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VI.

O cruzamento dos círculos sociais1

A diferença entre o pensamento culto e o pensamento pouco cultivado se


manifesta na diversidade dos motivos que determinam as associações entre as
representações. A coincidência casual no espaço e no tempo basta de início para as
representações se associarem psicologicamente. A reunião de propriedades, que
constitui um objeto concreto, aparece originariamente como a unidade de um todo,
em que cada propriedade está em estreita conexão associativa com aquelas outras
em cujas proximidades é observada. Não tomamos consciência da existência de
cada propriedade como conteúdo autônomo representável até que elas se
apresentem como combinações diferentes. Então, percebemos o que todas essas
representações têm de igual e, ao mesmo tempo em que as vemos reciprocamente
ligadas, apreendemo-las cada vez mais liberadas de sua convivência meramente
casual com o objeto ao qual antes as tínhamos visto unidas. Desse modo, a
associação se libera da sugestão da percepção atual, e doravante repousará sobre o
conteúdo das representações, conteúdo este que se converte então na base sobre a
qual se constroem os conceitos superiores, que paralelamente se separam de sua
combinação circunstancial com as realidades mais diversas.
Esta evolução que se verifica nas representações, tem sua analogia nas
relações dos indivíduos entre si. O indivíduo se vê em primeiro lugar num ambiente
que, relativamente indiferente a sua individualidade, o encadeia a seu próprio destino
e lhe impõe uma estreita convivência ao lado de pessoas que o acaso do nascimento
tornou seus próximos. Esse “primeiro lugar” deve ser entendido em referência ao
estágio inicial tanto da evolução filogenética como do desenvolvimento ontogênico.
No entanto, de forma continuada, esse processo passa a estabelecer relações
associativas entre elementos homogêneos de círculos heterogêneos. Assim, a
família contém em si um número de individualidades diversas que, no começo, são
rigorosamente dependentes dessa associação. Mas, à medida que vão progredindo,
os indivíduos se relacionam com pessoas fora do círculo primário de associação que,

1
Uma parte deste capítulo foi tomada em empréstimo a nossa obra Über soziale Differenzierung.
Soziologische und psychologische Untersuchungen, Kapitel V. (NS) [Sobre a diferenciação social.
Estudos sociológicos e psicológicos, Capítulo V, publicada originariamente por Duncker & Humblot,
Leipzig, 1890. (NT)]
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ao contrário, têm com ele uma relação fundada objetivamente sobre as mesmas
disposições, inclinações, atividades, etc. E, deste modo, a associação baseada na
convivência exterior é substituída cada vez mais por uma associação fundada nas
relações de conteúdo. Da mesma maneira que o conceito mais abrangente reúne o
que um grande número de intuições muito diversas tem em comum, assim os pontos
de vista práticos mais abrangentes reúnem os indivíduos similares provenientes de
grupos totalmente estranhos entre si e sem vínculos recíprocos. Surgem, assim,
novos círculos de contato, que se entrecruzam nos mais diversos ângulos com os
círculos precedentes, relativamente mais naturais e constituídos com base nos
sentidos.
Lembraremos, por exemplo, que os grupos independentes, cujas associações
antigamente constituíram as universidades, estavam divididos segundo a
nacionalidade dos estudantes. Mais tarde, este modo de repartição foi substituído
pelas comunidades de estudos, que levaram às faculdades. Neste caso, vê-se com
muita clareza, como a comunidade geográfica e fisiológica, determinada pelo
terminus a quo, foi substituída radicalmente por outra síntese elaborada a partir do
ponto de vista da finalidade, do interesse interno e objetivo ou, se quisermos,
individual. Na mesma forma, ainda que em condições um pouco mais complexas, foi
produzida a evolução dos sindicatos ingleses. Inicialmente, reinava neles a tendência
a definir os diversos grupos pelo recrutamento local, excluindo-se os operários que
vinham de fora, critério que resultou em irremediáveis atritos e inveja entre as seções
assim divididas. Mas este estágio foi superado lentamente quando os operários
tentaram agrupar-se por profissão em todo o país. O fato seguinte, por exemplo,
consagrou essa mudança de forma. Quando os tecelões de algodão se pronunciaram
pela generalização de uma remuneração salarial uniforme por peça produzida se viu
claramente que essa reivindicação teria por consequência a concentração da
indústria nos centros favoravelmente localizados e significaria a ruína dos povoados
mais afastados. Todavia, até os representantes dessas localidades remotas votaram
a favor da remuneração salarial uniforme porque era o melhor para o conjunto da
profissão. Muito embora inicialmente se tratasse apenas de operários associados
com base numa atividade semelhante, a ênfase dessas associações recaía na
vizinhança geográfica, o que levava, sem dúvida, a cada profissão a estabelecer
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contatos mais estreitos com outras associações de trabalhadores estabelecidas na


mesma localidade, mesmo ante diferenças de conteúdo das atividades laborais. No
decurso do processo evolutivo, a associação abandonou esta relação local, na
medida em que só a identidade da atividade determinou suas relações. Já não foi
mais a cidade – como ressalta um historiador dos sindicatos para explicar esta
transformação – mas a profissão que passou a ser a unidade de referência da
organização operária.
É evidente que um elemento de liberdade atua aqui, pois ainda que a posição
individual do operário seja muito dependente, a pertença a uma profissão supõe, em
geral, maior liberdade de escolha do que a pertença a uma cidade. De resto, todo esse
tipo de evolução aqui apreciado ilustra uma tendência muito clara para o aumento de
liberdade: não se suprime a sujeição, mas se concede liberdade para escolher o grupo
a estar sujeito. Pois, contrariamente ao vínculo geográfico e, de modo geral, a todos
aqueles que não revelam a vontade pessoal do sujeito, os vínculos livremente
escolhidos frequentemente expressam a verdadeira natureza daquele que faz a
escolha e, por conseguinte, os agrupamentos que resultam desse tipo de opções se
assentarão sobre relações objetivas, isto é, ficarão arraigadas no próprio ser dos
sujeitos. Por essas razões pode ser conveniente continuar a utilizar a solidez formal
da associação assim constituída com vista a atingir objetivos bastante afastados da
principal razão de sua criação. Nas sissítias2 espartanas, os cidadãos se sentavam à
mesa em grupos de 15 e escolhiam livremente sua tábua. No entanto, bastava um
voto contrario para rejeitar àquele que solicitava ingressar ao grupo. Tal comunidade
de mesa serviu depois de base para a organização do exército. Desta maneira, as
tendências e simpatias individuais substituíram as relações de vizinhança e
parentesco na formação das comunidades. A organização do exército era muito
rígida e objetiva, mas entre ela e a relação de vizinhança ou de sangue (que, à sua
maneira, também é impessoal) a escolha da sissítia era uma espécie de articulação
flexível que infundia o sentido racional da associação livre na racionalidade da
organização militar baseada em outros princípios. Mas, fora dessa técnica particular
empregada na organização do exército, a supremacia absoluta da força armada entre

2
Refeições em comum realizadas amiúde à tarde pelos homens das cidades dóricas, especialmente
em Esparta e Creta. (NT)
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os espartanos tinha já conseguido vencer o poder das associações por clãs. No resto
da Grécia, cada subdivisão do exército estava constituída por um mesmo clã ou por
um mesmo distrito; unicamente em Esparta o interesse militar objetivo superou tais
preconceitos, determinando por si só a divisão do exército.
Mesmo nos povos da natureza, como os africanos, observa-se como as
formações guerreiras centralizadas destroem a organização das tribos. Ademais, na
medida que as mulheres são em geral as representantes do princípio de associação
natural de tipo familiar, entende-se bem por que, nas organizações guerreiras, existe
uma hostilidade explícita contra tudo o que é feminino, estando as mulheres
desprovidas de poder social. O matriarcado, relativamente frequente nos povos
guerreiros, pode advir, por um lado, da separação rigorosa entre a vida civil e a vida
militar e, por outro, de motivos profundamente enraizados na psicologia pessoal. O
guerreiro é, com certeza, tirânico e brutal em casa, mas chega a ela fatigado, gosta
da comodidade física e do repouso, bastando que alguém cuide dele e se encarregue
de dirigir os assuntos práticos do lar para que fique apaziguado e indolente,
descuidado e satisfeito. Porém, não existe qualquer relação entre esses aspectos da
vida civil e o ponto de vista objetivo que faz explodir a tribo, e que cria a partir de seus
fragmentos uma nova entidade puramente racional. A questão decisiva aqui é que os
guerreiros formam um todo organizado a partir de interesses militares e excluem
quaisquer outros propósitos. Para atender outra perspectiva, os guerreiros podem,
sem dúvida, dispersar-se de novo em associações absolutamente diferentes, as
quais, todavia, seriam irracionais se interferissem com o todo organizado da primeira
associação.
Na escolha de companheiros da sissítia espartana, a liberdade era um
princípio de racionalização – o que frequentemente não é. Pois, graças a ela, as
qualidades da pessoa eram os fundamentos decisivos da união – um motivo de
associação totalmente novo e revolucionário que, apesar do viés arbitrário e
irracional que pudesse haver em outras circunstâncias, era claramente
compreensível, contrariando os motivos até então prevalentes. Nesse mesmo
sentido a “liberdade de associação” atuou nos três últimos séculos da Idade Média
germânica. Nos primeiros tempos das comunidades aldeãs livres a associação dos
membros derivava de sua localização geográfica; depois, na época feudal, a relação
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com um único senhor criou outra razão de unir-se muito distinta, porém claramente
externa; deveu-se aguardar o reconhecimento da “liberdade de associação” para que
esse fundamento passasse a ser a própria vontade dos indivíduos agrupados.
Compreende-se facilmente que isso conduziu ao surgimento de formações
absolutamente singulares para a vida em comum dos indivíduos, assim que aqueles
antigos motivos (que pareciam obedecer sobretudo ao destino e estavam longe de
assentar-se nas pessoas) foram substituídos ou neutralizados por outros
fundamentos espontâneos.
Todavia, a forma de associação posterior desenvolvida sobre um modo
anterior e originário, não é necessariamente mais racional. Suas consequências, para
a vida interior do indivíduo e para sua posição exterior, adquirem nuances
particulares quando as duas espécies de vínculos que o governam (os irrelevantes à
vontade pessoal do sujeito e os livremente escolhidos) estão fundadas em causas
igualmente profundas e orgânicas, situadas para além do seu livre arbítrio ou
fantasia. Os indígenas da Austrália, de cultura social pouco desenvolvida, vivem em
pequenas bandas de caçadores coletores, relativamente muito unidas. Ademais,
todos eles se dividem em cinco gentes ou associações totêmicas, de modo que, em
cada banda, se encontram membros de diversas gentes, e cada gente se estende
sobre várias bandas. Dentro da banda, os membros do clã totêmico não formam uma
união rígida. Seu vínculo perpassa igualmente todas essas divisões, constituindo
todos juntos uma grande família. Quando, numa batalha entre duas bandas, os
membros do mesmo clã totêmico se encontram, eles se evitam reciprocamente e
procuram outro adversário (o mesmo se refere, também, dos habitantes das ilhas
Mortlack). As relações sexuais entre homens e mulheres se conformam
simplesmente aos vínculos de pertença à mesma gente, ainda que os parceiros
nunca se tenham encontrado antes, por pertencerem a bandas diferentes. Para estes
entes de parcos recursos, incapazes de um modo de associação verdadeiramente
racional, pertencer a dois grupos, rigorosamente separados de modo horizontal e
vertical, significa com certeza um enriquecimento de seu sentimento de vida, tensão
e duplicação da existência que de outro modo não poderiam viabilizar.
Outro cruzamento de forma igual, mas de conteúdo e efeitos muito diversos,
ocorre na vida familiar das sociedades complexas, em virtude da pertença a um
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mesmo gênero. Quando, por exemplo, a mãe do marido intervém numa briga
conjugal, seus instintos – na medida em que agem a priori, e independentemente dos
aspectos específicos de cada caso – tenderão a defender as razões do filho, que é
do seu sangue e, outras vezes, mais para a nora, que é de seu gênero. A comunidade
de gênero figura entre os motivos de associação que perpassam constantemente a
vida sociológica e se entrecruzam com todos os demais, das mais variadas maneiras
e com diversos alcances. Em geral, funcionará como uma causa orgânica, natural,
em face da qual a maioria das outras terá algo de natureza individual, voluntária e
consciente. Todavia, no caso mencionado, talvez se possa ter o sentimento de que a
relação entre mãe e filho é determinada e age naturalmente, ao passo que a
solidariedade entre duas mulheres é uma coisa à parte, refletida, mais importante
como conceito universal do que como energia imediata. A comunidade de gênero
constitui muitas vezes um tipo especial de motivo de associação: em sua realidade
concreta, ela é absolutamente primária, fundamental, oposta a todo arbítrio. Para
tornar-se ativa, entretanto, precisa amiúde de mediação, de reflexões e atividades
conscientes, a tal ponto que outra motivação objetivamente mais tardia e fortuita,
pode funcionar ante a comunidade de gênero como primária e necessária
– confirmando mais uma vez o ditado segundo o qual “o último pros hemas (para
nós), é o primeiro phusei (por natureza)”3.
No que diz respeito a essa posição intermédia entre o caráter orgânico e o
racional, o motivo sociológico da comunidade com afinidade por idade se assemelha
formalmente à comunidade de gênero, podendo inclusive constituir, em
circunstâncias pouco complexas, um princípio que sirva de base à divisão do grupo
por inteiro. Assim, em Esparta, por volta do ano 220 a.C., os partidos políticos se
designavam com os nomes de presbíteroi (anciões), néoi (jovens), neanískoi (moços
– na flor da idade), etc. Em alguns povos da natureza os homens se organizam em
classes de idade. E cada uma delas se atribui uma posição social diversa, assim
como distintas funções e maneiras de viver. Tal motivo de associação é
absolutamente pessoal e, ao mesmo tempo, cabalmente supraindividual,
Aparentemente, a associação só é possível dessa forma supraindividual onde a

3
Por razões tipográficas optamos por transliterar em caracteres latinos as palavras gregas escritas
em itálico neste e no parágrafo seguinte, e que figuram em caracteres gregos no original do autor. (NT)
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cultura não possui ainda nenhum patrimônio intelectual objetivo e suficientemente


extenso. Isso porque, essa espécie de acervo favorece o desenvolvimento das
diversidades individuais do intelecto, as tendências espirituais e a assunção de
posições em função das ideias, o que, no seu conjunto, permite que indivíduos de
classes de idade absolutamente diferentes possam sentir-se em comunidade. Tal
ausência de conteúdo intelectual apropriado é uma das razões pelas quais a
juventude é bastante solidária, a mocidade se sente muito mais atraída pela gente
jovem – amiúde com surpreendente indiferença a respeito da individualidade – do
que os idosos por pessoas de sua idade. A divisão em classes de idade reúne – ainda
que de maneira extremamente imperfeita – personalismo e objetividade como
motivos de associação. Neste caso, os elementos opostos cuja diferença é
geralmente acentuada, a saber, o orgânico e o racional, se combinam. Um fato
absolutamente orgânico e até fisiológico da vida individual se transforma em um
meio de associação, graças a uma energia puramente conceitual e em virtude de uma
síntese deliberada e consciente: a determinação puramente natural e pessoal da
idade age assim como um princípio plenamente objetivo. É compreensível que em
estágios pouco desenvolvidos, limitados por valores morais, intelectuais e
psicológicos, este ponto de apoio firme adquira grande importância para a estrutura
social – pois como escapa a todo arbítrio caprichoso, seu conteúdo é imediatamente
percebido sem necessitar de raciocínio ou análise e determina o sentimento da vida.
Vimos acima um dos exemplos mais simples da maneira com que um círculo
constituído em função de pontos de vista objetivos pode erigir-se por cima de um
círculo orgânico imediato. Referimo-nos ao caso em que a coesão primitiva do grupo
familiar se altera porque a individualidade de um (ou vários) de seus membros
ingressa em um círculo maior. Um dos modelos mais desenvolvidos deste processo
é o da “república dos sábios”, associação meio ideal, meio real, de todas as
personalidades que compartilham, em geral, o objetivo de alcançar um fim tão
universal como o conhecimento, e que pertencem aos mais diversos grupos
referentes à nacionalidade, aos interesses pessoais e gerais, à posição social, etc.
Foi na época da Renascença que apareceu, muito mais forte do que em nossos dias,
esse interesse espiritual e cultural que conseguiu unir numa comunidade nova os
mais heterogêneos elementos, pertencentes a diferentes círculos, mas aparentados
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por um mesmo ideal. O interesse humanista quebrou o isolamento medieval dos


círculos e das classes sociais e deu a pessoas que procediam dos horizontes mais
díspares, e que frequentemente permaneciam fiéis às mais variadas profissões, uma
participação comum, ativa ou passiva, na produção de ideias e conhecimentos,
cruzando de diferentes maneiras as formas e as divisões da vida que vigoravam até
então. Foi justamente o fato de o humanismo entrar nesta época em todos os povos
e círculos como algo que lhes era igualmente estranho, que o habilitou a converter-
se também em um campo comum a todos, ou melhor, a elementos procedentes de
todas as esferas. Reinava a ideia de que existia uma comunidade entre as pessoas
que se distinguiam por seu brilhantismo ou qualidades dignas de louvor, como o
4
demonstram as coletâneas de biografias que aparecem no Quattrocento ,
descrevendo em uma obra unitária Indivíduos eminentes enquanto tais, quem quer
que eles fossem: teólogos, artistas, filólogos ou homens de estado. È característico
que os homens políticos, precisamente, reconhecessem esse fundamento de uma
nova hierarquia, de uma nova análise e síntese dos círculos, por assim dizer. Roberto
de Nápoles 5 se torna amigo íntimo de Petrarca 6 e presenteia-o com seu próprio
manto de púrpura. Duzentos anos mais tarde, este motivo sociológico tinha perdido
sua forma lírica e adquirido uma feição mais objetiva e rigorosamente definida: o rei
da França Francisco I quis transformar o círculo consagrado aos estudos puramente
especulativos em um círculo totalmente autônomo e Independente, mesmo
relativamente às universidades. Ao lado destas, que estavam destinadas à formação
de teólogos e juristas, devia existir uma espécie de academia, cujos membros se
consagrariam à pesquisa e ao ensino sem nenhum fim prático 7. Foi na sequência
dessa separação que se estabelecera o diálogo entre o estritamente intelectual, por

4
A expressão Quattrocento refere-se aos eventos culturais e artísticos do século XV na Itália
analisados em conjunto. Engloba tanto o final da Idade Média quanto o começo da Renascença. (NT)
5
Roberto I de Nápoles, cognominado O Sábio (1278 -1343), foi um nobre napolitano da Casa capetiana
de Anjú, Rei de Nápoles, Duque da Calábria, rei titular de Jerusalém, e conde da Provença e Forcalquier.
(NT)
6
Francisco Petrarca (1304 – 1374) foi um intelectual, poeta e humanista italiano, famoso,
principalmente, devido ao seu romanceiro, sendo considerado o inventor do soneto. Baseado no
trabalho de Petrarca (e também nos de Dante e Boccaccio) Pietro Bembo criou, no século XVI, o
modelo para o italiano moderno. (NT)
7
Trata-se do Colégio de França,. Este estabelecimento de ensino superior foi fundado, como dito, por
Francisco I em 1530, para atender a um pedido do erudito Guilherme Budé. Originariamente
denominado Colégio Real, teve diferentes designações (Colégio das Três Línguas, Colégio Nacional e
Colégio Imperial), antes de receber seu nome atual em 1870. Com sede em Paris, a instituição segue
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uma parte, e todo o resto que pudesse ter algum valor. Essa separação permitiu que
o Senado de Veneza escrevesse à Cúria romana, quando extraditou a Giordano
Bruno8, que este era “um dos mais perigosos hereges”, que tinha feito “as coisas mais
repreensíveis e levado uma vida devassa e quase diabólica”, mas que, “de resto, é um
dos espíritos mais distintos que se possa imaginar, dono de uma sabedoria maior e
de uma infrequente abertura de espírito”. O humor vagabundo, assim como o espírito
aventureiro dos humanistas, e até mesmo seu caráter às vezes volúvel e imprevisível,
correspondia à independência do espiritual a respeito de todas as demais exigências
impostas aos homens – autonomia que era o âmago da vida dos humanistas e os
fez indiferentes às necessidades. Evoluindo na paisagem variegada das diversas
formas de vida, cada um dos humanistas reproduzia a condição do humanismo, que
abrangia em um único quadro de interesse intelectual o pobre monge erudito e o
grande capitão ou a magnificente princesa. O que abriu caminho para a ocorrência
de um fato extremamente importante para determinar com precisão e exatidão a
estrutura da sociedade: a possibilidade de utilizar o critério da intelectualidade como
princípio para a diferenciação e formação de círculos novos – algo do qual já tinha
havido exemplos na Antiguidade. Até então esses critérios tinham sido ou voluntários
(econômicos, militares, políticos) ou afetivos (religiosos) ou produto de uma mistura
de ambos (familiares). O fato de que a intelectualidade, o gosto ou interesse
pronunciado pelo conhecimento, constitua círculos cujos membros procedem de um
grande número de círculos já existentes é uma espécie de intensificação do
fenômeno acima indicado, no sentido de que os agrupamentos relativamente tardios
(criados com frequência a partir de uma reflexão consciente e uma finalidade
razoável) têm caráter racional. Essa natureza formal das formações secundárias se
exprime do modo mais claro e decidido na constituição de círculos centrados em
interesses intelectuais.
Ora, o número dos diversos círculos aos quais o indivíduo pertence é um dos
melhores indicadores para medir sua cultura. O homem moderno pertence

sem confundir-se com as universidades ou outros centros de pesquisa, pois ainda que ofereça
dezenas de cursos e seminários, são todos de livre frequência e sem direito a diplomas oficiais. (NT)
8
Giordano Bruno (1548 – 1600) foi um teólogo, filósofo, escritor e frade dominicano italiano
condenado à morte na fogueira pela Inquisição romana, acusado de heresia e de defender erros
teológicos. (NT)
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primeiramente à família de seus pais, depois àquela que ele próprio tundou e, por
conseguinte, à de seu cônjuge, e por fim a sua profissão, que o vinculará a diversos
círculos de interesse (em toda profissão organizada em superiores e subordinados,
cada um pertencerá ao círculo de sua loja, de seu departamento ou de seu escritório
particular, que em cada caso reunirá os níveis superiores e inferiores, mas ele
também pertencerá ao círculo constituído pelos de sua mesma categoria dentro de
cada loja, etc.). O indivíduo é consciente de sua nacionalidade e de pertencer a
determinada classe social. Além disso, pode ser oficial da reserva, fazer parte de
algumas associações e ter um estilo de vida e formas de relacionamento que o
ponham em contato com diversos círculos. Tudo isso supõe grande quantidade de
grupos. Alguns deles estão no mesmo pé de igualdade, mas outros podem ser
ordenados de forma tal que um deles apareça como a relação original que leva o
indivíduo a relacionar-se ou pertencer a um círculo mais longínquo, em razão de suas
características particulares que o diferenciam de outros membros do primeiro
círculo. Isso não impede que a conexão com o círculo de origem continue subsistindo
– tal como acontece com um indivíduo que faz parte de um grupo complexo que, pelo
fato de ingressar depois, psicologicamente, em outras associações mais objetivas,
não perde os laços que o ligam ao complexo do qual participa no espaço e no tempo.
Na Idade Média, o indivíduo podia pertencer a círculos típicos de valor menos
singular que o correspondente a seu estatuto de natural ou habitante livre de um
burgo. A Liga Hanseática 9 vinculava várias cidades entre si, fazendo o indivíduo
entrar em um círculo de ação que não só ultrapassava os limites de cada burgo, mas
as fronteiras do próprio Império. As corporações profissionais, por sua vez, não se
preocupavam com a alçada jurídica das cidades, mas integravam o indivíduo em
associações que iam além das demarcações urbanas e se estendiam por toda a
Alemanha. E da mesma maneira que o vínculo corporativo deixava para trás as
fronteiras da cidade, o liame da camaradagem dos artesãos transpunha os limites da
guilda.

9
A Liga Hanseática foi uma aliança de cidades mercantis alemãs ou de influência germânica que
estabeleceu e manteve um monopólio comercial sobre quase todo o norte da Europa e o Báltico entre
os séculos XII e XVII. Abrangeu cerca de cem cidades, com Lubeque como centro. Ainda que de início
tivesse caráter essencialmente econômico, desdobrou-se posteriormente numa duradoura aliança
política. (NT)
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Uma das peculiaridades destas últimas configurações consistia em não incluir


o indivíduo como organismo único, distinguível dos demais elementos de um círculo,
mas como membro e de inseri-lo enquanto tal em outros círculos. É verdade que as
associações de grau superior, que congregam outras associações, também oferecem
ao indivíduo um grande número de círculos. No entanto, como esses círculos não se
entrecruzam necessariamente, eles mantêm uma relação peculiar com o problema
da individualidade, diferente de outros conjuntos sociológicos que ainda
estudaremos. As associações medievais se guiavam pela ideia – mesmo que na
prática se distanciassem frequentemente dessa noção – de que só os iguais podiam
unir-se. Tal convicção estava em compreensível conexão com a plenitude com que o
homem dessa época consagrava sua vida a sua corporação. Por essa razão,
primeiramente, cidades uniram-se com cidades, mosteiros com mosteiros, e guildas
com guildas, num modo tal que guardassem natureza semelhante. Tratava-se de
uma ampliação do princípio igualitário, pois – mesmo no caso de que os membros
de uma corporação fossem muito diferentes dos que pertenciam à outra – todos os
integrantes da guilda, enquanto membros da corporação eram iguais entre si, e a
aliança se baseava nessa igualdade e não nas possíveis diferenças individuais.
Todavia, ainda que esse entendimento ampliasse de fato o número das alianças entre
associações de diferentes tipos (permitindo que a qualidade das associações
servisse como identificador de igualdade entre elas e criasse fatores reais de poder
dentro da nova organização), o indivíduo enquanto tal ficava de fora dessa
associação mais ampla, uma vez que pertencer a ela não lhe trazia vantagem para
nenhum fator de individualização pessoal. Em qualquer caso, essa associação de
grau superior, como adiante se esclarecerá, foi a forma de transição entre a
associação medieval em sentido estrito – manifesta essencialmente nas antigas
guildas e nas primeiras corporações de artesãos medievais que, em virtude de sua
natureza, não permitiam que os indivíduos formassem parte de outros círculos – e
as associações modernas que reconhecem a liberdade de os indivíduos pertencerem
ao número de círculos que bem entendam.
Ora, daqui resultam múltiplas consequências. Os grupos aos quais o indivíduo
pertence formam uma espécie de sistema de coordenadas. Cada novo grupo
determina o individuo de um modo mais preciso e inequívoco. A pertença a cada um
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deles deixa ainda uma margem de ação relativamente ampla. Porém, quanto maior o
número de grupos, menor é a probabilidade de que existam outras pessoas com a
mesma combinação de grupos, assim como é menor a probabilidade de que os
numerosos círculos se cruzem novamente em outro ponto. Assim como o objeto
concreto perde sua individualidade quando graças s uma de suas qualidades fica
subsumido a um conceito geral, mas torna a recobrar os atributos que constituem
sua unicidade à medida que surgem outros conceitos gerais nos quais suas restantes
qualidades podem ser subsumidas (para usar termos platônicos, cada coisa participa
em tantas ideias como qualidades possui, obtendo sua determinação individual), o
mesmo sucede com a pessoa em face dos diversos círculos a que pertence.
Foi dito que o objeto substancial que temos perante nós é a síntese das
impressões sensíveis que nos produz, de modo que seu ser é tanto mais firme quanto
maior seja o número de impressões qualitativas que determine sua existência. Da
mesma maneira, é a partir dos diversos elementos da vida que todos nós ficamos
socialmente misturados, por constituirmos o que chamamos de subjetividade por
excelência, ou a personalidade, capaz de combinar de modo individual e próprio os
elementos da cultura. Uma vez que a síntese do subjetivo produz o objetivo, a síntese
do objetivo engendra, por sua vez, uma subjetividade nova e mais elevada. De igual
modo, a pessoa se abandona ao círculo social e submerge nele para voltar a
recuperar sua singularidade pelo cruzamento de círculos sociais em seu interior. De
resto, sua determinação final se converte, assim, em uma espécie de contrapartida
de sua determinação causal. Considerando sua origem, nós a explicamos como o
ponto de cruzamento de inumeráveis fios sociais. A pessoa configura-se como o
resultado da herança dos mais diversos círculos e períodos de adaptação, da mesma
maneira que interpretamos sua individualidade como a singularidade das
quantidades e as combinações de elementos da espécie. Mas, se passamos a
considerá-la novamente junto com a pluralidade de seus instintos e interesses nas
organizações sociais, podemos dizer que a pessoa constitui um reflexo que restitui o
que recebe, de forma análoga, porém mais consciente e elevada.
A personalidade moral adquire novas determinações, e é confrontada com
problemas imprevistos ao deixar de enraizar-se firmemente em um único círculo,
para situar-se na interseção de muitos outros. À sua antiga posição, certa e sem
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ambiguidades, sucede uma vacilação entre as diversas tendências da vida. É nesse


sentido que um antigo provérbio inglês afirma: ”quem quer que fale duas línguas é
um trapaceiro” 10. Pertencer a vários círculos sociais provoca conflitos, externos e
internos, capaz de ameaçarem o indivíduo com um dualismo espiritual, e até provocar
íntimas dilacerações. Mas nada prova que essa pertença a vários círculos deixe de
ter efeitos que fortaleçam e estabilizem a unidade pessoal. É que aquele dualismo e
esta unidade se apoiam mutuamente. Precisamente porque a pessoa é uma unidade,
subsiste o risco de sua fragmentação. Quanto mais variados forem os círculos de
interesses que confluem em nós, mais consciência teremos da unidade do eu. O
casamento traz pertença a várias famílias para cada um dos cônjuges e tem sido
desde sempre causa do enriquecimento e ampliação dos interesses e das relações.
Isso não significa que deixe de originar conflitos que obrigam o indivíduo a assumir
compromissos internos e externos e a defender enérgica e simultaneamente sua
personalidade. Nas constituições gentílicas arcaicas, o cruzamento dos círculos no
indivíduo se manifesta frequentemente de maneira tal que a pessoa pertence à
linhagem ou grupo totêmico de sua mãe, mas em compensação, faz parte da mais
estreita associação familiar ou local do pai. Todavia, esses homens simples, ainda
sem consciência clara de sua personalidade, não estão preparados para enfrentar
conflitos como os acima indicados. Por esta razão e de maneira singularmente
adequada, esses dois tipos de associação são amiúde de natureza tão diferente que
não há concorrência entre eles. O parentesco materno tem uma natureza
predominantemente ideal, espiritual, enquanto que o paterno possui um caráter
concreto, mais material, e age imediatamente. Para os aborígenes australianos, entre
os hereros 11 , e para numerosos povos da natureza constituídos por caçadores
coletores, o clã materno, neste caso o grupo totêmico, não representa uma
comunidade de vida. Não age na vida diária, mas só nas circunstâncias mais
importantes e solenes, por exemplo, no casamento e nos funerais, ou por ocasião das
vinganças de sangue – que têm na vida destes povos um caráter ideal e abstrato, por

10
Ideia que o filósofo Franz Rosenzweig faz sua quando diz que “traduzir significa servir dois senhores
ao mesmo tempo”. (NT)
11
Povo banto pastoril, habitante da colônia do Sudoeste Africano alemão, hoje Namíbia. Quase setenta
por cento de seus indivíduos foram exterminados entre 1904 e 1907 vítimas do que é considerado
como o primeiro genocídio do século XX. (NT)
450 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

assim dizer. O vínculo totêmico (matrilinear e presente em numerosas tribos e


bandas) se manifesta frequentemente a través de simples tabus alimentícios ou
cerimônias comuns, e especialmente pela utilização de nomes e de emblemas
particulares. As tribos de linhagem agnatícia, que se fundamentam na descendência
paterna e nas quais se desenvolve a vida quotidiana concreta, a guerra, as alianças,
a herança, a caça, etc., não têm esses símbolos. Essas tribos não precisam de
símbolos porque sua coesão local e a fusão de seus interesses imediatos mantêm a
consciência da pertença comum. Nesse estágio cultural, toda associação não local
costuma ter um caráter ideal, enquanto, nos níveis superiores de desenvolvimento,
uma comunidade pode ser supralocal e, contudo, plenamente realista e concreta. No
entanto, nos círculos menos desenvolvidos, em cuja interseção se encontram os
indivíduos, a associação local patrilinear e o vínculo gentílico matrilinear devem
distinguir-se um do outro, do mesmo modo que os valores sociais concretos devem
distingui-se dos abstratos, para oferecer a possibilidade de reuni-los numa mesma
pessoa à mentalidade pré-lógica.
Os fenômenos de cruzamento de círculos que se têm manifestado com o
nascimento do sacerdócio católico foram muito peculiares, tanto por sua natureza
como por seus efeitos. Nenhuma classe estava excluída da ordem sacerdotal e do
estado monástico, razão pela qual o poder do clero atraía os elementos sociais
superiores e os inferiores. Acerca da Inglaterra medieval observou-se que, apesar de
o ódio entre as categorias sociais ser forte e de os clérigos constituírem um
estamento muito poderoso e fechado sobre si mesmo, o sentimento de ódio no
estava presente, pois seus membros provinham de todos os grupos sociais, e cada
família tinha um padre entre os seus. O reverso desse fenômeno foi a propriedade
fundiária eclesiástica se espalhar por toda parte. Isso contrastava com a variedade
de títulos de propriedade da Idade Média. Em cada província e quase em cada
comuna havia um imóvel da Igreja, do que resultou, por conseguinte, uma unidade
interlocal do clero equivalente. Sem dúvida, essa representação estruturava o
fundamento da situação material da Igreja. Eis o mais gigantesco exemplo da
formação de um círculo que cruza todos os demais, mas que ao mesmo tempo se
caracteriza pela ausência completa de cruzamentos entre seus indivíduos. Se o
sacerdócio podia relacionar-se à extensão e à liberdade para considerações
Georg Simmel | 451

particulares com as outras camadas da sociedade, era precisamente porque


separava o indivíduo por completo de sua categoria social de origem. O sacerdote
era impedido de conservar qualquer característica ou especificidade (nem sequer seu
nome) capaz de limitar a extensão ou concorrer com o compromisso de sua pessoa
com o novo círculo. Isso não ocorria sem uma consequência que confirma a contrario
sensu nosso raciocínio: o sacerdote não podia ter nenhuma individualidade no
sentido habitual, nenhuma determinação diferencial, porque para ser um sacerdote
completo (perfeito), tinha que ser completamente (inteiramente) sacerdote.
Consequentemente, nesse caso, a interseção dos círculos não age sobre o indivíduo,
mas sobre o estamento em sua totalidade, sobre um grupo no qual se encontram
membros de todas as categorias sociais e de todos os círculos. A determinação
sociológica positiva (que confere aqui a constituição de uma entidade social superior
a partir do cruzamento dos círculos) se produzia porque nela nenhum de seus
indivíduos estava numa posição diferente a respeito de um círculo relativamente aos
outros.
Entre os meios empregados pelo catolicismo para manter ao sacerdote fora
da interseção dos círculos, o mais radical é o celibato. O casamento representa um
vínculo social de uma firmeza tão constritiva que, frequentemente, o indivíduo
acolhido em outro círculo já não pode alcançar livremente a posição que lhe atribuiria
normalmente o interesse de um segundo círculo. Não é de estranhar, assim, que o
mais humilde sacerdote católico romano ocupe em seu povoado uma posição em
certa maneira abstrata, isolada, sem comunidade de vida com o meio que o rodeia.
Em compensação, o baixo clero russo, cujas funções exigem que viva no meio do
povo, pode casar-se, ao passo que o alto clero, que ocupa cargos diretivos, deve ser
celibatário. Os popes russos, porém, não constituem um estado de transição para os
pastores protestantes que, por princípio, vivem completamente submersos na vida
dos laicos. O casamento do pope é quase exclusivamente endogâmico, pois que
raramente um sacerdote ortodoxo russo se casa com uma mulher que não seja filha
de outro colega. O casamento tem para as demais relações sociológicas do cônjuge
consequências tão consideráveis que as associações podem distinguir-se segundo
a importância que o matrimônio de seus membros possa ter para elas. Na Idade
Média e mesmo depois, os oficiais artesãos estavam a olhar de forma negativa para
452 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

o casamento dos outros companheiros – ao ponto de que em certas corporações o


ingresso de oficiais casados era difícil. Com efeito, o conúbio limitava a capacidade
de viajar dos oficiais, necessária para manter viva a unidade e os laços de
companheirismo entre eles, mas também para facilitar o deslocamento de sua massa
em função das possibilidades de trabalho. O casamento dos oficiais era considerado
como contrário à uniformidade de seus interesses, pois na opinião da maioria os
privava de independência em face dos mestres e debilitava a solidariedade do
conjunto – que percebia claramente que a consequência inevitável do cruzamento
dos vínculos (em virtude da estrutura singular do casamento e da família) era subtrair
bastante ao indivíduo do convívio cordial e prestimoso próprio dos companheiros de
guilda.
Compreende-se facilmente que, pela mesma razão, o estado de solteiro tenha
sido considerado o desejável para os soldados, em lugares onde existe uma “classe
militar” significativamente diferenciada. Tal como no caso do clero russo, autorizou-
se o casamento ou o concubinato dos soldados nos regimentos macedônios dos
Ptolemeus e mais tarde no Império romano, mas então os frutos dessas uniões
reforçavam as tropas. Unicamente o profundo enraizamento do exército moderno na
vida orgânica do povo permitiu eximir os oficiais da sua obrigação de manterem-se
celibatários. De resto, é evidente que os mesmos efeitos sociológicos formais podem
também apresentar-se em outras circunstâncias, ainda que essas condições não
sejam tão marcantes e fundamentais como o casamento. Assim, as universidades
medievais se recusavam a aceitar estudantes autóctones. Algumas chegavam a
excluir àqueles membros convertidos em cidadãos da cidade que lhes servia de sede,
como acontecia em Bolonha depois de dez anos de residência, Da mesma maneira,
a Liga Hanseática dos comerciantes alemães de Flandres afastava todo membro de
cidadania flamenga. Quando os círculos ficam muito distantes uns dos outros, por
seu significado e pelo que exigem do indivíduo, não se produz cruzamento ou, ao
menos, ele é indesejável – já que quando um círculo pretende incorporar sem
reservas a seus membros depara-se com uma contradição formal. Referimos-nos à
diferenciação individual que a pessoa adquire pelo fato de pertencer a outros círculos,
sem falar dos ciúmes, mais relacionados com o conteúdo.
Georg Simmel | 453

Ora, a determinação sociológica do indivíduo será tanto maior quanto mais


contíguos (e não concêntricos) sejam os círculos determinantes. Quer dizer que os
círculos que se estreitam lentamente, como a nação, a condição social, a profissão e
as categorias particulares dela, não atribuirão à pessoa uma posição individual
especial, porque o mais estreito de todos estes círculos significa por si só que ela
pertence também aos demais círculos. Todavia, esses círculos encaixados, se assim
se pode dizer, uns dentro dos outros, nem sempre determinam seus indivíduos de um
modo unitário, pois sua relação concêntrica pode ser puramente mecânica, em vez
de orgânica. Diante disso (e apesar desta relação) tais círculos também podem agir
sobre os indivíduos como se fossem independentes e contíguos. Isso se
manifestava, por exemplo, no antigo direito germânico, quando o culpado de um
delito recebia um duplo castigo: pelo círculo mais estreito ao qual pertencia, e pelo
círculo mais amplo que incluía o precedente. Em Frankfurt, no final da Idade Média,
quando o membro de uma guilda não cumpria com suas obrigações militares, ele era
punido pelos dirigentes da corporação, e pelo conselho da cidade – assim como no
caso de injúrias o ofendido podia recorrer aos tribunais, mesmo depois de ter obtido
satisfação junto da corporação. Contrariamente, nas organizações corporativas mais
antigas, a guilda se reservava o direito de punir um malfeitor ainda que os tribunais
já o tivessem condenado. Este bis in idem12 demonstrava muito claramente que os
dois círculos, que em certo sentido rodeavam concentricamente o interessado, em
outro sentido cortavam-se também nele. Nesta lógica, a pertença ao círculo mais
estreito estava longe de supor tudo o que significa ser abrangido pelo mais amplo
– como no exemplo acima, no qual a pertença a uma categoria particular dentro de
um vasto círculo profissional geral pressupõe já todas as determinações que
correspondem a este último.
O seguinte tipo formal oferece-nos uma relação positivamente antagônica
entre o círculo mais estreito e o círculo mais amplo, em sua significação particular
para a situação do indivíduo – sem contar os numerosos casos do habitual conflito
entre o todo e a parte. Quando um grupo maior A se compõe dos grupos menores m
e n, pode acontecer que as condições essenciais da existência sejam, para A,

12
O bis in idem é um fenômeno do direito que consiste na repetição (bis) de uma sanção sobre o
mesmo fato (in idem). (NT)
454 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

idênticas às de m, enquanto n se encontre justamente em oposição com m. Tal era a


13
relação existente entre os cives ou burguenses livres e os ministeriales 14
episcopais, que no início da Idade Média constituíam a maioria da população urbana
do Sacro Imperio. De fato, ambos formavam parte, em conjunto, da cidade em sentido
amplo. Mas, em sentido estrito, só os primeiros eram os homens “da cidade”. Os
homens do bispo tinham então uma posição ambivalente, pois ainda que fossem
habitantes da cidade, seus interesses e seu direito se estendiam a outro círculo
completamente distinto: eles eram parte do burgo e, simultaneamente, o contrário
dos burgueses. Paradoxalmente, sua condição de homens do bispo, que lhes impedia
de fazer parte da cidade, era a que, em cada caso particular, os convertia em
membros dessa determinada cidade. Se considerarmos ora os burgueses “genuínos”
distribuídos em corporações, veremos que cada um destes indivíduos se encontrava
abrangido unitariamente pelo círculo corporativo estreito e, ao mesmo tempo, pelo
mais amplo círculo da cidade. Em compensação, o círculo dos ministeriales
episcopais, ainda que se encontrasse também cingido pelo círculo da cidade, se veia
separado dela precisamente por esse círculo. Esta situação era tão contraditória que
os ministeriales do bispo acabaram finalmente incorporando-se à comunidade
burguesa propriamente dita, ou bem se apartaram do círculo da cidade.
Apesar da rigidez e das dificuldades da posição do indivíduo que pertence a
círculos concêntricos, esta é uma das primeiras e mais evidentes formas para o
indivíduo (que começa sua vida social fundido em um único círculo) participar de
vários. A originalidade do sistema associativo medieval em relação ao sistema
moderno é sublinhada com frequência. O sistema medieval atingia ao homem por
inteiro. Não se limitava apenas a fins circunstanciais, objetivamente circunscritos,
mas resultava em comunidades que abrangiam as diversas facetas da personalidade

13
Estes termos designam, em realidade, uma parte da massa dos servidores cuja condição social
melhorou consideravelmente na vaga das transformações econômicas que conheceu Ocidente
durante os séculos XI e XII, a saber, os representantes da burguesia urbana nascente. (NT)
14
Termo latino pós-clássico usado na Idade Média principalmente no território do Sacro Império para
designar agentes ou servidores especiais. Originariamente, se tratava de servos que tinham
capacidades administrativas superiores e que foram empregados por seus senhores para
desempenhar uma série de funções nas cortes, nas milícias, nos feudos e territórios e na
administração pública. Com o passar do tempo a classe foi regulamentada, aumentando seu prestígio,
vindo a constituir um estrato social de grande relevo, assumindo os cargos administrativos mais
elevados como senescal, mordomo, camareiro, castelão, juiz, burgomestre e marechal. (NT)
Georg Simmel | 455

de todos aqueles reunidos para determinado fim. Todavia, se o desejo de permanecer


juntos e associados se seguia manifestando, ele era satisfeito pela reunião dessas
corporações em uma corporação de ordem superior. Até a invenção da associação
para fins determinados (que permitiu colaborar com outros mediante contribuições
puramente objetivas para fins puramente objetivos, limitando a esses fins a
participação da própria individualidade), aquela forma medieval que hoje nos parece
muito simples foi em realidade o meio sociológico genial para os indivíduos
formarem uma pluralidade de círculos, sem perder a pertença local ao círculo
originário. É verdade que o indivíduo tinha uma possibilidade de enriquecer-se como
ente social bastante mais limitada que a oferecida pela associação para fins
determinados. Contudo, ela era suficiente, pois aquilo que a corporação de ordem
superior oferecia ao indivíduo não estava incluído na corporação mais estreita
– como ocorre, por exemplo, com o conceito de “árvore”, do qual o carvalho faz parte,
e que já contém todas as determinações do conceito de “planta”, que por sua parte
compreende o de “árvore”. Se ainda não conseguimos mais do que essa comparação
pode indicar, podemos demonstrar que a subsunção no conceito de “planta” tem para
o carvalho um significado que não possui a subsunção no de “árvore”. Com efeito,
mesmo que o conceito de “árvore” pressuponha as determinações da planta,
subsumir o carvalho no conceito de “planta” significa atribuir também a ele o
conteúdo conceitual próprio dos organismos pertencentes ao reino respectivo, sem,
entretanto, ser uma árvore. A construção concêntrica de círculos é, por conseguinte,
a etapa intermediária sistemática, e em muitos aspectos também histórica, para
chegar à situação em que os diversos círculos em contiguidade, se cortam em uma
única e mesma pessoa.
No que tange às consequências pessoais, há uma enorme diferença entre a
forma concêntrica e a forma que resulta quando alguém, por exemplo, além de sua
posição profissional, pertence a uma associação científica, faz parte do conselho de
administração de uma sociedade por ações, e exerce funções a título voluntário em
sua cidade. Quanto menos relação tenha a pertença a um círculo com a adesão a
outro, tanto mais característico será para a determinação da pessoa o fato de
encontrar-se na interseção de ambos. Na medida em que se fala aqui da participação
em cargos e instituições, será, naturalmente, a amplidão da divisão do trabalho a que
456 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

determinará se a reunião de numerosas funções em uma pessoa põe de ressalto nela


uma combinação característica de aptidões, uma particular extensão da atividade.
Assim, a estrutura das entidades sociais objetivas proporciona a maior ou menor
possibilidade de constituir ou expressar o caráter único e singular do sujeito. Na
Inglaterra, por exemplo, foi costume por um longo tempo que um grande número de
autoridades completamente distintas estivesse a cargo dos mesmos indivíduos. Já
na Idade Média uma mesma e única pessoa podia ser justice in Eyre15 tanto quanto
juiz itinerante, baron of the Exchequer16, como membro do colégio do Tesoro, e justice
in Banco17, como membro da mais Alta Corte de justiça. Evidentemente, quando o
mesmo círculo de pessoas se reúne para formar tão diversos colégios, a síntese daí
resultante não proporciona a aquisição de uma particular característica pelos
sujeitos. Pois. em tais circunstâncias, os conteúdos objetivos das funções não
podem ainda estar suficientemente diferenciados para que sua reunião em uma
18
única pessoa seja a ratio essendi ou cognoscendi de uma determinação
exclusivamente individual.
Por outro lado, e com independência dos conteúdos destes colégios, podemos
ver que o simples fato de que o indivíduo acrescente novas associações a um vínculo
único (que, até então, determinava-o unilateralmente), basta para lhe dar uma
consciência mais clara de sua individualidade, ou quando menos para tornar as
antigas associações menos evidentes. É por isso que os representantes dos vínculos
preexistentes – e isto é igualmente relevante na outra parte destes estudos –
hostilizam o fato meramente formal de pretender estabelecer novos liames, mesmo
quando o conteúdo desses vínculos não lhes faça concorrência alguma. As
frequentes ordenanças imperiais dos séculos XII e XIII, que proibiam as

15
No antigo direito inglês, os justice in Eyre eram os mais altos magistrados encarregados de aplicar
a lei florestal medieval. A este título presidiam uma corte itinerante para punir os infratores dessa
normativa e investigar o estado dos bosques e o comportamento dos oficiais que deviam cuidar deles.
(NT)
16
Os barons of the Exchequer ou barones scaccarii, eram os juízes da corte inglesa conhecida como
Exchequer of Pleas (Tribunal do Tesouro). Constavam de um Chief Baron of the Exchequer (Barão
Chefe do Tesouro) e vários Barões de puisne (isto é, juniores). Juntos, julgavam como um tribunal de
common law e de equidade, resolvendo disputas tributárias. (NT)
17
Um tribunal se reúne in Banco quando um caso é ouvido perante todos os juízes dessa corte e não
por um painel de magistrados selecionados a partir deles. Assim ocorria durante a Idade Média na
mais alta jurisdição judicial da Inglaterra. (NT)
18
Razão de ser ou de saber. (NT)
Georg Simmel | 457

confederações entre cidades alemãs, provavelmente se propunham a lidar com os


verdadeiros perigos que as ameaçavam. Todavia, no Império franco, e também no
início do germânico, o enfrentamento da Coroa com a hierarquia das guildas tinha
algo de caráter mais abstrato e fundamental. Nesses casos, a liberdade de união, que
permite naturalmente uma multiplicação sem limites dos laços associativos,
significava estritamente competir com às poderosas corporações existentes, pois
pelo mero fato de pertencer a várias associações a pessoa adquiria uma posição
individual na qual os vínculos existiam em função das pessoas, enquanto nas antigas
sínteses – por assim dizer, autocráticas – eram as pessoas as que existiam em
função de seus vínculos.
O simples fato formal da associação múltipla confere à pessoa um estatuto
pessoal no qual o mesmo indivíduo pode ter simultaneamente posições relativas
completamente diferentes nos distintos círculos dos que faz parte – o que é muito
importante para os cruzamentos familiares, A desaparição da organização clânica
dos primitivos germanos, foi consideravelmente favorecida pelo reconhecimento dos
laços de parentesco femininos e até dos originados no casamento. Tornou-se
possível então pertencer ao mesmo tempo a diversos círculos de parentesco, mesmo
que os direitos e deveres que derivavam de cada um deles entrassem em tão ativa
concorrência que, doravante, as associações de parentesco deixassem de existir em
proveito dos meros parentes. Contudo, esse resultado não se teria produzido com a
mesma intensidade, e a situação não teria assumido as dimensões que adquiriu, se
o indivíduo tivesse ocupado a mesma posição em cada uma das séries de parentesco
ou linhagens. Frequentemente, porém, enquanto ele ocupava, em uma, uma posição
central, achava-se num ponto periférico em outra; se tinha um cargo de autoridade
numa série, em outra desempenhava tarefa subordinada; aqui ele tinha interesses
econômicos, e lá significação exclusivamente pessoal. E, como a estrutura destas
relações excluía a possibilidade de outro indivíduo ter exatamente a mesma posição
dentro da mesma série, resultava daí uma determinação da individualidade que teria
sido impossível em uma associação de parentesco limitada a uma única série ou
linhagem. Pois, ainda que, neste caso, a pessoa nascesse num determinado ponto,
como este ponto teria sido definido por uma única série, esta linhagem seria sempre
o importante. Ao contrário, naqueles cruzamentos de séries de parentesco antes
458 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

mencionados, é o indivíduo quem pode determinar o contato de uma linhagem com


a outra.
Todavia, se deixamos de lado essas possibilidades de posição que aparecem
espontaneamente, por assim dizer, no âmbito das relações familiares, e ignoramos
igualmente suas combinações individuais, veremos que toda nova vinculação cria de
um modo mais ativo, sob o mesmo ponto de vista, certa desigualdade, uma
diferenciação entre dirigentes e dirigidos. Quando um interesse geral (como, por
exemplo, o interesse humanista acima referido) chegou a constituir um vínculo
comum entre pessoas socialmente superiores e inferiores, tendo criado entre elas
um laço que anulava as restantes diferenças, sugiram – dentro desta comunidade
nova e de acordo com as categorias que lhe eram próprias – outras diferenças entre
superiores e inferiores. Tais diferenças em nada correspondiam às hierarquias de
superioridade e inferioridade de seus círculos originais. No entanto, mesmo assim,
elas definiam assim a pessoa de maneira mais clara e em maior número de aspectos.
Ora, a igualdade que prevalece dentro de um círculo de recente criação pode produzir
o mesmo resultado final: por exemplo, quando seus membros ocupam e conservam
posições com graus de subordinação absolutamente diferentes dos estabelecidos
entre eles nos círculos aos que tinham pertencido até então. O fato de que um
membro que tinha uma posição inferior em seu círculo de origem obtenha logo o
mesmo nível de reconhecimento social que outro que ocupava uma posição elevada
naquele antigo círculo, representa para cada um deles uma formação sociológica
extremamente característica. Esse era, por exemplo, o efeito que a cavalaria medieval
produzia. Graças a ela, os ministeriales (servidores da corte) ingressavam num
estamento (ou corporação de classe) a que o príncipe e até o próprio imperador
pertenciam, o que os tornava iguais a todos seus membros nos assuntos
cavaleirescos. Isso dava ao ministerial uma posição que não tinha nenhuma relação
com suas obrigações de serviço e uns direitos que não emanavam de seu senhor. As
diferenças de berço entre o nobre, o homem livre e o vassalo não ficavam suprimidas,
mas elas eram cruzadas por uma linha nova que tinha em todas as partes um único
nível: a comunidade não concreta, mas idealmente eficaz, dos homens unidos pelo
mesmo direito e as mesmas práticas cavaleirescas. Essa síntese individualizava
àquele que, fora dos círculos onde era superior ou inferior, estava, ao mesmo tempo,
Georg Simmel | 459

integrado a um círculo no qual era simplesmente “igual”, conseguindo dessa maneira


que a estrutura dos círculos em que participava enriquecesse e determinasse seu
sentimento vital de ente social.
Na medida em que os níveis das posições que uma mesma e única pessoa
ocupa em diversos grupos são completamente independentes uns dos outros,
podem produzir-se combinações tão estranhas como as que fazem que (nos países
com serviço militar obrigatório) um homem que goze de uma posição intelectual e
social elevada tenha que submeter-se a um sargento; ou obedecer (como em Paris,
na corporação dos mendigos) às ordens de um “rei” eleito, que na sua origem tinha
sido e continuava sendo um miserável como os outros (se nossas informações são
exatas), mas que era objeto de honras e de privilégios verdadeiramente régios19 – na
que talvez seja a combinação mais extraordinária e individualizante de baixeza em
um círculo social e de dignidade em outro. Esse cruzamento pode verificar-se
inclusive dentro de uma mesma relação, quando ela compreende por sua vez uma
pluralidade de relações. Tal sucede, por exemplo, com os professores particulares, e
com os antigos aios, preceptores encarregados da educação doméstica das crianças
de famílias nobres ou ricas. O aio devia manter sua superioridade sobre seu discípulo,
tinha que dominá-lo e dirigi-lo, enquanto ele era, por outro lado, um servidor do aluno,
que não deixava de ser seu amo. Da mesma maneira, no exército de Cromwell um
cabo versado na Bíblia podia admoestar seu comandante, apesar de obedecer-lhe
totalmente e sem qualquer reserva em questões do serviço. Finalmente, a matéria
desses cruzamentos reaparece ainda com mais força no indivíduo em certos tipos
característicos, como o do aristocrata de ideias liberais, da pessoa que aprecia os
bens e prazeres deste mundo a despeito de suas marcadas tendências clericais; do
erudito, que adquiriu seu vasto conhecimento ou cultura por meio da leitura, mas
prefere frequentar homens práticos, etc.

19
Segundo as descrições de Henri Saval (advogado e historiador francês do século XVII), contidas na
sua Chronique escandaleuse de Paris ou Histoire des mauvais lieux (1883), e que provinham, em parte,
do Jargon ou langage de l’argot, (um livrinho popular que Olivier Chereau de Tours teria escrito por
volta de 1630), os mendigos de Paris estavam hierarquizados e perfeitamente organizados em uma
corporação, com “leis” e uma língua (o argot) próprias; tendo chegado a eleger um “rei” que recebia o
nome de “grande Coesre” ou “rei de Thunes”. (NT)

460 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Os cruzamentos de um único grupo têm seu mais típico exemplo na


concorrência entre pessoas que poderiam até ser solidárias. O comerciante constitui
com seus pares um círculo com grande número de interesses comuns: a legislação
político-econômica, o prestígio social da classe comercial, a representação da
categoria, o entendimento mútuo para manter certos preços, e muitos outros
assuntos que interessam aos que têm no comércio sua profissão habitual e fazem
sua classe aparecer como uma unidade perante os outros. No entanto, cada
comerciante também está em oposição e concorrência com os demais; o ingresso
na atividade supõe a união e o isolamento, uma posição simultânea de igualdade e
de singularidade que leva o comerciante a defender seus interesses ante a
concorrência exacerbada com alguns e aliar-se com aqueles que têm seus mesmos
interesses. A contradição interna se apresenta com maior radicalismo na esfera do
comércio, mas ocorre em todas as demais, inclusive na ínfima sociação de uma
reunião festiva. A pertença de um indivíduo a uma multiplicidade de círculos, nos
quais a proporção de concorrência e de aliança varia consideravelmente, abre-lhe um
leque infinito de possíveis combinações individualizantes. Até uma observação trivial
nos ensina que as necessidades instintivas do homem andam em duas direções
opostas: ele deseja sentir e agir com os outros, mas também contra eles, O ser
humano precisa de certa quantidade e determinada proporção de colaboração e de
oposição, necessidade puramente formal que fica satisfeita por meio dos conteúdos
mais diversos. Tanto é verdade que, muitas vezes, a significação concreta de alguns
deles não obedece ao sentido objetivo do conteúdo, mas à satisfação que graças a
esse conteúdo encontram aqueles instintos formais. O que caracteriza a
individualidade, desde o ponto de vista de sua aspiração natural e de sua evolução
histórica, é a proporção de aliança e de concorrência decisiva para ela. Daí resulta
também a consequência inversa: ás vezes, a necessidade de destacar claramente a
própria evolução pessoal impulsiona o indivíduo a escolher certos círculos em cujo
ponto de interseção ele se coloca e graças a cuja coincidência adquire o máximo de
determinação individual – um destes círculos representa a forma da exclusão e o
outro a forma da concorrência. Assim, quando em um círculo reina forte concorrência,
seus membros procurarão outro círculo que esteja, tanto quanto possível, desprovido
de concorrência. Por isso os comerciantes têm preferência pelas sociedades de
Georg Simmel | 461

recreio; ao passo que os aristocratas, cuja consciência de classe exclui a competição


dentro do próprio círculo, consideram supérfluos esses complementos, inclinando-
se a buscar outras formas de sociação nas quais se produzam fortes concorrências,
como as associações esportivas. Finalmente, mencionaremos ainda certos
cruzamentos antinômicos. Estes últimos ocorrem quando um indivíduo ou um grupo
está dominado por interesses opostos entre si capazes de engajá-lo
simultaneamente em partidos antagônicos. Para os indivíduos tal situação se
apresenta em ambientes de cultura refinada influídos por uma intensa vida política
partidária. Produze-se então frequentemente o seguinte fenômeno: os diversos
partidos políticos se distribuem os distintos pontos de vista, inclusive em questões
que nada têm a ver com a política, de maneira que determinada tendência literária,
estética ou religiosa, se associa com um partido e a contrária, com outro. Desse
modo, a linha que separa os partidos prolonga-se pelo conjunto dos interesses da
vida. Em tal situação, fica claro ao indivíduo que não deseje submeter-se totalmente
à influência de um partido, que deverá associar-se, por suas convicções estéticas ou
religiosas, a um grupo identificado pela oposição a seus adversários políticos. Ele se
encontrará então no cruzamento de dois grupos que se sabem opostos um ao outro.
O exemplo mais importante e mais característico poderia ser aquele da
pertença a uma religião, desde que a confissão religiosa se tenha liberado dos laços
clânicos, nacionais ou locais, separação que teve importância considerável para a
história universal. A essência da religião se expressa com igual alcance, ainda que
com linguagem diferente e em grau diverso de evolução, mediante duas formas
sociológicas. Conforme a primeira, a comunidade religiosa significa que também
outros interesses essenciais ou totalizantes são compartilhados. Na segunda forma,
ao contrário, a confissão comum está livre de toda solidariedade com aquilo que não
seja a religião. Compreende-se bem que seja difícil compartilhar a própria existência
e os interesses vitais com homens cuja fé é distinta da nossa. Em todo o mundo
antigo, semítico ou greco-romano, essa necessidade profundamente arraigada foi
satisfeita a priori convertendo a religião em um assunto de clã ou de Estado. Ou seja,
identificando – com poucas exceções – a Deus com os interesses do grupo político,
e os deveres para com Ele com as exigências principais que todo membro da dita
comunidade deve cumprir. No entanto, o poder do motivo religioso não é menos
462 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

visível quando esse impulso (em face de todas as conexões baseadas em outros
motivos) é suficientemente independente e forte, para reunir todos os crentes de uma
mesma confissão por cima das diferenças provenientes de seus outros
engajamentos. Evidentemente, esta última das formas sociológicas em que pode se
expressar a essência da religião é eminentemente individualista: o sentimento
religioso libera-se aqui do sustento que sua imbricação no plexo dos demais laços
sociais lhe oferecia e se refugia na alma individual e na sua responsabilidade
– tentando logo assentar na própria alma as pontes que a ponham em comunicação
com as almas da mesma religião, que talvez não coincidam já em nada mais. O
cristianismo em seu sentido mais puro é uma religião individualista – só fica atrás
do budismo primitivo que, aliás, não é uma religião propriamente dita, mas uma
doutrina da salvação pessoal sem mediação transcendente –, o que lhe permitiu
espalhar-se na imensa variedade dos grupos nacionais e locais. Da mesma maneira
e inversamente, a consciência que o cristão tem de levar a sua fé dentro de si a
qualquer comunidade (sem importar o caráter do grupo e as obrigações que ele
imponha), deve, com certeza, ter fortalecido seu sentimento de determinação
individual e de autoconfiança.
O valor sociológico da religião é um reflexo de sua ambivalência genérica
perante a vida. Ora ela se opõe a todos os conteúdos de nossa existência, sendo o
pendant, o equivalente da vida em geral, intangível em seus seculares movimentos e
interesses; ora, apesar de tudo, toma partido entre todos os partidos da vida por cima
dos quais se situava a princípio. Torna-se assim um elemento ao lado de todos os
outros elementos, e se complica numa pluralidade de relações e alternativas que,
naquele primeiro sentido tinha rejeitado. Produz-se assim um curioso
entrelaçamento: a recusa de todo vínculo sociológico, própria da religiosidade
profunda, permite ao indivíduo pôr o círculo de seus interesses religiosos em contato
com todos outros tipos de círculos cujos membros não partilham com ele outros
conteúdos comuns da vida – e os cruzamentos ocasionados servem, por sua vez,
para dar relevo e determinar sociologicamente os indivíduos e os grupos religiosos.
Esse esquema se repete logo nas especificações do religioso e nas suas singulares
combinações com os demais interesses dos sujeitos. Quando dos conflitos entre a
Georg Simmel | 463

França e a Espanha, os huguenotes20 se punham ao serviço do rei francês quando


este combatia a Espanha católica e os hispanófilos franceses; mas, outras vezes, em
compensação, vendo-se oprimidos pelo rei da França, uniam-se às forças da
Espanha. A cruel repressão dos católicos irlandeses pela Inglaterra acarretou uma
atitude dupla com outras características. Um dia os protestantes da Inglaterra e da
Irlanda se uniam contra o inimigo comum de sua religião sem se preocuparem com
os seus compatriotas. No dia seguinte, os protestantes e os católicos da Irlanda
estavam unidos contra os opressores de sua pátria, sem demonstrarem grande
interesse pelas suas diferenças religiosas. Contrariamente, os povos em que subsiste
a unidade primitiva, política e religiosa, do círculo (por exemplo, na China 21 )
consideram como inaudito e incompreensível que os Estados europeus intervenham
para proteger os cristãos chineses ou turcos. Mas quando esta unidade se desfaz
completamente, como na Suíça, a essência abstrata da religião – a quem sua
abstração confere uma posição absolutamente particular relativamente a todos os
outros interesses – produz cruzamentos muito significativos. Com efeito, em
consequência das grandes diferenças entre os cantões, a Suíça não tem uma vida
política suficientemente unificada para incentivar os homens da mesma
sensibilidade política dos diferentes cantões a reagrupar-se em grandes partidos
nacionais para abordar as questões relativas ao governo federal. Nesse contexto, só
os ultramontanos 22 de todos os cantões constituem uma massa homogênea em
matéria política.
Naturalmente, supõe-se que essa separação entre os agrupamentos
religiosos e políticos pode acontecer também em sentido inverso, dando lugar a
alianças políticas que cairiam por terra se a unidade subsistisse. Talvez o exemplo

20
Seguidores do protestantismo, especialmente aqueles de orientação calvinista, que foram assim
denominados pelos católicos franceses durante os séculos XVI e XVII. (NT)
21
O autor se refere à China da dinastia Qing, que vigorou até 1912. (NT)
22
Em sua acepção geográfica de origem, um “ultramontano” é uma pessoa que vive além dos montes.
A partir do século XVIII o termo qualificava os juristas que deram um valor absoluto às decisões da
Cúria romana. Na disputa entre canonistas próximos de Roma e canonistas galicanos (que defendiam
a independência administrativa da Igreja Católica Romana de cada país com relação ao controle papal)
a palavra adquiriu uma conotação pejorativa equivalente a de obscurantista ou papista. No espaço
germanófono esta utilização consolidada pela prática desapareceu aos poucos, apesar de um breve
recrudescimento na Suíça em certos meios protestantes extremistas, até os anos 1950. (NT)
464 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

mais gritante seja a união de Inglaterra e Escócia, de 170723. O benefício para ambas
as partes da constituição de um único Estado provinha da subsistência das duas
Iglesias 24 . Até então as instituições política e religiosa estiveram estreitamente
associadas em ambos os reinos – e só quando política e religião foram separadas
os interesses políticos puderam amalgamar-se, coisa que os interesses religiosos
não teriam admitido. Como se tem dito a propósito destes dois países: they could
preserve therefore harmony only by agreeing to differ 25 . Uma vez ocorrida esta
separação, com sua sequela de possíveis cruzamentos, a liberdade assim adquirida
não poderia voltar atrás por uma decisão das partes. Porque o princípio cuius regio,
eius religio26 unicamente tem legitimidade quando não precisa ser expressamente
consagrado, e resulta apenas da expressão do estado originário de unidade orgânica
e da indiferenciação primitiva.
Nesta ordem de ideias, é digno de nota um fenômeno singular. Ele se produz
quando o ponto de vista religioso, passando por cima dos restantes motivos de
separação, fusiona pessoas e interesses que na realidade deveriam ser
diferenciados, porque esta união é sentida como se estivesse motivada por razões
exclusivamente objetivas de distinção. Assim, por exemplo, em 1896, os operários
judeus de Manchester se reuniram numa associação que devia compreender
expressamente todas as categorias de trabalhadores (em especial alfaiates,
sapateiros e padeiros) e que pretendia fazer causa comum com os demais sindicatos
em tudo o que fazia aos interesses dos operários – ignorando que esses outros
sindicatos estavam organizados conforme a divisão do trabalho e segundo as
categorias objetivas dos diferentes tipos de trabalho (de um modo tão radical que, na
época, as trade unions se tinham negado a entrar na Internacional porque esta última,

23
Da qual resultou um trono britânico único, a dissolução dos parlamentos escocês e inglês e sua
substituição pelo novo parlamento da Grã-Bretanha, em Westminster. (NT).
24
Respeitada apesar da concomitante unificação das instituições políticas, ela aludia às confissões
anglicana e presbiteriana, predominantes em cada um dos dois países. (NT)
25
Em inglês no original alemão de Simmel: “Por esta razão, somente poderão conservar sua harmonia
concordando na necessidade de diferenciar-se”. A citação corresponde a Thomas B. Macaulay,
History of England from the accession of James II, Nova Iorque, International Book, 1890, vol,3, p. 241.
(NT)
26
Cuius regio, eius religio (também: cuius regio, illius religio), é um ditado latino, que afirma que o
governante de um país tem o direito de impingir sua religião aos seus súditos. É a forma abreviada de
um princípio jurídico estabelecido na Paz de Augsburgo e na Paz da Vestefália. A expressão latina foi
cunhada pelo professor Joachim Stephani, da Universidade de Greifswalder, em uma publicação de
1612. (NT)
Georg Simmel | 465

no início, não considerava as diferentes atividades profissionais de seus membros).


Mesmo que a proposta da associação judaica reivindicasse aparentemente à
indiferenciação dos interesses comuns religiosos e socioeconômicos, em verdade
expunha a sua separação fundamental – porque a síntese (graças à voluntária
coordenação com organizações profissionais diferenciadas) se manifestava como
uma associação com fins puramente técnicos, inspirada por motivos práticos. O caso
das associações alemãs de operários católicos é completamente diferente. Em boa
parte devido à sua grande difusão, ao papel político que o catolicismo representa na
Alemanha e em razão de os operários não estarem tão em evidência por sua religião
como os trabalhadores judeus. Na Alemanha, a diferenciação tende a organizar
sindicatos profissionais dentro de associações originariamente católicas (como, por
exemplo, em Aquisgrano, onde, desde começos do século XX, já existem sindicatos
de tecelões, de fiandeiros, de gravadores, de alfineteiros, de metalúrgicos e
pedreiros). No caso considerado, a associação é suficientemente grande para abrigar
a divisão sem que se produza o cruzamento, o que provocaria a união dessas
sociedades especiais com outros agrupamentos não confessionais de operários dos
mesmos ofícios. O que, aliás, não impede que tenha havido alguns casos e que a
divisão interna represente o primeiro passo nessa direção.
Finalmente, ocorre um cruzamento de ordem superior que aparece como
sublimação das energias religiosas no sacerdócio. A fórmula sociológica dessa
sublimação – a proporção de representação e direção, de controle e cooperação, de
respeito e de ajuda material entre fiéis e sacerdotes – difere certamente segundo as
religiões, Todavia, há tantos pontos em comum no meio desta variedade, que ainda
podemos falar, com algumas reservas, de certa igualdade formal na posição do
sacerdote dentro de todos os grupos, por mais diversificados que eles sejam – do
mesmo modo que nos referimos a igualdade que existe entre os nobres, os guerreiros
e os comerciantes de todos os lugares. Decorre dessa dinâmica, em primeiro lugar,
uma comunidade de interesses, de compreensão mútua e de solidariedade entre os
sacerdotes que, em certas circunstâncias, pode mesmo superar a oposição de
conteúdo entre, por exemplo, os protestantes fundamentalistas e os católicos
clericais. O sacerdote isolado ou o grupo sacerdotal reduzido se situa em um ponto
de interseção no qual a pertença a uma associação nacional, confessional ou
466 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

partidarista se cruza com a sua pertença ao conjunto de todos os sacerdotes (que


constitui a raiz da afinidade parcialmente sociológica, e parcialmente ético-
metafísica deles) e que concede aos diversos indivíduos um caráter singular que os
diferencia dos membros dos outros agrupamentos.
O grau de desenvolvimento do espírito público revela-se pela existência de
suficientes círculos (independentemente da sua forma e da sua organização
objetivas) para garantir uma atividade associativa e contatos efetivos a todos os
aspectos essenciais de uma pessoa dotada de múltiplas disposições – coisa que se
aproxima igualmente do ideal do coletivismo, assim como do individualismo. Pois,
por uma parte, o indivíduo acha para cada uma de suas inclinações e aspirações uma
comunidade em que poderá satisfazê-las facilmente, oferecendo a suas atividades
uma forma adequada e todas as vantagens da pertença a um grupo; enquanto por
outro lado, a especificidade da individualidade fica garantida pela combinação
diversa dos múltiplos círculos. Pode-se então dizer que os indivíduos fazem a
sociedade, mas que a sociedade forja os indivíduos. O processo civilizatório alarga
cada vez mais o círculo social do qual fazemos parte com toda nossa personalidade,
mas em compensação aquele processo abandona crescentemente o indivíduo a si
mesmo, privando-o de muitas das ajudas e vantagens do pequeno grupo. Assim
sendo, essa produção de confrarias e círculos precisa reunir todos àqueles que
possam se interessar pelo mesmo fim, para compensar a solidão crescente da
pessoa resultante da perda da estrita inclusão que caracterizava os pequenos
círculos do passado.
A proximidade dos laços que ligam aos membros de cada círculo pode ser
medida pelo grau em que esse grupo desenvolve uma “honra” especial, de maneira
que a perda da honra de um dos membros (ou a ofensa feita à consideração a ela
devida) seja sentida pelos demais integrantes do conjunto como um declínio da
própria honra – ou também porque a associação possui uma honra coletiva pessoal,
cujas vicissitudes se refletem no sentimento de cada membro. A produção desse
conceito de honra específica (honra familial, militar, comercial) assegura nesses
círculos o comportamento adequado de seus membros, sobretudo na esfera daquela
diferença específica que os distingue do círculo social mais amplo – onde as regras
coativas que fixam o comportamento conveniente ao círculo mais amplo (quer dizer,
Georg Simmel | 467

as leis do Estado) podem não conter preceito algum referente àquela exclusiva
maneira de proceder27. Os círculos particulares que podem coincidir também em uma
única pessoa elaboram conceitos especiais ou restritos da honra, enquanto o círculo
mais amplo cria um conceito geral ou abstrato da honra diferente daquele que vigora
em alguns círculos particulares, embora, de resto, possa reger igualmente a conduta
dos membros desses grupos. Tudo isso converteu as complexas normas da honra
em símbolos dos círculos. Existe uma honra negativa de classe, espécie de ”desonra
de classe” que pode ser relativamente permissiva em relação ao comportamento
considerado honorável do ponto de vista da moral universal ou do conjunto da
sociedade, e que, em vez de acrescentar exigências – como faz a honra positiva de
classe –, subtrai-lhe certa latitude. Assim algumas categorias de comerciantes,
particularmente os especuladores, mas também o pequeno penny-a-liner28 e o demi-
monde29 podem permitir-se certas atitudes justificadas pela consciência de classe
sem qualquer pejo para recorrer a práticas que, em geral, não são consideradas muito
honrosas. Mas junto a esta desonra de classe, o indivíduo pode, quanto ao resto, ser
absolutamente honrado (no sentido tradicional) nas suas relações humanas
cotidianas. Desse modo, o respeito à honra específica de sua classe não impede que
o indivíduo se comporte desonrosamente segundo as ideias básicas das formas de
viver. Assim, diversos aspectos da pessoa podem obedecer a outras tantas
concepções da honra que são reflexos dos diferentes grupos aos quais ela pertence
simultaneamente. Por exemplo, a mesma exigência pode apresentar-se com ênfases
diferentes. “Não tolerar uma ofensa sem digna reparação” pode ser o lema de alguém
que se comporta de formas muito díspares na sua vida privada, no escritório ou como
oficial reformado. Respeitar a honra das mulheres para defender sua honra de
homem pode ter resonâncias diferentes numa família de pastores protestantes ou
num círculo de tenentes novos. Um membro deste último grupo, proveniente do
primeiro, poderia perceber nele mesmo, pelo conflito entre esses conceitos de honra,

27
Este aspecto será tratado com mais pormenor no capítulo sobre a autopreservação. (NS)
28
Termo coloquial e geralmente pejorativo usado para se referir a um jornalista que é pago para
escrever textos de baixa qualidade, apressados ou redigidos "a pedido", muitas vezes com um curto
prazo O termo é usado para se referir a um tipo de escrevedor que é considerado como um
"mercenário" ou "caneta para contratar", que expressa as opiniões políticas de seus clientes em
artigos geralmente pagos pelo número de palavras ou linhas. (NT)
29
Grupo de mulheres mundanas, de moral ambígua, e de aqueles que as frequentam. (NT)
468 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

sua pertença a dois círculos diversos. No conjunto, essa criação de conceitos


específicos de honra – que aparece, muitas vezes, sob uma forma rudimentar, em
simples matizes do sentimento e da conduta, em motivações materiais ou
pessoais – representa uma das evoluções sociológicas formais mais importantes.
Ao reduzir-se a estreita e severa regulação, que no passado era exercida pelo grupo
social (em boa verdade, por seu poder central) sobre as ações e omissões dos
indivíduos nos domínios mais variados, limita-se cada vez mais sua intervenção
junto aos interesses gerais da comunidade, de um modo tal que a liberdade individual
passa a conquistar novas esferas. Essas esferas são ocupadas por novas formações
de grupo, mas os interesses da pessoa humana decidem livremente a qual delas o
indivíduo pertencerá. Por conseguinte, não são precisos os meios coercivos: basta o
sentimento da honra para vincular os membros às normas necessárias à
subsistência do grupo. De resto, esse processo não depende apenas do poder coativo
do Estado. Quando um poder coercivo regula originariamente um núcleo de
interesses individuais vitais sem relação prática com seus fins – na família, na
associação profissional, na comunidade religiosa, e assim por diante – acaba por
abdicar de seu poder em associações particulares, cuja escolha é uma questão de
liberdade individual. Assim se resolve o problema da sociação de uma forma mais
perfeita do que pelas rigorosas regulações do passado, que negligenciavam mais a
individualidade.
Acrescente-se que o domínio indiferenciado de um poder social sobre os
homens – por extenso e severo que possa ser – não se ocupa, nem pode ocupar-se,
de uma série de relações que são mais profundamente confiadas ao arbítrio pessoal,
quanto mais a coerção pese nas demais relações. Assim, por exemplo, o cidadão
grego, e até mais o romano, tinham que se submeter incondicionalmente às normas
e fins da comunidade nacional em todas as questões relacionadas com a política
– porém, proporcionalmente, possuíam uma autoridade ilimitada como senhor de
seu lar. Podemos observar esse vínculo social nos povos da natureza que vivem em
pequenos grupos. Nesse caso o indivíduo fica em plena liberdade para comportar-se
do jeito que bem entender com todas as pessoas que não pertençam a sua banda. A
tirania amiúde encontra seu correlato na liberdade mais absoluta, na anarquia que
tolera nas relações pessoais dos súditos desde que não tenham importância para
Georg Simmel | 469

ela. Em face dessa distribuição arbitrária da coerção coletiva e do domínio ou do


poder individual, existe outra, mais adaptada e justa, que se observa quando a forma
da associação é decidida pelo conteúdo objetivo da natureza e da tendência das
pessoas – porque dessa maneira se encontra com mais facilidade sustentação
coletiva para as atividades que até então escapavam ao controle do poder central e
ficavam entregues ao bel-prazer dos indivíduos. Com efeito, a pessoa inteiramente
livre procura, nas diversas esferas em que sua atividade é exercida, laços sociais que
voluntariamente imponham alguma restrição ou condição a seu arbítrio individual
– no qual achava uma compensação perante a tirania indiferenciada do poder
coletivo. Vemos assim que nos países que gozam de grande liberdade política está
muito desenvolvida a vida associativa 30 , e que nas comunidades religiosas que
carecem de um poder eclesiástico fortemente hierarquizado se multiplicam as seitas,
etc. Em uma palavra, liberdade e sujeição são repartidas mais equitativamente
quando a sociação, em vez de forçar os elementos de personalidade heterogênea a
entrar em um círculo unitário, concede a possibilidade de reunião aos elementos
homogêneos de círculos heterogêneos.
Eis uma das vias mais importantes para o processo civilizatório seguir. A
diferenciação e a divisão do trabalho têm no começo, de alguma maneira, uma
natureza quantitativa: ela distribui os círculos de atividade de tal modo que se certo
indivíduo ou determinado grupo vê-se alocado em certo círculo em lugar de outro,
cada um deles contém uma soma de relações qualitativamente distintas.
Posteriormente, todavia, tais diferenças serão isoladas desses círculos e reunidas em
um círculo de atividade cuja unidade será qualitativa. A administração do Estado
evolui frequentemente a um ponto tal que, do centro administrativo (no início
totalmente indiferenciado), uma série de setores se separa, sendo cada um deles
submetido a uma autoridade ou a uma pessoa particular. Mas cada um desses

30
Naturalmente, isso pode também produzir-se sobre outra base política, por exemplo, quando
tendências decididamente individualistas se confrontam com uma forte tutela do Estado. Neste caso
a ênfase recai sobre o elemento individual da associação, da margem de liberdade de que esse
elemento desfruta perante a coerção do Estado, graças à qual o indivíduo adquire um ponto de apoio
formal contra aquele. Como no caso mencionado no texto, cruzamos também aqui sentimentos
sociológicos de liberdade e sujeição, só que ali os primeiros pertencem ao agrupamento político e os
segundos ao associativo. Aqui sucede o contrário. O mesmo acontece no segundo exemplo do texto.
(NS)
470 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

setores é originariamente de natureza geográfica ou territorial. Assim, por exemplo,


na Franca, o Conseil d’en-haut 31 enviava intendentes nas províncias para exercer
todas as atribuições que competiam ao Conselho no conjunto do país. Tratava-se,
pois, de uma divisão de acordo com o quantum de trabalho sob a forma de uma
repartição geográfica. Contrariamente, é uma divisão de funções a que aparece mais
tarde quando, por exemplo, surgem do mesmo Conseil os diversos ministérios, cada
um dos quais estende sua atividade sobre todo o país, mas sob um aspecto
determinado qualitativamente. É similar ao que ocorre com a progressão dos
funcionários quando ela é desvinculada de determinado setor geográfico.
Possibilita-se assim, simultaneamente, a nomeação dos agentes no posto mais
adaptado, na prática, a eles (conforme a suas capacidades e méritos), e também a
uniformidade das funções em todo o país. Daí se segue a circunstância de que as
transferências se refiram normalmente aos altos funcionários – enquanto os
subalternos ficam durante toda a vida no mesmo setor de atividade. A importância
maior do talento pessoal entre os primeiros comparada à atividade menos individual
dos segundos seria a causa e também o efeito de que o círculo combine
alternativamente suas funções objetivas com as necessidades e interesses de
diversos lugares. Perante a estabilidade de um território geograficamente
determinado, esse cruzamento dos círculos significaria uma maior liberdade,
corolário da vida individual. Todavia, nos encontramos com um aparente
contraexemplo que parece contradizer (mas que representa em realidade uma etapa
ainda mais elevada) a diferenciação do caso antes estudado. Como ele foi tirado da
administração francesa. Sob o Diretório32, os cinco diretores geriam os assuntos do
Estado quase independentemente uns dos outros: Rewbell, a justiça; Barras, a polícia;
Carnot a guerra, etc. No entanto, para a nomeação dos funcionários provinciais
existia uma divisão de atribuições completamente distinta: Rewbel se ocupava do
Leste; Barras, do Sul; Carnot, do Norte, etc. Consequentemente, a diferenciação das

31
O Conseil d’en-haut era o nome atribuído ao Conseil d’Etat ou Conseil des Affaires sob Luis XIV e
Luis XV. Era assim chamado porque tinha sua sede no segundo pavimento do castelo de Versalhes,
perto dos aposentos reais. (NT)
32
O Diretório foi o regime político adotado pela Primeira República francesa entre o 4 brumário do ano
IV (26 de outubro de 1795) e o golpe de Estado do l8 brumário do ano XVIII (9 de novembro de 1799).
Foi assim chamado porque o poder executivo era exercido por cinco membros, denominados diretores.
(NT)
Georg Simmel | 471

funções objetivas subsistia cruzada por todas as diversidades geográficas. Ora, na


realidade a nomeação dos funcionários exigia principalmente conhecimentos do
lugar ou das pessoas, e só a título acessório conhecimentos profissionais. Por
conseguinte, neste ponto, a forma mais indicada era a divisão geográfica cruzada por
todos os tipos de questões profissionais ou técnicas. Citaremos, por fim, a
indiferenciação absolutamente curiosa dos Consejos espanhois, espécie de
ministérios consultivos sob o reinado de Filipe II33. Como lembra um autor italiano,
tratava-se dos seguintes: dell’Indie, di Castiglia, d’Aragona, d’inquisizione, di camera,
dell’ordini, di guerra, di hazzienda, di giustizia, di stato34. Aparentemente, todos eram
hierarquicamente iguais, coisa que deveria conduzir a colisões constantes entre os
Conselhos territoriais, que representavam a estrutura institucional dos diversos
reinos e os Conselhos profissionais ou de matérias, cuja especialização estava
definida em função da natureza dos próprios corpos consultivos. Pode-se dizer que
se trata de um caso de compartilhamento de funções simplesmente desprovido de
qualquer princípio, dado que deixava o princípio profissional ou técnico e o geográfico
ou territorial agirem indistintamente.
No antigo Egito, a medicina já estava tão especializada que o médico dos
braços não tinha a mesma formação que o das pernas. Eis uma diferenciação
também inspirada em pontos de vista locais. Em face dela, a medicina moderna
confia os mesmos estados patológicos a um único médico especialista, qualquer que
seja a parte do corpo onde eles se manifestem. Por conta disso, agora o fundamento
da classificação é a identidade funcional, em vez da exterioridade casual do lócus da
patologia. O mesmo se pode dizer – embora sob outro aspecto – de aqueles médicos
especialistas que não pretendem debelar certas doenças, e somente elas, mas sim
todas, só que com um determinado método, ou um único remédio. Esse é o caso, por

33
Na verdade, a estrutura de governo da Monarquia espanhola tudo ao longo dos séculos XVI a XVIII
se define como polisinodal, quer dizer, com multiplicidade de Conselhos. Estes derivam do Consilium
ou Curia Regis, reunião de notáveis que aconselhavam a tomada de decisões políticas aos monarcas
alto-medievais em cumprimento do dever de conselho, que junto com a ajuda militar eram o resumo
dos compromissos do vassalo com seu senhor. (NT)
34
Em italiano no original alemão de Simmel: “das Índias, de Castela, de Aragão, da Inquisição, da
Câmara, das Ordens, da Guerra, da Fazenda, de Justiça, da Itália, de Estado” Em diversos momentos
também existiram os Conselhos de Flandres, da Cruzada e de Portugal. Este último, criado em 1582,
seguiu existindo apesar da Restauração portuguesa de 1640, pois Filipe IV não reconheceu a
independência lusa. Foi extinto com o Tratado de Lisboa de 1668. (NT)
472 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

exemplo, dos médicos naturistas que afirmam poder curar todos os males
exclusivamente com água. Bem se vê que esta é uma medicina tão parcial como a
dos médicos egípcios. A diferença é que, graças ao progresso moderno, a medicina
não tem mais um caráter local, mas uma natureza funcional – o que prova que,
mesmo evoluída, segue reconhecendo a diferença entre os métodos exteriores e
mecanicistas e os princípios heurísticos objetivamente adequados. Podemos
encontrar também essa forma (que substitui a antiga diferenciação ou classificação
por uma nova distribuição) nos estabelecimentos mercantis que vendem todos os
insumos necessários para a produção de objetos complexos, como, por exemplo, o
material destinado às estradas de ferro, os artigos de que os donos de restaurantes
e de hotéis precisam, aqueles dos que se abastecem dentistas e sapateiros, assim
como os que fornecem as tendas e demais estabelecimentos que comercializam os
utensílios de casa e cozinha, etc. O ponto de vista unitário, que reúne objetos
provenientes dos círculos de fabricação mais variados não é outro que a sua
referência a um terminus ad quem, ou seja, a uma mesma finalidade, para a qual
todos eles servem – embora, por outro lado, a divisão do trabalho se firme sobre a
unidade de um terminus a quo, quer dizer, de um mesmo modo de produção na
origem dos objetos fabricados. Essas lojas (que têm, certamente, como condição
necessária a unidade mencionada) representam uma maior divisão do trabalho na
medida em que reúnem, desde um ponto de vista novo, elementos que provêm de
ramos da indústria completamente heterogêneos, mas que estão ligados por uma
relação de pertença também nova, sutil e fundamental.
35
Finalmente, as centrais de compras representam também outros
cruzamento e organização da esfera objetiva por um princípio não objetivo,
sobretudo aquelas que reagrupam as encomendas de determinadas categorias
profissionais: operários, oficiais e funcionários. As ordens de compra das duas
últimas categorias se referem, com poucas exceções, aos mesmos artículos

35
Uma “central de compras” é uma organização que tem por objeto reagrupar as ordens de compra
ou encomendas de um conjunto de membros. A estrutura oferece simultaneamente condições de
promoção e melhores condições de venda como resultado de economias de escala e estratégias de
negociação. Pois no geral se conseguem melhores preços dos fornecedores, em situações nas quais
os compradores, agindo individualmente, não teriam força para negociar com empresas ou centrais
de vendas de porte médio ou grande. (NT)
Georg Simmel | 473

propostos, razão pela qual o elemento de separação das duas centrais é puramente
formal e independente da própria coisa. Aperceber-nos-emos facilmente, porém, de
sua utilidade: a grande loja destinada aos funcionários alemães é uma sociedade por
ações, que encara seus clientes como qualquer outro comerciante, que deveria,
portanto, mais bem atingir os seus fins quanto maior for o número de pessoas que
compre no estabelecimento, sem que a limitação a um determinado círculo fosse
necessária para funcionar e obter resultados. Todavia, se ela tivesse sido aberta
como uma simples central de vendas acessível a todos sem distinção, ou mesmo
como um estabelecimento comum, que vende boa mercadoria a um bom preço, o
sucesso teria sido seguramente menor. Foi precisamente essa limitação a algumas
pessoas, completa e objetivamente inútil, que permitiu suprimir os obstáculos e as
hesitações que normalmente tornam os negócios mais difíceis, restrição que exerceu
grande atração sobre todos aqueles que faziam parte desse círculo exclusivo, ainda
que, no fundo, a causa dessa atração não tenha sido outra que a exclusão dos
demais. A totalidade desses fatos – talvez com exceção do último mencionado –
carece de importância sociológica. Eles servem aqui apenas como analogias das
combinações sociológicas, para demonstrar que as formas e normas gerais que
dominam em tais desenvolvimentos se aplicam para muito além da esfera
sociológica. A unidade exterior e mecânica das coisas, a decomposição e
recomposição racional e objetiva dos elementos, a construção de novas totalidades
a partir de pontos de vista mais elevados e mais amplos, são formas típicas da alma
humana. Do mesmo modo que as formas sociológicas se manifestam em um número
infinito de conteúdos, essas mesmas formas revelam funções fundamentais e mais
gerais que jazem no fundo da alma. Forma e conteúdo são apenas conceitos
relativos, categorias do conhecimento para o controle dos fenômenos e para sua
organização intelectual, de modo que uma mesma coisa, em determinada relação e
observada de cima, apresenta-se como uma forma, enquanto na observação de baixo
defini-se como um conteúdo.
A coesão dos operários assalariados é um excelente exemplo de síntese para
a unidade e formação da consciência social. Isso é particularmente interessante pelo
elevado nível de abstração que se antepõe às particularidades supraindividuais. Seja
qual for o trabalho de cada indivíduo, construir canhões ou brinquedos, o fato formal
474 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

de trabalhar por um salário o associa a todos aqueles que se encontram na mesma


situação. A relação uniforme de todos com o capital constitui, em certa medida, o
denominador comum que permite pôr em relevo o que é da mesma natureza em
atividades tão diversas e proporciona um referencial de unidade para todos os
indivíduos envolvidos. A reação inglesa já viu claramente, na virada do século XIX, o
enorme significado de diferenciar psicologicamente o conceito de “operário
genérico”, ignorando a circunstância de que ele fosse tecelão, maquinista, mineiro,
etc., O Corresponding Societies Act proibiu todas as comunicações por escrito entre
as associações de operários, decisão acrescida à interdição de todas as sociedades
formadas por trabalhadores de diversos ramos industriais. Certamente, os
promotores dessa legislação já tinham percebido que se se dissipava a confusão
entre a forma geral da relação de trabalho e as diversas especializações laborais e se
permitia a associação sindical de uma série de ramos profissionais, se descobriria o
que todos eles tinham em comum. Essa descoberta, anulando as diferenças, logo
conseguiria a conformação e a proteção de um novo círculo social, cuja relação com
os anteriores produziria incalculáveis complicações. Depois que a diferenciação do
trabalho deu origem a ramos de natureza diferente, a consciência abstrata desenhou
uma nova linha que reuniu num novo círculo social o que todos tinham em comum.
Podemos ver assim mais uma vez a interação entre o processo lógico e a história
social. Foi necessária a extensão do sistema de organização econômica e social
surgido da Revolução Industrial (que colocou centenas ou até milhares de operários
nas mesmas condições reais e pessoais) para tornar imprescindível a solidariedade
entre os trabalhadores dos diferentes ramos de produção. Em face do
desenvolvimento da divisão do trabalho; foi indispensável que se impusesse
plenamente a economia monetária, para reduzir a significação do trabalho pessoal
ao seu valor em dinheiro; assim como foi preciso que as exigências vitais fossem
cada vez maiores e ridiculamente desproporcionais em relação ao salário, para que
o fator “trabalho assalariado” aparecesse como o elemento decisivo. Essas forças,
relações e situações sociais se concentram no conceito geral de operário
assalariado, como uma espécie de foco luminoso para, por sua vez, irradiar
influências, o que teria sido impossível sem essa síntese lógico-formal. E se a
Internacional, que no início tinha formado suas seções sem considerar as diferenças
Georg Simmel | 475

de profissão de seus membros – como já dissemos mais acima – mudou logo esse
critério para organizá-los em sindicatos profissionais, essa não foi mais que uma
decisão técnica mais útil para os interesses gerais dos operários, pois também aqui,
no fundo, o ponto de partida e de chegada sempre foi o conceito de “operário
genérico”.
Este conceito que neutralizava 36 todas as diferenças profissionais e que
possuía apenas uma significação lógica, passou a ter também uma feição jurídica.
Os direitos à proteção do operário em face dos infortúnios laborais, e o conjunto de
ações dos poderes públicos que asseguram a saúde e a assistência dos
assalariados, criaram o conceito jurídico de operário ao qual atribuíram um conteúdo
– nos termos do qual o simples fato de alguém exercer, sob as ordens de outrem e
mediante salário, um trabalho (especialmente manual ou mecânico) traz para ele
certas consequências jurídicas. Decorrências que não acabam por aqui, pois além
dessas significações lógicas, éticas e jurídicas, a transversalidade da supressão de
todas as diferenças de ofício tem outros correlatos estritamente factuais, como
possibilitar a “greve geral” – greve que não serve aos fins de um único sindicato, mas
para obter certos direitos políticos para o conjunto da classe trabalhadora, como a
greve dos cartistas37 ingleses em 1842 ou a greve dos operários belgas em 1893. É
interessante constatar de que modo o conceito de “operário”, uma vez que ele
apareceu em sua universalidade absoluta, introduz o mesmo caráter e as mesmas
consequências até nas estruturas menores. Na França, existe desde 1884 uma lei
sobre associações profissionais que autoriza a vinte ou mais pessoas que pertençam
ao mesmo ofício ou a uma atividade conexa, a constituir, sem autorização do
governo, um sindicato profissional. Na esteira da normativa citada, formou-se depois
um sindicato de “operários ferroviários” que não exercem, de fato, as mesmas
atividades profissionais. O que esses ferreiros, carregadores de malas, guarda-
chaves, assentadores de trilhos, estofadores, condutores de locomotivas e
mecânicos têm em comum é exclusivamente ser operários ao serviço da estrada de

36
Utilizamos aqui o verbo “neutralizar” em sua significação linguística de “anular uma oposição em
determinados contextos, continuando a funcionar em outros”. (NT)
37
Partidários do movimento político de cunho reformista, na Inglaterra dos anos 1837 a 1848,
denominado “cartismo”, do qual resultou a Carta do Povo, redigida em 1838, que continha o programa
do grupo. (NT)
476 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

ferro. O objeto da constituição desse sindicato é que, através dele, cada uma dessas
profissões pode exercer sobre a administração uma forte pressão que por si só não
seria capaz de fazer sentir. Pelo mesmo modus operandi de lógica formal o
significado de “operário genérico” se transforma no de “ferroviário genérico”,
conceito meramente prático em que se apagam todas as particularidades do seu
trabalho. A forma com que o conceito mais amplo chega ao mesmo resultado
costuma ser a coalizão de coalizões. Nesse caso, (em que a primeira associação
elimina todos os aspectos pessoais e apenas resta o conceito puro de marceneiro ou
de sapateiro, de soprador de vidro ou de tecelão), surge clara e facilmente, como
instância suprema, o conceito puro de “operário”, que suprime todas as diferenças
advindas do conteúdo do trabalho. Ao pedreiro, naturalmente pouco importa que o
tecelão da manufatura de algodão que pertence a sua mesma federação sindical,
obtenha um salário horário maior ou menor. Por conseguinte, se a federação sindical
procura obter melhores condições de trabalho, não faz isso desde o ponto de vista
do indivíduo, mas desde aquele do conjunto dos operários.
O mesmo acontece quando patrões de diversos ramos de atividade básica se
associam. O patrão de uma empresa inserida em certo ramo ou área do mercado, não
tem interesse pelas relações que possa manter com seus próprios operários o patrão
de outro ramo de atividade. A posição do patrão é buscar o fortalecimento da
associação dos empregadores em geral em face do operário genérico. Esse conceito
genérico de patrão aparece necessariamente em correlação com o de operário. Tal
sincronismo lógico, entretanto, não se torna imediatamente psicológico e prático.
Sem dúvida, essa dinâmica decorre essencialmente de três tipos de razões: o número
dos patrões é menor do que dos operários (quanto mais exemplares existem de um
gênero, mais facilmente o conceito geral se forma); a concorrência dos patrões entre
si, que não existe entre os operários; e, finalmente, a atividade patronal se confunde
com o conteúdo de cada ramo, o que se atenua nos últimos tempos pela sublimação
do capitalismo. As técnicas industriais modernas tornam o operário muito mais
indiferente à especificidade do seu trabalho do que o patrão à particularidade da sua
fábrica. Por estar vinculado aos outros operários para além do conteúdo particular
de seu trabalho, o assalariado percebe o fenômeno antes que o patrão. No entanto, a
solidariedade dos operários tem levado também à solidariedade dos patrões, que
Georg Simmel | 477

acabou se transformando em um conceito geral ativo. Por isso, assistiu-se ao


aparecimento não só de coalizões de patrões do mesmo ramo de atividade, mas
também de federações de associações patronais completamente distintas. Nos
Estados Unidos, as greves cada vez mais importantes dos operários provocaram a
criação, desde 1892, de uma associação de patrões, organizada como um partido
político, com a finalidade de opor uma resistência solidária aos trabalhadores em
luta. A unidade fundamental da relação entre patrão e operário, que, apesar de todas
as divergências, tinha existido antes, repousava no fato de que o conteúdo do
trabalho se confundia com posições formais. Os conceitos diferenciados de patrão
genérico e de operário genérico traçaram linhas transversais nas relações
particulares, definidas para cada caso, e prevaleceram sobre a antiga unidade. Esta
unidade foi substituída pela relação de dois conceitos gerais formais destinados a se
oporem pela mera essência lógica de operário e patrão individuais, que deixaram de
estar associados materialmente pelo conteúdo do trabalho, para se converterem em
representantes puramente acidentais de suas respectivas categorias.
A origem da classe mercantil, como um conjunto de pessoas real e ideal, é de
ser comerciante em geral, seja o que esteja a vender, e tem afinidade com a gênese
sociológica da classe operária. No entanto, neste caso, o que facilita a distinção entre
o geral e o específico é que, na função mesma do comerciante individual, a forma de
sua atividade é já muito independente de seu conteúdo. Enquanto a atividade de
operário depende absolutamente do que ele fez com o seu trabalho (e por
consequência não se identifica facilmente como conceito puro de atividade), a função
específica do comerciante é relativamente independente daquilo com que está a
comerciar. Essa dinâmica se processa, sobretudo no início das atividades, quando
existe grande variedade de mercadorias e troca indefinida de objetos com as mesmas
funções de compra, de venda ambulante e de contatos diretos com o consumidor. No
começo, se falava assim simplesmente de “mercador”, e ainda hoje se encontra, na
porta de algumas lojas nos pequenos povoados, tabuletas que dizem apenas
“mercearia”38, sem precisar a natureza dos gêneros a negociar. E o que isso revela do
caráter funcional de cada comerciante individual se repete na pluralidade dos que,

38
Proveniente etimologicamente do italiano merceria (antigo merciaria) por sua vez derivado de merce
“mercadoria”, e este do latim merx,cis “mercadoria”, igualmente. (NT)
478 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

visando o lucro, têm sua profissão habitual na venda, compra ou troca de


mercadorias, dentro de uma economia desenvolvida. Essa variedade dos conteúdos
objetivos se difunde, graças à divisão do trabalho, por todas as especialidades da
atividade mercantil – de maneira tal que os aspectos comuns (que não mantinham
uma vinculação muito estreita com as facetas específicas) se convertem no nexo
lógico da classe comerciante, cuja comunidade de interesses, transformada em
conceito, passa por cima de todas as diferenças de conteúdo.
Tal conceito marca igualmente o desaparecimento das linhas que separam os
comerciantes para além das diferenças que possam existir entre os objetos de suas
atividades. Até começos da Idade Moderna, as “nações” estrangeiras possuíam, nos
grandes centros do comércio, privilégios específicos que as diferenciavam umas das
outras e dos autóctones, de maneira que cada um era inserido num grupo particular.
Mas, quando no século XVI, foi concedida liberdade de comércio a Antuérpia e a Lião,
e os comerciantes afluíram a essas cidades, eles estavam isentos desses contrastes
e de suas consequências. A inaudita concentração do comércio daí resultante fez
nascer entre os indivíduos das antigas “nações” uma “classe mercantil” cujos
direitos, usos e costumes, bastante uniformes, não se alteraram pela diversidade de
seus estabelecimentos nem por suas particularidades individuais e nacionais.
Mesmo hoje é possível observar que as normas reguladoras das trocas comerciais
se diferenciam, com maior rigor, dos preceitos próprios de um ramo específico de
atividade tanto maior seja o número de ramos em que a produção econômica esteja
dividida – enquanto nas cidades industriais cuja atividade se concentra num único
ramo, a noção de indústria ainda não se libertou realmente do conceito de fabricação
de um produto específico (ferro, tecidos ou brinquedos) porque os usos deste outro
tipo de tráfico, representado pelas trocas industriais, toma também emprestado seu
caráter dos ramos de atividade dominantes. Os fenômenos práticos também
obedecem à psicologia da lógica: se não existisse mais que uma única espécie de
árvores, não se teria chegado a formar o conceito genérico de árvore. Analogamente,
os seres humanos fortemente diferenciados, de cultura e atividades muito variadas,
desenvolvem mais facilmente sentimentos e convicções cosmopolitas do que as
naturezas mais monolíticas. Para estas últimas a humanidade se oferece sob uma
luz limitada, já que de fato são incapazes de se colocar no lugar dos outros e,
Georg Simmel | 479

portanto, de chegar a sentir aquilo que é comum a todos. Por outro lado, como já dito,
as consequências práticas da criação de conceitos gerais mais elevados nem sempre
se apresentam cronologicamente, pois que costumam aparecer como um estímulo,
constituído em ação recíproca, que ajuda a se produzir a consciência da comunidade
social. Assim, a classe dos artesãos adquiriu amiúde a consciência de sua
comunidade graças aos aprendizes. Quando no baixo medievo o trabalho se
depreciou pelo emprego excessivo de aprendizes, o único efeito que se conseguiu
limitando essa prática a um só ramo de atividade foi que os aprendizes expulsos
invadissem os outros ramos. Somente uma estratégia comum pôde resolver isso
– de um modo que só foi possível pela pluralidade de ofícios, mas que provocou a
consciência da unidade de todos eles, superando suas diferenças específicas.
Finalmente, junto aos tipos operário e comerciante, citaremos um terceiro
como exemplo de criação de um grupo mais abstrato, cujas qualidades conceituais
gerais se confundiam com as determinações particulares de seus elementos. Tais
elementos, aliás, determinam o ponto de cruzamento do novo círculo com as relações
que ele deixou atrás (mas ainda conserva) como círculo individual. Referimos-nos à
evolução sociológica que recentemente o conceito de “mulher” alcançou e, que nos
oferece complicações formais que, de outro modo, não seriam facilmente
observáveis. Na posição sociológica de cada mulher, existia até agora algo muito
singular. O que a excluía de todo agrupamento propriamente dito, de toda
solidariedade concreta com as outras mulheres, era precisamente seu caráter mais
geral – que permitia associá-la a todos os outros seres humanos femininos sob o
conceito mais vasto: ela é mulher, e deve assegurar as funções próprias de seu
gênero. Isso porque, precisamente, sua definição genérica a reposicionava nos
limites estritos de seu lar, dedicada apenas a pessoas singulares, impedida de sair
do círculo de relações determinado pelo casamento, família, vida social, e
eventualmente pelas obras de caridade e religião. As situações análogas das
mulheres em seu ser e seu agir têm um conteúdo que as impede de tirar partido de
suas semelhanças para formar associações, pois o que é comum a todas elas
consiste em estar plenamente consagradas a seu próprio círculo, o que exclui
qualquer outra mulher numa situação idêntica. Por conseguinte, sua condição geral
de mulher está a priori destinada a inscrever-se organicamente no círculo de
480 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

interesses do lar. Isso significa situar a mulher no extremo sociológico oposto ao


comerciante, por exemplo, em cuja atividade individual o aspecto formal geral se
distingue por si mesmo do aspecto específico em virtude do conteúdo. Parece que
em circunstâncias sociológicas primevas o distanciamento das mulheres era menor,
permitindo que elas enfrentassem os homens como um verdadeiro partido. É possível
que nesses casos a mulher não estivesse tão comprometida com os interesses
domésticos como em épocas atuais, e que, apesar da tirania do homem, as relações
mais simples e indiferenciadas da vida familiar e doméstica não a tivessem afastado
tão acentuadamente do universal que ela compartilha com todas as mulheres, nem
incluído numa esfera tão circunscrita como o lar das sociedades complexas.
Mas hoje em dia esses laços se atenuaram o suficiente para dar origem ao
problema “feminista”, o problema geral das mulheres como totalidade, e para
conduzir às mais variadas ações, reformas e associações – o que revela um
fenômeno sociologicamente marcante. Aquele isolamento das mulheres entre si, pela
inscrição de cada uma de elas em um círculo de interesses absolutamente individual,
repousa na convicção total da diferença entre a mulher e o homem. Em nossa cultura,
o sentido da vida da mulher se refere, quase por inteiro, a uma relação entre
desiguais. Nesse caso, o homem aparece como o ser superior, pelo desenvolvimento
de seu intelecto e atividade, pela afirmação da personalidade e pela relação com o
meio. Para além de toda questão de hierarquia, ambos os gêneros parecem de
natureza tão diferente que só poderiam estar destinados a se complementar
mutuamente, de modo que a existência feminina somente encontre sentido naquilo
que o homem não queira ou não possa ser ou fazer. Ora, as mulheres conceberam
recentemente um reequilíbrio de todos esses pontos de vista e começam a obter
alguns resultados (em sua posição pessoal e independência econômica, na cultura
intelectual e a consciência de si mesmas, na liberdade social e no papel na vida
pública), colocando-se frente ao homem. Tal enfrentamento (similar ao inspirado por
um partido e que destaca a solidariedade de interesses entre as mulheres) se
manifesta no momento em que se ameniza – como causa ou efeito – a alteridade
fundamental do ser e do fazer, do direito e dos interesses das mulheres relativamente
aos homens. É justamente nas formas caricatas desse movimento (nessas mulheres
que aspiram à completa masculinidade em sua maneira de ser e de agir), que se
Georg Simmel | 481

encontra amiúde a hostilidade mais apaixonada para com os homens. Essa situação
é fácil de entender. Na medida em que a igualdade de condição mais se acentua,
como valor e qualidade da mulher perante o homem (respeito de quem ela estava
antes em uma posição subordinada ou, pelo menos, de alteridade radical e, portanto,
de dependência) tanto mais enérgico deve ser o sentimento de autonomia da mulher.
No entanto, essa liberdade parcial faz que aquilo que a mulher tem em comum com
as outras mulheres fique mais visível e eficaz – tornando evidente o que até então
não aparecia com suficiente clareza por causa da relação de subordinação ou
complementaridade em que ela se encontrava. Estamos, portanto, em presença de
um caso extraordinariamente puro de formação de um círculo superior, constituído
por um conceito genérico, a partir de círculos mais estreitos que mantinham cada
elemento em uma relação singular.
O que não se pode contradizer pelo fato de que o feminismo do proletariado
tenha tomado uma direção prática absolutamente oposta a do feminismo da
burguesia. É fato que o desenvolvimento industrial permite liberdade
socioeconômica à mulher proletária – por mais miserável que seja sua liberdade
individual. A garota proletária vai à fábrica com uma idade na que necessitaria ainda
da atmosfera de convivência da casa dos pais, ao passo que; a mulher burguesa
casada se desliga de seus deveres para com o lar, o marido e os filhos em virtude do
trabalho remunerado fora de casa. Consequentemente, a mulher fica liberada do
vínculo singular que a destinava à subordinação ao homem ou, pelo menos, a uma
atividade completamente distinta da do marido. A transcendência desse fato
sociológico independe de que possa ser considerado indesejável ou nocivo, e de que
a mulher proletária anseie muitas vezes a limitação dessa liberdade, tenha saudades
da família e queira ser em maior grau companheira conjugal e mãe. Na classe
burguesa, o mesmo desenvolvimento econômico afasta da casa familiar um número
incalculável de atividades domésticas, simplesmente funcionais ou verdadeiramente
produtivas, impedindo assim que um número imenso de mulheres tire o máximo
partido de suas potencialidades, enquanto, no essencial, continuam presas ao lar.
Elas aspiram por consequência à liberdade de ter uma atividade econômica ou de
outro tipo, sentindo-se intimamente alheias ao círculo específico da casa, assim
como a proletária o sente exteriormente. Essa diferença entre as camadas sociais
482 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

nas quais se tem operado esse alheamento está na origem da disparidade das
aspirações práticas: a mulher de uma dessas classes deseja voltar para casa
enquanto a de outra classe tenta ficar de fora. Mas, mesmo que a despeito de tal
diversidade de aspirações, haja lugar para certas coincidências (desde que no
referente à regulação jurídica do casamento, ao regime de bens da sociedade
conjugal, ao pátrio poder sobre os filhos, etc., o feminismo concerne igualmente às
duas classes), subsiste o principal: o isolamento sociológico da mulher,
consequência da fusão com o lar, está ameaçado de dissolução pela moderna
industrialização. Isso poderá acontecer sob a forma do demasiado ou do insuficiente.
Em ambos os casos, a autonomia adquirida e a emancipação almejada salientam a
efetividade do ser mulher, que cada mulher partilha com outras mulheres certas
situações e necessidades práticas. Quando ela perdeu aquele isolamento originado
na orgânica inscrição no círculo de interesses do lar, o conceito geral de mulher
perdeu seu caráter puramente abstrato e se tornou dominante em um grupo coerente
que se manifesta em certa medida através de sociedades exclusivamente femininas
de assistência mútua, de ligas de defesa dos direitos da mulher, de associações
estudantis de jovens mulheres, de congressos femininos e de toda forma de agitação
das mulheres em prol de seus interesses políticos e sociais. Tendo em conta as
notáveis relações do conceito de mulher com o conteúdo específico da vida dos
indivíduos (muito mais estreitas que no caso dos operários e comerciantes), ainda
não é possível prever quais serão as orientações objetivas e os limites deste
movimento. Contudo, muitas mulheres já se sentem no ponto de cruzamento de
grupos que as ligam a pessoas e conteúdos de sua vida pessoal e às mulheres em
geral.
Se no caso precedente a diferenciação consistiu em extrair o círculo superior
do círculo específico individual (o círculo superior só existia em estado latente),
também é missão da diferenciação separar os círculos mais próximos, uns dos
outros, em função da posição de seus membros. Um bom exemplo disso é a guilda
medieval, que vigiava todas as facetas da personalidade de seus integrantes,
chegando a regular sua conduta pessoal em função dos interesses do ofício. Aquele
que era admitido como aprendiz por um mestre se convertia simultaneamente (entre
outras coisas) em membro da família do artífice. Em uma palavra, a atividade
Georg Simmel | 483

profissional era o centro da vida toda, incluindo a vida política e até a sentimental.
Entre os motivos que levaram à dissolução desta comunidade, nos interessaremos,
de momento, pela divisão do trabalho. A força de todo círculo de interesses que
estruture um grupo de indivíduos diminuirá, caeteris paribus39, na medida em que se
reduza sua extensão. A limitação da consciência determina que uma atividade
diversificada, com uma pluralidade de representações vinculadas a ela, atraia a seu
campo o restante das representações desse universo; sem para isso ver-se
obrigadas a ter relações objetivas entre elas. A necessidade de passar rapidamente
de uma representação para outra, faz com que numa ocupação em que não haja
divisão do trabalho seja preciso tal quantidade de energia psíquica – usando a
linguagem simbólica a que devemos recorrer quando se trata de problemas
psicológicos complexos – que o prosseguimento dos outros objetivos pode ficar
comprometido, permitindo que os interesses assim enfraquecidos caiam, por razão
de maioria, sob a dependência associativa daquele círculo central de representações.
Assim como um homem movido por uma grande paixão relaciona a este sentimento
até as coisas mais remotas e com menor contato com seu conteúdo, também dessa
forma assiste-se a uma centralização espiritual análoga quando a profissão não
deixa livre mais que uma quantidade relativamente fraca de consciência para as
outras relações da vida. Confrontamo-nos aqui com uma das consequências
internas mais importantes da divisão do trabalho. Ela repousa no mencionado fato
psicológico segundo o qual (dentro de um espaço temporal específico e mantendo
os outros fatores) necessitamos de mais imaginação quanto mais frequentemente a
consciência deva passar de uma representação a outra. Essa rápida mudança das
representações tem a mesma consequência que a intensidade da paixão no caso
precedente. Por isso – em igualdade de circunstâncias – uma atividade sem divisão
do trabalho ocupará uma posição mais central na vida de um homem que uma
ocupação muito especializada, em particular nos períodos em que as outras relações
da vida não tinham ainda a variedade e as sugestões alternativas características da
época moderna. Acrescente-se a isso que, sendo as ocupações especializadas de
caráter essencialmente mecânico, deixam mais espaço na consciência para outras

39
Expressão latina que significa: “se todas as demais coisas ligadas a ela permanecem iguais”. (NT)
484 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

relações – quando não atrofiam a energia espiritual absorvendo completamente o


tempo e as forças. Tal separação coordenada dos interesses que estavam antes
fusionados em um interesse central é estimulada ainda por outro efeito da divisão do
trabalho relacionado a um fato anteriormente mencionado: o conceito social superior
surge dos círculos individuais mais específicos. As associações entre as
representações e círculos de interesse centrais e periféricos (geralmente criadas por
razões psicológicas e históricas) são consideradas necessárias, na maioria das
vezes, até que a experiência nos revela pessoas que apresentam o mesmo centro e
uma periferia completamente diferente, ou bem a mesma periferia com um centro
totalmente díspar. Consequentemente, se todos os interesses da vida dependessem
da pertença a uma profissão, seria necessário tornar a subordinação menos rigorosa
à medida que aumentasse a diversificação dos setores de atividade, porque, apesar
de suas diferenças, os demais interesses revelariam muitos pontos em comum.
Esta forma de evolução é extremamente importante para as relações
confidenciais dos homens, e mesmo para as expressas por eles em público. Um
determinado elemento em nós está vinculado a outro (que apresenta. sob uma forma
específica, um caráter geral que ele compartilha com muitos outros), e esse vínculo
compreende ao segundo elemento originariamente na união harmoniosa de sua
maneira geral e de seu estilo particular de ser. Mas, eis que um processo de
dissolução sobrevém: o primeiro elemento se alia, em outro lugar, com um terceiro
que contém o caráter geral do segundo, mas de outra forma particular. Essa
experiência pode ter duas consequências absolutamente opostas, segundo a
maneira como os dois componentes do segundo elemento estejam presentes no
indivíduo. Se esse vínculo fosse muito estreito, a união dos elementos da qual
partimos se romperá. Isso acontece com frequência na conexão da vida moral com
a religiosa. Para o indivíduo, sua religião costuma ser a religião: os outros credos não
contam para ele. Se a pessoa baseia sua moral nas representações específicas e
próprias dessa religião, sendo convencida por sua experiência de que pode
encontrar-se entre outros indivíduos uma moralidade análoga, tão pura e valiosa
como a sua, mas resultante de ideias religiosas totalmente diferenciadas, será muito
raro que chegue à conclusão de que a moral só está unida com a têmpera religiosa,
com aquela correção de princípios comum a todas as religiões, Ao contrário, a pessoa
Georg Simmel | 485

tirará daí a conclusão de que a moral nada tem a ver com a religião, deduzindo a
autonomia do conjunto dos valores norteadores das relações sociais, e não, por
exemplo, a ideia (tão justificada do ponto de vista lógico como a outra) de que cada
um dos sistemas éticos que organizam a vida das múltiplas comunidades humanas
se vincula com o âmago universal da religião. O mesmo não acontece, por exemplo,
quando um homem que só consegue a satisfação do dever cumprido pondo em
prática uma forma de altruísmo que nele está associada constantemente a uma
dolorosa superação do eu (a uma espécie de ascetismo atormentado), vê outro
homem obter o mesmo sossego e contentamento, mas praticando um altruísmo
espontâneo, livremente assumido, e vivendo uma vida simples e alegre. Não será fácil
o primeiro concluir que essa paz interior que ele procura e esse íntimo sentimento de
autovaloração provavelmente não tenham nada a ver com a dedicação aos outros;
limitando-se a deduzir que a forma específica, ascética, do altruísmo não é
necessária para conseguir a dita tranquilidade de consciência, e que ela pode ser
alcançada por meio de outro altruísmo que, conservando o essencial de todo amor
desinteressado ao próximo, possua forma e matiz distintos. Nesse contexto, a
separação acima referida do interesse profissional em relação aos outros interesses
da vida, por meio da variedade de ofícios, é um fenômeno intermediário cuja
consequência principal se aproxima do primeiro caso. A profissão de um homem
deverá ser sempre associada à totalidade de sua vida. Quer dizer que este elemento
absolutamente universal e formal funcionará invariavelmente como centro de
orientação para muitos outros pontos da vida. Porém, esse não é mais que um efeito
formal, funcional, da profissão – comparável, inclusive, ao relaxamento progressivo
dos laços que vinculam o ofício à vida pessoal propriamente dita.
A crescente diferenciação das profissões mostrou ao indivíduo que a mesma
orientação em diferentes esferas da vida podia estar vinculada a diversos ofícios e,
por conseguinte, ser significativamente independente da profissão. E a diferenciação
de todas as demais esferas da vida (que aumenta igualmente com a difusão da
cultura) conduz também à mesma conclusão. A diversidade da profissão – se todos
os demais interesses fossem idênticos – e a diversidade dos interesses – se todas
as profissões fossem iguais – deveriam conduzir identicamente à separação
psicológica e real de uns e outras. Sem ignorar a distância que existe entre
486 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

estabelecer diferenciações e sínteses a partir de pontos de vista externos e


esquemáticos e fazê-lo segundo nexos objetivos, encontraremos uma marcada
analogia com o progresso alcançado na área da ciência. Antigamente se acreditava
que os problemas fundamentais relativos ao conhecimento dos entes vivos podiam
ser resolvidos reunindo grandes grupos de tais criaturas segundo os traços conexos
de sua aparência exterior. Mas para conseguir chegar a uma compreensão mais
completa e exata delas foi preciso descobrir previamente igualdades morfológicas e
fisiológicas entre seres aparentemente muito díspares, que tinham sido classificados
até então a partir de diferentes conceitos de espécie – o que permitiu formular leis
da vida orgânica que se cumpriam em pontos muito distantes uns dos outros na série
dos seres vivos. Foi este conhecimento que permitiu reunir o que antes tinha sido
repartido segundo critérios externos entre conceitos cuja gênese era absolutamente
autônoma. Aqui também, a união dos elementos objetivamente homogêneos,
pertencentes a círculos heterogêneos, é um sinal evidente de um passo evolutivo
maior no processo civilizatório.
Um círculo que se desenvolve em torno de um novo centro racional,
substituindo um centro mais mecânico e externo, não precisa buscar sempre seus
elementos em outras organizações, quer dizer, não sempre significará a criação de
novos grupos. Ao contrário, como é frequentemente o caso, pode suceder que seja o
mesmo círculo que mude de uma forma para a outra, a partir de uma síntese já
existente que faça surgir um conceito mais elevado e orgânico que substitua a outro
mais tosco e contingente na sua função de coesão e enraizamento. Esse foi o
esquema que seguiu, por exemplo, a evolução que pode ser observada durante o
século XII em Ruâo e outras cidades do Norte da França naquilo que se denominou
jurati communiae. Tratava-se de pessoas majoritariamente (mas não por princípio)
de condição burguesa, que pertenciam ao mesmo ofício e categoria, que levavam um
modo de vida semelhante e que formavam uma espécie de confraria. Eram de número
restrito (pelo menos no início), estavam vinculadas por juramentos recíprocos e
parecem ter gozado de alguma proeminência e certos privilégios na comunidade,
pois nos estatutos dessas associações se fala amiúde de habitantes que ofendem
os jurati ou que falsamente se fazem passar por tais. No entanto, em certo momento
de seu desenvolvimento institucional toda pessoa que tivesse morado um ano e um
Georg Simmel | 487

dia no burgo devia, nos termos da lei, prestar juramento à commuia, assim como
quem quisesse afastar-se dela devia também perder a proteção do burgo.
Finalmente, essas confrarias se fortaleceram de tal modo que acabaram por
incorporar – não sempre por sua própria vontade – toda a população que habitava
dentro do perímetro urbano. Como podemos ver, tínhamos aqui primeiramente a vida
em comum, puramente local e relativamente casual, dos vizinhos do povoado. Mas
essa convivência tornou-se, aos poucos, para alguns, uma associação voluntária,
fundada em um princípio e para alcançar um objetivo, até que todo esse conjunto
restrito de pessoas vinculadas por um laço comum se transformou no sustentáculo
de uma forma nova e superior de união, sem que seu objeto e coesão fossem
essencialmente modificados. O círculo racional, organizado em função de uma ideia
unitária, não cruza o círculo primitivo (ou natural), limita-se apenas a ser a forma
superior e abstrata, por assim dizer, ao abrigo da qual parece que o antigo se renova.
Essa evolução formal se repite, com conteúdo absolutamente diferente, na relação
que se estabelece entre as colônias e sua metrópole. Desde Colombo e Vasco da
Gama, a colonização europeia teve que enfrentar os efeitos negativos causados pelo
tratamento discriminatório que sofreram os longínquos territórios em que se
promoveu esse processo (que não obtinham vantagem alguma do vínculo de união
com a metrópole, apesar de estarem sujeitos a tributo) e eram considerados como
meras possessões. Este tipo de relação, objetivamente injustificada, conduziu à
emancipação da maior parte das colônias. O fundamento que abonava sua
independência só foi enfraquecido quando, no âmbito britânico 40, nasceu outra ideia
que traduz o propósito de que a colônia seja uma simples província ultramarina da
mãe-pátria, com os mesmos direitos que as outras províncias situadas no território
metropolitano. Pois que a forma de união deixou de consistir então numa simples
junção, rígida e externa, para converter-se em um vínculo conforme o sentido mais
elevado do termo commonwealth – que pressupõe uma união elástica, por

40
O autor deve aludir a um projeto político que teve suas origens quando, em 1884, Lorde Earl
Rosebery, durante uma visita à Austrália, descreveu as mudanças que estava sofrendo o Império
Britânico, depois de que algumas de suas colônias se tornaram mais independentes, como a formação
de um Commonwealth of Nations. Esta “comunidade” começou a tomar corpo com as Conferências
imperiais, que reuniram representantes dos britânicos e das suas colônias logo, periodicamente,
desde a primeira em 1887. (NT)

488 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

disposição de lei ou destinação natural, segundo o qual o autogoverno das colônias


equivaleria à independência relativa dos membros em um corpo orgânico. A mesma
diferença formal não se apresenta mais na coexistência da síntese esquemática com
a racional (como nos exemplos dados acima, em que a antiga síntese cruzava à
nova), mas através de uma sucessão temporal.
Todavia, quando a vitória do princípio racional objetivo sobre o princípio
superficial esquemático marcha paralelamente com o progresso do processo
civilizatório, pode acontecer que esta coesão (que não é um a priori) possa faltar em
certas ocasiões. A solidariedade da família pode aparecer como um princípio
mecânico e ilusório, em face da associação baseada em pontos de vista objetivos,
mas quando a comparamos a uma repartição estritamente numérica – como as
décadas e as centúrias do Peru pré-colombiano, da China, e de uma grande parte da
antiga Europa – parece um princípio objetivamente fundado. A unidade sociopolítica
da família e sua responsabilidade como um todo têm um sentido para cada um de
seus membros, tanto mais racional quanto mais bem se apreciam as consequências
da herança. Em compensação, a reunião de um número sempre igual de homens,
tratado como uma unidade (do ponto de vista de sua organização interna, do serviço
militar, da tributação, da responsabilidade criminal, etc.), está totalmente desprovida
de fundamento racional – o que não impede que, em todos os lugares onde podemos
observá-la, ela substitua o princípio gentílico ao serviço de um nível superior de
cultura. Ela também não pode estar justificada pelo terminus a quo – nesse sentido
o princípio de família é superior a todos os outros como motivo de diferenciação e
integração –, mas pelo seu terminus ad quem, pois precisamente por seu caráter
esquemático, esta distribuição (fácil de controlar e de organizar) é ao mais adequada
do que a antiga para os fins políticos superiores. Os exércitos da Antiguidade foram
organizados, em sua maior parte, com base no princípio clânico ou familiar. Os
gregos dos tempos heroicos combatiam organizados em phylès e phratrias 41, os
germanos em tribos e estirpes, assim como os antigos escoceses o faziam em clãs
– reconhecendo-se cada um desses agrupamentos, nas grandes empresas comuns,

41
Na Grécia pré-homérica as phratrias ou trittys, eram os grupos em que se dividiam as tribos
atenienses e de outras cidades áticas Três phratrias compunham uma phylè. (NT)

Georg Simmel | 489

por sinais externos notórios. Essa estrutura orgânica tinha muitas vantagens: ela
tornava cada formação capaz de uma grande coesão, atiçava entre as unidades uma
notável emulação e dispensava até certo ponto ao comando em chefe de ocupar-se
dos indivíduos e de formar os responsáveis do enquadramento da tropa. No entanto,
o preço a pagar por essas vantagens era frequentemente alto: os antigos
preconceitos e querelas readquiriam força, paralisando o movimento de conjunto da
unidade, o que, em geral, privava as diversas seções de solidariedade e enlace entre
elas – circunstância ainda mais chocante quando cada uma possuía individualmente
as qualidades exigidas. Por conseguinte, o todo constituído por esses elementos não
remetia ao desenvolvimento natural deles, a despeito de seu caráter orgânico – ou
talvez por causa dele. Em compensação, desde o ponto de vista do conjunto, a
estrutura impessoal e rigorosa dos exércitos mais recentes (que não leva em conta a
eventual relação interna que poderia existir entre os elementos da seção) é muito
mais orgânica, entendendo-se por esse conceito a regulação unitária e adequada da
mínima parte da formação por uma ideia central, a saber, a influência recíproca dos
elementos. A nova ordem atinge imediatamente o indivíduo e (graças a que suas
divisões e concentrações cruzam inexoravelmente todas as outras) destrói os laços
orgânicos em proveito de um funcionamento preciso e exigente, mas infinitamente
mais favorável à finalidade da qual essa forma mais orgânica (no sentido primário do
termo) extraía seu valor. Surge aqui o conceito de técnica, tão essencial para as
épocas avançadas. Contrariamente aos tempos primevos, nos quais a vida era mais
direta, instintiva e unitária, em virtude da técnica é possível alcançar fins que são da
ordem do espírito com meios predominantemente mecânicos. Essa evolução se
manifesta também nos princípios que regem as eleições parlamentares notadamente
na maneira com que as circunscrições eleitorais estabelecidas a este fim cruzam os
grupos existentes. A princípio, as representações de classe – como no reinado de
Filipe IV de França42 os estados gerais eram os representantes do clero, da nobreza
e das cidades – parecem ser mais naturais e orgânicas, em face da divisão
puramente convencional dos corpos eleitorais – como os estados gerais dos Países

42
Também chamado de Filipe, o Belo, foi rei da França como Filipe IV, de 1285 até sua morte em 1314.
Foi também rei da Navarra como Filipe I, de 1284 a 1305 em virtude de seu casamento com Joana I.
(NT)
490 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Baixos, na época de Filipe II de Espanha43, que eram os representantes locais das


diversas províncias. A delimitação espacial traduz interesses tão variados
(frequentemente tão irreconciliáveis), que a expressão de uma vontade unitária pelo
voto de um único representante parece excluída; razão pela qual dá a impressão que
a representação dos interesses (mais racional que esse princípio mecânico e
extrínseco) poderia conseguir isso. Mas, em realidade, trata-se da mesma coisa que
aconteceu com a organização dos exércitos. Os diferentes grupos – o conjunto
complexo de pessoas interessadas com sua representação – estão construídos de
maneira mais orgânica no último caso, mas sua coexistência é mais difícil, ilusória.
A circunscrição eleitoral restrita a determinada área é realmente mais precisa, mas o
voto exclusivamente local não impõe a representação privilegiada do interesse do
lugar. Essa forma de escrutínio constitui a técnica que permite a coerência orgânica
do conjunto, na medida em que cada deputado representa o país por inteiro. A divisão
partidária, segundo tendências políticas que então aparecem, não representa (de
acordo com a ideia que a preside) mais que as diferentes convicções sobre os meios
com que o bem comum, o único que importa, pode ser alcançado. A representação
das classes ou dos interesses se sobrepõe, com a força lógica de um conceito
superior, ao caráter convencional dos limites geográficos e, consequentemente,
impede de ver, com seu racionalismo parcial, que a divisão local e mecânica é a
técnica adequada para conseguir a síntese orgânica e superior do todo.
Eis um esquema da evolução fundamental da cultura, que compreende seu
aspecto sociológico: as instituições e formas de comportamento plenas de sentido,
profundamente importantes, são substituídas por outras que, em si mesmas,
parecem absolutamente mecânicas, artificiosas e carentes de alma. Só uma
finalidade superior, que supere esse estágio precedente, pode dar a sua ação comum
ou a seu efeito ulterior uma significação espiritual da qual cada elemento particular
está forçosamente desprovido. Esse é o caráter do soldado moderno em face do
cavaleiro da Idade Média, do operário fabril confrontado ao artesão, e da
uniformidade e nivelação modernas de tantas relações da vida, que antes ficavam
reservadas à liberdade do indivíduo que as moldava a seu bel-prazer. Uma parte da

43
Cognominado "O Prudente", foi rei da Espanha como Filipe II de 1556 até sua morte em 1598, rei de
Portugal e Algarves como Filipe I a partir de 1581, e “senhor dos Países Baixos”. (NT)
Georg Simmel | 491

engrenagem social é hoje vasta e complexa demais para que cada um de seus
elementos possa expressar um pensamento completo, limitando-se a contribuir,
apenas como parte de um todo, à realização de uma ideia. Por outro lado, certa
diferenciação priva, com frequência, as atividades de sua dimensão moral, de modo
que o mecânico e o espiritual acabam levando uma existência separada, própria.
Assim, por exemplo, a atividade da operária de uma máquina de bordar só tem para
esta trabalhadora um sentido mecânico, muito menos espiritual do que tinha o seu
labor para a bordadeira de antigamente – enquanto a potência moral que animava
esse trabalho tem passado para a máquina e se objetivado nela. Podem, desta
maneira, as instituições, as hierarquias e agremiações sociais tornarem-se mais
mecânicas e artificiosas e servir, todavia, ao progresso da cultura e a unidade interna
do todo, contanto que exista um fim social superior ao qual elas devem estar
subordinadas, fim este que impede que se arroguem a posse do espírito e do sentido
que outrora representavam o arremate da série teleológica. É o que explica a
passagem do princípio gentílico ao princípio da década para a divisão em grupos
sociais, mesmo se este último aparenta ser uma associação de elementos
objetivamente heterogêneos, em face da homogeneidade da família.

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