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pre toma o mal-estar como solucionᬠnesse caso, como sublinhávamos aci-
vel, m e s m o q u a n d o a s s u m e que a m a , a o f e r t a de u m s a b e r q u e
ausência de solução é a solução: "O tampone a falta e que faça as coisas
que não tem r e m é d i o r e m e d i a d o andarem.
está!" Ao m a r c a r m o s esse p o n t o de
T o m e m o s a questão, então, de injunção, não fazemos senão concor-
u m outro ponto: dar com u m a sugestão de Lacan de
que o d i s c u r s o u n i v e r s i t á r i o p ô d e
servir bem, h i s t o r i c a m e n t e (como é
o caso da filosofia e da ciência), ao
discurso do mestre. É por isso que a
universidade corre sempre o risco de
cair na m á x i m a da "ciência pela ciência", do "saber pelo saber", e
sair pesquisando coisas que mais mostram eficácias de metodologia
de pesquisa do que produzem resultados profícuos.
Mas chegamos então ao ponto de concluirmos que o "equipa-
mento educacional" é uma montagem que visa a governabilidade do
sistema educacional. Visa, como notávamos em trabalho anterior
(Voltolini, 1994), mais a eficácia da instituição em sua rede de re-
lações do que a eficácia do ato educativo.
C h e g a m o s por outras vias ao paradoxo que já notou R u b e m
Alves (1987, p. 14): "Freqüentemente o bom educador é u m m a u
funcionário".
E, na medida em que a ênfase está na eficácia da rede de rela-
ções e sua funcionalidade, ocorre o que chamaremos de "o ato aliena¬
se ao contrato". Ou seja, a ênfase recai sobre o como se "deve" e
"não se deve" agir.
Isso talvez explique por que teorias tão a m p l a s e complexas
como as de Piaget e Freud, por exemplo, n u n c a foram além, no
entendimento do discurso pedagógico hegemônico, da efetivação de
posições moralizantes, tais como não se deve exacerbar o erro do
aluno, deve-se falar de sexo com os adolescentes, pois estão na fase
genital, etc. Quer dizer, tal entendimento é limitado de início pelo
imperativo moral.
Ou ainda, talvez se explique por que no espaço do cotidiano
escolar pouco ou nada se questione a teoria que sustenta a prática
(exceto, claro, sob forma de queixa sobre sua adequação, o que para
nós não é um questionamento, visto que, como nos mostra a expe-
riência analítica, a queixa é a antítese do pensamento).
A ênfase na técnica é uma das conseqüências da alienação ao
"contr'ato" (contra-ato, literalmente), u m a vez que "... eu só quero
1
saber do que pode dar certo, não tenho tempo a perder..." - re-
frão por excelência da injunção do discurso do mestre com o dis-
curso universitário.
M a s , se c o n d u z i m o s as coisas até esse p o n t o , c o n d u ç ã o no
m o d o da escansão, m o d o psicanalítico por excelência, é para pen-
sarmos nossa questão inicial: "É legítimo falarmos em mal-estar na
educação de uma maneira psicanalítica, ou seja, com uma ética que
enfatiza o ato?"
Não foi exatamente esse o m o v i m e n t o . d a obra lacaniana? Sua
teorização sobre a condução da cura analítica vai sistematicamente
destruindo cada item do c h a m a d o "contrato a n a l í t i c o " (tempo de
sessão, freqüência e espaçamento de sessões, tratamento dos honorá-
rios, e t c ) .
Além do quê, um psicanalista quer saber exatamente "... do que não
pode dar certo", pois sabe que há aí algo no que ele pode operar.
Evidentemente, e esse é um pri- esses sujeitos. O d i s c u r s o é a q u i l o
meiro ponto, que não podemos fazer que fixa o tal objeto n u m lugar co-
uma equivalência simples entre educa- mum; sem discurso não há social.
ção e sujeito. As razões para isso nos Esse objeto, uma vez fixado no
parecem óbvias, e não trataremos discurso, p e r m i t e ser t r a n s f o r m a d o
delas aqui, mas nossa questão implica em objeto de g o z o , m a s u m gozo
pensarmos se pode haver legitimida- p a r c i a l ( l e m b r e m o - n o s do m i t o da
de em u m ato a n a l í t i c o sobre u m horda primeva), que inclui u m a per-
sintoma que é social. da, fruto da incompletude do gozo.
A categoria de sintoma social é Donde resulta o que é da ordem do
u m a e l a b o r a ç ã o l a c a n i a n a . Não se m a l - e s t a r n o s t e r m o s de Freud e,
pode pensá-la em termos da defini- como dizíamos no início, acrescenta-
ção freudiana de sintoma (recalque, do pelo adjetivo "estrutural". E isso
satisfação substitutiva e t c ) . Entende- porque é assintótico e inevitável.
m o s ser essa a r a z ã o que faz com Aproximemo-nos, pois, de nossa
que muitos psicanalistas concebam a questão: a educação. Mais precisamen-
questão do sintoma social como uma te, agora diríamos: o "discurso peda-
extrapolação em relação ao conceituai gógico h e g e m ô n i c o " . Aquele com o
analítico. q u a l se a b o r d a a c r i a n ç a na tarefa
Avancemos, pois, nesse terreno (impossível para Freud) de educar.
movediço, já que a psicanálise é uma É evidente que, como qualquer
"obra em aberto", e, mesmo Lacan, d i s c u r s o , o p e d a g ó g i c o t a m b é m se
no que constitui o fato de seu retor- desenvolve historicamente, modifican-
no a Freud, não se prendeu supersti- do os termos e os p o n t o s de fixa-
ciosamente aos termos dessa teoria. Se ção do objeto.
ele retorna, é para ir adiante. Tomemo-lo, todavia, em sua for-
S u b l i n h e m o s duas formulações ma atual e em alguns pontos específi-
de Lacan a respeito da idéia de sin- cos, u m a vez que nosso p r o p ó s i t o
t o m a s o c i a l ( c i t a d a em A s k o f a r é , aqui é a verificação da l e g i t i m i d a d e
1997): da noção de mal-estar na educação.
a) é o que faz obstáculo ao de- Desde que o discurso pedagógi-
sejo do mestre; co deixou de considerar a lógica in-
b) é o retorno de u m a verdade terna de cada disciplina como o eixo
na falha de u m saber. de sua ação, tornando o desenvolvi-
Note-se que essas f o r m u l a ç õ e s mento das funções intelectuais, mo-
supõem necessariamente a noção de r a i s , p s i c o l ó g i c a s , etc. o seu e i x o
discurso que é aquilo que "faz laço principal, tivemos uma mudança fun-
social". Ao falarmos em sintoma soci- d a m e n t a l da p o s i ç ã o o c u p a d a pela
al, falamos de adoecimento no nível criança nesse discurso.
do "laço social". A psicologia surge nesse cenário
É exatamente a possibilidade de como o que viria a dar uma palavra
u m objeto qualquer ocupar para vá- científica sobre o d e s e n v o l v i m e n t o
rios sujeitos u m a mesma posição o infantil e com isso substancializar o
que c o n s t r ó i u m l a ç o s o c i a l entre ato pedagógico por ela referido.
Favorecer o desenvolvimento da queixa, proferida pelos agentes peda-
criança no máximo de suas potencia- g ó g i c o s , q u e ora a s s u m e sua face
lidades passou a ser a tônica. Aliás, melancólica, ora assume sua face his-
talvez tenha muito a ver com isso a térica.
impressão p a r t i l h a d a por muitos, Melancólica, uma vez que diante
ainda que bastante vaga, sem solução do fracasso (inevitável para quem se
de c o n t i n u i d a d e , de que as crianças relaciona com o i d e a l i z a d o ) t o m a m
de hoje são "mais inteligentes". Tal- sua ação como "impotência" em vez
vez apenas tenhamos aprendido a ver de referi-la à ordem da "impossibili-
m a i s coisas nelas com a ajuda das dade". Nesse sentido, não se cessa de
teorias. alardear o q u a n t o t u d o parece não
C o m efeito, o que nos importa ter solução.
ressaltar é o que está contido nesse Face histérica, pois acusa o Ou-
" m a i s " . U m a supervalorização, u m a tro (o Estado que n ã o i n v e s t e , os
entronização da criança no discurso pais que educam mal, as crianças de
pedagógico. hoje, que são indisciplinadas, etc.) de
S o b r e s s a l t a n d o o p o t e n c i a l de ser falho e por isso p r o d u z i r esse
desenvolvimento, as expectativas so- caos dramático.
bre o desempenho infantil se expan- Esse mal-estar, c h a m a m o - l o de
dem. Vide o que ocorre q u a n d o se estrutural, pois ele é inerente; é u m
rotula u m a criança como superdota- dos elementos de u m a estrutura. E é
da. D e p e n d e n d o de onde isso ocor- nesse registro que pode ser chamado
rer, c o n s t r ó i - s e t o d o u m a p a r a t o de sintomático no sentido analítico.
para que essa criança não seja atrapa- Retomemos, pois, de passagem,
l h a d a pelos limites c o m u n s de seus as duas formulações lacanianas sobre
colegas de idade, n e m d e s m o t i v a d a o s i n t o m a social e a p l i q u e m o - l a s a
pelas a t i v i d a d e s "fáceis", c o m u n s a esse exemplo:
sua série escolar. a) é o que faz obstáculo ao de-
Quer-se que ela se "desenvolva" sejo do mestre - O b v i a m e n t e essas
o m a i s que puder. Posta a c r i a n ç a queixas fazem obstáculo ao desejo do
nesta p o s i ç ã o , b a s t a n t e i d e a l i z a d a , mestre, já que, c o m o d i s s e m o s no
isso tem suas repercussões em outros início, tal desejo não é outro senão
pontos, u m a vez que é de estrutura o de que as coisas andem e, se possí-
que estamos falando. vel, bem.
Assim como é próprio do capi- b) é o retorno de u m a verdade
talismo que ele sofra de tempos em na falha de u m saber - O saber que
tempos com a dificuldade de absor- falha, nesse caso, é aquele que pre-
ver u m excesso de produção (quere- tende dar consistência à idéia da cri ¬
Não surge para reger u m a prática, mas para liberar u m ato. Daí
passarmos a ênfase do "devo" para o "faço"; do "contr'ato" para o
"ato".
U m ato assim fundado (na ética analítica) faz girar o que a
injunção governar/educar produz, desinstalando as relações de seus
pontos de fixação e de sua tendência à repetição.
A presença de alguém que possa funcionar como esse " a " na
posição de agente (fato que o transforma em analista) como pólo
transferenciai é fundamental para a p o s s i b i l i d a d e de manejo do
sintoma social.
Para tanto, não é necessário que ele seja "contratado" como
analista, o que, aliás, ao contrário, seria sua impossibilidade funda-
mental. É necessário que ele saiba constituir-se como "a", valendo-
se de uma postura ética, sustentada em uma brecha qualquer que a
e s t r u t u r a do s i n t o m a lhe confira. O que pode ser feito até n o
pedido, a ele endereçado, de u m curso de reciclagem.
Desde que, é claro, ele faça girar esse pedido. O que conta é
que ele "cause" movimento, e não repetição ou estereotipia.
As dificuldades de sustentar tal posição em parte parecem ser
as mesmas de u m a situação de consultório: resistências, gozo do
sintoma, inchaço do imaginário, etc. De outra parte, é claro, ficam
acrescidas do fato de ali estarem em jogo vários sujeitos que não
ocupam em relação ao sintoma social a mesma posição (cf. Souza,
1991).
Não nos parece, contudo, que tais dificuldades possam servir
para desmerecer a tentativa, pois entendemos que a ética do psica-
nalista não lhe permite "esconder-se do mundo". •
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NOTAS
1
Trecho da l e t r a da m ú s i c a d o g r u p o T i t ã s i n t i t u l a d a "Go b a c k " , de auto-
ria do p o e t a T o r q u a t o Neto.