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LIBERDADE, UTOPIA E TERROR.

A condição humana: entre o Leviathan e Beemoth. Júlio Bernardes

Este trabalho deve ser visto como uma pequena contribuição à discussão e tem

como fonte inspiradora o texto da professora Kathrin Rosenfield intitulado A violência

mítica à luz da razão, publicado recentemente no caderno de cultura do jornal Zero-Hora,

com o propósito de anunciar o tema deste evento. Em resumo, o texto da professora Kathrin

anuncia, em um cruzamento dos discursos poético-mítico e lógico ou racional, um ponto

comum entre o grego Sófocles e filósofos modernos como Hobbes, Hegel e Nietzsche no

que toca à reflexão sobre as condições próprias da vida política e, sobretudo, de sua gênese,

quer elaborada em torno de metáforas míticas, quer formulada em torno de categorias,

conceitos, idéias ou princípios da razão. Esse ponto comum é anunciado como o avesso

sombrio da violência originária da qual emerge a vida política e sob o qual ainda pairam, no

horizonte da sociedade civil, as incertezas humanas.

Nas suas mais diversas formulações, a violência, a desordem, o pano de fundo da

morte, a disputa pelos bens, pela manutenção da vida ou satisfação dos desejos, ou ainda,

como quer Hegel, a luta pelo reconhecimento, constituem o preâmbulo, a ante-sala da

esfera da instituição política. A questão que se coloca para o pensador de nossa tradição,

para aquele que de fato se compromete tanto com a reflexão sobre os fundamentos

filosóficos, como com a inspeção cuidadosa de nossa iconografia mítica e seu ordenamento

simbólico é porque a instituição do domínio propriamente político requer, para uma

determinada tradição, a esfera anterior da violência? Ou ainda, uma outra questão, é porque

mesmo já instituído este ainda porta em si a perspectiva da violência?. Isto é, porque a


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violência – mesmo como possibilidade - não é cabalmente dissolvida com a instituição da

esfera política, porque ainda insiste em se descortinar no horizonte de nossas relações?

Estas questões remetem ao modo como descrevemos ou concebemos a natureza

humana. Ou seja, o jogo que se desenvolve sob o pano de fundo da morte violenta acaba

por revelar certas características absolutamente humanas, entre outras, a carência, o desejo,

o orgulho, o medo, a coragem que podem ser resumidas sob a égide de uma existência

finita. Tanto em Hobbes no Leviathan, como em Hegel – e aqui me refiro à dialética do

Senhor e do Escravo na Fenomenologia do Espírito – tal jogo se desenvolve sob as

condições da finitude humana em que a aparição do outro evoca o temor e o risco da

dissolução da consciência, da vida e suscita no agentes o apelo ao enfrentamento para o

domínio ou aniquilamento do outro. Neste jogo são reveladas as condições próprias para

fundamentação do político.

Em Hobbes, a condição de autoridade de cada indivíduo derivada do direito à vida e

as suposições racionais – a finitude dos bens, a igualdade, etc. – acabam por engendrar uma

situação de disputa radical na qual cada um dos agentes percebe mais ameaçado aquilo que

desejam preservar: a própria vida. Deve-se salientar que a liberdade ilimitada de cada

agente, racionalmente autorizada, os compõe como soberanos dos seus desejos e de suas

ações neste domínio pré-político, não havendo, portanto, restrições externas a manifestação

da vontade pela ação. A instituição do Estado político aparece como uma máxima da razão

frente a esta cena paradoxal: aquilo que cada um está legitimamente autorizado a buscar (a

preservação da vida e a segurança) segundo seu próprio juízo se encontra mais ameaçado,

neste contexto de disputa radical. A guerra de todos-contra-todos é uma situação que


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incrementa o risco da morte violenta, e, assim nos dita a prudência, devemos abandoná-la,

restringindo nossa liberdade individual através da instituição do Estado, abdicando de nossa

condição de soberanos de nossas ações, transferindo o direito à todas as coisas para esta

pessoa política confeccionada mediante o contrato. O importante observar é que o estado de

natureza, sob a égide da violência, é um momento no qual são apresentadas as condições

para a instituição do Estado político e da paz a partir da explicitação das notas

características da natureza humana.

Em Hegel, a luta pelo reconhecimento pelas autoconsciências - expressa na

passagem da dialética do Senhor e do Escravo da Fenomenologia do Espírito - se

desenvolve no conflito entre consciências que se negam sob a forma da ação violenta; mas

a natureza impõe suas condições, a saber: revela um primado natural, o ser para a morte,

uma consciência que assim se percebe, e uma praxis que se orientará para a preservação de

toda a solvência que a morte anuncia pela e na aparição do outro. O outro, para cada

consciência, é pura ameaça de dissolução e que, pela força, deverá se tornar utensílio, i.e.,

um objeto para atenuar as próprias mazelas que a natureza impõe para aquele que vive. A

morte é uma condição natural para a finitude da consciência, embora a ameaça da

dissolução pela ação violenta, contida na aparição do outro, a remeta a um plano

propriamente humano.

O medo da dissolução de si mesma frente ao primeiro reconhecimento da autonomia

do outro é o que move a batalha pelo domínio de uma consciência sobre a outra. A luta à

morte, neste contexto, assume o significado para a consciência, através da ação violenta, da

luta pela conquista da liberdade, pois através deste expediente ela impõe ao outro o
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reconhecimento de si como soberano supremo e afirma-se, pela exposição ao risco da

dissolução, como consciência para si – pela verdade que a vida representa para a unidade

da consciência1 – e como sujeito livre frente às determinações externas, i.e. do mundo e de

qualquer outro ser aí. Esta forma de embate imporá os termos da nova relação e estes –

senhor e escravo – não são externos às consciências, mas passam a constituí-las, a formatá-

las, isto é a determinar o seu modo de ser no mundo, não mais natural, mas humano ou

histórico. Esta figura se caracteriza por uma primeira aparição da liberdade, pois nela se

produz um reconhecimento unilateral, do servo para com o senhor. A sua consciência está

presa ao servir, ou por-se como utensílio frente ao outro que o contempla como um objeto

seu, na ordem das coisas mesmas.

A interposição do servo entre o senhor e as coisas, aparece para o senhor como

uma recusa ao mundo, como uma recusa ao trabalho, ao esforço e a tudo o que lhe aparece

como uma forma negativa de seu regozijo e do seu deleite. Ou seja, o senhor acaba retido à

esfera da coisidade, pois ao renegar o que lhe é externo - pelo temor da dissolução de si à

sombra da morte -, termina por reificar esta mesma esfera, o que equivale a recusar ao

domínio próprio da política, cujo o qual pressupõe o reconhecimento das formas

institucionais, como uma limitação à manifestação ilimitada e imperiosa da vontade. Esta

forma de consciência não tolera, segundo Hegel, o limite de qualquer forma de

ordenamento, pois isso aparece como um suplício ao exercício de sua vontade e de seu

desejo. O servo com o seu trabalho - em um processo que não iremos aqui detalhar - e nesta

posição intermediária entre as coisas e o senhor, acaba por produzir e suscitar o

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Hegel, G.W.F. A Fenomenologia do Espírito.
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reconhecimento entre as duas consciências, rompendo a clausura desta figuração

imperfeita.

O reconhecimento mútuo faz com que se dissolvam as formas da consciência para-

si (o senhor) e da consciência para o outro (servo), tornando possível a aparição, segundo

Hegel da igualdade e, por fim, da liberdade. Estas categorias são fundamentais para a sua

filosofia política, pois o Estado para Hegel é o domínio da relação entre vontades livres que

se reconhecem por intermédio do direito nas instituições que conformam a sociedade civil

sob o império do Estado.

Apesar das grandes diferenças entre estes filósofos, tanto para Hobbes como para

Hegel o domínio da política e do Estado pressupõem uma limitação à expressão de um

individualismo radical pelo reconhecimento e obediência às suas leis, i.e., às Leis do

Estado. Ou ainda, a esfera da política aparece como um domínio de liberdade mitigada em

relação à liberdade natural – em Hobbes – ou da expressão de uma liberdade que se perfaz

pelo reconhecimento de si como mediado pelas instituições políticas e mundanas, em

Hegel. Em ambos os casos, o Estado aparece como um ordenador ou mantenedor da esfera

na qual os sujeitos privados atuam.

Em Hobbes, a liberdade sobre os afazeres privados é: ou consentida, ou deixada

livre de legislação. Segundo este filósofo, ao se impor um excesso de leis e

regulamentações sobre as atividades dos indivíduos, corre-se o risco de estagná-las, não

propiciando, assim, o desenvolvimento do comércio, da ciência e das artes. Deve-se deixar

a natureza dos homens, na sua luta por prestígio e por conforto, atuar em prol do
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desenvolvimento da boa vida. Pois esta é, segundo Hobbes, a melhor forma de suscitar a

adesão dos homens ao seu compromisso com a ordem política, dando maior coesão ao

corpo do Estado.

Em Hegel, o Estado se estabelece pelo reconhecimento, por parte das auto-

consciências e das vontades particulares, da necessidade da sua efetiva universalidade, seja

para a manutenção da sociedade civil e o jogo de carecimentos que nela se desenvolve, seja

para evocar na consciência dos homens o reconhecimento da racionalidade das

determinações que travejam as relações que estes mantém entre si. Há aqui uma forma de

reconhecimento do agente e do aparato institucional do Estado que resulta em conceber-se

como um cidadão, i.e. portador de direitos para com o qual o Estado deve manter uma

relação de reciprocidade segundo princípios públicos e constitucionais. Entretanto, o plano

da violência como possibilidade do agir humano não foi dissipado. A luta pelo

reconhecimento ou a disputa por bens continuam se desenvolvendo no interior da esfera

política. A natureza humana não foi alterada e, em ambos os casos, a violência originária

pode se repor. Hegel alerta, na sua Filosofia do Direito, que no horizonte da sociedade

civil se descortina a violência, bem como Hobbes, na sua obra intitulada Beemoth, que

analisa as causas da guerra civil inglesa.

Há ainda, um último ponto a ser considerado relativo à uma forma específica de

violência política e que remonta à significação do Estado como um regime de absoluta

supressão da sociedade civil e das garantias individuais. Refiro-me aqui ao terror e à sua

parição na forma do Estado totalitário. Sobre isto, Hegel faz referência à possibilidade da

usurpação da esfera política por uma forma de consciência de si que ao querer a realização
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de uma forma política universal, não tolera para si os limites que qualquer forma de

ordenamento impõe e requer. A vontade desta consciência rege-se por uma liberdade

negativa que Hegel descreve como aquela que representa o objeto do querer como para

além de si, não se reconciliando com as instituições que cria.

No século passado, as referências do terror são óbvias. Entretanto, este apareceu sob

uma nova forma, o terror da consciência utópica. Esta forma de terror encontra a

necessidade de sua existência não em qualquer forma de reciprocidade com uma esfera

autônoma da sociedade civil, ou em uma ordem universal de direitos, mas na sua própria

vocação, a saber: a vocação para a realização de um projeto que prescreve, para além do

presente e da história, para além da condição humana, a própria superação do domínio da

Política e da História.

Na acepção da consciência utópica, o Estado - diriam seus vogais - não encontra em

si mesmo e na sua relação com os homens no presente, a sua própria fundamentação, mas

na utopia que o rege. É uma forma de instituição absolutamente vocacionada para a

realização de algo que lhe é externo, seja uma utopia com conteúdos de esquerda ou de

direita. A necessidade enunciada por aqueles que defendiam ou ainda defendem esta forma

de instituição provisória se fundamenta tão somente nas diretrizes simbólicas de sua utopia.

A provisoriedade das instituições do Estado totalitário é remissiva ao seu compromisso com

o futuro e nele encontra sua forma de justificativa, mesmo quando castas e nomenclaturas

já constituíram uma forma de domínio absolutamente tirânico, extirpando, ironicamente, no

presente qualquer possibilidade de “redenção” no futuro, restando apenas o legado da fúria,

do medo e da destruição.

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