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Artigo

Este texto d i s c u t e so-


bre a l e g i t i m i d a d e d a
DO C O N T R A T O
noção de mal-estar na
e d u c a ç ã o c o m o objeti-
v o de p e n s a r a p r e s e n ç a
PEDAGÓGICO AO
de u m t r a b a l h o a n a l í t i -
co nesse c o n t e x t o . Para ATO ANALÍTICO:
t a n t o , vale-se da t e o r i a
dos q u a t r o discursos de
L a c a n e d a c a t e g o r i a de CONTRIBUIÇÕES
s i n t o m a s o c i a l p a r a tra-
tar d a q u i l o q u e na ins-
tituição escolar p r o d u z
À D I S C U S S Ã O DA
mal-estar.
Mal-estar; a t o a n a l í t i -
co; s i n t o m a social
QUESTÃO DO
FROM THE M A L - E S T A R NA
PEDAGOGICAL TO THE
PSYCHOANALYTICAL
ACT: CONTRIBUTIONS EDUCAÇÃO
ABOUT THE
"EDUCATION AND ITS
DISCONTENTS"
QUESTION
In this paper we Rinaldo Voltolini
expose questions and
discussions about the
concept of "education
and its discontents".
The aim of this study
is to think about the
possibility of a
psychoanalytical act in
this context. We work É legítimo falarmos em ' mal-estar', no sen-
with the Lacan's theory
of the four discourses
and the notion of soci- tido freudiano do termo, na educação?
al sympthom in order
to treat the kind of
Da resposta a essa questão depende a possibili-
things that makes dade de existência do psicanalista nesse campo, ain-
discontents in school da que saibamos que, ao deixar as costas do d i v ã ,
institution.
todo o c u i d a d o é p o u c o para que seu " a t o " n ã o
Discontents;
psychoanalytical act; corra o risco de n ã o poder m a i s ser c o n s i d e r a d o
social sympthom "analítico" (mas não será que mesmo atrás do d i v ã
esse risco existe?).
Se dizemos que dessa resposta depende a pre-
sença ou não do psicanalista nesse campo é porque,
simplificando os termos, só há analista se há " u m a
queixa que possa ser transformada em enigma". U m
sofrimento q u e se revele efeito de u m a estrutura

Psicanalista, doutor em Psicologia pela USP, professor de


Psicologia da Unicapital e da Unib.
passível de ser formalizada, e cuja possibilidade de superação tem a
ver com u m atravessamento questionador e responsável por esse
sofrimento, ao contrário de petrificar-se nele, assumindo (gozando)
o lugar da vítima.
Se a p r e s e n t a m o s , de i n í c i o , a q u e s t ã o e m t e r m o s t ã o
c o n d e n s a d o s (termos que pretendemos escandir a d i a n t e ) , é para
marcarmos desde já a posição ética da psicanálise, fora da qual estes
conceitos perdem todo seu teor e eficácia, e também para distin-
guirmos dela outras posições comumente adotadas.
C o m o sabemos, desde que a educação tornou-se u m a questão
de Estado (a educação chamada "formal"), foram necessárias medi-
das que a transformassem em um empreendimento "governável"; foi
necessário dar-lhe "forma". Assim temos, por exemplo, que o siste-
ma de créditos, aprovações e reprovações é muito mais uma neces-
sidade administrativa das escolas do que propriamente algo inerente
ao ato educativo.
F a t o q u e t r a n s f o r m a a e d u c a ç ã o , em t e r m o s n o v a m e n t e
freudianos, em "ofício impossível ao q u a d r a d o " (educar e gover-
nar) e cria uma injunção que nos importa examinar: a intersecção
das funções educar e governar.
Se tomarmos o Lacan do Seminário XVII, ali onde ele está às
voltas com a formalização da análise como um discurso, distinguin-
do-a d a q u i l o que é seu "avesso", p o d e r e m o s traçar as seguintes
considerações:

Governar Educar

O discurso do mestre ( d i s c u r s o p o l í t i c o , por e x c e l ê n c i a ) é


aquele que não quer saber sobre as coisas, mas quer apenas que elas
a n d e m . E, para que as coisas andem, aquilo que é da ordem do
sujeito (como assinala o gráfico, " a " e "S" abaixo da barra) deve
ficar recalcado.
O que fica bem demonstrado na assertiva de que talvez não exa-
geremos se ela for promovida a máxima de toda instituição: "Proble-
mas pessoais não são para serem trazidos para o trabalho". E, ainda,
no nome genérico dado a cada um que lá trabalha: "funcionário".
E isso porque o que é da ordem do sujeito apresenta u m tipo
de conflito que convém chamarmos de "estrutural", em oposição a
outro, esse sim não evitado pelo mestre, que chamaremos de "con-
tingente".
C o m estrutural queremos dizer que é " i n e v i t á v e l " e
"inexterminável" exatamente por estar articulado a tudo aquilo que
é da o r d e m do desejo e, p o r t a n t o , O segundo, m a i s recente, o do
t e n d e n t e a u m excesso que n ã o se discurso analítico, busca "escandir" o
extermina. que surge como conflituoso, agindo
Em c o n t r a p a r t i d a , o d i s c u r s o na forma como é falado o conflito,
do mestre n ã o só n ã o evita, c o m o fundando sua intervenção na possibi-
procura o conflito "contingente", lidade de advir dela u m saber ainda
que é aquele cujas características são a não sabido, com o caráter de surpre-
"circunstancialidade" e a "eventualida- sa e que m o d i f i c a (não conserta) a
de" de ocorrência. E o procura, pois p o s i ç ã o dos sujeitos e n v o l v i d o s no
é d i s s o que ele vive: de e n c o n t r a r c o n f l i t o . U m saber, p o r t a n t o , cuja
(essa p a l a v r a é boa, pois designa o eficácia reside exatamente na possibi-
m o v i m e n t o de procurar algo especí- lidade de fazer questões (outras que
fico, já previamente concebido) con- não aquelas já existentes na queixa), e
flitos "solucionáveis". não em dar respostas.
Temos u m bom exemplo disso Ambos os discursos lidam com a
atualmente num serviço curiosamente queixa, mas u m ao "avesso" do outro.
i n s t i t u í d o por grandes organizações: U m exemplo sempre importante
o serviço de atendimento às reclama- de ser lembrado (e isso porque mui-
ções dos clientes e funcionários. tas vezes é convenientemente esqueci-
Se se i n s t i t u i u m espaço p a r a do), no campo da educação, de u m a
ouvir as reclamações (mas é claro que, intervenção típica da mestria é a pre-
à diferença do analista, só se escuta o sença histórica do psicólogo na esco-
c o n t e ú d o objetivo das reclamações, la. Desde a origem essa presença este-
ou, a i n d a , escuta-se a reclamação, e ve m a r c a d a pelas características que
não o reclamar), é porque é útil tê- descrevíamos acima, no discurso do
las, na medida em que isso pode fa- mestre.
zer "as coisas andarem melhor". C h a m a d o s para " h a r m o n i z a r "
A oposição desses dois tipos de c o n f l i t o s g e r a d o s na e pela escola,
conflito tem para nós u m a função não se esperava deles o papel de le-
fundamental: d i s t i n g u i r dois modos vantar questões (exceto, claro, aquelas
de intervenção sobre o mal-estar. solucionáveis), mas de resolver aque-
O p r i m e i r o , mais antigo, o do las que já estavam prontas.
discurso do mestre, visa "consertar" E por que não anotar também -
o que surge como problemático por o que, a l i á s , é u m a o b v i e d a d e que
meio de medidas práticas que interfi- por ser negligenciada pode mascarar
ram n a q u i l o que é concebido como aspectos importantes da questão - que
a c a u s a do p r o b l e m a . Para t a n t o , não há "concurso público" para psi-
mas só neste ponto é que ele se inte- canalistas? Em que pese o fato de não
ressa pelo saber, u m a vez que este existir regulamentação dessa profissão
pode concorrer na solução do pro- (e nisso parece residir a obviedade),
blema: u m saber, portanto, amputa- queremos sugerir que as instituições
do de sua possibilidade de investiga- c o n t r a t a m p s i c ó l o g o s e que t a l v e z
ção; u m saber já sabido, " t o d o " do isso se dê não p o r q u e m u i t o s igno-
qual se retirará uma eficácia. rem a diferença entre a psicanálise e
a psicologia, mas porque, ao contrá- vários temas, mas o fato é que u m a
rio, podem intuí-la. vez i d e n t i f i c a d a a " n e c e s s i d a d e " de
Evidentemente que isso não é reciclar, identificação, como dissemos
conspiratório ou intencional; é sim- acima, procurada pela mestria, organi-
plesmente encadeado com a necessi- zam-se cursos para " s o l u c i o n a r " esse
dade de "governar" uma instituição. problema".
Acaba-se, pois, por ter que "simplifi- Queremos mostrar que não só a
car" para "funcionar". "solução" é criada pela mestria como
M a s n o i n í c i o f a l á v a m o s de também a "forma de enunciar o pro-
uma injunção que articulava em u m blema", ou seja, a necessidade.
ponto específico o discurso do mes- Essa forma, por sua própria na-
tre (governar) e o discurso universi- tureza, é sempre "a-subjetiva", m u i t o
tário (educar) como uma característi- e m b o r a p o s s a g u i n d a r p e l a v i a da
ca r e l e v a n t e da p r á t i c a e d u c a t i v a identificação vários sujeitos.
contemporânea. O que é recalcado nessa operação
Dizemos isso porque pretende- é a formulação singular que cada su-
mos pensar na educação remetendo-a jeito tem do problema.
ao d i s c u r s o e à i n s t i t u i ç ã o que a Não é de se espantar (e imagina-
r e a l i z a m , u m a vez que n ã o é sem m o s que q u a l q u e r u m que já tenha
efeito que ela tenha se tornado ques- trabalhado ou assistido a esses cursos
tão de Estado. possa ter testemunhado isso) que ne-
Tomemos um exemplo cujo in- les produz-se uma contradição interes-
teresse está em nos m o s t r a r o tal sante: há u n a n i m i d a d e de o p i n i ã o
p o n t o de i n j u n ç ã o : os c h a m a d o s com relação à necessidade desses cur-
cursos de r e c i c l a g e m . Decerto que sos, mas na prática eles pouco surtem
algumas vozes já se levantaram com e f e i t o . Seja p e l a f a l t a de i n t e r e s s e
r e l a ç ã o à i n a d e q u a ç ã o do t e r m o m u i t a s vezes presente nos profissio-
r e c i c l a g e m : "O q u e se r e c i c l a é nais que os freqüentam, seja pela falta
' l i x o ' " , dizem. M a s para nós é im- de repercussão na prática c o t i d i a n a ,
portante mantermos o termo, sermos almejada por esses cursos.
fiéis à letra para escandirmos o que Entendemos que essa contradição
ela condensa. repousa na "a-subjetividade" que essa
A relação p r o f e s s o r / a l u n o , de operação produz.
um lado, uma vez que é, como qual- M a s o d i s c u r s o do mestre n ã o
quer relação h u m a n a , produtora de tem outro jeito de lidar com isso, a
queixas, e o avanço (?) das reflexões não ser fechando-se n u m círculo vici-
pedagógicas sobre o ensino-aprendi- oso. Detectada essa c o n t r a d i ç ã o , só
z a g e m , de o u t r o l a d o , a i n d a que poderia propor como solução uma
muitas vezes produzidos no interior outra proposta "a-subjetiva", e assim
da universidade, acabaram por gerar por diante.
isso que hoje se c h a m a "curso de Dessa forma, teríamos:
reciclagem".
Aquilo que se pretende reciclar
é m u i t o variável e distribui-se em
O que funciona como agente O c o n t e ú d o de q u a l q u e r curso
(S ) e como significante mestre,
1 de reciclagem é da ordem de u m sa-
o r d e n a d o r de u m a c a d e i a , é a ber e r u d i t o ( S ) - p e l o m e n o s é o
2

" f o r m a l i z a ç ã o da necessidade". Em que se espera dele -, ou seja, que te-


n o s s o c a s o , o q u e " f a l t a " (e n ã o nha eficácia de resposta. Que inter-
pode mais faltar!) é "conhecimento". pele a "dúvida do profissional", que,
Logo, o objeto p r o c u r a d o ( S ) , a 2 c o m o d i s s e m o s a c i m a , é aí nesse
solução proposta só pode ter a ver ponto tornada a-subjetiva pela opera-
c o m c o n h e c i m e n t o : o " c u r s o " de ção anterior (do mestre) e que, por-
reciclagem. t a n t o , p o d e ser t o m a d a c o m o u m
Aí a i m p o r t â n c i a do n o m e "objeto".
reciclar fica evidente. Trata-se não só O que se produz, então, é a alie-
de t r a n s f o r m a r o v e l h o em n o v o , nação (S) da questão singular.
m a s de r e c o m e ç a r u m n o v o c i c l o Por mais paradoxal que seja, no
que vise tamponar o que faz "falta", discurso universitário goza-se com a
o q u e c r i a u m b u r a c o (o q u e é a l i e n a ç ã o . O saber v e i c u l a d o é só
"lixo", talvez?). aquele "creditado", o que recebeu da
Na p o s i ç ã o do " a " , a b a i x o da "etiqueta" universitária a autorização
b a r r a , está a f u n c i o n a l i d a d e que é e a credibilidade.
aquilo com o que se goza. Por i s s o F i n k ( 1 9 9 8 , p . 1 6 3 )
Uma vez encontrada a "solução" pode dizer sobre o discurso univer-
para o que se "necessitava', " t u d o " sitário: "Podemos imaginá-lo não
funcionará bem. Mas é claro que no c o m o o t i p o de p e n s a m e n t o q u e
lugar da verdade vamos encontrar o procura lidar com o real para man-
" S " ; a l i , e x a t a m e n t e o n d e o sujeito ter as dificuldades apresentadas por
do desejo, castrado, p o r t a n t o , orga- aparentes contradições lógicas e/ou
n i z a d o pela falta, t r a n s f o r m a r á em físicas, mas como u m tipo de esfor-
"ineficácia", realimentando o ciclo. ço e n c i c l o p é d i c o p a r a e s g o t a r u m
A insaciabilidade do desejo im- campo".
pede a "solução definitiva" sem con- Pois bem, é dessa forma que no
tudo "tornar consciente" ao mestre lugar da verdade só podemos encon-
o mal-estar estrutural; o mestre sem- trar o S , o pedido do mestre, que é
1

pre toma o mal-estar como solucionᬠnesse caso, como sublinhávamos aci-
vel, m e s m o q u a n d o a s s u m e que a m a , a o f e r t a de u m s a b e r q u e
ausência de solução é a solução: "O tampone a falta e que faça as coisas
que não tem r e m é d i o r e m e d i a d o andarem.
está!" Ao m a r c a r m o s esse p o n t o de
T o m e m o s a questão, então, de injunção, não fazemos senão concor-
u m outro ponto: dar com u m a sugestão de Lacan de
que o d i s c u r s o u n i v e r s i t á r i o p ô d e
servir bem, h i s t o r i c a m e n t e (como é
o caso da filosofia e da ciência), ao
discurso do mestre. É por isso que a
universidade corre sempre o risco de
cair na m á x i m a da "ciência pela ciência", do "saber pelo saber", e
sair pesquisando coisas que mais mostram eficácias de metodologia
de pesquisa do que produzem resultados profícuos.
Mas chegamos então ao ponto de concluirmos que o "equipa-
mento educacional" é uma montagem que visa a governabilidade do
sistema educacional. Visa, como notávamos em trabalho anterior
(Voltolini, 1994), mais a eficácia da instituição em sua rede de re-
lações do que a eficácia do ato educativo.
C h e g a m o s por outras vias ao paradoxo que já notou R u b e m
Alves (1987, p. 14): "Freqüentemente o bom educador é u m m a u
funcionário".
E, na medida em que a ênfase está na eficácia da rede de rela-
ções e sua funcionalidade, ocorre o que chamaremos de "o ato aliena¬
se ao contrato". Ou seja, a ênfase recai sobre o como se "deve" e
"não se deve" agir.
Isso talvez explique por que teorias tão a m p l a s e complexas
como as de Piaget e Freud, por exemplo, n u n c a foram além, no
entendimento do discurso pedagógico hegemônico, da efetivação de
posições moralizantes, tais como não se deve exacerbar o erro do
aluno, deve-se falar de sexo com os adolescentes, pois estão na fase
genital, etc. Quer dizer, tal entendimento é limitado de início pelo
imperativo moral.
Ou ainda, talvez se explique por que no espaço do cotidiano
escolar pouco ou nada se questione a teoria que sustenta a prática
(exceto, claro, sob forma de queixa sobre sua adequação, o que para
nós não é um questionamento, visto que, como nos mostra a expe-
riência analítica, a queixa é a antítese do pensamento).
A ênfase na técnica é uma das conseqüências da alienação ao
"contr'ato" (contra-ato, literalmente), u m a vez que "... eu só quero
1
saber do que pode dar certo, não tenho tempo a perder..." - re-
frão por excelência da injunção do discurso do mestre com o dis-
curso universitário.
M a s , se c o n d u z i m o s as coisas até esse p o n t o , c o n d u ç ã o no
m o d o da escansão, m o d o psicanalítico por excelência, é para pen-
sarmos nossa questão inicial: "É legítimo falarmos em mal-estar na
educação de uma maneira psicanalítica, ou seja, com uma ética que
enfatiza o ato?"
Não foi exatamente esse o m o v i m e n t o . d a obra lacaniana? Sua
teorização sobre a condução da cura analítica vai sistematicamente
destruindo cada item do c h a m a d o "contrato a n a l í t i c o " (tempo de
sessão, freqüência e espaçamento de sessões, tratamento dos honorá-
rios, e t c ) .
Além do quê, um psicanalista quer saber exatamente "... do que não
pode dar certo", pois sabe que há aí algo no que ele pode operar.
Evidentemente, e esse é um pri- esses sujeitos. O d i s c u r s o é a q u i l o
meiro ponto, que não podemos fazer que fixa o tal objeto n u m lugar co-
uma equivalência simples entre educa- mum; sem discurso não há social.
ção e sujeito. As razões para isso nos Esse objeto, uma vez fixado no
parecem óbvias, e não trataremos discurso, p e r m i t e ser t r a n s f o r m a d o
delas aqui, mas nossa questão implica em objeto de g o z o , m a s u m gozo
pensarmos se pode haver legitimida- p a r c i a l ( l e m b r e m o - n o s do m i t o da
de em u m ato a n a l í t i c o sobre u m horda primeva), que inclui u m a per-
sintoma que é social. da, fruto da incompletude do gozo.
A categoria de sintoma social é Donde resulta o que é da ordem do
u m a e l a b o r a ç ã o l a c a n i a n a . Não se m a l - e s t a r n o s t e r m o s de Freud e,
pode pensá-la em termos da defini- como dizíamos no início, acrescenta-
ção freudiana de sintoma (recalque, do pelo adjetivo "estrutural". E isso
satisfação substitutiva e t c ) . Entende- porque é assintótico e inevitável.
m o s ser essa a r a z ã o que faz com Aproximemo-nos, pois, de nossa
que muitos psicanalistas concebam a questão: a educação. Mais precisamen-
questão do sintoma social como uma te, agora diríamos: o "discurso peda-
extrapolação em relação ao conceituai gógico h e g e m ô n i c o " . Aquele com o
analítico. q u a l se a b o r d a a c r i a n ç a na tarefa
Avancemos, pois, nesse terreno (impossível para Freud) de educar.
movediço, já que a psicanálise é uma É evidente que, como qualquer
"obra em aberto", e, mesmo Lacan, d i s c u r s o , o p e d a g ó g i c o t a m b é m se
no que constitui o fato de seu retor- desenvolve historicamente, modifican-
no a Freud, não se prendeu supersti- do os termos e os p o n t o s de fixa-
ciosamente aos termos dessa teoria. Se ção do objeto.
ele retorna, é para ir adiante. Tomemo-lo, todavia, em sua for-
S u b l i n h e m o s duas formulações ma atual e em alguns pontos específi-
de Lacan a respeito da idéia de sin- cos, u m a vez que nosso p r o p ó s i t o
t o m a s o c i a l ( c i t a d a em A s k o f a r é , aqui é a verificação da l e g i t i m i d a d e
1997): da noção de mal-estar na educação.
a) é o que faz obstáculo ao de- Desde que o discurso pedagógi-
sejo do mestre; co deixou de considerar a lógica in-
b) é o retorno de u m a verdade terna de cada disciplina como o eixo
na falha de u m saber. de sua ação, tornando o desenvolvi-
Note-se que essas f o r m u l a ç õ e s mento das funções intelectuais, mo-
supõem necessariamente a noção de r a i s , p s i c o l ó g i c a s , etc. o seu e i x o
discurso que é aquilo que "faz laço principal, tivemos uma mudança fun-
social". Ao falarmos em sintoma soci- d a m e n t a l da p o s i ç ã o o c u p a d a pela
al, falamos de adoecimento no nível criança nesse discurso.
do "laço social". A psicologia surge nesse cenário
É exatamente a possibilidade de como o que viria a dar uma palavra
u m objeto qualquer ocupar para vá- científica sobre o d e s e n v o l v i m e n t o
rios sujeitos u m a mesma posição o infantil e com isso substancializar o
que c o n s t r ó i u m l a ç o s o c i a l entre ato pedagógico por ela referido.
Favorecer o desenvolvimento da queixa, proferida pelos agentes peda-
criança no máximo de suas potencia- g ó g i c o s , q u e ora a s s u m e sua face
lidades passou a ser a tônica. Aliás, melancólica, ora assume sua face his-
talvez tenha muito a ver com isso a térica.
impressão p a r t i l h a d a por muitos, Melancólica, uma vez que diante
ainda que bastante vaga, sem solução do fracasso (inevitável para quem se
de c o n t i n u i d a d e , de que as crianças relaciona com o i d e a l i z a d o ) t o m a m
de hoje são "mais inteligentes". Tal- sua ação como "impotência" em vez
vez apenas tenhamos aprendido a ver de referi-la à ordem da "impossibili-
m a i s coisas nelas com a ajuda das dade". Nesse sentido, não se cessa de
teorias. alardear o q u a n t o t u d o parece não
C o m efeito, o que nos importa ter solução.
ressaltar é o que está contido nesse Face histérica, pois acusa o Ou-
" m a i s " . U m a supervalorização, u m a tro (o Estado que n ã o i n v e s t e , os
entronização da criança no discurso pais que educam mal, as crianças de
pedagógico. hoje, que são indisciplinadas, etc.) de
S o b r e s s a l t a n d o o p o t e n c i a l de ser falho e por isso p r o d u z i r esse
desenvolvimento, as expectativas so- caos dramático.
bre o desempenho infantil se expan- Esse mal-estar, c h a m a m o - l o de
dem. Vide o que ocorre q u a n d o se estrutural, pois ele é inerente; é u m
rotula u m a criança como superdota- dos elementos de u m a estrutura. E é
da. D e p e n d e n d o de onde isso ocor- nesse registro que pode ser chamado
rer, c o n s t r ó i - s e t o d o u m a p a r a t o de sintomático no sentido analítico.
para que essa criança não seja atrapa- Retomemos, pois, de passagem,
l h a d a pelos limites c o m u n s de seus as duas formulações lacanianas sobre
colegas de idade, n e m d e s m o t i v a d a o s i n t o m a social e a p l i q u e m o - l a s a
pelas a t i v i d a d e s "fáceis", c o m u n s a esse exemplo:
sua série escolar. a) é o que faz obstáculo ao de-
Quer-se que ela se "desenvolva" sejo do mestre - O b v i a m e n t e essas
o m a i s que puder. Posta a c r i a n ç a queixas fazem obstáculo ao desejo do
nesta p o s i ç ã o , b a s t a n t e i d e a l i z a d a , mestre, já que, c o m o d i s s e m o s no
isso tem suas repercussões em outros início, tal desejo não é outro senão
pontos, u m a vez que é de estrutura o de que as coisas andem e, se possí-
que estamos falando. vel, bem.
Assim como é próprio do capi- b) é o retorno de u m a verdade
talismo que ele sofra de tempos em na falha de u m saber - O saber que
tempos com a dificuldade de absor- falha, nesse caso, é aquele que pre-
ver u m excesso de produção (quere- tende dar consistência à idéia da cri ¬

mos dizer que esse é um sofrimento ança-em-desenvolvimento, sempre ten-


i n e r e n t e à estrutura, efeito inevitá- dente ao m á x i m o de suas potenciali-
vel), é próprio do discurso pedagó- dades, desde que a ação pedagógica
gico que assim p o s i c i o n a a c r i a n ç a seja oportuna e eficaz.
(como objeto fixado pelo discurso) A verdade que retorna é a que
que sofra/goze, por exemplo, de uma aponta para u m a relação assim for¬
m a l i z a d a , na qual n u m pólo temos m a n i d a d e t i n h a m s i d o feitos por
alguém que deve ser " m a x i m a m e n t e h o m e n s , n ã o estava ele c a i n d o no
e f i c a z " , q u e t u d o deve fazer p a r a relativismo sócio-histórico, mas, an-
c u m p r i r o ideal (o professor), e no tes, demonstrando os efeitos da sexu-
outro temos alguém que deve rece- ação nas funções do ego (o que, ali-
ber o " m á x i m o " para que se desen- ás, a clínica não cessa de comprovar),
volva o " m á x i m o " que puder (note- evitando abortar a questão, repousan-
se que o que define esses m á x i m o s do na s e m p r e c o n f o r t á v e l p o s i ç ã o
nunca é explicitado, ou o é em ter- moralizante.
mos vagos, de operacionalidade difí- C o m efeito, o saber v e i c u l a d o
cil). Pois bem, a verdade que retor- pelo discurso pedagógico hegemôni-
na é a que a p o n t a para o fato de co exclui de seu fluxo a d i s t i n ç ã o
que n u m a relação assim formalizada m a s c u l i n o / f e m i n i n o . C l a r o está que
u m a formação depressiva é bastante no c o t i d i a n o da i n s t i t u i ç ã o escolar
esperada, já que a palavra de ordem há marcações do que é do universo
é maníaca. m a s c u l i n o e do que é do feminino,
Tomemos ainda um outro mas sem que isso ganhe espaço teó-
e x e m p l o : u m a vez que o d i s c u r s o rico no discurso.
pedagógico constrói (fixa) u m a no- Ou a i n d a , c o m o p o d e r í a m o s
ção de criança em desenvolvimento, anotar, em que pese o fato de prati-
só pode fazê-lo dando ênfase às fun- camente toda professora já ter pre-
ções do ego. O sujeito não se de- senciado um ato falho típico das cri-
senvolve, só o ego. anças em relação a elas, quando, ao
Essa anotação é importante para chamá-las de professora, escorregam
r e f l e t i r m o s sobre o fato de que a num sonoro "mãe", ainda não se viu
criança tomada pelo discurso peda- essa " q u e s t ã o s e x u a l " ser r e f l e t i d a
gógico é "assexuada". Quer dizer, as mais aprofundadamente. Faz diferen-
teorias de desenvolvimento só falam ça um professor ser h o m e m ou mu-
de criança, termo neutro com rela- lher? O discurso pedagógico parece
ção à sexuação. acreditar que não. O fato é que essa
Poder-se-ia objetar dizendo que, s e x u a l i d a d e j o g a d a p e l a p o r t a da
do p o n t o de vista das funções do frente parece retornar pela porta dos
ego, essa distinção masculino/femini¬ fundos.
no é irrelevante, ou, ainda, que afir- Obviamente, a mestria tenta rein-
má-la é u m a espécie de resquício do corporá-la, c o m o é p r ó p r i o de seu
sempre presente machismo. Mas, de movimento, ora chamando-a de "afeti-
nossa parte, diríamos, muito embora vo", ora tomando-a em sua vertente
sem maiores aprofundamentos aqui, m a i s e x p l í c i t a , ou seja, oferecendo
que não entendemos ser essa a pers- cursos sobre sexualidade infantil para
pectiva do pensamento freudiano. que os professores saibam "o-que-fazer"
Q u a n d o Freud observa, por quando virem crianças se masturban-
e x e m p l o , que fora a i n v e n ç ã o do do ou explorando a g e n i t á l i a alheia.
tear, produto das mulheres, todos os E isso porque essa questão faz obstá-
outros inventos na história da hu- culo ao desejo do mestre.
O que ocorre, todavia, é u m t r a n s b o r d a m e n t o , u m retorno
de u m a verdade na falha de u m saber, o que nos leva a perceber
que a mestria falha, como, aliás, qualquer discurso, em sua preten-
são totalizadora. U m transbordamento que só pode surgir como
mal-estar.
Se há mal-estar na educação e se o tomamos como estrutural,
é inevitável pensarmos na legitimidade de uma intervenção analí'
ca e em suas possibilidades.

Na posição do agente (a) uma escuta, em vez de u m saber ou


um significante não-senso. Mas uma escuta fundada em u m a igno-
rância "douta", e não "ignara", ou seja, aquela que sabe perguntar,
e não se cristaliza no ignorar.
Uma escuta que vise produzir na queixa sua transformação em
enigma ($). Fazer advir ali onde há sofrimento/gozo u m espaço de
questionamento, não queixoso, mas um tipo de questionamento no
qual o sujeito se sinta i m p l i c a d o no que sofre/goza, responsabili-
zando-se (não se culpando) por aquilo que é da ordem do ato.
Esse trabalho faz com que apareçam questões "significantes"
diferentes daquelas que compunham a queixa (S ) e que, talvez, nem
1:

mesmo possam ser consideradas como questões, já que não buscam


respostas: é o queixar-se pelo queixar-se!
E a partir dessas questões a construção de u m saber inédito
( S ) , que faz efeito de m u d a n ç a subjetiva porque não é e r u d i t o .
2

Não surge para reger u m a prática, mas para liberar u m ato. Daí
passarmos a ênfase do "devo" para o "faço"; do "contr'ato" para o
"ato".
U m ato assim fundado (na ética analítica) faz girar o que a
injunção governar/educar produz, desinstalando as relações de seus
pontos de fixação e de sua tendência à repetição.
A presença de alguém que possa funcionar como esse " a " na
posição de agente (fato que o transforma em analista) como pólo
transferenciai é fundamental para a p o s s i b i l i d a d e de manejo do
sintoma social.
Para tanto, não é necessário que ele seja "contratado" como
analista, o que, aliás, ao contrário, seria sua impossibilidade funda-
mental. É necessário que ele saiba constituir-se como "a", valendo-
se de uma postura ética, sustentada em uma brecha qualquer que a
e s t r u t u r a do s i n t o m a lhe confira. O que pode ser feito até n o
pedido, a ele endereçado, de u m curso de reciclagem.
Desde que, é claro, ele faça girar esse pedido. O que conta é
que ele "cause" movimento, e não repetição ou estereotipia.
As dificuldades de sustentar tal posição em parte parecem ser
as mesmas de u m a situação de consultório: resistências, gozo do
sintoma, inchaço do imaginário, etc. De outra parte, é claro, ficam
acrescidas do fato de ali estarem em jogo vários sujeitos que não
ocupam em relação ao sintoma social a mesma posição (cf. Souza,
1991).
Não nos parece, contudo, que tais dificuldades possam servir
para desmerecer a tentativa, pois entendemos que a ética do psica-
nalista não lhe permite "esconder-se do mundo". •

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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tica à definição do papel do psicólogo escolar. Dissertação de Mestrado,
I n s t i t u t o de P s i c o l o g i a , U n i v e r s i d a d e de S ã o P a u l o , S ã o P a u l o , SP.

NOTAS

1
Trecho da l e t r a da m ú s i c a d o g r u p o T i t ã s i n t i t u l a d a "Go b a c k " , de auto-
ria do p o e t a T o r q u a t o Neto.

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