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Introdução a

Esse material serve como introdução à leitura do conto Salsicce, proposta para a imersão literária, e
para a sua preparação para a discussão sobre o texto e sobre temas ligados à Itália colonial, à colonização
fascista e panoramas histórico-culturais das regiões do Chifre da África, colonizadas pela Itália nos séculos
XIX e XX. Esperamos que esse material sirva como uma boa base para a nossa discussão.

As professoras a

Liliane Amorim é formada no curso de Licenciatura em Letras Vernáculas - Português e Letras -


Italiano pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). É uma pessoa que gosta muito de literatura, aprender
línguas e conhecer novas culturas. Faz pesquisa na área do ensino de italiano em contexto brasileiro, atua no
estudo e na construção de materiais didáticos em língua italiana e tem um grande interesse pela literatura
afro italiana na perspectiva da Linguística Aplicada. Atualmente faz parte do grupo de professoras na Volare
in Italiano®, que promove metodologias atuais que possibilitam desconstruir o ensino engessado de línguas
estrangeiras.
Raquel Goes é formada no curso de Letras português-italiano pela Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Adora língua, literatura e cultura italianas,
fez pesquisa na área de Letras Clássicas e de Italianística no Brasil e na Itália. Hoje atua na área de ensino de
língua italiana no Brasil, é sócia da Associação Brasileira de Professores de Italiano (ABPI) e é idealizadora
da Volare in italiano®, instituição de ensino online de língua italiana para além dos estereótipos.
A Itália colonial a

Durante um longo período da história, o Império Colonial italiano buscou expandir seu território,
sobretudo ao longo dos séculos XIX e no início do século XX. A participação da Itália na corrida
imperialista foi tardia, se comparada às outras potências da época, como França, Inglaterra, Portugal e
Alemanha. O processo de unificação italiana, ocorrido no ano de 1861, contribuiu para a sua participação
menor nessa passagem histórica. Tal desvantagem colaborou para uma grande pressão por parte da
população italiana, recém compreendida como população de um verdadeiro Estado nacional, para aquisição
de colônias em territórios ainda não ocupados por outras potências europeias. Ter uma terra a ser dominada
era sinônimo de poder militar, político e principalmente econômico; poder esse que colocava a recente nação
em investidas para a expansão de áreas dominadas na ascensão do imperialismo europeu, no século XIX.
Houve a participação geopolítica da Itália, ainda que menor, ao lado de grandes potências europeias, na
partilha da África, conhecida nos livros de história como Conferência de Berlim1.

A exploração e domínio do continente africano tinha


um caráter estritamente comercial e econômico para a Itália
no que diz respeito à posição geográfica e teve como
primeiro alvo a Etiópia, mas não obteve o resultado
esperado. A tentativa de colonizar terras etíopes, no
entanto, não parou e, em 1896, houve a batalha de Adwa,
que resultou no maior massacre em guerras do período,
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com a morte de grande parte do exército italiano. Com
isso, a Etiópia tornou-se um país independente, ou seja, o
único país que não foi colonizado pela Europa durante o
avanço do imperialismo do século XIX.

Em 1886, a Itália domina sua primeira colônia, a Eritreia, próxima da área de nome Chifre da África.
Neste ponto estratégico, estava localizado o Porto de Massawa, responsável pelas práticas mercantilistas e
era porta de entrada de diferentes povos ao longo da história, não apenas na história recente. E, mais tarde, a
Itália dominou também a Somália, já na época fascista, bem como a Líbia, em 1911, mas não alcançou seu
objetivo de se consolidar entre as grandes nações imperialistas europeias.

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Ocorrida de 15 de novembro de 1884 a 26 de fevereiro de 1885, esse foi o encontro oficial de grandes representantes
das nações europeias para a partilha do território africano entre aquelas que viriam a ser as grandes potências
imperialistas.
2
Imagem da Batalha de Adua retirada de:
https://www.gettyimages.com.br/detail/ilustra%C3%A7%C3%A3o/antique-illustration-of-the-first-italo-ilustra%C3%A7%C3%A3o-royalty-free/1272828274?adppopup=t
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No entanto, as localidades exploradas pelo poder italiano
não eram consideradas de grande importância com relação ao
grande fluxo econômico, comparando com as demais colônias
dominadas por outras nações europeias, já em empreitadas
coloniais décadas antes e com um poder militar também maior e
mais consolidado.
A ocupação italiana na Somália e na Eritreia foi marcada
por opressões violentas e um regime de apartheid, que consistia
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na proibição de cidadãos negros somalis e eritreus frequentarem
os mesmos espaços que pessoas brancas italianas, além de
diversas outras formas de violências física e moral.

A colonização italiana perdeu força a partir da


derrota do país na Segunda Guerra Mundial, em 1945, e o
controle daqueles aqueles territórios foi perdido
gradativamente, ao passo que os conflitos internos das
colônias aumentaram e terminaram por contribuir para a
desistência da Itália em explorá-las. Sendo assim, alguns
países foram conquistando a sua independência, apesar da
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ocupação colonial e até hoje mantém marcas desse período


de ocupação e violência.

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Imagem da região chamada Chifre da África, retirada de:
https://it.wikipedia.org/wiki/Corno_d%27Africa#/media/File:Africa-countries-horn.png
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Imagem do Porto de Massawa retirada de:
https://www.gettyimages.com.br/detail/ilustração/antique-illustration-of-the-first-italo-ilustração-royalty-free/1272798444?adppopup=true
Vinte anos do fascismo italiano a

O fascismo italiano foi uma corrente ideológica e política que se instaurou na Itália no ano de 1920 e
veio a se tornar uma das mais importantes passagens da história recente. Quando pensamos ou estudamos
sobre o fascismo, surge a figura do porta-voz do movimento, Benito Mussolini, ditador da Itália no período
de 1922 a 1943. Mas como se construiu essa ditadura?

A Itália passava por várias crises nas áreas da política e da


economia, principalmente depois da Primeira Guerra Mundial, e
o clima na época era como se a nação italiana precisasse de um
ressarcimento pelas sucessivas derrotas no cenário geopolítico
com as consequências das empreitadas coloniais do final do
século XIX, que não tiveram o sucesso esperado.
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Assim, surgiram os pensamentos nacionalistas e totalitários junto do culto à imagem de líder de


Mussolini, muito baseado nas raízes de culto aos antigos imperadores romanos, base fundamental para a
doutrina ideológica fascista. Foi também um regime de extremo controle sobre educação, arte e cultura,
sempre pautado pela censura, que combatia qualquer divergência de posicionamento político e ideológico.
Um dos pontos importantes a destacar ao longo do fascismo era o forte interesse em expandir
territórios e demonstrar poder econômico, político e social, que foi marcado por uma segunda tentativa de
invasão de países africanos, como o caso da Etiópia, território de localização privilegiada na região do Chifre
da África, no ano de 1935. Nesse período, então foi criada a África Oriental Italiana (AOI), órgão
representante da união das terras ocupadas pela Itália, entre elas a Abissínia, uma das regiões da Etiópia, a
Somália e a Eritreia, mantidas sob o domínio italiano de 1936 a 1941.
Em seguida, Mussolini se aliou a Hitler e foi formado o eixo Itália e Alemanha em 1936 e,
consequentemente, a entrada do país na Segunda Guerra Mundial. O ponto culminante do fascismo italiano
foi a deliberação das Leis raciais, aplicadas entre 1938 e 1945, leis políticas e sociais pautadas na
discrimação racial e étnica em território italiano e nas colônias. Essas leis eram marcadas por restrições
severas aos judeus, como a expulsão de cargos de governo, a falta de acesso à educação ou à instrução
formal, a proibição de casamento entre italianos e judeus e o envio em massa de pessoas aos campos de
concentração.
Na vigente colônia Eritreia, as leis não eram diferentes. Houve muitas violações a direitos,
principalmente de meninas e mulheres, como a prática institucionalizada do madamato6. Termo esse que, em
italiano, serve para designar o conceito latino more uxorio7, que consistia na permissão de uma relação
momentânea entre qualquer cidadão italiano, seja soldado ou civil, com uma mulher ou menina nativa da

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Ilustração da época a respeito das investidas coloniais italianas, retirada de:
https://www.nazioneindiana.com/2018/04/25/1938-1940-ilio-barontini-vice-imperatore-dell-abissinia/
6
Il madamato: https://www.collettiva.it/rubriche/buona-memoria/2020/11/17/news/leggi_razziali_madamato-571704/
7
Definição retirada de: https://www.treccani.it/vocabolario/more-uxorio/
colônia. Essa espécie de acordo, ou prática institucionalizada, fazia prevalecer a exploração de corpos
femininos negros para fortalecer, inclusive do ponto de vista simbólico, a relação dominador e dominado
durante o crescimento do imperialismo do início do século XX, tão violento quanto a colonização no final do
século anterior. No ano de 1943, as Leis Raciais foram extintas, depois dos inúmeros fracassos para os países
do eixo na Segunda Grande Guerra, mas o legado de preconceitos refletidos nesses grupos que foram
segregados permanecem cristalizados em vários espaços da sociedade italiana contemporânea.

Igiaba Scego a

A escritora italiana Igiaba Scego nasceu em 20 de março de


1974, em Roma, e é filha de pais imigrantes somali. É graduada em
Literatura estrangeira pela Università La Sapienza di Roma e
tornou-se uma das mais influentes e notórias escritoras italianas da
contemporaneidade e essa notoriedade foi construída com suas
participações nos debates de temáticas relevantes que atravessam a
sociedade, como questões identitárias, colonialismo e pós-
colonialismo italianos, migração, racismo e diáspora. A importância

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da transculturalidade e de todas essas questões estão presentes em
seus romances, contos, ensaios e resenhas.

Igiaba é bastante ativa na escrita de textos literários e jornalísticos e atua como colaboradora nos mais
significativos jornais italianos de diversos espectros políticos, como, Il Manifesto, La Repubblica, L’Unità e
Internazionale, fomentando o diálogo entre diferentes leitores sobre assuntos pertinentes na sociedade
italiana e mundial.
A vida de Scego mistura a Itália e a Somália, graças às vivências de seus pais, que fugiram da Somália
durante a ditadura de Siad Barre em 1969. Durante esse período, o exército somali tomou o governo por
meio de um golpe militar e foi um período histórico marcado pela violência e opressão da população civil. E
diante disso, os pais de Igiaba viram no solo italiano um lugar para reconstruir as suas vidas. A escritora
cresceu com influências da Somália e da Itália, tanto na língua quanto nas tradições e a presença bicultural é
notória em tudo o que escreve. Em seus romances nota-se principalmente a transculturalidade, a
convivência com várias culturas e religiões diversas no mesmo território, no âmbito social e também no
pessoal.
Scego é, então, literatura de migração, de segunda geração ou pós- colonial? São muitos os nomes
usados para designar a produção literária produzida por escritoras, em sua grande maioria afro italianas, que
enxergaram essas narrativas como uma forma de evidenciar assuntos transversais e transculturais no meio
social, mas o nome que caberia seria simplesmente literatura italiana. O termo literatura de migração ou de

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Foto de Igiaba Scego, retirada de: https://literatura-italiana.blogspot.com/2019/04/ler-e-traduzir-igiaba-scego.html
segunda geração marginaliza a escrita feita por filhas e filhos de imigrantes na Itália e reacende as discussões
sobre o que não pode ser um texto literário ou um texto de literatura italiana. Essa discussão carrega todo o
preconceito do período colonial que reverbera na Itália de hoje e de agora. O termo pós- colonial, esse sim,
engloba todas as histórias, não necessariamente autobiográficas, escritas por vozes que têm uma relação com
as ex-colônias italianas no continente africano.
No curso da sua carreira, Igiaba escreveu obras de muita relevância, como Pecore nere (2005), Oltre
Babilonia (2008), La mia casa è dove sono (2018), Adua (2019), La linea del colore (2020), Figli dello
stesso cielo (2021), Cassandra a Mogadiscio (2023) e recebeu vários prêmios e indicações ao longo da sua
carreira. Dentre eles, o prêmio Eks & tra, no ano de 2003, pela publicação do conto Salsicce, e em 2011
venceu o prêmio Mondello, na categoria escritora italiana, com o livro La mia casa è dove sono. No ano de
2020, recebeu mais um reconhecimento de melhor narrativa pelo romance histórico La linea del colore, em
que narra a história de uma personagem negra que vive no tempo do colonialismo italiano e todo o
preconceito de uma época em Roma recai sobre ela. Ao longo do enredo, no entanto, percebe-se uma linha
cronológica entre essa e uma outra personagem feminina para contar esse passado colonial ao perceber e
construir o futuro. E, por fim, em 2023, Igiaba foi indicada como finalista no Premio Strega, maior prêmio
literário da Itália, com seu mais recente romance Cassandra a Mogadiscio.
A literatura contemporânea italiana narrada por vozes femininas e negras e italo-africanas revelam nas
suas histórias conteúdos que permitem a reflexão sobre uma época tão pouco estudada nos livros de história
e nas salas de aula. Porém, é importante fomentar o debate de temas cristalizados na sociedade
contemporânea, sobretudo no que diz respeito à Itália, como o racismo, as questões de identidade, a
migração, a mulher e os papéis femininos, a diáspora, a fim de facilitar a construção de um corpo social mais
aberto ao debate e, claro, ao aprendizado e à construção do futuro.

O conto Salsicce a

O conto Salsicce, escrito por Igiaba Scego, foi publicado na antologia de contos, Pecore nere em
2005. A obra inclui contos escritos por Gabriella Kuruvilla, Ingy Mubiayi Kakese e Laila Wadia e todas as
narrativas presentes nesse livro têm como pano de fundo questões de identidade, diversidade cultural e
transculturalidade, entrelaçadas com as vivências e identidades transculturais de cada uma das autoras e
transformadas em ficção.
A história de Salsicce nos mostra a vida de uma personagem negra, de origem somali, de religião
muçulmana e que vive na Itália. O conto começa com a decisão de comprar as salsicce, prepará-las e
comê-las. A partir deste ponto, no entanto, a protagonista tem um dia marcado por diversos questionamentos
sobre a sua religiosidade, nacionalidade e identidade. Ela se pergunta: Como conviver com duas culturas,
totalmente diferentes, que recaem sobre os imigrantes de segunda geração? Como é de fato a vida de cidadãs
e cidadãos que são filhos de imigrantes?
No decorrer da narrativa, Igiaba coloca diante de nós vários elementos de interseção entre a cultura da
Somália e a cultura da Itália e o dilema de quem está inserido nesse contexto bicultural. A partir desses
detalhes, nos faz refletir sobre os medos e incertezas da personagem em relação às leis de imigração italiana,
o preconceito, o racismo e a xenofobia sofridos por este grupo, as dificuldades em ocupar determinados
espaços, principalmente cargos públicos na Itália. Tudo isso conduz o leitor a esperar que aquela situação
conflituosa da personagem se resolva: comer as salsicce ou não?

Esse ebook foi escrito pelas professoras do curso Imersão Afroliteratura, de Volare in italiano®.

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