disposição para o diálogo com as demais Igrejas cristãs e religiões; Qual foi a solução apresentada pelos Padres conciliares frente ao desequilíbrio entre os aspectos institucional e comunitário na Igreja?
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•A solução é apresentada pelos Padres conciliares na Constituição Lumen gentium passou em muito pela noção bíblica de “povo de Deus” ESTRUTURA DA LUMEN GENTIUM Cap. 1: O mistério da Igreja; Natureza da Cap. 2: O povo de Deus; Igreja Cap. 3: Constituição hierárquica da Igreja e em especial o Episcopado; .... • A disposição desse capítulo, antes do capítulo dedicado à Hierarquia, representa o fim da predominância da eclesiologia da societas (perfectas) inaequalis – e de uma identificação entre instituição e mistério; Renovação conciliar: Eclesiologia de comunhão (Espírito Santo edifica a comunidade): Cristo (seu Santo Espírito)
1Cor 12,7 Comunidade
Pluralidade Ministérios de carismas é essencial na Igreja Reviravolta copernicana. Em que sentido? • Fala-se erroneamente em revolução copernicana da eclesiologia quando se quer reivindicar, com a noção “povo de Deus”, a inversão da pirâmide social da Igreja. • Mas a revolução copernicana consiste, na verdade, no abandono desta visão societária e piramidal de Igreja, para ingressar em uma compreensão, sobretudo, mistérica e comunitária! • Por isso, a noção de “povo de Deus” não é vista pelos Padres conciliares em um sentido sociológico, mas mistérico e comunitário, segundo o sentido das Escrituras. 3 SISTEMATIZAÇÃO A PARTIR DO CAPÍTULO “POVO DE DEUS” ‘
Como o Concílio entende a noção “povo de Deus”?
O capítulo do “Povo de Deus” da Lumen gentium está dividido em nove pontos agrupados em duas seções:
• 1º considera o “interno”, expondo os elementos unitários do
povo de Deus (n. 9-12); • 2º abre-se ao “externo”, estendendo a noção para as pessoas que não participam plenamente desse povo, mas apenas de modo gradual ou missionário (n. 13-17) 3.1 Lumen gentium 9: POVO MESSIÂNICO N. 9 tem valor de carta constitucional: “Com efeito, os que creem em Cristo, (...) são finalmente constituídos em «raça escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo conquistado... que outrora não era povo, mas agora é povo de Deus» (1 Pd 2, 9-10). (...) Este povo messiânico tem por cabeça Cristo; (...) tem por condição a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus; (...) tem por lei o mandamento novo; (...) e finalmente tem como finalidade o reino de Deus (...).” POVO MESSIÂNICO
• Povo: dimensão comunitária da Igreja;
• Messiânico: a) porque tem por cabeça o “Cristo”; b) porque tem uma orientação escatológica. 3.2 Lumen gentium 10-12: POVO SACERDOTAL
• Significa que toda a comunidade eclesial é “mediadora”
• Estende a todos os batizados o triplex munus: o sacerdócio, a profecia e a realeza. • A prerrogativa sacerdotal está fundada no BATISMO (dimensão existencial do sacerdócio) e culmina na EUCARISTIA • LG 10 e 11: Distingue-se, a partir do sacerdócio único de Cristo, o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial. LUMEN GENTIUM 12 • Afirma-se a missão profética do povo de Deus; • Destaca-se que a inteira comunidade possui a missão de ser mediadora da revelação. Para isso, usufrui de dons (carismas) específicos, como o sensus fidei. “O Espírito Santo não se limita a santificar e a dirigir o povo de Deus por meio dos sacramentos e dos ministérios, e a orná-los com as virtudes, mas também, nos fiéis de todas as classes, ‘distribui individualmente e a cada um, como lhe apraz’ os seus dons (1 Cor 12,11)” (Lumen gentium 12)
Temos aqui a valorização da pneumatologia na teologia conciliar da
Igreja, com o qual se resgata o tema dos “carismas” sobre todo o povo de Deus Sensus fidei • O conjunto dos fiéis, ungidos que são pela unção do santo (cf. 1Jo 2,20 e 27), não pode enganar-se no ato de fé. E manifesta esta sua peculiar propriedade mediante o senso sobrenatural da fé de todo o povo, quando, “desde os Bispos até aos últimos fiéis leigos”, apresenta um consenso universal sobre questões de fé e costumes. Por esse senso da fé, excitado e sustentado pelo Espírito da verdade, o Povo de Deus – sob a direção do sagrado Magistério, a quem fielmente respeita – não já recebe a pa-lavra de homens, mas verdadeiramente a palavra de Deus (cf. 1Ts 2,13); apega-se indefectivelmente à fé uma vez para sempre transmitida aos santos (cf. Jd 3); e, com reto juízo, penetra-a mais profundamente e mais plenamente a aplica na vida (cf. Lumen Gentium 12). 3.3 Lumen Gentium 13-17: POVO UNIVERSAL
Faz parte da segunda seção: busca abrir o povo de Deus para
toda a humanidade. Tem dois temas: • 1º Unidade na pluralidade; • 2º Pertença eclesial. “Este povo, permanecendo uno e único, deve dilatar-se até os confins do mundo e em todos os tempos.” (LG 13) • As formas de unidade são: profissão de fé, sacramentos, vínculo social e hierárquico (LG 14). Isto impede os particularismos de cultura, raça ou condição econômica... • A pluralidade é garantida pela comunhão das Igrejas Particulares. Há uma visão positiva sobre a diversidade, quando articulada dentro da comunhão eclesial. Por ser uma categoria histórica, a noção “povo de Deus” permitiu entender melhor a diversidade social e cultural presente na Igreja. Pertença: os números 15 e 16 tratam da relação da Igreja com os cristãos não-católicos e os não cristãos. • “Por múltiplas razões a Igreja reconhece-se unida aos batizados que se honram do nome de cristãos, mas não professam integralmente a fé, ou não mantém a unidade de comunhão sob o sucessor de Pedro” (LG 15) • “Também aqueles que ainda não receberam o Evangelho estão destinados, de modo diversos, a formarem parte do povo de Deus” (LG 16).
Por ser uma categoria histórica, a noção de “povo de Deus” também
permitiu um melhor entendimento do ecumenismo. 3.4 Lumen gentium 17: POVO MISSIONÁRIO • Povo enviado pela Trindade; • O mandato é feito a cada batizado; • Toca no tema da inculturação. A dimensão escatológica da Igreja
• Dimensão escatológica é aprofundada no capítulo sétimo da
Lumen gentium. Aqui, compreende-se todo o progresso histórico do Povo de Deus, pois o Reino de Deus é a meta final da Igreja (cf. Lumen gentium 48). Conclusões • A noção de Povo de Deus foi valorizada no Concílio Vaticano II; • Complementa a noção de Corpo de Cristo, que já estava bem solidificada no Magistério de Pio XII; • Resgata o pensamento bíblico (AT e NT); • Constrói uma teologia de Igreja histórico-concreta, inserida na história humana; • Entende a comunidade cristã como pertencente a Deus e com relação de continuidade com Israel