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FRIEDMAN, Milton. Capitalismo & Liberdade. Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1977.

Capítulo
I – A Relação entre Liberdade Econômica e Liberdade Política; Capítulo II – O papel do
governo numa sociedade livre.

Capitulo 1 – Relação entre liberdade econômica e liberdade política


Geralmente acredita que política e economia constituem territórios separados, apresentando
pouquíssimas inter-relações; que a liberdade individual é um problema político e o bem-estar
material, um problema econômico; e que qualquer tipo de organização política pode ser
combinado com qualquer tipo de organização econômica. (p. 08)

A organização econômica desempenha um papel duplo na promoção de uma sociedade livre.


De um lado a liberdade econômica é parte da liberdade entendida em sentido mais amplo e,
portanto, um fim em si próprio. Em segundo lugar, a liberdade econômica é também um
instrumento indispensável para a obtenção da liberdade política. (p. 08)

A importância direta da liberdade econômica é pelo menos comparável em sua significação à


importância indireta da liberdade econômica como instrumento de obtenção da liberdade
política. (p. 08)

É evidente que a liberdade econômica, nela própria e por si própria, é uma parte
extremamente importante da liberdade total. Vista como um meio para a obtenção da
liberdade política, a organização econômica é importante devido ao seu efeito na
concentração ou dispersão do poder. O tipo de organização econômica que promove
diretamente a liberdade econômica, isto é, o capitalismo competitivo, também promove a
liberdade política porque separa o poder econômico do poder político e, desse modo, permite
que um controle o outro. (p. 09)

A História somente sugere que o capitalismo é uma condição necessária para a liberdade
política, mas, evidentemente, não é uma condição suficiente. [...] É, portanto, claramente
possível haver uma organização econômica fundamentalmente capitalista e uma organização
política que não seja livre. (p. 09)

A relação entre liberdade política e econômica é complexa e de modo algum unilateral. No


início do século XIX, Bentham e os filósofos radicais estavam inclinados a considerar a
liberdade política como um instrumento para a obtenção da liberdade econômica. (p. 09) O
triunfo do liberalismo de Bentham no século XIX na Inglaterra foi seguido por uma reação que
levou a uma crescente intervenção do governei nos assuntos econômicos. Essa tendência para
o coletivismo foi grandemente acelerada, tanto na Inglaterra como em outros lugares, pelas
duas guerras mundiais. O bem-estar, em vez da liberdade, tornou-se a nota dominante nos
países democráticos. (p. 09)

Os acontecimentos posteriores à Segunda Guerra Mundial revelaram ainda, uma relação


diferente entre a liberdade econômica e a política. O planejamento econômico coletivista
interferia de fato com a liberdade individual. Contudo, em alguns países pelo menos, o
resultado não foi a eliminação da liberdade política, mas o abandono da política econômica. (p.
10)

A explicação mais simples para tais alterações na política reside no sucesso limitado do
planejamento central ou sua incapacidade de alcançar os objetivos estabelecidos. Entretanto,
esse fracasso pode ser atribuído, pelo menos em certa medida, às implicações políticas do
planejamento central e à inconveniência de seguir sua lógica até o fim - uma vez que fazer isso
levaria a destruir direitos privados altamente valorizados. É possível também que essa
mudança seja somente uma interrupção temporária na tendência coletivista deste século.
Mesmo assim, ilustra a relação estreita existente entre liberdade política e organização
econômica. (p. 10)

Como liberais, consideramos a liberdade do indivíduo, ou talvez a família, como o objetivo


último no julgamento das organizações sociais. [...] numa sociedade não há nada i que dizer
sobre o que um indivíduo faz com sua liberdade: não se trata de uma ética geral. De fato, o
objetivo mais importante dos liberais é deixar os problemas éticos a cargo do próprio
indivíduo. Os problemas "éticos", realmente importantes, são os que um indivíduo enfrenta
numa sociedade livre - o que deve ele fazer com sua liberdade. Existem, portanto, dois
conjuntos de valores que o liberal enfatizará - os valores que são relevantes para as relações
interpessoais, que constituem o contexto em que estabelece prioridade à liberdade; e os
valores relevantes para o indivíduo no exercício de sua liberdade, que constituem o território
da filosofia e da ética individual. (p. 10)

O problema básico da organização social consiste em descobrir como coordenar as atividades


econômicas de um grande número de pessoas. [...] O desafio para o que acredita na liberdade
consiste em conciliar essa ampla interdependência com a liberdade individual. (p. 10)

Fundamentalmente, só há dois meios de coordenar as atividades econômicas de milhões. Um


é a direção central utilizando a coerção - a técnica do Exército e do Estado totalitário moderno
O outro é a cooperação voluntária dos indivíduos - a técnica do mercado. A possibilidade da
coordenação, por meio de ação voluntária está baseada na proposição elementar de que
ambas as partes de uma transação econômica se beneficiam dela, desde que a transação seja
bilateralmente organizada e voluntária. [...] Um modelo funcional de uma sociedade
organizada sobre uma base de troca voluntária é a economia livre da empresa privada - que
denominamos, até aqui, de capitalismo competitivo. (p. 11)

A despeito do papel importante das empresas e do dinheiro na nossa economia atual, e a


despeito dos problemas numerosos e complexos que levantaram a característica central da
técnica de mercado para obter a cooperação está completamente representada na simples
economia de troca, que não contém nem empresas nem dinheiro. Tanto no modelo simples,
quanto na economia mais complexa com empresas e uso de dinheiro, a cooperação é
estritamente individual e voluntária, desde que: a) as empresas sejam privadas, de modo que
as partes contratantes sejam sempre, em última análise, indivíduos; b) os indivíduos sejam,
efetivamente, livres para participar ou não de trocas específicas, de modo que todas as
transações possam ser realmente voluntárias. (p. 11).

O requisito básico é a manutenção da lei e da ordem para evitar a coerção física de um


indivíduo por outro e para reforçar contratos voluntariamente estabelecidos, dando assim
base ao conceito de "privado". Além deste, talvez o problema mais difícil seja o que diz
respeito ao monopólio - que inibe a liberdade efetiva retirando dos indivíduos as alternativas
com relação a uma determinada troca - e aos efeitos laterais - e feitos em terceiros, pelos
quais não é possível creditá-los ou debitá-los. (p. 11)

Enquanto a liberdade efetiva de troca for mantida, a característica central da organização de


mercado da atividade econômica é a de impedir que uma pessoa interfira com a outra no que
diz respeito à maior parte de suas atividades. (p. 11)
A existência de um mercado livre não elimina, evidentemente, a necessidade de um governo.
Ao contrário, um governo é essencial para a determinação das "regras do jogo" e um árbitro
para interpretar e pôr em vigor as regras estabelecidas. O que o mercado faz é reduzir
sensivelmente o número de questões que devem ser decididas por meios políticos - e, por isso,
minimizar a extensão em que o governo tem que participar diretamente do jogo. O aspecto
característico da ação política é o de exigir ou reforçar uma conformidade substancial. A
grande vantagem do mercado, de outro lado, é a de permitir uma grande diversidade,
significando, em termos políticos, um sistema de representação proporcional. (p. 12)
Liberdade política significa ausência de coerção sobre um homem por parte de seus
semelhantes. A ameaça fundamental à liberdade consiste no poder de coagir, esteja ele nas
mãos de um monarca, de um ditador, de uma oligarquia ou de uma maioria momentânea. A
preservação da liberdade requer a maior eliminação possível de tal concentração de poder e a
dispersão e distribuição de todo o poder que não puder ser eliminado - um sistema de
controle e equilíbrio. Removendo a organização da atividade econômica do controle da
autoridade política, o mercado elimina essa fonte de poder coercitivo. Permite, assim, que a
força econômica se constitua num controle do poder político, então num reforço. (p. 12)

O poder econômico pode ser amplamente dispersado. Não há leis de conservação que forcem
o crescimento de novos centros de poder econômico à custa dos centros já existentes. O poder
político, de outro lado é mais difícil de descentralizar. Podem existir numerosos pequenos
governos independentes. [...] Em consequência, se o poder econômico é adicionado ao poder
político, a concentração se torna praticamente inevitável. De outro lado, se o poder econômico
for mantido separado do poder político, portanto, em outras mãos, ele poderá servir como
controle e defesa contra o poder político. (p. 12)

Capítulo 2 – Papel do Governo numa sociedade livre


Desse ponto de vista, o papel do mercado, como já ficou dito, é permitir unanimidade sem
conformidade e ser um sistema de efetiva representação proporcional. De outro lado, o
aspecto característico da ação de canais explicitamente políticos é o de tender a exigir ou
reforçar uma conformidade substancial. A questão típica deve ser decidida meio de um "sim"
ou um "não"; no máximo, pode ser fornecida a oportunidade para um número bem limitado
de alternativas. Mesmo o uso de representação proporcional, em sua forma explicitamente
política, não e esta conclusão. O número de grupos separados que podem de fato se
representados é enormemente limitado em comparação com a representação proporcional do
mercado. Mais importante ainda, o fato de o produto ter que ser em geral uma lei aplicável a
todos os grupos, em vez de atos legislativos separados para cada "parte" representada,
significa que a representação proporcional em sua versão política não só impede unanimidade
sem conformidade como também tende à fragmentação e à ineficiência. (p. 16)

O uso dos canais políticos, embora inevitável, tende a exigir muito da coesão social, essencial a
toda sociedade estável. [...] Qualquer aumento do número de questões, para as quais é
necessária uma concordância explícita, sobrecarrega demais os fios delicados que mantêm
uma sociedade coesa. Se chegar a questões nas quais os homens estão profundamente
envolvidos, mas de pontos de vista diferentes, pode ocorrer o rompimento da sociedade.
Diferenças fundamentais sobre valores básicos quase nunca, ou nunca mesmo, podem vir a ser
resolvidas nas urnas; na verdade, só podem ser decididas, embora não resolvidas, por meio de
um conflito. As guerras civis e religiosas da história constituem testemunhos sangrentos desse
julgamento. (p. 16)
O uso amplo do mercado reduz a tensão aplicada sobre a intrincada rede social por tomar
desnecessária a conformidade, com respeito a qualquer atividade que patrocinar. Quanto
maior o âmbito de atividades cobertas pelo mercado, menor o número de questões para as
quais serão requeridas decisões explicitamente políticas e, portanto, para as quais será
necessário chegar a uma concordância. Como contrapartida, quanto menor o número de
questões sobre as quais será necessária a concordância, tanto maior probabilidade de obter
concordâncias e manter uma sociedade livre. (p. 17)

Do mesmo modo que um bom jogo exige que os jogadores aceitem tanto as regras quanto o
árbitro encarregado de interpretá-las e de aplicá-las, uma boa sociedade exige que seus
membros concordem com as condições gerais que presidirão as relações entre eles, com o
modo de arbitrar interpretações diferentes dessas condições e com algum dispositivo para
garantir o cumprimento das regras comumente aceitas. [...] Esses são, pois, os papéis básicos
do governo numa sociedade livre - prover os meios para modificar as regras, regular as
diferenças sobre seu significado, e garantir o cumprimento das regras por aqueles que, de
outra forma, não se submeteriam a elas. (p. 17)

A necessidade do governo nesta área surge porque a liberdade absoluta é impossível. [...] As
liberdades dos homens podem entrar em conflito e quando isso acontece a liberdade de uns
deve ser limitada para preservar a de outros. (p. 18)

Em suma, a organização de atividade econômica através da troca voluntária presume que se


tenha providenciado, por meio do governo, a necessidade de manter a lei e a ordem para
evitar a coerção de um indivíduo por outro; a execução de contratos voluntariamente
estabelecidos; a definição do significado de direitos de propriedade, a sua interpretação e a
sua execução; o fornecimento de uma estrutura monetária. (p. 18)

O papel do governo, até aqui considerado, é o de fazer alguma coisa que o mercado não pode
fazer por si só, isto é, determinar, arbitrar e pôr em vigor as regras do jogo. Podemos também
querer fazer por meio do governo algumas coisas que poderiam ser feitas pelo mercado - em
face de certas condições técnicas ou semelhantes que tornam difícil tal execução. Trata-se de
casos em que a troca, estritamente voluntária, é extremamente cara ou praticamente
impossível. Há duas classes gerais de casos desse tipo: monopólios e outras imperfeições do
mercado e os efeitos laterais. (p. 19)

A troca só é verdadeiramente voluntária quando existem alternativas praticamente


equivalentes. O monopólio implica ausência de alternativas e inibe, portanto, a liberdade
efetiva da troca. Na prática, o monopólio frequentemente, se não geralmente, origina-se de
apoio do governo ou de acordos conspiratórios. Com respeito a isto, a solução é evitar o
favorecimento de monopólios pelo governo ou estimular a efetiva aplicação de regras como as
que fazem parte de nossas leis antitruste. Entretanto o monopólio também pode surgir por ser
tecnicamente eficiente e haver um só produtor ou uma só empresa. (p. 19)

A segunda classe geral de casos em que a troca estritamente voluntária é impossível tem
origem quando ações de indivíduos têm efeitos sobre outros - e pelas quais não é possível
recompensá-los ou puni-los. Este é o problema dos "efeitos laterais". (p. 20)

Os efeitos laterais podem ser encarados de dois modos. Podem ser uma razão para limitar as
atividades do governo ou para expandi-las. Os efeitos laterais impedem a troca voluntária
porque é difícil identificar os efeitos em terceiros e medir sua magnitude, mas essa dificuldade
está presente do mesmo modo na atividade governamental. [...] Consequentemente, quando
o governo se empenha em certas atividades para eliminar efeitos laterais, estará em parte
introduzindo um novo conjunto de efeitos laterais por não poder taxar ou compensar os
indivíduos de modo apropriado. [...] Além disso, o uso do governo para eliminar os efeitos
laterais como tal tem outro efeito lateral extremamente importante que não está relacionado
com a ocasião em questão para a ação governamental. Toda a ação de intervenção
governamental limita a liberdade individual diretamente e ameaça a preservação da liberdade
indiretamente. (p. 21)

A liberdade é um objetivo válido somente para indivíduos responsáveis. Não acreditamos em


liberdade para crianças e insanos. A necessidade de traçar uma linha entre indivíduos
responsáveis e outros é inevitável; contudo, significa que existe uma ambiguidade essencial
em nosso objetivo último de liberdade. O paternalismo é inevitável para aqueles que
definimos como irresponsáveis. (p. 21)

A justificação paternalista para a atividade governamental é a mais incómoda para um liberal;


ela envolve a aceitação de um princípio - o de que alguns podem decidir por outros - que
considera questionável em inúmeros casos e que lhe parece, muito justamente, o ponto
característico de seus principais inimigos intelectuais - os prepotentes do coletivismo em
qualquer uma de suas formas - quer se trate de comunismo, de socialismo ou do estado de
bem-estar social. Entretanto, não há nenhuma vantagem em considerar os problemas como
mais simples do que realmente são. Não há possibilidade de evitar o uso de algumas medidas
paternalistas. (p. 22)

FIM DO TEXTO 1(1)

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