Você está na página 1de 7

Reflexão - 891 -

http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072015002660014

CAUSAS DE OBESIDADE INFANTOJUVENIL: REFLEXÕES SEGUNDO A


TEORIA DE HANNAH ARENDT

Larissa Soares Mariz1, Bertha Cruz Enders2, Viviane Euzébia Pereira Santos3, Francis Solange Vieira
Tourinho4, Caroline Evelin Nascimento Kluczynik Vieira5

1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação de Enfermagem (PGENF) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN). Natal, Rio Grande do Norte, Brasil. E-mail: larissamariz@gmail.com
2
Doutora em Enfermagem. Professora convidada do PGENF/UFRN. Natal, Rio Grande do Norte, Brasil. E-mail: bertha@
ufrnet.br
3
Doutora em Enfermagem. Professora do PGENF/UFRN. Natal, Rio Grande do Norte, Brasil E-mail: vivianeepsantos@gmail.
com
4
Doutora em Saúde da Criança e do Adolescente. Professora do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de
Santa Catarina. Professora do PGENF/UFRN. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. E-mail: francis.tourinho@ufsc.br
5
Doutoranda do PGENF/UFRN. Natal, Rio Grande do Norte, Brasil E-mail: carolinekluczynik@gmail.com

RESUMO: O objetivo do estudo foi refletir sobre as causas da obesidade para além do físico, genético e biológico, partindo do
entendimento da condição humana e das relações econômicas e sociais associadas. Tomou-se por base os pressupostos da Condição
Humana de Hannah Arendt e literatura pertinente. O ciclo gerado pela saciedade e falta, somado ao avanço tecnológico imposto
pela sociedade moderna, traz consigo um estilo de vida consumista e sedentário, afetando o estado de saúde dos filhos, a educação
nutricional e o acúmulo de gordura corporal nas pessoas. Percebe-se que as causas da obesidade ultrapassam o resultado direto da
ingestão calórica maior do que o gasto energético, tornando-se necessário considerar o meio social e econômico em que o indivíduo
está inserido. Os profissionais de saúde necessitam compreender a relação do ser com os fatores socioeconômicos, culturais e políticos
que condicionam a presença de obesidade em crianças e adolescentes.
DESCRITORES: Obesidade. Crianças. Adolescentes.

CAUSES OF INFANTILE-JUVENILE OBESITY: REFLEXIONS BASED ON


THE THEORY OF HANNAH ARENDT

ABSTRACT: The objective of this study was to reflect on the causes of obesity beyond physical, genetic and biological factors. It
is based on the understanding of the human condition and its associated economic and social relationships, derived from Hannah
Arendt’s Theory of The Human Condition and relevant literature. The satiety-need cycle and the technological advances of modern
society cause consumerism, a sedentary lifestyle that affects children´s health and nutritional education, and an increase of body fat in
people. The causes of obesity surpass the direct results of excessive caloric intake and indicate the need to consider the person’s social
and economic context. Health professionals need to understand the existing relationship of the self with the socioeconomic, cultural,
and political factors that determine obesity in children and adolescents.
DESCRIPTORS: Obesity. Children. Adolescents.

CAUSAS DE LA OBESIDAD INFANTIL: REFLEXIONES SEGUNDO LA


TEORÍA DE HANNAH ARENDT

RESUMEN: El objetivo de este estudio fue reflejar sobre las causas de la obesidad más allá de la condición física, genética y biológica,
de acuerdo con los aportes de la condición humana y las relaciones económicas y sociales de la Condición Humana de Hannah
Arendt y la literatura pertinente. El circulo de saciedad y necesidad, y los efectos de los avances tecnológicos en la sociedad moderna
traen el consumismo, estilo de vida sedentaria que afecta la salud y la educación nutricional de los niños, y el aumento de la gordura
corporal. Las causas de la obesidad exceden los resultados de la ingestión de calorías más de lo necesario, lo que indica la necesidad
de considerar el ambiente socioeconómico de la persona. Profesionales de la salud necesitan comprender la relación entre los factores
socioeconómicos, culturales e políticos que determinan la obesidad en niños y adolescentes.
DESCRIPTORES: Obesidad. Niños. Adolescentes.

Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2015 Jul-Set; 24(3): 891-7.


- 892 - Mariz LS, Enders BC, Santos VEP, Tourinho FSV, Vieira CENK

INTRODUÇÃO cas, na medida em que os seus significados mais


profundos são entendidos.
O sobrepeso/obesidade é o agravo nutri-
cional que mais preocupa neste início do século Tal reflexão torna-se pertinente, haja vista
21, tanto pelo incremento rápido e progressivo que, apesar de os estudos epidemiológicos terem
na sua prevalência quanto pelo fato de o fenô- sua parcela de contribuição na construção de co-
meno ocorrer em todas as fases da vida, desde nhecimento e nortearem, muitas vezes, as ações de
crianças a idosos, como é possível perceber na saúde pública, o mecanismo que aposta em rela-
alta prevalência de idosos com excesso de peso.1 ções lineares de causa e efeito, quando se baseia
Destaca-se, sobremaneira, a situação em crianças numa representatividade numérica e esvaziada
e adolescentes, visto que os agravos nessa faixa de sentidos, não permite um aprofundamento nos
significados que constituem as várias facetas de
etária perduram por toda a vida.2
um objeto complexo. Nesse sentido, entende-se
Dados nacionais dos anos de 2008 e 2009 como fundamental a necessidade de construir uma
revelaram que uma em cada três crianças de cinco compreensão filosófica do fenômeno complexo do
a nove anos estava com sobrepeso ou obesidade. sobrepeso/obesidade e os fatores socioeconômi-
Entre os adolescentes, 21,7% do sexo masculino e cos, com vistas a colaborar na elaboração de ações
19,4% do sexo feminino apresentaram esse pro- de controle.
blema. Esses resultados reafirmaram o sobrepeso
Além disso, quando tratamos de obesidade,
como o principal desvio nutricional nessa faixa
principalmente em crianças e adolescentes, há uma
etária.3
lacuna na construção do conhecimento filosófico
As crianças e adolescentes estão subordi- que nos conduza ao entendimento dos aspectos
nados às condições socioeconômicas e culturais causais, bem como suas consequências e ações
das suas famílias, o que influencia a prática de para o controle da mesma.
atividade física, a quantidade e o tipo de alimen- Diante desse contexto, pretende-se, com
tos disponíveis. Somado a isso, a atual geração de este estudo, apresentar uma contribuição para a
crianças e adolescentes tem livre acesso às tecno- compreensão da obesidade em sua relação com
logias como computadores, videogames, celulares a condição socioeconômica como fator causal
e tablets, sem limite do tempo de permanência da doença, na perspectiva filosófica de Hannah
em frente das telas. Esse acesso favorece ao maior Arendt sobre a existência humana e o consumismo.
tempo investido em atividades que exigem menor
Hannah Arendt (1906-1975), filósofa política
gasto energético.4 Derivam-se, assim, os fatores
alemã de origem judaica, aborda a condição huma-
que predispõem toda a família ao excesso de peso,
na e a sua temporalidade. A reflexão que a autora
devido à contribuição do ambiente obesogênico.5
faz acerca da prática política do ser humano é
Sabe-se que a obesidade pode ser conceitua- evidenciada na tríade de atividade: trabalho, labor
da como uma condição de etiologia multifatorial, e ação. O primeiro elemento da tríade se exerce
resultante do desequilíbrio entre a ingestão caló- como suprimento das necessidades biológicas
rica e o gasto energético, assim como pode ser de- humanas (homo laborans), o segundo, como forma
terminada por fatores genéticos, fisiopatológicos, de transformar a natureza em objetos duráveis
ambientais, comportamentais, sociais e culturais.6 compartilhados pelos seres humanos (homo faber)
Um dos fatores que pode influenciar o e, por fim, a ação que é a forma de relacionamento
desenvolvimento de doenças crônicas não trans- entre os homens e a sua capacidade política.8
missíveis, como a obesidade, é o contexto social e Buscando defender-se da ação e ter domínio
econômico em que a pessoa está inserida. Isso por- sobre si, o homem procura substituir a ação pela fa-
que os entornos físicos e padrões sociais dificultam bricação e, nessa perspectiva, surgem o capital e o
a compra de alimentos e estilo de vida saudáveis, acúmulo de riquezas. Essa dinâmica da existência
gerando comportamentos inadequados, como a humana gera uma ação cíclica entre o consumismo
má alimentação, a inatividade física e o excesso e a falta, e perpassa as necessidades metabólicas
de peso.7 do homem, adentrando, na Modernidade, a era
Pensar filosoficamente os fatores relaciona- de trabalhos (labor e faber) excessivos na busca da
dos ao excesso de peso em crianças e adolescentes, saciedade.8
dentre eles os socioeconômicos, auxilia na reflexão Essas referências conceituais foram tomadas
sobre a realidade dos crescentes números da obe- como ferramentas para a compreensão mais alar-
sidade e sobrepeso em todas as classes econômi- gada das causas da obesidade, adquiridas ainda
Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2015 Jul-Set; 24(3): 891-7.
Causas de obesidade infantojuvenil: reflexões segundo a teoria... - 893 -

na infância e juventude. Desse modo, este estudo compreender a igualdade e a distinção entre os
teve por objetivo refletir sobre as causas da obe- homens é a base para entender o homem em sua
sidade para além do físico, genético e biológico, Pluralidade.9
partindo do entendimento da condição humana e Desde Aristóteles, as atividades dos homens
das relações econômicas e sociais a ela associadas. se dividem em dois grupos: as relativas à ‘vida do
Portanto, trata-se de um estudo reflexivo espírito’ ou à vida contemplativa (pensar, querer
sobre a concepção teórica e filosófica da condição e julgar) e as atividades mundanas, ou relativas
humana e suas relações econômicas e sociais à ‘vida ativa’ (labor, trabalho e ação). Cada uma
elaboradas por Hannah Arendt, e os aspectos dessas atividades visa atender às finalidades que
causais socioeconômicos da obesidade na infância se originam da própria condição humana.
e juventude. Para esta reflexão tomou-se por base De acordo com Arendt, três são as atividades
os pressupostos da Condição Humana de Hannah fundamentalmente humanas advindas desde o
Arendt e a literatura pertinente. nascimento: o trabalho, a obra e a ação, sendo que
A conceituação do método de investigação o trabalho empenha-se em satisfazer as exigências
utilizado representa uma possibilidade de flexi- da condição humana da atividade biológica, a obra
bilizar definições usuais, geralmente estáticas, a consiste na atividade que visa atender à condição
fim de transpor as barreiras formais da discipli- humana de construir sobre o mundo natural um
narização moderna, articulando a teoria e sua hábitat, ou seja, um mundo artificial, de compo-
fundamentação, com sua utilização. nentes, duradouro, e a ação ocorre entre homens,
sem mediação das coisas ou matérias.8
CONCEPÇÃO TEÓRICA E FILOSÓFICA Destaca-se, ainda, que a atividade da ação
ocorre entre homens, sem mediação das coisas
DO CONSUMO NA PERSPECTIVA DE
ou matérias. Esta visa atender à condição humana
HANNAH ARENDT da Pluralidade, em que os homens são capazes de
Desde as crenças mais antigas relativas à viver em conjunto, e à condição própria a essa,
criação ou surgimento do homem, este se viu que é a Singularidade, o fato de cada homem ser
condenado a sobreviver e ter o seu mantimento a um indivíduo exclusivo. A ação visa permitir ao
partir do suor do rosto. A cultura ocidental, por homem viver em conjunto, entre seus semelhan-
sua vez, instituiu um modelo de Homem e de tes, e diz respeito aos ‘negócios’ humanos, onde
vida para subsistência. Hanna Arendt nomeia esse sua comunicação é mediada pela pluralidade de
processo de condição humana. opiniões políticas.8
Diferente do conceito de natureza humana, a Esta filósofa fragmenta a vida ativa em duas
condição humana trata dos requisitos que tendem esferas: de domínio público e privado. O trabalho
a suprir a existência do homem, que se diferenciam (labor) e a produção (work) no domínio se enqua-
a partir do lugar e do momento histórico do qual dram na esfera privada, enquanto que a ação está
faz parte. Nesse sentido, todos os seres são con- exclusivamente no plano da esfera pública (políti-
dicionados, até mesmo aqueles que condicionam ca). O privado é o reino da necessidade. O público
o comportamento de outros, a se tornarem condi- é o reino da liberdade.8
cionados pelo próprio movimento de condicionar.9 “Tanto os homens de ação quanto os pensa-
Quando um indivíduo nasce, mesmo sem dores sempre foram tentados procurar um substi-
desejar ou entender, traz consigo o novo, uma tuto para a ação”.8:275 Essa mudança busca proteção
nova ordem, um indivíduo singular para uma contra os acidentes da ação, em que o homem seja
comunidade humana, e instaura uma nova ca- senhor dos seus atos. Nesse contexto, insere-se a
deia com o que se encontrava no mundo. Hanna substituição da ação pela fabricação, a qual busca
Arendt conceitua isto como a condição humana da atingir um meio supostamente superior que, na
natalidade. O homem se relaciona com aquilo que Modernidade, está representada pela produtivi-
está em vigor e passa a se adaptar ao estilo de vida dade em busca do progresso da sociedade.
dos que o cercam. Esse aspecto é denominado de A substituição da ação pelo processo fabril
igualdade. Contudo, o indivíduo é mais complexo conduz ao consumismo e ao acúmulo de rique-
que isso, possui outro aspecto a ser considerado, zas, que estão enquadrados no Labor. Quando
que é a distinção, ou seja, cada homem possui a riqueza deixa de ser um meio para garantir a
suas particularidades, e a discussão de suas dife- preservação da vida humana e a satisfação das
renças é necessária para a convivência. Portanto, necessidades vitais (individual e da espécie), esta
Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2015 Jul-Set; 24(3): 891-7.
- 894 - Mariz LS, Enders BC, Santos VEP, Tourinho FSV, Vieira CENK

torna-se um fim em si mesma. A partir daí, tem-se característica principal as especificidades da vida
o nascimento do que chamamos de Capital, um biológica. Para Arendt, a atividade humana que
processo que busca exclusivamente, e cada vez visa atender as necessidades vitais é o Labor. O
mais, a produção de riqueza. Um processo cíclico Labor providencia a saciedade da vida biológica,
sem fim.8 prioritariamente.8
O homo faber, fabricante do mundo, substitui Como parte do movimento biológico da sa-
seus ideais pela satisfação da abundância. Esta ciedade está a consignação de um círculo vicioso
satisfação, articulada com o meio, vem a gerar alternando a saciedade e a falta. Disto se aproveita
uma produção inesgotável da riqueza, o chamado o esquema social de produção-consumo, causando
‘esquema da produção-consumo’, que só garante mais falta para provocar mais consumo. Propaga-
o crescimento da riqueza para o próprio produtor se assim a relação falta-saciedade-falta em todas as
ou detentor do capital e dos meios de produção.8 áreas da vida, e não somente a biológica.10
Nesse esquema, o consumo, e não a riqueza, é o Como exemplo podemos citar os gregos,
que se mostra como finalidade para o consumidor, que buscavam, em suas emblemáticas sagas, a
cada dia adquirir ou possuir mais. contraposição do processo de falta-saciedade-falta
É importante, neste ponto, compreender o existente hoje. Enquanto que os gregos buscavam
conceito de sociedade de massas, que diz respeito conquistar a imortalidade, fama e glória, o agir
a um contexto em que os desejos e interesses de da sociedade atual está empenhado em saciar as
vida dos indivíduos são produzidos em grande necessidades vitais, sejam elas naturais ou não.
escala para a produção e consumo impostos pela Assim, cede-se à manutenção da saciedade e do
sociedade moderna, no qual o indivíduo se mostra abastecimento das convicções plenas e deseja-
apático às questões públicas.10 Para a filósofa, esse se cada vez mais estar saciado, mesmo que, de
fenômeno deu origem a um tipo de ser degenera- alguma forma, se venha a ser tragado pela falta.
do, podendo alcançar o ápice de “mutação per- Envolve-se a cada dia mais profundamente no
vertida”,8:153 quando somente obedece a estímulos. ciclo vicioso da falta, produção, consumo, sacie-
Como características dessa sociedade de dade, falta.9
massas podem-se citar a massificação e o controle. Nessa perspectiva, os indivíduos com obe-
A primeira se refere à configuração de um mesmo sidade buscam uma nutrição maior do que as
modo de existir a ser seguido por todos, em que se necessidades corporais; cedem à vontade de saciar-
propaga a odiosidade às diferenças e o incentivo se e, ao o fazerem, sentem a falta de sentirem-se
ao comportamento como obediência. A segunda insaciados. A essa condição dá-se o nome de
trata-se do controle do consumo, o controle dos compulsão alimentar, frequente em pessoas com
modos de ser, dos processos gerais da existência.10 obesidade. Essa compulsão ocorre quando uma
No início do século 21, esse controle pode ser exer- pessoa come uma quantidade de alimento muito
cido pelos recursos formadores de opinião, como a maior, em menos tempo do que ela normalmente
mídia, a burocracia e a escola, que são ferramentas comeria, sentindo uma perda do controle.11
básicas e indispensáveis à modelagem da estrutura
social e dos modos de ser e de vir a ser.
CONTRIBUIÇÃO DA TEORIA DE HAN-
Enquadrando-se no processo de massificação
NAH ARENDT PARA A COMPREENSÃO
e mostrando-se controlado pelos aparelhos ideo-
DOS ASPECTOS SOCIOECONÔMICOS
lógicos, o consumo se manifesta como tendência
de comportamento na sociedade. Trata-se de um RELACIONADOS À OBESIDADE INFAN-
modo de ser comum em busca da satisfação, vi- TOJUVENIL
vendo o mito da saciedade como felicidade. Os aspectos socioeconômicos da obesidade
Analisando de forma isolada, pode-se afir- tornaram-se destaque nas pesquisas realizadas
mar que a saciedade é passageira, visto ser essa a nos últimos anos, apontando o crescimento da
implicação de um processo em vigor do qual faz obesidade tanto em famílias de classe baixa, como
parte o ‘consumir algo’. Este desejo equivale a média e alta. Esse fator causal evidencia-se ainda
atender os desejos, apetites, necessidades, objeti- mais nitidamente nas crianças e adolescentes, visto
vos. Sendo o corpo o alvo principal desse processo, que os mesmos dependem dos pais para alimen-
almeja-se satisfazer sua sede, fome, desejo sexual, tar-se. A família tem um encargo no desempenho
frio, calor, reconhecimento, companhia, entre ou- alimentar desta faixa etária, uma vez que os pais
tros. Este é um processo infindável, que tem como são os primeiros educadores nutricionais.
Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2015 Jul-Set; 24(3): 891-7.
Causas de obesidade infantojuvenil: reflexões segundo a teoria... - 895 -

Podem-se aplicar os conceitos de condição Neste ponto está a incessante busca pela produção
humana e da vida activa abordados por Hannah de riquezas, que desloca os pais dos seus papéis
Arendt no contexto da obesidade infantojuvenil. de condutores das práticas nutricionais adequadas
Assim, desde o nascimento, surge um ser com o dos filhos e os coloca em excessivas jornadas de
novo, singular, que se relaciona com o meio – con- trabalho.
dição humana da natalidade. Ao chegar o novo em O aumento da carga horária de trabalho dos
uma família em que o ambiente é obesogênico, a pais e a ampliação da produção e consumo de ali-
criança e o adolescente, sofrendo o condiciona- mentos congelados (industrializados) são fatores
mento da família, serão inseridos nesse contexto e importantes na transição dos hábitos alimenta-
tendem a adquirir as mesmas práticas. Aquém da res das crianças.12 Já no contexto educacional, a
pluralidade de cada indivíduo, o condicionamento comercialização das escolas e de seus produtos,
familiar influencia de forma direta nas escolhas bem como a exposição de crianças a imagens de
alimentares e nos hábitos de vida da criança e do propagandas comerciais, fortalecem a sociedade
adolescente, gerando o desenvolvimento gradual
de consumo na medida em que a formação da
do excesso de peso nessa faixa etária.
cidadania é desvirtuada para a produção de con-
O homem é um ser condicionado, uma vez sumidores acríticos.13
que tudo com que entra em contato se torna uma
O consumo imposto pela sociedade moderna
condição de sua existência. Assim, o condiciona-
e produzido pelo esquema social de produção-
mento, apontado pela filósofa, passa a exercer o
consumo dispõe de alimentos de preparo rápido
seu papel ativo na família, quando os maus hábitos
e de baixo custo, conduzindo os indivíduos da
alimentares e de estilo de vida (entendendo como
sociedade imediatista a reduzir o gasto de tempo
estilo de vida a prática de atividade física, horas em
em preparos de alimentos nutritivos e a aumentar
frente à televisão, videogame, entre outras) aden-
o consumo de enlatados, alimentos industrializa-
tram essa realidade e perduram, até tornarem-se
dos e fast-food. Parafraseando Hannah, “o tempo
a nova condição humana do ser.
excedente do animal laborans jamais é empregado
As evoluções tecnológicas e científicas tam- em algo que não seja o consumo, e quanto maior
bém condicionam o ser humano. Como exemplo, é o tempo que ele dispõe, mais ávidos e ardentes
pode-se citar a introdução da informática e da
são os seus apetites”.8:5
tecnologia, em que a humanidade sofre uma es-
pécie de mutação e passa a viver na dependência Nesse contexto, a mídia promove a ideia da
desta nova tecnologia, que evolui diariamente. massificação, na qual todos precisam se adequar
Assim, dependentes desse novo modo de viver, a aos padrões de consumo e obedecê-los. Aqueles
cultura dos mínimos esforços foi disseminada na que não se enquadrarem nesse processo são mar-
sociedade, e traz consigo um novo estilo de vida: ginalizados da sociedade. A influência do mercado
sedentário. Todos os comandos são enviados por de publicidade e propaganda também está presen-
controles remotos; os eletrônicos são programa- te na vida das crianças, que são consideradas como
dos para produzir e responder de forma rápida consumidores pelas empresas do ramo. Grande
e instantânea, como o micro-ondas; as atividades parte dos comerciais de televisão, nos programas
de lazer das crianças e adolescentes se resumem assistidos por crianças, é de alimentos de baixo
a videogame e televisão; assim, o gasto energético valor nutricional. Assim, as indústrias alimentícias
é reduzido ao mínimo, favorecendo o aumento de exercem seu controle do modo de se alimentar.
peso. Por esse motivo, crianças e adolescentes têm Como exemplo estão as empresas de fast-food,
mudado os níveis de atividade física de modera- que induzem a população mais jovem (crianças e
dos ou intensos para baixo gasto energético nas adolescentes) a consumir os seus produtos e ser
suas atividades de lazer.12 exaltada como privilegiada por fazer parte deste
Paralelamente, existe a falta da participação grupo, reduzindo os preços e oferecendo brindes
da família na educação nutricional dos filhos. O para lanches infantis.
trabalho (labor) e a obra (work), uma condição As indústrias alimentícias colocam à dispo-
imposta pelo próprio homem para sua espécie, e sição vários alimentos com densidade energética
resultado de um processo cultural, perpassam o aumentada e que promovem saciedade. São ali-
domínio sobre as reais necessidades biológicas e mentos aceitáveis e de baixo custo, o que os torna
preservação da vida, e passam a assumir a pro- acessíveis às classes de alta e baixa renda.12 Para a
dutividade, a ordem principal da Modernidade. faixa etária aqui abordada, torna-se indispensável

Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2015 Jul-Set; 24(3): 891-7.


- 896 - Mariz LS, Enders BC, Santos VEP, Tourinho FSV, Vieira CENK

ser integrante do público consumidor dessas em- O rompimento do labor pela ação pode
presas, não se importando com as consequências libertar os indivíduos do consumo e do círculo
danosas à saúde. vicioso da saciedade. Fato que faria novas opiniões
As cantinas escolares também estão inse- surgirem, exceder a obediência buscando inovar
ridas neste contexto de empresas que exercem através do ato de se expressar à nossa humanida-
controle sobre a sociedade. Crianças e adolescen- de, rompendo com as condutas sociais que levam
tes em idades pré-escolar e escolar tendem a não os pais aos mesmos erros causais da obesidade
desejar lanches caseiros no ambiente escolar, por infantojuvenil.
receberem influência do consumismo, presente
na sociedade e, consequentemente, nas escolas, REFERÊNCIAS
e passam a gastar na única empresa que oferece
1. Kumpel DA, Sodré AC, Pomatti DM, Scortegagna
alimentos nas instituições educacionais: as can- HM, Filippi J, Portella MR, et al. Obesidade em
tinas. Estas, por sua vez, disponibilizam frituras, idosos acompanhados pela estratégia de saúde da fa-
refrigerantes, guloseimas, massas, entre outros mília. Texto Contexto Enferm. 2011 Set; 20(3):471-7.
alimentos que conduzem ao acúmulo de gordura 2. Mareno N. Parental perception of child weight: a
corporal,14 sem a preocupação com a disponibili- concept analysis. J Adv Nurs. 2014 Jan; 70(1):34-45.
zação de lanches saudáveis; os consumidores são 3. Ministério do Planejamento (BR). Pesquisa de
controlados pela oferta. Orçamentos Familiares (POF) 2008-2009: despesas,
Em busca da saciedade como mito da feli- rendimentos e condições de vida. Brasília (DF):
cidade caminham os seres humanos. Mas o que IBGE; 2010.
realmente é necessário à vida? Satisfazer as neces- 4. Pearson N, Biddle SJH. Sedentary behavior and
sidades biológicas, como a fome, ou extrapolá-la a dietary intake in children, adolescents and adults:
fim de experimentar os apetites mais sofisticados a systematic review. Am J Prev Med [online]. 2011
[acesso 2015 Mar 18]; 41(2):178-88. Disponível em:
do consumismo, concentrando-se nas superflui-
http://ac.els-cdn.com/S0749379711002996/1-s2.0-
dades da vida? S0749379711002996-main.pdf?_tid=f4495d38-cdaf-
11e4-aaa8-00000aab0f26&acdnat=1426711813_
CONSIDERAÇÕES FINAIS db8f54fc74a5fcdbb1cf30d2e114e592
5. Camargo APPM, Barros FAA, Antonio MARGM,
Diante da reflexão feita foi possível perceber Giglio JS. A não percepção da obesidade pode ser
que as causas associadas à obesidade ultrapassam um obstáculo no papel das mães de cuidar de seus
as questões físicas, genéticas e biológicas. Com- filhos. Ciênc Saúde Coletiva. 2013; 18(2):323-33.
preendeu-se que há relação do ser com os fatores 6. Hernandes F, Valentini MP. Obesidade: causas e
socioeconômicos, conforme expõe Arendt no consequências em crianças e adolescentes. Rev Facul
pensamento filosófico da condição humana, que Educ Física UNICAMP. 2010; 8(3):47-63.
podem condicionar a presença de obesidade em 7. Bezerra VM, Andrade ACS, César CC, Caiaffa WT.
crianças e adolescentes. Isso porque o ambiente Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista,
familiar é fator determinante na quantidade e Bahia, Brasil: hipertensão arterial e fatores associa-
tipo de alimentos consumidos, saudáveis ou não dos. Cad Saúde Pública. 2013; 29(9):1889-902.
saudáveis, no poder de compra e na prática regular 8. Arendt H. A condição humana. 11a ed. Rio de Janeiro
de atividade física. Fatores estes que, em conjunto, (RJ): Forense Universitária; 2013.
oferecem maior risco para obesidade. 9. Critelli D. Consumo e obediência: a desarticulação
da liberdade. Psicol USP. 2008; 19(4):477-85.
Faz-se necessário que os profissionais de saú-
de rompam com o pensamento cartesiano de que 10. Duarte AM. Hannah Arendt e a modernidade:
esquecimento e redescoberta da política. Trans/
a obesidade é resultado direto da ingestão calórica
Form/Ação. 2001; 24(1): 249-72.
maior do que o gasto, sem contudo considerar o
11. Treasure J, Claudino AM, Zucker N. Lancet. 2010
meio social e econômico em que o indivíduo está
Feb 13; 375(9714):583-93.
inserido, bem como sua condição humana e prá-
ticas políticas. 12. Sichieri R, Souza RA. Estratégias para prevenção da
obesidade em crianças e adolescentes. Cad Saúde
O cotidiano, a cultura e o social desprezam Pública. 2008; 24(Sup 2):209-34.
a ação dos fatores socioeconômicos e reforçam a 13. Norris T. Hannah Arendt & Jean Baudirillard:
absorção do consumismo (labor) e o afastamento pedagogy in the consumer society. Studn Philos
de si mesmo e dos outros, favorecendo o desen- Educ [online]. 2006 [acesso 2015 Mar 18]; 25(6):457-
volvimento da obesidade. 77. Disponível em: http://link.springer.com/
Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2015 Jul-Set; 24(3): 891-7.
Causas de obesidade infantojuvenil: reflexões segundo a teoria... - 897 -

article/10.1007/s11217-006-0014-z comportamentais na prevalência de sobrepeso e


14. Guedes DP, Neto JTM, Almeida MJ, Silva obesidade de escolares. Rev Bras Cineantropom
ATRM. Impacto de fatores sociodemográficos e Desempenho Hum. 2010, 12(4):221-31.

Correspondência: Larissa Soares Mariz Recebido: 02 de fevereiro de 2015


Rua José do Ó, 814 Aprovado: 29 de junho de 2015
58411-401 - Alto Branco. Campina Grande, PB, Brasil
E-mail: larissamariz@gmail.com

Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2015 Jul-Set; 24(3): 891-7.

Você também pode gostar