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Língua Portuguesa:

Estilística e Estudos
Semânticos
Material Teórico
Estilística Morfológica

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Ms. Celso Antônio Bacheschi

Revisão Textual:
Profa. Ms. Silvia Augusta Albert
Estilística Morfológica

··Introdução
··Composição
··Derivação

Nesta unidade, trataremos dos efeitos expressivos dos principais processos


de formação de palavras em português: a composição e a derivação.
Para um bom aproveitamento na disciplina, é muito importante a interação
e o compartilhamento de ideias para a construção de novos conhecimentos.

Iniciamos, agora, mais uma unidade da disciplina Língua Portuguesa – Estilística e Estudos
Semânticos. Nela, trataremos do potencial expressivo dos principais processos de formação
de palavras em português, como a Composição e a Derivação.
Para obter um bom desempenho, você deve percorrer todos os espaços, materiais e atividades
disponibilizadas na unidade

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Unidade: Estilística Morfológica

Contextualização

Antes de iniciarmos nossos estudos nessa unidade da disciplina Língua Portuguesa – Estilística
e Estudos Semânticos, convidamos você a ouvir a canção de Gilberto Gil, disponível em:
»» https://www.youtube.com/watch?v=uBA1nUHJhI0
Repare no modo como o autor emprega as palavras “meta” e “fora”, associando-as à palavra
“metáfora”, além de criar o adjetivo “incontível”. Com esses procedimentos, o compositor
intensifica a expressividade na letra de sua canção.
Nesta unidade, estudaremos a expressividade ligada aos elementos que compõem as palavras,
considerando dois processos de formação de palavras: a composição e a derivação.

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Introdução

Nesta unidade, estudaremos a expressividade ligada aos elementos que compõem as palavras,
considerando os dois processos de formação de palavras mais comuns em português, que são
a composição e a derivação.

Composição
A composição é o processo de formação de palavras por meio da reunião de dois ou mais
radicais, que passam a exprimir conceito novo e único e, não raro, desvinculado do sentido de
cada um de seus componentes. É o que ocorre em “girassol”, “amor-perfeito”, “psicologia” etc.

Veja, no quadro, o exemplo:


Radical Radical =
Psic(o)- (alma) -Logia (estudo, tratado) Psicologia

Said Ali (1964) explica que uma palavra composta é formada a partir de um enunciado.
Por exemplo, as palavras “saca-rolhas”, “beija-flor” e “ganha-pão” formaram-se a partir de
expressões como “objeto que saca rolhas”, “ave que beija flor” e “ofício com que se ganha o
pão”. O mesmo autor observa que há compostos que se escrevem juntos, como “pontapé”,
ligados por hífen, como “latino-americano”, e separados, como “estrada de ferro”.

A formação de compostos pode servir a finalidades expressivas, como no exemplo


que segue:

Ode ao Burguês
Eu insulto o burgês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco! [...]
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!

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Unidade: Estilística Morfológica

Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi ! [...]
(ANDRADE, Mário de. Poesias Completas. São Paulo: Edusp, 2003.)

No texto, encontramos compostos como “burguês-


Fonte: Wikimedia Commons

níquel”, que pode ser entendido como uma referência ao


apego ao dinheiro. Outros compostos, como “burguês-
mensal”, “burguês-cinema”, “burguês-tílburi” podem ser
associados aos hábitos da burguesia. Essas formações
de compostos permitem sintetizar o conteúdo de toda
uma frase numa única palavra, embora o significado do
conjunto, às vezes, possa tornar-se obscuro. A respeito da
expressividade dos compostos, consulte Bacheschi (2013).
Ver em Referências Bibliográficas ao final dessa unidade.

Na linguagem oral, a composição tem sido um processo


expressivamente produtivo no português, a partir do
qual têm surgido palavras como “cracolândia” (< inglês
crack + -o- + -lândia), cujo elemento final tem servido,
segundo Houaiss (2009: 1720), para a formação de
“palavras ad hoc de valor afetivo e pitoresco, como pagolândia, gurilândia, brotolândia,
bostolândia etc., pelo menos no Brasil”. Em outros exemplos, ocorre o emprego de elementos
de composição do grego, que, por vezes, sofrem mudança do sentido original, como em
“fumódromo”, “camelódromo”, “sambódromo”, “brinquedoteca”, “discófilo”, “cinéfilo”,
“olhômetro”, “impostômetro” etc.

Outro tipo de composição é o cruzamento vocabular (também chamado blend, fusão vocabular,
palavra entrecruzada, amálgama etc.), que vem sendo bastante difundido recentemente como
forma expressiva de se alcançar um efeito cômico. As palavras formadas por esse processo
têm por base semelhanças de sonoridade, como “trêbado”, “apertamento”, “burrocracia”,
“lixeratura”, “paitrocínio”, “showmício”, podendo indicar, também, posição intermediária,
como “brasiguaio”, “portunhol”, “namorido”, “chafé”, “batatalhau”. Em outros, substitui-se
um fragmento por outro que se liga ele pelo significado (de fato ou supostamente), como em
“bebemorar” e “carreata”.

Esse tipo de composição também pode ser encontrada na literatura. Drummond, por exemplo,
criou o termo “agritortura”, com o qual resume a ideia do sofrimento dos trabalhadores agrícolas.

Outro exemplo, que reproduzimos a seguir, de Guimarães Rosa, foi colhido de Martins (2008):

E, desistindo do elevador, embriagatinhava escada acima (ROSA, João


Guimarães. Tutameia. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p. 104.)

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Nesse trecho, o autor forma o composto “embriagatinhava”, tendo por base “embriagado”
e “gatinhar” (mesmo que “engatinhar”). O objetivo é reunir, na mesma palavra a ideia da ação
(engatinhar) e a da sua causa (embriaguez). Para mais exemplos, ver Cardoso (2010). Ver em
Referências Bibliográficas ao final dessa unidade.

Fonte: Wikimedia Commons

Vejamos agora outro processo de formação de palavras: a derivação.

Derivação
Ao contrário da composição, a derivação consiste na formação de palavras a partir de um
único radical e abrange diferentes processos, dos quais o mais comum é a derivação progressiva,
que ocorre por meio de acréscimo de afixos, que são elementos que se prendem a um radical. Os
afixos, em português, dividem-se em prefixos, que se acrescentam antes do radical e sufixos,
que se acrescentam depois dele.
Vamos começar por ver os efeitos expressivos na utilização dos sufixos.

Derivação sufixal
A derivação sufixal, como se disse, consiste no acréscimo de um sufixo ao radical. Vejamos exemplos:

Radical Sufixo =
Pedr- -eiro Pedreiro
Gás -oso Gasoso

No primeiro caso, acrescenta-se o sufixo -eiro ao radical pedr- (o mesmo da palavra “pedra”),
formando-se “pedreiro”. No segundo caso, acrescenta-se o sufixo -oso ao radical gás, formando-
se “gasoso”.

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Unidade: Estilística Morfológica

Martins (2008: 80) observa que “o elemento avaliativo pode ser acrescentado a um
lexema por um sufixo ou prefixo” (destaques da autora).
Os sufixos aumentativos, por exemplo, podem expressar uma ideia de valorização, como em
“carrão” e “golaço” ou de ridículo, como em “dentuço”. Tomando-se, por exemplo, o vocábulo
“gente”, nota-se que todos os substantivos formados a partir dele, como “gentalha”, “gentaça”,
“gentama”, “gentinha”, “gentarada” e “gentuça”, possuem, em geral, valor pejorativo, sendo
equivalentes a “ralé”.
Lapa (1975: 106) afirma que a ideia de pequenez “anda ligada geralmente em nosso espírito
à ideia de ternura, simpatia, graciosidade”, de modo que, segundo o autor, livrinho “pode não
ser um livro pequeno, pode ser um livro com as dimensões vulgares; mas é certamente coisa
querida e apreciada”. O significado que se obtém com a combinação do sufixo com o radical,
no entanto, pode variar de acordo com o contexto, ou seja, a escolha do termo “livrinho” pode
Mattoso Câmara (1978: 61) via os sufixos como “poderosos centros de carga afetiva”,
cujo significado “quase só nisso se resume”. Martins (2008: 114) também trata dos sufixos,
ressaltando seu valor como elemento avaliativo.
Nas palavras de Sandmann (1991: 79), “não resta dúvida de que usar recursos morfológicos
para expressar apreço ou desapreço é uma importante função da formação de palavras”.
Said Ali (1964) comenta que
o sufixo -ice, se fizermos abstração do seu papel em ledice, velhice, meiguice e
poucos exemplos mais, revela em geral forte afinidade eletiva por adjetivos que
exprimem vícios ou defeitos pessoais, produzindo substantivos denotadores de atos
que aberram do procedimento de pessoas sérias ou sensatas: malandrice, sandice,
tolice, parvoíce, gatunice, bebedice, patetice, perrice, doudice, rabugice, fanfarrice.

Além desse emprego, nos substantivos formados a partir de outros substantivos, acrescenta
noção nitidamente pejorativa (gramatiquice, invencionice etc.), que, segundo o mesmo autor
(op. cit.), decorre de analogia com os exemplos anteriormente citados.
Em termos expressivos, os sufixos aumentativos podem revelar a admiração pela grandeza
em “jogão” (ou “jogaço”) ou por certa característica, como em “fortão” e “lindão”; mas, segundo
Lapa (1975: 106), como somos “gente apaixonada, e facilmente vamos dum extremo a outro,
não é de surpreender que o mesmo sufixo evoque em nós sentimentos depreciativos”. Desse
modo, Martins (2008: 115) faz lembrar que
o aumentativo, mais frequentemente, tem valor pejorativo, acrescentando ou
reforçando um sentido de depreciação, porque aquilo que é de tamanho excessivo é
geralmente visto como feio, ridículo, grotesco, desagradável (bestalhão, grandalhudo,
cabeção, vozão, vozeirão, mulheraça, bigodarra, gramaticorra, etc.).

O sufixo -eco(a) é diminutivo e, a exemplo de outros sufixos, pode ser empregado para a
expressão de estima, como em “amoreco”, ou de desprezo, como em “livreco” e “padreco”.
O sufixo -inho(a), além de valor de diminutivo, apresenta outros em grande numero, por
exemplo, em “à noitinha” e “de manhãzinha”, existe noção de início de processo. Desempenha
função de intensificador, como em “rapidinho”, podendo acrescentar ideia depreciativa, como

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em “nervosinho” e “espertinho”, servir como atenuador em “baixinho”, “gordinho” e “alegrinho”
(com sentido de “embriagado”), ou exprimir ausência de dúvida, como em “mortinho”. Segundo
Lapa (1975: 111),
as manifestações de ternura caracterizam-se por sua intensidade e natural exagero.
Era pois inevitável que também se apegasse ao sufixo um efeito superlativante. Os
advérbios foram largamente afetados, na linguagem popular, por tal superlativação.
Assim o povo diz: “Ela mora pertinho de minha casa” (destaque do autor).

Kerbrat-Orecchioni (2006) refere-se a formações com -inho(a), como “me faça um


favorzinho”, “me dê uma ajudinha”, “espere um minutinho” etc., denominando-as
minimizadores. São formas de amenizar o efeito desagradável de uma ordem ou de um pedido.
É o que parece ocorrer na fala da personagem que segue:

Ah, disse a moça, você ficou zangado comigo, diga, ficouzinho? bobo, te chamo
de bobo como te chamo meu bem, fica nervosinho não, eu agora estou sentindo
que o que você falou é uma graça, boca de luar é legal, olha aqui, vou te dar um
beijo superluar, você quer? (ANDRADE, Carlos Drummond de. Boca de Luar.
Rio de Janeiro: Record, 1984. Destaque nosso.)

Nesse exemplo, ocorre um fato raro: o sufixo -inho aparece ligado a um verbo.
Vejamos outros exemplos de emprego expressivo de sufixos:

O peru de Natal
Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação
todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia
Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei,
duma criada de parentes: eu consegui, no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama
conciliatória de “louco”.

[...]
– Mas quem falou de convidar ninguém! Essa mania... Quando é que a gente já comeu peru
em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo...
– Meu filho, não fale assim...
– Pois falo, pronto!

(ANDRADE, Mário de. O peru de Natal. In: Antologia de Contos Brasileiros. 2. ed. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2000. Destaques nossos.)

Nesse trecho, o autor optou por não utilizar o plural “parentes”, preferindo empregar
substantivos derivados de sentido coletivo. Em ambos os casos, há uma avaliação negativa
acerca dos parentes; e, para expressá-la, o autor faz escolha de sufixos – -agem e -ado(a) – de
sentido frequentemente pejorativo . Note que é comum que se associem julgamentos negativos
aos coletivos.
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Unidade: Estilística Morfológica

Provavelmente, isso se deve ao fato de que a sociedade atual valoriza o individual


e o exclusivo. Sob esse ponto de vista, as coisas serão mais valorizadas quanto
mais raras forem, uma vez que, a partir da revolução industrial, artigos idênticos
passaram a ser produzidos, diariamente, em escala mundial. Disso decorre que
algo personalizado, ‘customizado’ parece mais merecedor de estima do que algo
que se encontra ‘aos punhados’ ou ‘às baciadas’. Por outro lado, também é
comum que se associe a ideia de coletivo à de excesso e, por extensão, à de
desordem e tumulto (Bacheschi, 2014: 104.).

No emprego de “parentada”, a avaliação negativa é reforçada pela expressão “do diabo”.


Vejamos outro exemplo:

Mas João Teodoro acompanhava com aperto de coração o desaparecimento visível de sua Itaoca.
– Isto já foi muito melhor, dizia consigo. Já teve três médicos bem bons – agora só um
e bem ruinzote.

(MONTEIRO LOBATO, José Bento. Obra Completa. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1950.
Destaques nossos.)

No trecho, em “ruinzote”, o autor utiliza o sufixo -ote para acentuar a avaliação negativa
sobre o médico. Isso também ocorre em palavras que possuem esse mesmo elemento, como
“fracote”, “frangote” etc.
Apesar de os exemplos anteriores terem sido encontrados em textos literários, eles revelam
uma tendência de aproximação com a linguagem oral. Vejamos, agora, outro exemplo, em que
o autor procura um rompimento mais radical em relação à norma linguística.

Chuvadeira Maria, chuvadonha,


chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha!
Eu lhe gritava: Para! e ela chovendo,
poços d’água gelada ia tecendo.
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia Completa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2003.)

Nesse trecho, encontram-se várias formas criadas para referir-se à Maria (o nome personifica
a própria chuva). Dentre eles, o que nos parece mais “neutro” é “chuvil”, que pode ser entendido
simplesmente como “referente à chuva” (assim como em “primaveril”, “infantil” etc.).
Nos outros exemplos, temos o sufixo -eiro(a), que pode ter vários significados, possibilitando
diversas interpretações. “Chuvadeira” contém a ideia de agente, como em “pedreiro”, que nos
leva ao significado de “aquela que ‘chove’ ou traz a chuva”. Por outro lado, temos a ideia
de indivíduo que possui certa peculiaridade de comportamento, como em “bagunceiro”,
“fofoqueiro”, levando-nos a interpretar a palavra com o sentido de “que produz chuva com
frequência ou em grande quantidade”. O sufixo ainda contém a ideia de “admirador”,
“entusiasta”, como em “roqueiro”, “pagodeiro”, o que nos sugere o sentido de apego à chuva.
Em “chuvadonha”, o sufixo -onho(a) sugere a ideia de abundância de chuva.

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Já em “chuvinhenta”, o sufixo -ento(a) sugere mais fortemente a noção de repulsa ou
aversão à chuva. Note que a maior parte dos adjetivos formados pelo acréscimo de -ento(a),
assim como de -lento(a), designa características desagradáveis e, em regra geral, repulsivas.
Essa afirmação pode ser fundamentada por uma série de palavras, algumas delas colhidos
em Houaiss (2009), a saber: “agoniento”, “agourento”, “arreliento”, “asmento”, “asneirento”,
“avarento”, “azarento”, “babento”, “bafiento”, “barrento”, “barulhento”, “bexiguento”,
“bichento”, “birrento”, “bolorento”, “borrento”, “catarrento”, “catinguento”, “chulezento”,
“fedorento”, “feridento”, “flatulento”, “fuxiquento”, “gordurento”, “gosmento”, “lamacento”,
“lazarento”, “lixento”, “modorrento”, “mofento”, “morrinhento”, “muxibento”, “nojento”,
“peçonhento”, “perebento”, “rabugento”, “ranhento”, “sardento”, “sarnento”, “trapacento”,
“verruguento”, “visguento”, “xexelento”.
Ainda em relação à Maria, o autor utiliza o composto “pluvimedonha” (de pluvi-, “chuva” +
“medonha”), sintetizando as noções de chuva e do medo que dela decorre.
E a seguir, veremos os efeitos expressivos na utilização dos prefixos.

Derivação prefixal
A derivação prefixal é o processo de formação de palavras por meio do acréscimo de um
prefixo, o qual antecede o radical da palavra. Veja o quadro a seguir:

Prefixo Radical =
Pre- conceito Preconceito
Ante- braço Antebraço

Do ponto de vista da expressividade, os prefixos fornecem menos material que os sufixos, tendo,
de modo geral, valor intelectivo. Ainda assim, há exemplos de escritores que conseguem explorar
o potencial expressivo desses elementos de modo original. É o que encontramos, por exemplo, em
Guimarães Rosa (2005), que cria o substantivo “despoder”, com o sentido de “incapacidade”. Vejamos
como Haroldo de Campos utiliza os prefixos re- e des- no texto que segue
Se
se
nasce
morre nasce
morre nasce morre
renasce remorre renasce
remorre renasce
remorre
re
re
desnasce
desmorre desnasce
desmorre desnasce desmorre
nascemorrenasce
morrenasce
morre
se

(CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da poesia concreta. São Paulo:
Duas Cidades, 1975. p. 57.)

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Unidade: Estilística Morfológica

Na primeira parte do texto, o prefixo re- é empregado para expressar a ideia de ações que
se alternam e se repetem indefinidamente: nasce, morre, renasce, remorre. Na segunda parte,
as ações são renomeadas com o emprego do prefixo des-: “desnascer” equivale a “morrer”; e
“desmorrer”, a “nascer”.
Exemplo igualmente original é o que encontramos no trecho a seguir:

Os seres mais estranhos se juntando


na mesma aquosa pasta iam clamando
contra essa chuva estúpida e mortal
catarata (jamais houve outra igual).
Anti-petendam cânticos se ouviram.
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia Completa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2003.)

O autor combina o prefixo grego anti- (= contra) e uma forma do verbo latino peteo (pedir).
O resultado é o sentido de “pedindo o contrário do que está sendo feito”, que, no contexto,
equivale a pedir o fim da chuva.
Outro exemplo interessante, que colhemos de Martins (2008), é o que apresentamos a seguir:

Os sobreviventes
Este o subsolo
onde moram
os subvivos, os
sublocatários,
mundo sublunar
subsolar
sub-reptício.
Submundo
dos dicionários
policiais.
Já sobre o solo
a manga-rosa
a mesa lauta,
a sobremesa;
os sobretudos
as sobretaxas
mais os sobrados
tudo o que sobra
de sobrepeso,
de sobrecarga,
sobre os subvivos
do subsolo.
(RICARDO, Cassiano. Os Sobreviventes. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971.)

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O autor explora a expressividade dos prefixos sub- e sobre- para denunciar a enorme
desigualdade social entre os “subvivos”, que habitam um “submundo” em que não têm acesso
aos bens materiais, e os que estão “sobre o solo” e desfrutam das riquezas, da “mesa lauta”, da
“sobremesa” etc.
Há ainda utra forma de derivação, que pode ser utilizada na criação de efeitos expressivos.
Vamos ver?

Derivação regressiva
A derivação regressiva consiste na formação de palavras por meio de acréscimo de uma
vogal temática ao radical. As vogais temáticas, em português, são -a, -e, -o, as quais ocorre, por
exemplo, em “ajuda” (de “ajudar”), “corte” (de “cortar”) e “voo” (de “voar”).

Radical Vogal Temática =


Ajud- -a Ajuda

A derivação regressiva, em que se substitui um sufixo real ou suposto por uma vogal temática,
é um processo comum na linguagem oral, como em “delega” por “delegado”, “boteco” por
“botequim”, “sapata” por “sapatão”, “portuga” por “português”, “japa” por “japonês”,
“comuna” por “comunista”, “neura” por “neurose” ou “neurótico”, “estranja” por “estrangeiro”,
“profissa” por “profissional”, “reaça” por “reacionário” etc.
Há muitas possibilidades de criar efeitos expressivos em nossa língua em nível de análise
morfológica, não é mesmo?
Nesta unidade, vimos uma das áreas em que se divide a Estilística. Na próxima unidade,
trataremos da Semântica e de como essa disciplina se relaciona à Estilística. Para aprofundar
seus conhecimentos, não deixe de consultar o material complementar e interagir com seus
colegas e seu tutor.

Glossário
Adjetivo: palavra que se liga a um substantivo para expressar uma característica: “dia quente”.
Afixo: morfema que se liga a um radical. Em português, são os prefixos e os sufixos.
Prefixo: morfema que antecede o radical, como des- em “desleal”.
Radical: morfema que contém o significado básico de uma palavra, como “leal” em “desleal”.
Substantivo: palavra que nomeia seres, ações, características, sentimentos etc.
Sufixo: morfema que se pospõe ao radical, como -eza em “clareza”.

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Unidade: Estilística Morfológica

Material Complementar

Para aprender mais a respeito das questões apresentadas nesta unidade, faça as seguintes leituras:
LAPA, Manuel Rodrigues. Estilística da Língua Portuguesa. 8. ed. Coimbra: Coimbra, 1975.
MARTINS, Nilce Sant’anna. Introdução à Estilística: a expressividade na Língua
Portuguesa. São Paulo: Edusp, 2008.

Obras disponíveis on-line


BACHESCHI, Celso Antônio. Os compostos expressivos na língua falada culta. In: MIRANDA,
Daniela da Silveira; PUH, Milan; LUQUES, Solange Ugo (orgs.). Discurso em suas
Pluralidades Teóricas. São Paulo: Paulistana, 2013. Disponível em: http://goo.gl/2UOJEJ,
p. 48. Acesso em 14 jan. 2015.
________. Formação de Palavras Expressivas na Norma Urbana Culta de São
Paulo – Projeto NURC/SP. São Paulo: USP (tese de doutorado), 2014. Disponível em
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8142/tde-09122014-184316/pt-br.php. Acesso
em 14 jan. 2015.

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Referências

BACHESCHI, Celso Antônio. Os compostos expressivos na língua falada culta. In: MIRANDA,
Daniela da Silveira; PUH, Milan; LUQUES, Solange Ugo (orgs.). Discurso em suas Pluralidades
Teóricas. São Paulo: Paulistana, 2013. Disponível em http://eped.fflch.usp.br/sites/eped.fflch.usp.br/
files/upload/paginas/MIRANDA%3B%20PUH%3B%20LUQUES%20%28org.%29%20Discurso%20
em%20suas%20pluralidades%20te%C3%B3ricas%20-%20IV%20EPED.pdf.

________. Formação de Palavras Expressivas na Norma Urbana Culta de São Paulo –


Projeto NURC/SP. São Paulo: USP (tese de doutorado), 2014. Disponível em http://www.teses.
usp.br/teses/disponiveis/8/8142/tde-09122014-184316/pt-br.php.

CARDOSO, Elis de Almeida. A expressividade das criações lexicais estilísticas formadas por
derivação sufixal. In: MAGALHÃES, José Sueli de; TRAVAGLIA, Luís Carlos (orgs.). Múltiplas
Perspectivas em Linguística. Uberlândia: EDUFU, 2008.

________. Cruzamentos lexicais no discurso literário. São Paulo, Estudos Linguísticos, v. 39,
maio 2010. Disponível em gel.org.br/estudoslinguisticos/volumes/39/v2/EL_V39N1_15.pdf.

GUIMARÃES ROSA, João. Grande Sertão: Veredas. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de


Janeiro: Objetiva, 2009. 1 CD-ROM.

KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. Análise da Conversação: princípios e métodos.


São Paulo: Parábola, 2006.

LAPA, Manuel Rodrigues. Estilística da Língua Portuguesa. 8. ed. Coimbra: Coimbra, 1975.

MATTOSO CÂMARA JR., Joaquim. Contribuição à Estilística Portuguesa. 3. ed. Rio de


Janeiro: Ao Livro Técnico, 1978.

SAID ALI, Manuel. Gramática Secundária e Gramática Histórica da Língua Portuguesa.


3. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1964.

SANDMANN, Antônio José. Morfologia Lexical. São Paulo: Contexto, 1991.

Referências Bibliográficas (disponível para consulta)


MARTINS, Nilce Sant’anna. Introdução à Estilística: a expressividade na Língua
Portuguesa. São Paulo: Edusp, 2008.

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Unidade: Estilística Morfológica

Anotações

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