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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

A crise contemporânea do capitalismo e o projeto ético-político

do Serviço Social

Juliana Danielle Gasparin

Rio de Janeiro – RJ

2015
1

Juliana Danielle Gasparin

A crise contemporânea do capitalismo e o projeto ético-político

do Serviço Social

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Serviço Social da Escola de
Serviço Social da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
para obtenção do título de Mestre em Serviço
Social.

Orientador: Prof. Dr. Marcelo Braz Moraes


dos Reis

Rio de Janeiro
2015
2

Juliana Danielle Gasparin

A crise contemporânea do capitalismo e o projeto ético-político

do Serviço Social

Dissertação submetida à banca examinadora como


requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Serviço Social pelo Programa de Pós-graduação
em Serviço Social da Universidade Federal do Rio
de Janeiro.

Examinada em:

_________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Braz Moraes dos Reis

_________________________________________________
Profª. Drª. Mavi Rodrigues Pacheco

_________________________________________________
Prof. Dr. Rodrigo Silva Lima
3

Aos meus pais, ao Rodrigo

e aos meus filhos de quatro patas.

Ao Tico, in memoriam
4

Agradecimentos

Agradeço primeiramente ao meu orientador, Marcelo Braz, por todo o apoio neste
árduo processo de construção desta dissertação, pela paciência e conhecimentos
compartilhados. Aos professores Mavi Rodrigues e Rodrigo Lima, que tão solicitamente
atenderam ao convite para participar da banca e que trouxeram enormes contribuições para
seu desenvolvimento.
Aos professores que enriqueceram minha formação ao longo deste curso de Mestrado:
Mauro Iasi, Yolanda Guerra, Sara Granemann, Carlos Montaño, Marildo Menegat e José
Paulo Netto. Aos funcionários da Secretaria de Pós-graduação, sobretudo à Fernanda Lima e à
Luiza Pessoa, que muito solícitas nos atenderam sempre com muita atenção.
Aos colegas de turma que tive o prazer de conhecer e compartilhar mais esta etapa de
qualificação profissional, pelo companheirismo e solidariedade, principalmente à Juliana
Ford, pela amizade.
Agradeço aos meus pais, Sonia e Antonio Carlos, que sempre me apoiaram e
proveram meios para que pudesse sempre crescer pessoal e profissionalmente. Aos meus
sogros, Anelita e Roberto, que tão bem me acolheram em sua casa. Ao meu namorado,
Rodrigo, pelo carinho, paciência e incentivo. E aos meus filhos queridos que sempre me
divertem e que me proporcionaram uma ótima companhia ao longo da elaboração deste
trabalho: Leo, Tainá, Sabrina, Charlotte e especialmente o Tico, que me trouxe muita alegria e
de quem sempre me lembrarei com muitas saudades.
Por fim, deixo meu agradecimento a todos os colegas assistentes sociais e a todos os
bravos guerreiros da classe trabalhadora que, apesar da ofensiva opressora do capital nunca
perdem a esperança e estão sempre na luta por uma nova sociedade em que a medida de todas
as coisas seja a justiça social. Venceremos!
5

Elogio da dialética

A injustiça avança hoje a passo firme


Os tiranos fazem planos para dez mil anos
O poder apregoa: as coisas
continuarão a ser como são
Nenhuma voz além da dos que mandam
E em todos os mercados proclama a exploração:
Isto é apenas o meu começo.

Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem:


Aquilo que nós queremos nunca mais o alcançaremos.
Quem ainda está vivo nunca diga: nunca
O que é seguro não é seguro
As coisas não continuarão a ser como são
Depois de falarem os dominantes, falarão os dominados
Quem pois ousa dizer: nunca?
De quem depende que a opressão prossiga? De nós
De quem depende que ela acabe? De nós
O que é esmagado, que se levante!
O que está perdido, lute!
O que sabe e o que se chegou, que há aí que o retenha?
Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã
E nunca será: ainda hoje

(Bertold Brecht)

Nada é impossível de mudar

Desconfiai do mais trivial


na aparência singelo
E examinai, sobretudo, o que parece habitual
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito
como coisa natural
Pois em tempo de desordem sangrenta
de confusão organizada
de arbitrariedade consciente
de humanidade desumanizada
nada deve parecer natural
Nada deve parecer impossível de mudar

(Bertolt Brecht)
6

Resumo

O capitalismo é um modo de produção historicamente marcado por diversas crises, o


que ocorre, pois elas fazem parte da dinâmica própria desta ordem social, já que expressam o
momento em que suas contradições inerentes chegam a um ponto crítico para o qual a
burguesia precisa lançar mão de contratendências no sentido de garantir sua manutenção. No
entanto, observando as características das mais recentes, detonadas na década de 1970 e no
ano de 2008, podemos perceber um novo padrão que não corresponde às crises cíclicas
anteriores, mas indicam que se trata de uma crise estrutural deste sistema. Isso porque os
mecanismos que o capital utiliza atualmente visando evitar ou amenizar as crises não têm sido
mais tão eficazes, já que nada mais fazem do que adiá-las ou deslocá-las, demonstrando a
gravidade, pois atingem não somente parte do complexo ao qual está atrelada, mas sim sua
totalidade, ameaçando esta própria estrutura social. Diante disso, o capital empreende uma
feroz ofensiva, cujos ônus atingem fundamentalmente na classe trabalhadora que vê suas
condições de vida e trabalho sendo cada vez mais precarizadas e seus direitos historicamente
conquistados sendo destruídos. Este quadro rebate diretamente no projeto ético-político do
Serviço Social, já que assume um claro compromisso com os interesses desta classe, estando,
portanto em uma relação antagônica com o projeto societário hegemônico. Além do que,
enquanto profissão inscrita na divisão social e técnica do trabalho, os assistentes sociais
também ficam sujeitos à todas as vicissitudes operadas pela ofensiva neoliberal. Assim sendo,
procuramos analisar nesta dissertação se este contexto representa uma crise do nosso projeto
profissional, uma vez que em um momento em que projetos de cunho neoconservador vem
procurando disputar a hegemonia dentro da profissão, colocando em risco a direção social que
representa.

Palavras-chave: crise, capitalismo, projeto ético-político do Serviço Social


7

Abstract

Capitalism is a mode of production historically marked by several crises, which occurs


because they are part of the own dynamics of this social order since they express the moment
its inherent contradictions reach a critical point for which the bourgeoisie needs to make use
of counter-tendencies in order to guarantee its maintenance. However, observing the
characteristics of the most recent ones, detonated in the 1970s and in 2008, we can see a new
pattern that does not match the previous cyclical crisis, but it indicates that this is a structural
crisis of this system. That is because the mechanisms that capital currently uses in order to
avoid or to soften the crisis haven't been so effective as they do nothing but postpone them or
dislocate them, showing their severity, once they reach not only part of the complex they're
tied to, but its totality, it threatens this social structure itself. Thus, capital undertakes a
ferocious offensive, whose burden affects basically in the working class who sees its life and
working conditions being increasingly precarious and their rights which were historically
conquered being destroyed. This picture directly affects the Social Work ethical-political
project since it assumes a clear commitment to the interests of this class. Therefore, it is in an
antagonistic relationship with the hegemonic project of society. Besides, as a profession
within the social and technical division of labor, social workers are also subject to all the
vicissitudes operated by the neoliberal offensive. Therefore, we intended to analyze in this
dissertation if this context represents a crisis of our professional project, especially in a time
when neoconservative oriented project has been seeking to dispute the hegemony within the
profession, endangering the social direction it represents.

Keywords: crisis, capitalism, Social Work ethical-political project


8

Sumário

Introdução................................................................................................................................. 9

1 Algumas categorias centrais da Economia Política para entender melhor a crise....... 15


1.1 A mercadoria................................................................................................................. 16
1.2 O processo de trabalho.................................................................................................. 26
1.3 A mais-valia.................................................................................................................. 29
1.4 A lei geral da acumulação capitalista............................................................................ 47

2 O fundamento das crises capitalistas: as crises clássicas de superprodução................. 59

3 A crise estrutural do capitalismo....................................................................................... 83


3.1 A crise da década de 1970 e o início de um novo padrão de crise do capital............... 91
3.2 O aprofundamento da crise estrutural do capital: a crise de 2008................................ 98
3.3 A crise de 2008 no Brasil............................................................................................ 109

4 Projeto ético-político do Serviço Social em crise?.......................................................... 117


4.1 Projetos societários, projetos profissionais e seus componentes................................ 118
4.2 A construção do projeto ético-político do Serviço Social: contexto histórico,
estrutura e seus elementos básicos......................................................................................... 122
4.3 Projeto ético-político do Serviço Social em crise?..................................................... 128
4.3.1 Precarização da formação e da prática profissional.......................................... 128
4.3.2 O fortalecimento do neoconservadorismo na profissão..................................... 137
4.3.3 A questão da hegemonia: conquista e ameaça................................................... 140
4.3.4 Problematizando uma suposta crise do projeto ético-político do Serviço
Social...................................................................................................................................... 142

Considerações finais: mais algumas reflexões sobre o projeto ético-político do Serviço


Social..................................................................................................................................... 149

Referências bibliográficas................................................................................................... 161


9

Introdução

No ano de 2008 tornou-se evidente a detonação de mais uma crise do modo de


produção capitalista, iniciada nos países de economia central, alastrando-se rapidamente aos
países periféricos, dado o alto grau de integração deste sistema mundial. Percebemos,
portanto, que as crises são recorrentes no capitalismo, haja vista as mais significativas
ocorridas na década de 1970 e 1929, sem contar as anteriores, que acompanham toda a
história da ordem social instaurada pela burguesia. Isso ocorre, pois elas fazem parte da
dinâmica própria desta ordem social, já que expressam o momento em que suas contradições
inerentes chegam a um ponto crítico para o qual a classe capitalista precisa lançar mão de
mecanismos para garantir sua continuidade.
Assim, na tentativa de recuperar seus níveis de acumulação, o capital empreende
uma intensa ofensiva, cujas consequências mais graves rebatem sobre a classe trabalhadora: o
movimento sindical sofre fortes ataques e os direitos historicamente conquistados pelos
movimentos dos trabalhadores vão sendo destruídos. A exploração do trabalho é intensificada,
os salários são reduzidos, o emprego é precarizado, as relações de trabalho vão sendo cada
vez mais flexibilizadas e o níveis de desemprego aumentam.
Diante disso, temos como objeto de estudo não só as crises do capitalismo
contemporâneo, suas implicações para o projeto ético-político profissional. Nosso objetivo
principal nesta dissertação é verificar se esta conjuntura do capital diante da crise estrutural na
qual está imerso implica uma crise do nosso projeto ético-político profissional, já que,
enquanto sintonizado aos interesses da classe trabalhadora, vê-se diante de uma forte ofensiva
de cunho neoliberal, parte do projeto societário hegemônico ao qual está em profundo
antagonismo. Por conta disso, no interior da profissão são colocados em disputa projetos que
pretendem fortalecer o neoconservadorismo1 sob as mais diversas roupagens, o que também
indica uma grande ameaça ao nosso projeto profissional hegemônico.
Para atingirmos este objetivo, foi necessário compreendermos um pouco melhor a
dinâmica deste sistema a partir de algumas categorias fundamentais da teoria marxiana e
analisar as crises cíclicas que o compõem, bem como dispensar maior atenção às crises
irrompidas na década de 1970 e em 2008, que parecem se diferenciar das anteriores,
apresentando um caráter estrutural, sistêmico. Com relação ao nosso projeto ético-político,

1
Quando o conservadorismo deixa de lado sua tendência anticapitalista e restauradora, atentando para conter os
anseios de revolução da classe trabalhadora, passando a ser, portanto, funcional aos interesses burgueses,
caracteriza o que Santos (2007) denomina neoconservadorismo.
10

procuramos verificar seu histórico e suas relação com o projeto societário, identificando os
desafios e ameaças que se lhe impõem a atual conjuntura.
O interesse por este tema surgiu através dos estudos acadêmicos, principalmente com
a realização do trabalho de conclusão de curso2, o qual pretendo aprofundar e ampliar a partir
desta pesquisa. A prática profissional também foi fundamental na escolha do tema, uma vez
que o contato com a realidade do trabalho do assistente social nos permite ter uma visão mais
apurada acerca das possibilidades e limites que encontramos. Outros cursos e eventos que
tratam do cenário atual (seja da sociedade ou do próprio Serviço Social) igualmente
suscitaram o desejo de investigar mais a fundo o objeto de estudo. Além disso, nossa própria
vivência cotidiana nos leva a querer compreender melhor a realidade, buscar as raízes dos
problemas que enfrentamos e nos deparamos, superando a pura imediaticidade dos fenômenos
como nos são aparentes no dia-a-dia.
Diante do exposto até aqui, vemos que importância em estudar o objeto, reside no fato
de que é fundamental compreendermos as iniciativas de que o capitalismo contemporâneo
lança mão e quais são seus resultados nas complexas relações entre o Estado e a sociedade, de
que forma as inúmeras contrarreformas de cunho neoliberal incidem na vida social, nas
profissões, nas organizações da classe trabalhadora, já que vão na contramão de seus
interesses. Assim, neste momento em que há uma enorme ofensiva do capital, uma regressão
dos direitos conquistados, precisamos encontrar caminhos não só na profissão, mas na própria
sociedade, no sentido de traçar estratégias de enfrentamento que fortaleçam a direção social
contida nele, pautada por valores e princípios que reforçam não a justiça social e os direitos
humanos.
Além disso, a apreensão das mediações do cenário contemporâneo nos possibilita
identificar as inúmeras expressões que assume a ―questão social‖3 na atualidade e assim, lidar
com as suas múltiplas determinações, desvelando a simples aparência dos fenômenos que nos
colocam enquanto demandas à profissão e atingindo sua essência. Desta forma, poderemos
realizar uma prática profissional compromissada com nosso projeto ético-político, tendo em
vista a relação da profissão com o movimento real das classes sociais fundamentais, e,
portanto, tensionado por elas, já que ao assumir um compromisso com os interesses da classe

2
GASPARIN, J. D. Os desafios da conjuntura atual para o projeto ético-político do Serviço Social. 2009. 82 f.
Trabalho de Conclusão de Curso (Serviço Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
2009.
3
―A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e
de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do
empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a
burguesia‖. (IAMAMOTO in IAMAMOTO e CARVALHO, 2004: 77; grifos da autora)
11

trabalhadora, coloca-se em contraposição ao projeto societário hegemônico do capital,


conforme já mencionado.
O significado da prática cotidiana da nossa profissão mas somente pode se revelar
quando ampliamos nosso olhar, para a história da sociedade, o movimento das classes sociais,
suas relações e mecanismos de poder é que podemos desvendar os limites, possibilidades, sua
necessidade e efeitos na vida social. Isso significa que o sentido político social do Serviço
Social só pode ser apreendido se buscarmos ultrapassar suas expressões cotidianas, sua mera
aparência e que ―o sucesso do projeto [ético-político] depende de análises precisas das
condições subjetivas e objetivas da realidade para sua realização bem como de ações políticas
coerentes com seus compromissos e iluminadas pelas mesmas análises.‖ (BRAZ, 2001: 7)
Outra importância que deve ser mencionada parte da consideração da especificidade
do Serviço Social como profissão inserida na divisão social e técnica do trabalho,
caracterizando-nos, portanto, enquanto parte da classe trabalhadora, o que nos deixa também
sujeitos à todas as vicissitudes da precarização de suas condições de vida e trabalho que o
capitalismo contemporâneo impõe. Assim, estarmos cientes acerca da dinâmica desta
sociedade nos instrumentaliza para agir coletivamente no sentido de sua superação e
construção de uma nova ordem social, fundada em outros princípios, que não os da
exploração capitalista.
Para a realização desta pesquisa, ressaltamos, primeiramente, que a fundamentação
teórica empregada tem por base a teoria social de Marx e como paradigma teórico-
metodológico o materialismo histórico-dialético, pois acreditamos que ele nos permite
apreender o real em suas múltiplas determinações, superando a mera aparência do fenômeno
que, apesar de ser um nível necessário do real, as representações aí estão em sua forma
reificada. Podemos, então, superar este nível e chegar o mais próximo possível da essência da
realidade concreta, entendendo que esta é a tarefa da teoria, da ciência, de acordo com o
próprio Marx (apud Santos, 2010:19): ―toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência
imediata entre a aparência e a essência das coisas‖.
Optamos por esta referência, pois sabemos que a sociedade capitalista tem por
característica fetichizar as formas econômicas, reificar as relações humanas e assim, produz
uma alienação social que não nos permite apreender além da imediaticidade dos fenômenos
sociais, com o objetivo principal de servir como instrumento para a manutenção da classe
capitalista no poder, de conservar sua hegemonia, utilizam métodos que naturalizam esta
sociedade, colocando-a como eterna e intransponível, que não permitem apreender a realidade
como tal, sua totalidade, sua essência.
12

A teoria social de Marx, a partir do método dialético, é que nos permite ultrapassar
estas ilusões e atingir a essência dos fenômenos cotidianos, através da perspectiva histórica e
de totalidade, ou seja, da compreensão que há uma unidade concreta e dialética do todo. Este
método é o único capaz de desvendar as contradições inerentes ao modo de produção
capitalista e agir no sentido de sua superação, fornecendo uma orientação à ação da classe
proletária.
Os procedimentos metodológicos implicados no desenvolvimento do estudo proposto
por esta dissertação consistem em, primeiramente, uma pesquisa bibliográfica acerca do tema,
selecionando as que o contemplam de forma mais satisfatória, sempre tendo em vista o
referencial teórico que nos apoiamos. Assim, a partir de uma revisão das fontes,
empreendemos uma leitura mais aprofundada e analítica dos materiais disponíveis, seguindo-
se ao desenvolvimento de cada capítulo planejado de acordo com o objetivo da dissertação.
Lembramos que foram também relevantes como fonte de estudos o que foi apreendido
durante as aulas do curso de graduação e mestrado em Serviço Social, os cursos, eventos,
seminários e afins que abordaram a temática em questão, além das experiências profissionais
cotidianas, que contribuíram para a análise aqui apresentada.
Esta dissertação inicia-se com um capítulo que reúne algumas das principais
categorias da teoria social marxiana, pois, conforme já apontamos, esta fornece a base teórica
de nossa abordagem. Obviamente, não é possível dar conta aqui da complexidade encontrada
no conjunto das categorias elaboradas por Marx em seus estudos acerca do modo de produção
capitalista, mas é fundamental esclarecermos nossa compreensão acerca das que pensamos
serem preponderantes para tratarmos a questão das crises desta ordem social.
Trazemos, então, as categorias de mercadoria, enquanto forma elementar da riqueza
na sociedade capitalista; processo de trabalho, por constituir uma das categorias centrais pela
qual se desenvolve a teoria marxista; mais-valia, categoria que foi essencial para explicitar o
caráter exploratório deste modo de produção, no qual o capital subjuga o trabalho para atingir
seu objetivo maior de acumulação; e, por fim, tratamos da lei geral da acumulação
capitalista, que expressa a forma como o capitalismo ajusta a quantidade de trabalhadores às
suas necessidades de expansão, potencializando, de um lado, a riqueza e de outro, o
pauperismo, ao qual fica relegada a classe trabalhadora.
O próximo capítulo tem como foco as crises cíclicas do modo de produção capitalista,
demonstrando, através da análise de Marx, como elas não somente fazem parte dos próprios
ciclos econômicos, como são funcionais à ordem do capital, atuando como uma forma de
garantir sua permanência por mais um período de tempo. Isso porque, enquanto revela suas
13

mais gritantes contradições, acaba fornecendo os meios para amenizá-las e não sucumbir à
sua própria lógica autodestrutiva, já que, conforme Marx e Engels (2006a: 57): ―a burguesia
produz, acima de tudo, seus próprios coveiros‖.
No terceiro capítulo nos atentamos à crise capitalista desencadeada a partir da década
de 1970, pelo fato de inaugurar um novo padrão, pois não se trata mais de outra crise cíclica,
mas sim de uma crise estrutural do capitalismo, análise baseada fundamentalmente no
desenvolvimento desta concepção pelo marxista húngaro Mészáros. Também foi fundamental
para a construção deste capítulo a leitura de Harvey acerca da crise mais atual, deflagrada no
ano de 2008, que nada mais é do que uma reverberação da anterior, seguindo o padrão que lhe
confere o status de crise estrutural. Analisamos seus detonadores e traçamos um breve
panorama de seus impactos no mundo globalizado. Para finalizar este terceiro capítulo,
abordamos de forma bastante sucinta algumas repercussões desta crise contemporânea do
capital no Brasil, até porque a proximidade histórica ainda não possibilitou que análises mais
complexas sobre este quadro fossem desenvolvidas com maior precisão.
O quarto e último capítulo é o que finalmente traz a abordagem mais específica do
Serviço Social. Iniciamos analisando de que forma se constituem os projetos profissionais e
sua relação com os projetos societários de forma mais geral, para então verificarmos a
especifidade do projeto ético-político do Serviço Social, construído coletivamente a partir de
um contexto de lutas pela democratização da sociedade brasileira e, portanto, impulsionado
pelas forças políticas que levaram à derrocada da ditadura militar no país. Neste cenário,
veremos como a categoria, estimulada por suas vanguardas, começa a questionar não só o
movimento da sociedade em torno da luta de classes, como o próprio conservadorismo
histórico na profissão, promovendo não só sua rejeição, mas a ruptura e construção de novas
perspectivas para a profissão, que é chamada a responder novos desafios e demandas diante
das novas configurações do capitalismo que vão se desenhando na dinâmica das suas
transformações internas.
Só após traçarmos este panorama, apresentando suas principais determinações e
elementos é que passamos a analisar se o nosso projeto ético-político está em crise. Trazemos
algumas questões para pensarmos a questão da formação e da prática profissional na
contemporaneidade, que vem sendo cada vez mais precarizadas. Problematizamos então,
brevemente, o fortalecimento do neoliberalismo no interior da profissão e a ameaça que a
hegemonia conquistada pelo projeto profissional atual enfrenta. É aí que passamos a trazer
alguns elementos para pensar se, diante de tudo isso, nosso projeto ético-político está ou não
atravessando uma crise.
14

Nas considerações finais procuramos deixar clara nossa posição quanto a esta questão,
trazendo ainda, algumas sugestões de enfrentamento que encontramos na literatura
profissional, que buscam fortalecer nosso projeto profissional, tendo como horizonte o que
representamos nesta citação de Iamamoto (2014: 610):

com base na economia política do trabalho e da aliança com as forças progressistas,


acenamos a bandeira da luta política, que dá alento e esperança à construção
histórica de outra forma de organização da vida social que possa a vir contemplar o
desenvolvimento de cada um e de todos os indivíduos sociais.

Certamente que tanto o leque de problematizações que a profissão enfrenta na forma


de desafios contemporâneos, como o de sugestões para traçarmos estratégias de
enfrentamento à atual ofensiva do capital não se limitam às trazidas por nós nesta dissertação,
já que fazem parte de uma gama muito mais complexa de determinações que não se limitam
somente ao projeto ético-político profissional. Porém, as questões levantadas aqui certamente
merecem atenção por parte da categoria, se de fato estivermos empenhados em concretizar
este projeto e, mais do que isso esta nova organização da vida social.
15

1 Algumas categorias centrais da Economia Política para entender melhor a crise

Para iniciar esta dissertação, começamos por realizar a exposição de algumas das
principais categorias da teoria social marxiana, as quais julgamos fundamentais para o
desenvolvimento do trabalho, já que constituem a base teórica fundante daquilo que estaremos
abordando – o modo de produção capitalista, tendo por foco suas crises cíclicas.
Como o próprio Marx afirmou, o critério da verdade é o real 4, então acreditamos que é
desta maneira que se percebe sua teoria como verdadeira e atual, apesar da necessidade da
continuidade e atualização de análises de conjuntura, as quais não eram nem mesmo possíveis
de ser realizadas pelo referido autor, uma vez que caracterizavam apenas tendências (e muitas
delas também acertadas) à sua época. Mas isso, os próprios Marx e Engels já apontavam no
prefácio à edição alemã de 1872 da obra Manifesto do Partido Comunista, que, apesar das
análises mais gerais se manterem, o desenvolvimento histórico condiciona a análise das
questões mais específicas da realidade, a qual deve procurar acompanhá-lo e refleti-lo nas
suas múltiplas determinações.5
A escolha das categorias se deve à sua relevância para a compreensão da crise, tendo
em vista que nos momentos de crise, em que há uma superprodução de mercadorias, o valor
contido nela não se realiza já que há uma tendência de subconsumo. A crise se expressa
também como um problema relacionado à mais-valia, já que com a tendência à queda da taxa
de lucro, os capitalistas buscam estratégias de recuperação da acumulação de capital. Os
resultados destes mecanismos rebatem diretamente no processo de trabalho e o ônus maior de
todo este ciclo do capital recai sobre a classe trabalhadora, conforme verificaremos a partir da
análise da lei geral de acumulação capitalista, cuja manifestação é evidente nas próprias
expressões da "questão social", objeto de intervenção do Serviço Social.
Verificaremos a seguir de forma mais detalhada cada uma das determinações destas
categorias da Economia Política.

4
Para Marx, é a própria realidade que confirma a veracidade da teoria: ―é na práxis que o homem deve
demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento.‖ (MARX, 2006a: 111-
112)
5
Em uma ―autocrítica‖ de sua obra neste prefácio, os autores afirmam que ―embora as condições tenham
mudado muito nestes últimos vinte e cinco anos, os princípios gerais expostos neste Manifesto conservam em
seu conjunto, ainda hoje, toda a sua exatidão. Certas partes deveriam ser retocadas. O próprio Manifesto explica
que a aplicação destes princípios dependerá, sempre e em toda parte, das circunstâncias históricas existentes‖.
(MARX e ENGELS, 2006b: 26)
16

1.1 A mercadoria

Da mesma forma como Marx faz em seu principal trabalho – O capital: crítica da
Economia Política – iniciaremos pela análise da categoria da mercadoria, já que nas
sociedades de produção capitalista, é ela que constitui a forma elementar da sua riqueza.6
Ao analisarmos a fundo a mercadoria, é possível identificar seu duplo caráter:
enquanto algo produzido no intuito da satisfação de determinadas necessidades humanas e
que tem, portanto, uma utilidade, ela é um valor-de-uso historicamente determinado tanto
qualitativamente, através de suas propriedades materiais, as quais constituem sua existência e
definirão o modo pela qual serão utilizadas, quanto quantitativamente, já que é sempre
quantificado de acordo com determinado padrão de medidas. Seu consumo ou sua utilização
representam a realização dos valores-de-uso, ―conteúdo material da riqueza‖ e se relacionam
intrinsecamente à outra face de seu duplo caráter – os valores-de-troca.7 Esta relação se dá a
partir da troca de determinadas quantidades de valores-de-uso diferentes e que, apesar de
serem imanentes à mercadoria, são variáveis ao longo do decurso histórico. (MARX, 2012:
58)
Na relação da troca de mercadorias, observamos que a quantidade de uma determinada
mercadoria pode ser permutada por uma quantidade determinada de diversas outras
mercadorias, tornando-as equivalentes entre si, já que são igualadas durante este processo.
Isso significa que ―algo comum, com a mesma grandeza, existe em duas coisas diferentes [...].
As duas coisas são, portanto, iguais a uma terceira, que, por sua vez, delas difere. Cada uma
das duas, como valor-de-troca, é reduzível, necessariamente, a essa terceira‖. (MARX, 2012:
59)
Isto que há de comum nas mercadorias e que permite sua relação de troca não
corresponde a nenhuma de suas propriedades materiais, pois estas somente interessam na
medida em que a determinam enquanto um valor-de-uso específico, o qual na troca é
desconsiderado, já que na relação de troca os valores-de-uso passam a ter o mesmo valor
quando presentes em dadas proporções. Conforme Marx (2012: 59): ―como valores-de-uso, as

6
―À primeira vista, a riqueza da sociedade burguesa aparece como uma imensa acumulação de mercadorias,
sendo a mercadoria isolada a forma elementar dessa riqueza‖. (MARX, 2008: 51)
7
Vale ressaltar aqui a importante ressalva que Marx faz acerca da afirmação de que a mercadoria seria valor-de-
uso e valor-de-troca, quando diz que ―isto, a rigor, não é verdadeiro. A mercadoria é valor-de-uso ou objeto útil e
‗valor‘. Ela revela seu duplo caráter, o que ela é realmente, quando, como valor, dispõe de uma forma de
manifestação própria, diferente da forma natural dela, a forma de valor-de-troca; e ela nunca possui essa forma,
isoladamente considerada, mas apenas na relação de valor ou de troca com uma segunda mercadoria diferente.
Sabido isto, não causa prejuízo aquela maneira de exprimir-se, servindo, antes, para poupar tempo‖. (MARX,
2012: 82)
17

mercadorias são, antes de mais nada, de qualidade diferente; como valores-de-troca, só podem
diferir na quantidade, não contendo, portanto, nenhum átomo de valor-de-uso‖.
O que dois valores-de-uso distintos têm em comum e que permite esta equivalência
entre eles é o fato de serem produtos de um dispêndio de força de trabalho e, sendo assim, a
qualidade própria de cada trabalho concreto empreendido em sua produção também são
desconsiderados, pois, no processo de troca, acabam reduzidos a trabalho abstrato. Neste
sentido, os valores-de-uso são os ―veículos materiais‖ dos valores-de-troca e, desta forma,
―um valor-de-uso ou um bem só possui, portanto, valor, porque nele está corporificado,
materializado, trabalho humano abstrato‖. O trabalho é, assim, a substância do valor. (MARX,
2012: 60)
Marx, então, supera a teoria do valor-trabalho da Economia Política clássica
reformulando-a nos seguintes termos8: ―o trabalho (abstrato) é a essência do valor de troca
porque, numa sociedade fundada sobre a divisão do trabalho, ele constitui o único tecido
conjuntivo que permite comparar mutuamente e tornar comensuráveis os produtos do trabalho
de indivíduos separados uns dos outros‖. (MANDEL, 1968: 50)
A medida usada para determinar o valor das mercadorias é, portanto, a quantidade de
trabalho necessário para sua produção e, dado que o trabalho é contado pela sua duração,
concluímos assim que o valor de uma mercadoria é determinado não pelo tempo de trabalho
incorporado em cada uma9, mas sim pelo tempo de trabalho socialmente necessário para sua
produção, ou seja, ―o tempo de trabalho requerido para produzir-se um valor-de-uso qualquer,
nas condições de produção socialmente normais existentes e com o grau social médio de
destreza e intensidade do trabalho‖. (MARX, 2012: 61)

8
Se, inicialmente, Marx rejeita a teoria do valor-trabalho durante seus estudos de Economia Política, é com o
progresso desses e o desenvolvimento de seu pensamento, pelo contato não só com os escritos dos autores da
Economia Política clássica, como Adam Smith, David Ricardo, James Mill, McCulloch, Jean-Baptiste Say e
Boisguillebert, mas também com o que produziram os autores socialistas ingleses, como T. R. Edmonds,
William Thompson e John Bray, que sua concepção sobre a referida teoria começa a mudar, passando a
considerar alguns aspectos da teoria na forma que traz Ricardo e, então, reformula esta teoria, superando-o. O
ponto principal que distancia Marx de Ricardo é que, enquanto este trata as categorias econômicas enquanto leis
eternas e imutáveis, Marx imprime às mesmas um caráter histórico, que só existe enquanto se fizerem presentes
as condições de determinadas formações históricas que lhe deram origem. Este avanço do pensamento marxiano
que vai da rejeição à reformulação da teoria do valor-trabalho ocorre fundamentalmente em cerca de três anos –
do início de 1844 ao início de 1847. Para um detalhamento maior deste processo, ver Mandel (1968).
9
Afinal, como já vimos, não é o trabalho individual com suas particularidades que se leva em consideração, mas
o trabalho abstrato e, por isso, utiliza-se um tempo médio, que possua um caráter de universalidade, permitindo
assim que se troquem todas as mercadorias umas pelas outras, nas proporções em que representem a objetivação
de um mesmo tempo de trabalho, já que, enquanto mercadorias, são qualitativamente iguais, só diferindo umas
das outras quantitativamente.
18

Daí podemos compreender, então, o porquê da variação dos valores das mercadorias,
já que, as oscilações na produtividade10 do trabalho alteram o tempo de trabalho socialmente
necessário à sua produção, modificando, assim, seu valor. Portanto, ao relacionar a
produtividade do trabalho com o valor da mercadoria, depreendemos que:

quanto maior a produtividade do trabalho, tanto menor o tempo de trabalho


requerido para produzir uma mercadoria, e, quanto menor a quantidade de trabalho
que nela se cristaliza, tanto menor seu valor. Inversamente, quanto menor a
produtividade do trabalho, tanto maior o tempo de trabalho necessário para produzir
um artigo e tanto maior seu valor. A grandeza do valor de uma mercadoria varia na
razão direta da quantidade e na inversa da produtividade do trabalho que nela se
aplica. (MARX, 2012: 62)

Para evitar certas confusões quanto à categoria da mercadoria, deve-se ter em mente
que um valor-de-uso qualquer só poderá ser designado como ―mercadoria‖ se for algo útil
produzido para terceiros, ou seja, um ―valor-de-uso social‖, que pode ser reproduzido, sendo
transferido através do processo de troca.11
Assim como a mercadoria, o trabalho também tem um duplo caráter: aquele que
produz um valor-de-uso é o trabalho útil, uma atividade produtiva destinada a um fim
específico e que apresentam qualidades diversas uns dos outros, gerando, assim, valores-de-
uso qualitativamente diferentes, o que os permite entrar num processo de troca. ―Essa
diferença qualitativa dos trabalhos úteis executados, independentes uns dos outros, como
negócio particular de produtores autônomos, leva a que se desenvolva um sistema complexo,
uma divisão social do trabalho‖.12 (MARX, 2012: 64)

10
―A produtividade o trabalho é determinada pelas mais diversas circunstâncias, dentre elas a destreza média dos
trabalhadores, o grau de desenvolvimento da ciência e sua aplicação tecnológica, a organização social do
processo de produção, o volume e a eficácia dos meios de produção e as condições naturais‖. (MARX, 2012: 62)
11
Desta forma, se algo é útil, mas não é produto do trabalho, pode ser considerado um valor-de-uso, mas não
valor. ―Exemplos: o ar, a terra virgem, seus pastos naturais, a madeira que cresce espontânea na selva etc‖. Se
alguém produz algo para satisfazer uma necessidade própria, este produto, apesar de ser útil e, portanto, um
valor-de-uso, e produto do trabalho não é mercadoria, pois não foi produzido para terceiros. E, por fim,
lembramos que os tributos produzidos pelo servo ao senhor feudal a título de dízimo na sociedade feudal
também não poderiam ser considerados mercadoria, já que, apesar de valor-de-uso produzidos para outrem, não
eram transferidos através da troca. (MARX, 2012: 62)
12
―O crescimento da produtividade do trabalho [...] surge vinculado à repartição do trabalho. Antes mesmo do
aparecimento do excedente econômico, na comunidade primitiva diferenciaram-se as atividades de homens e
mulheres – a divisão sexual é a primeira forma da repartição do trabalho; posteriormente, dividiu-se também o
trabalho entre o artesanato e as ocupações agrícolas, num processo que, muito mais tarde, desembocaria na
divisão entre cidade e campo e na grande clivagem entre atividades manuais e atividades intelectuais. Com
efeito, à medida que se desenvolve a capacidade produtiva da sociedade (e, com ela, o volume do excedente),
esta divide as ocupações necessárias à produção de bens entre seus membros – instaurando a divisão social do
trabalho, que avança tanto mais rapidamente quanto mais os bens produzidos, deixando o limite do autoconsumo
das comunidades, destinam-se à troca. Cabe assinalar que essa divisão reparte o trabalho em especialidades (a
olaria, a fabricação de armas etc.), mas não reparte cada especialidade em operações limitadas (o oleiro controla
todas as fases da produção de uma ânfora); esta última só ocorrerá muito ulteriormente. [...] Na segunda metade
do século XVIII, a ofensiva do capital sobre o trabalho avançou: à cooperação passa a suceder a manufatura.
19

Muitas das formas dos diversos tipos de trabalho útil, que cria valores-de-uso, antes de
se tornarem uma profissão, um ramo específico da divisão social do trabalho já eram
executados pelos seres humanos, dado que estes precisavam interagir com a natureza, da qual
é parte integrante e da qual retira os substratos os quais transforma, e adaptá-la no sentido de
satisfazer suas necessidades e garantir sua sobrevivência. Assim, não importa qual a forma
social e histórica que se considere, o trabalho útil sempre se fará presente.
No entanto, com relação ao valor das mercadorias, não importa a qualidade específica
da atividade produtiva que lhes originou. A única qualidade que é levada em conta aqui é a de
terem cristalizadas em si um dispêndio de força de trabalho humana, ou seja, trabalho humano
simples, que requer um ser humano comum, que dispensa qualquer tipo de conhecimentos e
habilidades especiais para empregá-la. Levemos em consideração que ―o trabalho simples
médio muda de caráter com os países e estágios de civilização, mas é dado numa determinada
sociedade‖, configurando assim, seu caráter histórico. Já o trabalho complexo, ou seja, aquele
que exige um grau de qualificação maior e, portanto, maior preparação, educação e
conhecimento para ser realizado ―vale como trabalho simples potenciado ou, antes,
multiplicado, de modo que uma quantidade dada de trabalho qualificado é igual a uma
quantidade maior de trabalho simples‖. (MARX, 2012: 66)
Dessa forma, por meio de um processo social que estabelece uma quantidade relativa
de trabalho qualificado a trabalho simples, nas devidas proporções, todas as mercadorias, seja
resultante de trabalho simples ou qualificado, podem ser relacionadas no processo de troca.13
Assim, concluímos que

Aqui, já não se trata de reunir trabalhadores num espaço físico determinado; trata-se de reuni-los e de
especializar as suas atividades – com a manufatura, o capital introduz na produção uma divisão do trabalho
específica: a divisão capitalista do trabalho no interior das unidades produtivas. Essa divisão conduz à
especialização das atividades e, ao mesmo tempo, à destruição dos saberes de ofício que permitiam ao
trabalhador o conhecimento técnico do conjunto das operações necessárias à produção de certo bem; alocado a
uma única e determinada tarefa, que repetirá ao longo de todas as jornadas de trabalho, o trabalhador será
despojado de seus conhecimentos e perderá o controle de suas tarefas (e, portanto, perderá muito do seu poder de
barganha em face do capitalista). A divisão capitalista do trabalho no interior das unidades produtivas propiciará
um enorme aumento da produtividade do trabalho e terá como efeito uma diferenciação da força de trabalho que
favorecerá os desígnios do capitalista: de um lado, criará uma pequena parcela de trabalhadores altamente
especializados, que disporá de condições de negociar em posição de força com o capitalista; mas, de outro,
desqualificará a maioria das atividades produtivas, na medida em que a divisão do trabalho multiplica atividades
simples – então, abre-se o espaço para a exploração do trabalho feminino e infantil e para a constituição de um
grande contingente de trabalhadores que não dispõem de saberes de ofício. O período manufatureiro desobstrui a
via para que o processo de trabalho seja realmente comandado pelo capital‖. (NETTO e BRAZ, 2009: 59;111-2;
grifos dos autores)
13
Aqui, Marx faz uma importante observação: ―as diferentes proporções em que as diversas espécies de trabalho
se reduzem a trabalho simples, como sua unidade de medida, são fixadas por um processo social que se
desenrola sem dele terem consciência os produtores, parecendo-lhes, por isso, estabelecidas pelo costume‖.
(MARX, 2012: 66)
20

se o trabalho contido na mercadoria, do ponto de vista do valor-de-uso, só interessa


qualitativamente, do ponto de vista da grandeza do valor só interessa
quantitativamente e depois de ser convertido em trabalho humano, puro e simples.
No primeiro caso, importa saber como é e o que é o trabalho; no segundo, sua
quantidade, a duração de seu tempo. Uma vez que a grandeza do valor de uma
mercadoria representa apenas a quantidade de trabalho nela contida, devem as
mercadorias, em determinadas proporções, possuir valores iguais. (MARX, 2012:
67)

Vemos assim que, no caso de a produtividade manter-se inalterada, a magnitude do


valor de certa mercadoria aumenta com a massa de valores-de-uso produzidos. Porém, dado o
duplo caráter do trabalho, a um aumento na quantidade de valores-de-uso, pode corresponder
um decréscimo do seu valor. Isso porque a produtividade está ligada ao trabalho concreto,
significando maior ou menor produção de quantidades de valores-de-uso em determinado
espaço de tempo. Assim, se o tempo de trabalho necessário à produção de certa massa de
valores-de-uso decai com o aumento da produtividade, decai também a magnitude do valor
dessa massa de mercadorias em questão, o mesmo valendo para o inverso.
Algo só pode ser considerado mercadoria se possuir este duplo caráter que acabamos
de abordar: ser valor-de-uso e, ao mesmo tempo, valor-de-troca (valor). Este último,
considerando que é produto do trabalho e que se manifesta na relação de troca estabelecida
socialmente entre mercadorias. É notório afirmar que ―as mercadorias possuem forma comum
de valor, que contrasta com a flagrante heterogeneidade das formas corpóreas de seus valores-
de-uso. Esta forma comum é a forma dinheiro do valor‖. Mas para compreendê-la melhor,
vamos verificar como se deu ―o desenvolvimento da expressão do valor contida na relação de
valor existente nas mercadorias‖. (MARX, 2012: 69-70)
A primeira forma de valor, a qual Marx (2012: 70) denomina como ―simples, singular
ou fortuita‖ é aquela entre duas mercadorias distintas. Na expressão de valor, a mercadoria
que tem seu valor expresso por outra é que possui a forma relativa do valor; já aquela que tem
por função expressar o valor de outra mercadoria é a que possui a forma equivalente do valor.
Marx (2012: 72) ressalta que

ao dizermos que, como valores, as mercadorias são trabalho humano cristalizado,


nossa análise as reduz a uma abstração, a valor, mas não lhes dá forma para esse
valor, distinta de sua forma física. A questão muda quando se trata da relação de
valor entre duas mercadorias. Aí a condição de valor de uma se revela na própria
relação que estabelece com a outra.

Fica evidente aí a forma pela qual, na relação de troca entre duas mercadorias
distintas, os trabalhos específicos geradores dos valores-de-uso, veículos do valor, se igualam,
21

ao serem reduzidos a trabalho humano comum, para assim, poderem efetivamente ser
ajustados às proporções equivalentes para a troca. Tal proporção é determinada
quantitativamente pelas quantidades dos valores-de-uso que correspondem a determinada
quantidade igual de tempo de trabalho materializado. Assim, analisando a forma equivalente
do valor, Marx (2012: 78) ressalta que nela vemos como ―o valor-de-uso se torna a forma de
manifestação do seu contrário, isto é, do valor‖.
Nesta relação, apesar de ter expresso o seu valor no valor-de-uso de outra mercadoria,
o objeto material da forma equivalente do valor apenas representa o tempo de trabalho
corporificado em si, o elemento social do valor e não suas qualidades físicas propriamente
ditas.
É esta forma, porém, que encerra certo caráter enigmático, já que, na forma relativa do
valor, a mercadoria em questão expressa seu valor num valor-de-uso distinto de si própria,
deixando evidente a existência de uma relação social. No entanto, quando assume a forma
equivalente e tem por única função expressar em si mesma o valor de outra mercadoria,
parece que tal objeto material tem por natureza a característica da forma equivalente.
Outra propriedade inerente à forma equivalente do valor é a do ―trabalho concreto
tornar-se forma de manifestação de seu contrário, trabalho humano abstrato‖. Isso porque na
expressão de valor entre duas mercadorias, o trabalho criador da mercadoria que assume a
forma equivalente só é útil na medida em que produz um objeto que corporifica este trabalho
enquanto fonte de determinada quantidade de valor, necessitando ―refletir, apenas, a
propriedade abstrata de ser trabalho humano‖. (MARX, 2012: 80)
Daí podemos extrair outra propriedade da forma equivalente: enquanto os trabalhos
concretos são considerados como mera expressão de trabalho abstrato, para poderem ser
equiparados a qualquer outro e assim efetivar a troca das diversas mercadorias, os trabalhos
privados produtores das mesmas, apresentam-se imediatamente14 como seus contrários –
trabalho social. Mas vale ressaltar que ―não se trata aqui da natureza social pura, mas sim do
‗modo específico como o trabalho que determina o valor de troca, que produz mercadorias, é
trabalho social‘‖.15 (ROSDOLSKY, 2001: 113) Além disso,

14
Citando Marx, Rosdolsky (2001: 510) acrescenta aqui que: ―‗exatamente por não ser possível essa
representação imediata, deve-se produzir uma mediação‘, ou seja, a formação do dinheiro‖.
15
Para fazer uma distinção deste caráter social que o trabalho assume na sociedade capitalista, citamos Marx
(apud ROSDOLSKY, 2001: 113-4): ―Tomemos os serviços e pagamentos em espécie da Idade Média. Os
trabalhos determinados dos indivíduos em sua forma natural, ou seja, a particularidade e não a generalidade do
trabalho, constituem aqui o laço social. Finalmente, tomemos o trabalho social em sua forma natural, tal como a
encontramos no limiar da história de todos os povos civilizados. Nesse caso, o caráter social do trabalho não
decorre, evidentemente, do fato de que o trabalho do indivíduo assume a forma abstrata geral, ou de que seu
produto assuma a forma de equivalente geral. A organização comunitária na qual se baseia a produção impede
22

o trabalho individual só se manifesta como seu contrário em virtude de sua


alienação. Mas a mercadoria deve possuir essa expressão geral antes de estar
alienada. Essa necessidade de representar o trabalho individual como geral é a
necessidade de uma mercadoria representar-se como dinheiro. (MARX apud
ROSDOLSKY, 2001: 510)

Vemos que uma das contradições fundamentais do sistema capitalista consiste


justamente em que, quanto mais o produto do trabalho social torna-se privado, mais se
socializa a produção, dado o elevado grau de divisão social do trabalho. Ainda assim, ―nesse
modo de produção, embora a dependência recíproca (em todos os sentidos) dos produtores se
converta em um fato, mesmo assim inexiste planificação social coerente, submetendo-se tudo
à cega ação das forças do mercado‖. (ROSDOLSKY, 2001: 112)
É importante considerar que

em todos os estágios sociais, o produto do trabalho é valor-de-uso; mas só um


período determinado do desenvolvimento histórico, em que se representa o trabalho
despendido na produção de uma coisa útil como propriedade ―objetiva‖, inerente a
essa coisa, isto é, como seu valor, é que transforma o produto do trabalho em
mercadoria. Em consequência, a forma simples de valor da mercadoria é também a
forma-mercadoria elementar do produto do trabalho, coincidindo, portanto, o
desenvolvimento da forma-mercadoria com o desenvolvimento da forma valor.
(MARX, 2012: 83)

Assim, esta forma simples do valor ainda é insuficiente, já que o valor de uma
mercadoria é expresso pela forma equivalente de somente uma outra diferente de si. O
desenvolvimento desta forma do valor, portanto, irá resultar em uma forma mais completa, a
qual Marx (2012) denomina por forma total ou extensiva do valor.
Considerando que na relação de valor a espécie da mercadoria que assume a forma
equivalente é irrelevante, qualquer valor-de-uso diferente pode exprimir seu valor, tornando
as possibilidades de expressões desta relação bastante ampliadas. ―Desse modo, esse valor,
pela primeira vez, se revela efetivamente massa de trabalho humano homogêneo. O trabalho
que o cria se revela expressamente igual a qualquer outro. Por isso, não importa a forma
corpórea assumida pelos trabalhos‖. Esta forma do valor demonstra de maneira mais clara que
―não é a troca que regula a magnitude do valor da mercadoria, mas, ao contrário, é a
magnitude do valor da mercadoria que regula as relações de troca‖. (MARX, 2012: 84-5)
Apesar de ser mais desenvolvida que sua anterior, esta forma do valor ainda apresenta
algumas limitações, relacionadas à forma de equivalente correspondente à cada forma relativa

que o trabalho do indivíduo seja trabalho privado e que seu produto seja produto privado; ao contrário, faz do
trabalho individual, diretamente, uma parte do organismo social‖. E Rosdolsky aqui traz um complemento entre
parênteses: ―O mesmo também vale, naturalmente, mutatis mutandis, para a sociedade socialista do futuro‖.
23

do valor, as quais são incontáveis. Assim, o trabalho concreto contido em cada mercadoria
que se apresenta na forma equivalente nada mais é do que incompleto e só terá ―sua forma
completa ou total de manifestação no circuito inteiro daquelas formas particulares. Mas falta
uma forma unitária de manifestação do trabalho humano‖. (MARX, 2012: 86)
Assim, quando o possuidor de uma mercadoria pode trocá-la por diversas outras, isso
significa que diversos possuidores de outras mercadorias expressam o valor das suas naquela
primeira, para poder efetuar a troca.
Seguindo, portanto, o desenvolvimento desta forma de valor, ao inverter a forma
extensiva, temos a forma geral do valor. Nela, todas as mercadorias se expressam de forma
igual e simples, ou seja, numa mesma e única mercadoria, que assume, assim, a forma de
equivalente geral.
Enquanto as duas formas anteriores ―chegaram apenas a expressar o valor de uma
mercadoria como algo diverso do próprio valor-de-uso‖, nesta forma geral, ao igualarmos
qualquer mercadoria a uma específica, seus valores-de-uso são distintos de quaisquer outros.
―Daí ser esta a forma que primeiro relaciona as mercadorias, como valores, umas com as
outras, fazendo-as revelarem-se reciprocamente, valores-de-troca‖. Constitui-se, assim, a
forma que confere ―ao mundo das mercadorias forma relativa generalizada e social do valor,
por estarem e enquanto estiverem excluídas todas as mercadorias, com exceção de uma única,
da forma equivalente geral‖. (MARX, 2012: 87-8; 90)
A expressão geral do valor de uma mercadoria só é possível nesta forma porque agora
todas as outras expressam seu valor num único equivalente. Todas são tanto qualitativamente
iguais, enquanto valores, como ―quantitativamente comparáveis, como magnitudes de valor‖
e, portanto, ―se medem mutuamente‖. Assim, ―a realidade do valor das mercadorias só pode
ser expressa pela totalidade de suas relações sociais, pois essa realidade nada mais é que a
‗existência social‘ delas, tendo a forma do valor, portanto, de possuir validade social
reconhecida‖. (MARX, 2012: 88)
O trabalho concreto e privado encerrado na mercadoria que representa o equivalente
geral possui uma forma social e converte todas as outras formas de trabalho a trabalho
humano geral. Assim,

a forma geral do valor, que torna os produtos do trabalho mera massa de trabalho
humano sem diferenciações, mostra, através de sua própria estrutura, que é a
expressão social do mundo das mercadorias. Desse modo, evidencia que o caráter
social específico desse mundo é constituído pelo caráter humano geral do trabalho.
(MARX, 2012: 89)
24

Ressaltamos que a mercadoria que constitui a forma de equivalente geral, só encontra


uma maneira de ter seu valor relativo expresso na forma extensiva do valor, já que na forma
geral, teria de expressar seu valor relativo em si mesma, o que resultaria numa expressão
ilógica, incapaz de expressar qualquer magnitude de valor.16
Esta mercadoria que representa o equivalente geral, e tem para isso validade social,
como já observamos, acaba se tornando ―mercadoria-dinheiro, funciona como dinheiro.
Desempenhar o papel de equivalente universal torna-se sua função social específica, seu
monopólio social, no mundo das mercadorias‖ e a mercadoria específica que, por ―força de
hábito social‖ acaba adquirindo esta atribuição, é o ouro17, dando origem, assim, à forma
dinheiro do valor.18 Além disso, ―a expressão simples e relativa do valor de uma mercadoria
[...] através de uma mercadoria que já esteja exercendo a função de mercadoria-dinheiro [...] é
a forma preço‖.19 (MARX, 2012: 91-2)
Vimos, portanto, como ―a forma de equivalente desenvolveu-se em correspondência
com o grau de progresso da forma relativa do valor‖, salientando que ―o desenvolvimento da
primeira é apenas expressão e resultado do desenvolvimento da segunda‖. Ressaltamos ainda
que cada forma do valor foi útil e funcionou na medida em que os estágios históricos da troca
correspondiam a tais formas. Conforme o processo social de troca foi se desenvolvendo e se
tornando mais complexo, suas formas tiveram que acompanhar esta evolução, pois já não
davam conta das novas particularidades e necessidades sociais. (MARX, 2012: 89)
Evidenciado o caminho percorrido pela forma do valor até sua forma mais
desenvolvida, a forma dinheiro, Marx (2012: 94) aborda uma questão central em sua teoria
social – o fetichismo da mercadoria – e assim explica este fenômeno:

a mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do


próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e

16
Como no exemplo de Marx (2012), se o equivalente geral fosse o linho, para expressar seu valor relativo
teríamos que 20 metros de linho = 20 metros de linho – expressão vazia de conteúdo, que não permite expressar
valor algum.
17
Neste caso, facilitou que o próprio valor-de-uso dos metais preciosos vem do fato de que podem servir como
dinheiro, por se tratar de uma mercadoria ―durável, inalterável, passível de ser dividida e somada, transportável
com relativa facilidade, pode conter um valor de troca máximo em um volume mínimo; tudo isso torna os metais
preciosos particularmente adequados nesse último estágio‖. (MARX apud ROSDOLSKY, 2001: 111)
18
Como as formas de valor vão se desenvolvendo historicamente, derivando umas das outras, pode-se considerar
que ―a forma mercadoria, isto é, a mercadoria equivalente da forma simples do valor, é o germe da forma
dinheiro‖. (MARX, 2012: 92)
19
Isto parece significar que a diferença entre valor e preço é somente nominal, mas, conforme exposição do
próprio Marx (apud ROSDOLSKY, 2001: 100), ―o preço não se distingue do valor só por aquele ser nominal e
este real, ou seja, não só pela denominação em ouro e prata, mas sim pelo seguinte: o valor guia a lei dos
movimentos realizados pelo preço. Mas eles são permanentemente diferentes, nunca coincidem, ou só o fazem
acidentalmente, como exceção. O preço das mercadorias é constantemente superior ou inferior ao seu valor, e o
próprio valor das mercadorias só se expressa através do aumento e da queda dos preços‖.
25

propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho, por ocultar, portanto, a


relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao
refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu
próprio trabalho. [...] Uma relação social definida, estabelecida entre os homens,
assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. [...] Chamo a isso de
fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados
como mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias.

Isso decorre justamente do ―caráter social próprio do trabalho que produz


mercadorias‖ da seguinte forma: a produção de objetos úteis é feita a partir de trabalhos
privados, cujo conjunto conforma a totalidade do trabalho social. Mas é somente no processo
de troca que os produtores individuais estabelecem um contato social, permutando suas
mercadorias e, evidenciando assim, o caráter social de seus trabalhos privados. Assim, para os
produtores, ―as relações sociais entre seus trabalhos privados aparecem de acordo com o que
realmente são, como relações materiais entre pessoas e relações sociais entre coisas, e não
como relações sociais diretas entre indivíduos em seus trabalhos‖, personificam-se as coisas e
reificam-se20 as relações sociais. (MARX, 2012: 94-5)
Além disso, a partir do momento que certa mercadoria passa a ter a função de
equivalente geral, assumindo a forma dinheiro, o qual, por sua vez, se autonomiza diante das
outras mercadorias, ―cria-se assim o fundamento para a supremacia do dinheiro e das relações
monetárias e para o reflexo invertido das relações sociais de produção na consciência dos
participantes – ou seja, para o fetichismo da mercadoria‖.21 (ROSDOLSKY, 2001: 118)

20
Lembramos aqui que a reificação é a forma de alienação correspondente às relações sociais próprias da
sociedade capitalista.
21
Citando diversas passagens da uma obra de Marx, Rosdolsky (2001: 118; grifos originais) explica melhor a
relação entre a criação do dinheiro e o fetichismo da mercadoria: ―Podemos ler nos Grundrisse: ‗A dependência
recíproca e universal de indivíduos indiferentes uns aos outros estabelece sua ligação social. Essa ligação se
expressa no valor de troca, através do qual a atividade e o produto de cada indivíduo se tornam uma atividade e
um produto acabado.‘ Para poder transformar seu produto ‗em um meio de vida para si mesmo, [...] o indivíduo
deve produzir um produto universal: o valor de troca ou [...] dinheiro‘. ‗Por outro lado, o poder que cada
indivíduo exerce sobre a atividade dos outros ou sobre as riquezas sociais, ele o possui na medida em que seja
proprietário de valores de troca, de dinheiro. Leva no bolso seu poder social e sua ligação com a sociedade.‘ E
‗quanto mais a produção se organiza de maneira a que cada produtor passe a depender do valor de troca de sua
mercadoria [...]‘, tanto mais ‗cresce o poder do dinheiro, ou seja, a relação de troca se fixa como um poder
externo em relação aos produtores e independente deles [...].‘ No dinheiro, ‗no valor de troca, o vínculo social
entre as pessoas se transforma em relação social entre as coisas; o poder pessoal, no poder das coisas‘. Nesse
sentido, o dinheiro é ‗o vínculo reificado da sociedade‘, a ‗entidade comunitária real‘ que ocupou o lugar da
antiga comunidade, cuja coesão era mantida por laços naturais e relações de dependência pessoal; ele não pode
tolerar ‗nenhuma outra [entidade] situada acima dele‘‖.
26

1.2 O processo de trabalho

O trabalho é o processo de intercâmbio em que o ser humano age sobre a a natureza22,


para poder adaptá-la às suas necessidades, criando determinados produtos para suprir suas
carências. Neste processo, não só o homem modifica a natureza externa, como também altera
sua própria natureza ao desenvolver suas potencialidades. Aqui não se trata mais de um
trabalho instintivo, mas de um trabalho que assumiu características humanas fundamentais ao
longo do desenvolvimento histórico. Isso se deve primordialmente ao fato de que o ser
humano possui a capacidade teleológica, isto é, ele é capaz de idealizar em sua mente um
projeto a partir do qual irá atuar conscientemente, orientando suas ações para atingir este fim
determinado.23 Para isso é necessário aplicar certa atenção durante o processo, tanto mais
quanto menos o trabalhador estiver satisfeito com os métodos e conteúdo da tarefa que lhe
cabe, o que também determinará o quanto poderá usufruir de suas capacidades físicas e
mentais.
Para a realização do processo de trabalho, são três os elementos fundamentais: ―a
atividade adequada a um fim, isto é o próprio trabalho―; ―a matéria a que se aplica o trabalho,
o objeto de trabalho‖; e ―os meios de trabalho, o instrumental de trabalho‖. (MARX, 2012:
212)
O objeto de trabalho universal é a terra, que fornece ao ser humano de forma imediata
e sem necessitar de sua ação os elementos necessários à sua subsistência. Assim, há de fazer
aqui uma distinção: o que o trabalho apenas retira do meio natural constitui objeto de
trabalho, mas aquilo que precisa, além disso, da modificação por parte de trabalho anterior, é
matéria-prima. Esta pode funcionar como substância principal ou meio acessório na
fabricação de um produto, bem como pode uma mesma matéria-prima servir para a produção
de inúmeros valores-de-uso diferentes, conforme suas variadas propriedades.
Os meios de trabalho constituem tudo aquilo de que o trabalhador precisa dispor para
agir sobre os objetos de trabalho, funcionado, de certa forma, como um prolongamento de seu
próprio corpo no manuseio e transformações que opera durante o processo de trabalho. Este
elemento é de tal importância que seu desenvolvimento é que indica o nível de
desenvolvimento da própria força de trabalho. Ele é capaz de fornecer dados históricos os

22
Não esquecendo aqui, que o ser humano também é parte constitutiva da natureza.
23
Vem daí a célebre frase de Marx (2012: 211-2):‖o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele
figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade‖.
27

mais relevantes, pois são distintos em cada época econômica, podendo indicar até mesmo sob
que condições sociais o trabalho acontecia.
São também considerados meios de trabalho tudo aquilo sem o que não é possível a
realização do processo de trabalho, ainda que seu papel se dê apenas de forma indireta.24
O processo de trabalho, por sua vez, corresponde à própria atividade humana realizada
nos objetos de trabalho através dos meios de trabalho. Durante o processo, um material da
natureza será transformado, dando forma a um produto capaz de atender a certas necessidades
humanas. Assim, ao ser concluído, seu resultado é o produto pronto, um valor-de-uso que
contém trabalho cristalizado em si. Sob esta ótica, ―evidencia-se que meio e objeto de
trabalho são meios de produção e o trabalho é trabalho produtivo‖.25 (MARX, 2012: 215)
Na produção de valores-de-uso, outros valores-de-uso resultado de trabalhos prévios
também participam do processo de trabalho na qualidade de meios de produção, sendo
condição fundamental para o desenvolvimento deste processo e aí já não são mais
considerados como produtos, mas somente como fatores materiais de tais processos.26
Vemos assim, como ―um valor-de-uso pode ser considerado matéria-prima, meio de
trabalho ou produto, dependendo inteiramente de sua função no processo de trabalho, da
posição que nele ocupa, variando com essa posição a natureza do valor-de-uso‖. (MARX,
2012: 216)
Para realmente se tornarem valores-de-uso efetivos, os meios de produção dependem
da ação da força de trabalho, que os consome para fazer cumprir sua determinada função
dentro do processo de trabalho na constituição de um produto, que pode servir tanto como
meio de subsistência, quando destinado ao consumo individual, quanto como novo meio de
produção, quando destinado a tomar parte em outro processo de trabalho, conforme
abordamos. Assim, a utilização dos meios de produção corresponde a um processo de
consumo produtivo, distinto, portanto, do consumo individual mencionado acima.
Estas características mais gerais inerentes ao processo de trabalho, que estabelece o
intercâmbio entre homem e natureza objetivando a criação de valores-de-uso é atividade

24
Figuram aqui tanto, a própria terra, que é o campo de operação, bem como tudo aquilo que é produto de
trabalho prévio, como os edifícios, estradas, canais etc. (cf. Marx, 2012)
25
Marx (2012: 215) ressalta aqui que ―essa concentração de trabalho produtivo, derivada apenas do processo de
trabalho, não é de modo nenhum adequada ao processo de produção capitalista‖.
26
Isso porque já não são mais vistos como produto de um trabalho prévio, já que é indiferente essa consideração
para dar início ao processo de trabalho do qual faz parte. Aqui diz Marx (2012: 217): ―é através dos defeitos que
os meios de produção utilizados no processo de trabalho fazem valer sua condição de produtos de trabalho
anterior. Uma faca que não corta, o fio que se rompe etc., lembram logo o cuteleiro A e o fiandeiro B. No
produto normal, desaparece o trabalho anterior que lhe imprimiu as qualidades úteis‖.
28

fundamental para a vida humana e a acompanhará enquanto existir, seja quais forem as
formas sociais que venham a assumir no decurso histórico.
No caso da sociedade produtora de mercadorias – a sociedade capitalista, o fato de o
trabalho estar subordinado ao capital não altera, de início, a natureza e estas características
gerais do processo de trabalho analisadas acima, conforme afirma o próprio Marx: (2012:
211)

a utilização da força de trabalho é o próprio trabalho. O comprador da força de


trabalho consome-a, fazendo o vendedor dela trabalhar. Este, ao trabalhar, torna-se
realmente no que antes era apenas potencialmente: força de trabalho em ação,
trabalhador. Para o trabalho reaparecer em mercadorias, tem de ser empregado em
valores de uso, em coisas que sirvam para satisfazer necessidades de qualquer
natureza. O que o capitalista determina ao trabalhador produzir é, portanto, um
valor-de-uso particular, um artigo especificado. A produção de valores-de-uso não
muda sua natureza geral por ser levada a cabo em benefício do capitalista ou estar
sob seu controle. Por isso, temos inicialmente de considerar o processo de trabalho à
parte de qualquer estrutura social determinada.

Mas importa agora analisar quais são as particularidades do processo de trabalho no


capitalismo. Consideremos que o capitalista comprou no mercado os elementos essenciais
para dar início à produção de seu ramo industrial específico, ou seja, meios de trabalho e força
de trabalho adequados a este fim. Ele então irá consumir as mercadorias que adquiriu fazendo
o trabalhador consumir os meios de produção, ou seja, realizando o processo de trabalho, o
qual, no capitalismo, revela dois fenômenos peculiares.
O primeiro é o fato de que o trabalho e, portanto, o próprio trabalhador, está sob o
comando do capitalista, que controla para que não sejam desperdiçadas matérias-primas ou
para que os instrumentos não sejam gastos além do necessário, mantendo todo o processo de
trabalho da forma mais adequada aos seus interesses.
O segundo é que o produto do trabalho pertence não ao trabalhador que o produziu,
mas ao capitalista, já que este, ao comprar a mercadoria força de trabalho, dispõe dela da
maneira que melhor lhe convier, unindo-a aos meios de trabalho que também comprou para
produzir valores-de-uso. Assim como estas mercadorias que comprou para empreender o
processo de produção, o resultado deste lhe pertence. Analisaremos, a seguir, as
consequências destes fenômenos fundamentais, desvelando mais uma categoria fundamental
da sociedade capitalista.
29

1.3 Mais-valia

Seguindo o fio condutor de nossa análise, este produto apropriado pelo capitalista é
um valor-de-uso, o qual somente tem interesse em produzir por ser, conforme vimos
anteriormente, invólucro material de valor-de-troca. Ao fazer isto, tem dois principais
objetivos em mente: produzir algo destinado à venda no mercado, ou seja, uma mercadoria e
que esta possa conter em si um valor excedente, ou seja, um valor mais alto que aquele
antecipado por ele na compra do conjunto de mercadorias que necessitava para a produção –
os meios de produção e a força de trabalho. Este valor excedente é o que constitui a mais-
valia, a qual analisaremos como se dá o processo de sua formação.
Considerando a mercadoria unidade entre valor-de-uso e valor, entende-se que o
processo de sua produção necessita produzir ambos ao mesmo tempo, já que se trata de um
único processo. Já abordamos o processo de trabalho na produção de valores-de-uso;
voltemos nossa atenção agora à produção de valor. Lembramos que o que determina a
grandeza do valor é a quantidade de tempo de trabalho socialmente necessário à produção do
valor-de-uso no qual se materializa. Assim, leva-se em conta todo o trabalho materializado
contido na produção da mercadoria – a quantidade de trabalho pretérito das matérias-primas
utilizadas e a quantidade de trabalho correspondente à parte do desgaste dos meios de trabalho
consumidos durante o processo. No processo de trabalho, enquanto o valor contido nos meios
de produção será apenas conservado e incorporado à mercadoria que está sendo produzida, a
força de trabalho irá criar um novo valor a ser também materializado nela.

Disso resulta que no que concerne ao valor, os diversos fatores do processo de


produção se comportam de maneira totalmente diferente. Os fatores objetivos
(matéria-prima, instrumentos de trabalho) não podem agregar, ao produto, mais
valor do que eles mesmos possuem; seu valor se conserva, permanecendo portanto
inalterado. Totalmente diferente é o caso do fator subjetivo, da força de trabalho,
que não só reproduz o próprio valor, mas também agrega, ao produto, um novo
valor, uma mais-valia. É o único elemento da produção que experimenta uma
modificação de valor no processo de valorização. Chegamos assim aos conceitos de
capital constante e capital variável, que correspondem às diferentes funções dos
meios de produção e da força de trabalho no processo de valorização‖.
(ROSDOLSKY, 2001: 189)

Ressaltamos que, a despeito de cada produção particular, sempre o que irá se


considerar para esta medida é o tempo de trabalho médio necessário à produção, ou seja, ―só
se considera criador de valor o tempo de trabalho socialmente necessário‖. Nisso se inclui
tanto a normalidade tanto dos ―fatores materiais do trabalho‖, responsabilidade exclusiva do
capitalista, quanto da própria força de trabalho, a qual ―deve possuir o grau médio de
30

habilidade, destreza e rapidez reinantes na especialidade em que se aplica‖. (MARX, 2012:


223; 229)
Observada a quantidade de tempo de trabalho incorporada pelos meios de produção à
mercadoria que está sendo produzida, falta analisar a quantidade de tempo que o trabalho
incorpora ao produto. Vimos que, se na produção de valores-de-uso os trabalhos
especializados são distintos qualitativamente, o trabalho criador de valor não se distingue dos
outros, a não ser quantitativamente, já que, nessa condição, o trabalho só importa enquanto
dispêndio de força de trabalho durante certo período de tempo. Essa quantidade determinada
de trabalho irá incorporar-se ao produto e, assim, ―quantidades de produto determinadas,
estabelecidas pela experiência, significam determinada quantidade de trabalho, determinado
pelo tempo de trabalho solidificado. Apenas materializam tantas horas ou tantos dias de
trabalho social‖. (MARX, 2012: 223)
Já compreendemos que as relações capitalistas de produção transformam o próprio
trabalho em mercadoria, uma vez que, para obter os meios de subsistência necessários para si,
os quais constituem propriedade dos capitalistas, aqueles que compõem a classe trabalhadora
nada mais têm a fazer do que vender sua própria força de trabalho em troca de um salário 27
que lhe permita somente se sustentar e se reproduzir enquanto classe trabalhadora, atendendo
às exigências do capital. Salário este que pode se manter no nível mínimo por conta da
pressão que exerce a concorrência entre os trabalhadores, já que o sistema capitalista não
absorve a todos28 e que flutua bastante29, ficando à mercê de inúmeros outros fatores, como a
própria acumulação do capital.
Assim, a força de trabalho, como todas as outras mercadorias, tem seu valor
determinado pelo tempo de trabalho necessário à sua produção, no caso, pelo tempo de
trabalho necessário para a ―produção dos meios de subsistência necessários para conservar a
força de trabalho e deixar subsistir as crianças que manterão em vida ‗a espécie proletária‘‖.
(MANDEL, 1968: 60)

27
―A ‗liberdade contratual‘ entre operário e capitalista, na determinação do salário, vela uma relação que obriga
o operário a aceitar o salário que lhe é oferecido‖. (MANDEL, 1968: 38; grifo do autor)
28
Mais adiante voltaremos a este assunto ao tratar da superpopulação relativa, resultante das próprias relações de
produção capitalistas e que lhe é extremamente funcional.
29
É característico desta sociedade que, por exemplo, em períodos de conjuntura favorável ao capital os salários
subam temporariamente acima do valor da força de trabalho, ficando abaixo dele em períodos desfavoráveis,
como os de crise e grande desemprego. Lembrando que um aumento absoluto nos salários pode significar, na
verdade, uma baixa relativa, se comparado com o aumento mais elevado do preço dos meios de subsistência e
com a própria acumulação de capital. Além dessas, muitas outras determinações estão ligadas ao salário, as quais
não teremos espaço para abordá-las aqui.
31

Mas, considerando ter comprado o capitalista suas mercadorias necessárias à produção


pelo seu valor, se somados os valores que temos até agora incorporados à mercadoria (dos
meios de produção e da força de trabalho), em nada mais resultaria que somente aquilo que
ele gastou, sem nenhum valor excedente, o que, como vimos, é a intenção do capitalista ao
consumir seu dinheiro de forma produtiva.
No entanto, analisemos aqui uma distinção crucial que fará toda a diferença ao final do
processo produtivo, garantindo ao capitalista seu objetivo primordial. O fato de o valor da
força de trabalho corresponder a determinado tempo de trabalho não significa que é este o
tempo de trabalho limite que o trabalhador tem que empreender na produção para o
capitalista. Para entender melhor, vejamos o que diz Marx (2012: 226-7):

o trabalho pretérito que se materializa na força de trabalho e o trabalho vivo que ela
pode realizar, os custos diários de sua produção e o trabalho que ela despende, são
duas grandezas inteiramente diversas. A primeira grandeza determina seu valor-de-
troca; a segunda constitui seu valor de uso. Por ser necessário meio dia de trabalho
para a manutenção do trabalhador durante 24 horas, não se infira que este está
impedido de trabalhar uma jornada inteira. 30 O valor da força de trabalho e o valor
que ela cria no processo de trabalho são, portanto, duas magnitudes distintas. O
capitalista tinha em vista essa diferença de valor quando comprou a força de
trabalho. A propriedade útil desta, de fazer fios ou sapatos, era apenas uma conditio
sine qua non, pois o trabalho, para criar valor, tem de ser despendido em forma útil.
Mas o decisivo foi o valor-de-uso específico da força de trabalho, o qual consiste em
ser ela fonte de valor, e de mais valor que o que tem. Este é o serviço específico que
o capitalista dela espera. E ele procede, no caso, de acordo com as leis eternas da
troca de mercadorias. Na realidade, o vendedor da força de trabalho, como o de
qualquer outra mercadoria, realiza seu valor-de-troca e aliena seu valor-de-uso. Não
pode receber um sem transferir o outro. O valor-de-uso do óleo vendido não
pertence ao comerciante que o vendeu, e o valor-de-uso da força de trabalho, o
próprio trabalho, tampouco pertence a seu vendedor. O possuidor do dinheiro pagou
o valor diário da força de trabalho; pertence-lhe, portanto, o uso dela durante o dia, o
trabalho de uma jornada inteira. A manutenção quotidiana da força de trabalho custa
apenas meia jornada, apesar de a força de trabalho poder operar, trabalhar, uma
jornada inteira, e o valor que sua utilização cria num dia é o dobro do próprio valor-
de-troca.

30
Este é apenas um exemplo dado por Marx. Com a crescente produtividade do trabalho e a acumulação do
capital, este tempo de trabalho necessário para que o trabalhador produza o correspondente ao seu salário tende a
diminuir em face do tempo de trabalho excedente. Lembrando que, conforme Marx (2011: 253-4), ―chamo de
tempo de trabalho necessário a essa parte do dia de trabalho na qual sucede essa reprodução [criação de valor
equivalente ao valor da força de trabalho]; e de trabalho necessário o trabalho despendido durante esse tempo.
[...] O segundo período do processo de trabalho, quando o trabalhador opera além dos limites do trabalho
necessário, embora constitua trabalho, dispêndio de força de trabalho, não representa para ele nenhum valor.
Gera a mais-valia, que tem, para o capitalista, o encanto de uma criação que surgiu do nada. A essa parte do dia
chamo de tempo de trabalho excedente, e ao trabalho nela despendido, de trabalho excedente‖. Vale ainda citar a
nota que acompanha a citação anterior para desfazer qualquer confusão: ―Empregamos até agora a expressão
‗tempo de trabalho necessário‘ para designar o tempo de trabalho socialmente necessário à produção de uma
mercadoria. Doravante, empregá-la-emos também para significar o tempo de trabalho necessário à produção
dessa mercadoria especial, que é a força de trabalho. O uso dos mesmos termos técnicos com sentidos diversos
oferece inconvenientes, mas nenhuma ciência pode evitá-lo inteiramente‖.
32

É dessa forma que, ao dispor de uma jornada inteira por parte do trabalhador, pagando
a este apenas a parte correspondente ao seu valor, o restante não pago também é incorporado
ao valor da mercadoria, que é propriedade do capitalista e, portanto é ele que se apropria do
valor excedente – ―consumou-se finalmente o truque: o dinheiro se transformou em capital―.
E isto ocorre tanto na esfera da circulação, uma vez que é no mercado que o capitalista irá
adquirir a força de trabalho, mas também fora dela, já que a criação de mais-valia se dá na
esfera da produção. (MARX, 2012: 227)
Vemos que a diferença entre o processo de produção de valor e o processo de
produção de mais-valia é apenas que o último se estende por mais tempo além daquele
correspondente ao equivalente do valor da força de trabalho. Além disso,

o processo de produção, quando unidade do processo de trabalho e do processo de


produzir valor, é processo de produção de mercadorias; quando unidade do processo
de trabalho e do processo de produzir mais-valia, é processo capitalista de produção,
forma capitalista da produção de mercadorias. (MARX, 2012: 230)

Lembrando aqui que neste processo de produzir mais-valia tanto faz ao capitalista que
se trate de trabalho simples ou complexo, já que, como já mencionamos anteriormente, todas
as formas de trabalho acabam reduzidas a trabalho social médio. Vemos isso ocorrer, já que, o
trabalho complexo requer uma força de trabalho mais especializada e que, portanto, tem
incorporado um tempo de produção maior. Sendo assim, seu valor é mais alto, mas, como
será consumida em trabalhos superiores, consequentemente, os valores que irá materializar
também serão proporcionalmente maiores. Em sua redução a trabalho social médio,
considera-se o tempo de sua duração valendo uma porção mais elevada de tempo de trabalho
simples.31 De qualquer forma, não importando aqui a particularidade de cada trabalho, é o
excedente na duração do processo de trabalho que origina a mais-valia.32

31
Marx (2012: 231) salienta em uma importante nota que as diferenças entre trabalho simples e complexo se dão
nem tanto com base no real, mas muito por questão de tradição, ou ainda pela precária situação que se encontram
muitas camadas da classe trabalhadora que não encontram condições de reivindicar o valor de sua força de
trabalho. Além disso, comprovando a classificação ser bastante calcada na casualidade, apresenta exemplos de
casos em que os dois gêneros chegaram a alternar de condição – o que era considerado simples pode ser
considerado complexo em diferentes contextos históricos.
32
Sobre as diferentes formas de extração da mais-valia pelo capitalista, diz Marx (2011: 578): ―a produção da
mais-valia absoluta se realiza com o prolongamento da jornada de trabalho além do ponto em que o trabalhador
produz apenas um equivalente ao valor de sua força de trabalho e com a apropriação pelo capital desse trabalho
excedente. Ela constitui o fundamento do sistema capitalista e o ponto de partida da produção da mais-valia
relativa. Esta pressupõe que a jornada de trabalho já esteja dividida em duas partes: trabalho necessário e
trabalho excedente. Para prolongar o trabalho excedente, encurta-se o trabalho necessário com métodos que
permitem produzir-se em menos tempo o equivalente ao salário. A produção da mais-valia absoluta gira
exclusivamente em torno da duração da jornada de trabalho; a produção da mais-valia relativa revoluciona
totalmente os processos técnicos de trabalho e as combinações sociais‖.
33

Este processo que acabamos de ver constitui a circulação do capital: o capitalista vai
ao mercado adquirir com seu capital meios de produção e força de trabalho, a qual, através do
processo de produção dará origem à mercadoria, que contém em seu valor não somente a
soma do capital disponibilizado inicialmente, mas também a mais-valia. A mercadoria deve,
então, ser vendida na esfera da circulação, realizando assim seu valor em dinheiro, o qual será
transformado em capital ao iniciar um novo ciclo.
Uma sociedade, qualquer que seja a forma social sob a qual se encontra, necessita
estar sempre produzindo para atender suas necessidades de consumo. Sendo assim, este ciclo
de produção social é também um processo de reprodução. Tendo isso em vista, uma parte do
produto anual deve ser reservada para o consumo produtivo, ou seja, convertida em novos
meios de produção que substituem os antigos já consumidos pelo ciclo anterior, garantindo a
continuidade da produção.
Como a reprodução assume as mesmas condições da produção, numa sociedade
capitalista em que esta tenha o processo produtivo apenas como forma de gerar valor, a
reprodução funcionará como uma maneira de reproduzir o valor que o capitalista alocou na
forma de capital, ou seja, reproduz um valor expandido.
Vemos, assim, como a mais-valia é uma espécie de rendimento originado do capital, já
que é resultado de seu movimento e, ―se o capitalista só utiliza esse rendimento para
consumo, gastando-o no mesmo período em que o ganha, ocorrerá então, não se alterando as
demais circunstâncias, reprodução simples‖, a qual confere novas características ao processo
de produção, apesar de se constituir em sua repetição nas mesmas proporções. (MARX, 2011:
661-2)
Conforme vimos anteriormente, para dar início ao processo de produção é necessário
que o capitalista compre força de trabalho. No entanto, ao analisarmos o ciclo de produção,
vemos que o trabalhador só recebe seu salário depois de já ter trabalhado, ou seja, após já ter
empreendido a transformação dos meios de produção em mercadoria e em mais-valia e, se
esta é a parte que cabe ao capitalista, o capital variável, que na forma salário é o que cabe ao
trabalhador, já está incorporado ao produto que ele reproduz constantemente. Isso significa
que é com seu trabalho prévio que o trabalhador próprio gera fundos para o pagamento do seu
trabalho atual.
Analisando esta situação sob uma perspectiva de classe, vemos que a classe capitalista,
que é quem se apodera do produto produzido pela classe trabalhadora a paga pela venda de
sua força de trabalho com uma quantia de dinheiro para que ela possa obter parte daquele
produto. Então, a classe trabalhadora retorna à capitalista este dinheiro para receber a parte
34

que lhe cabe do produto que produziu, mas que pertence ao capitalista. Com isso, ―a forma
mercadoria do produto e a forma dinheiro da mercadoria dissimulam a operação‖. (MARX,
2011: 663)
Ao desvelarmos a aparência contida aí, apreendemos que a soma que corresponde aos
meios de subsistência dos quais necessita o trabalhador e que representa o valor da sua força
de trabalho é produzida por ele mesmo e lhe é restituída na forma de um meio de pagamento
pelo seu trabalho, já que o produto deste é alienado ao capitalista na forma de capital. Esta é a
peculiaridade da forma histórica do capital variável, dado que a classe capitalista somente
paga à classe trabalhadora o trabalho que este já materializou no processo de produção. A
questão é que esta essência do processo que acabamos de expor é oculta por trás da aparência
de que o próprio capitalista é que desembolsa certo valor para disponibilizar ao trabalhador
como pagamento, o que pode ser depreendido da análise do processo de reprodução
capitalista.
O início deste processo pode-se supor que tenha ocorrido a partir do momento que
certo capitalista dispôs de um montante proveniente provavelmente de uma acumulação
primitiva33 para realizar a compra do que necessitava para por o processo de produção em
vigor. Mas, a partir do momento que ele é posto a funcionar em seu ciclo ininterrupto, a
própria reprodução simples acarreta em mudanças no capital como um todo.
Ao analisarmos durante certo período a reprodução do ciclo capitalista de gerar valor,
podemos depreender como regra geral que ―o valor do capital antecipado dividido pela mais-
valia consumida anualmente dá o número de anos ou o número de períodos de reprodução, ao
fim dos quais o capital originalmente antecipado pelo capitalista é consumido, desaparecendo,
portanto‖. Dessa forma, após determinada quantidade de tempo que este ciclo se reproduz, o

33
Esta teve início ainda sob o sistema feudal, quando estavam se desenvolvendo as condições para o surgimento
do modo de produção capitalista, ou seja, ―uma produção mercantil simples bastante ampla o que envolve
intensas atividades comerciais, com uma generalizada utilização de dinheiro como meio de troca. Mas tais
condições, necessárias, não são suficientes – para que surja e se desenvolva o modo de produção capitalista, é
preciso que se confrontem homens que dispõem de recursos para comprar a força de trabalho como mercadoria e
homens que só dispõem de sua força de trabalho como a única mercadoria que têm para vender. A existência
dessas duas categorias de homens (e já sabemos que se trata de duas classes sociais) [...] resulta de um processo
histórico que se operou do final do século XV até meados do século XVIII, constituindo a acumulação primitiva
ou originária, num ciclo que Marx chamou de ‗pré-história do capital e do modo de produção que lhe é
próprio‘‖. (NETTO e BRAZ, 2009: 85-6; grifos dos autores) Ou, conforme lemos em Marx (2011: 828): ―O
processo que cria o sistema capitalista consiste apenas no processo que retira ao trabalhador a propriedade de
seus meios de trabalho, um processo que transforma em capital os meios sociais de subsistência e os de produção
e converte em assalariados os produtores diretos. A chamada acumulação primitiva é apenas o processo histórico
que dissocia o trabalhador dos meios de produção. É considerada primitiva porque constitui a pré-história do
capital e do modo de produção capitalista‖. Engels (2008) em sua obra Do socialismo utópico ao socialismo
científico explica bem este processo quando trata do materialismo histórico.
35

que fica para o capitalista é seu capital transformado em ―capital acumulado ou mais-valia
capitalizada‖. (MARX, 2011: 664-5)
Este processo de reprodução simples acaba também por reproduzir a condição
fundamental para a existência da sociedade capitalista: o fato de estarem de um lado os
possuidores das condições objetivas do trabalho, dos meios de produção necessários à sua
efetivação, dos meios de subsistência e do valor propriamente dito, e, do outro lado, aqueles
que somente possuem sua força de trabalho para vender como mercadoria e que criarão valor
durante o processo de trabalho. É desta forma que ambos devem se deparar dentro do
mercado para estabelecer uma relação de compra e venda que permitirá por em prática a
produção capitalista. E é no seu processo de reprodução que tais condições vão sendo
perpetuadas, já que

por um lado, o processo de produção transforma continuamente a riqueza material


em capital, em meio de expandir valor e em objetos de fruição do capitalista. Por
outro lado, o trabalhador sai sempre do processo como nele entrou, fonte pessoal da
riqueza, mas desprovido de todos os meios para realizá-la em seu proveito. Uma vez
que, antes de entrar no processo, aliena seu próprio trabalho, que se torna
propriedade do capitalista e se incorpora ao capital, seu trabalho durante o processo
se materializa sempre em produtos alheios. Sendo o processo de produção, ao
mesmo tempo, processo de consumo da força de trabalho pelo capitalista, o produto
do trabalhador transforma-se continuamente não só em mercadoria, mas em capital,
em valor que suga a força criadora de valor, em meios de subsistência que compram
pessoas, em meios de produção que utilizam os produtores. O próprio trabalhador
produz, por isso, constantemente, riqueza objetiva, mas, sob a forma de capital, uma
força que lhe é estranha o domina e explora, e o capitalista produz também
constantemente a força de trabalho, mas sob a forma de uma fonte subjetiva de
valor, separada dos objetos sem os quais não se pode realizar, abstrata, existente
apenas na individualidade do trabalhador, em suma, o capitalista produz o
trabalhador sob a forma de trabalhador assalariado. Essa reprodução constante, essa
perpetuação do trabalhador é a condição necessária da produção capitalista.
(MARX, 2011: 665-6)

Já mencionamos anteriormente que existem duas formas diferentes de consumo.


Vamos agora examiná-las mais de perto: durante o processo de produção, a força de trabalho
é consumida pelo capitalista, já que sua propriedade, ao mesmo tempo em que consome os
meios de produção no processo de trabalho. Trata-se aí do chamado consumo produtivo, força
propulsora do capital e, portanto, vital ao capitalista e pertencente a ele. Porém, quando o
trabalhador utiliza o valor que recebe na forma de salário para adquirir seus meios de
subsistência, realiza o consumo individual, que pertence, portanto, somente a si e que é
constitui sua condição de vida.
Tendo em vista que o trabalhador é indispensável no processo de produção capitalista,
já que é sua força de trabalho a fonte criadora de valor, sua conservação e sua reprodução são
36

igualmente indispensáveis, pois só assim se poderá manter o sistema capitalista funcionando.


Como para isso é necessário justamente que o trabalhador consuma seus meios de
subsistência, podemos aferir então que seu consumo individual, na verdade, acaba sendo não
só funcional à própria produção e reprodução do capital, mas parte integrante do consumo
produtivo, a qual o capitalista deixa a cargo do próprio trabalhador, uma vez que este, guiado
por seus instintos de sobrevivência, acabará providenciando meios para se suprir.
Ainda que com isso o trabalhador esteja satisfazendo a si próprio, a preocupação do
capitalista aqui se dá unicamente no sentido de baixar ao mínimo o necessário para o consumo
individual dos trabalhadores, dado que é isto o que determina o valor de sua força de trabalho,
conforme já tratamos anteriormente. Com isso em mente, a classe capitalista considera
consumo improdutivo tudo aquilo que consome o trabalhador além daquele mínimo
necessário para se manter e se reproduzir enquanto trabalhador. Só vê como produtivo o
consumo individual da classe trabalhadora que serve a ela para se perpetuar como tal.
Isso deixa claro o que representa o trabalhador neste modo de produção: um simples
acessório tanto quanto os outros instrumentos de trabalho. Ainda que seja seu instrumento
mais importante, já que é o que lhe provém o valor excedente, o detentor da força de trabalho
é subjugado das mais diversas formas dentro deste sistema, mesmo quando não está
diretamente produzindo para o capitalista, já que até seu consumo individual beneficia a
classe antagônica, enquanto representa o combustível para manter funcionando o sistema que
lhe explora sob todas as formas. Sobre isso, diz Marx (2012: 668): ―na realidade, o consumo
individual do trabalhador é, para ele mesmo, improdutivo, por isso reproduz o indivíduo
necessitado; é produtivo para o capitalista e para o Estado, pois constitui a produção da força
que cria a riqueza alheia‖.34
Esta reprodução da classe trabalhadora carrega consigo as habilidades adquiridas ao
longo do decurso histórico e esta classe habilidosa de trabalhadores aos olhos da classe
capitalista nada mais é que mais uma das condições de produção que necessita para atingir seu
objetivo, é seu capital variável, algo que é sua propriedade, que lhe pertence por direito, é sua
maquinaria viva, em contraposição à maquinaria morta, representada pelos instrumentos de
produção.35

34
Mais à frente, Marx (2011: 669) observa que: ―O escravo romano era preso por grilhões; o trabalhador
assalariado está preso a seu proprietário por fios invisíveis. A ilusão de sua independência se mantém pela
mudança contínua dos seus patrões e com a ficção jurídica do contrato‖.
35
Marx(2011:669-673) traz trechos históricos que exemplificam bem esta visão.
37

E, assim, segue o fluxo dinâmico da reprodução capitalista, que, não só condiciona a


existência recíproca entre capitalistas e trabalhadores assalariados, mas provém da reprodução
desta condição, conforme bem explica Marx (2011: 672-3):

com o próprio funcionamento, o processo capitalista de produção reproduz,


portanto, a separação entre a força de trabalho e as condições de trabalho,
perpetuando, assim, as condições de exploração do trabalhador. Compele sempre o
trabalhador a vender sua força de trabalho para viver, e capacita sempre o capitalista
a comprá-la, para enriquecer-se. Não é mais o acaso que leva o trabalhador e o
capitalista a se encontrarem no mercado, como vendedor e comprador. É o próprio
processo que, continuamente, lança o primeiro como vendedor de sua força de
trabalho no mercado e transforma seu produto em meio que o segundo utiliza para
comprá-lo. Na realidade, o trabalhador pertence ao capital antes de vender-se ao
capitalista. Sua servidão econômica se concretiza e se dissimula, ao mesmo tempo,
pela venda periódica de si mesmo, pela sua troca de patrões e pelas oscilações do
preço do trabalho no mercado.

Cabe agora compreender como se dá a acumulação de capital, que nada mais é do que
o emprego da mais-valia como capital.
O capital inicia o processo de produção na forma de dinheiro, quando o capitalista
compra os meios de produção e a força de trabalho, a qual, ao final do processo produtivo lhe
proverá a mais-valia. Esta, diferentemente do capital, inicia seu ciclo no processo de produção
na forma de uma parte de valor materializada na mercadoria, que, ao ser vendida, a faz mudar
para a forma dinheiro, bem como retorna o valor do capital a esta sua forma primária. A partir
daí, já como um montante de dinheiro, o capitalista irá novamente investir produtivamente,
mas dessa vez, como conta com um valor excedente, pode arcar com uma compra maior dos
meios de produção e da força de trabalho.
Antes mesmo de as mercadorias serem vendidas no mercado, na esfera da circulação,
elas já fazem parte ―do fundo anual de produção, isto é, da massa global de objetos de todas
as espécies em que se transformara, no curso do ano, a soma de todos os capitais individuais
ou todo o capital social, do qual cada capitalista possui apenas uma parte alíquota‖. Assim,
apesar de ser a esfera que possibilita a troca e a realização das mercadorias, a circulação não
altera o total desta produção anual ou mesmo a natureza dos produtos; ela somente depende
da sua composição. Após fornecer os valores-de-uso que darão conta de suprir os elementos
materiais do capital que foram consumidos durante o ano, o restante da produção anual
corresponde ao ―produto excedente ou líquido em que se concretiza a mais-valia‖. (MARX,
2011: 678)
Recuperando o fato de que para ocorrer acumulação a mais-valia deve ser
transformada em capital e tendo em vista que somente aquilo que pode ser consumido na
38

produção é que pode virar capital – no caso os meios de produção e os meios de subsistência
que mantém a força de trabalho produzindo e se reproduzindo – uma parcela do trabalho
anual excedente deve estar, portanto, voltada a produzir estes elementos em quantidade que
supere o valor adiantado pelo capitalista na forma de capital quando deu início à sua
produção. Isso possibilita a acumulação, já que os elementos materiais necessários a renovar o
ciclo do capital já estão contidos no produto excedente, cujo valor corresponde a esta mais-
valia que se transformará em capital.
Para que isto seja efetivado, no entanto, é preciso dispor também de um acréscimo de
trabalho e, na impossibilidade de isso ser feito aumentando a jornada ou a intensidade do
trabalho, o capital terá que obter essa força de trabalho extra que necessita através da
contratação de mais trabalhadores, o que, na lógica de reprodução do capital, como vimos,
está garantido, já que a classe trabalhadora também é reproduzida enquanto dependente do
salário para sobreviver, com o qual, ao adquirir seus meios de subsistência, se mantém e se
multiplica nesta forma funcional ao capitalismo.
Assegurada a força de trabalho extra de que precisa, basta o capital uni-la aos meios de
produção e, enfim, está transformada a mais-valia em capital – consuma-se a acumulação, a
―reprodução do capital em escala que cresce progressivamente‖. Isso só é possível já que, ―a
condição para o capitalista apropriar-se do trabalho vivo não-pago em escala crescente é a
propriedade sobre trabalho passado não-pago. Quanto mais o capitalista tiver acumulado,
mais poderá acumular‖. (MARX, 2011: 679; 681)
Se o capital inicial pode ter sido obtido pelo capitalista através de seu trabalho
primitivo, o capital adicional, proveniente da mais-valia vem exclusivamente da apropriação
do trabalho alheio e se os meios de produção e os meios de subsistência que sustentam a força
de trabalho, os quais o capitalista adquire com este capital adicional são provenientes deste
trabalho não-pago, vemos que, na realidade, quando a classe capitalista compra aquela força
de trabalho adicional, paga a classe trabalhadora com o valor que extrai do trabalho dela
própria.
Os trabalhadores contratados como força de trabalho adicional com o capital adicional
são pagos, portanto, com a mais-valia proveniente do trabalho de quem já estava empregado.
Ainda que o capitalista resolva, com seu capital adicional demitir estes trabalhadores para
contratar força de trabalho mais barata, compensando com a aquisição conjunta de uma
maquinaria mais avançada, não muda o fato de que ―a classe trabalhadora criou, com o
trabalho excedente do corrente ano, o capital que empregará, no próximo ano, trabalho
adicional. Isto é o que se chama produzir capital com capital‖. (MARX, 2011: 680)
39

Neste processo todo, está oculto seu conteúdo verdadeiro por trás de uma mistificação
proveniente da aparência que reveste sua forma. Vamos então destrinchar cada etapa deste
movimento de acumulação do capital para compreender isso melhor: inicialmente, o
capitalista tem seu capital primitivo como mercadoria de sua propriedade, a qual troca no
mercado com o trabalhador pela mercadoria que este tem em posse – sua força de trabalho.
Até então é uma relação de direitos iguais36 entre possuidores de mercadorias sobre as quais
tem direito de propriedade e que as trocam por equivalentes37.
Após o primeiro ciclo do processo de trabalho será originada uma mais-valia que
conformará o primeiro capital adicional. Depois desta primeira etapa, o que antes era troca de
equivalentes passa a sê-lo apenas aparentemente. Isso porque a compra de força de trabalho
que se segue é feita com o excedente criado na produção pela força de trabalho adquirida
anteriormente e que não lhe foi dado nenhum equivalente em troca. É feita, portanto, através
do valor que o capitalista expropria de trabalho não-pago e assim será a partir de então já que
a força de trabalho consumida sempre reproduzirá a mais-valia de forma crescente.
Assim, não há mais direitos iguais entre possuidores de mercadorias. O que o
capitalista possui é o direito de se apropriar do produto de trabalho alheio não-pago e o
trabalhador não pode apossar-se do produto que resulta de seu trabalho. Desta maneira, a
forma – ―a contínua compra e venda da força de trabalho‖ – oculta o conteúdo – ―o capitalista
trocar sempre por quantidade maior de trabalho vivo uma parte do trabalho alheio já
materializado, do qual se apropria ininterruptamente, sem dar a contrapartida de um
equivalente‖. (MARX, 2011: 681)
Se o direito de propriedade fundava-se no trabalho, isso resultou agora em uma cisão
entre propriedade e trabalho, da mesma forma que o fato de o capitalista se apropriar do
produto de trabalho alheio não-pago resulta do próprio cumprimento das leis da produção
mercantil, apesar de parecer que com isso ele as infringe. É o que nos demonstra o próprio
processo de acumulação. Vejamos como: se aquela relação mercantil primeira da compra e
venda da força de trabalho ocorre entre possuidores de mercadorias com direitos iguais, ao
comprar a força de trabalho, o valor-de-uso desta passa a ser propriedade do capitalista, que
pode dispor dela como bem entender, já que a lei da troca de mercadorias pressupõe a
igualdade entre seus valores-de-troca, mas a diferença entre os valores-de-uso, que, concluída
a troca, serão utilizados pelo seu então proprietário como lhe convier.

36
Apesar de o trabalhador não ter outra possibilidade de escolha.
37
Se considerarmos que a força de trabalho seja vendida por seu valor real.
40

Assim como é possuidor dos meios de produção que igualmente comprou no mercado,
é possuidor também dessa força de trabalho. Esta, por sua vez, ao consumir os meios de
produção para a produção de um produto, transfere tanto o valor daqueles, como seu próprio
valor ao produto, além de um valor excedente – a mais-valia – que decorre do fato de o valor
da força de trabalho pelo período que foi contratada ser inferior ao valor que ela pode
produzir no mesmo espaço de tempo.
Se o capitalista é possuidor dela, a utilizará pelo tempo que foi contratada e, se nesse
período ela produz mais valor que o valor materializado pelos meios de produção e por sua
força de trabalho, o valor a mais incorporado no produto também é propriedade do capitalista,
já que o produto mesmo o é. Se a mercadoria força de trabalho tem a propriedade especial de
ser criadora de um valor excedente, isto provém não de que seu possuidor seja enganado no
processo de compra e venda de sua mercadoria, mas da utilização que seu comprador faz de
seu valor-de-uso.
Assim, na transformação inicial de dinheiro em capital, o capitalista não violou
nenhuma lei econômica – não há transgressão das leis de mercado ou da produção de
mercadorias – apenas as seguiu da forma como regem, inclusive seu consequente direito de
propriedade, e isso resultou na acumulação capitalista.
Algumas considerações fundamentais podem ser tiradas deste processo de
transformação: como o produto resultante do processo de trabalho contém cristalizado em si
tanto o valor do capital adiantado pelo capitalista, como também um valor excedente, como
tal produto não é propriedade do trabalhador que o produziu, mas sim do capitalista, este se
apropria legitimamente desta mais-valia. O trabalhador, por sua vez, reproduziu a única
mercadoria que lhe pertence – sua força de trabalho – a qual pode negociar novamente no
mercado.
A reprodução simples, então, ao repetir incessantemente a transformação de dinheiro
em capital acaba alterando, de certa forma, o caráter que possuía a operação original. A
reprodução ampliada, ou acumulação, por sua vez, em nada altera o fato de que a mais-valia é
propriedade do capitalista e se é com ela que volta ao mercado para adquirir os elementos que
necessita para continuar a produção, o que investe são, portanto, recursos próprios, como o
fez da primeira vez, com seu capital primitivo, não importando aqui, que, dessa vez, os seus
recursos foram provenientes de expropriação de trabalho não-pago. Além disso, se mais
trabalhadores serão contratados com os recursos da mais-valia produzida pelos trabalhadores
anteriores, em nada altera o preço da mercadoria destes ou o direito que aqueles tem de
demandar um valor justo pela sua força de trabalho.
41

Considerando a sociedade capitalista em sua totalidade, ou seja, do ponto de vista das


classes e não de indivíduos isolados, o direito de propriedade que advinha do próprio trabalho,
ou seja, quem produziu tem direito de propriedade sobre o produto, trocando-o no mercado
por um equivalente e, assim, sendo seu próprio trabalho a fonte de sua riqueza, ―esse direito
vigora também no período capitalista, em que a riqueza social, em proporção cada vez maior,
torna-se propriedade daqueles que estão em condições de apropriar-se continuamente de
trabalho não pago‖. (MARX, 2011: 685)
Entendemos que a produção de mercadorias só se generaliza, tornando-se a forma
dominante de produção, tendo todos os produtos feitos visando unicamente à venda e sendo a
circulação a esfera por onde deve passar toda riqueza que é produzida, a partir do momento
em que o trabalhador vende livremente sua força de trabalho como mercadoria, ou seja,
quando esta produção passa a ter por base o trabalho assalariado.
Além disso,

vimos que, mesmo na reprodução simples, todo capital adiantado, como quer que
tenha sido originalmente obtido, transforma-se em capital acumulado ou mais-valia
capitalizada. No fluxo da produção, todo o capital originalmente adiantado se torna
uma grandeza evanescente, em face do capital diretamente acumulado, isto é, da
mais-valia ou do produto excedente que se converte em capital, seja nas mãos de
quem produziu a mais-valia ou em mãos alheias. (MARX, 2011: 685)

É necessário fazer aqui algumas distinções. É consumida como renda 38 e não como
capital a parte da mais-valia que o capitalista utiliza na compra de artigos e trabalho na forma
de mercadoria para satisfazer suas necessidades pessoais, para consumo próprio, já que não
servem nem como meios de produção nem para criar valor. Assim, para a economia burguesa,
a utilização primeira da mais-valia deve ser na condição de capital, ou seja, com a
acumulação, investindo a maior parte naquilo que permite a criação de valor – a força de
trabalho – já que é só essa maneira que permite a movimentação e expansão do capital.
Além disso, o entesouramento, muito ligado à classe capitalista pelo senso comum, em
nada é vantajoso para o capital, já que breca esta movimentação e expansão. A acumulação de
mercadorias, na lógica capitalista, apenas pode advir ou da superprodução ou de uma
estagnação na esfera da circulação.
Ao dispor da mais-valia, o capitalista irá alocá-la parte como renda e outra parte como
capital, na proporção que desejar, considerando que, quanto mais consumi-la como capital,

38
Marx (2011: 689) ressalta que utiliza a palavra ―renda‖ em dois sentidos: ―para designar a mais-valia como
rendimento periódico do capital e para designar uma parte desse rendimento que o capitalista consome
periodicamente ou adiciona a seu fundo de consumo‖.
42

maior será a acumulação que promoverá. Ao fazer isso, diz-se que está economizando, pois a
utiliza não para consumo próprio, mas para cumprir seu papel enquanto capitalista, tornando-
se cada vez mais rico, já que, enquanto personificação do capital, o que lhe interessa não são
os valores-de-uso daquilo que pode comprar para seu desfrute, mas sim o valor-de-troca das
mercadorias que possui e seu aumento extensivo. De certa forma, é impelido a fazê-lo pelo
próprio mecanismo social do capitalismo, já que enquanto apenas uma de suas forças
propulsoras, acaba guiado pelas leis imanentes deste sistema, que se impõem a ele como uma
lei coercitiva externa, devendo ampliar continuamente seu capital através da acumulação
progressiva. Assim, tudo que gasta em proveito próprio é como se fosse débito na sua saga em
ampliar cada vez mais a reprodução do capital. Para isso,

compele impiedosamente a humanidade a produzir por produzir, a desenvolver as


forças produtivas sociais e a criar as condições materiais de produção, que são os
únicos fatores capazes de constituir a base real de uma forma social superior, tendo
por princípio fundamental o desenvolvimento livre e integral de cada indivíduo.
(MARX, 2011: 690)

Mas conforme vai se desenvolvendo o capitalismo, o próprio capitalista já não é mais


somente a personificação do capital e altera um tanto seu pensamento. Já fica mais propenso a
fruir dos benefícios que pode aproveitar a partir da utilização da mais-valia que lhe pertence
em consumo individual. Isso porque, se no início deste modo de produção, o impulso maior
era para enriquecer a qualquer custo, com seu desenvolvimento ulterior inúmeras outras
formas de enriquecimento rápido, como o crédito e a especulação, permitem-lhe aproveitar e
ostentar o luxo pelo qual pode pagar. Afinal, para a classe capitalista não constitui nenhum
sacrifício aproveitar a vida a partir daquilo que expropria do trabalho de outros que são
impedidos de fazer o mesmo. E ―assim, desenvolve-se no coração do capitalista um conflito
fáustico entre o impulso de acumular e o de gozar a vida‖. (MARX, 2011: 692)
Marx (2011) analisa ainda que, para a economia clássica, o burguês era tanto uma
máquina de transformar mais-valia em capital excedente, quanto o operário era uma máquina
de criar valor e fornecer-lhe esta mais-valia e, assim, não deveria desperdiçar fundos com
superficialidades para si, mas investir tudo o quanto puder produtivamente. Algumas
personalidades da economia vulgar, conforme o autor demonstra, colocavam ainda a figura do
penoso capitalista que deveria privar-se dos luxos para o bem da acumulação cada vez mais
elevada. No entanto, ele refuta estas hipóteses, salientando que
43

nas mais diversas formações econômico-sociais encontra-se não só a reprodução


simples, mas também a reprodução ampliada. Produz-se mais e consome-se mais
progressivamente, e quantidade maior da produção se converte em meio de
produção. Contudo, esse processo não se apresenta como acumulação de capital nem
tampouco como função do capitalista enquanto os meios de produção do trabalhador
e, em consequência, seu produto e seus meios de subsistência não assumem perante
ele a forma de capital. (MARX, 2011: 696)

Definidas as proporções da mais-valia que serão consumidas como renda e como


capital acumulado, a magnitude deste está condicionada à magnitude total da mais-valia.
Assim, os fatores que influenciam neste montante influenciarão também na magnitude da
acumulação. Vejamos alguns destes principais fatores.
O grau de exploração da força de trabalho é o fator determinante da taxa de mais-
valia39 e, se os salários caírem a um nível aquém de seu real valor, uma vez que o capital
sempre tende a baixá-los cada vez mais, o que ocorre é que ―essa redução transforma
efetivamente o fundo de consumo necessário à manutenção do trabalhador em fundo de
acumulação do capital―40. (MARX, 2011: 698)
Marx ressalta também algumas maneiras que o capital tem de aumentar a mais-valia e,
consequentemente, a acumulação quando a ele é possibilitado empregar as duas fontes de
riqueza – a terra e a força de trabalho – de maneira que consegue aumentar a produção sem ter
que dispor do capital adicional para obter instrumental de trabalho.41
O grau de produtividade do trabalho social também influencia na acumulação, a partir
de certas determinações. Se a produtividade aumenta, eleva-se a quantidade de mercadorias
produzidas no mesmo espaço de tempo e, consequentemente, aumenta também a magnitude
de mais-valia. Caso a taxa de mais-valia se mantenha constante ou até mesmo diminua em
velocidade menor que o aumento da produtividade, a quantidade de mais-valia também será

39
―Sendo o valor do capital variável igual ao valor da força de trabalho por ele comprado, sendo a parte
necessária do dia de trabalho determinada pelo valor dessa força de trabalho e a mais-valia determinada pela
parte excedente do dia de trabalho, segue-se daí que a mais-valia se comporta para com o capital variável como o
trabalho excedente
trabalho excedente para com o necessário; em outras palavras, a taxa de mais valia = . [...] A
trabalho necesário
taxa de mais-valia é, por isso, a expressão precisa do grau de exploração da força de trabalho pelo capital ou do
trabalhador pelo capitalista‖. Em nota da segunda edição de O capital: crítica da Economia Política, Marx
esclarece que ―a taxa de mais-valia, embora seja a expressão exata do grau de exploração da força de trabalho,
não exprime, entretanto, a magnitude absoluta dessa exploração. Se o trabalho necessário = 5 horas e a mais-
valia = 5 horas, o grau de exploração será = 100%. Mediu-se com 5 horas a magnitude da exploração. Mas, se o
trabalho necessário = 6 horas e a mais-valia = 6 horas, o grau de exploração continua a ser de 100%, enquanto a
magnitude da exploração aumenta de 20%, de 5 para 6 horas‖. (MARX, 2011: 254)
40
Em certa passagem mais à frente, Marx (2011: 701) refere-se a este processo por ―roubo direto ao fundo de
consumo necessário à manutenção do trabalhador com o fim de formar mais-valia e, portanto, o fundo de
acumulação do capital‖.
41
Como exemplos, Marx (2011: 702-3) cita a intensificação do trabalho, a indústria extrativa, a agricultura e,
nos diversos ramos da indústria, o aumento de matérias-primas sem necessariamente ter que aumentar a
quantidade de instrumentos de trabalho.
44

maior. Mantendo-se as proporções de divisão desta em capital adicional e renda, o capitalista


pode, caso deseje, aumentar seu consumo individual, que ainda assim não terá prejuízo em
seu fundo de acumulação. Também pode ocorrer que, aumentando a proporção deste, não
diminua ou até venha aumentar a quantidade de produtos que o consumo individual do
capitalista adquire, tendo em vista o barateamento das mercadorias.
Outro ponto importante com relação à produtividade do trabalho é que ela acaba por
baratear também a força de trabalho42, o que eleva a taxa de mais-valia, mesmo que os salários
aumentem, já que a proporção que sobem com relação à produtividade é sempre menor. Dessa
forma, a mesma parte do capital adicional que o capitalista investia em capital variável é
capaz de adquirir ainda mais força de trabalho. Igualmente, o mesmo montante investido em
capital constante é materializado em mais meios de produção, possibilitando, assim, a
produção de mais mercadorias, as quais incorporam trabalho. Consequentemente, ainda que o
valor do capital adicional caia ou se mantenha, a acumulação sempre irá acelerar, pois ―não só
se amplia materialmente a escala de reprodução, mas ainda a produção de mais-valia cresce
mais rápido que o valor do capital adicional‖. (MARX, 2011: 704)
Analisemos agora a influência que tem sobre o capital original, ou seja, aquele que já
está atuando no processo produtivo, o desenvolvimento das forças produtivas, impulsionado,
sobretudo, pelo aprimoramento científico e tecnológico que proporcionam descobertas
importantes, as quais funcionam, ao serem aplicadas na produção, como mais uma forma de
expansão do capital. Isso ocorre porque, após certo período de tempo, os instrumentais de
trabalho que vão sendo consumidos durante o processo de produção, devem ser substituídos
por outros, bem como as matérias-primas e materiais acessórios necessários para compor os
produtos precisam ser repostos.
Supondo um aumento de produtividade do trabalho que fabrica os instrumentais de
trabalho, estes, por serem já mais desenvolvidos e, portanto, mais eficientes, acabam saindo
mais baratos para o capitalista. Da mesma forma, o desenvolvimento de novas técnicas e
métodos para as matérias-primas, como a descoberta de novas aplicações para as mesmas e o
reaproveitamento de resíduos, por exemplo, também irá influenciar quase que diretamente
tanto no capital adicional, como no original, na parte correspondente que necessita ser
renovada.

42
Uma vez que com o aumento da produtividade do trabalho leva-se menos tempo para produzir o necessário à
produção dos meios de subsistência, sendo o valor da força de trabalho determinado por este tempo, ele é
reduzido, resultando na redução cada vez maior do tempo de trabalho necessário e aumentando, portanto, o
tempo de trabalho excedente.
45

No entanto, é importante ressaltar que o desenvolvimento da força produtiva acarreta


também em que os capitais que já estão atuando no processo produtivo são parcialmente
depreciados e ―quando a concorrência agrava sensivelmente essa depreciação, a sobrecarga
principal recai sobre o trabalhador, procurando o capitalista explorá-lo mais para compensar-
se‖. (MARX, 2011: 705)
Lembramos que o trabalho transfere à mercadoria que está sendo produzida não só o
valor da força de trabalho em ação, mas também o valor do trabalho pretérito, contido nos
meios de produção. Uma vez que a produtividade do trabalho aumenta sem, no entanto,
aumentar a quantidade de trabalho realizado, o valor transferido à mercadoria que
corresponde à força de trabalho permanece o mesmo enquanto que o valor dos meios de
produção aumenta, já que aumenta também seu valor e quantidade no processo produtivo nas
condições de aumento da produtividade. Assim, num mesmo período de tempo com uma
produtividade maior, um certo tipo de trabalho consegue produzir mais quantidade total de
mercadorias, a qual, caso venha a ser empregada como novo capital, terá valor agregado
maior do que um processo produtivo de produtividade mais baixa pode proporcionar.
Sabemos que o trabalho vivo não só conserva e repassa à mercadoria valor antigo,
como também lhe agrega valor novo. Consequentemente, este trabalho acaba não só
mantendo, mas perpetuando a criação de um valor do capital que cresce ininterruptamente e
sempre sob uma forma nova, a partir do desenvolvimento da força produtiva e a acumulação
que se segue. E disso decorre mais um fenômeno cuja aparência oculta sua essência real,
conforme descreve Marx (2011: 706):

essa força natural do trabalho assume a aparência de propriedade do capital a que se


incorpora, de força do capital para conservar-se, do mesmo modo que as forças
produtivas do trabalho social parecem ser propriedades do capital e o exercício
contínuo da função capitalista de apropriar-se do trabalho excedente aparenta ser
constante auto-expansão do capital. Todas as forças do trabalho aparecem como
forças do capital, do mesmo modo que todas as forças de valor da mercadoria se
mascaram em formas de dinheiro.

Observemos também que outro fato importante decorrente do crescimento do capital é


a distância entre o capital empregado e o capital consumido. Vejamos como isso acontece:
apesar de tanto o valor como o volume dos instrumentos de trabalho crescer, eles serão
utilizados por um período de tempo relativamente longo, sendo consumidos e, portanto, se
desgastando, somente aos poucos em processos produtivos que vão se repetir sem cessar e,
assim, só transferem seu valor à mercadoria também de forma gradativa.
46

O que se operou aqui é que, apesar de o valor aplicado ter sido total, ele só vai sendo
consumido e materializado nos produtos parcialmente, funcionando mais ou menos como o
serviço gratuito que obtemos ao consumir as forças naturais. Consequentemente, ―esse serviço
gratuito do trabalho anterior, quando utilizado e vivificado pelo trabalho vivo, aumenta com a
escala crescente da acumulação‖. (MARX, 2011: 707)
Este trabalho passado, que entra em novo processo de trabalho como meios de
produção, apesar de aparecer tendo sua relevância por mérito do próprio capital, não passa de
resultante do trabalho anterior espoliado pelo capitalista. Assim,

dado o grau de exploração da força de trabalho, a quantidade de mais-valia é


determinada pelo número de trabalhadores simultaneamente explorados, e esse
número corresponde, embora em proporção variável, à magnitude do capital. Por
isso, quanto mais cresce o capital, em virtude de acumulações sucessivas, tanto mais
aumenta o valor global que se reparte em fundo de consumo e fundo de acumulação.
O capitalista pode viver, então, mais alegremente e, ao mesmo tempo, ―renunciar‖
mais.43 E, por fim, todas as molas da produção funcionam com mais energia quanto
mais aumenta sua escala com o montante do capital adiantado. (MARX, 2011: 708)

Do que abordamos até agora, pudemos apreender a essência fundamentalmente


variável do capital, que constitui uma parte da riqueza nacional que se divide em renda e
capital adicional completamente sujeita a oscilações determinadas por inúmeros fenômenos.
Ainda que o capital que já está aplicado no processo de trabalho mantenha sua magnitude,
fatores absorvidos por ele, como o desenvolvimento científico, os objetos de trabalho e a
força de trabalho, acabam funcionando como um mecanismo para que ele se amplie.
Além disso, ao contrário do que pregam os economistas burgueses, que pretendiam
considerar fixa, imutável, e absoluta a quantidade de capital variável 44, esta, conforme o
próprio nome que leva a categoria desvelada por Marx também é variável, mutável e elástica.
Do ponto de vista do funcionamento da sociedade capitalista, para por em funcionamento a
parte do capital utilizada como capital constante, é necessária uma quantidade de
trabalhadores, mas esta varia a depender do grau de exploração corrente da força de trabalho,
como varia também o preço da própria força de trabalho, embora tenha seu mínimo
estabelecido, mas que também é bastante mutável. Desta forma, Marx desmistifica qualquer
pretensão contrária, apologética e dogmática por parte da economia vulgar.

43
Marx faz uma referência ao que discutiu previamente acerca da economia burguesa dizer que o capitalista
deve renunciar aos prazeres que pode adquirir com o consumo pessoal e utilizar sua mais-valia como renda o
mínimo possível, empregando sua maior parte como capital.
44
―A existência material do capital variável, isto é, a massa de meios de subsistência que ele representa para o
trabalhador, se tornou, mitologicamente, uma fração separada da riqueza social, fixada por leis naturais e
imutável, o pretenso fundo do trabalho‖. (MARX, 2011: 710)
47

1.4 Lei geral da acumulação capitalista

Para iniciar as considerações acerca da lei geral da acumulação capitalista,


começaremos examinando como as alterações na composição do capital, ao longo do processo
de acumulação, influenciam o destino da classe trabalhadora.
Acerca da composição do capital, podemos ressaltar dois fatores: a composição
segundo o valor corresponde à proporção em que ele é repartido entre capital constante e
capital variável, já a composição técnica diz respeito à própria matéria que está sendo
consumida no processo de produção, considerando o quanto de força de trabalho é preciso
para colocar em funcionamento a quantidade de meios de produção disponível. Assim, a
composição orgânica do capital45 representa a correlação entre elas, quando a primeira é
influenciada e determinada pelas alterações na segunda.
Diferentes ramos industriais empregam diferentes composições do capital. A média
das composições de um ramo gera sua composição do capital global e a média de todas as
composições de todos os ramos indica a composição do capital social de determinado país.
A parte da mais-valia empregada como capital adicional deve ter uma fração destinada
ao capital variável, portanto, todo aumento de capital implica também num aumento da força
de trabalho. Supondo que a composição orgânica do capital, bem como as demais condições
da produção não sejam alteradas, uma determinada quantidade de meios de produção vai
sempre exigir a mesma quantidade de força de trabalho. Conforme o aumento do capital
aumentará nas mesmas proporções e velocidade a ―procura de trabalho e o fundo de
subsistência dos trabalhadores‖. (MARX, 2011: 716)
Considerando, ainda, um aumento da mais-valia com o aumento do capital e um
incremento progressivo na acumulação por conta de estímulos econômicos46, pode ocorrer um
aumento da procura por força de trabalho para suprir as necessidades desta acumulação que
supere a oferta, levando a um aumento de salários. Isso, no entanto, em nada altera o caráter
fundamental do modo de produção capitalista, que reproduz ininterrupta e crescentemente as
condições que perpetuam as classes capitalista e trabalhadora enquanto antagônicas. Como é a
força de trabalho que permite valorizar e expandir o capital, é imprescindível a este o
trabalhador assalariado, o qual, ao se reproduzir, reproduz também o próprio capital e acaba
sendo aprisionado por esta lógica, da qual não tem como fugir dentro do sistema capitalista.

45
Assim como o faz Marx, ―ao falar simplesmente de composição do capital, estaremos sempre nos referindo à
sua composição orgânica‖. (MARX, 2011: 715)
46
Marx (2011: 716) cita como exemplos o surgimento de ―novos mercados, novas esferas de aplicação do
capital, em virtude do desenvolvimento de novas necessidades sociais etc.‖.
48

Aparentemente sendo esta uma situação favorável aos trabalhadores assalariados que,
com o salário aumentado podem agora adquirir bens e serviços de melhor qualidade no seu
consumo individual, isso não faz com que deixem a condição de dependência ou de
subserviência ao capital. Continuam sendo explorados com um grau maior se não de
intensificação, de extensão, com um número maior de trabalhadores sendo explorados pelo
domínio avassalador do capital. Além disso, o que recebem na forma de meio de pagamento
nada mais é do que parte da mais-valia que eles mesmos produzem e contribuem para
expandir e gerar cada vez mais capital adicional.
O caráter peculiar do sistema capitalista de produção, sua essência, ainda que os
trabalhadores tenham um aumento em seu salário em nada é alterado – a força de trabalho
continua sendo comprada pelo capitalista, por ser sua fonte inexorável de capital adicional,
com o único intuito de produzir mais-valia em escala ampliada e a exploração da classe
trabalhadora pela classe capitalista continua vigente, a despeito do que o aumento de salários
possa aparentar e assim será enquanto vigorar o capitalismo.
O salário sempre terá o contraponto do trabalho que não foi pago e que foi, portanto,
apropriado pelo capitalista. Assim, ―um acréscimo salarial significa, na melhor hipótese,
apenas a redução quantitativa do trabalho gratuito que o trabalhador tem de realizar. Essa
redução nunca pode chegar ao ponto de ameaçar a existência do próprio sistema‖. Levando
isso em conta, caso não ocorram prejuízos para a expansão do capital, os salários podem
aumentar, mas, caso essa alta no preço do trabalho implique numa desaceleração da
acumulação, então os próprios mecanismos capitalistas tratam de resolver esta situação de
entrave, readequando o preço do trabalho às necessidades do capital, seja em nível ―superior,
igual ou inferior ao que era considerado normal, antes da elevação dos salários‖. Se na
primeira situação o que ocorre é ―o aumento do capital que torna insuficiente a força de
trabalho explorável‖, num momento em que o nível for inferior é por conta da ―diminuição do
capital que torna superabundante a força de trabalho explorável, ou excessivo seu preço‖.
(MARX, 2011: 722-3)
As alterações na acumulação do capital que se refletem na massa da força de trabalho
parecem vir dela mesma, tomando a aparência de que em certos momentos há excesso de
trabalhadores, enquanto em outro há falta deles, mas, na realidade, os salários só variam
dependendo das variações da magnitude da acumulação.47

47
Marx (2011: 723) faz aqui uma analogia deste fenômeno ―com o que ocorre nas fases do ciclo industrial: nas
crises, a queda geral dos preços das mercadorias aparece como elevação do valor relativo do dinheiro; nos
períodos de prosperidade, a elevação geral desses preços é vista como queda do valor relativo do dinheiro. Daí a
49

Numa sociedade em que o trabalhador só existe para satisfazer as necessidades de


expansão do capital, considerando uma situação de manutenção da composição orgânica do
capital, em suma, é esta a lei que rege:

se cresce a quantidade do trabalho gratuito fornecido pela classe trabalhadora e


acumulado pela classe capitalista, com velocidade bastante que só possa
transformar-se em capital com um acréscimo extraordinário de trabalho pago, haverá
então uma elevação de salário e, não se alterando as demais condições, decrescerá
proporcionalmente o trabalho não-pago. Mas, quando esse decréscimo atinge o
ponto em que o capital não obtém mais em proporção normal o trabalho excedente
que o alimenta, opera-se uma reação: capitaliza-se parte menor da renda, a
acumulação enfraquece e surge uma pressão contra o movimento ascensional dos
salários. A elevação do preço do trabalho fica, portanto, confinada em limites que
mantêm intactos os fundamentos do sistema capitalista e asseguram sua reprodução
em escala crescente. (MARX, 2011: 724)

Outro fenômeno importante a ser analisado no processo de acumulação capitalista é


quando esta aumenta, juntamente com a concentração, ocasionando a diminuição relativa48 do
capital variável.
É evidente que em certo ponto do desenvolvimento capitalista e seu processo de
acumulação o desenvolvimento da produtividade do trabalho social torna-se o fator mais
importante que o impulsionará.
De acordo com Marx (2011: 725), o grau de produtividade do trabalho corresponde ao
―volume relativo dos meios de produção que um trabalhador, num tempo dado, transforma em
produto, com o mesmo dispêndio de força de trabalho. A massa dos meios de produção que
ele transforma aumenta com a produtividade de seu trabalho‖. Enquanto o aumento de
matérias-primas e materiais acessórios é uma consequência deste aumento de produtividade, o
aumento da massa de instrumentais de trabalho e da infraestrutura49 que necessita são sua
condição necessária.
Independentemente disso, a parte constante do capital aumenta em relação à variável 50,
ou seja, sua composição orgânica é alterada, mas esta diferença é ainda maior se atentarmos
especificamente à composição técnica do capital. Isso porque

escola da currency conclui que circula dinheiro demais, quando os preços são altos e, de menos, quando são
baixos‖.
48
Vale salientar aqui que o que é reduzida é a magnitude relativa do capital variável e não a absoluta, a qual
pode, inclusive, vir a crescer. (cf. Marx, 2011: 727)
49
Segundo Marx (2011), constam aí a maquinaria, tubulações de drenagem, edifícios, meios de transporte etc.
50
Vemos este fenômeno impresso no próprio preço das mercadorias, em que a magnitude relativa do valor do
capital constante cresce conforme o aumento da acumulação, enquanto que a magnitude relativa do capital
variável, ao contrário, usualmente tende a diminuir.
50

com a produtividade crescente do trabalho não só aumenta o volume dos meios de


produção que ele consome, mas cai o valor desses meios de produção em
comparação com seu volume. Seu valor aumenta em termos absolutos, mas não em
proporção com seu volume. O aumento da diferença entre capital constante e
variável é, por isso, muito menor do que o aumento da diferença entre a massa dos
meios de produção em que se converte o capital constante e a massa da força de
trabalho em que se transforma o capital variável. A primeira diferença cresce com a
segunda, porém em grau menor. (MARX, 2011: 726)

Se observarmos o modo de produção capitalista desde seu fundamento histórico – a


acumulação primitiva – veremos que todos os esforços no sentido de um aumento na
produtividade foram feitos com o objetivo de aumentar a produção de mais-valia, a qual,
enquanto componente da acumulação, também a aumenta e, por sua vez, desenvolve-se o
modo de produção capitalista. ―Esses dois fatores, na proporção conjugada dos impulsos que
se dão mutuamente, modificam a composição técnica do capital, e, desse modo, a parte
variável se torna cada vez menor em relação à constante‖. (MARX, 2011: 728)
O capital individual representa certa concentração de meios de produção, com domínio
sobre certa quantidade de trabalhadores. A reprodução ampliada do capital gera cada vez mais
acumulação. A massa de riqueza empregada como capital, bem como sua concentração por
parte de capitalistas individuais aumenta da mesma forma que aumenta também o fundamento
para uma produção em grande escala sob moldes capitalistas. O capital social cresce com o
crescimento dos diversos capitais individuais e da concentração dos meios de produção. Além
disso, a divisão da fortuna no interior das famílias da classe capitalista faz com que partes dos
capitais originais passem para outras pessoas que, por sua vez, as utilizarão como novos
capitais independentes e, com isso tudo, vemos que a acumulação do capital fez elevar
também o número de capitalistas.
Com relação a esta concentração vinculada à acumulação, ressaltamos que a
concentração dos meios sociais de produção por capitalistas individuais dependerá
diretamente do grau de riqueza social, mas também, o fato de diversos capitais individuais
estarem alocados em certo ramo da produção, faz com que eles venham a se repelir
mutuamente, a partir da concorrência. Com isto, a acumulação e a concentração não só ficam
muito dispersas, mas também ―o aumento dos capitais em funcionamento é estorvado pela
formação de novos e pela fragmentação de capitais existentes‖. (MARX, 2011: 728)
Mas chega um ponto em estes capitais individuais passam a se atrair, gerando um
novo fenômeno, já que

não se trata mais da concentração simples dos meios de produção e de comando


sobre o trabalho, a qual significa acumulação. O que temos agora é a concentração
51

dos capitais já formados, a supressão de sua autonomia individual, a expropriação do


capitalista pelo capitalista, a transformação de muitos capitais pequenos em poucos
capitais grandes. Este processo se distingue do anterior porque pressupõe apenas
alteração na repartição dos capitais que já existem e estão funcionando; seu campo
de ação não está, portanto, limitado pelo acréscimo absoluto da riqueza social ou
pelos limites absolutos da acumulação. O capital se acumula aqui nas mãos de um
só, porque escapou das mãos de muitos noutra parte. Esta é a centralização
propriamente dita, que não se confunde com a acumulação e a concentração.
(MARX, 2011: 729)

Algumas considerações gerais são necessárias sobre a centralização dos capitais.


Frisamos que a concorrência entre os capitais individuais se dá primordialmente por conta do
abaixamento dos preços das mercadorias, o qual se subordina à produtividade do trabalho,
que, por sua vez, depende da escala da produção. Neste processo, os pequenos capitais não
têm chance contra os grandes e acabam se esvaindo.
Além disso, os pequenos capitais só encontram espaço para iniciar sua produção nos
ramos em que os grandes capitais ainda não se apoderaram totalmente, apesar de que, com o
desenvolvimento do capitalismo, este espaço de ação que sobra aos pequenos capitais seja
cada vez mais reduzido. Mas, uma vez instalados, estes novamente concorrerão entre si até
que, novamente, a maioria não resista ao grande capital.
O surgimento do crédito que, junto com a concorrência constituem os meios mais
eficientes de aumentar a centralização, é outro fator de destaque do desenvolvimento
capitalista. Se, no início, o auxílio que prestava à acumulação era ainda discreto, moderado,
logo se tornou um ―imenso mecanismo social de centralização dos capitais‖. Obviamente, esta
centralização tende a crescer com o avanço do capital e com o crescimento da acumulação,
até porque é esta que lhe provém dos capitais individuais, ―ao passo que a expansão da
produção capitalista cria a necessidade social e os meios técnicos dessas gigantescas empresas
industriais cuja viabilidade depende de uma prévia centralização do capital‖. (MARX, 2011:
729-730)
Vale distinguir aqui a concentração da centralização. Esta, apesar de depender da
existência de certo montante de riqueza social que a sociedade capitalista tenha atingido para
tomar a impulsão que teve, não necessita de nenhum impulso por parte do capital social para
se desenvolver, já que resulta primordialmente de um rearranjo da quantidade de cada
montante de capital já existente que compõe o capital social, até chegar ao limite em que todo
ele ficasse sob um único domínio. Marx (2011: 730-1) vê aqui uma tendência importante que
decorre deste processo:
52

a centralização completa a tarefa da acumulação, capacitando o capitalista industrial


a ampliar a escala de suas operações. É o mesmo o efeito econômico dessa
ampliação, decorra ele da acumulação ou da centralização. E tanto faz que a
centralização se realize pela via compulsória da anexação, quando certos capitais se
tornam centros de gravitação tão poderosos que quebram a coesão individual de
outros capitais, absorvendo seus fragmentos, ou mediante a fusão de capitais já
formados ou em formação, obtida por meio de processo mais suave de constituição
de sociedades anônimas. O aumento do tamanho dos estabelecimentos individuais
constitui, por toda parte, o ponto de partida para uma organização mais vasta do
trabalho cooperativo que utilizam, para mais amplo desenvolvimento de suas forças
materiais, isto é, para a transformação progressiva de processos de produção
isolados e rotineiros em processos de produção socialmente combinados e
cientificamente organizados.

É evidente que a centralização é um processo mais rápido que a acumulação e,


inclusive, acaba também por impulsioná-la, já que estende e agiliza as alterações na
composição técnica do capital, em que a parte constante aumenta e a variável cai,
ocasionando a diminuição na procura relativa de trabalho. Cada vez menos trabalhadores são
necessários ao processo de acumulação capitalista e isso é intensificado com o processo de
centralização, como demonstra Marx (2011: 731):

os capitais adicionais que se formam no curso da acumulação normal servem


preferentemente de veículo para exportar novos inventos e descobertas, para
introduzir aperfeiçoamentos industriais em geral. Mas também o capital velho
chega, com o tempo, ao momento de renovar-se, de mudar de pele e de renascer com
feição técnica aperfeiçoada, que reduz a quantidade de trabalho e põe em movimento
maior quantidade de maquinaria e de matérias-primas. A redução absoluta da
procura de trabalho que necessariamente daí decorre será, evidentemente, tanto
maior quanto mais tenha o movimento de centralização combinado os capitais que
percorrem esse processo de renovação.

Assim, o próprio modo de produção capitalista, o desenvolvimento constante da força


produtiva do trabalho e as alterações decorrentes na composição orgânica do capital crescem
muito mais aceleradamente do que a própria acumulação, já que a centralização do capital
está incluída aí, incidindo não só sobre o capital adicional, mas também sobre o primitivo, os
quais têm alteradas sua composição técnica. Dessa forma, podemos ver que uma ampliação
quantitativa da acumulação de capital gera também mudanças qualitativas na sua composição,
resultando em que sua parte constante aumenta em detrimento da variável. A proporção do
valor global do capital investido em força de trabalho passa a ser cada vez menor, enquanto
que a investida em meios de produção, ao contrário, aumenta, conforme mencionado.
A parte variável do capital aumenta quando há aumento do capital global, porém, em
proporção cada vez menor. Assim, como a procura de trabalho é determinada somente por
53

esta parte variável, ela tende a cair progressiva e aceleradamente enquanto a totalidade do
capital global aumenta, o que acirra cada vez mais a concorrência entre os trabalhadores.
Para que certa quantidade adicional de trabalhadores seja incorporada e até para que
aqueles já empregados se mantenham enquanto força de trabalho ativa, a acumulação do
capital global deve ser acelerada progressivamente, mas a redução relativa do capital variável
é muito mais rápida do que o aumento do capital global . Isso pode dar a impressão de que
houve um aumento em termos absolutos da população trabalhadora que não pode ser
acompanhada pelo aumento do capital variável, tornando assim, os meios de ocupação
insuficientes para empregá-la. Mais uma vez, a aparência do fenômeno oculta sua real
essência, pois, na verdade, ―a acumulação capitalista sempre produz, e na proporção da sua
energia e de sua extensão, uma população trabalhadora supérflua relativamente, isto é, que
ultrapassa as necessidades médias da expansão do capital, tornando-se, desse modo,
excedente‖. (MARX, 2011: 733)
As mudanças geradas pelo processo de acumulação global podem se dar tanto em sua
totalidade, como influir diversamente nos diferentes ramos de produção.51 No entanto, o que
em todos eles ocorre em comum é que o aumento da quantidade de trabalhadores empregados
está sempre sujeito a enormes flutuações e à constituição transitória de superpopulação, seja
pela expulsão dos trabalhadores que já estão empregados ou pela maior dificuldade da entrada
de trabalhadores onde havia antes maior facilidade.
Podemos, assim, aferir uma lei da população que advêm desta situação gerada pelo
próprio desenvolvimento do sistema capitalista de produção e, portanto, inerente a ele: ao
mesmo tempo em que produz a acumulação do capital, os trabalhadores produzem também e
em proporções cada vez maiores, aquilo que os torna, relativamente, uma população
supérflua, excedente, o que não só é necessário para o desenvolvimento capitalista, mas
também o impulsiona.
A força de expansão do capital cresce de forma assustadora.52 A aceleração da
acumulação produz uma massa de riqueza social pronta para se tornar capital adicional tanto

51
Marx (2011: 733) cita algumas dessas diversas mudanças que podem advir: ―em alguns ramos, ocorre
mudança na composição do capital, sem aumentar sua magnitude absoluta, em virtude de mera centralização; em
outros, o crescimento absoluto do capital corre paralelo com a redução absoluta de sua parte variável ou da força
de trabalho por ele absorvida; em outros, ora o capital prossegue aumentando em dada base técnica e atrai força
de trabalho adicional à proporção que cresce, ora ocorre mudança orgânica, contraindo-se sua parte variável‖.
52
―Essa força de expansão cresce em virtude das seguintes causas: aumentam a elasticidade do capital em
funcionamento e a riqueza absoluta da qual o capital constitui apenas uma parte elástica; o crédito, sob qualquer
incentivo especial, põe à disposição da produção, como capital adicional, num instante, parte considerável dessa
riqueza; as condições técnicas do próprio processo de produção, a maquinaria, os meios de transporte etc.
possibilitam a transformação mais rápida, na mais larga escala, do produto excedente em meios de produção
adicionais‖. (MARX, 2011: 735)
54

aos antigos quanto aos novos ramos de produção e é justamente este exército industrial de
reserva que fornece a força de trabalho necessária sem precisar afetar a produção dos outros
ramos. Daí sua importância ao desenvolvimento capitalista.
Marx (2011: 736) explica porque este fenômeno só acontece a partir do
amadurecimento do processo capitalista:

esse curso peculiar da indústria moderna, que não encontramos em nenhuma época
anterior da humanidade, era impossível no período infantil da produção capitalista.
Só muito lentamente se alterava a composição do capital. Por isso, à sua acumulação
correspondia antes, de modo geral, o crescimento proporcional da procura de
trabalho. Sendo lento o progresso dessa acumulação, comparado com o da época
moderna, encontrava ele obstáculos naturais na população trabalhadora explorável,
os quais só puderam ser removidos por medidas violentas [...]. A expansão súbita e
intermitente da escala de produção é condição para sua contração súbita; esta
provoca novamente aquela, mas aquela é impossível sem material humano
disponível, sem aumento dos trabalhadores, independentemente do crescimento
absoluto da população. Esse aumento é criado pelo simples processo de ―liberar‖
continuamente parte dos trabalhadores, com métodos que diminuem o número dos
empregados em relação à produção aumentada. Toda a forma do movimento da
indústria moderna nasce, portanto, da transformação constante de uma parte da
população trabalhadora em desempregados ou parcialmente empregados.

Se, até o momento, consideramos que com aumento ou diminuição do capital variável
o mesmo acontecia com a quantidade de trabalhadores empregados, vejamos o que ocorre
quando esta permanece igual ou mesmo diminui. No caso, o capital variável pode aumentar,
caso a quantidade de trabalho fornecida por cada trabalhador aumente, aumentando assim, o
salário dos trabalhadores, embora o preço da força de trabalho se mantenha ou até caia,
contanto que numa velocidade menor que a quantidade de trabalho cresce. Assim, o aumento
do capital variável indica não uma quantidade maior de trabalhadores, mas sim, mais trabalho
por parte da mesma (ou de menor) quantidade de trabalhadores. Isso porque

cada capitalista tem absoluto interesse em extrair determinada quantidade de


trabalho de menor número de trabalhadores, desde que o custo salarial de maior
número seja igual ou até menor. Com maior número, aumenta o dispêndio de capital
constante em relação à quantidade de trabalho mobilizado, se o número é menor,
esse dispêndio crescerá muito mais lentamente. Quanto maior a escala da produção,
tanto mais decisivo é este motivo. Seu peso aumenta com a acumulação do capital.
(MARX, 2011: 739)

Com o desenvolvimento do capitalismo, o aumento cada vez maior da produtividade


do trabalho e da acumulação, o capitalista, a partir de maior exploração extensiva e intensiva
da força de trabalho, consegue dispor de mais trabalho sendo realizado, sem precisar contratar
mais trabalhadores, sem alterar a parte utilizada como capital variável. Além disso, ao
55

substituir força de trabalho superior por inferior53, pode obter mais força de trabalho com a
mesma magnitude de capital variável. Consequentemente, o aumento da superpopulação
relativa é mais rápido que as alterações possíveis na composição técnica do capital e também
que a diminuição relativa do capital variável comparado ao constante.
Se o desenvolvimento dos meios de produção exige cada vez menos trabalhadores, a
produtividade do trabalho torna mais fácil ao capital obter mais trabalho sem precisar
contratar novos trabalhadores. Este trabalho mais intenso e extenso por parte daqueles que já
estão empregados gera um círculo vicioso, pois, ao mesmo tempo que isso faz aumentar a
parcela da classe trabalhadora em ociosidade forçada, ou seja, o exército industrial de reserva,
este aumenta, com a concorrência, a pressão em cima dos trabalhadores em atividade, que
acabam sendo obrigados a se sujeitar a todas as necessidades do capital se quiserem manter
seu emprego. Já que a venda da sua força de trabalho é a única maneira que o trabalhador
encontra para sobreviver na sociedade capitalista, este mecanismo acaba sendo a ela bastante
eficiente e muito lucrativo aos capitalistas individuais e esta superpopulação relativa de
trabalhadores cresce na mesma medida em que cresce também a acumulação social.
De forma geral, é o movimento de expansão e contração do exército industrial de
reserva que regula as oscilações nos salários. Assim, se num certo ramo de produção que se
encontra em situação favorável os lucros aumentam e atraem capital adicional, a procura por
trabalho, bem como os salários, irá aumentar. Os altos salários, por sua vez, atraem para este
ramo a grande parte da classe trabalhadora até que isto sature tal ramo, fazendo os salários
retornarem ao nível normal ou ficarem inferiores a ele, a depender do tamanho da influência
dos trabalhadores, resultando, então, na emigração deste ramo.
Depreendemos disso tudo que, considerando as oscilações na oferta e na procura de
trabalho, sempre haverá influência da superpopulação relativa, já que ―durante os períodos de
estagnação e prosperidade média, o exército industrial de reserva pressiona sobre o exército
de trabalhadores em ação, e, durante os períodos de superprodução e paroxismo, modera as
exigências dos trabalhadores‖. (MARX, 2011: 742-3)
Vale lembrar aqui o efeito que causa a transformação de parte do capital variável em
constante com a introdução pelo capital de maquinaria que ―substitua‖ a ação da força de
trabalho. Isso faz com que grande parte dos trabalhadores empregados sejam dispensados e
passem a compor o exército industrial de reserva, pois aí estão não só os trabalhadores que a

53
Marx (2011: 739) usa esse termo para se referir, por exemplo, à substituição de ―trabalhadores qualificados
por trabalhadores menos hábeis, mão-de-obra amadurecida por mão-de-obra incipiente, a força de trabalho
masculina pela feminina, a adulta pela dos jovens ou crianças‖.
56

máquina diretamente expulsou, mas os que viriam depois deles e não serão mais necessários e
aqueles que são parte da superpopulação relativa e poderiam ser absorvidos numa situação de
expansão.
A questão é que, o capital absorvendo a mesma, menor ou maior quantidade de
trabalhadores daquela dos que foram expulsos pela maquinaria, este fato por si só acaba por
neutralizar o efeito sobre a procura geral de trabalho. ―Isto significa que o mecanismo da
produção capitalista opera de maneira que o incremento absoluto do capital não seja
acompanhado por uma elevação correspondente da procura geral de trabalho‖. (MARX, 2011:
743) Vejamos como o capital opera nessas circunstâncias:

se sua acumulação aumenta a procura de trabalho, aumenta também a oferta de


trabalhadores, ―liberando-os―, ao mesmo tempo que a pressão dos desempregados
compele os empregados a fornecerem mais trabalho, tornando até certo ponto
independente a obtenção, a oferta de trabalho da oferta de trabalhadores. Nessas
condições, o movimento da lei da oferta e da procura de trabalho torna completo o
despotismo do capital. (MARX, 2011: 743-4)

Atentemo-nos agora às três formas que a superpopulação relativa pode assumir.


A primeira delas é a flutuante, decorrente de quando há um aumento de trabalhadores
empregados, mas em progressão cada vez menor se comparada com o aumento da produção.
Os trabalhadores que compõem esta superpopulação, outrora empregados, acabam sendo
dispensados, muitas vezes, por conta de características particulares que não mais atendem a
certo ramo de produção, como, por exemplo, a dependência que a divisão do trabalho lhes
gerou a determinada atividade ou a idade. Tendo em vista que o alto grau de exploração dos
trabalhadores logo os enfraquece, debilita e mesmo os mata muito antes do que aqueles que
não trabalham (os capitalistas), para atender às necessidades do capital, a população
trabalhadora precisa crescer numa velocidade maior do que é consumida para gerar sempre
seus substitutos.
A segunda é chamada de latente por conta do próprio processo que a origina.
Entendendo que o capitalismo cada vez mais toma conta da agricultura, das áreas rurais, os
trabalhadores destas acabam sendo expulsos, tendo que ficar na expectativa de um processo
favorável que os permita se realocarem como trabalhadores urbanos. Este fluxo é sempre
contínuo, mas nos campos esta superpopulação latente fica esperando uma oportunidade para
trabalhar nas cidades e só terão visibilidade nas situações em que é possibilitada uma enorme
intensificação deste fluxo. Consequência disso tudo é que os trabalhadores rurais recebem os
mais baixos salários e ficam à beira do pauperismo.
57

A terceira e maior de todas é a superpopulação relativa estagnada, que é também a que


mais cresce à medida que aumenta a acumulação. Compõe-se dos trabalhadores que, tornados
supérfluos principalmente nas grandes indústrias, na agricultura e em ramos de produção
decadentes, possuem emprego apenas de modo parcial, com ocupações irregulares, sendo uma
grande vantagem para a exploração do capital, já que seu nível de vida abaixo dos padrões
médios da classe trabalhadora os sujeita a uma condição de extensão máxima de trabalho com
salários os menores possíveis.
Mas há ainda que considerarmos aquela parcela da superpopulação relativa que
sobrevive à margem do pauperismo, a qual possui três categorias fundamentais: os que são
aptos para o trabalho, os que não o são e os filhos e órfãos de indigentes. ―O pauperismo faz
parte das despesas extras da população capitalista, mas o capital arranja sempre um meio de
transferi-las para a classe trabalhadora e para a classe média inferior‖. (MARX, 2011: 748)
O desenvolvimento e expansão do capital faz crescer não só esta camada da
superpopulação relativa, como ela própria em seu conjunto. Estas condições resultam na lei
geral da acumulação capitalista:

quanto maiores a riqueza social, o capital em função, a dimensão e energia de seu


crescimento e, consequentemente, a magnitude absoluta do proletariado e da força
produtiva de seu trabalho, tanto maior o exército industrial de reserva. A força de
trabalho disponível é ampliada pelas mesmas causas que aumentam a força
expansiva do capital. A magnitude relativa do exército industrial de reserva cresce,
portanto, com as potências da riqueza, mas, quanto maior esse exército de reserva
em relação ao exército ativo, tanto maior a massa da superpopulação consolidada,
cuja miséria está na razão inversa do suplício de seu trabalho. E, ainda, quanto
maiores essa camada de lázaros da classe trabalhadora e o exército industrial de
reserva, tanto maior, usando-se a terminologia oficial, o pauperismo. (MARX, 2011:
748)

Vemos assim, como o capital se encarrega de adequar a quantidade de trabalhadores às


suas necessidades de expansão, iniciando com a produção de uma superpopulação relativa e
culminando em cada vez mais trabalhadores relegados à miséria e ao pauperismo.
Outra lei que contribui para piorar as condições de vida dos trabalhadores é a de que o
desenvolvimento capitalista gera tanto um aumento de meios de produção, que precisam de
cada vez menos força de trabalho para ser consumidos, quanto da produtividade do trabalho,
fazendo com que o crescimento da população trabalhadora seja muito mais acelerado do que o
que o capital precisa empregá-la para seus objetivos de expansão.
Os artifícios que o capital usa para aumentar a produção de mais-valia resultam em
maior acumulação, a qual, por sua vez, ajuda a aprimorar tais artifícios. Assim, não importa se
há aumento de salário ou não para os trabalhadores, enquanto há acumulação de capital, a
58

produção de riqueza da classe capitalista de um lado, do outro sempre haverá acumulação e


produção de miséria para a classe trabalhadora, cuja situação vai se tornando cada vez pior e
este constitui o caráter antagônico do modo de produção capitalista.
Para finalizar este capítulo, queremos ressaltar brevemente que uma forte evidência da
aplicação real da lei geral da acumulação capitalista são justamente as múltiplas expressões
da ―questão social‖54, tal como vividas pelos indivíduos sociais. Iamamoto (2011: 111; grifos
originais) assim expressa esta relação:

a superprodução é sempre relativa e, longe de expressar um excedente absoluto de


riqueza, é expressão de um regime de produção cujos fundamentos impõem limites à
acumulação em razão dos mecanismos de distribuição da riqueza que lhe são
próprios. Em outros termos, expressa o conflito entre produção e distribuição,
apontado por Marx. O capital internacionalizado produz a concentração da riqueza,
em um pólo social (que é, também, espacial) e, noutro, a polarização da pobreza e da
miséria, potenciando exponencialmente a lei geral da acumulação capitalista, em que
se sustenta a questão social.

Este é um debate muito caro ao Serviço Social, já que o cerne está no próprio objeto
da profissão: a ―questão social― configura a ―matéria― sobre a qual incide o trabalho
profissional. Ela é moldada tanto pelas políticas públicas quanto pelas lutas sociais cotidianas
de diferentes segmentos subalternos que vêm à cena púbica para expressar interesses e buscar
respostas às suas necessidades.
Lembramos que uma ―nova questão social―, aclamada por muitos ideólogos
defensores da lógica burguesa e até mesmo por alguns intelectuais precipitados, é um termo
bastante impreciso quanto à análise histórica da realidade, uma vez que, apesar de certamente
adquirir novos contornos e expressões conforme as transformações internas da sociedade
capitalista, seu cerne continua sendo a acumulação de capital e, portanto, é insuperável
enquanto este modo de produção existir.

54
―A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e
de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do
empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a
burguesia [...]‖ (IAMAMOTO in IAMAMOTO e CARVALHO, 2004: 77; grifos originais). Para uma análise
mais completa das determinações acerca da ―questão social‖, ver NETTO (2009b).
59

2 O fundamento das crises capitalistas: as crises clássicas de superprodução

As crises, certamente, não são uma ―invenção― do modo de produção capitalista, tendo
existido também em ordens sociais anteriores a ele. Porém, uma análise teórica deixa claro
que seu caráter é inteiramente novo, trazendo configurações e determinações específicas
resultantes da produção generalizada de mercadorias sob a égide do capital.
As crises pré-capitalistas eram, de fato, consequência

da destruição dos produtores diretos ou dos meios de produção, ocasionada por


desastres naturais (por exemplo, grandes epidemias – como a peste negra –
dizimando os produtores) ou por catástrofes sociais (por exemplo, guerras
destruindo meios de produção e forças produtivas). A consequência imediata dessas
crises é uma carência generalizada dos bens necessários à vida social; mais
exatamente, tais crises indicam uma insuficiência na produção de valores de uso e,
por isso, podem ser designadas como crises de subprodução de valores de uso.
(NETTO e BRAZ, 2009: 157; grifos originais)

Já as crises próprias do modo de produção capitalista, são de superprodução de


mercadorias, já que muitas delas, por inúmeros fatores que analisaremos ao longo deste
capítulo, não poderão ser compradas no mercado pelos consumidores, não realizarão seu valor
de troca, gerando, com isso, um entrave à produção até que os níveis de oferta e demanda
possam novamente encontrar certo equilíbrio.
Assim, se nos sistemas anteriores as crises eram detonadas essencialmente pela
escassez de valores de uso, agora

é porque há a impossibilidade de venda de mercadorias a preços que garantam o


lucro médio – isto é, porque há, portanto, ―muitas mercadorias‖ – que a vida
econômica se desorganiza, que as fábricas fecham suas portas, que os patrões
demitem e que a produção, as rendas, as vendas, os investimentos e o emprego
caem. (MANDEL, 1990: 210)

Estas crises, que de tempos em tempos atravessam a história da sociedade capitalista


não são um mero acidente, ou um simples acaso em seu percurso, mas fazem parte de sua
própria lógica, de sua dinâmica interna. Por ser um sistema essencialmente contraditório, suas
múltiplas contradições irão configurar um quadro de limitações à efetivação de sua tendência
de expansão continuada e as crises vêm impor, de forma violenta, certo ―ajustamento‖ de suas
contradições fundamentais.55

55
―Todas as contradições da produção burguesa se patenteiam coletivamente nas crises gerais do mercado
mundial, e de maneira dispersa, isolada, parcial, nas crises restritas (restritas no conteúdo e na extensão)‖.
(MARX, 1980: 968; grifos originais)
60

Logo, de acordo com Alvater (1987: 86), as crises capitalistas, conforme o conceito
trazido por Marx, configuram um agravamento das contradições internas do sistema da qual
derivam.

As crises, entendidas como aguçamento e agravamento de contradições, assinalam


em primeiro lugar que o movimento das contradições não mais pode ir adiante na
trajetória seguida até aquele ponto; em segundo lugar – tendencialmente –, que a
forma do movimento dos elementos de contradição não permite mais um
desenvolvimento produtivo ulterior. Daí derivam então uma paralisia, um bloqueio,
uma estagnação, uma crise, em cujo curso são cancelados, em primeiro lugar, os
obstáculos a um novo desenvolvimento de contradições e em segundo lugar –
tendencialmente – se desenvolvem novas formas em cujo interior possam se mover
os ―agentes contrapostos‖.

Assim, enquanto parte de sua dinâmica, as crises estão inscritas no movimento dos
ciclos econômicos capitalistas, do qual podemos identificar, conforme Netto e Braz (2009)
quatro fases principais.
Começando pelo próprio quadro de crise, esta geralmente eclode a partir de um
detonador56, o qual só terá efeito caso já estejam dadas as pré-condições que conformarão a
base da crise iminente. O que vemos neste cenário é uma diminuição brusca na produção e no
comércio, já que grande parte das mercadorias não conseguirão ser vendidas, fazendo seus
preços cair, diversas empresas vão à falência, aumenta-se criticamente o desemprego, ao
mesmo tempo em que os salários decrescem rapidamente, resultando em uma pauperização
cada vez maior da classe trabalhadora.
Após a crise, ocorre um quadro de depressão, onde as empresas que não sucumbiram
tentarão retomar seu crescimento fundamentalmente através de investimentos em tecnologia,
mesmo tendo que vender sua mercadoria a um preço inferior ou até mesmo destruir parte do
excedente que não pode ser realizado no mercado e, enquanto isso, os trabalhadores ainda
sofrem com os baixos salários e o desemprego.
Na fase de retomada é que, uma vez indicada a possibilidade de melhoria, a produção
volta a ser impulsionada e retorna ao patamar anterior à crise, sob novas determinações. Isso
ocorre após as empresas remanescentes anexarem grande parte daquelas que faliram, ao
mesmo tempo em que se desenvolvem internamente, impulsionando o comércio, a venda das
mercadorias, cujo preço volta a subir e o desemprego regride.

56
Este pode ser um ―incidente econômico ou político qualquer (a falência de uma grande empresa, um escândalo
financeiro, a falta repentina de uma matéria-prima essencial, a queda de um governo)‖, por exemplo. (NETTO e
BRAZ, 2009: 159)
61

Este movimento leva à quarta e última fase, que corresponde ao auge do ciclo. Nela, a
produção não só é retomada aos níveis anteriores, como, em resposta ao estímulo da
concorrência intercapitalista, as empresas procuram cada vez mais por inovações no processo
produtivo, elevando a produção à máxima potência, até que, em meio a todo este entusiasmo,
o mercado se vê novamente frente a um excesso de mercadorias que não lograrão realizar seu
valor-de-troca, forçando uma queda de preços até que outro detonador evidencia a retomada
do ciclo – está formada uma nova crise capitalista.
Assim, vemos que as crises somente seguem à tendência dos ciclos capitalistas57, que
são inevitáveis e inexoráveis, já que

o que é racional do ponto de vista do sistema tomado em seu conjunto não o é do


ponto de vista de cada empresa tomada isoladamente e vice-versa. Enquanto o
mercado estiver em forte expansão, é que todas as empresas devem se esforçar em
obter uma parte desse bolo ampliado, precipitando, assim o ―superinvestimento‖ e a
capacidade excedente. Quando há uma queda das vendas, é absurdo para cada
empresa individual aumentar a sua capacidade de produção. É necessário, ao
contrário, reduzir as perdas e a queda dos preços (preços-ouro), isto é, reduzir a
produção, o que tem por resultado um ―subinvestimento‖ cumulativo
macroeconômico. A convicção ingênua dos liberais de que o ―interesse geral‖ é
perfeitamente servido se cada um perseguir o seu ―interesse particular‖ revela-se
especialmente ilusória nas viradas decisivas do ciclo – sem falar do fato de ela
procurar mascarar a oposição de interesses entre capitalistas e assalariados. A
propriedade privada é o obstáculo insuperável ao crescimento extensivo dos
investimentos. Assim sendo, constitui o obstáculo insuperável à desaparição do
ciclo. (MANDEL, 1990: 216; grifos originais)

Para compreendermos melhor de que forma as contradições inerentes ao modo de


produção capitalista já trazem a possibilidade de crise, bem como levam efetivamente à sua
concretização, retomemos alguns pontos fundamentais abordados no capítulo anterior.
Sabemos que a base do sistema capitalista é a mercadoria e que esta mesma já encerra
a contradição de ser ao mesmo tempo valor de uso e valor de troca, de ser fruto do trabalho
concreto, mas ter que se expressar enquanto trabalho geral abstrato no processo de circulação,
no qual se efetiva a troca, onde a mercadoria se metamorfoseia em dinheiro (M – D) e este
novamente em mercadoria (D – M).

57
É válido retomarmos aqui o conceito de leis trazido por Marx: ―em O capital, Marx desenvolve as leis do
modo de produção capitalista, as normas fundamentais a que estão submetidos o processo de produção, a
circulação e o processo global do capital. As leis (a lei do valor) não se apresentam, contudo, como tais em
forma pura, uma vez que essência e aparência não são idênticas; as relações sociais fundamentais, ao contrário,
são mistificadas, e isto está mesmo inscrito em suas características essenciais. Assim, as leis do modo de
produção podem se manifestar, através da ação dos homens, unicamente como tendências, que, no entanto, por
causa da contraditoriedade imanente da relação capitalista, não constituem um trend linear, mas sim implicam
em um movimento cíclico.‖ (ALVATER, 1987: 90-91; grifos originais)
62

Sabemos também que a própria forma dinheiro da mercadoria, funcionando como


equivalente geral, é resultado de seu desenvolvimento, assumindo como uma de suas funções
ser meio de circulação, possibilitando as trocas e, portanto, viabilizando o processo de compra
e venda. Mas é justamente pelo fato de que estas fases essencialmente complementares podem
se dissociar que se abre a possibilidade de crise:

as diferenças de forma – as fases – por que passa a mercadoria em seu movimento


são, primeiro, formas e fases necessariamente complementares; segundo, apesar
dessa unidade intrínseca necessária, são por igual partes e formas independentes do
processo, contrapostas em sua existência, discrepantes no tempo e no espaço,
separáveis e separadas uma da outra. (MARX, 1980: 943-944)

Uma vez que não se trata mais de troca direta, onde um valor de uso é permutado
diretamente por outro, a produção generalizada de mercadorias, base do sistema capitalista,
requer impreterivelmente que a mercadoria seja vendida, convertida em dinheiro, mas, uma
vez feito isso, aquele que possui a mercadoria na forma dinheiro não é necessariamente
impelido a reconverter este dinheiro em mercadoria, ou seja, a comprar e é esta dissociação
que pode resultar em uma crise58, uma vez entendida enquanto ―a restauração violenta da
unidade entre elementos guindados à independência e a afirmação violenta de independência
de elementos que na essência formam uma unidade‖. (MARX, 1980: 949)
Esta possibilidade de crise, resultante da dissociação da compra e venda pode ser
observada também no movimento do capital, considerando este em sua forma mercadoria.
Vemos que a condição para que uma mercadoria saída do processo de produção vire dinheiro
no processo de circulação é que dinheiro tenha sido convertido em mercadoria, ou seja,
enquanto um capital sai de um processo de produção, outro retorna em outro processo. Isso
indica um entrelaçamento entre os capitais de diferentes processos de reprodução e circulação,
imperativo resultante da própria divisão do trabalho, ampliando, dessa forma, a determinação
do conteúdo da crise.
Além disso, ―a natureza geral da metamorfose das mercadorias, a qual abrange tanto a
dissociação quanto a unidade da compra e venda, em vez de excluir, ao contrário, encerra a
possibilidade de uma oferta excessiva geral‖, já que se houver no mercado uma
superabundância não de uma, mas de todas as mercadorias, a não ser pelo dinheiro, sua
realização, sua venda, ficará ainda mais difícil. (MARX, 1980: 940; grifos originais)

58
Devemos deixar claro, no entanto, que esta contradição intrínseca à mercadoria entre valor de uso e valor de
troca e, portanto, a própria contradição entre mercadoria e dinheiro manifesta apenas uma crise em potencial. É
sua forma mais abstrata, mas não o meio pelo qual ela ocorre, de fato.
63

O mesmo pode ocorrer com a dissociação entre oferta e procura, quando, em certo
momento, a oferta das mercadorias pode ser maior que a procura, bem como a procura pela
mercadoria universal, o dinheiro, pode ser maior do que todas as outras ou até mesmo pode
ocorrer que o ímpeto pela transformação da mercadoria em valor de troca seja maior que o
ímpeto por transformar novamente a mercadoria em valor de uso (portanto, vender mais que
comprar).
Isso significa que na relação entre oferta e procura está contida aquela entre produção
e consumo e é durante as crises que se impõe o restabelecimento da unidade entre elas, que
ficam dissociadas por boa parte do desenvolvimento capitalista.
Há ainda outra possibilidade de crise advinda da forma do dinheiro enquanto meio de
pagamento (e, consequentemente, o desenvolvimento do sistema de crédito), em que ―o
capital já se revela fundamento muito mais real para a efetivação dessa possibilidade‖.
(MARX, 1980: 946)
Quando os créditos não são liquidados e ocorre a dissociação entre a medida dos
valores e a realização do valor, pois pode acontecer que neste ínterim o valor da mercadoria
tenha mudado e, na ocasião de sua venda, seu valor tenha decaído com relação àquele de
quando o dinheiro era a medida dos valores, ou seja, das obrigações recíprocas. Com isso, o
montante obtido com a venda da mercadoria não será suficiente para cumprir com as
obrigações de pagamento, prejudicando assim, todas as outras transações que a esta estão
ligadas.
Ou então, pode ocorrer que a mercadoria não possa ter sido vendida dentro do prazo
estipulado para a realização do pagamento, o que também não proverá o devedor de meios
para saldar o crédito obtido, recaindo igualmente em diversas operações monetárias
dependentes, a partir da ligação entre os créditos e obrigações59, desenvolvendo a
possibilidade de crise e podendo resultar de fato em crises monetárias, decorrentes das
dificuldades na venda das mercadorias.60
Vemos que estas duas formas abstratas de crise61 só se efetivarão caso a compra e
venda se dissociarem, ou quando aparecerem as contradições do dinheiro como meio de

59
―Uma vez que os créditos são mútuos, a capacidade de pagar de um depende ao mesmo tempo da capacidade
de pagar do outro; pois, ao emitir a letra, aquele pode ter contado ou com o refluxo do capital em seu próprio
negócio ou com o refluxo no negócio de um terceiro, que no entretempo tem de lhe pagar uma letra‖. (MARX,
1985-6: 21)
60
―Estas são as possibilidades formais da crise. A primeira é possível sem a última – isto é, crises são possíveis
sem crédito, sem o dinheiro funcionar como meio de pagamento. Mas a segunda não é possível sem a primeira,
isto é, sem compra e venda se desconjuntarem‖. (MARX, 1980: 949; grifos originais)
61
Até então, podemos dizer que ―em sua primeira forma, a crise é a metamorfose da própria mercadoria, a
dissociação da compra e venda‖. E ainda que ―em sua segunda forma, a crise é a função do dinheiro como meio
64

pagamento e aí necessitarem da força impositora das crises para se restabelecerem a fluidez


entre as compras e vendas, bem como a quitação dos créditos, até que sobrevenha novo ciclo
e a necessidade de outra crise se faça presente na dinâmica capitalista. Todavia,

a circulação simples do dinheiro e mesmo a circulação do dinheiro como meio de


pagamento – e ambas já existiam muito antes da produção capitalista sem terem
sucedido crises – podem realizar-se e se realizam sem crises. Assim, essas formas
sozinhas não podem explicar por que desvelam sua face crítica, por que a
contradição potencial nelas contida se patenteia em contradição em ato. (MARX,
1980: 947)

Isso significa que somente sob a égide do capital, onde encontramos um


desenvolvimento superior da circulação da mercadoria e do dinheiro é que podemos
acompanhar o movimento da crise potencial até a materialização da crise real, com as
determinações e a dinâmica próprias do modo de produção capitalista, longe, portanto, de se
restringirem à mera existência da mercadoria e do dinheiro, categorias anteriores à formação
deste sistema.
Analisemos agora mais de perto, como o desenvolvimento do sistema de crédito incide
nas crises capitalistas.
Marx, no volume terceiro d‘O capital trata da acumulação do capital de empréstimo,
mais especificamente, do capital emprestável monetário, ou seja, ―exclusivamente dos
empréstimos em dinheiro que são feitos pelos banqueiros, como intermediários, aos
industriais e comerciantes‖. (MARX, 1985-6: 21)
Se considerarmos o crédito comercial62, abstraindo do crédito do banqueiro, temos o
processo de metamorfose da mercadoria intermediado pelo crédito. Assim, quando se há
muito crédito no ciclo reprodutivo, significa que há muito capital ocupado no processo de
reprodução. Levando isso em conta, a fluidez no processo de reprodução garante o refluxo do
capital, fazendo o crédito se ampliar juntamente com este processo. Porém,

tão logo ocorre uma estagnação, em consequência de refluxos retardados, mercados


saturados ou preços em queda, há excesso de capital industrial, mas numa forma em
que não pode desempenhar sua função. Massas de capital-mercadoria, mas
invendáveis. Massas de capital fixo, mas, em virtude da paralisação da reprodução,
em grande parte desocupadas. (MARX, 1985-6: 23)

de pagamento, e então o dinheiro figura em duas fases diferentes, separadas no tempo, em dois papeis diversos‖.
Apesar de serem formas abstratas, a segunda é a mais concreta entre ambas. (MARX, 1980: 945)
62
Ou seja, o ―crédito que os capitalistas ocupados na reprodução se concedem mutuamente‖ e que ―constitui a
base do sistema de crédito‖. (MARX, 1985-6: 21)
65

Assim, da mesma forma que o crédito se expande com a expansão do processo de


reprodução, nas crises, quando este processo sofre uma paralisação ou retração, ele também se
contrai.63 As crises não decorrem, então, por conta de uma escassez de capital produtivo, já
que é uma fase onde ele se encontra justamente em excesso, pois ―o capital já desembolsado
está então de fato desocupado em massa, porque o processo de reprodução está paralisado.
Fábricas ficam paradas, matérias-primas se amontoam, produtos acabados abarrotam, como
mercadorias, o mercado‖.64 (MARX, 1985-6: 24)
Quando ao crédito comercial se agrega o crédito monetário, ou seja, o crédito dos
banqueiros e prestamistas de dinheiro, o sistema de crédito e todos os seus reflexos no
processo de reprodução se complexificam a um nível bem maior, podendo dar a ilusão de que
a economia está crescente logo antes de irromper uma crise.65
Marx (1985-6) indica ainda que durante as crises, há um aumento do capital monetário
emprestável66, primeiramente, porque, com a paralisação e retração da produção e, portanto,
do capital industrial, o preço das mercadorias decresce violentamente, bem como o ímpeto por
novos investimentos na produção. Com isso, a taxa de juros tende a baixar, aumentando,
portanto, o capital monetário emprestável.
Além disso, com as mercadorias sendo vendidas a preços tão baixos, a diminuição dos
salários, bem como do comércio, a quitação de dívidas externas (seja pela exportação de ouro,
ou por falências), dispensando maior necessidade de dinheiro internacional e pelo fato de ―o
volume do negócio de desconto de letras [diminuir] com o número e os montantes dessas
próprias letras‖ reduz-se a procura por capital monetário emprestável, tanto para servir como
meio de circulação ou de pagamento, fazendo com que ele se torne relativamente excessivo.
(MARX, 1985-6: 25)
O fato de o capital monetário aumentar pela ampliação do sistema bancário, não
significa que o dinheiro depositado se converterá num aumento do capital produtivo. Se a

63
―O crédito contrai-se 1) porque esse capital está desocupado, isto é, paralisado numa das fases de sua
reprodução, porque não pode completar sua metamorfose; 2) porque a confiança na fluidez do processo de
reprodução está quebrada; 3) porque a procura por esse crédito comercial diminui‖. (MARX, 1985-6: 23)
64
―Só se pode falar de escassez real de capital produtivo, pelo menos nas nações capitalistas desenvolvidas, no
caso de malogro geral de colheitas, seja dos alimentos principais, seja das matérias-primas industriais mais
importantes‖. (MARX, 1985-6: 24)
65
De acordo com Marx (1985-6: 24-5), ―em parte devido à simples emissão de letras frias, em parte devido a
negócios de mercadorias realizados somente com a finalidade de fabricar letras, todo o processo se complica
tanto que a aparência de negócios sólidos e de refluxos rápidos pode substituir tranquilamente, depois que os
refluxos, na realidade, eram já há muito feitos à custa em parte de prestamistas defraudados, em parte de
produtores defraudados. Por isso, os negócios parecem quase exageradamente sadios justamente antes da crise‖.
66
Demonstrando, portanto, que um aumento do capital monetário emprestável não significa necessariamente que
houve um aumento também do processo de acumulação.
66

escala de produção permanece a mesma, isso apenas leva a um aumento do capital monetário
emprestado comparado com o capital produtivo, resultando em uma taxa de juros baixa.
Quando o processo de reprodução está na fase de auge do ciclo industrial, logo antes
do superaquecimento, o crédito comercial é ampliado, tendo em vista o cenário de aumento da
produção e da fluidez dos refluxos e a taxa de juros permanece baixa (ainda que ultrapasse
seu mínimo). Esses fatores fazem com que, apesar da procura por capital de empréstimo estar
alta, sua oferta também esteja, mantendo a taxa de juros a patamares baixos. É somente nesta
fase que podemos ver a combinação de uma abundância relativa de capital de empréstimo e,
portanto, taxa de juros baixa, com o crescimento real do capital industrial.
Porém, é também neste momento que se torna evidente a ação dos capitalistas que não
possuem capital de reserva ou até nenhum capital, apoiando-se apenas no crédito monetário.
Ademais, o capital fixo é extremamente ampliado, bem como o surgimento de empresas com
larga cobertura. Isso eleva o juro ao nível médio e, quando a crise estoura, é quando ele
retoma seu nível máximo, num quadro onde ―o crédito cessa subitamente, os pagamentos
interrompem-se, o processo de reprodução é paralisado e, com as exceções anteriormente
mencionadas, surge, ao lado da carência quase absoluta de capital de empréstimo, abundância
de capital industrial desocupado‖. Em suma, o movimento do capital industrial é contrário
àquele do capital de empréstimo e a correspondente taxa de juros.67 (MARX, 1985-6: 27)
À medida que o processo de reprodução passa a se apoiar cada vez mais sobre o
crédito, quando ele é interrompido, forçando os pagamentos a se realizarem apenas em
dinheiro, a busca por este aumenta. Obviamente, se irromperá aí uma crise, já que, neste
momento, os meios de pagamento são escassos. A metamorfose das mercadorias dá lugar à
conversibilidade das letras de câmbio, ainda mais por conta da ampliação do sistema de
crédito. Assim, à primeira vista, a crise parece ser apenas de crédito e monetária, mas, por trás
destas letras estão processos reais de compra e venda e a proporção que isso tomou,
superando em muito as necessidades sociais, é que constitui o eixo fundamental da crise.
Outra questão que contribui para o agravamento da crise é o fato de que eclode agora o
peso dos negócios fraudulentos que representavam boa parte das letras de câmbio, muitas
especulações feitas a partir de capital de terceiros são arruinadas, sem contar o enorme
67
―A fase em que a taxa de juros baixa, mas superior ao nível mínimo, coincide com a ‗melhoria‘ e a confiança
crescente, subsequentes à crise, e especialmente a fase em que ela alcança seu nível médio, o meio equidistante
do mínimo e do máximo, só esses dois momentos expressam a coincidência entre capital de empréstimo
abundante e grande expansão do capital industrial. Mas, no começo do ciclo industrial, a taxa de juros baixa
coincide com a contração do capital industrial, e, no fim do ciclo, a taxa de juros alta coincide com a
superabundância de capital industrial. A taxa de juros baixa, que acompanha a ‗melhoria‘, expressa o fato de que
o crédito comercial precisa do crédito bancário apenas em pequena medida, por se apoiar ainda sobre seus
próprios pés‖. (MARX, 1985-6: 27-8)
67

montante de capital em forma de mercadoria que se desvaloriza ou que não poderá de fato ser
vendido e a interrupção dos refluxos.68
Vimos que, durante as crises, se manifesta um excesso de capital industrial. Na sua
forma mercadoria, com relação ao seu valor de uso, aparece enquanto uma quantidade
excessiva de objetos úteis ao processo de produção, que, no entanto, está ociosa, mas ele
também representa capital monetário potencial, correspondente ao valor dado no seu preço
estando, portanto, sujeito às diversas flutuações, sendo que nas crises está retraído. Portanto,
ele representa agora menos capital monetário do que à época que foi comprado, seja para seu
proprietário, para o credor ou para servir como garantia de letras e empréstimos. Isso significa
que, da mesma forma que durante as crises os preços das mercadorias decaem, ocorre o
mesmo com o capital monetário de um país, sendo que esta queda de preços, de certa forma
equilibra a elevação precedente.69
A mundialização do capital, alastra a crise por todo o globo, revelando que na grande
maioria dos países ocorreu excesso de importação e exportação, ou seja, ―superprodução
promovida pelo crédito e pela inchação geral dos preços, que a acompanha‖. Isso faz com que
o balanço de pagamentos fique desfavorável para todos70, portanto, gera um colapso geral de
uma nação após a outra. Assim, a drenagem de ouro que se dá no comércio internacional não
é a causa da crise, mas apenas um fenômeno pelo qual ela se manifesta. (MARX, 1985-6: 30)
Conclui-se, portanto que

o capital-mercadoria perde, em tempos de crise e de paralisação dos negócios, em


grande parte sua qualidade de representar capital monetário potencial. O mesmo se
aplica ao capital fictício, aos papeis portadores de juros, na medida em que estes
mesmos circulam na Bolsa como capitais monetários. Com o juro em ascensão cai
seu preço. Ele cai, além disso, pela escassez geral de crédito, a qual obriga seus
proprietários a lançá-los em massa no mercado, para arranjar dinheiro. Ele cai,
finalmente, no caso das ações, em parte pela diminuição dos rendimentos a que dão
direito, em parte devido ao caráter fraudulento dos empreendimentos que com tanta
frequência representam. Esse capital monetário fictício fica nas crises enormemente
reduzido, e com ele o poder de seus proprietários de levantar dinheiro sobre ele no

68
Dessa forma, Marx (1985-6: 28) aponta que ―tudo aparece aqui invertido, pois nesse mundo de papel, o preço
real e seus momentos reais nunca aparecem, mas apenas barras, dinheiro metálico, notas, letras de câmbio e
papeis de crédito‖.
69
―As receitas das classes improdutivas e dos que vivem de rendas fixas permanecem em sua maior parte
estacionárias durante a inchação dos preços, que sempre vai de mãos dadas com a superprodução e a
superespeculação. Sua capacidade de consumo diminui por isso relativamente e, com isso, sua capacidade de
repor da produção global a parte que normaliter teria de entrar em seu consumo. Mesmo quando sua procura
permanece nominalmente a mesma, ela diminui na realidade‖. (MARX, 1985-6: 29)
70
Lembramos que ―o balanço de pagamentos se distingue do balanço comercial por ser um balanço comercial
que vence em determinado prazo. O que fazem as crises é condensar a diferença entre o balanço de pagamentos
e o balanço comercial num curto período; e as circunstâncias determinadas que se desenvolvem na nação em que
há crise, na qual, portanto, os pagamentos vencem agora – essas circunstâncias já trazem consigo tal contração
do prazo de compensação‖. (MARX, 1985-6: 49)
68

mercado. A diminuição do nome monetário desses papeis de crédito no boletim da


Bolsa nada tem a ver com o capital real que representam, muito, porém, com a
solvência de seus proprietários. (MARX, 1985-6: 31)

Nas crises, há que se considerar ainda o fato de que enquanto a procura por capital
industrial cai drasticamente, a procura por capital de empréstimo aumenta ao máximo e,
portanto, sua taxa de juros também, já que é preciso urgentemente de meio de pagamento, ou
seja, dinheiro para quitar as dívidas, que é a causa maior desse incremento na busca pelo
capital emprestável.71
Conforme já vimos, é necessário no modo de produção capitalista que o valor de troca
se expresse de forma autônoma no dinheiro com relação a todas as outras mercadorias, o que,
nos países de capitalismo desenvolvido, se expressa na substituição do dinheiro por operações
de crédito e por dinheiro de crédito.
Já mencionamos também que, nas crises, o crédito se retrai ou é interrompido, gerando
uma demanda crescente por dinheiro para ser usado como meio de pagamento e, então, ―a
verdadeira existência do valor, em confronto absoluto com as mercadorias‖. Decorre daí que
as mercadorias se desvalorizam, pois a sua transformação em dinheiro, é dificultada. (MARX,
1985-6: 48)
Além disso, o dinheiro de crédito somente é dinheiro quando há correspondência entre
seu valor nominal e o dinheiro real, o que também é dificultado por conta principalmente da
drenagem de ouro, o que pode resultar em medidas como a elevação da taxa de juros. Assim,
com o desenvolvimento do sistema de crédito ao longo do decurso da sociedade capitalista,
uma desvalorização do dinheiro de crédito causaria grande perturbação.
Por causa disso, muitas mercadorias terão que ser destruídas, para que seu valor
subsista de forma autônoma no dinheiro, mas que, enquanto valor monetário só estará
garantido enquanto o dinheiro também estiver, o que, de fato, é um fenômeno que só pode
existir numa sociedade onde o sistema de crédito já esteja desenvolvido, como é o caso da
capitalista. Dessa forma, ―enquanto o caráter social do trabalho aparecer como existência
monetária da mercadoria e, por isso, como uma coisa fora da produção real, as crises
monetárias, independentemente de crises reais ou como seu agravante, são inevitáveis‖.
(MARX, 1985-6: 49; grifos originais)

71
Quando ocorre a fase de retomada, logo após a crise, este quadro muda e a procura por capital de empréstimo
se dá no sentido de investir na produção. O comerciante irá transformar o capital monetário em comercial e o
capitalista industrial irá transformar o capital monetário em capital produtivo, utilizando-o para comprar meios
de produção e força de trabalho.
69

Agora que analisamos melhor as particularidades do sistema de crédito que incidem


nas crises, vamos analisar outros movimentos do capital que podem acarretar nestes períodos
críticos.
Vemos que as condições gerais da crise podem ser explicadas pelas condições gerais
da produção capitalista, fazendo com que a reconversão de dinheiro em capital produtivo
possa assinalar uma possibilidade de crise. Assim, pode incidir que, em decorrência da
produtividade dependente das condições naturais72, se tenha para a mesma quantidade de
trabalho uma menor quantidade de matérias-primas, o que faz subir seu valor. Com isso,
alteram-se as proporções em que o dinheiro poderá se converter nos diversos componentes do
capital para manter a produção ao mesmo nível precedente.
Se maior quantidade de valor precisará ser convertido em matéria-prima e, portanto,
em capital constante, menos sobrará para se converter em capital variável e, com isso, menos
trabalhadores serão empregados, o que poderia mesmo ocorrer, já que a quantidade de
matéria-prima diminuiu. Assim, como a produção não será possível de ser realizada na mesma
proporção prévia, parte do capital fixo ficará ocioso e parte dos trabalhadores será dispensada.
Além disso, o fato do capital constante ter subido em relação ao variável provoca a
queda da taxa de lucro, já que é somente a força de trabalho que pode produzir valor,
resultando em que as partes da mais-valia que são invariáveis (tais como o juro e a renda
fundiária), bem como os salários terão problemas para serem pagas e diante deste panorama
sobrevém a crise.
Como houve uma perturbação no processo de reprodução, onde maior parte do valor
da mercadoria teve que ser destinada à reposição do capital constante, essa mercadoria fica
mais cara, ainda que, conforme vimos, a taxa de lucro tenha decaído. No caso de ser uma
mercadoria destinada a servir como capital constante em outros ramos de produção, seu
encarecimento lhe ocasionará também um problema na reprodução de capital destes ramos.
Caso seja mercadoria que é meio de subsistência, voltada ao consumo geral, o produto mais
caro poderá diminuir a procura por outros, gerando para os produtores destes a dificuldade de
venda e, portanto, de realizar o valor de suas mercadorias, de transformá-las em dinheiro, o
que também é um transtorno para o processo de reprodução.
Este cenário faz com que se em um ramo da produção o montante de lucro e de salário
cai, em outros ramos haverá dificuldades na venda de suas mercadorias, já que ficou
prejudicada parte das rendas destinadas a comprá-las.

72
Em decorrência das estações ou de uma colheita ruim, por exemplo.
70

A superprodução de capital fixo ou um maior investimento de parte da mais-valia


nele73 é outro fator que pode levar à carência de capital circulante, já que as matérias-primas
que eram suficientes para a produção na escala anterior já não mais serão para atender à nova
quantidade de capital fixo disponível, o que acaba tendo as mesmas consequências do
fenômeno anterior.74
De acordo com Alvater (1987: 91; grifos originais), ―a forma da crise resulta da
possibilidade de múltiplas interrupções da circulação das mercadorias e do capital‖. Portanto,
vamos analisar agora diversos fenômenos que levam a uma severa paralisação nos processos
de reprodução e acumulação de capital, podendo também desencadear as crises.
Primeiramente, devemos compreender que em ambos estes processos trata-se de repor
ou ampliar não a massa de valores de uso utilizados, mas sim o valor que foi aplicado com o
máximo de lucro possível, ou seja, o interesse real da produção capitalista é realizar o valor de
troca das mercadorias com aumento crescente da mais-valia.
Assim, caso o preço de venda das mercadorias caia muito abaixo dos preços que
custaram aos capitalistas, devido a inúmeros fatores possíveis, esta retração pode ocorrer, já
que ―mais-valia amontoada na forma de dinheiro (ouro ou bilhetes) só com prejuízo se
converteria em capital. Fica por isso ociosa, entesourada nos bancos ou na forma de moeda
escritural, o que em nada altera a natureza da situação‖. (MARX, 1980: 930)
A situação contrária também pode levar à paralisação do processo de reprodução e
acumulação, caso as condições de produção não estejam disponíveis em quantidade suficiente
para tais processos se efetivarem75. Assim, ―compra e venda se imobilizam reciprocamente, e
capital desocupado aparece na forma de dinheiro ocioso‖. (MARX, 1980: 930)
Por fim, esta paralisação também ocorre em um fenômeno que é típico nos momentos
iniciais de crise,

quando a produção do capital excedente se dá com muita rapidez e a reconversão


dele em capital produtivo aumenta tanto a procura de todos os componentes deste,
que a produção real não pode acompanhá-la, e daí subirem os preços de todas as
mercadorias que entram na formação do capital. Nesse caso, a taxa de juro cai
muito, por mais que se eleve o lucro, e essa queda da taxa de juro motiva os mais
audaciosos empreendimentos lucrativos. A estagnação da reprodução induz o
decréscimo do capital variável, a diminuição do salário e a queda da quantidade de

73
Já que há uma desproporção na forma em que o capital excedente se converte nos diversos elementos
necessários ao processo de reprodução.
74
Marx (1980) relembra aqui que tanto o capital fixo como o circulante também são mercadorias e, portanto,
admitir sua superprodução consequentemente é admitir a superprodução de mercadorias.
75
―Como no caso do encarecimento dos cereais, ou porque não se acumulou capital constante físico suficiente‖.
(MARX, 1980: 930)
71

trabalho empregado. Isso, por sua vez, reage sobre os preços e os faz cair de novo.
(MARX, 1980: 930-1)

A contradição existente entre a produção e o consumo e, mais especificamente, entre


consumidores e produtores é outra importante contradição inerente ao sistema capitalista que
vale salientar por sua influência nas crises.
Inicialmente, o modo de produção capitalista traz uma peculiaridade. Os trabalhadores
são os produtores de fato das mercadorias, sendo que consomem parte de seu conjunto –
aquelas destinadas ao consumo individual. Porém, ficam excluídos do consumo da parte
correspondente aos meios de produção, ainda que parte de seu valor seja pago por eles ao
consumirem os outros produtos. Isso revela que não há identidade entre compradores e
produtores neste modo de produção.76
Há que se distinguir ainda a diferença entre consumidor e comprador. Os
trabalhadores, enquanto colocam em prática o processo de trabalho, consomem as máquinas,
matérias-primas etc., mas, uma vez não sendo sua propriedade, mas do capitalista, não são
seus compradores. Apenas consomem-nas produtivamente, mas, para eles, ―não são valores
de uso, mercadorias, e sim condições objetivas de um processo do qual eles mesmos são as
condições subjetivas‖. (MARX, 1980: 953)
O que dá direito ao trabalhador para consumir não é o fato de que ele já produza o
equivalente ao seu consumo, mas sim o fato de que produz mais-valia77, uma vez que, caso ele
passe a produzir, por circunstâncias diversas, somente o equivalente ao seu consumo, sem a
cota de mais-valia, a produção diminuirá ou cessará, uma vez que o objetivo do processo
produtivo capitalista não está sendo atingido. Ou pode ocorrer ainda, diante deste quadro, que
seu salário seja reduzido e aí, caso a produção se mantenha nos mesmos níveis, o trabalhador
consumirá menos do que o equivalente do que produz.
O que Marx (1980) pretende apontar com isso é que a redução das relações de
produção e reprodução à mera relação entre produtores e consumidores oculta uma
contradição real do modo de produção capitalista. Além de haver aqueles que nada produzem,

76
Marx (1980: 953) afirma que ―para negar as crises, nada portanto mais absurdo que afirmar que consumidores
(compradores) e produtores (vendedores) são idênticos na produção capitalista. Estão por completo separados.
Só no decurso do processo de reprodução pode patentear-se essa identidade no tocante a um entre 3.000
produtores, isto é, no tocante ao capitalista. Ao revés. Também é falso afirmar que os consumidores são
produtores. O dono da terra (a renda fundiária) não produz, contudo consome. O mesmo se dá com todos os
intermediários financeiros‖.
77
―A maioria dos produtores, os trabalhadores, só podem consumir equivalente a seu produto enquanto
produzam mais que esse equivalente – o valor excedente ou o produto excedente. Têm de ser sempre produtores
excedentes, de produzir acima de suas necessidades, para poderem ser consumidores ou compradores dentro dos
limites delas‖. (MARX, 1980: 954-5; grifos originais)
72

mas consomem, a própria relação entre trabalho assalariado e capital encerra o fato de que,
conforme já vimos, os trabalhadores, que são os produtores de fato das mercadorias, não
consomem grande parte do montante destas, que é destinado ao consumo industrial e, como
não são possuidores de meios de produção e, por isso são obrigados a vender sua força de
trabalho, tais meios na forma de mercadoria não lhes oferece qualquer valor de uso. Servirá
sim aos capitalistas que, de posse destes meios, agregarão a força de trabalho comprada
também como mercadoria para fazer funcionar o processo produtivo sob seu comando.
Outra questão importante é que o limite da produção capitalista não se dá pelo
consumo, pelo mercado, mas somente pelo capital: enquanto houver meios para se produzir,
haverá produção na escala em que for possível.78 Com isso, o mercado acaba ficando
inundado de mercadorias que não serão realizadas, ou que só serão vendidas abaixo de seu
preço.
Podem ocorrer ainda crises parciais resultantes da produção desproporcionada, ou
seja, ramos que produzem em excesso, e, em consequência, ramos que produzem abaixo do
esperado, ainda mais face à concorrência intercapitalista. Para se produzir o suficiente para
atender a necessidade social por tal mercadoria, basta produzi-la de acordo com o tempo de
trabalho socialmente necessário para sua produção e, assim, ela poderá ser vendida por seu
valor. Se é acrescido mais que este tempo de trabalho, ainda que cada mercadoria isolada
possua somente o tempo de trabalho socialmente necessário, o conjunto delas conterá além
disso e, uma parte de seu valor de uso terá que ser eliminado.
No entanto, a crise decorrente da ―desproporção na repartição do trabalho social pelos
diversos ramos de produção―, leva à migração de capital de um ramo a outro, considerando a
alta e baixa no preço de mercado por conta desta desproporção, mas tanto o processo de
equilíbrio quanto de novo desequilíbrio desta proporção abre a possibilidade de eclodirem as
crises.
Todas estas possibilidades gerais de crise conformam sua forma abstrata, a qual, de
forma alguma deve ser confundida com a causa das crises, já que esta, na realidade, demanda
compreender o que leva tal possibilidade a se concretizar.

78
―Ao tratar do processo de produção vimos que todo o afã da produção capitalista visa apoderar-se da maior
quantidade possível de trabalho excedente, de materializar portanto a maior quantidade possível de tempo de
trabalho imediato com dado capital, seja por meio do prolongamento da jornada de trabalho ou da redução do
tempo de trabalho necessário mediante o desenvolvimento da produtividade do trabalho, com o emprego da
cooperação, da divisão do trabalho, da maquinaria etc.; em suma, produzir em grande escala, produzir em massa,
portanto. Assim, está na natureza da produção capitalista produzir sem atender aos limites do mercado‖.
(MARX, 1980: 956; grifos nossos)
73

Estas causas, no entanto, não partem de um único vetor, mas são produtos das
inúmeras contradições inerentes ao modo de produção capitalista. Destacaremos agora as
causas mais fundamentais para o surgimento das crises.
Primeiramente, a própria tendência à queda da taxa de lucro, como vimos, poderá
impelir parte dos capitalistas individuais a promoverem o desenvolvimento das forças
produtivas, se não quiserem sucumbir à concorrência. Este desenvolvimento redunda num
aumento de produtividade e consequente superprodução de mercadorias, que analisaremos
melhor em seguida.
Outro fator que favorece o desencadeamento das crises também é algo inerente à
economia mercantil do sistema capitalista – a falta de planificação de sua produção e
consequente desequilíbrio entre os ramos de produção. É a ―mão invisível do mercado‖ que
controla e que domina todos os âmbitos da produção e reprodução, ou seja, é um modo de
produção que não admitiria por sua própria estrutura, um planejamento, organização ou
controle sobre os processos produtivos quando se trata de um panorama mais geral79. Com
isso, cada capitalista controla a produção de uma quantidade de mercadorias visando seu
objetivo maior que é a acumulação, pensando no âmbito particular, sem levar em conta o que
é produzido nos outros ramos e setores. Isso, no plano coletivo divergirá dos resultados de
todas estas ações, podendo levar a efeitos drásticos que ocasionam as crises.
O seguinte fator que atua como uma causa de eclosão das crises capitalistas tem
relação com os dois anteriores. Se os capitalistas são impulsionados a sempre desenvolver
suas forças produtivas, aumentando assim a produtividade e, consequentemente, a produção
de mercadorias e se cada capitalista individual os faz sem seguir qualquer planificação social,
abarrotando o mercado de mercadorias, o fato de que a classe trabalhadora tem uma
capacidade de consumo bastante limitada (resultando, portanto, em subconsumo), ainda mais
num contexto em que a expulsão da força de trabalho do processo produtivo é uma realidade
cada vez mais voraz, grande parte dessas mercadorias não irá ser vendida, portanto, não terá
realizado seu valor-de-troca e não haverá lucro para o capitalista80. O próprio Marx (1985-6:
24) diz que

79
Diferentemente do que ocorre dentro de cada unidade produtiva, onde tudo é racionalizado e planificado
visando atingir a maior produtividade e os maiores lucros possíveis.
80
De acordo com Mandel (1990), essa questão não pode ser resolvida mecanicamente, como a partir da simples
elevação de salários, por exemplo, já que os capitalistas não visam apenas vender suas mercadorias, mas sim
fazê-lo com lucro sempre crescente. Além do que, se o aumento salarial fosse feito a níveis que ultrapassassem
certo limite, acarretaria em queda da taxa e da massa de lucros, obstruindo ainda a acumulação capitalista.
74

a razão última de todas as crises reais é sempre a pobreza e a restrição ao consumo


das massas em face do impulso da produção capitalista a desenvolver as forças
produtivas como se apenas a capacidade absoluta de consumo da sociedade
constituísse seu limite.

Podemos citar ainda a própria tendência à queda da taxa de lucros e sua dinâmica real,
a qual, para compreendermos sua relação à crise de superprodução, precisamos antes analisar
este fenômeno de forma mais profunda.
Primeiramente, é preciso clarificar que ―a crise econômica capitalista é sempre uma
crise de superprodução de mercadorias‖. (MANDEL, 1990: 211)

A superprodução tem por condição, de maneira específica, a lei geral da produção


do capital: produzir na medida das forças produtivas (isto é, da possibilidade de
desfrutar a maior quantidade possível de trabalho com dada quantidade de capital),
sem considerar os limites existentes do mercado ou as necessidades solvíveis, e
efetuar isso por meio da ampliação constante da reprodução e da acumulação,
fazendo em consequência a reconversão constante da renda (revenue) em capital,
enquanto, em contraposição, a massa dos produtores fica limitada e tem de ficar
limitada ao nível médio de necessidade de acordo com a natureza da produção
capitalista. (MARX, 1980: 969; grifos originais)

Ou seja, isso ocorre quando o sistema produtivo lança no mercado tantas mercadorias
que a procura passa a ser bem menor do que a oferta delas e este desequilíbrio faz com que a
taxa média de lucro não consiga ser atingida, uma vez que a mais-valia contida nas
mercadorias que não poderão ser vendidas, não se realizarão.81
Como já verificamos, o modo de produção capitalista apresenta como uma de suas
características intrínsecas o fato de que a produção, por parte dos capitais individuais, não é
planejada e nem realizada de acordo com qualquer tipo de correspondência a uma demanda,
mas sim de forma a produzir o máximo possível de mercadorias, a partir da menor quantidade
de trabalho, este acaba por se tornar trabalho excedente, com certa quantidade de capital
aplicado. Além disso, a concorrência intercapitalista é outro fator que contribui para esse
incremento excessivo da produção, já que cada capitalista tem que procurar sempre superar
seus concorrentes para não sucumbir a eles.
Entretanto, tanto a produção e reprodução quanto a acumulação em um setor de
produção pressupõe que o mesmo aconteça concomitantemente nos outros e, como uns
dependem dos outros, é necessário para a dinâmica do modo de produção capitalista, que a
escala de produção de capital constante seja sempre crescente, de forma que, suprindo sempre
81
Isso gera o que Mandel (1990: 212; grifos originais) denomina por ―movimento cumulativo da crise: redução
do emprego, das rendas, dos investimentos, da produção, das encomendas; nova espiral da redução do emprego,
das rendas dos investimentos, da produção etc., e isso nos dois departamentos fundamentais da produção, o de
bens de produção e o de bens de consumo‖.
75

esta parte do capital aos outros ramos que dela necessita para por em prática a acumulação
contínua, basta que adquiram mais trabalho. ―Assim, para haver acumulação parece ser
necessária superprodução constante em todos os ramos‖.82 (MARX, 1980: 921)
Por conseguinte, vemos que é o próprio movimento do capital que impulsiona esta
superprodução, uma vez que estarão reunidas já em excesso as condições para que ela
aconteça juntamente com o ímpeto capitalista de expansão do capital. Ao contrário do que se
possa imaginar, não é o consumo que incentiva esta produção excedente, já que a classe
trabalhadora, que constitui a maioria do conjunto da população possui um poder de compra
bastante limitado. Além do que, quanto mais o capitalismo se desenvolve, demanda menos
trabalho em termos relativos, apesar de poder demandar mais em termos absolutos.
Assim, o capital encontra no mercado as condições essenciais para colocar em
movimento a produção ampliada, a qual, ao mesmo tempo em que se dinamiza com o
aumento da população, é também um dos fenômenos que sinalizam as crises.
Veremos, agora, como a superprodução afeta os trabalhadores e o próprio processo de
reprodução. Suponhamos a produção em excesso de um artigo de consumo individual. Isso irá
abarrotar o mercado com tal mercadoria, ocasionando a redução ou paralisação de sua
produção. Sendo assim, os trabalhadores que produzem esta mercadoria serão afetados de
modo que não terão mais os meios que tinham antes para consumir, sendo obrigados, com
isso, a diminuir ou cessar o consumo dela ou de outras, como compensação. Como o artigo
que produziam foi produzido em excesso, eles não mais podem produzir e aí passam a
compor uma ―superpopulação transitória‖, uma ―superprodução de trabalhadores‖. (cf.
MARX, 1980: 957)
Assim, de acordo com Marx (1980: 963),

o que constitui a base da superprodução moderna é, de um lado, o desenvolvimento


incondicional das forças produtivas e, portanto, a produção em massa apoiada na
massa de produtores confinados no domínio dos meros meios de subsistência, e, do
outro, os limites impostos pelo lucro do capitalista.

Conforme vimos anteriormente, um ramo de produção é dependente de diversos outros


(muito devido à divisão do trabalho) e uma vez que há superprodução em um, outros serão

82
Vale lembrar aqui que ―a palavra superprodução em si mesma induz a erro. Sem dúvida não se pode em
absoluto falar de superprodução de produtos – no sentido de o volume dos produtos ser excessivo em relação às
necessidades deles – enquanto as necessidades mais prementes de grande segmento da sociedade não são
satisfeitas ou são satisfeitas apenas as mais imediatas. Ao contrário, nesse sentido temos de dizer que na base da
produção capitalista sempre se produz de menos. O limite da produção é o lucro do capitalista e de maneira
nenhuma a necessidade dos produtores. Mas superprodução de produtos e superprodução de mercadorias são
coisas de todo diferentes‖. (MARX, 1980: 962; grifos originais)
76

consequentemente afetados. Se um ramo que produz artigos de consumo passa por um


período de estancamento de sua produção, em virtude de esta ter sido anteriormente realizada
em excesso, os que dependem desta produção se verão também prejudicados, já que não mais
encontrarão disponíveis em níveis suficientes as condições para sua reprodução e ainda mais
para sua acumulação, o que se seguirá com os demais ramos que destes dependem também.
Em se tratando da superprodução de um ramo de artigos de consumo, a renda dos
outros ramos também será despendida neste, mas, frente a este cenário de crise, a diminuição
de sua renda provoca diminuição dos meios disponíveis para comprar não só a referida
mercadoria, mas uma série de outras, cujos ramos também se verão afetados. Assim, ainda
que estes não tenham de fato produzido em excesso, como os meios para comprar seus
produtos foram reduzidos, resultará em uma superprodução relativa, pois suas mercadorias
também encontrarão dificuldades em ser realizadas.
Com isso, podemos ver como a superprodução em um ou em poucos setores
produtivos reflete em superprodução relativa de muitos outros, afetando o mercado em geral.
―De um lado, superabundância de todas as condições de reprodução e de todas as espécies de
mercadorias encalhadas no mercado. Do outro, capitalistas insolventes e massas de
trabalhadores desprovidos de tudo, na indigência‖. (MARX, 1980: 958)
Pensemos, agora, na relação entre a produção e o mercado. Uma vez que ambos
possuem uma autonomia recíproca, este se expande mais vagarosamente (dentre outros
fatores por suas próprias limitações geográficas) do que a produção, a qual está em contínua
ampliação83, já que, ao final do ciclo de reprodução do capital (que se dá em escala ampliada),
o mercado fica atulhado, não dando conta de absorver toda a produção que cresce em ritmo
constante. Caso isso não ocorresse, também não haveria superprodução, o que, voltando nossa
análise à própria realidade, verificamos ser falso, tendo em vista as crises cíclicas decorrentes
deste fenômeno.
Verificamos, portanto, como o modo de produção capitalista possui um ―limite para o
livre desenvolvimento das forças produtivas, limite que vem à tona nas crises e em outras
manifestações como a superprodução – o fenômeno fundamental das crises‖. (MARX, 1980:
962)

83
―Amplia-se todo ano por duas razões: primeiro porque o capital empregado na produção está sempre
aumentando; segundo porque se torna ele cada vez mais produtivo: durante a reprodução e a acumulação
somam-se de contínuo pequenos melhoramentos, que acabam mudando toda a escala de produção. Acumulam-se
os melhoramentos, há um desenvolvimento cumulativo das forças produtivas‖. (MARX, 1980: 958)
77

Assim, agora que já compreendemos melhor o fenômeno da superprodução, tão


central às crises capitalistas, vejamos mais afundo como se dá o movimento de tais crises, sua
dinâmica própria.
Na fase de crescimento capitalista, predomina um aumento da composição orgânica do
capital, ou seja, com o desenvolvimento e inovações tecnológicas, tende-se a substituir cada
vez mais trabalho vivo por trabalho morto. Por um certo tempo, isso permite manter a taxa de
lucro, já que ocorre juntamente de uma ―grande elevação da taxa de mais-valia, de uma baixa
relativa dos preços de matérias-primas e / ou de um investimento crescente de capitais nos
setores ou nos países cuja composição orgânica do capital é mais débil‖. (MANDEL, 1990:
214)
Entretanto, toda esta conjuntura favorável ao crescimento capitalista é dissolvida por
sua própria dinâmica. Conforme o período de expansão provoca uma diminuição no exército
industrial de reserva, a taxa de mais-valia tende a não se elevar, já que, em caso se trate de
uma classe trabalhadora bem organizada, seu poder de barganha pode aumentar frente ao
capital.
Ademais, após um certo período, os preços das matérias-primas que estão
relativamente baixos já não mais permanecem assim, tendo em vista as intempéries naturais a
que possam estar submetidos, dificultando em certo momento as condições para sua
produção.
No decorrer desta fase de expansão, ocorre também que ―mais raros se tornam os
setores (ou países) onde os capitais produtivos podem encontrar condições de composição
orgânica do capital estruturalmente mais baixas do que nos setores essenciais dos países
industrializados dirigentes‖. (MANDEL, 1990: 214)
Com a tendência à queda da taxa de lucro, a concorrência intercapitalista fica cada vez
mais intensa, sendo que, aqueles capitalistas que possuem maior poder dentre os demais, ou
seja, os que podem investir mais em tecnologia e que dispõem de maior capital acumulado,
farão de tudo para manter ao máximo seus superlucros, os quais, como veremos, em certo
momento, sucumbirão à imposição da lei do valor.
Porém, a concretização desta tendência se dá paulatinamente. Num primeiro sinal,
ocorre que certa parte do capital que foi acumulado já não poderá mais ser investido
produtivamente de forma que leve aos ganhos lucrativos que se poderia esperar anteriormente
e esses investimentos acabam sendo deslocados sobretudo para setores financeiros,
especulativos.
78

Mas, vale ressaltar que isso não implica numa diminuição nem da massa de
investimentos e nem do emprego e da massa salarial. O que ocorre, na verdade, é que ―os
investimentos, o emprego e a produtividade (produção de mais-valia relativa) não crescem
mais em proporção suficiente para sustentar por si próprios a expansão‖. Assim, ―a queda da
taxa média de lucros significa simplesmente que, com relação ao conjunto do capital social, a
mais-valia total produzida não foi mais suficiente para manter a antiga taxa média de lucros‖.
(MANDEL, 1990: 214-5; grifos originais)
Ocorre que a continuação do aparente crescimento econômico acaba por camuflar este
movimento, que já indica o início dos fatores que levarão à conjuntura de crise, ainda mais
pela intercorrência de outros dois fenômenos importantes.
O primeiro deles é que, em um cenário onde ainda há crescimento econômico, bem
como um grande aumento das atividades especulativas, a queda da taxa média de lucro faz
com que os capitalistas contraiam cada vez mais dívidas, já que a busca pelo crédito é um
recurso importante que encontram para não falir e os bancos favorecem este mecanismo, já
que também lhes interessa do ponto de vista financeiro. ―Assim, se passa imperceptivelmente
do boom ao superaquecimento, que encobre ainda mais, no imediato, as forças que preparam
inexoravelmente o crash‖. (MANDEL, 1990: 215)
O segundo fenômeno é que, com o aumento da composição orgânica do capital e da
taxa de mais-valia, típicos na fase de expansão capitalista, ocorre inevitavelmente um
aumento considerável da massa de mercadorias, que são produzidas em excesso. A própria
dinâmica deste modo de produção faz com que a queda do valor das mercadorias tidas como
bens de consumo aconteça concomitantemente com um aumento de sua massa; além disso, o
incremento da produção de bens de produção levará, impreterivelmente ao aumento da
produção de bens de consumo. Porém, os salários não crescem na mesma medida desse
aumento produtivo, sobretudo enquanto a taxa de mais-valia continua crescente.
A quantidade de capital não-aplicado vai aumentando, fazendo com que a massa de
mais-valia não consiga acompanhar a acumulação de capital e cada vez mais a taxa de lucros
fica abaixo das expectativas, gerando grande vulnerabilidade e prejuízos aos capitalistas,
podendo até fazê-los falir. Vemos, portanto, que, neste momento, ―‗superabundância‘ de
capitais e ‗escassez‘ de lucros coexistem, determinando-se uma à outra‖. (MANDEL, 1990:
216)
É, no entanto, somente quando a produção passa a ser restringida em todos os
diferentes setores por conta da brusca queda das vendas das mercadorias e dos seus preços
que a tendência à queda da taxa de lucro se materializa para o conjunto geral dos capitalistas e
79

acentua-se gravemente com a explosão da crise de superprodução. O desemprego aumenta e a


massa de mais-valia cai, apesar da crescente taxa de exploração da classe trabalhadora, até o
limite que se encontrava no fim da fase de crescimento e superaquecimento.

Pode-se dizer, assim, esquematicamente, que o ―superinvestimento‖ provocou uma


―superacumulação‖, que gerou por sua vez um ―subinvestimento‖ e uma
desvalorização massiva de capitais. Somente quando essa desvalorização se torna
suficientemente ampla e quando o desemprego assim como as medidas de
racionalização múltiplas ―relançam‖ vigorosamente a taxa de exploração da classe
operária, é que a queda da taxa de lucros será estancada e que um novo ciclo de
acumulação de capitais poderá deslanchar. (MANDEL, 1990: 216)

Durante as crises, podemos perceber, que há, então, uma massiva destruição de
capital, da qual Marx (1980) faz uma distinção. Primeiro, ocorre destruição de capital real
quando, em decorrência da paralisação do processo de produção (e, portanto, da reprodução e
acumulação), os elementos necessários para sua efetivação não estão realizando sua função84,
já que sua atividade quando não é estagnada por completo, é extremamente contraída e, com
isso, seus valores de uso e de troca se perdem.
No entanto, nas crises também ocorre a destruição de capital com relação à
depreciação dos valores, já que nesta fase não será possível a reprodução de capital ao menos
no mesmo nível e muito menos em um mais elevado. Aqui não se trata da destruição de
valores de uso, como no caso acima, quando máquinas ficam ociosas ou espantosa quantidade
de mercadorias invendáveis são fisicamente destruídas, mas como a queda dos preços das
mercadorias é bastante brusca, ―os valores operantes como capital ficam impossibilitados de
se renovar como capital nas mesmas mãos― e, assim ―grande parte [...] do valor de troca do
capital existente é destruída de uma vez para sempre, embora essa própria destruição, por não
atingir o valor de uso, incentive muito a nova reprodução‖. (MARX, 1980: 932; grifos
originais)
Dessa forma, enquanto muitos capitalistas sofrem os efeitos de não poderem contar
com o retorno do capital esperado, se afundando em dívidas ou não conseguindo reiniciar seu
processo de produção em mesma escala, este mesmo fenômeno de destruição do valor de
troca do capital pode significar ganhos a outros. Aquele que compra a mercadoria com este
preço bastante reduzido pode até mesmo obter lucro e incrementar seu empreendimento uma

84
―Não é capital maquinaria que não se utiliza. O trabalho que não se explora equivale a produção perdida.
Matérias-primas que jazem ociosas não são capital. Edifícios (e também nova maquinaria construída) que para
nada servem ou permanecem inacabados, mercadorias que apodrecem em depósito, tudo isso é destruição de
capital‖. (MARX, 1980: 931)
80

vez retomada a fase de crescimento e os banqueiros acabam lucrando bastante através dos
capitalistas da indústria, por exemplo. Assim,

a queda do capital meramente fictício, dos títulos do governo, das ações etc. – desde
que não leve o Estado e as sociedades anônimas à bancarrota, e não gere, com o
abalo do crédito dos capitalistas industriais que detêm aqueles papeis, o estorvo
geral da reprodução – resulta em simples transferência de riqueza de uma mão para
outra e terá em geral influência favorável na reprodução, se consideramos que os
novos-ricos que colhem na baixa tais ações ou papeis, em regra empreendem mais
que os antigos detentores. (MARX, 1980: 932)

Podemos inferir, por conseguinte, que as crises afetam de forma distinta as classes
sociais antagônicas – burguesia e trabalhadores, sendo que é sobre estes que recaem as
maiores penúrias e os maiores encargos. Mas a maioria dos capitalistas também não sai ilesa.
Os médios e pequenos capitalistas logo sucumbem a uma concorrência com a qual já não
podem competir e, muitas vezes, em meio à quebra de seus negócios, acabam tendo que se
tornar parte da classe trabalhadora, graças à mobilidade social garantida pelo sistema
dominante.85 Já os grandes capitalistas, quando não são também afetados de forma negativa
pelos efeitos da crise, conseguem tirar dela benefícios próprios, que estimularão os
mecanismos de concentração e centralização de capital.
Compreendemos, assim, que a crise de superprodução tem caráter geral, não sendo,
portanto, explicável pelas diferenças de investimento de capital nos diversos setores
produtivos. A crise só irá estourar a partir do momento em que a mais-valia global não mais
conseguir garantir a taxa de lucros que o capital global espera para poder se valorizar, ou seja,
não se trata simplesmente da ocorrência deste fenômeno em setores isolados.
Devemos entender ainda que o que impulsiona este movimento é um acontecimento
detonador86 que não é, apesar disso, a causa da crise, mas apenas um fato que irá desencadear
este processo descrito acima e que já conta com uma conjuntura em que inúmeras outras pré-
condições já estão dadas, não sendo, portanto, um fenômeno que o detonador por si só seria
capaz de ocasionar.87

85
Obviamente, mais neste sentido (capitalistas que acabam se tornando parte da classe trabalhadora) do que no
inverso (trabalhadores que se tornam capitalistas).
86
O acontecimento detonador ―pode ser um escândalo financeiro, um brusco pânico bancário, a bancarrota de
uma grande empresa, como pode ser simplesmente a mudança da conjuntura (venda insuficiente generalizada)
em um setor-chave do mercado mundial. Tal detonador pode ser ainda uma brusca falta de determinada matéria
prima (ou energética) essencial: tal foi especialmente o caso da crise de 1866, provocada pela carência de
algodão em consequência da Guerra de Secessão nos Estados Unidos‖. (MANDEL, 1990: 212)
87
―Assim, a falência retumbante de uma grande casa comercial ou de um grande banco não estrangulará, em
geral, uma conjuntura no início de uma fase de boom, de expansão acelerada. Terá tal efeito somente ao final
dessa fase, porque todos os elementos da crise próxima já estão reunidos e esperam um elemento catalisador para
se manifestar‖. (MANDEL, 1990: 212)
81

Vale salientar que estas crises de superprodução empenham uma importante função
objetiva dentro do modo de produção capitalista – ―a de constituir o mecanismo através do
qual a lei do valor se impõe, apesar da concorrência (ou da ação dos monopólios!)
capitalista‖. (MANDEL, 1990: 212; grifos originais)
Vejamos como este mecanismo funciona. Ao início de cada ciclo industrial, os
capitalistas são impulsionados sempre a desenvolver as forças produtivas, para aumentar a
produtividade, a partir da intensificação da racionalização e da produção e do investimento
em inovações tecnológicas88. Com isso, o tempo de trabalho necessário à produção de suas
mercadorias diminui, fazendo, portanto, cair também seu valor. No entanto, muitos
capitalistas continuam vendendo-as por um preço mais alto, em torno daquele que os
capitalistas que ainda não puderam lançar mão das novas tecnologias, produzindo num tempo
de trabalho acima do socialmente necessário vendem suas mercadorias, conseguindo por um
certo período garantir para si lucros exorbitantes.
Isso cessa a partir do momento em que a superprodução de mercadorias não encontra
no mercado formas de realizar a mais-valia, quando a oferta supera a demanda e muitas
mercadorias não conseguirão ser vendidas. É dessa forma que os novos valores destas
mercadorias são impelidos a se estabelecer sobre os antigos, ou seja, é aí que a lei do valor se
impõe, retomando, em certa medida, o equilíbrio entre o tempo de trabalho socialmente
necessário e o realmente empregado na produção das mercadorias, o que ocasionará sérias
consequências para muitos capitalistas, como uma maciça perda de lucros e a desvalorização
de capitais.

Da mesma forma, pode-se constatar que a retomada e o início de uma conjuntura de


crescimento são as fases precisas do ciclo nas quais se produz, de maneira bastante
concentrada no tempo, a renovação massiva do capital fixo, que não se estende de
maneira relativamente proporcional ao número de anos de sua duração ―moral―. O
movimento cíclico se acha evidentemente estimulado por um ―efeito de eco―, que
tende a se repetir. Mas, como a periodicidade dessa renovação não é estritamente
predeterminada – uma vez que é uma função das condições de rentabilidade, das
previsões de expansão do mercado, do ritmo de inovação tecnológica a mais longo
prazo –, esse movimento cíclico antes resulta das flutuações conjunturais do que
lhes dá origem, ainda que incontestavelmente as amplifique e contribua para
reproduzi-las. (MANDEL, 1990: 213)

Analisando, portanto, o modo de produção capitalista em sua totalidade, sob a


perspectiva dos ciclos econômicos aos quais nos referimos acima, vemos que as crises
inerentes a ele lhes são também funcionais, pois, ao mesmo tempo em que escancaram suas

88
―Isto é particularmente verdadeiro nos períodos de grandes revoluções tecnológicas subjacentes às fases de
expansão capitalista acelerada, como a fase 1940/48 – fim dos anos 60‖. (MANDEL, 1990: 212-3)
82

mais gritantes contradições, fornecem os meios para resolvê-las e reavivar este sistema num
patamar mais complexo, garantindo sua sobrevivência, a despeito das mais dramáticas
resultantes que possa vir a produzir.
Conforme diz Alvater (1987: 87; grifos originais)

durante a crise, o capitalismo assume precisamente a forma que lhe permite produzir
sempre e novamente as condições que permitem sua existência, não obstante os
limites de princípio inscritos nesse modo de produção: a crise como fase de
destruição (desvalorização, aniquilamento) é, em virtude de seu poder
reestruturador, condição para o desenvolvimento do capitalismo.

Após termos analisado as crises clássicas de superprodução, veremos no próximo


capítulo as particularidades que elas assumiram nas crises do capitalismo contemporâneo.
83

3 A crise estrutural do capitalismo

Conforme verificamos no capítulo anterior, as crises fazem parte da própria dinâmica


capitalista. Elas são a forma que o capital encontra para tentar controlar suas contradições
internas no momento em que se tornam mais difíceis de serem contidas, frente à reprodução
ampliada, devendo acionar mecanismos que garantam sua continuidade. Assim, as crises são,
na realidade, funcionais à lógica do capital, ao contrário do que possam afirmar seus
ideólogos, sendo inconcebível, portanto, a pretensa busca ou o alcance de uma solução
perene.
Vimos também que o capitalismo se utiliza de algumas contratendências para
conseguir superar as crises conjunturais e encontrar novamente um período de expansão, até
que o ciclo esteja completo com o irromper de outra crise. E é a própria pressão imposta por
elas que permite tentar aprimorar os métodos utilizados pelo capital para gerenciá-las.
Assim, mesmo sendo gerenciados os limites impostos por suas próprias contradições,
os quais variam no decorrer do movimento dialético ao qual estão submetidos em cada
particularidade histórica, eles continuam sendo intransponíveis estruturalmente, já que são, na
realidade, os limites da própria reprodução ampliada. Além disso, eles configuram um
estopim extremamente ameaçador para a ordem capitalista, desafiando não só os seus agentes,
mas também a classe trabalhadora a disputar uma resposta a estes momentos decisivos.
Conforme Marx (apud MÉSZÁROS 2011b: 698; grifos originais):

não se deve depreender do fato de o capital definir cada um desses limites como
uma barreira e em seguida ultrapassá-lo idealmente que ele o tenha realmente
superado e, já que cada uma dessas barreiras contradiz o caráter do capital, sua
produção se move em contradições que são constantemente superadas mas que são
constantemente postas. Ainda mais. A universalidade pela qual ele luta
irresistivelmente encontra barreiras na própria natureza que, em certo nível do seu
desenvolvimento, farão com que se reconheça ser ele próprio a maior das barreiras a
esta tendência, e por isso o impulsionará para sua própria suspensão.

Obviamente, como demonstrou na administração das crises anteriores, o capital lança


mão de mecanismos relativamente eficientes e inovadores para dar conta das particularidades
que enfrenta em cada uma delas. No contexto do pós-guerra, apesar de terem funcionado
satisfatoriamente para os propósitos do capital, simplesmente ao deslocar suas contradições,
dispersando-as, tornando seu potencial explosivo menos ameaçador, tiveram por trás todo um
aparato ideológico, que teve por função mistificar este processo, difundindo a ideia de que
havia sido encontrada uma solução definitiva e as crises já faziam parte do passado.
84

Uma novidade trazida pelo novo contexto do pós-guerra nas sociedades capitalistas
avançadas fica evidenciada na alteração dos padrões de consumo tradicionais por um foco
intensificado no complexo militar-industrial, que passa a assumir papel de destaque no
sistema sociometabólico do capital89. Esse novo panorama é então

caracterizado, por um lado, pela subutilização institucionalizada tanto de forças


produtivas como de produtos e, por outro, pela crescente, mais constante do que
brusca, dissipação ou destruição dos resultados da superprodução, por meio da
redefinição prática da relação oferta/demanda no próprio processo produtivo
convenientemente reestruturado. É precisamente esta importante mudança na relação
entre produção e consumo que habilita o capital a se livrar, por enquanto, dos
colapsos espetaculares do passado, como a dramática queda de Wall Street em 1929.
Por esta via, no entanto, as crises do capital não são radicalmente superadas em
nenhum sentido, mas meramente ―estendidas―, tanto no sentido temporal como em
sua localização estrutural na ordenação geral. (MÉSZÁROS, 2011b: 696-7; grifos
originais)

Ou seja, os mecanismos que o capital encontra atualmente visando evitar ou amenizar


as crises não têm sido mais tão eficazes em tentar conter suas contradições inerentes, já que
nada mais fazem do que adiá-las ou deslocá-las, demonstrando a gravidade desta crise de
caráter estrutural na qual está imerso. Dessa forma, nem mesmo os mecanismos ideológicos
mais convincentes são capazes de esconder este patente contexto crítico, tendo que criar
novos pretextos para tentar justificá-lo.90
Assim, desde o fim da década de 1960, analisando a crise que eclodia das
particularidades das contradições capitalistas da época, Mészáros (2011b) apontava alguns
fenômenos indicativos destas mudanças que delineavam novos contornos no sistema
capitalista e no sistema global do capital91, tais como a queda da taxa de lucro, as rebeliões

89
―O sistema sociometabólico do capital tem seu núcleo central formado pelo tripé capital, trabalho assalariado
e Estado, três dimensões fundamentais e diretamente inter-relacionadas, o que impossibilita a superação do
capital sem a eliminação do conjunto dos três elementos que compreendem esse sistema.‖ (ANTUNES, 2011:
11; grifos originais)
90
Na crise irrompida na década de 1970, seu ―inesperado‖ retorno (uma vez dado como definitivamente
superado) foi imputado ―a fatores puramente tecnológicos, despejando suas enfadonhas apologias sobre a
‗segunda revolução industrial‘, ‗o colapso do trabalho‘, a ‗revolução da informação‘ e os ‗descontentamentos
culturais da sociedade pós-industrial‘.‖ (MÉSZÁROS, 2011b: 796; grifo original)
91
―É decisivo aqui ressaltar que, para Mészáros, capital e capitalismo são fenômenos distintos. O sistema de
capital, segundo o autor, antecede o capitalismo e tem vigência também nas sociedades pós-capitalistas. O
capitalismo é uma das formas possíveis da realização do capital, uma de suas variantes históricas, presente na
fase caracterizada pela generalização da subsunção real do trabalho ao capital, que Marx denominava como
capitalismo pleno. Assim como existia capital antes da generalização do capitalismo (de que são exemplos o
capital mercantil, o capital usurário etc.), as formas recentes de sociometabolismo permitem constatar a
continuidade do capital mesmo após o capitalismo, por meio da constituição daquilo que Mészáros denomina
como ‗sistema pós-capitalista‘, de que foram exemplos a URSS e demais países do Leste Europeu. Esses países
pós-capitalistas não conseguiram romper com o sistema de sociometabolismo do capital e a identificação
conceitual entre capital e capitalismo fez com que, segundo o autor, todas as experiências revolucionárias
vivenciadas no século XX se mostrassem incapacitadas para superar o sistema de sociometabolismo do capital (o
85

irrompidas no ano de 196892 e o processo de reestruturação produtiva do capital, ao qual


Harvey (2010) denominou por acumulação flexível93.
Mészáros (2011b: 697; grifos originais) já observava um padrão mais linear no
movimento das crises. Isso porque os períodos que não apresentavam uma brusca perturbação
ou flutuações exageradas não apontavam mais para um desenvolvimento de fato, mas para
―um continuum depressivo, que exibe as características de uma crise cumulativa, endêmica,
mais ou menos permanente e crônica, com a perspectiva última de uma crise estrutural cada
vez mais profunda e acentuada‖.
Diante disso, vemos que, apesar deste seu caráter intrínseco ao capital, a crise atual
(que reverbera desde a década de 1970) traz algumas particularidades históricas que a
distingue das demais, as quais Mészáros (2011b: 795-6) aponta quatro das principais, a saber:

(1) seu caráter é universal, em lugar de restrito a uma esfera particular (por
exemplo, financeira ou comercial, ou afetando este ou aquele ramo particular de
produção, aplicando-se a este e não àquele tipo de trabalho, com sua gama específica
de habilidades e graus de produtividade etc.);
(2) seu alcance é verdadeiramente global (no sentido mais literal e ameaçador do
termo), em lugar de limitado a um conjunto particular de países (como foram todas
as principais crises no passado);
(3) sua escala de tempo é extensa, contínua, se preferir, permanente, em lugar de
limitada e cíclica, como foram todas as crises anteriores do capital;
(4) em contraste com as erupções e os colapsos mais espetaculares e dramáticos do
passado, seu modo de se desdobrar poderia ser chamado de rastejante, desde que
acrescentemos a ressalva de que nem sequer as convulsões mais veementes ou
violentas poderiam ser excluídas no que se refere ao futuro: a saber, quando a
complexa maquinaria agora ativamente empenhada na ―administração da crise‖ e no
―deslocamento‖ mais ou menos temporário das crescentes contradições perder sua
energia.

complexo caracterizado pela divisão hierárquica do trabalho, que subordina suas funções vitais ao capital)‖.
(ANTUNES, 2011: 10; grifos originais)
92
Tais rebeliões irromperam fundamentalmente ―na França (e, aqui e ali, mais ou menos ao mesmo tempo, em
situações sociais similares), demonstrando clamorosamente no coração do capitalismo ‗avançado‘ a doença da
sociedade, a fragilidade e o vazio de suas ruidosamente anunciadas realizações, e a impressionante alienação de
um vasto número de pessoas do ‗sistema‘, denunciada com palavras de amargo desprezo‖. (MÉSZÁROS, 2011b:
1070)
93
―A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo.
Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de
consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de
fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação
comercial, tecnológica e organizacional [...], envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento
desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no
emprego no chamado ‗setor de serviços‘, bem como conjuntos industriais completamente novos em regiões até
então subdesenvolvidas [...]. Ela também envolve um novo movimento que chamarei de ‗compressão do espaço-
tempo‘ no mundo capitalista – os horizontes temporais da tomada de decisões privada e pública se estreitaram,
enquanto a comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão
imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e variegado‖. (HARVEY, 2010:140; grifos originais)
86

Para compreendermos melhor essa crise estrutural, analisemos mais atentamente estas
suas particularidades, que permitem pensá-la dessa maneira.
Quando uma crise não é estrutural, ela tem a capacidade de perturbar apenas parte do
complexo ao qual está atrelada, não ameaçando, portanto, o sistema social, mesmo que em
níveis bastante acentuados, já que esta parcialidade permite ao capital operar através de
mecanismos de deslocamento das suas contradições, através de meras reformas dentro da
ordem, por mais significativas que possam parecer. Isso significa que

contradições parciais e ―disfunções‖, ainda que severas em si mesmas, podem ser


deslocadas e tornadas difusas – dentro dos limites últimos ou estruturais do sistema
– e neutralizadas, assimiladas, anuladas pelas forças ou tendências contrárias, que
podem até mesmo ser transformadas em força que ativamente sustenta o sistema em
questão. Daí o problema da acomodação reformista. (MÉSZÁROS, 2011b: 797;
grifos originais)

A crise estrutural, por sua vez, se caracteriza por atingir ―a totalidade de um complexo
social em todas as relações com suas partes constituintes ou subcomplexos, como também a
outros complexos aos quais é articulada‖, não só colocando em xeque a própria estrutura
social na qual está inserida, mas consequentemente demandando ―sua transcendência e sua
substituição por algum complexo alternativo‖. (MÉSZÁROS, 2011b: 796-7; grifo original)
Esta questão também pode ser pensada com relação aos limites com os quais este
complexo social possa vir a se deparar em seu decurso. No caso de uma crise estrutural, tais
limites não são aqueles de caráter imediato, os quais certas mudanças internas no sistema
podem transpassar, mas sim os limites últimos encontrados no nível global de tal complexo
para os quais não se encontram meios para transpô-los, não importa o quanto se tente fazer de
ajustes internos.
Tais mecanismos, que tentam a todo custo retomar os níveis de acumulação, já passam
a não representar alternativas suficientes e, neste contexto de crise estrutural, conduzem, de
qualquer forma, a ―um processo contraditório de ajustes recíprocos (uma espécie de ‗guerra
de atrito‘), que só pode ser concluído após um longo e doloroso processo de reestruturação
radical inevitavelmente ligado às suas próprias contradições‖. (MÉSZÁROS, 2011b: 797;
grifos originais)
Em seu processo histórico, o capitalismo se desenvolve e se expande
fundamentalmente através do complexo grau de interações entre suas três dimensões
principais – a produção, o consumo e a circulação/distribuição/realização – cumprindo o
objetivo do capital, que é a reprodução ampliada. É justamente a relação dinâmica entre estas
87

dimensões que permite, num primeiro momento, que o capital vá não só superando os limites
imediatos que encontra no meio deste processo, através do deslocamento de suas
contradições94, mas faz com que este mecanismo impulsione a autoexpansão do capital,
fazendo parecer que ele é detentor de um poder absoluto, inabalável e autossuficiente.
Enquanto estes mecanismos continuarem atuando com êxito, as crises que se possam
enfrentar ao longo deste período, não importa qual seu nível de gravidade, de frequência ou
duração, não terão de forma alguma um caráter estrutural, já que não representam uma
ameaça à estrutura da ordem social.95
Uma crise estrutural de fato encontra sua gênese naquelas dimensões fundamentais da
sociedade capitalista. Porém, ―as disfunções de cada uma, consideradas separadamente,
devem ser distinguidas da crise fundamental do todo, que consiste no bloqueio sistemático das
partes constituintes vitais‖, já que uma percepção errada com relação a isso pode levar a que
um entrave transitório resultante de um obstáculo em uma dessas vertentes, possa ter a
aparência de uma crise estrutural, até que novamente se encontrem os artifícios que levam à
sua ultrapassagem.96 (MÉSZÁROS, 2011b: 798; grifos originais)
Vale ressaltar também que a concepção de Mészáros sobre a crise estrutural de forma
alguma remete a condições absolutas, de perspectiva fatalista. O próprio autor trata de
desfazer este possível equívoco, esclarecendo algumas questões importantes a este respeito.
A crise estrutural que se instaurou desde a década de 1970 indica que as dimensões
fundamentais do capital, que já representam em si uma unidade contraditória, vêm
apresentando distúrbios que passam a impedir, de certa forma, que suas funções tanto de
autoexpansão capitalista como de solvência das suas contradições internas fiquem
prejudicadas.
Até o ponto em que estas dimensões têm a possibilidade de continuar fortalecendo
umas às outras, promovendo a reprodução ampliada do capital em seu conjunto, as crises
enfrentadas nada tem de conjunturais e só passam a apresentar esta característica quando seus
interesses, tomados separadamente, se tornam inconciliáveis.

94
Podemos observar como isso funciona quando, por exemplo, encontra-se um limite imediato na produção que
pode ser ultrapassado aumentando-se o consumo. Fica clara aí a interconexão entre as dimensões fundamentais
do sistema capitalista e como ela funciona na superação das barreiras e na propulsão da expansão do capital.
95
Segundo Mézsáros (2011b: 798), este foi o caso, por exemplo, da ―crise de 1929-33 não foi de modo algum
uma crise estrutural do capital como formação global. Pelo contrário, forneceu estímulo e pressão necessários
para o realinhamento de suas várias forças constituintes, conforme as relações de poder objetivamente alteradas,
muito contribuindo, desse modo, para o desenvolvimento das tremendas potencialidades do capital inerentes à
sua ‗totalidade intensiva‘.‖
96
―Neste contexto vale lembrar a avaliação fatalmente otimista de Stalin da crise do final da década de 1920, de
consequências devastadoras para as suas políticas tanto no plano interno como no plano internacional‖.
(MÉSZÁROS, 2011b: 799)
88

Conforme já vimos, o sistema capitalista, na realidade, não tem como resolver de fato
suas contradições inerentes e também nem poderia, já que é através delas que, enquanto suas
estratégias para administrá-las97 forem bem sucedidas, ele consegue prosperar.
Quando tal mecanismo não tem mais efeito é que ―as perturbações e ‗disfunções‘
antagônicas, ao invés de serem absorvidas/dissipadas/desconcentradas e desarmadas, tendem
a se tornar cumulativas e, portanto, estruturais‖ e potencialmente ameaçadoras para o futuro
da ordem global, o que talvez seja onde reside a diferença específica da crise estrutural para as
crises cíclicas do capitalismo. (MÉSZÁROS, 2011b: 799-800, grifos originais)
Uma consideração importante a fazer é que a amplitude da crise estrutural ultrapassa
os limites do âmbito socioeconômico, atingindo claramente as instituições políticas, já que

nas condições socioeconômicas crescentemente instáveis, são necessárias novas


―garantias políticas‖, muito mais poderosas, garantias que não podem ser oferecidas
pelo Estado capitalista tal como se apresenta hoje. Assim, o desaparecimento
ignominioso do Estado do bem-estar social expressa claramente a aceitação do fato
de que a crise estrutural de todas as instituições políticas já vem fermentando sob a
crosta da ―política de consenso‖ há bem mais de duas décadas. O que precisa ser
acentuado aqui é que as contradições subjacentes de modo algum se dissipam na
crise das instituições políticas; ao contrário, afetam toda a sociedade de um modo
nunca antes experimentado. Realmente, a crise estrutural do capital se revela como
uma verdadeira crise de dominação em geral. (MÉSZÁROS, 2011b: 800; grifos
originais)

Isso fica evidente ao percebermos que todos os âmbitos de sua totalidade, todas as
relações sociais e campos de atividade sofrem o impacto da crise estrutural, enquanto parte da
realidade do modo de produção capitalista.
Focando na estrutura social que envolve o processo de acumulação do capital,
podemos pensar como um sistema baseado na exploração dos trabalhadores pode se sustentar
sem eclodir alguma revolta que colocasse de fato em risco a continuidade da ordem do
capital. Isso ocorre através do estabelecimento de um consenso, que fica como função da
máquina do Estado, o qual, enquanto comitê executivo da burguesia, como já disse Marx98,
visa fundamentalmente garantir a reprodução do capital. Assim, ele promove a cisão entre as
políticas econômicas, que promovem a acumulação capitalista, e as políticas sociais, que
objetivam promover a reprodução da classe trabalhadora enquanto tal. Dessa forma, neste
jogo de interesses antagônicos, típico de uma sociedade de classes, a preservação do consenso

97
―Seu modo normal de lidar com contradições é intensificá-las, transferi-las para um nível mais elevado,
deslocá-las para um plano diferente, suprimi-las quando possível, e quando elas não puderem mais ser
suprimidas exportá-las para uma esfera ou um país diferente‖. (MÉSZÁROS, 2011b: 800; grifo original)
98
―O poder político do Estado moderno nada mais é do que um comitê para administrar os negócios comuns de
toda a classe burguesa‖. (MARX; ENGELS, 2006:47)
89

se faz à custa de limitar o alcance dos lucros em patamares mais altos daqueles que podem ser
obtidos.
De acordo com Alvater (1987: 92) este consenso é possível de ser empreendido a
partir de quatro motivações principais:

em primeiro lugar, isto é possível em virtude da estrutura mistificada da própria


relação de exploração, que absolutamente não aparece como tal (ideia do justo
salário, fetiche do dinheiro). Em segundo lugar, surgem ideologias que justificam a
relação de exploração ou que estruturam a percepção das relações sociais no sentido
de uma resoluta afirmação do existente. Em terceiro lugar, oculta-se a relação de
exploração através de uma multiplicidade de compromissos institucionalizados ou
não, a ponto de parecer uma relação contratual paritária. Em quarto lugar, o processo
de acumulação recebe diversas legitimações através de uma intervenção estatal ativa
e de medidas de regulação que também contemplam os interesses do trabalho
assalariado. Neste âmbito, desempenham um papel fundamental as reformas e as
regulamentações estatais das ―relações industriais‖.

O consenso estabelecido é provisório, portanto, tende a ser abalado, já que não é


possível de ser respaldado somente por um forte aparato ideológico, mas tem suas bases no
âmbito econômico, cujas próprias crises demonstram sua alta instabilidade, uma vez que é
cercado por contradições e interesses antagônicos de classes em uma luta ininterrupta.
Durante esta tentativa de se estabelecer o consenso, os interesses sociais em luta, bem como
suas organizações representativas passam a sofrer um acentuado processo de fragmentação,
seja em relação à classe trabalhadora, que já é bastante fragmentada pela intensa divisão do
trabalho, seja em relação à própria classe capitalista, já que a crise atinge suas frações de
formas diferentes.
Diante deste cenário, ―quando a crise econômica, enquanto crise social, assume a
forma da desagregação, atinge o sistema estatal, antes de mais nada, como crise fiscal, como
crise daqueles paradigmas econômico-políticos que remontavam à fase de acumulação mais
intensa‖. (ALVATER, 1987: 93; grifos originais)
Além disso, a mencionada cisão entre política econômica e social tende a favorecer a
primeira em detrimento da segunda, já que, em tempos de aguçamento das contradições, a
prioridade é restabelecer o crescimento da acumulação, ainda que as funções de legitimação
através do consenso fiquem prejudicadas.
Assim, os processos econômicos vão impondo, cada vez de forma mais violenta, a
adequação do âmbito político-social, que fica à mercê dos desígnios de reestruturação do
crescimento da acumulação capitalista. Para isso, é necessária uma intervenção mais ampla e
intensa do Estado no sentido de favorecer o capital, uma vez que ―com a desagregação social,
90

a contraditoriedade dos interesses presentes no sistema político é mais difícil de filtrar ou


recompor no plano das providências políticas‖. (ALVATER, 1987:93)
Como se não bastasse, a precária e restrita democracia burguesa fica ainda mais
comprometida em tempos de crise da acumulação capitalista, fortalecendo, assim, a
manifestação de tendências autoritárias, as quais não poucas vezes acabam se concretizando
em virtude da concorrência de inúmeras determinações no plano concreto99, ou seja, com a
fragilização do consenso, a coerção tende a aumentar.
Esta tentativa de forçar brutalmente a adequação da esfera político-social às
necessidades da acumulação procura, ao tentar restabelecê-la, reconstituir o consenso que se
encontra abalado. No entanto, durante a crise, ele teve sua base material e ideológica
alteradas, o que pode resultar em grandes dificuldades em consolidá-lo novamente.
Configura-se, assim, um cenário em que o sistema capitalista vê como necessário utilizar
outra forma para manter sua reprodução – a repressão por parte dos aparelhos do Estado.
Por conseguinte, o consenso e a repressão são dois mecanismos que a burguesia utiliza
no sentido de manter sua dominação e exploração da classe trabalhadora, ainda que necessite
estruturar um novo projeto hegemônico após os períodos de crise.
Assistimos nestes últimos anos por um lado os incomensuráveis gastos na área
militar100, com estratégias de defesa de última geração e por outro os cortes que são feitos em
diversos serviços sociais, conquistas importantes da classe trabalhadora sendo
sistematicamente desmanteladas, a destruição sistemática da natureza, grande parte da
população padecendo na miséria, seja nos países de ―subdesenvolvimento forçado‖ (cf.
Mészáros, 2011b), seja nos países de capitalismo avançado, muitos outros morrendo de
inanição, enquanto o desperdício de alimentos chega a 1.3 bilhão de toneladas por ano 101 e

99
―É esta a base material para programas e ideologias neoliberais, que em geral adquirem significado na crise.
Eles não aceitam as instituições do compromisso, que sempre constituem as instâncias políticas para um parcial
controle político da acumulação, segundo o interesse parcial daqueles que devem estar de acordo com a própria
exploração a fim de que o sistema funcione. No lugar de tudo isto, aqueles programas e ideologias apoiam-se na
força legitimadora dos processos de mercado, que é capaz de utilizar a política para seus próprios fins,
particularmente quando se trata de mercados mundiais que se acham, de todo modo, fora das possibilidades de
controle nacional e estatal‖. (ALVATER, 1987: 94)
100
Se ―em 1981, o orçamento militar nos Estados Unidos [chegou] a 300 bilhões de dólares‖ (cf. MÉSZÁROS,
2011b: 801), em 2012, chegou à surpreendente cifra de 685.3 bilhões de dólares (SKÖNS, 2013) e, no período
que vai de 11 de setembro de 2001, quando o país deu início à chamada ―Guerra ao Terror‖, até 2009, seus
gastos ultrapassam a marca de 1 trilhão de dólares. (DAGGETT, 2010)
101
Segundo estudo publicado em 2013 pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
(FAO).
91

grande parte dos grãos produzidos são usados na engorda de animais também vítimas da
lógica capitalista.102
Diante deste panorama de barbárie contemporânea, compreendemos que o capitalismo
já não pode mais esconder ou reinventar sua razão de ser e sua justificação histórica, mesmo
que intensifique os processos de manipulação ou repressão.
Isso tudo é sinal de um sistema decadente, doente, que padece caminhando para seu
fim. Para compreendermos melhor a concretude deste panorama, vamos analisar agora as
particularidades dos momentos críticos da crise estrutural que irromperam primeiramente na
década de 1970 e, então, por volta do ano de 2008.

3.1 A crise da década de 1970 e o início de um novo padrão de crise do capital

O período que veio após a Segunda Guerra Mundial, trouxe ao capitalismo suas ―três
décadas gloriosas‖, em que os índices de crescimento econômico estavam em alta e a
intervenção estatal, baseada nos preceitos keynesianos103, amenizaram os impactos das crises.
Isso pode ter induzido muitas vozes burguesas104, mas também algumas associadas à classe
trabalhadora105, a pensar que este modo de produção tinha finalmente encontrado um meio
para evitar as crises, controlando os ciclos econômicos.
Porém, por mais que parecesse improvável aos acima mencionados, outros
conseguiram verificar algum tempo antes a tendência que veio a se concretizar com
impressionante precisão106: uma recessão difusa se propagou pela primeira vez por todas as
potências imperialistas ao mesmo tempo, prenunciando mais uma crise.

102
Somente no ano de 2002, foi usado um total de 670 milhões de toneladas de cereais para este objetivo, o que
representa um terço do total produzido. (FAO, 2006)
103
Preceitos estabelecidos pelo economista J. M. Keynes, que procurava conciliar um conjunto de estratégias
baseadas em um Estado que tivesse ampla intervenção no regimento das relações entre capital e trabalho, a fim
de evitar novas crises e estabilizar o capitalismo, o que levou ao chamado Welfare State, ou Estado de Bem-Estar
Social, que teve sua plena realização nos países mais industrializados da Europa e nos Estados Unidos.
104
Mandel (1990: 9) cita, dentre outros exemplos a declaração do ―Prêmio Nobel de Ciência Econômica Paul
Samuelson: ‗o National Bureau of Economic Research trabalhou tão bem que de fato eliminou uma das suas
próprias tarefas principais, ou seja, as flutuações cíclicas /.../‘. Do mesmo autor, em sua obra Economics: ‗A
síntese neoclássica: graças ao emprego apropriado e reforçado das políticas monetárias e fiscais, nosso sistema
de economia mista pode evitar os excessos dos booms e das depressões,e pode visualizar um crescimento
progressivo sadio‘.‖
105
―Quanto aos autores que se associam ao movimento operário, lembremos as teses de John Strachey
(Contemporary Capitalism), de Baran-Sweezy (Monopoly Capital) e de Castoriadis enfatizando a eficácia
doravante demonstrada seja das técnicas anticíclicas, seja da política dos monopólios, seja de uma combinação
entre as duas, para ‗regular‘ a marcha da economia capitalista e evitar crises graves.‖ (MANDEL, 1990: 10)
106
―As teses sobre ‗O novo ascenso da revolução mundial‘, adotadas pelo IX Congresso Mundial da IV
Internacional em abril de 1969, afirmavam o que se segue sobre o longo período de expansão do pós-guerra da
92

As recessões haviam sido amenizadas num momento de baixa da produção e da


demanda107 em certos países com um aumento em suas exportações para outros países que
ainda não haviam sofrido o impacto da crise.108 Porém, o próprio contexto de crescimento fez
com que, inevitavelmente, os ciclos industriais dos principais países imperialistas se
sincronizassem, agravando a situação da atividade econômica que entrava em um quadro de
recessão.
Antes disso, a própria expansão delineou transformações econômicas importantes, que
contribuíram para o quadro acima. É patente o desenvolvimento das forças produtivas, que
passaram a se basear em técnicas produtivas fundamentalmente automáticas ou
semiautomáticas, resultantes da terceira revolução tecnológica. Evidentemente este salto
propiciou um aumento de produtividade sem precedentes.
A produção também passou a se internacionalizar cada vez mais, fazendo avançar a
divisão internacional do trabalho e favorecendo a concentração e centralização de capital a
nível global, o que resultou num crescimento expressivo das empresas transnacionais, que
podiam extrair mais-valia de diversos países diferentes ao mesmo tempo. Este quadro
extrapolava as barreiras dos Estados nacionais, restringindo suas políticas anticíclicas aos
limites internos, que pouco significavam diante da tendência cada vez mais crescente à
globalização da produção capitalista.

economia capitalista internacional, que eles não ignoraram: ‗Os marxistas revolucionários /.../ têm oferecido uma
análise global das razões do longo período de expansão da economia imperialista que se enquadram na teoria
marxista geral /.../. Esta análise desembocou em três conclusões: antes de tudo, que os elementos
impulsionadores principais deste longo período de expansão iriam se exaurir progressivamente, provocando daí
um agravamento mais e mais claro da concorrência interimperialista; em seguida, que a aplicação deliberada de
técnicas keynesianas anticrise acentuaria a inflação mundial e a erosão permanente do poder de compra das
moedas, o que terminaria por provocar uma crise bastante grave do sistema monetário internacional; enfim , que
estes dois fatores tomados conjuntamente iriam multiplicar as recessões parciais e que se orientaria para uma
recessão generalizada da economia imperialista, certamente diferente da grande crise de 1929/32, tanto por sua
amplitude como por sua duração, mas que atingiria, contudo, todos os países imperialistas e ultrapassaria
bastante a amplitude das recessões dos vinte últimos anos. Duas destas conclusões já se verificaram: a terceira se
anuncia para o início dos anos 70‖ (MANDEL, 1990: 10; grifos originais)
107
Como, por exemplo, os quadros de recessão ―dos Estados Unidos em 1960, do Japão em 1965 ou da
Alemanha Ocidental em 1966/7‖. (MANDEL, 1990: 10-1)
108
Isso fica claramente visível ao verificarmos justamente a situação da Alemanha Ocidental neste período.
Mandel (1990: 11) assim a descreve: ―A recessão se desencadeou no segundo trimestre de 1974, com um
primeiro trimestre marcado por uma baixa absoluta do PNB (Produto Nacional Bruto) da ordem de 0,5%. Mas é
preciso sublinhar que, já no curso do primeiro trimestre, a taxa de crescimento do PNB tinha caído a 1%,
enquanto as exportações ainda tinham uma alta de 9,5%. Podemos, portanto, dizer sem risco de nos enganarmos
que a manutenção de uma forte expansão das exportações alemãs-ocidentais retardou pelo menos um trimestre o
desencadeamento da recessão nesse país‖.
93

Uma dessas políticas, que os governos burgueses aplicavam para tentar refrear os
ciclos e, portanto, as crises de superprodução109 foi a expansão do crédito e a expansão
monetária, resultando em

ciclos de crédito parcialmente autônomos com relação ao ciclo industrial, que


procuravam compensá-lo. Mas, como o Estado, o Banco Central e a moeda
capitalista continuam nacionais, esses ciclos de crédito também foram nacionais, e
bastante dessincronizados no plano internacional. Cada governo imperialista pôde
aplicar ―sua‖ política de crédito, ligada de modo ―flexível‖ às flutuações do mercado
mundial através das flutuações dos balanços de pagamento nacionais. (MANDEL,
1990: 12; grifos originais)

Mas estas políticas, de expansão monetária acabavam gerando, por outro lado, uma
alta a nível mundial da inflação que, atingindo o conjunto dos países imperialistas, fez ruir o
sistema monetário internacional, decretando a inconversibilidade do dólar em ouro. Com isso,
ainda que somente por conta da concorrência interimperialista, os governos tiveram que
adotar, praticamente de forma conjunta, uma política para frear a inflação, levando à
anteriormente mencionada sincronização do ciclo industrial no âmbito global.
Assim, com o final da expansão do pós-guerra, as contradições inerentes do sistema
capitalista passavam a ficar mais claras e profundas seja em cada país ou em suas relações uns
com os outros, o que revela

uma crise social do conjunto da sociedade burguesa, uma crise das relações de
produção capitalistas e de todas as relações sociais burguesas, que se imbrica com a
diminuição durável do crescimento econômico capitalista, acentua e agrava os
efeitos das flutuações conjunturais da economia, e recebe por sua vez novos
estímulos dessas flutuações. (MANDEL, 1990: 13)

A grave recessão que sobreveio retraiu a produção industrial e aumentou os índices de


desemprego, porém não a patamares tão elevados quanto foi observado na crise de 1929/32.
Isso se deve fundamentalmente a dois fatores: o primeiro é que, conforme já vimos, a terceira
revolução industrial aumentou a produtividade com seus investimentos na automação, mas
com a redução na produção em si não pôde dar conta do crescimento da população ativa.110

109
―Trata-se, bem entendido, de esforços para reduzir a amplitude das crises, não para impedir seu
desencadeamento, para o que houve tanta incapacidade quanto no passado‖. (MANDEL, 1990: 12; grifos
originais)
110
―Se a produtividade cresce 5% ao ano, é preciso um aumento da produção da mesma amplitude para manter o
volume de emprego produtivo – todo o resto permanecendo constante. Com uma população ativa que
aumentasse 1% ao ano, necessariamente deveria haver um aumento da produção de 6%. Uma queda da produção
de 2%, acompanhada por um aumento da produtividade física de 4% e de um crescimento da população ativa de
0,5%, provocaria uma queda do emprego de cerca de 6,5% na indústria‖. (MANDEL, 1990: 16)
94

Em segundo lugar, visando incrementar o exército industrial de reserva no período de


expansão do pós-guerra, o capitalismo teve de absorver como força de trabalho uma parcela
da população que pudesse ser submetida a condições de exploração mais intensas, em
trabalhos insalubres, que requeressem pouca qualificação, com salários mais baixos e que
fosse mais facilmente dispensada quando necessário. Este foi o caso, por exemplo, das
mulheres, dos jovens e dos imigrantes provenientes de países com grau de industrialização
menor, que, ao longo da recessão enfrentada em 1974/5 foram massivamente expulsos do
processo produtivo, resultando em uma taxa de desemprego exorbitante se comparada com os
demais grupos de operários.
Ao contrário do que talvez fosse esperado, no primeiro momento da recessão a
inflação não foi neutralizada pela superprodução, mas, na maioria dos países, ela de fato
aumentou, acentuando ainda mais o quadro recessivo.
Isso eleva consideravelmente o custo de vida e, aliado à alta do desemprego, resulta
numa queda significativa do poder de compra. Assim, os governos são compelidos a controlar
a alta inflacionária ao mesmo tempo em que reclamam a necessidade de uma política
anticrise, a qual, redundantemente, conforme vimos, acaba por provocar a inflação com a
ampliação do crédito e da massa monetária.111
Poderíamos pensar como o custo de vida tende a aumentar tendo em vista a
capacidade produtiva de bens de consumo ociosa nas fábricas, bem como a enorme
quantidade de mercadorias esperando para ser realizadas, sendo que muitas não serão. Isso se
deve ao fato de que os preços são controlados por monopólios do setor em questão.

Estes podem, até um certo ponto112, suprimir a concorrência pelos preços e mesmo
aumentá-los no caso de uma queda da taxa de utilização de sua capacidade
produtiva, a fim de compensar a alta dos custos fixos por unidade produtiva, que
resulta das mercadorias não vendidas ou da subutilização da capacidade instalada.
Conseguem, assim, manter suas margens de lucro e evitar uma queda demasiado
catastrófica da taxa de lucros. Mas não podem conseguir isso senão com a
cumplicidade dos governos, dos bancos centrais e do sistema bancário no seu
conjunto, que continuam a inflar a massa monetária em razão das necessidades dos
monopólios, apesar de todos os grandes juramentos sobre a ―prioridade de lutar
contra a inflação‖. (MANDEL, 1990: 17-8)

111
―A pressão nesse sentido foi, pela primeira vez desde a crise de 1929/33, a tal ponto forte que nenhum
governo de um grande país imperialista ousou, desde o começo da recessão, aplicar medidas de política
anticíclica em grande escala. Apenas alguns pequenos países imperialistas, dispondo de margens de manobra ou
de reservas excepcionais – essencialmente a Suécia, a Áustria e a Noruega –, aplicaram essa política: a Áustria e
a Noruega alcançaram grande sucesso; a Suécia somente atrasou, mas não impediu, uma contração pronunciada
da atividade produtiva‖. (MANDEL, 1990: 17)
112
Já que, a longo prazo, conforme vimos, a lei do valor acaba se impondo.
95

Tendo em vista o quadro de crise, o comércio mundial foi fortemente impactado, não
sendo possível conter sua contração, já que a recessão atingia já o conjunto dos países
imperialistas, responsáveis pelo maior poder de compra disponível neste mercado, fazendo
reduzir o valor e o volume das exportações, as quais, se durante um bom tempo suplantaram o
crescimento da produção industrial113, já em 1975 sofreram esta queda.114
Mandel (1990: 20) observa três razões fundamentais para a contração do volume das
transações comerciais internacionais.

– Ela é um produto direto da recessão nos países imperialistas, na medida em que as


quedas da produção e do emprego reduzem a demanda global por bens de consumo
e pelos bens de produção importados (inclusive a demanda global de matérias
primas).
– Ela é um produto indireto da recessão, na medida em que os países exportadores
de matérias-primas (com exceção dos membros da OPEP – Organização dos Países
Exportadores de Petróleo) veem seus recursos em dívidas brutalmente reduzidos
pela queda do volume e dos preços das exportações, e são, assim, constrangidos a
diminuir suas importações.
– Ela é o produto de uma política deliberada de redução das importações 115, seguida,
sobretudo, por algumas potências imperialistas, confrontadas com fortes déficits de
seu balanço de pagamentos durante o primeiro semestre de 1974, isto é, o produto de
uma volta pouco disfarçada ao nacionalismo econômico e ao protecionismo.

Com o comércio mundial em recesso, os países que mais sofreram os impactos deste
quadro foram aqueles do chamado ―Terceiro Mundo‖116, mas há que se fazer uma importante
distinção da situação daqueles que eram exportadores de petróleo para o conjunto restante.

113
―De 1953 a 1963, o volume da produção industrial dos países capitalistas cresceu 62%, enquanto suas
exportações aumentaram 82%. De 1963 a 1972, sua produção industrial cresceu 65%, enquanto suas exportações
aumentaram 111%‖. (MANDEL, 1990: 19)
114
―A OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] avalia esse recuo em 7% para o
conjunto do comércio mundial (inclusive o dos países não-capitalistas), o que implicou uma taxa de contração
ainda maior para o comércio internacional apenas dos países capitalistas, uma vez que as trocas entre os não-
capitalistas continuaram a aumentar‖. (MANDEL, 1990: 19)
115
―Essa política, aliás, foi largamente coroada de sucesso, em alguns casos. O Japão, cujo déficit da balança
comercial se situou, no período março 1973/março 1974, em 13,5 bilhões de dólares, pôde enxugar
completamente esse déficit enorme desde o segundo trimestre de 1975. Para o período março 1974/março 1975,
a balança comercial do Japão foi fechada até com um superávit de 4 bilhões de dólares. Houve a mesma reverão
de tendência nos Estados Unidos, cujo déficit da balança comercial se situava no terceiro trimestre de 1974 em
um nível anual de 8 bilhões de dólares, e se transformou em um superávit de 1,3 bilhão de dólares no primeiro
trimestre de 1975. A Itália conseguiu reduzir o déficit de sua balança comercial em 75%. Mesmo na Grã-
Bretanha a situação teve uma nítida melhora, com a balança comercial subindo 7 bilhões de dólares entre o
outono de 1974 e a primavera do ano seguinte. Finalmente, para a França, o déficit da balança comercial de 2
bilhões de francos em março de 1974 transformou-se, um ano depois, em um excedente de 620 milhões de
francos. [...] Nesse ‗jogo de soma zero‘ é preciso evidentemente que haja perdedores, que foram essencialmente
alguns países imperialistas menores (como Espanha, Suécia, Suíça, Dinamarca, Portugal etc.) e países
semicoloniais‖. (MANDEL, 1990: 20)
116
―Mais corretamente países semicapitalistas, semicoloniais e dependentes‖, segundo Mandel (1990: 41).
96

Os primeiros conseguiram resistir bem às drásticas consequências que a recessão


provocou pelo mundo, ao ter uma renda que os pudesse guarnecer o suficiente para isso,
mesmo num quadro em que a demanda e as exportações de petróleo eram declinantes.
Praticamente metade dos altos valores da renda petrolífera foi investida na importação
de equipamentos e de bens de consumo e esta capitalização gerou um processo de
industrialização acelerado nestes países, levando tanto à constituição de capital financeiro
como à acumulação de capital industrial.
Este processo, se tomado no panorama global, resulta em que

a longo prazo, a industrialização dos países da OPEP acentuará as contradições


internas da economia dos países imperialistas, pois deve estender e agravar os
fenômenos de capacidade de produção ociosa em toda uma série de ramos
industriais. De imediato, ela cria mercados suplementares para os ramos industriais
dos países imperialistas especializados na exportação de equipamentos e de infra-
estruturas, no fornecimento de fábricas ―prontas‖, de empresas de trabalhos públicos
etc. (MANDEL, 1990: 42; grifos originais)

A situação destes países constituiu, no entanto, uma exceção se comparados com o


restante dos países do ―Terceiro Mundo‖. Para eles, o quadro de recessão foi extremamente
dramático, os atingindo fundamentalmente de quatro maneiras.
Primeiramente, a elevação dos preços do barril de petróleo gerou um déficit nos cofres
de tais países, que, diante da situação, passaram a ter que dispor também dos recursos que
recebiam a título de ―ajuda‖, desfalcando projetos bastante relevantes para um incremento de
suas condições internas, tais como os que previam uma modernização na agricultura.
Outra alta de preços que lhes prejudicou grandemente foi a dos víveres e dos
fertilizantes da indústria química, pois, como eram provenientes de importações do mercado
internacional, na situação de crise, isso significou um gasto que ultrapassava até mesmo o
montante gasto com o petróleo117, agravando o déficit comercial. Além disso, um gasto maior
nestas áreas não indica maior volume de produtos, fazendo manter e até aprofundar o quadro
de escassez alimentar vivido nestes países.
O déficit na balança comercial também foi intensificado pelo fato de que, ao mesmo
tempo em que o valor das exportações aumentou, tanto o volume de importações quanto o

117
―O custo das importações de víveres e de fertilizantes dos países semicoloniais aumentou 5 bilhões de dólares
em 1973 e um montante análogo em 1974, ou seja, no total de 10 bilhões em dois anos, enquanto o custo de suas
importações de petróleo só cresceu 1,2 bilhão de dólares em 1973 e 7 bilhões em 1974, ou seja, no total 8 bilhões
em dois anos‖. (MANDEL, 1990: 44)
97

preço das muitas matérias-primas, produzidas fundamentalmente nestes locais, teve uma
relevante queda devido ao contexto de recessão no mercado global.118
A junção de todos estes fatores agravantes para o cenário dos países semicoloniais e
dependentes engendrou quadros de regressão, estagnação e até recuo na produção agrícola e
industrial em tais territórios. O panorama que se via em tais regiões era bastante drástico, já
que

a coincidência da recessão e de uma grave situação de fome na faixa do Sahel


(África) e em outras zonas do Terceiro Mundo teve efeitos desastrosos sobre as
populações envolvidas. Nada confirma melhor o caráter irracional e desumano do
sistema capitalista do que o fato de milhões de homens, mulheres e crianças estarem
gravemente subalimentados, correndo o risco de morrer de fome, enquanto enormes
recursos em máquinas, matérias-primas e mão-de-obra ficam inutilizados. Com a
ajuda dessas reservas, seria possível produzir os tratores, os adubos, as bombas
elétricas, os canais de irrigação, para aumentar rapidamente a produção de víveres e
alimentar os famintos, isso se a produção fosse regida pela satisfação das
necessidades físicas e não pelo lucro. (MANDEL, 1990: 31)

Mas, ao contrário do que se possa pensar, a crise não pode simplesmente ser imputada
ao aumento dos preços do barril de petróleo pela OPEP ou pelos altos salários em razão da
força relativa com que contavam os sindicatos à época, como tentou-se difundir. Mandel
(1990), procurando desfazer qualquer análise equivocada neste sentido, relaciona algumas
características que corroboram sua visão acerca de como esta crise, apesar de suas
particularidades, pode ser considerada uma crise clássica de superprodução (apesar das suas
particularidades que a tornam diferente das anteriores). A questão do petróleo foi, portanto,
um dos detonadores da crise e não sua causa.
Nos países avançados, não só foi verificada uma queda da taxa de lucro, como também
um aumento da capacidade ociosa de produção industrial (considerando ainda que grande
parte da produção estadunidense é despendida em gastos militares e paramilitares). Para ficar
ainda mais claro, Mandel (1990) traça um panorama que demonstra a também clássica
inversão da onda longa expansiva.
Essa expansão foi provocada fundamentalmente pelas altas nas taxas de mais-valia e,
portanto, de lucro, resultantes de uma superexploração do operariado, impulsionadas acima de
tudo pela II Guerra Mundial, pelo nazismo e pela Guerra Fria (no caso dos Estados Unidos).
Essa reprodução ampliada de capital a níveis bastante altos foi que possibilitou o advento da
terceira revolução tecnológica, gerando um quadro prolongado de condições tidas como ideais

118
―Os países subdesenvolvidos não-exportadores de petróleo viram em 1975 o quantum de suas exportações
cair 5%, o valor corrente das exportações diminuir 12% e suas reservas de troca, 5,5%‖. (Nações Unidas apud
MANDEL, 1990: 45)
98

para a acumulação capitalista: enquanto a taxa de lucro aumentava, subia também o poder de
compra da classe trabalhadora, impulsionando o mercado.
Entretanto, este quadro acabou gerando também um aumento expressivo da
composição orgânica do capital, que não conseguia minimizar seus efeitos mesmo elevando a
taxa de mais-valia, pois se defrontava com o poder organizativo da classe trabalhadora,
crescentemente combativa no plano internacional da luta de classes, sobretudo a partir da
década de 1960. A consequência disso foi a inevitável queda da taxa de lucro que, juntamente
com a propagação ao redor do globo dos efeitos da terceira revolução tecnológica, não
podiam fazer senão inverter a onda longa expansiva do capital.
Assim, conforme vimos, esta crise também foi importante, pois assinalou, além do
âmbito econômico, uma crise político-social, fundamentalmente nos países imperialistas, em
que a classe trabalhadora intensificou seu processo de politização e combatividade,
provocando por parte de sua classe antagônica reações diversas no sentido de fazer recair
sobre os trabalhadores todos os seus encargos.
Dessa forma, o quadro crítico que se instala desde a década de 1970 atinge tal
amplitude e profundidade que nem mesmo os propagandistas burgueses podem contestá-la, a
menos que seja por uma manobra ideológica que camufle a realidade ou que sempre a
veiculem como uma simples e transitória recessão, o que nada mais é do que encobrir a
gravidade da conjuntura.

3.2 O aprofundamento da crise estrutural do capital: a crise de 2008

Em 2006, nos Estados Unidos, ocorreu um fenômeno que já sinalizava a iminência de


uma grande crise: um aumento catastrófico da taxa de despejos. Apesar disso, tal situação já
apontava desde o final da década de 1990, mas só ganhou atenção do governo e da mídia
quando passou a atingir, além da população de baixa renda, composta em sua maioria por
afro-descendentes, também os da dita ―classe média‖, ou seja, a população ―branca‖. Só então
o governo começou a estudar e planejar alguma atitude que pudesse controlar este quadro,
mas já era tarde – a crise imobiliária desencadeou uma série de eventos que culminaram em
uma crise global do capitalismo, a qual em 2008 já não era mais possível negar.
Começou-se a perceber a gravidade do processo quando os grandes bancos e,
consequentemente, o mercado de ações, as instituições de crédito e seguros, fundos de pensão,
enfim, boa parte do sistema financeiro entrou em colapso.
99

Conforme vimos no capítulo anterior, no momento de crise, o capital tem como uma
das principais alternativas eliminar o capital excedente, provocando uma destruição em massa
de riqueza, de valores que não serão possíveis de ser realizados.
A concorrência, ainda que seja sob novas configurações no capitalismo monopolista,
passa a assumir um novo padrão, já que agora não se trata de garantir maior participação no
mercado, angariando superlucros, mas sim da própria sobrevivência neste contexto crítico.
Com isso,

a reprodução das relações sociais que fundam a sociedade burguesa passa a


depender do sucateamento das forças produtivas redundantes, da aceleração do
processo de concentração e centralização dos capitais e do aumento da taxa de
exploração do trabalho. Nessas circunstâncias, o desenvolvimento capitalista
aparece em sua plenitude como regressão econômica e catástrofe social. A relação
de causalidade entre capitalismo e barbárie é levada à sua expressão máxima.
(SAMPAIO JR., 2009a: 8; grifos nossos).

Como não podia deixar de ser, num mundo ―globalizado‖ através dos sistemas de
comércio e financeiro, se o estopim da crise se deu basicamente nas principais potências
capitalistas, como os Estados Unidos, Alemanha e Japão119, não tardou a ter seus efeitos
sentidos nos países periféricos, fundamentalmente naqueles mais dependentes das operações
econômicas externas, ou seja, os mais incorporados ao sistema capitalista global.120
Em tempos nos quais o capitalismo se tornou um sistema mundial e integrado, em que
há uma interdependência entre os países ―desenvolvidos‖ e ―subdesenvolvidos‖, o planeta
vira refém de um efeito dominó – a avalanche pode demorar um pouco mais a chegar a certos
países, mas o que parecia algo de menor importância rapidamente toma maiores proporções,
afetando todos os âmbitos da sociedade e fazendo-se sentir principalmente pela classe
trabalhadora – a quem sempre recaem os piores impactos das crises e contradições do sistema
capitalista.
Como já era de se esperar, a atividade econômica, bem como as relações comerciais
internas e externas sofreram uma drástica redução121, enquanto, em proporção inversa,

119
―No último trimestre de 2008 e no primeiro de 2009, o investimento privado – o dínamo do crescimento
econômico – diminuiu em praticamente um terço nos Estados Unidos e em torno de um quinto na Alemanha e no
Japão. Nesse período, os Estados Unidos fecharam mais de 500 mil postos de trabalho por mês, enquanto a
União Europeia (AE16) e o Japão viram o número de desempregados aumentar no ritmo de aproximadamente
400 mil pessoas ao mês‖. (SAMPAIO JR., 2009: 11)
120
―No primeiro movimento de propagação da crise, foram mais penalizadas as economias da Europa Oriental e
do Sudeste Asiático – Rússia, Turquia, Romênia, Hungria, países que compõem a Comunidade dos Estados
Independentes, Coreia do Sul, Malásia e Tailândia‖. (SAMPAIO JR., 2009: 12)
121
―Puxada por uma drástica contração da indústria, entre outubro de 2008 e março de 2009 a economia mundial
sofreu uma diminuição superior a 6% em relação a igual período do ano anterior. Nesse intervalo, o comércio
100

aumentavam absurdamente os níveis de desemprego122. Os dados estatísticos produzidos


apenas no primeiro movimento da crise, marcados por uma abrangência, velocidade e
profundidade intensos, comprovam sua gravidade, contradizendo peremptoriamente as vozes
a serviço da burguesia que afirmavam ser apenas um fenômeno brando e de rápida solução123.
Com as relações comerciais entre os diversos países em queda, aqueles onde
predominava o modelo de industrialização por exportação124 e os que tinham sua economia
baseada fundamentalmente nas exportações125 foram os mais prejudicados.
Consequentemente, isso afetou também os países produtores de matéria-prima, que se
encontraram mediante uma queda geral dos preços, abalando igualmente os produtores de
petróleo, como a Venezuela, Rússia e Estados do Golfo e, com isso tudo, os índices de
desemprego subiram consideravelmente.126
Com a redução drástica da entrada de capitais externos nas economias periféricas, das
receitas de câmbio provenientes do comércio global e com a fuga de capitais para o setor de
segurança e o aumento da transferência de recursos financeiros para outros países, cessando
inúmeros financiamentos externos aos países da periferia, a situação nestes se agravou ainda
mais, já que tais capitais e créditos vindos do exterior conformam a principal fonte de
financiamento de suas economias, resultando assim, numa crise econômica que tende a ser
bastante dramática.
Entretanto, especificamente no caso dos países latino-americanos, a crise parece não
ter rebatido na maioria deles de forma tão violenta em seu primeiro movimento, pois, mesmo

mundial registrou uma diminuição de quase um terço, num movimento sem precedentes que atingiu todas as
regiões do mundo‖. (SAMPAIO JR., 2009: 9)
122
―Os efeitos da crise sobre os trabalhadores foram devastadores. A Organização Internacional do Trabalho
calcula que, apenas em 2008, o número de desempregados aumentou em quase nove milhões e que mais de 100
milhões de pessoas passaram a integrar o número de trabalhadores pobres, ou seja, pessoas que ganham uma
renda insuficiente para manter a família (menos de US$ 2 per capita por mês)‖. (SAMPAIO JR., 2009: 10)
123
Além dos dados citados nas notas anteriores, ―a intensidade do processo de liquidação de capital fictício não
tem precedente na história. Nas principais bolsas de valores do mundo, no final do primeiro semestre de 2009, as
ações registravam desvalorização média de cerca de 40% em relação ao nível de abril de 2008, quando começou
a inflexão do ciclo especulativo. Nas economias periféricas, a queda das bolsas de valores foi ainda mais intensa,
alcançando aproximadamente 55%. A queima de ativos tóxicos, que alimentavam as pirâmides especulativas
com títulos derivativos, alcançou valores inimagináveis, na verdade, impossíveis de serem submetidos ao cálculo
econômico. A desvalorização de capital bancário e produtivo também foi inusitada e fica manifesta no registro,
em um intervalo de poucos meses, de cinco das dez maiores falências da história corporativa norte-americana,
fazendo com que conglomerados financeiros e produtivos que pareciam inabaláveis, tais como o Lehman
Brothers, o Washington Mutual, o Thornburg Mortage, a General Motors e a Chrysler, fossem pura e
simplesmente varridos do mapa‖. (SAMPAIO JR., 2009: 9)
124
Taiwan, Coreia do Sul, China e Japão, por exemplo.
125
Como Brasil e Alemanha.
126
―Cerca de 20 milhões de pessoas perderam subitamente seus empregos na China, e relatos perturbadores de
agitação social vieram à tona. Nos Estados Unidos, o número de desempregados aumentou em mais de 5 milhões
em poucos meses (de novo, fortemente concentrado em comunidades afro-americanas e hispânicas). Na
Espanha, a taxa de desemprego saltou para mais de 17%‖. (HARVEY, 2011: 13)
101

sujeitos às mesmas dificuldades dos demais países periféricos, tais como ―a escassez de
crédito provocada pela aversão ao risco, o colapso da demanda internacional, a deterioração
dos termos de troca e a drástica inflexão nos fluxos de capitais‖, algumas circunstâncias
específicas observadas nesta região, como, por exemplo, ―menor vulnerabilidade do setor
externo e menor vulnerabilidade do setor bancário aos efeitos imediatos do estouro da ciranda
especulativa com derivativos‖ permitiram que suas economias fossem gerenciadas sem
maiores traumas.
Contudo, após o mês de setembro de 2008, o que parecia blindado contra os efeitos
mais drásticos da crise mundial dava claros sinais de que nada seria tão simples. Seguiu-se
então um quadro de ―expressivas baixas nas bolsas de valores, fortes desvalorizações nas
moedas nacionais, quedas violentas nas exportações e redução abrupta dos investimentos
privados‖, sem contar o crescente número de desempregados, situação que se mostra mais
grave ainda naqueles países latino-americanos mais dependentes das relações econômicas
com os Estados Unidos, como é o caso do México, por exemplo. (SAMPAIO JR., 2009a: 12)
Assim, dado o nível de integração da economia mundial, vemos que o quadro da crise
como um todo pode funcionar como um ciclo vicioso, já que, se as economias periféricas são
afetadas pela retração das economias centrais, estas também sofrem os efeitos que as
consequências devastadoras da crise provocam nos países com os quais mantém relações
externas. Com isso, a desvalorização do capital provoca uma dinâmica contínua altamente
destrutiva por todo o globo.
Harvey (2011: 13-14) considera que esta crise seguiu um padrão de crises financeiras
até culminar na mais recente, a qual considera ―a mãe de todas as crises‖. Além do que, por
ter se desencadeado a partir do mercado imobiliário, tende a ser mais longa do que as que
afetam somente os bancos e o mercado de ações, por exemplo, já que ―os investimentos no
espaço construído são em geral baseados em créditos de alto risco e de retorno demorado:
quando o excesso de investimento é enfim revelado [...], o caos financeiro que leva muitos
anos a ser produzido leva muitos anos para se desfazer‖.
Tentando controlar esta crise sistêmica (ou estrutural) como uma mera crise cíclica das
que foram administradas em décadas anteriores, os governos das potências imperialistas,
sobretudo dos Estados Unidos, passaram inicialmente a adotar as mesmas posturas, inclusive
promovendo até certo hibridismo com respostas de caráter keynesiano, através de medidas
superficiais que pudessem amenizar as contradições mais gritantes, socializando os enormes
prejuízos. Ou seja, no período de explosão da crise atual, apenas foram tomadas providências
102

de cunho superficial, que de forma alguma chegavam a atingir os verdadeiros entraves para a
retomada dos padrões de acumulação capitalista.
Vendo que tais medidas pouco fizeram para reverter o quadro depressivo, somente no
último trimestre de 2008 é que o Estado resolveu aplicar uma política econômica para lidar
com os efeitos mais persistentes e ameaçadores da crise, atuando em três principais frentes:
―1) evitar a todo custo o colapso espetacular do sistema financeiro; 2) estimular a demanda
agregada para combater a depressão; e 3) impedir reações nacionais que pudessem colocar em
risco as bases da ordem global, levando à fragmentação do sistema capitalista mundial‖.
(SAMPAIO JR., 2009a: 14)
Uma análise equivocada acerca dos motivos que causaram a crise de crédito e os
problemas econômicos dos grandes grupos financeiros resultou em medidas ineficazes para
superar as reais causas. Ao contrário do que se pensou, o problema fundamental reside não na
liquidez, mas na solvência e tudo foi dirigido no sentido de harmonizar um pretenso
desequilíbrio temporário. Dessa forma, as instituições mais relevantes para a economia foram
auxiliadas pelos respectivos governos dos países centrais a partir de ações como

a diminuição da taxa de juros, a ampliação moderada do gasto público e a criação de


uma série de isenções fiscais para incentivar o aumento do consumo familiar e a
retomada dos investimentos privados, na esperança de que, restaurando-se a
patológica propensão a consumir dos últimos anos e elevando-se a rentabilidade
relativa dos investimentos produtivos, a demanda agregada voltaria a crescer.
(SAMPAIO JR., 2009a: 15)

Assim, vendo os efeitos da crise como algo meramente efêmero, as iniciativas que
visaram sua superação assumiram três direções principais:

o esforço para estreitar os mecanismos de coordenação da política econômica dos


países mais desenvolvidos; a ampliação dos recursos disponíveis para socorrer os
países que enfrentarem crises no balanço de pagamentos; e manobras diplomáticas
dissuasivas para impedir ações protecionistas unilaterais que pudessem comprometer
o processo de liberalização. (SAMPAIO JR., 2009: 15)

Mesmo ao ter se valido de medidas puramente paliativas e direcionadas a caminhos


equivocados para dar conta dos efeitos mais persistentes e que se encontram no cerne mesmo
da crise, os Estados tiveram um papel fundamental no sentido de evitar um colapso tão grave
do sistema financeiro global, que faria ruir com ele toda a ordem social.
103

Apesar de a partir da década de 1970 já serem adotados princípios fundados no


neoliberalismo127, ao seu princípio da não-intervenção estatal na economia, sobreveio a ajuda
do Estado para as instituições financeiras a fim de socorrê-las em momentos de crise, através
de uma política a qual Mészáros (2011a) denomina por nacionalização da bancarrota do
capital, na qual os lucros devem ser privatizados128, mas os riscos e as consequências drásticas
devem ser socializadas, recaindo, obviamente, sobre a classe trabalhadora129 e assim, os
bancos agem da forma que quiserem sem se preocupar com o alto risco, já que se garantem no
auxílio governamental e no repasse do prejuízo à sociedade.
Isso porque, conforme assinala Netto (2012b: 88; grifos originais) o que os grandes
burgueses proclamam diante de sua ofensiva neoliberal que propõe o ―Estado mínimo‖ é
colocar em prática o que o desenvolvimento da democracia política vem obstruindo: um
Estado que é máximo para seus interesses. Dessa forma, o que eles pretendem

em face da crise contemporânea da ordem do capital, é erradicar mecanismos


reguladores que contenham qualquer componente democrática de controle do
movimento do capital. O que desejam e pretendem não é ―reduzir a intervenção do
Estado‖, mas encontrar as condições ótimas (hoje só possíveis com o estreitamento
das instituições democráticas) para direcioná-la segundo seus particulares
interesses de classe.

Harvey (2011: 18) entende que o capitalismo encontrará uma resposta para a crise
atual, da mesma forma como na da década de 1970 respondeu com o neoliberalismo, e que
tudo aponta no sentido de um aprofundamento da centralização cada vez maior de capital e,
portanto, na consolidação do poder de uns poucos capitalistas. ―As crises financeiras servem
para racionalizar as irracionalidades do capitalismo. Geralmente levam a reconfigurações,
novos modelos de desenvolvimento, novos campos de investimento e novas formas de poder
de classe‖.
Obviamente, estes rumos somente se efetivarão caso não irrompa nenhum movimento
político de oposição, advindo da disputa de poder entre as classes antagônicas. Se o capital
pode encontrar força de trabalho à sua disposição – haja vista o enorme ―exército industrial de

127
Harvey (2011: 16) diz que, para ele, a palavra neoliberalismo indica ―um projeto de classe que surgiu na crise
dos anos 1970. Mascarada por muita retórica sobre liberdade individual, autonomia, responsabilidade pessoal e
as virtudes da privatização, livre-mercado e livre-comércio, legitimou políticas draconianas destinadas a
restaurar e consolidar o poder da classe capitalista. Esse projeto tem sido bem-sucedido, a julgar pela incrível
centralização da riqueza e do poder observável em todos os países que tomaram o caminho neoliberal‖.
128
O periódico burguês The Economist (apud MÉSZÁROS, 2011a: 20) afirma logo em 2008, quando de fato
estourou a crise, que ―em pouco mais de três semanas o governo dos Estados Unidos [...] expandiu seu passivo
bruto em mais de US$1 trilhão – quase o dobro da guerra do Iraque até agora‖.
129
―No México, por exemplo, o padrão de vida da população diminuiu cerca de um quarto em quatro anos após o
socorro econômico de 1982‖. (HARVEY, 2011: 16)
104

reserva‖ de que dispõe – o aumento do desemprego e o rebaixamento salarial aos quais os


trabalhadores estão submetidos acirram a contradição inerente à própria lógica do sistema
capitalista: a acumulação do capital encontra uma barreira na falta de demanda pelo
incremento produtivo e falta de mercado para escoar suas mercadorias e realizar a mais-valia.
Uma das saídas paliativas e superficiais a qual recorreu o capital foi a da ampla
difusão entre a classe trabalhadora dos sistemas de crédito, fazendo subir exorbitantemente os
índices das dívidas familiares.130 As instituições financeiras, bem como o ―capital financeiro
fictício― foram fortalecidos diante deste cenário.
Assim, como bem aponta o autor, ―salvar os bancos e arrebentar com o povo
funcionou às mil maravilhas – para os banqueiros‖, mas isso tudo só pode ser colocado em
prática a partir da globalização do sistema financeiro, garantindo maior mobilidade ao capital.
(HARVEY, 2011: 24)
Este quadro levou ao empobrecimento da classe trabalhadora e ao enriquecimento dos
capitalistas, os quais, ao invés de investirem na produção, preferiram depositar sua confiança
e seu capital no mercado de ações e no mercado de futuros,131 o que lhes rendeu amplos
lucros. Mas em meio à crise o quadro agora é de queda dos ativos, causando prejuízos, mais
uma vez, fundamentalmente às classes trabalhadoras, que foram iludidas com a facilidade de
fazer dinheiro desse mercado sombrio.
Outra questão importante a ressaltar é que desde a crise de 1973, há uma grande
dificuldade em alocar o capital excedente na produção de bens e serviços, pois é uma massa
de dinheiro que vai se incorporando e buscando uma forma rentável de ser investida. Como as
margens de lucro da produção, a partir da década de 1980 caíram, não é este setor que tem
atraído tais capitais. Então, o que se operou como uma saída rápida foi o profuso processo de
privatizações, realizadas em nome de uma pretensa ineficiência das empresas estatais, sendo a
melhor opção o repasse ao âmbito privado, o que, obviamente, nem sempre corresponde à
verdade.
Tratava-se mais de uma desculpa, uma manobra para empreender esta política
perversa, que não prevê trazer maiores benefícios à população com serviços mais eficientes,
mas sim atender aos ditames do capital, o que fica evidente ao vermos que o resultado disso

130
―Nos EUA, em 1980 a dívida agregada familiar média era em torno de 40 mil dólares (em dólares
constantes), mas agora é cerca de 130 mil dólares para cada família, incluindo hipotecas‖. (HARVEY, 2011: 22)
131
―De quase nada em 1990, esses mercados cresceram e passaram a circular aproximadamente 250 trilhões de
dólares em 2005 (a produção total mundial foi então de apenas 45 trilhões de dólares) e talvez algo como 600
trilhões de dólares em 2008‖. (HARVEY, 2011: 26)
105

foi o elevado enriquecimento dos empresários que investiram na compra de bens públicos132,
os quais, diga-se de passagem, eram vendidos com um generoso desconto.

À medida que mais capital excedente entrou na produção na década de 1980,


particularmente na China, a concorrência intensificada entre os produtores começou
a colocar pressão sobre os preços (como visto no fenômeno do Wal-Mart com
preços cada vez menores para os consumidores dos EUA). Os lucros começaram a
cair depois de mais ou menos 1990, apesar da abundância de trabalhadores com
baixos salários. Salários e lucros baixos são uma combinação peculiar. Como
resultado, cada vez mais dinheiro entrou na especulação em ativos, porque era onde
lucros eram passíveis de ser realizados. [...] Esse foi o momento em que a
financeirização da tendência da crise do capitalismo começou de fato. (HARVEY,
2011: 32)

Este excesso de liquidez proveniente da década de 1990 veio da própria atividade dos
bancos, já que eles próprios se endividaram enormemente, tomando empréstimos uns com os
outros para tentar amenizar a razão dívida-capital133. ―Excedentes de capital fictício criados
dentro do sistema bancário absorveram o excedente!‖. E então, ―quando um par de bancos
começou a ter problemas, a confiança entre os bancos erodiu e a liquidez fictícia sobre dívidas
desapareceu. O desendividamento começou, o que provocou perdas maciças e
desvalorizações do capital dos bancos‖. (HARVEY, 2011: 33)
Sampaio Jr. (2009b: 119) vê a origem desta última crise econômica mundial num
processo de liberalização dos limites impostos ao capital financeiro no período do pós-guerra,
comandado pelos Estados Unidos respaldado nos organismos financeiros internacionais,.
Findadas estas barreiras, foram produzidas as condições essenciais para que a especulação
financeira progredisse e se expandisse para todos os âmbitos da economia. Assim,

ao premiar os especuladores mais ousados, a era neoliberal desencadeou uma


concorrência desenfreada pelo lucro fácil, fomentando um padrão de acumulação de
capital que só poderia terminar em catástrofe. O resultado era perfeitamente
previsível: a valorização do capital fictício descolou-se da valorização produtiva e a
acumulação produtiva desgarrou-se da capacidade de consumo da sociedade.

Ainda acerca desta questão, Mészáros (2011a: 25; grifos originais) ressalta que a
desenfreada especulação financeira

132
Para dar apenas um exemplo, Harvey (2011: 32) cita que ―o mexicano Carlos Slim Helú, classificado como o
terceiro homem mais rico do mundo pela revista Forbes em 2009, teve seu grande êxito com a privatização das
telecomunicações do México no início dos anos 1990‖.
133
Os bancos emprestam um valor muito acima de seus depósitos, acreditando que os devedores irão pagar e não
ficarão em débito todos de uma só vez, mas, se o grau de inadimplência for muito alto, isso gera uma crise, pois
não haverá dinheiro o bastante para dar conta de suas atribuições. Para não ter que fechar, muitos acabam
contraindo empréstimos com outros bancos, fazendo crescer a razão dívida-capital.
106

é naturalmente inseparável do aprofundamento da crise dos ramos produtivos da


indústria, assim como das resultantes perturbações que surgem com a absolutamente
letárgica acumulação de capital (na verdade, acumulação fracassada) no campo
produtivo da atividade econômica.

Apesar disso, o problema da retomada dos investimentos não pode ser reduzido a uma
simples ―crise de confiança‖134, como se a subjetividade dos agentes capitalistas se
sobrepusesse à objetividade econômica de que após a explosão da crise, tornaram-se incertos
os rumos para a retomada de expansão e acumulação de capital, haja vista a evidente
superprodução e a destruição de montantes enormes de capital excedente.135
Obviamente, esta incerteza acerca do futuro da ordem capitalista e a desconfiança
gerada pela quebra de instituições bancárias tão poderosas que pareciam sólidas e inatingíveis
resultaram em uma crise de crédito que freou a expansão capitalista, ao rebater diretamente
nas relações de produção e circulação da economia global, deixando evidente a
vulnerabilidade do seu sistema financeiro.
Além disso tudo, as políticas do Estado estadunidense de ajuda aos bancos vêm
gerando grande revolta e insatisfação dentre a classe trabalhadora, já que esta, além de ter que
arcar com as duras consequências da ―socialização dos riscos‖, não vê a mesma disposição do
governo em ajudá-los, tendo em vista a disparada dos despejos desde o início da crise, por
exemplo.
Os bancos, por sua vez, utilizam o dinheiro recebido para amortizar suas dívidas,
comprar outros bancos e, assim, firmar seu poderio. Diante disso, os setores de direita e a
grande mídia tentam jogar a culpa nos trabalhadores e o Estado lança mão de algumas parcas
medidas para auxiliá-los visando a não exacerbar mais sua ira e provocar uma crise de
legitimidade para o sistema capitalista.
Vale lembrar aqui, que a partir das décadas de 1950 e 1960, os Estados Unidos
reafirmaram seu poder hegemônico mundial a partir de inúmeras medidas que contaram, por

134
Mészáros (2011a: 18; grifos originais) analisa uma série de discursos proferidos por apologistas do capital,
ressaltando a questão da confiança – ou a falta dela, ou seu excesso, a superconfiança – como estando no cerne
da crise capitalista. Enquanto o primeiro-ministro britânico Gordon Brown dizia que ―a coisa mais preciosa‖
reside na ―confiança‖ (―no sistema bancário capitalista‖, como bem assinala Mészáros), em uma entrevista na
rede de televisão BBC, o ex-chefe do Lloyd Bank ―apresentou uma grande inovação conceitual no discurso da
confiança ao dizer que a causa de todas as nossas perturbações era alguma ‗superconfiança‘. E imediatamente
demonstrou também o significado de ‗superconfiança‘ ao afirmar mais de uma vez, naquela curta entrevista, que
não pode haver problemas sérios hoje, pois o mercado sempre toma conta de tudo, mesmo que por vezes
despenque inesperadamente. Depois, sempre subirá outra vez‖.
135
―Na primavera de 2009, o Fundo Monetário Internacional estimava que mais de 50 trilhões de dólares em
valores de ativos (quase o mesmo valor da produção total de um ano de bens e serviços no mundo) haviam sido
destruídos. A Federal Reserve estimou em 11 trilhões de dólares a perda de valores de ativos das famílias dos
EUA apenas em 2008. Naquele período, o Banco Mundial previa o primeiro ano de crescimento negativo da
economia mundial desde 1945‖. (HARVEY, 2011: 13)
107

exemplo, com a ajuda na reconstrução da Europa e do Japão e o acordo de Bretton Woods,


mas tiveram que lidar com a forte concorrência de outros países como o próprio Japão e a
Alemanha, que contavam com uma produtividade maior.
Nesse quadro, o capital financeiro foi se fortalecendo, sendo uma alternativa ao
investimento de capital excedente com possibilidade de altas taxas de lucro. Entretanto, ―a
queda do setor financeiro dos EUA em 2008 e 2009 comprometeu sua hegemonia‖. Suas
dívidas crescem demasiadamente136, aumentando o poder dos credores sobre o país e ―a
posição do dólar como moeda de reserva global está ameaçada‖, colocando em risco sua
hegemonia financeira. (HARVEY, 2011: 36)

Se as crises são momentos de reconfiguração radical do desenvolvimento capitalista,


então o fato de os Estados Unidos terem de financiar por meio de déficit sua saída
das dificuldades financeiras em uma escala tão grande e de os déficits serem em
grande parte cobertos por países com excedentes poupados – Japão, China, Coreia
do Sul, Taiwan e Estados do Golfo – sugerem que esta pode ser a ocasião para tal
mudança. (HARVEY, 2011: 37)

Harvey (2011) recupera então a ideia de Arrighi (1996) segundo a qual mudanças de
hegemonia são antecedidas por períodos de financeirização, ocorrendo no sentido de alocar a
grande quantidade de capital excedente e a entidade política que mais produzi-lo137 tende a ser
a detentora da hegemonia, a qual, no momento, ainda são os Estados Unidos.138
Porém, o autor vê que esta hegemonia está seriamente ameaçada, uma vez que outros
países vêm se destacando no cenário mundial tanto no setor produtivo quanto na própria
acumulação de capital, como é o caso da China, por exemplo. Assim, estes países tiveram
grande investimento não só na construção de unidades produtivas e atividades capitalistas
diversas, mas também em infraestrutura para suportar todo este crescimento que os inseriram
no foco do mercado global, fazendo com que pudessem absorver uma quantidade importante
do excedente global.

136
Mészáros (2011a: 27; grifos originais) alerta para a provável inadimplência norte-americana: ―O grande
problema para o sistema capitalista global é, contudo, que a possibilidade de a América não honrar seus
compromissos não é de todo impensável. [...] O agravante da realidade hoje é que o resto do mundo tem cada vez
mais dificuldades para preencher o ‗buraco negro‘ produzido numa escala sempre crescente pelo insaciável
apetite dos Estados Unidos por financiamento da dívida – mesmo com a maciça contribuição chinesa,
historicamente irônica, para a balança do Tesouro norte-americano –, como demonstrado pelas repercussões
globais da recente crise hipotecária e bancária norte-americana. Essa circunstância traz para muito mais perto o
necessário calote dos Estados Unidos, cuja escala pode ser mais ou menos brutal‖.
137
Ou que obtém grande parte deles por meio de ―tributos ou extrações imperialistas‖. (HARVEY, 2011: 37)
138
―Com um total de produção global em 56,2 trilhões de dólares em 2008, a cota dos EUA de 13,9 trilhões de
dólares ainda faz desse país o acionista que controla o capitalismo global, capaz de orientar as políticas globais
(como faz em seu papel de acionista-chefe nas instituições internacionais, como Banco Mundial e FMI)‖.
(HARVEY, 2011: 37)
108

O espaço geográfico teve, assim, uma reestruturação fundamental neste novo quadro,
tendo que ser levado em conta não somente as necessidades de expansão capitalista em si,
mas as próprias particularidades do ambiente, como localização, condições naturais e
disponibilidade de força de trabalho para movimentar este aquecimento da produção e do
mercado em lugares que antes não eram tão significativos como hoje, quando começam a não
só entrar em cena, mas ocupar um lugar de destaque cada vez mais crescente, contando, para
isso, com o fundamental papel das políticas estatais.
Harvey (2011) atenta bastante para a questão geográfica deste quadro crítico,
apontando as mudanças que se operaram neste quesito desde a última crise, na década de
1970, demonstrando que, a depender do papel que cada país exerce e ocupa no cenário
mundial, sofrerá maior ou menor impacto em áreas diferentes, mas, devido ao fenômeno da
globalização, os efeitos que a crise produz inevitavelmente se difundirão por todo o globo,
afetando, principalmente, a classe trabalhadora que cada vez mais é condenada à miséria e ao
pauperismo.
Mészáros (2011a: 21; grifos originais) afirma que o sistema capitalista está em um
momento de crise que tende a se aprofundar cada vez mais e questiona:

alguém pode pensar numa maior acusação para um sistema de produção econômica
e reprodução social pretensamente insuperável do que essa: no auge do seu poder
produtivo, está produzindo uma crise alimentar global e o sofrimento decorrente dos
incontáveis milhões de pessoas por todo o mundo? Essa é a natureza do sistema que
se espera salvar agora a todo custo, incluindo a atual ―divisão― do seu custo
astronômico.

É por isso que a operação ideológica colocada em curso pela classe capitalista,
tentando atenuar os efeitos da crise não pode ser mantida por muito tempo com credibilidade
suficiente para se legitimar e, assim, até mesmo nomes e organizações que defendem os seus
interesses são de certa forma obrigados a reconhecer a seriedade do quadro crítico atual, que,
salvaguardadas as particularidades regionais, se alastrou por todo o globo e conduz este
sistema ao colapso.
109

3.3 A crise de 2008 no Brasil

O cenário brasileiro não pode escapar aos efeitos da crise, uma vez que um país
amplamente integrado ao comércio mundial acaba sendo mais suscetível aos acontecimentos
globais.
Com uma política monetária severa por parte do governo brasileiro, até o início da
segunda metade do ano de 2008 não era esperada uma valorização do real em relação ao dólar
americano, pois os estrangeiros mantinham os investimentos na economia do Brasil e em sua
Bolsa de Valores, o que lhes rendia altos lucros, principalmente a partir dos altos juros.
Entretanto após a queda do dólar, diversas empresas acreditaram que este panorama se
estenderia ao menos até o fim do ano e acabaram lançando mão de complexos instrumentos
financeiros, resultando em prejuízos com a retomada da moeda americana. Mas foi após a
quebra do Lehman Brothers, importante banco dos Estados Unidos, em setembro de 2008,
que o dólar realmente apresentou grande alta no Brasil, além de ter resultado também na
retração do crédito internacional.
Com isso, os países cuja exportação é bastante expressiva nos rendimentos do país,
como é o caso do Brasil, ficaram bastante prejudicados, tendo em vista a diminuição do
comércio mundial e consequente redução do fluxo de capitais estrangeiros. Em meio a este
cenário, ocorreu uma queda no ritmo da produção e da demanda interna no país, bem como
aumento do desemprego, o que favoreceu ainda mais a flexibilização das relações de trabalho
já bastante precarizadas pelas políticas de cunho neoliberal, tendo em vista o desmonte de
direitos duramente conquistados pelos trabalhadores.
O governo brasileiro viu-se então impelido a adotar certas medidas anticíclicas.
Assim, o crédito passou a ser estimulado e o sistema bancário passou por uma reformulação
para amenizar os impactos de uma possível insolvência por parte de bancos mais suscetíveis a
sofrer com as adversidades do momento. A demanda também foi incentivada a partir de uma
política de renúncia fiscal e com a alteração no imposto de renda para pessoas físicas e, além
disso, o seguro desemprego foi ampliado.
Focando nas medidas relacionadas à manutenção do crédito interno e visando
contornar as dificuldades para captar recursos no exterior, fundamentalmente durante o final
de 2008 e no ano de 2009, o governo Lula adotou uma série de medidas, dentre as quais
podemos citar:
110

leilões de moeda, com o compromisso ou não de sua recompra futura; oferta de


empréstimos em moeda estrangeira, garantida por títulos soberanos ou por cambiais
de exportação destinada a financiar exportações; diminuição do compulsório dos
bancos; linha de crédito para os exportadores, a partir da utilização de reservas
internacionais do Banco Central do Brasil (BCB); ampliação da linha de
financiamento para as exportações pré-embarque do Banco Nacional de
Desenvolvimento Social (BNDES); autorização para que o BCB comprasse as
carteiras dos bancos que apresentassem dificuldades; autorização para que os bancos
públicos, a Caixa Econômica Federal (CEF) e o Banco do Brasil (BB), adquirissem
participações financeiras no país (seguradoras, instituições previdenciárias, empresas
de capitalização, etc,) sem passar por licitação; antecipação da concessão do crédito
agrícola previsto; aumento da exigibilidade de aplicação no setor agrícola de
recursos captados pelos depósitos à vista; criação de linha de crédito para os
produtores rurais através do BB; permissão para que os bancos em dificuldade
vendessem, além de sua carteira de crédito e títulos dos seus fundos de investimento,
seus títulos e valores mobiliários de renda fixa, adiantamentos e outros créditos de
pessoas físicas e jurídicas não-financeiras e os depósitos interfinanceiros com
garantia de ativos; criação de linha de crédito de capital de giro junto a CEF para as
empresas da construção civil e para as empresas em geral pelo BNDES e BB;
mudança na forma de recolhimento do compulsório de 100% em títulos públicos
para 30% em títulos e 70% em espécie; autorização para que o BCB disponibilizasse
parte das reservas internacionais, por meio dos bancos, para as empresas que
precisassem rolar financiamentos feitos no exterior; aumento da disponibilidade do
BNDES. Ao mesmo tempo, o governo reduziu a taxa de juros SELIC (Sistema
Especial de Liquidação e de Custódia) de 13,75% (dezembro de 2008) para 8,75%
(de julho a dezembro de 2009). (MARQUES; NAKATANI, 2011:6-7)

Não obtendo sucesso em impulsionar o crédito de origem não estatal, o Estado foi
obrigado, através das instituições BNDES, BB e CEF a aumentar sua participação na carteira
do sistema financeiro, que passou de 36,3%, em 2008, para 41,5% em 2009, demonstrando
que, apesar da intensidade das políticas neoliberais implementadas no país, inclusive com
inúmeras privatizações, tais instituições acabam exercendo um papel fundamental de
intervenção do Estado no mercado de crédito, importante principalmente para auxiliar as
empresas capitalistas num cenário adverso. (MARQUES; NAKATANI, 2011)
Como já mencionamos, as exportações sofreram grande queda, o que prejudicou um
país eminentemente exportador como o Brasil. Tendo isso em vista, o governo procurou
tomar medidas para incentivar o consumo interno e, com isso, amenizar os impactos destes
efeitos negativos sobre a economia brasileira. Assim, algumas medidas adotadas foram:

isenção do Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) na compra de carros


populares e eletrodomésticos; na redução do Imposto sobre Operações Financeiras
(IOF) na compra de motocicletas por pessoa física; redução para zero do IOF de
aplicação no mercado de capitais e operação de empréstimos e financiamentos
externos; redução do imposto de renda sobre aplicações financeiras para a pessoa
física; e criação de mais duas faixas de renda para o cálculo do imposto de renda,
tornando esse imposto um pouco mais progressivo. (MARQUES; NAKATANI,
2011: 7)
111

Mesmo após todas essas providências, o consumo familiar somente aumentou 4,1% no
ano de 2009, ficando abaixo dos dois anos anteriores, quando o aumento foi de 6,1% em 2007
e 7% em 2008. As exportações, por sua vez, caíram 10,3%, sendo que o setor mais
prejudicado foi o manufatureiro, o que, de fato, foi atenuado pelas medidas governamentais
para estimular o mercado interno139. Na área industrial, os setores mais afetados foram o de
transformação e o de construção civil, com quedas de 7% e 6,3%, respectivamente. As
importações também decaíram bastante em 2009, a uma quantidade de 11,4%, o que
possibilitou computar um superávit na balança comercial de 2,07%, maior do que o
apresentado no ano anterior. (MARQUES; NAKATANI, 2011)
Considerando a gravidade com que a crise abateu os países centrais do capitalismo, o
Brasil virou um país atrativo para os especuladores, tendo em vista fundamentalmente suas
altas taxas de juros e a facilidade que a lei promove no caso de remessas de lucros para o
exterior.
Em setembro de 2011, o governo reduziu as taxas de juros, interferindo, portanto,
justamente em um dos fatores que mais impulsionam esta onda especulativa e outra tentativa
para refreá-la oferece o risco de uma nova evasão descontrolada de capitais, como se deu no
episódio citado, quando a ―forte a retirada de capitais japoneses, com a venda de títulos
brasileiros‖ resultou ―momentos de incerteza e tensão no mercado de títulos e nas autoridades
monetárias brasileiras‖. (FALCÃO, 2012: 3)
Uma possível estabilidade aparente frente ao quadro crítico mundial camufla a grave
situação na qual o país está imerso. Os gastos com juros e com a crescente dívida pública
atingem valores preocupantes para a economia interna.140
Tentando encontrar meios para amenizar estes riscos, o governo Dilma achou
necessário tomar certas providências, como fez ao elevar os impostos sobre veículos
importados e desvalorizar a moeda brasileira, algo que, se por um lado foi aclamado
publicamente por uma parte do grande capital nacional, foi duramente criticado por outra,
pelo fato de tornar mais cara a maquinaria externa, da qual o setor industrial do Brasil ainda é
bastante dependente. Assim, no sentido de amenizar tais críticas, foi anunciado pelo Estado
uma renúncia fiscal de cerca de 25 bilhões de reais, satisfazendo, enfim, o interesse da classe
dos capitalistas em geral, sobretudo do setor produtivo.

139
Por exemplo, o setor automobilístico, que foi grandemente impactado pela crise, viu sua produção reduzida
em apenas 1% com relação ao ano anterior, de 2008. (MARQUES; NAKATANI, 2011)
140
―Nos últimos anos, o Brasil gastou mais de 200 bilhões de reais por ano (de 40 a 50% do orçamento federal)
no pagamento de juros e amortização da dívida pública, que, paradoxalmente ou não, continua em projeção
ascendente (3 trilhões de reais, sendo 2,400 trilhões a dívida interna e 600 bilhões a externa).‖ (FALCÃO, 2012:
3)
112

Entretanto, este valor somado ao corte de 50 bilhões de reais efetuado logo no começo
do mandato de Dilma acabou gerando uma situação bastante delicada no tocante às finanças e
gastos públicos. Com isso, ―a inflação saiu dos eixos, alcançando o teto da meta estabelecida
pelo próprio governo (6,5%), inflada especialmente pelos chamados ‗preços
administrados‘141.‖ (FALCÃO, 2012: 4)
O reflexo de toda esta situação financeira pode ser visto no âmbito social, quando uma
série de programas sociais meramente compensatórios, de cunho assistencialista procuram
amenizar de forma bastante paliativa a vida de miséria e pobreza relegada à grande parte da
classe trabalhadora.142
Se comparados com o suporte financeiro dado a instituições privadas, por exemplo, os
investimentos nestes programas são tão irrisórios que não restam dúvidas acerca de seu
caráter perverso e extremamente restrito, afundando as esperanças colocadas pela maioria da
população que fica à mercê das políticas sociais num governo dito ―popular‖.
A crescente dívida pública torna-se também argumento para explicar os cortes cada
vez maiores nos gastos públicos, principalmente no que concerne aos serviços sociais, tais
como educação, saúde, previdência social, bastante evidente ao nos atentarmos aos dados,
uma vez que, se em 1995 estes gastos representavam 56% da receita líquida, em 2010 era de
apenas cerca de 30%. (FALCÃO, 2012)
Outro fator alarmante foi o aviltamento dos vencimentos dos funcionários públicos das
três esferas governamentais, que ultrapassaram 100% e mesmo após uma década de governos
tidos como ―populares‖, não houve alteração neste quadro. Além disso, mesmo o governo
Lula tendo prometido dobrar o salário mínimo no seu primeiro mandato, seu reajuste foi de
58,4% durante seus dois mandatos e, considerando o alto índice e rotatividade de força de
trabalho no país, calcula-se que o salário médio praticamente não sofreu alterações entre os
anos de 2002 e 2009. (FALCÃO, 2012)
Os investimentos na área da Reforma Agrária foram de R$526 milhões em 2010,
durante um governo historicamente ligado às demandas não só da classe trabalhadora em seu
conjunto, mas do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) em especial. Este
valor foi surpreendentemente menor comparado à cifra de cerca de um milhão de reais
investidos durante o último ano do governo anterior, crítico ferrenho deste movimento social.

141
No caso, aqueles relacionados a ―serviços públicos sob controle do governo ou, o que é mais comum,
daqueles resultantes de privatizações que tiveram, quando da assinatura de seus contratos, garantias de reajustes
indexados - energia elétrica, telefonia etc‖. (FALCÃO, 2012: 4)
142
Considerando que há ―16,2 milhões de pessoas em situação de miséria absoluta (renda mensal inferior a 40
dólares), a metade delas na região Nordeste, que detém 28% da população do país, mas somente 14% do PIB‖.
(FALCÃO, 2012: 6)
113

Curiosamente, no ano de estreia do governo da presidenta Dilma, o valor gasto com


desapropriações não ultrapassou meros 60 milhões de reais, um dos mais ínfimos em muitos
anos, dado que podemos relacionar ao divulgado pelo Censo Agrário do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), que aponta que 44,5% das terras brasileiras estarem nas
mãos de menos de 1% dos proprietários rurais. (FALCÃO, 2012)
Considerando que ―o Brasil - como a agora 6ª economia do mundo - tem a 10ª pior
distribuição de renda e [é] o 84º país no atendimento aos direitos humanos básicos em 2011,
segundo os índices do IDH/PNUD/ONU‖, podemos confirmar mais uma vez através dos
números a imensa desigualdade social que desenha um abismo profundo entre as classes
antagônicas no nosso país. (FALCÃO, 2012: 5)
Se pensarmos de que forma o Brasil foi um dos últimos países a ser atingido pela crise
financeira global de 2008 e um dos primeiros a encontrar formas de amenizar seus impactos,
podemos citar o fato de que, por exemplo, sua dívida é menor, se comparada com a dos países
centrais, bem como o fato de ter grande produção de commodities, as quais cresceram
bastante, fundamentalmente a partir da segunda metade do ano de 2009, impulsionadas,
sobretudo, pelas importações da China, que atualmente é um dos países mais importantes com
relação ao comércio externo brasileiro. (SALVADOR, 2010: 623)
Outros fatores relevantes deste período foram que as operações de crédito em 2009
cresceram bastante durante o ano143, apesar de isso poder significar um maior endividamento
das famílias. O consumo interno também apresentou aumento, viabilizado principalmente por
políticas sociais nas áreas da previdência e assistência social144.

Em 2009, foram pagos 15,5 milhões de benefícios no Regime Geral de Previdência


Social (RGPS) aos trabalhadores urbanos; 7,9 milhões aos trabalhadores rurais; 3,4
benefícios assistenciais (BPC e RMV); e, 12,3 milhões de famílias receberam o
benefício do Programa Bolsa Família (PBF). Esses benefícios foram responsáveis
pela injeção de R$ 257,2 bilhões na economia em 2009, o que garantiu a
continuidade do consumo, independentemente da renda advinda do trabalho.
(SALVADOR, 2010: 624)

Assim que a crise deu sinais de impacto no país, o governo logo lançou mão de
políticas monetárias no sentido de socorrer principalmente o grande capital financeiro 145, sem

143
De acordo com dados divulgados pelo Banco Central, o estoque total de dinheiro emprestado cresceu 1,6%
em dezembro em relação ao mês anterior e chegou ao valor recorde de R$ 1,41 trilhão. No ano, o crescimento foi
de 14,9%. (SALVADOR, 2010: 623)
144
Essas políticas, que têm sido alvo permanente de ataques do neoliberalismo, transferem renda para mais de 39
milhões de pessoas. (SALVADOR, 2010: 623-4)
145
Considerando as medidas de combate à crise, que não têm impacto direto no caixa do governo (orçamento
público), o montante de recursos que foi despendido alcançou R$ 475 bilhões. Nesse valor estão, sobretudo, as
114

a exigência de qualquer forma de compensação, como manter ou ampliar os postos de


trabalho e direitos sociais, demonstrando a enorme influência que as instituições bancárias
exercem na economia brasileira.
Se considerarmos a política fiscal, podemos dizer que o Brasil é bastante rígido
comparado a outros países, uma vez que a Organização Internacional do Trabalho (OIT)
informou em 2009 que no ano anterior o país, dentre os que fazem parte do G-20, teve o
menor gasto relativo com medidas visando amenizar os efeitos da crise mundial. Ainda de
acordo com a OIT,

o Brasil gastou o equivalente a 0,2% do PIB em incentivos fiscais, ficando com o


pior desempenho entre os 32 países que também anunciaram recursos. A
Organização conclui, com base nas medidas contra a crise anunciadas por 32 países,
que o montante destinado a pacotes de estímulo chegou a US$ 1,19 trilhão, mas que
apenas 1,8% do total foi investido em ações de proteção social e somente 9,2% das
despesas foram destinadas a promover o emprego. (SALVADOR, 2010: 624-5)

Tendo em vista todo este panorama crítico de crise, poderíamos esperar que o governo
investisse mais em direitos sociais para tentar salvaguardar a população dos efeitos drásticos
da instabilidade econômica, porém, o que vimos foi uma sólida contenção nos investimentos
na área da seguridade social. O que o governo decidiu, de fato, foi ―fazer um superávit
primário efetivo do setor público de 1,93% do PIB, ou seja, já descontando o resultado dos
investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)‖.146 (SALVADOR, 2010:
625)
Os investimentos em saúde e educação, por sua vez, encontram-se bastante inferiores
aos padrões globais estabelecidos pelos países da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), sem contar que o fato de grande parte dos
trabalhadores brasileiros não estarem inclusos no sistema da Previdência Social, demonstra
claramente que sua universalização não é uma realidade no Brasil.
É importante ressaltar que as medidas tomadas pelo governo no sentido de amenizar
os efeitos negativos da crise a partir de desonerações tributárias acabaram intervindo no
financiamento do orçamento destinado à seguridade social que, já bastante medíocre, encontra

medidas adotadas no campo da política monetária, destacadamente as mudanças nas regras do depósito
compulsório, leilões com dólar e a linha de troca de moeda com o Federal Reserve (FED), que somaram R$ 284
bilhões. (SALVADOR, 2010: 624)
146
Lembrando que ―esse resultado financeiro superavitário foi também garantido pelas medidas extraordinárias
tomadas pelo governo federal no fim de 2009 para elevar as receitas fiscais, como o recolhimento de depósitos
judiciais e a antecipação de dividendos da Eletrobrás.‖ (SALVADOR, 2010: 625)
115

ainda mais dificuldades para dar conta de cobrir com suas próprias receitas as despesas
necessárias para seus três pilares – a assistência social, a saúde e a previdência social.
A própria Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB) informa que, em decorrência
de fatores ligados à crise, durante o ano de 2009, a arrecadação tributária diminuiu 3,05% em
relação à anterior, o que significa um decréscimo de R$ 21,5 bilhões, sendo que 49% desta
diminuição se deve aos tributos arrecadados com a Contribuição para o Financiamento da
Seguridade Social (Cofins) e a o PIS/Pasep, fundamentais para o financiamento da seguridade
social no Brasil. Isso ocorreu porque a crise agravou os indicadores macroeconômicos ligados
à arrecadação tributária, como ―a produção industrial, a lucratividade das empresas e a queda
no volume geral de vendas no varejo no ano de 2009 em relação a 2008. E, destacadamente,
as desonerações tributárias estimadas em R$ 24,9 bilhões‖. (SALVADOR, 2010:626)
A questão é que o financiamento da seguridade social fica ainda mais prejudicado por
conta da Desvinculação das Receitas da União (DRU), que transfere recursos de fontes
tributárias que seriam sua exclusividade para o orçamento fiscal, no intuito de compor o
superávit primário e poder, dessa forma, ser utilizado no pagamento de juros da dívida.147
Os recursos destinados à seguridade social são ainda usados para arcar com os
benefícios previdenciários dos servidores públicos federais, o que, de acordo com a lei,
deveria, na realidade, ser pago com recursos do Orçamento Geral e, portanto, financiados não
com recursos exclusivos da seguridade social, mas com tributos. Assim, ―as despesas com
inativos e pensionistas da União pagas com recursos da seguridade social superam R$ 50
bilhões, o que representa 15% do montante gasto nas funções orçamentárias de previdência,
assistência social e saúde―. (SALVADOR, 2010: 627)
De acordo com Salvador (2010), quando verificamos a questão do dito ―rombo― nas
contas públicas do país, podemos perceber que, na realidade, não é causado pelo tão
divulgado ―déficit da Previdência Social‖, mas sim pelo pagamento dos juros e da
amortização da dívida pública, que no fim de abril de 2009 já chegava a R$ 1,9 trilhão,
lembrando que 36% está atrelada à taxa de juros básica da economia (Selic) e que todo esse
valor representa 30% do orçamento público. Assim, é possível constatar que

no período de 2000 a 2009, o Fundo Público transferiu o equivalente a 45% do PIB


produzido em 2009 para os rentistas, o que seria suficiente para o governo federal
custear a educação durante 40 anos, se mantido o mesmo valor gasto 2009. Ou ainda

147
―O ‗Relatório resumido da execução orçamentária do governo federal e outros demonstrativos‘ divulgado
pela Secretaria do Tesouro Nacional, com dados de 2009, revela que a DRU desviou do Orçamento da
Seguridade Social para o Orçamento Fiscal o montante de R$ 39,2 bilhões. Já foram surrupiados desde 2000
mais de R$ 300 bilhões da seguridade social.‖ (SALVADOR, 2010: 626)
116

pagar por sete anos os benefícios previdenciários para mais de 23 milhões de


aposentados e pensionistas. (SALVADOR, 2010: 627)

Diante disso tudo, vemos como a crise de 2008 agravou ainda mais as já precárias
condições de trabalho, a desuniversalização das políticas sociais e o desmantelamento e
mercantilização dos direitos sociais. Mais especificamente no Brasil, alguns indicadores,
como o valor real do salário mínimo e o nível de emprego subiram, mas isso não significa
uma melhora de sua qualidade objetiva, ainda mais considerando que no Brasil a desigualdade
manteve-se gritante.
De acordo com dados de um relatório produzido em 2010 pelo Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento Humano (PNUD) acerca do Desenvolvimento Humano no
país e coletados por Yazbek (2014), a pobreza e a extrema pobreza tiveram uma redução,
porém suas raízes, os mecanismos que as (re)produzem não são questionados ou ao menos
levados em consideração, mantendo intactas as estruturas de poder e o modo de produção
responsáveis por esta questão.
117

4 Projeto ético-político do Serviço Social em crise?

A construção do projeto ético-político do Serviço Social está inserida no contexto


analisado anteriormente, entre as décadas de 1970 e 1980, ou seja, quando o capitalismo
enfrenta mais uma de suas crises, que já começam a mudar de figura — passando de crises
cíclicas a uma crise estrutural.
Nesta fase histórica, o Serviço Social brasileiro atravessava um momento bastante
conturbado, por conta não só da crítica, mas também do combate ao histórico
conservadorismo profissional. ―Histórico― porque acompanha o Serviço Social desde as suas
primeiras manifestações, estando mesmo no centro das suas bases fundadoras em nosso país.
Primeiramente, podemos citar sua relação com o pensamento social católico, que formatou
um tipo de ação fundamentada nos princípios assistencialistas e que procurava moldar o
comportamento da população das camadas mais pobres, ou seja, grande parcela da classe
trabalhadora, ao que requer a sociedade capitalista, tendo, portanto, caráter essencialmente
político. Se olharmos por um panorama mais geral da sociedade brasileira, o bloco católico
era um forte formador de opinião da direita, já que possuía vínculos bastante fortes com o
―fascismo nacional‖, sustentando posições conservadoras, legitimando o status quo e
empreendendo um combate ferrenho ao socialismo. (IAMAMOTO; CARVALHO, 2004)
Além disso, o pensamento conservador europeu também exerceu forte influência no
nascente Serviço Social brasileiro, com sua máxima expressão nas concepções de cunho
estrutural funcionalista de origem norte-americana e em alguns elementos da psicanálise. Foi
somente durante a década de 1960, com o Movimento de Reconceituação148, que a tradição
marxista começa a surgir\ no interior da profissão e todo este amadurecimento e acúmulo
teórico-político vai abrindo espaço para a pluralidade também nestes campos, estimulando o
debate entre as diversas vertentes que compõem a heterogeneidade da categoria, inclusive
dentro do próprio campo progressista.149
Este cenário lançou as bases para a construção de um novo projeto profissional, que,
enquanto inserido em um contexto maior, está diretamente ligado a determinado projeto

148
Trata-se de um ―marco decisivo no desencadeamento do processo de revisão crítica do Serviço Social no
continente [...], fenômeno tipicamente latino-americano [...], [que] implicou um questionamento global da
profissão: de seus fundamentos ideo-teóricos, de suas raízes sócio-políticas, da direção social da prática
profissional e de seu modus operandi.‖ (IAMAMOTO, 2006)
149
De acordo com Iamamoto (2014: 623-4), ―no universo dos pesquisadores que reivindicam um vínculo com a
tradição marxista, afloram maneiras de pensar e explicar a profissão sob diferentes matizes, sob a inspiração de
Marx, Gramsci, Lukács e influxos hegelianos. A ótica de leitura desses clássicos — assim como a leitura que é
feita de suas obras — direciona angulações privilegiadas na análise da profissão e de seu exercício: a ênfase no
trabalho, na práxis e na organização da cultura, na ideologia e na formação da consciência‖.
118

societário. Para compreendermos melhor esta relação, cabe agora definirmos e


caracterizarmos estes dois tipos de projeto de forma mais geral, para então nos atermos às
suas especificidades.

4.1. Projetos societários, projetos profissionais e seus componentes

Partindo da teoria social crítica, fundada na tradição marxista, entendemos que a


sociedade em si, simplesmente existe sem qualquer intencionalidade, ou seja, a teleologia não
é um atributo seu, mas sim de seus membros, os seres humanos que, estes sim, agem sempre
intencionalmente e teleologicamente. Isso quer dizer que suas ações, sejam individuais ou
coletivas, estão voltadas a atingir seus objetivos e interesses e isso é feito com base em um
projeto, legitimado por certos valores, que determinarão a escolha dos meios necessários para
se atingir tal finalidade.
Os projetos societários são, portanto, um tipo de projeto coletivo de nível
macroscópico, que visam atingir um determinado tipo de sociedade, fundamentada em certos
valores e meios culturais e materiais que pretendem conduzir à sua objetivação.
O arranjo que caracteriza a ordem capitalista torna os projetos societários
obrigatoriamente projetos de classe, ou seja, permeados por uma dimensão política150, já que
constituem um projeto coletivo, e envolvem, portanto, relações de poder e estão atrelados a
determinados interesses. Por estes motivos, devemos considerá-los como estruturas flexíveis,
passíveis de mudanças, que vão incorporando novas demandas, interesses e intenções,
moldados pelas transformações constantes do contexto sócio-histórico.
Num cenário em que as liberdades políticas fundamentais estejam garantidas, os
projetos societários que representam as diferentes classes podem concorrer entre si,
disputando o apoio dos membros daquela sociedade, enquanto que num quadro de governo
ditatorial, a classe dominante utilizará mecanismos de repressão e coerção para impor e
manter seu projeto.
No entanto, fica evidente que no sistema capitalista, ainda que se considere uma
democracia política, ―os projetos societários que respondem aos interesses das classes
trabalhadoras e subalternas sempre dispõem de condições menos favoráveis para enfrentar

150
O que não implica necessariamente uma identificação direta com posicionamentos de ordem partidária.
119

os projetos das classes proprietárias politicamente dominantes‖. (NETTO, 2009: 143; grifos
originais)
De acordo com Braz (2001: 2), ―os projetos societários podem ser, em linhas gerais,
transformadores ou conservadores. Entre os transformadores há várias posições que têm a ver
com as formas (as táticas e as estratégias) de transformação social‖.
Passemos agora à análise dos projetos profissionais, aqueles que dizem respeito às
profissões regulamentadas juridicamente e que requerem para seu exercício formação de nível
superior, via de regra. O corpo profissional constitui o sujeito coletivo responsável por sua
criação, envolvendo toda sua organização151, o que no caso do Serviço Social brasileiro,
corresponde fundamentalmente as entidades CFESS/CRESS (Conselho Federal de Serviço
Social/Conselhos Regionais de Serviço Social), ABEPSS (Associação Brasileira de Ensino e
Pesquisa em Serviço Social), ENESSO (Executiva Nacional dos Estudantes de Serviço
Social), além dos sindicatos e outras associações da categoria.
Tal organização deve ser sólida e estar fortificada para que o projeto profissional
angarie junto ao Estado, aos usuários de seus serviços, aos outros profissionais e às
instituições públicas e privadas, o reconhecimento e legitimidade esperados.
Assim como os projetos societários, os projetos profissionais também tem um caráter
transitório, uma vez que da mesma forma ficam sujeitos às alterações empreendidas não só no
contexto histórico em que a profissão se insere, mas também na composição social de sua
própria categoria, nas suas demandas profissionais, no seu desenvolvimento teórico e prático,
enfim, nos mais diversos determinantes daquela profissão.
Além disso, os projetos profissionais também são determinados por uma dimensão
política, seja na sua relação com os projetos societários ou nas expectativas específicas dentro
da própria profissão. No entanto, vale lembrar que quando se trata de um caráter reacionário
ou conservador, a tendência é procurar deixar esta dimensão em oculto, negando qualquer
dimensão política ou ideológica.
Após estas consideramos, concluímos, pelas palavras de Netto (2009: 144; grifos
originais) que

os projetos profissionais apresentam a auto-imagem de uma profissão, elegem os


valores que a legitimam socialmente, delimitam e priorizam seus objetivos e
funções, formulam os requisitos (teóricos, práticos e institucionais) para o seu
exercício, prescrevem normas para o comportamento dos profissionais e

151
Isso envolve, além de seus profissionais, ―as instituições que os formam, os pesquisadores, os docentes e os
estudantes da área, seus organismos corporativos, acadêmicos e sindicais etc.‖, ou seja, o ―conjunto dos
membros que dão efetividade à profissão‖. (NETTO, 2009: 144)
120

estabelecem as bases das suas relações com os usuários de seus serviços, com as
outras profissões e com as organizações e instituições sociais privadas e públicas
(inclusive o Estado, a quem cabe o reconhecimento jurídico dos estatutos
profissionais).

É importante lembrar que os indivíduos participantes da construção do projeto


profissional constituem uma unidade de diversos, ou seja, cada um com suas próprias
experiências de vida e posições ideológicas e políticas distintas, implicando assim em um
espaço heterogêneo, plural, carregado por divergências e contradições, o que pode resultar em
projetos profissionais os mais variados.
Ainda que um deles seja fortalecido e se afirme dentro de uma categoria, estas tensões
prevalecem, pois os diversos segmentos existentes no corpo profissional certamente tentarão
expor outros projetos. Portanto, mesmo obtendo hegemonia, não será único e sua construção e
consolidação devem ser obtidas através de um debate de ideias, rejeitando-se a possibilidade
de fazer este processo por meio da imposição, de forma coercitiva e excludente,
desconsiderando o pluralismo152 que há não só na profissão, mas na sociedade em geral.
Se nos atermos agora à relação entre os projetos societários e os projetos profissionais,
podemos afirmar que o mais comum é que os projetos profissionais que conquistem
hegemonia dentro de sua categoria esteja em sintonia com o projeto societário hegemônico.
Porém, quando o corpo profissional está voltado aos interesses da classe trabalhadora, o
projeto profissional construído não só entrará em conflito com o projeto societário
hegemônico, como será contraditório em relação a ele.
Esta situação agrava ainda mais os desentendimentos e os atritos no interior da
profissão, mas sua resolução não pode se restringir a este âmbito. De acordo com Netto (2009:
146),

seu direcionamento positivo exige a análise do movimento social (que é o


movimento das classes e camadas sociais) e o estabelecimento de relações e alianças
com outros corpos profissionais e segmentos sociais (aqui incluídos os usuários dos
serviços profissionais), principalmente aqueles vinculados às classes que dispõem de
potencial para gestar um projeto societário alternativo ao das classes proprietárias e
dominantes.

A categoria que representa os projetos profissionais em choque com o projeto


societário hegemônico precisam, no entanto, ter plena ciência de seus limites no interior da

152
Ressaltamos que o respeito ao pluralismo ―não deve ser confundido com uma tolerância liberal para com o
ecletismo [e] não pode inibir a luta de ideias. Pelo contrário, o verdadeiro debate de ideias só pode ter como
terreno adequado o pluralismo que, por sua vez, supõe também o respeito às hegemonias legitimamente
conquistadas‖. Lembramos ainda que o pluralismo pode sofrer uma degradação teórica, recaindo justamente no
ecletismo e política, desembocando no liberalismo. (NETTO, 2009: 146)
121

ordem do capital, pautados fundamentalmente nas condições institucionais impostas pelo


mercado de trabalho. Se isso for ignorado, corre-se o grande risco de cair seja no fatalismo ou
no messianismo153, estancando ainda que o mais avançado dos projetos.
Conforme vimos mais acima, na descrição do que vem a ser um projeto profissional,
verificamos que este tem inúmeras dimensões que precisam estar bem articuladas para
garantir a conquista de sua hegemonia. Já mencionamos também que o pluralismo
profissional é outro fator relevante quando falamos sobre este assunto e, por isso mesmo, é
importante que haja uma concordância entre a categoria quanto aos seus elementos
indicativos, ―aqueles em torno dos quais não há um consenso mínimo que garanta seu
cumprimento rigoroso e idêntico por todos os membros do corpo profissional‖ e imperativos,
―os componentes compulsórios, obrigatórios para todos os que exercem a profissão (estes
componentes, em geral, são objeto de regulação jurídico-estatal)‖154, mas que não estão a
salvo de despertar discordâncias. (NETTO, 2009: 147)
Para ilustrar o que acabamos de afirmar, basta pensarmos no Código de Ética das
profissões, que, apesar de seu caráter imperativo, e até mesmo com poder legal, ainda assim
são permeados por inúmeras tensões, suscitando discussões e divergências quanto aos
embater por conta de certos princípios, normas e seus desdobramentos.
Daí podemos inferir que os projetos profissionais requerem uma base de valores
éticos, a qual não fica restrita somente ao seu Código de Ética, mas os perpassa por completo.
Além disso, é importante compreendermos que

os elementos éticos de um projeto profissional não se limitam a normativas morais


e/ou prescrições de direitos e deveres: eles envolvem, ademais, as opções teóricas,
ideológicas e políticas dos profissionais — por isto mesmo, a contemporânea
designação de projetos profissionais como ético-políticos revela toda a sua razão de

153
De acordo com Iamamoto (2008: 115-6; grifos originais) certas ―distorções na análise da prática social
desdobram-se em dois comportamentos diante da prática profissional: a) de um lado, o fatalismo, inspirado em
análises que naturalizam a vida social, traduzido numa visão ‗perversa‘ da profissão. Como a ordem do capital é
tida como natural e perene, apesar das desigualdades evidentes, o Serviço Social encontrar-se-ia atrelado às
malhas de um poder tido como monolítico, nada lhe restando a fazer. No máximo, caberia a ele aperfeiçoar
formal e burocraticamente as tarefas que são atribuídas aos quadros profissionais pelos demandantes da
profissão; b) de outro lado, o messianismo utópico, que privilegia as intenções, os propósitos do sujeito
profissional individual, num voluntarismo marcante, que não dá conta do desvendamento do movimento social e
das determinações que a prática profissional incorpora nesse mesmo movimento. O messianismo traduz-se numa
visão ‗heróica‘, ingênua das possibilidades revolucionárias da prática profissional a partir de uma visão mágica
da transformação social. Fatalismo e messianismo: ambos prisioneiros de uma análise da prática social que não
dá conta da historicidade do ser social gestado na sociedade capitalista‖.
154
Como exemplo, podemos citar quanto ao Serviço Social brasileiro ―a formação acadêmica, tal como
reconhecida pelo Ministério da Educação (isto é, em instituições de nível superior credenciadas e segundo
padrões curriculares minimamente determinados), e a inscrição na respectiva organização profissional
(CRESS)‖. (NETTO, 2009: 147)
122

ser: uma indicação ética só adquire efetividade histórico-concreta quando se


combina com uma direção político-profissional. (NETTO, 2009: 148; grifo original)

4.2. A construção do projeto ético-político do Serviço Social: contexto histórico,


estrutura e seus elementos básicos

Conforme indicado no início do capítulo, o projeto ético-político do Serviço Social


começa a ser discutido quando, entre as décadas de 1970 e 1980, há um forte combate e
oposição ao conservadorismo profissional, cuja crítica já encontra raízes desde a década de
1960, no marco do Movimento de Reconceituação, mas só tomou força e adquiriu novas
feições a partir da crise da ditadura militar brasileira, ocorrida na transição entre as duas
décadas seguintes.
Estas novas feições se devem ao fortalecimento da classe trabalhadora155 na cena
política de resistência contra o regime ditatorial, antes dominada por setores burgueses
insatisfeitos, o que levou à derrocada de uma forma de governo que se valeu inclusive do
terrorismo de Estado para promover os interesses de uma parcela burguesa, em detrimento
especialmente dos trabalhadores e, da promoção da chamada modernização conservadora,
transitando para a eleição, ainda que indireta, de Tancredo Neves em 1985.
O contexto que se seguiu, na primeira metade da década de 1980 foi bastante
efervescente, indicando importantes mudanças no cenário sócio-político brasileiro, uma vez
que as demandas democráticas e populares que atravessaram mais de vinte anos de repressão,
finalmente vinham à tona com toda sua força. Dessa forma, alguns dos acontecimentos mais
importantes que o país assistiu foram

a mobilização dos trabalhadores urbanos, com o renascimento combativo de sua


organização sindical; a tomada de consciência dos trabalhadores rurais e a
revitalização das suas entidades representativas, o ingresso, também na cena política,
de movimentos de cunho popular (por exemplo, associações de moradores) e
democrático (estudantes, mulheres, ―minorias― etc.); a dinâmica da vida cultural,
com a reativação do protagonismo de setores intelectuais; a reafirmação de uma
opção democrática por segmentos da Igreja católica e a consolidação do papel
progressista desempenhado por instituições como a Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI). (NETTO, 2009: 149)

Assim, foi neste contexto que os assistentes sociais, atravessando o repressivo e


opressivo regime ditatorial e sendo atingidos pelos percalços impostos por seus ditames

155
Isso se deu principalmente ―por meio da mobilização dos operários métalo-mecânicos do cinturão industrial
de São Paulo (o ‗ABC paulista‘)‖. (NETTO, 2009: 149)
123

econômicos, passaram a perceber que faziam de fato parte das camadas trabalhadoras e a
ressoar a luta pela democracia com as demandas políticas e sociais que a quebra deste regime
trazia consigo. Isso tudo ofereceu a esta categoria a condição política para poder reagir contra
o conservadorismo que se fortalecia no âmago do corpo profissional, ainda que muitas vezes
aparecia sob novos traços e feições, procurando ocultar-se em diferentes roupagens, lançando
as bases para a construção de um novo projeto profissional.
Em meio a este cenário, o combate à ditadura militar e a recuperação de uma
democracia política foram traduzidos em um conflito entre distintos projetos societários
dentro da profissão, cujas vanguardas exerceram papel importante na associação com o
movimento dos trabalhadores, fortalecendo seus interesses e assimilando suas demandas
democráticas e populares156. Estes fatores revigoravam o pluralismo político no Serviço Social
e sua organização profissional, enquanto enfraqueciam cada vez mais o conservadorismo,
tendo consonância inédita com um projeto societário contrário aos interesses da classe
capitalista, o que não se deu sem embates, mas com extenso confronto de ideias.
A mudança constante no interior da própria categoria também foi um elemento que
colaborou para este processo de construção de um novo projeto profissional, já que não só
aumentava, como abarcava agora membros de diferentes setores sociais, principalmente da
camada média urbana, o que reverberava nessa necessidade de mudança. Porém, diante da
condição política que, conforme vimos já estava dada, eram necessários outros fatores para
que tal projeto se concretizasse de fato.
A acumulação teórica obtida neste período também foi de muita importância para o
projeto profissional que vinha se constituindo. Isso foi possibilitado a partir da legitimação
acadêmica do Serviço Social, ainda sob vigência da ditadura militar, com a Reforma
Universitária, tornando o espaço da pós-graduação da área responsável por uma grande
produção de conhecimentos. A massa crítica aí acumulada permitiu um diálogo mais próximo
às ciências sociais, fazendo sobressair novos quadros intelectuais.
Vale lembrar, conforme Netto (2009: 152; grifo original), que

o Serviço Social é uma profissão — uma especialização do trabalho coletivo, no


marco da divisão sócio-técnica do trabalho —, com estatuto jurídico reconhecido
(Lei n. 8.669, de 17 de junho de 1993); enquanto profissão, não é uma ciência nem
dispõe de teoria própria; mas o fato de ser uma profissão não impede que seus

156
Haja vista o III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, que ocorreu no ano de 1979, na cidade de São
Paulo e que foi um marco desta mobilização política da categoria, evento que ficou conhecido como ―Congresso
da virada‖. Neste evento, ―de forma organizada, uma vanguarda profissional virou uma página na história do
Serviço Social brasileiro ao destituir a mesa de abertura composta por nomes oficiais da ditadura, trocando-a por
nomes advindos do movimento dos trabalhadores‖. (BRAZ, 2001: 3-4)
124

agentes realizem estudos, investigações, pesquisas etc. e que produzam


conhecimentos de natureza teórica, incorporáveis pelas ciências sociais e humanas.
Assim, enquanto profissão, o Serviço Social pode se constituir, e se constituiu nos
últimos anos, como uma área de produção de conhecimentos, apoiada inclusive por
agências públicas de fomento à pesquisa (como, por exemplo, o Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico / CNPq).

Dentre as produções mais relevantes do Serviço Social, desde as décadas em questão


até o tempo presente encontram-se aquelas de caráter crítico, apoiadas fundamentalmente na
tradição marxista e no pensamento social de matriz moderna, que, apesar de sofrerem
atualmente os rebatimentos de uma crítica de cunho pós-moderno, possuem uma direção
teórica e metodológica de acordo com o momento de ruptura com o conservadorismo que
permeava a profissão e que contestava o sistema econômico e as relações sociais
característicos da ordem capitalista.
Dessa forma, também o pluralismo instaurado no campo da produção de conhecimento
teórico aproximou o Serviço Social dos projetos societários ligados aos interesses da classe
trabalhadora, significando uma clara rejeição não somente ao conservadorismo político, mas
ainda ao teórico e metodológico em que emergia a profissão.
Este desenvolvimento da produção teórica consequentemente impulsionou o debate
acerca da formação profissional, concluindo que era necessária uma reformulação de seu
ensino para incorporar esses avanços intelectuais no sentido de formar assistentes sociais com
um novo perfil profissional, que pudessem responder não só às suas demandas tradicionais,
mas dar conta de toda uma nova gama de demandas colocadas pela dinâmica do período
ditatorial a partir do agravamento da ―questão social‖.157
Foi posta, então, em curso uma revisão curricular, cuja proposta que serviu como
referência nacional partiu da Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo. A partir daí, houve uma reconfiguração da prática profissional, resultando na
sua expansão, ou seja, em novos campos de intervenção que se ampliam até hoje e estas
mudanças se fundamentam tanto nos novos conhecimentos que vão sendo produzidos na área,
como na legitimidade que os usuários vêm conferindo à ação profissional dos assistentes
sociais. Além disso, muitas práticas só foram possíveis de se consolidar institucionalmente

157
―As atuais diretrizes curriculares — propostas inicialmente pela Abess em 1996 e revistas em 1999 —, têm
no currículo mínimo aprovado pelo MEC em 1982, seu antecedente mais importante. Este foi proposto pela
Abess em 1979, em pleno período ditatorial, incorporando alguns avanços do movimento de reconceituação
latino-americano. O currículo mínimo expressa um processo de transição, parte da resistência acadêmica e
política tanto à ditadura militar implantada no país (1964-85) quanto ao Social Work, em sua difundida trilogia,
composta por Serviço Social de caso, de grupo e de comunidade. No currículo aprovado pelo MEC em 1982, a
matriz do ensino do Serviço Social centra-se nas ementas voltadas para História do Serviço Social, Teoria do
Serviço Social e Metodologia do Serviço Social além do estágio supervisionado‖. (IAMAMOTO, 2014: 614;
grifos originais)
125

neste contexto de redemocratização, a partir da conquista de novos direitos civis e sociais,


como foi o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90 atualizado com a
Lei nº 12.010 de 2009) e o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03).
Com os primeiros Códigos de Ética do Serviço Social, datando de 1947, 1965 e 1975,
sentiu-se a necessidade de congregar estes avanços num novo código, redigido em 1986. Seus
progressos na área política são indiscutíveis, reafirmando a recusa ao conservadorismo e o
compromisso com os interesses da classe trabalhadora. No entanto, como até então não era
dada muita atenção à questão ética, que veio a se fortalecer como debate importante na
profissão somente a partir deste ano, o projeto ficou um tanto defasado sobretudo nas suas
dimensões ética e profissional. Braz (2001: 4) aponta que o Código de Ética de 1986 ―soava
mais como uma carta de princípios e de compromissos ídeo-políticos do que um código de
ética que, por si só, exige certo teor prático-normativo. Mas, por outro lado, ao demarcar seus
compromissos, mais que explicitamente, não deixava dúvidas de ‗qual lado‘ estávamos‖.
Estas limitações demandaram uma nova revisão em 1993, que perdura até hoje. Nela,
problemas anteriores foram superados e a evolução teórica e intelectual da profissão e seu
enriquecimento no debate ético foram absorvidos, tornando este documento fundamental para
a constituição do projeto ético-político profissional.
Os elementos básicos deste projeto são aqueles que devem manter-se para não desviá-
lo de seus eixos fundamentais, mantendo-o, portanto, aberto e flexível para englobar novas
questões e desafios, estando em constante processo de mudanças.158
No âmbito estritamente profissional, os assistentes sociais devem estar comprometidos
com a competência de seu trabalho, visando seu constante aperfeiçoamento intelectual. Para
tanto, o ensino acadêmico deve voltar-se justamente para formar profissionais com
capacidade de análise crítica do contexto sócio-histórico, fundado em uma concepção teórico-
metodológica consistente, que favoreça este pressuposto. A formação contínua deve ser
estimulada, unida a uma preocupação investigativa, elementos que conduzirão o profissional
(ou futuro profissional) a uma postura voltada sempre para a qualidade dos serviços prestados
aos usuários, em qualquer que seja o âmbito em que estiver atuando. Visando a
democratização e universalização do acesso a estes serviços, compromete-se também a tornar
públicos os recursos da instituição e a promover a participação popular nas decisões
institucionais.

158
Prova disso são as ―discussões acerca da formação profissional, produzida com as modificações advindas da
vigência da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional/LDBEN (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996):
as orientações propostas por representantes do corpo profissional (cf. ABESS, 1997, 1998) ratificam a direção da
formação nos termos do projeto ético-político‖. (NETTO, 2009: 155)
126

O núcleo do projeto centra-se no valor da liberdade, compreendida enquanto


possibilidade de escolha entre alternativas concretas, o que conduz à valorização também da
emancipação, da autonomia e da expansão plena dos indivíduos sociais. Como já abordado, o
respeito ao pluralismo é promovido seja no âmbito da sociedade ou no âmbito interno, da
profissão, rechaçando qualquer forma de arbítrio ou preconceitos e aos direitos humanos é
garantida sua defesa intransigente.
A sua dimensão política está voltada para a justiça social e a equidade, no sentido de
universalizar o acesso aos bens e serviços provenientes das políticas sociais, para a promoção
e ampliação dos direitos civis, políticos e sociais da classe trabalhadora, firmando um
compromisso com seus interesses, e para a democratização não só enquanto socialização da
participação política, mas da distribuição da riqueza que é produzida socialmente.
O interessante deste projeto é que ele não tem um caráter simplesmente corporativo,
que busca garantir os interesses e angariar certas vantagens instrumentais somente à sua
categoria profissional, procurando obter maior status ou legitimidade profissional perante a
sociedade. Na realidade, ele comporta em si uma universalidade que se alastra não só por
conta de um norte para a atuação profissional que fortaleça os interesses da classe
trabalhadora, mas vai além, contendo uma dimensão histórica e ético-política, que condiciona
sua dimensão técnico-profissional.
Isso faz com que reafirme, na práxis social, as categorias da teleologia e da liberdade e
tenha como direção os interesses coletivos, ou da ―grande política‖. Para explicar melhor,
vejamos o que diz Iamamoto (2011: 227-8; grifos originais) a respeito:

A política no sentido amplo não se restringe ao Estado e nem à relação entre


governado e governante. É tratada por Gramsci [...] como o momento catártico, isto
é o que permite aos homens ultrapassarem os determinismos econômicos que os
constitui, incorporando-os e transformando-os em meio de sua liberdade, em
investimentos voltados para criar uma nova forma ético-política da vida em
sociedade. Eles dão origem a novas iniciativas, permitindo a constituição de um
sujeito histórico, graças à elaboração de uma vontade coletiva. Isto requer a
articulação dessas iniciativas em um bloco histórico majoritário, vinculado a uma
classe nacional, que aspira à hegemonia na sociedade e, portanto, dispõe de um
projeto para a sociedade. Por tudo isso, os projetos profissionais são indissociáveis
de projetos societários, o que supõe impregnar o exercício profissional da grande
política. Assim, o trabalho profissional cotidiano passa a ser conduzido, segundo os
dilemas universais, relativos à re-fundação do Estado e sua progressiva absorção
pela sociedade civil — da produção e distribuição mais equitativa da riqueza, da luta
pela ultrapassagem das desigualdades pela afirmação e concretização dos direitos e
da democracia.

É a partir de nossa atuação profissional cotidiana que este projeto profissional pode se
materializar, a partir das inúmeras modalidades interventivas da profissão, sistematizadas
127

enquanto projeto coletivo a partir de ―mecanismos políticos, instrumentos/documentos legais


e referenciais teóricos, [que] emprestam não só legitimidade como também operacionalidade
prático-político e prático-normativo ao projeto‖. (BRAZ, 2001: 5)
Braz (2007: 6; grifos nossos) constata três dimensões fundamentais do projeto ético-
político do Serviço Social, que se articulam no seu interior e lhe conferem materialiadade:

a) uma dimensão teórica, que envolve o conjunto da produção de conhecimentos no


Serviço Social; b) uma dimensão jurídico-política, identificada no âmbito dos
construtos legais da profissão (tanto as leis estritamente profissionais, quanto a
legislação social mais ampla); c) e uma dimensão político-organizativa, ancorada
nos fóruns coletivos das entidades representativas do Serviço Social.

Vamos analisá-las mais detidamente para compreendê-las um pouco melhor. A


primeira delas, diz respeito às sistematizações da prática, ao aspecto investigativo, que produz
elementos de reflexão, especulação e de prospecção da profissão e da sociedade. No caso do
Serviço Social, esta dimensão está baseada nas tendências teórico-críticas, fundamentalmente
as do marxismo, portanto, o projeto ético-político atual rejeita teorias de cunho conservador,
cuja perspectiva é manter a ordem social vigente.
A segunda diz respeito aos documentos legais, textos políticos, leis e resoluções que
compõem o aparato jurídico-político e institucional do Serviço Social, que pode ser
distinguido em dois níveis. O primeiro deles, mais específico, é voltado para a própria
profissão, como é o caso dos três documentos principais que conformam sua legislação — a
Lei de Regulamentação da Profissão (Lei nº 8.662/93), as Diretrizes Curriculares e o nosso
Código de Ética. De acordo com Iamamoto (2011: 224), eles representam ―uma defesa da
autonomia profissional, porque codifica princípios e valores éticos, competências e
atribuições, além de conhecimentos essenciais, que têm força de lei, sendo judicialmente
reclamáveis‖.
O segundo nível, mais geral, envolve as leis provenientes do capítulo referente à
Ordem Social presente na Constituição Federal de 1988, conquista de lutas sociais que
englobam o conjunto da classe trabalhadora — incluídos aí os assistentes sociais — e que
representam um importante instrumento na sua atuação profissional, uma vez que, além de
conterem muitos dos valores incorporados ao nosso projeto, garantem e viabilizam certos
direitos por meio principalmente das políticas sociais, meio privilegiado de atuação da nossa
categoria.
128

Por fim, a última dimensão abarca não só as entidades representativas do Serviço


Social, como também seus fóruns consultivos e de deliberação159, espaços em que, apesar de
conterem certa tensão e conflitos, por conta da heterogeneidade da categoria, ao reforçar ou
rejeitar certos princípios e compromissos em nome da profissão, delineiam de forma
democrática e aberta as características fundamentais de nosso projeto ético-político.
É a articulação dessas três dimensões que dará a materialidade necessária ao nosso
projeto ético-político, mas que atualmente estão fortemente ameaçadas pelo contexto histórico
em que estão inseridas fazendo-nos questionar se nosso projeto ético-político profissional está
atravessando uma crise.

4.3 Projeto ético-político do Serviço Social em crise?

4.3.1 Precarização da formação e da prática profissional

Para podermos responder se o projeto ético-político do Serviço Social está em crise,


precisamos primeiramente problematizar dois aspectos da profissão que passam por um
momento crítico, devido às ameaças impostas pela própria conjuntura contemporânea da
sociedade: a formação e a prática profissional.
Ressaltamos, porém, que nosso objetivo aqui não é fazer uma análise detalhada desses
elementos, o que não caberia neste espaço, devido à sua enorme complexidade e múltiplas
determinações, mas pretendemos traçar algumas configurações atuais que incidem
diretamente no projeto profissional de forma a colocar certos questionamentos que a categoria
deve estar atenta.
Começaremos pela formação profissional, que constitui um dos pilares do projeto
ético-político do Serviço Social, já que condensa tanto a sua dimensão teórica a parir da
produção de conhecimentos, como o desenho do perfil profissional desejado também enfrenta
uma situação crítica, não somente para os cursos de Serviço Social, mas que reflete o estado
deplorável do ensino superior brasileiro em geral, que cada vez mais assume traços de uma
mercantilização e massificação desenfreada, iniciada desde o governo de Fernando Henrique

159
Inserem-se aí ―o conjunto CFESS/CRESS (Conselho Federal e Regionais de Serviço Social) a ABEPSS
(Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social) e as demais associações político-profissionais,
além do movimento estudantil representado pelo conjunto de CAs e DAs (Centros e Diretórios Acadêmicos das
escolas de Serviço Social) e pela ENESSO (Executiva Nacional de Estudantes de Serviço Social)‖. (BRAZ,
2001: 6)
129

Cardoso (FHC) e que Lula aprofundou. Isso foi feito a partir da multiplicação de cursos de
nível superior privados não só presenciais, mas a proliferação da modalidade à distância 160,
que são implementados sem qualquer critério que certifique sua qualidade e estando à revelia
de uma frágil regulação estatal.
Agrava-se ainda o fato de que não há um conteúdo básico comum para a formação,
que fica à mercê das determinações de cada unidade de ensino, as quais, ainda que precisem
manter os núcleos de fundamentação expostos na organização curricular161, se alinhas à lógica
de mercado, ou seja: além de focalizarem o ensino somente para o que interessa ao mercado
de trabalho, os professores constituem uma força de trabalho altamente explorada,
especialmente no setor privado e, portanto, encontram enormes dificuldades em se dedicar à
pesquisa e a estruturar um pensamento teórico fundado na perspectiva de totalidade.
As implicações deste rebaixamento do nível do ensino superior para a formação e o
exercício dos assistentes sociais é a progressiva mudança do seu perfil profissional, que pode
até crescer em quantidade162, mas com qualidade discutível, justamente pela falta de
fiscalização dos novos cursos.
Todo esse processo de massificação, mercantilização e precarização do ensino
superior passa pela Reforma Universitária (ReUni)163. Há dez anos, Braz (2004: 60) foi capaz
de antever o que esta Reforma, ainda incipiente, indicava:

uma refuncionalização da universidade pública buscando torná-la mais próxima às


necessidades do mercado, no sentido de oferecer-lhe mão-de-obra qualificada. O

160
―Trata-se de uma expansão que se deu a partir de dezembro de 2005 quando, de maneira antidemocrática, por
meio de decreto, o Presidente Lula autorizou o funcionamento dessa modalidade de ensino no País, como parte
da recém-anunciada meta do Governo de abranger, em meia década, 30% da população entre 18 e 24 anos, no
ensino superior‖. (BRAZ, 2007: 8) Dados mais recentes, trazidos no artigo de Iamamoto (2014:612),
demonstram que existiam, ―em agosto de 2011, 358 cursos de graduação autorizados pelo MEC, dos quais
dezoito de ensino a distância (EAD) que ofertam, no mesmo ano, 68.742 vagas. Na modalidade presencial os
340 cursos ofertam, em 2011, 39.290 vagas, segundo as Sinopses Estatísticas do MEC, totalizadas por Larissa
Dahmer, em 2013.1 As matrículas em cursos de Serviço Social assim se distribuem, em 2011: na modalidade
EAD 80.650 matrículas e na modalidade presencial 72.019 matrículas‖.
161
A saber: núcleo de fundamentos teórico-metodológicos e ético-políticos da vida social; núcleo de formação
sócio-histórica da sociedade brasileira e do significado do Serviço Social no seu âmbito e núcleo de fundamentos
do trabalho profissional. (Cf. Iamamoto, 2014)
162
Segundo Iamamoto (2014: 612), atualmente ―o contingente de assistentes sociais brasileiros é o segundo no
cenário mundial, com 135 mil profissionais ativos, conforme dados do Conselho Federal de Serviço Social
(CFESS), apenas superado pelos EUA, num total de 750 mil assistentes sociais no mundo, conforme a
International Federation of Social Workers (IFSW)‖.
163
Ou a ―contra-reforma universitária neoliberal‖, que, apesar de ter sido criada na gestão de FHC, vem sendo
aprofundada pelo governo Lula. A principal diferença entre esta contra-reforma nas duas gestões é que: ―Lula a
implementa com as ‗bênçãos‘ de várias organizações políticas do mundo universitário (veja o caso da ANDIFES
e o da UNE especialmente) e, parcialmente, do mundo sindical, já que, se por um lado, o movimento sindical
docente manteve sua autonomia, o mesmo não se pode dizer do movimento dos técnico-administrativos. Tal
diferença é que atribui à contra-reforma universitária de Lula um caráter mais ameaçador‖. (BRAZ;
RODRIGUES, 2013)
130

tema da autonomia financeira reaparece sob a roupagem da criação de novos canais


de financiamento às universidades públicas. Outro tema polêmico refere-se à criação
de ‗vagas públicas‘ nas universidades privadas, como forma de ampliar o acesso ao
ensino superior. Aqui, o governo demonstra que pretende investir nas privadas,
ampliando suas formas de financiamento direto e indireto (no caso, com renúncia
fiscal). Não se trata de se opor à ampliação do acesso ao ensino superior que a
medida poderá trazer, mas sim de questionar a qualidade de ensino que será ofertada
aos estudantes que não conseguem ingressar nas públicas. Mais que isso, cabe
indagar sobre as razões que levam o governo a preferir abrir vagas nas privadas a
ampliá-las nas públicas, melhorando as suas condições para tal.

Sem contar que o corpo docente destas instituições precisam enfrentar um grande
aviltamento de suas condições de trabalho. Diante disso tudo, a sólida base teórico-acadêmica
que o Serviço Social veio construindo ao longo de todos esses anos de amadurecimento e
acúmulo teórico se vê diante de grandes obstáculos, já que seu retrocesso compromete não só
a práxis profissional, mas também a direção social impressa ao nosso projeto ético-político.
Pensando agora na prática profissional, lembramos que inúmeros são os avanços
conquistados desde a década de 1980 para o Serviço Social tanto no campo teórico quanto no
campo político, conformando um projeto profissional de construção coletiva de uma categoria
na projeção de uma imagem ideal de sua profissão e que buscará meios para sintonizá-lo à
formação e à prática profissionais e, assim, concretizá-lo. Isso, porém, não é tarefa fácil, uma
vez que temos

de um lado, as diretrizes, os valores, os fundamentos e requerimentos teóricos e


políticos expressos no projeto ético-político profissional; de outro, os determinantes
técnico-institucionais e da divisão sociotécnica do trabalho que mediatizam a
produção e a reprodução social. Defronta-se a cultura profissional, marcadamente
crítica e de esquerda, com as contradições e dinâmicas econômico-políticas e
institucionais próprias da sociedade do capital. (MOTA, 2014: 700)

Isso significa que o Serviço Social é uma profissão que se vê tensionada em seu
exercício por estar atravessada por uma contradição: ―a necessidade de responder às
demandas institucionais à profissão — uma condição de sua existência — e, pelo mesmo
caminho, colocar em questão o processo de produção e reprodução social que geram aquelas
demandas‖. (Mota, 2012: 42)
Essa correlação de forças é operada na dinâmica da luta de classes, ou seja,

as condições que circunscrevem o trabalho do assistente social expressam a


dinâmica das relações sociais vigentes na sociedade. O exercício profissional é
necessariamente polarizado pela trama das relações e interesses sociais e participa
tanto dos mecanismos de exploração e dominação quanto, ao mesmo tempo e pela
mesma atividade, de respostas institucionais e políticas às necessidades de
sobrevivência das classes trabalhadoras e da reprodução do antagonismo dos
interesses sociais. (IAMAMOTO, 2014: 610)
131

Vemos assim, que o trabalho do assistente social tem uma dimensão dupla, marcada
por uma íntima relação entre o trabalho assalariado e o projeto profissional, e com isso não
encontram de imediato uma identidade entre a intencionalidade delineada em seu projeto e os
efeitos que sua ação profissional produz na realidade, uma vez que, enquanto parte da classe
trabalhadora, estão sujeitos à mercantilização de sua força de trabalho, ao alienante trabalho
abstrato e à precarização do trabalho assalariado em geral.
Essa precarização se dá a parir dos entraves que os empregadores colocam ao trabalho
do assistente social, como exigências burocráticas e de produtividade, a escassez de recursos e
verbas, a contratação por tempo parcial ou por projeto, as terceirizações, a imposição metas,
critérios e condições como ―jornada, ritmo e intensidade do trabalho, direitos e benefícios,
oportunidades de capacitação e treinamento―, além dos recursos materiais, humanos, técnicos
e financeiros de que dependemos para a realização do nosso trabalho. (IAMAMOTO, 2009:
182)
Além disso, as novas exigências do mercado, exaltam um profissional polivalente,
descaracterizando o Serviço Social, podendo levar à sua desprofissionalização, pois o que é
valorizado na intervenção é um conhecimento meramente prático e não um trabalho
intelectual.
Em outro texto, Iamamoto (2014: 632-3; grifos originais) descreve bem o quadro
dramático que os assistentes sociais enfrentam no mercado de trabalho e em seus espaços
ocupacionais no cenário contemporâneo:

em um contexto recessivo, os assistentes sociais também sofrem a


desregulamentação do trabalho formal, a perda do acesso aos direitos trabalhistas e
do salário indireto, os rebaixamentos salariais. Cresce o trabalho precário,
temporário, a contratação por projetos, que geram: insegurança da vida dos
profissionais mediante a ausência de horizonte de largo prazo de emprego e a perda
de direitos. A ameaça de desemprego e a experiência do desemprego temporário
afetam diretamente a sobrevivência material e social do assistente social, que
depende da venda de sua força de trabalho para a obtenção de meios de vida, como
qualquer trabalhador assalariado. Essa precarização das condições de trabalho
atinge a qualidade dos serviços prestados e a relação com a população; projetos
são abruptamente interrompidos quando termina o seu financiamento temporário;
expectativas da população envolvida nas atividades são frustradas, a legitimidade
obtida para realização do trabalho do assistente social é truncada, além de outras
incidências de ordem ética.

Seus campos de atuação, configuram-se, portanto, em ―domínios estruturados pelas


políticas e instituições, articulados aos modos de produção vigentes, com normas, funções,
competências, hierarquias, enfim relações de poder e saber‖. Isso certamente incidirá nos
resultados da ação profissional, restringindo cada vez mais essa relativa autonomia de que o
132

assistente social dispõe e submetendo sua prática cada vez mais às armadilhas da alienação.
(FALEIROS, 2014: 707)
Mas essa imagem ideal da profissão e os planos que dela advêm sofrem influência
direta e é redimensionado pelos interesses em conflito presentes nas demandas colocadas a
responder e as lutas sociais mais amplas que representam. Residem nestas determinações os
limites da ação profissional e uma clara ofensiva do projeto societário hegemônico ao projeto
hegemônico da profissão, pois, uma vez que o sistema capitalista não consegue se sustentar
apenas através de mecanismos coercitivos, opressores da luta das classes exploradas, precisa
de certo consenso, o que obtém através de um controle social que de certa forma o legitime ou
traga o mínimo de aceitação pelo conjunto da sociedade, conforme vimos brevemente no
capítulo anterior.
Para exercer esse controle utiliza agentes sociais que atuem de forma particular na
vida dos indivíduos para reforçar a adoção de valores e comportamentos funcionais à
reprodução da ordem social vigente e o assistente social é visto e tido como um desses
agentes, como um instrumento voltado para legitimar as bases ideológicas e sociais que dão
sustentação a esta ordem para que ela possa se manter e se renovar.
Isso ocorre, pois na sua atuação, o assistente social se encontra não só diante das
expressões da ―questão social‖, mas com a própria consciência que os usuários de seus
serviços tem dessas expressões. A luta pela garantia e ampliação dos direitos da classe
trabalhadora nessa sociedade reflete os movimentos de hegemonia e contra-hegemonia, que se
dão na complexidade do cotidiano. Enquanto detentora de um projeto ético-político
hegemônico que reforça os interesses desta classe, o Serviço Social se inscreve na perspectiva
contra-hegemônica, mas sua busca pelo fortalecimento de direitos tem como horizonte a
construção de uma nova ordem social, que supere a sociabilidade burguesa.
Assim, se esse contexto representa uma clara ofensiva do projeto societário
hegemônico, Mota (2012: 42) vê que durante momentos como esse, ―de regressão política, é
preciso acumular forças, fortalecer princípios e redefinir pedagogicamente os meios que
possibilitem a construção de uma unidade entre os princípios teórico-metodológicos e
políticos e o campo do exercício profissional‖.
Aí reside o que Yazbek (2014: 681) chama de dimensão político-ideológica da
profissão, já que, conforme vimos, seu exercício profissional é permeado por um processo
contraditório, sendo polarizado pelos antagônicos interesses das classes sociais fundamentais.
Contudo, é importante o assistente social ter em mente que nessa dinâmica, ―o mesmo
movimento que permite a reprodução e a continuidade da sociedade de classes cria as
133

possibilidades de sua transformação‖, o que exige estratégias bem planejadas para encontrar
possibilidades caminhos de intervenção perante essa correlação de forças.
Após compreendermos um pouco a dinâmica deste espaço contraditório em que o
Serviço Social atua, vamos analisar mais detidamente alguns dos espaços institucionais em
que o assistente social se insere e como vêm se configurando na contemporaneidade. Com as
mudanças na própria configuração da sociedade capitalista, surgem para estes profissionais
novas demandas e espaços ocupacionais, bem como um redimensionamento dos antigos. O
público usuário de seus serviços também é reconfigurado e/ou ampliado, as formas de
intervenção e o conteúdo se seu trabalho também são alterados, conforme aponta Raichelis
(2013: 619-620)

a dinâmica societária desencadeada pela crise contemporânea [...] atinge a totalidade


dos processos produtivos e dos serviços, alterando perfis profissionais e espaços de
trabalho das diferentes profissões, e também do Serviço Social, que tem na prestação
de serviços sociais seu campo de intervenção privilegiado e nas instituições sociais
públicas e privadas seu espaço ocupacional.

Sendo o Estado historicamente nosso maior empregador, é importante resguardamos a


distinção existente entre a nossa profissão e a obrigação das diversas instâncias
governamentais que dizem respeito à implementação das políticas públicas, ainda que elas se
constituam não só no fundamento histórico pela qual a profissão se mantém enquanto
socialmente necessária, como também numa das formas de se responder às expressões da
―questão social―. Porém, estes fatores não fazem desse profissional um mero agente de
operacionalização das políticas públicas.
Esse distanciamento, essa certa autonomia que a profissão angaria frente a política
pública é importante para compreendermos que, apesar de serem um campo profissional
privilegiado de atuação dos assistentes sociais, o antagonismo entre o projeto profissional em
que se baseiam e o projeto a que estas políticas estão vinculadas, dando margem para
inúmeros embates políticos e teóricos quanto à direção social da profissão.
Segundo Faleiros (2014: 720), essa configuração de forças constituem ―relações de
dominação e relações que apontam o processo emancipatório da dinâmica da contestação,
inclusive na efetivação dos direitos‖, os quais, apesar de serem apresentados como
―universais‖, são obstruídos pela lógica da sociedade burguesa, que os torna fragmentados,
seletivos e focalizados, o que desconstroi o mito da ―universalização dos direitos sociais‖.
Além disso, analisando as políticas sociais contemporâneas, vemos que elas trazem
embutidas um discurso de luta contra a pobreza, mascarando a luta de classes. Os pobres, por
134

sua vez, são responsabilizados pela pobreza, fenômeno que acaba sendo esvaziado de seus
determinantes estruturais e a ―questão social‖ vai passando por uma intensa despolitização, o
que exige que a classe trabalhadora assuma e fortaleça cada vez mais seu protagonismo
político.
Vale lembrar ainda que as políticas sociais, âmbito privilegiado de atuação deste
profissional, constitui também o ―lugar onde a profissão participa de processos de resistência
e constrói alianças estratégicas na direção de um outro projeto societário‖. (YAZBEK, 2014:
678)
Vejamos, então, a partir das contribuições de Mota (2014), como alguns dos principais
espaços ocupacionais do Serviço Social na contemporaneidade se configuram, já que incidem
diretamente sobre o projeto ético-político profissional.
Comecemos com um dos espaços tradicionalmente mais ocupados pelos assistentes
sociais — o campo da Seguridade Social. Na década de 1990, o campo da Assistência Social
passou por inúmeras mudanças na sua gestão, gerenciamento e nas suas ações, tendo
expandido sua oferta de serviços e conduzido significativas alterações ―seja nos processos
relacionados à violação de direitos e que exigem articulação interinstitucional e domínio de
especificidades legais, seja no âmbito dos programas especiais e nos de transferência de
renda‖. (MOTA, 2014: 696)
Na Saúde é evidente o aumento da terceirização de inúmeros serviços, bem como a
ampliação da oferta de planos de saúde, que constituem um espaço ocupacional em
crescimento para os profissionais da área, incluindo os assistentes sociais. Além disso, a saúde
mental passou por uma série de modificações em seus programas, que adquiriram uma nova
perspectiva e os serviços de emergência e pronto atendimento foram ampliados.
O âmbito da Previdência Social passou por transformações claramente relacionadas às
reformas implementadas nesta área, à precarização do trabalho, seja no meio rural ou urbano e
as modificações na legislação trabalhista e previdenciária, implicando em uma reconfiguração
da atuação do Serviço Social, diante de novas demandas, que exigem outras competências por
parte de seus profissionais. Algumas dessas mudanças, descritas por Mota (2014: 696; grifos
originais) provêm da

existência de teste de meios para benefícios e aposentadorias rurais, ou do


surgimento dos novos contribuintes da Previdência, num leque de situações que vai
dos trabalhadores por conta própria, microempresários, contribuintes individuais
voluntários, até a cobertura e contribuição das donas de casa, inscritas no cadastro
social único (CadÚnico). A essas se juntam questões relacionadas à precarização e
135

adoecimento no trabalho, aos acidentes de trabalho e informalidade, às doenças


profissionais e à requalificação profissional, entre outras.

Outro espaço ocupacional para os assistentes sociais que vem crescendo são os
programas de caráter emergencial, seletivos, focalizados e fundamentalmente assistencialistas,
em que parte das políticas de acesso ou inserção promovidos especialmente pelo chamado
―terceiro setor‖164 procuram dar conta das defasagens que a falta de uma política voltada de
fato para a universalização dos direitos sociais poderia promover. Isso prejudica uma prática
profissional que leva em conta a ―defesa das políticas públicas de responsabilidade estatal,
tanto na saúde, na previdência, na assistência social e nas demais políticas sociais‖. (BRAZ,
2004:59-60)
Além destes campos tradicionais de atuação do assistente social, o sociojurídico vem
ganhando destaque nestas últimas décadas, com a ampliação e criação de postos de trabalho
para estes profissionais nas mais diversas instituições jurídicas que o compõem, desde a
intensificação das lutas pela redemocratização da sociedade na derrocada da ditadura militar e
a promulgação da Constituição de 1988. Estas mudanças ganham ainda mais força a partir dos
anos 2000, com uma radicalização das expressões da ―questão social‖ que incidem
diretamente nesta área, ―como o crescimento da violência, a criminalização das drogas, os
mecanismos de criminalização da pobreza, a prática da judicialização dos direitos e garantias
sociais‖. (MOTA, 2014: 697)
O campo da habitação, moradia e ocupação do espaço urbano de modo mais geral é
outro setor que vem requerendo maior atuação do Serviço Social, com a intensificação da
política habitacional após o desmantelamento daquela originada durante o regime ditatorial.
Este aumento da demanda ocorreu principalmente pelas desapropriações em decorrências das
grandes construções de infraestrutura e para os megaeventos no país e com o programa Minha
Casa, Minha Vida, instituído pelo governo federal no ano de 2009 e que segue os ditames do
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

164
―O chamado ‘terceiro setor’, na interpretação governamental, é tido como distinto do Estado (primeiro setor)
e do mercado (segundo setor). O chamado 'terceiro setor' é considerado como um setor ‗não-governamental‘,
‗não-lucrativo‘ e voltado ao desenvolvimento social, e daria origem a uma ‗esfera pública não-estatal‘,
constituída por ‗organizações da sociedade civil de interesse público‘. No marco legal do terceiro setor no Brasil
são incluídas entidades de natureza as mais variadas, que estabelecem um termo de parceria entre entidades de
fins públicos de origem diversa (estatal e social) e de natureza distinta (pública ou privada). Engloba, sob o
mesmo título, as tradicionais instituições filantrópicas, o voluntariado e Organizações Não-Governamentais:
desde aquelas combativas que emergiram no campo dos movimentos sociais àquelas com filiações político-
ideológicas as mais distintas, além da denominada ‗filantropia empresaria’.‖ (IAMAMOTO, 2009: 190; grifos
originais)
136

Verificamos mudanças também na relação do Serviço Social com os movimentos e


organizações da classe trabalhadora, fortalecendo uma atuação voltada para a assessoria, para
a formulação de cunho político e intelectual e para a formação de quadros militantes e
políticos, além de forte atuação nos conselhos nacionais e até mesmo na formulação de
políticas públicas, ações que definitivamente podem fortalecer a concretização de seu projeto
ético-político, se fundado em uma prática de fato compromissada com os interesses desta
classe.
A crescente preocupação com a área socioambiental e sua expansão em políticas,
programas e ações de empresas privadas é outro campo ocupacional que vem demandando
maior a atuação de assistentes sociais. Além dos inúmeros projetos voltados à tão aclamada
―sustentabilidade‖, os projetos comunitários de cunho educativos são um rico campo de
atuação.
A questão é que muitos deles são implementados fundamentalmente em situações de
desapropriação ou desocupação de certas áreas por conta da crescente especulação
imobiliária, que resulta na expansão de certos bairros ou na alteração de sua dinâmica,
promovendo a construção de novos comércios e moradias que valorizam a região e,
consequentemente, aumenta seu custo de vida, o que tem grande impacto na população de
baixa renda residente ali. Este fenômeno ocorrido em áreas populares vem sendo chamado de
―gentrificação‖ e, como podemos perceber, promove ainda mais a exclusão social.
Ainda no campo da educação socioambiental, o profissional do Serviço Social também
é chamado para atuar frente ―às populações que vivem em áreas onde são implantados
conglomerados industriais ou projetos de exploração do subsolo, como o petróleo e o minério
de ferro, entre outros‖ e ainda nos ―projetos de saneamento, resíduos sólidos urbanos ou pela
implementação de meios de inclusão produtiva e qualificação para o trabalho e o
empreendedorismo‖. (MOTA, 2014: 697-8)
Na política educacional, a atuação do Serviço Social se volta a demandas relacionadas
às ações afirmativas referentes à condição socioeconômica, aumento da escolaridade da
população e em ações distintas a depender do nível escolar: enquanto no ensino fundamental
trabalha essencialmente com projetos socioeducativos voltados a temas como preconceitos,
discriminação e violência, no ensino médio, técnico e superior se fazem mais presentes na
assistência estudantil. Lembrando ainda a crescente mercantilização da educação de nível
superior e seu alastramento para regiões do interior do país, principalmente através da
Reforma Universitária, o que também altera não só a atuação do assistente social nesses
espaços, como a própria formação de seus profissionais, conforme já verificamos.
137

Diante do que foi exposto, consideramos pertinente reproduzir aqui a explicação de


Mota (2014: 703; grifos originais) acerca de como o sistema capitalista faz aparecer suas
necessidades como se fossem do conjunto da sociedade, encontrando, assim, meios para sua
reprodução ampliada e configurando uma trama de espaços ocupacionais completamente
contraditórios e reificados:

o que fica evidente nessas novas áreas e demandas é a incorporação, pelas políticas
públicas, de uma série de iniciativas que nascem das necessidades imediatas da
produção capitalista, mas transitam para a esfera do Estado como necessidades de
toda a sociedade. Sintomática dessa migração é a relação entre a redução ou
precarização de postos de trabalho, cujos trabalhadores ―sobrantes‖ e ―precarizados‖
são alvo da criminalização da pobreza, da judicialização individual e do não
atendimento das suas necessidades, quando não das políticas ativas de trabalho e
renda ou de programas de transferência de renda, sem que se visibilize a
determinação social e prática dessa metamorfose. Elas atualizam as necessidades do
grande capital sob a aparência do atendimento às necessidades do trabalho e,
tendencialmente, transformam-se em objetos de atuação que parecem descolar-se
das estruturas que as determinam. Obscurecem as determinações econômicas,
políticas e ideoculturais sob o argumento de atenderem a necessidades reais que
afetam as classes trabalhadoras no seu cotidiano de vida e trabalho.

Este cenário revela novas expressões da ―questão social‖ e as respostas institucionais


(no âmbito público ou privado) dadas a elas, enquanto matéria do Serviço Social, requerem do
seu profissional um aporte teórico fundado em novos debates e problematizações para resultar
em uma prática comprometida com os princípios de seu projeto profissional e devem também
reverberar em sua formação profissional para instrumentalizar o assistente social.

4.3.2 O fortalecimento do neoconservadorismo na profissão

Em meio a esse quadro todo, identificamos no Serviço Social duas tendências


principais e contraditórias — uma que busca dar continuidade ao rompimento com este
conservadorismo histórico e a outra que procura fortalecê-lo, tendo-o para si conscientemente
como sua opção política, a partir de correntes (neo)conservadoras, ainda que sob novas
determinações, fundadas tanto na pós-modernidade como na negação das classes sociais
enquanto categoria objetiva da sociedade capitalista contemporânea.
A precarização das condições de trabalho e da formação profissional do assistente
social resultam em um desmantelamento da consciência crítica e na desqualificação de uma
prática fundada em sólidas bases teóricas e técnicas, abrindo espaço para que sejam
construídas respostas profissionais fragmentadas, imediatistas, focalistas, de cunho
138

pragmático e irracionalista, alinhadas, portanto, com o quadro do capitalismo contemporâneo,


marcado pela fusão do neoliberalismo com o ideário pós-moderno.
Nesta perspectiva, todos os âmbitos da vida social são fragmentados, o foco é no
presente, desconsiderando as determinações históricas e perspectivas de futuro, valorizando
cada vez mais o individualismo, a efemeridade e instabilidade da vida social, postulando um
pretenso ―‗fracasso‘: dos projetos emancipatórios, das orientações éticas pautadas em valores
universais, da razão moderna, da ideia de progresso histórico e de totalidade‖. (BARROCO,
2011: 207)
O neoliberalismo também incide nas maneiras de ser e de pensar do Serviço Social,
podendo remodelar seu perfil profissional para algo antagônico àquele inscrito em nosso
projeto ético-político contemporâneo; com indicam Braz e Rodrigues (2013),

um assistente social que, identificando a profissão com uma espécie de emergência


social, contenta-se com uma intervenção focalista e imediatista frente às expressões
da ―questão social‖; um profissional que, operando com destreza os indicadores e
técnicas de gerenciamento e monitoramento da pobreza absoluta, em meio a um
caldo de cultura que combina eficácia instrumental com a velha mística do servir –
renascida pela via da ―nova‖ ideologia da solidariedade – se põe como um agente
funcional a um Estado assistencialista e penal.

Concepções desse tipo fortalecem o pragmatismo e o empirismo no interior do Serviço


Social, justificados como sendo tipos de conhecimento mais próximos à prática e como se as
múltiplas expressões da ―questão social‖ requisessem mesmo um ecletismo, substituindo as
categorias teóricas por conceitos instrumentais, voltados para ―metodologias de ação e
procedimentos de padronização da ação profissional nos manuais institucionais,
autoexplicativos, com centralidade na lógica gerencial‖. (MOTA, 2014: 701)
Essa rejeição do processo reflexivo de compreensão das múltiplas determinações da
prática profissional do assistente social desqualifica sua intervenção, já que despreza os
processos sociopolíticos que pode utilizar para de fato modificar a realidade social na direção
contida em seu projeto ético-político e nada mais faz, portanto do que estimular a ofensiva
neoconservadora, possibilitando que essas tendências encontrem meios de objetivação,
conforme explica Barroco (2011: 210):

o cenário histórico tem revelado uma crise de hegemonia das esquerdas e dos
projetos socialistas de modo geral. É nesse contexto que o conservadorismo tem
encontrado espaço para se reatualizar, apoiando-se em mitos, motivando atitudes
autoritárias, discriminatórias e irracionalistas, comportamentos e ideias
valorizadoras da hierarquia, das normas institucionalizadas, da moral tradicional, da
ordem e da autoridade.
139

No interior de nossa profissão, este panorama rebate abrindo espaço para a


reatualização de projetos profissionais, tanto em seu âmbito ético-político, como nas suas
expressões teórico-prática, o que constitui um grande desafio para os assistentes sociais
atualmente. Daí a importância vital de revigorar movimentos de resistência contra essa
tendência e participarmos enquanto categoria deste enfrentamento, o que já vem sendo
consolidado a partir das inúmeras ações de lutas, denúncias, mobilizações e defesa dos
direitos humanos empreendidas pelo conjunto da classe trabalhadora.
Contudo, para podermos, de fato, combater a tendência a uma reatualização do
neoconservadorismo na profissão, é preciso que conheçamos as suas expressões na sociedade
e no interior da profissão, de que forma se constitui e se caracteriza seu projeto político
ideológico e seu pensamento teórico. Além disso, precisamos conhecer nosso corpo
profissional — atuante e em formação — e os usuários de nossos serviços, para evitarmos
reproduzir este ideário neoconservador e pós-moderno.
Segundo Barroco (2011: 213),

a ideologia neoconservadora tende a se irradiar nas instituições sob formas de


controle pautadas na racionalidade tecnocrática e sistêmica tendo por finalidade a
produtividade, a competitividade e a lucratividade, onde o profissional é requisitado
para executar um trabalho repetitivo e burocrático, pragmático e heterogêneo, que
não favorece atitudes críticas e posicionamentos políticos. [...] O discurso dominante
é o da naturalização e moralização da criminalidade; as práticas de encaminhamento
são seletivas, baseadas, muitas vezes, em critérios que envolvem avaliações morais,
de classe e condição social. O assistente social precisa estar capacitado para
enfrentar esse discurso, de forma a não reproduzi-lo reeditando o conservadorismo
profissional.

Estando cientes disso, os assistentes sociais precisam combater o neoconservadorismo


em dois âmbitos — no ético-político, através da ligação com movimentos e organizações dos
trabalhadores e outras categorias, do estímulo às discussões nos campos de trabalho, além da
capacitação e organização política; e no teórico, desmistificando suas construções irracionais
que são disseminadas a fim de mascarar o processo histórico.
Iamamoto (2011: 222; grifos originais) assinalou as implicações que o fortalecimento
de tendências (neo)conservadoras causariam na profissão, o que recorreria na

negação do processo histórico enquanto totalidade — apreendida em suas múltiplas


determinações e relações — em favor dos fragmentos e particularismos na vida em
sociedade, que é destituída das clivagens de classe, fazendo florescer influxos
voluntaristas ou deterministas, condensados nos dilemas do fatalismo e do
messianismo, ambos cativos de uma prática social esvaziada de historicidade.
140

Esse contexto foi o responsável por fortalecer o que Iamamoto (2011) chama de
movimento de renovação crítica do Serviço Social, uma vez que, diante de novos contornos
da sociedade capitalista, novas demandas se impunham à profissão, que precisava se atualizar
e demonstrar, assim, sua contemporaneidade e sua necessidade, ou seja, que era capaz não só
de compreender os processos sociais da sociedade brasileira, mas de como realizar, a partir
disso, uma intervenção qualificada, o que pediu uma reformulação importante nos campos da
pesquisa, ensino e da organização político-corporativa da profissão.

4.3.3 A questão da hegemonia: conquista e ameaça

Conforme já vimos, por partir de um corpo profissional heterogêneo, em um contexto


de democracia política, outros projetos existem e concorrem entre si, ainda mais pelo fato de
que a recusa e o combate à predominância do conservadorismo no interior da profissão não
impediu que tendências e perspectivas (neo)conservadoras permanecessem.
Podemos dizer que principalmente a partir da segunda metade dos anos 1990, o
projeto profissional a que nos referimos conquistou hegemonia devido principalmente à
direção social estratégica dada pelas vanguardas. Dois fatores principais que legitimaram esta
hegemonia foram o crescimento e a descentralização de eventos, espaços e fóruns
participativos da categoria, acompanhado por uma maior participação dos profissionais da
área165 e a sintonia do projeto profissional às tendências do movimento das classes sociais,
conectando-se a um projeto societário não só contraditório, mas antagônico àquele posto em
prática pelas classe dominante.
Isso significa, de acordo com Netto (2009: 157; grifos originais), que

a construção deste projeto profissional acompanhou a curva ascendente do


movimento democrático e popular que, progressista e positivamente, tensionou a
sociedade brasileira entre a derrota da ditadura e a promulgação da Constituição de
1988 (à que Ulisses Guimarães chamou de Constituição Cidadã) — um movimento
democrático e popular que, inclusive apresentando-se como alternativa nacional de
governo nas eleições presidenciais de 1989, forçou uma rápida redefinição do
projeto democrático das classes proprietárias.

165
―Tal envolvimento se registrou nos vários Congressos Brasileiros de Assistentes Sociais e em seus encontros
regionais preparatórios, nas convenções nacionais e nas 'oficinas regionais' da ABESS, nos encontros de
pesquisadores promovidos pelo CEDEPSS, nos encontros regionais e nos seminários nacionais patrocinados pelo
sistema CFESS/CRESS etc.‖. (NETTO, 2009: 157)
141

Porém, a conquista dessa hegemonia é, muitas vezes contestada, principalmente por


aqueles setores da categoria que representam um projeto profissional alternativo ao que
estamos tratando aqui. Para esclarecer melhor esta questão, analisemos melhor o conceito de
hegemonia, fundamentalmente aquele elaborado por Gramsci o que possui um caráter mais
qualitativo do que quantitativo.
Devemos considerar ainda, que ao desenvolver este conceito, Gramsci pensava na
sociedade capitalista como um todo e, portanto, o aplicava à luta de classes; entretanto, como
seu pensamento foi irradiado para os mais variados campos, o que é definido como
―hegemonia― acabou sendo aplicado não só a este âmbito mais geral, da sociedade em si,
quando da disputa entre as classes sociais fundamentais, mas em todos os outros que
envolviam lutas sociais entre e dentro dos mais diversos grupos sociais.
Assim, quando usamos o termo ―hegemonia‖ para falar sobre um projeto profissional,
ele diz respeito à primazia que uma vontade coletiva assume em relação a outras,
considerando os projetos societários a que estão vinculadas e a disputa entre estes diferentes
projetos num âmbito democrático. Em outras palavras, podemos dizer que um projeto coletivo
adquiriu hegemonia quando ele ―se afirma sobre uma diversidade de outros que
democraticamente disputam a direção social da sociedade, a partir da constituição de um
bloco histórico (que vai além da consciência de classe, mas que sem ela não se efetiva) que
articula uma multiplicidade de interesses‖. (BRAZ, 2007: 5)
A hegemonia de fato pode ser constatada no movimento do real, verificando que o
Serviço Social foi fortalecido com os novos contornos que foi adquirindo a partir da recusa ao
conservadorismo profissional e mesmo frente a um contexto adverso, que lhe trouxe inúmeras
questões a pensar e a responder, com novas demandas e espaços a serem ocupados.
Braz (2007) entende que o principal motivo para esta consolidação foi a ação das
vanguardas da profissão na articulação de sua hegemonia teórica, predominantemente voltada
à tradição marxista, e política, a partir da revitalização e renovação de suas organizações
profissionais, já mencionadas anteriormente.
Vimos nos capítulos anteriores que a crise capitalista irrompida na década de 1970
trouxe inúmeras mudanças e reconfigurações a este sistema principalmente nas duas décadas
seguintes. No Brasil, o ano de 1990 foi marcado pelo fortalecimento do neoliberalismo entre a
classe capitalista, que vem desde então promovendo inúmeras alterações na ordem econômica
e social que agravam ainda mais a situação dos diversos setores da classe trabalhadora.
Dentre algumas delas, podemos citar o desmantelamento dos direitos sociais,
conquistados com muita luta pelos trabalhadores e atacados como meros privilégios e o
142

sucateamento dos serviços públicos, enquanto, por outro lado, promovem a privatização do
Estado, denunciado como ineficiente, procurando justificar estas ações, que vem sendo postas
em prática tanto por setores políticos autodenominados ―social-democratas‖, como por
aqueles que historicamente se identificavam com a esquerda.
A implementação do neoliberalismo, tendo à frente as imposições do capital financeiro
fizeram com que o Serviço Social se colocasse na contramão do projeto societário
hegemônico e fortalecesse os laços com os movimentos e organizações da classe trabalhadora,
estando entre elas o Partido dos Trabalhadores (PT).
No entanto, no ano de 2003, com a ascensão do PT ao poder central, na figura do
presidente Lula, o projeto ético-político de nossa profissão se viu extremamente tensionado,
pois este governo não só seguiu a política econômica de cunho liberal, como a aprofundou,
além do risco de os segmentos mais progressistas com os quais o Serviço Social mantinha
fortes relações aderirem ao revisionismo teórico e político claramente empreendido nesta
gestão governamental.
Este contexto grave e adverso ao projeto societário ao qual nosso projeto profissional
se alinhava, ameaçava sua própria hegemonia. Um dos motivos pode residir no fato de que
quando Lula subiu ao poder, ascenderam juntamente lideranças dos movimentos dos
trabalhadores, o que abriu caminho para que uma confusão se estabelecesse neste campo,
dando a entender que o projeto societário representado por este novo governo estivesse em
congruência (e não em antagonismo) com o nosso projeto profissional.

4.3.4 Problematizando uma suposta crise do projeto ético-político do Serviço Social

Vamos verificar agora o que vem causando um estado crítico para o projeto ético-
político do Serviço Social na atualidade, impondo não só desafios, mas grandes entraves à sua
concretização, remetendo a algumas das situações já analisadas acima, que incidem
diretamente neste projeto, por conferirem a materialidade necessária à sua objetivação e que,
portanto, podem sinalizar sua crise na conjuntura que enfrentamos.
Netto (2007) entende que há principalmente dois níveis que assinalam uma crise do
projeto ético-político do Serviço Social e, portanto, sua inviabilização no contexto do
capitalismo contemporâneo. O primeiro nível corresponde aos objetivos e às funções da
profissão, que vem sendo intencionalmente reduzidos ao plano da assistência social,
representando uma enorme regressão para a profissão.
143

Segundo o autor, este processo foi engendrado no governo de Fernando Henrique


Cardoso e alastrou-se para o seguinte, de Lula, no qual, inclusive vem sendo até mesmo
acelerado, já que em tal governo é notável seu caráter assistencialista, numa ―estratégia―
equivocada de redução da pobreza.
O Serviço Social, corre assim o risco de limitar-se a uma ―profissão da assistência‖, a
qual vem sendo fetichizada no meio profissional e, assim, Netto (2007) reforça que tal
retrocesso somente consegue se objetivizar por conta do apoio que encontra dentro da própria
categoria, algo que reflete bem sua heterogeneidade e os diferentes projetos em disputa,
inclusive aqueles que contêm uma perspectiva de resposta às expressões da ―questão social‖
de caráter focalizado e que disputam a hegemonia dentro da profissão, ligados ao projeto
societário hegemônico.
Se projetos deste cunho tomarem força no interior da profissão, corre-se o risco de
muitos princípios defendidos no projeto hoje hegemônico serem reduzidos a um possibilismo
prático, o que reduziria enormemente nossa capacidade crítica em meio a um contexto
histórico marcado por inúmeras mistificações e que requer, portanto, esta capacidade, em
função de seu enfrentamento e superação.
Já o segundo nível é aquele dos requisitos teóricos, práticos e institucionais para o
exercício profissional pautado no projeto ético-político, já que a política neoliberal, em prática
no país desde a década de 1990 vem promovendo uma forte desregulamentação e uma
profunda flexibilização do ensino superior, que resulta em sua massificação degradada e tem
drásticas consequências em nossa formação, um dos pilares do nosso projeto profissional.
Quando abordamos mais acima as três dimensões do projeto ético-político indicadas
por Braz (2001), cabe ressaltar que a conjuntura atual, marcada pelo fortalecimento do
neoliberalismo, traz inúmeras complicações à sua efetivação.
Com a prerrogativa do ―Estado mínimo― realizando cortes de investimento em áreas
de interesse social, o mesmo pode ocorrer com as pesquisas desse âmbito, que perdem
financiamento público e prejudicam, dessa forma, a produção de conhecimentos —
fundamental para compor a dimensão teórica de nosso projeto profissional. Além disso, já
verificamos os inúmeros problemas que apresenta hoje a formação profissional, que, por ser a
principal subsidiária da dimensão teórica do nosso projeto profissional, acaba
compromentendo-a. A sólida base teórico-acadêmica que o Serviço Social veio construindo
ao longo de todos esses anos de amadurecimento e acúmulo teórico se vê diante de grandes
obstáculos, já que seu retrocesso compromete não só a práxis profissional, mas também a
direção social impressa ao nosso projeto ético-político.
144

Inúmeros entraves são colocados também para que os assistentes sociais possam de
fato implementar os princípios de seu Código de Ética à atuação profissional, tornando
imperativo a categoria pensar em conjunto de que forma, nessa conjuntura tão adversa, é
possível concretizar a ―necessária garantia, imperativa, da ‗qualidade dos serviços prestados‘
e, ainda, [o] permanente ‗aprimoramento intelectual‘ (também imperativo)‖, tendo em vista a
―degradação/precarização das condições de trabalho profissional‖. (BRAZ, 2004:61; grifos
do autor)
Pensando agora na dimensão jurídico-política, vemos que ela enfrenta dois grandes
desafios principais: um que atinge o âmbito mais geral da sociedade e outro que atinge
diretamente a profissão. O primeiro está relacionado aos contínuos ataques aos direitos
historicamente conquistados pela classe trabalhadora, desmantelando todo o aparato jurídico-
político que fundamenta esta dimensão, num contexto em que o aparelho estatal passa por um
processo de privatização, degradação e mercantilização. Perante este quadro, conforme Braz
(2004: 62; grifos do autor),

como se trata de um quadro de regressão de direitos, há possibilidades de se


presenciar situações de embates com o governo que aí está, já que estão em xeque
aspectos fundamentais do projeto profissional, relacionados à cidadania, à
democracia e à ampliação do acesso universal às políticas públicas. (BRAZ,
2004:62; grifos do autor)

O segundo rebate diretamente nas atribuições privativas do Serviço Social166, cujas


―determinadas habilidades profissionais tendem a ser reformatadas expressando-se em novas
modalidades interventivas‖. Isso ocorre diante da conjuntura de reestruturação produtiva do
capital, na qual as relações de trabalho são flexibilizadas e inúmeras profissões passam por
uma desregulamentação com o objetivo primordial de atender ―às necessidades reais e
concretas do capital, apresentando-se como demandas à profissão‖. (BRAZ, 2004:61)
Como não poderia ser diferente, a dimensão político-organizativa do nosso projeto
ético-político é também ameaçada, já que o contexto neoliberal tem caráter extremamente
antidemocrático, expresso nos instrumentos ideológicos que utiliza no sentido de minar as
organizações da classe trabalhadora, tentando manter uma atmosfera em que sua lógica não
seja questionada. Assim, uma vez que promovem uma ferrenha recusa do projeto societário
do capital, as entidades representativas do Serviço Social também sofrem este tipo de ataques
e ―os obstáculos à mobilização da categoria tendem a se perpetuar, já que as condições

166
Estas atribuições estão expressas no artigo 5º da Lei 8.662 de 7 de junho de 1993.
145

subjetivas atuais produzem antipatias às ações coletivas, fertilizando o terreno do ‗salve-se


quem puder‘, das saídas individuais, do isolacionismo‖. (BRAZ, 2004:63)
É bom lembrar que estas entidades precisam enfrentar um momento muito conturbado,
pois, desde o governo FHC, que consolidou o neoliberalismo no Brasil, elas precisavam
empreender uma desgastante luta contra suas políticas e quando viram uma perspectiva de
mudança neste contexto adverso com a vitória do governo Lula nas eleições, pensando que a
situação se tornaria mais favorável às classes trabalhadoras, este governo acabou
aprofundando as políticas neoliberais, exigindo uma postura firme e decidida das entidades
representativas do Serviço Social diante disso. Portanto, Braz (Idem) entende que um grande
desafio aí presente é a ―manutenção da autonomia política das entidades, buscando apoiar
propostas que signifiquem fortalecimento do projeto profissional e recusar outras que o
contrariem, movendo esforços no sentido de preservá-lo e de criar condições para que
avance‖.
Em outro texto, Braz (2007), identifica ainda dois problemas centrais que assinalam
uma crise do nosso projeto. O primeiro deles é a inexistência de um projeto realmente capaz
de fazer frente ao projeto societário hegemônico, articulando os interesses da classe
trabalhadora e isso não só no Brasil, mas é algo que se alastra pelo mundo desde a crise do
socialismo real irrompida entre as décadas de 1980 e 1990, mas que só reverberou
posteriormente em nosso país pelo contexto de agitação sociopolítica nesta primeira década,
com o processo de derrocada da ditadura e as lutas pela redemocratização.
Estas lutas, inclusive, tiveram papel fundamental na constituição e fortalecimento de
importantes movimentos sociais, os quais conseguiram frear até certo ponto, durante a década
de 1990, uma expansão ainda maior do neoliberalismo no Brasil e também articularam um
projeto societário de caráter anticapitalista e que acabou agregando as mais amplas parcelas
da classe trabalhadora. No entanto, este projeto já apresentava sinais de desgaste em 1994 e
entrou em crise já em 1998, tendo finalmente se exaurido em 2002, com o processo eleitoral
em que Lula saiu vitorioso.167
Esta vitória ocorreu em uma atmosfera de recusa da política de governo anterior, que
penalizou em grande escala os mais variados setores da classe trabalhadora, e de aposta em
uma renovação por parte do governo Lula, o que acabou não acontecendo, já que este não só
manteve o projeto neoliberal em curso, como até o aprofundou em alguns campos. Esta
constatação enfraqueceu de vez qualquer possibilidade de construção de um projeto societário

167
Inclusive, um documento escrito por ele intitulado ―Carta ao Povo Brasileiro‖ dirigido ao mercado no mês de
agosto de 2002, durante sua campanha, deixou o fim deste projeto bastante claro. (cf. Braz, 2007)
146

para se contrapor à hegemonia do capital, instaurando uma crise aos grupos sociais que
buscavam uma direção e um revigoramento dos interesses dos trabalhadores, incluído aí o
Serviço Social.
Isso significa que, quando o projeto societário antagônico ao dominante,
representando, portanto, as perspectivas da classe trabalhadora entra em crise, ela se alastra
também aos projetos profissionais que a ele se conectam, como é o caso do nosso. Sua
hegemonia entre a categoria fica, assim, comprometida e uma série de questões são colocadas
para pensarmos a respeito deste debate. Braz (2007: 7) elenca algumas delas:

manter-se-ão os princípios, os valores e os compromissos firmados numa conjuntura


de crise/ausência de projeto societário das classes trabalhadoras? Eles poderão ser
reproduzidos ainda que não encontrem repercussão nas lutas mais amplas do
trabalho? Ou o projeto profissional será relativizado, flexibilizado ou revisado para
se ajustar à proposta hegemônica?

O segundo problema que o autor aponta para uma possível crise do projeto
profissional do Serviço Social reforça a precarização de suas bases materiais, ou seja, às
condições objetivas que determinam tanto sua formação, quanto seu exercício, já bastante
apontadas aqui. Ainda que o projeto represente uma imagem ideal da profissão com base na
realidade, é somente por meio das múltiplas determinações e da expressão de suas demandas
contraditórias que pode de fato se concretizar.
Braz (2007) traz outros elementos para pensarmos como a precarização da formação
profissional, analisada mais acima, rebate negativamente em nosso projeto ético-político
principalmente em dois aspectos. Uma formação de baixa qualidade pressupõe a perda de
prestígio perante seus usuários, as outras categorias com as quais trabalha, as instituições
empregadoras, enfim, a sociedade em geral. O aumento do seu contingente pode resultar em
mais oferta de trabalho do que a demanda, gerando um excedente de trabalhadores, cuja
consequência, conforme já vimos ao analisar esta situação no âmago da classe trabalhadora
em sua totalidade, é o aviltamento de sua média salarial, já bastante prejudicada, sendo que a
categoria não conta nem mesmo com a definição de um piso.
Além disso, há uma descaracterização de seu perfil profissional, uma vez que esse se
constrói desde a formação a partir de uma matriz teórico-metodológica voltada para a teoria
social crítica e de corte anticapitalista e que pressupõem a estruturação de assistentes sociais
de fato compromissados com o projeto societário contra-hegemônico, proveniente da classe
trabalhadora, além de desenvolverem competências técnicas, teóricas e políticas que estejam
sintonizadas aos interesses desta classe.
147

Juntamente a estes fatores, a privação do espaço universitário, do contato mais


próximo entre os estudantes, a despolitização deste tipo de ensino, a falta do ambiente
acadêmico que se constitui em um extraordinário campo para estimular a vivência política
entravam a formação de quadros teóricos e políticos que possam alavancar as projeções
contidas no projeto ético-político profissional em conjunto com os setores progressistas da
sociedade.
Conforme também já verificamos anteriormente, o aviltamento das condições de
trabalho dos assistentes sociais podem abrir caminho para que projetos de caráter
neoconservador se disseminem no meio do corpo profissional, como, por exemplo, propostas
de tom mais corporativista, que evoquem respostas de cunho imediatistas, fragmentadas,
meramente focadas no âmbito da prática e, portanto, vazias de teoria para atender às suas
demandas.
O resultado destes obstáculos pode ser um embargo na direção social pretendida por
este projeto e, ainda mais grave, ―pode ser cobrado pela própria categoria a flexibilizar seus
princípios e a adaptar suas diretrizes para atendê-la em suas demandas mais imediatas,
correndo o sério risco de rebaixamento de sua agenda política‖. (BRAZ, 2007: 8)
Por fim, retomando a ameaça que o fortalecimento do neoconservadorismo em meio a
uma atmosfera de cunho neoliberal e pós-moderna trazem ao nosso projeto ético-político,
conforme verificamos mais acima neste capítulo, trazemos mais alguns elementos para
reflexão de como isso poderia impor uma crise ao projeto profissional do Serviço Social.
Pelo fato de nosso projeto profissional estar em confronto direto com o projeto
societário hegemônico, certos segmentos da categoria podem cair na armadilha de uma leitura
equivocada da realidade, buscando soluções nas correntes pós-modernas, conforme aponta
Ortiz (2007: 27). Estas correntes tendem a recair no irracionalismo, por negar a razão, e
adotam nos ―discursos e práticas o apelo ao individualismo materializado na auto-ajuda, na
auto-estima, à forma em detrimento do conteúdo‖, o que leva a práticas restritas a uma
abordagem que não consegue superar a mera aparência dos fenômenos sociais que aparecem
para o assistente social como demandas profissionais.
Outro grande problema apresentado ao nosso projeto ético-político pelo ideário pós-
moderno é que ele tem como característica negar as grandes teorias explicativas, enfatizando
uma acintosa crítica ao marxismo e passa a mutilar sua essência ao simplificá-lo,
complementá-lo ou reinventá-lo, alegando sua insuficiência para explicar a realidade atual.
Considerando que o marxismo fornece a base teórica fundamental do nosso projeto, estas
implicações acabam rebatendo no interior da categoria, já que
148

no Serviço Social a tendência do sincretismo ideológico constitutiva do tecido


profissional, somada à também já histórica afeição pelas dimensões ―microssociais‖
da realidade social, potencializa a simplificação. [...] Os desdobramentos disso são
as críticas à totalidade como totalitarismo, à ortodoxia como dogmatismo, à
universalidade como estruturalismo (e conseqüente negação do sujeito). (SANTOS,
2007: 86)

Com o fortalecimento de concepções pós-modernas no Serviço Social, o


conservadorismo profissional também se fortalece, pois, sob essa leitura, passa-se a acreditar
que ―ao mudar a realidade, mudam as representações ‗construídas‘ acerca do objeto
profissional‖, impedindo que ele seja apreendido na sua totalidade, pois, no atual contexto, a
diversidade e a diferença são amplificadas e, no âmbito do exercício profissional ocorre ―o
reforço à singularidade e à positividade [...] e as intervenções no nível do fragmento‖.
(SANTOS, 2007: 87)
A autora indica ainda duas vias principais pelas quais a profissão se aproxima da pós-
modernidade. A primeira é uma via conservadora que rejeita o marxismo e procura
deslegitimar a teoria social crítica atacando a direção ético-política do nosso projeto
profissional voltada ao combate do conservadorismo; além disso, ela se atualiza a partir da
incorporação de concepções pós-modernas de forma sincrética.
A segunda alega concordar com alguns pontos da teoria marxista, mas propõe ―a
superação de ‘lacunas’ e o aumento de sua potencialidade explicativa com os ‘paradigmas
pós-modernos’.‖ Assim, de caráter claramente reformista, disputa a hegemonia do projeto
ético-político, entendendo que ―as mediações do direito burguês, especialmente sua
concepção de democracia e cidadania, não são valores instrumentais e sim universais, ou seja,
perdem o seu caráter de mediações e passam a ser finalidades da ação profissional‖,
resultando em respostas profissionais caracterizadas por um tom ―acrítico e tecnicista,
submetido à lógica do mercado, que não é a da defesa da esfera pública, contida no projeto
ético-político da profissão.‖ (SANTOS, 2007: 87-8; 95; grifos originais)
Os grandes problemas que o projeto ético-político da profissão enfrenta vão muito
além dos apresentados aqui, já que constituem-se de determinações muito mais complexas,
além de se ampliarem e se reconfigurarem de acordo com o movimento dialético da realidade.
O que pretendemos foi sinalizar algumas das problematizações mais graves que enfrentamos
atualmente no que diz respeito à ameaça da hegemonia de nosso projeto profissional atual e
que poderia impor até mesmo sua crise, o que traz consigo a urgente necessidade de
oferecermos respostas contundentes, tendo em vista o fortalecimento da direção social que
representa.
149

Considerações finais: mais algumas reflexões sobre o projeto ético-político do Serviço


Social

Após a realização desta dissertação, pudemos compreender como as crises são, de


fato, intrínsecas ao capitalismo, fazem parte de sua dinâmica e, portanto, não podem ser
superadas, já que são resultado da natureza contraditória deste modo de produção. Assim
sendo, é uma rede complexa de fatores que acaba detonando uma crise e, diante disso,
medidas unilaterais não são suficientes para reverter este quadro e retomar a acumulação de
capital.
Isso significa, portanto, que

a superação ou a regulação da crise não é, em todo caso, o puro resultado de uma


ação política. Com a crise, não se encerra somente uma fase do desenvolvimento em
virtude do aguçamento das contradições até o ponto de ruptura, mas também se abre
ao mesmo tempo uma nova fase do desenvolvimento por causa da regulação dos
elementos de contradição em seu processo. (ALVATER, 1987:88-9)

Entretanto, vimos que desde a crise eclodida na década de 1970, as saídas tradicionais
que o capitalismo encontrava para suas crises cíclicas já não vem se demonstrando suficientes
e eficazes, o que, após basear nossa análise principalmente em Mészáros, concordamos que
esta crise é, portanto, de caráter diferente. Não mais uma crise cíclica, mas sim uma crise
estrutural, da qual o sistema não pode se recuperar e atingir níveis de acumulação esperados
para um crescimento e desenvolvimento satisfatórios.
Ainda assim, somente a explosão das crises não conduz à superação do capitalismo,
ainda que possam atestar a derrocada iminente deste modo de produção. ―A substituição do
capitalismo por uma outra forma de organização econômico-social só pode ser o produto de
uma ação coletiva fundada numa vontade política que expresse o interesse histórico dos
trabalhadores‖, ou seja, a solução às contradições capitalistas só pode se dar no próprio plano
sociopolítico, ao se concretizar esta substituição ―do modo de produção capitalista por uma
organização superior e mais avançada da vida econômica, mediante um protagonismo político
dos trabalhadores que dirija um processo de transição socialista‖. (NETTO e BRAZ, 2011:
163;166; grifos originais)
Assim, chegamos à conclusão de que o capitalismo predatório e destrutivo de hoje
esgotou suas possibilidades civilizatórias168 e caminha para a devastação não só da

168
Marx (apud MÉSZÁROS, 2011b: 800) chegou a ressaltar tais possibilidades, atestando que foi através delas
que ―pela primeira vez, a natureza se torna puramente um objeto para a humanidade, puramente uma questão de
150

humanidade, mas possivelmente das condições naturais que permitem a vida orgânica, já que
em sua ânsia de subordinar a natureza aos seus desígnios de uma incessante acumulação,
muitas vezes entra em conflito com as próprias necessidades humanas. Reforçando essa ideia,
Netto (2012a: 426; grifos originais) aponta que ―na visão marxiana, desenvolvimento
capitalista é avanço civilizatório fundado na barbárie, verificável inclusive no tocante à
destruição da natureza‖. Mas a superação de tais crises só será possível, numa organização
social em que estejam suprimidas suas causas e que, portanto, supere o próprio modo de
produção capitalista.
Nesses tempos de crise, em que o capital precisa encontrar meios de recuperar seus
níveis de acumulação é que sua ofensiva torna-se ainda mais severa perante os trabalhadores,
que se veem em meio a uma intensa precarização das suas condições de vida e trabalho, a
perda de direitos historicamente conquistados com muita luta. Uma reação consistente a este
quadro de barbárie promovido pelo capitalismo contemporâneo deve se pautar por uma ação
consciente, guiada pelas próprias mediações da realidade.
Para o projeto ético-político do Serviço Social, isso representa enormes desafios
éticos, teóricos, práticos e políticos, uma vez que se agravam os antagonismos com relação ao
projeto societário com o que se conecta, configurando um contexto extremamente adverso aos
interesses que defende, já que, por sua estrutura básica, fica claro que ―se vincula a um
projeto societário que pressupõe a construção de uma nova ordem social, sem
exploração/dominação de classe, etnia e gênero‖, objetivo que só se fortalecerá numa aliança
com categorias profissionais de projetos semelhantes e com movimentos sociais voltados para
os interesses da classe trabalhadora. (NETTO, 2009: 155; grifos originais)
Entendemos que, apesar destes grandes desafios e questões frente a ofensiva do
capital, nosso projeto ético-político não está em crise, mas o que torna este momento tão
crítico e exige atenção e cuidado por parte dos assistentes sociais é que a hegemonia deste
projeto está ameaçada, conforme vimos no último capítulo. Concordamos com Mota (2012:
39), quando a autora diz que mesmo diante deste quadro tão adverso, o Serviço Social
brasileiro ―avança em tempos de crise e construção de hegemonia, produzindo referências
teórico-metodológicas que abordam a complexa relação entre a luta pela emancipação política
e o horizonte da emancipação humana‖.

utilidade; cessa de ser reconhecida como um poder em si mesma; e a descoberta teórica de suas leis autônomas
aparece apenas como um ardil para submetê-la às necessidades humanas, como um objeto de consumo ou como
meio de produção. De acordo com esta tendência, o capital ultrapassa as barreiras e os preconceitos nacionais, a
adoração da natureza, assim como também todas as satisfações tradicionais, limitadas, complacentes, embutidas,
das necessidades presentes e as reproduções dos velhos modos de vida‖.
151

Tendo isso em mente, para evitar que se chegue de fato a uma crise do projeto, o que
comprometeria todas as determinações da profissão, cabe à categoria estar pronta para
enfrentar estes desafios e encontrar meios para fortalecer nosso projeto ético-político,
encontrando respostas eficazes tanto para o cenário caótico que enfrenta o sistema capitalista,
já que implica não só em novas demandas, mas em piores condições de trabalho para os
assistentes sociais, como para questões internas à profissão, como o preocupante avanço do
neoconservadorismo, conforme verificamos.
Assim, o fortalecimento do nosso projeto ético-político hegemônico depende não só da
coesão da categoria profissional, mas também dos setores democráticos e populares com os
quais compartilha perspectivas em comum. Analisaremos, assim, algumas das possíveis
respostas e estratégias que podemos construir no contexto atual, de acordo com a direção
social contida em seu projeto ético-político, calcado em valores e em uma visão de mundo
que vem sendo construída há pelo menos três décadas.
Diante de tantas mudanças, é de vital importância que os assistentes sociais se
empenhem em decifrar as mediações políticas e ideológicas da ―questão social‖ na
contemporaneidade, que se dediquem aos estudos históricos sobre o Brasil contemporâneo,
algo fundamental para podermos acompanhar as ―mudanças macrossocietárias e suas
expressões conjunturais, subsidiando a leitura das forças e sujeitos sociais que incidem no
exercício profissional, condição para elucidar o seu significado social na sociedade nacional‖.
(IAMAMOTO, 2014: 632)
Braz (2007:10; grifos do autor) aponta que uma importante tarefa colocada à categoria
―está na capacidade de identificar formas de viabilização prático-política para o projeto
profissional que, como todo projeto coletivo, depende de sustentabilidade histórica169 para se
reproduzir como tal no movimento da sociedade‖.
Isso deve ser feito a partir de uma sólida fundamentação teórica que nos permita
analisar e problematizar o contexto histórico e as suas recentes transformações, analisando de
forma bem estruturada de que forma isso reflete como demanda para o seu trabalho e que
propostas de intervenção podem sugerir enquanto sujeito coletivo compromissado com um
projeto profissional de corte anticapitalista e, portanto, tensionado pela hegemonia do projeto
societário atual.
Essa fundamentação deve estar assentada no domínio não só das categorias
ontológicas e reflexivas que nos levam a compreender os fenômenos sociais na sua essência e

169
De acordo com Braz (2007:10), ―o termo é de Mészáros, presente no livro O poder da ideologia (São Paulo,
Ensaio;1996)‖.
152

de que forma se expressam na realidade e ainda, em um cenário mais específico, das políticas
institucionais e seus processos de efetivação para que nossas propostas tenham, de fato, uma
eficácia objetiva.
Certamente, no exercício profissional cotidiano certas situações exigem ações mais
pontuais e imediatas, quando a segurança, a saúde ou até a própria vida dos usuários
estiverem em risco, mas isso não pode impedir que o assistente social busque ultrapassar
essas expressões de singularidade e estabelecer a mediação entre elas e a totalidade social que
as determina. Isso demanda um aprofundamento dos estudos, da pesquisa e de análises
dialéticas da conjuntura em que está inserido, caso contrário, corre-se o risco de cair nas
práticas meramente técnicas de avaliação do processo e resultados, desconsiderando todo esse
aparato teórico-político e a perspectiva de totalidade.
No campo da atuação profissional, é de vital importância também que busquemos uma
maior aproximação com a população contemplada por nossas ações, para, obtermos uma
apreensão melhor das suas condições de vida e, portanto, das suas reais necessidades,
identificando as expressões da ―questão social‖ que estão presentes nas demandas que nos são
colocadas. Com isso, o assistente social pode criar respostas inovadoras, evitando que na
prática promova ―um discurso de compromisso ético-político com a população, sobreposto a
uma relação de estranhamento perante essa população, reeditando programas e projetos
alheios às suas necessidades, ainda que em nome do compromisso‖. (IAMAMOTO, 2012: 57)
Precisamos, ainda, aprofundar e multiplicar as pesquisas também no campo das
alterações que os assistentes sociais vem enfrentando no mercado de trabalho e nos seus
espaços ocupacionais, seja no âmbito do Estado, empresarial ou do chamado ―terceiro setor‖
focalizando as respostas profissionais que vem sendo designadas às demandas por políticas e
serviços e as relações com os respectivos usuários.
Além disso, é fundamental assumirmos uma postura crítica diante dos entraves
institucionais com os quais nos deparamos no dia-a-dia de nossa atuação profissional, agindo
sempre no sentido de potencializar nossa autonomia de acordo com os princípios inscritos em
nosso projeto. Concordamos com Faleiros (2014: 719), quando afirma que ―é preciso
enfrentar a burocracia como forma de enfrentar o poder dominante, colocar os meios a serviço
dos fins, os resultados para o público em vez dos resultados para o olhar do gestor‖.
Conforme bem aponta Mota (2014: 701-2; grifos originais), faz-se imperativa a

necessidade de exercitar nossa capacidade de análise da experiência profissional


cotidiana, identificando: a) iniciativas que evidenciem posturas anticapitalistas; b)
processos de democratização de decisões; c) conquistas e possibilidades do exercício
153

de direitos; d) mediações pedagógicas, éticas e formativas que contribuam para a


formação de consciência crítica da população usuária. Em resumo, é necessário
assumir o desafio de responder cotidianamente à questão: quais aspectos da
produção e reprodução da realidade foram ou poderiam ser tensionados pela ação do
Serviço Social?

Podemos inferir então que, se o espaço institucional nos coloca inúmeros limites à
uma atuação compromissada com nosso projeto ético-político, é nele que também estão postas
as possibilidades, pois é onde o assistente social deverá aprender a mediar, ante as exigências
institucionais, respostas para as necessidades que garantirão a reprodução da força de trabalho
— ou seja, que atenderão, de certa forma, aos interesses da classe trabalhadora e podem se
organizar coletivamente para insurgirem-se contra esta condição.
Compreendemos que os espaços institucionais estão inseridos no quadro mais geral da
luta de classes, expressa principalmente ―por ações de resistência e de alianças estratégicas no
jogo da política em suas múltiplas dimensões‖, já que a ―questão social é luta, é disputa pela
riqueza socialmente construída‖. Dentre essas ações de resistência podem ser considerados os
próprios espaços dos movimentos, conselhos e fóruns, importantes de serem ocupados.
(YAZBEK, 2014: 686)
Portanto, cabe ao assistente social fazer valer sua relativa autonomia profissional para
buscar mediações que ampliem suas possibilidades de atuação para além daquelas impostas
pelas relações de trabalho, na dinâmica das relações de poder hegemônicas e contra-
hegemônicas, procurando superar as barreiras do controle institucional para de fato dar
materialidade ao nosso projeto profissional, encontrando caminhos para que ele se concretize
na realidade social.
Acreditamos que o que permite a uma categoria construir um projeto compromissado
com os interesses da classe trabalhadora e configurar estratégias para sua efetivação são
justamente as forças político-sociais presentes na dinâmica própria da luta de classes. Para
isso, conforme apontamos, é preciso um perfil profissional com capacidade de analisar a
realidade na qual está inserido para identificar as possibilidades e limites à realização do seu
projeto, que tenha habilidades desenvolvidas de negociação com a instituição à qual está
vinculado para implementar suas propostas, projetos e ações e garantir que de fato tenha
possibilidades de exercer suas competências e atribuições privativas de forma qualificada.
Com relação à redução do Serviço Social a uma profissão da assistência, conforme
apontou Netto (2007), lembramos que inúmeros segmentos da nossa categoria, respaldados
por nossas entidades representativas, empreendem séria crítica a esta ideia, procurando
reforçar um projeto profissional que se expanda para além da lógica de assistencialização da
154

nossa profissão. Certamente que o governo é um grande propagador dessa lógica, procurando
incuti-la no cerne do Serviço Social, mas não é esse o tom que vemos prevalecer nos debater
internos e nem é a que está presente no nosso projeto ético-político, apesar de ser observado
em ampla parcela da prática profissional no mercado de trabalho.
Os estudos sobre a formação profissional, no panorama mais amplo da mercantilização
e privatização do ensino superior, também precisam ser expandidos, buscando meios para
superar a subjugação do conhecimento à lógica do mercado e a alienação das pesquisas
científicas e promover a qualificação dos futuros assistentes sociais.
A identificação das vertentes teórico-metodológicas que mais fazem frente no debate
sobre a profissão também é importante para que possamos estimular um diálogo frutífero e
respeitoso entre as diversas perspectivas, tendo como norte o compromisso firmado no projeto
profissional com a justiça social e os direitos humanos.
Precisamos ter em vista também que é fundamental estabelecermos uma unidade entre
todo o acúmulo teórico-político do Serviço Social nestas últimas décadas e as dimensões da
formação e da prática profissional. Esta relação profícua entre universidade, mercado de
trabalho e organizações da categoria poderá contribuir com o enfrentamento das inúmeras
adversidades que os assistentes sociais encontram nas instituições, tornando-as objeto de
pesquisa no âmbito acadêmico e devolvendo seus resultados para enriquecer tanto a formação
como a prática profissional, o que certamente fortalecerá também o projeto de esquerda do
Serviço Social.
Para complementar essa questão, Faleiros (2014) lembra que ―o questionamento dos
poderes dominantes passa pelo questionamento do poder e do saber profissional‖, cujas
teorias não devem ser vistas como descoladas da prática, mas como ―um processo de
fecundação que envolve a ciência construída como as referências existenciais‖. A partir de tal
perspectiva, compreendemos que

essa dinâmica traz a aprendizagem do próprio assistente social numa comunicação


fecunda com o público e no exercício político da profissão, o exercício esse que
supõe a abertura fundamental para a crítica da estrutura capitalista, que supõe
sujeitos em ação no confronto de ideias e de representações da sociedade, de seu
grupo, de si mesmo e da profissão.

Assim, os princípios éticos contidos no nosso projeto profissional, devem ecoar na


prática cotidiana, definindo novos modos de atuação que recusam o mero tecnicismo, seja nas
relações e nas condições de trabalho que os assistentes sociais encontram diante de si, ou
mesmo nas suas expressões coletivas.
155

Certamente isso é problematizado, como vimos no último capítulo, pelo


fortalecimento de tendências (neo)conservadoras na profissão, que precisa urgentemente ser
enfrentado, pois, apesar do conservadorismo ser uma herança histórica do Serviço Social,
também é histórica a luta por sua ruptura no âmago da profissão, liderada pelas vanguardas
profissionais, a partir de um patrimônio construído e conquistado pela coletividade
profissional, mas cuja referência teórica, valores e disposição para uma ação radical provêm
de ―uma herança que pertence à humanidade e que nós resgatamos dos movimentos
revolucionários, das lutas democráticas, do marxismo, do socialismo, e incorporamos ao
nosso projeto‖. (BARROCO, 2011: 215)
Vale lembrar aqui que este patrimônio profissional, político e social vem sendo
construído coletivamente pela categoria desde os anos 1980 e seu núcleo reside na

compreensão da história a partir das classes sociais e suas lutas, da centralidade do


trabalho e dos trabalhadores. Ele foi alimentado teoricamente pela tradição marxista
— no diálogo com outras matrizes analíticas — e politicamente pela aproximação
das forças vivas que movem a história; as lutas e movimentos sociais.
(IAMAMOTO, 2014: 613; grifos originais)

A autora (Idem) consegue descrever de forma bastante peculiar algumas das principais
conquistas que tal patrimônio foi capaz de atingir e as possibilidades que ele ainda abre para
um avanço ainda maior, que consideramos conveniente reproduzi-las aqui de forma integral,
já que contribuiu como parte importante (e diríamos até fundamental) para alcançarmos as
conclusões no processo de elaboração desta dissertação:

• Na contramão do mar de individualismo e insensibilidade ante aos dilemas da


coletividade, os assistentes sociais preservaram sua capacidade de indignação diante
das desigualdades e injustiças sociais, mantendo viva a esperança em tempos mais
humanos.
• No campo do exercício profissional tem sido impulsionada a busca permanente de
aperfeiçoamento, a inquietação criadora e o compromisso com a qualidade dos
serviços prestados, que busca fina sintonia com as necessidades dos sujeitos.
• Os assistentes sociais vêm construindo na sua prática cotidiana uma nova imagem
social de profissão relacionada aos direitos, apoiando a participação qualificada dos
sujeitos sociais em defesa de suas necessidades e direitos.
• Avançou-se no autorreconhecimento do(a) assistente social como trabalhador
assalariado, partícipe do trabalho social coletivo, mediante uma atitude crítica e
ofensiva na defesa das condições de trabalho e da qualidade dos atendimentos. É
ilustrativa a mobilização pela aprovação da Lei n. 2.317/2010, que trata da redução
da carga horária semanal de trabalho do assistente social para 30 horas sem redução
de salário.
• Esforços foram empreendidos para a qualificação das competências e atribuições
do(a) assistente social resguardadas pela Lei da Regulamentação da Profissão, de
1993, nos segmentos mais representativos do mercado de trabalho: na assistência, na
saúde, na educação, na área sociojurídica, o que requer permanente aperfeiçoamento
e atualização. Todavia, é necessário atribuir maior visibilidade às experiências
156

inovadoras de trabalho na perspectiva do projeto profissional coletivamente


construído.
• A pauta temática da pesquisa indica uma profissão com profunda vocação histórica
e com uma inquietante agenda de debates que denota fecunda interlocução do
Serviço Social com o movimento da sociedade. O Serviço Social no Brasil é hoje
reconhecido como área de conhecimento no campo de Ciências Sociais aplicadas
por parte das agências públicas oficiais de fomento à pesquisa e à inovação
tecnológica, conquista pioneira no Serviço Social latino-americano.

Yazbek (2014: 690) entende que este patrimônio é fruto de uma construção coletiva e
foi fortalecido pelos organismos político-representativos da profissão, que possuem
capilaridade organizativa e legitimidade política, a qual está expressa através das leis de
regulamentação da profissão e no seu Código de Ética, ―assim como nas múltiplas decisões,
deliberações que reafirmam o fortalecimento do projeto ético-político profissional e a
organização coletiva da categoria profissional‖.
Fortalecer esta nossa organização política é fundamental para conseguirmos manter a
hegemonia de nosso projeto ético-político atual, o que não é tarefa das mais simples, já que,
conforme verificamos, a grande ofensiva ideológica do capital ataca não somente as nossas,
mas todos os espaços de organização dos trabalhadores, procurando coibir a ação política
desta classe. É pensando nisso que precisamos urgentemente participar da construção coletiva
de uma contra-hegemonia ao projeto societário atual, revigorando nossa resistência e
capacidade de luta, resistindo à reação burguesa conservadora e são as nossas entidades
representativas que podem concentrar nossos esforços neste sentido.
Yazbek (Idem) lembra ainda que a força destas entidades pode ser observada a partir
dos ―muitos eventos da categoria, sejam acadêmicos sejam aqueles resultantes da experiência
associativa dos profissionais, como suas convenções, congressos, encontros e seminários‖.
Além disso, são esses fatores que conferem às organizações do Serviço Social ―um caráter de
intelectual coletivo, capaz de articular, organizar e pactuar a presença dos assistentes sociais
nas lutas coletivas e em movimentos sociais mais amplos, na direção da construção de outra
ordem societária‖.
Precisamos compreender, no entanto, que essa construção depende de fatores que
ultrapassam o âmbito interno da profissão, já que ela só será possível se nos articularmos com
uma forte base social de sustentação. Considerando que as bases sociais do projeto ético-
político do Serviço Social foram dadas na conjuntura de luta pela redemocratização do país
pela relação de seus quadros progressistas com a organização dos trabalhadores e os
movimentos democrático-populares, entendemos que ―a nossa força política está articulada,
ainda que não seja de forma mecânica, ao avanço dessa base social, que tem como
157

protagonistas os sujeitos de nossa intervenção profissional: as classes trabalhadoras‖.


(BARROCO, 2011: 212)
Vimos, então, que é fundamental a profissão passar por um processo constante de
atualização, visando as condições concretas que estão em constante mudança, renovando suas
condutas e ações profissionais de acordo com as novas demandas e com as transformações no
mundo do trabalho e na sociedade em geral, tudo isso direcionado por um projeto ético-
político profissional, que, apesar de pertencer a um corpo heterogêneo, constitui uma unidade
em um ambiente plural.

Aqui, mais uma vez cabe deixar claras as diferenças entre pluralismo e ecletismo
como constituintes desse processo. Uma perspectiva plural supõe a diversidade,
supõe o diálogo entre posições, correntes teóricos/metodológicos, mas não concilia o
inconciliável e muito menos abre mão da direção hegemônica. É cada vez mais
evidente que diferentes projetos sociopolíticos societários e da profissão se
confrontam nesse processo. O projeto neoconservador valendo-se de novas
roupagens, fragmentará cada vez mais as análises e ações do profissional.
(YAZBEK, 2014: 687)

Durante esse período a profissão vem exercendo coletivamente questionamentos e


problematizações de todas essas esferas, que incluem formação e prática neste cenário
remodelado do capital, pois é dessa forma que podemos nos colocar como sujeitos detentores
de um projeto profissional de fato compromissado com a construção de uma sociedade
fundada na emancipação humana e, portanto, enfrentando todos os tipos de tentativas para
trazer o conservadorismo de volta ao âmago da profissão, enquanto projeto alternativo àquele
hegemônico na atualidade.
É a partir daí que podemos começar a pensar em ―projetar formas de resistência e de
defesa da vida e dos direitos, que apontam para novas formas de sociabilidade‖.
(IAMAMOTO, 2014: 619; grifos originais)
Para tanto, precisamos de uma sólida base teórico-metodológica que guie nossa práxis
profissional. Concordamos, então, com Mészáros (2011: 30), quando diz: ―eis porque Marx é
mais relevante hoje do que alguma vez já o foi. Pois apenas uma mudança sistêmica radical
pode proporcionar a esperança historicamente sustentável e a solução para o futuro‖.
Porém, apenas reproduzir idealmente o movimento do real, não implica na sua
modificação, ou seja, ―a teoria não passa, de imediato, à prática‖; o conhecimento sobre a
realidade não implica sua mudança, mas ―a Teoria Social de Marx pode possibilitar a
transformação social, sendo para isso necessárias mediações.‖ (SANTOS, 2010: 21-22)
158

Estas mediações, conexão de múltiplas determinações compõem os diferentes níveis


de concretude do real e estão presentes na categoria da particularidade. Mas para atingi-la, é
necessário empreender este movimento dialético a partir da tríade singularidade-
universalidade-particularidade, conforme Marx resumiu na passagem que descreve como
chegar ao concreto pensado. Vamos nos ater melhor a este movimento e cada nível do real
que está presente nele.
O nível da singularidade corresponde à imediaticidade. Os fenômenos se apresentam
despidos de suas determinações históricas e sua legalidade social170 está camuflada. No intuito
de desvendá-la, há de se fazer uma relação com as determinações onto-genéticas dos
processos sociais, descobrir seu movimento e suas mediações com o plano da universalidade.
Este, por sua vez, abarca as ―grandes determinações gerais de uma dada formação histórica―,
guiadas pelas leis tendenciais, pela legalidade social. (PONTES, 2010: 85)
Só então que é possível apreender o rico campo de mediações que compõem a
categoria da particularidade. ―O singular está conectado à totalidade social através de suas
relações, assim, é através do particular que essas relações se evidencia e que o singular pode
aparecer.‖ (SANTOS, 2010: 23) Vale ressaltar que ―essas últimas mediações são de caráter
estritamente ontológico e inescapavelmente têm que ser compreendidas no seu devir
histórico‖. (Ibidem: 88)
Santos (Ibidem: 23) resume este movimento e sua importância no processo de
apreensão da realidade:

mesmo que não se tenha consciência dessas dimensões, elas estão presentes,
necessitando ser desvendadas. Por conseguinte, no processo de apreensão do real
pela consciência, parte-se do singular para o universal, mas sendo preciso voltar ao
singular. Essas passagens são mediatizadas pela categoria da particularidade. Assim,
conhecer o real é [...] investigar suas relações em sua totalidade. O singular só pode
ser cientificamente conhecido quando se esclarecem as universalidades e
particularidades histórico-sociais que intervêm sobre esse singular, o que faz com
que todo singular seja universal e todo universal só apareça no singular.

A singularidade, a universalidade e a particularidade são, portanto, totalidades parciais


que conformam a totalidade social e Marx parte desta perspectiva de totalidade em sua análise
acerca de seu objeto – a sociedade capitalista. De acordo com Netto (apud SANTOS, 2010:

170
Segundo o autor, o conceito de ―legalidade social‖ refere-se a ―forças tendenciais que historicamente se
impõem à sociedade e por ela também é construída demarcando certos condicionamentos do ser social.‖
(PONTES, 1999: 40). Como exemplo dessas ―leis tendenciais‖, Pontes (1999: 47) cita as ―leis de mercado,
relações políticas de dominação etc.‖
159

24), ―a totalidade é uma categoria que existe na realidade e que é reconstruída teoricamente
enquanto um princípio teórico metodológico recuperado para a análise do social‖.
Para Marx, é a própria realidade que confirma a veracidade da teoria: ―é na práxis que
o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu
pensamento‖. (MARX, 2006b:111-112)
No entanto, somente uma teoria que fortaleça a consciência da práxis é que abre a
possibilidade da transformação, como é a teoria revolucionária, a qual ―não se desenvolve em
nome da Teoria mesma, e sim em nome da práxis; é uma teoria baseada na prática que tende,
por sua vez, a resolver – justamente por seu caráter rigoroso, científico, objetivo – as
contradições que se apresentam real e efetivamente‖. (VÁZQUEZ, 1990:230)
A teoria social de Marx se distingue das outras, pois é justamente esta sua intenção,
como ele mesmo diz: ―os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras;
o que importa é transformá-lo‖. (MARX, 2006b: 113; grifos originais)
Vemos, assim, como é importante que o profissional apreenda a essência de seus
objetos de intervenção, no sentido de orientar uma prática que reflita as necessidades
objetivas do que está em pauta. Para isso, é necessário que se aproprie da teoria social de
Marx e de seu método, o que nos possibilitará produzir uma prática não só comprometida com
o nosso projeto ético-político, mas que atua como ―uma efetiva forma de resistência e de luta
contra a barbárie, que também fortalece o projeto de emancipação humana‖. (PONTES,
1999:48-49)
Na sociedade atual, em que o capitalismo está à beira do abismo, ele encontra, de
acordo com Hobsbawm (apud Netto 2012b: 81), três questões problemáticas fundamentais: ―a
crescente diferença entre o mundo rico e o mundo pobre (e provavelmente entre os ricos e os
pobres no interior do mundo rico); a ascensão do racismo e da xenofobia; e a crise ecológica‖.
Assim, Netto (2012b) entende que esta crise global somente poderá ser superada a partir de
respostas positivas para estas questões, caso contrário, sucumbirá ao rumo inevitável para o
qual aponta a proposta neoliberal.
Diante disso, são colocadas duas vias principais de realização – o aprofundamento da
regressão que esta proposta impõe, levando à manutenção deste quadro de barbárie, ou ―a
superação das formas de sociabilidade fundadas no modo de produção capitalista, a
ultrapassagem das organizações societárias assentadas na propriedade privada dos meios
fundamentais de produção e na decisão privada da alocação do excedente econômico‖. Ou
seja, ―repõe-se agora como atual, e de modo dramaticamente atual, a opção expressa na
antiga fórmula – socialismo ou barbárie‖. E devemos lembrar que ―se a barbárie é a
160

perspectiva real e imediata, o socialismo é uma alternativa possível – e o possível é também


constitutivo do real, tem raízes na realidade‖. (NETTO, 2010: 31; grifos do autor)
Essa alternativa à barbárie precisa de estratégias reais e perspectivas concretas já que
a superação da ordem capitalista é função do conjunto dos movimentos da classe
trabalhadora. Assim, como aponta Netto (2012b: 92), ―mesmo que não estejam ‗maduras‘ as
condições para a transição socialista, é o conjunto de lutas que a tenham como escopo que
pode bloquear e reverter a dinâmica que hoje compele o movimento do capital a rumar para a
barbárie‖.
O fortalecimento da direção social impressa ao nosso projeto ético-político corrobora
esta alternativa, e, conforme já verificamos e ressaltamos inúmeras vezes, é com as forças
sociais que a sustentam e estão empenhadas em concretizá-la que nossa categoria precisa
estreitar os laços e estabelecer relações sólidas, já que partilhamos interesses comuns
enquanto classe.
Para finalizar, reforçamos nossa posição sobre este projeto com esta citação de Mota
(2012: 44), que condensa bem a conclusão a que chegamos após a realização desta
dissertação:

se acreditamos que a história não acabou e que a luta por uma outra sociedade é
possível, também não acreditamos que nosso projeto profissional esteja em crise.
Acreditamos, sim, que é um projeto tensionado pela ofensividade dos mecanismos
capitalistas de superação da crise. Todavia, compreendo que em determinadas
conjunturas, os elementos que compõem o projeto profissional podem ter pesos e
estruturas diferenciadas; e, neste momento em que as resistências são tênues, porém
reais, a prática político-organizativa é essencial, posto que deve estabelecer o elo
entre a formação profissional e a formação política da categoria profissional.
161

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