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IGREJA POVO DE DEUS

Aula de eclesiologia – 2023


Pe. Rafael Fernandes
INTRODUÇÃO
• A noção de POVO DE DEUS não é apenas uma metáfora, mas expressa
o SER DA IGREJA.
• Foi resgatada pelo Concílio Vaticano II;
• Apesar de ter sido entendida de um modo socializante, no primeiro
período do pós-concílio, hoje busca-se utilizá-la do modo como os
Padres conciliares a entenderam, isto é, a partir de seus fundamentos
bíblicos.
1 Noção bíblica de Povo de Deus
1.1 Antigo Testamento

• A realidade “Igreja” não aparece no Antigo Testamento, mas


apenas se encontram manifestações diversas de sua realidade.
• Povo de Deus constitui-se uma dessas manifestações do AT mais
significativas;
• Conforme Pié-Ninot, “λαός Θεύ” na LXX aparece cerca de
2000 vezes no A.T para designar Israel.
• Ver, por exemplo, Nm 11,29; 17,6; Jz 5,11; 1Sm 1,12; 6,21;
14,13; 2Rs 9,6; Sb 2,10.
1.1 Antigo Testamento

A origem da expressão “povo de Deus” encontra-se na promessa de


Deus em Ex 19,5:

“Agora, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança,


sereis para mim uma propriedade peculiar entre todos os povos,
porque toda a Terra é minha”.
1.1 Antigo Testamento

eleição (critério – descendência de Abraão)


“am Elohim” (Povo de Deus): aliança (relacionamento particular com Javé)
X comunhão de vida e missão
“Gojîm/ Éthne” (pagãos)
1.2 Novo Testamento:
• De que modo as Sagradas Escrituras apresentam a noção “povo de Deus”?

• Como se pode entender a afirmação dos Santos Padres de que a Igreja é o


Novo Povo de Deus?
1.2.1 Jesus e a reunião do povo de Deus

• A meta de reunir o povo de Deus aparece como parte


essencial da missão de Jesus: “Quantas vezes quis reunir os
teus filhos como uma galinha recolhe os seus pintinhos” (Lc
13,34)

• Para Jesus, sua missão aparece como realizada inicialmente


na comunidade dos Doze que se tornam o núcleo do
verdadeiro povo de Deus e a prefiguração da futura Igreja: Jo
20,19-23.
1.2.2 Atos e cartas neotestamentárias
• No Novo Testamento, citações são tomadas do A.T. para afirmar a
realidade da Igreja como portadora das promessas de Israel:
Lv 26,12; Jr 31,33; 2 Cor 6,16; Ap 21,3; Hb 8,10: “Vós sereis o
meu povo e eu serei o vosso Deus”

• Contudo, os pagãos tomam parte desse novo povo: “Deus escolheu


para si um povo entre as nações” (At 15, 14)
-Novo critério de eleição para o povo de Deus é a fé
em Jesus Cristo que une os “am” e os “Éthne”.
1.2.2 Atos e cartas neotestamentárias
• Vale notar que a Igreja ainda não aparece como o novo Povo
de Deus no NT. Isto acontecerá no período pós-apostólico.

• São Paulo, na Carta aos Romanos 9 – 11, relaciona Israel e a Igreja no


mesmo destino:
“Irmãos, quero que não ignoreis esse segredo (...): o
endurecimento de Israel durará até que a totalidade dos pagãos
seja incorporada. Assim, todo o Israel se salvará” (Rm 11,25-26).
1.2.2 Atos e cartas neotestamentárias
• Conforme Pié-Ninot, pode-se concluir que é impróprio
sustentar, a partir do N.T. que a Igreja substitui o povo de
Israel. Antes, está radicada nele, levando-o à sua plenitude.
• Nesse sentido, Paulo entende que a Igreja é o “verdadeiro
Israel” que está em continuidade com o “resto escolhido de
Israel” – fiel às promessas messiânicas.
• Logo, a afirmação “novo povo de Deus” para a Igreja
implica ruptura e continuidade com Israel
Essa relação de ruptura e continuidade com Israel faz
notar a historicidade do conceito “Povo de Deus”
-Povo de Deus é sujeito histórico: o que caracteriza e
distingue esse povo dos demais é o fato de pôr em
exercício a memória e a espera em Jesus Cristo (o
Messias esperado por Israel), com empenho para a
missão.
1 Pedro 2:5-10:
⁵ Vós também, como pedras vivas, sois edificados como templo espiritual e
sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus
Cristo.
⁶ Por isso também na Escritura se diz: Eis que ponho em Sião a pedra principal da
esquina, eleita e preciosa; e quem nela crer não será confundido.
⁷ E assim para vós, os que credes, é preciosa, mas, para os rebeldes, a pedra que os
edificadores reprovaram, essa se tornou a principal,
⁸ E uma pedra de tropeço e rocha de escândalo para aqueles que tropeçam (...).
⁹ Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo
adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas
para a sua luz maravilhosa;
¹⁰ Vós, que outrora não éreis povo, agora sois povo de Deus; vós que não tínheis
alcançado misericórdia, agora alcançastes misericórdia.
• Na Nova Aliança, a filiação divina e
fraternidade ocorrem em Cristo (At 2,42-47).
2 PERCURSO HISTÓRICO

Por que a noção “Povo de Deus” assumiu particular


importância no cap. 2 da Lumen gentium
1º milênio
• A noção “povo de Deus” foi utilizada pelos Padres da Igreja até o
século IV sem uma maior sistematização:
• Para os Padres, o povo judeu representava o tipo de apostasia
– exemplificado na perda da progenitura de Esaú.
• Clemente Romano, em sua segunda carta, afirma que o
verdadeiro povo estava oculto até Cristo.
• As Cartas de Barnabé afirmam que a Igreja é o novo Povo de
Deus, em um sentido de que a Igreja é um 3º gênero, diferente
dos judeus e pagãos.
1º milênio
• É frequente o uso litúrgico da expressão “povo” como
sinônimo de Igreja;
• Agostinho realiza a passagem do conceito histórico-salvífico
de povo de Deus para o conceito jurídico.
A partir do séc. IV, cada vez mais “povo” significa os
leigos de fronte ao clero.
2º Milênio
• Lutero irá tomar a expressão “povo de Deus” como uma das mais
características da sua eclesiologia:
O sacerdócio comum de todos os batizados é visto por ele em
paridade com o ministério sacerdotal...

• Em vista disso, os católicos irão abdicar dessa expressão...


Reaparecimento nos séculos XIX e XX
• Newman (+1890): traz à luz “povo de Deus” com a doutrina do sensus
fidelium;
• A. Volnier (1937)
• M. D. Koster (1940)

Vale lembrar que “Corpo de Cristo” e “Povo de Deus”


reaparecem em meio à eclesiologia da “sociedade perfeita”
Como funcionava no período anterior ao concílio...
Eclesiologia da Societas perfecta:
Um esquema cristomonista (Espírito Santo quase ausente
nessa Teologia de Igreja. Quando aparece, concentra-se na Hierarquia):

Cristo
Hierarquia
Comunidade de fé
Recordando...
Eclesiologia da sociedade perfeita (séc. XVIII-XX):

• Foi dominada por temas sobre autoridade;


• Possuiu fraco senso comunitário: expressões, como “povo
de Deus” e “comunhão” não aparecem nos escritos
eclesiais da época.
• Acento na dimensão jurídico-institucional da Igreja;
• Não possuiu disposição para o diálogo com as demais
Igrejas cristãs e religiões;
Qual foi a solução apresentada pelos
Padres conciliares frente ao
desequilíbrio entre os aspectos
institucional e comunitário na
Igreja?

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•A solução é apresentada pelos Padres conciliares
na Constituição Lumen gentium passou em
muito pela noção bíblica de “povo de Deus”
ESTRUTURA DA LUMEN GENTIUM
Cap. 1: O mistério da Igreja; Natureza da
Cap. 2: O povo de Deus; Igreja
Cap. 3: Constituição hierárquica da Igreja e em especial o Episcopado;
....
• A disposição desse capítulo, antes do capítulo
dedicado à Hierarquia, representa o fim da
predominância da eclesiologia da societas (perfectas)
inaequalis – e de uma identificação entre instituição e
mistério;
Renovação conciliar:
Eclesiologia de comunhão (Espírito Santo edifica a
comunidade):
Cristo (seu Santo Espírito)

1Cor 12,7 Comunidade


Pluralidade Ministérios
de carismas
é essencial
na Igreja
Reviravolta copernicana.
Em que sentido?
• Fala-se erroneamente em revolução copernicana da eclesiologia
quando se quer reivindicar, com a noção “povo de Deus”, a
inversão da pirâmide social da Igreja.
• Mas a revolução copernicana consiste, na verdade, no abandono
desta visão societária e piramidal de Igreja, para ingressar em uma
compreensão, sobretudo, mistérica e comunitária!
• Por isso, a noção de “povo de Deus” não é vista pelos Padres
conciliares em um sentido sociológico, mas mistérico e
comunitário, segundo o sentido das Escrituras.
3 SISTEMATIZAÇÃO A PARTIR DO
CAPÍTULO “POVO DE DEUS”

Como o Concílio entende a noção “povo de Deus”?


O capítulo do “Povo de Deus” da Lumen gentium está
dividido em nove pontos agrupados em duas seções:

• 1º considera o “interno”, expondo os elementos unitários do


povo de Deus (n. 9-12);
• 2º abre-se ao “externo”, estendendo a noção para as pessoas
que não participam plenamente desse povo, mas apenas de
modo gradual ou missionário (n. 13-17)
3.1 Lumen gentium 9: POVO MESSIÂNICO
N. 9 tem valor de carta constitucional:
“Com efeito, os que creem em Cristo, (...) são finalmente constituídos
em «raça escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo conquistado...
que outrora não era povo, mas agora é povo de Deus» (1 Pd 2, 9-10).
(...) Este povo messiânico tem por cabeça Cristo;
(...) tem por condição a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus;
(...) tem por lei o mandamento novo;
(...) e finalmente tem como finalidade o reino de Deus (...).”
POVO MESSIÂNICO

• Povo: dimensão comunitária da Igreja;


• Messiânico: a) porque tem por cabeça o “Cristo”;
b) porque tem uma orientação
escatológica.
3.2 Lumen gentium 10-12: POVO SACERDOTAL

• Significa que toda a comunidade eclesial é “mediadora”


• Estende a todos os batizados o triplex munus: o sacerdócio, a
profecia e a realeza.
• A prerrogativa sacerdotal está fundada no BATISMO
(dimensão existencial do sacerdócio) e culmina na
EUCARISTIA
• LG 10 e 11: Distingue-se, a partir do sacerdócio único de
Cristo, o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio
ministerial.
LUMEN GENTIUM 12
• Afirma-se a missão profética do povo de Deus;
• Destaca-se que a inteira comunidade possui a missão de ser
mediadora da revelação. Para isso, usufrui de dons
(carismas) específicos, como o sensus fidei.
“O Espírito Santo não se limita a santificar e a dirigir o povo de
Deus por meio dos sacramentos e dos ministérios, e a orná-los
com as virtudes, mas também, nos fiéis de todas as classes,
‘distribui individualmente e a cada um, como lhe apraz’ os
seus dons (1 Cor 12,11)” (Lumen gentium 12)

Temos aqui a valorização da pneumatologia na teologia conciliar da


Igreja, com o qual se resgata o tema dos “carismas” sobre todo o
povo de Deus
Sensus fidei
• O conjunto dos fiéis, ungidos que são pela unção do santo (cf. 1Jo 2,20 e
27), não pode enganar-se no ato de fé. E manifesta esta sua peculiar
propriedade mediante o senso sobrenatural da fé de todo o povo,
quando, “desde os Bispos até aos últimos fiéis leigos”, apresenta um
consenso universal sobre questões de fé e costumes. Por esse senso da
fé, excitado e sustentado pelo Espírito da verdade, o Povo de Deus – sob
a direção do sagrado Magistério, a quem fielmente respeita – não já
recebe a pa-lavra de homens, mas verdadeiramente a palavra de Deus
(cf. 1Ts 2,13); apega-se indefectivelmente à fé uma vez para sempre
transmitida aos santos (cf. Jd 3); e, com reto juízo, penetra-a mais
profundamente e mais plenamente a aplica na vida (cf. Lumen Gentium
12).
3.3 Lumen Gentium 13-17: POVO UNIVERSAL

Faz parte da segunda seção: busca abrir o povo de Deus para


toda a humanidade. Tem dois temas:
• 1º Unidade na pluralidade;
• 2º Pertença eclesial.
“Este povo, permanecendo uno e único, deve dilatar-se até os
confins do mundo e em todos os tempos.” (LG 13)
• As formas de unidade são: profissão de fé, sacramentos,
vínculo social e hierárquico (LG 14). Isto impede os
particularismos de cultura, raça ou condição econômica...
• A pluralidade é garantida pela comunhão das Igrejas
Particulares. Há uma visão positiva sobre a diversidade,
quando articulada dentro da comunhão eclesial.
Por ser uma categoria histórica, a noção “povo de Deus” permitiu
entender melhor a diversidade social e cultural presente na Igreja.
Pertença: os números 15 e 16 tratam da relação da
Igreja com os cristãos não-católicos e os não cristãos.
• “Por múltiplas razões a Igreja reconhece-se unida aos
batizados que se honram do nome de cristãos, mas não
professam integralmente a fé, ou não mantém a unidade de
comunhão sob o sucessor de Pedro” (LG 15)
• “Também aqueles que ainda não receberam o Evangelho
estão destinados, de modo diversos, a formarem parte do
povo de Deus” (LG 16).

Por ser uma categoria histórica, a noção de “povo de Deus” também


permitiu um melhor entendimento do ecumenismo.
3.4 Lumen gentium 17: POVO MISSIONÁRIO
• Povo enviado pela Trindade;
• O mandato é feito a cada batizado;
• Toca no tema da inculturação.
A dimensão escatológica da Igreja

• Dimensão escatológica é aprofundada no capítulo sétimo da


Lumen gentium. Aqui, compreende-se todo o progresso
histórico do Povo de Deus, pois o Reino de Deus é a meta
final da Igreja (cf. Lumen gentium 48).
Conclusões
• A noção de Povo de Deus foi valorizada no Concílio Vaticano II;
• Complementa a noção de Corpo de Cristo, que já estava bem
solidificada no Magistério de Pio XII;
• Resgata o pensamento bíblico (AT e NT);
• Constrói uma teologia de Igreja histórico-concreta, inserida na
história humana;
• Entende a comunidade cristã como pertencente a Deus e com
relação de continuidade com Israel

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