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Prédica: Isaías 40.

21-31
Leituras: Marcos 1.29-39 e 1 coríntios 9.16-23
Autoria: Nelson Kilpp
Data Litúrgica: 5º. Domingo após Epifania
Data da Pregação: 04/02/2018
Proclamar Libertação - Volume: XLII
1. Introdução
Epifania é a época da manifestação de Deus ao mundo através de Jesus, o Cristo. Desde o
nascimento na humilde estrebaria, para onde os magos do Oriente são levados, passando pelo
batismo de Jesus e o seu primeiro milagre – as bodas de Caná – até a experiência no monte da
transfiguração – em tudo se manifesta a grande luz (cf. o versículo de aclamação João 8.12: Eu sou a
luz do mundo). O evangelho se insere nesta temática: os demônios reconhecem a messianidade
de Jesus. Mas a missão de Jesus ultrapassa o curar doentes e expulsar demônios. É anunciar a vinda
do reino de Deus: para isso é que vim (Mc 1.38).
A Primeira Epístola aos Coríntios é lida de forma semicorrida nos domingos após Epifania. No texto
previsto para este domingo, Paulo defende seu apostolado diante de seus adversários, afi rmando que
renuncia ao seu salário de evangelista para não se tornar pesado à comunidade. Não evangeliza por
interesse; o próprio evangelho o constrange. Paulo faz isso de boa vontade, pois quer alcançar as
pessoas.
Com o texto de Isaías 40, previsto para a pregação, podem ser estabelecidostemas comuns: a) Deus
se manifesta na criação e na história (Is 40), na pessoa e nos sinais de Jesus (Mc 1) e na força de seu
evangelho (1Co 9); b) em sua manifestação, Deus busca aproximar-se das pessoas para animá-las e
ajudá-las em suas necessidades.
2. Observações exegéticas
Is 40.21-31 pertence ao bloco dos ditos atribuídos ao profeta anônimo que atuou, em meados do
século VI a.C., entre os exilados judaítas na Babilônia (Is 40-55). Informações sobre a situação dos
exilados e sobre a mensagem do chamado Segundo Isaías podem ser encontradas nas introduções ao
Antigo Testamento, bem como em textos do profeta, tratados em Proclamar Libertação (p. ex.,
PL VI, p.16-21, e a meditação de Augusto E. Kunert sobre Is 40.25-31, em PL IX, p. 216-226, a
única a tratar o nosso texto na série).
Encontrei diversas maneiras de delimitar a perícope em comentários e versões da Bíblia. Não creio
ser possível chegar a um consenso. Os v. 12-31 têm em comum o tema da incomparabilidade do
Deus Criador e Senhor da história. Ao mesmo tempo em que é majestoso, esse Deus também
consola e dá forças ao povo desanimado. Nas palavras de Severino Croatto: “Javé pode e quer
salvar” (1998, p. 34). Dentro desse complexo maior, é possível fazer o recorte previsto (v. 21-31), já
que se preservam essas duas dimensões: o “poder” e o “querer” salvar. Sigo a divisão da perícope
efetuada por Klaus Baltzer (1999, p. 115ss):
v. 21-24: o Criador do universo e o Senhor dos poderosos (entronizado sobre o círculo da terra – v.
22)
v. 25-26: o Deus que garante a ordem dos astros e da história (ele faz sair o seu exército bem
contado – v. 26)
v. 27-31: a superioridade de Deus possibilita esperança (mas os que esperam no Senhor renovam as
suas forças – v. 31).
ad 1) 40.21-24: As três partes iniciam com perguntas retóricas por meio das quais o profeta pretende
provocar a reação de seus ouvintes. Às perguntas seguem trechos com característica de hinos. Na
primeira seção, o profeta motiva seus ouvintes a perscrutar a sua tradição, aquilo que aprenderam
dos antepassados (“desde o princípio”) sobre os “fundamentos da terra”. O autor aponta para
as extremidades da terra: Deus se encontra desde as “profundezas da terra” (v. 21) até as alturas do
céu onde está o seu trono (v. 22). A cosmologia do antigo Oriente concebe a terra como um disco
redondo, limitado pelo horizonte e sustentado em fundamentos, e o céu como abóboda assentada nas
extremidades (“confins”) da terra (v. 28). No zênite da redoma celestial se encontra o trono de Deus;
a distância até os habitantes da terra é tão grande que estes se parecem com gafanhotos. Porém,
apesar de transcendente, esse Deus quer que sua magnífica criação seja uma “tenda que sirva de
habitação” aos humanos (v. 22).
Além de Criador do universo, o Deus de Israel também é Senhor de “príncipes” e governantes
(“juízes”). Impérios e governos são transitórios. Isso certamente não vale apenas para o Império
Babilônico. Também os atuais impérios e governos são passageiros. A transitoriedade do poder
político faz com que ele seja visto em sua real dimensão: é uma planta que tem a sua hora. Só o
verdadeiro Senhor permanece.
ad 2) 40.25-26: Cita-se, aqui, uma fala divina: A quem, pois, me comparareis? A resposta é óbvia:
Deus não pode ser comparado com ninguém! O argumento apresentado para fundamentar essa
incomparabilidade de Deus são os astros. O profeta evita o termo “astro”. Ele exorta a olhar para o
alto e observar como Deus passa revista no “exército” (celestial). Impressiona, também aqui, que a
majestade do Criador é combinada com sua proximidade e carinho com as criaturas. Deus conhece
cada estrela pelo nome (cf. Sl 147.4s). O canto “Sabes quantas estrelinhas” foi feito tendo em mente
a nossa passagem. Conhecer o número e o nome de cada uma delas é sinal de que Deus se importa
com elas. Não é acaso que o canto termine com: “Vê e ama a ti também”.
ad 3) Também a última seção é introduzida por (quatro) perguntas (v. 27-28a), seguidas de (três)
afirmações em forma de hino (v. 28b-29). Até aqui, o profeta se dirigira a uma segunda pessoa do
plural; agora ele fala a uma pessoa no singular: “Jacó/Israel”. O povo é personificado; ele é tratado
carinhosamente como uma pessoa querida. Cita-se uma queixa do povo: “O meu caminho
está oculto ao Senhor” e “o meu direito passa despercebido a Deus” (v. 27). O caminho que Israel
tem que trilhar é o da semiescravidão em terra estrangeira, essa é a sina que carrega. Deus parece
não ver o que está acontecendo. Deus oculta a sua face (Sl 13.2; 22.25; 27.9; 30.8 etc.). O “direito”,
ou seja, a expectativa criada no povo pelas promessas feitas aos pais não encontra eco em Deus. Aos
olhos do povo, elas não estão sendo “honradas”. A situação emocional e espiritual entre os exilados
é desoladora: em vez de ânimo e esperança, existe a terrível desconfiança de que Deus não mais quer
saber do povo.
Três são as respostas do profeta. Primeiramente afi rma que Deus é eterno: ele se manifesta desde o
distante passado até o longínquo futuro. Ele molda o tempo com suas mãos. Além disso, também o
espaço geográfico a ele pertence. Não só o centro, mas também os espaços periféricos
(“extremidades”) da terra estão sob seu domínio. Isso inclui os esquecidos lugares de desterro do
povo. Por fim, ele – incansável que é – “dá forças ao cansado” (v. 29). Isso parece incompreensível à
primeira vista. Como alguém que causou tanta desgraça ao povo e aparentemente está distante e
oculto pode querer reanimar os sem esperança? Os seus pensamentos, de fato, não são os nossos.
O profeta conclui com uma comparação: até os fortes e os jovens, no auge do vigor, em algum
momento, cansarão. Mas os que esperam em Deus estão em melhores condições, pois renovam
constantemente as suas forças (cf. Rm 5.5). A metáfora da águia é marcante: as pessoas que
recobram a esperança conseguem alçar voo como as águias. Alçar voo é libertar-se de desânimo,
abatimento, resignação.
3. Meditação
Será que somos felizes? De acordo com o Relatório Mundial da Felicidade de 2017, o Brasil ocupa o
22º lugar na lista dos países mais felizes do mundo. Um ano antes estava em 17º. O nível de
felicidade é calculado a partir de dados da economia, saúde, educação, expectativa de vida e da
percepção subjetiva de satisfação dos habitantes do país. Apesar de estarmos em queda, parece que
ainda somos um país de pessoas razoavelmente satisfeitas e otimistas. Afinal, na América Latina,
estamos apenas atrás de Costa Rica e Chile. E, ao tentar caracterizar o povo brasileiro, por ocasião
da Copa do Mundo da FIFA, um jornalista holandês lhe conferiu três qualidades: paciência,
criatividade e otimismo.
Ainda assim, nos últimos anos, as esperanças que depositamos numa renovação política de nosso
país foram frustradas de forma dramática. O momento em que escrevo é de profunda descrença nos
políticos que governam nosso país, por causa dos infindáveis casos de corrupção que continuam
vindo à tona. Não só a economia, a saúde e a educação se encontram num estado de abandono total.
O povo perdeu completamente suas esperanças nas pessoas que comandam o destino de nosso país.
Ainda há motivos para esperança?
Conforme o IBGE, a expectativa de vida no Brasil dos que nasceram em 1940, comparada com a
daqueles que nasceram em 2015, passou de 45,5 para 75,5 anos. Sem dúvida, são reflexos dos
avanços da medicina, da tecnologia e de políticas de saneamento básico, ainda que mal distribuídas.
Mas estatísticas também são enganadoras, porque nivelam extremos. Além disso, quantidade de vida
ainda não significa qualidade de vida. Conforme a Organização Mundial da Saúde, em 2015, 300
milhões de pessoas sofreram de depressão no mundo e a estimativa é de que, em 2030, a depressão
será o mal de maior incidência na população mundial. Sua atual taxa de mortalidade é superior a
30%, com 800 mil suicídios por ano. No Brasil, a depressão atinge 5,8% da população, algo entre 11
e 12 milhões, ficando nas Américas somente atrás dos Estados Unidos. A incidência do transtorno de
ansiedade é ainda maior, atingindo 9,3% da população, o que faz do Brasil o recordista mundial.
Vivemos mais, mas não vivemos melhor. Desemprego, atendimento médico público catastrófico,
estresse no trânsito, conflitos no lar, violência nas ruas, profi ssão desgastante, bullying na escola,
insegurança – tudo isso tem levado a burn outs, desagregação familiar, fuga nas drogas, banalização
da vida, perda da autoestima, suicídio. Sintomaticamente aumenta, por outro lado, a busca
por igrejas e grupos de autoajuda.
Também os primeiros destinatários do texto de Isaías 40.21-31 viviam uma situação de desânimo e
de resignação. Já não tinham mais forças para esperar uma melhora da situação. Parecia que Deus
estava ausente e até desinteressado na sorte do povo: Meu caminho está oculto a Javé!
À primeira vista, a “tática” do profeta parece inadequada. Pois inicia com a afi rmação da
incomparabilidade de Deus, ou seja, em termos dogmáticos, prega a transcendência, onipotência e
onisciência divina. Quem, hoje, ouve falar num Deus transcendente provavelmente dirá: “Esse Deus
não me interessa. Ele está muito distante. Eu necessito é de um Deus próximo, companheiro, que me
entenda”. Será que o profeta aponta para Deus poderoso para relativizar os poderes políticos deste
mundo, que nos fazem desesperar e desanimar? Em todo caso, mostra a maravilha da criação. A
contemplação da criação não só atesta o poder de Deus, mas, ao contrário do que esperávamos,
também evidencia o interesse e o carinho do Criador por suas criaturas.
A contemplação das maravilhas da criação de Deus não precisa ser algo reservado apenas a
saudosistas românticos. Não deveríamos recuperar a capacidade de admirar as maravilhas da
natureza? Não só as estrelas, mas o despertar da vegetação na primavera, a mudança da folhagem no
outono, a variação das estações do ano, ainda que diferente nas diversas latitudes, a vida que se
renova a cada ano – será que tudo isso se tornou “cafona” para as pessoas “modernas”? A postura
que nos leva à degradação do ambiente natural é a mesma que leva à perda de nossa capacidade de
nos maravilhar? Sem essa sintonia com a criação, da qual somos parte, pode existir esperança para o
nosso planeta?
A contemplação não se dirige somente aos astros do céu e ao ambiente que nos cerca. Também se
volta ao passado, à nossa tradição, à nossa história com Deus. Quais foram os momentos em nossa
vida em que estivemos totalmente abatidos e recebemos nova chance de vida? Certamente cada qual
poderia contar uma experiência singular, em que esteve abatido e foi “reanimado” (recobrou a sua
“alma”), esteve “no fundo do poço” e foi reerguido. Na retrospectiva, essas experiências se tornam
ainda mais importantes, pois sustentam a esperança de que Deus abre novos caminhos.
4. Imagens
O texto bíblico é rico em imagens que podem ser exploradas na pregação. A primeira é o “olhar para
cima” (v. 26). Quem está triste e abatido costuma olhar
para baixo, para o chão. Aí só vê os próprios pés e a sujeira em que pisa. Quanto muito, vê os limites
de sua trilha. É necessário erguer um pouco a cabeça para ver o que está à frente, além de si. A
perspectiva se torna diferente, o raio de visão mais amplo. Podem-se ver possibilidades de seguir
adiante, quem sabe com pessoas que estão ao nosso lado. Se erguermos ainda mais a cabeça, talvez
vejamos um horizonte mais amplo, quem sabe o azul do céu, o brilho do sol, a serenidade da lua ou a
melodia das estrelas. Aí talvez possamos sonhar para além das nossas próprias modestas
possibilidades, com um mundo novo, diferente, melhor.
Uma segunda imagem é a de Deus passando em revista o exército celestial, contando todos os seus
“soldados”, dirigindo-se a cada um deles, chamando-os pelo seu nome. Apesar do ambiente militar,
sobressai a relação pessoal de Deus com cada uma de suas criaturas. Também nós temos um nome,
uma identidade. Deus nos conhece; nele, a nossa identidade está preservada para sempre. Deus não
se esqueceu dos nomes dos milhões de indígenas massacrados na conquista do continente americano
e das milhares de pessoas anônimas que morreram nas guerras promovidas pelos grandes e pequenos
impérios.
A imagem que mais se destaca é a da águia abrindo suas asas para alçar voo. Talvez possamos dar
um toque latino-americano a essa imagem. É impressionante observar o voo do condor andino. Fica-
se maravilhado como ele consegue deslizar no ar, aos rodopios, quase sem mover as suas enormes
asas. A resposta é simples: ele aproveita as correntes de ar ascendentes que o erguem para o alto.
Uma bela figura para expressar que podemos nos deixar levar ao alto pelas maravilhosas promessas
de Deus.
As pessoas que esperam em Deus correm, mas não se esgotam, porque ele renova as forças do
cansado. Canseira, fadiga, enfado, desânimo, frustração, impotência – tudo isso nos é muito familiar.
Muitas vezes, nós nos deitamos à noite e os problemas não resolvidos durante o dia vão conosco
para a cama. Quando acordamos, no dia seguinte, os problemas não sumiram. Eles continuam aí,
mas não mais apavoram. O novo dia abre novas perspectivas. Assim também Deus renova as forças
aos que nele esperam.
5. Subsídios litúrgicos
Dois cantos de Hinos do Povo de Deus (HPD 1) se candidatam naturalmente por causa de sua
relação com o texto de pregação: “Sabes quantas estrelinhas” (236) e “Os que confiam no Senhor”
(229).
Confissão de pecados: O nosso cotidiano fornece diversos motivos para as pessoas, como a correria
diária e a falta de tempo, para a contemplação da criação, a meditação; a busca frenética por
assegurar o que temos: saúde, dinheiro, propriedade, emprego; a pouca confiança na misericórdia
divina; nossa incapacidade de ver “sinais” de Deus no dia a dia.
Oração de coleta: Agradecer pelas múltiplas manifestações de Deus no passado e no presente: na
pessoa de Jesus Cristo, na pregação do evangelho durante os séculos, na maravilhosa criação de
Deus, na história da nossa comunidade. Pedir por sabedoria e por olhos capazes de discernir o amor
de Deus na atualidade.
Versículo de aclamação (Jo 8.12) do Evangelho e o Salmo (147.1-11) do dia estão intimamente
ligados ao tema da prédica.
Confissão de fé: quem quiser inovar, sugiro o Credo da Igreja Unida do Canadá (ALTMANN, W.
(Org.) Nossa fé e suas raízes. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2004. p. 172).
Intercessões: o texto é dirigido a pessoas cansadas, sobrecarregadas, desanimadas e sem esperança.
Muitas se enquadram nessa categoria, também as pessoas que (acham que) estão perdendo a sua fé.
Bibliografia
BALTZER, K. Deutero-Jesaja. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus, 1999. (Kommentar zum Alten
Testament).
CROATTO, J. S. Isaías. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 1998. v. II: 40-55. (Comentário
Bíblico).
KUNERT, A. E. Domingo Quasimodogeniti: Isaías 40.25-31. In: KIRST, N. (coord.) Proclamar
Libertação. São Leopoldo: Faculdade de Teologia; Sinodal, 1983. v. IX, p. 216-226.

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