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do Serviço Social
Rio de Janeiro – RJ
2015
1
do Serviço Social
Rio de Janeiro
2015
2
do Serviço Social
Examinada em:
_________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Braz Moraes dos Reis
_________________________________________________
Profª. Drª. Mavi Rodrigues Pacheco
_________________________________________________
Prof. Dr. Rodrigo Silva Lima
3
Ao Tico, in memoriam
4
Agradecimentos
Agradeço primeiramente ao meu orientador, Marcelo Braz, por todo o apoio neste
árduo processo de construção desta dissertação, pela paciência e conhecimentos
compartilhados. Aos professores Mavi Rodrigues e Rodrigo Lima, que tão solicitamente
atenderam ao convite para participar da banca e que trouxeram enormes contribuições para
seu desenvolvimento.
Aos professores que enriqueceram minha formação ao longo deste curso de Mestrado:
Mauro Iasi, Yolanda Guerra, Sara Granemann, Carlos Montaño, Marildo Menegat e José
Paulo Netto. Aos funcionários da Secretaria de Pós-graduação, sobretudo à Fernanda Lima e à
Luiza Pessoa, que muito solícitas nos atenderam sempre com muita atenção.
Aos colegas de turma que tive o prazer de conhecer e compartilhar mais esta etapa de
qualificação profissional, pelo companheirismo e solidariedade, principalmente à Juliana
Ford, pela amizade.
Agradeço aos meus pais, Sonia e Antonio Carlos, que sempre me apoiaram e
proveram meios para que pudesse sempre crescer pessoal e profissionalmente. Aos meus
sogros, Anelita e Roberto, que tão bem me acolheram em sua casa. Ao meu namorado,
Rodrigo, pelo carinho, paciência e incentivo. E aos meus filhos queridos que sempre me
divertem e que me proporcionaram uma ótima companhia ao longo da elaboração deste
trabalho: Leo, Tainá, Sabrina, Charlotte e especialmente o Tico, que me trouxe muita alegria e
de quem sempre me lembrarei com muitas saudades.
Por fim, deixo meu agradecimento a todos os colegas assistentes sociais e a todos os
bravos guerreiros da classe trabalhadora que, apesar da ofensiva opressora do capital nunca
perdem a esperança e estão sempre na luta por uma nova sociedade em que a medida de todas
as coisas seja a justiça social. Venceremos!
5
Elogio da dialética
(Bertold Brecht)
(Bertolt Brecht)
6
Resumo
Abstract
Sumário
Introdução................................................................................................................................. 9
Introdução
1
Quando o conservadorismo deixa de lado sua tendência anticapitalista e restauradora, atentando para conter os
anseios de revolução da classe trabalhadora, passando a ser, portanto, funcional aos interesses burgueses,
caracteriza o que Santos (2007) denomina neoconservadorismo.
10
procuramos verificar seu histórico e suas relação com o projeto societário, identificando os
desafios e ameaças que se lhe impõem a atual conjuntura.
O interesse por este tema surgiu através dos estudos acadêmicos, principalmente com
a realização do trabalho de conclusão de curso2, o qual pretendo aprofundar e ampliar a partir
desta pesquisa. A prática profissional também foi fundamental na escolha do tema, uma vez
que o contato com a realidade do trabalho do assistente social nos permite ter uma visão mais
apurada acerca das possibilidades e limites que encontramos. Outros cursos e eventos que
tratam do cenário atual (seja da sociedade ou do próprio Serviço Social) igualmente
suscitaram o desejo de investigar mais a fundo o objeto de estudo. Além disso, nossa própria
vivência cotidiana nos leva a querer compreender melhor a realidade, buscar as raízes dos
problemas que enfrentamos e nos deparamos, superando a pura imediaticidade dos fenômenos
como nos são aparentes no dia-a-dia.
Diante do exposto até aqui, vemos que importância em estudar o objeto, reside no fato
de que é fundamental compreendermos as iniciativas de que o capitalismo contemporâneo
lança mão e quais são seus resultados nas complexas relações entre o Estado e a sociedade, de
que forma as inúmeras contrarreformas de cunho neoliberal incidem na vida social, nas
profissões, nas organizações da classe trabalhadora, já que vão na contramão de seus
interesses. Assim, neste momento em que há uma enorme ofensiva do capital, uma regressão
dos direitos conquistados, precisamos encontrar caminhos não só na profissão, mas na própria
sociedade, no sentido de traçar estratégias de enfrentamento que fortaleçam a direção social
contida nele, pautada por valores e princípios que reforçam não a justiça social e os direitos
humanos.
Além disso, a apreensão das mediações do cenário contemporâneo nos possibilita
identificar as inúmeras expressões que assume a ―questão social‖3 na atualidade e assim, lidar
com as suas múltiplas determinações, desvelando a simples aparência dos fenômenos que nos
colocam enquanto demandas à profissão e atingindo sua essência. Desta forma, poderemos
realizar uma prática profissional compromissada com nosso projeto ético-político, tendo em
vista a relação da profissão com o movimento real das classes sociais fundamentais, e,
portanto, tensionado por elas, já que ao assumir um compromisso com os interesses da classe
2
GASPARIN, J. D. Os desafios da conjuntura atual para o projeto ético-político do Serviço Social. 2009. 82 f.
Trabalho de Conclusão de Curso (Serviço Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
2009.
3
―A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e
de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do
empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a
burguesia‖. (IAMAMOTO in IAMAMOTO e CARVALHO, 2004: 77; grifos da autora)
11
A teoria social de Marx, a partir do método dialético, é que nos permite ultrapassar
estas ilusões e atingir a essência dos fenômenos cotidianos, através da perspectiva histórica e
de totalidade, ou seja, da compreensão que há uma unidade concreta e dialética do todo. Este
método é o único capaz de desvendar as contradições inerentes ao modo de produção
capitalista e agir no sentido de sua superação, fornecendo uma orientação à ação da classe
proletária.
Os procedimentos metodológicos implicados no desenvolvimento do estudo proposto
por esta dissertação consistem em, primeiramente, uma pesquisa bibliográfica acerca do tema,
selecionando as que o contemplam de forma mais satisfatória, sempre tendo em vista o
referencial teórico que nos apoiamos. Assim, a partir de uma revisão das fontes,
empreendemos uma leitura mais aprofundada e analítica dos materiais disponíveis, seguindo-
se ao desenvolvimento de cada capítulo planejado de acordo com o objetivo da dissertação.
Lembramos que foram também relevantes como fonte de estudos o que foi apreendido
durante as aulas do curso de graduação e mestrado em Serviço Social, os cursos, eventos,
seminários e afins que abordaram a temática em questão, além das experiências profissionais
cotidianas, que contribuíram para a análise aqui apresentada.
Esta dissertação inicia-se com um capítulo que reúne algumas das principais
categorias da teoria social marxiana, pois, conforme já apontamos, esta fornece a base teórica
de nossa abordagem. Obviamente, não é possível dar conta aqui da complexidade encontrada
no conjunto das categorias elaboradas por Marx em seus estudos acerca do modo de produção
capitalista, mas é fundamental esclarecermos nossa compreensão acerca das que pensamos
serem preponderantes para tratarmos a questão das crises desta ordem social.
Trazemos, então, as categorias de mercadoria, enquanto forma elementar da riqueza
na sociedade capitalista; processo de trabalho, por constituir uma das categorias centrais pela
qual se desenvolve a teoria marxista; mais-valia, categoria que foi essencial para explicitar o
caráter exploratório deste modo de produção, no qual o capital subjuga o trabalho para atingir
seu objetivo maior de acumulação; e, por fim, tratamos da lei geral da acumulação
capitalista, que expressa a forma como o capitalismo ajusta a quantidade de trabalhadores às
suas necessidades de expansão, potencializando, de um lado, a riqueza e de outro, o
pauperismo, ao qual fica relegada a classe trabalhadora.
O próximo capítulo tem como foco as crises cíclicas do modo de produção capitalista,
demonstrando, através da análise de Marx, como elas não somente fazem parte dos próprios
ciclos econômicos, como são funcionais à ordem do capital, atuando como uma forma de
garantir sua permanência por mais um período de tempo. Isso porque, enquanto revela suas
13
mais gritantes contradições, acaba fornecendo os meios para amenizá-las e não sucumbir à
sua própria lógica autodestrutiva, já que, conforme Marx e Engels (2006a: 57): ―a burguesia
produz, acima de tudo, seus próprios coveiros‖.
No terceiro capítulo nos atentamos à crise capitalista desencadeada a partir da década
de 1970, pelo fato de inaugurar um novo padrão, pois não se trata mais de outra crise cíclica,
mas sim de uma crise estrutural do capitalismo, análise baseada fundamentalmente no
desenvolvimento desta concepção pelo marxista húngaro Mészáros. Também foi fundamental
para a construção deste capítulo a leitura de Harvey acerca da crise mais atual, deflagrada no
ano de 2008, que nada mais é do que uma reverberação da anterior, seguindo o padrão que lhe
confere o status de crise estrutural. Analisamos seus detonadores e traçamos um breve
panorama de seus impactos no mundo globalizado. Para finalizar este terceiro capítulo,
abordamos de forma bastante sucinta algumas repercussões desta crise contemporânea do
capital no Brasil, até porque a proximidade histórica ainda não possibilitou que análises mais
complexas sobre este quadro fossem desenvolvidas com maior precisão.
O quarto e último capítulo é o que finalmente traz a abordagem mais específica do
Serviço Social. Iniciamos analisando de que forma se constituem os projetos profissionais e
sua relação com os projetos societários de forma mais geral, para então verificarmos a
especifidade do projeto ético-político do Serviço Social, construído coletivamente a partir de
um contexto de lutas pela democratização da sociedade brasileira e, portanto, impulsionado
pelas forças políticas que levaram à derrocada da ditadura militar no país. Neste cenário,
veremos como a categoria, estimulada por suas vanguardas, começa a questionar não só o
movimento da sociedade em torno da luta de classes, como o próprio conservadorismo
histórico na profissão, promovendo não só sua rejeição, mas a ruptura e construção de novas
perspectivas para a profissão, que é chamada a responder novos desafios e demandas diante
das novas configurações do capitalismo que vão se desenhando na dinâmica das suas
transformações internas.
Só após traçarmos este panorama, apresentando suas principais determinações e
elementos é que passamos a analisar se o nosso projeto ético-político está em crise. Trazemos
algumas questões para pensarmos a questão da formação e da prática profissional na
contemporaneidade, que vem sendo cada vez mais precarizadas. Problematizamos então,
brevemente, o fortalecimento do neoliberalismo no interior da profissão e a ameaça que a
hegemonia conquistada pelo projeto profissional atual enfrenta. É aí que passamos a trazer
alguns elementos para pensar se, diante de tudo isso, nosso projeto ético-político está ou não
atravessando uma crise.
14
Nas considerações finais procuramos deixar clara nossa posição quanto a esta questão,
trazendo ainda, algumas sugestões de enfrentamento que encontramos na literatura
profissional, que buscam fortalecer nosso projeto profissional, tendo como horizonte o que
representamos nesta citação de Iamamoto (2014: 610):
Para iniciar esta dissertação, começamos por realizar a exposição de algumas das
principais categorias da teoria social marxiana, as quais julgamos fundamentais para o
desenvolvimento do trabalho, já que constituem a base teórica fundante daquilo que estaremos
abordando – o modo de produção capitalista, tendo por foco suas crises cíclicas.
Como o próprio Marx afirmou, o critério da verdade é o real 4, então acreditamos que é
desta maneira que se percebe sua teoria como verdadeira e atual, apesar da necessidade da
continuidade e atualização de análises de conjuntura, as quais não eram nem mesmo possíveis
de ser realizadas pelo referido autor, uma vez que caracterizavam apenas tendências (e muitas
delas também acertadas) à sua época. Mas isso, os próprios Marx e Engels já apontavam no
prefácio à edição alemã de 1872 da obra Manifesto do Partido Comunista, que, apesar das
análises mais gerais se manterem, o desenvolvimento histórico condiciona a análise das
questões mais específicas da realidade, a qual deve procurar acompanhá-lo e refleti-lo nas
suas múltiplas determinações.5
A escolha das categorias se deve à sua relevância para a compreensão da crise, tendo
em vista que nos momentos de crise, em que há uma superprodução de mercadorias, o valor
contido nela não se realiza já que há uma tendência de subconsumo. A crise se expressa
também como um problema relacionado à mais-valia, já que com a tendência à queda da taxa
de lucro, os capitalistas buscam estratégias de recuperação da acumulação de capital. Os
resultados destes mecanismos rebatem diretamente no processo de trabalho e o ônus maior de
todo este ciclo do capital recai sobre a classe trabalhadora, conforme verificaremos a partir da
análise da lei geral de acumulação capitalista, cuja manifestação é evidente nas próprias
expressões da "questão social", objeto de intervenção do Serviço Social.
Verificaremos a seguir de forma mais detalhada cada uma das determinações destas
categorias da Economia Política.
4
Para Marx, é a própria realidade que confirma a veracidade da teoria: ―é na práxis que o homem deve
demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento.‖ (MARX, 2006a: 111-
112)
5
Em uma ―autocrítica‖ de sua obra neste prefácio, os autores afirmam que ―embora as condições tenham
mudado muito nestes últimos vinte e cinco anos, os princípios gerais expostos neste Manifesto conservam em
seu conjunto, ainda hoje, toda a sua exatidão. Certas partes deveriam ser retocadas. O próprio Manifesto explica
que a aplicação destes princípios dependerá, sempre e em toda parte, das circunstâncias históricas existentes‖.
(MARX e ENGELS, 2006b: 26)
16
1.1 A mercadoria
Da mesma forma como Marx faz em seu principal trabalho – O capital: crítica da
Economia Política – iniciaremos pela análise da categoria da mercadoria, já que nas
sociedades de produção capitalista, é ela que constitui a forma elementar da sua riqueza.6
Ao analisarmos a fundo a mercadoria, é possível identificar seu duplo caráter:
enquanto algo produzido no intuito da satisfação de determinadas necessidades humanas e
que tem, portanto, uma utilidade, ela é um valor-de-uso historicamente determinado tanto
qualitativamente, através de suas propriedades materiais, as quais constituem sua existência e
definirão o modo pela qual serão utilizadas, quanto quantitativamente, já que é sempre
quantificado de acordo com determinado padrão de medidas. Seu consumo ou sua utilização
representam a realização dos valores-de-uso, ―conteúdo material da riqueza‖ e se relacionam
intrinsecamente à outra face de seu duplo caráter – os valores-de-troca.7 Esta relação se dá a
partir da troca de determinadas quantidades de valores-de-uso diferentes e que, apesar de
serem imanentes à mercadoria, são variáveis ao longo do decurso histórico. (MARX, 2012:
58)
Na relação da troca de mercadorias, observamos que a quantidade de uma determinada
mercadoria pode ser permutada por uma quantidade determinada de diversas outras
mercadorias, tornando-as equivalentes entre si, já que são igualadas durante este processo.
Isso significa que ―algo comum, com a mesma grandeza, existe em duas coisas diferentes [...].
As duas coisas são, portanto, iguais a uma terceira, que, por sua vez, delas difere. Cada uma
das duas, como valor-de-troca, é reduzível, necessariamente, a essa terceira‖. (MARX, 2012:
59)
Isto que há de comum nas mercadorias e que permite sua relação de troca não
corresponde a nenhuma de suas propriedades materiais, pois estas somente interessam na
medida em que a determinam enquanto um valor-de-uso específico, o qual na troca é
desconsiderado, já que na relação de troca os valores-de-uso passam a ter o mesmo valor
quando presentes em dadas proporções. Conforme Marx (2012: 59): ―como valores-de-uso, as
6
―À primeira vista, a riqueza da sociedade burguesa aparece como uma imensa acumulação de mercadorias,
sendo a mercadoria isolada a forma elementar dessa riqueza‖. (MARX, 2008: 51)
7
Vale ressaltar aqui a importante ressalva que Marx faz acerca da afirmação de que a mercadoria seria valor-de-
uso e valor-de-troca, quando diz que ―isto, a rigor, não é verdadeiro. A mercadoria é valor-de-uso ou objeto útil e
‗valor‘. Ela revela seu duplo caráter, o que ela é realmente, quando, como valor, dispõe de uma forma de
manifestação própria, diferente da forma natural dela, a forma de valor-de-troca; e ela nunca possui essa forma,
isoladamente considerada, mas apenas na relação de valor ou de troca com uma segunda mercadoria diferente.
Sabido isto, não causa prejuízo aquela maneira de exprimir-se, servindo, antes, para poupar tempo‖. (MARX,
2012: 82)
17
mercadorias são, antes de mais nada, de qualidade diferente; como valores-de-troca, só podem
diferir na quantidade, não contendo, portanto, nenhum átomo de valor-de-uso‖.
O que dois valores-de-uso distintos têm em comum e que permite esta equivalência
entre eles é o fato de serem produtos de um dispêndio de força de trabalho e, sendo assim, a
qualidade própria de cada trabalho concreto empreendido em sua produção também são
desconsiderados, pois, no processo de troca, acabam reduzidos a trabalho abstrato. Neste
sentido, os valores-de-uso são os ―veículos materiais‖ dos valores-de-troca e, desta forma,
―um valor-de-uso ou um bem só possui, portanto, valor, porque nele está corporificado,
materializado, trabalho humano abstrato‖. O trabalho é, assim, a substância do valor. (MARX,
2012: 60)
Marx, então, supera a teoria do valor-trabalho da Economia Política clássica
reformulando-a nos seguintes termos8: ―o trabalho (abstrato) é a essência do valor de troca
porque, numa sociedade fundada sobre a divisão do trabalho, ele constitui o único tecido
conjuntivo que permite comparar mutuamente e tornar comensuráveis os produtos do trabalho
de indivíduos separados uns dos outros‖. (MANDEL, 1968: 50)
A medida usada para determinar o valor das mercadorias é, portanto, a quantidade de
trabalho necessário para sua produção e, dado que o trabalho é contado pela sua duração,
concluímos assim que o valor de uma mercadoria é determinado não pelo tempo de trabalho
incorporado em cada uma9, mas sim pelo tempo de trabalho socialmente necessário para sua
produção, ou seja, ―o tempo de trabalho requerido para produzir-se um valor-de-uso qualquer,
nas condições de produção socialmente normais existentes e com o grau social médio de
destreza e intensidade do trabalho‖. (MARX, 2012: 61)
8
Se, inicialmente, Marx rejeita a teoria do valor-trabalho durante seus estudos de Economia Política, é com o
progresso desses e o desenvolvimento de seu pensamento, pelo contato não só com os escritos dos autores da
Economia Política clássica, como Adam Smith, David Ricardo, James Mill, McCulloch, Jean-Baptiste Say e
Boisguillebert, mas também com o que produziram os autores socialistas ingleses, como T. R. Edmonds,
William Thompson e John Bray, que sua concepção sobre a referida teoria começa a mudar, passando a
considerar alguns aspectos da teoria na forma que traz Ricardo e, então, reformula esta teoria, superando-o. O
ponto principal que distancia Marx de Ricardo é que, enquanto este trata as categorias econômicas enquanto leis
eternas e imutáveis, Marx imprime às mesmas um caráter histórico, que só existe enquanto se fizerem presentes
as condições de determinadas formações históricas que lhe deram origem. Este avanço do pensamento marxiano
que vai da rejeição à reformulação da teoria do valor-trabalho ocorre fundamentalmente em cerca de três anos –
do início de 1844 ao início de 1847. Para um detalhamento maior deste processo, ver Mandel (1968).
9
Afinal, como já vimos, não é o trabalho individual com suas particularidades que se leva em consideração, mas
o trabalho abstrato e, por isso, utiliza-se um tempo médio, que possua um caráter de universalidade, permitindo
assim que se troquem todas as mercadorias umas pelas outras, nas proporções em que representem a objetivação
de um mesmo tempo de trabalho, já que, enquanto mercadorias, são qualitativamente iguais, só diferindo umas
das outras quantitativamente.
18
Daí podemos compreender, então, o porquê da variação dos valores das mercadorias,
já que, as oscilações na produtividade10 do trabalho alteram o tempo de trabalho socialmente
necessário à sua produção, modificando, assim, seu valor. Portanto, ao relacionar a
produtividade do trabalho com o valor da mercadoria, depreendemos que:
Para evitar certas confusões quanto à categoria da mercadoria, deve-se ter em mente
que um valor-de-uso qualquer só poderá ser designado como ―mercadoria‖ se for algo útil
produzido para terceiros, ou seja, um ―valor-de-uso social‖, que pode ser reproduzido, sendo
transferido através do processo de troca.11
Assim como a mercadoria, o trabalho também tem um duplo caráter: aquele que
produz um valor-de-uso é o trabalho útil, uma atividade produtiva destinada a um fim
específico e que apresentam qualidades diversas uns dos outros, gerando, assim, valores-de-
uso qualitativamente diferentes, o que os permite entrar num processo de troca. ―Essa
diferença qualitativa dos trabalhos úteis executados, independentes uns dos outros, como
negócio particular de produtores autônomos, leva a que se desenvolva um sistema complexo,
uma divisão social do trabalho‖.12 (MARX, 2012: 64)
10
―A produtividade o trabalho é determinada pelas mais diversas circunstâncias, dentre elas a destreza média dos
trabalhadores, o grau de desenvolvimento da ciência e sua aplicação tecnológica, a organização social do
processo de produção, o volume e a eficácia dos meios de produção e as condições naturais‖. (MARX, 2012: 62)
11
Desta forma, se algo é útil, mas não é produto do trabalho, pode ser considerado um valor-de-uso, mas não
valor. ―Exemplos: o ar, a terra virgem, seus pastos naturais, a madeira que cresce espontânea na selva etc‖. Se
alguém produz algo para satisfazer uma necessidade própria, este produto, apesar de ser útil e, portanto, um
valor-de-uso, e produto do trabalho não é mercadoria, pois não foi produzido para terceiros. E, por fim,
lembramos que os tributos produzidos pelo servo ao senhor feudal a título de dízimo na sociedade feudal
também não poderiam ser considerados mercadoria, já que, apesar de valor-de-uso produzidos para outrem, não
eram transferidos através da troca. (MARX, 2012: 62)
12
―O crescimento da produtividade do trabalho [...] surge vinculado à repartição do trabalho. Antes mesmo do
aparecimento do excedente econômico, na comunidade primitiva diferenciaram-se as atividades de homens e
mulheres – a divisão sexual é a primeira forma da repartição do trabalho; posteriormente, dividiu-se também o
trabalho entre o artesanato e as ocupações agrícolas, num processo que, muito mais tarde, desembocaria na
divisão entre cidade e campo e na grande clivagem entre atividades manuais e atividades intelectuais. Com
efeito, à medida que se desenvolve a capacidade produtiva da sociedade (e, com ela, o volume do excedente),
esta divide as ocupações necessárias à produção de bens entre seus membros – instaurando a divisão social do
trabalho, que avança tanto mais rapidamente quanto mais os bens produzidos, deixando o limite do autoconsumo
das comunidades, destinam-se à troca. Cabe assinalar que essa divisão reparte o trabalho em especialidades (a
olaria, a fabricação de armas etc.), mas não reparte cada especialidade em operações limitadas (o oleiro controla
todas as fases da produção de uma ânfora); esta última só ocorrerá muito ulteriormente. [...] Na segunda metade
do século XVIII, a ofensiva do capital sobre o trabalho avançou: à cooperação passa a suceder a manufatura.
19
Muitas das formas dos diversos tipos de trabalho útil, que cria valores-de-uso, antes de
se tornarem uma profissão, um ramo específico da divisão social do trabalho já eram
executados pelos seres humanos, dado que estes precisavam interagir com a natureza, da qual
é parte integrante e da qual retira os substratos os quais transforma, e adaptá-la no sentido de
satisfazer suas necessidades e garantir sua sobrevivência. Assim, não importa qual a forma
social e histórica que se considere, o trabalho útil sempre se fará presente.
No entanto, com relação ao valor das mercadorias, não importa a qualidade específica
da atividade produtiva que lhes originou. A única qualidade que é levada em conta aqui é a de
terem cristalizadas em si um dispêndio de força de trabalho humana, ou seja, trabalho humano
simples, que requer um ser humano comum, que dispensa qualquer tipo de conhecimentos e
habilidades especiais para empregá-la. Levemos em consideração que ―o trabalho simples
médio muda de caráter com os países e estágios de civilização, mas é dado numa determinada
sociedade‖, configurando assim, seu caráter histórico. Já o trabalho complexo, ou seja, aquele
que exige um grau de qualificação maior e, portanto, maior preparação, educação e
conhecimento para ser realizado ―vale como trabalho simples potenciado ou, antes,
multiplicado, de modo que uma quantidade dada de trabalho qualificado é igual a uma
quantidade maior de trabalho simples‖. (MARX, 2012: 66)
Dessa forma, por meio de um processo social que estabelece uma quantidade relativa
de trabalho qualificado a trabalho simples, nas devidas proporções, todas as mercadorias, seja
resultante de trabalho simples ou qualificado, podem ser relacionadas no processo de troca.13
Assim, concluímos que
Aqui, já não se trata de reunir trabalhadores num espaço físico determinado; trata-se de reuni-los e de
especializar as suas atividades – com a manufatura, o capital introduz na produção uma divisão do trabalho
específica: a divisão capitalista do trabalho no interior das unidades produtivas. Essa divisão conduz à
especialização das atividades e, ao mesmo tempo, à destruição dos saberes de ofício que permitiam ao
trabalhador o conhecimento técnico do conjunto das operações necessárias à produção de certo bem; alocado a
uma única e determinada tarefa, que repetirá ao longo de todas as jornadas de trabalho, o trabalhador será
despojado de seus conhecimentos e perderá o controle de suas tarefas (e, portanto, perderá muito do seu poder de
barganha em face do capitalista). A divisão capitalista do trabalho no interior das unidades produtivas propiciará
um enorme aumento da produtividade do trabalho e terá como efeito uma diferenciação da força de trabalho que
favorecerá os desígnios do capitalista: de um lado, criará uma pequena parcela de trabalhadores altamente
especializados, que disporá de condições de negociar em posição de força com o capitalista; mas, de outro,
desqualificará a maioria das atividades produtivas, na medida em que a divisão do trabalho multiplica atividades
simples – então, abre-se o espaço para a exploração do trabalho feminino e infantil e para a constituição de um
grande contingente de trabalhadores que não dispõem de saberes de ofício. O período manufatureiro desobstrui a
via para que o processo de trabalho seja realmente comandado pelo capital‖. (NETTO e BRAZ, 2009: 59;111-2;
grifos dos autores)
13
Aqui, Marx faz uma importante observação: ―as diferentes proporções em que as diversas espécies de trabalho
se reduzem a trabalho simples, como sua unidade de medida, são fixadas por um processo social que se
desenrola sem dele terem consciência os produtores, parecendo-lhes, por isso, estabelecidas pelo costume‖.
(MARX, 2012: 66)
20
Fica evidente aí a forma pela qual, na relação de troca entre duas mercadorias
distintas, os trabalhos específicos geradores dos valores-de-uso, veículos do valor, se igualam,
21
ao serem reduzidos a trabalho humano comum, para assim, poderem efetivamente ser
ajustados às proporções equivalentes para a troca. Tal proporção é determinada
quantitativamente pelas quantidades dos valores-de-uso que correspondem a determinada
quantidade igual de tempo de trabalho materializado. Assim, analisando a forma equivalente
do valor, Marx (2012: 78) ressalta que nela vemos como ―o valor-de-uso se torna a forma de
manifestação do seu contrário, isto é, do valor‖.
Nesta relação, apesar de ter expresso o seu valor no valor-de-uso de outra mercadoria,
o objeto material da forma equivalente do valor apenas representa o tempo de trabalho
corporificado em si, o elemento social do valor e não suas qualidades físicas propriamente
ditas.
É esta forma, porém, que encerra certo caráter enigmático, já que, na forma relativa do
valor, a mercadoria em questão expressa seu valor num valor-de-uso distinto de si própria,
deixando evidente a existência de uma relação social. No entanto, quando assume a forma
equivalente e tem por única função expressar em si mesma o valor de outra mercadoria,
parece que tal objeto material tem por natureza a característica da forma equivalente.
Outra propriedade inerente à forma equivalente do valor é a do ―trabalho concreto
tornar-se forma de manifestação de seu contrário, trabalho humano abstrato‖. Isso porque na
expressão de valor entre duas mercadorias, o trabalho criador da mercadoria que assume a
forma equivalente só é útil na medida em que produz um objeto que corporifica este trabalho
enquanto fonte de determinada quantidade de valor, necessitando ―refletir, apenas, a
propriedade abstrata de ser trabalho humano‖. (MARX, 2012: 80)
Daí podemos extrair outra propriedade da forma equivalente: enquanto os trabalhos
concretos são considerados como mera expressão de trabalho abstrato, para poderem ser
equiparados a qualquer outro e assim efetivar a troca das diversas mercadorias, os trabalhos
privados produtores das mesmas, apresentam-se imediatamente14 como seus contrários –
trabalho social. Mas vale ressaltar que ―não se trata aqui da natureza social pura, mas sim do
‗modo específico como o trabalho que determina o valor de troca, que produz mercadorias, é
trabalho social‘‖.15 (ROSDOLSKY, 2001: 113) Além disso,
14
Citando Marx, Rosdolsky (2001: 510) acrescenta aqui que: ―‗exatamente por não ser possível essa
representação imediata, deve-se produzir uma mediação‘, ou seja, a formação do dinheiro‖.
15
Para fazer uma distinção deste caráter social que o trabalho assume na sociedade capitalista, citamos Marx
(apud ROSDOLSKY, 2001: 113-4): ―Tomemos os serviços e pagamentos em espécie da Idade Média. Os
trabalhos determinados dos indivíduos em sua forma natural, ou seja, a particularidade e não a generalidade do
trabalho, constituem aqui o laço social. Finalmente, tomemos o trabalho social em sua forma natural, tal como a
encontramos no limiar da história de todos os povos civilizados. Nesse caso, o caráter social do trabalho não
decorre, evidentemente, do fato de que o trabalho do indivíduo assume a forma abstrata geral, ou de que seu
produto assuma a forma de equivalente geral. A organização comunitária na qual se baseia a produção impede
22
Assim, esta forma simples do valor ainda é insuficiente, já que o valor de uma
mercadoria é expresso pela forma equivalente de somente uma outra diferente de si. O
desenvolvimento desta forma do valor, portanto, irá resultar em uma forma mais completa, a
qual Marx (2012) denomina por forma total ou extensiva do valor.
Considerando que na relação de valor a espécie da mercadoria que assume a forma
equivalente é irrelevante, qualquer valor-de-uso diferente pode exprimir seu valor, tornando
as possibilidades de expressões desta relação bastante ampliadas. ―Desse modo, esse valor,
pela primeira vez, se revela efetivamente massa de trabalho humano homogêneo. O trabalho
que o cria se revela expressamente igual a qualquer outro. Por isso, não importa a forma
corpórea assumida pelos trabalhos‖. Esta forma do valor demonstra de maneira mais clara que
―não é a troca que regula a magnitude do valor da mercadoria, mas, ao contrário, é a
magnitude do valor da mercadoria que regula as relações de troca‖. (MARX, 2012: 84-5)
Apesar de ser mais desenvolvida que sua anterior, esta forma do valor ainda apresenta
algumas limitações, relacionadas à forma de equivalente correspondente à cada forma relativa
que o trabalho do indivíduo seja trabalho privado e que seu produto seja produto privado; ao contrário, faz do
trabalho individual, diretamente, uma parte do organismo social‖. E Rosdolsky aqui traz um complemento entre
parênteses: ―O mesmo também vale, naturalmente, mutatis mutandis, para a sociedade socialista do futuro‖.
23
do valor, as quais são incontáveis. Assim, o trabalho concreto contido em cada mercadoria
que se apresenta na forma equivalente nada mais é do que incompleto e só terá ―sua forma
completa ou total de manifestação no circuito inteiro daquelas formas particulares. Mas falta
uma forma unitária de manifestação do trabalho humano‖. (MARX, 2012: 86)
Assim, quando o possuidor de uma mercadoria pode trocá-la por diversas outras, isso
significa que diversos possuidores de outras mercadorias expressam o valor das suas naquela
primeira, para poder efetuar a troca.
Seguindo, portanto, o desenvolvimento desta forma de valor, ao inverter a forma
extensiva, temos a forma geral do valor. Nela, todas as mercadorias se expressam de forma
igual e simples, ou seja, numa mesma e única mercadoria, que assume, assim, a forma de
equivalente geral.
Enquanto as duas formas anteriores ―chegaram apenas a expressar o valor de uma
mercadoria como algo diverso do próprio valor-de-uso‖, nesta forma geral, ao igualarmos
qualquer mercadoria a uma específica, seus valores-de-uso são distintos de quaisquer outros.
―Daí ser esta a forma que primeiro relaciona as mercadorias, como valores, umas com as
outras, fazendo-as revelarem-se reciprocamente, valores-de-troca‖. Constitui-se, assim, a
forma que confere ―ao mundo das mercadorias forma relativa generalizada e social do valor,
por estarem e enquanto estiverem excluídas todas as mercadorias, com exceção de uma única,
da forma equivalente geral‖. (MARX, 2012: 87-8; 90)
A expressão geral do valor de uma mercadoria só é possível nesta forma porque agora
todas as outras expressam seu valor num único equivalente. Todas são tanto qualitativamente
iguais, enquanto valores, como ―quantitativamente comparáveis, como magnitudes de valor‖
e, portanto, ―se medem mutuamente‖. Assim, ―a realidade do valor das mercadorias só pode
ser expressa pela totalidade de suas relações sociais, pois essa realidade nada mais é que a
‗existência social‘ delas, tendo a forma do valor, portanto, de possuir validade social
reconhecida‖. (MARX, 2012: 88)
O trabalho concreto e privado encerrado na mercadoria que representa o equivalente
geral possui uma forma social e converte todas as outras formas de trabalho a trabalho
humano geral. Assim,
a forma geral do valor, que torna os produtos do trabalho mera massa de trabalho
humano sem diferenciações, mostra, através de sua própria estrutura, que é a
expressão social do mundo das mercadorias. Desse modo, evidencia que o caráter
social específico desse mundo é constituído pelo caráter humano geral do trabalho.
(MARX, 2012: 89)
24
16
Como no exemplo de Marx (2012), se o equivalente geral fosse o linho, para expressar seu valor relativo
teríamos que 20 metros de linho = 20 metros de linho – expressão vazia de conteúdo, que não permite expressar
valor algum.
17
Neste caso, facilitou que o próprio valor-de-uso dos metais preciosos vem do fato de que podem servir como
dinheiro, por se tratar de uma mercadoria ―durável, inalterável, passível de ser dividida e somada, transportável
com relativa facilidade, pode conter um valor de troca máximo em um volume mínimo; tudo isso torna os metais
preciosos particularmente adequados nesse último estágio‖. (MARX apud ROSDOLSKY, 2001: 111)
18
Como as formas de valor vão se desenvolvendo historicamente, derivando umas das outras, pode-se considerar
que ―a forma mercadoria, isto é, a mercadoria equivalente da forma simples do valor, é o germe da forma
dinheiro‖. (MARX, 2012: 92)
19
Isto parece significar que a diferença entre valor e preço é somente nominal, mas, conforme exposição do
próprio Marx (apud ROSDOLSKY, 2001: 100), ―o preço não se distingue do valor só por aquele ser nominal e
este real, ou seja, não só pela denominação em ouro e prata, mas sim pelo seguinte: o valor guia a lei dos
movimentos realizados pelo preço. Mas eles são permanentemente diferentes, nunca coincidem, ou só o fazem
acidentalmente, como exceção. O preço das mercadorias é constantemente superior ou inferior ao seu valor, e o
próprio valor das mercadorias só se expressa através do aumento e da queda dos preços‖.
25
20
Lembramos aqui que a reificação é a forma de alienação correspondente às relações sociais próprias da
sociedade capitalista.
21
Citando diversas passagens da uma obra de Marx, Rosdolsky (2001: 118; grifos originais) explica melhor a
relação entre a criação do dinheiro e o fetichismo da mercadoria: ―Podemos ler nos Grundrisse: ‗A dependência
recíproca e universal de indivíduos indiferentes uns aos outros estabelece sua ligação social. Essa ligação se
expressa no valor de troca, através do qual a atividade e o produto de cada indivíduo se tornam uma atividade e
um produto acabado.‘ Para poder transformar seu produto ‗em um meio de vida para si mesmo, [...] o indivíduo
deve produzir um produto universal: o valor de troca ou [...] dinheiro‘. ‗Por outro lado, o poder que cada
indivíduo exerce sobre a atividade dos outros ou sobre as riquezas sociais, ele o possui na medida em que seja
proprietário de valores de troca, de dinheiro. Leva no bolso seu poder social e sua ligação com a sociedade.‘ E
‗quanto mais a produção se organiza de maneira a que cada produtor passe a depender do valor de troca de sua
mercadoria [...]‘, tanto mais ‗cresce o poder do dinheiro, ou seja, a relação de troca se fixa como um poder
externo em relação aos produtores e independente deles [...].‘ No dinheiro, ‗no valor de troca, o vínculo social
entre as pessoas se transforma em relação social entre as coisas; o poder pessoal, no poder das coisas‘. Nesse
sentido, o dinheiro é ‗o vínculo reificado da sociedade‘, a ‗entidade comunitária real‘ que ocupou o lugar da
antiga comunidade, cuja coesão era mantida por laços naturais e relações de dependência pessoal; ele não pode
tolerar ‗nenhuma outra [entidade] situada acima dele‘‖.
26
22
Não esquecendo aqui, que o ser humano também é parte constitutiva da natureza.
23
Vem daí a célebre frase de Marx (2012: 211-2):‖o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele
figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade‖.
27
mais relevantes, pois são distintos em cada época econômica, podendo indicar até mesmo sob
que condições sociais o trabalho acontecia.
São também considerados meios de trabalho tudo aquilo sem o que não é possível a
realização do processo de trabalho, ainda que seu papel se dê apenas de forma indireta.24
O processo de trabalho, por sua vez, corresponde à própria atividade humana realizada
nos objetos de trabalho através dos meios de trabalho. Durante o processo, um material da
natureza será transformado, dando forma a um produto capaz de atender a certas necessidades
humanas. Assim, ao ser concluído, seu resultado é o produto pronto, um valor-de-uso que
contém trabalho cristalizado em si. Sob esta ótica, ―evidencia-se que meio e objeto de
trabalho são meios de produção e o trabalho é trabalho produtivo‖.25 (MARX, 2012: 215)
Na produção de valores-de-uso, outros valores-de-uso resultado de trabalhos prévios
também participam do processo de trabalho na qualidade de meios de produção, sendo
condição fundamental para o desenvolvimento deste processo e aí já não são mais
considerados como produtos, mas somente como fatores materiais de tais processos.26
Vemos assim, como ―um valor-de-uso pode ser considerado matéria-prima, meio de
trabalho ou produto, dependendo inteiramente de sua função no processo de trabalho, da
posição que nele ocupa, variando com essa posição a natureza do valor-de-uso‖. (MARX,
2012: 216)
Para realmente se tornarem valores-de-uso efetivos, os meios de produção dependem
da ação da força de trabalho, que os consome para fazer cumprir sua determinada função
dentro do processo de trabalho na constituição de um produto, que pode servir tanto como
meio de subsistência, quando destinado ao consumo individual, quanto como novo meio de
produção, quando destinado a tomar parte em outro processo de trabalho, conforme
abordamos. Assim, a utilização dos meios de produção corresponde a um processo de
consumo produtivo, distinto, portanto, do consumo individual mencionado acima.
Estas características mais gerais inerentes ao processo de trabalho, que estabelece o
intercâmbio entre homem e natureza objetivando a criação de valores-de-uso é atividade
24
Figuram aqui tanto, a própria terra, que é o campo de operação, bem como tudo aquilo que é produto de
trabalho prévio, como os edifícios, estradas, canais etc. (cf. Marx, 2012)
25
Marx (2012: 215) ressalta aqui que ―essa concentração de trabalho produtivo, derivada apenas do processo de
trabalho, não é de modo nenhum adequada ao processo de produção capitalista‖.
26
Isso porque já não são mais vistos como produto de um trabalho prévio, já que é indiferente essa consideração
para dar início ao processo de trabalho do qual faz parte. Aqui diz Marx (2012: 217): ―é através dos defeitos que
os meios de produção utilizados no processo de trabalho fazem valer sua condição de produtos de trabalho
anterior. Uma faca que não corta, o fio que se rompe etc., lembram logo o cuteleiro A e o fiandeiro B. No
produto normal, desaparece o trabalho anterior que lhe imprimiu as qualidades úteis‖.
28
fundamental para a vida humana e a acompanhará enquanto existir, seja quais forem as
formas sociais que venham a assumir no decurso histórico.
No caso da sociedade produtora de mercadorias – a sociedade capitalista, o fato de o
trabalho estar subordinado ao capital não altera, de início, a natureza e estas características
gerais do processo de trabalho analisadas acima, conforme afirma o próprio Marx: (2012:
211)
1.3 Mais-valia
Seguindo o fio condutor de nossa análise, este produto apropriado pelo capitalista é
um valor-de-uso, o qual somente tem interesse em produzir por ser, conforme vimos
anteriormente, invólucro material de valor-de-troca. Ao fazer isto, tem dois principais
objetivos em mente: produzir algo destinado à venda no mercado, ou seja, uma mercadoria e
que esta possa conter em si um valor excedente, ou seja, um valor mais alto que aquele
antecipado por ele na compra do conjunto de mercadorias que necessitava para a produção –
os meios de produção e a força de trabalho. Este valor excedente é o que constitui a mais-
valia, a qual analisaremos como se dá o processo de sua formação.
Considerando a mercadoria unidade entre valor-de-uso e valor, entende-se que o
processo de sua produção necessita produzir ambos ao mesmo tempo, já que se trata de um
único processo. Já abordamos o processo de trabalho na produção de valores-de-uso;
voltemos nossa atenção agora à produção de valor. Lembramos que o que determina a
grandeza do valor é a quantidade de tempo de trabalho socialmente necessário à produção do
valor-de-uso no qual se materializa. Assim, leva-se em conta todo o trabalho materializado
contido na produção da mercadoria – a quantidade de trabalho pretérito das matérias-primas
utilizadas e a quantidade de trabalho correspondente à parte do desgaste dos meios de trabalho
consumidos durante o processo. No processo de trabalho, enquanto o valor contido nos meios
de produção será apenas conservado e incorporado à mercadoria que está sendo produzida, a
força de trabalho irá criar um novo valor a ser também materializado nela.
27
―A ‗liberdade contratual‘ entre operário e capitalista, na determinação do salário, vela uma relação que obriga
o operário a aceitar o salário que lhe é oferecido‖. (MANDEL, 1968: 38; grifo do autor)
28
Mais adiante voltaremos a este assunto ao tratar da superpopulação relativa, resultante das próprias relações de
produção capitalistas e que lhe é extremamente funcional.
29
É característico desta sociedade que, por exemplo, em períodos de conjuntura favorável ao capital os salários
subam temporariamente acima do valor da força de trabalho, ficando abaixo dele em períodos desfavoráveis,
como os de crise e grande desemprego. Lembrando que um aumento absoluto nos salários pode significar, na
verdade, uma baixa relativa, se comparado com o aumento mais elevado do preço dos meios de subsistência e
com a própria acumulação de capital. Além dessas, muitas outras determinações estão ligadas ao salário, as quais
não teremos espaço para abordá-las aqui.
31
o trabalho pretérito que se materializa na força de trabalho e o trabalho vivo que ela
pode realizar, os custos diários de sua produção e o trabalho que ela despende, são
duas grandezas inteiramente diversas. A primeira grandeza determina seu valor-de-
troca; a segunda constitui seu valor de uso. Por ser necessário meio dia de trabalho
para a manutenção do trabalhador durante 24 horas, não se infira que este está
impedido de trabalhar uma jornada inteira. 30 O valor da força de trabalho e o valor
que ela cria no processo de trabalho são, portanto, duas magnitudes distintas. O
capitalista tinha em vista essa diferença de valor quando comprou a força de
trabalho. A propriedade útil desta, de fazer fios ou sapatos, era apenas uma conditio
sine qua non, pois o trabalho, para criar valor, tem de ser despendido em forma útil.
Mas o decisivo foi o valor-de-uso específico da força de trabalho, o qual consiste em
ser ela fonte de valor, e de mais valor que o que tem. Este é o serviço específico que
o capitalista dela espera. E ele procede, no caso, de acordo com as leis eternas da
troca de mercadorias. Na realidade, o vendedor da força de trabalho, como o de
qualquer outra mercadoria, realiza seu valor-de-troca e aliena seu valor-de-uso. Não
pode receber um sem transferir o outro. O valor-de-uso do óleo vendido não
pertence ao comerciante que o vendeu, e o valor-de-uso da força de trabalho, o
próprio trabalho, tampouco pertence a seu vendedor. O possuidor do dinheiro pagou
o valor diário da força de trabalho; pertence-lhe, portanto, o uso dela durante o dia, o
trabalho de uma jornada inteira. A manutenção quotidiana da força de trabalho custa
apenas meia jornada, apesar de a força de trabalho poder operar, trabalhar, uma
jornada inteira, e o valor que sua utilização cria num dia é o dobro do próprio valor-
de-troca.
30
Este é apenas um exemplo dado por Marx. Com a crescente produtividade do trabalho e a acumulação do
capital, este tempo de trabalho necessário para que o trabalhador produza o correspondente ao seu salário tende a
diminuir em face do tempo de trabalho excedente. Lembrando que, conforme Marx (2011: 253-4), ―chamo de
tempo de trabalho necessário a essa parte do dia de trabalho na qual sucede essa reprodução [criação de valor
equivalente ao valor da força de trabalho]; e de trabalho necessário o trabalho despendido durante esse tempo.
[...] O segundo período do processo de trabalho, quando o trabalhador opera além dos limites do trabalho
necessário, embora constitua trabalho, dispêndio de força de trabalho, não representa para ele nenhum valor.
Gera a mais-valia, que tem, para o capitalista, o encanto de uma criação que surgiu do nada. A essa parte do dia
chamo de tempo de trabalho excedente, e ao trabalho nela despendido, de trabalho excedente‖. Vale ainda citar a
nota que acompanha a citação anterior para desfazer qualquer confusão: ―Empregamos até agora a expressão
‗tempo de trabalho necessário‘ para designar o tempo de trabalho socialmente necessário à produção de uma
mercadoria. Doravante, empregá-la-emos também para significar o tempo de trabalho necessário à produção
dessa mercadoria especial, que é a força de trabalho. O uso dos mesmos termos técnicos com sentidos diversos
oferece inconvenientes, mas nenhuma ciência pode evitá-lo inteiramente‖.
32
É dessa forma que, ao dispor de uma jornada inteira por parte do trabalhador, pagando
a este apenas a parte correspondente ao seu valor, o restante não pago também é incorporado
ao valor da mercadoria, que é propriedade do capitalista e, portanto é ele que se apropria do
valor excedente – ―consumou-se finalmente o truque: o dinheiro se transformou em capital―.
E isto ocorre tanto na esfera da circulação, uma vez que é no mercado que o capitalista irá
adquirir a força de trabalho, mas também fora dela, já que a criação de mais-valia se dá na
esfera da produção. (MARX, 2012: 227)
Vemos que a diferença entre o processo de produção de valor e o processo de
produção de mais-valia é apenas que o último se estende por mais tempo além daquele
correspondente ao equivalente do valor da força de trabalho. Além disso,
Lembrando aqui que neste processo de produzir mais-valia tanto faz ao capitalista que
se trate de trabalho simples ou complexo, já que, como já mencionamos anteriormente, todas
as formas de trabalho acabam reduzidas a trabalho social médio. Vemos isso ocorrer, já que, o
trabalho complexo requer uma força de trabalho mais especializada e que, portanto, tem
incorporado um tempo de produção maior. Sendo assim, seu valor é mais alto, mas, como
será consumida em trabalhos superiores, consequentemente, os valores que irá materializar
também serão proporcionalmente maiores. Em sua redução a trabalho social médio,
considera-se o tempo de sua duração valendo uma porção mais elevada de tempo de trabalho
simples.31 De qualquer forma, não importando aqui a particularidade de cada trabalho, é o
excedente na duração do processo de trabalho que origina a mais-valia.32
31
Marx (2012: 231) salienta em uma importante nota que as diferenças entre trabalho simples e complexo se dão
nem tanto com base no real, mas muito por questão de tradição, ou ainda pela precária situação que se encontram
muitas camadas da classe trabalhadora que não encontram condições de reivindicar o valor de sua força de
trabalho. Além disso, comprovando a classificação ser bastante calcada na casualidade, apresenta exemplos de
casos em que os dois gêneros chegaram a alternar de condição – o que era considerado simples pode ser
considerado complexo em diferentes contextos históricos.
32
Sobre as diferentes formas de extração da mais-valia pelo capitalista, diz Marx (2011: 578): ―a produção da
mais-valia absoluta se realiza com o prolongamento da jornada de trabalho além do ponto em que o trabalhador
produz apenas um equivalente ao valor de sua força de trabalho e com a apropriação pelo capital desse trabalho
excedente. Ela constitui o fundamento do sistema capitalista e o ponto de partida da produção da mais-valia
relativa. Esta pressupõe que a jornada de trabalho já esteja dividida em duas partes: trabalho necessário e
trabalho excedente. Para prolongar o trabalho excedente, encurta-se o trabalho necessário com métodos que
permitem produzir-se em menos tempo o equivalente ao salário. A produção da mais-valia absoluta gira
exclusivamente em torno da duração da jornada de trabalho; a produção da mais-valia relativa revoluciona
totalmente os processos técnicos de trabalho e as combinações sociais‖.
33
Este processo que acabamos de ver constitui a circulação do capital: o capitalista vai
ao mercado adquirir com seu capital meios de produção e força de trabalho, a qual, através do
processo de produção dará origem à mercadoria, que contém em seu valor não somente a
soma do capital disponibilizado inicialmente, mas também a mais-valia. A mercadoria deve,
então, ser vendida na esfera da circulação, realizando assim seu valor em dinheiro, o qual será
transformado em capital ao iniciar um novo ciclo.
Uma sociedade, qualquer que seja a forma social sob a qual se encontra, necessita
estar sempre produzindo para atender suas necessidades de consumo. Sendo assim, este ciclo
de produção social é também um processo de reprodução. Tendo isso em vista, uma parte do
produto anual deve ser reservada para o consumo produtivo, ou seja, convertida em novos
meios de produção que substituem os antigos já consumidos pelo ciclo anterior, garantindo a
continuidade da produção.
Como a reprodução assume as mesmas condições da produção, numa sociedade
capitalista em que esta tenha o processo produtivo apenas como forma de gerar valor, a
reprodução funcionará como uma maneira de reproduzir o valor que o capitalista alocou na
forma de capital, ou seja, reproduz um valor expandido.
Vemos, assim, como a mais-valia é uma espécie de rendimento originado do capital, já
que é resultado de seu movimento e, ―se o capitalista só utiliza esse rendimento para
consumo, gastando-o no mesmo período em que o ganha, ocorrerá então, não se alterando as
demais circunstâncias, reprodução simples‖, a qual confere novas características ao processo
de produção, apesar de se constituir em sua repetição nas mesmas proporções. (MARX, 2011:
661-2)
Conforme vimos anteriormente, para dar início ao processo de produção é necessário
que o capitalista compre força de trabalho. No entanto, ao analisarmos o ciclo de produção,
vemos que o trabalhador só recebe seu salário depois de já ter trabalhado, ou seja, após já ter
empreendido a transformação dos meios de produção em mercadoria e em mais-valia e, se
esta é a parte que cabe ao capitalista, o capital variável, que na forma salário é o que cabe ao
trabalhador, já está incorporado ao produto que ele reproduz constantemente. Isso significa
que é com seu trabalho prévio que o trabalhador próprio gera fundos para o pagamento do seu
trabalho atual.
Analisando esta situação sob uma perspectiva de classe, vemos que a classe capitalista,
que é quem se apodera do produto produzido pela classe trabalhadora a paga pela venda de
sua força de trabalho com uma quantia de dinheiro para que ela possa obter parte daquele
produto. Então, a classe trabalhadora retorna à capitalista este dinheiro para receber a parte
34
que lhe cabe do produto que produziu, mas que pertence ao capitalista. Com isso, ―a forma
mercadoria do produto e a forma dinheiro da mercadoria dissimulam a operação‖. (MARX,
2011: 663)
Ao desvelarmos a aparência contida aí, apreendemos que a soma que corresponde aos
meios de subsistência dos quais necessita o trabalhador e que representa o valor da sua força
de trabalho é produzida por ele mesmo e lhe é restituída na forma de um meio de pagamento
pelo seu trabalho, já que o produto deste é alienado ao capitalista na forma de capital. Esta é a
peculiaridade da forma histórica do capital variável, dado que a classe capitalista somente
paga à classe trabalhadora o trabalho que este já materializou no processo de produção. A
questão é que esta essência do processo que acabamos de expor é oculta por trás da aparência
de que o próprio capitalista é que desembolsa certo valor para disponibilizar ao trabalhador
como pagamento, o que pode ser depreendido da análise do processo de reprodução
capitalista.
O início deste processo pode-se supor que tenha ocorrido a partir do momento que
certo capitalista dispôs de um montante proveniente provavelmente de uma acumulação
primitiva33 para realizar a compra do que necessitava para por o processo de produção em
vigor. Mas, a partir do momento que ele é posto a funcionar em seu ciclo ininterrupto, a
própria reprodução simples acarreta em mudanças no capital como um todo.
Ao analisarmos durante certo período a reprodução do ciclo capitalista de gerar valor,
podemos depreender como regra geral que ―o valor do capital antecipado dividido pela mais-
valia consumida anualmente dá o número de anos ou o número de períodos de reprodução, ao
fim dos quais o capital originalmente antecipado pelo capitalista é consumido, desaparecendo,
portanto‖. Dessa forma, após determinada quantidade de tempo que este ciclo se reproduz, o
33
Esta teve início ainda sob o sistema feudal, quando estavam se desenvolvendo as condições para o surgimento
do modo de produção capitalista, ou seja, ―uma produção mercantil simples bastante ampla o que envolve
intensas atividades comerciais, com uma generalizada utilização de dinheiro como meio de troca. Mas tais
condições, necessárias, não são suficientes – para que surja e se desenvolva o modo de produção capitalista, é
preciso que se confrontem homens que dispõem de recursos para comprar a força de trabalho como mercadoria e
homens que só dispõem de sua força de trabalho como a única mercadoria que têm para vender. A existência
dessas duas categorias de homens (e já sabemos que se trata de duas classes sociais) [...] resulta de um processo
histórico que se operou do final do século XV até meados do século XVIII, constituindo a acumulação primitiva
ou originária, num ciclo que Marx chamou de ‗pré-história do capital e do modo de produção que lhe é
próprio‘‖. (NETTO e BRAZ, 2009: 85-6; grifos dos autores) Ou, conforme lemos em Marx (2011: 828): ―O
processo que cria o sistema capitalista consiste apenas no processo que retira ao trabalhador a propriedade de
seus meios de trabalho, um processo que transforma em capital os meios sociais de subsistência e os de produção
e converte em assalariados os produtores diretos. A chamada acumulação primitiva é apenas o processo histórico
que dissocia o trabalhador dos meios de produção. É considerada primitiva porque constitui a pré-história do
capital e do modo de produção capitalista‖. Engels (2008) em sua obra Do socialismo utópico ao socialismo
científico explica bem este processo quando trata do materialismo histórico.
35
que fica para o capitalista é seu capital transformado em ―capital acumulado ou mais-valia
capitalizada‖. (MARX, 2011: 664-5)
Este processo de reprodução simples acaba também por reproduzir a condição
fundamental para a existência da sociedade capitalista: o fato de estarem de um lado os
possuidores das condições objetivas do trabalho, dos meios de produção necessários à sua
efetivação, dos meios de subsistência e do valor propriamente dito, e, do outro lado, aqueles
que somente possuem sua força de trabalho para vender como mercadoria e que criarão valor
durante o processo de trabalho. É desta forma que ambos devem se deparar dentro do
mercado para estabelecer uma relação de compra e venda que permitirá por em prática a
produção capitalista. E é no seu processo de reprodução que tais condições vão sendo
perpetuadas, já que
34
Mais à frente, Marx (2011: 669) observa que: ―O escravo romano era preso por grilhões; o trabalhador
assalariado está preso a seu proprietário por fios invisíveis. A ilusão de sua independência se mantém pela
mudança contínua dos seus patrões e com a ficção jurídica do contrato‖.
35
Marx(2011:669-673) traz trechos históricos que exemplificam bem esta visão.
37
Cabe agora compreender como se dá a acumulação de capital, que nada mais é do que
o emprego da mais-valia como capital.
O capital inicia o processo de produção na forma de dinheiro, quando o capitalista
compra os meios de produção e a força de trabalho, a qual, ao final do processo produtivo lhe
proverá a mais-valia. Esta, diferentemente do capital, inicia seu ciclo no processo de produção
na forma de uma parte de valor materializada na mercadoria, que, ao ser vendida, a faz mudar
para a forma dinheiro, bem como retorna o valor do capital a esta sua forma primária. A partir
daí, já como um montante de dinheiro, o capitalista irá novamente investir produtivamente,
mas dessa vez, como conta com um valor excedente, pode arcar com uma compra maior dos
meios de produção e da força de trabalho.
Antes mesmo de as mercadorias serem vendidas no mercado, na esfera da circulação,
elas já fazem parte ―do fundo anual de produção, isto é, da massa global de objetos de todas
as espécies em que se transformara, no curso do ano, a soma de todos os capitais individuais
ou todo o capital social, do qual cada capitalista possui apenas uma parte alíquota‖. Assim,
apesar de ser a esfera que possibilita a troca e a realização das mercadorias, a circulação não
altera o total desta produção anual ou mesmo a natureza dos produtos; ela somente depende
da sua composição. Após fornecer os valores-de-uso que darão conta de suprir os elementos
materiais do capital que foram consumidos durante o ano, o restante da produção anual
corresponde ao ―produto excedente ou líquido em que se concretiza a mais-valia‖. (MARX,
2011: 678)
Recuperando o fato de que para ocorrer acumulação a mais-valia deve ser
transformada em capital e tendo em vista que somente aquilo que pode ser consumido na
38
produção é que pode virar capital – no caso os meios de produção e os meios de subsistência
que mantém a força de trabalho produzindo e se reproduzindo – uma parcela do trabalho
anual excedente deve estar, portanto, voltada a produzir estes elementos em quantidade que
supere o valor adiantado pelo capitalista na forma de capital quando deu início à sua
produção. Isso possibilita a acumulação, já que os elementos materiais necessários a renovar o
ciclo do capital já estão contidos no produto excedente, cujo valor corresponde a esta mais-
valia que se transformará em capital.
Para que isto seja efetivado, no entanto, é preciso dispor também de um acréscimo de
trabalho e, na impossibilidade de isso ser feito aumentando a jornada ou a intensidade do
trabalho, o capital terá que obter essa força de trabalho extra que necessita através da
contratação de mais trabalhadores, o que, na lógica de reprodução do capital, como vimos,
está garantido, já que a classe trabalhadora também é reproduzida enquanto dependente do
salário para sobreviver, com o qual, ao adquirir seus meios de subsistência, se mantém e se
multiplica nesta forma funcional ao capitalismo.
Assegurada a força de trabalho extra de que precisa, basta o capital uni-la aos meios de
produção e, enfim, está transformada a mais-valia em capital – consuma-se a acumulação, a
―reprodução do capital em escala que cresce progressivamente‖. Isso só é possível já que, ―a
condição para o capitalista apropriar-se do trabalho vivo não-pago em escala crescente é a
propriedade sobre trabalho passado não-pago. Quanto mais o capitalista tiver acumulado,
mais poderá acumular‖. (MARX, 2011: 679; 681)
Se o capital inicial pode ter sido obtido pelo capitalista através de seu trabalho
primitivo, o capital adicional, proveniente da mais-valia vem exclusivamente da apropriação
do trabalho alheio e se os meios de produção e os meios de subsistência que sustentam a força
de trabalho, os quais o capitalista adquire com este capital adicional são provenientes deste
trabalho não-pago, vemos que, na realidade, quando a classe capitalista compra aquela força
de trabalho adicional, paga a classe trabalhadora com o valor que extrai do trabalho dela
própria.
Os trabalhadores contratados como força de trabalho adicional com o capital adicional
são pagos, portanto, com a mais-valia proveniente do trabalho de quem já estava empregado.
Ainda que o capitalista resolva, com seu capital adicional demitir estes trabalhadores para
contratar força de trabalho mais barata, compensando com a aquisição conjunta de uma
maquinaria mais avançada, não muda o fato de que ―a classe trabalhadora criou, com o
trabalho excedente do corrente ano, o capital que empregará, no próximo ano, trabalho
adicional. Isto é o que se chama produzir capital com capital‖. (MARX, 2011: 680)
39
Neste processo todo, está oculto seu conteúdo verdadeiro por trás de uma mistificação
proveniente da aparência que reveste sua forma. Vamos então destrinchar cada etapa deste
movimento de acumulação do capital para compreender isso melhor: inicialmente, o
capitalista tem seu capital primitivo como mercadoria de sua propriedade, a qual troca no
mercado com o trabalhador pela mercadoria que este tem em posse – sua força de trabalho.
Até então é uma relação de direitos iguais36 entre possuidores de mercadorias sobre as quais
tem direito de propriedade e que as trocam por equivalentes37.
Após o primeiro ciclo do processo de trabalho será originada uma mais-valia que
conformará o primeiro capital adicional. Depois desta primeira etapa, o que antes era troca de
equivalentes passa a sê-lo apenas aparentemente. Isso porque a compra de força de trabalho
que se segue é feita com o excedente criado na produção pela força de trabalho adquirida
anteriormente e que não lhe foi dado nenhum equivalente em troca. É feita, portanto, através
do valor que o capitalista expropria de trabalho não-pago e assim será a partir de então já que
a força de trabalho consumida sempre reproduzirá a mais-valia de forma crescente.
Assim, não há mais direitos iguais entre possuidores de mercadorias. O que o
capitalista possui é o direito de se apropriar do produto de trabalho alheio não-pago e o
trabalhador não pode apossar-se do produto que resulta de seu trabalho. Desta maneira, a
forma – ―a contínua compra e venda da força de trabalho‖ – oculta o conteúdo – ―o capitalista
trocar sempre por quantidade maior de trabalho vivo uma parte do trabalho alheio já
materializado, do qual se apropria ininterruptamente, sem dar a contrapartida de um
equivalente‖. (MARX, 2011: 681)
Se o direito de propriedade fundava-se no trabalho, isso resultou agora em uma cisão
entre propriedade e trabalho, da mesma forma que o fato de o capitalista se apropriar do
produto de trabalho alheio não-pago resulta do próprio cumprimento das leis da produção
mercantil, apesar de parecer que com isso ele as infringe. É o que nos demonstra o próprio
processo de acumulação. Vejamos como: se aquela relação mercantil primeira da compra e
venda da força de trabalho ocorre entre possuidores de mercadorias com direitos iguais, ao
comprar a força de trabalho, o valor-de-uso desta passa a ser propriedade do capitalista, que
pode dispor dela como bem entender, já que a lei da troca de mercadorias pressupõe a
igualdade entre seus valores-de-troca, mas a diferença entre os valores-de-uso, que, concluída
a troca, serão utilizados pelo seu então proprietário como lhe convier.
36
Apesar de o trabalhador não ter outra possibilidade de escolha.
37
Se considerarmos que a força de trabalho seja vendida por seu valor real.
40
Assim como é possuidor dos meios de produção que igualmente comprou no mercado,
é possuidor também dessa força de trabalho. Esta, por sua vez, ao consumir os meios de
produção para a produção de um produto, transfere tanto o valor daqueles, como seu próprio
valor ao produto, além de um valor excedente – a mais-valia – que decorre do fato de o valor
da força de trabalho pelo período que foi contratada ser inferior ao valor que ela pode
produzir no mesmo espaço de tempo.
Se o capitalista é possuidor dela, a utilizará pelo tempo que foi contratada e, se nesse
período ela produz mais valor que o valor materializado pelos meios de produção e por sua
força de trabalho, o valor a mais incorporado no produto também é propriedade do capitalista,
já que o produto mesmo o é. Se a mercadoria força de trabalho tem a propriedade especial de
ser criadora de um valor excedente, isto provém não de que seu possuidor seja enganado no
processo de compra e venda de sua mercadoria, mas da utilização que seu comprador faz de
seu valor-de-uso.
Assim, na transformação inicial de dinheiro em capital, o capitalista não violou
nenhuma lei econômica – não há transgressão das leis de mercado ou da produção de
mercadorias – apenas as seguiu da forma como regem, inclusive seu consequente direito de
propriedade, e isso resultou na acumulação capitalista.
Algumas considerações fundamentais podem ser tiradas deste processo de
transformação: como o produto resultante do processo de trabalho contém cristalizado em si
tanto o valor do capital adiantado pelo capitalista, como também um valor excedente, como
tal produto não é propriedade do trabalhador que o produziu, mas sim do capitalista, este se
apropria legitimamente desta mais-valia. O trabalhador, por sua vez, reproduziu a única
mercadoria que lhe pertence – sua força de trabalho – a qual pode negociar novamente no
mercado.
A reprodução simples, então, ao repetir incessantemente a transformação de dinheiro
em capital acaba alterando, de certa forma, o caráter que possuía a operação original. A
reprodução ampliada, ou acumulação, por sua vez, em nada altera o fato de que a mais-valia é
propriedade do capitalista e se é com ela que volta ao mercado para adquirir os elementos que
necessita para continuar a produção, o que investe são, portanto, recursos próprios, como o
fez da primeira vez, com seu capital primitivo, não importando aqui, que, dessa vez, os seus
recursos foram provenientes de expropriação de trabalho não-pago. Além disso, se mais
trabalhadores serão contratados com os recursos da mais-valia produzida pelos trabalhadores
anteriores, em nada altera o preço da mercadoria destes ou o direito que aqueles tem de
demandar um valor justo pela sua força de trabalho.
41
vimos que, mesmo na reprodução simples, todo capital adiantado, como quer que
tenha sido originalmente obtido, transforma-se em capital acumulado ou mais-valia
capitalizada. No fluxo da produção, todo o capital originalmente adiantado se torna
uma grandeza evanescente, em face do capital diretamente acumulado, isto é, da
mais-valia ou do produto excedente que se converte em capital, seja nas mãos de
quem produziu a mais-valia ou em mãos alheias. (MARX, 2011: 685)
É necessário fazer aqui algumas distinções. É consumida como renda 38 e não como
capital a parte da mais-valia que o capitalista utiliza na compra de artigos e trabalho na forma
de mercadoria para satisfazer suas necessidades pessoais, para consumo próprio, já que não
servem nem como meios de produção nem para criar valor. Assim, para a economia burguesa,
a utilização primeira da mais-valia deve ser na condição de capital, ou seja, com a
acumulação, investindo a maior parte naquilo que permite a criação de valor – a força de
trabalho – já que é só essa maneira que permite a movimentação e expansão do capital.
Além disso, o entesouramento, muito ligado à classe capitalista pelo senso comum, em
nada é vantajoso para o capital, já que breca esta movimentação e expansão. A acumulação de
mercadorias, na lógica capitalista, apenas pode advir ou da superprodução ou de uma
estagnação na esfera da circulação.
Ao dispor da mais-valia, o capitalista irá alocá-la parte como renda e outra parte como
capital, na proporção que desejar, considerando que, quanto mais consumi-la como capital,
38
Marx (2011: 689) ressalta que utiliza a palavra ―renda‖ em dois sentidos: ―para designar a mais-valia como
rendimento periódico do capital e para designar uma parte desse rendimento que o capitalista consome
periodicamente ou adiciona a seu fundo de consumo‖.
42
maior será a acumulação que promoverá. Ao fazer isso, diz-se que está economizando, pois a
utiliza não para consumo próprio, mas para cumprir seu papel enquanto capitalista, tornando-
se cada vez mais rico, já que, enquanto personificação do capital, o que lhe interessa não são
os valores-de-uso daquilo que pode comprar para seu desfrute, mas sim o valor-de-troca das
mercadorias que possui e seu aumento extensivo. De certa forma, é impelido a fazê-lo pelo
próprio mecanismo social do capitalismo, já que enquanto apenas uma de suas forças
propulsoras, acaba guiado pelas leis imanentes deste sistema, que se impõem a ele como uma
lei coercitiva externa, devendo ampliar continuamente seu capital através da acumulação
progressiva. Assim, tudo que gasta em proveito próprio é como se fosse débito na sua saga em
ampliar cada vez mais a reprodução do capital. Para isso,
39
―Sendo o valor do capital variável igual ao valor da força de trabalho por ele comprado, sendo a parte
necessária do dia de trabalho determinada pelo valor dessa força de trabalho e a mais-valia determinada pela
parte excedente do dia de trabalho, segue-se daí que a mais-valia se comporta para com o capital variável como o
trabalho excedente
trabalho excedente para com o necessário; em outras palavras, a taxa de mais valia = . [...] A
trabalho necesário
taxa de mais-valia é, por isso, a expressão precisa do grau de exploração da força de trabalho pelo capital ou do
trabalhador pelo capitalista‖. Em nota da segunda edição de O capital: crítica da Economia Política, Marx
esclarece que ―a taxa de mais-valia, embora seja a expressão exata do grau de exploração da força de trabalho,
não exprime, entretanto, a magnitude absoluta dessa exploração. Se o trabalho necessário = 5 horas e a mais-
valia = 5 horas, o grau de exploração será = 100%. Mediu-se com 5 horas a magnitude da exploração. Mas, se o
trabalho necessário = 6 horas e a mais-valia = 6 horas, o grau de exploração continua a ser de 100%, enquanto a
magnitude da exploração aumenta de 20%, de 5 para 6 horas‖. (MARX, 2011: 254)
40
Em certa passagem mais à frente, Marx (2011: 701) refere-se a este processo por ―roubo direto ao fundo de
consumo necessário à manutenção do trabalhador com o fim de formar mais-valia e, portanto, o fundo de
acumulação do capital‖.
41
Como exemplos, Marx (2011: 702-3) cita a intensificação do trabalho, a indústria extrativa, a agricultura e,
nos diversos ramos da indústria, o aumento de matérias-primas sem necessariamente ter que aumentar a
quantidade de instrumentos de trabalho.
44
42
Uma vez que com o aumento da produtividade do trabalho leva-se menos tempo para produzir o necessário à
produção dos meios de subsistência, sendo o valor da força de trabalho determinado por este tempo, ele é
reduzido, resultando na redução cada vez maior do tempo de trabalho necessário e aumentando, portanto, o
tempo de trabalho excedente.
45
O que se operou aqui é que, apesar de o valor aplicado ter sido total, ele só vai sendo
consumido e materializado nos produtos parcialmente, funcionando mais ou menos como o
serviço gratuito que obtemos ao consumir as forças naturais. Consequentemente, ―esse serviço
gratuito do trabalho anterior, quando utilizado e vivificado pelo trabalho vivo, aumenta com a
escala crescente da acumulação‖. (MARX, 2011: 707)
Este trabalho passado, que entra em novo processo de trabalho como meios de
produção, apesar de aparecer tendo sua relevância por mérito do próprio capital, não passa de
resultante do trabalho anterior espoliado pelo capitalista. Assim,
43
Marx faz uma referência ao que discutiu previamente acerca da economia burguesa dizer que o capitalista
deve renunciar aos prazeres que pode adquirir com o consumo pessoal e utilizar sua mais-valia como renda o
mínimo possível, empregando sua maior parte como capital.
44
―A existência material do capital variável, isto é, a massa de meios de subsistência que ele representa para o
trabalhador, se tornou, mitologicamente, uma fração separada da riqueza social, fixada por leis naturais e
imutável, o pretenso fundo do trabalho‖. (MARX, 2011: 710)
47
45
Assim como o faz Marx, ―ao falar simplesmente de composição do capital, estaremos sempre nos referindo à
sua composição orgânica‖. (MARX, 2011: 715)
46
Marx (2011: 716) cita como exemplos o surgimento de ―novos mercados, novas esferas de aplicação do
capital, em virtude do desenvolvimento de novas necessidades sociais etc.‖.
48
Aparentemente sendo esta uma situação favorável aos trabalhadores assalariados que,
com o salário aumentado podem agora adquirir bens e serviços de melhor qualidade no seu
consumo individual, isso não faz com que deixem a condição de dependência ou de
subserviência ao capital. Continuam sendo explorados com um grau maior se não de
intensificação, de extensão, com um número maior de trabalhadores sendo explorados pelo
domínio avassalador do capital. Além disso, o que recebem na forma de meio de pagamento
nada mais é do que parte da mais-valia que eles mesmos produzem e contribuem para
expandir e gerar cada vez mais capital adicional.
O caráter peculiar do sistema capitalista de produção, sua essência, ainda que os
trabalhadores tenham um aumento em seu salário em nada é alterado – a força de trabalho
continua sendo comprada pelo capitalista, por ser sua fonte inexorável de capital adicional,
com o único intuito de produzir mais-valia em escala ampliada e a exploração da classe
trabalhadora pela classe capitalista continua vigente, a despeito do que o aumento de salários
possa aparentar e assim será enquanto vigorar o capitalismo.
O salário sempre terá o contraponto do trabalho que não foi pago e que foi, portanto,
apropriado pelo capitalista. Assim, ―um acréscimo salarial significa, na melhor hipótese,
apenas a redução quantitativa do trabalho gratuito que o trabalhador tem de realizar. Essa
redução nunca pode chegar ao ponto de ameaçar a existência do próprio sistema‖. Levando
isso em conta, caso não ocorram prejuízos para a expansão do capital, os salários podem
aumentar, mas, caso essa alta no preço do trabalho implique numa desaceleração da
acumulação, então os próprios mecanismos capitalistas tratam de resolver esta situação de
entrave, readequando o preço do trabalho às necessidades do capital, seja em nível ―superior,
igual ou inferior ao que era considerado normal, antes da elevação dos salários‖. Se na
primeira situação o que ocorre é ―o aumento do capital que torna insuficiente a força de
trabalho explorável‖, num momento em que o nível for inferior é por conta da ―diminuição do
capital que torna superabundante a força de trabalho explorável, ou excessivo seu preço‖.
(MARX, 2011: 722-3)
As alterações na acumulação do capital que se refletem na massa da força de trabalho
parecem vir dela mesma, tomando a aparência de que em certos momentos há excesso de
trabalhadores, enquanto em outro há falta deles, mas, na realidade, os salários só variam
dependendo das variações da magnitude da acumulação.47
47
Marx (2011: 723) faz aqui uma analogia deste fenômeno ―com o que ocorre nas fases do ciclo industrial: nas
crises, a queda geral dos preços das mercadorias aparece como elevação do valor relativo do dinheiro; nos
períodos de prosperidade, a elevação geral desses preços é vista como queda do valor relativo do dinheiro. Daí a
49
escola da currency conclui que circula dinheiro demais, quando os preços são altos e, de menos, quando são
baixos‖.
48
Vale salientar aqui que o que é reduzida é a magnitude relativa do capital variável e não a absoluta, a qual
pode, inclusive, vir a crescer. (cf. Marx, 2011: 727)
49
Segundo Marx (2011), constam aí a maquinaria, tubulações de drenagem, edifícios, meios de transporte etc.
50
Vemos este fenômeno impresso no próprio preço das mercadorias, em que a magnitude relativa do valor do
capital constante cresce conforme o aumento da acumulação, enquanto que a magnitude relativa do capital
variável, ao contrário, usualmente tende a diminuir.
50
esta parte variável, ela tende a cair progressiva e aceleradamente enquanto a totalidade do
capital global aumenta, o que acirra cada vez mais a concorrência entre os trabalhadores.
Para que certa quantidade adicional de trabalhadores seja incorporada e até para que
aqueles já empregados se mantenham enquanto força de trabalho ativa, a acumulação do
capital global deve ser acelerada progressivamente, mas a redução relativa do capital variável
é muito mais rápida do que o aumento do capital global . Isso pode dar a impressão de que
houve um aumento em termos absolutos da população trabalhadora que não pode ser
acompanhada pelo aumento do capital variável, tornando assim, os meios de ocupação
insuficientes para empregá-la. Mais uma vez, a aparência do fenômeno oculta sua real
essência, pois, na verdade, ―a acumulação capitalista sempre produz, e na proporção da sua
energia e de sua extensão, uma população trabalhadora supérflua relativamente, isto é, que
ultrapassa as necessidades médias da expansão do capital, tornando-se, desse modo,
excedente‖. (MARX, 2011: 733)
As mudanças geradas pelo processo de acumulação global podem se dar tanto em sua
totalidade, como influir diversamente nos diferentes ramos de produção.51 No entanto, o que
em todos eles ocorre em comum é que o aumento da quantidade de trabalhadores empregados
está sempre sujeito a enormes flutuações e à constituição transitória de superpopulação, seja
pela expulsão dos trabalhadores que já estão empregados ou pela maior dificuldade da entrada
de trabalhadores onde havia antes maior facilidade.
Podemos, assim, aferir uma lei da população que advêm desta situação gerada pelo
próprio desenvolvimento do sistema capitalista de produção e, portanto, inerente a ele: ao
mesmo tempo em que produz a acumulação do capital, os trabalhadores produzem também e
em proporções cada vez maiores, aquilo que os torna, relativamente, uma população
supérflua, excedente, o que não só é necessário para o desenvolvimento capitalista, mas
também o impulsiona.
A força de expansão do capital cresce de forma assustadora.52 A aceleração da
acumulação produz uma massa de riqueza social pronta para se tornar capital adicional tanto
51
Marx (2011: 733) cita algumas dessas diversas mudanças que podem advir: ―em alguns ramos, ocorre
mudança na composição do capital, sem aumentar sua magnitude absoluta, em virtude de mera centralização; em
outros, o crescimento absoluto do capital corre paralelo com a redução absoluta de sua parte variável ou da força
de trabalho por ele absorvida; em outros, ora o capital prossegue aumentando em dada base técnica e atrai força
de trabalho adicional à proporção que cresce, ora ocorre mudança orgânica, contraindo-se sua parte variável‖.
52
―Essa força de expansão cresce em virtude das seguintes causas: aumentam a elasticidade do capital em
funcionamento e a riqueza absoluta da qual o capital constitui apenas uma parte elástica; o crédito, sob qualquer
incentivo especial, põe à disposição da produção, como capital adicional, num instante, parte considerável dessa
riqueza; as condições técnicas do próprio processo de produção, a maquinaria, os meios de transporte etc.
possibilitam a transformação mais rápida, na mais larga escala, do produto excedente em meios de produção
adicionais‖. (MARX, 2011: 735)
54
aos antigos quanto aos novos ramos de produção e é justamente este exército industrial de
reserva que fornece a força de trabalho necessária sem precisar afetar a produção dos outros
ramos. Daí sua importância ao desenvolvimento capitalista.
Marx (2011: 736) explica porque este fenômeno só acontece a partir do
amadurecimento do processo capitalista:
esse curso peculiar da indústria moderna, que não encontramos em nenhuma época
anterior da humanidade, era impossível no período infantil da produção capitalista.
Só muito lentamente se alterava a composição do capital. Por isso, à sua acumulação
correspondia antes, de modo geral, o crescimento proporcional da procura de
trabalho. Sendo lento o progresso dessa acumulação, comparado com o da época
moderna, encontrava ele obstáculos naturais na população trabalhadora explorável,
os quais só puderam ser removidos por medidas violentas [...]. A expansão súbita e
intermitente da escala de produção é condição para sua contração súbita; esta
provoca novamente aquela, mas aquela é impossível sem material humano
disponível, sem aumento dos trabalhadores, independentemente do crescimento
absoluto da população. Esse aumento é criado pelo simples processo de ―liberar‖
continuamente parte dos trabalhadores, com métodos que diminuem o número dos
empregados em relação à produção aumentada. Toda a forma do movimento da
indústria moderna nasce, portanto, da transformação constante de uma parte da
população trabalhadora em desempregados ou parcialmente empregados.
Se, até o momento, consideramos que com aumento ou diminuição do capital variável
o mesmo acontecia com a quantidade de trabalhadores empregados, vejamos o que ocorre
quando esta permanece igual ou mesmo diminui. No caso, o capital variável pode aumentar,
caso a quantidade de trabalho fornecida por cada trabalhador aumente, aumentando assim, o
salário dos trabalhadores, embora o preço da força de trabalho se mantenha ou até caia,
contanto que numa velocidade menor que a quantidade de trabalho cresce. Assim, o aumento
do capital variável indica não uma quantidade maior de trabalhadores, mas sim, mais trabalho
por parte da mesma (ou de menor) quantidade de trabalhadores. Isso porque
substituir força de trabalho superior por inferior53, pode obter mais força de trabalho com a
mesma magnitude de capital variável. Consequentemente, o aumento da superpopulação
relativa é mais rápido que as alterações possíveis na composição técnica do capital e também
que a diminuição relativa do capital variável comparado ao constante.
Se o desenvolvimento dos meios de produção exige cada vez menos trabalhadores, a
produtividade do trabalho torna mais fácil ao capital obter mais trabalho sem precisar
contratar novos trabalhadores. Este trabalho mais intenso e extenso por parte daqueles que já
estão empregados gera um círculo vicioso, pois, ao mesmo tempo que isso faz aumentar a
parcela da classe trabalhadora em ociosidade forçada, ou seja, o exército industrial de reserva,
este aumenta, com a concorrência, a pressão em cima dos trabalhadores em atividade, que
acabam sendo obrigados a se sujeitar a todas as necessidades do capital se quiserem manter
seu emprego. Já que a venda da sua força de trabalho é a única maneira que o trabalhador
encontra para sobreviver na sociedade capitalista, este mecanismo acaba sendo a ela bastante
eficiente e muito lucrativo aos capitalistas individuais e esta superpopulação relativa de
trabalhadores cresce na mesma medida em que cresce também a acumulação social.
De forma geral, é o movimento de expansão e contração do exército industrial de
reserva que regula as oscilações nos salários. Assim, se num certo ramo de produção que se
encontra em situação favorável os lucros aumentam e atraem capital adicional, a procura por
trabalho, bem como os salários, irá aumentar. Os altos salários, por sua vez, atraem para este
ramo a grande parte da classe trabalhadora até que isto sature tal ramo, fazendo os salários
retornarem ao nível normal ou ficarem inferiores a ele, a depender do tamanho da influência
dos trabalhadores, resultando, então, na emigração deste ramo.
Depreendemos disso tudo que, considerando as oscilações na oferta e na procura de
trabalho, sempre haverá influência da superpopulação relativa, já que ―durante os períodos de
estagnação e prosperidade média, o exército industrial de reserva pressiona sobre o exército
de trabalhadores em ação, e, durante os períodos de superprodução e paroxismo, modera as
exigências dos trabalhadores‖. (MARX, 2011: 742-3)
Vale lembrar aqui o efeito que causa a transformação de parte do capital variável em
constante com a introdução pelo capital de maquinaria que ―substitua‖ a ação da força de
trabalho. Isso faz com que grande parte dos trabalhadores empregados sejam dispensados e
passem a compor o exército industrial de reserva, pois aí estão não só os trabalhadores que a
53
Marx (2011: 739) usa esse termo para se referir, por exemplo, à substituição de ―trabalhadores qualificados
por trabalhadores menos hábeis, mão-de-obra amadurecida por mão-de-obra incipiente, a força de trabalho
masculina pela feminina, a adulta pela dos jovens ou crianças‖.
56
máquina diretamente expulsou, mas os que viriam depois deles e não serão mais necessários e
aqueles que são parte da superpopulação relativa e poderiam ser absorvidos numa situação de
expansão.
A questão é que, o capital absorvendo a mesma, menor ou maior quantidade de
trabalhadores daquela dos que foram expulsos pela maquinaria, este fato por si só acaba por
neutralizar o efeito sobre a procura geral de trabalho. ―Isto significa que o mecanismo da
produção capitalista opera de maneira que o incremento absoluto do capital não seja
acompanhado por uma elevação correspondente da procura geral de trabalho‖. (MARX, 2011:
743) Vejamos como o capital opera nessas circunstâncias:
Este é um debate muito caro ao Serviço Social, já que o cerne está no próprio objeto
da profissão: a ―questão social― configura a ―matéria― sobre a qual incide o trabalho
profissional. Ela é moldada tanto pelas políticas públicas quanto pelas lutas sociais cotidianas
de diferentes segmentos subalternos que vêm à cena púbica para expressar interesses e buscar
respostas às suas necessidades.
Lembramos que uma ―nova questão social―, aclamada por muitos ideólogos
defensores da lógica burguesa e até mesmo por alguns intelectuais precipitados, é um termo
bastante impreciso quanto à análise histórica da realidade, uma vez que, apesar de certamente
adquirir novos contornos e expressões conforme as transformações internas da sociedade
capitalista, seu cerne continua sendo a acumulação de capital e, portanto, é insuperável
enquanto este modo de produção existir.
54
―A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e
de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do
empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a
burguesia [...]‖ (IAMAMOTO in IAMAMOTO e CARVALHO, 2004: 77; grifos originais). Para uma análise
mais completa das determinações acerca da ―questão social‖, ver NETTO (2009b).
59
As crises, certamente, não são uma ―invenção― do modo de produção capitalista, tendo
existido também em ordens sociais anteriores a ele. Porém, uma análise teórica deixa claro
que seu caráter é inteiramente novo, trazendo configurações e determinações específicas
resultantes da produção generalizada de mercadorias sob a égide do capital.
As crises pré-capitalistas eram, de fato, consequência
55
―Todas as contradições da produção burguesa se patenteiam coletivamente nas crises gerais do mercado
mundial, e de maneira dispersa, isolada, parcial, nas crises restritas (restritas no conteúdo e na extensão)‖.
(MARX, 1980: 968; grifos originais)
60
Logo, de acordo com Alvater (1987: 86), as crises capitalistas, conforme o conceito
trazido por Marx, configuram um agravamento das contradições internas do sistema da qual
derivam.
Assim, enquanto parte de sua dinâmica, as crises estão inscritas no movimento dos
ciclos econômicos capitalistas, do qual podemos identificar, conforme Netto e Braz (2009)
quatro fases principais.
Começando pelo próprio quadro de crise, esta geralmente eclode a partir de um
detonador56, o qual só terá efeito caso já estejam dadas as pré-condições que conformarão a
base da crise iminente. O que vemos neste cenário é uma diminuição brusca na produção e no
comércio, já que grande parte das mercadorias não conseguirão ser vendidas, fazendo seus
preços cair, diversas empresas vão à falência, aumenta-se criticamente o desemprego, ao
mesmo tempo em que os salários decrescem rapidamente, resultando em uma pauperização
cada vez maior da classe trabalhadora.
Após a crise, ocorre um quadro de depressão, onde as empresas que não sucumbiram
tentarão retomar seu crescimento fundamentalmente através de investimentos em tecnologia,
mesmo tendo que vender sua mercadoria a um preço inferior ou até mesmo destruir parte do
excedente que não pode ser realizado no mercado e, enquanto isso, os trabalhadores ainda
sofrem com os baixos salários e o desemprego.
Na fase de retomada é que, uma vez indicada a possibilidade de melhoria, a produção
volta a ser impulsionada e retorna ao patamar anterior à crise, sob novas determinações. Isso
ocorre após as empresas remanescentes anexarem grande parte daquelas que faliram, ao
mesmo tempo em que se desenvolvem internamente, impulsionando o comércio, a venda das
mercadorias, cujo preço volta a subir e o desemprego regride.
56
Este pode ser um ―incidente econômico ou político qualquer (a falência de uma grande empresa, um escândalo
financeiro, a falta repentina de uma matéria-prima essencial, a queda de um governo)‖, por exemplo. (NETTO e
BRAZ, 2009: 159)
61
Este movimento leva à quarta e última fase, que corresponde ao auge do ciclo. Nela, a
produção não só é retomada aos níveis anteriores, como, em resposta ao estímulo da
concorrência intercapitalista, as empresas procuram cada vez mais por inovações no processo
produtivo, elevando a produção à máxima potência, até que, em meio a todo este entusiasmo,
o mercado se vê novamente frente a um excesso de mercadorias que não lograrão realizar seu
valor-de-troca, forçando uma queda de preços até que outro detonador evidencia a retomada
do ciclo – está formada uma nova crise capitalista.
Assim, vemos que as crises somente seguem à tendência dos ciclos capitalistas57, que
são inevitáveis e inexoráveis, já que
57
É válido retomarmos aqui o conceito de leis trazido por Marx: ―em O capital, Marx desenvolve as leis do
modo de produção capitalista, as normas fundamentais a que estão submetidos o processo de produção, a
circulação e o processo global do capital. As leis (a lei do valor) não se apresentam, contudo, como tais em
forma pura, uma vez que essência e aparência não são idênticas; as relações sociais fundamentais, ao contrário,
são mistificadas, e isto está mesmo inscrito em suas características essenciais. Assim, as leis do modo de
produção podem se manifestar, através da ação dos homens, unicamente como tendências, que, no entanto, por
causa da contraditoriedade imanente da relação capitalista, não constituem um trend linear, mas sim implicam
em um movimento cíclico.‖ (ALVATER, 1987: 90-91; grifos originais)
62
Uma vez que não se trata mais de troca direta, onde um valor de uso é permutado
diretamente por outro, a produção generalizada de mercadorias, base do sistema capitalista,
requer impreterivelmente que a mercadoria seja vendida, convertida em dinheiro, mas, uma
vez feito isso, aquele que possui a mercadoria na forma dinheiro não é necessariamente
impelido a reconverter este dinheiro em mercadoria, ou seja, a comprar e é esta dissociação
que pode resultar em uma crise58, uma vez entendida enquanto ―a restauração violenta da
unidade entre elementos guindados à independência e a afirmação violenta de independência
de elementos que na essência formam uma unidade‖. (MARX, 1980: 949)
Esta possibilidade de crise, resultante da dissociação da compra e venda pode ser
observada também no movimento do capital, considerando este em sua forma mercadoria.
Vemos que a condição para que uma mercadoria saída do processo de produção vire dinheiro
no processo de circulação é que dinheiro tenha sido convertido em mercadoria, ou seja,
enquanto um capital sai de um processo de produção, outro retorna em outro processo. Isso
indica um entrelaçamento entre os capitais de diferentes processos de reprodução e circulação,
imperativo resultante da própria divisão do trabalho, ampliando, dessa forma, a determinação
do conteúdo da crise.
Além disso, ―a natureza geral da metamorfose das mercadorias, a qual abrange tanto a
dissociação quanto a unidade da compra e venda, em vez de excluir, ao contrário, encerra a
possibilidade de uma oferta excessiva geral‖, já que se houver no mercado uma
superabundância não de uma, mas de todas as mercadorias, a não ser pelo dinheiro, sua
realização, sua venda, ficará ainda mais difícil. (MARX, 1980: 940; grifos originais)
58
Devemos deixar claro, no entanto, que esta contradição intrínseca à mercadoria entre valor de uso e valor de
troca e, portanto, a própria contradição entre mercadoria e dinheiro manifesta apenas uma crise em potencial. É
sua forma mais abstrata, mas não o meio pelo qual ela ocorre, de fato.
63
O mesmo pode ocorrer com a dissociação entre oferta e procura, quando, em certo
momento, a oferta das mercadorias pode ser maior que a procura, bem como a procura pela
mercadoria universal, o dinheiro, pode ser maior do que todas as outras ou até mesmo pode
ocorrer que o ímpeto pela transformação da mercadoria em valor de troca seja maior que o
ímpeto por transformar novamente a mercadoria em valor de uso (portanto, vender mais que
comprar).
Isso significa que na relação entre oferta e procura está contida aquela entre produção
e consumo e é durante as crises que se impõe o restabelecimento da unidade entre elas, que
ficam dissociadas por boa parte do desenvolvimento capitalista.
Há ainda outra possibilidade de crise advinda da forma do dinheiro enquanto meio de
pagamento (e, consequentemente, o desenvolvimento do sistema de crédito), em que ―o
capital já se revela fundamento muito mais real para a efetivação dessa possibilidade‖.
(MARX, 1980: 946)
Quando os créditos não são liquidados e ocorre a dissociação entre a medida dos
valores e a realização do valor, pois pode acontecer que neste ínterim o valor da mercadoria
tenha mudado e, na ocasião de sua venda, seu valor tenha decaído com relação àquele de
quando o dinheiro era a medida dos valores, ou seja, das obrigações recíprocas. Com isso, o
montante obtido com a venda da mercadoria não será suficiente para cumprir com as
obrigações de pagamento, prejudicando assim, todas as outras transações que a esta estão
ligadas.
Ou então, pode ocorrer que a mercadoria não possa ter sido vendida dentro do prazo
estipulado para a realização do pagamento, o que também não proverá o devedor de meios
para saldar o crédito obtido, recaindo igualmente em diversas operações monetárias
dependentes, a partir da ligação entre os créditos e obrigações59, desenvolvendo a
possibilidade de crise e podendo resultar de fato em crises monetárias, decorrentes das
dificuldades na venda das mercadorias.60
Vemos que estas duas formas abstratas de crise61 só se efetivarão caso a compra e
venda se dissociarem, ou quando aparecerem as contradições do dinheiro como meio de
59
―Uma vez que os créditos são mútuos, a capacidade de pagar de um depende ao mesmo tempo da capacidade
de pagar do outro; pois, ao emitir a letra, aquele pode ter contado ou com o refluxo do capital em seu próprio
negócio ou com o refluxo no negócio de um terceiro, que no entretempo tem de lhe pagar uma letra‖. (MARX,
1985-6: 21)
60
―Estas são as possibilidades formais da crise. A primeira é possível sem a última – isto é, crises são possíveis
sem crédito, sem o dinheiro funcionar como meio de pagamento. Mas a segunda não é possível sem a primeira,
isto é, sem compra e venda se desconjuntarem‖. (MARX, 1980: 949; grifos originais)
61
Até então, podemos dizer que ―em sua primeira forma, a crise é a metamorfose da própria mercadoria, a
dissociação da compra e venda‖. E ainda que ―em sua segunda forma, a crise é a função do dinheiro como meio
64
de pagamento, e então o dinheiro figura em duas fases diferentes, separadas no tempo, em dois papeis diversos‖.
Apesar de serem formas abstratas, a segunda é a mais concreta entre ambas. (MARX, 1980: 945)
62
Ou seja, o ―crédito que os capitalistas ocupados na reprodução se concedem mutuamente‖ e que ―constitui a
base do sistema de crédito‖. (MARX, 1985-6: 21)
65
63
―O crédito contrai-se 1) porque esse capital está desocupado, isto é, paralisado numa das fases de sua
reprodução, porque não pode completar sua metamorfose; 2) porque a confiança na fluidez do processo de
reprodução está quebrada; 3) porque a procura por esse crédito comercial diminui‖. (MARX, 1985-6: 23)
64
―Só se pode falar de escassez real de capital produtivo, pelo menos nas nações capitalistas desenvolvidas, no
caso de malogro geral de colheitas, seja dos alimentos principais, seja das matérias-primas industriais mais
importantes‖. (MARX, 1985-6: 24)
65
De acordo com Marx (1985-6: 24-5), ―em parte devido à simples emissão de letras frias, em parte devido a
negócios de mercadorias realizados somente com a finalidade de fabricar letras, todo o processo se complica
tanto que a aparência de negócios sólidos e de refluxos rápidos pode substituir tranquilamente, depois que os
refluxos, na realidade, eram já há muito feitos à custa em parte de prestamistas defraudados, em parte de
produtores defraudados. Por isso, os negócios parecem quase exageradamente sadios justamente antes da crise‖.
66
Demonstrando, portanto, que um aumento do capital monetário emprestável não significa necessariamente que
houve um aumento também do processo de acumulação.
66
escala de produção permanece a mesma, isso apenas leva a um aumento do capital monetário
emprestado comparado com o capital produtivo, resultando em uma taxa de juros baixa.
Quando o processo de reprodução está na fase de auge do ciclo industrial, logo antes
do superaquecimento, o crédito comercial é ampliado, tendo em vista o cenário de aumento da
produção e da fluidez dos refluxos e a taxa de juros permanece baixa (ainda que ultrapasse
seu mínimo). Esses fatores fazem com que, apesar da procura por capital de empréstimo estar
alta, sua oferta também esteja, mantendo a taxa de juros a patamares baixos. É somente nesta
fase que podemos ver a combinação de uma abundância relativa de capital de empréstimo e,
portanto, taxa de juros baixa, com o crescimento real do capital industrial.
Porém, é também neste momento que se torna evidente a ação dos capitalistas que não
possuem capital de reserva ou até nenhum capital, apoiando-se apenas no crédito monetário.
Ademais, o capital fixo é extremamente ampliado, bem como o surgimento de empresas com
larga cobertura. Isso eleva o juro ao nível médio e, quando a crise estoura, é quando ele
retoma seu nível máximo, num quadro onde ―o crédito cessa subitamente, os pagamentos
interrompem-se, o processo de reprodução é paralisado e, com as exceções anteriormente
mencionadas, surge, ao lado da carência quase absoluta de capital de empréstimo, abundância
de capital industrial desocupado‖. Em suma, o movimento do capital industrial é contrário
àquele do capital de empréstimo e a correspondente taxa de juros.67 (MARX, 1985-6: 27)
À medida que o processo de reprodução passa a se apoiar cada vez mais sobre o
crédito, quando ele é interrompido, forçando os pagamentos a se realizarem apenas em
dinheiro, a busca por este aumenta. Obviamente, se irromperá aí uma crise, já que, neste
momento, os meios de pagamento são escassos. A metamorfose das mercadorias dá lugar à
conversibilidade das letras de câmbio, ainda mais por conta da ampliação do sistema de
crédito. Assim, à primeira vista, a crise parece ser apenas de crédito e monetária, mas, por trás
destas letras estão processos reais de compra e venda e a proporção que isso tomou,
superando em muito as necessidades sociais, é que constitui o eixo fundamental da crise.
Outra questão que contribui para o agravamento da crise é o fato de que eclode agora o
peso dos negócios fraudulentos que representavam boa parte das letras de câmbio, muitas
especulações feitas a partir de capital de terceiros são arruinadas, sem contar o enorme
67
―A fase em que a taxa de juros baixa, mas superior ao nível mínimo, coincide com a ‗melhoria‘ e a confiança
crescente, subsequentes à crise, e especialmente a fase em que ela alcança seu nível médio, o meio equidistante
do mínimo e do máximo, só esses dois momentos expressam a coincidência entre capital de empréstimo
abundante e grande expansão do capital industrial. Mas, no começo do ciclo industrial, a taxa de juros baixa
coincide com a contração do capital industrial, e, no fim do ciclo, a taxa de juros alta coincide com a
superabundância de capital industrial. A taxa de juros baixa, que acompanha a ‗melhoria‘, expressa o fato de que
o crédito comercial precisa do crédito bancário apenas em pequena medida, por se apoiar ainda sobre seus
próprios pés‖. (MARX, 1985-6: 27-8)
67
montante de capital em forma de mercadoria que se desvaloriza ou que não poderá de fato ser
vendido e a interrupção dos refluxos.68
Vimos que, durante as crises, se manifesta um excesso de capital industrial. Na sua
forma mercadoria, com relação ao seu valor de uso, aparece enquanto uma quantidade
excessiva de objetos úteis ao processo de produção, que, no entanto, está ociosa, mas ele
também representa capital monetário potencial, correspondente ao valor dado no seu preço
estando, portanto, sujeito às diversas flutuações, sendo que nas crises está retraído. Portanto,
ele representa agora menos capital monetário do que à época que foi comprado, seja para seu
proprietário, para o credor ou para servir como garantia de letras e empréstimos. Isso significa
que, da mesma forma que durante as crises os preços das mercadorias decaem, ocorre o
mesmo com o capital monetário de um país, sendo que esta queda de preços, de certa forma
equilibra a elevação precedente.69
A mundialização do capital, alastra a crise por todo o globo, revelando que na grande
maioria dos países ocorreu excesso de importação e exportação, ou seja, ―superprodução
promovida pelo crédito e pela inchação geral dos preços, que a acompanha‖. Isso faz com que
o balanço de pagamentos fique desfavorável para todos70, portanto, gera um colapso geral de
uma nação após a outra. Assim, a drenagem de ouro que se dá no comércio internacional não
é a causa da crise, mas apenas um fenômeno pelo qual ela se manifesta. (MARX, 1985-6: 30)
Conclui-se, portanto que
68
Dessa forma, Marx (1985-6: 28) aponta que ―tudo aparece aqui invertido, pois nesse mundo de papel, o preço
real e seus momentos reais nunca aparecem, mas apenas barras, dinheiro metálico, notas, letras de câmbio e
papeis de crédito‖.
69
―As receitas das classes improdutivas e dos que vivem de rendas fixas permanecem em sua maior parte
estacionárias durante a inchação dos preços, que sempre vai de mãos dadas com a superprodução e a
superespeculação. Sua capacidade de consumo diminui por isso relativamente e, com isso, sua capacidade de
repor da produção global a parte que normaliter teria de entrar em seu consumo. Mesmo quando sua procura
permanece nominalmente a mesma, ela diminui na realidade‖. (MARX, 1985-6: 29)
70
Lembramos que ―o balanço de pagamentos se distingue do balanço comercial por ser um balanço comercial
que vence em determinado prazo. O que fazem as crises é condensar a diferença entre o balanço de pagamentos
e o balanço comercial num curto período; e as circunstâncias determinadas que se desenvolvem na nação em que
há crise, na qual, portanto, os pagamentos vencem agora – essas circunstâncias já trazem consigo tal contração
do prazo de compensação‖. (MARX, 1985-6: 49)
68
Nas crises, há que se considerar ainda o fato de que enquanto a procura por capital
industrial cai drasticamente, a procura por capital de empréstimo aumenta ao máximo e,
portanto, sua taxa de juros também, já que é preciso urgentemente de meio de pagamento, ou
seja, dinheiro para quitar as dívidas, que é a causa maior desse incremento na busca pelo
capital emprestável.71
Conforme já vimos, é necessário no modo de produção capitalista que o valor de troca
se expresse de forma autônoma no dinheiro com relação a todas as outras mercadorias, o que,
nos países de capitalismo desenvolvido, se expressa na substituição do dinheiro por operações
de crédito e por dinheiro de crédito.
Já mencionamos também que, nas crises, o crédito se retrai ou é interrompido, gerando
uma demanda crescente por dinheiro para ser usado como meio de pagamento e, então, ―a
verdadeira existência do valor, em confronto absoluto com as mercadorias‖. Decorre daí que
as mercadorias se desvalorizam, pois a sua transformação em dinheiro, é dificultada. (MARX,
1985-6: 48)
Além disso, o dinheiro de crédito somente é dinheiro quando há correspondência entre
seu valor nominal e o dinheiro real, o que também é dificultado por conta principalmente da
drenagem de ouro, o que pode resultar em medidas como a elevação da taxa de juros. Assim,
com o desenvolvimento do sistema de crédito ao longo do decurso da sociedade capitalista,
uma desvalorização do dinheiro de crédito causaria grande perturbação.
Por causa disso, muitas mercadorias terão que ser destruídas, para que seu valor
subsista de forma autônoma no dinheiro, mas que, enquanto valor monetário só estará
garantido enquanto o dinheiro também estiver, o que, de fato, é um fenômeno que só pode
existir numa sociedade onde o sistema de crédito já esteja desenvolvido, como é o caso da
capitalista. Dessa forma, ―enquanto o caráter social do trabalho aparecer como existência
monetária da mercadoria e, por isso, como uma coisa fora da produção real, as crises
monetárias, independentemente de crises reais ou como seu agravante, são inevitáveis‖.
(MARX, 1985-6: 49; grifos originais)
71
Quando ocorre a fase de retomada, logo após a crise, este quadro muda e a procura por capital de empréstimo
se dá no sentido de investir na produção. O comerciante irá transformar o capital monetário em comercial e o
capitalista industrial irá transformar o capital monetário em capital produtivo, utilizando-o para comprar meios
de produção e força de trabalho.
69
72
Em decorrência das estações ou de uma colheita ruim, por exemplo.
70
73
Já que há uma desproporção na forma em que o capital excedente se converte nos diversos elementos
necessários ao processo de reprodução.
74
Marx (1980) relembra aqui que tanto o capital fixo como o circulante também são mercadorias e, portanto,
admitir sua superprodução consequentemente é admitir a superprodução de mercadorias.
75
―Como no caso do encarecimento dos cereais, ou porque não se acumulou capital constante físico suficiente‖.
(MARX, 1980: 930)
71
trabalho empregado. Isso, por sua vez, reage sobre os preços e os faz cair de novo.
(MARX, 1980: 930-1)
76
Marx (1980: 953) afirma que ―para negar as crises, nada portanto mais absurdo que afirmar que consumidores
(compradores) e produtores (vendedores) são idênticos na produção capitalista. Estão por completo separados.
Só no decurso do processo de reprodução pode patentear-se essa identidade no tocante a um entre 3.000
produtores, isto é, no tocante ao capitalista. Ao revés. Também é falso afirmar que os consumidores são
produtores. O dono da terra (a renda fundiária) não produz, contudo consome. O mesmo se dá com todos os
intermediários financeiros‖.
77
―A maioria dos produtores, os trabalhadores, só podem consumir equivalente a seu produto enquanto
produzam mais que esse equivalente – o valor excedente ou o produto excedente. Têm de ser sempre produtores
excedentes, de produzir acima de suas necessidades, para poderem ser consumidores ou compradores dentro dos
limites delas‖. (MARX, 1980: 954-5; grifos originais)
72
mas consomem, a própria relação entre trabalho assalariado e capital encerra o fato de que,
conforme já vimos, os trabalhadores, que são os produtores de fato das mercadorias, não
consomem grande parte do montante destas, que é destinado ao consumo industrial e, como
não são possuidores de meios de produção e, por isso são obrigados a vender sua força de
trabalho, tais meios na forma de mercadoria não lhes oferece qualquer valor de uso. Servirá
sim aos capitalistas que, de posse destes meios, agregarão a força de trabalho comprada
também como mercadoria para fazer funcionar o processo produtivo sob seu comando.
Outra questão importante é que o limite da produção capitalista não se dá pelo
consumo, pelo mercado, mas somente pelo capital: enquanto houver meios para se produzir,
haverá produção na escala em que for possível.78 Com isso, o mercado acaba ficando
inundado de mercadorias que não serão realizadas, ou que só serão vendidas abaixo de seu
preço.
Podem ocorrer ainda crises parciais resultantes da produção desproporcionada, ou
seja, ramos que produzem em excesso, e, em consequência, ramos que produzem abaixo do
esperado, ainda mais face à concorrência intercapitalista. Para se produzir o suficiente para
atender a necessidade social por tal mercadoria, basta produzi-la de acordo com o tempo de
trabalho socialmente necessário para sua produção e, assim, ela poderá ser vendida por seu
valor. Se é acrescido mais que este tempo de trabalho, ainda que cada mercadoria isolada
possua somente o tempo de trabalho socialmente necessário, o conjunto delas conterá além
disso e, uma parte de seu valor de uso terá que ser eliminado.
No entanto, a crise decorrente da ―desproporção na repartição do trabalho social pelos
diversos ramos de produção―, leva à migração de capital de um ramo a outro, considerando a
alta e baixa no preço de mercado por conta desta desproporção, mas tanto o processo de
equilíbrio quanto de novo desequilíbrio desta proporção abre a possibilidade de eclodirem as
crises.
Todas estas possibilidades gerais de crise conformam sua forma abstrata, a qual, de
forma alguma deve ser confundida com a causa das crises, já que esta, na realidade, demanda
compreender o que leva tal possibilidade a se concretizar.
78
―Ao tratar do processo de produção vimos que todo o afã da produção capitalista visa apoderar-se da maior
quantidade possível de trabalho excedente, de materializar portanto a maior quantidade possível de tempo de
trabalho imediato com dado capital, seja por meio do prolongamento da jornada de trabalho ou da redução do
tempo de trabalho necessário mediante o desenvolvimento da produtividade do trabalho, com o emprego da
cooperação, da divisão do trabalho, da maquinaria etc.; em suma, produzir em grande escala, produzir em massa,
portanto. Assim, está na natureza da produção capitalista produzir sem atender aos limites do mercado‖.
(MARX, 1980: 956; grifos nossos)
73
Estas causas, no entanto, não partem de um único vetor, mas são produtos das
inúmeras contradições inerentes ao modo de produção capitalista. Destacaremos agora as
causas mais fundamentais para o surgimento das crises.
Primeiramente, a própria tendência à queda da taxa de lucro, como vimos, poderá
impelir parte dos capitalistas individuais a promoverem o desenvolvimento das forças
produtivas, se não quiserem sucumbir à concorrência. Este desenvolvimento redunda num
aumento de produtividade e consequente superprodução de mercadorias, que analisaremos
melhor em seguida.
Outro fator que favorece o desencadeamento das crises também é algo inerente à
economia mercantil do sistema capitalista – a falta de planificação de sua produção e
consequente desequilíbrio entre os ramos de produção. É a ―mão invisível do mercado‖ que
controla e que domina todos os âmbitos da produção e reprodução, ou seja, é um modo de
produção que não admitiria por sua própria estrutura, um planejamento, organização ou
controle sobre os processos produtivos quando se trata de um panorama mais geral79. Com
isso, cada capitalista controla a produção de uma quantidade de mercadorias visando seu
objetivo maior que é a acumulação, pensando no âmbito particular, sem levar em conta o que
é produzido nos outros ramos e setores. Isso, no plano coletivo divergirá dos resultados de
todas estas ações, podendo levar a efeitos drásticos que ocasionam as crises.
O seguinte fator que atua como uma causa de eclosão das crises capitalistas tem
relação com os dois anteriores. Se os capitalistas são impulsionados a sempre desenvolver
suas forças produtivas, aumentando assim a produtividade e, consequentemente, a produção
de mercadorias e se cada capitalista individual os faz sem seguir qualquer planificação social,
abarrotando o mercado de mercadorias, o fato de que a classe trabalhadora tem uma
capacidade de consumo bastante limitada (resultando, portanto, em subconsumo), ainda mais
num contexto em que a expulsão da força de trabalho do processo produtivo é uma realidade
cada vez mais voraz, grande parte dessas mercadorias não irá ser vendida, portanto, não terá
realizado seu valor-de-troca e não haverá lucro para o capitalista80. O próprio Marx (1985-6:
24) diz que
79
Diferentemente do que ocorre dentro de cada unidade produtiva, onde tudo é racionalizado e planificado
visando atingir a maior produtividade e os maiores lucros possíveis.
80
De acordo com Mandel (1990), essa questão não pode ser resolvida mecanicamente, como a partir da simples
elevação de salários, por exemplo, já que os capitalistas não visam apenas vender suas mercadorias, mas sim
fazê-lo com lucro sempre crescente. Além do que, se o aumento salarial fosse feito a níveis que ultrapassassem
certo limite, acarretaria em queda da taxa e da massa de lucros, obstruindo ainda a acumulação capitalista.
74
Podemos citar ainda a própria tendência à queda da taxa de lucros e sua dinâmica real,
a qual, para compreendermos sua relação à crise de superprodução, precisamos antes analisar
este fenômeno de forma mais profunda.
Primeiramente, é preciso clarificar que ―a crise econômica capitalista é sempre uma
crise de superprodução de mercadorias‖. (MANDEL, 1990: 211)
Ou seja, isso ocorre quando o sistema produtivo lança no mercado tantas mercadorias
que a procura passa a ser bem menor do que a oferta delas e este desequilíbrio faz com que a
taxa média de lucro não consiga ser atingida, uma vez que a mais-valia contida nas
mercadorias que não poderão ser vendidas, não se realizarão.81
Como já verificamos, o modo de produção capitalista apresenta como uma de suas
características intrínsecas o fato de que a produção, por parte dos capitais individuais, não é
planejada e nem realizada de acordo com qualquer tipo de correspondência a uma demanda,
mas sim de forma a produzir o máximo possível de mercadorias, a partir da menor quantidade
de trabalho, este acaba por se tornar trabalho excedente, com certa quantidade de capital
aplicado. Além disso, a concorrência intercapitalista é outro fator que contribui para esse
incremento excessivo da produção, já que cada capitalista tem que procurar sempre superar
seus concorrentes para não sucumbir a eles.
Entretanto, tanto a produção e reprodução quanto a acumulação em um setor de
produção pressupõe que o mesmo aconteça concomitantemente nos outros e, como uns
dependem dos outros, é necessário para a dinâmica do modo de produção capitalista, que a
escala de produção de capital constante seja sempre crescente, de forma que, suprindo sempre
81
Isso gera o que Mandel (1990: 212; grifos originais) denomina por ―movimento cumulativo da crise: redução
do emprego, das rendas, dos investimentos, da produção, das encomendas; nova espiral da redução do emprego,
das rendas dos investimentos, da produção etc., e isso nos dois departamentos fundamentais da produção, o de
bens de produção e o de bens de consumo‖.
75
esta parte do capital aos outros ramos que dela necessita para por em prática a acumulação
contínua, basta que adquiram mais trabalho. ―Assim, para haver acumulação parece ser
necessária superprodução constante em todos os ramos‖.82 (MARX, 1980: 921)
Por conseguinte, vemos que é o próprio movimento do capital que impulsiona esta
superprodução, uma vez que estarão reunidas já em excesso as condições para que ela
aconteça juntamente com o ímpeto capitalista de expansão do capital. Ao contrário do que se
possa imaginar, não é o consumo que incentiva esta produção excedente, já que a classe
trabalhadora, que constitui a maioria do conjunto da população possui um poder de compra
bastante limitado. Além do que, quanto mais o capitalismo se desenvolve, demanda menos
trabalho em termos relativos, apesar de poder demandar mais em termos absolutos.
Assim, o capital encontra no mercado as condições essenciais para colocar em
movimento a produção ampliada, a qual, ao mesmo tempo em que se dinamiza com o
aumento da população, é também um dos fenômenos que sinalizam as crises.
Veremos, agora, como a superprodução afeta os trabalhadores e o próprio processo de
reprodução. Suponhamos a produção em excesso de um artigo de consumo individual. Isso irá
abarrotar o mercado com tal mercadoria, ocasionando a redução ou paralisação de sua
produção. Sendo assim, os trabalhadores que produzem esta mercadoria serão afetados de
modo que não terão mais os meios que tinham antes para consumir, sendo obrigados, com
isso, a diminuir ou cessar o consumo dela ou de outras, como compensação. Como o artigo
que produziam foi produzido em excesso, eles não mais podem produzir e aí passam a
compor uma ―superpopulação transitória‖, uma ―superprodução de trabalhadores‖. (cf.
MARX, 1980: 957)
Assim, de acordo com Marx (1980: 963),
82
Vale lembrar aqui que ―a palavra superprodução em si mesma induz a erro. Sem dúvida não se pode em
absoluto falar de superprodução de produtos – no sentido de o volume dos produtos ser excessivo em relação às
necessidades deles – enquanto as necessidades mais prementes de grande segmento da sociedade não são
satisfeitas ou são satisfeitas apenas as mais imediatas. Ao contrário, nesse sentido temos de dizer que na base da
produção capitalista sempre se produz de menos. O limite da produção é o lucro do capitalista e de maneira
nenhuma a necessidade dos produtores. Mas superprodução de produtos e superprodução de mercadorias são
coisas de todo diferentes‖. (MARX, 1980: 962; grifos originais)
76
83
―Amplia-se todo ano por duas razões: primeiro porque o capital empregado na produção está sempre
aumentando; segundo porque se torna ele cada vez mais produtivo: durante a reprodução e a acumulação
somam-se de contínuo pequenos melhoramentos, que acabam mudando toda a escala de produção. Acumulam-se
os melhoramentos, há um desenvolvimento cumulativo das forças produtivas‖. (MARX, 1980: 958)
77
Mas, vale ressaltar que isso não implica numa diminuição nem da massa de
investimentos e nem do emprego e da massa salarial. O que ocorre, na verdade, é que ―os
investimentos, o emprego e a produtividade (produção de mais-valia relativa) não crescem
mais em proporção suficiente para sustentar por si próprios a expansão‖. Assim, ―a queda da
taxa média de lucros significa simplesmente que, com relação ao conjunto do capital social, a
mais-valia total produzida não foi mais suficiente para manter a antiga taxa média de lucros‖.
(MANDEL, 1990: 214-5; grifos originais)
Ocorre que a continuação do aparente crescimento econômico acaba por camuflar este
movimento, que já indica o início dos fatores que levarão à conjuntura de crise, ainda mais
pela intercorrência de outros dois fenômenos importantes.
O primeiro deles é que, em um cenário onde ainda há crescimento econômico, bem
como um grande aumento das atividades especulativas, a queda da taxa média de lucro faz
com que os capitalistas contraiam cada vez mais dívidas, já que a busca pelo crédito é um
recurso importante que encontram para não falir e os bancos favorecem este mecanismo, já
que também lhes interessa do ponto de vista financeiro. ―Assim, se passa imperceptivelmente
do boom ao superaquecimento, que encobre ainda mais, no imediato, as forças que preparam
inexoravelmente o crash‖. (MANDEL, 1990: 215)
O segundo fenômeno é que, com o aumento da composição orgânica do capital e da
taxa de mais-valia, típicos na fase de expansão capitalista, ocorre inevitavelmente um
aumento considerável da massa de mercadorias, que são produzidas em excesso. A própria
dinâmica deste modo de produção faz com que a queda do valor das mercadorias tidas como
bens de consumo aconteça concomitantemente com um aumento de sua massa; além disso, o
incremento da produção de bens de produção levará, impreterivelmente ao aumento da
produção de bens de consumo. Porém, os salários não crescem na mesma medida desse
aumento produtivo, sobretudo enquanto a taxa de mais-valia continua crescente.
A quantidade de capital não-aplicado vai aumentando, fazendo com que a massa de
mais-valia não consiga acompanhar a acumulação de capital e cada vez mais a taxa de lucros
fica abaixo das expectativas, gerando grande vulnerabilidade e prejuízos aos capitalistas,
podendo até fazê-los falir. Vemos, portanto, que, neste momento, ―‗superabundância‘ de
capitais e ‗escassez‘ de lucros coexistem, determinando-se uma à outra‖. (MANDEL, 1990:
216)
É, no entanto, somente quando a produção passa a ser restringida em todos os
diferentes setores por conta da brusca queda das vendas das mercadorias e dos seus preços
que a tendência à queda da taxa de lucro se materializa para o conjunto geral dos capitalistas e
79
Durante as crises, podemos perceber, que há, então, uma massiva destruição de
capital, da qual Marx (1980) faz uma distinção. Primeiro, ocorre destruição de capital real
quando, em decorrência da paralisação do processo de produção (e, portanto, da reprodução e
acumulação), os elementos necessários para sua efetivação não estão realizando sua função84,
já que sua atividade quando não é estagnada por completo, é extremamente contraída e, com
isso, seus valores de uso e de troca se perdem.
No entanto, nas crises também ocorre a destruição de capital com relação à
depreciação dos valores, já que nesta fase não será possível a reprodução de capital ao menos
no mesmo nível e muito menos em um mais elevado. Aqui não se trata da destruição de
valores de uso, como no caso acima, quando máquinas ficam ociosas ou espantosa quantidade
de mercadorias invendáveis são fisicamente destruídas, mas como a queda dos preços das
mercadorias é bastante brusca, ―os valores operantes como capital ficam impossibilitados de
se renovar como capital nas mesmas mãos― e, assim ―grande parte [...] do valor de troca do
capital existente é destruída de uma vez para sempre, embora essa própria destruição, por não
atingir o valor de uso, incentive muito a nova reprodução‖. (MARX, 1980: 932; grifos
originais)
Dessa forma, enquanto muitos capitalistas sofrem os efeitos de não poderem contar
com o retorno do capital esperado, se afundando em dívidas ou não conseguindo reiniciar seu
processo de produção em mesma escala, este mesmo fenômeno de destruição do valor de
troca do capital pode significar ganhos a outros. Aquele que compra a mercadoria com este
preço bastante reduzido pode até mesmo obter lucro e incrementar seu empreendimento uma
84
―Não é capital maquinaria que não se utiliza. O trabalho que não se explora equivale a produção perdida.
Matérias-primas que jazem ociosas não são capital. Edifícios (e também nova maquinaria construída) que para
nada servem ou permanecem inacabados, mercadorias que apodrecem em depósito, tudo isso é destruição de
capital‖. (MARX, 1980: 931)
80
vez retomada a fase de crescimento e os banqueiros acabam lucrando bastante através dos
capitalistas da indústria, por exemplo. Assim,
a queda do capital meramente fictício, dos títulos do governo, das ações etc. – desde
que não leve o Estado e as sociedades anônimas à bancarrota, e não gere, com o
abalo do crédito dos capitalistas industriais que detêm aqueles papeis, o estorvo
geral da reprodução – resulta em simples transferência de riqueza de uma mão para
outra e terá em geral influência favorável na reprodução, se consideramos que os
novos-ricos que colhem na baixa tais ações ou papeis, em regra empreendem mais
que os antigos detentores. (MARX, 1980: 932)
Podemos inferir, por conseguinte, que as crises afetam de forma distinta as classes
sociais antagônicas – burguesia e trabalhadores, sendo que é sobre estes que recaem as
maiores penúrias e os maiores encargos. Mas a maioria dos capitalistas também não sai ilesa.
Os médios e pequenos capitalistas logo sucumbem a uma concorrência com a qual já não
podem competir e, muitas vezes, em meio à quebra de seus negócios, acabam tendo que se
tornar parte da classe trabalhadora, graças à mobilidade social garantida pelo sistema
dominante.85 Já os grandes capitalistas, quando não são também afetados de forma negativa
pelos efeitos da crise, conseguem tirar dela benefícios próprios, que estimularão os
mecanismos de concentração e centralização de capital.
Compreendemos, assim, que a crise de superprodução tem caráter geral, não sendo,
portanto, explicável pelas diferenças de investimento de capital nos diversos setores
produtivos. A crise só irá estourar a partir do momento em que a mais-valia global não mais
conseguir garantir a taxa de lucros que o capital global espera para poder se valorizar, ou seja,
não se trata simplesmente da ocorrência deste fenômeno em setores isolados.
Devemos entender ainda que o que impulsiona este movimento é um acontecimento
detonador86 que não é, apesar disso, a causa da crise, mas apenas um fato que irá desencadear
este processo descrito acima e que já conta com uma conjuntura em que inúmeras outras pré-
condições já estão dadas, não sendo, portanto, um fenômeno que o detonador por si só seria
capaz de ocasionar.87
85
Obviamente, mais neste sentido (capitalistas que acabam se tornando parte da classe trabalhadora) do que no
inverso (trabalhadores que se tornam capitalistas).
86
O acontecimento detonador ―pode ser um escândalo financeiro, um brusco pânico bancário, a bancarrota de
uma grande empresa, como pode ser simplesmente a mudança da conjuntura (venda insuficiente generalizada)
em um setor-chave do mercado mundial. Tal detonador pode ser ainda uma brusca falta de determinada matéria
prima (ou energética) essencial: tal foi especialmente o caso da crise de 1866, provocada pela carência de
algodão em consequência da Guerra de Secessão nos Estados Unidos‖. (MANDEL, 1990: 212)
87
―Assim, a falência retumbante de uma grande casa comercial ou de um grande banco não estrangulará, em
geral, uma conjuntura no início de uma fase de boom, de expansão acelerada. Terá tal efeito somente ao final
dessa fase, porque todos os elementos da crise próxima já estão reunidos e esperam um elemento catalisador para
se manifestar‖. (MANDEL, 1990: 212)
81
Vale salientar que estas crises de superprodução empenham uma importante função
objetiva dentro do modo de produção capitalista – ―a de constituir o mecanismo através do
qual a lei do valor se impõe, apesar da concorrência (ou da ação dos monopólios!)
capitalista‖. (MANDEL, 1990: 212; grifos originais)
Vejamos como este mecanismo funciona. Ao início de cada ciclo industrial, os
capitalistas são impulsionados sempre a desenvolver as forças produtivas, para aumentar a
produtividade, a partir da intensificação da racionalização e da produção e do investimento
em inovações tecnológicas88. Com isso, o tempo de trabalho necessário à produção de suas
mercadorias diminui, fazendo, portanto, cair também seu valor. No entanto, muitos
capitalistas continuam vendendo-as por um preço mais alto, em torno daquele que os
capitalistas que ainda não puderam lançar mão das novas tecnologias, produzindo num tempo
de trabalho acima do socialmente necessário vendem suas mercadorias, conseguindo por um
certo período garantir para si lucros exorbitantes.
Isso cessa a partir do momento em que a superprodução de mercadorias não encontra
no mercado formas de realizar a mais-valia, quando a oferta supera a demanda e muitas
mercadorias não conseguirão ser vendidas. É dessa forma que os novos valores destas
mercadorias são impelidos a se estabelecer sobre os antigos, ou seja, é aí que a lei do valor se
impõe, retomando, em certa medida, o equilíbrio entre o tempo de trabalho socialmente
necessário e o realmente empregado na produção das mercadorias, o que ocasionará sérias
consequências para muitos capitalistas, como uma maciça perda de lucros e a desvalorização
de capitais.
88
―Isto é particularmente verdadeiro nos períodos de grandes revoluções tecnológicas subjacentes às fases de
expansão capitalista acelerada, como a fase 1940/48 – fim dos anos 60‖. (MANDEL, 1990: 212-3)
82
mais gritantes contradições, fornecem os meios para resolvê-las e reavivar este sistema num
patamar mais complexo, garantindo sua sobrevivência, a despeito das mais dramáticas
resultantes que possa vir a produzir.
Conforme diz Alvater (1987: 87; grifos originais)
durante a crise, o capitalismo assume precisamente a forma que lhe permite produzir
sempre e novamente as condições que permitem sua existência, não obstante os
limites de princípio inscritos nesse modo de produção: a crise como fase de
destruição (desvalorização, aniquilamento) é, em virtude de seu poder
reestruturador, condição para o desenvolvimento do capitalismo.
não se deve depreender do fato de o capital definir cada um desses limites como
uma barreira e em seguida ultrapassá-lo idealmente que ele o tenha realmente
superado e, já que cada uma dessas barreiras contradiz o caráter do capital, sua
produção se move em contradições que são constantemente superadas mas que são
constantemente postas. Ainda mais. A universalidade pela qual ele luta
irresistivelmente encontra barreiras na própria natureza que, em certo nível do seu
desenvolvimento, farão com que se reconheça ser ele próprio a maior das barreiras a
esta tendência, e por isso o impulsionará para sua própria suspensão.
Uma novidade trazida pelo novo contexto do pós-guerra nas sociedades capitalistas
avançadas fica evidenciada na alteração dos padrões de consumo tradicionais por um foco
intensificado no complexo militar-industrial, que passa a assumir papel de destaque no
sistema sociometabólico do capital89. Esse novo panorama é então
89
―O sistema sociometabólico do capital tem seu núcleo central formado pelo tripé capital, trabalho assalariado
e Estado, três dimensões fundamentais e diretamente inter-relacionadas, o que impossibilita a superação do
capital sem a eliminação do conjunto dos três elementos que compreendem esse sistema.‖ (ANTUNES, 2011:
11; grifos originais)
90
Na crise irrompida na década de 1970, seu ―inesperado‖ retorno (uma vez dado como definitivamente
superado) foi imputado ―a fatores puramente tecnológicos, despejando suas enfadonhas apologias sobre a
‗segunda revolução industrial‘, ‗o colapso do trabalho‘, a ‗revolução da informação‘ e os ‗descontentamentos
culturais da sociedade pós-industrial‘.‖ (MÉSZÁROS, 2011b: 796; grifo original)
91
―É decisivo aqui ressaltar que, para Mészáros, capital e capitalismo são fenômenos distintos. O sistema de
capital, segundo o autor, antecede o capitalismo e tem vigência também nas sociedades pós-capitalistas. O
capitalismo é uma das formas possíveis da realização do capital, uma de suas variantes históricas, presente na
fase caracterizada pela generalização da subsunção real do trabalho ao capital, que Marx denominava como
capitalismo pleno. Assim como existia capital antes da generalização do capitalismo (de que são exemplos o
capital mercantil, o capital usurário etc.), as formas recentes de sociometabolismo permitem constatar a
continuidade do capital mesmo após o capitalismo, por meio da constituição daquilo que Mészáros denomina
como ‗sistema pós-capitalista‘, de que foram exemplos a URSS e demais países do Leste Europeu. Esses países
pós-capitalistas não conseguiram romper com o sistema de sociometabolismo do capital e a identificação
conceitual entre capital e capitalismo fez com que, segundo o autor, todas as experiências revolucionárias
vivenciadas no século XX se mostrassem incapacitadas para superar o sistema de sociometabolismo do capital (o
85
(1) seu caráter é universal, em lugar de restrito a uma esfera particular (por
exemplo, financeira ou comercial, ou afetando este ou aquele ramo particular de
produção, aplicando-se a este e não àquele tipo de trabalho, com sua gama específica
de habilidades e graus de produtividade etc.);
(2) seu alcance é verdadeiramente global (no sentido mais literal e ameaçador do
termo), em lugar de limitado a um conjunto particular de países (como foram todas
as principais crises no passado);
(3) sua escala de tempo é extensa, contínua, se preferir, permanente, em lugar de
limitada e cíclica, como foram todas as crises anteriores do capital;
(4) em contraste com as erupções e os colapsos mais espetaculares e dramáticos do
passado, seu modo de se desdobrar poderia ser chamado de rastejante, desde que
acrescentemos a ressalva de que nem sequer as convulsões mais veementes ou
violentas poderiam ser excluídas no que se refere ao futuro: a saber, quando a
complexa maquinaria agora ativamente empenhada na ―administração da crise‖ e no
―deslocamento‖ mais ou menos temporário das crescentes contradições perder sua
energia.
complexo caracterizado pela divisão hierárquica do trabalho, que subordina suas funções vitais ao capital)‖.
(ANTUNES, 2011: 10; grifos originais)
92
Tais rebeliões irromperam fundamentalmente ―na França (e, aqui e ali, mais ou menos ao mesmo tempo, em
situações sociais similares), demonstrando clamorosamente no coração do capitalismo ‗avançado‘ a doença da
sociedade, a fragilidade e o vazio de suas ruidosamente anunciadas realizações, e a impressionante alienação de
um vasto número de pessoas do ‗sistema‘, denunciada com palavras de amargo desprezo‖. (MÉSZÁROS, 2011b:
1070)
93
―A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo.
Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de
consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de
fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação
comercial, tecnológica e organizacional [...], envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento
desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no
emprego no chamado ‗setor de serviços‘, bem como conjuntos industriais completamente novos em regiões até
então subdesenvolvidas [...]. Ela também envolve um novo movimento que chamarei de ‗compressão do espaço-
tempo‘ no mundo capitalista – os horizontes temporais da tomada de decisões privada e pública se estreitaram,
enquanto a comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão
imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e variegado‖. (HARVEY, 2010:140; grifos originais)
86
Para compreendermos melhor essa crise estrutural, analisemos mais atentamente estas
suas particularidades, que permitem pensá-la dessa maneira.
Quando uma crise não é estrutural, ela tem a capacidade de perturbar apenas parte do
complexo ao qual está atrelada, não ameaçando, portanto, o sistema social, mesmo que em
níveis bastante acentuados, já que esta parcialidade permite ao capital operar através de
mecanismos de deslocamento das suas contradições, através de meras reformas dentro da
ordem, por mais significativas que possam parecer. Isso significa que
A crise estrutural, por sua vez, se caracteriza por atingir ―a totalidade de um complexo
social em todas as relações com suas partes constituintes ou subcomplexos, como também a
outros complexos aos quais é articulada‖, não só colocando em xeque a própria estrutura
social na qual está inserida, mas consequentemente demandando ―sua transcendência e sua
substituição por algum complexo alternativo‖. (MÉSZÁROS, 2011b: 796-7; grifo original)
Esta questão também pode ser pensada com relação aos limites com os quais este
complexo social possa vir a se deparar em seu decurso. No caso de uma crise estrutural, tais
limites não são aqueles de caráter imediato, os quais certas mudanças internas no sistema
podem transpassar, mas sim os limites últimos encontrados no nível global de tal complexo
para os quais não se encontram meios para transpô-los, não importa o quanto se tente fazer de
ajustes internos.
Tais mecanismos, que tentam a todo custo retomar os níveis de acumulação, já passam
a não representar alternativas suficientes e, neste contexto de crise estrutural, conduzem, de
qualquer forma, a ―um processo contraditório de ajustes recíprocos (uma espécie de ‗guerra
de atrito‘), que só pode ser concluído após um longo e doloroso processo de reestruturação
radical inevitavelmente ligado às suas próprias contradições‖. (MÉSZÁROS, 2011b: 797;
grifos originais)
Em seu processo histórico, o capitalismo se desenvolve e se expande
fundamentalmente através do complexo grau de interações entre suas três dimensões
principais – a produção, o consumo e a circulação/distribuição/realização – cumprindo o
objetivo do capital, que é a reprodução ampliada. É justamente a relação dinâmica entre estas
87
dimensões que permite, num primeiro momento, que o capital vá não só superando os limites
imediatos que encontra no meio deste processo, através do deslocamento de suas
contradições94, mas faz com que este mecanismo impulsione a autoexpansão do capital,
fazendo parecer que ele é detentor de um poder absoluto, inabalável e autossuficiente.
Enquanto estes mecanismos continuarem atuando com êxito, as crises que se possam
enfrentar ao longo deste período, não importa qual seu nível de gravidade, de frequência ou
duração, não terão de forma alguma um caráter estrutural, já que não representam uma
ameaça à estrutura da ordem social.95
Uma crise estrutural de fato encontra sua gênese naquelas dimensões fundamentais da
sociedade capitalista. Porém, ―as disfunções de cada uma, consideradas separadamente,
devem ser distinguidas da crise fundamental do todo, que consiste no bloqueio sistemático das
partes constituintes vitais‖, já que uma percepção errada com relação a isso pode levar a que
um entrave transitório resultante de um obstáculo em uma dessas vertentes, possa ter a
aparência de uma crise estrutural, até que novamente se encontrem os artifícios que levam à
sua ultrapassagem.96 (MÉSZÁROS, 2011b: 798; grifos originais)
Vale ressaltar também que a concepção de Mészáros sobre a crise estrutural de forma
alguma remete a condições absolutas, de perspectiva fatalista. O próprio autor trata de
desfazer este possível equívoco, esclarecendo algumas questões importantes a este respeito.
A crise estrutural que se instaurou desde a década de 1970 indica que as dimensões
fundamentais do capital, que já representam em si uma unidade contraditória, vêm
apresentando distúrbios que passam a impedir, de certa forma, que suas funções tanto de
autoexpansão capitalista como de solvência das suas contradições internas fiquem
prejudicadas.
Até o ponto em que estas dimensões têm a possibilidade de continuar fortalecendo
umas às outras, promovendo a reprodução ampliada do capital em seu conjunto, as crises
enfrentadas nada tem de conjunturais e só passam a apresentar esta característica quando seus
interesses, tomados separadamente, se tornam inconciliáveis.
94
Podemos observar como isso funciona quando, por exemplo, encontra-se um limite imediato na produção que
pode ser ultrapassado aumentando-se o consumo. Fica clara aí a interconexão entre as dimensões fundamentais
do sistema capitalista e como ela funciona na superação das barreiras e na propulsão da expansão do capital.
95
Segundo Mézsáros (2011b: 798), este foi o caso, por exemplo, da ―crise de 1929-33 não foi de modo algum
uma crise estrutural do capital como formação global. Pelo contrário, forneceu estímulo e pressão necessários
para o realinhamento de suas várias forças constituintes, conforme as relações de poder objetivamente alteradas,
muito contribuindo, desse modo, para o desenvolvimento das tremendas potencialidades do capital inerentes à
sua ‗totalidade intensiva‘.‖
96
―Neste contexto vale lembrar a avaliação fatalmente otimista de Stalin da crise do final da década de 1920, de
consequências devastadoras para as suas políticas tanto no plano interno como no plano internacional‖.
(MÉSZÁROS, 2011b: 799)
88
Conforme já vimos, o sistema capitalista, na realidade, não tem como resolver de fato
suas contradições inerentes e também nem poderia, já que é através delas que, enquanto suas
estratégias para administrá-las97 forem bem sucedidas, ele consegue prosperar.
Quando tal mecanismo não tem mais efeito é que ―as perturbações e ‗disfunções‘
antagônicas, ao invés de serem absorvidas/dissipadas/desconcentradas e desarmadas, tendem
a se tornar cumulativas e, portanto, estruturais‖ e potencialmente ameaçadoras para o futuro
da ordem global, o que talvez seja onde reside a diferença específica da crise estrutural para as
crises cíclicas do capitalismo. (MÉSZÁROS, 2011b: 799-800, grifos originais)
Uma consideração importante a fazer é que a amplitude da crise estrutural ultrapassa
os limites do âmbito socioeconômico, atingindo claramente as instituições políticas, já que
Isso fica evidente ao percebermos que todos os âmbitos de sua totalidade, todas as
relações sociais e campos de atividade sofrem o impacto da crise estrutural, enquanto parte da
realidade do modo de produção capitalista.
Focando na estrutura social que envolve o processo de acumulação do capital,
podemos pensar como um sistema baseado na exploração dos trabalhadores pode se sustentar
sem eclodir alguma revolta que colocasse de fato em risco a continuidade da ordem do
capital. Isso ocorre através do estabelecimento de um consenso, que fica como função da
máquina do Estado, o qual, enquanto comitê executivo da burguesia, como já disse Marx98,
visa fundamentalmente garantir a reprodução do capital. Assim, ele promove a cisão entre as
políticas econômicas, que promovem a acumulação capitalista, e as políticas sociais, que
objetivam promover a reprodução da classe trabalhadora enquanto tal. Dessa forma, neste
jogo de interesses antagônicos, típico de uma sociedade de classes, a preservação do consenso
97
―Seu modo normal de lidar com contradições é intensificá-las, transferi-las para um nível mais elevado,
deslocá-las para um plano diferente, suprimi-las quando possível, e quando elas não puderem mais ser
suprimidas exportá-las para uma esfera ou um país diferente‖. (MÉSZÁROS, 2011b: 800; grifo original)
98
―O poder político do Estado moderno nada mais é do que um comitê para administrar os negócios comuns de
toda a classe burguesa‖. (MARX; ENGELS, 2006:47)
89
se faz à custa de limitar o alcance dos lucros em patamares mais altos daqueles que podem ser
obtidos.
De acordo com Alvater (1987: 92) este consenso é possível de ser empreendido a
partir de quatro motivações principais:
99
―É esta a base material para programas e ideologias neoliberais, que em geral adquirem significado na crise.
Eles não aceitam as instituições do compromisso, que sempre constituem as instâncias políticas para um parcial
controle político da acumulação, segundo o interesse parcial daqueles que devem estar de acordo com a própria
exploração a fim de que o sistema funcione. No lugar de tudo isto, aqueles programas e ideologias apoiam-se na
força legitimadora dos processos de mercado, que é capaz de utilizar a política para seus próprios fins,
particularmente quando se trata de mercados mundiais que se acham, de todo modo, fora das possibilidades de
controle nacional e estatal‖. (ALVATER, 1987: 94)
100
Se ―em 1981, o orçamento militar nos Estados Unidos [chegou] a 300 bilhões de dólares‖ (cf. MÉSZÁROS,
2011b: 801), em 2012, chegou à surpreendente cifra de 685.3 bilhões de dólares (SKÖNS, 2013) e, no período
que vai de 11 de setembro de 2001, quando o país deu início à chamada ―Guerra ao Terror‖, até 2009, seus
gastos ultrapassam a marca de 1 trilhão de dólares. (DAGGETT, 2010)
101
Segundo estudo publicado em 2013 pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
(FAO).
91
grande parte dos grãos produzidos são usados na engorda de animais também vítimas da
lógica capitalista.102
Diante deste panorama de barbárie contemporânea, compreendemos que o capitalismo
já não pode mais esconder ou reinventar sua razão de ser e sua justificação histórica, mesmo
que intensifique os processos de manipulação ou repressão.
Isso tudo é sinal de um sistema decadente, doente, que padece caminhando para seu
fim. Para compreendermos melhor a concretude deste panorama, vamos analisar agora as
particularidades dos momentos críticos da crise estrutural que irromperam primeiramente na
década de 1970 e, então, por volta do ano de 2008.
O período que veio após a Segunda Guerra Mundial, trouxe ao capitalismo suas ―três
décadas gloriosas‖, em que os índices de crescimento econômico estavam em alta e a
intervenção estatal, baseada nos preceitos keynesianos103, amenizaram os impactos das crises.
Isso pode ter induzido muitas vozes burguesas104, mas também algumas associadas à classe
trabalhadora105, a pensar que este modo de produção tinha finalmente encontrado um meio
para evitar as crises, controlando os ciclos econômicos.
Porém, por mais que parecesse improvável aos acima mencionados, outros
conseguiram verificar algum tempo antes a tendência que veio a se concretizar com
impressionante precisão106: uma recessão difusa se propagou pela primeira vez por todas as
potências imperialistas ao mesmo tempo, prenunciando mais uma crise.
102
Somente no ano de 2002, foi usado um total de 670 milhões de toneladas de cereais para este objetivo, o que
representa um terço do total produzido. (FAO, 2006)
103
Preceitos estabelecidos pelo economista J. M. Keynes, que procurava conciliar um conjunto de estratégias
baseadas em um Estado que tivesse ampla intervenção no regimento das relações entre capital e trabalho, a fim
de evitar novas crises e estabilizar o capitalismo, o que levou ao chamado Welfare State, ou Estado de Bem-Estar
Social, que teve sua plena realização nos países mais industrializados da Europa e nos Estados Unidos.
104
Mandel (1990: 9) cita, dentre outros exemplos a declaração do ―Prêmio Nobel de Ciência Econômica Paul
Samuelson: ‗o National Bureau of Economic Research trabalhou tão bem que de fato eliminou uma das suas
próprias tarefas principais, ou seja, as flutuações cíclicas /.../‘. Do mesmo autor, em sua obra Economics: ‗A
síntese neoclássica: graças ao emprego apropriado e reforçado das políticas monetárias e fiscais, nosso sistema
de economia mista pode evitar os excessos dos booms e das depressões,e pode visualizar um crescimento
progressivo sadio‘.‖
105
―Quanto aos autores que se associam ao movimento operário, lembremos as teses de John Strachey
(Contemporary Capitalism), de Baran-Sweezy (Monopoly Capital) e de Castoriadis enfatizando a eficácia
doravante demonstrada seja das técnicas anticíclicas, seja da política dos monopólios, seja de uma combinação
entre as duas, para ‗regular‘ a marcha da economia capitalista e evitar crises graves.‖ (MANDEL, 1990: 10)
106
―As teses sobre ‗O novo ascenso da revolução mundial‘, adotadas pelo IX Congresso Mundial da IV
Internacional em abril de 1969, afirmavam o que se segue sobre o longo período de expansão do pós-guerra da
92
economia capitalista internacional, que eles não ignoraram: ‗Os marxistas revolucionários /.../ têm oferecido uma
análise global das razões do longo período de expansão da economia imperialista que se enquadram na teoria
marxista geral /.../. Esta análise desembocou em três conclusões: antes de tudo, que os elementos
impulsionadores principais deste longo período de expansão iriam se exaurir progressivamente, provocando daí
um agravamento mais e mais claro da concorrência interimperialista; em seguida, que a aplicação deliberada de
técnicas keynesianas anticrise acentuaria a inflação mundial e a erosão permanente do poder de compra das
moedas, o que terminaria por provocar uma crise bastante grave do sistema monetário internacional; enfim , que
estes dois fatores tomados conjuntamente iriam multiplicar as recessões parciais e que se orientaria para uma
recessão generalizada da economia imperialista, certamente diferente da grande crise de 1929/32, tanto por sua
amplitude como por sua duração, mas que atingiria, contudo, todos os países imperialistas e ultrapassaria
bastante a amplitude das recessões dos vinte últimos anos. Duas destas conclusões já se verificaram: a terceira se
anuncia para o início dos anos 70‖ (MANDEL, 1990: 10; grifos originais)
107
Como, por exemplo, os quadros de recessão ―dos Estados Unidos em 1960, do Japão em 1965 ou da
Alemanha Ocidental em 1966/7‖. (MANDEL, 1990: 10-1)
108
Isso fica claramente visível ao verificarmos justamente a situação da Alemanha Ocidental neste período.
Mandel (1990: 11) assim a descreve: ―A recessão se desencadeou no segundo trimestre de 1974, com um
primeiro trimestre marcado por uma baixa absoluta do PNB (Produto Nacional Bruto) da ordem de 0,5%. Mas é
preciso sublinhar que, já no curso do primeiro trimestre, a taxa de crescimento do PNB tinha caído a 1%,
enquanto as exportações ainda tinham uma alta de 9,5%. Podemos, portanto, dizer sem risco de nos enganarmos
que a manutenção de uma forte expansão das exportações alemãs-ocidentais retardou pelo menos um trimestre o
desencadeamento da recessão nesse país‖.
93
Uma dessas políticas, que os governos burgueses aplicavam para tentar refrear os
ciclos e, portanto, as crises de superprodução109 foi a expansão do crédito e a expansão
monetária, resultando em
Mas estas políticas, de expansão monetária acabavam gerando, por outro lado, uma
alta a nível mundial da inflação que, atingindo o conjunto dos países imperialistas, fez ruir o
sistema monetário internacional, decretando a inconversibilidade do dólar em ouro. Com isso,
ainda que somente por conta da concorrência interimperialista, os governos tiveram que
adotar, praticamente de forma conjunta, uma política para frear a inflação, levando à
anteriormente mencionada sincronização do ciclo industrial no âmbito global.
Assim, com o final da expansão do pós-guerra, as contradições inerentes do sistema
capitalista passavam a ficar mais claras e profundas seja em cada país ou em suas relações uns
com os outros, o que revela
uma crise social do conjunto da sociedade burguesa, uma crise das relações de
produção capitalistas e de todas as relações sociais burguesas, que se imbrica com a
diminuição durável do crescimento econômico capitalista, acentua e agrava os
efeitos das flutuações conjunturais da economia, e recebe por sua vez novos
estímulos dessas flutuações. (MANDEL, 1990: 13)
109
―Trata-se, bem entendido, de esforços para reduzir a amplitude das crises, não para impedir seu
desencadeamento, para o que houve tanta incapacidade quanto no passado‖. (MANDEL, 1990: 12; grifos
originais)
110
―Se a produtividade cresce 5% ao ano, é preciso um aumento da produção da mesma amplitude para manter o
volume de emprego produtivo – todo o resto permanecendo constante. Com uma população ativa que
aumentasse 1% ao ano, necessariamente deveria haver um aumento da produção de 6%. Uma queda da produção
de 2%, acompanhada por um aumento da produtividade física de 4% e de um crescimento da população ativa de
0,5%, provocaria uma queda do emprego de cerca de 6,5% na indústria‖. (MANDEL, 1990: 16)
94
Estes podem, até um certo ponto112, suprimir a concorrência pelos preços e mesmo
aumentá-los no caso de uma queda da taxa de utilização de sua capacidade
produtiva, a fim de compensar a alta dos custos fixos por unidade produtiva, que
resulta das mercadorias não vendidas ou da subutilização da capacidade instalada.
Conseguem, assim, manter suas margens de lucro e evitar uma queda demasiado
catastrófica da taxa de lucros. Mas não podem conseguir isso senão com a
cumplicidade dos governos, dos bancos centrais e do sistema bancário no seu
conjunto, que continuam a inflar a massa monetária em razão das necessidades dos
monopólios, apesar de todos os grandes juramentos sobre a ―prioridade de lutar
contra a inflação‖. (MANDEL, 1990: 17-8)
111
―A pressão nesse sentido foi, pela primeira vez desde a crise de 1929/33, a tal ponto forte que nenhum
governo de um grande país imperialista ousou, desde o começo da recessão, aplicar medidas de política
anticíclica em grande escala. Apenas alguns pequenos países imperialistas, dispondo de margens de manobra ou
de reservas excepcionais – essencialmente a Suécia, a Áustria e a Noruega –, aplicaram essa política: a Áustria e
a Noruega alcançaram grande sucesso; a Suécia somente atrasou, mas não impediu, uma contração pronunciada
da atividade produtiva‖. (MANDEL, 1990: 17)
112
Já que, a longo prazo, conforme vimos, a lei do valor acaba se impondo.
95
Tendo em vista o quadro de crise, o comércio mundial foi fortemente impactado, não
sendo possível conter sua contração, já que a recessão atingia já o conjunto dos países
imperialistas, responsáveis pelo maior poder de compra disponível neste mercado, fazendo
reduzir o valor e o volume das exportações, as quais, se durante um bom tempo suplantaram o
crescimento da produção industrial113, já em 1975 sofreram esta queda.114
Mandel (1990: 20) observa três razões fundamentais para a contração do volume das
transações comerciais internacionais.
Com o comércio mundial em recesso, os países que mais sofreram os impactos deste
quadro foram aqueles do chamado ―Terceiro Mundo‖116, mas há que se fazer uma importante
distinção da situação daqueles que eram exportadores de petróleo para o conjunto restante.
113
―De 1953 a 1963, o volume da produção industrial dos países capitalistas cresceu 62%, enquanto suas
exportações aumentaram 82%. De 1963 a 1972, sua produção industrial cresceu 65%, enquanto suas exportações
aumentaram 111%‖. (MANDEL, 1990: 19)
114
―A OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] avalia esse recuo em 7% para o
conjunto do comércio mundial (inclusive o dos países não-capitalistas), o que implicou uma taxa de contração
ainda maior para o comércio internacional apenas dos países capitalistas, uma vez que as trocas entre os não-
capitalistas continuaram a aumentar‖. (MANDEL, 1990: 19)
115
―Essa política, aliás, foi largamente coroada de sucesso, em alguns casos. O Japão, cujo déficit da balança
comercial se situou, no período março 1973/março 1974, em 13,5 bilhões de dólares, pôde enxugar
completamente esse déficit enorme desde o segundo trimestre de 1975. Para o período março 1974/março 1975,
a balança comercial do Japão foi fechada até com um superávit de 4 bilhões de dólares. Houve a mesma reverão
de tendência nos Estados Unidos, cujo déficit da balança comercial se situava no terceiro trimestre de 1974 em
um nível anual de 8 bilhões de dólares, e se transformou em um superávit de 1,3 bilhão de dólares no primeiro
trimestre de 1975. A Itália conseguiu reduzir o déficit de sua balança comercial em 75%. Mesmo na Grã-
Bretanha a situação teve uma nítida melhora, com a balança comercial subindo 7 bilhões de dólares entre o
outono de 1974 e a primavera do ano seguinte. Finalmente, para a França, o déficit da balança comercial de 2
bilhões de francos em março de 1974 transformou-se, um ano depois, em um excedente de 620 milhões de
francos. [...] Nesse ‗jogo de soma zero‘ é preciso evidentemente que haja perdedores, que foram essencialmente
alguns países imperialistas menores (como Espanha, Suécia, Suíça, Dinamarca, Portugal etc.) e países
semicoloniais‖. (MANDEL, 1990: 20)
116
―Mais corretamente países semicapitalistas, semicoloniais e dependentes‖, segundo Mandel (1990: 41).
96
117
―O custo das importações de víveres e de fertilizantes dos países semicoloniais aumentou 5 bilhões de dólares
em 1973 e um montante análogo em 1974, ou seja, no total de 10 bilhões em dois anos, enquanto o custo de suas
importações de petróleo só cresceu 1,2 bilhão de dólares em 1973 e 7 bilhões em 1974, ou seja, no total 8 bilhões
em dois anos‖. (MANDEL, 1990: 44)
97
preço das muitas matérias-primas, produzidas fundamentalmente nestes locais, teve uma
relevante queda devido ao contexto de recessão no mercado global.118
A junção de todos estes fatores agravantes para o cenário dos países semicoloniais e
dependentes engendrou quadros de regressão, estagnação e até recuo na produção agrícola e
industrial em tais territórios. O panorama que se via em tais regiões era bastante drástico, já
que
Mas, ao contrário do que se possa pensar, a crise não pode simplesmente ser imputada
ao aumento dos preços do barril de petróleo pela OPEP ou pelos altos salários em razão da
força relativa com que contavam os sindicatos à época, como tentou-se difundir. Mandel
(1990), procurando desfazer qualquer análise equivocada neste sentido, relaciona algumas
características que corroboram sua visão acerca de como esta crise, apesar de suas
particularidades, pode ser considerada uma crise clássica de superprodução (apesar das suas
particularidades que a tornam diferente das anteriores). A questão do petróleo foi, portanto,
um dos detonadores da crise e não sua causa.
Nos países avançados, não só foi verificada uma queda da taxa de lucro, como também
um aumento da capacidade ociosa de produção industrial (considerando ainda que grande
parte da produção estadunidense é despendida em gastos militares e paramilitares). Para ficar
ainda mais claro, Mandel (1990) traça um panorama que demonstra a também clássica
inversão da onda longa expansiva.
Essa expansão foi provocada fundamentalmente pelas altas nas taxas de mais-valia e,
portanto, de lucro, resultantes de uma superexploração do operariado, impulsionadas acima de
tudo pela II Guerra Mundial, pelo nazismo e pela Guerra Fria (no caso dos Estados Unidos).
Essa reprodução ampliada de capital a níveis bastante altos foi que possibilitou o advento da
terceira revolução tecnológica, gerando um quadro prolongado de condições tidas como ideais
118
―Os países subdesenvolvidos não-exportadores de petróleo viram em 1975 o quantum de suas exportações
cair 5%, o valor corrente das exportações diminuir 12% e suas reservas de troca, 5,5%‖. (Nações Unidas apud
MANDEL, 1990: 45)
98
para a acumulação capitalista: enquanto a taxa de lucro aumentava, subia também o poder de
compra da classe trabalhadora, impulsionando o mercado.
Entretanto, este quadro acabou gerando também um aumento expressivo da
composição orgânica do capital, que não conseguia minimizar seus efeitos mesmo elevando a
taxa de mais-valia, pois se defrontava com o poder organizativo da classe trabalhadora,
crescentemente combativa no plano internacional da luta de classes, sobretudo a partir da
década de 1960. A consequência disso foi a inevitável queda da taxa de lucro que, juntamente
com a propagação ao redor do globo dos efeitos da terceira revolução tecnológica, não
podiam fazer senão inverter a onda longa expansiva do capital.
Assim, conforme vimos, esta crise também foi importante, pois assinalou, além do
âmbito econômico, uma crise político-social, fundamentalmente nos países imperialistas, em
que a classe trabalhadora intensificou seu processo de politização e combatividade,
provocando por parte de sua classe antagônica reações diversas no sentido de fazer recair
sobre os trabalhadores todos os seus encargos.
Dessa forma, o quadro crítico que se instala desde a década de 1970 atinge tal
amplitude e profundidade que nem mesmo os propagandistas burgueses podem contestá-la, a
menos que seja por uma manobra ideológica que camufle a realidade ou que sempre a
veiculem como uma simples e transitória recessão, o que nada mais é do que encobrir a
gravidade da conjuntura.
Conforme vimos no capítulo anterior, no momento de crise, o capital tem como uma
das principais alternativas eliminar o capital excedente, provocando uma destruição em massa
de riqueza, de valores que não serão possíveis de ser realizados.
A concorrência, ainda que seja sob novas configurações no capitalismo monopolista,
passa a assumir um novo padrão, já que agora não se trata de garantir maior participação no
mercado, angariando superlucros, mas sim da própria sobrevivência neste contexto crítico.
Com isso,
Como não podia deixar de ser, num mundo ―globalizado‖ através dos sistemas de
comércio e financeiro, se o estopim da crise se deu basicamente nas principais potências
capitalistas, como os Estados Unidos, Alemanha e Japão119, não tardou a ter seus efeitos
sentidos nos países periféricos, fundamentalmente naqueles mais dependentes das operações
econômicas externas, ou seja, os mais incorporados ao sistema capitalista global.120
Em tempos nos quais o capitalismo se tornou um sistema mundial e integrado, em que
há uma interdependência entre os países ―desenvolvidos‖ e ―subdesenvolvidos‖, o planeta
vira refém de um efeito dominó – a avalanche pode demorar um pouco mais a chegar a certos
países, mas o que parecia algo de menor importância rapidamente toma maiores proporções,
afetando todos os âmbitos da sociedade e fazendo-se sentir principalmente pela classe
trabalhadora – a quem sempre recaem os piores impactos das crises e contradições do sistema
capitalista.
Como já era de se esperar, a atividade econômica, bem como as relações comerciais
internas e externas sofreram uma drástica redução121, enquanto, em proporção inversa,
119
―No último trimestre de 2008 e no primeiro de 2009, o investimento privado – o dínamo do crescimento
econômico – diminuiu em praticamente um terço nos Estados Unidos e em torno de um quinto na Alemanha e no
Japão. Nesse período, os Estados Unidos fecharam mais de 500 mil postos de trabalho por mês, enquanto a
União Europeia (AE16) e o Japão viram o número de desempregados aumentar no ritmo de aproximadamente
400 mil pessoas ao mês‖. (SAMPAIO JR., 2009: 11)
120
―No primeiro movimento de propagação da crise, foram mais penalizadas as economias da Europa Oriental e
do Sudeste Asiático – Rússia, Turquia, Romênia, Hungria, países que compõem a Comunidade dos Estados
Independentes, Coreia do Sul, Malásia e Tailândia‖. (SAMPAIO JR., 2009: 12)
121
―Puxada por uma drástica contração da indústria, entre outubro de 2008 e março de 2009 a economia mundial
sofreu uma diminuição superior a 6% em relação a igual período do ano anterior. Nesse intervalo, o comércio
100
mundial registrou uma diminuição de quase um terço, num movimento sem precedentes que atingiu todas as
regiões do mundo‖. (SAMPAIO JR., 2009: 9)
122
―Os efeitos da crise sobre os trabalhadores foram devastadores. A Organização Internacional do Trabalho
calcula que, apenas em 2008, o número de desempregados aumentou em quase nove milhões e que mais de 100
milhões de pessoas passaram a integrar o número de trabalhadores pobres, ou seja, pessoas que ganham uma
renda insuficiente para manter a família (menos de US$ 2 per capita por mês)‖. (SAMPAIO JR., 2009: 10)
123
Além dos dados citados nas notas anteriores, ―a intensidade do processo de liquidação de capital fictício não
tem precedente na história. Nas principais bolsas de valores do mundo, no final do primeiro semestre de 2009, as
ações registravam desvalorização média de cerca de 40% em relação ao nível de abril de 2008, quando começou
a inflexão do ciclo especulativo. Nas economias periféricas, a queda das bolsas de valores foi ainda mais intensa,
alcançando aproximadamente 55%. A queima de ativos tóxicos, que alimentavam as pirâmides especulativas
com títulos derivativos, alcançou valores inimagináveis, na verdade, impossíveis de serem submetidos ao cálculo
econômico. A desvalorização de capital bancário e produtivo também foi inusitada e fica manifesta no registro,
em um intervalo de poucos meses, de cinco das dez maiores falências da história corporativa norte-americana,
fazendo com que conglomerados financeiros e produtivos que pareciam inabaláveis, tais como o Lehman
Brothers, o Washington Mutual, o Thornburg Mortage, a General Motors e a Chrysler, fossem pura e
simplesmente varridos do mapa‖. (SAMPAIO JR., 2009: 9)
124
Taiwan, Coreia do Sul, China e Japão, por exemplo.
125
Como Brasil e Alemanha.
126
―Cerca de 20 milhões de pessoas perderam subitamente seus empregos na China, e relatos perturbadores de
agitação social vieram à tona. Nos Estados Unidos, o número de desempregados aumentou em mais de 5 milhões
em poucos meses (de novo, fortemente concentrado em comunidades afro-americanas e hispânicas). Na
Espanha, a taxa de desemprego saltou para mais de 17%‖. (HARVEY, 2011: 13)
101
sujeitos às mesmas dificuldades dos demais países periféricos, tais como ―a escassez de
crédito provocada pela aversão ao risco, o colapso da demanda internacional, a deterioração
dos termos de troca e a drástica inflexão nos fluxos de capitais‖, algumas circunstâncias
específicas observadas nesta região, como, por exemplo, ―menor vulnerabilidade do setor
externo e menor vulnerabilidade do setor bancário aos efeitos imediatos do estouro da ciranda
especulativa com derivativos‖ permitiram que suas economias fossem gerenciadas sem
maiores traumas.
Contudo, após o mês de setembro de 2008, o que parecia blindado contra os efeitos
mais drásticos da crise mundial dava claros sinais de que nada seria tão simples. Seguiu-se
então um quadro de ―expressivas baixas nas bolsas de valores, fortes desvalorizações nas
moedas nacionais, quedas violentas nas exportações e redução abrupta dos investimentos
privados‖, sem contar o crescente número de desempregados, situação que se mostra mais
grave ainda naqueles países latino-americanos mais dependentes das relações econômicas
com os Estados Unidos, como é o caso do México, por exemplo. (SAMPAIO JR., 2009a: 12)
Assim, dado o nível de integração da economia mundial, vemos que o quadro da crise
como um todo pode funcionar como um ciclo vicioso, já que, se as economias periféricas são
afetadas pela retração das economias centrais, estas também sofrem os efeitos que as
consequências devastadoras da crise provocam nos países com os quais mantém relações
externas. Com isso, a desvalorização do capital provoca uma dinâmica contínua altamente
destrutiva por todo o globo.
Harvey (2011: 13-14) considera que esta crise seguiu um padrão de crises financeiras
até culminar na mais recente, a qual considera ―a mãe de todas as crises‖. Além do que, por
ter se desencadeado a partir do mercado imobiliário, tende a ser mais longa do que as que
afetam somente os bancos e o mercado de ações, por exemplo, já que ―os investimentos no
espaço construído são em geral baseados em créditos de alto risco e de retorno demorado:
quando o excesso de investimento é enfim revelado [...], o caos financeiro que leva muitos
anos a ser produzido leva muitos anos para se desfazer‖.
Tentando controlar esta crise sistêmica (ou estrutural) como uma mera crise cíclica das
que foram administradas em décadas anteriores, os governos das potências imperialistas,
sobretudo dos Estados Unidos, passaram inicialmente a adotar as mesmas posturas, inclusive
promovendo até certo hibridismo com respostas de caráter keynesiano, através de medidas
superficiais que pudessem amenizar as contradições mais gritantes, socializando os enormes
prejuízos. Ou seja, no período de explosão da crise atual, apenas foram tomadas providências
102
de cunho superficial, que de forma alguma chegavam a atingir os verdadeiros entraves para a
retomada dos padrões de acumulação capitalista.
Vendo que tais medidas pouco fizeram para reverter o quadro depressivo, somente no
último trimestre de 2008 é que o Estado resolveu aplicar uma política econômica para lidar
com os efeitos mais persistentes e ameaçadores da crise, atuando em três principais frentes:
―1) evitar a todo custo o colapso espetacular do sistema financeiro; 2) estimular a demanda
agregada para combater a depressão; e 3) impedir reações nacionais que pudessem colocar em
risco as bases da ordem global, levando à fragmentação do sistema capitalista mundial‖.
(SAMPAIO JR., 2009a: 14)
Uma análise equivocada acerca dos motivos que causaram a crise de crédito e os
problemas econômicos dos grandes grupos financeiros resultou em medidas ineficazes para
superar as reais causas. Ao contrário do que se pensou, o problema fundamental reside não na
liquidez, mas na solvência e tudo foi dirigido no sentido de harmonizar um pretenso
desequilíbrio temporário. Dessa forma, as instituições mais relevantes para a economia foram
auxiliadas pelos respectivos governos dos países centrais a partir de ações como
Assim, vendo os efeitos da crise como algo meramente efêmero, as iniciativas que
visaram sua superação assumiram três direções principais:
Harvey (2011: 18) entende que o capitalismo encontrará uma resposta para a crise
atual, da mesma forma como na da década de 1970 respondeu com o neoliberalismo, e que
tudo aponta no sentido de um aprofundamento da centralização cada vez maior de capital e,
portanto, na consolidação do poder de uns poucos capitalistas. ―As crises financeiras servem
para racionalizar as irracionalidades do capitalismo. Geralmente levam a reconfigurações,
novos modelos de desenvolvimento, novos campos de investimento e novas formas de poder
de classe‖.
Obviamente, estes rumos somente se efetivarão caso não irrompa nenhum movimento
político de oposição, advindo da disputa de poder entre as classes antagônicas. Se o capital
pode encontrar força de trabalho à sua disposição – haja vista o enorme ―exército industrial de
127
Harvey (2011: 16) diz que, para ele, a palavra neoliberalismo indica ―um projeto de classe que surgiu na crise
dos anos 1970. Mascarada por muita retórica sobre liberdade individual, autonomia, responsabilidade pessoal e
as virtudes da privatização, livre-mercado e livre-comércio, legitimou políticas draconianas destinadas a
restaurar e consolidar o poder da classe capitalista. Esse projeto tem sido bem-sucedido, a julgar pela incrível
centralização da riqueza e do poder observável em todos os países que tomaram o caminho neoliberal‖.
128
O periódico burguês The Economist (apud MÉSZÁROS, 2011a: 20) afirma logo em 2008, quando de fato
estourou a crise, que ―em pouco mais de três semanas o governo dos Estados Unidos [...] expandiu seu passivo
bruto em mais de US$1 trilhão – quase o dobro da guerra do Iraque até agora‖.
129
―No México, por exemplo, o padrão de vida da população diminuiu cerca de um quarto em quatro anos após o
socorro econômico de 1982‖. (HARVEY, 2011: 16)
104
130
―Nos EUA, em 1980 a dívida agregada familiar média era em torno de 40 mil dólares (em dólares
constantes), mas agora é cerca de 130 mil dólares para cada família, incluindo hipotecas‖. (HARVEY, 2011: 22)
131
―De quase nada em 1990, esses mercados cresceram e passaram a circular aproximadamente 250 trilhões de
dólares em 2005 (a produção total mundial foi então de apenas 45 trilhões de dólares) e talvez algo como 600
trilhões de dólares em 2008‖. (HARVEY, 2011: 26)
105
foi o elevado enriquecimento dos empresários que investiram na compra de bens públicos132,
os quais, diga-se de passagem, eram vendidos com um generoso desconto.
Este excesso de liquidez proveniente da década de 1990 veio da própria atividade dos
bancos, já que eles próprios se endividaram enormemente, tomando empréstimos uns com os
outros para tentar amenizar a razão dívida-capital133. ―Excedentes de capital fictício criados
dentro do sistema bancário absorveram o excedente!‖. E então, ―quando um par de bancos
começou a ter problemas, a confiança entre os bancos erodiu e a liquidez fictícia sobre dívidas
desapareceu. O desendividamento começou, o que provocou perdas maciças e
desvalorizações do capital dos bancos‖. (HARVEY, 2011: 33)
Sampaio Jr. (2009b: 119) vê a origem desta última crise econômica mundial num
processo de liberalização dos limites impostos ao capital financeiro no período do pós-guerra,
comandado pelos Estados Unidos respaldado nos organismos financeiros internacionais,.
Findadas estas barreiras, foram produzidas as condições essenciais para que a especulação
financeira progredisse e se expandisse para todos os âmbitos da economia. Assim,
Ainda acerca desta questão, Mészáros (2011a: 25; grifos originais) ressalta que a
desenfreada especulação financeira
132
Para dar apenas um exemplo, Harvey (2011: 32) cita que ―o mexicano Carlos Slim Helú, classificado como o
terceiro homem mais rico do mundo pela revista Forbes em 2009, teve seu grande êxito com a privatização das
telecomunicações do México no início dos anos 1990‖.
133
Os bancos emprestam um valor muito acima de seus depósitos, acreditando que os devedores irão pagar e não
ficarão em débito todos de uma só vez, mas, se o grau de inadimplência for muito alto, isso gera uma crise, pois
não haverá dinheiro o bastante para dar conta de suas atribuições. Para não ter que fechar, muitos acabam
contraindo empréstimos com outros bancos, fazendo crescer a razão dívida-capital.
106
Apesar disso, o problema da retomada dos investimentos não pode ser reduzido a uma
simples ―crise de confiança‖134, como se a subjetividade dos agentes capitalistas se
sobrepusesse à objetividade econômica de que após a explosão da crise, tornaram-se incertos
os rumos para a retomada de expansão e acumulação de capital, haja vista a evidente
superprodução e a destruição de montantes enormes de capital excedente.135
Obviamente, esta incerteza acerca do futuro da ordem capitalista e a desconfiança
gerada pela quebra de instituições bancárias tão poderosas que pareciam sólidas e inatingíveis
resultaram em uma crise de crédito que freou a expansão capitalista, ao rebater diretamente
nas relações de produção e circulação da economia global, deixando evidente a
vulnerabilidade do seu sistema financeiro.
Além disso tudo, as políticas do Estado estadunidense de ajuda aos bancos vêm
gerando grande revolta e insatisfação dentre a classe trabalhadora, já que esta, além de ter que
arcar com as duras consequências da ―socialização dos riscos‖, não vê a mesma disposição do
governo em ajudá-los, tendo em vista a disparada dos despejos desde o início da crise, por
exemplo.
Os bancos, por sua vez, utilizam o dinheiro recebido para amortizar suas dívidas,
comprar outros bancos e, assim, firmar seu poderio. Diante disso, os setores de direita e a
grande mídia tentam jogar a culpa nos trabalhadores e o Estado lança mão de algumas parcas
medidas para auxiliá-los visando a não exacerbar mais sua ira e provocar uma crise de
legitimidade para o sistema capitalista.
Vale lembrar aqui, que a partir das décadas de 1950 e 1960, os Estados Unidos
reafirmaram seu poder hegemônico mundial a partir de inúmeras medidas que contaram, por
134
Mészáros (2011a: 18; grifos originais) analisa uma série de discursos proferidos por apologistas do capital,
ressaltando a questão da confiança – ou a falta dela, ou seu excesso, a superconfiança – como estando no cerne
da crise capitalista. Enquanto o primeiro-ministro britânico Gordon Brown dizia que ―a coisa mais preciosa‖
reside na ―confiança‖ (―no sistema bancário capitalista‖, como bem assinala Mészáros), em uma entrevista na
rede de televisão BBC, o ex-chefe do Lloyd Bank ―apresentou uma grande inovação conceitual no discurso da
confiança ao dizer que a causa de todas as nossas perturbações era alguma ‗superconfiança‘. E imediatamente
demonstrou também o significado de ‗superconfiança‘ ao afirmar mais de uma vez, naquela curta entrevista, que
não pode haver problemas sérios hoje, pois o mercado sempre toma conta de tudo, mesmo que por vezes
despenque inesperadamente. Depois, sempre subirá outra vez‖.
135
―Na primavera de 2009, o Fundo Monetário Internacional estimava que mais de 50 trilhões de dólares em
valores de ativos (quase o mesmo valor da produção total de um ano de bens e serviços no mundo) haviam sido
destruídos. A Federal Reserve estimou em 11 trilhões de dólares a perda de valores de ativos das famílias dos
EUA apenas em 2008. Naquele período, o Banco Mundial previa o primeiro ano de crescimento negativo da
economia mundial desde 1945‖. (HARVEY, 2011: 13)
107
Harvey (2011) recupera então a ideia de Arrighi (1996) segundo a qual mudanças de
hegemonia são antecedidas por períodos de financeirização, ocorrendo no sentido de alocar a
grande quantidade de capital excedente e a entidade política que mais produzi-lo137 tende a ser
a detentora da hegemonia, a qual, no momento, ainda são os Estados Unidos.138
Porém, o autor vê que esta hegemonia está seriamente ameaçada, uma vez que outros
países vêm se destacando no cenário mundial tanto no setor produtivo quanto na própria
acumulação de capital, como é o caso da China, por exemplo. Assim, estes países tiveram
grande investimento não só na construção de unidades produtivas e atividades capitalistas
diversas, mas também em infraestrutura para suportar todo este crescimento que os inseriram
no foco do mercado global, fazendo com que pudessem absorver uma quantidade importante
do excedente global.
136
Mészáros (2011a: 27; grifos originais) alerta para a provável inadimplência norte-americana: ―O grande
problema para o sistema capitalista global é, contudo, que a possibilidade de a América não honrar seus
compromissos não é de todo impensável. [...] O agravante da realidade hoje é que o resto do mundo tem cada vez
mais dificuldades para preencher o ‗buraco negro‘ produzido numa escala sempre crescente pelo insaciável
apetite dos Estados Unidos por financiamento da dívida – mesmo com a maciça contribuição chinesa,
historicamente irônica, para a balança do Tesouro norte-americano –, como demonstrado pelas repercussões
globais da recente crise hipotecária e bancária norte-americana. Essa circunstância traz para muito mais perto o
necessário calote dos Estados Unidos, cuja escala pode ser mais ou menos brutal‖.
137
Ou que obtém grande parte deles por meio de ―tributos ou extrações imperialistas‖. (HARVEY, 2011: 37)
138
―Com um total de produção global em 56,2 trilhões de dólares em 2008, a cota dos EUA de 13,9 trilhões de
dólares ainda faz desse país o acionista que controla o capitalismo global, capaz de orientar as políticas globais
(como faz em seu papel de acionista-chefe nas instituições internacionais, como Banco Mundial e FMI)‖.
(HARVEY, 2011: 37)
108
O espaço geográfico teve, assim, uma reestruturação fundamental neste novo quadro,
tendo que ser levado em conta não somente as necessidades de expansão capitalista em si,
mas as próprias particularidades do ambiente, como localização, condições naturais e
disponibilidade de força de trabalho para movimentar este aquecimento da produção e do
mercado em lugares que antes não eram tão significativos como hoje, quando começam a não
só entrar em cena, mas ocupar um lugar de destaque cada vez mais crescente, contando, para
isso, com o fundamental papel das políticas estatais.
Harvey (2011) atenta bastante para a questão geográfica deste quadro crítico,
apontando as mudanças que se operaram neste quesito desde a última crise, na década de
1970, demonstrando que, a depender do papel que cada país exerce e ocupa no cenário
mundial, sofrerá maior ou menor impacto em áreas diferentes, mas, devido ao fenômeno da
globalização, os efeitos que a crise produz inevitavelmente se difundirão por todo o globo,
afetando, principalmente, a classe trabalhadora que cada vez mais é condenada à miséria e ao
pauperismo.
Mészáros (2011a: 21; grifos originais) afirma que o sistema capitalista está em um
momento de crise que tende a se aprofundar cada vez mais e questiona:
alguém pode pensar numa maior acusação para um sistema de produção econômica
e reprodução social pretensamente insuperável do que essa: no auge do seu poder
produtivo, está produzindo uma crise alimentar global e o sofrimento decorrente dos
incontáveis milhões de pessoas por todo o mundo? Essa é a natureza do sistema que
se espera salvar agora a todo custo, incluindo a atual ―divisão― do seu custo
astronômico.
É por isso que a operação ideológica colocada em curso pela classe capitalista,
tentando atenuar os efeitos da crise não pode ser mantida por muito tempo com credibilidade
suficiente para se legitimar e, assim, até mesmo nomes e organizações que defendem os seus
interesses são de certa forma obrigados a reconhecer a seriedade do quadro crítico atual, que,
salvaguardadas as particularidades regionais, se alastrou por todo o globo e conduz este
sistema ao colapso.
109
O cenário brasileiro não pode escapar aos efeitos da crise, uma vez que um país
amplamente integrado ao comércio mundial acaba sendo mais suscetível aos acontecimentos
globais.
Com uma política monetária severa por parte do governo brasileiro, até o início da
segunda metade do ano de 2008 não era esperada uma valorização do real em relação ao dólar
americano, pois os estrangeiros mantinham os investimentos na economia do Brasil e em sua
Bolsa de Valores, o que lhes rendia altos lucros, principalmente a partir dos altos juros.
Entretanto após a queda do dólar, diversas empresas acreditaram que este panorama se
estenderia ao menos até o fim do ano e acabaram lançando mão de complexos instrumentos
financeiros, resultando em prejuízos com a retomada da moeda americana. Mas foi após a
quebra do Lehman Brothers, importante banco dos Estados Unidos, em setembro de 2008,
que o dólar realmente apresentou grande alta no Brasil, além de ter resultado também na
retração do crédito internacional.
Com isso, os países cuja exportação é bastante expressiva nos rendimentos do país,
como é o caso do Brasil, ficaram bastante prejudicados, tendo em vista a diminuição do
comércio mundial e consequente redução do fluxo de capitais estrangeiros. Em meio a este
cenário, ocorreu uma queda no ritmo da produção e da demanda interna no país, bem como
aumento do desemprego, o que favoreceu ainda mais a flexibilização das relações de trabalho
já bastante precarizadas pelas políticas de cunho neoliberal, tendo em vista o desmonte de
direitos duramente conquistados pelos trabalhadores.
O governo brasileiro viu-se então impelido a adotar certas medidas anticíclicas.
Assim, o crédito passou a ser estimulado e o sistema bancário passou por uma reformulação
para amenizar os impactos de uma possível insolvência por parte de bancos mais suscetíveis a
sofrer com as adversidades do momento. A demanda também foi incentivada a partir de uma
política de renúncia fiscal e com a alteração no imposto de renda para pessoas físicas e, além
disso, o seguro desemprego foi ampliado.
Focando nas medidas relacionadas à manutenção do crédito interno e visando
contornar as dificuldades para captar recursos no exterior, fundamentalmente durante o final
de 2008 e no ano de 2009, o governo Lula adotou uma série de medidas, dentre as quais
podemos citar:
110
Não obtendo sucesso em impulsionar o crédito de origem não estatal, o Estado foi
obrigado, através das instituições BNDES, BB e CEF a aumentar sua participação na carteira
do sistema financeiro, que passou de 36,3%, em 2008, para 41,5% em 2009, demonstrando
que, apesar da intensidade das políticas neoliberais implementadas no país, inclusive com
inúmeras privatizações, tais instituições acabam exercendo um papel fundamental de
intervenção do Estado no mercado de crédito, importante principalmente para auxiliar as
empresas capitalistas num cenário adverso. (MARQUES; NAKATANI, 2011)
Como já mencionamos, as exportações sofreram grande queda, o que prejudicou um
país eminentemente exportador como o Brasil. Tendo isso em vista, o governo procurou
tomar medidas para incentivar o consumo interno e, com isso, amenizar os impactos destes
efeitos negativos sobre a economia brasileira. Assim, algumas medidas adotadas foram:
Mesmo após todas essas providências, o consumo familiar somente aumentou 4,1% no
ano de 2009, ficando abaixo dos dois anos anteriores, quando o aumento foi de 6,1% em 2007
e 7% em 2008. As exportações, por sua vez, caíram 10,3%, sendo que o setor mais
prejudicado foi o manufatureiro, o que, de fato, foi atenuado pelas medidas governamentais
para estimular o mercado interno139. Na área industrial, os setores mais afetados foram o de
transformação e o de construção civil, com quedas de 7% e 6,3%, respectivamente. As
importações também decaíram bastante em 2009, a uma quantidade de 11,4%, o que
possibilitou computar um superávit na balança comercial de 2,07%, maior do que o
apresentado no ano anterior. (MARQUES; NAKATANI, 2011)
Considerando a gravidade com que a crise abateu os países centrais do capitalismo, o
Brasil virou um país atrativo para os especuladores, tendo em vista fundamentalmente suas
altas taxas de juros e a facilidade que a lei promove no caso de remessas de lucros para o
exterior.
Em setembro de 2011, o governo reduziu as taxas de juros, interferindo, portanto,
justamente em um dos fatores que mais impulsionam esta onda especulativa e outra tentativa
para refreá-la oferece o risco de uma nova evasão descontrolada de capitais, como se deu no
episódio citado, quando a ―forte a retirada de capitais japoneses, com a venda de títulos
brasileiros‖ resultou ―momentos de incerteza e tensão no mercado de títulos e nas autoridades
monetárias brasileiras‖. (FALCÃO, 2012: 3)
Uma possível estabilidade aparente frente ao quadro crítico mundial camufla a grave
situação na qual o país está imerso. Os gastos com juros e com a crescente dívida pública
atingem valores preocupantes para a economia interna.140
Tentando encontrar meios para amenizar estes riscos, o governo Dilma achou
necessário tomar certas providências, como fez ao elevar os impostos sobre veículos
importados e desvalorizar a moeda brasileira, algo que, se por um lado foi aclamado
publicamente por uma parte do grande capital nacional, foi duramente criticado por outra,
pelo fato de tornar mais cara a maquinaria externa, da qual o setor industrial do Brasil ainda é
bastante dependente. Assim, no sentido de amenizar tais críticas, foi anunciado pelo Estado
uma renúncia fiscal de cerca de 25 bilhões de reais, satisfazendo, enfim, o interesse da classe
dos capitalistas em geral, sobretudo do setor produtivo.
139
Por exemplo, o setor automobilístico, que foi grandemente impactado pela crise, viu sua produção reduzida
em apenas 1% com relação ao ano anterior, de 2008. (MARQUES; NAKATANI, 2011)
140
―Nos últimos anos, o Brasil gastou mais de 200 bilhões de reais por ano (de 40 a 50% do orçamento federal)
no pagamento de juros e amortização da dívida pública, que, paradoxalmente ou não, continua em projeção
ascendente (3 trilhões de reais, sendo 2,400 trilhões a dívida interna e 600 bilhões a externa).‖ (FALCÃO, 2012:
3)
112
Entretanto, este valor somado ao corte de 50 bilhões de reais efetuado logo no começo
do mandato de Dilma acabou gerando uma situação bastante delicada no tocante às finanças e
gastos públicos. Com isso, ―a inflação saiu dos eixos, alcançando o teto da meta estabelecida
pelo próprio governo (6,5%), inflada especialmente pelos chamados ‗preços
administrados‘141.‖ (FALCÃO, 2012: 4)
O reflexo de toda esta situação financeira pode ser visto no âmbito social, quando uma
série de programas sociais meramente compensatórios, de cunho assistencialista procuram
amenizar de forma bastante paliativa a vida de miséria e pobreza relegada à grande parte da
classe trabalhadora.142
Se comparados com o suporte financeiro dado a instituições privadas, por exemplo, os
investimentos nestes programas são tão irrisórios que não restam dúvidas acerca de seu
caráter perverso e extremamente restrito, afundando as esperanças colocadas pela maioria da
população que fica à mercê das políticas sociais num governo dito ―popular‖.
A crescente dívida pública torna-se também argumento para explicar os cortes cada
vez maiores nos gastos públicos, principalmente no que concerne aos serviços sociais, tais
como educação, saúde, previdência social, bastante evidente ao nos atentarmos aos dados,
uma vez que, se em 1995 estes gastos representavam 56% da receita líquida, em 2010 era de
apenas cerca de 30%. (FALCÃO, 2012)
Outro fator alarmante foi o aviltamento dos vencimentos dos funcionários públicos das
três esferas governamentais, que ultrapassaram 100% e mesmo após uma década de governos
tidos como ―populares‖, não houve alteração neste quadro. Além disso, mesmo o governo
Lula tendo prometido dobrar o salário mínimo no seu primeiro mandato, seu reajuste foi de
58,4% durante seus dois mandatos e, considerando o alto índice e rotatividade de força de
trabalho no país, calcula-se que o salário médio praticamente não sofreu alterações entre os
anos de 2002 e 2009. (FALCÃO, 2012)
Os investimentos na área da Reforma Agrária foram de R$526 milhões em 2010,
durante um governo historicamente ligado às demandas não só da classe trabalhadora em seu
conjunto, mas do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) em especial. Este
valor foi surpreendentemente menor comparado à cifra de cerca de um milhão de reais
investidos durante o último ano do governo anterior, crítico ferrenho deste movimento social.
141
No caso, aqueles relacionados a ―serviços públicos sob controle do governo ou, o que é mais comum,
daqueles resultantes de privatizações que tiveram, quando da assinatura de seus contratos, garantias de reajustes
indexados - energia elétrica, telefonia etc‖. (FALCÃO, 2012: 4)
142
Considerando que há ―16,2 milhões de pessoas em situação de miséria absoluta (renda mensal inferior a 40
dólares), a metade delas na região Nordeste, que detém 28% da população do país, mas somente 14% do PIB‖.
(FALCÃO, 2012: 6)
113
Assim que a crise deu sinais de impacto no país, o governo logo lançou mão de
políticas monetárias no sentido de socorrer principalmente o grande capital financeiro 145, sem
143
De acordo com dados divulgados pelo Banco Central, o estoque total de dinheiro emprestado cresceu 1,6%
em dezembro em relação ao mês anterior e chegou ao valor recorde de R$ 1,41 trilhão. No ano, o crescimento foi
de 14,9%. (SALVADOR, 2010: 623)
144
Essas políticas, que têm sido alvo permanente de ataques do neoliberalismo, transferem renda para mais de 39
milhões de pessoas. (SALVADOR, 2010: 623-4)
145
Considerando as medidas de combate à crise, que não têm impacto direto no caixa do governo (orçamento
público), o montante de recursos que foi despendido alcançou R$ 475 bilhões. Nesse valor estão, sobretudo, as
114
Tendo em vista todo este panorama crítico de crise, poderíamos esperar que o governo
investisse mais em direitos sociais para tentar salvaguardar a população dos efeitos drásticos
da instabilidade econômica, porém, o que vimos foi uma sólida contenção nos investimentos
na área da seguridade social. O que o governo decidiu, de fato, foi ―fazer um superávit
primário efetivo do setor público de 1,93% do PIB, ou seja, já descontando o resultado dos
investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)‖.146 (SALVADOR, 2010:
625)
Os investimentos em saúde e educação, por sua vez, encontram-se bastante inferiores
aos padrões globais estabelecidos pelos países da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), sem contar que o fato de grande parte dos
trabalhadores brasileiros não estarem inclusos no sistema da Previdência Social, demonstra
claramente que sua universalização não é uma realidade no Brasil.
É importante ressaltar que as medidas tomadas pelo governo no sentido de amenizar
os efeitos negativos da crise a partir de desonerações tributárias acabaram intervindo no
financiamento do orçamento destinado à seguridade social que, já bastante medíocre, encontra
medidas adotadas no campo da política monetária, destacadamente as mudanças nas regras do depósito
compulsório, leilões com dólar e a linha de troca de moeda com o Federal Reserve (FED), que somaram R$ 284
bilhões. (SALVADOR, 2010: 624)
146
Lembrando que ―esse resultado financeiro superavitário foi também garantido pelas medidas extraordinárias
tomadas pelo governo federal no fim de 2009 para elevar as receitas fiscais, como o recolhimento de depósitos
judiciais e a antecipação de dividendos da Eletrobrás.‖ (SALVADOR, 2010: 625)
115
ainda mais dificuldades para dar conta de cobrir com suas próprias receitas as despesas
necessárias para seus três pilares – a assistência social, a saúde e a previdência social.
A própria Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB) informa que, em decorrência
de fatores ligados à crise, durante o ano de 2009, a arrecadação tributária diminuiu 3,05% em
relação à anterior, o que significa um decréscimo de R$ 21,5 bilhões, sendo que 49% desta
diminuição se deve aos tributos arrecadados com a Contribuição para o Financiamento da
Seguridade Social (Cofins) e a o PIS/Pasep, fundamentais para o financiamento da seguridade
social no Brasil. Isso ocorreu porque a crise agravou os indicadores macroeconômicos ligados
à arrecadação tributária, como ―a produção industrial, a lucratividade das empresas e a queda
no volume geral de vendas no varejo no ano de 2009 em relação a 2008. E, destacadamente,
as desonerações tributárias estimadas em R$ 24,9 bilhões‖. (SALVADOR, 2010:626)
A questão é que o financiamento da seguridade social fica ainda mais prejudicado por
conta da Desvinculação das Receitas da União (DRU), que transfere recursos de fontes
tributárias que seriam sua exclusividade para o orçamento fiscal, no intuito de compor o
superávit primário e poder, dessa forma, ser utilizado no pagamento de juros da dívida.147
Os recursos destinados à seguridade social são ainda usados para arcar com os
benefícios previdenciários dos servidores públicos federais, o que, de acordo com a lei,
deveria, na realidade, ser pago com recursos do Orçamento Geral e, portanto, financiados não
com recursos exclusivos da seguridade social, mas com tributos. Assim, ―as despesas com
inativos e pensionistas da União pagas com recursos da seguridade social superam R$ 50
bilhões, o que representa 15% do montante gasto nas funções orçamentárias de previdência,
assistência social e saúde―. (SALVADOR, 2010: 627)
De acordo com Salvador (2010), quando verificamos a questão do dito ―rombo― nas
contas públicas do país, podemos perceber que, na realidade, não é causado pelo tão
divulgado ―déficit da Previdência Social‖, mas sim pelo pagamento dos juros e da
amortização da dívida pública, que no fim de abril de 2009 já chegava a R$ 1,9 trilhão,
lembrando que 36% está atrelada à taxa de juros básica da economia (Selic) e que todo esse
valor representa 30% do orçamento público. Assim, é possível constatar que
147
―O ‗Relatório resumido da execução orçamentária do governo federal e outros demonstrativos‘ divulgado
pela Secretaria do Tesouro Nacional, com dados de 2009, revela que a DRU desviou do Orçamento da
Seguridade Social para o Orçamento Fiscal o montante de R$ 39,2 bilhões. Já foram surrupiados desde 2000
mais de R$ 300 bilhões da seguridade social.‖ (SALVADOR, 2010: 626)
116
Diante disso tudo, vemos como a crise de 2008 agravou ainda mais as já precárias
condições de trabalho, a desuniversalização das políticas sociais e o desmantelamento e
mercantilização dos direitos sociais. Mais especificamente no Brasil, alguns indicadores,
como o valor real do salário mínimo e o nível de emprego subiram, mas isso não significa
uma melhora de sua qualidade objetiva, ainda mais considerando que no Brasil a desigualdade
manteve-se gritante.
De acordo com dados de um relatório produzido em 2010 pelo Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento Humano (PNUD) acerca do Desenvolvimento Humano no
país e coletados por Yazbek (2014), a pobreza e a extrema pobreza tiveram uma redução,
porém suas raízes, os mecanismos que as (re)produzem não são questionados ou ao menos
levados em consideração, mantendo intactas as estruturas de poder e o modo de produção
responsáveis por esta questão.
117
148
Trata-se de um ―marco decisivo no desencadeamento do processo de revisão crítica do Serviço Social no
continente [...], fenômeno tipicamente latino-americano [...], [que] implicou um questionamento global da
profissão: de seus fundamentos ideo-teóricos, de suas raízes sócio-políticas, da direção social da prática
profissional e de seu modus operandi.‖ (IAMAMOTO, 2006)
149
De acordo com Iamamoto (2014: 623-4), ―no universo dos pesquisadores que reivindicam um vínculo com a
tradição marxista, afloram maneiras de pensar e explicar a profissão sob diferentes matizes, sob a inspiração de
Marx, Gramsci, Lukács e influxos hegelianos. A ótica de leitura desses clássicos — assim como a leitura que é
feita de suas obras — direciona angulações privilegiadas na análise da profissão e de seu exercício: a ênfase no
trabalho, na práxis e na organização da cultura, na ideologia e na formação da consciência‖.
118
150
O que não implica necessariamente uma identificação direta com posicionamentos de ordem partidária.
119
os projetos das classes proprietárias politicamente dominantes‖. (NETTO, 2009: 143; grifos
originais)
De acordo com Braz (2001: 2), ―os projetos societários podem ser, em linhas gerais,
transformadores ou conservadores. Entre os transformadores há várias posições que têm a ver
com as formas (as táticas e as estratégias) de transformação social‖.
Passemos agora à análise dos projetos profissionais, aqueles que dizem respeito às
profissões regulamentadas juridicamente e que requerem para seu exercício formação de nível
superior, via de regra. O corpo profissional constitui o sujeito coletivo responsável por sua
criação, envolvendo toda sua organização151, o que no caso do Serviço Social brasileiro,
corresponde fundamentalmente as entidades CFESS/CRESS (Conselho Federal de Serviço
Social/Conselhos Regionais de Serviço Social), ABEPSS (Associação Brasileira de Ensino e
Pesquisa em Serviço Social), ENESSO (Executiva Nacional dos Estudantes de Serviço
Social), além dos sindicatos e outras associações da categoria.
Tal organização deve ser sólida e estar fortificada para que o projeto profissional
angarie junto ao Estado, aos usuários de seus serviços, aos outros profissionais e às
instituições públicas e privadas, o reconhecimento e legitimidade esperados.
Assim como os projetos societários, os projetos profissionais também tem um caráter
transitório, uma vez que da mesma forma ficam sujeitos às alterações empreendidas não só no
contexto histórico em que a profissão se insere, mas também na composição social de sua
própria categoria, nas suas demandas profissionais, no seu desenvolvimento teórico e prático,
enfim, nos mais diversos determinantes daquela profissão.
Além disso, os projetos profissionais também são determinados por uma dimensão
política, seja na sua relação com os projetos societários ou nas expectativas específicas dentro
da própria profissão. No entanto, vale lembrar que quando se trata de um caráter reacionário
ou conservador, a tendência é procurar deixar esta dimensão em oculto, negando qualquer
dimensão política ou ideológica.
Após estas consideramos, concluímos, pelas palavras de Netto (2009: 144; grifos
originais) que
151
Isso envolve, além de seus profissionais, ―as instituições que os formam, os pesquisadores, os docentes e os
estudantes da área, seus organismos corporativos, acadêmicos e sindicais etc.‖, ou seja, o ―conjunto dos
membros que dão efetividade à profissão‖. (NETTO, 2009: 144)
120
estabelecem as bases das suas relações com os usuários de seus serviços, com as
outras profissões e com as organizações e instituições sociais privadas e públicas
(inclusive o Estado, a quem cabe o reconhecimento jurídico dos estatutos
profissionais).
152
Ressaltamos que o respeito ao pluralismo ―não deve ser confundido com uma tolerância liberal para com o
ecletismo [e] não pode inibir a luta de ideias. Pelo contrário, o verdadeiro debate de ideias só pode ter como
terreno adequado o pluralismo que, por sua vez, supõe também o respeito às hegemonias legitimamente
conquistadas‖. Lembramos ainda que o pluralismo pode sofrer uma degradação teórica, recaindo justamente no
ecletismo e política, desembocando no liberalismo. (NETTO, 2009: 146)
121
153
De acordo com Iamamoto (2008: 115-6; grifos originais) certas ―distorções na análise da prática social
desdobram-se em dois comportamentos diante da prática profissional: a) de um lado, o fatalismo, inspirado em
análises que naturalizam a vida social, traduzido numa visão ‗perversa‘ da profissão. Como a ordem do capital é
tida como natural e perene, apesar das desigualdades evidentes, o Serviço Social encontrar-se-ia atrelado às
malhas de um poder tido como monolítico, nada lhe restando a fazer. No máximo, caberia a ele aperfeiçoar
formal e burocraticamente as tarefas que são atribuídas aos quadros profissionais pelos demandantes da
profissão; b) de outro lado, o messianismo utópico, que privilegia as intenções, os propósitos do sujeito
profissional individual, num voluntarismo marcante, que não dá conta do desvendamento do movimento social e
das determinações que a prática profissional incorpora nesse mesmo movimento. O messianismo traduz-se numa
visão ‗heróica‘, ingênua das possibilidades revolucionárias da prática profissional a partir de uma visão mágica
da transformação social. Fatalismo e messianismo: ambos prisioneiros de uma análise da prática social que não
dá conta da historicidade do ser social gestado na sociedade capitalista‖.
154
Como exemplo, podemos citar quanto ao Serviço Social brasileiro ―a formação acadêmica, tal como
reconhecida pelo Ministério da Educação (isto é, em instituições de nível superior credenciadas e segundo
padrões curriculares minimamente determinados), e a inscrição na respectiva organização profissional
(CRESS)‖. (NETTO, 2009: 147)
122
155
Isso se deu principalmente ―por meio da mobilização dos operários métalo-mecânicos do cinturão industrial
de São Paulo (o ‗ABC paulista‘)‖. (NETTO, 2009: 149)
123
econômicos, passaram a perceber que faziam de fato parte das camadas trabalhadoras e a
ressoar a luta pela democracia com as demandas políticas e sociais que a quebra deste regime
trazia consigo. Isso tudo ofereceu a esta categoria a condição política para poder reagir contra
o conservadorismo que se fortalecia no âmago do corpo profissional, ainda que muitas vezes
aparecia sob novos traços e feições, procurando ocultar-se em diferentes roupagens, lançando
as bases para a construção de um novo projeto profissional.
Em meio a este cenário, o combate à ditadura militar e a recuperação de uma
democracia política foram traduzidos em um conflito entre distintos projetos societários
dentro da profissão, cujas vanguardas exerceram papel importante na associação com o
movimento dos trabalhadores, fortalecendo seus interesses e assimilando suas demandas
democráticas e populares156. Estes fatores revigoravam o pluralismo político no Serviço Social
e sua organização profissional, enquanto enfraqueciam cada vez mais o conservadorismo,
tendo consonância inédita com um projeto societário contrário aos interesses da classe
capitalista, o que não se deu sem embates, mas com extenso confronto de ideias.
A mudança constante no interior da própria categoria também foi um elemento que
colaborou para este processo de construção de um novo projeto profissional, já que não só
aumentava, como abarcava agora membros de diferentes setores sociais, principalmente da
camada média urbana, o que reverberava nessa necessidade de mudança. Porém, diante da
condição política que, conforme vimos já estava dada, eram necessários outros fatores para
que tal projeto se concretizasse de fato.
A acumulação teórica obtida neste período também foi de muita importância para o
projeto profissional que vinha se constituindo. Isso foi possibilitado a partir da legitimação
acadêmica do Serviço Social, ainda sob vigência da ditadura militar, com a Reforma
Universitária, tornando o espaço da pós-graduação da área responsável por uma grande
produção de conhecimentos. A massa crítica aí acumulada permitiu um diálogo mais próximo
às ciências sociais, fazendo sobressair novos quadros intelectuais.
Vale lembrar, conforme Netto (2009: 152; grifo original), que
156
Haja vista o III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, que ocorreu no ano de 1979, na cidade de São
Paulo e que foi um marco desta mobilização política da categoria, evento que ficou conhecido como ―Congresso
da virada‖. Neste evento, ―de forma organizada, uma vanguarda profissional virou uma página na história do
Serviço Social brasileiro ao destituir a mesa de abertura composta por nomes oficiais da ditadura, trocando-a por
nomes advindos do movimento dos trabalhadores‖. (BRAZ, 2001: 3-4)
124
157
―As atuais diretrizes curriculares — propostas inicialmente pela Abess em 1996 e revistas em 1999 —, têm
no currículo mínimo aprovado pelo MEC em 1982, seu antecedente mais importante. Este foi proposto pela
Abess em 1979, em pleno período ditatorial, incorporando alguns avanços do movimento de reconceituação
latino-americano. O currículo mínimo expressa um processo de transição, parte da resistência acadêmica e
política tanto à ditadura militar implantada no país (1964-85) quanto ao Social Work, em sua difundida trilogia,
composta por Serviço Social de caso, de grupo e de comunidade. No currículo aprovado pelo MEC em 1982, a
matriz do ensino do Serviço Social centra-se nas ementas voltadas para História do Serviço Social, Teoria do
Serviço Social e Metodologia do Serviço Social além do estágio supervisionado‖. (IAMAMOTO, 2014: 614;
grifos originais)
125
158
Prova disso são as ―discussões acerca da formação profissional, produzida com as modificações advindas da
vigência da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional/LDBEN (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996):
as orientações propostas por representantes do corpo profissional (cf. ABESS, 1997, 1998) ratificam a direção da
formação nos termos do projeto ético-político‖. (NETTO, 2009: 155)
126
É a partir de nossa atuação profissional cotidiana que este projeto profissional pode se
materializar, a partir das inúmeras modalidades interventivas da profissão, sistematizadas
127
159
Inserem-se aí ―o conjunto CFESS/CRESS (Conselho Federal e Regionais de Serviço Social) a ABEPSS
(Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social) e as demais associações político-profissionais,
além do movimento estudantil representado pelo conjunto de CAs e DAs (Centros e Diretórios Acadêmicos das
escolas de Serviço Social) e pela ENESSO (Executiva Nacional de Estudantes de Serviço Social)‖. (BRAZ,
2001: 6)
129
Cardoso (FHC) e que Lula aprofundou. Isso foi feito a partir da multiplicação de cursos de
nível superior privados não só presenciais, mas a proliferação da modalidade à distância 160,
que são implementados sem qualquer critério que certifique sua qualidade e estando à revelia
de uma frágil regulação estatal.
Agrava-se ainda o fato de que não há um conteúdo básico comum para a formação,
que fica à mercê das determinações de cada unidade de ensino, as quais, ainda que precisem
manter os núcleos de fundamentação expostos na organização curricular161, se alinhas à lógica
de mercado, ou seja: além de focalizarem o ensino somente para o que interessa ao mercado
de trabalho, os professores constituem uma força de trabalho altamente explorada,
especialmente no setor privado e, portanto, encontram enormes dificuldades em se dedicar à
pesquisa e a estruturar um pensamento teórico fundado na perspectiva de totalidade.
As implicações deste rebaixamento do nível do ensino superior para a formação e o
exercício dos assistentes sociais é a progressiva mudança do seu perfil profissional, que pode
até crescer em quantidade162, mas com qualidade discutível, justamente pela falta de
fiscalização dos novos cursos.
Todo esse processo de massificação, mercantilização e precarização do ensino
superior passa pela Reforma Universitária (ReUni)163. Há dez anos, Braz (2004: 60) foi capaz
de antever o que esta Reforma, ainda incipiente, indicava:
160
―Trata-se de uma expansão que se deu a partir de dezembro de 2005 quando, de maneira antidemocrática, por
meio de decreto, o Presidente Lula autorizou o funcionamento dessa modalidade de ensino no País, como parte
da recém-anunciada meta do Governo de abranger, em meia década, 30% da população entre 18 e 24 anos, no
ensino superior‖. (BRAZ, 2007: 8) Dados mais recentes, trazidos no artigo de Iamamoto (2014:612),
demonstram que existiam, ―em agosto de 2011, 358 cursos de graduação autorizados pelo MEC, dos quais
dezoito de ensino a distância (EAD) que ofertam, no mesmo ano, 68.742 vagas. Na modalidade presencial os
340 cursos ofertam, em 2011, 39.290 vagas, segundo as Sinopses Estatísticas do MEC, totalizadas por Larissa
Dahmer, em 2013.1 As matrículas em cursos de Serviço Social assim se distribuem, em 2011: na modalidade
EAD 80.650 matrículas e na modalidade presencial 72.019 matrículas‖.
161
A saber: núcleo de fundamentos teórico-metodológicos e ético-políticos da vida social; núcleo de formação
sócio-histórica da sociedade brasileira e do significado do Serviço Social no seu âmbito e núcleo de fundamentos
do trabalho profissional. (Cf. Iamamoto, 2014)
162
Segundo Iamamoto (2014: 612), atualmente ―o contingente de assistentes sociais brasileiros é o segundo no
cenário mundial, com 135 mil profissionais ativos, conforme dados do Conselho Federal de Serviço Social
(CFESS), apenas superado pelos EUA, num total de 750 mil assistentes sociais no mundo, conforme a
International Federation of Social Workers (IFSW)‖.
163
Ou a ―contra-reforma universitária neoliberal‖, que, apesar de ter sido criada na gestão de FHC, vem sendo
aprofundada pelo governo Lula. A principal diferença entre esta contra-reforma nas duas gestões é que: ―Lula a
implementa com as ‗bênçãos‘ de várias organizações políticas do mundo universitário (veja o caso da ANDIFES
e o da UNE especialmente) e, parcialmente, do mundo sindical, já que, se por um lado, o movimento sindical
docente manteve sua autonomia, o mesmo não se pode dizer do movimento dos técnico-administrativos. Tal
diferença é que atribui à contra-reforma universitária de Lula um caráter mais ameaçador‖. (BRAZ;
RODRIGUES, 2013)
130
Sem contar que o corpo docente destas instituições precisam enfrentar um grande
aviltamento de suas condições de trabalho. Diante disso tudo, a sólida base teórico-acadêmica
que o Serviço Social veio construindo ao longo de todos esses anos de amadurecimento e
acúmulo teórico se vê diante de grandes obstáculos, já que seu retrocesso compromete não só
a práxis profissional, mas também a direção social impressa ao nosso projeto ético-político.
Pensando agora na prática profissional, lembramos que inúmeros são os avanços
conquistados desde a década de 1980 para o Serviço Social tanto no campo teórico quanto no
campo político, conformando um projeto profissional de construção coletiva de uma categoria
na projeção de uma imagem ideal de sua profissão e que buscará meios para sintonizá-lo à
formação e à prática profissionais e, assim, concretizá-lo. Isso, porém, não é tarefa fácil, uma
vez que temos
Isso significa que o Serviço Social é uma profissão que se vê tensionada em seu
exercício por estar atravessada por uma contradição: ―a necessidade de responder às
demandas institucionais à profissão — uma condição de sua existência — e, pelo mesmo
caminho, colocar em questão o processo de produção e reprodução social que geram aquelas
demandas‖. (Mota, 2012: 42)
Essa correlação de forças é operada na dinâmica da luta de classes, ou seja,
Vemos assim, que o trabalho do assistente social tem uma dimensão dupla, marcada
por uma íntima relação entre o trabalho assalariado e o projeto profissional, e com isso não
encontram de imediato uma identidade entre a intencionalidade delineada em seu projeto e os
efeitos que sua ação profissional produz na realidade, uma vez que, enquanto parte da classe
trabalhadora, estão sujeitos à mercantilização de sua força de trabalho, ao alienante trabalho
abstrato e à precarização do trabalho assalariado em geral.
Essa precarização se dá a parir dos entraves que os empregadores colocam ao trabalho
do assistente social, como exigências burocráticas e de produtividade, a escassez de recursos e
verbas, a contratação por tempo parcial ou por projeto, as terceirizações, a imposição metas,
critérios e condições como ―jornada, ritmo e intensidade do trabalho, direitos e benefícios,
oportunidades de capacitação e treinamento―, além dos recursos materiais, humanos, técnicos
e financeiros de que dependemos para a realização do nosso trabalho. (IAMAMOTO, 2009:
182)
Além disso, as novas exigências do mercado, exaltam um profissional polivalente,
descaracterizando o Serviço Social, podendo levar à sua desprofissionalização, pois o que é
valorizado na intervenção é um conhecimento meramente prático e não um trabalho
intelectual.
Em outro texto, Iamamoto (2014: 632-3; grifos originais) descreve bem o quadro
dramático que os assistentes sociais enfrentam no mercado de trabalho e em seus espaços
ocupacionais no cenário contemporâneo:
assistente social dispõe e submetendo sua prática cada vez mais às armadilhas da alienação.
(FALEIROS, 2014: 707)
Mas essa imagem ideal da profissão e os planos que dela advêm sofrem influência
direta e é redimensionado pelos interesses em conflito presentes nas demandas colocadas a
responder e as lutas sociais mais amplas que representam. Residem nestas determinações os
limites da ação profissional e uma clara ofensiva do projeto societário hegemônico ao projeto
hegemônico da profissão, pois, uma vez que o sistema capitalista não consegue se sustentar
apenas através de mecanismos coercitivos, opressores da luta das classes exploradas, precisa
de certo consenso, o que obtém através de um controle social que de certa forma o legitime ou
traga o mínimo de aceitação pelo conjunto da sociedade, conforme vimos brevemente no
capítulo anterior.
Para exercer esse controle utiliza agentes sociais que atuem de forma particular na
vida dos indivíduos para reforçar a adoção de valores e comportamentos funcionais à
reprodução da ordem social vigente e o assistente social é visto e tido como um desses
agentes, como um instrumento voltado para legitimar as bases ideológicas e sociais que dão
sustentação a esta ordem para que ela possa se manter e se renovar.
Isso ocorre, pois na sua atuação, o assistente social se encontra não só diante das
expressões da ―questão social‖, mas com a própria consciência que os usuários de seus
serviços tem dessas expressões. A luta pela garantia e ampliação dos direitos da classe
trabalhadora nessa sociedade reflete os movimentos de hegemonia e contra-hegemonia, que se
dão na complexidade do cotidiano. Enquanto detentora de um projeto ético-político
hegemônico que reforça os interesses desta classe, o Serviço Social se inscreve na perspectiva
contra-hegemônica, mas sua busca pelo fortalecimento de direitos tem como horizonte a
construção de uma nova ordem social, que supere a sociabilidade burguesa.
Assim, se esse contexto representa uma clara ofensiva do projeto societário
hegemônico, Mota (2012: 42) vê que durante momentos como esse, ―de regressão política, é
preciso acumular forças, fortalecer princípios e redefinir pedagogicamente os meios que
possibilitem a construção de uma unidade entre os princípios teórico-metodológicos e
políticos e o campo do exercício profissional‖.
Aí reside o que Yazbek (2014: 681) chama de dimensão político-ideológica da
profissão, já que, conforme vimos, seu exercício profissional é permeado por um processo
contraditório, sendo polarizado pelos antagônicos interesses das classes sociais fundamentais.
Contudo, é importante o assistente social ter em mente que nessa dinâmica, ―o mesmo
movimento que permite a reprodução e a continuidade da sociedade de classes cria as
133
possibilidades de sua transformação‖, o que exige estratégias bem planejadas para encontrar
possibilidades caminhos de intervenção perante essa correlação de forças.
Após compreendermos um pouco a dinâmica deste espaço contraditório em que o
Serviço Social atua, vamos analisar mais detidamente alguns dos espaços institucionais em
que o assistente social se insere e como vêm se configurando na contemporaneidade. Com as
mudanças na própria configuração da sociedade capitalista, surgem para estes profissionais
novas demandas e espaços ocupacionais, bem como um redimensionamento dos antigos. O
público usuário de seus serviços também é reconfigurado e/ou ampliado, as formas de
intervenção e o conteúdo se seu trabalho também são alterados, conforme aponta Raichelis
(2013: 619-620)
sua vez, são responsabilizados pela pobreza, fenômeno que acaba sendo esvaziado de seus
determinantes estruturais e a ―questão social‖ vai passando por uma intensa despolitização, o
que exige que a classe trabalhadora assuma e fortaleça cada vez mais seu protagonismo
político.
Vale lembrar ainda que as políticas sociais, âmbito privilegiado de atuação deste
profissional, constitui também o ―lugar onde a profissão participa de processos de resistência
e constrói alianças estratégicas na direção de um outro projeto societário‖. (YAZBEK, 2014:
678)
Vejamos, então, a partir das contribuições de Mota (2014), como alguns dos principais
espaços ocupacionais do Serviço Social na contemporaneidade se configuram, já que incidem
diretamente sobre o projeto ético-político profissional.
Comecemos com um dos espaços tradicionalmente mais ocupados pelos assistentes
sociais — o campo da Seguridade Social. Na década de 1990, o campo da Assistência Social
passou por inúmeras mudanças na sua gestão, gerenciamento e nas suas ações, tendo
expandido sua oferta de serviços e conduzido significativas alterações ―seja nos processos
relacionados à violação de direitos e que exigem articulação interinstitucional e domínio de
especificidades legais, seja no âmbito dos programas especiais e nos de transferência de
renda‖. (MOTA, 2014: 696)
Na Saúde é evidente o aumento da terceirização de inúmeros serviços, bem como a
ampliação da oferta de planos de saúde, que constituem um espaço ocupacional em
crescimento para os profissionais da área, incluindo os assistentes sociais. Além disso, a saúde
mental passou por uma série de modificações em seus programas, que adquiriram uma nova
perspectiva e os serviços de emergência e pronto atendimento foram ampliados.
O âmbito da Previdência Social passou por transformações claramente relacionadas às
reformas implementadas nesta área, à precarização do trabalho, seja no meio rural ou urbano e
as modificações na legislação trabalhista e previdenciária, implicando em uma reconfiguração
da atuação do Serviço Social, diante de novas demandas, que exigem outras competências por
parte de seus profissionais. Algumas dessas mudanças, descritas por Mota (2014: 696; grifos
originais) provêm da
Outro espaço ocupacional para os assistentes sociais que vem crescendo são os
programas de caráter emergencial, seletivos, focalizados e fundamentalmente assistencialistas,
em que parte das políticas de acesso ou inserção promovidos especialmente pelo chamado
―terceiro setor‖164 procuram dar conta das defasagens que a falta de uma política voltada de
fato para a universalização dos direitos sociais poderia promover. Isso prejudica uma prática
profissional que leva em conta a ―defesa das políticas públicas de responsabilidade estatal,
tanto na saúde, na previdência, na assistência social e nas demais políticas sociais‖. (BRAZ,
2004:59-60)
Além destes campos tradicionais de atuação do assistente social, o sociojurídico vem
ganhando destaque nestas últimas décadas, com a ampliação e criação de postos de trabalho
para estes profissionais nas mais diversas instituições jurídicas que o compõem, desde a
intensificação das lutas pela redemocratização da sociedade na derrocada da ditadura militar e
a promulgação da Constituição de 1988. Estas mudanças ganham ainda mais força a partir dos
anos 2000, com uma radicalização das expressões da ―questão social‖ que incidem
diretamente nesta área, ―como o crescimento da violência, a criminalização das drogas, os
mecanismos de criminalização da pobreza, a prática da judicialização dos direitos e garantias
sociais‖. (MOTA, 2014: 697)
O campo da habitação, moradia e ocupação do espaço urbano de modo mais geral é
outro setor que vem requerendo maior atuação do Serviço Social, com a intensificação da
política habitacional após o desmantelamento daquela originada durante o regime ditatorial.
Este aumento da demanda ocorreu principalmente pelas desapropriações em decorrências das
grandes construções de infraestrutura e para os megaeventos no país e com o programa Minha
Casa, Minha Vida, instituído pelo governo federal no ano de 2009 e que segue os ditames do
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
164
―O chamado ‘terceiro setor’, na interpretação governamental, é tido como distinto do Estado (primeiro setor)
e do mercado (segundo setor). O chamado 'terceiro setor' é considerado como um setor ‗não-governamental‘,
‗não-lucrativo‘ e voltado ao desenvolvimento social, e daria origem a uma ‗esfera pública não-estatal‘,
constituída por ‗organizações da sociedade civil de interesse público‘. No marco legal do terceiro setor no Brasil
são incluídas entidades de natureza as mais variadas, que estabelecem um termo de parceria entre entidades de
fins públicos de origem diversa (estatal e social) e de natureza distinta (pública ou privada). Engloba, sob o
mesmo título, as tradicionais instituições filantrópicas, o voluntariado e Organizações Não-Governamentais:
desde aquelas combativas que emergiram no campo dos movimentos sociais àquelas com filiações político-
ideológicas as mais distintas, além da denominada ‗filantropia empresaria’.‖ (IAMAMOTO, 2009: 190; grifos
originais)
136
o que fica evidente nessas novas áreas e demandas é a incorporação, pelas políticas
públicas, de uma série de iniciativas que nascem das necessidades imediatas da
produção capitalista, mas transitam para a esfera do Estado como necessidades de
toda a sociedade. Sintomática dessa migração é a relação entre a redução ou
precarização de postos de trabalho, cujos trabalhadores ―sobrantes‖ e ―precarizados‖
são alvo da criminalização da pobreza, da judicialização individual e do não
atendimento das suas necessidades, quando não das políticas ativas de trabalho e
renda ou de programas de transferência de renda, sem que se visibilize a
determinação social e prática dessa metamorfose. Elas atualizam as necessidades do
grande capital sob a aparência do atendimento às necessidades do trabalho e,
tendencialmente, transformam-se em objetos de atuação que parecem descolar-se
das estruturas que as determinam. Obscurecem as determinações econômicas,
políticas e ideoculturais sob o argumento de atenderem a necessidades reais que
afetam as classes trabalhadoras no seu cotidiano de vida e trabalho.
o cenário histórico tem revelado uma crise de hegemonia das esquerdas e dos
projetos socialistas de modo geral. É nesse contexto que o conservadorismo tem
encontrado espaço para se reatualizar, apoiando-se em mitos, motivando atitudes
autoritárias, discriminatórias e irracionalistas, comportamentos e ideias
valorizadoras da hierarquia, das normas institucionalizadas, da moral tradicional, da
ordem e da autoridade.
139
Esse contexto foi o responsável por fortalecer o que Iamamoto (2011) chama de
movimento de renovação crítica do Serviço Social, uma vez que, diante de novos contornos
da sociedade capitalista, novas demandas se impunham à profissão, que precisava se atualizar
e demonstrar, assim, sua contemporaneidade e sua necessidade, ou seja, que era capaz não só
de compreender os processos sociais da sociedade brasileira, mas de como realizar, a partir
disso, uma intervenção qualificada, o que pediu uma reformulação importante nos campos da
pesquisa, ensino e da organização político-corporativa da profissão.
165
―Tal envolvimento se registrou nos vários Congressos Brasileiros de Assistentes Sociais e em seus encontros
regionais preparatórios, nas convenções nacionais e nas 'oficinas regionais' da ABESS, nos encontros de
pesquisadores promovidos pelo CEDEPSS, nos encontros regionais e nos seminários nacionais patrocinados pelo
sistema CFESS/CRESS etc.‖. (NETTO, 2009: 157)
141
sucateamento dos serviços públicos, enquanto, por outro lado, promovem a privatização do
Estado, denunciado como ineficiente, procurando justificar estas ações, que vem sendo postas
em prática tanto por setores políticos autodenominados ―social-democratas‖, como por
aqueles que historicamente se identificavam com a esquerda.
A implementação do neoliberalismo, tendo à frente as imposições do capital financeiro
fizeram com que o Serviço Social se colocasse na contramão do projeto societário
hegemônico e fortalecesse os laços com os movimentos e organizações da classe trabalhadora,
estando entre elas o Partido dos Trabalhadores (PT).
No entanto, no ano de 2003, com a ascensão do PT ao poder central, na figura do
presidente Lula, o projeto ético-político de nossa profissão se viu extremamente tensionado,
pois este governo não só seguiu a política econômica de cunho liberal, como a aprofundou,
além do risco de os segmentos mais progressistas com os quais o Serviço Social mantinha
fortes relações aderirem ao revisionismo teórico e político claramente empreendido nesta
gestão governamental.
Este contexto grave e adverso ao projeto societário ao qual nosso projeto profissional
se alinhava, ameaçava sua própria hegemonia. Um dos motivos pode residir no fato de que
quando Lula subiu ao poder, ascenderam juntamente lideranças dos movimentos dos
trabalhadores, o que abriu caminho para que uma confusão se estabelecesse neste campo,
dando a entender que o projeto societário representado por este novo governo estivesse em
congruência (e não em antagonismo) com o nosso projeto profissional.
Vamos verificar agora o que vem causando um estado crítico para o projeto ético-
político do Serviço Social na atualidade, impondo não só desafios, mas grandes entraves à sua
concretização, remetendo a algumas das situações já analisadas acima, que incidem
diretamente neste projeto, por conferirem a materialidade necessária à sua objetivação e que,
portanto, podem sinalizar sua crise na conjuntura que enfrentamos.
Netto (2007) entende que há principalmente dois níveis que assinalam uma crise do
projeto ético-político do Serviço Social e, portanto, sua inviabilização no contexto do
capitalismo contemporâneo. O primeiro nível corresponde aos objetivos e às funções da
profissão, que vem sendo intencionalmente reduzidos ao plano da assistência social,
representando uma enorme regressão para a profissão.
143
Inúmeros entraves são colocados também para que os assistentes sociais possam de
fato implementar os princípios de seu Código de Ética à atuação profissional, tornando
imperativo a categoria pensar em conjunto de que forma, nessa conjuntura tão adversa, é
possível concretizar a ―necessária garantia, imperativa, da ‗qualidade dos serviços prestados‘
e, ainda, [o] permanente ‗aprimoramento intelectual‘ (também imperativo)‖, tendo em vista a
―degradação/precarização das condições de trabalho profissional‖. (BRAZ, 2004:61; grifos
do autor)
Pensando agora na dimensão jurídico-política, vemos que ela enfrenta dois grandes
desafios principais: um que atinge o âmbito mais geral da sociedade e outro que atinge
diretamente a profissão. O primeiro está relacionado aos contínuos ataques aos direitos
historicamente conquistados pela classe trabalhadora, desmantelando todo o aparato jurídico-
político que fundamenta esta dimensão, num contexto em que o aparelho estatal passa por um
processo de privatização, degradação e mercantilização. Perante este quadro, conforme Braz
(2004: 62; grifos do autor),
166
Estas atribuições estão expressas no artigo 5º da Lei 8.662 de 7 de junho de 1993.
145
167
Inclusive, um documento escrito por ele intitulado ―Carta ao Povo Brasileiro‖ dirigido ao mercado no mês de
agosto de 2002, durante sua campanha, deixou o fim deste projeto bastante claro. (cf. Braz, 2007)
146
para se contrapor à hegemonia do capital, instaurando uma crise aos grupos sociais que
buscavam uma direção e um revigoramento dos interesses dos trabalhadores, incluído aí o
Serviço Social.
Isso significa que, quando o projeto societário antagônico ao dominante,
representando, portanto, as perspectivas da classe trabalhadora entra em crise, ela se alastra
também aos projetos profissionais que a ele se conectam, como é o caso do nosso. Sua
hegemonia entre a categoria fica, assim, comprometida e uma série de questões são colocadas
para pensarmos a respeito deste debate. Braz (2007: 7) elenca algumas delas:
O segundo problema que o autor aponta para uma possível crise do projeto
profissional do Serviço Social reforça a precarização de suas bases materiais, ou seja, às
condições objetivas que determinam tanto sua formação, quanto seu exercício, já bastante
apontadas aqui. Ainda que o projeto represente uma imagem ideal da profissão com base na
realidade, é somente por meio das múltiplas determinações e da expressão de suas demandas
contraditórias que pode de fato se concretizar.
Braz (2007) traz outros elementos para pensarmos como a precarização da formação
profissional, analisada mais acima, rebate negativamente em nosso projeto ético-político
principalmente em dois aspectos. Uma formação de baixa qualidade pressupõe a perda de
prestígio perante seus usuários, as outras categorias com as quais trabalha, as instituições
empregadoras, enfim, a sociedade em geral. O aumento do seu contingente pode resultar em
mais oferta de trabalho do que a demanda, gerando um excedente de trabalhadores, cuja
consequência, conforme já vimos ao analisar esta situação no âmago da classe trabalhadora
em sua totalidade, é o aviltamento de sua média salarial, já bastante prejudicada, sendo que a
categoria não conta nem mesmo com a definição de um piso.
Além disso, há uma descaracterização de seu perfil profissional, uma vez que esse se
constrói desde a formação a partir de uma matriz teórico-metodológica voltada para a teoria
social crítica e de corte anticapitalista e que pressupõem a estruturação de assistentes sociais
de fato compromissados com o projeto societário contra-hegemônico, proveniente da classe
trabalhadora, além de desenvolverem competências técnicas, teóricas e políticas que estejam
sintonizadas aos interesses desta classe.
147
Entretanto, vimos que desde a crise eclodida na década de 1970, as saídas tradicionais
que o capitalismo encontrava para suas crises cíclicas já não vem se demonstrando suficientes
e eficazes, o que, após basear nossa análise principalmente em Mészáros, concordamos que
esta crise é, portanto, de caráter diferente. Não mais uma crise cíclica, mas sim uma crise
estrutural, da qual o sistema não pode se recuperar e atingir níveis de acumulação esperados
para um crescimento e desenvolvimento satisfatórios.
Ainda assim, somente a explosão das crises não conduz à superação do capitalismo,
ainda que possam atestar a derrocada iminente deste modo de produção. ―A substituição do
capitalismo por uma outra forma de organização econômico-social só pode ser o produto de
uma ação coletiva fundada numa vontade política que expresse o interesse histórico dos
trabalhadores‖, ou seja, a solução às contradições capitalistas só pode se dar no próprio plano
sociopolítico, ao se concretizar esta substituição ―do modo de produção capitalista por uma
organização superior e mais avançada da vida econômica, mediante um protagonismo político
dos trabalhadores que dirija um processo de transição socialista‖. (NETTO e BRAZ, 2011:
163;166; grifos originais)
Assim, chegamos à conclusão de que o capitalismo predatório e destrutivo de hoje
esgotou suas possibilidades civilizatórias168 e caminha para a devastação não só da
168
Marx (apud MÉSZÁROS, 2011b: 800) chegou a ressaltar tais possibilidades, atestando que foi através delas
que ―pela primeira vez, a natureza se torna puramente um objeto para a humanidade, puramente uma questão de
150
humanidade, mas possivelmente das condições naturais que permitem a vida orgânica, já que
em sua ânsia de subordinar a natureza aos seus desígnios de uma incessante acumulação,
muitas vezes entra em conflito com as próprias necessidades humanas. Reforçando essa ideia,
Netto (2012a: 426; grifos originais) aponta que ―na visão marxiana, desenvolvimento
capitalista é avanço civilizatório fundado na barbárie, verificável inclusive no tocante à
destruição da natureza‖. Mas a superação de tais crises só será possível, numa organização
social em que estejam suprimidas suas causas e que, portanto, supere o próprio modo de
produção capitalista.
Nesses tempos de crise, em que o capital precisa encontrar meios de recuperar seus
níveis de acumulação é que sua ofensiva torna-se ainda mais severa perante os trabalhadores,
que se veem em meio a uma intensa precarização das suas condições de vida e trabalho, a
perda de direitos historicamente conquistados com muita luta. Uma reação consistente a este
quadro de barbárie promovido pelo capitalismo contemporâneo deve se pautar por uma ação
consciente, guiada pelas próprias mediações da realidade.
Para o projeto ético-político do Serviço Social, isso representa enormes desafios
éticos, teóricos, práticos e políticos, uma vez que se agravam os antagonismos com relação ao
projeto societário com o que se conecta, configurando um contexto extremamente adverso aos
interesses que defende, já que, por sua estrutura básica, fica claro que ―se vincula a um
projeto societário que pressupõe a construção de uma nova ordem social, sem
exploração/dominação de classe, etnia e gênero‖, objetivo que só se fortalecerá numa aliança
com categorias profissionais de projetos semelhantes e com movimentos sociais voltados para
os interesses da classe trabalhadora. (NETTO, 2009: 155; grifos originais)
Entendemos que, apesar destes grandes desafios e questões frente a ofensiva do
capital, nosso projeto ético-político não está em crise, mas o que torna este momento tão
crítico e exige atenção e cuidado por parte dos assistentes sociais é que a hegemonia deste
projeto está ameaçada, conforme vimos no último capítulo. Concordamos com Mota (2012:
39), quando a autora diz que mesmo diante deste quadro tão adverso, o Serviço Social
brasileiro ―avança em tempos de crise e construção de hegemonia, produzindo referências
teórico-metodológicas que abordam a complexa relação entre a luta pela emancipação política
e o horizonte da emancipação humana‖.
utilidade; cessa de ser reconhecida como um poder em si mesma; e a descoberta teórica de suas leis autônomas
aparece apenas como um ardil para submetê-la às necessidades humanas, como um objeto de consumo ou como
meio de produção. De acordo com esta tendência, o capital ultrapassa as barreiras e os preconceitos nacionais, a
adoração da natureza, assim como também todas as satisfações tradicionais, limitadas, complacentes, embutidas,
das necessidades presentes e as reproduções dos velhos modos de vida‖.
151
Tendo isso em mente, para evitar que se chegue de fato a uma crise do projeto, o que
comprometeria todas as determinações da profissão, cabe à categoria estar pronta para
enfrentar estes desafios e encontrar meios para fortalecer nosso projeto ético-político,
encontrando respostas eficazes tanto para o cenário caótico que enfrenta o sistema capitalista,
já que implica não só em novas demandas, mas em piores condições de trabalho para os
assistentes sociais, como para questões internas à profissão, como o preocupante avanço do
neoconservadorismo, conforme verificamos.
Assim, o fortalecimento do nosso projeto ético-político hegemônico depende não só da
coesão da categoria profissional, mas também dos setores democráticos e populares com os
quais compartilha perspectivas em comum. Analisaremos, assim, algumas das possíveis
respostas e estratégias que podemos construir no contexto atual, de acordo com a direção
social contida em seu projeto ético-político, calcado em valores e em uma visão de mundo
que vem sendo construída há pelo menos três décadas.
Diante de tantas mudanças, é de vital importância que os assistentes sociais se
empenhem em decifrar as mediações políticas e ideológicas da ―questão social‖ na
contemporaneidade, que se dediquem aos estudos históricos sobre o Brasil contemporâneo,
algo fundamental para podermos acompanhar as ―mudanças macrossocietárias e suas
expressões conjunturais, subsidiando a leitura das forças e sujeitos sociais que incidem no
exercício profissional, condição para elucidar o seu significado social na sociedade nacional‖.
(IAMAMOTO, 2014: 632)
Braz (2007:10; grifos do autor) aponta que uma importante tarefa colocada à categoria
―está na capacidade de identificar formas de viabilização prático-política para o projeto
profissional que, como todo projeto coletivo, depende de sustentabilidade histórica169 para se
reproduzir como tal no movimento da sociedade‖.
Isso deve ser feito a partir de uma sólida fundamentação teórica que nos permita
analisar e problematizar o contexto histórico e as suas recentes transformações, analisando de
forma bem estruturada de que forma isso reflete como demanda para o seu trabalho e que
propostas de intervenção podem sugerir enquanto sujeito coletivo compromissado com um
projeto profissional de corte anticapitalista e, portanto, tensionado pela hegemonia do projeto
societário atual.
Essa fundamentação deve estar assentada no domínio não só das categorias
ontológicas e reflexivas que nos levam a compreender os fenômenos sociais na sua essência e
169
De acordo com Braz (2007:10), ―o termo é de Mészáros, presente no livro O poder da ideologia (São Paulo,
Ensaio;1996)‖.
152
de que forma se expressam na realidade e ainda, em um cenário mais específico, das políticas
institucionais e seus processos de efetivação para que nossas propostas tenham, de fato, uma
eficácia objetiva.
Certamente, no exercício profissional cotidiano certas situações exigem ações mais
pontuais e imediatas, quando a segurança, a saúde ou até a própria vida dos usuários
estiverem em risco, mas isso não pode impedir que o assistente social busque ultrapassar
essas expressões de singularidade e estabelecer a mediação entre elas e a totalidade social que
as determina. Isso demanda um aprofundamento dos estudos, da pesquisa e de análises
dialéticas da conjuntura em que está inserido, caso contrário, corre-se o risco de cair nas
práticas meramente técnicas de avaliação do processo e resultados, desconsiderando todo esse
aparato teórico-político e a perspectiva de totalidade.
No campo da atuação profissional, é de vital importância também que busquemos uma
maior aproximação com a população contemplada por nossas ações, para, obtermos uma
apreensão melhor das suas condições de vida e, portanto, das suas reais necessidades,
identificando as expressões da ―questão social‖ que estão presentes nas demandas que nos são
colocadas. Com isso, o assistente social pode criar respostas inovadoras, evitando que na
prática promova ―um discurso de compromisso ético-político com a população, sobreposto a
uma relação de estranhamento perante essa população, reeditando programas e projetos
alheios às suas necessidades, ainda que em nome do compromisso‖. (IAMAMOTO, 2012: 57)
Precisamos, ainda, aprofundar e multiplicar as pesquisas também no campo das
alterações que os assistentes sociais vem enfrentando no mercado de trabalho e nos seus
espaços ocupacionais, seja no âmbito do Estado, empresarial ou do chamado ―terceiro setor‖
focalizando as respostas profissionais que vem sendo designadas às demandas por políticas e
serviços e as relações com os respectivos usuários.
Além disso, é fundamental assumirmos uma postura crítica diante dos entraves
institucionais com os quais nos deparamos no dia-a-dia de nossa atuação profissional, agindo
sempre no sentido de potencializar nossa autonomia de acordo com os princípios inscritos em
nosso projeto. Concordamos com Faleiros (2014: 719), quando afirma que ―é preciso
enfrentar a burocracia como forma de enfrentar o poder dominante, colocar os meios a serviço
dos fins, os resultados para o público em vez dos resultados para o olhar do gestor‖.
Conforme bem aponta Mota (2014: 701-2; grifos originais), faz-se imperativa a
Podemos inferir então que, se o espaço institucional nos coloca inúmeros limites à
uma atuação compromissada com nosso projeto ético-político, é nele que também estão postas
as possibilidades, pois é onde o assistente social deverá aprender a mediar, ante as exigências
institucionais, respostas para as necessidades que garantirão a reprodução da força de trabalho
— ou seja, que atenderão, de certa forma, aos interesses da classe trabalhadora e podem se
organizar coletivamente para insurgirem-se contra esta condição.
Compreendemos que os espaços institucionais estão inseridos no quadro mais geral da
luta de classes, expressa principalmente ―por ações de resistência e de alianças estratégicas no
jogo da política em suas múltiplas dimensões‖, já que a ―questão social é luta, é disputa pela
riqueza socialmente construída‖. Dentre essas ações de resistência podem ser considerados os
próprios espaços dos movimentos, conselhos e fóruns, importantes de serem ocupados.
(YAZBEK, 2014: 686)
Portanto, cabe ao assistente social fazer valer sua relativa autonomia profissional para
buscar mediações que ampliem suas possibilidades de atuação para além daquelas impostas
pelas relações de trabalho, na dinâmica das relações de poder hegemônicas e contra-
hegemônicas, procurando superar as barreiras do controle institucional para de fato dar
materialidade ao nosso projeto profissional, encontrando caminhos para que ele se concretize
na realidade social.
Acreditamos que o que permite a uma categoria construir um projeto compromissado
com os interesses da classe trabalhadora e configurar estratégias para sua efetivação são
justamente as forças político-sociais presentes na dinâmica própria da luta de classes. Para
isso, conforme apontamos, é preciso um perfil profissional com capacidade de analisar a
realidade na qual está inserido para identificar as possibilidades e limites à realização do seu
projeto, que tenha habilidades desenvolvidas de negociação com a instituição à qual está
vinculado para implementar suas propostas, projetos e ações e garantir que de fato tenha
possibilidades de exercer suas competências e atribuições privativas de forma qualificada.
Com relação à redução do Serviço Social a uma profissão da assistência, conforme
apontou Netto (2007), lembramos que inúmeros segmentos da nossa categoria, respaldados
por nossas entidades representativas, empreendem séria crítica a esta ideia, procurando
reforçar um projeto profissional que se expanda para além da lógica de assistencialização da
154
nossa profissão. Certamente que o governo é um grande propagador dessa lógica, procurando
incuti-la no cerne do Serviço Social, mas não é esse o tom que vemos prevalecer nos debater
internos e nem é a que está presente no nosso projeto ético-político, apesar de ser observado
em ampla parcela da prática profissional no mercado de trabalho.
Os estudos sobre a formação profissional, no panorama mais amplo da mercantilização
e privatização do ensino superior, também precisam ser expandidos, buscando meios para
superar a subjugação do conhecimento à lógica do mercado e a alienação das pesquisas
científicas e promover a qualificação dos futuros assistentes sociais.
A identificação das vertentes teórico-metodológicas que mais fazem frente no debate
sobre a profissão também é importante para que possamos estimular um diálogo frutífero e
respeitoso entre as diversas perspectivas, tendo como norte o compromisso firmado no projeto
profissional com a justiça social e os direitos humanos.
Precisamos ter em vista também que é fundamental estabelecermos uma unidade entre
todo o acúmulo teórico-político do Serviço Social nestas últimas décadas e as dimensões da
formação e da prática profissional. Esta relação profícua entre universidade, mercado de
trabalho e organizações da categoria poderá contribuir com o enfrentamento das inúmeras
adversidades que os assistentes sociais encontram nas instituições, tornando-as objeto de
pesquisa no âmbito acadêmico e devolvendo seus resultados para enriquecer tanto a formação
como a prática profissional, o que certamente fortalecerá também o projeto de esquerda do
Serviço Social.
Para complementar essa questão, Faleiros (2014) lembra que ―o questionamento dos
poderes dominantes passa pelo questionamento do poder e do saber profissional‖, cujas
teorias não devem ser vistas como descoladas da prática, mas como ―um processo de
fecundação que envolve a ciência construída como as referências existenciais‖. A partir de tal
perspectiva, compreendemos que
A autora (Idem) consegue descrever de forma bastante peculiar algumas das principais
conquistas que tal patrimônio foi capaz de atingir e as possibilidades que ele ainda abre para
um avanço ainda maior, que consideramos conveniente reproduzi-las aqui de forma integral,
já que contribuiu como parte importante (e diríamos até fundamental) para alcançarmos as
conclusões no processo de elaboração desta dissertação:
Yazbek (2014: 690) entende que este patrimônio é fruto de uma construção coletiva e
foi fortalecido pelos organismos político-representativos da profissão, que possuem
capilaridade organizativa e legitimidade política, a qual está expressa através das leis de
regulamentação da profissão e no seu Código de Ética, ―assim como nas múltiplas decisões,
deliberações que reafirmam o fortalecimento do projeto ético-político profissional e a
organização coletiva da categoria profissional‖.
Fortalecer esta nossa organização política é fundamental para conseguirmos manter a
hegemonia de nosso projeto ético-político atual, o que não é tarefa das mais simples, já que,
conforme verificamos, a grande ofensiva ideológica do capital ataca não somente as nossas,
mas todos os espaços de organização dos trabalhadores, procurando coibir a ação política
desta classe. É pensando nisso que precisamos urgentemente participar da construção coletiva
de uma contra-hegemonia ao projeto societário atual, revigorando nossa resistência e
capacidade de luta, resistindo à reação burguesa conservadora e são as nossas entidades
representativas que podem concentrar nossos esforços neste sentido.
Yazbek (Idem) lembra ainda que a força destas entidades pode ser observada a partir
dos ―muitos eventos da categoria, sejam acadêmicos sejam aqueles resultantes da experiência
associativa dos profissionais, como suas convenções, congressos, encontros e seminários‖.
Além disso, são esses fatores que conferem às organizações do Serviço Social ―um caráter de
intelectual coletivo, capaz de articular, organizar e pactuar a presença dos assistentes sociais
nas lutas coletivas e em movimentos sociais mais amplos, na direção da construção de outra
ordem societária‖.
Precisamos compreender, no entanto, que essa construção depende de fatores que
ultrapassam o âmbito interno da profissão, já que ela só será possível se nos articularmos com
uma forte base social de sustentação. Considerando que as bases sociais do projeto ético-
político do Serviço Social foram dadas na conjuntura de luta pela redemocratização do país
pela relação de seus quadros progressistas com a organização dos trabalhadores e os
movimentos democrático-populares, entendemos que ―a nossa força política está articulada,
ainda que não seja de forma mecânica, ao avanço dessa base social, que tem como
157
Aqui, mais uma vez cabe deixar claras as diferenças entre pluralismo e ecletismo
como constituintes desse processo. Uma perspectiva plural supõe a diversidade,
supõe o diálogo entre posições, correntes teóricos/metodológicos, mas não concilia o
inconciliável e muito menos abre mão da direção hegemônica. É cada vez mais
evidente que diferentes projetos sociopolíticos societários e da profissão se
confrontam nesse processo. O projeto neoconservador valendo-se de novas
roupagens, fragmentará cada vez mais as análises e ações do profissional.
(YAZBEK, 2014: 687)
mesmo que não se tenha consciência dessas dimensões, elas estão presentes,
necessitando ser desvendadas. Por conseguinte, no processo de apreensão do real
pela consciência, parte-se do singular para o universal, mas sendo preciso voltar ao
singular. Essas passagens são mediatizadas pela categoria da particularidade. Assim,
conhecer o real é [...] investigar suas relações em sua totalidade. O singular só pode
ser cientificamente conhecido quando se esclarecem as universalidades e
particularidades histórico-sociais que intervêm sobre esse singular, o que faz com
que todo singular seja universal e todo universal só apareça no singular.
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Segundo o autor, o conceito de ―legalidade social‖ refere-se a ―forças tendenciais que historicamente se
impõem à sociedade e por ela também é construída demarcando certos condicionamentos do ser social.‖
(PONTES, 1999: 40). Como exemplo dessas ―leis tendenciais‖, Pontes (1999: 47) cita as ―leis de mercado,
relações políticas de dominação etc.‖
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24), ―a totalidade é uma categoria que existe na realidade e que é reconstruída teoricamente
enquanto um princípio teórico metodológico recuperado para a análise do social‖.
Para Marx, é a própria realidade que confirma a veracidade da teoria: ―é na práxis que
o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu
pensamento‖. (MARX, 2006b:111-112)
No entanto, somente uma teoria que fortaleça a consciência da práxis é que abre a
possibilidade da transformação, como é a teoria revolucionária, a qual ―não se desenvolve em
nome da Teoria mesma, e sim em nome da práxis; é uma teoria baseada na prática que tende,
por sua vez, a resolver – justamente por seu caráter rigoroso, científico, objetivo – as
contradições que se apresentam real e efetivamente‖. (VÁZQUEZ, 1990:230)
A teoria social de Marx se distingue das outras, pois é justamente esta sua intenção,
como ele mesmo diz: ―os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras;
o que importa é transformá-lo‖. (MARX, 2006b: 113; grifos originais)
Vemos, assim, como é importante que o profissional apreenda a essência de seus
objetos de intervenção, no sentido de orientar uma prática que reflita as necessidades
objetivas do que está em pauta. Para isso, é necessário que se aproprie da teoria social de
Marx e de seu método, o que nos possibilitará produzir uma prática não só comprometida com
o nosso projeto ético-político, mas que atua como ―uma efetiva forma de resistência e de luta
contra a barbárie, que também fortalece o projeto de emancipação humana‖. (PONTES,
1999:48-49)
Na sociedade atual, em que o capitalismo está à beira do abismo, ele encontra, de
acordo com Hobsbawm (apud Netto 2012b: 81), três questões problemáticas fundamentais: ―a
crescente diferença entre o mundo rico e o mundo pobre (e provavelmente entre os ricos e os
pobres no interior do mundo rico); a ascensão do racismo e da xenofobia; e a crise ecológica‖.
Assim, Netto (2012b) entende que esta crise global somente poderá ser superada a partir de
respostas positivas para estas questões, caso contrário, sucumbirá ao rumo inevitável para o
qual aponta a proposta neoliberal.
Diante disso, são colocadas duas vias principais de realização – o aprofundamento da
regressão que esta proposta impõe, levando à manutenção deste quadro de barbárie, ou ―a
superação das formas de sociabilidade fundadas no modo de produção capitalista, a
ultrapassagem das organizações societárias assentadas na propriedade privada dos meios
fundamentais de produção e na decisão privada da alocação do excedente econômico‖. Ou
seja, ―repõe-se agora como atual, e de modo dramaticamente atual, a opção expressa na
antiga fórmula – socialismo ou barbárie‖. E devemos lembrar que ―se a barbárie é a
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se acreditamos que a história não acabou e que a luta por uma outra sociedade é
possível, também não acreditamos que nosso projeto profissional esteja em crise.
Acreditamos, sim, que é um projeto tensionado pela ofensividade dos mecanismos
capitalistas de superação da crise. Todavia, compreendo que em determinadas
conjunturas, os elementos que compõem o projeto profissional podem ter pesos e
estruturas diferenciadas; e, neste momento em que as resistências são tênues, porém
reais, a prática político-organizativa é essencial, posto que deve estabelecer o elo
entre a formação profissional e a formação política da categoria profissional.
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