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Ensaios e Notas

CULTURA GERAL

As sete regras de interpretação de Hillel

No período do Segundo Templo, rabi Hillel (c.60 a.C – c.7 a.C.) contendia com seu
colega rabi Shammai (c.50 a.C – c.20 a.C.) em mínimos detalhes da Lei mosaica. O
Talmud registra 316 pontos de disputa entre a Casa de Hillel e a Casa de Shammai,
sendo a primeira mais latitudinária em sua interpretação e aplicação da Torá
enquanto a última exigia maior rigor. Subjacente ao debate entre esses sábios tanaítas
estava a diferente hermenêutica empregada.

Hillel utilizava a analogia e a alegoria para adaptar a Torá ao seu objetivo, resumido
na regra áurea de “O que for odioso a você, não faça a seu próximo; isso é toda a Torá”
b.Shabbat 31a. Enquanto Shammai fazia uma abordagem mais literalista, subsuntiva e
legalista.

As chamadas sete regras de interpretação de Hillel antecedem a ele, visto que na


Tanakh já havia aplicações delas. Sem contar sua continuidade das retóricas gregas e
mesopotâmicas. Mas, cristalizadas no período dos tanaítas, seriam modelos
interpretativos que indiretamente influenciaram o nascente cristianismo. Não seria
pretensioso afirmar que toda a filosofia ocidental — especialmente pelas transmissões
de Orígenes, Agostinho, Boécio e Cassiodoro — se beneficiaria dessas regras. Por fim, a
a própria hermenêutica jurídica ocidental pode traçar suas origens em algumas dessas
regras ao longo da moderna halakah judaica.

1. Qal vahomer (a majori ad minus; argumento a fortiori): se for verdadeiro para o


caso de menor importância, é verdadeiro para o caso mais importante. É a analogia do
menor para o maior.
Esse raciocínio pode ser ilustrado pelo trecho abaixo. Na época, Davi era um
guerrilheiro sem eira-nem-beira, caçado por Saul. O impasse era sobre salvar a cidade
israelita Queila, sitiada pelos filisteus. Os homens de Davi, que sequer tinham recursos
para enfrentar as forças do rei de Israel e Judá, interpretavam como uma audácia
querer enfrentar os filisteus, forças ainda maiores.

E foi anunciado a Davi, dizendo: Eis que os filisteus pelejam contra Queila, e
saqueiam as eiras.
E consultou Davi ao Senhor, dizendo: Irei eu, e ferirei a estes filisteus? E disse o
Senhor a Davi: Vai, e ferirás aos filisteus, e livrarás a Queila.
Porém os homens de Davi lhe disseram: Eis que tememos aqui em Judá, quanto mais
indo a Queila contra os esquadrões dos filisteus.
Então Davi tornou a consultar ao Senhor, e o Senhor lhe respondeu, e disse:
Levanta-te, desce a Queila, porque te dou os filisteus na tua mão.
Então Davi partiu com os seus homens a Queila, e pelejou contra os filisteus, e
levou os gados, e fez grande estrago entre eles; e Davi livrou os moradores de
Queila.
1 Samuel 23:1-5

O raciocínio dos homens de Davi é replicado na inferência rabínica. Por exemplo, as


restrições de atividades nas festas anuais (menos importantes que o sábado) seriam
aplicáveis ao descanso semanal do sábado.

2. G’zerah Shavah (equivalência verbal; analogia das expressões): em passagens


ambíguas, se um termo aparece usado em trechos diferentes possui o mesmo
significado da passagem mais clara.

Uma analogia é feita entre dois textos separados com base em uma frase, palavra ou
raiz semelhante — ou seja, quando as mesmas palavras são aplicadas a dois casos
separados, segue-se que as mesmas considerações se aplicam a ambos.

Por exemplo, “pé” aparece como eufemismo para a genitália em várias partes da
Bíblia: Saul descobrindo seus “pés” na caverna (1 Samuel 24:3); Rute descobrindo e
deitando-se sobre os “pés” de Boaz (Rute 3:3-4); Isaías profetizou que os assírios
metaforicamente passariam a navalha nos pelos dos “pés” de Israel (Isaías 7:20).

3. Binyan ab mikathub echad (dedução a partir de uma norma; analogia da


extenção do específico para o geral): aplicar uma norma encontrada numa
passagem apenas para passagens relacionadas com a primeira, mas omissa quanto a
disposição normativa.

O exemplo clássico dessa técnica interpretativa é encontrado na noção de concerto,


aliança ou pacto. Por exemplo, em Gênesis 17:2-8 há um concerto entre Deus e um
homem, Abraão. Mais tarde, a ideia de a divindade compactuar-se com os seres
humanos estendeu-se na lei mosaica (Êxodo 6:4-5) e nos escritos dos profetas (Jeremias
31:31-34). Deduz-se da primeira menção, que a relação entre Deus e os homens é
sinalagmática: é voluntária mas contém contraprestações.
E porei o meu concerto entre mim e ti e te multiplicarei grandissimamente. Então,
caiu Abrão sobre o seu rosto, e falou Deus com ele, dizendo: Quanto a mim, eis o
meu concerto contigo é, e serás o pai de uma multidão de nações. E não se
chamará mais o teu nome Abrão, mas Abraão será o teu nome; porque por pai da
multidão de nações te tenho posto. E te farei frutificar grandissimamente e de ti
farei nações, e reis sairão de ti. E estabelecerei o meu concerto entre mim e ti e a
tua semente depois de ti em suas gerações, por concerto perpétuo, para te ser a ti
por Deus e à tua semente depois de ti. E te darei a ti e à tua semente depois de ti a
terra de tuas peregrinações, toda a terra de Canaã em perpétua possessão, e ser-
lhes-ei o seu Deus.Gênesis 17:2-8

Êxodo 6:4-5 Jeremias 31:31-34

Eis que dias vêm, diz o Senhor, em que farei um


concerto novo com a casa de Israel e com a
casa de Judá.

Não conforme o concerto que fiz com seus pais,


E também estabeleci o meu no dia em que os tomei pela mão, para os tirar
concerto com eles, para dar-lhes da terra do Egito, porquanto eles invalidaram o
a terra de Canaã, a terra de suas
meu concerto, apesar de eu os haver desposado,
peregrinações, na qual foram diz o Senhor.
peregrinos. E também tenho
ouvido o gemido dos filhos de Mas este é o concerto que farei com a casa de
Israel, aos quais os egípcios Israel depois daqueles dias, diz o Senhor: porei
escravizam, e me lembrei do meu a minha lei no seu interior e a escreverei no seu
concerto. coração; e eu serei o seu Deus, e eles serão o
meu povo. E não ensinará alguém mais a seu
próximo, nem alguém, a seu irmão, dizendo:
Conhecei ao Senhor; porque todos me
conhecerão, desde o menor deles até ao maior,
diz o Senhor; porque perdoarei a sua maldade e
nunca mais me lembrarei dos seus pecados.

Outro exemplo é do lenhador que mata outra pessoa acidentalmente (Deut 19:4-5).
Outras situações de provocar a morte de forma involuntária são tratadas com postura
similar.

4. Binyan ab mi-shene ketubim (dedução a partir de mais de uma


norma): construir uma norma com base em enunciados presentes em mais de um
trecho.

As regras de remissão (substituição ritual) de um primogênito ou primícia para oferta


a Deus por outro semelhante são aplicadas na Lei de Talião (Êxodo 21:26, 27). Ou seja,
a parte ofendida poderia demandar a reparação equiparável do ofensor, não
exatamente reproduzir a mesma ofensa.

5. Kelal u-Peraṭ /Peraṭ u-kelal (do geral ao particular; do particular ao geral): uma
termo específico seguido de um termo geral. Antecede o célebre círculo hermenêutico.
O exemplo clássico é o da perda de um bem emprestado. Êxodo 22:9 faz um rol aberto
de bens perdidos (gado, vestimenta ou qualquer coisa) que incubem quem tomou
emprestado a restituir em dobro. Assim, as obrigações e responsabilidades de quem
toma emprestados são dobradas em relação ao emprestador, irrespectivo de qual bem
seja.

6. Kayotze bo mimekom akhar (analogia de outra passagem): passagens em


conflitos deverão ser interpretadas face uma terceira. Este caso é ilustrado por uma
resposta do rabi Hillel. Se é proibido matar animais no sábado, como cumprir os
rituais de sacrificar o cordeiro pascal se a data cair no sábado? Como Números 28:10
prescreve sacrifícios diários, Hilel julgou que é permissível preparar o cordeiro pascal
no sábado.

7. Davar hilmad me’anino (interpretação pelo seu contexto): as normas anteriores


ou seguintes determinam o significado. Cada norma não existe ou é aplicada
isoladamente. Por necessidade lógica, os israelitas do êxodo saíram de casa para juntar
o maná no sábado, portanto, a vedação de sair de casa aos sábados (Êxodo 16:29) deve
ser mitigada.

Na hermenêutica das religiões abraâmicas posteriores ao Segundo Templo,


notavelmente no judaísmo rabínico e no cristianismo, essas regras são notáveis.
Ocorrem tanto no Talmud e no Novo Testamento, como em escritos tardios. Vale notar
que são como os topoi, de aplicação ponderada, não absoluta.

SAIBA MAIS

Seven rules of Hillel – Encyclopedia Judaica

DAUBE, David. “Rabbinic methods of interpretation and Hellenistic rhetoric.” Hebrew


Union College Annual 22 (1949): 239-264.

FERREIRA, Cláudia Andrea Prata. “Os estudos bíblicos e a exegese judaica na Idade
Média“. In LEWIN, H., coord. Judaísmo e modernidade: suas múltiplas inter-relações
[online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009. pp. 479-502. ISBN:
978-85-7982-016-8. Disponível no SciELO Books .

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Publicado por leonardomalves

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 novembro 2, 2016
Hermenêutica, Metodologia Científica

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Sete Middot

4 comentários em “As sete regras de interpretação


de Hillel”

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