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O princípio da proporcionalidade e o

devido processo legal

Mariá Brochado

Sumário
1. Introdução. 2. Questão prolegômena: o
processo na órbita constitucional. 3. O devido
processo legal. 3.1. Notícia histórica do institu-
to. 3.2. As fases do devido processo legal: adje-
tiva e substantiva. 3.3. O devido processo legal
atualmente. Algumas considerações críticas
sobre o tema. 4. O princípio da proporcionali-
dade ou razoabilidade e sua aplicação em ma-
téria de direitos fundamentais. 4.1. Conceito e
sentidos do princípio da proporcionalidade. 4.2.
A proporcionalidade e os direitos fundamen-
tais. 5. A proporcionalidade e o devido proces-
so legal. 6. O princípio da proporcionalidade e
o devido processo legal no sistema jurídico
brasileiro. 7. Ainda algumas considerações so-
bre o tema. 8. Tripla conclusão: Sistêmica, Téc-
nica e Ontológica.

1. Introdução
O pensamento jurídico contemporâneo
tem-se defrontado com um dos problemas
Mariá Brochado é Especialista e Mestra em
mais importantes no que diz respeito à apli-
Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito
da UFMG, Professora de Instituições de Direi- cação do direito: a efetivação judicial dos
to da Universidade Estácio de Sá, em Belo Ho- direitos fundamentais. O problema da de-
rizonte, Professora de Filosofia do Direito e claração desses direitos, parece, tem sido so-
Introdução ao Estudo do Direito da Faculdade lucionado desde a Revolução de 1789, mas
de Direito do Médio Piracicaba, Professora de hoje a grande questão é o momento da apli-
Teoria Geral do Direito do Curso de Pós-gra- cação, em que podem surgir conflitos entre
duação em Direito do Instituto de Educação tais direitos ou princípios que resguardam
Continuada da Pontifícia Universidade Católi- o Estado Democrático de Direito, o que tem
ca de Minas Gerais, Professora de Filosofia do
exigido da jurisprudência constitucional,
Direito do Curso de Pós-graduação em Direito
da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção com base no desenvolvimento da Doutrina,
Minas Gerais, Assessora Jurídica do Gabinete um acentuado esforço hermenêutico.
da Procuradoria Geral do Município de Belo Pretende-se com este artigo desenvolver
Horizonte. um estudo sobre o tema candente do princí-
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pio da proporcionalidade, quer sob a ótica O princípio da independência do juiz não
teórico-jurídica, quer sob o prisma do seu é senão corolário da cautelosa separação fei-
desenvolvimento prático, envolvendo, por- ta entre direito e atividade política. O direi-
tanto, as posições que tratam do denomina- to nasce de fins, mas se torna independente
do “devido processo legal”. deles, impondo-se posteriormente por uma
O trabalho desenvolve-se a partir de duas “autovalidade”, que se expressa na sua obri-
vertentes: a que considera o tema sob o pris- gatoriedade (ou força vinculante) (p. 119).
ma do due process of law e a que o considera Qual seria o papel do processo diante des-
como “princípio da proporcionalidade” e sas três idéias?
tem como objetivo expor as posições doutri- Com relação à finalidade do direito, te-
nárias mais importantes sobre o assunto, mos que o direito processual tem como obje-
demonstrando a necessidade de elevar o tivo auxiliar a realização do direito material;
tema a uma consideração jusfilosófica. Jus- contudo, vale por si mesmo, “é obrigatório,
tifica-se, portanto, pela relevância científica não só no caso de não auxiliar coisa algu-
do tema e pela inegável atualidade. ma, como até mesmo no de prejudicar essa
realização” (p. 120). E Radbruch acrescenta
2. Questão prolegômena: o processo que o direito não conhece imperativos hipo-
na órbita constitucional téticos, inclusive o próprio direito proces-
sual, cuja validade independe do seu valor
Gustav Radbruch aborda a questão pro- como meio para atingir um fim. Até o direito
cessualística numa perspectiva jusfilosófi- processual, com toda a sua definição finalís-
ca e, dentro da sua doutrina de bases tica, só conhece imperativos categóricos, que
neokantianas, relaciona o processo aos três valem por si mesmos, em face da obrigatorie-
lados que, segundo ele, compõem o concei- dade própria do direito positivo (p. 120).
to (ou idéia) de direito. São eles: “a idéia de A independência entre direito material e
justiça, a de fim do direito e a da sua seguran- direito formal distingue dois tipos de rela-
ça ou certeza” (1961, p. 118). ção jurídica: a relação jurídica processual e
A idéia de fim no direito o coloca em si- a relação jurídica material. Tal distinção traz
tuação de dependência direta com o Estado, algumas conseqüências práticas que vão-
ou seja, com os fins preconizados por ele. Já a se concretizar sob a forma da segurança no
justiça e a segurança colocam-no em posição direito. Radbruch se refere à questão da pro-
de supremacia com relação ao próprio Esta- va em direito. Segundo ele, um advogado
do, transbordando “em larga escala para fora pode, por exemplo, pedir a absolvição do
dos próprios limites do Estado” (p. 118). réu, alegando a falta de provas sobre a prá-
A justiça exige a generalidade e a igual- tica de um determinado delito, mesmo sa-
dade da norma jurídica para todos os seus bendo pessoalmente da sua culpabilidade.
destinatários e a segurança exige a obriga- Quando o faz, “não deixa de advogar o di-
toriedade do direito positivo, sem se impor- reito, conquanto esse direito seja um direito
tarem respectivamente com o fato de estar a puramente formal e não material” (p. 121).
generalidade da norma jurídica de acordo Essa obrigatoriedade do direito processual,
com os fins estatais, ou a sua obrigatorieda- ainda que em oposição ao material, justifi-
de ser ou não conveniente para o Estado. ca-se pelo valor da segurança jurídica. As-
Assim, “mesmo que o ‘conteúdo’ do direito sim, a sentença transitada em julgado ad-
possa ser predominantemente determinado quire força independentemente de se encon-
pelos fins do Estado, o que, não obstante, per- trar em harmonia com o direito material.
manece indiscutível é achar-se a forma do ‘ju- Podem aparecer situações em que haja
rídico’, por definição, colocada fora e mais tal injustiça e tal inadequação do direito ao
acima de toda influência desses fins” (p. 118). seu fim, que o valor da segurança jurídica

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não consegue compensar. É o problema da todos os governados, com apoio nos direi-
nulidade absoluta de certos casos julgados, tos humanos mais importantes: o direito à
em virtude de vícios que colocam em risco a justiça e à jurisdição” (BARACHO, 1984, p.
própria idéia de direito: “a razão que se ele- 128)2. O Estado Social de Direito pode ser
va contra a força obrigatória da sentença...é entendido como Estado de Justiça no senti-
ainda uma razão nascida dessa mesma do de que nele a mera legalidade formal
idéia de segurança, ou seja, a mesma que pode ser substituída ou acompanhada de
reclama a própria efetivação do direito ma- considerações sobre o conteúdo, apoiadas
terial e formal” (p. 128). não em valores do indivíduo isolado, mas
Conceituando o processo em si mesmo, nos da pessoa associada, os quais podem
como desenvolvimento autônomo, o que jus- constituir-se em uma ordem baseada na so-
tamente garante a sua obrigatoriedade ou lidariedade (ZAMUDIO, 1980, p. 76).
“autovalidade”, como entende Radbruch, Dado que o processo é a própria forma
podemos entendê-lo como o “conjunto de que possibilita a garantia da pessoa huma-
atos, fatos ou operações que se agrupam de na; dada a relevância da tutela dessa ga-
acordo com certa ordem, para atingir um rantia por todos os ordenamentos jurídicos
fim, cujo objetivo fundamental é a decisão atuais, enquanto expressão da garantia a
de um conflito de interesses jurídicos. Estes direitos humanos, torna-se imprescindível
atos e formas, que movimentam a vida jurí- sua positivação sob a forma de garantias
dica, fornecem-nos a primeira idéia de pro- constitucionais, em última análise, sob a
cesso” (BARACHO, 1984, p. 117). forma de direitos constitucionais fundamen-
Sobre a discussão quanto à relação jurí- tais3.
dica de direito processual, o jurista italiano Elio Partindo dessa conclusão, podemos
Fazzalari não a admite inserida no conceito compreender melhor a extensão da necessi-
de processo, como anota Cintra, Grinover e dade de uma reflexão vinculada entre pro-
Dinamarco. Define processo como o proce- cesso e Constituição no mundo contempo-
dimento realizado em contraditório, e, no râneo. Nesse sentido aparece o processo
lugar de uma composição restrita sob a for- constitucional, que, como explica José Al-
ma de relação jurídica, deve-se possibilitar fredo de Oliveira Baracho, “abrange, de um
uma abertura à participação no processo, lado, a tutela constitucional dos princípios
participação essa garantida constitucional- fundamentais da organização judiciária e
mente. Esclarecem ainda que, “na realida- do processo; de outro lado, a jurisdição cons-
de, a presença da relação jurídico-proces- titucional” (BARACHO, 1984, p. 125-126).
sual no processo é a projeção jurídica e Como a proposta deste estudo é desen-
instrumentação técnica da exigência po- volver os temas “princípio da proporciona-
lítico-constitucional do contraditório” lidade” e “devido processo legal”, limitar-
(1998, p. 283). se-á ao aspecto tutelar constitucional do pro-
A idéia de processo se engrandece quan- cesso, enquanto engloba o direito de ação e
do pressuposta como própria garantia da de defesa e outros postulados que desses
pessoa humana, ou seja, quando assim é decorrem (p. 126). Não trataremos especifi-
considerada pelas Constituições dos Esta- camente da organização judiciária enquan-
dos democráticos. O processo aparece vin- to tutelada constitucionalmente, e nem da
culado à moderna concepção de Estado So- jurisdição constitucional enquanto contro-
cial de Direito1, no sentido de que “o Estado le judiciário da constitucionalidade das leis,
Social de Direito, como Estado de Justiça, atos administrativos e liberdades. Nosso
visto sob o ângulo do ordenamento consti- objetivo é principiológico e não estrutural
tucional e suas relações com as categorias ou procedimental. Nesse sentido é que tra-
processuais, deve tornar possível a justiça a taremos do princípio da proporcionalidade

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e de sua expressão no devido processo le- namento jurídico da América do Norte. Essa
gal, com seus postulados fundamentais. transformação de simples garantia proces-
Ressaltemos, ainda, que o Direito Pro- sual em princípio de “justiça” entre o Esta-
cessual Constitucional não se apresenta do e indivíduo e Estado e Sociedade foi, se-
como ramo autônomo do Direito Proces- gundo Siqueira Campos, muito bem perce-
sual, mas sim, o que também é enfatizado bida pela jurística brasileira no pensamen-
por Oliveira Baracho, como “uma coloca- to de José Alfredo Baracho, a quem cita mui-
ção científica de um ponto de vista metodo- to apropriadamente:
lógico e sistemático, do qual se pode exami- “‘As expressões law of the land e
nar o processo em suas relações com a Cons- due process of law examinadas conjun-
tituição” (p. 125). tamente, na Inglaterra e nos Estados
Unidos, deram origem à construção
3. O devido processo legal jurisprudencial, com o objetivo de pro-
teção aos direitos do indivíduo, em
3.1. Notícia histórica do instituto especial em matéria de garantias pro-
cessuais4. Com o tempo, a cláusula do
O instituto do devido processo legal tem due process of law passou a ter maior
sua origem na Magna Carta do Rei João relevo, alargando-se no âmbito da
“Sem Terra”, já no limiar do século XIII, ini- doutrina. De uma garantia, em face do
cialmente concebido como simples limita- juízo, passa a assegurar igualdade de
ção às ações reais. Foi positivado expressa- tratamento frente a qualquer autori-
mente no art. 39 daquele documento, a prin- dade. Esta ampliação de sentido pro-
cípio sob a locução law of the land, “que as- piciou a limitação constitucional dos
segurava aos homens livres, notadamente poderes do Estado’...” (apud CAS-
aos barões vitoriosos e aos proprietários da TRO, 1989, p. 58).
terra (state holder), a inviolabilidade de seus E acrescenta que, pelo fato de a cláusula
direitos relativos à vida, à liberdade e, so- do due process of law ter sempre estado asso-
bretudo, à propriedade, que só poderiam ser ciada ao sistema de liberdades fundamen-
suprimidos através da ‘lei da terra’” (CAS- tais, acabou assumindo nítida postura
TRO, 1989, p. 9-10). Aqueles direitos só pode- “substantiva” e limitadora do mérito das
riam sofrer limitações segundo os procedimen- ações estatais, “tornando-se o paladino dos
tos e por força do direito comumente aceito e ideais privatistas na luta contra o avanço
sedimentado nos precedentes judiciais. avassalador do Estado que teve lugar a partir
Posteriormente a expressão law of the land do 1º pós-guerra” (CASTRO, 1989, p. 58-59).
foi substituída pelo due process of law, in- Como podemos observar, o devido pro-
gressando desde o primeiro instante nas co- cesso legal passou fundamentalmente por
lônias inglesas da América do Norte, sendo duas fases:
posteriormente consagrado em definitivo a) uma fase chamada adjetiva (procedural
pela Constituição Americana, como garan- due process): com seu conteúdo clássico de
tia fundamental, com as 5ª e 14ª Emendas garantia do réu, destinando-se apenas ao
àquele Diploma Legal (p. 11). processo penal, continha a exigência de um
procedimento regular, a garantia do contra-
3.2. As fases do devido processo legal: ditório, da ampla defesa, da representação
adjetiva e substantiva por advogado, o direito ao julgamento por
O due process of law sofreu imensa evolu- júri legalmente constituído, entre outros.
ção imerso dentro do sistema norte-ameri- Posteriormente, a garantia processual esten-
cano, transformando-se num autêntico pa- deu-se ao processo civil e ao processo admi-
râmetro de justiça, inspirando todo o orde- nistrativo.

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Nessa sua primeira fase (adjetiva), a ex- e leis do Congresso, a partir da aplicação da
pressão devido processo pode ser definida chamada “regra da razão” (rule of reason),
como “o processo que é justo e apropriado. significando que uma lei, para ser conside-
Os procedimentos judiciais podem variar de rada razoável, deveria parecer “sensata, dig-
acordo com as circunstâncias, porém os pro- na de aplauso e compreensível aos intérpre-
cedimentos devidos seguem as formas esta- tes”. A questão problemática é que esse cri-
belecidas no direito, através da adaptação tério de razoabilidade era aferido a partir
das formas antigas aos problemas novos, dos critérios econômicos e sociais da Corte
com a preservação dos princípios da liber- Suprema, e, se, segundo tais critérios, a lei
dade e da justiça” (BARACHO, 1980, p. 89). parecesse razoável, era considerada como
Já em 1869, a Corte Suprema Americana em acordo com o processo legal regular
havia expressado uma tendência a consi- (STUMM, 1995, p. 155). O Princípio da Ra-
derar o due process of law como princípio res- zoabilidade teve, assim, sua matriz na cláu-
tringente ao poder legislativo não somente sula do devido processo legal americano,
em relação a direitos processuais, mas tam- mais especificamente nesse seu segundo
bém a direitos substantivos reconhecidos momento chamado “substantivo”.
pelo common law (STUMM, 1995, p. 154). Acrescentamos que a doutrina mencio-
Raquel Stumm, citando Juan Francisco Li- na três fases na evolução do conteúdo do
nares, exemplifica essa tendência com um devido processo legal, sendo a terceira fase
caso julgado pela Corte Americana sobre o também substantiva, mas marcada pelo in-
direito de propriedade, em 1866, indicando tervencionismo judicial em questões não-
já uma visível evolução no primitivo con- econômicas, que incluíam liberdade de ex-
teúdo do princípio do due process of law: pressão, religião, direitos de participação
“A Corte manifestou-se contrária política e de privacidade. O primeiro mo-
a qualquer tipo de limitação: ‘O poder mento da segunda fase se caracteriza pela
de regular não é o poder de destruir, e intervenção da Suprema Corte em questões
‘limitação’ não é equivalente de ‘des- de conteúdo econômico, “como reação ao
truição’. Sob a pretensão de regular intervencionismo estatal na ordem econô-
tarifas e fretes, o Estado não pode exi- mica” (BARROSO, 1998, p. 201). Não ado-
gir a um trem de ferro transportar pes- tamos essa divisão, nem a desenvolvemos
soas e coisas sem remuneração, nem mais rigorosamente, porque o objetivo des-
pode esse poder fazer com que esse sa exposição é apenas acentuar o momento
direito torne-se propriedade privada de transição da fase meramente processua-
para um uso público, sem justa com- lística do devido processo para a sua fase
pensação ou sem o devido processo substantiva, quando aparece com vestes de
legal’. princípio da razoabilidade.
Nota-se já um acréscimo de con-
teúdo ao princípio do devido proces- 3.3. O devido processo legal atualmente
so legal, que de recurso técnico pro- Atualmente o due process não tem limites
cessual começa a adaptar-se a um ‘re- indefinidos como o foi no passado, logo
curso técnico axiológico que limita quando se delineou seu caráter substanti-
também o legislador’” (1995, p. 153), vo. A princípio, chegou-se até mesmo a in-
indicando sua evolução para além das ga- vocar a chamada “doutrina da judicial noti-
rantias estritamente processuais. ce”, que implicava a presunção de inconsti-
b) uma fase substantiva: marcada por uma tucionalidade de toda a legislação social.
atribuição quase legislativa aos Tribunais; “Hoje não compete mais à Suprema Corte
o due process passa a ser invocado para ava- decidir sobre a necessidade ou plausibili-
liar a constitucionalidade de leis estaduais dade da legislação social, pois a presunção

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de inconstitucionalidade ou doutrina da namentos do consagrado jurista-hermeneu-
judicial notice, ‘segundo a qual cumpria aos ta Emilio Betti, que, ao tratar da “discricio-
Estados provar-lhe a necessidade’, não mais nariedade absoluta (ou legislativa)”, expli-
tem aplicação” (STUMM, 1995, p. 158). ca que se trata de uma discricionariedade
O devido processo legal atualmente tem soberana, que só em caráter excepcional
um conteúdo necessariamente aberto, pos- pode ser delegada ao órgão judicial, quan-
sibilitando aos juízes o controle da “razoa- do se lhe faculta julgar por eqüidade.
bilidade e racionalidade das classificações Segundo Betti, na discricionariedade so-
legislativas” (p. 159). berana do poder legislativo, a interpretação
No sistema americano, há uma nítida di- volta-se especificamente para o ordenamen-
ferença entre lei e Direito. O conceito de di- to estatal das competências estatais, no sen-
reito se aproxima do conceito de justo, de tido de determinar preventivamente os li-
princípios gerais de Direito, de legítimo, não- mites da competência normativa e eventu-
arbitrário. “O controle judicial sobre a cons- almente das diretrizes a ela assinalada pela
titucionalidade das leis erigiu-se sobre a le- Constituição. “Por otra parte, ese poder deve
gitimidade das mesmas diante do Direito”. legiferar racionalmente [grifo nosso], de con-
Subjacente ao conceito de Constituição está formidad con las exigencias político-admi-
a idéia de “revelação de uma justiça funda- nistrativas emergentes de la vida social y
mental”, do que decorre que toda lei que for advertidas por la opinión pública, en cohe-
considerada injusta será considerada in- rencia con el orden constituido según la ló-
constitucional (p. 159). Na cláusula do due gica de la función normativa y en obsequio
process, está a sujeição das regulações con- a sumos postulados de justicia, todo lo cual
cretas do Direito positivo aos princípios constituye una exigencia si no metajurídi-
superiores do direito (p. 160), não um direito ca, sí más allá del orden jurídico concreto,
fixado em regras imutáveis, “mas ao direito exigencia cuya observancia ni se lleva a
como síntese, como corpo de princípios, cabo ni se controla con operaciones ‘inter-
como método de criação normativa” (DAN- pretativas’” (BETTI, 1975, p. 143-144). E
TAS apud BARROSO, 1998, p. 206). mais adiante acrescenta: “La faculdad políti-
A questão é saber o que legitima a com- co-legislativa de ‘crear leyes justas en el mar-
preensão da Corte sobre o que é “o mais ra- co de la constitución’ no descansa propriamen-
zoável” a partir de seus próprios critérios, a te en límites y controles jurídicos [grifo nosso],
ponto de elevá-los acima dos critérios ado- sino sólo en la crítica política en cuanto no se
tados pelo Poder Legislativo, considerando- atenga a las exigencias de una, por otra parte
os menos razoáveis quando da elaboração elástica, interpretación adivinatoria de las
da lei. O que se verifica na verdade é um tendencias de la opinión pública” (p. 146).
predomínio marcante do poder judiciário Betti não cogitou, em sua obra, de uma
sobre os outros poderes, fazendo com que a possível aferição de razoabilidade de atos
Suprema Corte acabe construindo a Consti- legislativos por parte do poder judiciário,
tuição. As decisões jurisprudenciais têm apesar de ressaltar o dever do poder legife-
muito mais força vinculante do que as pró- rante de atuar racionalmente, de acordo com
prias leis formais, inclusive no sentido de as necessidades sociais de sua época. Não
revogá-las. há, nesse sentido, um controle judicial so-
bre tal racionalidade. Ao contrário, enten-
Algumas considerações críticas dia o jurista não haver mesmo qualquer con-
sobre o tema trole jurídico sobre os atos criadores de leis.
Sobre o problema dos limites do poder A interpretação feita pelo legislativo diz res-
judiciário sobre os atos do poder legislati- peito ao conhecimento das tendências da
vo, podemos contar com a riqueza dos ensi- opinião pública, das necessidades político-

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sociais de um determinado momento histó- l’institution ne dévie et ne se déforme, que
rico (o que ele chama “interpretación advi- ce contrôle est d’ordre strictement juridique,
natória”). qu’il ne s’agit pas de rechercher si la loi est
O que Betti não suscita é a possibilidade opportune ou non, bonne ou mauvaise, uti-
de uma interpretação dessa interpretação, li ou nuisible, mais uniquement de vérifier
ou seja, da interpretação do poder judiciá- si elle est conforme ou contraire à la consti-
rio (recorrendo ao princípio do due process of tution” (1947, p. 312).
law substantivo) sobre o que o poder legisla- De conteúdo substantivo indeterminado,
tivo entendeu como a medida mais razoá- o devido processo legal, como salienta Luís
vel (ou racional) a ser tomada diante de uma Roberto Barroso, “embora se traduza na
necessidade pública qualquer, o que o le- idéia de justiça, de razoabilidade, expressan-
vou, a partir dessa “advinhação”, ou da sua do o sentimento comum de uma dada épo-
interpretação própria, a promulgar uma lei ca, não se trata de cláusula de fácil apreen-
de tal conteúdo. Segundo o devido proces- são conceptual”, o que conclui referindo-se
so, até essa razoabilidade pode ser conferi- mesmo a um voto proferido na Suprema
da, atestada ou não pelo poder judiciário, Corte Americana, que transcrevemos: “De-
respaldando-se num princípio supremo, vido Processo não foi ainda reduzido a ne-
guardião da constituição. A questão é que nhuma fórmula: seu conteúdo não pode ser
esse princípio guarda conteúdo indeter- determinado pela referência a nenhum có-
minado, indefinido, conteúdo esse que só digo. O melhor que pode ser dito é que atra-
os casos que forem aparecendo podem vés do curso das decisões desta Corte ele
desvelar. representou o equilíbrio que nossa Nação,
Em outras palavras, o due process signifi- construída sobre postulados de respeito pela
ca que a interpretação política (ou “advi- liberdade do indivíduo, oscilou entre esta
nhatória”), característica do poder legisla- liberdade e as demandas da sociedade or-
tivo, acaba sendo realizada pelo poder judi- ganizada” (1998, p. 200).
ciário, quando passa a questionar a razoa- Othon Sidou, ao tratar do contraditório
bilidade de uma lei, trabalho já desenvolvi- processual, explica que o princípio do con-
do pelo poder legiferante. É, na verdade, a traditório, “praticado nos sistemas jurídi-
revogação de uma lei pelo judiciário quan- cos romano e subseqüentes, tomou hoje di-
do considerada não-razoável segundo pa- mensão maior, por imperativo das práticas
râmetros do próprio judiciário, “parâmetros democráticas, e é sintetizado na expressão
fundamentais de direito”, ou a uma “justi- due process of law, adotada pelo constitucio-
ça fundamental”, que não se confundem, nalismo norte-americano” (1997, p. 163).
como já vimos, com o direito posto sob a for- E ainda contamos com a seguinte afir-
ma de normas. mação de Elio Fazzalari: “viene in ogni caso
Nesse sentido, Laferrière enfatiza que o rispettate, e utilizzato, il princípio del due
controle judicial da constitucionalidade das process of law, le cui caracteristiche essenziali,
leis se beneficia das garantias da imparcia- secondo l’elaborazione fattane dalla giuris-
lidade do juiz, do procedimento judicial, da prudenza, consistono nelle garanzie che, nel
publicidade, do debate contraditório, da nostro linguagio chamaremo del contradi-
motivação obrigatória da sentença judicial torio” (1994, p. 14).
etc. Por outro lado, afirma que tal controle Consoante crítica severa do professor Sal-
deve-se limitar ao orbe jurídico, sob pena de gado, o devido processo legal nada mais é
se deformar a instituição. Assim pondera: do que uma tentativa norte-americana de
“... attribuer le contrôle de la constitution- levar para o sistema americano a jurisdição
nalité des lois à un juge, c’est mettre en relief nos moldes continentais, com o contraditó-
cette idée, essentielle si on veut éviter que rio judicial, a ampla defesa e o terceiro neu-

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tro, conhecidos antigos da tradição jurídica No tocante à relação entre normas que
da Europa Continental. Posteriormente, por declaram direitos fundamentais e outras
falta de embasamento teórico e rigor técni- normas constitucionais, asseguramos de
co, os juristas americanos acabaram trans- imediato que realmente há uma prevalên-
formando-o numa espécie de “cartola má- cia ou hierarquia das primeiras com rela-
gica”, de onde se retiram muitas soluções ção às outras, como depreendido do enten-
jurídicas materiais, de índole semelhante à dimento de Joaquim Carlos Salgado. O jus-
antiga e surrada eqüidade. Trata-se de uma filósofo entende que, na interpretação de
expressão vazia, em que cabe qualquer con- uma constituição material, “deve-se obser-
teúdo (1998). var a preponderância das normas, segundo
a ideologia (1996b, p. 32)5 adotada ou se-
4. O princípio da proporcionalidade gundo os valores que formam o seu conteú-
ou razoabilidade e sua aplicação em do”. Assim, num Estado social-democráti-
matéria de direitos fundamentais co, sob o ponto de vista axiológico, os direi-
tos fundamentais subordinam a priori todas
as outras normas constitucionais, tendo mai-
4.1. Conceito e sentidos do princípio da
or peso nesse sentido (axiológico mesmo).
proporcionalidade
“Nesse caso, dentro da própria declaração
Podemos conceituar o princípio da pro- ou outorga de direitos há uma ‘hierarquia’
porcionalidade ou razoabilidade como “um ou ponderação, segundo formação escalona-
parâmetro de valoração dos atos do Poder da da própria ordem valorativa” (p. 33).
Público para aferir se eles estão informados A doutrina alemã caracteriza o princí-
pelo valor superior inerente a todo ordena- pio da proporcionalidade (ou razoabilida-
mento jurídico: a justiça” (BARROSO, 1998, de)6 como o meio empregado pelo legisla-
p. 204). dor, que deve ser ao mesmo tempo adequado
A idéia de proporcionalidade nasceu no e exigível ao fim almejado. “O meio é ade-
Direito Administrativo, mas hoje constitui quado quando, com o seu auxílio, se pode
um princípio de Direito Constitucional e, promover o resultado desejado; ele é exigí-
portanto, com foro constitucional. “Disso vel quando o legislador não poderia ter es-
resulta que não apenas a Administração e o colhido outro igualmente eficaz, mas que
Poder judiciário vinculam-se a ele, mas tam- seria um meio não-prejudicial ou portador
bém o Legislativo” (STUMM, 1995, p. 110). de uma limitação menos perceptível a direi-
Com esse sentido de garantia constituci- to fundamental” 7.
onal, vinculando a qualquer poder, como
imperativo das práticas democráticas, o 4.2.1. Proporcionalidade como
princípio tem sua origem no due process of ponderação
law substantivo americano, e na Alemanha Robert Alexy faz exaustiva análise do
é considerado norma constitucional não problema da aplicação do método pondera-
escrita, derivada do próprio Estado de Di- tivo no caso de colisão entre princípios de
reito (BARROSO, 1998, p. 213). natureza constitucional fundamental, utili-
zando, inclusive, demonstrações com recur-
4.2. A proporcionalidade e os direitos sos à lógica simbólica. Resumiremos em
fundamentais poucas linhas algumas das suas conside-
O maior problema colocado pela Ciên- rações sobre o tema.
cia Jurídica atualmente é sobre a aplicabili- O autor parte do pressuposto de que nor-
dade do princípio da proporcionalidade em mas-regra se excluem e normas-princípio sim-
casos de restrições legislativas a direitos plesmente colidem. Disso decorre que, num
fundamentais individuais. conflito entre regras que geram conseqüênci-

132 Revista de Informação Legislativa


as contraditórias, uma delas, pelo menos, que en el principio desplazado haya que
deverá ser considerada inválida, caso a con- introducir una cláusula de excepción, más
tradição não possa ser eliminada mediante a bien lo que sucede es que, bajo ciertas circuns-
introdução de uma cláusula de exceção. tancias uno de los principios precede al otro. Bajo
Sobre esse tema, Emilio Betti considera otras circunstancias, la cuestión de la preceden-
que os conflitos entre normas jurídicas no cia puede ser solucionada de manera inversa”
tempo são considerados como geradores de [grifo nosso] (1993, p. 89).
lacunas de colisão, “colisión entre las discre- É isso que significa dizer que um princí-
pantes valoraciones legislativas viejas y pio tem “maior peso” que outro, ou seja, não
nuevas”, surgindo a necessidade de elimi- se trata de invalidade, pois que ambos prin-
ná-las, segundo a exigência de um cânone cípios são igualmente válidos; a questão é
hermenêutico fundamental, qual seja, o da que, diante de certas circunstâncias fáticas,
totalidade hermenêutica. Assim, a aplicação um irá prevalecer (apenas naquele caso con-
das velhas regras de escolha sobre conflitos creto) sobre o outro. A isso se chama “mais
entre normas contraditórias, com a preva- peso”, e não validez ou invalidez, pois, se a
lência da lex posterior sobre a lex anterior, ou questão é de validade, há necessariamente
da lex especialis sobre a lex generalis, com a a exclusão do que não é válido, o que não se
reserva de que a lex posterior generalis non verifica no caso de colisão entre princípios.
derogat legi priori special (desde que não haja Para a solução de colisões entre princí-
absorção total da matéria), nada mais é do pios, aparece a figura da “ponderação de
que aplicações particulares daquele câno- bens”, realizada constantemente pelo Tri-
ne fundamental. bunal Constitucional Alemão, ao que Alexy
Hipótese distinta, assevera Betti, é o caso recorre para dar muitos exemplos.
de incongruência ou desarmonia, que pode as- Tomados em si mesmos, os princípios
sumir o caráter de uma “inconstitucionali- podem limitar a possibilidade jurídica do
dade material sobrevinda” quando a lei pos- cumprimento do outro. Porém, como já es-
terior confluente seja constitucional (uma su- clarecemos, isso não quer dizer que se inva-
perlei). No que diz respeito a leis que tenham lidam, mas que um terá prevalência sobre o
surgido anteriormente com procedimento outro sob certas condições oferecidas pelo caso
formal regular, “puede hablar-se de una in- concreto, o que Alexy chama “relação de
validación sucesiva de la ley sólo respecto precedência condicionada”.
del contenido de la disciplina jurídica, y no A questão sobre a violação do princípio
ya en el sentido de una inconstitucionali- da proporcionalidade ocorre quando há
dad formal sobrevenida, obstando a ésta el dois princípios, como tais presumidos igual-
postulado general de la persistencia de los mente válidos, que regulam de maneira di-
valores jurídicos, que se hace valer también versa interesses confluentes e conflitantes,
en la conservación de los preceptos jurídi- e um deles deverá ser necessariamente ex-
cos” (1975, p. 119-120). cluído diante das circunstâncias de fato.
Alexy entende que, no caso de colisões Alexy cita um caso concreto: a possibilida-
entre princípios, a solução é totalmente dis- de de realização de uma audiência oral con-
tinta, não se valendo das regras menciona- tra um acusado que, devido à tensão pró-
das por Betti. Assim esclarece: “Cuando dos pria de tais atos, corre o risco de sofrer um
principios entram en colisión – tal como es enfarto (p. 90). Tal conflito deve ser solucio-
el caso cuando según un principio algo está nado, segundo o autor, recorrendo-se a uma
prohíbido y, según otro principio, está per- ponderação dos bens em questão: o dever
mitido – uno de los dos principios tiene que do Estado de garantir uma aplicação ade-
ceder ante el otro. Pero, esto no significa de- quada do direito penal e o interesse do
clarar inválido al principio desplazado ni acusado em salvaguardar direitos funda-

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mentais garantidos pela constituição (direi- en la medida en que es obligatoria
tos individuais à vida e integridade física e desde un punto de vista lógico y siste-
moral), cuja proteção também compete ao mático. Este planteamiento implica
Estado. que cuanto más intensa sea la inter-
Se da ponderação resultar que o interes- vención en el ejercicio de un derecho
se do acusado tem, no caso concreto em ques- fundamental a causa de la protección
tão, peso maior que a intervenção estatal no de los derechos de terceras personas
sentido de realizar a audiência oral, e, se o bienes jurídicos de rango constitu-
ainda assim, a audiência for realizada, ha- cional, mayor debe ser la jerarquía de
verá discrepante violação ao princípio da las razones que justifiquen dicha inter-
proporcionalidade. vención”(1994, p. 284-285).
Como já anotado acima, o princípio da
proporcionalidade se materializa na pon- 4.2.2. Proporcionalidade como
deração, que implica a melhor adequabili- coordenação
dade dos meios aos fins. E a melhor ade- Konrad Hesse já coloca a questão em
quação é aquela que também é exigível, ne- outros termos. Defende a tese de que a coli-
cessária, em última análise, a menos preju- são entre direitos deve ser solucionada não
dicial ao “interesse fundamental” oposto. pela ponderação de bens, mas pelo princí-
Repetimos: o meio é adequado quando, com pio da concordância prática, segundo o qual
o seu auxílio, pode-se promover o resultado “os bens protegidos jurídico-constitu-
desejado; ele é exigível quando não se pode- cionalmente devem, na resolução do
ria ter escolhido outro que, apesar de igual- problema, ser coordenados um ao ou-
mente eficaz, traria como conseqüência o tro de tal modo que cada um deles
prejuízo ou limitação ao exercício de algum ganhe realidade” (1998, p. 66).
direito fundamental. Ora, se o objetivo de O princípio da unidade da Constituição
dar satisfatória aplicabilidade ao direito imprime a necessidade de que a eficácia sa-
penal pode ser alcançado por outra via que tisfatória dos bens por ela tutelados só pos-
não a audiência oral e que não coloque em sa ser alcançada quando traçados limites
risco a vida do acusado, é mais ponderado de exercício para ambos, o que ele chama
que se recorra a essa outra via, e não que se “tarefa de otimização”. “Os traçamentos dos
coloque em risco uma vida. Mesmo porque, limites devem, por conseguinte, no respecti-
segundo o conceito de que o processo é a vo caso concreto, ser proporcionais; eles não
reconstituição dos fatos ocorridos, nessa re- devem ir mais além do que é necessário para
constituição pode ficar provado que o acu- produzir a concordância de ambos os bens
sado sequer cometeu algum crime. O objeti- jurídicos” (p. 67).
vo da audiência é comprovar a realidade A crítica que Hesse faz ao critério da
dos fatos alegados, realizar a justiça formal ponderação de bens é o fato de que a finali-
e não prejudicar institucionalizadamente a dade da proporção fica sempre adstrita à
vida ou integridade física de alguém. E se variabilidade dos meios, fazendo prevale-
assim o juiz procedesse, insistindo na reali- cer um determinado valor de acordo com os
zação da audiência, poderia estar mesmo elementos dados num caso. Proporção para
incorrendo em dolo eventual. Hesse é justamente uma “coordenação”,
Ao pensamento de Alexy aditamos o pa- definida por uma necessidade a priori im-
recer de Juan Carlos Gavara de Cara, para posta pela unidade constitucional de que
quem os bens devem alcançar a sua máxima efi-
“el principio de proporcionalidad cácia em acordo com outros bens que tam-
significa que la norma más débil es bém devem alcançar sua eficácia. Assim,
desplazada en su aplicación tan solo não há precedência de princípios, segundo

134 Revista de Informação Legislativa


a variação de dados concretos, mas uma pré- para o rigor da regra de que não há formal-
determinação principiológica de que bens mente graus distintos de hierarquia entre
devem ser coordenados autolimitativamente normas de direitos fundamentais – todas se
nas suas eficácias. E exemplifica com o pro- colocam no mesmo plano –, chega-se de ne-
blema da liberdade de opinião versus lei geral cessidade ao ‘princípio da concordância
limitadora, em que deve haver uma coorde- prática’, cunhado por Konrad Hesse, como
nação proporcional entre o exercício da liber- uma projeção do princípio da proporciona-
dade de opinião e os bens jurídicos protegi- lidade” (1996, p. 386-387). Como podemos
dos pela lei geral. A proporcionalidade é, nes- observar, o constitucionalista adere à posi-
se sentido, uma diretiva de coordenação para ção de Hesse, que não admite hierarquia
os casos particulares, diretiva essa que, se- entre normas de direitos fundamentais. Re-
gundo Hesse, falta ao critério da ponderação lembrando, o princípio da concordância
de bens, “que cai sempre no perigo de aban- prática implica a concepção de que os bens
donar a unidade da Constituição” (p. 67). jurídicos sob análise devem sofrer limitações
recíprocas e necessárias para que, no caso
4.2.3. Proporcionalidade como concreto, possam vir a ter a maior efetividade
ponderabilidade possível, não se cogitando de uma “hierar-
Ao mencionarmos “ponderabilidade”, quia entre eles”(DINIZ, 1998, p. 344-345). A
referimo-nos ao critério de hierarquização jurística constitucionalista adere quase una-
que, segundo o jusfilósofo mineiro Joaquim nimemente a essa posição.
Carlos Salgado, deve haver no momento da Alexy, como vimos, acaba por defender
aplicação dos direitos fundamentais, já que a possibilidade de uma hierarquização, não
se consubstanciam, acima de tudo, em “va- em nível formal, quando da declaração da-
lores fundamentais”. Segundo ele, há uma queles direitos, visto que a Constituição não
resistência entre os constitucionalistas em hierarquiza os direitos considerados por ela
admitir o conceito de “hierarquia”, ao se igualmente fundamentais, mas em sede de
referirem a direitos fundamentais. Disso aplicação. Se se admitisse a priori uma hie-
decorrem propostas como “coordenação” de rarquia, alguns deixariam de ser tão funda-
normas dessa natureza, ou “colisões” entre mentais quanto outros, o que estabeleceria
princípios de tal índole, que devem ser so- infinitamente um grupo menor de “direitos
lucionadas por ponderações de bens, etc. O fundamentais”, levando ao último, o mais
que não se cogita é estabelecer uma hierar- fundamental dos direitos, o que é totamente
quia entre direitos considerados igualmente incompatível com o paradigma de Estado
fundamentais. A questão é analisada em ou- que declara direitos. No entanto, já há o di-
tros termos quando levada à Filosofia do Di- ferencial de cada um ter sua esfera de inci-
reito, especificamente à axiologia jurídica. dência própria, como adverte Hesse.
Todo o problema da questão gira em tor- Mas o problema salta quando se fala em
no do conceito de hierarquia, dos sentidos solução de conflitos ou colisões entre direi-
em que é tomado e do momento em que é tos fundamentais. A questão é complexa,
empregado. Afinal, há ou não a possibili- pois aqui aparecem figuras clássicas do di-
dade de se estabelecer uma “hierarquia en- reito, tais como “o interesse das partes”, “a
tre direitos fundamentais” e, se de fato exis- pretensão resistida”, “o terceiro neutro e
te tal hierarquia, em que momento e como equidistante” que pretende a melhor solu-
ela realmente aparece? ção, ainda que por equiprobabilidade, sen-
Paulo Bonavides ressalta que nenhuma do que, em última instância, haverá de se
norma constitucional deve ser interpretada recorrer a uma opção pelo “melhor direito”
em contradição com outra norma da Cons- (expressão herdada do direito privado ar-
tituição: “atentando-se, ao mesmo passo, caico, mas que deve ter acepção ampliada).

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Veja: formalmente todos aqueles direitos titucionalistas é a tentativa de solucionar o
estão em pé de igualdade, mas quando apa- problema dos direitos fundamentais, pro-
rece o conflito de interesses, ainda que se blema axiológico por excelência, intrassiste-
tente solucionar o problema de maneira co- maticamente, o que não se resolve com crité-
ordenada, de modo que cada um alcance rios jurídicos simplesmente. Tal erro se as-
sua realidade, como propõe o princípio da semelha à tentativa epistemológica kelse-
proporcionalidade de Hesse, fato é que o niana em explicar o sistema jurídico a par-
interesse de uma das partes terá de se sobre- tir dele mesmo, o que o levou a recorrer a
por ao da outra, para que seja efetivamente uma espécie de deus ex machina sob a forma
exercido. de norma fundamental.
Evidentemente se se está diante de uma Soluções de índole axiológica não são
situação jurídica em que não é possível o possíveis senão pela superação filosófica,
exercício absoluto de dois direitos ao mes- com recurso às categorizações da Filosofia
mo tempo, um será exercido e outro não. do Direito. É da natureza do valor a hierar-
Pode-se argumentar que, na verdade, um foi quia, ou seja, a preponderância de um valor
exercido limitadamente em face do outro, sobre o outro8. Ao incorporá-los em declara-
pois este era o alcance máximo de sua reali- ções de direitos, as Constituições não os
dade (Hesse); mas veja que, para se delimi- desfiguram dos seus respectivos pesos, em-
tar esse alcance máximo, terá sido necessá- bora do ponto de vista formal sejam aparen-
rio previamente ter comparado as possibili- temente iguais. Por isso que o critério de so-
dades de “alcances máximos” dos dois di- lução de qualquer antinomia entre direitos
reitos. E porque prevaleceu um deles é que fundamentais é o da ponderabilidade, segun-
foi possível estabelecer o alcance máximo do o qual há prevalência de uns sobre os
de cada um. Ou seja, o alcance axiológico de outros no momento da aplicação, conside-
um foi mais amplo do que o alcance axiológi- rando-os sempre como valores que são e que
co do outro. Isso significa que o alcance de não deixam de ser por estarem positivados
cada um fica condicionado pelo alcance do em cartas jurídicas (SALGADO, 1998b).
outro dialeticamente, o que reclama, em últi- Ponderabilidade (tal qual coercibilidade), por-
ma análise, o estabelecimento de uma hierar- que sempre há possibilidade de sopesamen-
quia que possibilite pôr fim à controvérsia. to em instância de aplicação, mas que ja-
Ressaltemos uma vez mais que a hierar- mais macula a declaração universal positi-
quia não se estabelece formalmente, como va e formal. Semelhante à coercibilidade, que
previne Bonavides, mas no momento da nunca afasta do fenômeno jurídico a possi-
aplicação é que se faz necessária, não como bilidade de convivência entre cumprimento
identificação pré-estabelecida na lei, mas ex- forçado e cumprimento espontâneo do pre-
traída de todo um esforço exegético-axiológi- ceito normativo.
co para solver o conflito. A essa proposta
hermenêutica Joaquim Carlos Salgado de- 5. A proporcionalidade e o devido
nomina “princípio de ponderabilidade”, o processo legal
que esclarece: “há uma ‘hierarquia ou pon-
deração’, segundo a formação escalonada O princípio da proporcionalidade é tido
da própria ordem valorativa”, que não se hoje como princípio norteador da própria
confunde com o “pesar” dos alemães, que atividade do poder legislativo, que pode ser
parte de uma hermenêutica lógica, e não questionada judicialmente quanto a sua ra-
axiológica (1996b, p. 32-33), aqui proposta. zoabilidade. “Fica assim erigido em barrei-
Nesses termos, o posicionamento crítico ra ao arbítrio, em freio à liberdade de que, à
do filósofo dirige-se para a conclusão de que primeira vista, se poderia supor investido o
a falácia da discussão entre os juristas cons- titular da função legislativa para estabele-

136 Revista de Informação Legislativa


cer e concretizar fins políticos. Em rigor, não b) o direito de arrolamento de testemu-
podem tais fins contrariar valores e princí- nhas, que deverão ser intimadas para com-
pios constitucionais; um destes princípios parecer perante a justiça;
vem a ser precisamente o da proporcionali- c) o direito ao procedimento contraditó-
dade, princípio não escrito, cuja observân- rio;
cia independe de explicitação em texto cons- d) o direito de não ser processado por
titucional, porquanto pertence à natureza e leis ex post facto;
essência do Estado de Direito” (BONAVI- e) o direito de igualdade com a acusa-
DES, 1994, p. 283). ção;
No constitucionalismo alemão, o princí- f) o direito de ser julgado mediante pro-
pio é invocado como o próprio fundamento vas e evidência legal, e legitimidade obtida;
do moderno Estado de Direito. Já no consti- g) o direito ao juiz natural;
tucionalismo americano, encontra sua sede h) o privilégio contra a auto-incrimina-
no devido processo legal substantivo. Nos ção;
Estados Unidos, o devido processo é consi- i) a indeclinabilidade da prestação ju-
derado o princípio por excelência do Esta- risdicional quando solicitada;
do Democrático de Direito, estando aí em- j) o direito aos recursos;
butida a idéia de proporcionalidade ou ra- l) o direito à decisão com eficácia de coi-
zoabilidade, como um de seus variados con- sa julgada” (1989, p. 175-176).
teúdos. O art. 44 do projeto constitucional de
1988 previa o princípio da razoabilidade
6. O princípio da proporcionalidade e como requisito de legitimidade dos atos da
o devido processo legal no sistema administração pública, o que foi suprimido
jurídico brasileiro da redação final. No entanto, ficou o princí-
pio inscrito na cláusula do devido processo
A Constituição Brasileira de 1988 posi- legal, nos moldes americanos.
tivou o devido processo em seu art. 5º, inci- Assim, há uma tendência da Doutrina
so LIV, mas, no nosso sistema, não tem o em afirmar que o princípio da proporciona-
mesmo significado que no americano, pois lidade, que não está expressamente positi-
a própria Constituição elenca todas as prin- vado na Constituição, tem sua referência
cipais garantias processuais (contraditório, normativa na positivação do devido proces-
ampla defesa, juízo competente etc), o que so legal. Outra tendência, de bases germâ-
corresponderia ao devido processo adjetivo; nicas, entende ser o princípio inerente ao
e ainda elenca exaustivamente todos os direi- Estado de Direito, sendo desnecessária sua
tos e garantias fundamentais individuais, co- inscrição constitucional nesse sentido.
letivas, sociais e políticas, o que corresponde- De qualquer modo, juízes e tribunais bra-
ria ao devido processo substantivo. sileiros “têm encontrado no princípio da ra-
Alguns autores interpretaram sua ado- zoabilidade, direta ou indiretamente, funda-
ção pelo sistema jurídico brasileiro no seu mento constante para as suas razões de deci-
sentido estritamente adjetivo, como Pinto dir”. Podemos exemplificar com os seguintes
Ferreira, que assim o definiu: “o devido pro- votos proferidos em Tribunais de Justiça:
cesso legal significa o direito a regular o “É de se deferir liminar em ação
curso da administração da justiça pelos juí- direta de inconstitucionalidade com
zes e tribunais. A cláusula constitucional relação a lei estadual que determina a
abrange de forma compreensiva: pesagem de botijões de gás liquefeito
a) o direito à citação, pois ninguém pode de petróleo entregues ou recebidos
ser acusado sem ter conhecimento da acu- para substituição à vista do consumi-
sação; dor. Além de violação ao princípio da

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proporcionalidade e razoabilidade das de ação em que há o mais e o menos também
leis restritivas de direitos, há evidente há o igual.
plausibilidade jurídica da argüição “Se, pois, o injusto é iníquo, o justo é eqüi-
que aconselha a suspensão cautelar tativo, como aliás pensam todos mesmo sem
da lei impugnada, a fim de evitar da- discussão. E, como o igual é um ponto inter-
nos irreparáveis à economia do setor, mediário, o justo será um meio-termo” (1991,
no caso de vir a ser declarada a in- p. 84-85).
constitucionalidade.” O eqüitativo e o justo são, na verdade, a
“A norma legal que concede ao ser- mesma coisa, com uma única diferença, que
vidor inativo vantagem pecuniária torna o eqüitativo melhor:
cuja razão de ser revela absolutamen- “lo equitativo, siendo justo, no es lo
te destituída de causa... ofende o prin- justo legal, sino una dichosa rectifica-
cípio da razoabilidade, que atua, en- ción de la justicia rigurosamente le-
quanto projeção caracterizadora da gal. La causa de esta diferencia es que
cláusula do substantive due process of la ley necesariamente es siempre ge-
law, como insuperável limitação ao neral, y que hay ciertos objetos sobre
poder normativo do Estado” (BARRO- los cuales no se puede estatuir conve-
SO, 1998, p. 217-219). nientemente por medio de disposicio-
Alguns autores ressaltam que o princí- nes generales” (ARISTÓTELES apud
pio da proporcionalidade ainda se mostra GARCIA MAYNES, 1956, p. 373).
de forma muito acanhada no sistema jurídi- Ponderar é justamente estabelecer um
co brasileiro, dado o apego à clássica con- meio termo entre propostas radicais, fazen-
cepção da separação dos poderes e da dis- do concessões a ambas, pois se o excesso é o
cricionariedade dos atos do poder público, mal, a carência também o é, como ensinava
principalmente do poder político, que se en- Aristóteles.
contra hoje quase todo concentrado nas O próprio conceito de direito traz em si a
mãos da cúpula do Poder Executivo, com concepção do adequado. O jus, diz o filóso-
suas “infindáveis Medidas Provisórias”9. fo Henrique Cláudio de Lima Vaz, é o que é
adequado ao indivíduo na sociedade. Daí
7. Ainda algumas considerações conceber-se a característica da eunomia da
sobre o tema lei, que, segundo o filósofo, é o fato de a lei
ter de necessariamente ser aplicada eqüita-
Não poderíamos finalizar este estudo so- tivamente. E ainda segundo ele, não ser pos-
bre tema tão festejado na contemporaneida- sível uma eqüidade aritmética que implica-
de, sem antes suscitar, ainda que de forma ria “dar um pedacinho da lei para cada um”,
acanhada, mais uma questão jusfilosófica. mas ela é por excelência geométrica, ou seja,
Todo esse desenvolvimento remonta, a aplicação da lei segundo as necessidades
como assegura o professor Joaquim SALGA- colocadas em questão. Assim, o conceito de
DO (1997b), a um tema antigo em direito: a eqüidade sempre ronda o direito, não só
eqüidade, que segundo ele não aparece sim- como método de integração normativa, mas
plesmente como método de integração de la- como próprio critério de aplicação da lei (em
cunas jurídicas. É ela o supremo princípio sentido amplo, envolvendo, inclusive, prin-
do direito, tanto na sua fase de formação cípios jurídicos), que, se for aplicada em todo
como elaboração, quanto na de aplicação o seu rigor, levada aos seus extremos, acaba
(que engloba a integração). por gerar injustiça. Como sempre enfatiza
A eqüidade é definida por Aristóteles Padre Vaz, summum jus, summa in juria (1997).
como ponto intermediário, uma espécie de Salgado enfatiza que se tem restringido
termo proporcional, pois que em toda espécie muito o conceito de eqüidade, como o justo

138 Revista de Informação Legislativa


no caso concreto. O conteúdo da eqüidade tais, moderna conquista positivante dos
como princípio supremo do direito, como imemoriais direitos naturais.
idéia imanente ao fenômeno jurídico, ultra- A fórmula due process of law padece de
passa em muito o seu caráter metodológico, imprecisão técnica, pois que o conceito de
ou seja, como um caminho corretivo dos ri- processo não engloba, na sua essência, di-
gores legais. Para ele, a proporcionalidade reitos de natureza tão substanciais como
(ou razoabilidade) embutida no devido pro- direito à vida, à liberdade, à integridade fí-
cesso legal nada mais é do que manifesta- sica e moral etc; de índole substantiva ou
ção do princípio supremo da eqüidade, que material. Há uma imprecisão técnica na ex-
se traduz, em última instância, na adequa- pressão “devido processo legal substanti-
bilidade dos meios aos fins aristotélica. É vo”. No entanto, se foi essa fórmula que des-
aquela razão ou proporção imanente à pró- pertou a comunidade jurídica americana
pria idéia de direito, seja no momento da para a necessidade de se resguardarem di-
elaboração, seja no momento de aplicação reitos fundamentais num Estado considera-
das leis e princípios. É o que o jurista vai do de Direito, o discurso (ou a intenção) é vá-
encontrar como a ratio suprema do fenôme- lido, apesar da falta de rigor terminológico.
no jurídico. O princípio da proporcionalidade como
Nessa perspectiva, temos valiosa contri- critério de compatibilização de direitos fun-
buição de Recacens Siches, para quem o pro- damentais e controle dos atos do poder pú-
blema da eqüidade não é o de corrigir a lei, blico é expressão suprema da grande evolu-
ao aplicá-la a determinados casos particu- ção por que tem passado o Estado de Direi-
lares: “no se trata de ‘corregir la ley’. Se tra- to, que caminha hoje para sua efetivação
ta de otra cosa: se trata de ‘interpretarla ra- como verdadeiro Estado Social de Direito.
zonablemente’” [grifo nosso] (1975, p. 654). Pouca relevância tem a discussão sobre a
Do exposto, podemos deduzir que, ao in- sua expressão no devido processo ou sua
terpretar-se uma lei para aferir se seu con- autonomia principiológica, como “princípio
teúdo está ou não em consonância com o não-escrito próprio do Estado de Direito”. Na
princípio supremo da razoabilidade (ou verdade, cada sistema conseguiu, dentro do
proporcionalidade) contido na expressão seu momento histórico-cultural, dentro das
substantiva do due process of law, está-se, in- suas possibilidades jurídico-conceptuais,
discutivelmente, submetendo essa lei ao ri- compreendê-lo e torná-lo um ditame moder-
goroso “controle” do justo razoável expres- no da justiça, ou da “liberdade objetivada na
so na idéia de eqüidade. ordem jurídica”, o que os antigos chamavam
simplesmente de epiékeia ou equitas.
8. Tripla conclusão: sistêmica,
técnica e ontológica
Notas
Da tentativa de apreensão do verdadei-
ro significado do princípio da proporciona- 1
“O Estado social é o que declara, como sua
lidade e do devido processo legal, concluí- finalidade central, a realização da justiça social e,
por isso, dos direitos sociais”, assinalando “a con-
mos que, enquanto matéria de natureza cons- vergência das dimensões do poder e da liberdade
titucional, as garantias processuais, sejam no processo civilizatório do Ocidente” (SALGA-
expressas numa fórmula como “o devido DO, 1996, p. 40 e 1997a, p. 4-5).
processo legal”, sejam expressamente decla- 2
Anunciamos, desde já, que a expressão des-
radas na Constituição, são garantias típi- ses direitos apontados pelo Professor Baracho na
Constituição Brasileira vigente é o inciso LIV do
cas dos Estados Democráticos de Direito, art. 5º, que positivou expressamente o chamado
que asseguram garantias processuais em “devido processo legal”, o que desenvolveremos
nível e sob a forma de direitos fundamen- em momento oportuno.

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3
Tema atualíssimo é a questão da aplicação 6
Luís Roberto Barroso esclarece que os alemães
dos direitos fundamentais hoje pela Comunidade preferem o uso do termo “proporcionalidade”, mais
Européia, sobre o qual José Alfredo Baracho susci- utilizado como razoabilidade entre os americanos.
ta questão: “Surge uma multiplicidade de ques- Todavia pode um termo ser tomado pelo outro
tões em relação a uma satisfatória interpretação do (1998, p. 204).
espírito e da letra do tratado institutivo da Comu- 7
Pronunciamento do Tribunal Constitucional
nidade, colocando-se em relevo a questão da esta- Alemão, citado por Luís Roberto BARROSO (1998,
bilidade do ordenamento comunitário, para prote- p. 208).
ção adequada dos direitos fundamentais do cida- 8
São características do valor a sua transcendên-
dão, reconhecidos pelo Direito constitucional dos cia, a sua dialética (valor e contravalor convivem
Estados. Prevendo o amplo exercício do poder, por necessariamente) e a sua hierarquização (pois que
parte dos órgãos normativos comunitários, o trata- valores não são iguais, senão, não seriam valores,
do institutivo da Comunidade Européia não con- havendo a necessidade de hierarquizá-los em face
tém uma declaração ou catálogo dos direitos fun- da sua heterogeneidade) (VAZ, 1997).
damentais, que devessem ser respeitados pelo exer- 9
Nesse sentido, ver a obra supracitada de Luís
cício desse poder. A Corte de Justiça da Comuni- Roberto BARROSO (1998, p. 213-216), e as severas
dade Européia elaborou construção em nível de críticas de Suzana de Toledo Barros a voto proferi-
direitos humanos, de conformidade com a inter- do pelo Ministro Francisco Rezek no Supremo Tri-
pretação do direito escrito comunitário... Todavia bunal Federal (1996, p. 173-176).
uma satisfatória interpretação do direito comuni-
tário escrito encontra lacunas em questões de direi-
to fundamental, pelo que só reconhece de maneira
limitada aos intentos de garantir o respeito dos di-
reitos fundamentais. A Corte de Justiça forneceu Bibliografia
uma relevante contribuição para o desenvolvimen-
to do ordenamento comunitário mediante amplo ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamenta-
recurso e elaboração do ‘princípio geral do direi- les. Madrid: Centro de Estudios Constituciona-
to’..., princípio deduzido do direito interno do Es- les, 1993.
tado-membro, de conformidade com uma certa
convergência do sistema jurídico nacional” (BA- ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. São Paulo: Nova
RACHO, 1998b, p. 5). O autor acrescenta que a Cultural, 1991. (Os Pensadores).
discussão sobre um “catálogo” europeu de direi-
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. A corte cons-
tos fundamentais, bem como a tutela dos mesmos
titucional, o direito interno e o direito comunitário.
pela Corte de justiça da Comunidade européia, tem
O Sino do Samuel, Belo Horizonte, ago. 1998. Facul-
suscitado relevantes questões no que concerne ao
dade de Direito da UFMG.
controle de constitucionalidade em matéria de di-
reitos fundamentais. “A tradição constitucional, ______. Processo constitucional. Rio de Janeiro: Fo-
como instrumento internacional, relativo à tutela rense, 1984.
dos direitos do homem, dos Estados membros que
cooperam e aderiram, tem relevância” (BARACHO, ______. Processo e constituição: o devido processo
1998a, p. 4). legal. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, v. 28,
4
Acrescentamos aqui a distinção feita pela dou- maio/out. 1980/1982.
trina em geral entre “direitos” e “garantias”: os di- ______. Teoria do processo civil comunitário: a tutela
reitos são bens e vantagens conferidos por normas jurisdicional comunitária. (Apostila).
jurídicas; garantias são meios destinados a fazer
valer esses direitos, são instrumentos pelos quais ______. Tutela dos direitos fundamentais e as re-
se asseguram o exercício e gozo daqueles bens e gras gerais de processo na prática e na jurisprudên-
vantagens (SILVA, 1998, p. 413). cia da comunidade européia. O Sino do Samuel, Belo
5
Acrescentamos que o autor não usa o termo Horizonte, maio 1998, Faculdade de Direito da
ideologia “no sentido reducionista de interesses de UFMG.
classe, mas de um conjunto de idéias que dá uni-
BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da propor-
dade à cultura de um povo, embora possa ser usa-
cionalidade e o controle de constitucionalidade das leis
da no interesse de uma classe ou facção, às vezes
restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília
de modo deformado... Um partido político, por
Jurídica, 1996.
exemplo, tem na sua ideologia um projeto para
toda a sociedade e não apenas para o grupo” (SAL- BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da
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