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Uma parte deste capítulo foi tomada em empréstimo a nossa obra Über soziale Differenzierung.
Soziologische und psychologische Untersuchungen, Kapitel V. (NS) [Sobre a diferenciação social.
Estudos sociológicos e psicológicos, Capítulo V, publicada originariamente por Duncker & Humblot,
Leipzig, 1890. (NT)]
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ao contrário, têm com ele uma relação fundada objetivamente sobre as mesmas
disposições, inclinações, atividades, etc. E, deste modo, a associação baseada na
convivência exterior é substituída cada vez mais por uma associação fundada nas
relações de conteúdo. Da mesma maneira que o conceito mais abrangente reúne o
que um grande número de intuições muito diversas tem em comum, assim os pontos
de vista práticos mais abrangentes reúnem os indivíduos similares provenientes de
grupos totalmente estranhos entre si e sem vínculos recíprocos. Surgem, assim,
novos círculos de contato, que se entrecruzam nos mais diversos ângulos com os
círculos precedentes, relativamente mais naturais e constituídos com base nos
sentidos.
Lembraremos, por exemplo, que os grupos independentes, cujas associações
antigamente constituíram as universidades, estavam divididos segundo a
nacionalidade dos estudantes. Mais tarde, este modo de repartição foi substituído
pelas comunidades de estudos, que levaram às faculdades. Neste caso, vê-se com
muita clareza, como a comunidade geográfica e fisiológica, determinada pelo
terminus a quo, foi substituída radicalmente por outra síntese elaborada a partir do
ponto de vista da finalidade, do interesse interno e objetivo ou, se quisermos,
individual. Na mesma forma, ainda que em condições um pouco mais complexas, foi
produzida a evolução dos sindicatos ingleses. Inicialmente, reinava neles a tendência
a definir os diversos grupos pelo recrutamento local, excluindo-se os operários que
vinham de fora, critério que resultou em irremediáveis atritos e inveja entre as seções
assim divididas. Mas este estágio foi superado lentamente quando os operários
tentaram agrupar-se por profissão em todo o país. O fato seguinte, por exemplo,
consagrou essa mudança de forma. Quando os tecelões de algodão se pronunciaram
pela generalização de uma remuneração salarial uniforme por peça produzida se viu
claramente que essa reivindicação teria por consequência a concentração da
indústria nos centros favoravelmente localizados e significaria a ruína dos povoados
mais afastados. Todavia, até os representantes dessas localidades remotas votaram
a favor da remuneração salarial uniforme porque era o melhor para o conjunto da
profissão. Muito embora inicialmente se tratasse apenas de operários associados
com base numa atividade semelhante, a ênfase dessas associações recaía na
vizinhança geográfica, o que levava, sem dúvida, a cada profissão a estabelecer
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Refeições em comum realizadas amiúde à tarde pelos homens das cidades dóricas, especialmente
em Esparta e Creta. (NT)
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os espartanos tinha já conseguido vencer o poder das associações por clãs. No resto
da Grécia, cada subdivisão do exército estava constituída por um mesmo clã ou por
um mesmo distrito; unicamente em Esparta o interesse militar objetivo superou tais
preconceitos, determinando por si só a divisão do exército.
Mesmo nos povos da natureza, como os africanos, observa-se como as
formações guerreiras centralizadas destroem a organização das tribos. Ademais, na
medida que as mulheres são em geral as representantes do princípio de associação
natural de tipo familiar, entende-se bem por que, nas organizações guerreiras, existe
uma hostilidade explícita contra tudo o que é feminino, estando as mulheres
desprovidas de poder social. O matriarcado, relativamente frequente nos povos
guerreiros, pode advir, por um lado, da separação rigorosa entre a vida civil e a vida
militar e, por outro, de motivos profundamente enraizados na psicologia pessoal. O
guerreiro é, com certeza, tirânico e brutal em casa, mas chega a ela fatigado, gosta
da comodidade física e do repouso, bastando que alguém cuide dele e se encarregue
de dirigir os assuntos práticos do lar para que fique apaziguado e indolente,
descuidado e satisfeito. Porém, não existe qualquer relação entre esses aspectos da
vida civil e o ponto de vista objetivo que faz explodir a tribo, e que cria a partir de seus
fragmentos uma nova entidade puramente racional. A questão decisiva aqui é que os
guerreiros formam um todo organizado a partir de interesses militares e excluem
quaisquer outros propósitos. Para atender outra perspectiva, os guerreiros podem,
sem dúvida, dispersar-se de novo em associações absolutamente diferentes, as
quais, todavia, seriam irracionais se interferissem com o todo organizado da primeira
associação.
Na escolha de companheiros da sissítia espartana, a liberdade era um
princípio de racionalização – o que frequentemente não é. Pois, graças a ela, as
qualidades da pessoa eram os fundamentos decisivos da união – um motivo de
associação totalmente novo e revolucionário que, apesar do viés arbitrário e
irracional que pudesse haver em outras circunstâncias, era claramente
compreensível, contrariando os motivos até então prevalentes. Nesse mesmo
sentido a “liberdade de associação” atuou nos três últimos séculos da Idade Média
germânica. Nos primeiros tempos das comunidades aldeãs livres a associação dos
membros derivava de sua localização geográfica; depois, na época feudal, a relação
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com um único senhor criou outra razão de unir-se muito distinta, porém claramente
externa; deveu-se aguardar o reconhecimento da “liberdade de associação” para que
esse fundamento passasse a ser a própria vontade dos indivíduos agrupados.
Compreende-se facilmente que isso conduziu ao surgimento de formações
absolutamente singulares para a vida em comum dos indivíduos, assim que aqueles
antigos motivos (que pareciam obedecer sobretudo ao destino e estavam longe de
assentar-se nas pessoas) foram substituídos ou neutralizados por outros
fundamentos espontâneos.
Todavia, a forma de associação posterior desenvolvida sobre um modo
anterior e originário, não é necessariamente mais racional. Suas consequências, para
a vida interior do indivíduo e para sua posição exterior, adquirem nuances
particulares quando as duas espécies de vínculos que o governam (os irrelevantes à
vontade pessoal do sujeito e os livremente escolhidos) estão fundadas em causas
igualmente profundas e orgânicas, situadas para além do seu livre arbítrio ou
fantasia. Os indígenas da Austrália, de cultura social pouco desenvolvida, vivem em
pequenas bandas de caçadores coletores, relativamente muito unidas. Ademais,
todos eles se dividem em cinco gentes ou associações totêmicas, de modo que, em
cada banda, se encontram membros de diversas gentes, e cada gente se estende
sobre várias bandas. Dentro da banda, os membros do clã totêmico não formam uma
união rígida. Seu vínculo perpassa igualmente todas essas divisões, constituindo
todos juntos uma grande família. Quando, numa batalha entre duas bandas, os
membros do mesmo clã totêmico se encontram, eles se evitam reciprocamente e
procuram outro adversário (o mesmo se refere, também, dos habitantes das ilhas
Mortlack). As relações sexuais entre homens e mulheres se conformam
simplesmente aos vínculos de pertença à mesma gente, ainda que os parceiros
nunca se tenham encontrado antes, por pertencerem a bandas diferentes. Para estes
entes de parcos recursos, incapazes de um modo de associação verdadeiramente
racional, pertencer a dois grupos, rigorosamente separados de modo horizontal e
vertical, significa com certeza um enriquecimento de seu sentimento de vida, tensão
e duplicação da existência que de outro modo não poderiam viabilizar.
Outro cruzamento de forma igual, mas de conteúdo e efeitos muito diversos,
ocorre na vida familiar das sociedades complexas, em virtude da pertença a um
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mesmo gênero. Quando, por exemplo, a mãe do marido intervém numa briga
conjugal, seus instintos – na medida em que agem a priori, e independentemente dos
aspectos específicos de cada caso – tenderão a defender as razões do filho, que é
do seu sangue e, outras vezes, mais para a nora, que é de seu gênero. A comunidade
de gênero figura entre os motivos de associação que perpassam constantemente a
vida sociológica e se entrecruzam com todos os demais, das mais variadas maneiras
e com diversos alcances. Em geral, funcionará como uma causa orgânica, natural,
em face da qual a maioria das outras terá algo de natureza individual, voluntária e
consciente. Todavia, no caso mencionado, talvez se possa ter o sentimento de que a
relação entre mãe e filho é determinada e age naturalmente, ao passo que a
solidariedade entre duas mulheres é uma coisa à parte, refletida, mais importante
como conceito universal do que como energia imediata. A comunidade de gênero
constitui muitas vezes um tipo especial de motivo de associação: em sua realidade
concreta, ela é absolutamente primária, fundamental, oposta a todo arbítrio. Para
tornar-se ativa, entretanto, precisa amiúde de mediação, de reflexões e atividades
conscientes, a tal ponto que outra motivação objetivamente mais tardia e fortuita,
pode funcionar ante a comunidade de gênero como primária e necessária
– confirmando mais uma vez o ditado segundo o qual “o último pros hemas (para
nós), é o primeiro phusei (por natureza)”3.
No que diz respeito a essa posição intermédia entre o caráter orgânico e o
racional, o motivo sociológico da comunidade com afinidade por idade se assemelha
formalmente à comunidade de gênero, podendo inclusive constituir, em
circunstâncias pouco complexas, um princípio que sirva de base à divisão do grupo
por inteiro. Assim, em Esparta, por volta do ano 220 a.C., os partidos políticos se
designavam com os nomes de presbíteroi (anciões), néoi (jovens), neanískoi (moços
– na flor da idade), etc. Em alguns povos da natureza os homens se organizam em
classes de idade. E cada uma delas se atribui uma posição social diversa, assim
como distintas funções e maneiras de viver. Tal motivo de associação é
absolutamente pessoal e, ao mesmo tempo, cabalmente supraindividual,
Aparentemente, a associação só é possível dessa forma supraindividual onde a
3
Por razões tipográficas optamos por transliterar em caracteres latinos as palavras gregas escritas
em itálico neste e no parágrafo seguinte, e que figuram em caracteres gregos no original do autor. (NT)
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A expressão Quattrocento refere-se aos eventos culturais e artísticos do século XV na Itália
analisados em conjunto. Engloba tanto o final da Idade Média quanto o começo da Renascença. (NT)
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Roberto I de Nápoles, cognominado O Sábio (1278 -1343), foi um nobre napolitano da Casa capetiana
de Anjú, Rei de Nápoles, Duque da Calábria, rei titular de Jerusalém, e conde da Provença e Forcalquier.
(NT)
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Francisco Petrarca (1304 – 1374) foi um intelectual, poeta e humanista italiano, famoso,
principalmente, devido ao seu romanceiro, sendo considerado o inventor do soneto. Baseado no
trabalho de Petrarca (e também nos de Dante e Boccaccio) Pietro Bembo criou, no século XVI, o
modelo para o italiano moderno. (NT)
7
Trata-se do Colégio de França,. Este estabelecimento de ensino superior foi fundado, como dito, por
Francisco I em 1530, para atender a um pedido do erudito Guilherme Budé. Originariamente
denominado Colégio Real, teve diferentes designações (Colégio das Três Línguas, Colégio Nacional e
Colégio Imperial), antes de receber seu nome atual em 1870. Com sede em Paris, a instituição segue
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uma parte, e todo o resto que pudesse ter algum valor. Essa separação permitiu que
o Senado de Veneza escrevesse à Cúria romana, quando extraditou a Giordano
Bruno8, que este era “um dos mais perigosos hereges”, que tinha feito “as coisas mais
repreensíveis e levado uma vida devassa e quase diabólica”, mas que, “de resto, é um
dos espíritos mais distintos que se possa imaginar, dono de uma sabedoria maior e
de uma infrequente abertura de espírito”. O humor vagabundo, assim como o espírito
aventureiro dos humanistas, e até mesmo seu caráter às vezes volúvel e imprevisível,
correspondia à independência do espiritual a respeito de todas as demais exigências
impostas aos homens – autonomia que era o âmago da vida dos humanistas e os
fez indiferentes às necessidades. Evoluindo na paisagem variegada das diversas
formas de vida, cada um dos humanistas reproduzia a condição do humanismo, que
abrangia em um único quadro de interesse intelectual o pobre monge erudito e o
grande capitão ou a magnificente princesa. O que abriu caminho para a ocorrência
de um fato extremamente importante para determinar com precisão e exatidão a
estrutura da sociedade: a possibilidade de utilizar o critério da intelectualidade como
princípio para a diferenciação e formação de círculos novos – algo do qual já tinha
havido exemplos na Antiguidade. Até então esses critérios tinham sido ou voluntários
(econômicos, militares, políticos) ou afetivos (religiosos) ou produto de uma mistura
de ambos (familiares). O fato de que a intelectualidade, o gosto ou interesse
pronunciado pelo conhecimento, constitua círculos cujos membros procedem de um
grande número de círculos já existentes é uma espécie de intensificação do
fenômeno acima indicado, no sentido de que os agrupamentos relativamente tardios
(criados com frequência a partir de uma reflexão consciente e uma finalidade
razoável) têm caráter racional. Essa natureza formal das formações secundárias se
exprime do modo mais claro e decidido na constituição de círculos centrados em
interesses intelectuais.
Ora, o número dos diversos círculos aos quais o indivíduo pertence é um dos
melhores indicadores para medir sua cultura. O homem moderno pertence
sem confundir-se com as universidades ou outros centros de pesquisa, pois ainda que ofereça
dezenas de cursos e seminários, são todos de livre frequência e sem direito a diplomas oficiais. (NT)
8
Giordano Bruno (1548 – 1600) foi um teólogo, filósofo, escritor e frade dominicano italiano
condenado à morte na fogueira pela Inquisição romana, acusado de heresia e de defender erros
teológicos. (NT)
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primeiramente à família de seus pais, depois àquela que ele próprio tundou e, por
conseguinte, à de seu cônjuge, e por fim a sua profissão, que o vinculará a diversos
círculos de interesse (em toda profissão organizada em superiores e subordinados,
cada um pertencerá ao círculo de sua loja, de seu departamento ou de seu escritório
particular, que em cada caso reunirá os níveis superiores e inferiores, mas ele
também pertencerá ao círculo constituído pelos de sua mesma categoria dentro de
cada loja, etc.). O indivíduo é consciente de sua nacionalidade e de pertencer a
determinada classe social. Além disso, pode ser oficial da reserva, fazer parte de
algumas associações e ter um estilo de vida e formas de relacionamento que o
ponham em contato com diversos círculos. Tudo isso supõe grande quantidade de
grupos. Alguns deles estão no mesmo pé de igualdade, mas outros podem ser
ordenados de forma tal que um deles apareça como a relação original que leva o
indivíduo a relacionar-se ou pertencer a um círculo mais longínquo, em razão de suas
características particulares que o diferenciam de outros membros do primeiro
círculo. Isso não impede que a conexão com o círculo de origem continue subsistindo
– tal como acontece com um indivíduo que faz parte de um grupo complexo que, pelo
fato de ingressar depois, psicologicamente, em outras associações mais objetivas,
não perde os laços que o ligam ao complexo do qual participa no espaço e no tempo.
Na Idade Média, o indivíduo podia pertencer a círculos típicos de valor menos
singular que o correspondente a seu estatuto de natural ou habitante livre de um
burgo. A Liga Hanseática 9 vinculava várias cidades entre si, fazendo o indivíduo
entrar em um círculo de ação que não só ultrapassava os limites de cada burgo, mas
as fronteiras do próprio Império. As corporações profissionais, por sua vez, não se
preocupavam com a alçada jurídica das cidades, mas integravam o indivíduo em
associações que iam além das demarcações urbanas e se estendiam por toda a
Alemanha. E da mesma maneira que o vínculo corporativo deixava para trás as
fronteiras da cidade, o liame da camaradagem dos artesãos transpunha os limites da
guilda.
9
A Liga Hanseática foi uma aliança de cidades mercantis alemãs ou de influência germânica que
estabeleceu e manteve um monopólio comercial sobre quase todo o norte da Europa e o Báltico entre
os séculos XII e XVII. Abrangeu cerca de cem cidades, com Lubeque como centro. Ainda que de início
tivesse caráter essencialmente econômico, desdobrou-se posteriormente numa duradoura aliança
política. (NT)
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deles deixa ainda uma margem de ação relativamente ampla. Porém, quanto maior o
número de grupos, menor é a probabilidade de que existam outras pessoas com a
mesma combinação de grupos, assim como é menor a probabilidade de que os
numerosos círculos se cruzem novamente em outro ponto. Assim como o objeto
concreto perde sua individualidade quando graças s uma de suas qualidades fica
subsumido a um conceito geral, mas torna a recobrar os atributos que constituem
sua unicidade à medida que surgem outros conceitos gerais nos quais suas restantes
qualidades podem ser subsumidas (para usar termos platônicos, cada coisa participa
em tantas ideias como qualidades possui, obtendo sua determinação individual), o
mesmo sucede com a pessoa em face dos diversos círculos a que pertence.
Foi dito que o objeto substancial que temos perante nós é a síntese das
impressões sensíveis que nos produz, de modo que seu ser é tanto mais firme quanto
maior seja o número de impressões qualitativas que determine sua existência. Da
mesma maneira, é a partir dos diversos elementos da vida que todos nós ficamos
socialmente misturados, por constituirmos o que chamamos de subjetividade por
excelência, ou a personalidade, capaz de combinar de modo individual e próprio os
elementos da cultura. Uma vez que a síntese do subjetivo produz o objetivo, a síntese
do objetivo engendra, por sua vez, uma subjetividade nova e mais elevada. De igual
modo, a pessoa se abandona ao círculo social e submerge nele para voltar a
recuperar sua singularidade pelo cruzamento de círculos sociais em seu interior. De
resto, sua determinação final se converte, assim, em uma espécie de contrapartida
de sua determinação causal. Considerando sua origem, nós a explicamos como o
ponto de cruzamento de inumeráveis fios sociais. A pessoa configura-se como o
resultado da herança dos mais diversos círculos e períodos de adaptação, da mesma
maneira que interpretamos sua individualidade como a singularidade das
quantidades e as combinações de elementos da espécie. Mas, se passamos a
considerá-la novamente junto com a pluralidade de seus instintos e interesses nas
organizações sociais, podemos dizer que a pessoa constitui um reflexo que restitui o
que recebe, de forma análoga, porém mais consciente e elevada.
A personalidade moral adquire novas determinações, e é confrontada com
problemas imprevistos ao deixar de enraizar-se firmemente em um único círculo,
para situar-se na interseção de muitos outros. À sua antiga posição, certa e sem
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Ideia que o filósofo Franz Rosenzweig faz sua quando diz que “traduzir significa servir dois senhores
ao mesmo tempo”. (NT)
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Povo banto pastoril, habitante da colônia do Sudoeste Africano alemão, hoje Namíbia. Quase setenta
por cento de seus indivíduos foram exterminados entre 1904 e 1907 vítimas do que é considerado
como o primeiro genocídio do século XX. (NT)
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O bis in idem é um fenômeno do direito que consiste na repetição (bis) de uma sanção sobre o
mesmo fato (in idem). (NT)
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Estes termos designam, em realidade, uma parte da massa dos servidores cuja condição social
melhorou consideravelmente na vaga das transformações econômicas que conheceu Ocidente
durante os séculos XI e XII, a saber, os representantes da burguesia urbana nascente. (NT)
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Termo latino pós-clássico usado na Idade Média principalmente no território do Sacro Império para
designar agentes ou servidores especiais. Originariamente, se tratava de servos que tinham
capacidades administrativas superiores e que foram empregados por seus senhores para
desempenhar uma série de funções nas cortes, nas milícias, nos feudos e territórios e na
administração pública. Com o passar do tempo a classe foi regulamentada, aumentando seu prestígio,
vindo a constituir um estrato social de grande relevo, assumindo os cargos administrativos mais
elevados como senescal, mordomo, camareiro, castelão, juiz, burgomestre e marechal. (NT)
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No antigo direito inglês, os justice in Eyre eram os mais altos magistrados encarregados de aplicar
a lei florestal medieval. A este título presidiam uma corte itinerante para punir os infratores dessa
normativa e investigar o estado dos bosques e o comportamento dos oficiais que deviam cuidar deles.
(NT)
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Os barons of the Exchequer ou barones scaccarii, eram os juízes da corte inglesa conhecida como
Exchequer of Pleas (Tribunal do Tesouro). Constavam de um Chief Baron of the Exchequer (Barão
Chefe do Tesouro) e vários Barões de puisne (isto é, juniores). Juntos, julgavam como um tribunal de
common law e de equidade, resolvendo disputas tributárias. (NT)
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Um tribunal se reúne in Banco quando um caso é ouvido perante todos os juízes dessa corte e não
por um painel de magistrados selecionados a partir deles. Assim ocorria durante a Idade Média na
mais alta jurisdição judicial da Inglaterra. (NT)
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Razão de ser ou de saber. (NT)
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Segundo as descrições de Henri Saval (advogado e historiador francês do século XVII), contidas na
sua Chronique escandaleuse de Paris ou Histoire des mauvais lieux (1883), e que provinham, em parte,
do Jargon ou langage de l’argot, (um livrinho popular que Olivier Chereau de Tours teria escrito por
volta de 1630), os mendigos de Paris estavam hierarquizados e perfeitamente organizados em uma
corporação, com “leis” e uma língua (o argot) próprias; tendo chegado a eleger um “rei” que recebia o
nome de “grande Coesre” ou “rei de Thunes”. (NT)
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visível quando esse impulso (em face de todas as conexões baseadas em outros
motivos) é suficientemente independente e forte, para reunir todos os crentes de uma
mesma confissão por cima das diferenças provenientes de seus outros
engajamentos. Evidentemente, esta última das formas sociológicas em que pode se
expressar a essência da religião é eminentemente individualista: o sentimento
religioso libera-se aqui do sustento que sua imbricação no plexo dos demais laços
sociais lhe oferecia e se refugia na alma individual e na sua responsabilidade
– tentando logo assentar na própria alma as pontes que a ponham em comunicação
com as almas da mesma religião, que talvez não coincidam já em nada mais. O
cristianismo em seu sentido mais puro é uma religião individualista – só fica atrás
do budismo primitivo que, aliás, não é uma religião propriamente dita, mas uma
doutrina da salvação pessoal sem mediação transcendente –, o que lhe permitiu
espalhar-se na imensa variedade dos grupos nacionais e locais. Da mesma maneira
e inversamente, a consciência que o cristão tem de levar a sua fé dentro de si a
qualquer comunidade (sem importar o caráter do grupo e as obrigações que ele
imponha), deve, com certeza, ter fortalecido seu sentimento de determinação
individual e de autoconfiança.
O valor sociológico da religião é um reflexo de sua ambivalência genérica
perante a vida. Ora ela se opõe a todos os conteúdos de nossa existência, sendo o
pendant, o equivalente da vida em geral, intangível em seus seculares movimentos e
interesses; ora, apesar de tudo, toma partido entre todos os partidos da vida por cima
dos quais se situava a princípio. Torna-se assim um elemento ao lado de todos os
outros elementos, e se complica numa pluralidade de relações e alternativas que,
naquele primeiro sentido tinha rejeitado. Produz-se assim um curioso
entrelaçamento: a recusa de todo vínculo sociológico, própria da religiosidade
profunda, permite ao indivíduo pôr o círculo de seus interesses religiosos em contato
com todos outros tipos de círculos cujos membros não partilham com ele outros
conteúdos comuns da vida – e os cruzamentos ocasionados servem, por sua vez,
para dar relevo e determinar sociologicamente os indivíduos e os grupos religiosos.
Esse esquema se repete logo nas especificações do religioso e nas suas singulares
combinações com os demais interesses dos sujeitos. Quando dos conflitos entre a
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Seguidores do protestantismo, especialmente aqueles de orientação calvinista, que foram assim
denominados pelos católicos franceses durante os séculos XVI e XVII. (NT)
21
O autor se refere à China da dinastia Qing, que vigorou até 1912. (NT)
22
Em sua acepção geográfica de origem, um “ultramontano” é uma pessoa que vive além dos montes.
A partir do século XVIII o termo qualificava os juristas que deram um valor absoluto às decisões da
Cúria romana. Na disputa entre canonistas próximos de Roma e canonistas galicanos (que defendiam
a independência administrativa da Igreja Católica Romana de cada país com relação ao controle papal)
a palavra adquiriu uma conotação pejorativa equivalente a de obscurantista ou papista. No espaço
germanófono esta utilização consolidada pela prática desapareceu aos poucos, apesar de um breve
recrudescimento na Suíça em certos meios protestantes extremistas, até os anos 1950. (NT)
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mais gritante seja a união de Inglaterra e Escócia, de 170723. O benefício para ambas
as partes da constituição de um único Estado provinha da subsistência das duas
Iglesias 24 . Até então as instituições política e religiosa estiveram estreitamente
associadas em ambos os reinos – e só quando política e religião foram separadas
os interesses políticos puderam amalgamar-se, coisa que os interesses religiosos
não teriam admitido. Como se tem dito a propósito destes dois países: they could
preserve therefore harmony only by agreeing to differ 25 . Uma vez ocorrida esta
separação, com sua sequela de possíveis cruzamentos, a liberdade assim adquirida
não poderia voltar atrás por uma decisão das partes. Porque o princípio cuius regio,
eius religio26 unicamente tem legitimidade quando não precisa ser expressamente
consagrado, e resulta apenas da expressão do estado originário de unidade orgânica
e da indiferenciação primitiva.
Nesta ordem de ideias, é digno de nota um fenômeno singular. Ele se produz
quando o ponto de vista religioso, passando por cima dos restantes motivos de
separação, fusiona pessoas e interesses que na realidade deveriam ser
diferenciados, porque esta união é sentida como se estivesse motivada por razões
exclusivamente objetivas de distinção. Assim, por exemplo, em 1896, os operários
judeus de Manchester se reuniram numa associação que devia compreender
expressamente todas as categorias de trabalhadores (em especial alfaiates,
sapateiros e padeiros) e que pretendia fazer causa comum com os demais sindicatos
em tudo o que fazia aos interesses dos operários – ignorando que esses outros
sindicatos estavam organizados conforme a divisão do trabalho e segundo as
categorias objetivas dos diferentes tipos de trabalho (de um modo tão radical que, na
época, as trade unions se tinham negado a entrar na Internacional porque esta última,
23
Da qual resultou um trono britânico único, a dissolução dos parlamentos escocês e inglês e sua
substituição pelo novo parlamento da Grã-Bretanha, em Westminster. (NT).
24
Respeitada apesar da concomitante unificação das instituições políticas, ela aludia às confissões
anglicana e presbiteriana, predominantes em cada um dos dois países. (NT)
25
Em inglês no original alemão de Simmel: “Por esta razão, somente poderão conservar sua harmonia
concordando na necessidade de diferenciar-se”. A citação corresponde a Thomas B. Macaulay,
History of England from the accession of James II, Nova Iorque, International Book, 1890, vol,3, p. 241.
(NT)
26
Cuius regio, eius religio (também: cuius regio, illius religio), é um ditado latino, que afirma que o
governante de um país tem o direito de impingir sua religião aos seus súditos. É a forma abreviada de
um princípio jurídico estabelecido na Paz de Augsburgo e na Paz da Vestefália. A expressão latina foi
cunhada pelo professor Joachim Stephani, da Universidade de Greifswalder, em uma publicação de
1612. (NT)
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as leis do Estado) podem não conter preceito algum referente àquela exclusiva
maneira de proceder27. Os círculos particulares que podem coincidir também em uma
única pessoa elaboram conceitos especiais ou restritos da honra, enquanto o círculo
mais amplo cria um conceito geral ou abstrato da honra diferente daquele que vigora
em alguns círculos particulares, embora, de resto, possa reger igualmente a conduta
dos membros desses grupos. Tudo isso converteu as complexas normas da honra
em símbolos dos círculos. Existe uma honra negativa de classe, espécie de ”desonra
de classe” que pode ser relativamente permissiva em relação ao comportamento
considerado honorável do ponto de vista da moral universal ou do conjunto da
sociedade, e que, em vez de acrescentar exigências – como faz a honra positiva de
classe –, subtrai-lhe certa latitude. Assim algumas categorias de comerciantes,
particularmente os especuladores, mas também o pequeno penny-a-liner28 e o demi-
monde29 podem permitir-se certas atitudes justificadas pela consciência de classe
sem qualquer pejo para recorrer a práticas que, em geral, não são consideradas muito
honrosas. Mas junto a esta desonra de classe, o indivíduo pode, quanto ao resto, ser
absolutamente honrado (no sentido tradicional) nas suas relações humanas
cotidianas. Desse modo, o respeito à honra específica de sua classe não impede que
o indivíduo se comporte desonrosamente segundo as ideias básicas das formas de
viver. Assim, diversos aspectos da pessoa podem obedecer a outras tantas
concepções da honra que são reflexos dos diferentes grupos aos quais ela pertence
simultaneamente. Por exemplo, a mesma exigência pode apresentar-se com ênfases
diferentes. “Não tolerar uma ofensa sem digna reparação” pode ser o lema de alguém
que se comporta de formas muito díspares na sua vida privada, no escritório ou como
oficial reformado. Respeitar a honra das mulheres para defender sua honra de
homem pode ter resonâncias diferentes numa família de pastores protestantes ou
num círculo de tenentes novos. Um membro deste último grupo, proveniente do
primeiro, poderia perceber nele mesmo, pelo conflito entre esses conceitos de honra,
27
Este aspecto será tratado com mais pormenor no capítulo sobre a autopreservação. (NS)
28
Termo coloquial e geralmente pejorativo usado para se referir a um jornalista que é pago para
escrever textos de baixa qualidade, apressados ou redigidos "a pedido", muitas vezes com um curto
prazo O termo é usado para se referir a um tipo de escrevedor que é considerado como um
"mercenário" ou "caneta para contratar", que expressa as opiniões políticas de seus clientes em
artigos geralmente pagos pelo número de palavras ou linhas. (NT)
29
Grupo de mulheres mundanas, de moral ambígua, e de aqueles que as frequentam. (NT)
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30
Naturalmente, isso pode também produzir-se sobre outra base política, por exemplo, quando
tendências decididamente individualistas se confrontam com uma forte tutela do Estado. Neste caso
a ênfase recai sobre o elemento individual da associação, da margem de liberdade de que esse
elemento desfruta perante a coerção do Estado, graças à qual o indivíduo adquire um ponto de apoio
formal contra aquele. Como no caso mencionado no texto, cruzamos também aqui sentimentos
sociológicos de liberdade e sujeição, só que ali os primeiros pertencem ao agrupamento político e os
segundos ao associativo. Aqui sucede o contrário. O mesmo acontece no segundo exemplo do texto.
(NS)
470 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
31
O Conseil d’en-haut era o nome atribuído ao Conseil d’Etat ou Conseil des Affaires sob Luis XIV e
Luis XV. Era assim chamado porque tinha sua sede no segundo pavimento do castelo de Versalhes,
perto dos aposentos reais. (NT)
32
O Diretório foi o regime político adotado pela Primeira República francesa entre o 4 brumário do ano
IV (26 de outubro de 1795) e o golpe de Estado do l8 brumário do ano XVIII (9 de novembro de 1799).
Foi assim chamado porque o poder executivo era exercido por cinco membros, denominados diretores.
(NT)
Georg Simmel | 471
33
Na verdade, a estrutura de governo da Monarquia espanhola tudo ao longo dos séculos XVI a XVIII
se define como polisinodal, quer dizer, com multiplicidade de Conselhos. Estes derivam do Consilium
ou Curia Regis, reunião de notáveis que aconselhavam a tomada de decisões políticas aos monarcas
alto-medievais em cumprimento do dever de conselho, que junto com a ajuda militar eram o resumo
dos compromissos do vassalo com seu senhor. (NT)
34
Em italiano no original alemão de Simmel: “das Índias, de Castela, de Aragão, da Inquisição, da
Câmara, das Ordens, da Guerra, da Fazenda, de Justiça, da Itália, de Estado” Em diversos momentos
também existiram os Conselhos de Flandres, da Cruzada e de Portugal. Este último, criado em 1582,
seguiu existindo apesar da Restauração portuguesa de 1640, pois Filipe IV não reconheceu a
independência lusa. Foi extinto com o Tratado de Lisboa de 1668. (NT)
472 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
exemplo, dos médicos naturistas que afirmam poder curar todos os males
exclusivamente com água. Bem se vê que esta é uma medicina tão parcial como a
dos médicos egípcios. A diferença é que, graças ao progresso moderno, a medicina
não tem mais um caráter local, mas uma natureza funcional – o que prova que,
mesmo evoluída, segue reconhecendo a diferença entre os métodos exteriores e
mecanicistas e os princípios heurísticos objetivamente adequados. Podemos
encontrar também essa forma (que substitui a antiga diferenciação ou classificação
por uma nova distribuição) nos estabelecimentos mercantis que vendem todos os
insumos necessários para a produção de objetos complexos, como, por exemplo, o
material destinado às estradas de ferro, os artigos de que os donos de restaurantes
e de hotéis precisam, aqueles dos que se abastecem dentistas e sapateiros, assim
como os que fornecem as tendas e demais estabelecimentos que comercializam os
utensílios de casa e cozinha, etc. O ponto de vista unitário, que reúne objetos
provenientes dos círculos de fabricação mais variados não é outro que a sua
referência a um terminus ad quem, ou seja, a uma mesma finalidade, para a qual
todos eles servem – embora, por outro lado, a divisão do trabalho se firme sobre a
unidade de um terminus a quo, quer dizer, de um mesmo modo de produção na
origem dos objetos fabricados. Essas lojas (que têm, certamente, como condição
necessária a unidade mencionada) representam uma maior divisão do trabalho na
medida em que reúnem, desde um ponto de vista novo, elementos que provêm de
ramos da indústria completamente heterogêneos, mas que estão ligados por uma
relação de pertença também nova, sutil e fundamental.
35
Finalmente, as centrais de compras representam também outros
cruzamento e organização da esfera objetiva por um princípio não objetivo,
sobretudo aquelas que reagrupam as encomendas de determinadas categorias
profissionais: operários, oficiais e funcionários. As ordens de compra das duas
últimas categorias se referem, com poucas exceções, aos mesmos artículos
35
Uma “central de compras” é uma organização que tem por objeto reagrupar as ordens de compra
ou encomendas de um conjunto de membros. A estrutura oferece simultaneamente condições de
promoção e melhores condições de venda como resultado de economias de escala e estratégias de
negociação. Pois no geral se conseguem melhores preços dos fornecedores, em situações nas quais
os compradores, agindo individualmente, não teriam força para negociar com empresas ou centrais
de vendas de porte médio ou grande. (NT)
Georg Simmel | 473
propostos, razão pela qual o elemento de separação das duas centrais é puramente
formal e independente da própria coisa. Aperceber-nos-emos facilmente, porém, de
sua utilidade: a grande loja destinada aos funcionários alemães é uma sociedade por
ações, que encara seus clientes como qualquer outro comerciante, que deveria,
portanto, mais bem atingir os seus fins quanto maior for o número de pessoas que
compre no estabelecimento, sem que a limitação a um determinado círculo fosse
necessária para funcionar e obter resultados. Todavia, se ela tivesse sido aberta
como uma simples central de vendas acessível a todos sem distinção, ou mesmo
como um estabelecimento comum, que vende boa mercadoria a um bom preço, o
sucesso teria sido seguramente menor. Foi precisamente essa limitação a algumas
pessoas, completa e objetivamente inútil, que permitiu suprimir os obstáculos e as
hesitações que normalmente tornam os negócios mais difíceis, restrição que exerceu
grande atração sobre todos aqueles que faziam parte desse círculo exclusivo, ainda
que, no fundo, a causa dessa atração não tenha sido outra que a exclusão dos
demais. A totalidade desses fatos – talvez com exceção do último mencionado –
carece de importância sociológica. Eles servem aqui apenas como analogias das
combinações sociológicas, para demonstrar que as formas e normas gerais que
dominam em tais desenvolvimentos se aplicam para muito além da esfera
sociológica. A unidade exterior e mecânica das coisas, a decomposição e
recomposição racional e objetiva dos elementos, a construção de novas totalidades
a partir de pontos de vista mais elevados e mais amplos, são formas típicas da alma
humana. Do mesmo modo que as formas sociológicas se manifestam em um número
infinito de conteúdos, essas mesmas formas revelam funções fundamentais e mais
gerais que jazem no fundo da alma. Forma e conteúdo são apenas conceitos
relativos, categorias do conhecimento para o controle dos fenômenos e para sua
organização intelectual, de modo que uma mesma coisa, em determinada relação e
observada de cima, apresenta-se como uma forma, enquanto na observação de baixo
defini-se como um conteúdo.
A coesão dos operários assalariados é um excelente exemplo de síntese para
a unidade e formação da consciência social. Isso é particularmente interessante pelo
elevado nível de abstração que se antepõe às particularidades supraindividuais. Seja
qual for o trabalho de cada indivíduo, construir canhões ou brinquedos, o fato formal
474 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
de profissão de seus membros – como já dissemos mais acima – mudou logo esse
critério para organizá-los em sindicatos profissionais, essa não foi mais que uma
decisão técnica mais útil para os interesses gerais dos operários, pois também aqui,
no fundo, o ponto de partida e de chegada sempre foi o conceito de “operário
genérico”.
Este conceito que neutralizava 36 todas as diferenças profissionais e que
possuía apenas uma significação lógica, passou a ter também uma feição jurídica.
Os direitos à proteção do operário em face dos infortúnios laborais, e o conjunto de
ações dos poderes públicos que asseguram a saúde e a assistência dos
assalariados, criaram o conceito jurídico de operário ao qual atribuíram um conteúdo
– nos termos do qual o simples fato de alguém exercer, sob as ordens de outrem e
mediante salário, um trabalho (especialmente manual ou mecânico) traz para ele
certas consequências jurídicas. Decorrências que não acabam por aqui, pois além
dessas significações lógicas, éticas e jurídicas, a transversalidade da supressão de
todas as diferenças de ofício tem outros correlatos estritamente factuais, como
possibilitar a “greve geral” – greve que não serve aos fins de um único sindicato, mas
para obter certos direitos políticos para o conjunto da classe trabalhadora, como a
greve dos cartistas37 ingleses em 1842 ou a greve dos operários belgas em 1893. É
interessante constatar de que modo o conceito de “operário”, uma vez que ele
apareceu em sua universalidade absoluta, introduz o mesmo caráter e as mesmas
consequências até nas estruturas menores. Na França, existe desde 1884 uma lei
sobre associações profissionais que autoriza a vinte ou mais pessoas que pertençam
ao mesmo ofício ou a uma atividade conexa, a constituir, sem autorização do
governo, um sindicato profissional. Na esteira da normativa citada, formou-se depois
um sindicato de “operários ferroviários” que não exercem, de fato, as mesmas
atividades profissionais. O que esses ferreiros, carregadores de malas, guarda-
chaves, assentadores de trilhos, estofadores, condutores de locomotivas e
mecânicos têm em comum é exclusivamente ser operários ao serviço da estrada de
36
Utilizamos aqui o verbo “neutralizar” em sua significação linguística de “anular uma oposição em
determinados contextos, continuando a funcionar em outros”. (NT)
37
Partidários do movimento político de cunho reformista, na Inglaterra dos anos 1837 a 1848,
denominado “cartismo”, do qual resultou a Carta do Povo, redigida em 1838, que continha o programa
do grupo. (NT)
476 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
ferro. O objeto da constituição desse sindicato é que, através dele, cada uma dessas
profissões pode exercer sobre a administração uma forte pressão que por si só não
seria capaz de fazer sentir. Pelo mesmo modus operandi de lógica formal o
significado de “operário genérico” se transforma no de “ferroviário genérico”,
conceito meramente prático em que se apagam todas as particularidades do seu
trabalho. A forma com que o conceito mais amplo chega ao mesmo resultado
costuma ser a coalizão de coalizões. Nesse caso, (em que a primeira associação
elimina todos os aspectos pessoais e apenas resta o conceito puro de marceneiro ou
de sapateiro, de soprador de vidro ou de tecelão), surge clara e facilmente, como
instância suprema, o conceito puro de “operário”, que suprime todas as diferenças
advindas do conteúdo do trabalho. Ao pedreiro, naturalmente pouco importa que o
tecelão da manufatura de algodão que pertence a sua mesma federação sindical,
obtenha um salário horário maior ou menor. Por conseguinte, se a federação sindical
procura obter melhores condições de trabalho, não faz isso desde o ponto de vista
do indivíduo, mas desde aquele do conjunto dos operários.
O mesmo acontece quando patrões de diversos ramos de atividade básica se
associam. O patrão de uma empresa inserida em certo ramo ou área do mercado, não
tem interesse pelas relações que possa manter com seus próprios operários o patrão
de outro ramo de atividade. A posição do patrão é buscar o fortalecimento da
associação dos empregadores em geral em face do operário genérico. Esse conceito
genérico de patrão aparece necessariamente em correlação com o de operário. Tal
sincronismo lógico, entretanto, não se torna imediatamente psicológico e prático.
Sem dúvida, essa dinâmica decorre essencialmente de três tipos de razões: o número
dos patrões é menor do que dos operários (quanto mais exemplares existem de um
gênero, mais facilmente o conceito geral se forma); a concorrência dos patrões entre
si, que não existe entre os operários; e, finalmente, a atividade patronal se confunde
com o conteúdo de cada ramo, o que se atenua nos últimos tempos pela sublimação
do capitalismo. As técnicas industriais modernas tornam o operário muito mais
indiferente à especificidade do seu trabalho do que o patrão à particularidade da sua
fábrica. Por estar vinculado aos outros operários para além do conteúdo particular
de seu trabalho, o assalariado percebe o fenômeno antes que o patrão. No entanto, a
solidariedade dos operários tem levado também à solidariedade dos patrões, que
Georg Simmel | 477
38
Proveniente etimologicamente do italiano merceria (antigo merciaria) por sua vez derivado de merce
“mercadoria”, e este do latim merx,cis “mercadoria”, igualmente. (NT)
478 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
portanto, de chegar a sentir aquilo que é comum a todos. Por outro lado, como já dito,
as consequências práticas da criação de conceitos gerais mais elevados nem sempre
se apresentam cronologicamente, pois que costumam aparecer como um estímulo,
constituído em ação recíproca, que ajuda a se produzir a consciência da comunidade
social. Assim, a classe dos artesãos adquiriu amiúde a consciência de sua
comunidade graças aos aprendizes. Quando no baixo medievo o trabalho se
depreciou pelo emprego excessivo de aprendizes, o único efeito que se conseguiu
limitando essa prática a um só ramo de atividade foi que os aprendizes expulsos
invadissem os outros ramos. Somente uma estratégia comum pôde resolver isso
– de um modo que só foi possível pela pluralidade de ofícios, mas que provocou a
consciência da unidade de todos eles, superando suas diferenças específicas.
Finalmente, junto aos tipos operário e comerciante, citaremos um terceiro
como exemplo de criação de um grupo mais abstrato, cujas qualidades conceituais
gerais se confundiam com as determinações particulares de seus elementos. Tais
elementos, aliás, determinam o ponto de cruzamento do novo círculo com as relações
que ele deixou atrás (mas ainda conserva) como círculo individual. Referimos-nos à
evolução sociológica que recentemente o conceito de “mulher” alcançou e, que nos
oferece complicações formais que, de outro modo, não seriam facilmente
observáveis. Na posição sociológica de cada mulher, existia até agora algo muito
singular. O que a excluía de todo agrupamento propriamente dito, de toda
solidariedade concreta com as outras mulheres, era precisamente seu caráter mais
geral – que permitia associá-la a todos os outros seres humanos femininos sob o
conceito mais vasto: ela é mulher, e deve assegurar as funções próprias de seu
gênero. Isso porque, precisamente, sua definição genérica a reposicionava nos
limites estritos de seu lar, dedicada apenas a pessoas singulares, impedida de sair
do círculo de relações determinado pelo casamento, família, vida social, e
eventualmente pelas obras de caridade e religião. As situações análogas das
mulheres em seu ser e seu agir têm um conteúdo que as impede de tirar partido de
suas semelhanças para formar associações, pois o que é comum a todas elas
consiste em estar plenamente consagradas a seu próprio círculo, o que exclui
qualquer outra mulher numa situação idêntica. Por conseguinte, sua condição geral
de mulher está a priori destinada a inscrever-se organicamente no círculo de
480 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
encontra amiúde a hostilidade mais apaixonada para com os homens. Essa situação
é fácil de entender. Na medida em que a igualdade de condição mais se acentua,
como valor e qualidade da mulher perante o homem (respeito de quem ela estava
antes em uma posição subordinada ou, pelo menos, de alteridade radical e, portanto,
de dependência) tanto mais enérgico deve ser o sentimento de autonomia da mulher.
No entanto, essa liberdade parcial faz que aquilo que a mulher tem em comum com
as outras mulheres fique mais visível e eficaz – tornando evidente o que até então
não aparecia com suficiente clareza por causa da relação de subordinação ou
complementaridade em que ela se encontrava. Estamos, portanto, em presença de
um caso extraordinariamente puro de formação de um círculo superior, constituído
por um conceito genérico, a partir de círculos mais estreitos que mantinham cada
elemento em uma relação singular.
O que não se pode contradizer pelo fato de que o feminismo do proletariado
tenha tomado uma direção prática absolutamente oposta a do feminismo da
burguesia. É fato que o desenvolvimento industrial permite liberdade
socioeconômica à mulher proletária – por mais miserável que seja sua liberdade
individual. A garota proletária vai à fábrica com uma idade na que necessitaria ainda
da atmosfera de convivência da casa dos pais, ao passo que; a mulher burguesa
casada se desliga de seus deveres para com o lar, o marido e os filhos em virtude do
trabalho remunerado fora de casa. Consequentemente, a mulher fica liberada do
vínculo singular que a destinava à subordinação ao homem ou, pelo menos, a uma
atividade completamente distinta da do marido. A transcendência desse fato
sociológico independe de que possa ser considerado indesejável ou nocivo, e de que
a mulher proletária anseie muitas vezes a limitação dessa liberdade, tenha saudades
da família e queira ser em maior grau companheira conjugal e mãe. Na classe
burguesa, o mesmo desenvolvimento econômico afasta da casa familiar um número
incalculável de atividades domésticas, simplesmente funcionais ou verdadeiramente
produtivas, impedindo assim que um número imenso de mulheres tire o máximo
partido de suas potencialidades, enquanto, no essencial, continuam presas ao lar.
Elas aspiram por consequência à liberdade de ter uma atividade econômica ou de
outro tipo, sentindo-se intimamente alheias ao círculo específico da casa, assim
como a proletária o sente exteriormente. Essa diferença entre as camadas sociais
482 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
nas quais se tem operado esse alheamento está na origem da disparidade das
aspirações práticas: a mulher de uma dessas classes deseja voltar para casa
enquanto a de outra classe tenta ficar de fora. Mas, mesmo que a despeito de tal
diversidade de aspirações, haja lugar para certas coincidências (desde que no
referente à regulação jurídica do casamento, ao regime de bens da sociedade
conjugal, ao pátrio poder sobre os filhos, etc., o feminismo concerne igualmente às
duas classes), subsiste o principal: o isolamento sociológico da mulher,
consequência da fusão com o lar, está ameaçado de dissolução pela moderna
industrialização. Isso poderá acontecer sob a forma do demasiado ou do insuficiente.
Em ambos os casos, a autonomia adquirida e a emancipação almejada salientam a
efetividade do ser mulher, que cada mulher partilha com outras mulheres certas
situações e necessidades práticas. Quando ela perdeu aquele isolamento originado
na orgânica inscrição no círculo de interesses do lar, o conceito geral de mulher
perdeu seu caráter puramente abstrato e se tornou dominante em um grupo coerente
que se manifesta em certa medida através de sociedades exclusivamente femininas
de assistência mútua, de ligas de defesa dos direitos da mulher, de associações
estudantis de jovens mulheres, de congressos femininos e de toda forma de agitação
das mulheres em prol de seus interesses políticos e sociais. Tendo em conta as
notáveis relações do conceito de mulher com o conteúdo específico da vida dos
indivíduos (muito mais estreitas que no caso dos operários e comerciantes), ainda
não é possível prever quais serão as orientações objetivas e os limites deste
movimento. Contudo, muitas mulheres já se sentem no ponto de cruzamento de
grupos que as ligam a pessoas e conteúdos de sua vida pessoal e às mulheres em
geral.
Se no caso precedente a diferenciação consistiu em extrair o círculo superior
do círculo específico individual (o círculo superior só existia em estado latente),
também é missão da diferenciação separar os círculos mais próximos, uns dos
outros, em função da posição de seus membros. Um bom exemplo disso é a guilda
medieval, que vigiava todas as facetas da personalidade de seus integrantes,
chegando a regular sua conduta pessoal em função dos interesses do ofício. Aquele
que era admitido como aprendiz por um mestre se convertia simultaneamente (entre
outras coisas) em membro da família do artífice. Em uma palavra, a atividade
Georg Simmel | 483
profissional era o centro da vida toda, incluindo a vida política e até a sentimental.
Entre os motivos que levaram à dissolução desta comunidade, nos interessaremos,
de momento, pela divisão do trabalho. A força de todo círculo de interesses que
estruture um grupo de indivíduos diminuirá, caeteris paribus39, na medida em que se
reduza sua extensão. A limitação da consciência determina que uma atividade
diversificada, com uma pluralidade de representações vinculadas a ela, atraia a seu
campo o restante das representações desse universo; sem para isso ver-se
obrigadas a ter relações objetivas entre elas. A necessidade de passar rapidamente
de uma representação para outra, faz com que numa ocupação em que não haja
divisão do trabalho seja preciso tal quantidade de energia psíquica – usando a
linguagem simbólica a que devemos recorrer quando se trata de problemas
psicológicos complexos – que o prosseguimento dos outros objetivos pode ficar
comprometido, permitindo que os interesses assim enfraquecidos caiam, por razão
de maioria, sob a dependência associativa daquele círculo central de representações.
Assim como um homem movido por uma grande paixão relaciona a este sentimento
até as coisas mais remotas e com menor contato com seu conteúdo, também dessa
forma assiste-se a uma centralização espiritual análoga quando a profissão não
deixa livre mais que uma quantidade relativamente fraca de consciência para as
outras relações da vida. Confrontamo-nos aqui com uma das consequências
internas mais importantes da divisão do trabalho. Ela repousa no mencionado fato
psicológico segundo o qual (dentro de um espaço temporal específico e mantendo
os outros fatores) necessitamos de mais imaginação quanto mais frequentemente a
consciência deva passar de uma representação a outra. Essa rápida mudança das
representações tem a mesma consequência que a intensidade da paixão no caso
precedente. Por isso – em igualdade de circunstâncias – uma atividade sem divisão
do trabalho ocupará uma posição mais central na vida de um homem que uma
ocupação muito especializada, em particular nos períodos em que as outras relações
da vida não tinham ainda a variedade e as sugestões alternativas características da
época moderna. Acrescente-se a isso que, sendo as ocupações especializadas de
caráter essencialmente mecânico, deixam mais espaço na consciência para outras
39
Expressão latina que significa: “se todas as demais coisas ligadas a ela permanecem iguais”. (NT)
484 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
tirará daí a conclusão de que a moral nada tem a ver com a religião, deduzindo a
autonomia do conjunto dos valores norteadores das relações sociais, e não, por
exemplo, a ideia (tão justificada do ponto de vista lógico como a outra) de que cada
um dos sistemas éticos que organizam a vida das múltiplas comunidades humanas
se vincula com o âmago universal da religião. O mesmo não acontece, por exemplo,
quando um homem que só consegue a satisfação do dever cumprido pondo em
prática uma forma de altruísmo que nele está associada constantemente a uma
dolorosa superação do eu (a uma espécie de ascetismo atormentado), vê outro
homem obter o mesmo sossego e contentamento, mas praticando um altruísmo
espontâneo, livremente assumido, e vivendo uma vida simples e alegre. Não será fácil
o primeiro concluir que essa paz interior que ele procura e esse íntimo sentimento de
autovaloração provavelmente não tenham nada a ver com a dedicação aos outros;
limitando-se a deduzir que a forma específica, ascética, do altruísmo não é
necessária para conseguir a dita tranquilidade de consciência, e que ela pode ser
alcançada por meio de outro altruísmo que, conservando o essencial de todo amor
desinteressado ao próximo, possua forma e matiz distintos. Nesse contexto, a
separação acima referida do interesse profissional em relação aos outros interesses
da vida, por meio da variedade de ofícios, é um fenômeno intermediário cuja
consequência principal se aproxima do primeiro caso. A profissão de um homem
deverá ser sempre associada à totalidade de sua vida. Quer dizer que este elemento
absolutamente universal e formal funcionará invariavelmente como centro de
orientação para muitos outros pontos da vida. Porém, esse não é mais que um efeito
formal, funcional, da profissão – comparável, inclusive, ao relaxamento progressivo
dos laços que vinculam o ofício à vida pessoal propriamente dita.
A crescente diferenciação das profissões mostrou ao indivíduo que a mesma
orientação em diferentes esferas da vida podia estar vinculada a diversos ofícios e,
por conseguinte, ser significativamente independente da profissão. E a diferenciação
de todas as demais esferas da vida (que aumenta igualmente com a difusão da
cultura) conduz também à mesma conclusão. A diversidade da profissão – se todos
os demais interesses fossem idênticos – e a diversidade dos interesses – se todas
as profissões fossem iguais – deveriam conduzir identicamente à separação
psicológica e real de uns e outras. Sem ignorar a distância que existe entre
486 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
dia no burgo devia, nos termos da lei, prestar juramento à commuia, assim como
quem quisesse afastar-se dela devia também perder a proteção do burgo.
Finalmente, essas confrarias se fortaleceram de tal modo que acabaram por
incorporar – não sempre por sua própria vontade – toda a população que habitava
dentro do perímetro urbano. Como podemos ver, tínhamos aqui primeiramente a vida
em comum, puramente local e relativamente casual, dos vizinhos do povoado. Mas
essa convivência tornou-se, aos poucos, para alguns, uma associação voluntária,
fundada em um princípio e para alcançar um objetivo, até que todo esse conjunto
restrito de pessoas vinculadas por um laço comum se transformou no sustentáculo
de uma forma nova e superior de união, sem que seu objeto e coesão fossem
essencialmente modificados. O círculo racional, organizado em função de uma ideia
unitária, não cruza o círculo primitivo (ou natural), limita-se apenas a ser a forma
superior e abstrata, por assim dizer, ao abrigo da qual parece que o antigo se renova.
Essa evolução formal se repite, com conteúdo absolutamente diferente, na relação
que se estabelece entre as colônias e sua metrópole. Desde Colombo e Vasco da
Gama, a colonização europeia teve que enfrentar os efeitos negativos causados pelo
tratamento discriminatório que sofreram os longínquos territórios em que se
promoveu esse processo (que não obtinham vantagem alguma do vínculo de união
com a metrópole, apesar de estarem sujeitos a tributo) e eram considerados como
meras possessões. Este tipo de relação, objetivamente injustificada, conduziu à
emancipação da maior parte das colônias. O fundamento que abonava sua
independência só foi enfraquecido quando, no âmbito britânico 40, nasceu outra ideia
que traduz o propósito de que a colônia seja uma simples província ultramarina da
mãe-pátria, com os mesmos direitos que as outras províncias situadas no território
metropolitano. Pois que a forma de união deixou de consistir então numa simples
junção, rígida e externa, para converter-se em um vínculo conforme o sentido mais
elevado do termo commonwealth – que pressupõe uma união elástica, por
40
O autor deve aludir a um projeto político que teve suas origens quando, em 1884, Lorde Earl
Rosebery, durante uma visita à Austrália, descreveu as mudanças que estava sofrendo o Império
Britânico, depois de que algumas de suas colônias se tornaram mais independentes, como a formação
de um Commonwealth of Nations. Esta “comunidade” começou a tomar corpo com as Conferências
imperiais, que reuniram representantes dos britânicos e das suas colônias logo, periodicamente,
desde a primeira em 1887. (NT)
488 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
41
Na Grécia pré-homérica as phratrias ou trittys, eram os grupos em que se dividiam as tribos
atenienses e de outras cidades áticas Três phratrias compunham uma phylè. (NT)
Georg Simmel | 489
por sinais externos notórios. Essa estrutura orgânica tinha muitas vantagens: ela
tornava cada formação capaz de uma grande coesão, atiçava entre as unidades uma
notável emulação e dispensava até certo ponto ao comando em chefe de ocupar-se
dos indivíduos e de formar os responsáveis do enquadramento da tropa. No entanto,
o preço a pagar por essas vantagens era frequentemente alto: os antigos
preconceitos e querelas readquiriam força, paralisando o movimento de conjunto da
unidade, o que, em geral, privava as diversas seções de solidariedade e enlace entre
elas – circunstância ainda mais chocante quando cada uma possuía individualmente
as qualidades exigidas. Por conseguinte, o todo constituído por esses elementos não
remetia ao desenvolvimento natural deles, a despeito de seu caráter orgânico – ou
talvez por causa dele. Em compensação, desde o ponto de vista do conjunto, a
estrutura impessoal e rigorosa dos exércitos mais recentes (que não leva em conta a
eventual relação interna que poderia existir entre os elementos da seção) é muito
mais orgânica, entendendo-se por esse conceito a regulação unitária e adequada da
mínima parte da formação por uma ideia central, a saber, a influência recíproca dos
elementos. A nova ordem atinge imediatamente o indivíduo e (graças a que suas
divisões e concentrações cruzam inexoravelmente todas as outras) destrói os laços
orgânicos em proveito de um funcionamento preciso e exigente, mas infinitamente
mais favorável à finalidade da qual essa forma mais orgânica (no sentido primário do
termo) extraía seu valor. Surge aqui o conceito de técnica, tão essencial para as
épocas avançadas. Contrariamente aos tempos primevos, nos quais a vida era mais
direta, instintiva e unitária, em virtude da técnica é possível alcançar fins que são da
ordem do espírito com meios predominantemente mecânicos. Essa evolução se
manifesta também nos princípios que regem as eleições parlamentares notadamente
na maneira com que as circunscrições eleitorais estabelecidas a este fim cruzam os
grupos existentes. A princípio, as representações de classe – como no reinado de
Filipe IV de França42 os estados gerais eram os representantes do clero, da nobreza
e das cidades – parecem ser mais naturais e orgânicas, em face da divisão
puramente convencional dos corpos eleitorais – como os estados gerais dos Países
42
Também chamado de Filipe, o Belo, foi rei da França como Filipe IV, de 1285 até sua morte em 1314.
Foi também rei da Navarra como Filipe I, de 1284 a 1305 em virtude de seu casamento com Joana I.
(NT)
490 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
43
Cognominado "O Prudente", foi rei da Espanha como Filipe II de 1556 até sua morte em 1598, rei de
Portugal e Algarves como Filipe I a partir de 1581, e “senhor dos Países Baixos”. (NT)
Georg Simmel | 491
engrenagem social é hoje vasta e complexa demais para que cada um de seus
elementos possa expressar um pensamento completo, limitando-se a contribuir,
apenas como parte de um todo, à realização de uma ideia. Por outro lado, certa
diferenciação priva, com frequência, as atividades de sua dimensão moral, de modo
que o mecânico e o espiritual acabam levando uma existência separada, própria.
Assim, por exemplo, a atividade da operária de uma máquina de bordar só tem para
esta trabalhadora um sentido mecânico, muito menos espiritual do que tinha o seu
labor para a bordadeira de antigamente – enquanto a potência moral que animava
esse trabalho tem passado para a máquina e se objetivado nela. Podem, desta
maneira, as instituições, as hierarquias e agremiações sociais tornarem-se mais
mecânicas e artificiosas e servir, todavia, ao progresso da cultura e a unidade interna
do todo, contanto que exista um fim social superior ao qual elas devem estar
subordinadas, fim este que impede que se arroguem a posse do espírito e do sentido
que outrora representavam o arremate da série teleológica. É o que explica a
passagem do princípio gentílico ao princípio da década para a divisão em grupos
sociais, mesmo se este último aparenta ser uma associação de elementos
objetivamente heterogêneos, em face da homogeneidade da família.