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l MA PRÒ\ ÍNCl \

NO IMPÉRIC
ti historiadores enfrentaram,
Cotno Kâtia de Queirós Mattoso. o de-
safio de i. hiítória regional no Brasil, 7
de forma abranc&ntè, partindo de fontes
mmárias c bujfeando dados quani tti-
vos coerentes, fc&pazes de montai series
tístóricas. Nascida ha Grécia, baiana por
loção, Katia Mattoso se dedicou a este
: alho durante mais de 2 0 anos, ajuda-
por gerações de alunos. J u n t o s eles
tinaram cerca de 4 0 mil documen-
s para estabelecer séries de preços c sa-
livre a ser J Qakíz TT - S
*
lários; leram c resumiram quase 3 . 5 0 0
£scr*\/0 ao Ib^^*/
testamentos c mais de mil inventários;
transcreveram e analisaram mais de 16 de^e ser s-njl.j-
mil cartas de alforria. Atas das câmaras
muni i ais, recenseamentos, documen-
tos c i -eis, crônicas, arquivos de con-
vênios, registros portuários, discursos de
autoridades da época — além, é claro, de
uma exaustiva consulta à bibliografia já
disponível — permitiram a rçontagem
deste minucioso painel sobre a B a h i a n o r

século X I X , pioneiro na historiografia


brasileira. \ ^

O esforço foi duplamente recom-


pensado. Vários centros universitários
do Brasil seguiram as perspectivas aber-
tas por Katia Mattoso a partir da uti-
lização sistemática de inventários post
mortem da Bahia, inclusive de escravos e
forros. N o exterior, o trabalho da autora
também foi reconhecido. Apresentado
na França como tese de Doutorado de
Estado e entusiasticamente aprovado, es-
te texto propiciou a criação da cátedra de
História do Brasil na Universidade de
Paris I V - Sorbonnc, cabendo a Katia
Mattoso ocupar sua primeira regência
como titular.
Partindo dos "dadoS Estáveis da geo- S
" 5v -
grafia", a autora^apresenta a capital e sua
região, analisando o papel do^rios das c

vias dc comunicação, cenário magnífico


e inóspito, conquistado, ocupado e repo-
voado por recém-chegados que, passo a
passo, construíram uma sociedade. De-
pois* o» temas da pesquisa se abrem em Mi
^ \ü*i
ri
a demografia e a família, as reli-
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BAHIA, SÉCULO X I X
UMA PROVÍNCIA NO IMPÉRIO

O-

m
Katia M. de Queirós Mattoso

BAHIA, SÉCULO X I X
UMA PROVÍNCIA NO IMPÉRIO

A
EDITORA
NOVA
FRONTEIRA
© 1992, by Katia M. de Queirós Mareoso

Direitos de edição da obra cm língua portuguesa adquiridos


EDITORA NOVA FRONTEIRA S . A .
Rua Bambina, 25 - C E P 22251
Botafogo - Te!. 2 8 6 - 7 8 2 2
Endereço telegráfico: N E O F R O N T
Telex: 3 4 6 9 5 EN FS BR
Rio de Janeiro, RJ

Tradução
Yedda de Macedo Soares

Edição de texto
César Benjamin

ISBN 8 5 - 2 0 9 - 0 3 9 7 - 0

M
anco da Bahia Investi
mentos S.A.
«

Para meus netos brasileiros — Mariana, Marcos Filho, Tomás,


Tiago e Pedro — e meus netos greco-brasileiros — Michalis e Alexandros
para que conheçam e amem uma Bahia que é deles.
SUMÁRIO

Prefácio 1

Apresentação 7

Introdução 9
A história do Brasil que m e foi contada 18
C o m o escrever uma história da Bahia? 23

LIVRO I - O s DONS E AS ARMADILHAS DA NATUREZA 39

Capítulo 1 - A Bahia 41'


A cidade 42"
A província 43 -

Capítulo 2 - Salvador 45
Morfologia do sítio ^5
Solos e águas ^6
A baía e o porto ^

Capítulo 3 - O Recôncavo 5 1

Esboço de definição
Dados estáveis da geografia
Ventos, chuvas c solos ^

C a p í t u l o 4 - V i a s de c o m u n i c a ç ã o
Caminhos fluviais: o Recôncavo e o litoral
Caminhos terrestres: o Agreste e o Sertão
Caminhos marítimos: o Sul ^

LIVRO II - O PESO DOS HOMENS 6 7

69
C a p í t u l o 5 — O papel da história
72
A conquista do interior
voa BAHIA, SÉCULO XIX

U m a metrópole colonial?
Salvador, metrópole do Novo M u n d o

C a p í t u l o 6 - Populações da Província da B a h i a 8 2

Panorama geral ( 1 7 8 0 - 1 8 9 0 ) 8 2

U m século de avaliações imprecisas: 1 7 8 0 - 1 8 7 2


O s recenseamentos de 1 8 7 2 e 1 8 9 0
Faixas etárias e distribuição por sexo na população baiana 94
Matizes raciais e origens da população baiana

Capítulo 7 - A cidade de Salvador 100


Antes de 1 8 7 2 : Recenseamentos parciais •« 104
Antes de 1 8 7 2 : Avaliações 1° 8

Dois recenseamentos oficiais: 1 8 7 2 e 1 8 9 0 110


Ensaio de avaliação para o século XIX 112

Capítulo 8 - População flutuante c população mestiça 115


Sangues misturados: mitos e realidades 119

LIVRO I I I - A FAMÍLIA BAIANA 127

Capítulo 9 - U m p o u c o de história 129


Regimes matrimoniais 130
Regimes matrimoniais e regimes de bens 131
Divórcio 133
Filiação 133
Filhos adotivos 135
Direitos de sucessão e regime sucessório 136
Herdeiros 138
Sucessão por testamento.. 139
U m a legislação bem adaptada 140

C a p í t u l o 10 - T i p o l o g i a da f a m í l i a b a i a n a 142
Família legal c consensual ]44
A família consensual 149
Uniões livres j
A família segundo o estatuto legal de seus membros 160
Família de libertos J^J
A família escrava
Grupos domésticos: terceiro estudo tipológico I69

C a p í t u l o 11 - Sistemas de parentesco c alianças m a t r i m o n i a i s 172


Sistemas de parentesco
Parentesco por escolha
Parentela
Alianças matrimoniais: exogamia c endogamia ^Lj
Estratégias matrimoniais dos baianos nobilitados
Estratégias matrimoniais dos baianos alforriados
SUMARIO

Raptos c estupros (ou como tentar se libertar


de regras impostas pela Igreja c a familia)

C a p í t u l o 12 - A família b a i a n a e as relações sociais


Família, eixo das relações sociais
A qualidade das relações sociais

LIVRO I V - O ESTADO: ORGANIZAÇÃO E EXERCÍCIO DOS PODERES

Capítulo 13 - A herança: organização do Estado


n o fim d o p e r í o d o c o l o n i a l
Justiça e finanças
O Exército
O governo local

C a p í t u l o 1 4 - O r e g i m e m o n á r q u i c o brasileiro ( 1 8 2 2 - 1 8 8 9 )
A construção do Estado ( 1 8 2 2 - 1 8 5 0 )
A consolidação ( 1 8 5 0 - 1 8 7 0 )
A desagregação ( 1 8 7 0 - 1 8 8 9 )
O s poderes centrais ( 1 8 2 2 - 1 8 8 9 )
A instalação de poderes novos
Os poderes do Exército
Organização das forças paramilitares: a Guarda Nacional e a Polícia

C a p í t u l o 1 5 - O s p o d e r e s locais
A instituição do governo provincial
O poder municipal

C a p í t u l o 1 6 - A elite b a i a n a e a f o r m a ç ã o d o E s t a d o n a c i o n a l
A elite política baiana
A municipalidade de Salvador e seus conselheiros
A Assembléia Provincial: presidente e vice-presidente
Os deputados à Assembléia Provincial

C a p í t u l o 17 - O s b a i a n o s n o g o v e r n o c e n t r a l : origem social e f o r m a ç ã o
Os senadores
Ministros c presidentes do Conselho

LIVRO V - A IGREJA

C a p í t u l o 18 - I n t r o d u ç ã o

C a p í t u l o 19 - Hierarquia eclesiástica c poder político


no século X I X ( 1 8 2 2 - 1 8 9 0 )
Reformas na Igreja, reformas pelo Estado (1H22—1840)
Que reformas para o clero brasileiro?
O episcopado brasileiro c o Estado: da aparente submissão
à revolta aberta ( 1 8 4 0 - 1 8 9 0 )
X BAHIA, SÉCULO XIX

U m a Igreja sob tutela


Práticas religiosas e políticas da elite leiga 317
Questão religiosa ou questão dos bispos 321
A Igreja e a escravidão 327

Capítulo 2 0 - C ó n e g o s e párocos: u m a verdadeira riqueza e m h o m e n s 333


O alto clero: o capítulo-catedral 334
O alto clero: o tribunal eclesiástico 334
O baixo clero: curas e capelães 336
O clero baiano diante das reformas 341
O uso da batina 343
O celibato 345
As conferências eclesiásticas 349
Formação do clero 350
O recrutamento do clero 356
As rendas do clero 359
Dois modelos para a mesma missão 369

C a p í t u l o 2 1 - A s o r d e n s religiosas 373
Ordens e congregações recém-chegadas: os capuchinhos 383
Ordens e congregações recém-chegadas: as irmãs de São V i c e n t e de Paula 384
Ordens e congregações recém-echegadas: os padres da Missão 386

Capítulo 2 2 - Catequese do povo de D e u s 389


Religião oficial e religião do povo 390
As devoções aos santos 391
U m a religião n o cotidiano 395
A festa religiosa: negócio dos leigos ; 397
Confrarias: irmandades e ordens terceiras 397
A pastoral c seus agentes 404
O padre e a pastoral 407
Missões e pastoral m 408
As mulheres c a pastoral 410

C a p í t u l o 2 3 - T e m p l o s , m e s q u i t a s e t e r r e i r o s : religiões c o n c o r r e n t e s ? 415
O protestantismo na Bahia 417
O catolicismo dos africanos 42 j
O Islã na Bahia 424
A herança africana: os terreiros 428

LIVRO V I - O COTIDIANO DOS HOMENS QUE PRODUZIAM


E TROCAVAM
433

C a p í t u l o 2 4 - Salvador: a cidade n o século X I X y


A cidade à beira-mar
. . . j , 436
A cidade alta • 439
SUMÁRIO ^

As casas: proximidade c reserva 445


Revoltas e motins 451

C a p í t u l o 2 5 - As atividades p r o d u t i v a s : c o n d i ç õ e s e d e s e n v o l v i m e n t o 455
Geografia da produção 45$
A pecuária 454
Produtos da atividade extrativa 4^
Minas e minerais 45^

Capítulo 2 6 - Relações e comunicações 453


Estradas 468
Ferrovias 469
Transportes marítimos dc longo curso 473
Transportes marítimos: cabotagem 479
D o porto natural ao porto moderno 482

Capítulo 2 7 - Salvador, praça comercial 487


Os comerciantes 490
A organização comercial 495
As trocas entre os grandes 496
Outras trocas 500
Meios de pagamento 504
Meios comerciais de pagamento 509
A moeda e sua circulação 510
Dados sobre o movimento comercial 514
Principais produtos de exportação 517
Exportações para o exterior 521
O comércio da Bahia com o estrangeiro e as outras províncias 522

LIVRO V I I - O DINHEIRO DOS BAIANOS 525

C a p í t u l o 2 8 - O m e r c a d o de t r a b a l h o 527
A dupla estrutura do trabalho urbano: mão-de-obra livre, mão-de-obra escrava .... 530
A oferta dc emprego "
O mercado dc trabalho para homens livres
Os escravos c o mercado dc trabalho ^7

C a p í t u l o 2 9 - Salários c preços 5 4 4

Os salários 5 4 6

Preços c necessidades alimentares • ^


Os salários e o preço da farinha nossa dc cada dia

C a p í t u l o 3 0 - Hierarquias sociais 5 7 9

O modelo português dc sociedade


O modelo baiano de sociedade •
A . . . S92
As estruturas sociais rurais
Estratificação social cm Salvador 596
Comparações 599
BAHIA, S É C U L O X I X

C a p í t u l o 3 1 — A fortuna dos B a i a n o s 602


Classificação das fortunas 606
Q u e m possuía? 616
Q u e m possuía o quê? 628
Riquezas e pob rezas 642
Conclusão 649

Notas 653

Bibliografia 719
PREFÁCIO

Maria Yedda Linhares


Professora Catedrática de História Moderna e Contemporânea
Professora Emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro

A tese d e K a t i a M . de Q u e i r ó s M a t t o s o s o b r e S a l v a d o r n ã o n a s c e u de u m m e r o inte-
resse a c a d ê m i c o . C o m o b e m d i z a h i s t o r i a d o r a l o g o n o i n í c i o , ela r e s u l t o u de u m
e n c o n t r o p r o v o c a n t e : o d e u m a m u l h e r g r e g a d e p r o f u n d a s raízes e u r o p é i a s e h e l é n i c a s
c o m a B a h i a d e T o d o s o s S a n t o s e de m ú l t i p l o s c o l o r i d o s . O m u n d o p l u r i m i s c i g e n a d o ,
p l e n o de a l a r i d o s e r i t m o s , c a ó t i c o n a d e s o r d e m de suas e s t r a t i f i c a ç õ e s sociais, diver-
s i f i c a d o e r i c o nas suas s u b c u l t u r a s p o p u l a r e s , ao m e s m o t e m p o alegre e triste, v i o l e n t o
e p a c í f i c o , c o n t r a d i t ó r i o , s u b m i s s o e a r r e d i o , t o d o esse m u n d o e s t r a n h o r e v e l o u - s e , à
j o v e m grega egressa d e u m a g u e r r a e u r o p é i a , l o g o s e g u i d a de u m a e s t ú p i d a guerra
civil, c o m o a p o s s i b i l i d a d e de u m a n o v a p á t r i a . .
A s s i m , a h i s t ó r i a d e s t a g r a n d i o s a tese n ã o d e i x a d e ser a s í n t e s e de u m a trajetória
— a f o r m a ç ã o e e v o l u ç ã o d e u m a h i s t o r i a d o r a c o n s t r u i n d o o seu t e m a , v i v e n d o a
e x p e r i ê n c i a de e x p l i c á - l o a si m e s m a e a o s a l u n o s q u e ela s o u b e f o r m a r , dadivosa ao
partilhar o c o n h e c i m e n t o q u e ia a c u m u l a n d o , l u t a n d o p o r r e n o v a r a pesquisa histórica
n o Brasil, p o r a m p l i a r as p o s s i b i l i d a d e s de a v a n ç o i n t e l e c t u a l e c i e n t í f i c o para u m s e m -
n ú m e r o de j o v e n s b r a s i l e i r o s c u j o s t a l e n t o s ela s o u b e revelar e i n c e n t i v a r . Aí estão seus
d i s c í p u l o s e a m i g o s , m e s t r e s , d o u t o r a n d o s e d o u t o r e s , t e s t e m u n h o s da trajetória de
t r a b a l h o , c o m p e t e n c i a c s e r i e d a d e p r o f i s s i o n a l de q u e m c h e g o u u m b e l o dia em S ã o
P a u l o , c o n s t i t u i u família nestas b a n d a s de c á , o p t o u p o r ser brasileira e abriu c o m
a f i n c o e u m m í n i m o de a p o i o i n s t i t u c i o n a l o e s p a ç o q u e h o j e o c u p a na primeira linha
da i n t e l e c t u a l i d a d e da nossa terra.
O r i g i n a r i a m e n t e tese d c E s t a d o , a p r e s e n t a d a c m 1 9 8 6 à Universidade de Paris I V
- S o r b o n n e , este texto teve a o p o r t u n i d a d e d c ser analisado por u m a banca na qual
c o n s t a v a m alguns dos mais ilustres historiadores da F r a n ç a , c o m o Pierre C h a u n u ,
E m m a n u e l Le R o y L a d u r i c , J e a n - M a r i e M a y e u r e F r a n ç o i s C r o u z e t , este ú l t i m o ten-
BAHIA, SÉCULO X I X

do-se destacado c o m o o r i e n t a d o r . C o u b e - m e , e m b o r a m o d e s t a m e n t e , a h o n r a de
participar dessa c o m i s s ã o , algo i m p o r t a n t e n o m e u c u r r í c u l o p o r m e ter p e r m i t i d o u m
c o n t a t o mais estreito c o m a grande obra e n t ã o s u b m e t i d a à a p r o v a ç ã o daquela U n i v e r -
sidade. E aqui presto o m e u d e p o i m e n t o : a tese de K a t i a M a t t o s o foi m i n u c i o s a m e n t e
e x a m i n a d a , d u r a n t e c i n c o horas, e a c l a m a d a , por u n a n i m i d a d e , c o m o u m trabalho
magistral, d a d o o seu raro nível de e x c e l ê n c i a .
C o m o c o r o l á r i o , e n u m a d e m o n s t r a ç ã o de q u e c a b e à U n i v e r s i d a d e absorver os
valores e x p o n e n c i a i s q u e a ela se revelam, foi criada a c á t e d r a de H i s t ó r i a d o Brasil em
Paris I V - S o r b o n n e , c a b e n d o a K a t i a de Q u e i r ó s M a t t o s o o c u p a r a sua primeira
regência c o m o T i t u l a r . E , mais u m a vez, s e m p r e b a t a l h a d o r a , c o u b e - l h e , j á e m Paris,
organizar e presidir u m C o l ó q u i o , e m j a n e i r o de 1 9 9 0 , r e u n i n d o especialistas franceses
e brasileiros s o b r e diferentes experiências r e p u b l i c a n a s na H i s t ó r i a e u r o p é i a e a m e r i c a -
na, inclusive n o Brasil.
V i v e r h o j e na F r a n ç a e ser d e t e n t o r a de u m a C a d e i r a e m Paris é, s e m dúvida, a
r e c o m p e n s a de u m p r o l o n g a d o t r a b a l h o . M a s , para K a t i a , viver n o Brasil foi o seu
mais e m o c i o n a n t e a p r e n d i z a d o n o desbravar c o t i d i a n o de u m a realidade social e cul-
tural e x ó t i c a , c o m p l e x a , b e m diversa d a q u e l a q u e n u t r i r a seus p r i m e i r o s saberes e suas
primeiras certezas. N o f u n d o , foi o l o n g o e indispensável e s t á g i o de preparação da
historiadora: o c o n t a t o c o m a vida q u e se revela, aos p o u c o s , através da sensibilidade
da observadora e p a r t i c i p a n t e . A o desbravar o n o v o m u n d o , é indisfarçável o abrasi-
l e i r a m e n t o através de u m a certa b a i a n i d a d e q u e e n r i q u e c e a h i s t o r i a d o r a , na medida
em que os falares, a c u l i n á r i a , os ruídos e a d o c e m a n e i r a de ser b a i a n a se t o r n a r a m
parte^ integrantes de sua própria m a n e i r a de ser grega e e u r o p é i a . F o i esta a simbiose
f u n d a m e n t a l n a vida de K a t i a , pois, n ã o t e n h o m a i s dúvidas — agora q u e t a m b é m
c o n h e ç o um p o u c o a G r é c i a — , foi a partir desse e n t e n d i m e n t o d o Brasil via Bahia
que ela r e e n c o n t r o u a sua G r é c i a ancestral.

P a r e c e - m e inegável q u e esse r e e n c o n t r o explica a l u c i d e z dos q u a t r o capítulos c o m


os quais ela abre a apresentação de sua cidade e de sua região, pela utilização exemplar
da geografia. E n t r o s a m - s e aí o u r b a n o e o r e c ô n c a v o , o papel dos rios e das vias de
c o m u n i c a ç ã o , cenário m a g n í f i c o e i n ó s p i t o a aguardar a chegada dos novos h o m e n s
que iriam conquistar, ocupar, repovoar a terra, cultivar e t r a n s p o r t a r os seus produtos.
É o peso dos h o m e n s c o papel da H i s t ó r i a , para se chegar, passo a passo, à c o n s t r u ç ã o
de uma sociedade. A partir desse m o m e n t o , Katia abre em leque os seus múltiplos
temas de pesquisas pessoais c m arquivos da Bahia e d o R i o de J a n e i r o : a família baiana,
a Igreja, a organização da vida e c o n ô m i c a , os preços, os salários, as hierarquias sociais.
A leitura dos diferentes capítulos que se seguem à apresentação d o m e i o físico e da
demografia nos informa sobre o m i n u c i o s o trajeto feito pela historiadora ao l o n g o de
anos de pesquisas exaustivas c, em grande parte, absolutamente pioneiras e m termos
brasileiros, sobretudo baianos. Na alentada Introdução, a historiadora c o n d u z o leitor
a seguir os passos que deu c suas motivações, a p o n t a n d o os c a m i n h o s q u e a levaram
no primeiro m o m e n t o à história e c o n ô m i c a e, paulatinamente, à história social e das
PREFÁCIO 3

mentalidades coletivas, b e m c o m o às p r e o c u p a ç õ e s teóricas e metodológicas c à busca


das fontes, c o m seus inegáveis l i m i t e s . E m cada m o m e n t o , é f u n d a m e n t a l destacar a
erudição historiográfica q u e o s t e n t a .
O r a , há 2 5 anos, q u a n d o p r i m e i r o e n c o n t r e i K a t i a M a t t o s o n u m a pequena reu-
nião de historiadores e m N o v a F r i b u r g o ( R J ) , confesso que fiquei fascinada c o m o
e x t e n s o l e v a n t a m e n t o de preços que e n t ã o o c u p a v a t o d o o seu t e m p o . Tratava-se de
u m a pesquisa inédita n o Brasil de e n t ã o . A o m e s m o t e m p o , ela nos falou da história
d e m o g r á f i c a feita a partir de l e v a n t a m e n t o s de registros paroquiais, tarefa que coube
a J o h i l d o L. de Atayde desenvolver para o século X I X n o t o c a n t e a Salvador. E m pouco
t e m p o , c o m u m g r u p o de j o v e n s colegas d o R i o , e l a b o r a m o s u m projeto de pesquisa,
inspirado e e m c o l a b o r a ç ã o c o m nossa a m i g a baiana, a b r a n g e n d o u m variado levan-
t a m e n t o de f o n t e s suscetíveis de q u a n t i f i c a ç ã o , referentes à cidade do R i o de J a n e i r o ,
trabalho esse q u e foi p a r c i a l m e n t e c o n c l u í d o , e m fases posteriores, por Eulália Maria
L a h m e y e r L o b o , M a r i a B á r b a r a L e v y e p o r m i m m e s m a . A m e t o d o l o g i a vinha sendo
testada de l o n g a data na E u r o p a , s o b r e t u d o n a F r a n ç a , mas para nós era u m universo
que se abria. M a i s t a r d e , a i n d a s e g u i n d o esse e x e m p l o , c d e s d o b r a n d o - o , desenvolvi
u m p r o j e t o b a s t a n t e s i g n i f i c a t i v o de h i s t ó r i a agrária, e m â m b i t o de pós-graduação. O
que i m p o r t a assinalar é q u e o e n c o n t r o c o m K a t i a M a t t o s o em meados da década de
1 9 6 0 foi e s t i m u l a n t e e decisivo n o n o v o r u m o t o m a d o por grupos de historiadores no
R i o de J a n e i r o , h o j e já para m a i s de t r i n t a mestres e d o u t o r e s , na Universidade Federal
F l u m i n e n s e e na U n i v e r s i d a d e F e d e r a l do R i o de J a n e i r o .

D a m e s m a f o r m a , a utilização s i s t e m á t i c a q u e K a t i a fez de inventários post mortem


da Bahia, inclusive de escravos e forros, a b r i u novas perspectivas de estudos em histó-
ria social ( c o m o se é r i c o , c o m o se é p o b r e ) , e x e m p l o q u e t a m b é m foi amplamente
seguido em vários c e n t r o s universitários d o Brasil. O c u i d a d o c o m os conceitos, a
relatividade do v o c a b u l á r i o , o perigo d o a n a c r o n i s m o , são algumas das advertências
preliminares, i n c o r p o r a d a s ao p r ó p r i o c o r p o t e ó r i c o das investigações. Importa, pois,
ressaltar a o r i e n t a ç ã o m e t o d o l ó g i c a , d e n t r o de novas preocupações teóricas, c o m o uma
ponderável c o n t r i b u i ç ã o à r e f o r m u l a ç ã o de temáticas e reorientação dos conhecimen-
tos. Ao longo de trinta anos, Katia c o n d u z i u seminários c o m seus alunos em seu
apartamento de Salvador, t e n d o sido s e m p r e u m a infatigável orientadora de pesquisa,
aberta às indagações e generosa n o acesso q u e concedia a seus ciados e conclusões. N o
Brasil c, agora, na França, Katia M a t t o s o marcou e marca sua presença c o m o profes-
sora, pesquisadora c chefe de equipe. Afinal, sem a persistente pesquisa arquivística,
associada à preocupação c o n s t a n t e de formular c reformular problemáticas e hipóteses
de trabalho, não há Universidade que se preze, nem existe possibilidade de construção
c reconstrução de c o n h e c i m e n t o .
Aí reside o principal mérito do saber que a Universidade propicia: o saber nunca
rançoso e que sempre se renova. T a m b é m nisso Katia dá o eaemplo. D a história
quantitativa e serial dos preços, feita com afinco e correção de método, e da demograha
histórica tradicional da velha escola francesa, à atual preocupação com uma história
4

a ara os fatos d o c o t i d i a n o , c e n t r a d a nas men-


social menos estrutural e mais volta a p Q S r e c u 0 s . S e , p o r u m lado, a

talidades, foram grandes os avanços, mas ^^ . ^ ^ p o u c o o u m a i s intelectualizados,


História se tornou mais />*/W^ e pa atave ^ ^ e x p l i c a t i v o . Katia
por outro, ela perdeu em a r g h i s t ó r i a e c o n ô r n i c a s e r i a l

M a t t o s o soube dar u m . a l t o i m p o r t a m a o m ^ ^ sociais,

vigorou até os anos 6


^ ^ ^ â c t n o s m e r o s relatos historizantes de
voltada oara as mentalidades, mas sem sc ^ .
„o os analistas da chamada vida política d o passado m a i s r e m o t o . É assim que seu
livro se abre para a história bastante sugestiva da I g r e j a , a p o n t a n d o , dessa f o r m a , para
um dos pilares daquela sociedade. Sei q u e suas i n v e s t i g a ç õ e s nesse c a m p o c o n t i n u a m .
Esperemos, para breve, a i m p o r t a n t e o b r a q u e c e r t a m e n t e virá p r e e n c h e r u m a lacuna
na historiografia brasileira.
Suas conclusões são simples mas instigadoras de n o v o s c o n h e c i m e n t o s . A o refletir
sobre o tema, moveu-a a p r e o c u p a ç ã o de e x p l i c a r p o r q u e a B a h i a — q u e fora capital
da C o l ô n i a e a " m a i s p o l i c i a d a " das cidades d o E s t a d o d o B r a s i l , n o d i z e r d o professor
de grego do século X V I I I s o t e r o p o l i t a n o , L u í s dos S a n t o s V i l h e n a — c h e g o u à situa-
ção de letargia, m u i t o palpável ainda n o i n í c i o d a s e g u n d a m e t a d e d o século X X .
Recuar n o t e m p o e procurar u m a e x p l i c a ç ã o plausível, eis a l i n h a q u e K a t i a traçou. E
formulou suas perguntas: a esclerose da e c o n o m i a b a i a n a , a l i a d a às resistências de
relações sociais enraizadas na história da C o l ô n i a e d a e s c r a v i d ã o , t e r á a explicação
profunda na letargia que se apossa da P r o v í n c i a / E s t a d o a p a r t i r d o m e a d o d o Império?
Existirá, de fato, u m a relação de causa e efeito e n t r e o e c o n ô m i c o e o social? E , ainda,
a partir de que m o m e n t o e de que indícios se p r e s s e n t e a m u d a n ç a d o preservar e do
manter para o gosto do inovar e do desenvolver?
C o m essas questões em m e n t e , K a t i a p e n e t r a n a a l m a b a i a n a , n o s seus m i t o s e em
algumas de suas falácias: a majestade do "ser senhor de e n g e n h o " , a d e m o c r a c i a racial que
camufla o conflito (já t e m a de u m livro i m p o r t a n t e , Ser escravo no Brasil, e d i t a d o origi-
nalmente em francês), o e q u í v o c o de se acreditar s e m p r e na i n f i n i t a fertilidade das ter-
ras inesgotáveis, o peso d o c o m e r c i a n t e sobre o p r e s t í g i o s o c i a l d o g r a n d e proprietário
rural, o gosto associativo dos baianos, o i m e n s o papel d a fé, das p r á t i c a s religiosas e da
orga .zaçao da Igreja, o ser n c o n o século X I X , o ter sido escravo s i n ô n i m o d e ser pobre.

1 8 6 0 no L a P r o v . f 7° ^T™' C
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nossa I rovíncia foi desaprendendo •« i •


posras pelo m u„ d o , „ , c . cercava Curdo 1 7 eCO
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na sua maneira própria dc p r e s « „ , , T " ° ™ d „ r . , , c o u b e às relações sociars,


s t

herdado da escravidão. m a o ' m " ! ™ " ° " f f " " * * " » ' " « ! *
jugos e das submissões seculares. " > b r e v . v í n c . a e d e e s c a m o t e a ç ã o dos
T e n h o certeza dc que o leitor ene
e muitos outros temas dc reflexão c de c n ' ^ h
' S t 6 r Í a s o c i a l d a B a h i a e S S C S

a complexidade do presente com o q u a I nl^e™™ 0 i n t c l e c t u a l


- P e r c e b e r á melhor
o c o n h e c i m e n t o apressado de uma histór' ' ° ° r n r a m o s
' > d a , o q u a n t o é ilusório
e air

, a
que s c p o s s a a u t o - i n t i t u l a r definitiva. Ao
PREFÁCIO 5

trazer a p ú b l i c o a sua o b r a Bahia, século XIX- Uma província no Império, K a t i a M . de


Q u e i r ó s M a t t o s o n o s d á u m a l i ç ã o de d i g n i d a d e p r o f i s s i o n a l e de grandeza a c a d ê m i c a ,
a f i r m a n d o , ao t e r m i n a r , c o m h u m i l d a d e , q u e a p e n a s " c o m e ç a a c o m p r e e n d e r essa
s o c i e d a d e , o n d e os h u m i l d e s e os pobres de espírito s ã o t a n t o s q u e suas vozes deveriam
a b a f a r a dos g l o r i o s o s e dos e l o q ü e n t e s " .

É g o s t o s o p e n e t r a r n o m u n d o b a i a n o pela m ã o de K a t i a M a t t o s o , a grega de
f a b u l o s a t r a d i ç ã o c i v i l i z a t ó r i a , q u e se fez brasileira n a i n t e l i g ê n c i a e n o c o r a ç ã o .
APRESENTAÇÃO

Este livro nasceu de u m a tese d e f e n d i d a e m o u t u b r o de 1 9 8 6 na Universidade de


P a r i s - S o r b o n n e . Para u m professor brasileiro, c o m o eu, o desafio era audacioso:
apresentar u m a tese c u j a m o n u m e n t a l i d a d e respondesse às exigências do Doutorado
de E s t a d o , a " g r a n d e t e s e " , q u e a F r a n ç a de h o j e acaba de suprimir pela urgente
necessidade de acelerar o acesso de j o v e n s professores ao magistério superior.
Para esta e d i ç ã o , o texto original foi t o d o revisado, de m o d o a permitir uma leitura
mais ágil. Para t a n t o , foram s u p r i m i d a s numerosas tabelas, longas listas, gráficos e
anexos por demais t é c n i c o s .
Seria impossível n o m e a r todos os q u e , na trajetória de um trabalho de fôlego feito
ao longo de u m a vida de m u i t a s a n d a n ç a s , a j u d a r a m - m e pela presença encorajadora ou
pelas sugestivas e proveitosas discussões: antigos alunos das universidades de Salvador,
colegas professores, f u n c i o n á r i o s dos m u i t o s arquivos públicos e privados, amigos
mais jovens o u mais experientes e o povo da B a h i a de T o d o s os Santos, que, em mais
de trinta anos de c o n v i v ê n c i a ininterrupta, e n s i n o u - m e a amar e fez tanto por mim.
T o d a v i a , sem o a p o i o e a amizade de François C r o u z e t e sem o incentivo de Pierre
C h a u n u esta obra jamais teria sido apresentada da maneira prestigiosa c o m o me foi
permitido fazê-lo na S o r b o n n e .
D e v o t a m b é m expressar t o d o o m e u r e c o n h e c i m e n t o à generosidade, à abertura de
espírito c h fidelidade às raízes baianas demonstradas pelos editores da Nova Fronteira.
Sem a tenacidade de Maria Clara M a r i a n i , do seu filho Carlos Augusto e da equipe
dirigida por César B e n j a m i n , este livro, tão volumoso para os padrões brasileiros, não
seria editado em meu país.
A Maria Clara Mariani e a seus colaboradores, o mérito de terem acreditado que as
contribuições por mim trazidas ao c o n h e c i m e n t o de certos aspectos do rico passado da
nossa Bahia ajudariam a compreender os vários mundos baianos dos tempos de hoje.

Katia M. de Queirós Níattoso


Paris, 7 de dezembro de 1991

7
INTRODUÇÃO

D e i x e m - m e c o n f e s s a r : este t r a b a l h o resulta d e t r i n t a a n o s de a m o r por u m a cidade,


Salvador, e p o r u m a região, a B a h i a . U m a m o r imprevisível, d e c o r r e n t e de u m itinerário
imprevisível; p r o v o c a n t e , n a s c i d o de u m e n c o n t r o p r o v o c a n t e entre u m p o v o que veio
de todas as p a r t e s e u m a m u l h e r grega, c o m fortes raízes européias e helénicas.
Q u e f e i t i c e i r o m a l i c i o s o teria f e i t o u m a j o v e m v o l i o t a — de V o l o s , p e q u e n o e
importante porto oriental da G r é c i a — c o m p l e t a r na séria L a u s a n n e seus estudos
s e c u n d á r i o s , p e r t u r b a d o s p o r n o v e l o n g o s a n o s de guerra, seguidos de u m a guerra
civil i g u a l m e n t e cruel? A b o a c i d a d e s u í ç a o f e r e c i a e n t ã o sólidas escolas universitárias
a uma pequena elite e m q u e os estrangeiros — s o b r e t u d o , as estrangeiras — eram
p o u c o n u m e r o s o s . P e l a p r i m e i r a vez e x p e r i m e n t e i o c h o q u e , a adaptação e o enrique-
c i m e n t o i n t e r i o r , f a c i l i t a d o s , é v e r d a d e , p o r u m a i n f â n c i a e u m a adolescência nas
quais a i n f l u ê n c i a f r a n c e s a f o r a m a r c a n t e . T i v e a s o r t e de p e r t e n c e r a u m a família
aberta e interessada n o s o u t r o s . A l é m disso, apesar de ter passado longos meses sem
escola p o r causa das a t r i b u l a ç õ e s d a guerra, m e s t r e s excelentes, c o m o S i m o n e Marxer,
H é l è n e C h a l i v o p o u l o u e C o n s t a n t i n L a d o y a n n i s a j u d a r a m - m e a despertar para a vida,
deixando c o m o h e r a n ç a u m s e n t i m e n t o d e gratidão q u e até h o j e a n i m a e alegra mi-
n h a v o n t a d e de 'fazer h i s t ó r i a ' .
Em 1 9 5 6 , c o m 2 5 a n o s d e i d a d e , a c o s t u m a d a às populações homogêneas da
G r é c i a e da S u í ç a , tive e m S ã o P a u l o m e u p r i m e i r o c o n t a t o c o m o Brasil. T u d o parecia
febril, d i n â m i c o , em expansão, até m e s m o arrogante, nessa cidade de aparência européia,
habitada porém por pessoas de n a c i o n a l i d a d e s e cores as mais diferentes. M a s só n o
a n o seguinte d e s c o b r i , e m Salvador, o Brasil q u e p o u c o a p o u c o se tornaria meu.
A B a h i a m e foi i m p o s t a p o r acaso: descobrira-se petróleo na região do Recôncavo,
hinterlândia da capital, e para lá seguiu m e u m a r i d o , g e ó l o g o , encarregado de fundar
a primeira escola brasileira especializada n o assunto. Salvador tinha então meio milhão
dc habitantes, mas — em contraste c o m a S ã o Paulo de 3 , 5 milhões — era uma 'bela
adormecida , a p a r e n t e m e n t e estagnada n o t e m p o . Sua população parecia dez vezes
1

m e n o r que a real, escondida em p e q u e n o s vales q u e separavam colinas furta-cores,


cercadas pelo mar c por praias acolhedoras. O s baianos rezavam em igrejas e conventos

9
10 BAHIA, SÉCULO X I X

ricamente adornados c o m o u r o e c o m deliciosas estátuas barrocas, mas m o r a v a m em


casebres o u mansões deterioradas, t e s t e m u n h a s de u m e s p l e n d o r d e c a d e n t e . D e s d e
q u a n d o a o p u l e n t a capital d o Brasil c o l o n i a l se t o r n a r a u m a cidade e m que riqueza e
glória eram coisa do passado?
S ã o P a u l o e n r i q u e c i a c o m o r g u l h o . Salvador gritava sua d e c a d ê n c i a . F a l t a v a m , à
cidade, prédios m o d e r n o s e i m p o n e n t e s ; os b o n d e s c i r c u l a v a m por ruas e avenidas
estreitas, o n d e p o u c o s a u t o m ó v e i s se v i a m ; os ricos e r e m e d i a d o s h a v i a m e m i g r a d o
para bairros mais arejados. O Brasil de S ã o P a u l o era o m e s m o d a B a h i a ? Haveria
vários Brasis? A t é a p r e d o m i n â n c i a e u r o p é i a , q u e p u d e s e n t i r n o p r i m e i r o c o n t a t o
c o m o país, dava lugar agora à m a r c a n t e i n f l u ê n c i a a f r i c a n a , i n f i n i t a m e n t e variada
pelas m e s t i ç a g e n s . O s rostos de ricos e p o b r e s t i n h a m traços n e g r o i d e s , para m i m
nítidos e impressionantes, p o r é m p o u c o perceptíveis — pude constatar — para os
habitantes d o lugar.
A vida c o t i d i a n a m e fez ' a p r e n d e r a B a h i a ' . A l u g a m o s u m a p a r t a m e n t o num
prédio de três andares de u m bairro c o n s i d e r a d o e x c e l e n t e ; m a s a ladeira, r e c é m -
construída, virava l a m a ç a l a cada p a n c a d a de c h u v a . N a v i z i n h a n ç a , casas de taipa c o m
c h ã o de terra batida a b r i g a v a m sob folhas de b a n a n e i r a u m a p o p u l a ç ã o m u i t o p o b r e .
T o d a s as n o i t e s , d u r a n t e horas, v i n h a m dali e s t r a n h o s r i t m o s e c a n t o s religiosos, c u j o
mistério n ã o se desfazia a c a d a m a n h ã .

A d a p t a r - m e significava renascer. E r a preciso a p r e n d e r — c o m a inteligência e o


c o r a ç ã o — os pressupostos de u m m u n d o n o v o . Isso d e m a n d a v a t e m p o . O português
que eu falava era c o r r e t o , m a s i n s u f i c i e n t e para a relação diária c o m a p o p u l a ç ã o .
Ainda teria q u e m e a c o s t u m a r à fala d o c e e ao s o t a q u e b a i a n o s e, s o b r e t u d o , às mil e
uma sutilezas implícitas nas palavras, de s e n t i d o q u a s e s e m p r e i t i n e r a n t e , variando
c o n f o r m e q u e m fala e a q u e m se dirige. O s b a i a n o s t ê m sensibilidade à flor da pele.
U m gesto inábil cria a b i s m o s e n t r e as pessoas. T r a t a r , p o r e x e m p l o , u m b r a n c o de nego
— ou de meu nego — é sinal de afeição; m a s , se o i n t e r l o c u t o r é n e g r o o u m u l a t o , isso
pode indicar desprezo, o u ser e n t e n d i d o assim.
O vocabulário local c o n t é m expressões típicas da o p i n i ã o dos baianos sobre o
m u n d o . ' S e D e u s quiser' indica, ao m e s m o t e m p o , resignação e fé, c o m c o n o t a ç ã o
supersticiosa. E m Salvador, essa prudente assertiva a c o m p a n h a a expressão de qual-
quer desejo ou esperança, m e s m o banais, c o m o retornar n o dia seguinte ao m e s m o
lugar. Mas há uma c o m p e n s a ç ã o para tal insegurança: o ' j e i t o ' , vigente — é verdade —
em todo o Brasil, mas especialmente na Bahia, terra das coisas feitas c o m arte e astúcia.
A existência do jeito antecede o próprio problema específico a ser enfrentado: o tra-
balhador 'dá um j e i t o ' de efetuar um conserto impossível; o marinheiro faz o m e s m o
para enfrentar ventos, barras c escolhos; o jovem, ' c o m j e i t o ' , e n c o n t r a o emprego n e -
cessário. C o m a ajuda de Deus e do ' j e i t o ' , complementares entre si, o senhor de
engenho e o pequeno lavrador esperam, a cada a n o , uma colheita m e l h o r .

T i v e também que aprender o português erudito dos baianos cultos, que não
usavam o palavreado c a sintaxe popular simplificados. Falavam quase uma outra
INTRODUÇÃO ti

língua, i g u a l m e n t e indispensável para c o m p r e e n d e r u m m u n d o e m que a fala era mais


i m p o r t a n t e d o q u e a escrita, em que as tradições eram t r a n s m i t i d a s pela família (sem
i n t e r v e n ç ã o da escola) e p o r l i n g u a g e n s , usos e c o s t u m e s b e m c o d i f i c a d o s . Esses c ó d i -
gos variavam s e g u n d o os g r u p o s sociais, t o r n a n d o - s e m u i t o diversificados em u m a
sociedade em que n ã o apenas a c o r , mas t a m b é m as tradições religiosas e culturais
eram miscigenadas. O s g r u p o s h a v i a m l e v a n t a d o barreiras que os tornavam pouco
acolhedores d i a n t e de ' e s t r a n g e i r o s ' , i n c l u i n d o - s e nestes os brasileiros o r i u n d o s de
o u t r o s estados. P e r n a m b u c a n o s , s e r g i p a n o s , paulistas, cariocas o u m i n e i r o s , todos
eram i m e d i a t a m e n t e r e c o n h e c i d o s e c o l o c a d o s e m seu lugar: fora!
M e u m a r i d o e eu t í n h a m o s p o d e r o s o s t r u n f o s : f o r m á v a m o s um casal de raça
b r a n c a , c o m s o b r e n o m e c o n h e c i d o e i n s t r u ç ã o universitária. A s s i m , integrávamos, de
saída, o g r u p o d o m i n a n t e , a elite i n t e l e c t u a l . H a v i a u m a antiga tradição universitária
e era g r a n d e o prestígio social dos s e n h o r e s de e n g e n h o , q u e e m outras épocas t i n h a m
feito da p r o v í n c i a b a i a n a u m s í m b o l o da riqueza a ç u c a r e i r a . U m Q u e i r ó s M a t t o s o
podia ser ' e s t r a n g e i r o ' , m a s , para c e r t a c a s t a , era u m e s t r a n g e i r o f r a t e r n o , descendente
de u m a n o b r e f a m í l i a de s e n h o r e s de e n g e n h o d o R i o de J a n e i r o , d e t e n t o r a de títulos
o u t o r g a d o s n o século X I X e m r e c o n h e c i m e n t o aos serviços prestados a o i m p e r a d o r .
Além disso, os b a i a n o s l e t r a d o s n u t r i a m u m c u l t o s i n c e r o à E u r o p a e ao acervo da
civilização grega. A s s i m , p o r causa da nossa o r i g e m o u p e l o tradicional n o m e da nossa
família, portas se a b r i r a m .

F o m o s r e c o n h e c i d o s social c p r o f i s s i o n a l m e n t e . M a i s do que isso: f o m o s rapida-


m e n t e a c o l h i d o s , p r o t e g i d o s , a m a d o s , pela figura q u e viria a ser — é até hoje —
m i n h a o r i e n t a d o r a em m a t é r i a d e m e n t a l i d a d e s b a i a n a s : Adalgisa M o n i z de Aragão,
filha e n e t a de s e n h o r e s de e n g e n h o , d e s c e n d e n t e de u m a família que se instalara na
Bahia nos idos d o s é c u l o X V I . E l a n o s e n s i n o u as regras de c o n d u t a q u e regem as
relações e n t r e os diversos g r u p o s sociais de Salvador. O r g u l h o s a herdeira de riquezas
perdidas (até d i l a p i d a d a s ) , d o n a - d e - c a s a de c o r a ç ã o a b e r t o , c o m p l e t a m e n t e baiana,
Adalgisa m e fez c o m p r e e n d e r as h i e r a r q u i a s sociais da região, impregnadas de desi-
gualdades, que t o r n a v a m q u a l q u e r b r a n c o u m h o m e m rico e qualquer preto, ou qua-
se preto, u m p o b r e . A b r a n c u r a era mais i m p o r t a n t e (e mais durável) que a riqueza,
que podia desaparecer. E r a o verdadeiro sinal de h e r a n ç a n o b r e , t e s t e m u n h o de um
passado a ser preservado.
M i n h a amiga me fez ver q u e d e c a d ê n c i a alguma d i m i n u í a o prestígio dos senhores
de e n g e n h o . A l e m b r a n ç a de grandezas passadas era fielmente conservada por meio de
uma tradição oral q u e r e m e m o r a v a — n a t u r a l m e n t e , c m b e l c z a n d o - o s c o m estórias
novas — os faustos de o u t r o r a , tornados assim quase palpáveis. Essa antiga elite
formava um grupo fechado, cujos m e m b r o s compartilhavam um orgulho, uma sober-
ba, que podia tornar-se arrogância. O s 'novos ricos', brasileiros ou estrangeiros, eram
considerados c o m um desdém que mal dissimulava certo ciúme. Por outro lado, as
alianças m a t r i m o n i a i s c o m famílias tradicionais — m e s m o empobrecidas, às vezes
muito — p e r m a n e c i a m um s o n h o para qualquer 'enriquecido'. A uns, tais alianças
BAHIA. SÉCULO X I X

I - > « niirros i n e r e s s a r nesse m e i o t e c h a d o ,


p e r m i t i a m ' d o u r a r n o v a m e n t e seus brasões ; a o u t r o s , m g

s u p r e m o sinal de ê x i t o . ,
F o n t e de poder e de relativa s e g u r a n ç a , o serviço p ú b l i c o era c o n s i d e r a d o p o r essas
famílias tradicionais c o m o a ú n i c a atividade c o m p a t í v e l c o m sua c o n d i ç ã o e seu dese,o
de m a n d o . D e p o i s de estudar e n g e n h a r i a , d i r e i t o o u m e d i c i n a , a b r i a - s e n a t u r a l m e n t e ,
aos filhos dessa elite, u m a carreira q u a l q u e r de f u n c i o n á r i o . O s ' c o n c u r s o s seleciona-
v a m r e g u l a r m e n t e os i n t e g r a n t e s de f a m í l i a s c o n h e c i d a s . F e i t a a n o m e a ç ã o , o j o g o se
perpetuava: o d e s c e n d e n t e d e a n t i g o s p r o p r i e t á r i o s (de t e r r a s , a ç ú c a r o u g a d o ) ou de
grandes n e g o c i a n t e s c o n t i n u a v a f a v o r e c e n d o seus pares nas p r o m o ç õ e s .
Isso n ã o i m p e d i a , n o e n t a n t o , q u e se p e r p e t u a s s e a v e l h a p r á t i c a de p r e s t a r favores
a a m i g o s mais m o d e s t o s , f o r m a n d o assim u m a c l i e n t e l a fiel, c u j a e x i s t ê n c i a era um
i m p r e s c i n d í v e l sinal d a p o s i ç ã o social d o f u n c i o n á r i o . A f i n a l , f o r t u n a s d i m i n u í a m e
até d e s a p a r e c i a m , m a s o p r e s t í g i o das f a m í l i a s p r e c i s a v a ser r e n o v a d o , reavivado e
f o r t a l e c i d o p o r m e i o desse s e m - n ú m e r o de a f i l h a d o s . A l é m d e ser u m a h o n r a e u m a
f o n t e de r e m u n e r a ç ã o segura, servir a o E s t a d o t r a z i a p r e s t í g i o , g a r a n t i a o d e s e m p e n h o
d o papel de p r o t e t o r e r e n o v a v a a i n f l u ê n c i a , real o u s u p o s t a , de q u e m geria uma
parcela d o p o d e r .
Apesar d o e m p o b r e c i m e n t o e até m e s m o de f a l ê n c i a s e s t r o n d o s a s , essas famílias
g e r a l m e n t e c o n s e r v a v a m vestígios da riqueza de a n t a n h o : p r a t a r i a e s p l ê n d i d a , jóias
raras, b i b e l ô s a n t i g o s , tapetes i m p o r t a d o s , o r a t ó r i o s c o m e s t a t u e t a s p o l i c r o m a d a s e
móveis imponentes, fabricados c o m madeiras preciosas. O s e m p r e g a d o s tinham
o b r i g a ç õ e s específicas: havia a b a b á , a g o v e r n a n t a , a c o z i n h e i r a , a c r i a d a d e q u a r t o ,
a lavadeira, a passadeira e assim p o r d i a n t e , s e m p r e e m n ú m e r o i n v e r s a m e n t e pro-
p o r c i o n a l às rendas o u à q u a n t i d a d e d e pessoas a s e r e m a t e n d i d a s . N ã o e r a m r e m u -
nerados, pois servir a essas famílias era u m a h o n r a . A l é m d i s s o , q u a n d o crianças,
haviam b r i n c a d o c o m a d o n a - d e - c a s a , o u e r a m a f i l h a d o s de sua filha, ou descen-
diam de antigos escravos, de a m i g o s o u de p a r e n t e s p o b r e s , a c o l h i d o s n o passado e
m a n t i d o s pela família. S u a d e d i c a ç ã o g a r a n t i a - l h e s casa, c o m i d a e r o u p a s e renovava
esperanças de ascensão social. G l ó r i a s e h o n r a r i a s , r e c o m e n d a ç õ e s e p e r m u t a s , n o -
vos a p a d r i n h a m e n t o s , p r o x i m i d a d e c o m o privilégio — t u d o isso valia mais que
dinheiro.
Estabelecidos na cidade, os antigos proprietários viviam n u m vaivém q u e lhes
permitia cultivar relações c o m os q u e habitavam suas terras. F o r m a l i d a d e s administra-
tivas, consultas médicas ou simples v o n t a d e de rever parentes e a m i g o s traziam a
Salvador, para temporadas mais ou m e n o s longas, grande n ú m e r o de familiares, em
busca talvez da velha tutela exercida pelos senhores de e n g e n h o . Essa necessidade de
segurança era ainda mais profunda nos agregados que c o m p a r t i l h a v a m a i n t i m i d a d e da
família. Q u a n d o meus amigos reconheciam n u m criado qualidades de g e n t e direita',
subcntcndia.se que ele passara a ser u m a pessoa sem defeitos, liberada da tara social de
nao ser ninguém, separada finalmente da massa a n ô n i m a que vivia à mercê de uma
vida sem r u m o e sem referências.
INTRODUÇÃO

S e n h o r e s e e m p r e g a d o s se u n i a m para m a n t e r vivo u m passado q u e e m t o d o s


despertava saudades. A m e m ó r i a c o l e t i v a era c u l t i v a d a c o m h a b i l i d a d e pelos q u e ti-
n h a m interesse e m reviver o a n t i g o p o d e r f a m i l i a r , f o n t e de u m prestígio a u t o -
r e f e r e n c i a d o e p r o v e i t o s o . F e c h a v a - s e o c í r c u l o : agregados e parentes serviam ao n ú -
cleo herdeiro d o v e l h o p o d e r e f o r m a v a m , eles m e s m o s , u m a clientela q u e reafirmava
esse p o d e r n o m o m e n t o p r e s e n t e . P a r a o s e n h o r , m a n t e r os laços de d e p e n d ê n c i a era
p o r t a n t o u m a n e c e s s i d a d e . P a r a os p a r e n t e s , i d e m , j á q u e os verdadeiros senhores eram
s e m p r e b o n s e j u s t o s , p r o n t o s a r e c o n h e c e r sua g e n t e e a designar, para ela, lugares e
papéis p r e c i s o s , capazes d e e v i d e n c i a r suas q u a l i d a d e s e c a p a c i d a d e s .

A f a m i l i a r i d a d e singela q u e vigia e n t r e servidores n ã o c o n s e g u i a dissimular total-


m e n t e as regras i m p e r a t i v a s p r e s e n t e s n a s r e l a ç õ e s , baseadas n o p r o f u n d o respeito
daqueles q u e se s e n t i a m i n f e r i o r e s p a r a c o m os q u e se s e n t i a m superiores. O 'inferior
r e s p e i t o s o ' c o n h e c i a seu lugar: n ã o t o m a v a a i n i c i a t i v a d e e s t e n d e r a m ã o , n ã o sentava
sem p e r m i s s ã o , n ã o ria m e s m o d i a n t e d e s i t u a ç õ e s risíveis, n ã o se p e r m i t i a ares de
i m p o r t â n c i a . M a i s : r e s p e i t a v a n ã o só seu p a t r ã o , m a s t o d o s os q u e m e r e c i a m respeito,
c o m o esse p a d r e , a q u e l a p e s s o a i d o s a , o a m i g o c e r t o e até u m o u t r o servidor. Assim,
t o d o s os f r e q ü e n t a d o r e s d a casa e n c o n t r a v a m q u e m o s respeitasse e t i n h a m direito à
sua p a r c e l a de c o n s i d e r a ç ã o . N a s o c i e d a d e b a i a n a da é p o c a , ser h o m e m o u m u l h e r 'de
r e s p e i t o ' s i g n i f i c a v a t e r s i d o r e c o n h e c i d o , c o m o igual, p o r u m superior; era ter sido
alvo da h o m e n a g e m — m e s m o c o n d e s c e n d e n t e — de r e c e b e r t r a t a m e n t o i d ê n t i c o aos
que ocupavam o t o p o da hierarquia social.

R e s p e i t o m ú t u o e r e s p e i t o aos s u p e r i o r e s se e n t r e l a ç a v a m , t o r n a n d o possíveis
a d a p t a ç õ e s e m i n i m i z a n d o c o n s t r a n g i m e n t o s . " M e r e s p e i t e " , c o m a n d a v a o superior,
l e m b r a n d o c o m e n e r g i a os l i m i t e s q u e n ã o p o d i a m ser ultrapassados, sob pena de
desclassificação e d e p e r d a de ' r e c o n h e c i m e n t o ' , ú n i c o título r e a l m e n t e capaz de
p o s i c i o n a r a l g u é m n a e s c a l a s o c i a l . " M e r e s p e i t e " , suplicava u m d e p e n d e n t e , procu-
rando a f i r m a r - s e c o m o i n t e g r a n t e d e u m a s o c i e d a d e cujas hierarquias c o n f e r i a m , a
cada u m , seu q u i n h ã o de s e g u r a n ç a .
Apesar d e t ã o b e m o r g a n i z a d o , esse ritual n ã o conseguia enganar n i n g u é m . O
s e n h o r c o n h e c i a suas l i m i t a ç õ e s e p r o c u r a v a evitar c o n f l i t o s . S a b i a que as relações de
d e p e n d ê n c i a t i n h a m u m lado i l u s ó r i o , pois e s c o n d i a m u m a interdependência. Além
disso, n o q u a d r o d a vida u r b a n a , tornava-se c a d a vez mais difícil conquistar uma
clientela. O c a m p o , o e n g e n h o , a fazenda — o n d e estava viva a lembrança d o poder
familiar — p e r m a n e c i a m o lugar em q u e se recrutavam essas fidelidades.

O s servidores t a m b é m c o n h e c i a m seus limites, participando de um j o g o em que


obediência e m a n d o , serviço e proteção, resultavam de cálculos feitos e m implícita
parceria. C h e g a v a - s e assim a acordos tácitos q u e p o d i a m ser rompidos por ambas as
partes. Nesse c a s o , cessavam a 'fidelidade', o 'respeito' e o ' r e c o n h e c i m e n t o social';
surgia o q u e os patrões c h a m a v a m 'ingratidão' e os servidores, ' i n d i f e r e n ç a . Este
ú l t i m o s e n t i m e n t o era a d m i r a v e l m e n t e ilustrado p o r u m a frase simples — " n ã o dá
mais bola para m i m " — q u e expressa a idéia de um j o g o em que se recebe e se entrega,
14 BAHIA, SÉCULO X I X

se t o m a e se dá, n u m a situação de certa igualdade. A r e s t r i ç ã o : m e s m o r o m p e n d o o


a c o r d o (pela não-realização de um desejo d o servidor, por e x e m p l o ) o p a t r ã o nao
podia ser c o n s i d e r a d o «ingrato', pois essa categoria só c a b i a a q u e m rejeitava u m
passado em q u e recebera p r o t e ç ã o . S ó o servidor p o d i a c o m e t e r u m a t o de i n g r a t i d ã o ,
aliás imperdoável, pois t u d o o que se havia t o r n a d o na vida, t u d o o q u e o b t i v e r a ,
decorria do a p o i o r e c e b i d o , e n ã o de suas q u a l i d a d e s pessoais.
Nesse j o g o , favores, r e c o m e n d a ç õ e s ou b e n e f í c i o s e r a m c u i d a d o s a m e n t e divulga-
dos e evocados. T o d o s se situavam em f u n ç ã o das suas relações. N i n g u é m podia
ignorar o u desprezar c o n s t r a n g i m e n t o s sociais e n r a i z a d o s , p r e t e n d e n d o c o l o c a r - s e in-
d i v i d u a l m e n t e em evidência. Seria hipocrisia? A t é h o j e , n ã o sei. A s o c i e d a d e baiana,
alegre e expansiva, de a p a r ê n c i a a b e r t a e a m á v e l , p a r e c i a d e s c o n f i a r p r o f u n d a m e n t e de
tudo o que pudesse vir a alterar esses sutis i n t e r c â m b i o s . A u t o r i t á r i a m a s flexível, ela
se esmerava em apertar as tramas vertical e h o r i z o n t a l d e u m t e c i d o s o c i a l n o qual a
riqueza, e m b o r a i m p o r t a n t e , n ã o d e s e m p e n h a v a o papel p r i n c i p a l .
E u n ã o era n e m atora, n e m a u t o r a , desse v e r d a d e i r o e s p e t á c u l o . A s r e l a ç õ e s sociais
m e intrigaram, mas logo aprendi a c o n h e c e r o d u p l o c o m p o r t a m e n t o , c a r a c t e r í s t i c o
do m e i o o n d e estava. P u d e assim o c u p a r u m lugar n o seio de u m a f a m í l i a t r a d i c i o n a l ,
f a z e n d o - m e c o m p r e e n d e r pelos o u t r o s m e m b r o s desse g r u p o e p o r t o d o s os b a i a n o s .
N a s inúmeras reuniões sociais, e n t r e as m u l h e r e s p r e v a l e c i a m c o n v e r s a s cheias de
lugares-comuns sobre os m a r i d o s , as crianças e os c r i a d o s , a s s u n t o s o b r i g a t ó r i o s em
aniversários, c a s a m e n t o s e até e n t e r r o s . As c e r i m ô n i a s religiosas e r a m t r a n s f o r m a d a s
em reuniões m u n d a n a s . O p r i m e i r o aniversário de u m f i l h o , as b o d a s de prata de um
casal, tudo era m o t i v o para d o c i n h o s e presentes. D a m e s m a f o r m a , o l a n ç a m e n t o de
um livro, m e s m o m o d e s t o , era p r e t e x t o para discursos e e n c o n t r o s .
C o n h e c i na B a h i a alguns e u r o p e u s e u m grande g r u p o de n o r t e - a m e r i c a n o s c o m
q u e m passei a discutir o que se podia e o q u e n ã o se p o d i a fazer, c o m p a r a n d o expe-
riências, corrigindo c o m p o r t a m e n t o s e d e s e n v o l v e n d o p o n t o s de referência indispen-
sáveis a u m a adaptação b e m - s u c e d i d a . N o e n t a n t o , o c o n t a t o c o m os mais h u m i l d e s
foi a dura escola que m e ensinou o savoir-faire indispensável para viver na B a h i a , o n d e
a pechincha reina sobre todos os preços. U m s o t a q u e e s t r a n g e i r o , por m e n o r que
seja, deixa qualquer um c m desvantagem d i a n t e de vendedores de bens o u prestadores
de serviços. Q u a n t a s vezes inventei, para motoristas dc táxis, u m a suposta origem
gaúcha, na esperança dc que os 'estrangeiros' d o Brasil fossem m e n o s r o u b a d o s do
que OS da huropa!

O s contatos com artesãos, pequenos funcionários, c a m e l ô s e c o m e r c i a n t e s modes-


tos - que formam ns camadas intermediárias da sociedade - t a m b é m são regidos por
um cerimonial específico. É completa falta de tato dirigir-se a eles s i m p l e s m e n t e pelo
n o m e , sem utilizar senhor ou senhora'. A n a l o g a m e n t e , os que possuem títulos uni-
versitarios devem ser tratados de d o u t o r ' . S ã o demonstrações do respeito indispensá-
vel para que o interlocutor não caia no a n o n i m a t o de um simples p r e ñ ó m e , insuficien-
te para conferir o prestígio social esperado.
INTRODUÇÃO 15

T o d o s os indivíduos idosos ou s o c i a l m e n t e superiores devem ser tratados na ter-


ceira pessoa. N a s conversas c o m os mais h u m i l d e s , depois de transcorrido o devido
t e m p o de c o n h e c i m e n t o m ú t u o , é preciso saber qual o m o m e n t o mais adequado para
que o t r a t a m e n t o c e r i m o n i o s o ceda a vez ao ' v o c ê ' , q u e p e r m a n e c e r á unilateral. S ó os
criados são c h a m a d o s p e l o p r e ñ ó m e . É c o n v e n i e n t e t a m b é m tratá-los de v o c ê ' e n ã o
utilizar as expressões ' p o r favor' o u o b r i g a d o ' , talvez para q u e n ã o se dê impressão de
fraqueza. N o s c o m a n d o s , é preciso e m p r e g a r u m t o m seco ao qual n u n c a m e adaptei.
T a m b é m nas refeições n ã o fui capaz de seguir a tradição, que m a n d a dar aos
empregados apenas f e i j ã o , c a r n e - d e - s o l , arroz e farinha de m a n d i o c a . A o oferecer-lhes
pratos c o m p l e m e n t a r e s , sabia q u e n ã o abririam m ã o desses ingredientes, considerados
indispensáveis. A l é m disso, a c e i t e i o desafio de arcar c o m e n o r m e desperdício, pois os
háb icos a l i m e n t a r e s na c o z i n h a faziam c o m q u e m u i t a c o m i d a fosse lançada n o lixo.
Para m i n h a s a m i g a s , era u m a b s u r d o q u e o café da m a n h ã das empregadas incluísse
manteiga, q u e i j o , frutas o u geléias, e era s i m p l e s m e n t e espantoso que elas controlas-
sem a a d m i n i s t r a ç ã o d a d e s p e n s a e das reservas da casa, situação que favorecia a
ocorrência de r o u b o s . E r a esta, n o e n t a n t o , m i n h a m a n e i r a — européia, c o m certeza
— de evitar q u e as e m p r e g a d a s f o s s e m obrigadas a pedir ajuda para suas famílias
numerosas. L o g o a p r e n d i q u e essa atitude exigia u m c o m p l e m e n t o : a demonstração de
que eu sabia p o r q u e os sacos de a ç ú c a r e de arroz se esvaziavam c o m rapidez. A relação
c o m as empregadas m e m o s t r o u a i m p o r t â n c i a d o papel d e s e m p e n h a d o pelas famílias
j u n t o às classes populares n a B a h i a . N ã o o b s t a n t e existirem algumas nuances, repro-
duziam-se os e s q u e m a s observados j u n t o aos descendentes dos senhores de engenho.
N o s m e i o s populares as u n i õ e s consensuais t i n h a m duração m u i t o variável; algu-
mas p o d i a m valer para a vida inteira, mas a m a i o r i a n ã o passava de alguns meses ou,
no m á x i m o , p o u c o s a n o s . As mulheres t e m i a m ter dois o u três filhos, pois eram elas
que assumiam todas as responsabilidades q u a n d o os h o m e n s se retiravam. Era fre-
qüente a existência de vários irmãos apenas p o r parte de mãe, que reconheciam o
esforço desta e n ã o d e m o n s t r a v a m n e n h u m a rivalidade e n t r e si. N o m á x i m o , notava-
se uma p o n t a de d e c e p ç ã o c o m a eventual m á sorte de ter irmãos mais escuros. Isso
não quer dizer que a organização familiar fosse do tipo matriarcal, pois essas caracte-
rísticas decorriam da pura e simples fuga dos h o m e n s , que m e s m o assim permaneciam
c o m o uma referência i m p o r t a n t e . Seu papel reprodutor causava admiração e sorrisos.
Mas os laços afetivos c o m a família materna eram mais fortes, até porque as avós
paternas se recusavam a educar crianças cujas avós maternas fossem conhecidas. As
mães, chamadas pelo n o m e , cabia trabalhar fora para trazer a comida, e às avós mater-
nas, chamadas ' m a m ã e ' , cabia cuidar das crianças.
E m b o r a vivessem no limite da indigência, eram famílias abertas, que acolhiam
sem hesitar os sobrinhos c as pessoas idosas, desempregadas ou órfãs. Esse espirito
solidário constituía a base de uma ética peculiar, que se estendia para mais além.
Padrinhos escolhidos fora do círculo familiar ajudavam a manter e educar as crianças,
assumindo obrigações mais materiais que espirituais. Tornavam-se responsáveis não
16 BAHIA, SÉCULO X I X

apenas pelo afilhado, mas p o r toda a família deste, repassando aos p r ó p r i o s filhos as

obrigações que a s s u m i a m .
A sexualidade era encarada c o m o u m a necessidade n a t u r a l , e o p e c a d o era n o ç ã o
difusa e l o n g í n q u a . Apesar de f r e q ü e n t e , o a b o r t o era c e n s u r a d o c o m ê n f a s e , j á q u e a
criança representava u m a dádiva d o C é u : o h o m e m 'fazia o m a l ' e, f a t a l m e n t e , v i n h a
u m filho q u e D e u s ajudaria a criar. O c o n c u b i n a t o era o u t r a f a t a l i d a d e , s i t u a d a a c i m a
de q u a l q u e r c r í t i c a : os pobres — pensava-se — n ã o t i n h a m c o n d i ç õ e s de casar legal-
m e n t e e subir na escala social. E n t r e as pessoas m a i s h u m i l d e s , a u n i ã o c o m a l g u é m de
pele mais clara era mais b e m - v i s t a , p o r causa d a e x p e c t a t i v a de b r a n q u e a m e n t o da
descendência.
E m c o m p e n s a ç ã o , em g r u p o s q u e j á p e r t e n c i a m a u m nível social m a i s elevado —
c o m o artesãos, p e q u e n o s f u n c i o n á r i o s o u feirantes — a u n i ã o c o n s e n s u a l de u m a filha,
m e s m o q u a n d o tolerada, era tida c o m o regressão, a m e n o s q u e o p a r c e i r o pertencesse
a u m a categoria m u i t o s u p e r i o r e pudesse vir a ser u m p r o t e t o r d a f a m í l i a . N e s s e caso,
se o c a s a m e n t o fosse impossível, na m a i o r parte das vezes o filho n a t u r a l teria e d u c a ç ã o
garantida, p o d e n d o até ser m i m a d o .
M u l h e r e s v í t i m a s e responsáveis, h o m e n s viris e irresponsáveis, c a r i d a d e e c o n f i a n -
ç a na P r o v i d ê n c i a revelavam t a m b é m c o m p o r t a m e n t o s religiosos q u e m e deixavam
perplexa. N a B a h i a , o c a t o l i c i s m o estava p r e s e n t e e m t o d a p a r t e : nas f a m í l i a s reunidas
para orações, n o s f r e q ü e n t e s sinais-da-cruz, e m e s p e r a n ç o s o s p e d i d o s de b ê n ç ã o s , em
novenas e trezenas, e m festas, missas e procissões. M a s , nas igrejas, h a v i a p o u c a reza e
m u i t a conversa; as coletas de d i n h e i r o q u a s e n a d a o b t i n h a m ; e o s h o m e n s ficavam
todos do lado de fora, n o a d r o . As c e l e b r a ç õ e s d o N a t a l , d a P á s c o a , de N o s s a S e n h o r a
da C o n c e i ç ã o , do S e n h o r do B o n f i m , do D i v i n o , de S a n t o A n t ô n i o e de S ã o J o ã o
congregavam — é verdade — m u i t a g e n t e , m a s e r a m as ú n i c a s c o m essa característica,
e as pessoas c o m p a r e c i a m mais p o r c u r i o s i d a d e q u e p o r fé.

A Igreja C a t ó l i c a exercera o m o n o p ó l i o da c a t e q u e s e p o r séculos a fio. Q u e dizia


diante de tanta fé dispersa e tão p o u c o fervor? T e r i a ela s a b i d o r e a l m e n t e cristianizar
o povo? E l a se mostrava i n f i n i t a m e n t e tolerante d i a n t e de c e r t o s c o m p o r t a m e n t o s ,
c o m o as uniões livres, atribuídas, não s e m razão, à e x t r e m a pobreza e à falta de
instrução. A própria Igreja só instruía, nos colégios e m e s m o nas famílias, aqueles que
podiam pagar. Eram escassas as bolsas de estudo e quase inexistente a instrução reli-
giosa das crianças matriculadas.

Apesar de freqüentados por pessoas batizadas, os cultos a n i m i s t a s p a r e c i a m ser


ignorados pela Igreja C a t ó l i c a , que a p a r e n t e m e n t e falhara na sua pregação aos pobres,
j u n t o aos quais as correntes protestantes davam a impressão de ter o b t i d o sucesso.
M a s , se isso era verdade, se a Igreja não c u m p r i r a sua missão espiritual e n ã o fora capaz
de disseminar sua doutrina moral, c o m o se podia explicar seu indiscutível prestígio e
seu ambíguo papel na coesão das famílias e da sociedade? Seriam eles decorrentes de
um consenso sempre renovado ou, c o m o no caso dos senhores de e n g e n h o , de um
hábil culto ao passado?
INTRODUÇÃO 17

As c a m a d a s superiores da s o c i e d a d e e as autoridades g o v e r n a m e n t a i s precisavam,


é c e r t o , d o aval eclesiástico para j u s t i f i c a r alguns c o m p o r t a m e n t o s . A miséria i n t e l e c -
tual e a i n d i g ê n c i a material i m p e d e m as pessoas de se e r g u e r para além da fé d o
carvoeiro, mas ao m e s m o t e m p o freiam certas i n d i g n a ç õ e s capazes de destruir equilí-
brios sociais.
A elite da cidade a p a r e n t e m e n t e se c o m p o r t a v a c o n f o r m e as regras da Igreja, mas
esta instituição n ã o despertava u m a v e r d a d e i r a b u s c a espiritual. E r a decrescente o
n ú m e r o de v o c a ç õ e s s a c e r d o t a i s . P r a t i c a m e n t e n e n h u m s e m i n a r i s t a i n s c r i t o na U n i -
versidade C a t ó l i c a a t i n g i a a o r d e n a ç ã o . O s m i s t é r i o s d a e x i s t ê n c i a de D e u s n ã o pare-
ciam interessar s o b r e m a n e i r a h o m e n s o u m u l h e r e s de t a l e n t o , e u m a vida espiritual
digna d o n o m e só existia e m a l g u n s m o s t e i r o s , o n d e estavam reclusos m o n g e s o u
m o n j a s . O m e s m o t i p o de i g n o r â n c i a e p a t e r n a l i s m o e x i s t e n t e n o clero e e n t r e os fiéis
tinha sido, o u t r o r a , d i s c u t i d o p o r m i m c o m j e s u í t a s , b e n e d i t i n o s e bispos, c o n s c i e n t e s
dos a n a c r o n i s m o s e das l a c u n a s d e s u a I g r e j a , i n c a p a z d e d e s e m p e n h a r seu papel,
c o n g r e g a r o p o v o de D e u s , e n s i n a r - l h e os m i s t é r i o s d a fé — e t a m b é m i n c a p a z de lutar
c o n t r a c e r t o s a r b í t r i o s d a a u t o r i d a d e civil. A I g r e j a b a i a n a criava o u t r o s p r o b l e m a s à
m i n h a fé, n a esfera das r e l a ç õ e s s o c i a i s . E r a a n g u s t i a n t e n ã o c o n s e g u i r e n c o n t r a r
respostas à altura. Levei m u i t o t e m p o para c o m p r e e n d e r q u e m i n h a reação era a de
u m a o c i d e n t a l , u m a e s t u d a n t e a c o s t u m a d a a c a m i n h a r para a f r e n t e , c o n s t r u i n d o u m
presente e m f u n ç ã o de u m f u t u r o , e n ã o de u m passado. S ó depois de dez anos n o
Brasil r e t o r n e i à m i n h a G r é c i a n a t a l , q u e fora apagada da m e m ó r i a p o r u m a v o n t a d e
tenaz de varrer as l e m b r a n ç a s dos a n o s d e g u e r r a . D e r e p e n t e , ela m e pareceu infini-
t a m e n t e p r ó x i m a da B a h i a q u e m e a d o t a r a .

S e n t i n d o - m e e x p a t r i a d a , e x p e r i m e n t a n d o u m a a d a p t a ç ã o t ã o difícil, vivera na
verdade u m r e t o r n o , u m c u l t o a o passado, i m e r s a e m u m a m b i e n t e social c h e i o de
s e m e l h a n ç a s c o m m i n h a v i v ê n c i a i n f a n t i l . M i n h a essência grega t i n h a i n c o n s c i e n t e -
m e n t e a j u d a d o n o e s f o r ç o de t o r n a r - m e u m a v e r d a d e i r a b a i a n a , de u m a Bahia
envelhecida, i n e r t e , i m ó v e l , l e n t a m e n t e a d o r m e c i d a , prisioneira de u m passado que
não parecia p o d e r ir e m b o r a . As ladeiras d a m i n h a S o t e r ó p o l i s d a v a m - m e agora a
impressão de u m a c i d a d e b o m b a r d e a d a pelo passado: m a n s õ e s de dois ou três andares,
terrenos baldios invadidos p o r u m a vegetação l u x u r i a n t e q u e n o e n t a n t o mal escondia
as feridas de paredes rachadas, q u e t i n h a m p e r t e n c i d o — q u a n d o ? c o m o ? — a baianos
abastados. A o lado, u m a casa térrea p o d i a estar m u i t o b e m conservada.
O s 'sinais' t r a n s m i t i d o s por ruelas e praças m u l t i p l i c a v a m - s e em cada descober-
ta de igrejas e c o n v e n t o s a b a n d o n a d o s , palácios na C i d a d e Alta, favelas penduradas
em ladeiras íngremes o u edificadas sobre pilotis n o lodo nauseabundo de alguma
enseada d o mar onipresente. O s transeuntes — negros o u menos negros — passavam
lentos, i n d o l e n t e s , e n c a r a n d o - m e c o m olhos penetrantes e interrogativos que m e
causavam mal-estar. A cidade só ficava lúgubre q u a n d o , ao chegarem as fortes c h u -
vas de inverno, literalmente afundava na lama, por horas ou dias. M a s , c o m o sol,
era bela c o m o u m a rainha destronada que n ã o corresse atrás de riquezas perdidas e
IS BAHIA, SÉCULO X I X

conservasse o porte altivo. O s n u m e r o s o s bairros residenciais h a b i t a d o s p o r p o p u l a -


ç ã o abastada - Vitória, Canela, Graça ou Barra - n ã o p o d i a m c o m p a r a r - s e as
magníficas casas da A v e n i d a Paulista o u d o J a r d i m E u r o p a , q u e eu d e s c o b r i r a e m
S ã o P a u l o . A q u i , q u a s e nada era n o v o o u r e a l m e n t e m o d e r n o . P o r q u e a f o r t u n a
a b a n d o n a r a essa cidade t ã o orgulhosa?

A HISTÓRIA DO BRASIL QUE M E FOI CONTADA

Estava d e c i d i d a a m e i n t e g r a r p r o f u n d a m e n t e e t e n t a r c o m p r e e n d e r s e m p r e c o n c e i t o s .
M a s precisava e n c o n t r a r o u t r o s p o n t o s de a p o i o , a l e m d a i n t u i ç ã o e d o instinto.
Busquei interlocutores baianos, atitude natural, porém c o n t u n d e n t e : m i n h a s pergun-
tas revelaram-se i n d i s c r e t a s . As respostas, q u a n d o v i n h a m , e r a m v a g a s , i n s p i r a v a m - s e
n o passado e n ã o p o d i a m e x p l i c a r o p r e s e n t e , t r a t a d o q u a s e c o m o u m ' a c i d e n t e ' e
c o n d e n a d o ao s i l ê n c i o . A u m e n t o u e n t ã o m i n h a c u r i o s i d a d e , j á q u a s e o b s t i n a ç ã o , ali-
mentada ademais por uma formação em ciências políticas, e c o n o m i a e sociologia.
M e r g u l h e i na h i s t ó r i a e r e e n c o n t r e i u m a v o c a ç ã o q u e s e m p r e tive.

Para c o m p r e e n d e r a B a h i a , estudei h i s t ó r i a d o B r a s i l ( m a i s t a r d e , e n s i n a n d o - a ,
aprenderia m a i s ) . M i n h a a m i g a Adalgisa M o n i z de A r a g ã o era p r i m a d c P e d r o C a l m o n ,
historiador de o r i g e m b a i a n a , q u e fizera c a r r e i r a n o R i o de J a n e i r o . S u a História do
Brasil, em c i n c o v o l u m e s , trazia u m a b o a s í n t e s e d o t e m a , e s c r i t a e m e s t i l o e l e g a n t e ,
às vezes p r e c i o s o . F o i o c o m e ç o de u m a verdadeira b u l i m i a d e leituras. Calmon,
c o m o H é l i o V i a n n a , q u e 2 5 a n o s d e p o i s dele t e n t o u n o v a s í n t e s e n a sua p r ó p r i a
História do Brasil, p r o c u r a v a , antes de t u d o , fixar o a c o n t e c i m e n t o , s e g u i n d o assim
um m é t o d o 'positivista', c a r o aos h i s t o r i a d o r e s f r a n c e s e s h e r d e i r o s d o s d o i s C h a r l e s :
C h a r l e s - V i c t o r Langlois e C h a r l e s S e i g n o b o s . E s c r i t a e m 1 9 3 3 , L'histoire sincère de la
nation française, de S e i g n o b o s , ainda era, n a d é c a d a de 1 9 5 0 e n o i n í c i o d a de 1 9 6 0 .
a bíblia de alguns historiadores a c a d ê m i c o s brasileiros, q u e t a m b é m utilizavam bas-
tante L'introduction aux études historiques, de 1 8 9 7 , escrita p o r L a n g l o i s c S e i g n o b o s .
F e l i z m e n t e , essas obras foram substituídas, e m 1 9 6 3 , pela e x c e l e n t e Introdução aos
estudos históricos, de J e a n G l é n i s s o n , cuja passagem pela U n i v e r s i d a d e d e S ã o P a u l o
c o m p l e t o u a de F e r n a n d Braudel e de E m i l e L é o n a r d .

Ao colocarem em evidência os a c o n t e c i m e n t o s c a liderança de atores visíveis


governantes, políticos, classes produtivas ou intelectuais — , essas sínteses são a h i s t ó -
ria de grupos minoritários, cuja ação e influência aparecem superestimadas. A m u l t i -
dão a n ó n i m a só adquire existência própria ao agir pró ou c o n t r a essas m i n o r i a s
atuantes, em m o v i m e n t o s insurrecionais, ou ao servir de e x e m p l o para q u e se de-
monstre, de maneira bem geral, aspectos c o m o a divisão da sociedade brasileira entre
homens livres e escravos. O e m p e n h o em fornecer o m a i o r n ú m e r o possível de deta-
lhes (rigorosos e corretos) leva a que se apresentem as referência bibliográficas e d o -
cumentais de forma fantasiosa c acrítica. E m c o m p e n s a ç ã o , aquela história do Brasil
INTRODUÇÃO 19

evidenciava o papel e c o n ô m i c o e político de certas províncias, c o m o Bahia, P e r n a m -


b u c o , M i n a s Gerais, R i o de J a n e i r o , S ã o Paulo e R i o G r a n d e do S u l , cujos represen-
tantes — e só eles — ocuparam a direção dos negócios de Estado. D u r a n t e os períodos
colonial e imperial, as outras províncias só ganhavam expressão própria q u a n d o
sediavam a c o n t e c i m e n t o s m u i t o precisos (a c o n q u i s t a da Amazônia pelas expedições
paulistas n o princípio do século X V I I , o estatuto particular das capitanias do Maranhão
e do G r ã o - P a r á nos séculos X V I I e X V I I I , o papel desempenhado por Goiás na
descoberta e exploração do o u r o n o século X V I I I , os m o v i m e n t o s insurrecionais c o m o ,
por exemplo, a C a b a n a d a n o G r ã o - P a r á e a Balaiada n o M a r a n h ã o ) . D e resto, tudo
se passava c o m o se a história fosse, nesses locais esquecidos, apenas um pálido reflexo
do que a c o n t e c i a nas províncias mais i m p o r t a n t e s . É o caso, por exemplo, da Revolu-
ção de P e r n a m b u c o , q u e , em 1 8 2 4 , e x e r c e u i n f l u ê n c i a na Paraíba, R i o Grande do
N o r t e , Ceará c Alagoas. Estas províncias só reaparecem q u a n d o perturbam a ordem
pública e a m e a ç a m a unidade n a c i o n a l , c e n t r a d a n o R i o de J a n e i r o . São voluntaria-
m e n t e apagadas as especificidades regionais, q u e , de fato, propiciaram a real unidade
nacional, c o n s t r u í d a na diversidade.

C r o n o l o g i a s , listas de a c o n t e c i m e n t o s , n o m e s de personagens importantes — eis


m i n h a primeira c o l h e i t a , n u m i n í c i o de aprendizado que se esforçava por ultrapassar,
tão rápido q u a n t o possível, a c o n d i ç ã o a m a d o r a . N o v a s perspectivas se abriram quan-
do descobri a Formação do Brasil contemporâneo, d o paulista C a i o Prado J ú n i o r , publi-
cada em 1 9 4 2 . U m m i s t o de satisfação e curiosidade nasceu da leitura do austero
prefácio da obra. N ã o havia ali u m a p r o p o s t a de explicação do presente pelo passado?
Este ú l t i m o fincava raízes n o século X V I I I . M e s m o a f i r m a n d o que a Independência
tinha sido um m o m e n t o decisivo na e v o l u ç ã o social, política e e c o n ô m i c a do Brasil,
C a i o Prado considerava q u e a primeira fase do século X I X só tinha sido importante na
medida em que representara u m b a l a n ç o final da obra realizada por três séculos de
colonização, esta sim apresentada c o m o u m a " c h a v e preciosa e insubstituível para se
acompanhar e interpretar o processo histórico posterior e a resultante dele que é o
Brasil de h o j e " . 1
A o subestimar d e l i b e r a d a m e n t e as contribuições da Monarquia
( 1 8 2 2 - 1 8 8 9 ) , que criara as bases da unidade e do Estado nacionais, o autor contraria-
va a orientação da maioria dos historiadores brasileiros da primeira metade do nosso
século. A época colonial aparecia c o m o o p o n t o de partida de um processo histórico
cheio de vaivéns. Assim, o Brasil c o n t e m p o r â n e o resultava do "passado colonial, que
se balanceia e encerra com o século X V I I I , mais as transformações que se sucederam
no correr do centenio posterior a esse e n o a t u a l " . 2

U m a contradição m c intrigou: para ele, as profundas transformações iniciadas


com a Independência não estavam terminadas, mas continuavam até nossos dias.
Afirmava reiteradamente que estávamos diante de um processo inacabado, marcado
por uma dependência econômica de tipo colonial em relação ao exterior. Era um
desafio, lançado no âmbito da teoria marxista. Q u e novidades traria para a c o m -
preensão do Brasil?
20

• o tornara-se m o d a . C ô m o d a m o d a : permitia
Lendo teses, descobri que o m a r X , S
^ g a t ( f c i e n t istas p o l í t i c o s escapassem dc
que historiadores, sociólogos, c c o n
° " . ^ s i m p l e s r e i n t e r p r e t a ç ã o de d a d o s bibliográ-
aborrecidas pesquisas em arquivos, pois ^ ^ o r i g i n a l , c o m características de
fieos já conhecidos permitia criar um; ^ a c e i t a ç á o m a i s o u m e n o s garantida
seriedade, solidez, modernidade e sob n e c e S s e , de f a t o , q u a s e sempre,
_ m e s m o que a doutrina origin de K H M ^ P ^ ^ ^

m assimilada. C a i o ^
a l " ^ ^ ^ f i * . Notava, aqui, t r a n s f o r m a s
implicitamente interrogações que eu wniuci
S a s esboçadas, sem "forma c o n c r e t a ' delineada; lá, a p a r e ç a m t r a n s f o r m a ç õ e s cons-
tituídas por elementos novos, que a p o n t a v a m para o p r o g r e s s o . E u t r a d u z . a aqui por
Salvador e 'lá' por S ã o Paulo, e m b o r a r e c o n h e c e s s e , c o m o a u t o r , q u e t a m b é m na
poderosa capital do Sul se fazia sentir "a presença de u m a r e a l i d a d e m u i t o antiga que
é um passado c o l o n i a l " .
O u t r o aspecto sedutor na análise e c o n ô m i c a de C a i o P r a d o era a ê n f a s e na ausên-
cia de u m a organização do trabalho e de u m m e r c a d o i n t e r n o e s t r u t u r a d o s de forma
sólida. N a parte propriamente social, ele ressaltava o a r c a í s m o das r e l a ç õ e s sociais e as
diferenças fundamentais entre as sociedades rural e u r b a n a . 3
E s t a v a m presentes ele-
mentos capazes de estimular m i n h a i m a g i n a ç ã o : p o v o a m e n t o , v i d a material e vida
social. A bibliografia, não obstante u m a a p r e s e n t a ç ã o b i z a r r a , m o s t r a v a um equilíbrio
satisfatório entre publicações e d o c u m e n t o s de a r q u i v o , e m b o r a estes ú l t i m o s tivessem
sido compilados u n i c a m e n t e na Revista do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico
Brasileiro e nos Anais da Biblioteca Nacional.*
O estudo da o b r a revelou-se m e n o s e s t i m u l a n t e d o q u e o ' c o n v i t e à viagem'
contido no prefácio. O b t i v e i n f o r m a ç õ e s interessantes na p r i m e i r a p a r t e , consagrada
ao povoamento, mas nas partes seguintes — vida m a t e r i a l e o r g a n i z a ç ã o social — não
encontrei novidade. Para mim, aliás, a novidade n ã o estava nas p o s i ç õ e s marxistas do
autor, mas em sua ideologia de aristocrata paulista b e m - n a s c i d o e sua c o n d i ç ã o dc
intelectual brasileiro. Apareciam detalhes - filigranas - q u e i n d i c a v a m um profun-
do desprezo por aquela importante narróla Ar, ^ i -i • • i • .v>
» . , P
parcela d o povo brasileiro q u e não t i n h a origem
europeia ou tinha sangue mesrladn r w .. • , •
<Z*L\*\Ur* l • ! c l a d o . D a s trinta páginas c o n s a g r a d a s à organiza-
m c s

çao social brasileira, cerca dc vinte analisavam - . •j . . ,í •


nos c o m p o r t a m e n t o , , m e m a l i d a d « Z • " e s c r a v o c
™<" ' s u
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m n a sc „
t t n ,v, o ¡ n S ; , r , i R L T : ç
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>rasi-
unia

% ira a
concorrer, e muito, para a nossa ' a ü t u r ^ ^ n u , a
- N ã o
<l u c
deixasse dc
emprega a expressão; mas é antes U m a cont/b a m
P ° l
e m
q « a antropologia
da presença dele e da considerável difusão do^° ' « u l t a n t e d o simples feto
P a S S Í V a

° S C U san
8 U C > q u e uma intervenção ativa
INTRODUÇÃO 21

e c o n s t r u t o r a . O cabedal de c u l t u r a q u e traz c o n s i g o da selva a m e r i c a n a o u africana,


e que não quero s u b e s t i m a r , é abafado c, senão a n i q u i l a d o , deturpa-se pelo estatuto
social, material e m o r a l q u e se vê reduzido seu p o r t a d o r . E a p o n t a , por isso, apenas
m u i t o t i m i d a m e n t e , aqui e a c o l á . Age mais c o m o f e r m e n t o c o r r u p t o r da outra cultura,
a do s e n h o r b r a n c o , q u e se lhe s o b r e p õ e . " U m a n o t a c o m p l e t a v a essas afirmações: " I s t o
é, e n t r e o u t r o s , p a r t i c u l a r m e n t e o caso d o s i n c r e t i s m o religioso que resultou d a
a m á l g a m a de c a t o l i c i s m o e p a g a n i s m o e m doses várias, que formava o f u n d o religioso
de boa parte d o Brasil. R e l i g i ã o n e o - a f r i c a n a , mais do que q u a l q u e r outra coisa, e que
se perdeu a grandeza e e l e v a ç ã o do c r i s t i a n i s m o , t a m b é m n ã o conservou a espontanei-
dade e a riqueza de c o l o r i d o das c r e n ç a s negras e m seu estado n a t i v o . " 5

AJgumas posições de C a i o P r a d o p r o v o c a v a m mal-estar. M a s sua ênfase e m dois


fatores — a s o c i e d a d e e s c r a v o c r a t a e a d e p e n d ê n c i a de tipo c o l o n i a l — era c o m p a r t i -
lhada pela q u a s e - t o t a l i d a d e das o b r a s consagradas ao Brasil. N ã o desejo rebaixar a
i m p o r t â n c i a desses a s p e c t o s , m a s destacar q u e a f o r m a de tratá-los conduzia a u m a
interpretação m u i t o p o b r e s o b r e o f u t u r o d o país. A p a r e c i a m a m b o s n o c o n t e x t o de
um m e s m o e s q u e m a s i m p l i f i c a d o r : a C o l ô n i a d e p e n d i a da M e t r ó p o l e , o Estado bra-
sileiro d e p e n d i a da E u r o p a ( s o b r e t u d o da I n g l a t e r r a ) , os negros d e p e n d i a m dos bran-
cos, os escravos dos s e n h o r e s , as m u l h e r e s dos h o m e n s , os senhores de e n g e n h o dos
c o m e r c i a n t e s , os c o m e r c i a n t e s brasileiros d o g r a n d e c o m é r c i o i n t e r n a c i o n a l — tudo
num m o t o - c o n t í n u o . E v e r d a d e : a q u i e ali as aparências eram levadas em c o n t a ,
destacando-se a f o r m a a s s u m i d a p o r certas relações e c o n ô m i c a s ou até h u m a n a s , mas
o c o n t e ú d o das análises p e r m a n e c i a frio, i m p r e c i s o , esvaziado das nuances que, afi-
nal, são a p r ó p r i a essência da v i d a . N e n h u m a e x p l i c a ç ã o havia para a perpetuação
dessas inúmeras d e p e n d ê n c i a s , cujas l a m e n t á v e i s c o n s e q ü ê n c i a s apareciam c o m tanta
clareza. Q u e j o g o s as m a n t i n h a m e f a v o r e c i a m ? A q u e preço? Q u e vantagens auferiam
as partes envolvidas?

M a s a historiografia brasileira de e n t ã o n ã o p o d e ser reduzida a essas duas abor-


dagens (história dos a c o n t e c i m e n t o s e obras de tese). E m 1 9 6 0 , Sérgio Buarque de
Holanda, t a m b é m paulista, abriu novas perspectivas c o m a História geral da civiliza-
ção brasileira, o b r a coletiva em n u m e r o s o s v o l u m e s , inspirada na História geral das
civilizações, dirigida p o r M a u r i c e C r o u z e t . N o s s o s períodos colonial e m o n á r q u i c o
(1500-1889) foram tratados em nada m e n o s d o q u e sete volumes, com divisões
temáticas que já indicavam grande esforço para renovar p r o f u n d a m e n t e as formas
de abordar os assuntos.
C o m o diz o título geral da o b r a , ela não se propôs a ser uma história do Brasil, mas
uma história da civilização brasileira. Apelou, por isso, para disciplinas c o m o antropo-
logia e ciência política e tratou de temas c o m o religião, literatura, idéias, educação e
medicina, para ficar e m alguns dos mais importantes. A redação foi confiada a espe-
cialistas quase sempre recrutados no m u n d o universitário do R i o de J a n e i r o e de S ã o
Paulo. Reservou-se a m p l o espaço às fontes primárias e adotou-se uma visão crítica e
seletiva do material utilizado. O resultado não apresentou grandes vôos teóricos, mas
BAHIA, SÉCULO X I X

foi b a s t a n t e satisfatório. A c o n t e c i m e n t o s e personagens foram c o l o c a d o s e m seus jus-


tos lugares, seguindo u m a c r o n o l o g i a b e m clara. A p a r e c e u t a m b é m o c o n t e x t o inter-
n a c i o n a l , c o m destaque para as relações d o Brasil c o m seus principais parceiros c o m e r -
ciais ( P o r t u g a l , Inglaterra, A l e m a n h a , Estados U n i d o s e F r a n ç a ) .
A c o l e t â n e a evidenciava a diversidade d o Brasil, c o n f e r i n d o a cada província u m a
especificidade, u m a existência própria, pelo m e n o s n o p e r í o d o situado e n t r e a c h e g a d a
da C o r t e portuguesa ( 1 8 0 8 ) e a década de 1 8 5 0 . D e p o i s , prevalecia o e s q u e m a , sólido
e tenaz, d o Brasil u n i t á r i o . O p r ó p r i o título d o v o l u m e — ' D i s p e r s ã o e u n i d a d e 1

sugeria q u e o estudo individualizado das províncias só fazia s e n t i d o d u r a n t e o agitado
p e r í o d o de c o n s o l i d a ç ã o da u n i d a d e e de o r g a n i z a ç ã o do E s t a d o n a c i o n a i s .
N o s países da A m é r i c a e s p a n h o l a , os processos de i n d e p e n d ê n c i a foram i n c o m p a -
ravelmente mais d o l o r o s o s d o q u e o o c o r r i d o n o B r a s i l . M e s m o assim, era necessário
evocar aqui as tentativas às vezes sangrentas de i n d e p e n d ê n c i a de certas províncias,
c o m o a B a h i a ( o n d e se travaram batalhas em 1 8 2 2 e 1 8 2 3 ) , as revoluções separatistas
do N o r d e s t e (que o c o r r e r a m na é p o c a da a b d i c a ç ã o de d o m P e d r o I ) e as numerosas
agitações sociais e revoltas de escravos ( d u r a n t e a R e g ê n c i a e o i n í c i o do reinado de
d o m P e d r o I I ) . A o descrever as ameaças ao I m p é r i o e n t r e 1 8 2 0 e 1 8 5 0 , os autores
ressaltavam r e i t e r a d a m e n t e que o N o r t e , o N o r d e s t e e o S u l t i n h a m n í t i d a consciência
de sua diferença e m relação ao resto d o país.

T u d o se n o r m a l i z o u e m 1 8 5 0 , mas a u n i d a d e n a c i o n a l n ã o apagou as diversidades


e particularidades. A i n d a h o j e , o r e c o n h e c i m e n t o m ú t u o e n t r e dois brasileiros ainda
passa por u m a p e r g u n t a - c h a v e : " d e o n d e você é ? " O estado de origem do interlo-
cutor sinaliza, e m p r i n c í p i o , algumas qualidades e defeitos q u e se p o d e m esperar dele.
O Brasil é e f e t i v a m e n t e u m a federação, e a i d e n t i d a d e de cada um está relacionada
mais a seu estado de origem do q u e à n a ç ã o c o m o u m t o d o .
O s autores da c o l e t â n e a organizada p o r S é r g i o B u a r q u e de H o l a n d a tiveram o
imenso m é r i t o de não repetir c a m i n h o s a m p l a m e n t e percorridos, mas seus trabalhos
não provocaram efeitos explosivos e duráveis, semelhantes aos das teses de C a i o Prado
J ú n i o r ' c outros autores m a r x i s t a s . O u t r o grande livro de tese tinha aparecido em
7

1 9 3 3 : Casa-grande e senzala, em q u e G i l b e r t o F r e y r e a b o r d o u o sistema patriarcal


8

brasileiro o r i u n d o das plantações de c a n a - d e - a ç ú c a r d o N o r d e s t e , fornecendo uma


imagem idílica das relações sociais nele imperantes, particularmente daquelas que se
estabeleceram entre senhores e escravos. Essa posição suscitou, naturalmente, polêmi-
cas, interrogações c pesquisas.
Esses temas interessaram a muitos acadêmicos, c o m o os antropólogos Charles
Waglcy (da Universidade de C o l u m b i a ) , Melvillc J . Herskovíts (da Universidade de
Northwestern) c Rogcr Bastidc, radicado em S ã o P a u l o . Mestres e discípulos pesqui-
9

savam o Nordeste, baseando-se na História económica do Brasil, de R o b e r t o Simonsen,


a primeira síntese sobre a economia colonial. C o m o Gilberto Freyre e Caio Prado, este
autor também criaria uma escola, graças aos excelentes trabalhos de Alice Canabrava,
Celso Furtado e Mircca B u c s c u . 1 0
Assim, graças à influência de três pesquisadores
INTRODUÇÃO 23

desvinculados d o sistema universitário, o m u n d o a c a d ê m i c o c o m e ç o u a a b a n d o n a r os


vastos esforços de síntese, t r o c a n d o - o s por t r a b a l h o s de aparência mais modesta e
preparação mais á r d u a , frutos de pesquisas mais sistemáticas, c o m m a n u s e i o detalhado
de arquivos e crítica de f o n t e s primárias c s e c u n d á r i a s . As hipóteses precisas, as pesqui-
sas originais e os m é t o d o s m a i s a f i n a d o s n ã o tardaram a prevalecer sobre o gosto pelas
generalidades. M a s , na m a i o r parte das vezes, as m o n o g r a f i a s p e r m a n e c e r a m prisionei-
ras de u m m e s m o a r c a b o u ç o t e ó r i c o : u m e s q u e m a de d e p e n d ê n c i a que limitava os
temas a serem e s t u d a d o s e e m p o b r e c i a as c o n c l u s õ e s .

F a t o c u r i o s o : apesar de b e m i n f o r m a d o s s o b r e o q u e se publicava em outros países,


os historiadores brasileiros n ã o p a r e c i a m interessar-se, p o r e x e m p l o , pelas novas pers-
pectivas abertas p o r e s t u d o s f r a n c e s e s de h i s t ó r i a e c o n ô m i c a , d e m o g r a f i a e, mais tarde,
história social e u r b a n a . M u i t o s c o n h e c i a m as o b r a s de H e n r i H a u s e r , M a r e B l o c h e
Lucien F e b v r e . E r a m a i n d a m a i s n u m e r o s o s o s q u e se p r o c l a m a v a m alunos de F e r n a n d
B r a u d e l . M a s p o u c o s t i n h a m l i d o , p o r e x e m p l o , Le Portugal et 1'Atlantique, de Frédéric
M a u r o , a i n d a i n é d i t a e m p o r t u g u ê s , apesar de sua i m p o r t â n c i a e sua relação direta
c o m o Brasil.

S e j a c o m o f o r , assistiu-se n a d é c a d a de 1 9 5 0 u m a efervescência e n t r e historiadores


do R i o de J a n e i r o e de S ã o P a u l o . Q u e se passava, na é p o c a , em Salvador, cidade
desejosa de ser r e c o n h e c i d a c o m o c a p i t a l i n t e l e c t u a l d o N o r d e s t e ?

COMO ESCREVER UMA HISTÓRIA DA BAHIA?

S ó a p r o d u ç ã o d o c a c a u e a n a s c e n t e i n d ú s t r i a d o p e t r ó l e o apresentavam algum dina-


m i s m o n o p a n o r a m a e c o n ô m i c o d a B a h i a . A p e s a r disso, a vida cultural era m u i t o
ativa, c e n t r a d a n u m a j o v e m u n i v e r s i d a d e federal, f u n d a d a em 1 9 5 0 . S e u primeiro
reitor, E d g a r S a n t o s , p r o f e s s o r da F a c u l d a d e de M e d i c i n a , tinha u m espírito aberto e
empreendedor. 11
D u r a n t e seu r e i n a d o — sim, tratava-se de u m reinado absoluto —
foram criados c u r s o s de g e o l o g i a , b i b l i o t e c o n o m i a , e n f e r m a g e m , música, artes plásti-
cas e artes c ê n i c a s , a l é m de i n s t i t u t o s especializados q u e se tornaram verdadeiros
centros de pesquisa e e n s i n o , c o m o os de geografia, ciências sociais, lingüística e
estudos a f r o - o r i e n t a i s . N u m e r o s o s professores foram c o n t r a t a d o s nos Estados Unidos
c na A l e m a n h a . N e g o c i a d o r a r g u t o , E d g a r S a n t o s fez da Universidade Federal da
Bahia u m c e n t r o cultural c u j o d i n a m i s m o c o n t a g i o u e fez reviver algumas Velhas
senhoras', havia m u i t o a d o r m e c i d a s c satisfeitas c o n s i g o mesmas, c o m o a Academia
Bahiana de Letras, o I n s t i t u t o G e o g r á f i c o c H i s t ó r i c o da Bahia e o Instituto Genealógico
da B a h i a . O s m e m b r o s dessas casas ilustres eram escolhidos entre médicos, sacerdotes,
advogados, juristas, políticos e jornalistas q u e formavam a intelectualidade local. E n -
trar n o I n s t i t u t o G e o g r á f i c o , por e x e m p l o , representava m e i o c a m i n h o andado para a
Academia, n u m c o n t e x t o que estimulava os mestres da bajulação. N ã o eram, porém,
os únicos personagens presentes nesse cenário: havia t a m b é m os jovens m e m b r o s da
24 BAHIA, SÉCULO X I X

m e s m a elite, q u e se c o m p r a z i a m e m c r í t i c a s m o r d a z e s , f r e q ü e n t e m e n t e i n j u s t a s , r e c u -
s a n d o q u a l q u e r p r o x i m i d a d e c o m i n s t i t u i ç õ e s nas q u a i s — era c l a r o — ingressariam
mais tarde. O s o n h o de t o d o i n t e l e c t u a l b a i a n o , h o n e s t o o u n ã o , c o n f o r m i s t a o u n ã o ,
é t o r n a r - s e , ele m e s m o , u m a i n s t i t u i ç ã o . H á u m t e m p o para i r r e v e r ê n c i a s , m a s elas são
erros da j u v e n t u d e , necessários e p e r d o á v e i s .

A p r o v e i t a n d o o c l i m a e s t i m u l a n t e c r i a d o pela ' F e d e r a l ' , surgiu e m 1 9 5 6 a U n i v e r -


sidade C a t ó l i c a da B a h i a . O a r c e b i s p o l o c a l , p r i m a z d o B r a s i l , p a s s o u a ser o grande
c h a n c e l e r dessa i n s t i t u i ç ã o , c a b e n d o a p r i m e i r a r e i t o r i a a o m o n s e n h o r E u g ê n i o de
A n d r a d e V e i g a , d o u t o r e m d i r e i t o c a n ó n i c o pela U n i v e r s i d a d e G r e g o r i a n a de R o m a .
E s c o l a privada, m a n t i d a p o r o r d e n s e c o n g r e g a ç õ e s religiosas e p o r leigos ( e m g r a n d e
parte integrados ao c o r p o d o c e n t e ) , p a s s o u a f u n c i o n a r à n o i t e , para p r o p o r c i o n a r
o p o r t u n i d a d e de e d u c a ç ã o s u p e r i o r e p r o m o ç ã o s o c i a l a pessoas j á i n t e g r a d a s no
m e r c a d o de t r a b a l h o . C o b r a v a a n u i d a d e s m ó d i c a s , m a s , m e s m o a s s i m , pesadas para os
o r ç a m e n t o s dos mais p o b r e s .

E s t á v a m o s d i a n t e de u m p a r a d o x o : atividades c u l t u r a i s f l o r e s c e n t e s e m u m a c i -
dade a p a r e n t e m e n t e a d o r m e c i d a . S e r i a o p r e n ú n c i o de u m a r e n o v a ç ã o geral e d u r á -
vel? E m que m e d i d a os h i s t o r i a d o r e s s e r i a m b e n e f i c i a d o s e m seu o f í c i o específico?
E s t a n ã o era p e r g u n t a s e m f u n d a m e n t o : g r a n d e s c o n t a d o r e s d e estórias s o b r e si
m e s m o s e os d e m a i s , os b a i a n o s t ê m a l m a de h i s t o r i a d o r e s , e m b o r a q u a s e n u n c a o
percebam. Esse traço se m o s t r a , n o e n t a n t o , e m c o n v e r s a s c o t i d i a n a s e e m d o c u -
m e n t o s c o m u n s de a r q u i v o , escritos e m p r o s a e n c a n t a d o r a e p r o l i x a . N o s alvarás de
libertação de escravos, p o r e x e m p l o , os s e n h o r e s c o n t a m a p r ó p r i a vida, inclusive
familiar, c o m profusão de detalhes i n d i s c r e t o s , i n ú t e i s d o p o n t o de vista legal. T e s -
tamentos e inventários são verdadeiras estórias de vida, a d m i r a v e l m e n t e resumidas,
que desfiam p r o b l e m a s e a m o r e s de f a m í l i a s i n t e i r a s . T u d o se passa c o m o se a re-
dação — própria o u , na m a i o r i a d o s casos, feita p o r terceiros — d e u m d o c u m e n t o
legal desse vazão a u m desejo de p e r p e t u a r a m e m ó r i a familiar e coletiva, c o n q u i s -
tando na sociedade, depois da m o r t e , u m l u g a r f r e q ü e n t e m e n t e inacessível em vida.
O u então c o m o se os t e s t a m e n t o s c u m p r i s s e m o papel de confissões, a j u d a n d o o
testador a c o m p r e e n d e r e ser c o m p r e e n d i d o , l i g a n d o p r e s e n t e e passado, f o r j a n d o
uma ascendência mítica, fosse ela portuguesa (para os q u e faziam questão da raça
branca) ou africana de sangue real (para os alforriados que reivindicavam origens
nobres). Assim, o ato de c o n t a r para si a própria estória tornava-se a t o criador dessa
mesma estória, agora escrita c, p o r t a n t o , certa.
As vezes ingênuos, escritos para a família e os amigos, destinados em princípio à
poeira dos tabeliães, esses d o c u m e n t o s legais são verdadeiras peças literárias que ex-
pressam sentimentos profundos. C o m p e n s a m parcialmente a falta de u m a literatura
autobiográfica, pois, entre os séculos X V I e X I X , os que teriam sido capazes de escrever
suas memórias não o fizeram.
Por que faltaram à Bahia escritores desejosos de contar suas vidas? Seriam tama-
nhas sua importância, sua evidência, sua fama, que tal iniciativa lhes parecesse inútil?
INTRODUÇÃO 25

Talvez soasse p e n o s a , para alguns, a necessária e v o c a ç ã o de antepassados de p o u c o


prestígio e o registro de riquezas m u i t o recentes. Para o u t r o s , poderia parecer o c i o s o
o s t e n t a r várias gerações b e m estabelecidas e s u f i c i e n t e m e n t e c o n h e c i d a s . R e s u l t a d o : as
antigas elites só c o m e ç a r a m a registrar sua m e m ó r i a familiar q u a n d o t o m a r a m c o n s -
ciência da própria d e c a d ê n c i a . N a d é c a d a de 1 9 4 0 , estudos genealógicos entraram na
m o d a . P o u c o a p o u c o , os b a i a n o s a p r o f u n d a r a m a diferença existente entre o que a
riquíssima língua p o r t u g u e s a c h a m a de história, baseada em d o c u m e n t o s , e de estória,
exposição r o m a n c e a d a de e p i s ó d i o s .

O s n o v o s h i s t o r i a d o r e s b a i a n o s p o d e m gabar-se de ter predecessores ilustres: a


história do Brasil c o m e ç o u a ser escrita n a B a h i a , o n d e P e r o V a z de C a m i n h a iniciou
c o m sua carta, a i n d a e m 1 5 0 0 , u m a l o n g a l i n h a g e m . V i e r a m , e m seguida, escrever em
terras baianas os p o r t u g u e s e s G a b r i e l S o a r e s de S o u z a (século X V I ) , frei V i c e n t e de
Salvador e F e r n ã o C a r d i m ( s é c u l o X V I I ) e, e n f i m , A n t o n i l , S e b a s t i ã o da R o c h a Pita,
J . A . C a l d a s e L u i z dos S a n t o s V i l h e n a ( s é c u l o X V I I I ) . N o século X I X apareceram
verdadeiros b a i a n o s , c o m o I g n a c i o A c c i o l i e N i n a R o d r i g u e s . O u t r o s , em grande
n ú m e r o , e s c r e v e r a m s o b r e a c a p i t a l , c o m o F . M . de G o e s C a l m o n , F r a n c i s c o Borges de
Barros, B r a z d o A m a r a l , T h e o d o r o S a m p a i o , F r e d e r i c o E d e l w e i s , C a r l o s O t t , Affonso
R u y , Luiz V i a n n a F i l h o , W a n d e r l e y de P i n h o , P e d r o C a l m o n e T h a l e s de Azevedo. O s
tres ú l t i m o s g o z a m de r e p u t a ç ã o n a c i o n a l e i n t e r n a c i o n a l . O s institutos de história e
de genealogia r e ú n e m , p o r sua vez, a l g u m a s dezenas de ' a m i g o s da história' e publicam
revistas q u e t r a z e m c o n t r i b u i ç õ e s essenciais — indispensáveis, m e s m o — a uma 'his-
tória dos a c o n t e c i m e n t o s ' .
C o m raras exceções, a história escrita na B a h i a está ligada aos acontecimentos.
N ã o poderia ser de o u t r a f o r m a . O i m e n s o m o v i m e n t o intelectual observado n o
fim da d é c a d a de 1 9 5 0 e n t r e os h i s t o r i a d o r e s baianos g u a r d o u distância de todas as
preocupações teóricas e conceituais i m p r e g n a d a s de ' s o c i o l o g i s m o americano',
' w e b e r i s m o ' e m o d i s m o s e m geral. O s b a i a n o s c o n t e m p l a r a m de longe, curiosos e
até d e s d e n h o s o s , a agitação dos colegas do R i o de J a n e i r o e de S ã o Paulo, mais
abertos às influências estrangeiras. S e m p r e tiveram, é certo, uma admiração deli-
rante pela c u l t u r a francesa, mas suas referências eram historiadores c o m o F. Guizot,
A. T h i c r r y , H . T a i n e c A l p h o n s e Aulard, cuja Histoire politique de la Révolution
Française ainda causava d e s l u m b r a m e n t o s . E n q u a n t o isso, nas bibliotecas universitá-
rias da ' F e d e r a l ' c da ' C a t ó l i c a ' a d o r m e c i a m , sem nunca terem sido consultadas, a
Histoire genérale des civilisations, dirigida por M . Crouzet, c a Révolution Française, de
G e o r g e Lcfàbvre!
O s historiadores baianos, c o m o sua cidade, estavam parados no tempo. C o m
orgulho, preparavam-sc para celebrar o I V C e n t e n á r i o da fundação de Salvador, pu-
blicando monografias cheias de erudição c de análises minuciosas, à maneira dos
historiadores alemães do século p a s s a d o . 12
A bem da verdade, essas pesquisas eram
verdadeiros tesouros, pois faziam de Salvador a única cidade brasileira a ter uma
história que começava a ser conhecida.
26 BAHIA, SÉCULO X I X

Era uma história muito 'colonial', em que o principal papel cabia ao século X V I .
Mas era solidamente alicerçada em um real esforço de síntese. Às monografias susci-
tadas pelas comemorações acrescentavam-se numerosas teses, artigos e obras sobre a
história factual do século X V I I . O período m e n o s c o n h e c i d o era entre 1 6 0 0 e 1 7 5 0 ,
ano a partir do qual os arquivos se tornaram mais ricos e os a c o n t e c i m e n t o s , mais
estimulantes. Houve publicações sobre a Revolução dos Alfaiates, m o v i m e n t o revolu-
cionário ocorrido em 1 7 9 8 ; sobre as guerras de 1 8 2 2 e 1 8 2 3 , chamadas Guerras de
Independência da Bahia; sobre a Revolta dos Males, insurreição negra de 1 8 3 5 ; e sobre
a Sabinada, m o v i m e n t o federalista e descentralizador que c o n t e s t o u o governo impe-
rial em 1 8 3 7 . O b r a s e artigos eram m u i t o descritivos e-, em geral, não correspondiam
às promessas contidas nos respectivos t í t u l o s . Estavam neste caso, por e x e m p l o ,
A primeira revolução social brasileira, livro de A f o n s o R u y de Souza consagrado à
Revolução de 1 7 9 8 , e Males, a insurreição da senzala, de Pedro C a l m o n .
M e s m o quando os historiadores baianos revelavam u m a ideologia análoga à das
elites pensantes locais, faltava em seus trabalhos u m aparato teórico. Isso m e trazia
vantagens, pois alargava a possibilidade de escolha do m e u próprio c a m i n h o . Nessas
'histórias dos a c o n t e c i m e n t o s ' , tinha diante de m i m fontes ricas em dados brutos,
aprisionados n o e n t a n t o por estilos grandiloqüentes o u panegíricos. Talvez aquelas
realidades pudessem ser interpretadas de outra maneira, mas isso n ã o tirava o mérito
das narrativas já feitas, excelentes p o n t o s de partida. E r a interessante comentá-las
com seus autores, inclusive para garantir o acesso às fontes e ao material histórico,
praticamente vedado a q u e m não fosse r e c o n h e c i d o c o m o integrante do ' m e i o aca-
dêmico' da Bahia.

M e u encontro com T h a i e s de Azevedo, em 1 9 6 1 , foi decisivo. Professor da Facul-


dade de Letras da Universidade Federal da Bahia, o ' d o u t o r T h a l e s ' era a figura de proa
das ciências sociais em Salvador. M é d i c o de f o r m a ç ã o , c o m e ç o u c o m o pesquisador em
antropologia física e sociocultural e colaborou i n t i m a m e n t e c o m sociólogos da Uni-
versidade de C o l u m b i a ( E U A ) e c o m R o g e r Bastide. E m 1 9 4 9 , publicou Povoamento
da cidade do Salvador, ensaio que colocou problemas novos, fora dos esquemas factuais,
procurando interpretar a evolução da cidade durante um período bastante longo, entre
os séculos X V I c X I X . Foi dele o primeiro convite que recebi para fazer uma série de
conferências no Instituto de Ciências Sociais, que ele dirigia, versando sobre... os
regimes totalitários europeus do século X X ! Em seguida, foi ele que me recomendou
para um lugar de docente na recém-criada Faculdade de Letras da Universidade Ca-
tólica. Foi ele, enfim, que orientou meus primeiros passos e encorajou minhas primei-
ras opções. Nossa amizade, hoje antiga, muito me enriqueceu.

A partir de 1 9 6 3 , lecionei história geral contemporânea. Por sorte, ingressei no


magistério superior num momento propício, em que se iniciava uma mudança de
trajetória, decorrente da fundação das duas universidades, que se estimulavam mu-
tuamente, e da democratização do ensino, que crescia j u n t o com o próprio con-
tingente estudantil. Novas escolas aumentavam a necessidade de formar professores.
INTRODUÇÃO

E os jovens c a n d i d a t o s desejavam c o n h e c e r m e l h o r a 'realidade social' em s e n t i d o


a m p l o , q u e e n g l o b a v a o passado e o presente d o m u n d o em q u e viviam e iriam
trabalhar.
A realidade brasileira o c u p a v a u m a posição central n o discurso das elites e nos
1

escritos e r u d i t o s , r e f o r ç a n d o a necessidade de se aperfeiçoar o c o n h e c i m e n t o do pas-


sado. O r a . na B a h i a , a realidade brasileira era b a i a n a . Esse m o v i m e n t o descentrali-
zador foi f o r t a l e c i d o pela c r i a ç ã o de i n s t i t u i ç õ e s g o v e r n a m e n t a i s de caráter regional
c o m o a S u p e r i n t e n d ê n c i a de D e s e n v o l v i m e n t o d o N o r d e s t e ( S u d e n e ) , e pelo senti-
m e n t o , e n t r e a j u v e n t u d e , de q u e se fazia necessária u m a ' d e s c o l o n i z a ç ã o cultural*
em relação ao R i o de J a n e i r o e a S ã o P a u l o . E s t u d a n t e s e professores jovens a c o m -
panhavam m i n h a s p r e o c u p a ç õ e s , c o m p a r t i l h a d a s p o r J o h i l d o L o p e s de Athavde (um
b a i a n o q u e acabara de passar dois a n o s na F r a n ç a ) e István J a n c s o , paulista de ori-
gem h ú n g a r a , trazido da U n i v e r s i d a d e de S ã o P a u l o . O s três estávamos influencia-
dos pela p r o d u ç ã o da h i s t o r i o g r a f i a f r a n c e s a nos t r i n t a anos p r e c e d e n t e s , mas tínha-
mos c o n s c i ê n c i a de q u e essas c o n t r i b u i ç õ e s d e v i a m ser apreendidas n o que dizia
respeito aos aspectos m e t o d o l ó g i c o s e t é c n i c o s de pesquisa. O s p o n t o s de partida e
a d e f i n i ç ã o de p r o b l e m á t i c a s n ã o p o d i a m ser os m e s m o s para os dois países. T r a b a -
lhando j u n t o s , a b r i n d o c a m i n h o para n u m e r o s o s e s t u d a n t e s , e m p r e e n d e m o s uma
longa e p a c i e n t e t r a j e t ó r i a .

A historiografia b a i a n a era m u i t o c a r e n t e e n ã o p o d i a responder às questões que


c o l o c á v a m o s . E x c e ç õ e s : a História de um engenho do Recôncavo, 1552-1944, publica-
da nesse ú l t i m o a n o p o r W a n d e r l e y de P i n h o e p o r m u i t o t e m p o a m e l h o r m o n o g r a -
fia brasileira s o b r e a vida e c o n ô m i c a e social de u m a p l a n t a ç ã o açucareira ao longo de
um p e r í o d o de vários s é c u l o s ; 1 3
e Povoamento da cidade do Salvador, de T h a l c s de
Azevedo. D e resto, apesar de u m a p r o f u s ã o de detalhes, os historiadores baianos nos
traziam de volta i m a g e n s estáticas de u m ' n o v o m u n d o ' c u r i o s a m e n t e c o n d e n a d o a
um frio i m o b i l i s m o , a u m a vida s o c i o e c o n ó m i c a q u e parecia seguir sempre o m e s m o
rumo — e isso n ã o c o r r e s p o n d i a ao nosso desejo de c o n s t r u i r u m a visão dinâmica do
passado local.
N ã o é r a m o s nós, historiadores, os ú n i c o s p r e o c u p a d o s c o m esse tipo de problema:
em 1 9 5 1 , o e c o n o m i s t a b a i a n o R ó m u l o A l m e i d a publicara um opúsculo que, reto-
m a n d o informações dadas por G o e s C a l m o n n u m livro já a n t i g o , 1 4
ressaltava traços
estruturais da e c o n o m i a c insistia cm certos aspectos da mentalidade baiana, sugerindo
a existencia dos seguintes ciclos e c o n ô m i c o s : cm auge n o início do século X I X , em
baixa entre 1 8 2 0 - 1 8 4 0 , cm recuperação na década de 1 8 4 0 , cm ligeira reanimação n o
início da década de 1 8 6 0 , cm baixa n o v a m e n t e até princípios de 1 8 9 0 e em auge até
o início dos anos 2 0 d o nosso século. M o d e s t a m e n t e , o autor confessava que só quisera
esboçar alguns ' t r a ç o s ' da história das crises da Província, tendo em vista chamar a
atenção para a imperiosa necessidade de empreender uma análise metodologicamente
mais rigorosa, que permitisse entender o 'enigma b a i a n o ' : 1 5
a Província 'encolhera n o
tempo', 1 6
adormecera.
2S BAHIA, SÉCULO X I X

O desafio não era p e q u e n o . Se eu quisesse explicar as descontinuidades e rupturas


apontadas por R ó m u l o Almeida, teria que seguir várias pistas e aprofundar as pesquisas.
Era preciso estudar a geografia e o c l i m a , pois, segundo a literatura histórica tradicio-
nal, as crises estiveram ligadas aos ciclos recorrentes da seca e das epidemias, apresentadas
c o m o fatalidades; era preciso que, nos recenseamentos, se calculasse o n ú m e r o de pessoas
e sua divisão por sexo, idade e raça; era preciso tratar da estrutura e c o n ô m i c a e do
papel, peso e duração das flutuações observadas; era preciso, e n f i m , c o n h e c e r m e l h o r a
organização social. T u d o isso era preciso, mas não suficiente. A escolha de quatro grandes
temas de pesquisa não excluía a necessidade de estabelecer u m a c r o n o l o g i a , pois a
tentativa de c o m p r e e n d e r tudo ao m e s m o t e m p o tenderia a resultar e m generalidades.

Inevitavelmente, o trabalho do historiador é limitado pelas fontes de i n f o r m a ç ã o


a que tem acesso. E u buscava períodos l o n g o s . P a r e c i a - m e indispensável quantificar
grandes séries. A d o c u m e n t a ç ã o existente e m Salvador para o p e r í o d o colonial —
que a tradição situa entre 1 5 4 9 e 1 8 2 2 — deveria ser e n r i q u e c i d a p o r consultas aos
acervos do Arquivo N a c i o n a l e da B i b l i o t e c a N a c i o n a l , a m b o s situados n o R i o de
J a n e i r o , e dos arquivos portugueses. M a s n ã o havia verbas. T i v e que esperar até 1 9 7 6
para deslocar-me até o R i o , o n d e p u d e m a n u s e a r a c o r r e s p o n d ê n c i a trocada entre os
presidentes das províncias e o M i n i s t é r i o do I n t e r i o r , os interessantíssimos dossiês
individuais que precediam a concessão, pelo i m p e r a d o r , de títulos, honrarias e c o n -
decorações e os acervos referentes à G u a r d a N a c i o n a l e às eleições.

O s arquivos de Salvador t i n h a m sido p o u c o utilizados até e n t ã o , até p o r q u e nosso


trabalho não estava fixado n o p r o b l e m a das ' o r i g e n s ' . A o m e s m o t e m p o em que os
historiadores baianos adquiriam gosto e interesse pela pesquisa, a cidade foi invadida
por um pacífico exército de historiadores n o r t e - a m e r i c a n o s e ingleses, interessados
sobretudo n o período colonial. Eles produziram estudos sérios e úteis sobre a Vida
baiana' dos habitantes de Salvador e d o R e c ô n c a v o , áreas q u e — sediando plantações
de cana-de-açúcar, fazendas produtoras de a l i m e n t o s e atividades comerciais —
estruturaram a vida e c o n ô m i c a de regiões d o t a m a n h o da F r a n ç a .
N u m primeiro m o m e n t o , decidi fazer pesquisas sobre Salvador e adjacências, cujo
papel fora preponderante em quatro séculos de história da Bahia. D i s p u n h a de fontes
impressas e de acervos datados de 1 7 5 0 em diante, mas n o início não conhecia o
potencial desse material. Foi preciso me familiarizar c o m ele para c o m e ç a r a perceber
a importância de estudar o século X I X , época em q u e , a m e u ver, a Bahia perdeu a
capacidade de adaptar-se e crescer. N ã o se tratava, é claro, de definir limites cronoló-
gicos rigorosos; na verdade, o meu 'século X I X ' retrocedia a 1 7 5 0 e chegava à década
de 1 9 3 0 .
D e um modo geral, as fontes impressas (que c o m e ç a m a aparecer na década de
1 8 5 0 ) são bastante medíocres. Pude identificar c i n c o grandes coleções:
1. As falas ou discursos pronunciados pelos presidentes da Província a cada aber-
tura de sessão da Assembléia Legislativa. Fazem um balanço da gestão precedente,
assinalam problemas não solucionados, fornecem estatísticas úteis sobre economia,
INTRODUÇÃO 29

finanças, e d u c a ç ã o e assistência p ú b l i c a , mas c o n t ê m lacunas i m p o r t a n t e s , que


inviabilizam o e s t a b e l e c i m e n t o de séries.
2 . O s jornais. S ó o Diário da Bahia foi publicado sem interrupção entre 1 8 3 3 e
1 9 5 8 . Sua c o l e ç ã o , dispersa em três diferentes instituições (a Biblioteca Pública, o
Instituto G e o g r á f i c o e H i s t ó r i c o e os Arquivos do Estado da B a h i a ) , está cheia de
lacunas, s o b r e t u d o n o que diz respeito ao século X I X . Entre 1 8 7 0 e 1 9 0 0 , por exemplo,
feiram dezessete a n o s . P o r isso, t a m b é m n ã o pude construir séries coerentes a partir
das estatísticas publicadas s o b r e e x p o r t a ç õ e s , tarifas bancárias, c â m b i o e cotações das
mercadorias em S a l v a d o r e n o exterior ( L o n d r e s , Liverpool, Lisboa, Le Havre, H a m -
burgo. B r e m e n , G ê n o v a ) .

3 . A c o l e ç ã o d o B a n c o da B a h i a . C o n s u l t e i os relatórios anuais dessa instituição,


fundada em 1 8 5 8 , além de m a n u s c r i t o s e m q u e estão registradas a correspondência, as
inscrições dos a c i o n i s t a s , as transferências de ações e as atas dos conselhos de admi-
nistração, dos c o n s e l h o s fiscais e das assembléias gerais. M a s , t a m b é m aí, o século X I X
está m u i t o i n c o m p l e t o . 1 7

4 . A c o l e ç ã o d a A s s o c i a ç ã o C o m e r c i a l da B a h i a . F u n d a d a e m 1 8 4 2 , só em 1 9 0 8
a entidade passou a p u b l i c a r r e g u l a r m e n t e relatórios anuais e boletins. Sua documen-
tação g e r a l m e n t e r e p r o d u z dados p u b l i c a d o s em outros órgãos, e as estatísticas referen-
tes ao século X I X são r e l a t i v a m e n t e escassas.
5 . O s relatórios das diversas secretarias de g o v e r n o d a B a h i a . N a d a resta sobre o
século X I X , c o m e x c e ç ã o d o material d o T e s o u r o da Província para os anos 1 8 5 5 ,
1 8 5 6 , 1 8 5 8 , 1 8 8 2 , 1 8 8 4 e 1 8 8 8 . N o s acervos dos A r q u i v o s do Estado da Bahia há
relatórios m a n u s c r i t o s p r o v e n i e n t e s de diferentes setores da administração da Provín-
cia (após 1 8 9 0 , E s t a d o ) . M a s essa d o c u m e n t a ç ã o n ã o está classificada e não c o n h e ç o
ainda o p e r í o d o a q u e se refere.
Existe u m a sexta c o l e ç ã o , p u b l i c a d a n o R i o de J a n e i r o . T r a t a - s e das Propostas e
relatórios apresentados ã Assembléia Geral Legislativa pelos ministros e secretários dos
negócios da Fazenda, que c o n t ê m estatísticas relativas às atividades econômicas do
país a partir da segunda m e t a d e d o século X I X . O C e n t r o de Pesquisas da Secre-
taria de P l a n e j a m e n t o , C i ê n c i a e T e c n o l o g i a do Estado da Bahia conseguiu reunir
esses dados em q u a t r o volumes, intitulados A inserção da Bahia na evolução nacio-
nal. t# etapa: 1850-1889.
D i a n t e desse quadro — coleções incompletas, dados insuficientes — tive que
abandonar o s o n h o de estabelecer uma verdadeira contabilidade regional retrospecti-
va. Apesar da relativa regularidade na publicação de dados a partir de 1 8 5 0 , as lacu-
nas são numerosas. H á informações sobre os produtos exportados, tanto para o exte-
rior c o m o para outras províncias brasileiras; mas quase não há sobre os produtos
importados. H á alguma coisa sobre o m o v i m e n t o do porto de Salvador (navegação
de longo curso c cabotagem) c a construção de redes ferroviárias; mas faltam indica-
ções importantes sobre a agricultura e a pecuária, a produção industrial (que já c o n -
tava com fábricas de sabão, tabaco, cigarros, tecidos e outras), os fluxos comerciais
BAHIA, SÉCULO X I X
30

d e n t r o da Província e os preços das m e r c a d o r i a s v e n d i d a s à p o p u l a ç ã o de Salvador.


N a d a c o n s t a sobre a c i r c u l a ç ã o m o n e t á r i a , o c r é d i t o , as m o v i m e n t a ç õ e s de capital e
outros p a g a m e n t o s .
T a m p o u c o o b t i v e resultados d o e s t u d o das leis o r ç a m e n t á r i a s , p u b l i c a d a s regular-
m e n t e a partir de 1 8 3 5 na c o l e ç ã o Leis e resoluções da Província da Bahia (depois de
1 8 8 9 , E s t a d o da B a h i a ) , pois os o r ç a m e n t o s e s t ã o s e m p r e e q u i l i b r a d o s , graças a su-
perestimação arbitrária das receitas e previsão s u b e s t i m a d a das despesas. Q u a n d o estu-
dei algumas 'falas' de presidentes da P r o v í n c i a d a d é c a d a d e 1 8 7 0 , e m q u e a p a r e c i a m
s i m u l t a n e a m e n t e as despesas previstas e as e f e t i v a m e n t e realizadas, esse t r u q u e ficou
claro. Ele c o n t i n u o u a ser usado n o s é c u l o X X . E m 1 9 2 4 , p o r e x e m p l o , e m discurso
à Assembléia do E s t a d o da B a h i a , o g o v e r n a d o r F r a n c i s c o M a r q u e s de G o e s C a l m o n
declarou que o o r ç a m e n t o era u m a ficção, p o i s " s e d i s t a n c i a v a c o m p l e t a m e n t e das
regras da ciência das finanças"! 18

I m p o s s i b i l i t a d a de avaliar essas c o n t a s e fazer u m b a l a n ç o , l i m i t e i - m e a estudar a


evolução e c o n ô m i c a da B a h i a s e g u n d o as estatísticas r e f e r e n t e s à sua b a l a n ç a c o m e r -
cial. T a m b é m desse m o d o e n f r e n t a v a p r o b l e m a s : a l é m de i n c o m p l e t o s , os d a d o s não
p o d i a m ser c o n s i d e r a d o s precisos, pois os valores c o n s i g n a d o s e r a m inferiores aos
reais, artifício usado para d i m i n u i r o p a g a m e n t o de i m p o s t o s e t a x a s . 1 9

Apesar de t u d o , utilizadas c o m m u i t a c a u t e l a , essas f o n t e s impressas p e r m i t i a m


o b t e r ordens de grandeza e c a p t a r c o n t i n u i d a d e s e d e s c o n t i n u i d a d e s . E r a preciso
completá-las através da c o n s u l t a a f o n t e s m a n u s c r i t a s , q u e se t o r n a r a m a b u n d a n t e s a
partir de fins do século X V I I . O n d e e n c o n t r á - l a s n a B a h i a ? Q u a l seu valor para os
objetivos que m e p r o p u n h a a atingir?
E m t o r n o de 1 9 6 5 , o A r q u i v o d o E s t a d o da B a h i a era o m a i s i m p o r t a n t e . M a s era
apenas um d e p ó s i t o , nada mais d o q u e isso (até h o j e é m a i s u m a b r i g o de arquivos do
que um local de pesquisa: n ã o h á guias o u c a t á l o g o s q u e o r i e n t e m o p e s q u i s a d o r ) . Ali,
só os volumes encadernados f o r a m classificados. O resto da d o c u m e n t a ç ã o estava
embrulhada em papel pardo c u i d a d o s a m e n t e a m a r r a d o , c o m títulos q u e freqüente-
mente discordavam do c o n t e ú d o . P o r e x e m p l o , os c h a m a d o s ' r e c e n s e a m e n t o s ' c o n t i -
nham exclusivamente a c o r r e s p o n d ê n c i a trocada e n t r e os agentes dos recenseamentos
do século X I X ; o p o u c o q u e sobra d o r e c e n s e a m e n t o de 1 8 5 5 estava arquivado sob o
titulo geral de 'qualificação dos eleitores', o n d e t a m b é m apareciam listas eleitorais e
correspondências diversas.
A seção dita 'histórica' estava mais b e m organizada, graças ao esforço de historia-
dores que haviam trabalhado c o m certas séries, c o m o aquelas que c o n t ê m as cartas
régias, a correspondência dos antigos governadores e presidentes da Província ou as
referências aos tumultos c revoltas baianas entre o fim do século X V I I I e 1 8 4 0 . Nas
seções judiciária e administrativa reinava grande desordem, c o m exceção de uma pe-
quena série, a do primeiro recenseamento das terras agrícolas da Bahia, realizado entre
1 8 5 2 e 1 8 6 0 e utilizado até hoje para estabelecer algumas escrituras e resolver pendên-
cias em torno de títulos c o n t e s t a d o s . 20
INTRODUÇÃO 31

D e p o i s de c o n s u tar c e n t e n a s de embrulhos e maços de papéis, resignei-me a


c o n c e n t r a r m e u t r a b a l h o em séries u m p o u c o mais organizadas, c o m o a dos inventá-
nos post morrem (guardados na forma dc m a ç o s ) , a dos testamentos (que formam 6 4
espessos v o l u m e s ) e a das notas e escrituras (minutas cartoriais). Além de imediata-
mente acessíveis, as três séries p e r m i t i a m d o c u m e n t a r um período bastante longo,
apresentando lacunas m e n o s i m p o r t a n t e s do que os recenseamentos e as listas eleito-
rais. Elas n ã o c o m e ç a v a m , n o e n t a n t o , n o m e s m o m o m e n t o . O s livros de notas e
escrituras c o n t ê m u m a rica série de 1 . 1 0 0 volumes, produzidos regularmente entre
1 6 6 4 e 1 9 1 4 , registrando e m o r d e m c r o n o l ó g i c a u m a m o n t o a d o de atos sobre i m ó -
veis, h i p o t e c a s , aluguéis de todos os tipos (de imóveis, de mão-de-obra escrava, de
propriedades rurais e t c ) , d o a ç õ e s , cessões c transferências de bens, certidões de ado-
ção e de r e c o n h e c i m e n t o de paternidade, contratos nupciais, cartas de alforria e as-
sim por d i a n t e .

Ricas pela diversidade de sua d o c u m e n t a ç ã o , essas m i n u t a s cartoriais nem sempre


apresentam dados h o m o g ê n e o s e passíveis de q u a n t i f i c a ç ã o , a n ã o ser nos casos das
cartas de alforria. D o i s e x e m p l o s — os c o n t r a t o s de venda ou locação de imóveis e os
contratos nupciais — b a s t a m para d e m o n s t r á - l o . O s primeiros às vezes fornecem a
superfície o c u p a d a p e l o i m ó v e l , às vezes apenas os n o m e s das casas vizinhas. O n ú m e -
ro de andares dos s o b r a d o s q u a s e n u n c a está i n d i c a d o , dificultando a avaliação do
valor da transação e f e t u a d a ; a idade e a qualificação dos contratantes nunca são men-
cionadas. N o o u t r o c a s o , trata-se de certidões — verdadeiros contratos legais — que
atestam o r e c e b i m e n t o , p o r u m a m u l h e r , de u m dote de sua família ou de seu futuro
esposo e e s t a b e l e c e m o r e g i m e de bens e as regras de sucessão n o caso de falecimento
de um c ô n j u g e . E m b o r a n ã o possam ser q u a n t i f i c a d o s , os dados contidos nesse tipo de
d o c u m e n t o n ã o d e i x a m de ter a l g u m interesse, pois deixam entrever a trama de rela-
ções sociais e n u m e r o s a s facetas d o c o m p o r t a m e n t o e da mentalidade dos baianos.

O s livros de tabeliães c o b r e m u m período de mais de duzentos anos, mas as séries


de testamentos e inventários só se t o r n a m estatisticamente interessantes no século
X I X . Seus dados t a m b é m n ã o são quantificáveis e o período contemplado acaba por
reduzir-se a 1 8 0 0 - 1 8 9 0 , fora do qual não encontrei n e n h u m a contribuição importan-
te nos Arquivos d o Estado da B a h i a . E x a m i n e i m e t o d i c a m e n t e três acervos ali guarda-
dos: o Registro de testamentos da contadoria da Caixa Provincial{2\ volumes, 1 8 3 7 -
1 8 9 1 ) , o n d e aparecem apenas cláusulas testamentárias concernentes aos herdeiros que
pagavam impostos de sucessão; a série Guarda Nacional instituição paramilitar fun-
dada cm 1 8 3 1 ; c a Qualificação de votantes, que, entre outros documentos de caráter
administrativo, contém listas eleitorais.
N o Registro aparecem informações complementares àquelas fornecidas pelas séries
dos testamentos e inventários post mortem. Nos outros casos, tem-se informação farta,
preciosa c rara sobre a população livre (nomes, prenomes, idades, profissões e rendas
anuais, reais ou presumidas). Essas duas últimas séries teriam dado importante contri-
buição à história econômica c social se contivessem documentos referentes à cidade de
BAHIA, SÉCULO X I X
32

Salvador. Mas, para m i n h a decepção, isso ocorre de m o d o esporádico e, m e s m o assim,


apenas nas listas eleitorais. S ó na Qualificação de votantes encontrei restos do recen-
seamento de 1 8 5 5 , concernente à capital.
T a m b é m consultei outros acervos, mas sua e n u m e r a ç ã o seria entediante. F i c a o
leitor convidado a consultar as referências que se e n c o n t r a m n o final deste livro.
Apenas duas séries apresentaram as c o n d i ç õ e s necessárias para servir de base à quan-
tificação estatística: os inventários post mortem ( 1 8 0 0 - 1 8 9 9 ) , que permitiram um
estudo sobre as fortunas, e as cartas de alforria ( 1 7 4 9 - 1 8 8 8 ) , que possibilitaram le-
vantar a que preço, n o sentido próprio e n o figurado, os escravos conquistavam a
liberdade. N o â m b i t o dessa pesquisa, n o e n t a n t o , n ã o valorizei apenas os dados que
podiam ser quantificados. A leitura de centenas de inventários post mortem, milhares
de testamentos e outras tantas cartas de alforria m e esclareceu c o m p o r t a m e n t o s de-
terminantes das relações sociais, acima das divisões devidas às diferenças de raça,
cor e fortuna. Apareceram os principais traços da mentalidade dos baianos. Justa-
mente porque não pôde ser quantificada, essa parte da história — que não deixa de
ser uma história dos a c o n t e c i m e n t o s — e n r i q u e c e u s i n g u l a r m e n t e m i n h a compre-
ensão do passado.
É cruel a ausência de guias e catálogos nos Arquivos M u n i c i p a i s de Salvador e no
Arquivo do Estado da Bahia, cujos acervos são m u i t o ricos mas, c o m exceção dos
volumes encadernados, não estão catalogados. A t é 1 9 6 9 , a municipalidade de Salva-
dor publicou numerosos d o c u m e n t o s , referentes apenas ao período colonial, agrupa-
dos sob o título geral de Documentos históricos do Arquivo Municipal. A série mais
importante é a das Atas da C â m a r a , m i n u t a s das reuniões do C o n s e l h o Municipal,
publicadas em sete volumes que saíram entre 1 9 4 1 e 1 9 6 9 , c o b r i n d o u m período que
vai até 1 7 1 0 . Faltou verba para prosseguir o trabalho. E m b o r a a coleção manuscrita
dessas atas esteja completa, não a utilizei.
T o d a a documentação referente à vida e c o n ô m i c a e social da cidade — que, c o m o
pude constatar, cobre o período de fins do século X V I I I a fins do século X I X — estava
amontoada no chão de u m depósito que visitei em 1 9 7 9 . N ã o sei dizer se já recebeu
destino melhor. N a ocasião, desisti de utilizá-la, pois qualquer tentativa nesse sentido
demandaria esforço insano; uma primeira classificação exigiria vários anos de trabalho.
Mas reservei a série Escrituras de escravos (1847-1887), organizada em forma de vo-
lumes e formada por documentos relativos à locação de serviços da mão-de-obra
escrava. Além disso, alguns aspectos da vida comunitária de Salvador ficaram mais
claros depois da consulta a um volume manuscrito — o único que pude localizar —
da coleção intitulada Livro de posturas municipais (1829-1859).
O s arquivos da Santa Casa da Misericórdia, bem conservados, apresentavam dois
acervos principais: documentos referentes à administração geral dessa instituição e
documentos contábeis. Estes últimos me interessavam muito, pois essa confraria leiga
possuía um hospital desde a época de sua flindação ( 1 5 5 0 ) , cuidara por muito tempo
de crianças abandonadas e, no início do século X V I I I , criara um asilo para mulheres.
INTRODUÇÃO j|

Pegue, . m e c h a t a m e n t e os Lvros de receita e despesa, cuja série começa no fim do século


XV I I , mas logo verifique, que suas informações eram muito gerais, limitando-se às
somas totais recebidas e gastas pela instituição. Referências constantes a maços' insi-
nuavam q u e essas c o n t a s se baseavam em d o c u m e n t o s que não constavam do resumido
catálogo m a n u s c r i t o q u e eu consultara, nem t a m p o u c o estavam na sala dos arquivos
S ó os e n c o n t r e , n o sótão de um b e l o casarão do século X V I I . Eram milhares de
páginas, c o m p r i m i d a s u m a s às outras e amarradas c o m barbantes. Para retirá-las de lá,
tive que utilizar u m a escada de p i n t o r e, para consultá-los, foi preciso limpar uma
poeira, l i t e r a l m e n t e , de séculos. V a l e u a pena. Excetuando-se a década de 1 8 3 0 , cujos
dados n ã o p u d e e n c o n t r a r , esses d o c u m e n t o s forneceram regularmente, para um pe-
ríodo de d u z e n t o s a n o s ( 1 7 5 0 a 1 9 5 0 ) , os preços mensais dos gêneros consumidos no
hospital e n o asilo e as diárias c o b r a d a s pelos diversos artesãos encarregados da manu-
tenção o u de o b r a s . A s s i m , p u d e finalmente estabelecer séries de preços (que cobrem
1 8 0 anos) e de salários (até 1 8 2 9 ) .
Para c o n t r o l a r esses dados, recorri e m seguida ao arquivo do Colégio dos Órfãos
de São J o a q u i m , f u n d a d o e m 1 8 2 6 . S u a d o c u m e n t a ç ã o só se torna realmente sistemá-
tica a partir de 1 8 4 0 , f o r m a n d o u m a série m e n o r que a anterior. M e s m o assim, pude
perceber q u e os preços dos p r o d u t o s alimentícios t i n h a m , nos dois casos, a mesma
ordem de g r a n d e z a . Para o p e r í o d o posterior a 1 8 4 0 tomei c o m o base os dados obtidos
com o estudo dos salários de algumas categorias de artesãos.
M i n h a s pesquisas nos arquivos baianos se encerraram aqui. Aliás, só puderam ser
realizadas graças à c u m p l i c i d a d e dos diretores dessas instituições, aos esforços de diver-
sas categorias de f u n c i o n á r i o s e, s o b r e t u d o , a dezenas de estudantes voluntários, que
me ajudaram a l i m p a r a poeira, classificar e copiar textos, chorando j u n t o comigo a
destruição i n v o l u n t á r i a de alguns. P a r c i a l m e n t e devorados por insetos, danificados
por tintas m u i t o ácidas, feitos c o m papel c o n c e n t r a d o r de umidade, vários documen-
tos se tornavam inutilizáveis depois da primeira manipulação.
E x a m i n a m o s c e r c a de q u a r e n t a m i l d o c u m e n t o s para estabelecer nossas séries de
preços e salários; lemos e resumimos 3 . 4 6 8 testamentos e 1 . 1 1 5 inventáriospostmortem;
transcrevemos mais de dezesseis m i l cartas de alforria. N ã o é preciso mencionar todos
os outros d o c u m e n t o s consultados sem resultados. Foram incalculáveis as horas gastas
nos arquivos citados e c m outros, c o m o os dos conventos do Desterro, do Carmo, de
São Francisco e de S ã o B e n t o , que nada acrescentaram à nossa pesquisa.
Agora, com distanciamento, que balanço posso fazer desse trabalho que, entre
1 9 6 5 e 1 9 8 0 , consumiu milhares de horas em bibliotecas e arquivos? Consegu. atingir
minhas metas? São perguntas que exigem uma avaliação de conjunto. Não trabalhei
sozinha. Colegas meus, historiadores, concentraram-se em períodos diferentes e utili-
zaram outros acervos. Geógrafos, sociólogos c economistas conjugaram esforços, que
resultaram em certo número de teses c estudos, disponíveis desde fins da década de
1 9 7 0 . O que foi possível descobrir sobre as condições demográficas, econômicas e
sociais de Salvador e do Recôncavo?
BAHIA, SÉCULO X I X
34

A pesquisa e m d e m o g r a f i a h i s t ó r i c a r e s u l t o u n u m a tese de t e r c e i r o c i c l o , d e f e n d i -
da por J o h i l d o L o p e s de A t h a y d e e m Paris. E l e a n a l i s o u as o n z e p a r ó q u i a s existentes
em Salvador n o século X I X ( 1 8 0 0 - 1 8 8 9 ) , p a r t i n d o de registros — t a m b é m i n c o m p l e -
t o s guardados nos arquivos da C ú r i a M e t r o p o l i t a n a . P ô d e e v i d e n c i a r as três variáveis
já clássicas nascimentos, casamentos e mortes — segundo a metodologia proposta
por L o u i s H e n r y . A p e s a r d e seu caráter u m p o u c o geral, esse e s t u d o c o n t é m algumas
análises interessantes, centradas na p a r ó q u i a d a S é , a p r i n c i p a l d a c i d a d e . A s informações
disponíveis p e r m i t i r a m q u e o a u t o r analisasse o c e l i b a t o , a f e c u n d i d a d e e os p r o b l e m a s
ligados aos filhos ilegítimos e às n u m e r o s a s e p i d e m i a s q u e assolaram a cidade e m
meados d o s é c u l o . É u m t r a b a l h o d e g r a n d e m é r i t o . M a s n ã o c o m p o r t a n e n h u m a
distinção n o q u e diz respeito às c o n d i ç õ e s legais ( h o m e n s livres e e s c r a v o s ) , à c o r
(brancos, negros, m u l a t o s , í n d i o s , c a b o c l o s ) , ao s e x o o u à i d a d e das pessoas. L a m e n -
tavelmente, outros j o v e n s historiadores n ã o c o n t i n u a r a m essas pesquisas. Assim, apesar
da nova visão q u e essa o b r a f o r n e c e u s o b r e c e r t o s a s p e c t o s d e m o g r á f i c o s d a cidade de
Salvador, ainda t i v e m o s q u e usar antigas avaliações s o b r e a p o p u l a ç ã o b a i a n a (até
1 8 7 0 ) e e s m i u ç a r os r e c e n s e a m e n t o s o f i c i a i s realizados a p a r t i r de 1 8 7 2 .

J á é quase c e r t o q u e a falta de f o n t e s p r i m á r i a s i m p o s s i b i l i t a r á grandes estudos


m a c r o e c o n ô m i c o s e pesquisas m i c r o e c o n ô m i c a s precisas s o b r e a B a h i a d o século X I X .
O s proprietários agrícolas — s e n h o r e s de e n g e n h o o u s i m p l e s m e n t e fazendeiros — ,
as casas c o m e r c i a i s , as indústrias e os b a n c o s n ã o c o n s e r v a r a m seus papéis. N ã o exis-
tem mais os livros de razão, as c o n t a s e a c o r r e s p o n d ê n c i a d a t a d o s de antes de 1 8 7 0 .
O s posteriores, se escaparam às destruições (sistemáticas o u i n c o n s c i e n t e s ) , p e r m a n e c e m
cuidadosa e v o l u n t a r i a m e n t e e s c o n d i d o s .

D a m e s m a f o r m a , parece q u e será impossível m o n t a r n o v a s séries i m p o r t a n t e s ,


relativas à p r o d u ç ã o total, aos i n t e r c â m b i o s c o m e r c i a i s (realizados d e n t r o d a Província
o u c o m outras províncias), aos custos d a p r o d u ç ã o , aos p r e ç o s de bens de c o n s u m o
e de serviços, às emissões e à c i r c u l a ç ã o m o n e t á r i a s , aos m o v i m e n t o s de capital etc.
A reduzida d o c u m e n t a ç ã o estatística — q u e p e r m i t i u m o n t a r séries i n c o m p l e t a s e c o m
poucas variáveis — foi p a c i e n t e m e n t e r e u n i d a e p u b l i c a d a p e l o C e n t r o de Pesquisas da
Secretaria de P l a n e j a m e n t o d o E s t a d o da B a h i a . 2 2
A parte mais antiga dessa d o c u -
mentação data da década de 1 8 5 0 . Para os períodos anteriores, precisamos nos c o n t e n -
tar com dados m u i t o restritos, relacionados ao c o m é r c i o e à navegação. Nesse â m b i t o ,
a tese da historiadora norte-americana C a t h e r i n e L u g a r dá u m a b o a c o n t r i b u i ç ã o do
ponto de vista e s t a t í s t i c o . 23

Consegui enriquecer as séries referentes às variáveis e c o n ô m i c a s , agregando a elas


cinco outras séries: a dos preços de alguns gêneros alimentícios n o m e r c a d o de Salva-
dor ao longo de quase dois séculos ( 1 7 5 0 - 1 9 3 0 ) ; a dos preços da m ã o - d e - o b r a escrava
( 1 8 1 9 - 1 8 8 8 ) ; a dos salários de algumas categorias de artesãos ( 1 8 0 0 - 1 8 8 9 ) ; e a das
fortunas dos habitantes de Salvador ( 1 8 0 0 - 1 8 8 9 ) . 2 4
P o b r e diversidade de dados n o
campo e c o n ô m i c o , que só permite demonstrações limitadas a ordens de grandeza e
baseadas em tontes freqüentemente restritas; e que induz o historiador a trocar a
INTRODUÇÃO 55

história e c o n ô m i c a em sentido estrito por uma história mais social que e c o n ô m i c a . Foi
este o meu caso, semelhante ao de numerosos colegas que trabalham c o m a Bahia.
Se a escassez de fontes justifica um certo desinteresse pela história e c o n ô m i c a , n ã o
se pode dizer o m e s m o no que diz respeito à demografia histórica, tema fundamental
em matéria de história social. Teria sido necessário fazer um esforço para estudar, pelo
menos, uma paróquia, registrando as curvas de nascimentos, casamentos e mortes,
analisando o celibato e a fecundidade, a p r e n d e n d o , em suma, métodos e técnicas que,
por feita de u m a f o r m a ç ã o correta, n ã o chegaram a interessar aos jovens historiadores
baianos. Estes preferiram t e m a s q u e pudessem ser pesquisados em documentação
menos árida e mais acessível e q u e apresentassem resultados mais sugestivos, mais
imediatos e mais e s p e t a c u l a r e s . O d e s e n v o l v i m e n t o de u m a história social não
demográfica t a m b é m c o r r e s p o n d i a a necessidades imediatas. U m a curiosidade impelia
os pesquisadores a t e n t a r c o m p r e e n d e r m e l h o r a organização social de Salvador, seus
conflitos e a c o m o d a ç õ e s , d e n t r o de u m a p r o b l e m á t i c a q u e , muitas vezes, desembocava
em hipóteses de t r a b a l h o c u j o s pressupostos teóricos — c o m o , por exemplo, a luta de
classes, m e s m o sem c o n s c i ê n c i a de classe — p o d e m trazer u m a preciosa contribuição
à historiografia.

Distanciados das grandes p r e o c u p a ç õ e s teóricas, c o n c e n t r a d o s sobretudo n o pe-


ríodo colonial, os historiadores ingleses e n o r t e - a m e r i c a n o s continuavam suas pes-
quisas, m e t o d o l o g i c a m e n t e sólidas e e x t e n s a m e n t e d o c u m e n t a d a s , que tinham c o m o
eixo a história social de Salvador e d o R e c ô n c a v o . M i n h a história social do século
X I X encontrava, assim, suas bases n o t e m p o . N a verdade, várias vertentes enrique-
ceram m e u c o n h e c i m e n t o : a indispensável historiografia tradicional, a nova produ-
ção histórica baiana, a c o n t r i b u i ç ã o n o r t e - a m e r i c a n a e inglesa e os numerosos estu-
dos consagrados à B a h i a pelos franceses R o g e r Bastide e Pierre Verger. M a s meu
trabalho não é a s o m a destes. D e u m lado, d e d i q u e i - m e a u m a problemática resul-
tante de m i n h a s próprias perplexidades e de trinta anos consagrados a observar Sal-
vador, que passou r a p i d a m e n t e , d i a n t e de meus olhos, de seiscentos mil a dois mi-
lhões de habitantes e d o i m o b i l i s m o à modernidade; de o u t r o , fiz pesquisas próprias.
A abordagem que apresento aqui é, inclusive, diferente da que aparece em minhas
publicações p r e c e d e n t e s . 25

M i n h a pergunta básica há alguns anos se resumia em algo bastante simples: por


que e c o m o a orgulhosa capital da opulenta Bahia do fim d o século X V I I I , dominada
pelos ricos senhores de e n g e n h o do R e c ô n c a v o , conhecidos até na longínqua Europa,
transformou-se lentamente, até se tornar, cem anos depois, numa simples cidade de
negociantes? Note-se que a transferência da capital do Brasil, em 1 7 6 3 , de Salvador
para o Rio de J a n e i r o , não correspondeu a uma tomada de consciência do 'progresso*
do Sul ou de uma decadência qualquer do Nordeste. T a l medida foi imposta unica-
mente por necessidades imediatas: aproximar o centro de c o m a n d o e os exércitos que
lutavam no Sul contra os espanhóis e vigiar melhor o porto do Rio, por onde passavam
as exportações de ouro de Minas Gerais, M a t o Grosso e Goiás.
BAHIA, SÉCULO X I X
36

A o examinar aquela transformação desde um p o n t o de vista que privilegiava o


• fator econômico sobre o social, encontrei respostas que m e abriram novos horizontes,
pois apareceram problemas básicos que não consegui solucionar. C o n c l u í então que,
primeiro, era preciso desvendar a trama social da B a h i a , resultante de encontros de
homens e de etnias, de tradições e de crenças, de costumes e de mentalidades comple-
tamente opostos na aparência. Respondi algumas dessas perguntas, mostrando o papel
desempenhado pela família e as confrarias religiosas que restringiam as relações sociais
e, no entanto, eram centros de solidariedade. M a s essas pesquisas repousavam em
bases frágeis, e o solo sob meus pés n ã o era firme o bastante para que eu pudesse
avançar c o m segurança em direção a u m a b o a explicação.
Era preciso encontrar respostas e aprofundar m i n h a s análises, de m o d o a fazer
sobressair mais claramente as estruturas e hierarquias, o papel das elites, dos ricos, dos
pobres, dos livres e dos escravos, o lugar da Igreja e o peso da explosão demográfica.
Relações sociais aparentemente tão p o u c o conflitantes e solidariedades que, de fora,
pareciam tão harmoniosas e sólidas revelariam suas falhas e sombras? O u estas falhas
e sombras tinham e n c o n t r a d o u m equilíbrio estável, amarrado a p o n t o de não deixar
espaço para n e n h u m a evolução verdadeiramente construtiva?

Admitamos que se demonstrasse correta a hipótese da i m a g e m associativa da


sociedade baiana — uma sociedade na qual uns d e p e n d e m dos outros e cada grupo se
integra conforme pertença ao m u n d o dos livres o u dos escravos, ou ao m u n d o dos
brancos, dos negros o u mulatos. Nesse caso, a qualidade dessas relações sociais poderia
ser reveladora de estruturas mentais em que os preconceitos e a m e m ó r i a coletiva de
todos teriam desempenhado u m papel conservador? Essas características das mentali-
dades poderiam ter funcionado c o m o freio ao surgimento de novas elites, c o m o aque-
las que, nos diversos patamares da escala social, impulsionaram a E u r o p a Ocidental e
a América do Norte? E m outros termos, essas solidariedades tutelares e benfazejas, que
produziram as dependências, teriam sido um obstáculo ao aparecimento de elites mais
empreendedoras? Poderíamos explicar a decadência da Bahia pela profusão de 'mimos'
herdados da tradição portuguesa, o u então por u m a contribuição africana esclerosada
pelo sistema escravocrata, que a teria impedido de explorar sua força e suas riquezas?
O Estado e a Igreja teriam contribuído para reforçar esses laços de dependência,
asfixiando as ações individuais e a dinâmica social?

Questões essenciais, que não deviam ser colocadas n o âmbito da história de uma
cidade, ou de uma cidade e sua hinterlândia, mas no da história de toda uma imensa
Província. Aliás, se os homens da capital e do Recôncavo se voltam para o oceano sem
fim, eles também contam com os vastos recursos do Agreste e do Sertão, regiões cujo
desenvolvimento histórico foi ainda menos estudado do que o das terras litorâneas.
Ainda na década dc 1 9 5 0 , os baianos estavam convencidos de que o solo do interior
era constituído por massapés fartos e férteis, embora não fossem nem tão fartos como
diziam os antigos proprietários de plantações de cana-de-açúcar, nem tão férteis quan-
to desejava o imaginário local, que transforma os sertões em reservas de miragens.
INTRODUÇÃO p

Na medida do possível, tentei ligar o m u n d o urbano ao m u n d o rural, relacionar


Salvador — porto c cidade-jardim — ao interior, próximo ou longínquo, vasta reser-
va, jamais esquecida, percorrida para l;í c para cá por homens, animais e mercadorias.
O estudo geográfico d*Oi dons c as armadilhas da natureza (Livro I ) , assim c o m o a
tentativa de captar O peso dos homens na demografia regional e na estrutura e vida
d*A família baiana (Livros II c I I I ) , atendem a esse imperativo. Da mesma forma, nos
Livros IV e V, minhas descrições d ' G Estado: organização e exercício dos poderes e das
expectativas d*A Igreja, através do clero e dos fiéis, adotam alternativamente o ponto
de vista do provincial e d o c i t a d i n o . Q u a n d o abordo O cotidiano dos homens que
produziam e trocavam ou estudo O dinheiro dos baianos, meu trabalho fica mais centrado
em realidades que o grande porto-capital e seus habitantes conhecem melhor. Mas,
sempre que possível, enveredei pelo c a m i n h o das plantações e realizei sobrevôos, para
tentar mostrar as diferenças entre terras d o litoral e do interior.

Apesar de alguns títulos enganadores de trabalhos que constam da bibliografia,


não há n e n h u m a história de cidade brasileira. Neste livro, espero que seja possível
descobrir a história de Salvador, núcleo forte em torno do qual se desenvolveu toda
uma Província. U m a história que tem limites cronológicos precisos entre os anos de
1 8 0 0 e 1 8 8 9 ( P r o c l a m a ç ã o da R e p ú b l i c a ) , mas que permanece profundamente enrai-
zada no passado colonial dos séculos X V I , X V I I e X V I I I . Para compreender o Império,
tentei captar a herança colonial c o n t i d a nas leis, na formação das elites, na Igreja.

T a m b é m pude seguir as trajetórias pessoais de uns seiscentos personagens (altos


funcionários, integrantes do alto clero, negociantes e senhores de e n g e n h o ) . Consegui,
sobretudo, contar muitas histórias de vidas humildes. Quantifiquei o que foi possível,
propus gráficos, mas, pela variedade das situações retratadas, quase todos os casos são
exemplares, n o sentido qualitativo do t e r m o . Registro, aliás, que muitos dados que
forneço resultam de elaborações simples, que não c o n t ê m generalizações, nem consti-
tuem tentativas de estabelecer modelos alicerçados sobre as bases frágeis de uma docu-
mentação que, c o m o disse antes, apresenta lacunas.
N o estudo dos preços praticados em Salvador, evoquei estudos equivalentes, rea-
lizados n o R i o de J a n e i r o . Foi exceção. N o mais, não quis ultrapassar os limites da
Bahia, para aprofundar melhor o material de que dispunha e não comparar pesquisas
quase sempre incompletas e empreendidas de maneira desigual. O s estudos demográ-
ficos, por exemplo, estão m u i t o mais adiantados em estados do Sul do que na Bahia,
para a qual só consegui elucidar algumas questões. Em contrapartida, até hoje a Igre;a
é tão mal estudada ali q u a n t o nas outras regiões do Brasil. Tentei não eludir nenhum
aspecto dos graves problemas encontrados por populações de origens tão diversas e por
um clero tão dividido entre, de um lado, as exigências da hierarquia ou do Estado e,
de outro, ovelhas cuja fé vibrante talvez não compensasse seu analfabetismo. U m a
parte desse clero está tão próxima de seu povo, enquanto outra parte é tão diferente
dele! C o m o poderia orientar-se uma Igreja prisioneira de modelos europeus? Sua linha
pastoral saberia corresponder às expectativas de seu rebanho?
BAHIA, S É C U L O X I X
38

Perguntas, entre centenas de outras. Todas as minhas interrogações me impeli-


ram, finalmente, para o estudo do dinheiro dos baianos, tema que pude aprofundar
graças à moderna informática. Onde podemos encontrar esse dinheiro, indispensável
para a sobrevivência? Foi ele a base das estratificações sociais? A evolução das fortunas
de Salvador permitiria melhor formulação de nossas perguntas iniciais, revelando uma
pobreza tranqüila, que se deixava embalar por uma riqueza solidária?
No início, meu objetivo era ambicioso. Muito ambicioso. Espero que não se
tenha revelado pretensioso. Oxalá tenha conseguido, antes de mais nada, fazer reviver
essa população anônima e cativante, cujos filhos e netos me acolheram na Bahia
dos anos 5 0 .
LIVRO I

Os DONS E AS ARMADILHAS
DA NATUREZA
C A P Í T U L O 1

A BAHIA

Bahia? A cidade o u a Província? É impossível escapar dessa a m b i g ü i d a d e . C o m efeito,


q u a n d o A m é r i c o V e s p ú c i o d e u o n o m e de S ã o Salvador da B a h i a de T o d o s os Santos
à baía q u e acabara de d e s c o b r i r , t i n h a s i m p l e s m e n t e a i n t e n ç ã o de homenagear o dia
de T o d o s os S a n t o s de 1 5 0 3 e de agradecer a C r i s t o a feliz travessia e a descoberta de
um porto m a g n í f i c o o n d e poderia, ao abrigo dos ventos e das vagas, descansar e
reabastecer-se de água.
D e s d e e n t ã o , a C a p i t a n i a — q u e se t o r n o u Província c o m a primeira C o n s t i t u i -
ção brasileira ( 1 8 2 4 ) e depois E s t a d o c o m a R e p ú b l i c a ( 1 8 8 9 ) — sempre se c h a m o u
Bahia. M a s , até o fim d o século passado, sua capital teve, s i m u l t a n e a m e n t e , sete
d e n o m i n a ç õ e s , resultantes de c o m b i n a ç õ e s das o i t o palavras contidas em seu n o m e
de b a t i s m o : S ã o Salvador, Salvador, Salvador da B a h i a , Bahia, Bahia de T o d o s os
Santos e, e n f i m , S ã o Salvador da B a h i a de T o d o s os S a n t o s . H o j e , as administrações ^.Y
simplificadoras decidiram que a cidade se c h a m a Salvador. M a s seus habitantes nun- ^ ^ v .>
ca deixaram de c h a m á - l a B a h i a . < *V \ l
Salvador se ergue c o m arrogância sobre u m a costa rochosa, verdadeiro p r o m o n t ó - '
r i o x o m setenta metros de altura, que fecha e d o m i n a uma ampla baía semeada de ilhas
e ilhotas. N o início d o século passado, era a vitrine das riquezas e misérias de um 1
imenso interior ainda mal c o n h e c i d o . Lisboa tentava i m p r i m i r seu ritmo a Salvador, s j
mas a cidade permanecia, essencialmente, a voz e os olhos de uma região tão vasta )
q u a n t o a França. O c r e s c i m e n t o da cidade foi fruto de uma tríplice bênção: um local
protegido em uma baía segura, larga c profunda; uma jiinrcrlândia próxima, o Recôncavo
que envolve a cidade c que foi por ela gerado; e n f i m , as imensas possibilidades das
terras tropicais situadas entre 1 0 ° e 18° de latitude sul. É mister descrever os espaços
físicos, os climas e as vegetações naturais da região, para tentar compreender que
riquezas ela foi capaz de prometer, que vida pôde oferecer e a que preço.

A época das trilhas c dos atalhos, cm que as distâncias eram calculadas em dias de
marcha, permitiu que se conhecessem as formas e paisagens. A rapidez dos transportes

41
42 BAHIA, SÉCULO XIX

ferroviários ou do automóvel poderia ter suscitado e favorecido pesquisas realmente


novas. Mas, ate data relativamente recente, não se fez nenhum esforço profundo no
sentido de compreender a geografia dos sítios. O que se ignorava em 1 9 3 0 era seme-
o
lhante ao que se ignorava em 1 8 3 0 , época cm que só se conheciam as terras percorridas
CF
ou ocupadas. O mistério começava onde acabavam a via férrea, as terras cultivadas, o
pasto e o horizonte que o homem descortinava de uma colina. Ò baiano do século
passado tinha total consciência desse desconhecimento, porque vivia preso à terra, ao
ritmo das estações e a uma perpétua tentativa de se adaptar àquela gleba, da qual era
preciso retirar alimento e vida.
Hoje, graças ao radar, a Bahia está sendo explorada do alto dos céus, em busca
das riquezas minerais que encerra e de explicações para suas formações geológicas.
Seus solos, já analisados, são pobres em sais minerais e em cálcio. Esses estudos
demonstraram os abismos de nossa ignorância no que diz respeito à história morfo-
l ó g i c a da região e a insuficiência de nossos conhecimentos em relação às mil e uma
facetas de seus climas. As riquezas de sua flora já foram descritas há muito tempo,
mas o porquê e o c o m o do êxito de tal ou qual cultura ainda são objeto de estudos
em laboratório. É com o apoio dessas novas pesquisas que se tentará descrever e
compreender as terras do interior, que permitiram o desenvolvimento e o cresci-
mento da cidade de Salvador.
A Salvador dos séculos passados não foi a aranha que teceu a teia de sua Província.
Foi, antes, boca e desembocadouro, base e refúgio. D a cidade — mais precisamente,
dela e de seu Recôncavo — partiam os principais caminhos e as ordens dos poderosos,
funcionários ou grandes comerciantes. Unidas, imbricadas, as duas áreas sempre for-
v.
maram um todo, enfrentando juntas quaisquer circunstâncias. C o m o o Recôncavo
está voltado para o mar, sua orla e seus rios foram a própria vida da Província. Daí, o
grande peso que lhe deve ser atribuído ao descrever-se a Bahia c o m o um todo; daí,
também, sua importância na descrição do meio natural da região.

A Cidade

Sentinela avançada da Bahia de T o d o s os Santos, entende-se por Cidade da Bahia,


\ / neste trabalho, aquela que se situa dentro dos limites do atual município de Salvador.
<t
1

A leste, esses limites partem da praia oceânica de Ipitanga; ao norte, atingem o fundo
da baía de Aratu. A seguir, prolongam-se pela orla norte do canal de Cotejipe, incor-
: porando todas as praias costeiras até a ponta do Passe. A partir daí, os limites muni-
cipais vão, cm linha reta, por mar, de nordeste a sudoeste, até dois quilômetros ao
largo de Bom Despacho, em Itaparica, onde a profundidade atinge quarenta metros,
e de lá, finalmente, à ponta de Santo Antônio. O município de Salvador compreende,
assim, ao norte, a grande ilha da Maré e suas ilhotas. Abrange igualmente vasta
extensão de mar interior que, onde é mais largo, chega a quinze quilômetros, entre
LIVRO*I - Os DONS E AS ARMADILHAS DA NATUREZA 43

Plataforma, n o c o n t i n e n t e , e o e x t r e m o leste do município, ao largo de B o m Despa-


c h o . Esse mar m u n i c i p a l parece o tridente de N c t u n o , entre cujos dentes emergiram
as elevações da ilha da M a r é e as penínsulas de Aratu e M a t o i m .

A PROVÍNCIA

D e s d e a f u n d a ç ã o de Salvador, em 1 5 4 9 , até os nossos dias, a Bahia teve três denomi-


nações diferentes. C o m o C a p i t a n i a Geral da B a h i a de T o d o s os Santos, foi sede do
governo colonial português até a transferência deste para o R i o de J a n e i r o em 1 7 6 3 .
E m 1 8 1 5 , c o m a t r a n s f o r m a ç ã o do Brasil em R e i n o U n i d o a Portugal e Algarves,
passou, c o m o todas as dez capitanias gerais antes existentes (e sem que houvesse
qualquer legislação específica a r e s p e i t o ) , a ser chamada, indiferentemente, de capita-
nia o u p r o v í n c i a . E m 1 8 2 4 , c o m a p r o m u l g a ç ã o da primeira Constituição brasileira,
tornou-se o f i c i a l m e n t e P r o v í n c i a da B a h i a , u m a das dezenove províncias do Império.
; E m 1 8 8 9 , c o m a P r o c l a m a ç ã o da R e p ú b l i c a , foi o . E s t a d o da Bahia um dos vinte

. estados federados dos Estados U n i d o s do B r a s i l . 2

S o b essas d e n o m i n a ç õ e s e n c o b r e m - s e realidades diferentes, herdadas de uma


história q u e é r e l a t i v a m e n t e simples. N a origem estão c i n c o capitanias hereditárias,
concedidas pelos reis de Portugal e n t r e 1 5 3 4 e 1 5 6 6 : d o m J o ã o I I I concedeu a
Francisco Pereira C o u t i n h o , em 5 de abril de 1 5 3 4 , a C a p i t a n i a da Bahia, depois
. cedida à C o r o a e t r a n s f o r m a d a em sede d o governo geral a partir de 1 5 4 9 ; a Pero
_ . - d o C a m p o T o u r i n h o , c o n c e d e u a C a p i t a n i a de P o r t o Seguro, em 2 7 de maio de
1 5 3 4 ; a J o r g e de F i g u e i r e d o C o r r e i a , a Capitania de Ilhéus e m 2 6 de julho de 1 5 3 4 ;
' e a A n t ô n i o de A t a í d e , C o n d e de Castanheiras, a , C a p i t a n i a das Ilhas de I t a p a r i c a e
Tamarandiya^em 15 de m a r ç o de 1 5 5 6 . D o m Sebastião concedeu a Capitania do
Paraguaçu, o u d o R e c ô n c a v o , a Álvaro da C o s t a em 2 9 de março de 1 5 6 6 . A s duas 3

últimas eram antigas sesmarias da C a p i t a n i a da B a h i a .

N a segunda metade do século X V I I I , as capitanias de Paraguaçu, Itaparica, Porto


Seguro e Ilhéus foram incorporadas à C a p i t a n i a Geral da Bahia que, no início do
, , século X I X , estava dividida em seis c o m a r c a s ; 4 da c a p i t a j / q u e compreendia a cidade
f: ]

\ de Salvador c seu R e c ô n c a v o ) , , . d c j l h é u s * a de. P o r t o Seguro,- a de J a c o b i n a , ( q u e


3 v

cobria a maior parte do Sertão),-a de Sergipe dei R e i , e a do Espírito Santo (as duas
v

últimas eram capitanias subalternas). Cada comarca (divisão administrativa de caráter


judiciário, colocada sob a jurisdição de um ouvidor, substituído depois da Indepen-
dência por juízes de direito) podia abranger vários municípios.
/ N a terceira década d o século X I X , houve alguns remanejamentos administrativos:
\ cm 8 de julho de 1 8 2 0 , a pequena comarca de Sergipe, com seus 2 1 . 9 9 4 k m , tornou- 2

C
^-'t \ s e c a
P' t a n
' a autônoma. São Cristóvão, sua antiga e indolente capital colonial, fundada
! em 1 5 9 0 , mostrou-se incapaz de vencer uma letargia secular e foi substituída pelo
\ porto de Aracaju, de características mais dinâmicas. Depois, em 1 8 2 2 , durante a
44 BAHIA, SÉCULO X I X

G u e r r a da I n d e p e n d ê n c i a , a p o v o a ç ã o de S ã o M a t e u s , s i t u a d a n o e x t r e m o sul do litoral
da P r o v í n c i a da B a h i a , o p t o u p o r fazer p a r t e da P r o v í n c i a d o E s p í r i t o S a n t o , q u e
t a m b é m se t o r n a r a a u t ô n o m a . M a s , em 1 8 2 7 , foi i n c o r p o r a d a à P r o v í n c i a da B a h i a a
c o m a r c a do S ã o F r a n c i s c o , 1 2 0 . 0 0 0 k m 2
de terras situadas a l é m d o rio S ã o F r a n c i s c o ,
retiradas da P r o v í n c i a de P e r n a m b u c o , reduzida a p o u c o mais da m e t a d e de seu antigo
território c o m o c o n s e q ü ê n c i a da sua p a r t i c i p a ç ã o n o m o v i m e n t o separatista q u e ficou
c o n h e c i d o c o m o C o n f e d e r a ç ã o d o E q u a d o r . A p e s a r d a p e r d a d e S e r g i p e dei R e i e de
S ã o M a t e u s , a B a h i a saiu g a n h a n d o nessas t r o c a s , j á q u e sua s u p e r f í c i e passou de
465.000 km 2
a p o u c o mais de 5 6 3 . 0 0 0 km .2

D e f i n i d o s esses limites, n ã o h o u v e m a i s n e n h u m a m o d i f i c a ç ã o d e v u l t o . T o d a v i a ,
só e n t r e 1 9 1 9 e 1 9 2 6 , j á n o p e r í o d o r e p u b l i c a n o , o E s t a d o d a B a h i a a s s i n o u os acordos
c o m os estados de M i n a s G e r a i s , E s p í r i t o S a n t o , G o i á s , P i a u í , P e r n a m b u c o e Sergipe,
p o n d o fim a mais de u m s é c u l o de c o n t e s t a ç õ e s s o b r e l i m i t e s . 5
C A P Í T U L O 2

SALVADOR

MORFOLOGIA DO SÍTIO

A história geológica m a r c a p r o f u n d a m e n t e o sítio e m que está Salvador. T o d o um


sistema de falhas n u m horst ( c o m p a r t i m e n t o de solos duros, elevados entre falhas)
cristalino fez c o m que os trajetos dos rios apresentassem cotovelos em ângulo reto.
O fundo da baía é f o r m a d o , e m sua totalidade, p o r rochas sedimentarias. S ó se e n c o n -
tram rochas cristalinas n o c o n t i n e n t e e n o m a r a b e r t o .
A p o n t a sul da p e n í n s u l a e m que se ergue a cidade t e m a forma de um losango,
I cuja orla oeste c o r r e , e x a t a m e n t e , ao l o n g o de u m a falha imensa que se c h a m a falha
de Salvador. S e g u i n d o a direção sudoeste-nordeste, ela separa o cristalino antigo e a
bacia sedimentária jurássico-cretácea. É u m horstcujo graben (fosso t e c t ó n i c o ) é a baía.
0 outro lábio dessa i m e n s a falha deve ser^procurado n o lado oposto da baía, n o limite
sudoeste do R e c ô n c a v o . c .Kr^ ^
O abrupto p r o m o n t ó r i o em q u e ' s e a n c o r o u a C i d a d e Alta corresponde aos 6 0 a
110 metros superiores, ainda visíveis, dos rebordos desse e n o r m e escarpamento da
falha, ao longo do qual o mar, por seus avanços e recuos, a b a n d o n o u uma enseada
submersa, uma.riá. C o m o a parte fronteira da falha de Salvador costeia a orla, restou
à Cidade Baixa apenas u m a praia estreita, que vai da C o n c e i ç ã o da Praia até São
1 J o a q u i m . S ó mais adiante, c o m Itapajipe, Plataforma, Periperi e Paripé, subindo no-
vamente para Aratu c o norte da baía, é que os terrenos sedimentarios emersos formam
Vpequenas planícies costeiras ao pé do escarpamento da falha principal.
E m seu c o n j u n t o , o horst cristalino apresenta uma mesma inclinação geral, com
suave declive na direção do sudoeste, r u m o ao Atlântico. Para o mar aberto correm
seus rios, mesmo nos casos cm que as nascentes destes se encontram a pouca distância
do mar interior. O s rios das terras sedimentarias do noroeste, por sua vez, são curtos
e correm para a baía. Por conseguinte,/a rede hidrográfica e a topografia são comple-
xas. A inclinação do horst para o Atlântico é ocultada por um relevo cheio de detalhes
46 Bahia, Século X I X

acidentados, com vales, várzeas e curvas de nível que variam entre trinta e sessenta
metros, com pontos máximos de 9 0 ou 1 1 0 metros e declives de até 4 5 ° .
D e superfície desarticulada e acidentada, o horst termina, ao aproximar-se do
. - " ( Atlântico, cm um cinturão de dunas recentes, formadas por areias originadas da de-
t composição de seus quartzos. Brancas colinas, deslumbrantes à luz do sol, c o m vinte
J L
R a trinta metros da altura, essas dunas, por causa da variação dos ventos de alto-mar,
^ não têm qualquer orientação preferencial e costeiam toda a orla oceânica até o norte
do rio Joanes, muito além dos limites municipais. Mal encobertas por uma vegetação
rasa e pobre, lembram uma paisagem de neve, bastante inesperada para o viajante cujo
avião vai aterrissar n o aeroporto vizinho: de um lado, palmeiras ondulam c o m a brisa
do mar; de outro, uma brancura de neve. Logo ao chegar, tem-se assim uma boa idéia
dos contrastes dessa terra rude e forte.

SOLOS E ÁGUAS

Pode um sítio desse tipo oferecer boa acolhida a u m a cidade de colinas e várzeas? U m
porto protegido por enorme baía, situação privilegiada deste lado do Atlântico, é
importante trunfo para o desenvolvimento de u m a capital. M a s qual será o valor dos
solos dessa cidade-jardim que, até o século X I X , produzia, ela m e s m a , uma parte das
frutas e das leguminosas que consumia?
Abaixo de oitenta metros de altitude, os solos do horst surgiram da alteração
das rochas cristalinas: são, sobretudo, argilosos (caulinizados), mas firmes. Se hori-
zontais, têm uma certa estabilidade, mas, nos declives mais inclinados, ocorrem fre-
I quentes deslizamentos de terreno após chuvas fortes. A i n d a h o j e , algumas ruas são
conhecidas pela instabilidade. Acima de oitenta metros encontra-se uma camada quase
horizontal de sedimentos idênticos àqueles da região baixa, também \jurássico-cretácea,
que vai do fundo da baía ao noroeste da cidade. Essas argilas margosas, escorrega-
dias, são ruins para os alicerces das casas, mas excelentes para as culturas. A rocha
matriz do horst possui todos os elementos nutritivos necessários às plantas, inclu-
sive o cálcio, mas os solos de decomposição antiga são lavados pela erosão, cabendo
às raízes profundas distribuir i n t e r n a m e n t e a a l i m e n t a ç ã o necessária ao vegetal.
te
As chuvas c o vento marinho trazem o iodo e o potássio. Sol e chuva nunca faltam.
O subsolo é um verdadeiro reservatório de água para uma vegetação tropical úmida
evluxuriantCi

Assim e esta é uma das armadilhas da natureza — as terras onde foi edificada
a cidade de Salvador são boas para hortas e pomares, mas não são recomendáveis para
construção. Até o declive mais íngreme, o do reverso da falha, desce em pequenos
egraus para a praia ou dirige-sc para o norte, alcançando os terrenos sedimentários e
oferecendo, aos bananais c às culturas de árvores frutíferas, uma exposição magnífica
ao sol nascente.
Livro I - Q S D o n s e as A r m a d i l h a s da N a t u r e z a 47

M a s o prmc.pal é que - esta a imensa riqueza da Cidade Alta - há água em toda


parte C o m efeito, o solo cristalino do hont é impermeável, mas a espessa camada
oriunda de sua d e c o m p o s i ç ã o é extremamente porosa, servindo de reservatório a águas
sempre renovadas nesse c l i m a ú m i d o . A porosidade do solo é de cerca de 2 0 % (cada
metro cúbico é capaz de conter duzentos litros de água) e sua espessura média é de
vinte metros (freqüentemente atinge mais de trinta metros). É fácil imaginar o enorme
reservatório representado pelo solo da Cidade Alta: é só cavar para ter um poço. Basta
um afloramento, ao c o n t a t o c o m a rocha matriz e c o m seu solo em decomposição,
para ver jorrar uma nascente. O s mananciais e as fontes estão em toda parte em
Salvador, na base d o horst c o m o nas trilhas da m e n o r fratura, do menor deslocamento '
de terreno, do mais insignificante vale. São águas cristalinas, filtradas naturalmente,
ricas em sais m i n e r a i s . R i o s c o m vales estreitos favorecem os reservatórios naturais oü
1

artificiais, c o m o o Pituaçu e o Ipitanga.


Salvador é a cidade das mil fontes. U m a cidade úmida, onde o grau higrométrico
do ar pode subir até quase 1 0 0 % , mas o n d e o mar onipresente e a orientação di- - -V
versificada dos vales favorecem ventos fracos mais refrescantes, verdadeiras correntes ' Í" CO-I
de ar naturais que tendem a descer pelas colinas, a soprar de ou para o alto-mar. Sítio \
em que a ecologia natural favoreceu a fixação de colonos, Salvador é verdadeiramente J
a cidade de T o d o s os S a n t o s , que lhe deram bênção e proteção.

A BAÍA E O PORTO

As conquistas d a arte d a navegação, a utilização de barcos a vapor para as longas , ..^s.


travessias e, e m 1 8 0 8 , a abertura dos portos brasileiros às nações amigas modificaram, ^ , /
sem dúvida, o p a n o r a m a das navegações transatlânticas. M a s foram transformações
2
( (
lentas. N o século X I X , os navegadores já acumulavam um bom conhecimento do l< •"" e a

regime dos ventos e das correntes em todos os mares do m u n d o e, além disso, dispu-
nham dos itinerários d o T e n e n t e M a u i y , aconselhados aos numerosos veleiros que
ainda singravam/os m a r e s . Esses itinerários, aliás, quase não diferiam daqueles dos
3

séculos X V I I e X V I I I . O c r o n ô m e t r o m a r í t i m o , instrumento que permitia a determi- ^'^^^'^


nação da longitude em alto-mar, criado e aperfeiçoado no decorrer do século X V I H , !P*~
só passou a ser utilizado pelos navios mercantes na primeira metade do século X I X . J
Mas, de modo geral, os conhecimentos geográficos haviam progredido, tornando mais
segura a navegação oceânica. _
C o m a multiplicação de contatos, o porto de Salvador passou a receber cada vez T^£g£
mais navios que vinham descarregar mercadorias, carregar produtos locais e reabaste- j ^
cer-se de água e de víveres. Fluxos e refluxos,eram constantes, condicionados pela
situação dos mercados local, regiona/e internacional, que alimentavam numerosa \ ¿
frota, de grandes c pequenas embarcações. E m 1 8 6 8 , por exemplo, entraram no porto -
de Salvador 1 . 3 9 8 navios de alto-mai, dos quais 1.361 eram mercantes e 3 2 de guerra;
BAHIA, SÉCULO XIX
4S

- cm 1 8 7 1 , ano de crise e c o n ô m i c a , o n ú m e r o caiu para 4 6 1 n a v i o s . Reabastecer navios


5

e tripulações tornou-se, por c o n s e g u i n t e , u m a das f u n ç õ e s de Salvador. N o s séculos


X V I I e X V I I I , os navios p e r m a n e c i a m f r e q ü e n t e m e n t e três meses n o p o r t o para repa-
ros, para reabastecimento, para esperar pela partida de u m a frota ou por ventos favo-
" ráveis. N o século X I X , os navios já n ã o aportavam mais de duas o u três s e m a n a s . 6

A água doce, excelente e de fácil acesso, b r o t a , c o m o v i m o s , em toda parte, de


i ! ; v modo que quase todas as casas t ê m seu p o ç o . O c o m a n d a n t e M o u c h e z , u m francês a
auem devemos uma descrição m i n u c i o s a do p o r t o de S a l v a d o r , 7
explicou c o m o era
\ feito o reabastecimento nas fontes da G a m b o a o u n a de Agua de M e n i n o s , ao norte do
Arsenal, mas se q u e i x o u da falta de carne de vitela e de c a r n e i r o , b e m c o m o da má
^•qualidade da carne de boi e de f r a n g o . E m c o n t r a p a r t i d a , peixes, legumes e frutas —!
mangas, bananas, laranjas, abacaxis — eram excelentes. O u t r o viajante, Avé-Lallement,
chegando do R i o de J a n e i r o e m 1 8 5 9 a b o r d o d o navio Paraná, descreveu assim o
porto de Salvador, c h a m a n d o a a t e n ç ã o para a existência do b a n c o de S a n t o Antônio:
" A entrada [da baía] é fácil e segura. A ajuda de u m p i l o t o o u de balizas não é ne-
cessária para indicar o trajeto a ser seguido. E n t r e t a n t o , logo ao sul da entrada, no
meio de u m vasto espaço de água navegável, ergue-se u m b a n c o de areia [trata-se do
banco de S a n t o A n t ô n i o ] c o m apenas q u i n z e pés de p r o f u n d i d a d e nas partes mais
elevadas, que as e m b a r c a ç õ e s de grande calado devem e v i t a r . " 8

S e os navios a vapor do século X I X e n t r a v a m f a c i l m e n t e na baía sem a ajuda de


pilotos locais, o m e s m o n ã o a c o n t e c i a c o m os veleiros, de reações mais lentas e muito
- mais dependentes dos v e n t o s . P o r essa razão, desde os primeiros t e m p o s da coloniza-
ção, navegadores exímios eram enviados ao m o r r o de S ã o P a u l o , na ilha de Tinharé —
pequena colina q u e , e m b o r a distante, d o m i n a a 'barra falsa', ao sul da entrada da baía
— com o objetivo de vigiar o m a r e aguardar as frotas vindas do O r i e n t e para orientá-
, las na direção nordeste, r u m o à verdadeira entrada da baía, que se podia atravessar com
relativa facilidade, indicada pelo farol de S a n t o A n t ô n i o da B a r r a . U m a vez passada
9

a barra, a baía em si já parece u m p o r t o , o maior d o m u n d o . O s viajantes estrangeiros


chegavam a afirmar que ele poderia c o n t e r todos os navios da T e r r a . 1 0

N a verdade, a baía é só um primeiro abrigo. E l a n ã o é o porto propriamente dito.


Este se reduz a uma pequena enseada situada ao pé do horst o n d e sc ergue a cidade.
A abordagem desse c o n j u n t o baía-porto não é tão fácil q u a n t o parece. Antes e depois
da passagem da barra que guarda a baía, encalhes ou naufrágios podem ameaçar os
navios de grande calado que não tomarem cuidado c o m recifes e bancos de areia. Não
descreverei aqui, c o m o o faz pormenorizadamente M o u c h e z , a maneira de evitaros
recifes de Parapatingas, o b a n c o de areia de S a n t o Antônio, a pedra da Gamboa, o
banco da Panela, o recife c os bancos da Penha ou a carcaça do France, que se
incendiou c afundou cm 2 6 de setembro de 1 8 5 6 e jaz a oito metros de profun-
didade. 11
O s testemunhos dos viajantes c navegadores do século X I X insistem na
generosidade da baía de Salvador, que oferece aos veleiros ou aos vapores a vaneda e
amistosa de seus ventos c a proteção de suas ilhas. .
LIVRO I - Os Do\> E A$ ARMADILHAS DA NATUREZA 4*

V e n c i d o s recifes c bancos de areia, existem excelentes pontos de ancoragem, reser-


vados aos navios do guerra: a sudoeste, o mais perto possível do Arsenal dl Marinha,
aos navios de guerra brasileiros; um pouco mais longe, aos estrangeiros. O s navios
mercantes podem abrigar-se de todos os vemos perto do cais (se não\ivercm medo de
misturar sua âncora c o m a do vizinho) ou um pouco mais ao largo (se não temerem
as dificuldades para carregar e descarregar). N u n c a falta lugar, e não há razão para
recear mau t e m p o . Navios grandes e pequenos, em segurança uma vez transposta a
barra, estão ao abrigo de tempestades.
O navio que ficou m u i t o ao largo só é castigado pelo mar na hora da mudança da
maré, da lua nova ou cheia, ou q u a n d o os temporais de sudoeste coincidem com as
grandes marés. É preciso então esperar que Iemanjá acalme as águas. Para maior
facilidade, c o n v é m aproveitar a brisa matinal, regular na direção norte-nordeste. C o m
a maré descendente, ela traz rapidamente as embarcações até o sul do banco de Santo
Antônio. H á , em seguida, algumas horas de calmaria, mas, lá pelas 1 0 : 0 0 ou l l : 0 0 h
da manhã, c o m e ç a a soprar a brisa de leste-sudeste, que dura até o pôr-do-sol — um
Sol que, nessa latitude, tem seu ocaso, o a n o todo, entre 1 7 : 0 0 e 1 8 : 0 0 h — e conduz
suavemente ao porto os navios que o d e m a n d a m . Depois, os ventos acalmam-se no-
vamente; nesse caso, para alcançar o porto, o veleiro imprevidente deverá esperar as
2 1 : 0 0 h e as brisas noturnas.
A baía de T o d o s os Santos é um mar interior para as pequenas embarcações. Elas
não se aventuram além da barra que separa a baía e o oceano sem limites. Podem
ignorá-la fragatas, bergantins, grandes veleiros, grandes vapores vindos de além-ilhas.
Mas são os h o m e n s do mar do R e c ô n c a v o e da cidade de Salvador que garantem, com
seus barcos, as trocas cotidianas. Marinheiros das ilhas, das praias e das enseadas,
marinheiros de inúmeros cursos d'água que penetram nas terras, pescadores, transpor-
tadores — eles c o n h e c e m as riquezas de sua baía, mas conhecem também as traições •
sempre possíveis de suas águas e ventos. São irmãos do lavrador, que planta a mandio-
ca de que se alimentam ou o f u m o q u e transportam, além do algodão e do café,
Na baía de T o d o s os Santos, águas e terras entremeadas guardavam, consertavam,
reabasteciam, carregavam e descarregavam mais de mil embarcações de todo t i p o . " 1

Descreve-las todas seria impossível: barcos rudimentares, canoas c botes; barcos de


tamanhos variados, que sc lançavam corajosamente ao mar, tendo a bordo uni, dois ou ^
tres homens; saveiros para transporte ou pesca, barcaças, tábuas, balcões, canoeiros, , ..
lanchas, sumacas c, principalmente, jangadas de quatro troncos. Águas, salgadas c M .
doces, eram os caminhos percorridos por homens e mercadorias.
N o século XIX, as vias terrestres eram precárias c insuficientes, mas havia água por . h v
toda parte. O s velhos saveiros, hoje transformados cm barcos de lazer, lembram-se
ainda dos périplos de antanho, dos peixes espalhados c escolhidos na areia, dos fardos
descarregados em ancoradouros OU diretamente na praia. Em meados do século, a C v - \ ; ;
v , v

pequena cabotagem começou a enfrentar a concorrência oficial de companhias de b « •


NAVEGAÇÃO COM sede CM Londres, que se beneficiavam de privilégios para organizar r j....
50 BAHIA, S É C U L O X I X

\ V

linhas regulares, servindo às principais cidades da baía c aos outros portos da Provin-
da. 1 3
Entretanto, apesar da concorrência exercida pelos grandes navios a vapor da
Companhia Baiana de Navegação* a cabotagem das mil pequenas embarcações que
trabalhavam sob encomenda cm todas as águas da baía continuou sc desenvolvendo,
densa e flexível, capaz de sc adaptar a todas as necessidades c deslizar sobre os cami-
nhos marítimos c fluviais, ao sabor das brisas que os marinheiros do Recôncavo
conheciam tão bem.
CAPÍTULO 3

O RECÔNCAVO

Esboço de Definição
S r *

R e c ô n c a v o significa f u n d o de b a í a . M a s o R e c ô n c a v o b a i a n o abrange todas as terras


adjacentes, ilhas e i l h o t a s , b e m para além das praias, vales, várzeas e planaltos próxi-
mos ao m a r : u m a orla de quase trezentos q u i l ô m e t r o s t o r n a bastante fácil a circulação,
ainda mais p o r q u e n u m e r o s o s rios se l a n ç a m na baía por amplos braços navegáveis.
Longas praias, cortadas às vezes p o r um c a b o r o c h o s o , u m a enseada pantanosa ou até
algumas colinas de baixa altitude, o f e r e c e m , q u a n d o a maré está baixa, uma espécie de
c a m i n h o quase c o n t í n u o , suave ao pisar d o viajante. C a m i n h o de ronda que se insinua
em todas as enseadas, costeia todas as ilhas e p e r m i t e arrastar um barco até u m a praia
ao abrigo do v e n t o .

O c l i m a e, por c o n s e g u i n t e , a vegetação dão unidade ao R e c ô n c a v o , tão próximo .


do o c e a n o . L o n g e da i n f l u ê n c i a deste, o S e r t ã o , i m e n s o e severo, é árido ou semi-árido.
O mar e os ventos carregados de u m i d a d e p e n e t r a m em t o d o o R e c ô n c a v o , mas ha~
nele numerosos m i c r o c l i m a s , pois seu relevo é variado. P o r toda parte, os ventos A ,^.-c
alísios, vindos do mar, depositam sua umidade em forma de chuva assim que encon- '' A
'
tram o obstáculo das colinas o u são esfriados pelo solo. O s vales são verdadeiros
corredores abertos às benéficas influências atlânticas. ,. ;

A capital não pode ser dissociada da baía, da qual é.ciõsa, guardiã, mas também não , '
o pode ser de sua hintcrlândia, esse R e c ô n c a v o celeiro de açúcar e de farinha. O gado 4
J
pode vir de longe, já que se locomove. Mais que qualquer outra cidade, a da Bahia está
ligada à sua imediata hintcrlândia agrícola, pois é seu mercado e seu elo com o mundo 1

exterior. N ã o há uma só família da cidade que não tenha laços com uma família do
interior; não há tempestade na baía que não faça subir as águas dos rios do Recôncavo; > . ^
a
não há má colheita lá que não cause pobreza aqui. O n t e m , c o m o hoje, Salvador não \
<U P\
era somente um porto que se estendia ao longo da Cidade Baixa. Era uma cidade em
7 que os limites administrativos quase não contavam». As paróquias urbanas nunca j
1

51
*2 B a h i a , SÉCULO XIX

esqueciam suas irmãs do interior, e a população humana permanecia densa até dezenas
de quilômetros longe do mar. É impossível compreender a Cidade da Bahia sem
compreender seu Recôncavo.
Surgem logo questões: além das condições econômicas do cultivo, as condições
climáticas e pedológicas também são necessárias ao estudo da produção agrícola dirigida
ao consumo ou à exportação nos séculos X V I I I e X I X ? Estudar os solos do século X X
equivale a estudar os do século X I X ? N ã o foram esses solos transformados e gastos?
É verdade que o agricultor brasileiro, colono de outrora, produtor rural de hoje, nunca
teve, em relação à terra, uma mentalidade de usufrutuário zeloso: nunca foi o laboureur
do francês La F o n t a i n e . 2
C o m o se, apesar de seu apego ao solo da nova pátria, o
espírito de aventura dos primeiros colonizadores, vindos para 'explorar' o Novo M u n -
do, nunca se houvesse transformado; c o m o se o sentido de propriedade se tivesse
dissociado do empenho em cuidar da terra, conservando-a. Prevaleceram o desejo e a
necessidade de uma exploração imediata, c o m uso e abuso das riquezas disponíveis,
c o m o que ofertadas. Inconsciência, decerto; urgência, muitas vezes; e também con-
fiança, dada a imensidão das terras,por explorar. M a s as dádivas da natureza foram
desperdiçadas.

É preciso que se fale aqui da e x p l o r a ç ã o mineradora' dos solos. O s solos do


Recôncavo foram — e ainda o são c o m freqüência — 'minas* de cana-de-açúcar, de
fumo, de mandioca ou de batata-doce. U m a vez a m i n a explorada, o solo fica quase
inutilizável, apenas capaz de produzir uma floresta pobre ou magras colheitas. Até
recentemente, o agricultor do Recôncavo recebia mal os vendedores de adubos que lhe
vinham dar conselhos. E, diante da transformação do solo pelo empobrecimento
resultante de práticas culturais inconseqüentes, sempre preferiu desistir da luta. D e -
correm daí as dificuldades encontradas pelo historiador, obrigado a imaginar para a
Bahia um meio geográfico que não é exatamente o de hoje, quando trata dos solos e
de suas possibilidades agrícolas.

O r a , quem pensa na Bahia dos séculos X V I I I e X I X pensa imediatamente na


Bahia capital do açúcar, na opulenta cidade dos senhores de engenho e de seus escra-
vos, na cidade dos ricos negociantes. Maurice Le Lannou qualifica os plantadores de
cana do litoral nordeste de "sedentários e m p a n t u r r a d o s " . Ele assinala que o desgaste
3

do solo nunca foi compensado, mas sua afirmação traz à baila um duplo problema:
por que o agricultor brasileiro tem essa mentalidade de 'proprietário de m i n a ? Não
basta constatá-lo: é preciso compreender por que o massapé — essa rica terra argilosa
do Recôncavo, que cola nos sapatos de todos os baianos e é seu orgulho e sua riqueza
• P ° <} e esse generoso massapé se revelou tantas vezes terra cheia de armadilhas,
r u

mal amada c mal explorada?


Poderíamos talvez encontrar respostas cm um cadastramento dos solos da região,
organizado pelo órgão de desenvolvimento agrícola do Recôncavo na década de 1 9 7 0 . 4

Foram classificados mais de setecentos mil hectares de terras abertas sobre a imensa
baía de Todos os Santos. O s pedólogos de hoje, ao explicarem as riquezas e as limitações
LF\-RO I - Os DONS E AS ARMADILHAS DA NATUREZA 53

dos solos do Recôncavo expostos aos imponderáveis de um clima tropical, ajudam a


compreender de que m o d o uma cidade c o m o Salvador, com terras agrícolas tão ricas
em sua hinterlàndia, foi atingida pelos choques económicos, pelas variações das con-
junturas políticas e pelos mil imprevistos trazidos pelos ventos e chuvas oceânicos.

DADOS ESTÁVEIS DA GEOGRAFIA

A hinterlàndia de Salvador, o R e c ô n c a v o , é uma região essencialmente costeira,


uma
espécie de retângulo na direção nordeste-sudeste. Situado entre os meridianos 37 e 3 9
a oeste de G r e e n w i c h e n o limite dos paralelos 12 e 13 ao sul do Equador, o Recôncavo
baiano, com seus pouco mais de 1 0 . 0 0 0 k m 2
de terras emersas, limita-se a leste com
o Atlântico, ao sul c o m os municípios de São Miguel das Matas, Laje e Valença, a oeste
com os municípios de A n t ô n i o C a r d o s o , S a n t o Estêvão e Castro Alves e, enfim, ao
norte, c o m Feira de Santana, C o r a ç ã o de Maria, Pedrão, Alagoinhas e Entre Rios.

C o m exceção da região de C r u z das Almas, a oeste, as terras, ricas em água doce,


são de m o d o geral baixas e abertas para o mar. E m grande p a n e essa hinterlàndia é
composta de uma fossa, de uma ria e da maior baía do litoral brasileiro, com seus
cerca de 1 . 0 0 0 k m 2
de águas salgadas e trezentos quilômetros de costa. U m a baía
articulada, aberta para o o c e a n o , barrada apenas pela ilha de Itaparica, longa e estrei-
ta, tão verdejante q u a n t o o c o n t i n e n t e , do qual se separa a sudoeste por um pequeno
corredor m a r i n h o , a barra falsa ou canal de Itaparica, que vai da Ponta do Garcez,
em terra firme, à ilha de M a t a r a n d i b a . Se, em sua maior dimensão interior — sul-
norte — , a baía de Salvador atinge cinqüenta quilômetros, há menos de um quilô-
metro entre o c o n t i n e n t e e o p o n t o mais próximo da costa oeste de Itaparica. Nesse
corredor estreito e pouco p r o f u n d o , a travessia é dura e perigosa, e a ela ninguém se
arrisca. A verdadeira entrada da baía, mais acolhedora, acha-se a nordeste, entre o
Farol da Barra, na ponta extrema do p r o m o n t ó r i o sobre o qual se encontra edificada
Salvador, e a costa leste de Itaparica. Ali a barra é fácil de ser transposta. Entrada
'majestosa de uma baía majestosa, tem quase dez quilômetros de largura e pode ser
vista desde o longínquo forte de Caixa-Pregos, na extremidade sul de Itaparica (no
falar popular do Brasil inteiro, "chegar de Caixa Prego" significa chegar do fim do
mundo). Transposta a barra, com Itaparica a bombordo, os navios deparam-se, a
estibordo, com a íngreme encosta recoberta da vegetação tropical que enfeita os mor-
ros sobre os quais se ergueu a Cidade Alta.

Montserrat é um encantador fortim de retaguarda, construído na ponta de uma


harmoniosa curva da costa que abriga o porto da cidade. As linhas arquitetônicas
; muito puras desse fortim todo branco destacam-sc atualmente contra o fundo de uma T
delicada fileira de palmciras-rcais (Oreodoxa olerácea), hoje tão características da pai- ^
sagem de todo o Recôncavo. C o m o os coqueiros-da-baía (Cocos nucífera), elas datam
da época colonial. A palmeira nativa da vegetação baiana — palmeira-licuri (Syagrus >
BAHIA, SÉCULO X I X
54

coronatà) é fibrosa, e sua altura não ultrapassa a das outras árvores da m a t a original.
N ã o é mais i m p o n e n t e do que a vulgar bananeira (Musa paradisiaca).
N o interior da baía de T o d o s os S a n t o s , inúmeras ilhas c ilhotas protegem três
: baías menores: a primeira entre a costa oeste de Itaparica e o c o n t i n e n t e , a segunda
*• abrigada entre a península de S a u b a r a - I g u a p c e o arquipélago f o r m a d o pelas ilhas
L Bimbarras, das F o n t e s , de M a r i a G u a r d a , de M a d r e de D e u s , das V a c a s , de B o m Jesus
dos Passos, de S a n t o A n t ô n i o e dos Frades, c a terceira, a m a i o r delas, entre essas ilhas,
Itaparica e Salvador. Esse m a r interior de todas as ilhas, de todas as praias, é um
verdadeiro m u n d o colorido e variado. Suas fúrias são m e n o s violentas que as do
oceano, mas são as de um imprevisível mar, c h e i o de recifes. S ã o relativamente pouco
numerosos os abrigos efetivamente capazes de proteger as pequenas embarcações sur-
/ preendidas pelos fortes ventos nordeste o u sudoeste a grande distância dos ancoradou-
ros o u perto demais das e m b o c a d u r a s dos rios. C o m esses v e n t o s , as praias são facil-
£ :
{ m e n t e invadidas pelas vagas tempestuosas das grandes marés.

d N o R e c ô n c a v o , até os rios estão sujeitos às marés: o m a j e s t o s o Paraguaçu, navega-


do por embarcações leves até C a c h o e i r a , mas que n ã o é bastante p r o f u n d o para navios
,; de grande calado; o A ç u (ou A ç u p e ) c o Sergi do C o n d e , de m e n o r v o l u m e d'água; o
v

. t Jaguaripe, ao sul, que j á não é considerado u m rio d a baía, assim c o m o , ao norte, o


•trpotuca, o rio mais i m p o r t a n t e da região, c u j a bacia t e m 3 - 0 0 0 k m ; e ainda os grandes
2

fornecedores de água para o a b a s t e c i m e n t o de Salvador, o J o a n e s , que desemboca em


l5 . ^ f c a r aberto ao norte da capital, e seu afluente, o Ipitanga. O J l e c ô n c a v o é, assim, antes
de tudo, u m a terra oceânica: suas áreas agrícolas e n c o n t r a m - s e em estreita dependên-
cia das águas salgadas e dos rios m a r i n h o s .
M a s , da m e s m a f o r m a que na cidade de Salvador, há água doce por toda parte,
em lençóis freáticos e x t r e m a m e n t e abundantes. As reservas ficam a maior ou me-
nor distância da superfície: ^profundas, e n r i q u e c e m o solo c o m seus sais minerais,
c o m o n o nordeste do R e c ô n c a v o ; superficiais, c o m o n a região de Dias d'Ávila e de
Camaçari, são filtradas por um solo argilo-arenoso q u e as e m p o b r e c e . Às vezes,
quando as areias f u n c i o n a m c o m o filtros naturais excessivamente eficazes, a água
doce é tão pobre em sais minerais que não permite u m a vegetação luxuriante; ou-
tras vezes, essa água se mistura de tal m o d o a águas salgadas que dá origem a
manguezais.

J A paisagem do R e c ô n c a v o é sempre verde e m u i t o suave. Variada, também. Terras


0° relativamente baixas j u n t o às costas, o n d e elevações amenas se confundem com as do
litoral, no qual os sedimentos do quaternário deixam aflorar algumas rochas mais
antigas caulinizadas, produzindo solos vermelhos dominados pela brancura de neve de
dunas que podem atingir até cinqüenta metros de altura. Terras mais altas, onde os
tabuleiros c as colinas ondulam suavemente numa altitude média de duzentos metros
com vales abruptos. O s rios, sempre muito ativos, cavaram suas margens, formando
terraços c o m o ocorre, por exemplo, com o Paraguaçu e seus afluentes. As vilas, atuais
cidades, d c Cachoeira e de São Félix foram edificadas sobre altos terraços desse tipo.
I
LIVRO I - Q< DONS E AS ARMADU HAS DA NATUW ZA

Essa variedade de paisagens, o Recôncavo a deve à sua geologia; ao contraste entre o


embasamento cristalino — reverso de uma falha imensa, que corresponde a 4 . 3 0 0 k m 2

dos 1 0 . 4 0 0 k m da região c o m o um todo, situado sobretudo a leste e a oeste


:
c as
áreas sedimentares do graben, que vão do sul da ilha de Itaparica ao norte de Entre
Rios e de Alagoinhas. Falha de Salvador a leste, falha de Maragojipe a oeste, são esses
os limites dessas regiões argilosas ou argilo-arenosas.
L ma floresta fluvial, análoga àquela que ainda resiste no extremo sul do Estado da
T

Bahia, estendia-se, no século X V I , por todo o Recôncavo. Quatro séculos de explora-


ção, avizinhando-se c o m freqüência do esbanjamento das dádivas da natureza, provo-
caram transformações sucessivas e criaram novas paisagens, correspondentes aos dife-
rentes produtos que foram, cada um por sua vez, esperança e desespero dos proprietários
de terras: madeira, cana-de-açúcar, f u m o , dendê e bananas.
Atualmente inexiste n o R e c ô n c a v o qualquer das espécies tropicais atlânticas origi-
nais. C o m o regime das chuvas e a ação h u m a n a atuando simultânea e sucessivamente
(uma vez desmatado, o solo torna-se cada vez mais sensível às influências climáticas),
três tipos fundamentais de vegetação se firmaram, caracterizados a um só tempo pela
distância a que se e n c o n t r a m do oceano e pela qualidade dos solos sobre os quais se
desenvolvem: a da M a t a , a do Agreste e, única das três a corresponder a uma zona
contínua, a vegetação do Litoral.
A M a t a gosta das terras de argila profunda — massapés — e dos tabuleiros.
Nela predominavam outrora as palmeiras nativas já mencionadas (os licuris, que for-
necem cera e fibras para o artesanato), os cocos-vagem (cujo tronco é horizontal e
subterrâneo, só deixando aparecer folhas na superfície) e as madeiras preciosas, como
o jacarandá, o cedro-rosa e o pau-marfim, esplêndidas matérias-primas para a fabri-
cação de móveis austeros na época colonial e no século X I X . Essa floresta clara se
desenvolvia, nos primeiros tempos da colonização, sobre uma zona extensa, mais ou
menos paralela à costa, passando pelos municípios de Conceição de Jacuípe, São
Gonçalo dos C a m p o s e C o n c e i ç ã o da Feira. É a região onde a cana-de-açúcar pro-
duzida em plantation predominou depois, quase c o m o monocultura (seria preciso
ver até quando e c o m o ) . O s agricultores da segunda metade do século X I X ali tam-
bém cultivavam, em menor escala, o fumo, a mandioca, o dendê e o cacau. Hoje,
da mata antiga, restam raríssimos exemplares.
/ O Agreste representa uma zona muito reduzida do Recôncavo, que vai de Concei-
ção de Jacuípe até o sul de Feira de Santana. Estende-se para o norte, sobretudo na ^ ^V 1

direção do Itapicuru.5 È uma zona de transição entre o litoral úmido e o sertão semi-
árido. I ) c sua primitiva flora, invadida por cactáccas c bromeliáceas — plantas xcrófllas J
relativamente altas e pouco densas — , subsistem apenas os juazeiros e os marmeleiros.
• Enfim, o Litoral. Faixa de terra de aproximadamente dez quilômetros de pro-
fundidade, ele apresenta grande variedade de associações vegetais naturais, com um
habitat diferente para cada uma delas. Dois tipos principais de vegetação cobrem
essa região: a vegetação sublitorânea — losjnanguczais;—, que depende unicamente
^ BAHIA, SÉCULO X I X

do solo, e a vegetação do litoral arenoso, que depende do solo e, e m b o r a em menor


proporção, do clima.
r Associados a solos argilosos m u i t o salgados e h i d r o m o r f o s , originados dos
' ] sedimentos finos dos estuários e dos fundos de baía, os manguezais encontram-se
sempre em zonas submetidas à influência das marés. N a origem, essa formação se de-
L
senvolve graças ao c a n g u e , p l a n t a pioneira que cresce e m a m b i e n t e salino de solo
instável e pode ser reconhecida por suas numerosas raízes a d v e n t í c i a s . N a medida
6

em que o solo se torna mais firme, observam-se novas associações, em que prevale-
cem os mangues brancos ou os\Siriúbas¿ q u e p o d e m atingir até quinze metros de
altura. Esses solos só são cobertos pelas marés de e q u i n ó c i o . Ali, as árvores têm de
cinco a oito metros de altura e c o n s t i t u e m , ao l o n g o das costas n ã o arenosas, como
que uma coroa vegetal entre terra e m a r . O solo dos manguezais fornecia toda a
argila necessária para as olarias e para purgar o açúcar nas f ô r m a s . 7
O n d e o litoral é
arenoso, a vegetação das dunas é de plantas rasteiras, arbustos e palmeiras, inclinados
para o interior, pois sofrem a ação c o n s t a n t e dos v e n t o s d o m a r . D e u m m o d o geral
as palmeiras não ultrapassam c i n c o m e t r o s de altura. As mais c o m u n s são os coquei-
ros-da-baía — adventícios — , f r e q ü e n t e m e n t e agrupados e m p e q u e n o s bosques mais
ou menos densos.

VENTOS, CHUVAS E SOLOS (\*jfafcfb L <±y\

Q u e trazem os ventos e as nuvens aos dados estáveis da geografia? N o Recôncavo, as


variações climáticas dependem essencialmente de v e n t o s e chuvas, vez que as tempe-
raturas são relativamente estáveis. O s ventos — terror das embarcações demasiada-
mente leves que se aventuram longe de um abrigo — p o d e m vir dos quatro pontos
cardeais ao m e s m o t e m p o e, às vezes, lutam e n t r e si para predominar. C o m o em
torneios gigantescos, viram os ventos c o m o vira a maré, e nuvens negras galopam.
Das quatro massas de ar que disputam os céus. do R e c ô n c a v o , as duas que geral-
mente prevalecem são os ventos ^lísios de sudeste, vindos das altas pressões quentes e
úmidas do Atlântico Sul, e os de nordeste> que vêm do c e n t r o das baixas pressões
N

continentais em direção às altas pressões dos Açores. Pode ser o nordeste das tempes-
tades, mas pode ser o amigo que impele as velas n o r u m o do porto, segundo seu humor
c sua força. Alísios de retorno nordeste e noroeste sopram também sobre o Recôncavo.
orem, o que mais sc vê é brincarem, sobre a baía, ventos instáveis, que resultam de
movimentos ondulatórios c chegam sem prevenir, com a velocidade de um cavalo em
disparada. São a voz irada dc Iemanjá, exigente amiga do povo do mar baiano. Nascem
quando a frente polar atlântica dc ar frio encontra o ar quente que vem das regiões do
norte equatorial. N o Recôncavo, as máximas pluviométricas de abril a j u n h o freqüen-
temente coincidem com essas frentes de instabilidade decorrentes da luta entre o
anticiclone atlântico c a massa equatorial continental.
LIVRO I - O s DONS E AS ARMADILHAS DA NATUREZA 57

TABELA 1

C H U V A S E TEMPERATURAS M É D I A S NO RECÔNCAVO BAIANO, 1945- 1970

MÉDIAS MESES MESES MESES MESES DE CHUVA


MENSAIS TEMPERATURAS
SECOS CHUVOSOS MUITO CHUVOSOS TORRENCIAL MÉDIAS
mm/ano < 100 mm 1 0 0 - 2 0 0 mm 2 0 0 - 3 0 0 mm 3 0 0 - 6 0 0 mm

79 Setembro
23°8
84 Outubro
25°0

156 Novembro
25°9

117 Dezembro
26°4

85 Janeiro 26°7

185 Fevereiro 26°8

151 Março 26°6

235 Abril 25"8

339 Maio 24°5

191 Junho 23°5

189 Julho 22°9

123 Agosto 22°9

Fonte: Estudos básicos para o projeto agropecuário do Recôncavo, p. 142.

Dominam, portanto, ventos de sudeste: os bem-vindos alísios dos meses de julho


e agosto, enfrentados com maior ou menor sucesso, em novembro e dezembro, pelos
ventos do nordeste. A estação fria, de junho a setembro, é a única na qual alguns
períodos de calmaria podem impedir os veleiros de transportar sua carga das ilhas para
a baía, de porto a porto. Mas junho é também o mês das maiores tempestades, aquelas
em que os ventos em luta zombam dos veleiros imprudentes que ousam desafiar barras
e recifes. O clima no Recôncavo é, portanto, freqüentemente imprevisível.

Deixar-se-á a terra domesticar e explorar mais facilmente que as águas pouco


confiáveis da baía? Para estudar os solos do Recôncavo e suas antigas culturas, temos
que partir do princípio de que o clima de outrora era mais ou menos idêntico, na
sua própria instabilidade, ao do século X X . 8
Lembremos também a regra de ouro
dos agrônomos, segundo a qual todo solo contém certos elementos mais importantes,
cujo limiar de necessidade, uma vez atingido, define o limite a partir do qual os
demais elementos não reagem mais. Engenheiros-agrônomos que trabalharam na
9

África habituaram-se a distinguir três etapas de desgaste de solos semelhantes aos


dos tabuleiros baianos* cujas substâncias nutritivas são devoradas por plantas exigentes
e pela falta de adubos: a partir do segundo ano de uso, o rendimento de uma terra
recém-plantada diminui cm 5 0 % ; o patamar seguinte situa-se no décimo segundo
ano, e o solo mosenese definitivamente empobrecido depois de 3 0 a 32 anos de
cultivo.
58 BAHIA, S É C U L O X I X

Terra de coleta de madeira e de produtos da floresta natural nos primeiros anos


de colonização, o litoral baiano, já vimos, logo se transformou em terra de 'explora-
ção mineradora' da riqueza de seus solos. A mandioca, planta débil, sem sombra,
que quase não protege a terra do desgaste causado pelas chuvas, é exatamente o
tipo de cultura a que nenhum solo resiste. A bananeira, o cacau e sobretudo a cana-
de-açúcar — cujos restolhos são reutilizados em grande parte in loco, cobrindo, por
assim dizer, bem o solo — são, entre as culturas da região, as plantas que mais
protegem o precioso húmus.
Quais são os solos desse Recôncavo? Toda uma literatura aplaudiu, no decorrer
dos séculos XVII, XVIII, X I X e até do século X X , a maravilhosa fertilidade do
massapé do Recôncavo. Massapé, palavra milagrosa, palavra-chave! Solo argiloso e
pesado, mais ou menos vermelho-escuro e que cola no pé. De estrutura cristalina, é
quimicamente rico. Composto de uma camada de alumina entre duas camadas de
silício, seus cristais mostram-se fortemente entrelaçados. Quando úmido, sofre forte
expansão. Seco, retrai-se. Isto produz um solo folhado e consistente em período seco
e extremamente pesado e plástico em períodos de chuva: a tração animal torna-se
então impossível ou quase impossível. 10
Os diversos graus de impermeabilidade do
solo acarretam problemas para a cultura da cana-de-açúcar. Problemas tanto mais
graves quanto os solos de massapé encontram-se praticamente todos em regiões de
terras mais argilo-arenosas do que unicamente argilosas: os silões ou salões são ter-
ras que têm freqüentemente a mesma cor vemelha que o massapé, embora sejam
muito permeáveis. Massapés e silões têm, ambos, uma boa fertilidade química, mas
são as chuvas, e só elas, que vão determinar a diferença, resultando uma boa ou má
colheita de cana, segundo os locais e os anos, sem que os cultivadores de antiga-
mente tenham conseguido se dar conta das razões de suas vitórias e de suas derro-
tas. Aliás, é comum ver cultivadores — e até geógrafos — utilizarem o termo massapé
para designar terras que são, na realidade, silões. 11
C A P Í T U L O 4

VIAS DE COMUNICAÇÃO

CAMINHOS FLUVIAIS: O RECÔNCAVO E O LITORAL

A história da cidade de Salvador está ligada à de sua hinterlândia, à de suas terras


interiores, mais o u m e n o s distantes. D e s d e a época colonial, os marinheiros da Bahia
subiam os muitos rios parcialmente navegáveis. F o r a m os primeiros a abrir caminhos,
logo seguidos por outros pioneiros, os condutores de boiadas. Alternativamente, m a -
rinheiros e boiadgjrog foram os grandes viajantes da Província.
M e s m o nas regiões do R e c ô n c a v o mais próximas de Salvador, pontes e estradas
eram raras no século X I X . Antigos c a m i n h o s partiam de Cachoeira para o norte, via
Jacobina, descendo em seguida na direção de Maracás, de Caetité e do rio das Velhas,
situado na Província de M i n a s Gerais. Esses c a m i n h o s da época colonial eram trilha-
dos por carros de b o i , por animais albardados e carregados e t a m b é m por boiadas. A
criação de gado foi empurrada p a r a o Sertão à medida que se desenvolviam as culturas
de fumo e cana-de-açúcar, voltadas para exportação.
A primeira estrada pavimentada pelo sistema de M a c Adam data de 1 8 5 1 . Ela
saía de Santo A m a r o e media 1 5 0 braças, aproximadamente 3 3 0 metros. N o século,
X I X , cavalos c burros eram indispensáveis aos transportes. T o d o s montavam a ca-
valo ou em dorso de mula para fazer uma visita a um amigo ou levar recados e
mercadorias. A primeira linha ferroviária, que partia de Salvador em direção ao rio
Joanes, data de 1 8 6 0 e, depois de seus 18,5 quilômetros iniciais, foi interrompida
em Aratu, no fundo da baía. Esse novo meio de transporte suscitou muitas esperan-
ças, mas seu desenvolvimento não foi rápido. Durante a maior parte do século X I X ,
1

Salvador continuou a ligar-se às vilas e arraiais de sua Província pelos métodos tra-
dicionais, ou seja, as vias marítimas e fluviais e os animais de carga (o primeiro
plano para a construção de estradas de rodagem no Estado da Bahia data de 1 9 1 7
lei n° 1 . 2 2 7 — e a primeira grande estrada construída ligou Salvador a Feira de
Santana).

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BAHIA, SÉCULO X I X
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O maior dos rios do R e c ô n c a v o , o Paraguaçu, a oeste da baía, c o m u m a extensão


de 6 6 4 quilômetros, poderia ter sido u m a via de c o m u n i c a ç ã o ideal c o m o centro da
Província, caso seu curso não fosse i n t e r r o m p i d o por grandes cachoeiras. M a s ele é
navegável nos 3 3 quilômetros que separam sua e m b o c a d u r a e C a c h o e i r a , e por ali
transitaram o f u m o e o açúcar produzidos nas cercanias. C a c h o e i r a era u m a cidade tão
importante que foi a primeira a m e r e c e r u m a p o n t e s o b r e seu rio, p o n t e esta tanto
mais útil quanto o Paraguaçu, j á v i m o s , c o m o m u i t o s rios d o R e c ô n c a v o , corre entre
margens bastante escarpadas e íngremes. D e s d e 1 8 1 9 , u m v a p o r deixava Salvador,
• atravessava a bafa e subia o Paraguaçu, ligando a capital a C a c h o e i r a . E r a o Vapor de
2

Cachoeira. C o m sua fabulosa m á q u i n a inglesa, seus c o b r e s rutilantes e sua fumaça


cinzenta, foi, durante m u i t o t e m p o , u m a das maravilhas d o R e c ô n c a v o , nutrindo em
torno de si um folclore b e m sugestivo. Espécie de T o r r e Eiffel l o n g í n q u a , mas também
bicho-papão, para os vaqueiros-trovadores d o S e r t ã o q u e g o s t a v a m , nos m o m e n t o s de
descanso, de improvisar cantigas ao s o m da viola.

O Paraguaçu é o mais i m p o r t a n t e , mas n ã o o ú n i c o rio d o R e c ô n c a v o . Numerosos


cursos d'água, sempre o r i e n t a d o s , mais o u m e n o s , de oeste para leste, facilitam a
penetração para o interior. N o f u n d o da baía, a n o r o e s t e de Salvador, p o r exemplo, o
Sergi do C o n d e era, nos seus 2 6 q u i l ô m e t r o s , a via de c o m u n i c a ç ã o predileta com
S a n t o A m a r o , principal c e n t r o açucareiro da região: a partir de 1 8 4 7 , percorriam-no,
todos os dias, barcos a vela e até p e q u e n o s navios a v a p o r . S e o P a r a g u a ç u fez a fortuna
de Cachoeira e o Sergi d o C o n d e a de S a n t o A m a r o , o J a g u a r i p e , a sudoeste, c o m seus
7 2 quilômetros de extensão, fez a de outras grandes p o v o a ç õ e s d o R e c ô n c a v o , como
Nazaré e Jaguaripe. E m b a r c a ç õ e s de m é d i o p o r t e p o d i a m s u b i - l o e descê-lo, conti-
nuando até Salvador, e nele a navegação a v a p o r data de 1 8 5 2 . 3

N o limite do R e c ô n c a v o , n a q u i l o q u e alguns c h a m a m d e R e c ô n c a v o Sul, corre um


belo rio, o U n a , que b a n h a V a l e n ç a e se lança e m u m b r a ç o de m a r q u e separa a ilha
de T i n h a r é e o c o n t i n e n t e . N a ilha está o m o r r o de S ã o Paulo, aquele em que os
pilotos iam esperar os navios vindos do O r i e n t e para ajudá-los a transpor a barra. Por
esse braço, ao sul, chegava-se à vila de C a i r u , n a m a r é alta, até c o m embarcações de
grande tonelagem. C o n t i n u a n d o na m e s m a d i r e ç ã o , alcançava-se T a p e r o á e o pequeno
arraial de J e q u i é , à margem do rio d o m e s m o n o m e .
Enumerar os n o m e s das principais povoações d o R e c ô n c a v o quase equivale a dizer
que rio navegável as fez nascer, sempre que não estejam situadas num fundo de baía
ou de enseada. A ajuda mais preciosa para o desenvolvimento de todos esses portos foi
trazida pela criação dc um imposto dito de transporte terrestre, imposto suplementar
sobre todas as caixas de açúcar transportadas por terra! Assim, a mesma caixa vinda de
4

um engenho afastado de Salvador, mas próximo a um porto de embarque, pagava


menos imposto que aquela transportada por terra, de muito perto da cidade: para o 5

açúcar, a via fluvial-marítima era mais rápida e sempre mais econômica. Aliás, no
Recôncavo, quase todos os transportes de mercadorias pesadas se faziam por barco.
O s contemporâneos atribuem, em média, quatro embarcações a cada engenho. A partir
61

do m o m e n t o em que o local n ã o era mais acessível por via fluvial e se fazia necessário
andar m u i t o para a t i n g i - l o , o h o m e m do R e c ô n c a v o sentia-se h o m e m d o S e r t ã o : o
R e c ô n c a v o era, antes de mais nada, terra de navegação, o n d e cada um tinha seu barco
e o n d e n u n c a se estava a mais de um dia de m a r c h a de alguma via navegável ou da orla
marítima.

A o sul do rio U n a , a vila da Barra do R i o de C o n t a s deveu sua fundação ao rio que


tem o m e s m o n o m e . M a s , c o m o esse l o n g o rio só é navegável por dois quilômetros e
em barcos de p e q u e n o p o r t e , B a r r a d o R i o de C o n t a s não se t o r n o u uma cidade
i m p o r t a n t e . A i n d a mais a o sul, I l h é u s existe graças ao rio C a c h o e i r a , que tem c i n q ü e n -
ta q u i l ô m e t r o s navegáveis, mas só p o r e m b a r c a ç õ e s leves. T a m b é m deveriam ser p e -
quenas as e m b a r c a ç õ e s q u e desejassem subir o u descer o rio P a r d o : de Canavieiras,
pode-se s u b i r 1 1 2 de seus 6 6 0 q u i l ô m e t r o s n a d i r e ç ã o de M i n a s Gerais; pelo canal de
Poassu, é possível passar d o P a r d o ao J e q u i t i n h o n h a , na e m b o c a d u r a do qual se
e n c o n t r a a c i d a d e de B e l m o n t e . C o m 1 . 0 8 2 q u i l ô m e t r o s , o J e q u i t i n h o n h a era uma
b o a via de c o m u n i c a ç ã o e n t r e a B a h i a e M i n a s G e r a i s , pois seus 1 3 5 quilômetros
navegáveis a t i n g i a m as duas p r o v í n c i a s . A d i a n t e , u m a série de cursos d'água, sempre
orientados n o s e n t i d o oeste-Ieste, a c o l h e r a m e m suas e m b o c a d u r a s alguns núcleos de
p o v o a m e n t o : o B u r a n h é m , P o r t o S e g u r o ; o J u c u r u ç u , P r a d o ; o I t a n h e n t i n g a , Alcobaça;
o Caravelas, o p o r t o d o m e s m o n o m e ; o P e r u í p e , V i ç o s a ; e, finalmente, o Mucuri,
navegável p o r 9 9 q u i l ô m e t r o s a partir do litoral, d e u o r i g e m à V i l a de S ã o J o s é de
Porto Alegre.

A partir de S a l v a d o r , s e g u i n d o a c o s t a n a d i r e ç ã o sul, à p r o c u r a dos principais


a n c o r a d o u r o s das e m b a r c a ç õ e s de c a b o t a g e m , n a s c i a m cidades e povoados sempre que
um rio navegável t o r n a v a possível t r a n s p o r t e s do e para o i n t e r i o r e oferecia o abrigo
de sua foz para u m p o r t o . T o m a n d o o s e n t i d o o p o s t o e a c o m p a n h a n d o a orla marí-
tima de S a l v a d o r r u m o a o n o r t e , c h e g a m o s à foz d o I n h a m b u p e , rio i n t e r m i t e n t e e
pouco p r o f u n d o q u e desce da região de S e r r i n h a e b a n h a a cidade de E n t r e R i o s . Mais
adiante, o I t a p i c u r u , o grande rio d o Agreste b a i a n o , nasce m u i t o n o interior, na
chapada D i a m a n t i n a , perto d e C a m p o F o r m o s o , e se lança n o m a r na altura de
C o n d e , navegável apenas em sua parte baixa, perto do litoral, por pequenas embarca-
ções. M a i s favorável à navegação e c o m u m a extensão de 2 6 4 quilômetros, o rio Real
tem sua n a s c e n t e perto da cidade de C í c e r o D a n t a s e chega ao mar em Abadia, no
limite entre B a h i a e S e r g i p e . N o século X I X , era percorrido por veleiros de médio
porte que transportavam viajantes e mercadorias das duas províncias. E n c o n t r a m o s ,
finalmente, a foz d o S ã o F r a n c i s c o , o rio mais i m p o r t a n t e da Província (embora nasça
em M i n a s G e r a i s ) , c o m seus 2 . 7 1 2 q u i l ô m e t r o s e sua orientação inicialmente sul-norte
e, depois de R e m a n s o , oeste-ieste, b a n h a n d o Juazeiro e Paulo Afonso. N o século X I X ,
1 . 2 7 0 q u i l ô m e t r o s d o S ã o Francisco eram navegáveis, dos quais 1 . 0 0 9 na Província da
Bahia. Seus principais portos eram C a r i n h a n h a , U r u b u , Lapa, Barra, Remanso, Pilão
Arcado, S e n t o Sé e J u a z e i r o . A navegação era livre e fácil entre Pirapora, em M i n a s
Gerais, e C a c h o e i r a de S o b r a d i n h o , quase na fronteira de P e r n a m b u c o . A partir dali
62 BAHIA, SÉCULO X I X

as cachoeiras de Itaparica e Paulo Afonso tornavam o rio impraticável. Adiante, em


Piranhas, o rio, largo e p r o f u n d o , volta a ser navegável até d e s e m b o c a r no Atlântico,
entre Sergipe e Alagoas. O S ã o Francisco só recebeu seu p r i m e i r o vapor em 1 8 7 0 , o
famoso Presidente Dantas, que percorria o rio e n t r e Pirapora e J u a z e i r o .

CAMINHOS TERRESTRES: O AGRESTE E O SERTÃO

Para os que não se puderam estabelecer p e r t o de u m c u r s o d'água o u n o Recôncavo


b a n h a d o de influências m a r i n h a s , restaram os grandes espaços do interior da Provín-
cia. Q u e m os percorria a cavalo, em dorso de m u l a o u m e s m o a pé, seguia forçosamen-
te os c a m i n h o s abertos pelas boiadas q u e , d u r a n t e os séculos X V I I c X V I I I , embre-
nharam-se para o interior, cada vez mais longe das costas, à p r o c u r a de novos espaços.
A primeira região e n c o n t r a d a pelos colonizadores e pelos boiadeiros foi uma zona
de tabuleiros cuja vegetação n ã o é tão e x u b e r a n t e q u a n t o a do R e c ô n c a v o , mas não
tem ainda a aridez do S e r t ã o . O Agreste é e s s e n c i a l m e n t e u m a zona de transição que
recebe entre setecentos e m i l m i l í m e t r o s de chuva por a n o . M u i t o reduzido na
hintcrlândia de Salvador, estende-se mais a m p l a m e n t e ao n o r t e , na direção do São
Francisco e da Província de Sergipe. C o r r e s p o n d e a u m a região m e n o s seca que a dos
sertões interiores da Província, e m b o r a m e n o s ú m i d a q u e as regiões costeiras. Sua
vegetação natural é formada por árvores e arbustos densos e verdes. M a i s ao sul, na
direção de J e q u i é , o n d e o c l i m a é seco, torna-se u m a verdadeira savana o n d e , em certos
lugares, proliferam cupinzeiros, alguns c o m três m e t r o s de altura e quatro de diâme-
tro, separados uns dos outros por 2 0 a 2 5 m e t r o s de d i s t â n c i a . O Agreste é uma região
7

de recursos tão variados c o m o os solos de seus tabuleiros argilo-arenosos. C o m altitude


em geral pouco elevada, entre c e m e seiscentos m e t r o s , eles f r e q ü e n t e m e n t e apresen-
tam em sua fronte um aspecto típico de cuesta. A u m i d a d e do Agreste é dada por sua
distância do mar e por precipitações pluviais suficientes. N o s numerosos vaies que
cortam esses tabuleiros, a umidade e a a c u m u l a ç ã o de sais minerais conferem aos solos
boa fertilidade.

À conquista das regiões litorâneas seguiu-se a ocupação do Agreste por missioná-


rios, criadores de gado c lavradores. As concentrações populacionais fizeram-se primei-
ro cm torno de aldeamentos de índios, criados por jesuítas e franciscanos. Tal é a
origem das povoações de Itapicuru, J c r e m o a b o , P o m b a l , Soure c T u c a n o . O s estabe-
lecimentos sedentários multiplicaram-se rapidamente, c os rebanhos que subutiliza-
vam solos cultiváveis foram expulsos para o interior, para o vasto Sertão, que começa
onde acabam as terras de fáceis acesso c cultivo.
O Sertão é diversificado, mas distante c seco. O n d e começa? A dois ou três dias
de caminhada do mar? O n d e chove menos de seiscentos milímetros por ano? Os
boiadeiros tocam o gado para o Sertão, atravessando taludes e colinas, vastas exten-
sões dc terras a centenas de metros de altitude, imensas superfícies ondulantes, es-
LIVRO I - Os DONS E AS ARMADILHAS DA NATUREZA 63

culpidas p o r v e n t o s circulares e secos. Falar de sertão n o N o r d e s t e brasileiro equiva-


le a pensar e m i m e n s a s e c o n t í n u a s terras secas, c o m i n ú m e r o s arbustos espinhosos,
especialmente cactáceas e bromeliáccas.

A palavra sertão t e m u m s i g n i f i c a d o t ã o vago que os dicionários a definem c o m o


u m n o m e d a d o a q u a l q u e r região afastada das terras cultivadas e das costas, c o b e r t a de
vegetação áspera. P a r e c e q u e sua e t i m o l o g i a vem d a palavra deserto, através do
a u m e n t a t i v o ' d e s e r t ã o ' . N ã o v a m o s e n t r a r a q u i nas c o n t r o v é r s i a s dos especialistas que
o p õ e m sertão e c a a t i n g a . E s t a ú l t i m a , m a t a b r a n c a ' na língua guarani, teria u m a
vegetação de m i m o s á c e a s , c e s a l p i n á c e a s , e u f o r b i á c e a s e h e r b á c e a s q u e precisariam de
u m p o u c o m a i s d e á g u a q u e as b r o m e l i á c e a s d o v e r d a d e i r o sertão. Prazer de classificar,
c o m o q u a l , e m t o d o c a s o , n o s é c u l o X I X , a s a b e d o r i a p o p u l a r p o u c o se ocupava. O s
boiadeiros c h a m a m i n d i f e r e n t e m e n t e de c a a t i n g a o u de sertão todas as regiões áridas
cobertas de a r b u s t o s , c u j a a l t u r a n ã o ultrapassa sete m e t r o s de altura e cujas folhas
espinhosas são p r o t e g i d a s p o r u m a e s p é c i e de cera e o r i e n t a d a s de m a n e i r a a d i m i n u i r
a i n c i d ê n c i a dos raios s o l a r e s . M u i t a s vezes, as p r ó p r i a s folhas desses arbustos não
passam de u m g r a n d e e s p i n h o . A s s i m , o m e l h o r é vestir-se de c o u r o , das botas ao
c h a p é u , para p e r c o r r e r o S e r t ã o . E n t r e os a r b u s t o s , b r o t a m a l g u m a s m o i t a s c o m folhas
caducas q u e s o b r e v i v e m graças ao o r v a l h o p r o v o c a d o pelas grandes diferenças de
t e m p e r a t u r a e n t r e o dia e a n o i t e . H á u m a p l a n t a e u f o r b i á c e a c h a m a d a favela ou
faveleiro — Cinidosculusphyllacantus— q u e , e s f r i a n d o à n o i t e m u i t o mais rapidamen-
te q u e o ar, p r o v o c a breves p r e c i p i t a ç õ e s de o r v a l h o . S u a s folhas, verdadeiras placas
i n c a n d e s c e n t e s d u r a n t e o d i a , ao s o l , q u e i m a m a m ã o q u e as t o c a . 8

U m a das p o u c a s árvores q u e , às vezes, c o n s e g u e crescer mais u m p o u c o é o


umbuzeiro — Spondias purpurea, da f a m í l i a das a n a c o r d i á c e a s — , árvore sagrada do
Sertão. S e u f r u t o , o u m b u , é c o n s u m i d o c r u o u c o z i d o , p e n e i r a d o e misturado c o m
leite e a ç ú c a r , na f o r m a d e u m a b e b i d a c h a m a d a umbuzada? O s p e q u e n o s bosques de
umbuzeiros são as paradas preferidas dos b o i a d e i r o s , q u e , v a s c u l h a n d o raízes profun-
das, e n c o n t r a m b o a s reservas de água, e c o n o m i z a d a d u r a n t e os períodos benéficos.
Seus galhos, b e m c u r v o s , p a r e c e m feitos de p r o p ó s i t o para suspender as redes que
propiciam u m s o n o reparador; seus frutos são deliciosos e os próprios animais cobiçam
a extremidade acidulada de suas folhas.
D u r a n t e os o i t o meses de seca total, o s o l o entre as árvores e os arbustos do
Sertão fica i n t e i r a m e n t e despido de q u a l q u e r c o b e r t u r a vegetal, o que dá à paisa-
gem um triste ar de deserto, m o n o e r ô m i c o , a c i n z e n t a d o e desolado. Às vezes, a seca
dura o a n o inteiro. M a s , q u a n d o caem as raras chuvas de inverno, a paisagem se
transforma: em três dias, o i m e n s o deserto m u d a de cor, as árvores e os arbustos se
c o b r e m de folhas q u e têm todos os tons de verde e o solo nu desaparece debaixo
das gramíneas rasteiras que florescem em cachos de todas as cores. M a s são bem
raros esses períodos a b e n ç o a d o s . D e m o d o geral, os solos do Sertão permanecem
mal protegidos c o n t r a as chuvas, poucas e excessivamente violentas, e contra a grande
variação das temperaturas diurna e n o t u r n a . A vegetação adaptou-se aos rigores do
64

clima c à laterização dos solos superficiais. Assim, o S e r t ã o fica durante longos me-
ses, todos os anos, imerso em tonalidades cinza e rosa. V e g e t a ç ã o acinzentada ou
prateada sobre o solo rosa ou avermelhado, sob u m céu i m p i e d o s o , sempre azul: eis
a rude paisagem c o s t u m e i r a d o S e r t ã o .
O s geógrafos c o s t u m a m descrever a B a h i a c o m o u m a sucessão de três paisagens
diferentes que, do Litoral, s o b e para o S e r t ã o , passando pelos tabuleiros do Agreste.
N a realidade, há tão pouca unidade efetiva n o S e r t ã o q u a n t o n o Agreste. O clima é o
único fator de unidade ou d i f e r e n c i a ç ã o . M a s , n a t u r a l m e n t e , os m i c r o c l i m a s não
faltam n u m a terra tão vasta e c o m relevos tão variados. Q u a n t o mais distante o
o c e a n o , maiores as áreas c l i m á t i c a s . É a v e g e t a ç ã o q u e caracteriza as paisagens. Além
disso, os vales dos rios são verdadeiros c o r r e d o r e s a b e r t o s para o m a r . Eles tornam
possível que o c l i m a mais ú m i d o das costas possa lutar, c o m m a i o r o u m e n o r êxito,
contra a aridez do S e r t ã o .
Essa " z o n a i n g r a t a " — na expressão de E u c l i d e s d a C u n h a — , i m e n s a c o m o o
mar, foi d o m i n a d a e d o m e s t i c a d a p o r h o m e n s austeros e sólidos, os vaqueiros, pastores
de grandes rebanhos itinerantes, s e m p r e à busca de pastos e s c a s s a m e n t e distribuídos.
Essas boiadas abriram verdadeiras trilhas n o S e r t ã o . S e u s c o n d u t o r e s sabiam orientar-
se segundo as constelações ou a posição dos t a b u l e i r o s . N e m os rios c o n s e g u i a m deter
a marcha sem fim. Para atravessar u m r i o , era só fazer a b o i a d a seguir u m h o m e m que
nadava à sua frente c o m u m a carcaça de boi na c a b e ç a . 1 0

O s c a m i n h o s do S e r t ã o eram tão p r e c á r i o s 11
q u e , a t é m e a d o s do século X I X ,
Salvador continuava a i m p o r t a r , d o N o r t e o u d o S u l , p o r via m a r í t i m a , quase toda a
sua carne-seca e a exportar, t a m b é m p o r via m a r í t i m a , t o d o s os p r o d u t o s agrícolas
comerciais originários do R e c ô n c a v o . N a s e g u n d a m e t a d e d o século X I X , a Bahia
c o m e ç o u a tomar consciência dos graves p r o b l e m a s c o l o c a d o s pelas suas comunicações
internas. A navegação fluvial já n ã o a t e n d i a , havia m u i t o t e m p o , todas as necessidades
dos centros agrícolas, criados e suscitados pelos vaqueiros e suas boiadas lá onde 4

tinham descoberto algum vale ú m i d o capaz de abrigar culturas fornecedoras de v i v e - 1

res, de início para um c o n s u m o local e, depois, p o u c o a p o u c o , para a venda às regiões


costeiras mais populosas, cuja prioridade era o cultivo de p r o d u t o s de exportação:
açúcar, fumo, cacau, algodão e café.
C o m o transportar leguminosas c f a r i n h a s ? 12
E n t r e 1 8 6 0 e 1 9 2 3 , fez-se um esforço
para desenvolver as ligações entre litoral c interior. J á e v o c a m o s a navegação fluvial e
também a via férrea, recebida c o m o o m e i o ideal e privilegiado para todos os tipos de
transporte. Mas ela permaneceu insuficiente para c o b r i r os vastos espaços i n t e r i o r e s . 13

O s discursos e relatórios dos presidentes da Província descrevem os graves problemas


que a administração não conseguia resolver c os belos projetos jamais realizados. Em
1 8 5 5 , por exemplo, foi elaborado um magnífico programa de rede ferroviária que
deveria ligar Salvador aos extremos sul c norte de sua Província.
O Recôncavo e o Agreste foram sempre mais bem-servidos de vias de c o m u n i -
cação que o longínquo Sertão. D u r a n t e muito t e m p o , os c a m i n h o s pioneiros, mar-
LrvRo I - Os DONS E AS ARMADILHAS DA N-ATUREZA 65

cados pelas rnlhas das boiadas e das tropas de mulas, permaneceram as únicas vias
de ligação e n t r e a capital e os sertões afastados dos rios. A febre do ouro e dos
diamantes, que levou exploradores à chapada D i a m a n t i n a , durou pouco, mas pro-
vocou o s u r g i m e n t o de cidades c o m o Andaraí ou Livramento e t o r n o u possível o
estabelecimento de uma e c o n o m i a de subsistência n o Sertão. As mercadorias, n o
entanto, c o n t i n u a r a m a ser carregadas e m l o m b o de burro ou em carro de boi'; foi
preciso c o n t i n u a r a seguir as trilhas, a percorrer — matas, savanas ou caatingas aden-
tro — os c a m i n h o s a b e r t o s pelas boiadas. As paróquias que conseguiram fixar po-
pulações nos sertões n a s c e r a m da pecuária e do seu c o m é r c i o , da mineração e de
uma e c o n o m i a de subsistência c u j o s p r o d u t o s circulavam nos mercados locais.
N ã o h á dúvidas de q u e os S e r t õ e s das boiadas é o lugar das contradições descritas
pelo e s c r i t o r - p o e t a E u c l i d e s d a C u n h a por volta de 1 9 0 0 : " b a r b a r a m e n t e estéreis,
maravilhosamente exuberantes (...), é u m vale fértil, u m p o m a r vastíssimo sem d o n o " . 1 4

CAMINHOS MARÍTIMOS: O SUL

O grande p r o b l e m a q u e a B a h i a foi o b r i g a d a a enfrentar durante t o d o o século X I X ,


p r i n c i p a l m e n t e d e p o i s d a d é c a d a de 1 8 7 0 , foi o de seu desenvolvimento agrícola, c o m
a i m p l a n t a ç ã o de culturas diversificadas e m regiões q u e , até e n t ã o , tinham permane-
cido marginalizadas, fosse p o r q u e o s m e i o s de c o m u n i c a ç ã o entre Salvador e sua
hinterlândia eram de m á q u a l i d a d e , fosse p o r q u e a seca e as distâncias do Sertão
intimidaram d u r a n t e m u i t o t e m p o os n o v o s colonizadores, a n ã o ser q u a n d o se tratava
de instalar currais para b o i a d a s o u , e n t r e 1 8 4 0 e 1 8 6 0 , e n c o n t r a r filões de ouro ou
diamantes. R e s t a v a o e x t r e m o sul da P r o v í n c i a , até o vale do M u c u r i , uma espécie de
haste que faz f r o n t e i r a c o m o E s p í r i t o S a n t o , e s t e n d e n d o - s e ao longo do litoral, com
profundidade q u e n ã o ultrapassa 1 5 0 q u i l ô m e t r o s . R i c a em água e florestas, fértil,
ligada a Salvador por via m a r í t i m a , t e s t e m u n h a , ainda h o j e , a corrida às úteis terras
costeiras, característica dos p r i m ó r d i o s da c o l o n i z a ç ã o do Brasil. T o r n a r essa região
um novo R e c ô n c a v o parecia ser s o n h o possível. M a s era preciso descobrir qual o
melhor produto a ser ali c u l t i v a d o . D e s d e fins d o século X V I I I , Baltazar da Silva
Lisboa, o u v i d o r (cargo c o r r e s p o n d e n t e ao atual juiz de direito) da comarca de Ilhéus,
demonstrava i n c a n s a v e l m e n t e as possibilidades de exploração agrícola da região. D o i s
notáveis da c o l ô n i a , os irmãos M a n u e l Ferreira da C â m a r a Bittencourt e Sá e José de
Sá B i t t e n c o u r t e A c c i o l i , publicaram trabalhos sobre seu desenvolvimento e c o n ô m i c o .
A C o r o a compartilhava o entusiasmo deles, sobretudo após a expulsão dos jesuítas,
principais senhores da região até 1 7 6 0 . 1 5

Era necessário, e n t r e t a n t o , vencer inúmeros obstáculos. Depois da bacia do A m a -


zonas, a costa sul da Bahia é a região mais úmida do Brasil. A umidade excessiva
dificultava o cultivo de cana-de-açúcar. Ali reinava, endêmica, a malária. E, sobretu-
do, a costa estava isolada de suas terras interiores por uma vasta faixa de florestas
66 BAHIA, S É C U L O X I X

•XI ÍC-

tropicais com vários quilômetros de profundidade, verdadeira selva, barreira tão im-
penetrável que os novos povoamentos do interior antes ligavam-se às cidades longín-
quas do Sertão do norte, preferindo-as a um porto qualquer, mesmo muito mais
próximo. Foi esse o caso, por exemplo, de Vitória da Conquista, que fazia parte da
comarca de Jacobina, apesar de Ilhéus estar quatro vezes mais perto. O s rebanhos do
rio de Contas dirigiam-se aos matadouros de Salvador, o que não impedia os habi-
tantes da costa sul de serem obrigados a importar, por via marítima, a carne-seca
proveniente do longínquo Piauí. Já sabemos que não era possível subir os rios dessa
região além da zona de floresta densa; só o Jequitinhonha, com seus cem quilômetros
navegáveis, permitia alcançar as regiões interiores de vegetação menos cerrada, mas
sua foz era cheia de lodo e perigo. Além disso, no mar, correm quase de forma
contínua, paralelamente à costa sul da Província, recifes de coral perigosos para
navegantes inexperientes. Todas essas dificuldades e a ausência quase total de colo-
16

nos tinham permitido a numerosas tribos indígenas — particularmente a famosa


tribo dos Aimorés ou Botocudos — preservarem sua independência nas florestas, o
que tornava a penetração para o interior ainda mais difícil.

Para desenvolver a região era, portanto, necessário pacificar o s índios e aprimorar


as comunicações. Mas o s primeiros esforços nesse sentido foram logo postos de lado.
Uma estrada entre Camamu e o Sertão, mal começada, foi abandonada. Pontes
projetadas em 1790 nunca foram construídas. Tempestades, recifes, embocaduras de
17

rios cheias de lodo, ao que parece, não impediram que as rotas costeiras fossem
preferidas aos caminhos terrestres. João Capistrano de Abreu conta de que modo, em
1808, o desembargador (juiz de tribunal de segunda instância) 18
Tomás Navarro
viajou por via terrestre entre a Bahia e o Rio de Janeiro para estudar uma nova rota
para os Correios: "Seu itinerário acompanhou sempre a costa, menos onde escarpas
muito abruptas o obrigavam a fazer desvios. O s rios — sem pontes e sem barqueiros
— eram subidos até o primeiro v a u . " 19
Do ponto de vista agrícola, o sul da Província
só começou a desenvolver-se realmente nos últimos anos do século XIX.
N a Província da Bahia, a n a t u r e z a foi extremamente pródiga em suas dádivas.
Salvador, seu porto e sua hinterlândia próxima parecem ter sido mais bem aquinhoa-
dos. Mas, desde o século XVIII, o s baianos mais clarividentes já conheciam as riquezas
inexploradas da Província. Por que não foram elas devidamente aproveitadas? Falta de
capitais e escassez de homens? Em Salvador e cm seu Recôncavo devem ser e n c o n t r a -
das muitas respostas a tais perguntas.
LIVRO II

O PESO DOS HOMENS


CAPÍTULO 5

O PAPEL DA HISTÓRIA

Q u a i s os h o m e n s a d e q u a d o s p a r a p o v o a r essa c a p i t a n i a c o m tantas regiões severas e


inóspitas? D e c e r t o h o m e n s f o r t e s , d e c i d i d o s , d i s p o s t o s a n ã o m e d i r esforços, p r i n -
c i p a l m e n t e q u a n d o se e s t a b e l e c i a m a c e n t e n a s , às vezes m i l h a r e s , de q u i l ô m e t r o s da
costa b e m mais a c o l h e d o r a , b a n h a d a p e l o o c e a n o q u e a p r o x i m a o e m i g r a d o da pátria-
m ã e e é p r o m e s s a c o n s t a n t e de u m possível r e t o r n o . I n s t a l a d o p e r t o d o litoral, se o
h o m e m se cansar de viver e x i l a d o — seja p o r q u e o e x í l i o n ã o c u m p r i u suas promessas,
seja p o r q u e , t e n d o p r o s p e r a d o , ele deseja a c a b a r seus dias c o m a família e em sua
aldeia, que m u i t a s vezes o v i r a m u m a e o u t r a partir a d o l e s c e n t e — o c a m i n h o está lá,
ao seu a l c a n c e . M a s o h o m e m q u e se fixou n o Agreste o u n o S e r t ã o interpôs entre ele
e os seus u m a travessia s u p l e m e n t a r q u e , m u i t a s vezes, d i f i c u l t a a realização do s o n h o
de um p r o n t o r e t o r n o .

Q u a n t o s foram esses h o m e n s i n t r é p i d o s q u e , d u r a n t e quase três séculos, o c u p a -


ram e povoaram o vasto t e r r i t ó r i o q u e f o r m a v a , n o s é c u l o X I X , a Província da Bahia?
A resposta a essa p e r g u n t a pressupõe o c o n h e c i m e n t o da e v o l u ç ã o das formas de
ocupação da terra e a análise das precárias fontes disponíveis para o estudo das popu-
lações baianas.
O atual E s t a d o da B a h i a nasceu p a r a l e l a m e n t e à c o n q u i s t a d o Brasil pelos portu-
gueses n o século X V I . O s índios e n c o n t r a d o s n o litoral eram T u p i s , que ali se haviam
estabelecido dois séculos a n t e s , vindos, s e g u n d o se supõe, d o A l t o X i n g u . T e r i a m
conseguido expulsar para o interior as tribos J ê s , c o n h e c i d a s mais tarde pelo n o m e de
T a p u i a s . V i v e n d o na faixa litorânea, os T u p i s — T u p i n a m b á s e T u p i n i q u i n s — foram
os primeiros a entrar c m c o n t a t o c o m os europeus, o q u e explica o fato d c eles serem
mais bem conhecidos por nós do que os J ê s o u os Cariris. O s T u p i s ocupavam as
regiões costeiras, os Jês o interior e os Cariris o N o r d e s t e .
Até 1 5 3 4 , os portugueses n ã o se interessaram por aquela terra rccém-descobcr-
ta, pois estavam empenhados na consolidação de suas conquistas n o E x t r e m o Oriente.
Nessa perspectiva, o Brasil representava apenas um episódio cm sua marcha para

69
"O BAHIA, SÉCULO X I X

o Leste. Desse p r i m e i r o p e r í o d o , a h i s t ó r i a reteve o n o m e de um c a m p o n ê s do


A l e n t e j o , D i o g o Álvares, dito o C a r a m u r u , 1
que c h e g o u a p r o x i m a d a m e n t e em 1 5 1 1 .
A d o t a d o pelos i n d í g e n a s , ele se t o r n o u o p a t r i a r c a de u m a longa linhagem de
m a m e l u c o s , mestiços de b r a n c o e í n d i o . Personagem m u i t o c o n t r o v e r t i d o entre os
historiadores brasileiros — q u e , por vezes, o c o n s i d e r a m um traidor da causa por-
tuguesa e, por outras, o p r o m o t o r das b o a s relações e n t r e os europeus e os indí-
genas n o c o m é r c i o d o p a u - b r a s i l e d o s v í v e r e s i n d i s p e n s á v e i s ao reabasteci-
m e n t o dos navios — , o fato é q u e D i o g o Álvares ali estava, p r o n t o a oferecer seus
serviços, q u a n d o , n o s anos 1 5 3 0 , m u d o u a p o l í t i c a portuguesa e m relação ao Brasil.
A p r e s e n ç a c o n t í n u a , n a c o s t a b r a s i l e i r a , de n a v i o s e s t r a n g e i r o s — sobretudo
franceses — tornara-se u m a ameaça palpável para a q u e l a i n a c a b a d a conquista
americana.
A fixação de povoadores de origem e u r o p é i a em regiões e m q u e a população
a u t ó c t o n e era p o u c o n u m e r o s a e n ô m a d e só se fez c o m a criação de núcleos urba-
n o s . U m p r i m e i r o passo dessa n o v a p o l í t i c a fora d a d o q u a n d o , e m 1 5 3 1 , M a r t i m
A f o n s o de S o u s a f u n d o u e m S ã o V i c e n t e , n o atual E s t a d o de S ã o Paulo, um pri-
meiro núcleo de p o v o a m e n t o estável. T r ê s anos depois, em 1 5 3 4 , d o m J o ã o III de-
cidiu o f i c i a l m e n t e c o l o n i z a r o Brasil, i n s t i t u i n d o o sistema de capitanias hereditá-
rias que tinha d a d o b o n s resultados nas ilhas d o A t l â n t i c o u m século antes. Assim,
o Brasil foi dividido em q u i n z e capitanias, c a b e n d o a da B a h i a de T o d o s os Santos
a Francisco Pereira C o u t i n h o .
N ã o temos o propósito de discutir aqui as vicissitudes dessa breve tentativa de
colonização, destinada ao fracasso por causa da falta de h o m e n s e de capital, das
desavenças internas e n t r e colonizadores o u e n t r e estes e os indígenas, o u da escolha
de locais inadequados para as primeiras povoações. O fracasso foi quase geral, pois
só as capitanias de P e r n a m b u c o e de S ã o V i c e n t e conseguiram p r o s p e r a r . 2

Decidida a instalação de u m governo geral, em 1 5 4 9 o c a p i t ã o - m o r T o m é de


Sousa desembarcou na baía de T o d o s os S a n t o s para fundar a capital do Brasil, quase
cinqüenta anos depois da passagem de A m é r i c o V e s p ú c i o pelo local. E n c o n t r o u ali
não mais do que os restos incendiados de uma p e q u e n a aldeia, que ficou conhecida
c o m o Vila Velha, e uns cinqüenta habitantes de origem européia que viviam sob a
proteção de Caramuru c seus fiéis amigos í n d i o s . Seguindo ordem expressa de dom
3

J o ã o III, l o m é de Sousa escolheu um novo local, "mais para dentro da baía", para
instalar os homens que o acompanhavam. N o Regimento que estabelecia direitos e
deveres do capitão-mor, o rei determinava fossem construídas "urna fortaleza e uma
povoação grande c forte, cm local conveniente, para, a partir dali, ajudar os outros
povoamentos e administrar justiça". E m dois meses foram levantados os armazéns da
Cidade Baixa c, na Cidade Alta, o palácio do governador, a Câmara Municipal, o
bispado e uma primeira igreja, a de Nossa Senhora da Ajuda. Tratava-se, evidente-
mente, de frágeis construções de taipa. Dois anos mais tarde as chuvas de inverno
destruíram uma parte da muralha que as cercava.
LIVRO II - O PESO DOS H O M E N S ~1

O que impressiona nessa Brasília do século X V I é seu traçado regular, apesar do


terreno acidentado que já c o n h e c e m o s . 4
O s habitantes c as autoridades tentaram
conservar esse m e s m o traçado q u a n d o , no fim do século X V I , a cidade ultrapassou
seus limites primitivos, espalhando-se sobre os morros e os vales das cercanias. N o
recinto da cidade fortificada, protegido por numerosas torres, o espaço era repartido
por sete ruas: quatro longitudinais em relação à costa e três transversais. Elas desem-
bocavam em duas praças: a da A j u d a , diante da igreja de Nossa S e n h o r a da Ajuda, e
a do Palácio, cercada p o r edifícios administrativos. T i n h a - s e acesso à cidade por duas
portas: a de S a n t a Luzia, ao sul, que ligava Salvador ao primitivo povoado de Vila
Velha e à sua p a r ó q u i a de Nossa S e n h o r a das V i t ó r i a s ; e a de S a n t a Catarina, que se
abria para o n o r t e . A l g u m a s décadas mais tarde, essas portas tomariam o nome dos
conventos q u e foram c o n s t r u í d o s nas suas proximidades: a do sul passou a ser c h a m a -
da porta de S ã o B e n t o e a do n o r t e , porta do C a r m o .

É inútil tentar avaliar a população desse primeiro núcleo urbano, que reunia
os h o m e n s c h e g a d o s c o m o f u n d a d o r , i n d í g e n a s utilizados c o m o mão-de-obra,
alguns e m i g r a n t e s p o r t u g u e s e s e u m c o n t i n g e n t e de m a r i n h e i r o s em trânsito.
S ó sabemos q u e , já em 1 5 5 2 , duas paróquias — a da S é , dentro do recinto fortifi-
cado, e a de N o s s a S e n h o r a das V i t ó r i a s ( V i t ó r i a ) , na velha aldeia de D i o g o Álvares
— repartiam e n t r e si os fiéis da cidade, o que d e m o n s t r a que os sobreviventes da
primeira tentativa de p o v o a m e n t o n ã o se haviam unido aos h o m e n s de T o m é de
Sousa dentro da área p r o t e g i d a . A existência de uma paróquia além-muros prefigu-
5

rava a vocação d i n â m i c a do primitivo núcleo oficial. R a p i d a m e n t e , a cidade ultra-


passou seus exíguos limites, estabelecendo-se u m j o g o p e r m a n e n t e entre uma sede
urbana que t i n h a seus próprios pomares e hortas e o c a m p o vizinho, urbanizado,
que se sentia parte da cidade-capital. A partir da década de 1 5 6 0 , as portas do re-
cinto f o r t i f i c a d o p e r m a n e c e r a m a b e r t a s , e a m u r a l h a foi deixada p r a t i c a m e n t e
destruída.
A cidade e seus novos p r o l o n g a m e n t o s a l é m - m u r o s , Palma e Desterro, temiam tão
pouco ataques inimigos que, sem efetiva proteção, foram conquistadas facilmente
pelos holandeses — é verdade que por p o u c o tempo — cm 1 6 2 4 . Na época, às
6

ladeiras da C o n c e i ç ã o c da Preguiça — esta última assim chamada porque se podia


percorrê-la de carroça, em pequenas carruagens ou cm cadeirinhas de arruar — , que
ligavam a Cidade Alta h Cidade Baixa, tinham sido acrescentados dois novos ca-
minhos, as ladeiras do T a b o ã o c da Misericórdia, que levavam, c o m o as primeiras, a
cinco pontos de desembarque: o arsenal, o da pesca, o do desembargador Baltasar
Ferraz, o das amarras c, finalmente, O dos padres, que pertencia aos jesuítas. A Cidade
Baixa, que algumas décadas antes não passava de um depósito, transformara-se num
ativo mercado, local de troca entre as mercadorias vindas da Europa ou do Oriente e
os produtos da terra, trazidos pelos agricultores da região: produtos de subsistência —
como farinha de mandioca, feijão de diversos tipos e milho — e também de exporta-
ção, como pau-brasil, algodão c açúcar, no século X V I ; açúcar, algodão, fumo c pau-
72 BAHIA, SÉCULO X I X

brasil, n o século X V I I e, n o século X V I I I , a ç ú c a r , f u m o , a l g o d ã o , madeiras diversas,


c o u r o s , álcool de cana e o u r o .
O açúcar foi o p r o d u t o - r e i , a verdadeira riqueza de S a l v a d o r d u r a n t e t o d o esse
p e r í o d o . F i x o u o n e g o c i a n t e à b e i r a - m a r , p e r t o dos a r m a z é n s , e fez c o m que estabe-
7

lecesse ali seu d o m i c í l i o . T a n t o assim q u e a estreita faixa de terra q u e a c o m p a n h a o


litoral e m o r r e ao pé d a e n c o s t a e m q u e ia s e n d o c o n s t r u í d a a C i d a d e A l t a tornou-se
paróquia em 1 6 2 3 , sob a p r o t e ç ã o de N o s s a S e n h o r a da C o n c e i ç ã o da Praia. As três
paróquias originais — a S é , a V i t ó r i a e a C o n c e i ç ã o da P r a i a — t e s t e m u n h a m , cada
u m a à sua m a n e i r a , o e n r a i z a m e n t o de u m a c o l o n i z a ç ã o v i t o r i o s a e d i n â m i c a . C o m o
d e s e n v o l v i m e n t o de S a l v a d o r , f o r a m criadas sete n o v a s p a r ó q u i a s : S a n t o A n t ô n i o
A l é m do C a r m o e m 1 6 3 8 , S e n h o r a d e S a n t ' A n a e m 1 6 7 3 , S ã o P e d r o o V e l h o em
1 6 7 6 , S a n t í s s i m o S a c r a m e n t o d a R u a d o P a ç o e m 1 7 1 8 , N o s s a S e n h o r a de Brotas e
Nossa S e n h o r a d o Pilar e m 1 7 1 8 e, f i n a l m e n t e , N o s s a S e n h o r a d a P e n h a em 1 7 6 0 .

A q u e c r e s c i m e n t o p o p u l a c i o n a l c o r r e s p o n d e u essa m u l t i p l i c a ç ã o de paróquias?
A que m u l t i p l i c a ç ã o de h o m e n s , s e m os q u a i s nad# p'ode ser f e i t o e q u e , todos os
dias, l u t a m para s o b r e v i v e r o u p a r a e n r i q u e c e r ? N o s l i m i t e s de u m a d e m o g r a f i a pou-
c o c o n h e c i d a , t e n t a r e m o s e l u c i d a r e s s e - p r o b l e m a n o c a p í t u l o q u e se segue. L e m b r e -
m o s , apenas, q u e o m i l h a r d e - h a b i t a n t e s dos a n o s 1 5 5 0 estava m u l t i p l i c a d o por
c i n q ü e n t a n o fim d o p e r í o d o c o l o n i a l , s e m levar e m c o n t a a h i n t e r l â n d i a vizinha,
n e m a mais afastada, o n d e se e s t a b e l e c e r a m de b o m g r a d o p o v o a d o r e s novos ou
nativos da c i d a d e , c o n q u i s t a d o r e s de u m e s p a ç o v i r g e m , m o d e l a d o à custa do pró-
prio suor. U m espaço d e d i m e n s õ e s h u m a n a s , q u a n d o se trata do R e c ô n c a v o ; mas
afastado, l o n g í n q u o e severo, q u a n d o se t r a t a d o A g r e s t e e d o S e r t ã o , que j u n t o s têm
o tamanho da França.

A CONQUISTA DO INTERIOR

A o c u p a ç ã o d o interior b a i a n o realizou-se p o r u m d u p l o processo: a conquista da terra


e seu posterior p o v o a m e n t o . A n t e s de c o l o n i z a r , foi preciso vencer os obstáculos
naturais que já descrevemos, assim c o m o a resistência dos T u p i s , J ê s e Cariris que
habitavam aquelas regiões. A p o p u l a ç ã o das 4 7 aldeias de índios existentes no R e c ô n -
cavo foi rapidamente dizimada, e a expansão dos c o l o n o s t o m o u a direção da penín-
sula de Iguapé, de Itapira c do rio V e r m e l h o . F o r a m verdadeiras guerras de extermínio,
durante os governos de T o m é de Sousa ( 1 5 4 9 - 1 5 5 3 ) , D u a r t e da C o s t a ( 1 5 5 3 - 1 5 5 7 )
e M e m de Sá ( 1 5 5 8 - 1 5 7 2 ) . Este ú l t i m o c o m a n d o u em pessoa a expedição decisiva em
1 5 5 9 e m a n d o u construir na região de São Francisco do C o n d e um e n g e n h o , chamado
Sergipe do C o n d e , que — doado depois aos jesuítas — se tornou célebre, por ter sido
o único a deixar d o c u m e n t a ç ã o escrita sobre sua e x p l o r a ç ã o . U m a vez vencidos os
8

índios c destruída a vida tribal, os colonos chegavam para plantar algodão, mandioca
e, sobretudo, cana-de-açúcar. Esta era cultivada em grandes plantações (anexas a um
üvfto II - O P E S O DOS H O M E N S 73

engenho) ou por lavradores (livres o u 'obrigados' a m o e r sua cana em d e t e r m i n a -


do e n g e n h o ) . " Nos t e m p o s q u e se seguiram, uma única ameaça pairou sobre os esta-
belecimentos agrícolas do R e c ô n c a v o ; o risco de uma invasão dos holandeses. Estes, já
vimos, estiveram na Bahia cm 1624 c n o v a m e n t e em 1 6 3 8 , q u a n d o uma resistência
bem o f g a n i i a d a frustrou seus objetivos e d e b e l o u o perigo.

A c o m p a n h a d o s por famílias, agregados, escravos negros e lavradores livres ou


'obrigados*, os senhores de e n g e n h o fixaram-se n o R e c ô n c a v o em grande n ú m e r o : São
Francisco da Barra d o R i o de Sergipe d o C o n d e foi o primeiro dos vários núcleos
populacionais que e n t ã o se f o r m a r a m em t o r n o de capelas pequenas, isoladas e h u m i l -
des. E m 1659, o p o v o a d o c o n t a v a c o m 3 2 5 fogos e 2 . 7 2 4 almas, e catorze engenhos
tinham se desenvolvido n o s seus arredores. S ã o F r a n c i s c o do C o n d e recebeu seu foro
em 1 6 9 3 , j u n t o c o m a vila de N o s s a S e n h o r a d o R o s á r i o d o P o r t o de C a c h o e i r a , que
prosperara na m a r g e m esquerda do P a r a g u a ç u , por o n d e passava o c a m i n h o que ligava
Salvador ao S e r t ã o d o S ã o F r a n c i s c o e q u e servia c o m o c e n t r o comercial para os
engenhos de a ç ú c a r d o I g u a p é e para as plantações de f u m o da região de S ã o G o n ç a l o
dos C a m p o s .
Duas novas vilas foram criadas n o R e c ô n c a v o n o século X V I I I , a m b a s em 1 7 2 4 :
Santo A m a r o de Nossa S e n h o r a da P u r i f i c a ç ã o ( n o c e n t r o da região açucareira) e S ã o
Bartolomeu de M a r a g o j i p c q u e , c m 1 7 5 9 , tinha cerca de 4 . 5 0 0 habitantes. M a r a g o j i p e ,
Jaguaripe e Nazaré eram as principais regiões produtoras de farinha de m a n d i o c a n o
Recôncavo. Assim, n o fim desse século, a região c o n t a v a c o m quatro vilas: São Fran-
cisco do C o n d e , C a c h o e i r a , S a n t o A m a r o e M a r a g o j i p e , além de u m a quantidade de
pequenos povoados surgidos em t o r n o das capelas das propriedades agrícolas mais
importantes, c o m o nas já citadas regiões de J a g u a r i p e e Nazaré.
N o século X I X , o R e c ô n c a v o estava repartido em o i t o m u n i c í p i o s : Candeias,
São Francisco d o C o n d e , S a n t o A m a r o , C a c h o e i r a , M a r a g o j i p e , Jaguaripe, Nazaré
das f a r i n h a s c A r a t u í p c . A h i n t c r l â n d i a p r ó x i m a de Salvador havia sido conquista-
da, de maneira rápida c estável, p o r u m a p o p u l a ç ã o de agricultores que tentaremos
estimar com os p o u c o s recursos que no,s facultam p s dados demográficos disponí-
veis, muito imprecisos. \ « '
Ma.s nem todos os c o l o n o s se estabeleceram n o R e c ô n c a v o , á distância de um ou
dois dias de marcha da costa. O vasto S e r t ã o não tardou a atrair os mais pobres ou
mais corajosos. Já m e n c i o n a m o s c o m o o avanço das boiadas para o interior deu vida v n

à região. Missões religiosas, que buscavam converter os índios, também ocuparam o ,


Nordeste baiano. Ê ficaram conhecidas c o m o Entradas as expedições que partiam de
vários pontos do litoral, subindo os rios para conquistar novas terras, fazer(guerr^aos u
; : -
índios Caríris, Anaiós, C a i a p ô s , Acroiás c Foiás ou descobrir metais c pedras preciosas. f ,. l
f x

Foram estas as três maneiras de t o m a r posse do Sertão baiano, c cada uma delas 0 \ ,
desempenhou um papel mais ou menos importante, segundo as regiões. O rei conce- D ,L- 'c<
dia aos chefes dessas expedições as sesmarias, propriedades grandes, às vezes equivalen- 1 - I •
tes a vários municípios. F r e q ü e n t e m e n t e , esses chefes pbdiam e obtinham as sesmarias
BAHIA, SÉCULO X I X
74

antes mesmo de haverem empreendido a conquista: " B a s t a ter tinta e papel para fazer
as petições de concessões", dizia Capistrano de A b r e u . 1 0

As principais missões religiosas, que pertenciam aos padres da C o m p a n h i a de


Jesus, aos frades capuchinhos e aos franciscanos, reuniam índios catequizados, com os
quais os religiosos construíam capelas e organizavam plantações e currais para o gado.
O s jesuítas fundaram as missões de Nossa S e n h o r a do S o c o r r o , Canabrava, Saco dos
Morcegos, N a t u b a e M a n g u i n h o s ; os capuchinhos estabeleceram aldeamentos em
-Aramuru, Rodelas, P a m b u , P o x i m , Pacatuba_e na ilha de U r u c a p é ; os franciscanos
rinham missão na ilha dos G u a n h ã s . Essas missões foram violentamente combatidas
pelos grandes sesmeiros, que quase sempre preferiam, ao convívio, matar ou expulsar
os índios para tomar suas terras. D u r a n t e o século X V I I , as duas grandes famílias de
sesmeiros — os Ávila da Casa da T o r r e e os G u e d e s de B r i t o da Casa da Ponte —
conseguiram expulsar de suas terras todas as missões religiosas.
D e modo geral, o desenvolvimento das povoações sertanejas e das grandes pro-
priedades interioranas, tão afastadas da sede d o g o v e r n o , n ã o seguiu o modelo do
Recôncavo. N o longínquo Sertão, os núcleos de p o v o a m e n t o permaneceram, durante
muito tempo, verdadeiros m u n d o s perdidos, isolados, c o m uma população rarefeita e
itinerante. Sabemos, por e x e m p l o , que, lá pelo a n o de 1 7 5 9 , J e r e m o a b o era um mi-
serável agrupamento de 3 2 casebres e 2 5 2 habitantes, e que, n u m a região'que se esten-
dia por milhares de quilômetros quadrados — a do J t a g i c u r u e do Vaza-Barris — ,
contavam-se, no m e s m o a n o , 4 . 8 9 3 casas e 3 8 . 5 1 4 habitantes, o que representa uma
densidade de menos de u m habitante por q u i l ô m e t r o quadrado. A descoberta de filões
auríferos na serra de J a c o b i n a n o início do século X V I I I representara um incentivo
passageiro para o p o v o a m e n t o do Nordeste b a i a n o . A busca de metais preciosos, de
diamantes ou de pedras semipreciosas não se distinguiu, c o m o forma de ocupação das
terras sertanejas, da guerra movida contra os índios ou m e s m o do ruído dos chocalhos
que retiniam nos pescoços do gado que cruzava o Sertão.
Vejamos alguns exemplos. Ainda n o século X V I o primeiro dos grandes proprie-
tários de gado, Garcia d'Ávila, transferiu seus imensos rebanhos da península de
Itapajipe, ao norte da baía de T o d o s os S a n t o s , para a ponta de £ a p o ^ , t í u ^ é m
situada ao norte da cidade, mas à beira d o A t l â n t i c o . Ali, ele erigiu sua fortaleza — a
Casa da T o r r e , — e dali, c o m b a t e n d o os índios, avançando cada vez mais para o
interior, Garcia d'Ávi!a e seus descendentes conquistaram imensas terras do Sertão,
chegando ao São Francisco e ao M a r a n h ã o .
Em 1 6 7 1 , um bandeirante veio de S ã o Paulo para lutar contra os índios Cariris e
Jes, sob as ordens de Alexandre Sousa Freire, capitáo-mor da Bahia. Ocupou o Alto
Paraguaçu c participou da destruição do famoso quilombo dos Palmares, desmantela-
do em 1 6 7 5 . Seu filho, Manuel Parente, estendeu as conquistas do pai até o rio São
Francisco, apossando-se de imensas sesmarias, que iam até a região de Itaberaba e a
serra do Cristal. Seu nome ficou ligado à abertura da estrada que permitiu a comuni-
cação entre Cachoeira e o São Francisco.
LIVRO II - O PESO DOS HOMENS 75

Um terceiro exemplo é demonstrativo de c o m o a atividade mineradora podia abrir


uma região à colonização. Partindo de Salvador em 1 6 9 6 - 1 6 9 7 , o baiano Pedro
Barbosa Leal explorou a serra de Jacobina, ali encontrando salitre e ametistas. Nomea-
do governador da fábrica de salitre em Curaçá, foi também o primeiro a explorar as
minas de ouro descobertas pouco mais tarde na região. J á velho, financiou a constru-
ção, em Salvador, do convento das ursulinas ( M e r c ê s ) . 11

A busca do ouro, da prata e de pedras preciosas, as expedições militares para


exterminar índios e a condução do gado em imensas boiadas que exigiam novas
pastagens, todas essas incursões foram, de algum modo, responsáveis pela ocupação do
interior baiano. N o fim do século X V I I , a Capitania da Bahia já tinha sido percorrida
em todos os sentidos. Era terra conhecida, mas pouco povoada. Sua ocupação efetiva
iria depender do dinamismo da capital, a Cidade da Bahia.

UMA METRÓPOLE COLONIAL?

De certa maneira, Salvador caracterizou-se pelo fato de ter sido fundada ex-nihilo. As
populações indígenas encontradas pelos portugueses eram nômades ou seminômades,
dotadas de uma organização e c o n ô m i c a que se limitava a coleta, caça e pesca. As tribos
combatiam entre si. Segundo os critérios europeus da época, elas eram pouco 'evoluí-
das' do ponto de vista s o c i o c u l t u r a l . 12
N ã o existia n o Brasil n e n h u m a daquelas cultu-
ras indígenas 'adiantadas', c o m o as que os espanhóis encontraram n o M é x i c o , Peru,
Bolívia e Guatemala. N ã o havia, por conseguinte, qualquer riqueza acumulada que
pudesse ser conquistada. É certo que o precioso pau-brasil havia tornado rentáveis as
viagens entre o V e l h o M u n d o e o Brasil mas, a longo prazo, essa única fonte de lucros
não justificava um esforço verdadeiro de colonização e p o v o a m e n t o . M a s a determina-^ j
t? ção dos portugueses criou, na C o l ô n i a , u m centro produtor de açúcar, cuja expansão
'. s exigiu a conquista de novas extensões de terra e o estabelecimento de bases financeiras/'
próprias. Ali, poderiam ser utilizadas as técnicas já experimentadas nas ilhas do AtIân-<
tico e a mão-de-obra negra disponível nas costas africanas.
Na Europa, crescia cada vez mais o c o n s u m o de açúcar, que estava destinado a ser
aprincipal riqueza do Brasil. Foi este produto que fixou os colonizadores, tornando
possível a ocupação permanente das terras conquistadas. N a Bahia, a experiência
colonizadora de Francisco Pereira C o u t i n h o resultou na implantação de canaviais e na
construção de três engenhos. Assim, aos imperativos político-administrativos que
motivaram a fundação da cidade de Salvador em 1 5 4 9 , somou-se o imperativo econô-
mico. A colonização criou, na Bahia, uma economia agrícola de monocultura, comple-
mentar à economia portuguesa. A produção maciça de um único bem e a atrofia quase
total de manufaturas originaram, por sua vez, uma situação de dependência econômi-
ca. Excluídos os panos grosseiros feitos por tecelões locais e destinados a um consumo
restrito em engenhos e fazendas, a metrópole sempre aplicou com rigor uma legislação
BAHIA, SÉCULO X I X
76

que impedia qualquer tentativa de desenvolvimento do Brasil colonial. Este não foi 0

caso, por exemplo, da América Espanhola; n o M é x i c o , cidades c o m o Puebla e Oaxaca


devem sua prosperidade no século X V I I à instalação de manufaturas de tecidos.
Salvador foi uma metrópole colonial? Até que p o n t o esse tipo de relação de domí-
nio entre Portugal e seus postos avançados n o N o v o M u n d o autoriza qualificar como
metrópole uma cidade colonial, m e s m o q u a n d o ela preside os destinos de uma vasta
região? Q u e é uma metrópole? Pode-se falar de m e t r ó p o l e colonial?
H á muito tempo a definição de m e t r ó p o l e n ã o mais se baseia no fato de uma
cidade ter pelo menos cem mil e n o m á x i m o setecentos mil habitantes. Atualmente
predominam critérios relativos à fijnção exercida: " É m e t r ó p o l e qualquer cidade que
não dependa de outra cidade, que se situe n o t o p o d a organização urbana, podendo
assim colocar-se em pé de igualdade, sem qualquer dependência, c o m as outras cidades
que se e n c o n t r a m na m e s m a s i t u a ç ã o . " 13
Para ser digna desse n o m e , uma metrópole
tem o dever de urbanizar as regiões que lhe são p r ó x i m a s e de moldar as atividades do
campo vizinho de acordo c o m suas próprias necessidades.
Essa definição se aplica mal, é claro, ao m o d e l o de m e t r ó p o l e colonial, pois esta
deriva sua existência das necessidades e da v o n t a d e de o u t r o c e n t r o , que exerce o
d o m í n i o , em geral situando-se geograficamente m u i t o longe da colônia, c o m o Lis-
boa, Londres, Amsterdã ou Sevilha. O r i g i n a r i a m e n t e , m e t r ó p o l e é, por conseguinte,
"um Estado ou uma cidade considerada em relação a suas colônias, a seus territó-
rios e x t e r i o r e s " . 14
É esta, c e r t a m e n t e , a definição primeira. S ó por extensão é que se
passou a usar esse t e r m o para designar a cidade mais i m p o r t a n t e de uma região ou
de um país.

Pierre G e o r g e define dois tipos de m e t r ó p o l e . O primeiro deve possuir "organis-


mos completos, característicos do c o n j u n t o dos m e c a n i s m o s e c o n ô m i c o s do mundo
capitalista". O segundo é representado p o r cidades fundadas c o m objetivos comerciais
por populações emigradas durante o período colonial, t e n d o s o m e n t e dois setores de
atividade: o setor primário regional e o setor t e r c i á r i o . 15
E m geral, as metrópoles
coloniais correspondem a essa segunda categoria. Estava neste caso Salvador, cidade
portuária, e m i n e n t e m e n t e comercial e cuja atividade principal era, sem dúvida, o
encaminhamento, para o exterior, dos bens de consumo produzidos em sua hinterlândia.
As metrópoles coloniais eram f o r t e m e n t e marcadas pela influência do mundo
rural a que estavam ligadas. C o m o regra geral, não passavam de simples pontas-de-
lança do mundo voraz das nações colonizadoras c não podiam exercer o papel metro-
politano que, cm circunstâncias diferentes, sua massa e seu peso humano lhe poderiam
ter conferido. Por outro lado, as metrópoles coloniais crescem c prosperam em detri-
mento da região em que se situam. As pequenas cidades fundadas para estender sua
influência ao campo nunca conseguem seguir seu ritmo de crescimento e, muito
menos, superá-la em importância c vigor e c o n ô m i c o . 16
Esse crescimento macrocéfalo
das metrópoles herdadas dos tempos coloniais ainda pode ser constatado em quase
todos os países do Novo M u n d o .
LIVRO I I - O PESO DOS H O M E N S 77

S a b e m o s que a o r ^ r í i z a ç ã o política, administrativa e econômica instalada e n f


Salvador criou estruturas sociais que determinaram todo o desenvolvimento da cidade.)
Entre 1 5 3 4 e 1 8 8 9 / d i f e r e n t e s tipos de organização foram sucessivamente impostas à
Bahia e sua hinteríândia. Descrevê-los, m e s m o de maneira breve, pode ajudar a com-
preender c o m o e por que alguns núcleos de p o v o a m e n t o se desenvolveram melhor do
que outros.
Nas primeiras décadas d o século X V I houve u m a exploração muito grosseira dos
recursos naturais brasileiros, c o m p o u c a o u n e n h u m a preocupação de domínio efetivo
sobre as terras recém-descobertas, b e m c o m o total ausência de organização econômica
ou administrativa. U m a segunda fase se iniciou c o m a necessidade de proteger a
conquista c o n t r a incursões de navios estrangeiros. Foi essa, c o m o vimos, a época das
capitanias hereditárias: o E s t a d o centralizador conferiu amplos direitos a particulares
que, em c o n t r a p a r t i d a , deviam organizar e c o n o m i c a m e n t e as imensas extensões de
terra que lhes e r a m atribuídas, estabelecendo nelas formas rudimentares de organiza-
ção militar e a d m i n i s t r a t i v a . 17
M e s m o depois de 1 5 4 9 e da instauração de um governo
geral diretamente ligado à C o r o a portuguesa, o Estado permaneceu ausente, deixando
aos particulares — senhores de e n g e n h o na m a i o r parte dos casos — grande parte dos
poderes políticos, da organização e c o n ô m i c a e até da administração. O Estado limi-
tou-se a estimular as iniciativas particulares ou a coordenar as estruturas militares e g * » J < y u
administrativas. O s senhores de e n g e n h o t i n h a m em suas mãos o poder local n o s ^ ^ J 1

conselhos m u n i c i p a i s , e sua política podia até opor-se à da metrópole c o l o n i z a d o r a . 18


^ ^ ^ . u
T u d o se passava relativamente b e m e n q u a n t o os objetivos d o segmento dominante da z.*ti^v>
população brasileira — a q u e produzia e comercializava o açúcar — coincidiam com
os da m e t r ó p o l e .

E m meados d o século X V I I , todavia, a administração real modificou sua postura


de tolerância b e n e v o l e n t e para c o m os senhores de e n g e n h o , agindo assim sob influên-
cia de uma nova classe de mercadores, geralmente de origem portuguesa, que passou
a monopolizar a comercialização da produção agrícola. Até e n t ã o , as estruturas sociais
eram relativamente p o u c o d i f e r e n c i a d a s . 19
P o u c o a p o u c o criaram-se, porém, grupos
intermediários, quase todos ligados a atividades mercantis, cujos objetivos coincidiam
com os de Portugal. Fortalecida pelo a p o i o que encontrava entre esses mercadores, a
metrópole modificou sua política de urbanização, tendo em vista dominar o espaço
agrícola, os serviços e a m a n u f a t u r a , até porque a população urbana crescia sem cessar.
Esboçou então um plano de urbanização e passou a controlar^ajunda^ão dg vila?
povoados. 20
A nova política se manteria por dois séculos, do fim do século X V I I ao
fim do X I X . Representou a criação, pela administração — real e, em seguida, imperial
— , de um controle efetivo sobre todas as populações do país.
Salvador, no e n t a n t o , continuava c o m o um caso particular. Desde sua funda-
ção, a cidade fora o b j e t o de atenções especiais, pois era cidade-capitaJ, cidade real.
N ó s a vimos, ainda nos seus primórdios, dotada de uma estrutura urbana herdada
de experiências adquiridas nas í n d i a s . 21
V i m o s , em seguida, nascerem novas vilas,
78 BAHIA, SÉCULO X I X

novas paróquias, novos p o v o a d o s / T e r i a a criação desses núcleos contestado de al-


y - g u m m o d o a hegemonia excludente exercida por Salvador sobre a imensa capitania

í ( baiana? Ainda não podemos responder. É certo que Salvador exercia uma domina-
J
° A ção delegada por outro centro maior, outra m e t r ó p o l e , a distante Lisboa, que a con-
/trolava, i m p o n d o - l h e ritmos segundo u m a c o n j u n t u r a que era, sem dúvida, mais
( européia do que brasileira. M a s isso n ã o i m p e d i u que a C i d a d e da Bahia fosse um
v centro a u m só tempo exportador e i m p o r t a d o r , verdadeira praça mercantil de múl-
tiplas funções. Am ^àt&>*

SALVADOR, METRÓPOLE DO NOVO MUNDO

Porto de exportação de pau-brasil, açúcar, algodão e f u m o , Salvador era também um


importante porto de importação, u m e m p ó r i o para os p r o d u t o s manufaturados vindos
de Portugal e do E x t r e m o O r i e n t e 2 2
e o m a i o r m e r c a d o de escravos trazidos da África.
A partir do último quarto do século X V I I , cresceram as trocas entre Salvador e os
vastos territórios que procurava povoar e desenvolver. A descoberta do ouro na vizinha
Minas Gerais provocou, nas três primeiras décadas do século X V I I I , um significativo
deslocamento populacional para as terras interiores. N ã o se sabe qual foi a contribui-
ção da Bahia para esse m o v i m e n t o , mas n ã o resta dúvida de que os que iam em busca
de metais preciosos d e p e n d i a m , para a l i m e n t a r - s e , da agricultura e da pecuária.
O principal alimento era a carne bovina, e assim as fazendas de gado se multiplicaram
por toda a região do São F r a n c i s c o . O s mascates que saíam de Salvador estabeleceram
correntes permanentes de troca, que incluíam produtos alimentícios, manufaturados
e escravos: tudo podia ser trocado pelo precioso o u r o . 2 3
Após i n ú m e r o s dias de marcha
pelo Sertão, seguindo as trilhas por o n d e o gado passava, chegava-se ao vale do São
Francisco, a grande via de c o m u n i c a ç ã o entre o N o r d e s t e e o C e n t r o da Colônia, entre
as regiões de produção e importação e as novas regiões de c o n s u m o . Era, pois, essencial
o papel de Salvador na distribuição de produtos manufaturados, n o reabastecimento
de gêneros alimentícios e no f o r n e c i m e n t o de m ã o - d e - o b r a escrava, sem a qual ne-
nhum empreendimento se tornava viável. Através dessas práticas, Salvador dominava
os outros centros econômicos da C o l ô n i a . 2 4

O ouro descoberto no território da Capitania da Bahia em torno da vila de


Jacobina e na região dos tabuleiros, conhecida c o m o chapada D i a m a n t i n a , não corres-
pondeu à expectativa dos exploradores, mas incentivou o povoamento dessas regiões
e, conseqüentemente, a movimentação de pessoas e mercadorias, necessária à sua
sobrevivência. Salvador afirmou-se c o m o praça mercantil, abastecendo-se a si própria
e a um vasto território que ia do Piauí, a noroeste, Sergipe e Pernambuco, ao norte,
Minas Gerais, a sudoeste, e São Paulo, ao sul, exportando açúcar, fumo, algodão e,
agora, oiiro. C o m isso, a Cidade da Bahia tornou-se uma metrópole, capitaneando
uma região muito mais vasta que sua hinterlândia i m e d i a t a . 25
LIVRO I I - O PESO DOS HOMENS 79

O s progressos de Salvador c o m o m e t r ó p o l e regional suscitaram ciúmes. N a déca-


da de 1 7 2 0 , foi p r o i b i d a de n e g o c i a r c o m M i n a s Gerais, s o b r e t u d o para impedir o
c o n t r a b a n d o de e n o r m e s q u a n t i d a d e s do precioso m e t a l . O poder real controlava c o m
m a i o r facilidade os c a m i n h o s existentes e n t r e M i n a s G e r a i s e as capitanias de S ã o
Paulo e do R i o de J a n e i r o . P o u c o a p o u c o , aliás, M i n a s foi desenvolvendo áreas
agrícolas e a u m e n t a n d o a p e c u á r i a , q u e f i n a l m e n t e lhe c o n f e r i r a m certa independência
em relação à B a h i a , sua a n t i g a p r o v e d o r a . 2 6
E m 1 7 6 3 , a sede do governo da C o l ô n i a
foi transferida para o R i o de J a n e i r o , e S a l v a d o r perdeu seu título de capital. P o r essa
época, a q u e d a d a p r o d u ç ã o a u r í f e r a e m M i n a s G e r a i s p r i v o u de sua principal riqueza
os m i n e r a d o r e s , q u e se v o l t a r a m p a r a atividades agrícolas o u pecuárias, o u então,
aproveitando u m n o v o i m p u l s o n a p r o d u ç ã o açucareira, t o m a r a m o c a m i n h o de volta
e instalaram-se p e r t o d o l i t o r a l .

S a l v a d o r se a d a p t o u s e m m u i t a d i f i c u l d a d e a essa n o v a s i t u a ç ã o . 2 7
As vilas e
povoados d o i n t e r i o r — que, em 1 8 0 0 , eram Abrantes, Bonfim, Santo Antônio do
P a m b u , I t a p i c u r u , J a c o b i n a , J e r e m o a b o , N . S . d o L i v r a m e n t o d o R i o de J a n e i r o ,
M o n t e A l t o , M o r r o de C h a p é u , P i l ã o A r c a d o , P o m b a l , Á g u a Fria (mais tarde, Purifi-
c a ç ã o ) , S a n t o A n t ô n i o das Q u e i m a d a s , S e n t o - S é , S o u r e , T r a n c o s o , T u c a n o e U r u b u
— c o n t i n u a r a m a d e s e m p e n h a r o papel d e t r a ç o de u n i ã o e n t r e a c i d a d e - p o r t o e o
m u n d o rural. U m a v a r i e d a d e de lavouras de s u b s i s t ê n c i a e a c r i a ç ã o de gado assegura-
vam a S a l v a d o r u m a v a s t a z o n a de i n f l u ê n c i a n u m a região de e c o n o m i a quase fechada,
na qual l h e c a b i a d i s t r i b u i r as m e r c a d o r i a s de a l é m - m a r . E m m e a d o s do século X I X ,
c o n s c i e n t e s d a i m p o r t â n c i a r e g i o n a l d o p o r t o , os dirigentes p o l í t i c o s da Província e os
representantes dos c o m e r c i a n t e s d a capital t e n t a r a m a p r i m o r a r as vias de c o m u n i c a -
ção, c o n s t r u i n d o ferrovias e m e l h o r a n d o as c o n d i ç õ e s de navegabilidade dos rios.
P r e t e n d i a m , c o m esse p l a n o , c r i a r s u b - r e g i õ e s capazes de d i n a m i z a r o interior. M a s ,
por u m a série de razões de o r d e m g e o g r á f i c a , p o l í t i c a o u administrativa, as ambições
e os interesses e c o n ô m i c o s se c o n j u g a r a m de tal m o d o q u e todas essas tentativas de
i m p l a n t a ç ã o de capitais regionais a u m e n t a r a m mais a i n d a a influência de Salvador n o
meio rural: as capitais d o i n t e r i o r l i m i t a r a m - s e a centralizar a produção agrícola e
e n c a m i n h á - l a para a C i d a d e da B a h i a , q u e a c o n s u m i a o u vendia para o e x t e r i o i s e
um t i p o de o r g a n i z a ç ã o espacial q u e fortaleceu a d e p e n d ê n c i a da imensa h m x e m n d i a
com relação a Salvador. A s s i m , a cidade a c a b o u por c o n c e n t r a r os recurscjrnnanceiros,
e c o n ó m i c o s , sociais e p o l í t i c o s de toda a Província. M a c r o c é f a l a , a urbe atraía popu-
lações rurais, de tal f o r m a q u e estas, s o b r e t u d o depois de 1 8 5 0 , habituaram-se a refluir
em massa para a capital por ocasião das grandes secas que devastavam, e ainda devas-
tam, p e r i o d i c a m e n t e o S e r t ã o . 2 8

À primeira vista. Salvador parecia um c e n t r o d i n â m i c o capaz de adaptar-se aos


imperativos ditados por u m a c o n j u n t u r a f r e q ü e n t e m e n t e mutável. N a realidade, atrás
dessa fachada escondia-se uma fraqueza decisiva: o c o m é r c i o , atividade essencialmente
intermediária, i m p e d i u o desenvolvimento de u m setor produtivo ligado a atividades
industriais q u e fossem independentes do setor açucareiro. Fraqueza que era ao m e s m o
80 BAHIA, SÉCULO X I X

tempo conseqüência de uma estrutura econômica incompleta e produto de atitudes


mentais de dirigentes, em sua maioria incapazes de compreender a nova conjuntura
econômica. 29
N o meio do século X I X , alguns esforços n o sentido de criar na Província
uma indústria têxtil não conseguiram criar um fluxo contínuo de investimento, pro-
dução e lucros. A Bahia, c o m o aliás o resto do Brasil, continuou a consumir produtos
manufaturados no exterior, e assim a Salvador do século X I X nunca perdeu suas
características de metrópole colonial, de cidade intermediária, de simples depósito de
mercadorias vindas dq exterior ou, nas últimas décadas do século, do Sul do Brasil,
» onde Rio de Janeiro e São Paulo já experimentavam um desenvolvimento industrial. 30

$H Essa ausência de desenvolvimento industrial se refletia n o baixo nível de vida da


população, ainda dedicada ao pequeno c o m é r c i o o u ocupada em serviços temporários.
^ A administração pública, por sua vez, absorvia u m excedente crônico de mão-de-obra.
A influência de Salvador c o m o metrópole colonial regional diminuiu progressi-
vamente a partir do final do século X I X e, sobretudo, da terceira década do século
X X , quando a cidade entrou n u m a nova fase de refluxo e c o n ô m i c o que restringiu
consideravelmente sua área de influência, que antes atingia o comércio de toda a
Província e de grandes regiões das províncias vizinhas. C o m o os dirigentes políticos e
as elites econômicas não foram capazes de desenvolver vias rápidas de comunica-
ção, 31
pouco a pouco se foram tecendo laços comerciais entre os núcleos de povoa-
mento dos vastos tabuleiros do Oeste baiano e cidades de Goiás ou de Minas. Para se
abastecer de gêneros alimentícios e produtos manufaturados, a região do São Francis-
co estabeleceu vínculos diretos c o m cidades mineiras, c o m o Belo Horizonte, Pirapora,
Montes Claros ou J a n u á r i a . 32
A única região da Bahia que experimentou um novo
dinamismo foi o Litoral Sul, n o seu eixo Ilhéus-Itabuna, que, graças à cultura do
cacau, sobrepujou o R e c ô n c a v o açucareiro, cujos m é t o d o s de produção eram quase
f idênticos àqueles utilizados n o século X V I . 3 3
C o m o pólo dinâmico da economia

• Ao'* \ baiana se deslocando para a região do cacau, Salvador tornou-se entreposto e centro
,P a r a a
comercialização e exportação da nova riqueza. M a s essa cultura não produziu
uma acumulação de capital na c i d a d e . 34
G r a n d e parte dos capitais excedentes foi
reinvestida em outros lugares, sobretudo n o R i o de J a n e i r o . Além disso, o Sul da
Bahia não se reabastecia mais em Salvador, mas diretamente em Vitória, no Rio de ^
Janeiro ou em Minas Gerais. * S
^l!Çv

Finalmente, é preciso mencionar que a influência de Salvador se exerceu com mais


facilidade na direção nordeste do que na direção sul. D e fato, Juazeiro, principal
cidade do Médio São Francisco, prolongava a influência da capital baiana até Sergipe
e Pernambuco, apesar da concorrência do porto de Recife, capaz de fornecer alguns
produtos às populações do Agreste e do Sertão Norte e Noroeste, a preços mais
competitivos que aqueles de Salvador. 35

N o entanto, neste século, durante mais de cinqüenta anos a cidade ainda conse-
guiu viver do brilho de glórias passadas, graças ao seu antigo prestígio de metrópole
comercial e de centro administrativo e religioso. Q u a n d o ainda era a primeira, seus
LIVRO II - O PESO DOS HOMENS 81

sucessos haviam e s c o n d i d o de seus h a b i t a n t e s as pesadas l i m i t a ç õ e s estruturais q u e


deveriam ter sido v e n c i d a s e m t e m p o h á b i l . A B a h i a , q u e s e m p r e s o u b e r a adaptar-se
aos r i t m o s c o n j u n t u r a i s da é p o c a c o l o n i a l , p e r d e u toda a sua capacidade de i n t e g r a ç ã o ,
n o m o m e n t o p r e c i s o e m q u e , c o m a I n d e p e n d ê n c i a , nova era se abria para o país.
T i n h a c h e g a d o a h o r a de t e n t a r investir e m indústrias locais e de tirar partido de
riquezas n ã o a g r í c o l a s . E r a o m o m e n t o d e t e n t a r libertar-se d o j u g o e das influências
das culturas p o r t u g u e s a , f r a n c e s a o u inglesa, para criar, c o m a e x p e r i ê n c i a de dois
séculos de v i d a c o m u m d e b r a n c o s , n e g r o s e í n d i o s , u m a c o m u n i d a d e aberta e dinâ-
mica. M a s , e m vez d i s s o , os b a i a n o s — o r g u l h o s o s de seus sucessos passados, que
desejavam preservar — r e c u s a r a m c r e s c e n t e m e n t e o q u e fora a sua f o r ç a : u m a ex-
traordinária f a c u l d a d e de a d a p t a ç ã o à v i d a d o d i a - a - d i a , u m a flexibilidade d i a n t e de
c o n s t r a n g i m e n t o s de t o d a e s p é c i e .

N o s s a p r i n c i p a l t a r e f a será, p r e c i s a m e n t e , a de p r o p o r a l g u m a s explicações para


essa i n a d a p t a ç ã o de S a l v a d o r d i a n t e d o s i n ú m e r o s desafios l a n ç a d o s pela I n d e p e n d ê n -
cia r e c é m - p r o c l a m a d a a h o m e n s q u e se j u l g a v a m p r e p a r a d o s para r e c e b ê - l a . M a s , antes
de t e n t a r c o n h e c e r a q u a l i d a d e d o s h o m e n s q u e f i z e r a m a B a h i a d o século X I X ,
precisamos c o n h e c e r o seu n ú m e i o , a s s i m c o m o as estruturas familiares, religiosa^ e
administrativas q u e o s e n q u a d r a v a m . ' f
C A P I T U L O 6

POPULAÇÕES DA PROVÍNCIA DA BAHIA


PANORAMA G E R A L ( 1 7 8 0 - 1 8 9 0 )

As informações disponíveis sobre estrutura demográfica e evolução da população baiana


não são satisfatórias. Só no século XVIII começaram a aparecer números globais, que
1

aliás devem ser utilizados com grande prudência, pois resultam de simples avaliações
ou de 'recenseamentos' não controláveis. O primeiro recenseamento oficial brasileiro
data de 1872. No caso da Bahia, a descoberta de uma série mais ou menos completa
de registros paroquiais do século X I X permitiu o início de um estudo sobre a popula-
ção de Salvador, mas seus resultados são ainda muito gerais para que se possa utilizá-
los de maneira verdadeiramente proveitosa. Será forçoso, portanto, trabalhar com
2

ordens de grandeza, que quase não nos permitem conhecer a dinâmica interna de uma
população matizada, formada por brancos, negros, índios e mestiços.
O estudo das populações da Bahia enfrenta um problema suplementar, já que os
limites da Capitania — que se tornou província e, mais tarde, estado — mudaram
muito no decorrer do tempo, dificultando as tentativas de comparação. Além disso,
3

sobretudo no século X I X , as divisões administrativas da própria Província modifica-


ram-se sem cessar, tanto por desmembramentos quanto por efeito da criação de novos
municípios. Por isso, vamos primeiro avaliar a população baiana do ponto de vista
quantitativo e em relação ao território como um todo entre 1780 e 1890. Depois
estudaremos a população de Salvador.

U M SÉCULO DE AVALIAÇÕES IMPRECISAS: 1 7 8 0 - 1 8 7 2

Realizado em 1759 a mando do 6 Conde dos Arcos, vice-rei e capitão-geral, o


o

primeiro 'recenseamento' registrou, em toda a Capitania, 250.142 habitantes e 28.612


fogos (ou lares), sem incluir as crianças de menos de sere anos de idade, os índios que
viviam em aldeias administradas por padres e missionários, os monges e outros

82
LIVRO II - O PESO DOS HOMENS 83

integrantes de ordens religiosas. A cidade de Salvador e seu R e c ô n c a v o concentravam


1 0 3 . 0 9 6 almas ( 4 1 , 2 % do total) em 1 5 . 0 9 7 fogos ( 5 2 , 8 % ) . ' * E m 1 7 7 5 , o u t r o gover-
nador, M a n u e l da C u n h a Menezes, enviou a Lisboa os resultados de um novo 'recen-
seamento*, que abrangia "todas as freguesias que pertencem ao arcebispado da Bahia,
sujeitos os seus habitantes n o temporal ao governo da m e s m a B a h i a " . Apontaram-se
então 2 2 1 . 7 5 6 pessoas, repartidas por 3 1 . 8 4 4 f o g o s . 5

M a s , apenas tres anos depois, l e v a n t a m e n t o enviado a Lisboa pelo arcebispo da


Bahia registrou 2 7 0 . 3 5 6 habitantes na Capitania. E m instrução ao Marquês de Valença,
novo capitão-geral, o m i n i s t r o português M a r t i n h o de M e l o e C a s t r o ponderou, entre
espantado e i r ô n i c o : "esta grande diferença entre as relações, principalmente as duas
últimas, não m e d e a n d o mais q u e três anos de t e m p o entre u m a e outra, mostra bem
a pouca exatidão c o m q u e f o r a m t i r a d a s " . T i n h a razão o m i n i s t r o : os dados indica-
6

vam u m a regressão p o p u l a c i o n a l de cerca de 1 1 , 4 % entre 1 7 5 9 e 1 7 7 5 e um brusco


aumento de 1 8 % e n t r e 1 7 7 5 e 1 7 7 8 . N a d a justificava essas variações. N e n h u m a epi-
demia ou situação de escassez aguda atingira os baianos n o primeiro desses períodos;
t a m p o u c o houvera, n o s e g u n d o , u m fluxo de p o p u l a ç ã o de outras regiões do Brasil ou
de além-mar e m direção à B a h i a .

E m seu r e c e n s e a m e n t o de 1 7 7 9 — f r e q ü e n t e m e n t e datado de 1 7 8 0 — , o M a r -
7

quês de V a l e n ç a elevou o n ú m e r o dos h a b i t a n t e s da C a p i t a n i a para 2 7 7 . 0 2 5 almas,


muito p r ó x i m o do que fora p r o p o s t o n o a n o a n t e r i o r . O c a b e ç a l h o do M a p a que
resume esse l e v a n t a m e n t o traz u m texto q u e suscita c o m e n t á r i o s : " M a p a da e n u m e -
ração da gente e p o v o desta C a p i t a n i a da B a h i a , pelas freguesias das suas comarcas
com a distinção em q u a t r o classes das idades, pueril, j u v e n i l , varonil e avançada, em
cada sexo, c o m o n ú m e r o dos velhos de mais de n o v e n t a anos, dos nascidos, dos
mortos, dos fogos, c o n f o r m e o p e r m i t i r a m as listas que se tiraram do a n o pretérito,
no que é de notar q u e aqui se i n c l u e m onze freguesias das M i n a s e Sertão Sul que
passaram à jurisdição secular da B a h i a . " O b s e r v e - s e c o m o é vago o critério de distin-
ção entre as quatro categorias de idades, t o r n a n d o impossível u m a boa análise. Aliás,
na transcrição q u e Braz d o A m a r a l fez d o d o c u m e n t o , essa distinção sequer foi levada
em conta, c o m e s m o o c o r r e u c o m o sexo e c o m o n ú m e r o de pessoas de mais de
noventa anos. E m c o m p e n s a ç ã o , a transcrição apresenta o n ú m e r o de nascimentos e
de óbitos por c o m a r c a .

N o que diz respeito à data da realização desse recenseamento, o d o c u m e n t o é


claro: está escrito que as listas "se tiraram do a n o pretérito", o u seja, 1 7 7 9 (o Mapa é
datado de 5 de dezembro de 1 7 8 0 ) . F i n a l m e n t e , é preciso notar que faltam os dados
sobre as "onze freguesias das Minas e do Sertão S u l " , provavelmente paróquias surgidas
a partir de aldeamentos indígenas organizados pelos jesuítas e transferidos para a
administração civil depois da expulsão destes ( 1 7 5 9 ) . Q u a n t o aos dados sobre a Capi-
tania do Espírito S a n t o — militar mas não judicialmente dependente da B a h i a — , não
foi indicado c o m exatidão se eles eram relativos ao c o n j u n t o dessa Capitania ou apenas
se referiam à cidade de São Mateus que, na época, estava integrada à Bahia.
BAHIA, SÉCULO X I X
84

Esses c o m e n t á r i o s levam a pensar q u e o r e c e n s e a m e n t o d e 1 7 7 9 , o u o q u e dele nos


resta, n ã o é mais confiável q u e os o u t r o s , c o n t r a r i a n d o a o p i n i ã o d o h i s t o r i a d o r inglês
F . W . O . M o r t o n , q u e afirma tratar-se de "tbe tnostdefensableXVIIIth centurypopuktion
count". 8
Dos 277.025 habitantes recenseados em 87 paróquias, 57,3% estavam na
c o m a r c a da B a h i a (que incluía a c a p i t a l , o R e c ô n c a v o e p a r t e d o A g r e s t e ) , 8 , 7 % na de
J a c o b i n a , 6 , 1 % n a de I l h é u s , 3 % n a de P o r t o S e g u r o , 1 9 , 4 % n a de Sergipe dei Rei e

5 , 5 % na d o E s p í r i t o S a n t o .

TABELA 2

C O M A R C A S , P O P U L A Ç Ã O E P A R Ó Q U I A S DA C A P I T A N I A DA BAHIA, 1779

COMARCAS POPULAÇÃO PARÓQUIAS

Bahia 158.671 48

Jacobina 24.103 6

Ilhéus 16.313 7

Porto Seguro 8.333 11

Sergipe dei Rei 54.005 11

Espírito Santo 15.600 4

Total 277.025 87

Fonte: Recenseamento de 1779. Adaptado de Ignacio de Cerqueira e Silva Accioli, Memórias históricas
e políticas da Província da Bahia, v. 3, nota 12, p. 83.

S e j a c o m o f o r , o r e c e n s e a m e n t o de 1 7 7 9 foi o ú l t i m o d o s é c u l o , pois nas duas


décadas seguintes só f o r a m feitas avaliações. E m 1 7 8 1 , J o s é da Silva Lisboa, futuro
V i s c o n d e de C a i r u , e s t i m o u a p o p u l a ç ã o da B a h i a e m 2 4 0 m i l a l m a s . O s números
9

fornecidos por V i l h e n a e m 1 8 0 0 t a m b é m n ã o i n s p i r a m g r a n d e c o n f i a n ç a , pois são


c o n t r a d i t ó r i o s — ora o a u t o r m e n c i o n a 2 1 0 m i l , o r a 3 4 7 m i l a l m a s , para o conjunto
da C a p i t a n i a 1 0
— , m a s seus dados m e r e c e m ser a n a l i s a d o s , p r i n c i p a l m e n t e quando se
referem às paróquias urbanas e rurais de S a l v a d o r e a o u t r a s p a r ó q u i a s da Capitania.
V e r i f i c a m - s e , p o r t a n t o , disparidades, q u e p o d e m ser explicadas de duas manei-
ras: ou os recenseamentos n ã o passavam de simples estimativas, o u então alguns de-
les não levavam em c o n t a u m a parte d a p o p u l a ç ã o , sem q u e isso fosse explicitamen-
t e i n d i c a d o . M e s m o a s s i m , eles f o r n e c e m a l g u m a s o r d e n s de grandeza, para a
Província c para o país. O historiador n o r t e - a m e r i c a n o D a u r i l Alden, que estudou
o recenseamento dc 1 7 7 6 , e s t i m o u que, na época, o Brasil abrigava 1,5 milhão de
pessoas, assim distribuídas: M i n a s Gerais, 2 0 , 5 % ; Bahia, 1 8 , 5 % ; Pernambuco, 1 5 , 4 % ;
R i o de J a n e i r o , 1 3 , 8 % ; S ã o Paulo, 7 , 5 % . T o d a s as outras capitanias tinham menos
de 4 % da população.M
E m 1 8 0 5 , um recenseamento eclesiástico c o n t o u 3 , 1 milhões de habitantes no
Brasil, 5 3 5 mil dos quais ( 1 7 , 2 % ) na B a h i a . C o m p a r a d o ao de 1 7 7 9 , esse número
indica u m c r e s c i m e n t o populacional dc 9 1 , 3 % . E m b o r a pareça exagerado, ele é coe-
LIN-RO II - O P E S O DOS H O M E N S 85

rente c o m o que teria o c o r r i d o em t o d o o país, pois a população brasileira teria mais


do que d o b r a d o nesse período ( 1 7 7 6 - 1 8 0 5 ) . A distribuição dos habitantes pelas capi-
tanias era s e m e l h a n t e à apresentada a c i m a , c o m p e q u e n a perda relativa por parte das
mais p o v o a d a s . "
1

Pesquisando os papéis d o A r q u i v o da C i d a d e de C a c h o e i r a , a historiadora norte-


americana C a t h e r i n e Lugar d e s c o b r i u o u t r o r e c e n s e a m e n t o , q u e data de 1 8 0 8 e apre-
senta u m q u a d r o mais c o e r e n t e : o c ô m p u t o da p o p u l a ç ã o foi efetuado por c o m a r c a , a
população livre foi separada d a escrava e, em cada u m a dessas categorias, os habitantes
foram indicados s e g u n d o a c o r de sua pele, e m b o r a s e m distinções de sexo o u idade.
Das 4 1 1 . 1 4 1 pessoas recenseadas, 2 1 , 6 % foram consideradas b r a n c a s , 1 , 4 % índias,
4 3 , 0 % negras e m u l a t a s livres e 3 3 , 9 % negras e mulatas e s c r a v a s . 13

Levando-se e m c o n t a esses n ú m e r o s , e n t r e 1 7 7 9 e 1 8 0 8 teria havido u m cresci-


m e n t o p o p u l a c i o n a l d e 4 8 , 4 % . E l i m i n a n d o - s e d o r e c e n s e a m e n t o de 1 7 7 9 os dados
referentes à c o m a r c a de Sergipe dei R e i ( 5 4 . 0 0 5 h a b i t a n t e s ) e à C a p i t a n i a d o Espí-
rito S a n t o ( 1 5 . 6 0 0 h a b i t a n t e s ) e d o c e n s o de 1 8 0 8 os dados relativos à C a p i t a n i a
de Sergipe dei R e i , o b t é m - s e u m a progressão d a o r d e m de 6 2 % para a população da
C a p i t a n i a d a B a h i a p r o p r i a m e n t e d i t a . É p r e c i s o n ã o e s q u e c e r q u e , às perdas
de territórios q u e a B a h i a sofreu n a d é c a d a de 1 8 2 0 (Espírito S a n t o e Sergipe), acres-
centaram-se ganhos n a região d o S ã o F r a n c i s c o , até e n t ã o subordinada a P e r n a m b u c o .
Mas tudo indica q u e a p e r d a e m h o m e n s n ã o foi c o m p e n s a d a , p o i s havia p o u c a
gente nas terras e n t ã o i n c o r p o r a d a s .
E n t r e 1 8 1 4 e 1 8 1 7 , o u t r o ' r e c e n s e a m e n t o ' ( q u e serviu de base a u m relatório
apresentado à C o r o a p o r V e l o s o de O l i v e i r a ) avaliou a p o p u l a ç ã o baiana e m 5 9 2 . 9 0 8
habitantes, o q u e p a r e c e e x a g e r a d o . N e s t e c a s o , p r o v a v e l m e n t e foi aplicado u m coefi-
ciente arbitrário de 2 5 % s o b r e os d a d o s d o c e n s o eclesiástico de 1 8 0 5 . 1 4
M a i s adiante
n o século X I X , d u r a n t e m u i t o s a n o s , só e n c o n t r a m o s estimativas: e m 1 8 2 4 , Adrien
Balbi calculou a p o p u l a ç ã o d a B a h i a (inclusive S e r g i p e ) e m 8 5 8 mil habitantes, mais
do d o b r o do total a p o n t a d o p e l o r e c e n s e a m e n t o de dezesseis anos antes, c o m a seguin-
te distribuição: b r a n c o s , 2 2 , 2 % ; í n d i o s , 1 , 4 % ; negros e m u l a t o s livres, 1 5 , 0 % ; negros
e mulatos escravos, 6 1 , 4 % . 1 5

Em 1 8 4 5 , M i l l e t de S a i n t A d o l p h e avaliou a p o p u l a ç ã o da Província em 6 5 0 mil


habitantes, n ú m e r o mais razoável, e m b o r a relativamente baixo, sobretudo se c o m p a -
rado ao do c e n s o de 1 8 7 2 , q u e será analisado a d i a n t e . F i n a l m e n t e , na época da Guerra
do Paraguai ( 1 8 6 5 - 1 8 7 0 ) , Sebastião Ferreira Soares e s t i m o u q u e a B a h i a tinha 1,45
milhão de h a b i t a n t e s , dos quais 1 , 1 7 m i l h ã o livres, 2 8 0 mil escravos e 2 0 mil índios
sem domicílio fixo, mas já parcialmente civilizados. Esses n ú m e r o s parecem exagera-
dos, q u a n d o c o m p a r a d o s aos d o censo mais confiável, realizado em 1 8 7 2 ( 1 . 3 7 9 . 6 1 6
habitantes).
T o d a s essas informações deixam a desejar, inclusive porque faltam estudos basea-
dos nos registros paroquiais. N ã o o b s t a n t e , é possível fazer algumas observações de
ordem geral.
g£ BAHIA, SÉCULO X I X

- A população aumentou de forma constante e rápida, distribuindo-se porém de


forma muito desigual. O peso de Salvador e de sua hinterlândia só aumentou.
A região abrigava 4 1 % da população total em 1 7 5 9 ; vinte anos depois, mais da
metade dessa população estava na comarca da capital, proporção q u e ultrapas-
sou os 6 0 % em 1 8 0 8 .
- Livres ou escravos, negros e mulatos representavam mais de 2/3 da população
total. T o d a s as informações fixam o percentual de brancos e m cerca de 1/3 dos
habitantes no século X V I I I . O recenseamento de 1 7 7 5 c o i n c i d e , nesse aspecto,
c o m os do nosso próprio século, q u e estimam a existência de 3 6 % brancos e
6 4 % negros e mulatos. T o d a v i a , n o início d o século X I X o percentual de
brancos teria baixado para m e n o s de 1/4 ( 2 1 , 6 % e m 1 8 0 8 e 2 2 , 4 % em 1 8 2 4 ) .
O número de índios sempre foi reduzido: 1 , 4 % e m 1 8 0 8 e 1 , 5 % em 1 8 2 4 .
- N o que diz respeito às relações entre população livre e escrava, a análise dos
dados de 1 8 0 8 e de 1 8 2 4 permite c o m e n t á r i o s interessantes. E m números
absolutos, a população total teria passado de 4 1 1 m i l para 8 5 8 mil, c o m forte
a u m e n t o relativo na participação de escravos. B r a n c o s e índios aumentaram de
2 7 2 mil para 3 3 4 mil, e n q u a n t o mulatos e negros livres d i m i n u í a m de 1 7 7 mil
para 1 2 9 m i l . O n ú m e r o de negros e m u l a t o s escravos teria aumentado de
1 3 9 mil para 5 2 4 m i l .

TABELA 3

POPULAÇÃO DA BAHIA EM 1 8 0 8 * E 1824

POPULAÇÃO LIVRE POPULAÇÃO ESCRAVA TOTAL


GERAL
BRANCOS ÍNDIOS NEGROS E MULATOS TOTAL NEGROS E MULATOS

1808' 89.004 5.663 177.133 271.800 139.391 411.191

1824 2
192.000 13.000 129.000 334.000 524.000 858.000

variação (%) (116) (130) (-27,2) (23) (276) (108)

(*) Inclui Sergipe dei Rei.

FonceK ( 1 ) Cadastro da população da Província da Bahia coordenado no ano de ¡808, Arquivo Municipal dc Cachoeira; (2)
Adrien Balbi, citado por Thalcs dc Azevedo, Povoamento da cidade do Salvador.

Em 1 8 0 8 não se distinguiram os mulatos e os negros (livres ou escravos). Entre as


duas datas, observa-se que a porcentagem de escravos n o c o n j u n t o quase dobrou,
enquanto a dos homens livres diminuiu significativamente. Apesar disso, o percentual
de brancos se manteve, o que certamente se explica pela chegada à Bahia de uma leva
dc novos imigrantes, oriundos principalmente do M i n h o e D o u r o , no Norte de Portu-
gal. O número desses imigrantes tornou-se maior quando a Corte portuguesa se insta-
lou no Brasil em 1 8 0 8 . Mas, segundo J J . Reis, as estimativas dc Balbi são "muito
duvidosas quando ele avalia a participação das populações africanas (negros) e afro-
baianas (mulatos) no conjunto da população livre da C a p i t a n i a " . 16
C o m razão, esse
autor chama a atenção para o fato dc que todos os estudos feitos sobre o Brasil no
LIVRO II - O PESO DOS HOMENS 87

século X I X mostram que a população de negros e mulatos aumentou mais rapidamente


que a população branca. M a s , se Balbi subestimou o peso dos negros e mulatos, em
compensação ele superestimou consideravelmente o n ú m e r o de escravos existentes na
Bahia e em Sergipe. Esta população a u m e n t o u m u i t o durante os trinta primeiros anos
do século X I X , pois os africanos foram trazidos em grandes massas, geralmente da África
Ocidental — S u d ã o , às vezes A n g o l a — para a c o m p a n h a r o verdadeiro boom açucarei-
ro do fim do século X V I I I e do início d o século X I X . 1 7
S e nos basearmos, porém, nos
números de 1 8 0 8 , mais seguros, e acrescentarmos u m a média de sete mil escravos
importados por a n o , 1 8
c h e g a r e m o s a 2 5 1 . 3 9 1 escravos — isto é, m e n o s da metade do
número apresentado por B a l b i — , o q u e nos d á u m a participação de 4 3 , 5 4 % de
escravos na população total da B a h i a , percentual c o m p a r á v e l ao de 1 8 0 8 ( 3 3 , 9 % ) .
E m resumo, o que se p o d e dizer, analisando-se os dados anteriores ao censo de
1 8 7 2 , é que a p o p u l a ç ã o da B a h i a se caracterizou p o r u m c r e s c i m e n t o c o n t í n u o e bem
marcado, por causa da i m i g r a ç ã o de p o p u l a ç õ e s brancas e da i m p o r t a ç ã o de negros
africanos, cuja chegada acelerou-se n o fim d o século X V I I I e n o início do século X I X .
N ã o se c o n h e c e o peso d o c r e s c i m e n t o vegetativo. C o m o a taxa de reprodução dos
escravos era m u i t o baixa e a de m o r t a l i d a d e m u i t o e l e v a d a , 19
pode-se c o n c l u i r que a
taxa de natalidade e n t r e os b r a n c o s (e possivelmente t a m b é m entre negros e mulatos
livres) era m u i t o mais e l e v a d a . 20
M a s tais a f i r m a ç õ e s , i n f e l i z m e n t e , n ã o se baseiam em
estudos n u m é r i c o s b e m f u n d a m e n t a d o s .

Os RECENSEAMENTOS DE 1 8 7 2 E 1 8 9 0

A contagem da população brasileira e n t r o u n a era da estatística m o d e r n a n o último


quarto do século X I X . O p r i m e i r o l e v a n t a m e n t o d e v i d a m e n t e c o n t r o l a d o , de I o
de
agosto de 1 8 7 2 , baseou-se e m critérios estabelecidos após u m recenseamento experi-
mental empreendido em 1 8 7 0 n o M u n i c í p i o N e u t r o da C o r t e (cidade d c ^ R i o de
J a n e i r o ) . G i o r g i o M o r t a r a a f i r m o u q u e , d e n t r o dos limites dos erros normais nesse
tipo de investigação, o c e n s o de 1 8 7 2 pode ser considerado c o m o um dos melhores
que o país já t e v e . 21
O Império d o Brasil c o n t a v a e n t ã o c o m 1 0 . 1 1 2 . 0 0 0 habitantes,
e a Província da Bahia (que ocupa 6 , 6 % da superfície d o país) c o m 1 . 3 7 9 . 6 1 6 , ou seja,
1 3 , 6 % da população total. Salvador e seu t e r m o t i n h a m 1 2 9 . 1 0 9 habitantes, dos quais
1 0 8 . 1 3 8 moravam nos limites das paróquias da cidade.
Esses números, no e n t a n t o , foram contestados. E m 1 8 9 8 , Sá Oliveira afirmou
que, nos distritos o n d e acompanhara os recenseamentos de 1 8 7 2 e de 1 8 9 0 , "a orga-
nização estatística foi das p i o r e s " . 22
Para os técnicos do Instituto Brasileiro de Geogra-
fia e Estatística ( I B G E ) , o trabalho de 1 8 7 2 foi realizado com m u i t o boa vontade "mas
com controles i n a d e q u a d o s " . 23
Aliás, esse censo traz muitos resultados parciais que
não concordam com os totais, evidenciando somas erradas. N ã o espanta que o presi-
dente interino da Bahia tenha apresentado, em seu relatório anual de 1 8 7 6 , o total de
BAHIA, S É C U L O X I X
ss

1 , 4 5 milhão de habitantes para a Província. V i c e n t e V i a n a , t a m b é m presidente da


Província, m e n c i o n o u 1 , 3 8 milhão e m sua Memória sobre o Estado da Bahia, de 1 8 9 3 .
Apesar de todas essas restrições, consideramos merecedor de crédito e relativamente
rigoroso o recenseamento de 1 8 7 2 . Q u a n t o ao de 1 8 9 0 , passa-se o contrário: seus
métodos e resultados são quase u n a n i m e m e n t e contestados, de m o d o q u e faremos um
uso apenas parcial dos dados q u e a p r e s e n t a . 24

D e qualquer f o r m a , pode-se afirmar q u e só n a segunda m e t a d e do século X I X a


Bahia t o m o u posse de seu território. P o r volta d e 1 8 0 0 , a Província contava c o m 7 1
aglomerações — povoações, lugarejos, paróquias, arraiais o u vilas, algumas c o m deze-
nas de habitantes — , das quais 3 6 n o Litoral ou n o s dois recôncavos. E m dezesseis
casos, tratava-se de antigos a l d e a m e n t o s indígenas, quase todos administrados pelos
jesuítas até a expulsão destes e m 1759. Em 1872, c o m prováveis 1.379.616 habitantes,
a ocupação do território c o n t i n u a v a m u i t o dispersa, e os limites dos 7 2 municípios —
todos c o m sedes da administração local e p o n t o s de c o n f l u ê n c i a dos moradores, na sua
maioria agricultores — eram e x t r e m a m e n t e vagos. M a s e m 1 8 9 0 j á havia 1 1 0 sedes de
m u n i c í p i o , das quais s o m e n t e 4 6 estavam n o litoral ou nos dois recôncavos. A criação
de novos municípios correspondia a u m c r e s c i m e n t o d e m o g r á f i c o o u a u m a distribui-
ção diferente dos habitantes pelo território?

T A B E L A 4

R E P A R T I Ç Ã O DA P O P U L A Ç Ã O BAIANA E N T R E 1779 E 1890

COMARCAS 1779' 1808 2


Ï872 3 1890 4

Bahia 158.671 249.314 767.426 1.052.020

jacobina 24.103 53.854 498.967 728.979

Ilhéus 16.313 23.780 88.894 97.532

Porto Seguro 8.333 9.124 24.899 24.911

Total 207.420 336.072 1.380.186 1.903.442

Fontes: (1) Recenseamento do Marquês de Valença, in Ignicio de Cerqueira c Silva Accioli, Mimarias históricas epoliticas da
Província da Bahia, v. 2, nota 12, p. 8 3 ; ( 2 ) Cadastro da população da Província da Bahia coordenado no ano de 1808, Arquivo
Municipal de Cachoeira; ( 3 ) Bahia, Sergipe, Paraná, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro (Livros Raros), p. 5 0 6 - 6 1 1 ; (4)
Synopse do rrcemeamento de 3/ de dezembro de 1890, p. 1 5 1 - 1 5 7 .

Embora feita com restrições, a comparação dos números recolhidos em 1779,


1 8 0 8 , 1 8 7 2 e 1 8 9 0 permite que se observe u m a progressão demográfica constante,
com crescimento, entre o primeiro e o último ano, de 8 1 9 % (de 2 0 7 . 4 2 0 para
1.903.442). 2 5
O destaque ficou c o m a imensa comarca de J a c o b i n a , que compreen-
dia o Agreste c o Sertão, atravessando o rio São Francisco. A população local experi-
mentou crescimento de 2 . 9 3 3 % , enquanto na comarca da Bahia ele foi de 5 6 6 % , na
dc Ilhéus de 5 0 6 % c na de Porto Seguro de 2 0 0 % . N ã o é possível que esse fenômeno
tenha decorrido apenas do crescimento natural da população de Jacobina. Por outro
lado, nada autoriza imaginar-se que, nessa comarca, as condições de vida tenham

.st»
LIVRO II - O PESO DOS H O M E N S 89

sido melhores do que nas proximidades da capital o u n o Litoral Sul, particularmente


quando se levam em c o n t a as severas variações climáticas que castigaram as regiões
semi-áridas, ora sob f o r m a de seca, ora de uma pluviosidade excessiva, destruindo as
culturas de subsistencia e trazendo duros períodos de fome (entre 1 8 0 9 e 1 8 8 9 , in-
t e r m i t e n t e m e n t e , foram registrados 2 5 anos de secas e onze de pluviosidade excessi-
va). 2 6
É verdade que o Agreste e o S e r t ã o n ã o foram atingidos pela epidemia de
c ó l e r a - m o r b o que devastou Salvad o r e seu R e c ô n c a v o e m 1855> mas a grande seca
dos anos 1 8 5 7 - 1 8 6 0 e a pluviosidade a n o r m a l dos anos 1 8 6 1 - 1 8 6 2 foram certamen-
te tão nefastas para as zonas semi-áridas e áridas q u a n t o o c ó l e r a - m o r b o para Salva-
dor e seu R e c ô n c a v o .

E n t r e 1 8 0 0 e 1 8 9 0 o n ú m e r o de paróquias na região de J a c o b i n a passou de treze


para 5 6 ( c r e s c i m e n t o de 3 3 0 % ) . Isso é significativo, pois n o século X I X as paróquias
eram a unidade de base a d m i n i s t r a t i v a , j á q u e o E s t a d o modelava suas estruturas pelas
da Igreja. N o m e s m o p e r í o d o , o n ú m e r o de paróquias passou de sete para oito na
c o m a r c a de P o r t o S e g u r o , de catorze p a r a 2 2 ( 5 7 % ) na de Ilhéus e de 3 6 para 1 1 0
( 2 0 5 % ) na da B a h i a , o n d e e s t a v a m S a l v a d o r e seus a r r e d o r e s . 27

O forte c r e s c i m e n t o d o i n t e r i o r da P r o v í n c i a baiana n o século X I X é c o n f i r m a d o


pelos n ú m e r o s , i n c o m p l e t o s e s u b e s t i m a d o s , f o r n e c i d o s para o a n o de 1 8 0 0 por Luiz
dos Santos V i l h e n a . 2 í ?
Esse a u t o r — q u e se refere a apenas 1 7 7 . 7 8 7 habitantes em toda
a Capitania — t r a b a l h o u c o m u m d o c u m e n t o eclesiástico e m que só figuravam as
aglomerações c o n s t i t u í d a s e m p a r ó q u i a s . N o e n t a n t o , n a é p o c a , existiam núcleos (às
vezes c o m forte d e n s i d a d e p o p u l a c i o n a l ) a q u e n ã o havia sido conferida essa c o n d i ç ã o .
D e t e n d o o m o n o p ó l i o das n o m e a ç õ e s para os curatos e os b e n e f í c i o s , mas, em c o n t r a -
partida, s e n d o o b r i g a d o a prover sua s u b s i s t ê n c i a , o rei de Portugal n ã o tinha pressa
em criar novas p a r ó q u i a s . 29
A l é m disso, as aldeias indígenas, m e s m o depois de c o l o -
cadas sob a d m i n i s t r a ç ã o leiga, n ã o eram a u t o m a t i c a m e n t e transformadas em paróquias.

V i l h e n a o f e r e c e o q u e ele m e s m o c h a m a de " m a p a de todas as freguesias que


pertencem ao a r c e b i s p a d o da B a h i a " , seguido de o u t r o " q u e c o n t é m não vulgares
notícias de muitas aldeias d e índios q u e p o r o r d e m régia h o j e são vilas". D a s 3 6 aldeias
citadas, 2 7 p e r t e n c i a m à C a p i t a n i a d a B a h i a . Elevadas à c o n d i ç ã o de vilas depois da
expulsão dos jesuítas, elas receberam vigários n o m e a d o s pela administração real. Mas
os dezessete a l d e a m e n t o s restantes ainda eram administrados por capuchinhos italia-
nos, franciscanos c frades da O r d e m d o C a r m o ( c a r m e l i t a s ) . 30
S ã o vagas as informa-
ções sobre a população dessas aldeias indígenas: o recenseamento era feito por lugare-
jos, mas i g n o r a m o s a c o m p o s i ç ã o dos m e s m o s . E n t r e t a n t o , apesar das restrições que
podem ser feitas aos n ú m e r o s fornecidos por Vilhena, eles nos pareceram utilizáveis
para uma c o m p a r a ç ã o de ordens de grandeza (nada, aliás, nos prova que os recensea-
mentos oficiais de 1 8 7 2 c 1 8 9 0 tenham realmente conseguido levantar a totalidade da
população baiana).
A c o m p a r a ç ã o dos dados fornecidos por Vilhena c o m os dos recenseamentos de
1 8 7 2 c de 1 8 9 0 permite reforçar a idéia de que uma imensa revolução se produziu
BAHIA, SÉCULO X I X
90

n o p o v o a m e n t o da Bahia entre 1 8 0 0 e 1 8 9 0 . E m 1 8 0 0 , viviam n o interior apenas


2 0 , 6 % da população recenseada, mas em 1 8 7 2 essa p r o p o r ç ã o já se elevara para
5 6 % e em 1 8 9 0 atingia 5 8 , 2 % . O u seja, mais da metade da população da Provín-
cia não se encontrava mais nas áreas de c o l o n i z a ç ã o antiga, situadas perto do litoral.
N o interior, o n ú m e r o de paróquias t a m b é m a u m e n t o u bastante, evoluindo de 2 0 %
do total em 1 8 0 0 para quase a m e t a d e ( 4 9 , 5 % ) e m 1 8 9 0 . T o d o esse crescimento se
produziu em d e t r i m e n t o da população de Salvador e de sua hinterlândia, assim como
da do Litoral Sul: já e m 1 8 7 2 , a cidade de S a l v a d o r e os arredores sob jurisdição
desta concentravam 3 5 , 7 % da p o p u l a ç ã o da P r o v í n c i a , e a p o p u l a ç ã o d o Litoral Sul
— inclusive o R e c ô n c a v o S u l — estagnara.
E m b o r a c o n s i d e r e m o s p o u c o provável q u e esse a u m e n t o populacional se tenha
devido u n i c a m e n t e ao c r e s c i m e n t o vegetativo, devemos r e c o n h e c e r que faltam estudos
específicos, capazes de d e m o n s t r a r a o c o r r ê n c i a de fortes m o v i m e n t o s migratórios
internos. Pode-se, todavia, supor q u e certas o p o r t u n i d a d e s e c o n ô m i c a s criadas em
regiões do interior h a j a m p r o v o c a d o , e n t r e 1 8 0 0 c 1 8 7 2 , transferências de populações
oriundas de áreas m e n o s d i n â m i c a s . P r e c i s a m o s , p o r t a n t o , tratar da situação econômi-
ca da C a p i t a n i a e depois Província da B a h i a e n t r e 1 8 0 0 e 1 8 7 2 , p e r í o d o em que
ocorreu grande m u t a ç ã o na distribuição da p o p u l a ç ã o p o r regiões.

A análise segue o corte da B a h i a e m três grandes z o n a s . A primeira ( Z o n a A)


compreendia Salvador, a cidade e seu t e r m o (ou seja, dezoito paróquias, das quais onze
eram urbanas e sete rurais), mais q u a t r o paróquias existentes desde o século X V I ao
norte e nordeste da cidade e, e n f i m , o R e c ô n c a v o . A l i , o p o v o a m e n t o era antigo. Os
4 9 2 . 7 3 2 habitantes recenseados em 1 8 7 2 representavam 3 5 , 7 % da população da Pro-
víncia, contra 7 1 , 4 % em 1 8 0 0 . A p e n a s 1 5 % eram escravos, t a n t o n a cidade c o m o no
Recôncavo, este essencialmente voltado para a c u l t u r a d a c a n a - d e - a ç ú c a r . 31
Nesse ano,
estavam concentrados em Salvador 2 6 , 2 % dos h a b i t a n t e s dessa primeira zona (contra
4 0 , 2 % em 1 8 0 0 ) .

Após 1 8 0 8 , a região perdeu mais de metade de sua m ã o - d e - o b r a escrava, o que se


deveu essencialmente à proibição da i m p o r t a ç ã o de africanos, imposta aos brasileiros
por tratados celebrados com a Inglaterra em 1 8 3 0 , mas aplicados efetivamente a partir
de 1 8 5 0 . Mencione-se que a e c o n o m i a açucareira esteve em crise desde a época da
Independência, quando a guerra ( 1 8 2 2 - 1 8 2 3 ) c o n t r i b u i u para desorganizar a produ-
ção baiana. Técnicas agrícolas e industriais n ã o renovadas, assim c o m o a concorrência
de outros produtores de açúcar, acarretaram uma decadência irremediável. 32
Muitos
escravos foram vendidos para as plantações de café do C e n t r o - S u l do Brasil. Só entre
1 8 6 4 e 1 8 7 4 , a Bahia foi desfalcada de 5 5 , 1 % de sua população escrava, enquanto as
províncias do Oeste, do Sul ou d o Centro-Sul do Brasil registravam crescimentos que
variam entre 1 4 , 9 % (Centro-Sul) c 4 8 , 2 % (Oeste e S u l ) . 3 3

A segunda zona (B) — parte sul do Recôncavo e do Litoral, áreas de povoamento


também muito antigo — se ligava à capital basicamente por via marítima. Por causa
da hostilidade da população indígena e da densa floresta que as recobria, durante o
LTVRO II - O PESO DOS HOMENS 91

TABULA 5

P O P U L A Ç Ã O DE SALVADOR E D O R E C Ô N C A V O EM 1872

POPULAÇÃO LIVRE POPULAÇÃO ESCRAVA TOTAL

HOMENS MULHERES HOMENS MULHERES

Salvador 59.819 52.822 8.201 8.267 129.109

Recôncavo" 160.678 144.497 32.506 25.942 363.623

Toral 220.497 197.319 40.707 34.209 492.732

(•) Corresponde aos municípios de Abrantes, Mata de São João, Conde, Abadia, Cachoeira, Maragojipe, Tapera, Santo
Amaro. Sáo Francisco, Nazaré, Jaguaripe e Itaparica.
Fonte: Adaptado do recenseamento de 1872.

período c o l o n i a l essas regiões tiveram u m d e s e n v o l v i m e n t o m e d í o c r e . Apesar disso,


durante m u i t o t e m p o as p o v o a ç õ e s e vilas q u e nasceram ali, nas embocaduras dos rios
ou nas baías protegidas da f o r ç a do m a r , f o r a m apreciáveis fornecedoras de víveres e de
madeira para a capital, q u e solicitava farinha de m a n d i o c a , arroz, m i l h o , peixe salgado
e madeira para os arsenais reais. D u r a n t e b o a parte d o século X I X , a estagnação dessa
que c h a m a m o s Z o n a B deveu-se à perda de sua p o s i ç ã o de principal fornecedora de
alimentos à capital. A a b e r t u r a de vias de c o m u n i c a ç ã o fez c o m q u e o Agreste ocupasse
esse lugar.

N ã o faltaram, c o n t u d o , iniciativas para diversificar a p r o d u ç ã o agrícola e criar


novas o p o r t u n i d a d e s n o sul d o R e c ô n c a v o . E m C a m a m u e V a l e n ç a , por e x e m p l o , u m
café considerado de e x c e l e n t e q u a l i d a d e 34
foi cultivado n a década de 1 8 2 0 , e m b o r a
essa cultura não atingisse ali d e s e n v o l v i m e n t o s e m e l h a n t e ao q u e teve n o Sudeste (no
Brasil, o café foi p l a n t a d o pela p r i m e i r a vez e m V i ç o s a , M i n a s Gerais, n o fim d o século
X V I I I ) . A p r o d u ç ã o de cacau p e r m a n e c e u i n s i g n i f i c a n t e . T a m b é m houve tentativas de
estabelecer m a n u f a t u r a s têxteis, a p r o v e i t a n d o a energia das quedas d'água ali existen-
tes. A c o n s t r u ç ã o d a terceira m a n u f a t u r a d a Província da B a h i a (as duas primeiras
datam de 1 8 3 4 e foram i m p l a n t a d a s na capital) teve i n í c i o e m 1 8 4 4 , fruto da associa-
ção de três grandes c o m e r c i a n t e s da cidade de Salvador: A n t ô n i o Francisco de Lacerda,
A n t o n i o Pedroso de A l b u q u e r q u e e o n o r t e - a m e r i c a n o J o h n S m i t h Gillmer. Eles
investiram a e n o r m e q u a n t i a de 2 0 0 mil c o n t o s de réis e c o n t a r a m c o m a colaboração
do engenheiro n o r t e - a m e r i c a n o J o ã o M o n t e i r o C a r s o n , proprietário de uma fazenda
na região. Pretendiam aproveitar as quedas d o U n a e a matéria-prima produzida na
região do rio das C o n t a s para produzir panos grosseiros, próprios à confecção dos
sacos utilizados para os produtos agrícolas de exportação, das roupas dos escravos e das
pessoas pobres da Província.
Inaugurada em 1 8 4 7 , a Todos os Santos enfrentou, desde o início, muitos proble-
mas: sua capacidade de produção era pouco aproveitada — pois tinha e n o r m e dificul-
dade para se abastecer da matéria-prima de que precisava, sendo obrigada a fazer vir o
algodão das províncias de Sergipe e de Alagoas — , sua rentabilidade era baixa e seu
mercado era limitado. E m 1 8 5 1 , a sociedade foi dissolvida. Pedroso de Albuquerque
92 BAHIA, SÉCULO X I X

ficou s e n d o o ú n i c o p r o p r i e t á r i o até 1 8 7 6 , a n o e m q u e a fábrica foi fechada, quando


empregava 2 6 0 operários, recrutados e n t r e a p o p u l a ç ã o livre, e trabalhava c o m 176
fiadeiras e 4 . 1 6 0 fusos, p r o d u z i n d o 1,1 m i l h ã o de m e t r o s de tecido por a n o .
Nesse p e r í o d o , B e r n a r d i n o de S e n a M a d u r e i r a havia f u n d a d o na região uma se-
g u n d a m a n u f a t u r a , a N o s s a S e n h o r a d o A m p a r o , q u e n ã o teve destino mais feliz
V e n d i d a em 1 8 6 9 à família L a c e r d a , e m 1 8 8 7 passou às m ã o s da V a l e n ç a Indus-
trial, f u n d a d a pelos c o m e r c i a n t e s J o s é P i n t o da Silva M o r e i r a e D o m i n g o s Gonçal-
ves de O l i v e i r a , t r a n s f o r m a d a e m s o c i e d a d e a n ô n i m a e m 1 8 9 9 . N a década de 1 8 5 0 ,
f o r a m criadas u m a fábrica de vidro ( 1 8 5 4 ) , u m a f u n d i ç ã o de ferro e b r o n z e ( 1 8 5 7 )
e u m a serralheria, mas todas m u i t o p e q u e n a s . A s experiências industriais da região
pararam p o r a í . 3 5

Às m a r g e n s d o rio P e r u í b e , n o m u n i c í p i o de C a r a v e l a s , n o L i t o r a l S u l , desde 1 8 1 8
o c a f é era p l a n t a d o n a c o l ô n i a s u í ç o - a l e m ã de L e o p o l d i n a , a ú n i c a a utilizar mão-de-
o b r a escrava. S u a p r o d u ç ã o foi de 6 . 6 1 0 sacos de sessenta q u i l o s e m 1 8 3 6 e de 2 4 . 3 8 4
sacos e m 1 8 5 3 . A c o l ô n i a c o m o tal d e s a p a r e c e u e m 1 8 6 1 , mas o s c o l o n o s se estabele-
c e r a m n o local à f r e n t e de prósperas fazendas de c a f é . D e p o i s d a A b o l i ç ã o da Escrava-
tura, e m 1 8 8 8 , o s escravos f o r a m e m b o r a das p l a n t a ç õ e s e a falta de mão-de-obra
a r r u i n o u os p r o p r i e t á r i o s , q u e t a m b é m d e i x a r a m a r e g i ã o , ficando ao a b a n d o n o a terra
e x u b e r a n t e , n a a u s ê n c i a de b r a ç o s p a r a c o l h e r seus f r u t o s . 3 6

A h o s t i l i d a d e d o m e i o físico e h u m a n o e a falta de c o n t i n u i d a d e das empresas


agrícolas e industriais e x p l i c a m a e s t a g n a ç ã o dessa g r a n d e z o n a , c u j o r i t m o de cresci-
m e n t o p o p u l a c i o n a l foi o m a i s f r a c o d a P r o v í n c i a : e m 1 8 7 2 , ali se c o n c e n t r a v a m 8 , 3 %
da p o p u l a ç ã o , p e r c e n t u a l q u e c a i u para 6 , 4 % e m 1 8 9 0 . S ó na ú l t i m a década do século
se generalizou a c u l t u r a d o c a c a u , q u e se t o r n o u o p r i n c i p a l p r o d u t o de exportação do
E s t a d o da B a h i a e c o n t r i b u i u s i g n i f i c a t i v a m e n t e p a r a p o v o a r I l h é u s , Canavieiras e
B e l m o n t e , q u e r e c e b e r a m n u m e r o s o s m i g r a n t e s , v i n d o s s o b r e t u d o de Sergipe, do
R e c ô n c a v o e d o sul de M i n a s G e r a i s . 3 7

A terceira z o n a ( C ) e n g l o b a v a t o d o o resto d a P r o v í n c i a , mas essas imensidões


p o d e m ser divididas e m três s u b z o n a s . A p r i m e i r a delas é o Agreste, região situada ao
n o r t e da cidade de Salvador ( c o m limites e n t r e A b a d i a e J e r e m o a b o ) e que se estende,
a oeste, por t o d o u m território e m t o r n o de Feira de S a n t a n a , i m p o r t a n t e mercado
para o gado d o S e r t ã o . Ali o p o v o a m e n t o é a n t i g o : várias das atuais sedes de municí-
pios nasceram de aldeias indígenas. A região produzia cana-de-açúcar, f u m o e cereais
e sua pecuária era m u i t o desenvolvida, e x c e t o nos m u n i c í p i o s atingidos pelas secas,
c o m o S a n t o A n t ô n i o da G l ó r i a . O e s c o a m e n t o da p r o d u ç ã o se fazia pelas precárias vias
tradicionais, fluviais c terrestres, mas, a partir de 1 8 6 3 , uma linha ferroviária entre
Alagoinhas a Salvador t o r n o u possível u m transporte mais rápido de mercadorias.
E m 1 8 7 5 outros 4 8 q u i l ô m e t r o s de ferrovias estabeleceram uma ligação durável entre
Feira de S a n t a n a e C a c h o e i r a , n o R e c ô n c a v o . D e s t a última cidade era possível chegar
a Salvador por via m a r í t i m a n u m a viagem de sete horas. Assim, os habitantes de Feira
passaram a fazer ida e volta em 2 4 horas, e n q u a n t o p o r terra eram necessários tres dias
Livro II - O Peso nos Homens 93

de d e s l o c a m e n t o s . 1
E m 1 8 8 6 , a cidade t a m b é m foi ligada por ferrovia a S ã o G o n ç a l o
dos C a m p o s , i m p o r t a n t e c e n t r o produtor de f u m o , mas não conseguiu ligar-se nem às
regiões de M u n d o N o v o e J u a z e i r o , n e m a Salvador. A c o n s t r u ç ã o da ponte entre
C a c h o e i r a e S ã o Félix, inaugurada em 1 8 8 5 , c o l o c o u Feira diretamente em c o n t a t o
c o m o C e n t r o - O e s t e da Província, especialmente c o m a região da Chapada Diamantina,
que tinha ligação ferroviária c o m C a c h o e i r a . 4 0

A região d o C e n t r o - O e s t e é vasta: vai da cidade de O r o b ó , que fica no pé da


chapada D i a m a n t i n a , até o S u d o e s t e , o n d e e n c o n t r a M i n a s Gerais. Deve u m a certa
c o n c e n t r a ç ã o p o p u l a c i o n a l a suas múltiplas atividades agrícolas e mineradoras, que
se desenvolveram s o b r e t u d o em m e a d o s do século X I X . Povoada a partir da década
de 1 7 2 0 , q u a n d o foram d e s c o b e r t o s alguns filões de o u r o , recebeu novo fluxo po-
pulacional depois de 1 8 4 5 , c o m a e x p l o r a ç ã o das minas de diamantes, conhecidas
desde o século X V I I I e redescobertas e m 1 8 4 2 . Elas atraíram grandes contingentes
que se foram estabelecer e m L e n ç ó i s , A n d a r a í e S ã o J o ã o do Paraguaçu, n o c o n t e x -
to de u m 'rush m i n e r a d o r 1
q u e n ã o d u r o u m u i t o , pois a partir de 1 8 6 7 os diaman-
tes do C a b o (África d o S u l ) c o m e ç a r a m a fazer c o n c o r r ê n c i a aos diamantes b a i a n o s . 41

A depressão na região foi grave, apesar das tentativas de d e s e n v o l v i m e n t o das cultu-


ras de café, a l g o d ã o , f u m o , m a n d i o c a e cereais, q u e n ã o p o d i a m prosperar diante da
falta de m e i o s de c o m u n i c a ç ã o c o m o l i t o r a l . 42
Apesar de todos esses problemas, a
população d o C e n t r o - O e s t e — q u e , s e g u n d o V i l h e n a , era de 6 . 2 3 3 habitantes em
1 8 0 0 ( n ú m e r o , sem dúvida, s u b e s t i m a d o ) — passou a 1 9 1 . 2 5 7 e m 1 8 7 2 e a 3 0 3 . 4 3 8
em 1 8 9 0 , e v i d e n c i a n d o a a t r a ç ã o q u e a aventura m i n e r a d o r a ainda exercia. Nessa
região, estavam 1 2 , 8 % d o total de escravos da P r o v í n c i a , em sua grande maioria
empregados na m i n e r a ç ã o .

F i n a l m e n t e , a terceira s u b z o n a d o q u e c h a m a m o s Z o n a C c o m p r e e n d i a as regiões
que se estendem ao e x t r e m o S u d o e s t e , ao e x t r e m o O e s t e , ao norte de J a c o b i n a e mais
longe ainda, e n g l o b a n d o o rio S ã o F r a n c i s c o . É ali q u e se a t i n g e m as profundezas da
Província da B a h i a , c o m seus sertanejos q u e vivem na d e p e n d ê n c i a dos caprichos do
clima. As principais vilas tiveram sua origem nos currais — p o n t o s de parada durante
as longas viagens das boiadas para o m a r ou para M i n a s Gerais — e também nas
atividades que foram surgindo p o u c o a p o u c o e se desenvolveram graças ao comércio
do gado b o v i n o . Logo no início da segunda metade d o século X V I I I , porém, a e c o n o -
mia dessa região foi ferida m o r t a l m e n t e pela decadência das atividades mineradoras
em Minas Gerais, pelo e s t a b e l e c i m e n t o de novas áreas de pecuária nessa capitania e,
principalmente, pela criação de fazendas de gado mais próximas de Salvador, sobretu-
do nas regiões do Agreste. Isolado, o vale d o São Francisco c o m e ç o u a produzir apenas
para c o n s u m o próprio, c m um sistema de e c o n o m i a fechada.
O São Francisco era navegável cm boa parte do seu curso, mas a utilização dessa
via levava a mercados situados fora dos limites da Bahia, o que dificultava a integra-
ção, principalmente c o m Salvador. O sertanejo não se deixava abater e procurava,
por todos os meios, estabelecer contatos c o m as províncias vizinhas. Casa Nova, por
94 BAHIA, SÉCULO X I X

exemplo, tornou-se n o século X I X u m a vila m u i t o d i n â m i c a , graças ao seu comércio


c o m o Piauí. O Presidente Dantas, primeiro navio c o l o c a d o em serviço no São Fran-
cisco, c o m e ç o u a navegar em 1873» mas um verdadeiro serviço de comunicação flu-
vial só foi efetivado em 1 8 8 6 . A estrada de ferro só c h e g o u a Juazeiro em 1 8 9 6 .
N o e n t a n t o , de um m o d o geral a região m o s t r o u - s e fértil, sempre que as condições
climáticas o p e r m i t i r a m : havia criação de gado, p r o d u ç ã o de cercais e plantação de
algodão, mas quase tudo era c o n s u m i d o in loco. N a década de 1 8 9 0 , no extremo Sul
c e x t r e m o Sudoeste, vilas c o m o M a c a ú b a s , B r o t a s de M a c a ú b a s e C a r i n h a n h a entra-
ram em decadência, apesar da pecuária. M a s o m o r a d o r dessa vasta região se agarrava
à sua terra e ao seu h o r i z o n t e l i m i t a d o . E s t a m o s longe dos grandes êxodos de popula-
ções, mais tarde atraídas pela perspectiva de u m a vida m e l h o r nos estados do Centro-
Sul do Brasil. D u r a n t e t o d o o século X I X essa s u b z o n a parece ter conseguido reter sua
população, que, entre 1 8 7 2 e 1 8 9 0 , evoluiu de 3 0 7 . 7 1 0 para 4 2 5 . 5 4 1 habitantes.

A o t é r m i n o dessa longa análise, alguns c o m e n t á r i o s se i m p õ e m . A população da


Bahia a u m e n t o u d u r a n t e t o d o o p e r í o d o e s t u d a d o , e x p e r i m e n t a n d o um crescimento
particularmente vigoroso nas regiões q u e apresentavam fraca densidade populacional.
Isso fica evidenciado pela criação de novas sedes de m u n i c í p i o s e paróquias, bem como
pela elevação de vilas à categoria de cidades, c o m o foi o caso de Alagoinhas ( 1 8 6 3 ) ,
Amargosa ( 1 8 9 1 ) , A n d a r a í ( 1 8 9 1 ) , A r a t u í p e ( 1 8 9 1 ) , Areia ( 1 8 9 1 ) , C o n d e ú b a ( 1 8 8 9 ) ,
Vitória da C o n q u i s t a ( 1 8 9 1 ) , Feira de S a n t a n a ( 1 8 7 3 ) , Lençóis ( 1 8 6 4 ) , Serrinha
( 1 8 9 1 ) e S ã o J o ã o do Paraguaçu ( 1 8 9 0 ) . 4 3
Apesar disso, a atração exercida pela capi-
tal e sua hinterlândia p e r m a n e c e u m u i t o grande. N ã o surgiu n e n h u m a outra capital
regional, e Salvador conservou o privilégio de urbs princeps, e m b o r a controlasse mal
sua imensa hinterlândia.

O u t r a constatação i m p o r t a n t e : a p o p u l a ç ã o livre a u m e n t o u consideravelmente em


comparação à escrava. A p r o p o r ç ã o entre escravos e não-escravos, que em 1 8 0 8 era de
6 6 % a 3 4 % , em 1 8 2 4 passou a ser de 3 9 % a 6 1 % , p r a t i c a m e n t e se invertendo. Em
1 8 7 2 , n e n h u m a região possuía mais de 1 5 % de escravos, o que mostra que a Abolição
tão-somente ratificou, em 1 8 8 8 , u m processo que se iniciara havia m u i t o tempo.
Finalmente, essa população se fixou sobretudo em regiões que lhe ofereceram, em
certo m o m e n t o , alguma o p o r t u n i d a d e de e n r i q u e c i m e n t o , e m b o r a em pouco tempo a
tenham desapontado. M a s , agarrando-se aos novos habitats, os h o m e n s criaram am-
bientes que lhes permitiram suprir as necessidades essenciais de sua existência.

FAIXAS ETÁRIAS E D I S T R I B U I Ç Ã O P O R S E X O NA P O P U L A Ç Ã O BAIANA

É possível conhecer a composição por idade, sexo, cor e origem da população baiana
de então? Só o recenseamento de 1 8 7 2 permite esse tipo de desagregação, que mesmo
neste caso deve ser encarada com muita desconfiança, por causa dos erros que apare-
cem nas tabelas originais. Mas, com elas, é possível chegar a algumas ordens de gran-
LIVRO II - O PESO DOS HOMENS 95

deza interessantes. O recenseamento de 1 8 9 0 dá informações referentes à repartição


por idade, mas n ã o faculta distinções por sexo, cor e origem. Por isso, escolhi trabalhar
somente c o m o censo de 1 8 7 2 .
U m a primeira série de dados de 1 8 7 2 diz respeito à repartição da população da
Bahia por idade, sexo e c o r . N ã o são seguidos os critérios adotados atualmente nos
estudos demográficos, de m o d o q u e aparecem discriminadas faixas etárias mais nume-
rosas: muito detalhadas durante os c i n c o primeiros anos de vida, tornam-se qüinqüenais
a partir da idade de seis anos e decenais a partir de 3 1 anos, sem que se saiba c o m o e
por que esses critérios foram adotados. A l é m disso, essa série não fornece informações
sobre os escravos de m e n o s de onze meses, pois a Lei do V e n t r e Livre, de 2 8 de
setembro de 1 8 7 1 , dera a liberdade a todas as crianças nascidas de escravas a partir
dessa data. D e q u a l q u e r m o d o , o grosso dos efetivos populacionais concentrava-se nas
faixas etárias q u e vão de seis a q u a r e n t a a n o s .
A d m i t i n d o - s c as hipóteses de q u e se c o m e ç a a trabalhar na idade de dez anos (em
certas camadas sociais n u m e r i c a m e n t e majoritárias) e de que a faixa dos sessenta anos
é a idade-limite da vida ativa m é d i a , mais de 2/3 dos baianos integravam, em 1 8 7 2 ,
uma população ativa capaz de sustentar seus jovens e velhos. Esses percentuais são de
6 4 , 8 % para os h o m e n s livres, 6 4 , 7 % para as mulheres livres, 6 9 , 5 % para os homens
escravos e 7 0 , 2 % para as mulheres escravas. P o r o u t r o lado, a entrada n o m u n d o do
trabalho em tenra idade n ã o deve surpreender. P o r e x e m p l o , os filhos de escravos
começavam a trabalhar aos sete o u o i t o anos e n ã o eram os únicos nessa situação.
Numerosos foram os portugueses que e m i g r a r a m para a B a h i a para trabalhar em casas
de comércio aos o i t o , n o v e o u dez a n o s . E n t r e 1 8 5 2 e 1 8 8 9 , 3 4 , 6 % dos portugueses
emigrados t i n h a m e n t r e sete e catorze a n o s . 4 5

Qual era a relação e n t r e as populações de m e n o s de dez anos e de mais de


sessenta anos? U t i l i z e m o s , para essa análise, a repartição por sexo, cor e c o n d i ç ã o
jurídica.
A população infantil equivalia a p o u c o mais de 2 5 % da população total, e n c o n -
trando-se o percentual mais elevado e n t r e os brancos livres, seguidos dos mulatos (nos
dois casos as crianças chegavam perto de 3 0 % do total). E n t r e os escravos negros se
encontrava o m e n o r percentual de crianças, o q u e é coerente c o m tudo o que se sabe
sobre a fraca taxa de reprodução desse grupo. M e s m o assim, o percentual de crianças
escravas parece surpreendentemente elevado. Fica a pergunta: até que ponto isso de-
corria do fato de os mulatos serem, em geral, escravos nascidos no país? Esses mesmos
dados levam a um novo paradoxo: entre a população de cor, livre ou cativa, encontra-
mos os percentuais mais elevados de pessoas idosas ( 6 , 9 % a 9 , 6 % ) , enquanto os mais
baixos estavam entre a população branca ( 5 , 8 % ) . Mas isso talvez não seja espantoso,
pois evidentemente era muito difícil saber a idade dos alforriados e dos escravos,
sobretudo daqueles que tinham sido importados da África, bem c o m o a dos caboclos,
dos índios puros e dos mestiços.
Encontraremos esse mesmo perfil entre a população feminina?
96 BAHIA, SÉCULO X I X

TABELA 6

POPULAÇÃO MASCULINA DA BAHIA POR C O R , 1872

HOMENS LIVRES HOMENS ESCRAVOS

BRANCOS MULATOS NEGROS CABOCLOS MULATOS NEGROS

0 - 1 0 anos 52.689 83.233 36.015 7.427 9.345 10.073


(29,5) (29,0) (26,1) (27,5) (25,0) (19,5)

1 0 - 6 0 anos 115.609 183.944 91.774 17.623 25.370 36.721


(64.7) (64,1) (66,7) (65,1) (68,0) (70,9)

+ 6 1 anos 10.307 19-954 9.785 1.993 2.582 5.003


(5.8) (6,9) (7,1) (7,4) (7,0) (9,6)

Total 178.605 287.131 137.57 427.043 37.297 51.797

Fonte: Adaptado do recenseamento de 1872.

TABELA 7

POPULAÇÃO F E M I N I N A DA B A H I A POR C O R , 1872

MULHERES LIVRES MULHERES ESCRAVAS

BRANCAS MULATAS NEGRAS CABOCLAS MULATAS NEGRAS

0 - 1 0 anos 49.331 76.701 32.467 5.777 7.000 9.655


(32,3) (27,6) (25,5) (25,4) (24,9) (19,0)

1 0 - 6 0 anos 94.939 180.879 85.161 15.694 19.055 37.092


(62,1) (65,0) (70,0) (68,7) (67,9) (73,2)

+ 6 1 anos 8.604 20.993 9.525 1.368 2.016 3.912


(5,6) (7,4) (7,5) (5,9) (7,2) (7,8)

Total 152.874 278.573 127.153 22.839 28.071 50.659

Fonte: Adaptado do recenseamento de 1 8 7 2 .

E m linhas gerais, o perfil f e m i n i n o era quase idêntico ao masculino, embora


com um percentual mais elevado para as meninas de raça branca. Aqui, como na
tabela precedente, o maior número de pessoas idosas se encontrava entre a popula-
ção de cor, fosse livre ou cativa. O percentual de mulheres caboclas idosas era prati-
camente igual ao de mulheres brancas. O número de pessoas idosas era, de modo
geral, elevado, sobretudo levando-se e m c o n t a o fato de q u e essas populações eram
mal nutridas, mal atendidas e m termos de saúde e periodicamente atingidas por epi-
demias mortais. Apesar de todas as reservas enunciadas, parece mesmo assim para-
doxal que entre os escravos, alquebrados pelo trabalho, houvesse maior número de
velhos que entre os homens livres. Isso talvez reforce a idéia de que homens livres
pobres às vezes vivessem em piores condições que os escravos.
O número de homens era significativamente superior ao de mulheres, e essa
diferença era muito sensível no caso de pessoas brancas em idade de casar (entre
dezesseis e quarenta anos). Entre os negros e mulatos, ela era menor.
LIVRO II - O PESO DOS HOMENS 97

TABELA 8

H O M E N S E M U L H E R E S EM I D A D E DE CASAR. BAHIA, 1872


PoruiAçAo LIVRF POPULAÇÃO ESCRAVA
BRANCOS MULATOS Ni-o ROS CABOCLOS MUI ATOS NEGROS
Mulheres 49.914 110.528 45.874 10.360 12.267 23.509
( 1 6 - 4 0 anos)

Homens 70.077 111.736 59.089 10.770 15.302 22.784


( 2 1 - 5 0 anos)

Fonte: Adaptado do recenseamento de 1872.

MATIZES RACIAIS E ORIGENS DA POPULAÇÃO BAIANA

A c o m p a r a ç ã o da repartição por c o r captada nos recenseamentos de 1 8 0 8 e 1 8 7 2 deve


levar em c o n t a que o p r i m e i r o d i s t i n g u i u as categorias b r a n c o , índio, negro e mulato,
enquanto o segundo t r o c o u ' í n d i o ' p o r ' c a b o c l o ' , t e r m o s que n ã o são equivalentes.
Caboclo designa o m e s t i ç o de í n d i o e b r a n c o , que n o r m a l m e n t e vive n o interior, c o m o
lavrador ou criador de g a d o . N a l i n g u a g e m c o r r e n t e , a expressão é usada t a m b é m com
o significado de ' h o m e m rude, p o u c o civilizado'. N ã o sabemos se os recenseadores
pretenderam designar dessa f o r m a o í n d i o p u r o o u o m e s t i ç o , o u se consideraram que
o índio só existia em 1 8 7 2 sob f o r m a de c a b o c l o .

TABELA 9

D I S T R I B U I Ç Ã O DA P O P U L A Ç Ã O BAIANA POR C O R

POPULAÇÃO LIVRE POPULAÇÃO ESCRAVA TOTAL


• /-i
GERAL
BRANCOS INDIOS E NEGROS E TOTAL NEGROS E
CABOCLOS MULATOS MULATOS

1808 1
68.504 4.273 144.549 217.331 118.741 336.072

1872* 331.479 49.882 830.431 1.211.752 167.824 1.379.576

r-ontes: (1) Recenseamento de 1808, excluída a comarca de Sergipe dei Rei; (2) Adaptado dc "População considerada cm
relação àt idades", p. 514 do recenseamento de 1872.

A proporção da população branca pouco progrediu em relação aos caboclos (que


triplicaram sua participação relativa) e sobretudo em relação aos negros e mulatos
livres, que passaram de 4 3 a 6 0 , 2 % do total. O u seja: de m o d o geral, a população era
mestiça c o elemento b r a n c o , minoritário.
O d o c u m e n t o original do recenseamento de 1 8 7 2 intitula-se População em relação
à nacionalidade brasileira c só fornece informações sobre as pessoas que nasceram no
Brasil. Aparece uma diferença, para menos, dc 2 3 . 4 1 7 pessoas, que poderiam ser de
origem européia ou africana. Notc-sc que houve um trabalho específico para apresen-
tar os dados de modo muito completo: a população aparece repartida por sexo, con-
dição jurídica, estado civil, cor e, finalmente, pela província de origem. Nenhuma
BAHIA, SÉCULO X I X
98

rubrica "origem ignorada" figura no d o c u m e n t o . Assim, graças aos dados referentes ao


estado civil, deveria ser possível descobrir a taxa de celibato dessa população, mas isto
não acontece. Para começar, o n ú m e r o de escravos ( h o m e n s e mulheres) é inferior e m

1 1 . 2 5 0 ao fornecido pelas tabelas anteriores, e n ã o sabemos sequer se essas pessoas


fazem parte do grupo dos 2 3 . 4 1 7 que faltam na série sobre a origem. Esse não chega
a ser um grave problema: se s o m a r m o s o n ú m e r o de h o m e n s e mulheres — livres e
escravos — que constam das quatro categorias referentes à cor, e se compararmos esses
dados com as tabelas anteriores, o b t e m o s dados c o m p l e t a m e n t e coerentes para a po-
pulação escrava.
A situação se c o m p l i c a q u a n d o se observam os n ú m e r o s referentes à população
livre. H á contradições nas categorias de c o r , s o b r e t u d o e n t r e brancos, mulatos e ne-
gros. Só se retoma a coerência q u a n d o , depois de diversas c o m p a r a ç õ e s de tabelas, se
percebe que 9 . 9 8 9 negros, 5 6 c a b o c l o s e 1 . 3 4 7 b r a n c o s — todos livres — foram
'reconvertidos' à c o n d i ç ã o de m u l a t o s , o q u e , n o p r i m e i r o caso, numericamente mais
expressivo, representava sem dúvida u m a p r o m o ç ã o .

O s dados sobre as m u l h e r e s c a u s a m u m a surpresa i m e d i a t a . Elas não eram


'reconvertidas'em mulatas, mas ao c o n t r á r i o : 2 4 9 mulheres passaram c o m sucesso no
crivo que lhes permitiu sentirem-se brancas sem restrições. E m b o r a , nesse caso, as
contas não dêem resultados c o m p l e t a m e n t e coerentes — fica faltando o destino de
4 . 6 5 4 mulheres — , pode-se perceber q u e as negras foram promovidas a mulatas nas
mesmas proporções q u e os negros. T a l v e z elas pudessem passar c o m mais facilidade
ainda pelas malhas da triagem relativa à c o r .
Seria possível fazer u m estudo sobre o celibato? A p a r e n t e m e n t e sim, mas nunca se
repetirá bastante o q u a n t o é preciso ter cautela em relação aos dados c o m os quais se
trabalha. T o m e m o s u m e x e m p l o : n o d o c u m e n t o sobre a o r i g e m , 2 0 , 8 % das mulatas
escravas e 1 7 , 0 % das negras escravas figuram c o m o casadas, mas isso contradiz todos
os estudos feitos até h o j e c o m base em outros tipos de d o c u m e n t o s — c o m o , por
exemplo, os inventários post mortem — que d e m o n s t r a m q u e m e n o s de 1 % dos
escravos eram casados. Aliás, t a m b é m o percentual dos mulatos e negros casados é
diferente: aqui, os mulatos c o r r e s p o n d e m a 1 8 , 7 % , e n q u a n t o os negros chegam a
2 3 , 5 % ! Haveria mulatas casadas c o m negros? Essa questão levanta problemas, pois as
práticas matrimoniais na Bahia são relativamente b e m conhecidas, e uma das chaves
para o êxito social é o processo q u e leva a e m b r a n q u e c e r a p e l e . 4 6
Pode ser que os
recenseadores de 1 8 7 2 tenham contabilizado na rubrica ' c a s a m e n t o ' as uniões livres,
que eram muito numerosas. Este exemplo demonstra o q u a n t o é aleatório e perigoso
apoiar-se nessas informações para análises mais aprofundadas.

Supondo-se que os dados sobre a origem estivessem corretos, observamos que


eram de origem baiana 9 8 % dessa população. As outras províncias não mandavam
homens à Bahia, exceto as limítrofes ou muito próximas (Pernambuco, Alagoas, Sergipe
e Minas Gerais), das quais alguns mulatos livres, dos dois sexos, saíam com facilidade.
O número de mulatos que vinham de outros lugares ultrapassava o da população
LIVRO II - O PESO DOS HOMENS 99

branca que deixava a B a h i a . E r a m t o d o s , na certa, gente pobre, que partia em busca


de fortuna. O s m u l a t o s v i n h a m até de províncias longínquas, c o m o Paraná, Santa
C a t a r i n a e R i o G r a n d e d o S u l . M a s o n ú m e r o de mulatas que chegavam era inferior
ao das que partiam.
Alguns c o m e n t á r i o s se i m p õ e m ao t é r m i n o dessa segunda análise. A população da
Província era j o v e m , vigorosa e m u i t o miscigenada. O ligeiro desequilíbrio entre
homens e mulheres n ã o parece ter sido capaz de desregular o processo de reprodução.
Essa população d e s i g u a l m e n t e d i s t r i b u í d a , 47
c o n c e n t r a d a sobretudo em Salvador e nas
terras interiores p r ó x i m a s à capital, vivia e m t o r n o de centros agrícolas situados a
vários dias de m a r c h a uns dos o u t r o s , o u em t o r n o de centros de mineração. Para o
habitante do S e r t ã o , a capital t i n h a u m a existência quase m í t i c a . O sertanejo vivia tão
lon°e de t u d o , tão isolado, q u e só de vez c m q u a n d o era atingido pelas decisões de uma
metrópole, cujas motivações d e s c o n h e c i a e cuja opulência ingenuamente superestimava.
E m 1 8 7 2 , a p o p u l a ç ã o baiana equivalia a 1 3 , 9 % da brasileira; em 1 8 9 0 , essa
percentagem caiu para 1 3 , 4 % . S u a taxa de c r e s c i m e n t o nesse período era de 1 , 9 6 % ao
ano, contra 1 , 8 5 % para a p o p u l a ç ã o total do país. J u n t a m e n t e c o m a da Província de
Minas Gerais, a p o p u l a ç ã o b a i a n a era a q u e apresentava as maiores concentrações
populacionais do Brasil. Sua densidade era a m a i o r do país: 3 , 2 e m 1 8 7 2 e 4 , 5 em
1 8 9 0 , c o n t r a 1,1 e 1,6 para a m é d i a geral. C o m o se vê, a evidente perda de poder
econômico não i m p e d i u q u e a P r o v í n c i a da B a h i a continuasse a ser u m a das mais
dinâmicas do país. N o v a c o n t r a d i ç ã o — e n ã o é a última — de u m a província que
parece esbanjar m u i t o s de seus recursos, até m e s m o o mais precioso: sua riqueza em
homens. Será q u e o m e s m o a c o n t e c e u em Salvador, sua c a p i t a l ? 48
C A P Í T U L O 7

A C I D A D E D E SALVADOR

É preciso dizer e repetir: Salvador e as áreas rurais de seu entorno formavam um todo.
Onde, então, acabava a cidade e começava o campo? Fundada por decisão real, em
1549, para tornar-se sede do governo da nova Colônia, Salvador, como todas as
paróquias e vilas do império português, recebeu um 'termo' (área sobre a qual se
exercia a autoridade municipal) de aproximadamente 3 6 k m e um 'rossio' (área de
2

expansão, que também servia de pasto para os animais pertencentes aos habitantes
urbanos e garantia o fornecimento de madeira, principal combustível doméstico). A
Tomé de Sousa, o fundador da cidade, foram dadas instruções muito claras, no que
dizia respeito à demarcação do Termo: "El Rey he que a dita povoação seja tal como
atras fica declarado ey por bem que ela tenha um termo e limite seis legoas para cada
parte e sendo caso que por allgua parte não aja as ditas seis legoas por não haver tanta
terra, chegara o dito termo ate onde chegarem as terras da dita capitania, o qual termo
mandareis demarquar de maneira que em todo tempo se possa saber onde parte."
Todas as fontes indicam que os limites desse Termo, definido no século XVI, não
foram modificados até o século X I X , tendo incluido ao longo de todo esse tempo sete
paróquias rurais, habitadas basicamente por agricultores dispersos: Nossa Senhora da
Conceição de Itapoã, São Bartolomeu de Pirajá, São Miguel de Cotejipe, Nossa Se-
nhora do Ó de Paripé, Nossa Senhora da Piedade de Matuim, Sant'Anna da Ilha de
Maré e Nossa Senhora da Encarnação de Passe. A estas sete paróquias, muito próximas
da cidade, deve-se acrescentar, por um lado, as de São Bento do Monte Gordo e do
Divino Espírito Santo (que formaram, no fim do século XVIII, o povoado de Abrantes)
e as de São Pedro do Açu da Torre e do Senhor do Bonfim da Mata (que, na mesma
época, formaram o povoado da Mata de São João). Até a época da Independência,
esses dois povoados e suas paróquias faziam parte do Termo de Salvador, e o mesmo
acontecia com as duas paróquias da ilha de Itaparica: Santa Vera Cruz e Santo Amaro.
Testamentos e inventários post mortem descrevem as casas modestas — com duas ou
três peças, térreas, raramente com primeiro andar, construídas com taipa mas freqüen-

100
LIVRO II - O PESO DOS HOMENS 101

remente cobertas de telhas, abertas para u m pequeno jardim c o m hortas plantadas


que, aqui e ali, sempre em torno de igrejas, formavam os núcleos de povoação, despro-
vidos de estrutura a d m i n i s t r a t i v a . 2

A C â m a r a M u n i c i p a l podia c o n c e d e r , a particulares, terrenos e até pequenas


sesmarias, c o b r a n d o u m a taxa (foro) perpétua sobre terrenos não c o n s t r u í d o s . T o t a l - 3

mente sem muralhas desde o século X V I I , Salvador era protegida por pequenos fortes
instalados na costa ( S a n t o A n t ô n i o da Barra, S a n t a M a r i a , São D i o g o , São M a r c e l o ,
Montserrat) ou nos planaltos mais elevados do horst(São Pedro, S a n t o A n t ô n i o Além
do C a r m o , B a r b a l h o ) . E m fins d o século X V I I I j á havia dez paróquias, o dobro do
número observado c e m anos a n t e s . N o século X I X foi criada apenas u m a nova paró-
4

quia, a de M a r e s , datada de 1 8 7 1 .
Em 1757, 1800 e 1829, fizeram-se três descrições mais o u m e n o s precisas das
paróquias ditas urbanas. A mais antiga dessas descrições é u m a obra coletiva, feita
pelos nove párocos locais — eram e n t ã o n o v e as paróquias, pois a da P e n h a foi criada
em 1 7 6 0 — a p e d i d o de S u a M a j e s t a d e , q u e desejava informações sobre os habitantes
de cada jurisdição eclesiástica. O p e d i d o n ã o foi a c o m p a n h a d o de n e n h u m a orienta-
ção precisa e, por isso, o b t e v e respostas desiguais: alguns, c o m o G o n ç a l o de Sousa
Falcão, vigário da S é , d e r a m o n ú m e r o de fogos e de almas de sua paróquia, estabele-
cendo até u m a d i s t i n ç ã o e n t r e " a l m a s de c o m u n h ã o " (crianças c o m até sete anos) e
"almas de c o n f i s s ã o " (pessoas c o m mais de sete a n o s ) ; outros deram informações bem
sucintas: " n e s t a p a r ó q u i a " , disse s e c a m e n t e o vigário de Nossa S e n h o r a da C o n c e i ç ã o
da Praia, na C i d a d e B a i x a , " h á q u a t r o m i l almas de c o m u n h ã o " . M a s , de u m a forma
5

ou outra, todos r e s p o n d e r a m ao q u e s t i o n á r i o real.

C o n s u l t a n d o esse m a t e r i a l , m i n h a a t e n ç ã o recaiu p a r t i c u l a r m e n t e sobre as res-


postas dos vigários de N o s s a S e n h o r a de B r o t a s , o n d e m o r a v a m apenas 4 5 pessoas, e
de Nossa S e n h o r a da V i t ó r i a , o n d e m o r a v a m 1 . 5 0 0 . O c o r r e r a nesta última o desem-
barque dos primeiros colonizadores de Salvador e, em 1 5 5 1 , ela era uma das duas
paróquias da cidade (a título de c o m p a r a ç ã o , a outra paróquia, a da Sé, a mais popu-
losa da cidade, t i n h a 8 . 4 4 2 almas e o P a ç o , a m e n o s povoada, 2 . 0 1 8 ) . Produtoras de
mandioca e de frutas, N . S. de B r o t a s e N . S. da V i t ó r i a eram verdadeiras roças quase
vazias, onde uma população rural tirava proveito das riquezas do solo e da abundân-
cia das águas. N a primeira, alguns pescadores praticavam a pesca da baleia, pois seu
território incluía várias praias situadas n o litoral norte da baía de Salvador, onde se
encontravam dois abrigos para a pesca, ou armações: a Armação de Saraiva e a de
Grcgória. N ã o podiam ser qualificadas de centros urbanos, até porque inexistiam
serviços já implantados nas outras paróquias (arruamento, transportes, iluminação
noturna). Por que não eram consideradas 'paróquias rurais'? Informações ulteriores
talvez respondam a essa pergunta. M a s , desde já, fica claro que vinte anos depois do
censo de 1 7 5 7 , feito pelos vigários, as paróquias de Brotas e da Vitória continuavam
muito pouco povoadas, guardando mais semelhança com as suburbanas que com as
demais paróquias urbanas. A paróquia da Penha, criada em 1 7 6 0 c o m o resultado de
102 BAHIA, SÉCULO X I X

u m d e s m e m b r a m e n t o da p a r ó q u i a de S a n t o A n t ô n i o Além d o C a r m o , tinha mai


almas que B r o t a s .
M i n h a segunda f o n t e de i n f o r m a ç ã o foram os textos escritos por volta de 1800
p o r Luiz dos S a n t o s V i l h e n a , u m professor de grego q u e provavelmente utilizou os
dados d o r e c e n s e a m e n t o de I o
de j a n e i r o de 1 7 7 5 , o r d e n a d o pelo governador Manuel
da C u n h a M e n e z e s c o m fins m i l i t a r e s . Ele t a m b é m distinguiu paróquias urbanas (Sé
6

C o n c e i ç ã o da Praia, Pilar, S a n t o A n t ô n i o A l é m d o C a r m o , P e n h a , S a n t ' A n n a , Brotas


S ã o P e d r o , Passo e V i t ó r i a ) , o n d e se e n c o n t r a v a u m a m a i o r i a de negros e mulatos
cativos, e suburbanas ( S ã o B a r t o l o m e u de Pirajá, N . S . d o Ó de Paripé, S ã o Miguel de
C o t e j i p e , N . S. d a Piedade d o M a t o i m , S a n t o A m a r o d o I p i t a n a , S ã o Pedro no Sauípe
da T o r r e , S e n h o r d o B o n f i m da M a t a , S a n t a V e r a C r u z de Itaparica, S a n t o Amaro de
Itaparica e N . S. d a E n c a r n a ç ã o de P a s s e ) . O p r i m e i r o g r u p o concentrava 7 . 0 8 0 fogos
e 4 0 . 9 2 2 pessoas ( e n t r e as q u a i s , 1 . 4 1 2 h o m e n s recrutáveis para o serviço militar), e o
segundo 2 . 0 9 1 fogos e 1 6 . 0 9 3 pessoas ( 4 1 7 recrutáveis). É V i l h e n a q u e m diz, sobre as
paróquias u r b a n a s : " D a s c i n c o partes de fogos e n c o n t r a d a s , q u a t r o são para os cléri-
gos, as viúvas, os negros e m u l a t o s alforriados e t c . N a q u i n t a parte restante de fogos,
a dos pais de família, d e c i d i u - s e q u e , s e m r e c o r r e r a m é t o d o s opressivos, seria possível
recrutar 1 . 4 1 2 h o m e n s para o E x é r c i t o . O s h o m e n s restantes serviriam nas milícias."
M a i s a d i a n t e , a c r e s c e n t a : " H o j e h á mais f o g o s e a l m a s , mas é impossível recrutar a
m e t a d e desse n ú m e r o . "
P a r ó q u i a s urbanas? P a r ó q u i a s rurais? A d e f i n i ç ã o , i m p r e c i s a nesse início do século
X I X , t o r n a - s e a i n d a mais c o m p l i c a d a q u a n d o e n t r a em c e n a um informante de 1 8 2 9 .
T r a t a - s e de D o m i n g o s J o s é A n t ô n i o R e b e l l o , q u e descreveu Salvador em sua Corografia
ou abreviada história geográfica do Império do Brasil N e s t e trabalho, duas paróquias
s e m p r e classificadas c o m o ' u r b a n a s ' — N . S . de B r o t a s e N . S. d a P e n h a de Itapajipe
— foram incluídas na lista das p a r ó q u i a s ' s u b u r b a n a s ' ! Reinava, portanto, grande
confusão s o b r e o s limites e n t r e a c i d a d e e o c a m p o . A s próprias autoridades adminis-
trativas n ã o sabiam m u i t o b e m o n d e eles estavam. E m 1 8 3 1 , todas as portarias refe-
rentes à c o n s t r u ç ã o de prédios o u casas se aplicavam t a n t o à cidade quanto ao seu
rossio (a de n ° 3 0 , p o r e x e m p l o , obrigava os m o r a d o r e s de toda a cidade a limpar e
sanear p â n t a n o s e riachos, q u e p o l u í a m s o b r e t u d o os subúrbios; a de n ° 3 9 proibia
construir o u m o d i f i c a r u m a casa sem a permissão da M u n i c i p a l i d a d e , sob pena de dez
mil réis de m u l t a o u c i n c o dias de prisão e da d e m o l i ç ã o da c o n s t r u ç ã o ) . Para os ve-
7

readores d o século X I X , a cidade e seu distrito formavam um t o d o . A vida nas paroquias


suburbanas era um p r o l o n g a m e n t o da vida nas da cidade, e a Câmara Municipal não
via razão para delimitar os c o n t o r n o s da urbe propriamente dita. ^

A necessidade dessa d e l i m i t a ç ã o surgiu de repente, em maio de 1 8 5 7 , quan o


regulamentado mais rigorosamente o antigo i m p o s t o , estabelecido em 1811» so re
imóveis urbanos. O governo n o m e o u então dois peritos — Francisco Pereira de Aguiar,
engenheiro indicado pelo governo da Província, e Francisco A n t ô n i o Filgueira, verea-
dor indicado pela M u n i c i p a l i d a d e — para fixar c o m maior precisão os limites dentro
LIVRO I I - O PESO DOS HOMENS 103

dos quais esse i m p o s t o seria c o b r a d o . E i s o resultado do t r a b a l h o : " A c o m i s s ã o e n c a r -


regada de fixar os l i m i t e s d a cidade para o i m p o s t o s o b r e os imóveis u r b a n o s pôs-se de
a c o r d o sobre a s e g u i n t e d e m a r c a ç ã o para fixar os ditos l i m i t e s . N a faixa litorânea, o
limite será d e t e r m i n a d o pela l i n h a desse m e s m o litoral, e n t r e a c o l i n a d o Farol da
Barra e a p o n t a de N . S . da P e n h a , c o n t i n u a n d o s e m i n t e r r u p ç ã o pelo m e s m o litoral,
ultrapassando a baía d i t a da R i b e i r a de I t a p a j i p e e a t i n g i n d o o F o r t e de T a i n h e i r o s até
o a l a m b i q u e dos F i ã e s , o n d e se t e r m i n a r á o l i m i t e e m l i n h a reta para a Estrada das
Boiadas. D a p o r t a de e n t r a d a d o a l a m b i q u e de Fiães, a l i n h a l i m í t r o f e descerá para a
reserva de água da C o n c e i ç ã o , d e o n d e ela subirá pela m e s m a estrada até a Praça da
Lapinha, de o n d e d e s c e r á n o v a m e n t e p a r a r e u n i r - s e à F o n t e d o Q u e i m a d o , de o n d e
subirá n o v a m e n t e pela E s t r a d a d a C r u z d o C o s m e e, s e g u i n d o - a até a P r a ç a da C r u z ,
descerá n o v a m e n t e pela ladeira q u e passa d i a n t e d o i m ó v e l d a Q u i n t a dos Lázaros,
para e m seguida s u b i r d e n o v o pela R u a d o V a l i a , c h e g a n d o à F o n t e das Pedras. D a
F o n t e das P e d r a s , a l i n h a passará pela R u a d o S a n g r a d o u r o até c h e g a r a o M a t a t u e, do
M a t a t u , ela c o n t i n u a r á n a s i m e d i a ç õ e s d a p r o p r i e d a d e de J o a q u i m J o s é de O l i v e i r a e,
dessa p r o p r i e d a d e , s e g u i n d o a E s t r a d a d e B r o t a s , a l i n h a l i m í t r o f e irá até a casa dita de
B o a V i s t a . D e B o a V i s t a , ela s e g u i r á a estrada q u e leva ao D i q u e , c h e g a n d o e m seguida
à grande casa d o G a r c i a e, d e p o i s , s e g u i r á pela estrada d o rio de S ã o P e d r o até o bairro
da G r a ç a . D a G r a ç a , a l i n h a d e d e m a r c a ç ã o passará d i a n t e d a igreja e c o n v e n t o d o
m e s m o n o m e q u e p e r t e n c e m a o s B e n e d i t i n o s e, a p ó s passar d i a n t e d a casa q u e p e r t e n -
ceu ao finado C h r i s t a d ' O u r o , c h e g a r á d i a n t e d a casa de F r é d é r i c H o l d e m a n , situada
na c o l i n a d a B a r r a , d e o n d e c h e g a r á a o F a r o l d a B a r r a q u e foi seu p o n t o de partida.
Serão sujeitos a i m p o s t o s t o d o s os i m ó v e i s c o m p r e e n d i d o s nesses l i m i t e s . . . " 8

Percebe-se a d i f i c u l d a d e dos c o n t e m p o r â n e o s q u a n d o f o r a m c h a m a d o s a definir os


espaços c u j a d e n s i d a d e d e m o g r á f i c a e r a b a i x a . A á r e a d e l i m i t a d a p e l o s peritos
correspondia, e m p r i n c í p i o , à s u p e r f í c i e o c u p a d a pelas dez p a r ó q u i a s u r b a n a s . 9
Mas
excluía b o a parte d a p a r ó q u i a de N . S . de B r o t a s (terras q u e i a m até a P i t u b a ) e de
N . S. da V i t ó r i a ( o R i o V e r m e l h o ) . N e s t e s casos, os limites da cidade n ã o corres-
ponderam aos das p a r ó q u i a s ditas ' u r b a n a s ' . M a s i n c l u í r a m a totalidade das terras que
pertenciam às p a r ó q u i a s r e a l m e n t e u r b a n i z a d a s .
O s h a b i t a n t e s das p a r ó q u i a s afastadas eram f o r ç a d o s a vir à cidade para todos os
atos oficiais, c o m o o registro de t e s t a m e n t o s o u de certidões de c o m p r a e venda e o
r e c o n h e c i m e n t o de filhos i l e g í t i m o s . O m e s m o a c o n t e c i a c o m n u m e r o s o s habitantes
do R e c ô n c a v o , q u e e s c o l h i a m os tabeliães da capital para lavrar os registros de seus
d o c u m e n t o s , e m b o r a todas as vilas d o R e c ô n c a v o tivessem seus próprios tabeliães.
Assim, o T e r m o acabava por e n g l o b a r t o d o o R e c ô n c a v o , realizando uma simbiose
perfeitamente natural entre a cidade e o c a m p o .
E m pleno século X I X o legislador n ã o conseguia delimitar a urbe c o m certeza e
precisão: usos, c o s t u m e s , perícias c regulamentos n e m sempre eram coerentes entre
si. C o m o pode o historiador, o b r i g a d o a definir seu o b j e t o , precisar então a parte d o
território que deseja estudar? O primeiro c a m i n h o — porta estreita — considera
j 04 BAHIA, SÉCULO X I X

'urbano' todo território c o b e r t o por u m a rede de imóveis contínua e densa, onde já


estava instalada a rede de serviços essenciais de uma cidade (iluminação, água, esgo-
tos, saúde pública, transportes); ou a área cujos habitantes tinham acesso a setores
secundário e terciário b e m desenvolvidos; ou ainda a área sistematicamente conside-
rada pelos habitantes c pelos viajantes estrangeiros c o m o pertencente à cidade pro-
priamente dita. O r a , a c e n t e n a de viajantes que passaram por Salvador n o século XIX
quase sempre só m e n c i o n a r a m as paróquias do C e n t r o . V i t ó r i a teve o privilégio de
figurar em várias descrições, mas foi p o r q u e , após a I n d e p e n d ê n c i a , residiam ali mui-
tos estrangeiros.
O segundo c a m i n h o — solução ' a b e r t a ' — passa pela adoção de critérios mais
h u m a n o s e m e n o s rígidos, que p e r m i t a m integrar à cidade u m a área mais extensa. Em
vez de considerar o grau de u r b a n i z a ç ã o , pode-se levar e m c o n t a a infinita complexi-
dade dos gestos c o t i d i a n o s , das relações sociais f u n d a m e n t a i s , da trama da vida urbana
que estabelece ligações e n t r e c o m u n i d a d e s mais ou m e n o s próximas. Esta solução
que, c o m o regra geral, adotei — p e r m i t e c o m p r e e n d e r m e l h o r a razão da enorme
disparidade existente nos dados d e m o g r á f i c o s anteriores a 1 8 7 2 e diminui o peso dos
erros de avaliação c o m e t i d o s pelos c o n t e m p o r â n e o s .
I n d e p e n d e n t e m e n t e da solução escolhida, os dados demográficos disponíveis per-
manecem m u i t o imprecisos. T e n t a r e i analisá-los c o m o m e s m o corte feito para o
c o n j u n t o da Província, d i s t i n g u i n d o dois p e r í o d o s : antes e depois de 1 8 7 2 .

ANTES DE 1 8 7 2 : RECENSEAMENTOS PARCIAIS

D o u crédito limitado a r e c e n s e a m e n t o s que n ã o são dignos desse n o m e , a contagens


cujos mecanismos n ã o ficam claros, a avaliações q u e não passam de estimativas, às
vezes resultantes da simples aplicação de um coeficiente fantasioso sobre números
anteriores. T e n t e i extrair delas o m á x i m o de i n f o r m a ç õ e s , mas estou consciente de que
fornecem apenas ordens de grandeza e n ã o p e r m i t e m c o m p r e e n d e r a real estrutura da
população de S a l v a d o r . 10

O primeiro recenseamento de que se t e m notícia data de 1 7 0 6 e foi feito pela


Igreja. N o a n o seguinte, seguindo a legislação canónica em vigor em Portugal, o
sínodo do arcebispado da Bahia decidiu que uma vez por ano, entre os domingos da
Septuagésima e da Q ü i n q u a g é s i m a , os vigários deveriam recensear seus paroquianos e
os respectivos bens, indo de casa em casa, anotando nomes, prenomes e endereços.
Deviam, além disso, indicar as pessoas que não tinham ainda atingido a puberdade
(catorze anos para os meninos c doze para as meninas) e os maiores de idade, obrigados
a confessar e comungar. É claro que, além de útil para a Igreja, esse recenseamento
podia servir aos interesses fiscais c militares do Estado. E m 1 7 0 8 , o governador Luis
César de Menezes pediu aos padres que lhe fornecessem anualmente a lista dos chefes
de família e dos filhos do sexo masculino (com as idades), bem c o m o o número de
Ü V R O II - O PESO DOS HOMENS 105

fogos. 11
N ã o consegui e n c o n t r a r n e n h u m desses c e n s o s . S ó t e n h o os dados globais de
3 7 0 6 (que a p o n t a m , para S a l v a d o r , 2 1 . 6 0 1 h a b i t a n t e s r e p a r t i d o s e m 4 . 2 9 6 fogos) e de
três outros r e c e n s e a m e n t o s realizados a t é 1 7 5 9 .
S e m m e n c i o n a r sua f o n t e , A f o n s o R u y a f i r m a q u e em 1 7 1 8 a cidade c o n t a v a c o m
3 9 . 2 0 9 h a b i t a n t e s e 6 . 6 1 7 fogos, r e s t a n d o a i n d a 2 . 6 7 6 pessoas nas paróquias rurais.
R o c h a Pita escreveu e m 1 7 2 4 q u e a n t e s dessa data havia e m Salvador seis mil fogos,
c o m cerca de t r i n t a m i l pessoas, divididas e n t r e a n o b r e z a — leia-se 'senhores de
e n g e n h o ' — , t r a b a l h a d o r e s e escravos, " a l é m d a q u e l e s q u e n ã o são capazes de receber
os s a c r a m e n t o s " . 1 2
O u t r a s f o n t e s p õ e m e m dúvida esses c á l c u l o s . E m relatório datado
de 1 8 4 0 , o a r c e b i s p o d a B a h i a , d o m R o m u a l d o d e S e i x a s , d á i n f o r m a ç õ e s sobre o a n o
de 1 7 5 5 , mas t a m b é m n ã o i n d i c a sua f o n t e (seria e s t a b e l e c i d a a p a r t i r das listas
n o m i n a t i v a s ? ) . S e g u n d o ele, S a l v a d o r t i n h a e n t ã o , e m m e a d o s d o s é c u l o , 37.543
habitantes, d i s t r i b u í d o s e m 6 . 7 1 9 f o g o s . O r e c e n s e a m e n t o d e 1 7 5 7 i n d i c o u q u e as
nove paróquias da c i d a d e a b r i g a v a m 3 4 . 4 2 2 h a b i t a n t e s púberes e 4 . 8 1 4 fogos, n ú m e -
ros m e n o r e s d o q u e o s i n d i c a d o s p o r A f o n s o R u y p a r a m u i t o s a n o s antes. N a d a
ocorreu na h i s t ó r i a d a c i d a d e q u e justificasse u m a d i m i n u i ç ã o da p o p u l a ç ã o e, s o b r e -
tudo, da q u a n t i d a d e de fogos e n t r e 1 7 1 8 e 1 7 5 7 . M e s m o a d m i t i n d o a hipótese de os
n ú m e r o s de 1 7 1 8 i n c l u í r e m crianças i m p ú b e r e s , p e r m a n e c e inexplicável a queda n o
n ú m e r o de f o g o s . 1 3

O ú l t i m o r e c e n s e a m e n t o desse p e r í o d o , realizado e m 1 7 5 9 por ordem do 7 o

C o n d e dos Arcos ( g o v e r n a d o r e c a p i t ã o - g e r a l ) , foi m a i s b e m c o n t r o l a d o . N ó s o c o n h e -


cemos graças às i n s t r u ç õ e s dadas p e l o m i n i s t r o português M a r t i n h o de M e l o e C a s t r o
ao M a r q u ê s de V a l e n ç a ( g o v e r n a d o r e capitão-geral e m 1 7 7 9 ) . C o n t a r a m - s e então, na
cidade, 6 . 7 8 2 fogos e 4 0 . 2 6 3 h a b i t a n t e s , e x c l u i n d o desse total crianças de m e n o s de
sete anos, índios q u e viviam e m aldeias administradas p o r religiosos e m e m b r o s ou
servidores das ordens r e l i g i o s a s . 14
M a s os resultados dos r e c e n s e a m e n t o s de 1 7 5 7 e de
1 7 5 9 t a m b é m não são c o e r e n t e s , pois, s e g u n d o eles, e m dois anos a população da
cidade teria a u m e n t a d o e m 1 7 % e os fogos e m 4 0 % , o q u e parece i m p o s s í v e l . 15

N o que diz respeito aos r e c e n s e a m e n t o s realizados n o ú l t i m o quarto d o século


X V I I I , as opiniões se dividem. T h a l e s de Azevedo considera que eles produziram as
únicas estatísticas realmente c o m p l e t a s e detalhadas, pois classificaram a população
por grupos de idade, cor c estado civil, avaliando o n ú m e r o de nascimentos e óbitos.
Sua opinião tão favorável se baseia n u m ú n i c o desses censos, o de 2 0 de j u n h o de
1 7 7 5 , que ele analisa sem todavia fornecer os dados básicos sobre os quais trabalhou.
É completamente diferente a opinião d o historiador inglês R u s s c l - W o o d , que se recu-
sa a tirar conclusões de um levantamento que considera malfeito e i n c o m p l e t o . 16

Inclino-me a concordar c o m este último. Vejamos do que se trata exatamente.


Ocorreram dois recenseamentos n o ano de 1 7 7 5 : além do de 2 0 de j u n h o , men-
cionado por Thales de Azevedo, foi realizado outro, meses antes, em janeiro, por
ordem do governador Manuel da C u n h a Menezes, que enviou a Lisboa um levanta-
mento de "todas as pessoas que pertencem ao arcebispado da Bahia e cujos habitantes
L 0 6 BAHIA, SÉCULO X I X

são subordinados ao g o v e r n o t e m p o r a l dessa m e s m a B a h i a , c o m d i s t i n ç ã o das comarcas


e vilas às quais p e r t e n c e m , c o m o n ú m e r o d e fogos e a l m a s , para saber que pessoas
p o d e m ser c h a m a d a s ao serviço de S u a M a j e s t a d e sem q u e os p o v o s s e j a m oprimidos."
T r a t a v a - s e , p o r t a n t o , de u m r e c e n s e a m e n t o para fins m i l i t a r e s — e era b e m conhecida
a falta de e n t u s i a s m o dos b a i a n o s em relação ao serviço m i l i t a r . V i l h e n a percebeu isso:
" F a z e r u m m a p a desta natureza neste país n ã o é fácil c o m o talvez se s u p u n h a , p o r q U e

os pais de famílias, receosos de q u e lhes p e ç a m os filhos para s o l d a d o s , n ã o só ocultam


m u i t o s , c o m o n e m d ã o os n o m e s n o s róis d a c o n f i s s ã o , e o m e s m o p r a t i c a m com os
escravos, receosos de a l g u m a c a p i t a ç ã o o u t r i b u t o s , s e g u n d o o n ú m e r o de escravos que
constar p o s s u e m . " 1 7

O s r e c e n s e a m e n t o s a p r e s e n t a v a m s u b - r e g i s t r o s d e c r i a n ç a s c o m m e n o s de sete
anos de idade, de m o d o q u e o m e s m o p o d e t e r o c o r r i d o c o m a p o p u l a ç ã o adulta
masculina. Esse c e n s o de j a n e i r o de 1 7 7 5 a p o n t o u p a r a a c i d a d e de Salvador uma
população de 4 0 . 9 2 2 a l m a s , repartidas e m 7 . 0 8 0 f o g o s , e p a r a as p a r ó q u i a s suburbanas
1 6 . 0 9 3 almas e 2 . 0 9 1 f o g o s . C o m p a r a d o s aos n ú m e r o s d o r e c e n s e a m e n t o de 1 7 5 9 , os
resultados p a r e c e m m e d í o c r e s : a p o p u l a ç ã o d a c i d a d e t e r i a p e r m a n e c i d o estacionária
durante 16 a n o s .
Essa c o n s t a t a ç ã o p e s s i m i s t a p e r m i t e d u a s h i p ó t e s e s : p o d e ser q u e os números de
1 7 5 9 t e n h a m i n c l u í d o t a m b é m a p o p u l a ç ã o s u b u r b a n a , para a q u a l n ã o disponho de
informações separadas, i n d u z i n d o assim a u m a s u p e r e s t i m a ç ã o dos h a b i t a n t e s da cida-
de p r o p r i a m e n t e dita. P o r o u t r o l a d o , essa d i m i n u i ç ã o p o d e t e r s i d o real, causada pelo
êxodo de h o m e n s para o S e r t ã o b a i a n o o u para o R i o d e J a n e i r o , o n d e se incorporavam
ao Exército que lutava c o n t r a a E s p a n h a n o S u l . M a s , s e m d ú v i d a , a explicação do
padre Avelino de J e s u s da C o s t a é a m a i s c o n v i n c e n t e . Para ele, o t r a b a l h o de Manuel
da C u n h a M e n e z e s utilizara dados de u m r e c e n s e a m e n t o i n c o m p l e t o , realizado em
1 7 6 8 , f o r n e c e n d o por isso n ú m e r o s s u b e s t i m a d o s . 18

Q u e dizer dos n ú m e r o s d o r e c e n s e a m e n t o de j u n h o de 1 7 7 5 ? M e s m o conside-


rado c o m o u m dos mais c o m p l e t o s , a p r e s e n t a n d o " u m a análise detalhada da popu-
lação da cidade por sexo, idade e estado c i v i l " , ele t a m b é m é passível de críticas.
C o m efeito, o n ú m e r o de fogos a p o n t a d o p o r esse d o c u m e n t o é ligeiramente supe-
rior àquele de j a n e i r o do m e s m o a n o ( 7 . 3 4 5 c o n t r a 7 . 0 8 0 ) , m a s , contraditoriamen-
te, a população é estimada em 3 3 . 6 3 5 , o u seja, sete m i l h a b i t a n t e s a m e n o s ! Além
disso, c o m o apontou T h a l e s de Azevedo c o m m u i t a acuidade, o n ú m e r o de pessoas
casadas de um e outro sexo é e x a t a m e n t e o m e s m o para cada grupo étnico. Por
exemplo: para 1 . 6 9 7 h o m e n s b r a n c o s casados, há o m e s m o n ú m e r o de mulheres
brancas na mesma situação. C o m o o m e s m o se verifica c o m mulatos e negros, fica
implícita a mensagem de que os casamentos só se efetuavam dentro do m e s m o gru-
po de cor. Sabemos que isso é falso: casamentos inter-raciais ocorriam em todas as
camadas. Além disso, a soma dos subgrupos não corresponde ao total apresentado:
1 2 . 7 2 0 brancos, 4 . 2 0 7 mulatos livres, 3 . 6 3 0 negros livres e 1 4 . 6 9 6 negros e mula-
tos escravos, o que nos dá uma população de 3 6 . 2 5 3 pessoas e não as 3 3 . 6 3 5 pes-
LIVRO II - O PESO rx>s HOMENS 10"

soas a n u n c i a d a s ; ' ' Portanto, c difícil admitir que CSSC ce


censo seja mais seguro que
o u t r o s , anteriores ou c o n t e m p o r á n e o s .
Para terminar o século X V I I I , falla urna referencia ao recenseamento de 1 7 7 9 ,
sobre o qual ¡a tu comentarios. O s resultados nele apresentados provocam tanta
confusão q u a n t o OS demais. A tabela abaixo mostra que os números referentes à
população ( 3 9 . 2 0 9 pessoas) c aos fogos ( 6 . 6 1 7 ) são idénticos àqueles fornecidos por
Afonso Ruy para o a n o de 1 7 1 8 . Teria este autor c o n f u n d i d o as datas? É provável,
inclusive porque não revela sua fonte. Aliás, não tive condições de comprovar se-
quer a existência de um censo e m 1 7 1 8 , de m o d o q u e fui levada a eliminá-lo de
minhas analises. Além disso, e n q u a n t o o n ú m e r o de pessoas a u m e n t o u em relação
i s indicações d o censo de 1 7 7 5 , o c o n t r á r i o ocorreu c o m o número de fogos, ape-
sar de não haver n e n h u m a m e n ç ã o sobre m u d a n ç a nos critérios utilizados para
designá-los nessa data.

TABELA 10

POPULAÇÃO D E SALVADOR, S E G U N D O OS R E C E N S E A M E N T O S DE 1 7 0 6 A 1 8 0 7

Focos PESSOAS

CIDADE St'Bl'RBIOS CIDADE SUBÚRBIOS

4.296 21.601

I718 2
6.617 39.209 2.676

175? 6.719 37.543

1757* 4.814 34.442

1759- 6.782 40.263

1775* 7.080 2.091 40.922 16.093

1775 7
7.345 33.635

1779« 6.617 3.689 39.209 26.076

45-600

«07» 51.112
Fontes: (I> Arquivos do Arcebispado, d/WThales de Azevedo, Povoamento da cid.uie do Salvador, p. 185; (2) Afonso Ruy
nV Souza, História politica t administrativa da cidade do Salvador, p. 315; (3) Dom Romuaido Seixas, 1840, apud \ hücs
õV Azevedo, op rit. p. I 88; (4) Bra/. do Amurai. Recordações históricas, p. 256; Recenseamento feito a mando do Conde
dos Arcos, npud íhales de Azevedo, op. clt„ p. 189-190; (ó) Recenseamento feito a mando do governador Manuel da
Cunha Menezes (janeiro de 1775), apud'\ hales de Azevedo, op, cit., p, 191 192; (7) Recenseamento *ie 20 de junho de
1775, tf/tt/Tnales de Azevedo, op. cit., p. 193-194; (8) Recenseamento realizado a mando do governador Marques de
Valença, npud Diales de Azevedo, op. cit., p. 196 197; (9) Recenseamento eclesiástico, ^sWThaki At Aievedo. op. et.,
p. 219; (10) R^nsearnento feito a mando do Conde da Ponte, apud Y\\A\CS de A/cvcdo. op. cit., p. 218.

T e n d o a considerar plausível o número de 3 9 . 2 0 9 habitantes para 1 7 7 9 , pois


continuavam o êxodo populacional c m direção ao S e n ã o c o envio d c homens para o
Exército que combatia n o Sul. Além disso, excetuando-se curtos períodos de recupe-
ração, desde meados do século X V I I I a cidade permanecia vitimada pelo marasmo. A
economia baiana só retomou seu dinamismo a partir dc 1789. 20
O recenseamento
Bahia, S é c u l o XIX

eclesiástico de 1 8 0 5 a p o n t o u 4 5 . 6 0 0 habitantes, n ú m e r o que, dois anos depois, subiu


para 5 1 . 1 1 2 , segundo n o v o c e n s o , atribuído à iniciativa do C o n d e da Ponte. Em
1 8 5 5 , M a u r í c i o W a n d e r l e y , presidente da Província e futuro Barão de Cotejipe, orde
n o u trabalho s e m e l h a n t e , mas dele só pude e n c o n t r a r resultados referentes a bairros de
algumas paróquias da cidade. Esse r e c e n s e a m e n t o c o i n c i d i u c o m a epidemia de cólera
m o r b o , o que explica seu caráter parcial. Utilizei largamente seus resultados no Livro III
c o n s a g r a d o à f a m í l i a , pois traz i n f o r m a ç õ e s q u e , e m b o r a fragmentárias, são de
primeiríssima o r d e m .
F i n a l m e n t e , u m ú l t i m o r e c e n s e a m e n t o f o r n e c e u , para 1 8 7 0 , o n ú m e r o de 7 7 . 6 8 6
habitantes para a cidade e 3 6 . 2 0 6 para sua área rural. Utilizei todos esses dados com
muitas restrições, pois, além dos c e n s o s , p o s s u o t a m b é m algumas avaliações de outro
tipo, c u j o valor será d i s c u t i d o agora.

ANTES DE 1 8 7 2 : AVALIAÇÕES

As primeiras avaliações sobre a p o p u l a ç ã o de S a l v a d o r f o r a m fornecidas n o fim do


século X V I por portugueses e m i g r a d o s para a nova c o l ô n i a , a serviço da Igreja ou do
rei. Para i n f o r m a r seus c o n t e m p o r â n e o s , esses primeiros historiadores do Brasil escre-
veram 'tratados descritivos' q u e louvavam as qualidades e as riquezas da terra, fazendo
assim u m a p r o p a g a n d a útil à C o r o a , q u e tentava atrair c o l o n o s para povoar o territó-
rio. O p r i m e i r o deles foi o j e s u í t a F e r n ã o C a r d i m , q u e em 1 5 8 4 avaliou em cerca de
catorze mil os h a b i t a n t e s de S a l v a d o r , assim distribuídos: três mil portugueses, oito
mil índios assimilados e c o n v e r t i d o s ao c r i s t i a n i s m o e três mil a quatro mil escravos
oriundos da G u i n é . 2 1
T r ê s anos mais tarde, G a b r i e l Soares de Sousa escreveu que
Salvador contava c o m o i t o c e n t o s fogos, m a s n ã o especificou se se referia apenas às
habitações da p o p u l a ç ã o b r a n c a o u se i n c l u í a nesse cálculo as da já numerosa popula-
ção mestiça. S e j a c o m o for, se c o n s i d e r a r m o s u m a m é d i a de c i n c o pessoas por mora-
dia, haveria apenas q u a t r o m i l h a b i t a n t e s , m u i t o m e n o s d o que os números fornecidos
pelo padre C a r d i m . T e m o s q u e a d m i t i r , p o r t a n t o , q u e Gabriel Soares simplesmente
ignorou a população índia e negra da c i d a d e . 2 2

O ú l t i m o desses 'tratados descritivos' produzidos por portugueses n o século X V I I


é de autoria do franciscano V i c e n t e d o Salvador, chegado à Bahia na época da conques-
ta holandesa. P o r é m , sua História do Brasil 1500-1627nzo dá n e n h u m a informação
numérica sobre a população de S a l v a d o r . 23
A linha de tratados descritivos foi retoma-
da por viajantes estrangeiros que passavam dias o u meses na Bahia. Curiosamente,
mesmo quando descreviam m i n u c i o s a m e n t e as riquezas da cidade, a opulência de suas
construções, a importância de seu c o m é r c i o , os usos e costumes da multidão co on a
que ali habitava, não pareciam preocupados cm avaliar o tamanho da população oca .
Foi este o caso, por exemplo, do francês Pyrard de Lavai, que passou dois meses na
Bahia depois de uma longa estadia cm G o a ( í n d i a ) , ou do aventureiro inglês William
LIVRO II - O PESO DOS HOMENS 109

D a m p i e r , que, em 1 6 9 9 , limitou-se a escrever que Salvador era "the most considerable


Tourn in Brazil whether in respect ofthe Beauty of its Buildings, its Bulk, or its Trade and
Revenuf ("a cidade mais i m p o r t a n t e do Brasil, seja no que diz respeito à beleza de suas
construções, ao seu t a m a n h o ou ao seu c o m é r c i o e r e n d a s " ) . 24
Afora essas, não
c o n h e ç o n e n h u m a descrição de viajantes do século X V I I I sobre a Bahia e sua capital.
E n c o n t r e i , n o e n r a n t o , u m a avaliação populacional — além das de V i l h e n a e de R o c h a
Pita — feita por J o s é da Silva Lisboa, f u n c i o n á r i o real e futuro V i s c o n d e de C a i r u , que
chegou à Bahia em 1 7 7 9 e n o a n o seguinte e s t i m o u em c i n q ü e n t a mil habitantes a
população da cidade. C o n s c i e n t e de ter utilizado m é t o d o s ultrapassados para descrever
as paróquias da Bahia e sua p o p u l a ç ã o , V i l h e n a e s t i m o u e m sessenta mil os moradores
de Salvador e m 1 7 9 9 .
As avaliações feitas n o século X I X foram fantasiosas. Havia tendência a superes-
timar o n ú m e r o de h a b i t a n t e s , talvez p o r q u e os viajantes e cronistas visitassem sobre-
tudo os bairros mais p o p u l o s o s de u m a cidade b a r u l h e n t a e animada, que dava impres-
são de forte d i n a m i s m o . As densas zonas do p o r t o e do C e n t r o ofuscavam os bairros
inteira ou p a r c i a l m e n t e rurais, o n d e o p o v o a m e n t o era mais disperso. E n t r e 1 8 0 0 e
1 8 2 0 , os estrangeiros registravam setenta mil a 1 1 5 mil habitantes, números que
correspondiam ao d o b r o dos fornecidos pelos censos de 1 8 0 5 e de 1 8 0 7 !
As informações se t o r n a r a m mais coerentes a partir d o meio do século. O s via-
jantes dessa época ( 1 8 5 0 a 1 8 7 0 ) falavam em 1 4 0 mil a 1 8 5 mil habitantes, dimi-
nuindo assim a diferença entre as estimativas mais baixa e mais alta. M a s ainda aí
havia superestimação, resultante de imagens deformadas, miragens produzidas por
uma cidade orgulhosa e arrogante que, do alto, dominava um p o r t o o n d e ancora-
vam mil navios e prosperavam mil c o m é r c i o s . O s habitantes viviam m u i t o nas ruas,
onde fervilhava a presença de crianças ao lado de suas mães e de jovens que ofere-
ciam serviços.
Chegamos ao fim de u m a longa, porém necessária, exposição. Precisamos agora
fazer uma escolha, c o m p a r a n d o os n ú m e r o s dos recenseamentos e das avaliações,
todos igualmente arbitrários. Precisamos ser cautelosos. O s dados não sustentam aná-
lises muito precisas, mas p e r m i t e m deduzir ordens de grandeza. O número de 2 1 . 6 0 1
habitantes, fornecido cm 1 7 0 6 para a cidade de Salvador, m e parece plausível. C o m
efeito, no c o m e ç o do século X V I I I a maior parte da população da Capitania ocupava
as terras do R e c ô n c a v o , onde se desenvolvia a cultura da cana-de-açúcar, principal
atividade econômica regional. A observação de Sebastião da Rocha Pita — segundo o
qual cm 1 7 2 4 o Recôncavo abrigava três vezes mais gente do que a capital — pode
ser aplicada ao ano de 1 7 0 6 . Penso também que o número de 3 7 . 5 4 3 habitantes para
o ano de 1 7 5 5 concorda bastante bem com as demais informações disponíveis sobre o
deslocamento de pessoas para o interior, sobretudo cm direção às minas de ouro de
Minas Gerais ou da própria Bahia, descobertas (estas últimas) em 1 7 2 0 . Para o ano
de 1 7 7 5 , considero, pelas razões já explicadas, os números do recenseamento de I o
de
janeiro ( 4 0 . 9 2 2 habitantes) mais razoáveis que os do de julho.
110 BAHIA, SÉCULO XIX

D o s censos do c o m e ç o do século X I X , privilegio o de 1 8 0 5 , q u e a p o n t o u 4 5 . 6 0 0


habitantes. Q u a n t o às avaliações, os n ú m e r o s indicados são tão exorbitantes que re-
n u n c i o a utilizá-los. C a i n d o na a r m a d i l h a de fazer m i n h a própria estimativa, inclino-
m e a dizer — c o m p r u d ê n c i a e a d m i t i n d o grande i m p r e c i s ã o — que entre 1 8 1 0 e

1 8 7 0 a população de Salvador cresceu de c i n q ü e n t a mil para cem mil habitantes, apenas


um p o u c o mais do que t i n h a , na é p o c a , o v e l h o p o r t o francês de N a n t e s , por exemplo.

Dois RECENSEAMENTOS OFICIAIS: 1 8 7 2 E 1 8 9 0

C o m e c e m o s pelos grandes n ú m e r o s . E m 1 8 7 2 , p e l o c e n s o , o Brasil t i n h a 1 0 . 1 1 2 . 0 0 0


habitantes, dos quais 3 8 0 . 1 8 6 m o r a d o r e s n a P r o v í n c i a da B a h i a e 1 0 8 . 1 3 8 nas onze
paróquias de Salvador. E m 1 8 9 0 , o país t i n h a 1 4 . 3 5 3 . 9 1 5 h a b i t a n t e s , a Província
1 . 9 0 3 . 4 4 2 e as o n z e p a r ó q u i a s 1 4 4 . 9 5 9 .
O c e n s o de 1 8 7 2 — o p r i m e i r o c o m p l e t o — c o n s e r v o u as antigas divisões ecle-
siásticas que repartiam a c i d a d e e m p a r ó q u i a s , o q u e , aliás, n ã o deve causar surpresa:
as estruturas a d m i n i s t r a t i v a s do E s t a d o se a p o i a v a m nessas c i r c u n s c r i ç õ e s . 25
Como
mostra a tabela 1 1 , os resultados c o n f i r m a r a m o q u e havia s i d o sugerido pela tradição
e pelos r e c e n s e a m e n t o s feitos n o século p r e c e d e n t e : as p a r ó q u i a s mais povoadas eram
as d o c o r a ç ã o da C i d a d e A l t a — S é , S ã o P e d r o , S a n t ' A n n a e S a n t o A n t ô n i o Além do
C a r m o — e a da C o n c e i ç ã o d a Praia ( n a C i d a d e B a i x a , c o m p r e e n d e n d o o porto e
todas as instalações q u e dele d e p e n d e m ) . E s t a ú l t i m a era o c e n t r o da vida comercial e
financeira local n o século X V I I I , a b r i g a n d o 2 1 , 9 % d a p o p u l a ç ã o u r b a n a . M a s , em
1 8 7 2 , n ã o passava de 5 % . T o m a n d o c o m o r e f e r ê n c i a o a n o de 1 7 5 5 , a população das
paróquias semi-rurais de B r o t a s e de V i t ó r i a p r o g r e d i u r a p i d a m e n t e , passando, respec-
tivamente, de 1 . 0 6 3 para 5 . 9 0 0 e de 1 . 5 8 2 para 1 1 . 6 6 6 pessoas. E s t a última transfor-
m o u - s e assim e m u m a das p a r ó q u i a s m a i s p o p u l o s a s d a cidade, passando a abrigar
1 0 , 8 % dos h a b i t a n t e s .

A c o m p o s i ç ã o da p o p u l a ç ã o p o r sexo i n d i c a v a u m a ligeira v a n t a g e m dos homens,


mas não a p o n t o de a p o n t a r - s e u m d e s e q u i l í b r i o , l e v a n d o - s e e m c o n t a que se tratava
de uma cidade cheia de imigrantes e organizada e m t o r n o de u m a estrutura social
escravista. I n f e l i z m e n t e , n o q u e diz respeito a S a l v a d o r , n ã o t e n h o a repartição por
faixa etária, que consegui o b t e r para a Província. O s escravos concentravam-se sobretudo
nas paróquias comerciais, c o m o C o n c e i ç ã o da Praia e Pilar, ou habitadas pela parte
mais abastada da p o p u l a ç ã o , c o m o S é , S ã o Pedro, V i t ó r i a , S a n t o A n t ô n i o Além do
C a r m o e Penha. Esta, aliás, era u m a paróquia de vilegiatura o u de residências de verão.
O recenseamento de 1 8 9 0 , o primeiro da República, não renovou a distinção
entre h o m e n s livres e escravos, pois dois anos antes fora abolida a escravidão. Em re-
lação a 1 8 7 2 , a população total a u m e n t o u 3 4 % , e a participação de cada paróquia
nesse total permaneceu p r a t i c a m e n t e a m e s m a , provavelmente porque, depois da
Abolição, os escravos não mudaram seus domicílios. N a relação entre sexos, no entanto,
LIVRO II - O PESO DOS HOMENS 111

TABELA 11

P O P U L A Ç Ã O DAS PARÓQUIAS D E SALVADOR, 1872

PARÓQUIAS POPULAÇÃO LIVRE POPULAÇÃO ESCRAVA TOTAL

HOMENS MULHERES HOMENS MULHERES

Sé 5.874 7.139 1.105 993 15.111

São Pedro 5.989 6.408 1.121 1.225 14.743


Sant*Anna 9.447 8.047 296 164 17.954

Conceição da Praia 3.330 1.010 415 735 5.490

Vitória 5.493 3.935 989 1.249 11.666

Passo 1.602 1.596 210 228 3.636

Pilar 3.868 3.569 490 419 8.346

Santo Antônio Além do Carmo 7.257 8.246 515 595 16.613

Brotas 3.490 1.006 317 277 5.090

Mares 1.828 1.750 84 60 3.722

Penha 2.341 2.412 543 471 5.767

Total 50.519 45.118 6.085 6.416 108.138

Fonte: Recenseamento de 1872, p. 508-514.

TABELA 12

P O P U L A Ç Ã O DAS P A R Ó Q U I A S D E SALVADOR, 1890

PARÓQUIAS HOMENS MULHERES TOTAL

Sé 9.941 11.059 20.550

São Pedro 9.669 10.381 20.050

Sant*Anna 10.940 13.927 24.417

Conceição da Praia 4.262 3.204 7.466

Vitória 7.180 8.685 15.865

Pasto 2.186 2.833 5.019

Pilar 5.927 5.423 11.350

•Santo Antônio Além do Carmo 10.570 12.023 22.593

Brota* 2.841 3.126 5.967

Mares 2.055 2.208 4.263

Penha 3.167 4.252 7.149

Total 67.838 77.121 144.959

Ponte: Katia M. de Queirós Mittoto,Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX, p. 135.
BAHIA, SÉCULO X I X
112

apareceu u m a m u d a n ç a de t e n d ê n c i a , para m i m inexplicável: o n ú m e r o de mulheres


passou a ser 1 2 % superior ao de h o m e n s .
A análise do r e c e n s e a m e n t o d e 1 8 9 0 dá m a r g e m a algumas dúvidas. E m relação
aos números de 1 8 7 2 , o p e r c e n t u a l de c r e s c i m e n t o p o p u l a c i o n a l teria sido muito
desigual para quatro das o n z e p a r ó q u i a s d a c i d a d e : 3 8 % e m Passo, 2 4 % na Penha
1 7 , 2 % em Brotas e 1 4 , 5 % e m M a r e s . M a s nas sete paróquias restantes Sé, São
Pedro, S a n t ' A n n a , C o n c e i ç ã o da Praia, Pilar, S a n t o A n t ô n i o A l é m d o C a r m o e Vitória
( j u s t a m e n t e as mais i m p o r t a n t e s , o a u m e n t o relativo c a p t a d o foi exatamente igual
( 3 6 % ) . P r o p o n h o três hipóteses para explicar essa u n i f o r m i d a d e : não foi realizado
recenseamento a l g u m nessas sete p a r ó q u i a s , m a s s i m a m e r a aplicação de um percentual
ideal sobre n ú m e r o s j á c o n h e c i d o s ; foi realizado u m l e v a n t a m e n t o ruim e inutilizável
levando os recenseadores a usar o e x p e d i e n t e a c i m a a p o n t a d o ; o u n ã o foram levados
em c o n t a os limites de c a d a p a r ó q u i a , de m o d o q u e o total e n c o n t r a d o teve que ser
repartido de f o r m a p r o p o r c i o n a l e n t r e cada u m a , j á q u e todas aparentavam ter o
m e s m o r i t m o de c r e s c i m e n t o .
V ê - s e , mais u m a vez, q u e avaliações e r e c e n s e a m e n t o s de épocas distintas não
p e r m i t e m u m a r e c o n s t i t u i ç ã o isenta de dúvidas s o b r e a e v o l u ç ã o demográfica de Sal-
vador. M e s m o assim, u s a n d o esses dados i m p r e c i s o s , tentei c h e g a r a ordens de gran-
deza e evidenciar adaptações q u e t o r n a r a m possível a c o n v i v ê n c i a de pessoas com
origens e estatutos legais t ã o d i f e r e n t e s .

ENSAIO DE AVALIAÇÃO PARA O SÉCULO X I X

N u m a primeira etapa, tentei i d e n t i f i c a r o c r e s c i m e n t o anual da população de Salvador


entre 1 8 0 5 e 1 8 7 2 para, em seguida, f o r m u l a r algumas hipóteses sobre o dinamismo
dessa população e n t r e 1 8 0 0 e 1 8 9 0 . Parti das seguintes premissas: os dados utilizados
estão corretos; o percentual de a u m e n t o da p o p u l a ç ã o se m a n t e v e estável; o impacto
das epidemias, guerras e t u m u l t o s sociais foi u n i f o r m e durante o período em questão.
O s n ú m e r o s de habitantes de Salvador em 1 8 0 5 (46A4Q) e em 1 8 7 2 ( 1 0 8 . 1 3 8 )
foram, respectivamente, meus p o n t o s de partida e de chegada, q u e definiram um
crescimento demográfico total de 5 7 , 8 % , equival e n t e a pouco mais de 1 % ao ano.
C o m o vimos, as avaliações feitas n o século X I X pelos visitantes estrangeiros se afasta-
vam muito desses n ú m e r o s , oscilando, por e x e m p l o , de setenta mil a 115 mil habitan-
tes entre 1 8 1 2 c 1 8 2 0 , quando não houve guerras, epidemias ou tumultos sociais. As
evidências não referendam essas estimativas, indicando que, na época, a população
local estava entre 4 9 mil c 5 5 mil habitantes.
Sabe-se que nenhum contingente populacional cresce o u decresce de maneira
uniforme durante um longo período. Oscilações de preços, guerras, pestes, secas,
condições sanitárias c outros fatores influenciam a demografia de uma cidade, cuja
evolução é formada de saltos, regressões e períodos de estabilização. Para aprofundar
LIVRO I I - O PESO DOS HOMENS 113

essa dinâmica n o limite dos dados disponíveis» parti dos números referentes à m o r t a -
lidade, registrados nas o n z e paróquias de Salvador ao longo de t o d o o século X I X . 2 6

Calculei as médias anuais de ó b i t o s , por períodos de dez anos. a partir de três hipóte-
ses: os dados são corretos, o n ú m e r o de óbitos é proporcional ao de habitantes, e o
efeito das endemias e epidemias n ã o varia de uma para outra década.

TABELA 13

M Í D I A S A N U A I S DE M O R T E S E M C A D A D É C A D A (ESTIMATIVAS)

tSOO-1809 1.391 1830-1839 1.911 1860-1869 2.484

1S10-1S19 1.775 1840-1849 1.921 1970-1879 2.650

1820-1829 1.778 1850-1859 2.756 1880-1889 2.664

Ponte Johildo Lopes de Athayde, IM ville de Salvador au XIX siècle,


e
p. 363.

N o t e - s e q u e nas décadas de 1 8 1 0 e 1 8 5 0 o n ú m e r o de ó b i t o s a u m e n t o u brusca-


mente. S u g e r i m o s duas possibilidades. A primeira se refere a um possível a u m e n t o
populacional, q u e traria c o n s i g o mais m o r t e s . N a década de 1 8 1 0 teriam chegado
numerosos imigrantes e u r o p e u s , s o b r e t u d o portugueses, depois que os exércitos fran-
ceses deixaram Portugal? Q u a n t o s escravos africanos a mais ou a m e n o s aportaram
então? T e r i a havido m i g r a ç õ e s , para a cidade, de c a m p o n e s e s cujas atividades agrícolas
estavam em crise, e m f u n ç ã o da c o n j u n t u r a ou de c o n d i ç õ e s climáticas desfavoráveis? 2,

Para a outra década, as m e s m a s explicações p o d e m ser tentadas, c o m uma diferença.


Prevista e anunciada c o m a n t e c e d ê n c i a , a a b o l i ç ã o do tráfico em 1 8 5 0 foi precedida de
forte importação de escravos africanos.

Houve q u e d a nas atividades agrícolas e d e s l o c a m e n t o de população para a capital,


seja pelo marasmo da c u l t u r a açucareira, seja pela ocorrência de uma das mais longas
secas da história da B a h i a e n t r e 1 8 5 7 e 1 8 6 0 . Essa não foi a única provação. A década
foi marcada t a m b é m por duas epidemias difíceis de debelar: febre amarela em 1 8 5 0
(trazida pelo brique Brasil proveniente de N o v a O r l e a n s ) e c ó l e r a - m o r b o em 1 8 5 5
(trazido do Pará pelo navio Imperatriz). N a verdade, o primeiro surto de febre amarela
na Bahia manifestou-se cm 1 8 4 9 . D e b e l a d o s o m e n t e n o ano seguinte, ressurgiu com
força total em 1 8 5 6 , a n o c m q u e o c ó l e r a - m o r b o t a m b é m grassou. A partir de 1 8 5 8 ,
cia tornou-se e n d ê m i c a , c o m manifestações que atingiam sobretudo os marinheiros
cm 1 8 6 1 , 1 8 6 2 , 1 8 6 4 , 1 8 7 3 , 1 8 7 5 c I 8 7 6 - 1 8 7 9 . A epidemia não se limitou à cidade
dc Salvador: se alastrou por t o d o o R e c ô n c a v o c até uma parte do Agreste, pois
dizimou as populações de J c r c m o a b o c Feira dc Santana. S ó foram poupadas as regiões
do Sertão c do Litoral S u l - 2 8

A segunda possibilidade para explicar aquele a u m e n t o da mortalidade é a de que,


nesses dois períodos, as condições sanitárias tenham piorado muito. Não me parece o
caso, até porque, na época das epidemias, houve mais precauções c esforços higieniza-
dorei para prevenir os contágios.
BAHIA, S É C U L O X I X
114

Pondo de lado essas duas variações bruscas, no período 1820-1840 ocorreu um


decréscimo relativo da população, comparativamente ao período 1850-1890, no qual,
apesar das duas epidemias mortíferas, a população se manteve estável e até experimen-
tou lenta progressão. Vê-se, assim, como a reconstituição linear de um contingente
populacional pode ser perigosa quando os dados não são rigorosos. Nesses casos, é
melhor contentar-se com avaliações. Continuarei simplesmente a estimar que, entre
1810 e 1870, a população da cidade oscilou entre cinqüenta mil e cem mil habitantes.
Apesar de suas evidentes lacunas, os recenseamentos oficiais de 1872 e 1890 conti-
nuam como meu único ponto de referência para a evolução da população de Salvador
no último terço desse século. Em 1872, a cidade teria cerca de 108.138 habitantes e,
em 1890, cerca de 144.959. Embora esse crescimento não tenha sido linear — sofreu
as conseqüências das crises, doenças, rigores climáticos —, continuou a existir, em
paralelo ao aumento populacional da própria Província.
CAPÍTULO 8

POPULAÇÃO FLUTUANTE
E POPULAÇÃO MESTIÇA

Resta saber que c o n t i n g e n t e s não eram registrados por essas contagens de população.
Q u e m eram, c qual seu número?
Em primeiro lugar, e x c l u í a m - s c os ' i n o c e n t e s ' , 'párvulos' ou 'pagãos', ou seja,
crianças que ainda não tinham atingido sete anos, a idade da confissão. Depois, os
'agregados e suas famílias, que habitavam nos lares de seus senhores e, nas cidades,
1

eram muitas vezes assimilados aos empregados d o m é s t i c o s , e m b o r a gozassem de um


status superior. 1
Por fim, os recenseamentos excluíam os migrantes, que às vezes resi-
diam na cidade durante alguns meses, r e t o r n a n d o cm seguida para a região de origem.
Em compensação, moradores de Salvador em viagem t a m b é m não eram levados cm
conta. Eis aí um problema: não havia m o t i v o para a d m i t i r a priori que os dois grupos
se compensassem n u m e r i c a m e n t e .

Tudo leva a crer que a população flutuante era m u i t o i m p o r t a n t e . Chegava-se à


capital por via marítima (a b o r d o de navios ou de embarcações de pequeno porte) ou
terrestre (a partir do R e c ô n c a v o , p r ó x i m o ou distante, c do S e r t ã o ) . Funcionava em
Salvador o maior mercado de escravos do Nordeste brasileiro, c os negros para ali
trazidos, oficial ou clandestinamente, às vezes permaneciam muito tempo antes de
serem v e n d í a o s . 2
Podemos tentar avaliar uma parte dessas populações?
O s dados sobre marinheiros c navegantes são escassos. Praticamente todos OS
registros do porto de Salvador n o século X I X foram destruídos, c o s que restam não
sao homogéneos. * Também nesse caso, meus melhores informantes foram o s viajantes
estrangeiros, CUJOS relatos puderam, às vezes, ser confrontados com dados oficiais. N o
início do século X I X o inglés T h o m a s l.iiulley calculou que, por dia, oitocentas em-
bárcameles — o r i u n d a s desde P o r t o Seguro, no Litoral Sul, até Rio Real, no Norte —
aportavam em Salvador para vender produtos. Seu testemunho coincide com o de
4

urna centena de outros viajantes, havendo aqueles que, mais para o fim do século,
estimaram em mais de mil o número de embarcações de cabotagem que aportavam

115
BAHIA, SÉCULO X I X
116

todos os dias na c a p i t a l . Se cada embarcação trouxesse dois o u três marinheiros, cerca


5

de dois mil homens chegariam todos os dias por essa via. E n c o n t r e i os seguintes
números para as entradas e saídas de pequenas e m b a r c a ç õ e s entre 1 8 5 1 e 1 8 5 4 , Q U E

resultam em médias anuais de 1.021 entradas de e m b a r c a ç õ e s e m Salvador, c o m 8.703

tripulantes.

TABELA 14

NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM
E N T R A D A S E SAÍDAS D E E M B A R C A Ç Õ E S D O P O R T O D E S A L V A D O R (1851-1854)

ANOS ENTRADAS TONELAGEM TRIPULAÇÃO SAÍDAS TONELAGEM TRIPULAÇÃO

1851-1852 1.153 109.121 8.505 933 93.603 8.157

1852-1853 1.068 131-032 10.120 986 104.355 9.347

1853-1854 842 98.750 7.485 804 87.036 7.090

Fonte: A inserção da Bahia na evolução nacional* p. 2 0 1 . Para o período posterior a 1 8 5 4 as entradas e saídas são dadas apenas
em tonelagem, impedindo avaliação semelhante. Cf. Livro VI.

U m a parte muito significativa do tráfego provavelmente iludia a administração


portuária, de m o d o a escapar das taxas q u e i n c i d i a m sobre as mercadorias transporta-
das. Além disso, a coleta desses dados não levava e m c o n t a a duração da estadia, nem
a distância do p o n t o de ancoragem a o p o r t o . N a cidade o u e m suas cercanias, era
muito fácil puxar u m barco até a areia — m u i t o s pescadores o fazem até hoje — em
algum ponto de praias, cabos e enseadas que s o m a m dezenas de quilômetros.
Para a navegação de longo curso q u e ligava Salvador a outros portos, brasileiros ou
não, só obtive números referentes à tonelagem, c o m exceção dos relativos a 1868,
1 8 6 9 e ao primeiro semestre de 1 8 7 0 , para os quais foi possível quantificar as embar-
cações que usavam bandeira estrangeira. 6
E m 1 8 6 8 e 1 8 6 9 , entraram n o porto de
Salvador 4 6 4 navios, c o m 9 . 3 6 5 tripulantes, e saíram 4 3 0 navios, c o m 8 . 9 7 3 tripulan-
tes. Estamos longe dos números fornecidos pelo almirante M o u c h e z , para quem 4 6 . 5 1 6
marinheiros teriam entrado em Salvador e m 1 8 7 3 e 1 8 7 4 . 7

Creio que uma média de dois mil a 2 . 2 0 0 marinheiros vinham diariamenre a


Salvador trabalhar, buscar alimentos ou simplesmente passear, aproveitando a anima-
ção dessa cidade alegre, amada por Iemanjá, q u e oferecia tantas igrejas e capelas onde
se podia invocar a Virgem, protetora dos h o m e n s do m a r . Mas é preciso não esquecer
8

que o número c o tipo de embarcações variaram no decorrer do século, sobretudo no


tocante aos navios de longo curso. Eles traziam verdadeiras tropas de marinheiros e
oficiais que, às vezes, no caso dos grandes veleiros que dominaram os mares até 1860,
ah permaneciam durante semanas ou meses. Esse povo do mar se alimentava e fazia
provisões no mercado local. Ademais, utilizava os serviços de saúde pública, sobretudo
durante epidemias, às vezes introduzidas na cidade pelos próprios navios, que, além de
homens, traziam ratos, como aliás é dito com freqüência, e com todas as letras, nas
Falas anuais dos presidentes da Província perante as Assembléias Legislativas. 9
LIVRO I I - O PESO DOS HOMENS I 17

Além dos m a r i n h e i r o s , havia os migrantes que, vindos do interior, chegavam


a
Salvador por terra. C o l o c a - s e a m e s m a questão: qual seu número? N a primei ra me-
tade do século, q u a n d o as vias de c o m u n i c a ç ã o eram mais precárias, poucos podiam
refiigiar-se na capital d u r a n t e períodos de secas prolongadas ou de chuvas excessi-
vas. 1 0
Por isso, n ã o são sequer m e n c i o n a d o s na d o c u m e n t a ç ã o que possuo, essen-
cialmente os relatórios anuais dos presidentes da Província enviados à Assembléia
Provincial, regularmente p u b l i c a d o s a partir de 1 8 4 8 . M a s , a partir do fim da déca-
da de 1 8 6 0 , cada vez mais os deserdados do S e r t ã o t o m a r a m o r u m o da capital. O s
relatórios dos presidentes da P r o v í n c i a f o r n e c e m i n f o r m a ç õ e s abundantes sobre es-
ses r e t i r a n t e s , 11
q u e c h e g a v a m despossuídos e enfraquecidos, trazendo problemas a
Salvador. Q u a n d o as secas a t i n g i a m regiões p r ó x i m a s do litoral — o Agreste e até
algumas partes d o R e c ô n c a v o — , os agricultores n ã o hesitavam em refugiar-se na
cidade, acolhidos por parentes, à espera de dias melhores. M a s não só eles: em 1 8 7 8 ,
por e x e m p l o , 7 8 0 retirantes cearenses foram abrigados n o Arsenal de M a r i n h a . A
partir de e n t ã o , as i n f o r m a ç õ e s sobre esse f e n ô m e n o se multiplicaram, mas os d o c u -
mentos oficiais deixaram de p u b l i c a r dados precisos. Pode-se avaliar, m e s m o assim,
que o n ú m e r o desses refugiados n u n c a tenha ultrapassado algumas centenas num
mesmo a n o , mas sua p r e s e n ç a influía na vida da cidade, inclusive n o que dizia res-
peito ao preço dos a l i m e n t o s .

Avaliemos agora o u t r o g r u p o de h o m e n s e mulheres que escapava totalmente


dos r e c e n s e a m e n t o s : os 'escravos de passagem', que em certos anos foram m u i t o nu-
merosos. S u b a l i m e n t a d o s nos navios negreiros, esses negros em trânsito, que ainda
não tinham s e n h o r n o Brasil, precisavam receber b o a nutrição para que fossem c o -
locados à venda c o m aparência a d e q u a d a . 1 2
Havia ainda os empregados domésticos
que a c o m p a n h a v a m o d e s l o c a m e n t o dos senhores de e n g e n h o q u a n d o estes vinham
até a cidade c o m p r a r novos escravos. N o s períodos e m que a produção agrícola era
menos intensa, os rendeiros t a m b é m afluíam à capital, a c o m p a n h a d o s de seus pou-
cos escravos, p r o c u r a n d o e n t ã o ocupar-se de p e q u e n o s ofícios lucrativos, c o m o a
construção de imóveis.

O n ú m e r o desses escravos de passagem, que vinham a Salvador trabalhar ou servir


a seus senhores, t a m b é m não passava de algumas centenas. M a s o mercado local de
trabalho não era m u i t o grande. Assim, essa m ã o - d e - o b r a concorria c o m a livre, cada
vez mais numerosa n o século X I X . Além disso, os escravos continuaram chegando da
África cm grande n ú m e r o até a abolição oficial do tráfico, em 1 8 5 0 , e mesmo depois
dela, cm desembarques c l a n d e s t i n o s . 13
É impossível calcular c o m precisão o número
de escravos importados para a Bahia ao longo do século X I X , mas é possível fazer
avaliações interessantes. Identifico três períodos. O primeiro é o do tráfico legal e
irrestrito ( 1 8 0 0 - 1 8 1 5 ) , para o qual temos dados — às vezes anuais, às vezes mais
espaçados — que permitem construir m é d i a s . 14
Entre 1 8 0 0 e 1 8 1 0 , por exemplo,
pode-se chegar a uma média anual de 7 . 5 0 0 a 7 . 7 0 0 e s c r a v o s ; 15
entre 1811 e 1 8 1 4 ,
essa média caiu para 5 . 5 7 7 a 5 . 7 0 0 . 1 6
118 BAHIA, S É C U L O X I X

N o s e g u n d o p e r í o d o ( 1 8 1 5 - 1 8 3 0 ) , o t r á f i c o a i n d a era legal, m a s estava limitado


ao sul d o E q u a d o r . Para m o n t a r a t a b e l a a b a i x o , usei f o n t e s d i f e r e n t e s , devidamente
discriminadas.
As fontes q u e possuo se c o m p l e t a m e se c o n t r o l a m m u t u a m e n t e . S e g u n d o Goes
C a l m o n , nesse p e r í o d o a m é d i a anual d e i m p o r t a ç ã o foi d e 7 . 0 2 3 africanos; segundo
Pierre V e r g e r ( q u e utiliza dados c o l e t a d o s n o F o r e i g n O f f i c e d e L o n d r e s , o n d e faltam
registros d e c i n c o a n o s ) foi d e 6 . 1 9 6 . 1 7
Esses n ú m e r o s d e v e m estar b e m perto da
realidade. A s i m p o r t a ç õ e s c a í r a m e n t r e 1 8 2 3 e 1 8 2 9 — a n o s d e luta pela independên-
cia da B a h i a , m a r c a d o s p o r t u m u l t o s sociais e pela d e s o r g a n i z a ç ã o d o c o m é r c i o mas
subiram m u i t o às vésperas das novas restrições i m p o s t a s pelos ingleses a essa atividade.
N o terceiro p e r í o d o ( 1 8 3 1 - 1 8 5 1 ) o t r á f i c o foi s e m i c l a n d e s t i n o , isto é, autorizado
pelo Brasil m a s p r o i b i d o pelos ingleses e seus a l i a d o s . N ã o t e m o s dados relativos à
década de 1 8 3 0 . Pierre V e r g e r e Leslie B e t h e l e s t i m a m q u e o c o r r e u u m lento (mas
c o n s t a n t e ) c r e s c i m e n t o das i m p o r t a ç õ e s n o p r i m e i r o q u a r t o d o século X I X , seguido
p o r u m a aceleração n o s a n o s 1 8 2 7 - 1 8 2 9 e u m a e s t a b i l i z a ç ã o a t é 1 8 3 5 . E m seguida,
elas c r e s c e r a m d e f o r m a n í t i d a , a t é a t i n g i r o p o n t o m á x i m o e n t r e 1 8 4 6 e 1 8 4 9 .

S e e x c l u i r m o s os n o v e a n o s ( 1 8 3 1 - 1 8 3 9 ) para os q u a i s n ã o e n c o n t r a m o s nenhum
d a d o e utilizarmos para o p e r í o d o 1 8 0 1 - 1 8 1 5 o s n ú m e r o s j á a p r e s e n t a d o s , registramos
a entrada de 2 7 7 . 6 8 1 a f r i c a n o s n o p o r t o d e S a l v a d o r d u r a n t e a p r i m e i r a metade do
século X I X . C o m o v i m o s , eles n ã o e r a m p o s t o s à v e n d a i m e d i a t a m e n t e , pois sua
aparência e saúde t i n h a m m u i t a i m p o r t â n c i a n a h o r a d e regatear o p r e ç o . O cativo era
lavado, tratado e c o l o c a d o e m r e g i m e d e e n g o r d a , r e c e b e n d o carne-seca, peixe seco,
farinha de m a n d i o c a , b a n a n a s e laranjas. A d u r a ç ã o dessa e t a p a d e p e n d i a da demanda
e das c o n d i ç õ e s de saúde d o s negros, m a s e r a f r e q ü e n t e q u e eles passassem vários meses
nos entrepostos c o n s t r u í d o s pelos c o m e r c i a n t e s para esse fim. 18
C o n s t i t u í a - s e assim

TABELA 15

NÚMERO DE AFRICANOS CHEGADOS À BAHIA, 1815-1830


AMO (D (2) (3) ANO (D (2J (3)

1815 6.907 6.750 - 1823 2.302 2,672 2.744

1816 4.139 5.376 - 1824 2.994 7.137 2.449

1817 5.802 6.070 - 1825 4.259 3.840

1818 8.706 - - 1826 7.858 4.090

1819 7.033 - — 1827 10.186 2.941

1820 7.722 - IH28 8.127 -


1821 6.689 - 1829 12.808 14.623

1822 8.418 7.656 8.825 1830 8.425 7.008


_—I——
Fonte*: (I) Francino Marques Goa < almon. Vida econômica-finam eira da Bahia, p. 69-70. Esre trabalho foi escrito J
cm

e publicado em 1925. com dado* extraído* de Mfgud Calmon du Pin e Almeida (Marques de Abrantes). f ^bJeaJfnt0S
tma, s

d* açú<ar. de 1834. (2) e 0 ) Pierre Verger. /lux et reflux de ia traite dei negra entre legolfe du Benin et Bahia de lodos os ta
du XVir au XIX uecU, p. 665.
LIVRO I I - O PESO DOS HOMENS 119

TABELA 16

NÚMERO D E AFRICANOS C H E G A D O S À BAHIA, 1 8 4 0 - 1 8 5 0

ANO (D (2) ANO (D (2) ANO (D (2)


1840 1.675 1.413 1844 6.201 6.501 1848 7.393 7.299
1841 1.410 1.470 1845 5.582 5.582 1849 8.401 8.081
1842 2.360 2.520 1846 7.824 7.354 1850 9.102 9.451
1843 3.004 3.111 1847 11.769 10.064 1851 785
Fontes: ( I ) Leslie Bethell, A abolição do tráfico de escravos no Brasil, p. 369. (2)Pierre Verger, Flux et refluxde la traite des m
entre le golfe du Benin et Bahia de Todos os Santos du XVIF au X!)C siècle* p. 666.

uma população m a r g i n a l , n u t r i d a p e l o m e r c a d o da cidade, c o m o as outras populações


de passagem: m a r i n h e i r o s , n a v e g a n t e s , refugiados e viajantes de t o d o tipo.

SANGUES MISTURADOS: MITOS E REALIDADES

E m todas as c a m a d a s sociais d e Salvador e n c o n t r a m - s e evidentes traços de miscigena-


ção. N o fim do século X V I , c o m o v i m o s , o j e s u í t a F e r n ã o C a r d i m calculou a popu-
lação local e m três m i l p o r t u g u e s e s , q u a t r o m i l negros e o i t o m i l índios catequizados.
N ã o e s t i m o u a p o p u l a ç ã o m e s t i ç a , f o r m a d a p o r m a m e l u c o s , m u l a t o s cafuzos e mulatas
que lá viviam. N ã o n o s e s q u e ç a m o s de q u e o 'glorioso antepassado' D i o g o Álvares, o
C a r a m u r u , p r i m e i r o h a b i t a n t e português da B a h i a , tivera u m a prole m u i t o numerosa
de filhos m a m e l u c o s legítimos e bastardos, f o r m a d a j á e m 1 5 4 9 , q u a n d o chegara o
primeiro g o v e r n a d o r . 19
A p e d i d o do j e s u í t a M a n o e l da N ó b r e g a , a C o r o a fizera u m a
tentativa para moralizar a vida devassa q u e seus súditos levavam n a Bahia, enviando
para Salvador dezoito jovens órfãs, protegidas da rainha. M a s a experiência terminara
em 1 5 5 8 . 2 0
D u r a n t e t o d o o p e r í o d o c o l o n i a l , a imigração portuguesa foi essencial-
mente masculina, c o n t r i b u i n d o para difundir a miscigenação.
São escassos os dados q u e consegui coletar sobre a c o m p o s i ç ã o racial de Salvador
no século X I X . N o q u e diz respeito à repartição p o r c o r , é possível comparar os dados
do recenseamento de 1 8 0 8 c o m os de 1 8 7 2 .

TABELA 17

REPARTIÇÃO DA POPULAÇÃO BAIANA POR C O R , 1808 E 1872 (%)

P. M u i A Ç À o LIVRH POPULAÇÃO ESCRAVA

BRAN» «>s INDIOS H CABOCLOS NEGROS B MULATOS NEGROS E MULATOS

1808 20.4 1.3 43.0 35,3

1872 24.0 3.6 60,2 12,2

Fontes: Recenseamentos de 1 8 0 8 e de 1 8 7 2 .
120 BAHIA, S É C U L O XIX

Apesar dos esforços de ' b r a n q u e a m e n t o ' , o c o n t i n g e n t e b r a n c o progrediu pouco


em relação ao de c a b o c l o s ( c u j o n ú m e r o triplicou) e, s o b r e t u d o , ao de negros e mula
tos livres, que passaram de 4 3 % para 6 0 % do total de habitantes. A população da
Província era m e s t i ç a , c o m presença m i n o r i t á r i a d o e l e m e n t o b r a n c o .
S ã o escassos os dados disponíveis sobre a distribuição racial dos habitantes de
Salvador. Por não ter e n c o n t r a d o o d o c u m e n t o q u e apresenta os resultados da chama-
da Indagação d o C o n d e da P o n t e , n ã o adotei seus n ú m e r o s — citados por diversos
historiadores — e m m i n h a s análise. S e g u n d o esse r e c e n s e a m e n t o , encomendado em
1 8 0 7 por J o ã o de S a l d a n h a da G a m a M e l l o e T o r r e s , 6 o
C o n d e da Ponte e nono
governador e capitão-geral da B a h i a , havia ali 2 8 % de m u l a t o s e 5 2 % de negros em
u m a população de 5 1 . 1 1 2 p e s s o a s . 21

O p e r c e n t u a l de m u l a t o s m e parece p e q u e n o e m relação àquele atribuído ao


c o n j u n t o da C a p i t a n i a e m 1 8 0 8 ( 4 3 % , só e n t r e os h o m e n s livres). A capital teria
m e n o s mestiços? N ã o é m u i t o verossímil, ainda mais q u e a cidade abrigava uma
grande c o n c e n t r a ç ã o de p o p u l a ç ã o alforriada, c o m seus descendentes. N ã o houve
distinção e n t r e livres e escravos, p r o p o r c i o n a l m e n t e u m p o u c o mais numerosos na
cidade que n o resto d a C a p i t a n i a ( 2 0 , 4 % ) . O r e c e n s e a m e n t o de 1 8 7 2 registrou uma
população de 1 0 8 . 1 3 8 h a b i t a n t e s , assim dividida: 3 0 , 9 % de b r a n c o s , 4 3 % de mulatos,
2 3 , 5 % de negros e 2 % de c a b o c l o s . Levando-se e m c o n t a apenas a população livre
( 9 5 . 6 3 7 h a b i t a n t e s ) , então os percentuais eram os seguintes: 3 5 , 2 % de brancos, 4 4 , 4 %
de mulatos, 1 8 , 2 % de negros e 2 , 2 % de c a b o c l o s . N o s dois casos, os brancos represen-
tavam 1/3 da população da c i d a d e . O i t e n t a e sete anos depois, em 1 9 5 1 , entre os
quatrocentos mil habitantes da cidade, 3 3 % eram brancos, 4 7 % mestiços e 2 0 %
negros, 22
apesar da imigração se ter t o r n a d o t o t a l m e n t e branca.
J á vimos c o m o essa população se repartia pelas onze paróquias locais. O percentual
de escravos era p e q u e n o ( 1 1 , 6 % ) . E m b o r a fossem e n c o n t r a d o s e m toda parte —
inclusive n u m a paróquia c o m o a de M a r e s , r e c é m - c r i a d a — , eles se concentravam nas
paróquias mais antigas, situadas n o c o r a ç ã o da cidade e mais povoadas: Sé, São Pedro.
Sant'Anna e S a n t o A n t ô n i o Além do C a r m o . Havia duas exceções: a paróquia da
C o n c e i ç ã o da Praia, u m a das mais antigas da cidade, mas de função eminentemente
comercial; c a da V i t ó r i a , de p o v o a m e n t o m u i t o recente — subúrbio da cidade até o
fim do século X V I I I — , que se tornara o bairro residencial das altas camadas da
sociedade c ocupava o q u i n t o lugar entre as onze paróquias da cidade. Nota-se, cm
qualquer caso, um certo equilíbrio entre os sexos, c o m os homens prevalecendo ligei-
ramente entre a população livre ( 5 2 , 8 % ) e as mulheres entre os escravos ( 5 1 , 3 % ) .
Evidentemente, o equilíbrio global entre os dois sexos não implica que essa relação
fosse a mesma cm todas as faixas etárias.
A proporção típica encontrada entre os escravos nas plantações (dois homens para
cada mulher) não se reproduzia na cidade, onde as escravas eram utilizadas para todo
tipo de serviço (inclusive c o m o auxiliares nas construções), com exceção do de trans-
portes e de alguns ofícios artesanais. Havia preferência pelo trabalho da mulher, que
LIVRO II - O PESO DOS HOMENS 121

podia fazer sem problemas serviços domésticos e serviços 'de ganhos'; os homens eram,
em geral, m e n o s versáteis, incapazes de alternar, por exemplo, um serviço rude c o m o
o de transportes e u m serviço doméstico mais requintado. M a s , além dessa explicação,
é preciso levar em c o n t a que estava em curso um período de desmantelamento da força
de trabalho escrava masculina, pois eram preferencialmente homens — e, entre eles,
preferencialmente os detentores de u m ofício — os escravos colocados à venda para as
plantações de café do C e n t r o - S u l do Brasil.
O recenseamento de 1 8 7 2 fornece o n ú m e r o de casas da cidade: 1 5 . 2 5 7 , das quais
9 5 , 9 % estavam habitadas e 4 , 1 % n ã o habitadas. N ã o sabemos se estas últimas eram
edifícios públicos ou residências fechadas/abandonadas, mas constatamos que os regis-
tros consideravam freqüentes os casos de residências parcialmente arruinadas. As pos-
turas municipais d e t e r m i n a v a m que " n i n g u é m poderá ter, dentro da cidade, terreno
desocupado ou n o qual haja casa n ã o habitada, sem que estas sejam mantidas fechadas
e bem l i m p a s " . 23
A análise que se segue leva em c o n t a apenas as casas habitadas.

TABELA 18

REPARTIÇÃO DA P O P U L A Ç Ã O DE SALVADOR POR PARÓQUIAS E RESIDÊNCIAS, 1872

PARÓQUIAS TOTAL DE RESIDÊNCIAS HABITANTES HABITANTES % ESCRAVOS


RESIDÊNCIAS HABITADAS POR PAROQUIA POR CASA POR PAROQUIA

Sé 2.112 2.048 15.111 7,4 (16.8)

São Pedro 1.841 1.687 14.743 8,7 (18,8)

Sant'Anna 2.445 2.366 17.954 7,6 (3,7)

Conceição da Praia 647 640 5.490 8,6 (9,2)

Vitória 1.181 1.174 11.666 9,9 (17,9)

Passo 799 734 3.636 4,9 (3,5)

Pilar 1.307 1.271 8.346 6,6 (7,3)

Santo Antônio Além do Carmo 2.512 2.487 16.613 6,7 (8,8)

Brotas 833 830 5.090 6,1 (4,7)

Mares 583 494 3.722 7,5 (1.2)

Penha 997 900 5.767 6,4 (8.1)

Total 15.257 14.631 108.138 7.4 -


Kontc: Recenseamento de 1872.

O número de casas era proporcional ao número de habitantes e à densidade


populacional de cada paróquia, com exceção da do Passo, onde aparentemente as
pessoas tinham mais espaço disponível (4,9 habitantes por casa). Nota-se, também,
que onde os escravos eram mais numerosos, a média de habitantes em cada casa era
mais elevada. Mas existiam exceções, c o m o a da paróquia de SantWnna, uma das mais
antigas e a mais populosa e densa, cujas casas apresentavam a quarta maior taxa de
BAHIA, S É C U O X I X
i::

ocupação da cidade, porém c o m pequeno percentual de escravos. Residiam ali grupos


sociais mais modestos, lado a lado c o m vários quartéis militares. Estava na mesma
situação a paróquia de Mares, criada cm 1 8 7 1 pelo d e s m e m b r a m e n t o de três outras
(Pilar, Penha e S a n t o A n t ô n i o Além do C a r m o ) , igualmente ocupada por população
humilde e por um quartel de cavalaria. Explica-se assim o fato de que, ali, o percentual
de escravos era o mais baixo da cidade: 1 , 2 % .
Era elevado o índice de ocupação das casas, c m geral sobrados c o m um ou dois
andares, cujo t a m a n h o variava c o n f o r m e os bairros. O s prédios de vários andares eram
pouco numerosos e se c o n c e n t r a v a m s o b r e t u d o nas paróquias da C o n c e i ç ã o da Praia
(comercial), da Sé e de São Pedro ( o n d e residiam camadas de maior poder aquisitivo),
além de alguns bairros localizados em S a n t o A n t ô n i o A l é m do C a r m o e em Sant'Anna,
próximos do C e n t r o . N a P e n h a e na V i t ó r i a existiam grandes casas senhoriais. As
fontes que m e permitiram formular essas c o m p a r a ç õ e s apresentam dados do recensea-
m e n t o de 1 8 5 5 , referentes a dois bairros que p o d e m o s considerar significativos. Em
duas circuncrições da Sé foram e n c o n t r a d a s taxas médias de o c u p a ç ã o de 5 , 9 e 7,4 por
residência; em São Pedro, 7,2 e 4 , 9 ; em S a n t o A n t ô n i o 9 , 9 ; e e m Pilar, 1 0 , 7 . É preciso,
pois, indagar se esses n ú m e r o s — q u e dão u m a m é d i a de 6 , 5 pessoas por residência —
estão corretos.

Essa média registrada em 1 8 5 5 era bastante p r ó x i m a da que consta no recensea-


m e n t o de 1 8 7 2 ( 7 , 4 ) . Este primeiro r e c e n s e a m e n t o de 1 8 5 5 — m e n o s abrangente,
mas mais detalhado que o segundo — clarifica um p o u c o as coisas. T r i n t a c sete das
quarenta casas da 1 1 a
circunscrição de S ã o Pedro eram térreas, c o m três ou quatro
cômodos e de frente para as ruas. Viviam nelas 1 6 0 pessoas, o que dava uma média de
4 , 3 por casa. Nos três sobrados d o bairro, que geralmente t i n h a m dois ou três andares,
viviam 37 pessoas ( 1 8 , 9 % da população t o t a l ) , o que significa 1 2 , 3 pessoas por casa.
É possível que as casas vazias registradas n o recenseamento de 1 8 7 2 estivessem real-
mente fechadas ou em ruínas. N a 1 0 circunscrição do Pilar (na Cidade Baixa, vizinha
a

da Conceição da Praia), a situação era inversa: existiam quinze sobrados (onde viviam
9 2 % da população) e sete casas térreas, que abrigavam apenas dezenove habitantes. A
atividade comercial da cidade se concentrava nas paróquias de Pilar e de Conceição da
Praia, onde havia sobrados magníficos e espaçosos. N u m deles, de dois andares além
do térreo, viviam 4 5 pessoas, distribuídas por duas famílias, seus escravos e um grupo
no qual se misturavam africanos livres e agregados.
O recenseamento de 1 8 7 2 nos fornece uma idéia da repartição, por cor, dos
habitantes de cada paróquia. Haveria áreas 'mais negras' que outras? O s mulatos eram
numerosos entre a população escrava? O n d e se encontrava maior número de caboclos,
que a tradição geralmente relega para o interior das terras da Província? Para o estran-
geiro que andasse pelas ruas da Bahia nos idos de 1 8 7 2 , a resposta seria evidente: havia
uma maioria negra. Mas, entre as pessoas de cor, era difícil distinguir trabalhadores
hvres c escravos. Entre csics últimos, que incluíam crianças, o número de mulatos era
relativamente alto, apesar da constante renovação do estoque africano (pelo menos até
11 - O P*>o ;X>S H O M E N S II]

I 850 O s nativos na Africa representavam 3 6 , 7 % dc uma população escrava estimada


cm 12,501 pessoas* Proporcionalmente, .is mulatas ( 3 9 , 5 % ) eram mais numerosas que
os mulatos ( 3 3 . 7 % ) entre os escravos. Esses percentuais, embora altos, estavam bastan-
te íonce dos encontrados entre a população livre.

I \Bl l \ i "

REPARTIÇÃO Í>\ POPULAÇÃO ESCRAVA DE SALVADOR POR C O R , 1872

HOMENS MULHERES TOTAL


Toi u CihRAl
MULATAS NEGRAS TOTAI

2.052 4.036 (> 088 2.533 3.880 6.413 12.S01


(48.7) (51.3) 1100.0)

A maior c o n c e n t r a ç ã o de escravos mulatos ( h o m e n s ) estava nas paróquias do Pilar,


c e Mares e da Penha, todas na C i d a d e Baixa, vizinhas entre si, nessa ordem. N ã o há
surpresa. M u i t o s 'escravos de ganho* viviam separados de seus senhores e moravam
nessas áreas, o n d e os aluguéis eram mais baixos (Pilar) ou havia terrenos baldios, aptos
a serem ocupados c o m casas dc taipa ( M a r e s e P e n h a ) . O s mulatos também eram
numerosos nas paróquias da Sé, S ã o Pedro, V i t ó r i a e Passo, áreas em que residiam
camadas mais abastadas.
Pelas mesmas razões, as mulatas se concentravam sobretudo nas paróquias do
Passo, Vitória, S ã o P e d r o c C o n c e i ç ã o da Praia, servindo de empregadas domésticas.
Mas sua presença também era significativa cm Pilar, Mares c Penha; ali, as 'ganhadeiras'
faziam concorrência aos 'ganhadores'. M o r a r longe da vista do senhor dava uma
impressão de liberdade, c nas regiões mais afastadas se podia plantar uma horta,
diminuindo as despesas c o m a sobrevivência.

Não há dúvida de que, na cidade, a população de cor era mais numerosa que a
branca, com exceção das paróquias da C o n c e i ç ã o da Praia e de Brotas. Na primeira,
situada à beira-mar e c e n t r o da vida comercial da cidade, os h o m e n s brancos represen-
tavam quase 6 2 % do total. A população branca c o m o um todo correspondia a 5 7 %
nessa área, onde negociantes atacadistas moravam e realizavam suas grandes transa-
ções. Na Vitória, bairro mais arejado, viviam sobretudo estrangeiros. Encontrava-se ali
o menor percentual de mulatos: 1 2 , 5 % entre os h o m e n s e 2 2 , 8 % entre as mulheres.
Apesar dc sua natureza industriosa e empreendedora, marcada pelo forte desejo de
ascensão social, os mulatos não tinham conquistado espaço no âmbito do grande
comércio. A maioria dos balconistas c empregados das casas comerciais era formada de
brancos, de origem portuguesa, que faziam parte do lar do patrão c moravam no
próprio local de trabalho, mesmo quando o chefe tinha emigrado para locais mais
agradáveis.
Em Brotas também se podia constatar uma elevada presença dc brancos ( 5 0 , 9 %
do total), sobretudo homens ( ^ 4 , 8 % ) , mas por outras razões: tratava-se de uma paro-
124 BAHIA, S É C U L O X I X

quia semi-rural, c o m baixa densidade p o p u l a c i o n a l , q u e abrigava, em 'sítios' dispersos,


4 , 7 % da população da cidade. M u i t o s desses sítios eram casas de c a m p o dos ricos, què
arrendavam alguma terra a cultivadores livres o u alforriados, interessados em p l a n t a r

hortas ou criar gado leiteiro. A paróquia mais ' m u l a t a era a d a P e n h a , situada na zona
rural, longe do c o r a ç ã o da cidade. Ali, os m u l a t o s representavam 5 2 , 5 % e as mulatas
6 1 , 9 % da p o p u l a ç ã o . O s m u l a t o s livres t a m b é m eram n u m e r o s o s na densa e p o p u l ar

paróquia de S a n t o A n t ô n i o A l é m d o C a r m o , o n d e c o n s t i t u í a m 4 9 , 3 % da população
livre, e na aristocrática p a r ó q u i a da Sé (49%).

O relativo e q u i l í b r i o n u m é r i c o q u e se observa e n t r e h o m e n s e mulheres de cor,


seja na população livre, seja na escrava, n ã o se repete entre os b r a n c o s . Aparece um déficit
de mulheres, q u e representavam a p e n a s 4 1 , 8 % d a p o p u l a ç ã o branca, vista como um
t o d o . Essa relação podia variar s e g u n d o as faixas etárias da p o p u l a ç ã o , fazendo apare-
cer alguns desequilíbrios n ã o aparentes aqui. N o caso dos h o m e n s , esse déficit era
c o m p e n s a d o pela prática de c a s a m e n t o s o u u n i õ e s livres c o m mulatas e negras. Com
raras exceções, as paróquias apresentavam alto í n d i c e de m i s c i g e n a ç ã o . Agrupando
todos os tipos m i s t u r a d o s e negros, e c o l o c a n d o - o s e m c o n t r a p o s i ç ã o aos considerados
brancos, p o d e m o s ver, c o m m a i o r precisão, c o m o estes ficam inferiorizados.
O s dados dispensam c o m e n t á r i o s . Pessoas de c o r se infiltravam por toda parte e
viviam em s i m b i o s e c o m u m a p o p u l a ç ã o b r a n c a q u e i n c l u í a europeus e 'brancos da
terra', cuja pele era apenas u m p o u c o m a i s clara que a de alguns mulatos. Graças a
apoios de família, eles c o n s e g u i a m ultrapassar a barreira q u e separava homens livres e
escravos. O mais e m b a r a ç o s o n ã o era ter pele escura, m a s ter antepassados escravos.
N a p a r ó q u i a semi-rural de B r o t a s as c a b o c l a s c h e g a r a m a ser 2 0 , 6 % da popula-
ção f e m i n i n a e os c a b o c l o s , 6 , 6 % da m a s c u l i n a . D e o n d e teriam vindo? Descenden-
tes dos índios que o u t r o r a povoavam a região, g e n t e o r i u n d a das altas terras do Ser-
tão (fugitiva das secas), m o r a d o r e s de antigas aldeias indígenas d o Agreste todas

TABELA 20

^ ^ ^ 2 ^ ^ ^ ^ ^ M A S C U L I N A L I V R E D E SALVADOR POR C O R , 1872

J ^ o s NEGROS CABOCLOS Tom__

I*!!?
6 21
- 101
8.702 ,.,08 "¡0.519
, WW» (17.2) (2,., (,00.0)
Fonrc: Recrnscamcnto de 1872. ' ~~~~

TABELA 2 1

^ ^ ^ D A J ' O P U I J V Q A O F E M I N I N A L I V R E D E SALVADOR POR C O R , 1872

5J2J 2 1 3 3 2
8-720 ~t^t imr
( 4 7
' >
3
(19,3) (2.2) (100.0)
Fontc: Receiucamcnto de 1 8 7 2 .
LIVRO II - O PESO DOS HOMENS

TABELA 2 2

R E P A R T I Ç Ã O DA P O P U L A Ç Ã O D E S A L V A D O R E N T R E B R A N C O S E N Ã O BRANCOS, 1872

PARÓQUIAS BRANCOS NAO BRANCOS

Sé 4.611 (30.5) 10.500 (69,5)


São Pedro 3.422 (25,2) 11.021 (74,8)
Sam* An na 6.819 (38,0) 11.135 (62,0)
Conceição da Traia 2.470 (45,0) 3,020 (55,0)
Vitória 3.096 (26,5) 8.570 (73,5)

Passo 549 (15,0) 3.087 (85,0)

Pilar 2.916 (34,9) 5.430 (65,1)


Santo Antônio Além do Carmo 4.494 (27,0) 12.119 (73,0)

Brotas 2.291 (45,0) 2.799 (55,0)

Mares 1.295 (34,8) 2.427 (65,2)

Penha 1.409 (24,4) 4.328 (75,6)

Total 33.672 (31.1) 74.466 (68,9)

Fonte: Recenseamento de 1872.

essas pessoas p o d e r i a m ter p r o c u r a d o trabalho nos sírios dos arredores da cidade.


Mas n ã o apenas elas. E m n u m e r o s o s d o c u m e n t o s m e n c i o n a m - s e caboclos oriundos
das costas de I l h é u s , P o r t o S e g u r o e outras regiões do sul da Província, o que ajuda
a explicar sua c o n c e n t r a ç ã o relativa nas paróquias da C o n c e i ç ã o da Praia e de M a -
res, na C i d a d e B a i x a . S e u peso n a população da cidade ainda era insignificante por
volta de 1 8 7 0 .
T a i s eram os c o m p o n e n t e s da p o p u l a ç ã o de Salvador, cidade colorida e misturada
e, por isso, cheia de vida! O processo de ' e m b r a n q u e c i m e n t o ' favoreceu o elo obriga-
tório, representado pela população mestiça. N a Bahia, o b r a n c o fino' — ou seja, o
£

português b r a n c o — t o r n o u - s e cada vez mais u m a lembrança h i s t ó r i c a ; 24


n o imaginá-
rio o m o d e l o p e r m a n e c e u europeu, mas a realidade foi marcada por uma miscigenação
ainda mais forte d o que a sugerida pelas estatísticas. E m b o r a não haja dados precisos,
pode-sc concluir que a imigração européia para a Bahia foi muito fraca durante o
século X I X , comparada à importação de negros.
N ã o possuo n e n h u m a f o n t e referente a essa imigração na primeira metade do
século X I X . l'ara a segunda metade, existe uma série dc cem livros de registros de
passageiros estrangeiros que entraram c saíram da Bahia entre 1855 e 1 8 6 4 . Mas eles
tem sérias lacunas do p o n t o dc vista cronológico. Além disso, os dados não são h o m o -
géneos c sua triagem é muito difícil. U m a sondagem apontou a entrada de 4 . 4 5 6
estrangeiros em nove anos. M a s ignoro totalmente se eles se estabeleceram em Salva-
dor ou no interior da Província, ou ainda se tornaram a partir. Esses quinhentos e
poucos — exatamente 4 9 5 , cm média, por ano — europeus que entravam todos os
BAHIA, S É C U L O XIX
126

anos e m S a l v a d o r eram m u i t o p o u c o s e m relação aos 6 . 6 7 3 a f r i c a n o s q u e entraram no


p o r t o c a d a a n o d u r a n t e os ú l t i m o s a n o s d o t r á f i c o de e s c r a v o s . 2 3

O s especialistas em q u e s t õ e s sociais d a B a h i a c o n s i d e r a m ' b r a n c a s as pessoas q


1
U e

a p r e s e n t a m características d o m i n a n t e s dessa raça, m e s m o q u e h a j a mistura de sangue


negro o u í n d i o . N ã o i m p o r t a a o r i g e m racial. A l é m disso, q u e m tiver certo prestígio
social será c o n s i d e r a d o b r a n c o , m e s m o q u e seja m e s t i ç o c l a r o o u m u l a t o escuro.
S e g u n d o P i e r s o n , na B a h i a , ser n e g r o é p o s s u i r " t r a ç o s n e g r o i d e s m u i t o s visíveis" ou
ter u m a " s i t u a ç ã o social i n f e r i o r " . P a r a ele, os t e r m o s ' n e g r o ' e ' b r a n c o ' são muito mais
"categorias baseadas na a p a r ê n c i a física q u e n a r a ç a " e se r e f e r e m à posição na socie-
dade, de m o d o q u e a a s c e n s ã o social p o d e ' l i b e r t a r ' u m i n d i v í d u o de sua c o r original. 26

Assim, a i m e n s a variedade de m e s t i ç o s — para os q u a i s os brasileiros inventaram


diversas palavras, c o m o m u l a t o s , c a b r a s , p a r d o s , sararás, c a b o s - v e r d e s etc. — são
d e t l a r a d o s ' b r a n c o s ' se f o r e m s o c i a l m e n t e a c e i t o s e ' m u l a t o s ' e m caso contrário.
Essa a m b i g ü i d a d e n o u s o atual dos t e r m o s q u e se r e f e r e m à o r i g e m racial e social
dos h a b i t a n t e s de S a l v a d o r r e f o r ç a a n e c e s s i d a d e de q u e s t i o n a r os historiadores do
século X I X . Q u a l era, n a é p o c a , o s i g n i f i c a d o e x a t o desses m e s m o s termos? Que
m o b i l i d a d e a s o c i e d a d e o f e r e c i a aos a l f o r r i a d o s , q u e v i v i a m a c o n d i ç ã o de escravos em
u m passado m u i t o p r ó x i m o ? S e u s d e s c e n d e n t e s t i n h a m as m e s m a s chances que os
imigrantes b r a n c o s ? A s o c i e d a d e b a i a n a , escravista a t é 1 8 8 8 , f r e o u a ascensão social
dos mais h u m i l d e s , f o s s e m livres o u escravos? O u , ao c o n t r á r i o , foi mais aberta, mas
permissiva, após a A b o l i ç ã o ?
U m a a f i r m a ç ã o m u i t o r e p e t i d a e p o u c o q u e s t i o n a d a é a de q u e a sociedade baiana
estava dividida, até 1 8 8 8 , e m b r a n c o s s e n h o r e s e n e g r o s escravos, passando em seguida
a dividir-se e n t r e b r a n c o s ricos e negros p o b r e s . N ã o h a v e r i a aí u m a rejeição incons-
c i e n t e à miscigenação? N ã o fica e s q u e c i d o q u e o b r a n c o de h o j e era o m u l a t o e o negro
de outrora? A supervalorização desse m o d e l o b r a n c o , ao q u a l aspira a sociedade baiana,
não apagou valores sociais de o u t r o t i p o , j á q u e t o d o u m g r u p o social — os negros —
foi inserido nela sem p o d e r preservar sua p r ó p r i a c u l t u r a ? 2 7

M e u p r o b l e m a f u n d a m e n t a l é o s e g u i n t e : a d i c o t o m i a ' b r a n c o r i c o ' e 'negro


p o b r e ' é u m a característica da ' r a ç a ' negra — reduzida à escravidão, espoliada, explo-
rada ou decorre da estrutura e c o n ô m i c a escravocrata, dirigida do exterior segundo
o tradicional esquema da d e p e n d ê n c i a ? O t e r m o escravo se refere a uma categoria
social, e não a uma raça, pois a c o r da pele e a origem não passam de acidentes
históricos numa cidade de mestiços c o m o Salvador. J á está, p o r t a n t o , na hora de
percorrer as ruas c entrar nas casas para tentar c o m p r e e n d e r c o m o se formou a estru-
tura familiar c c o m o os h o m e n s c as mulheres da Bahia aprenderam a viver juntos, no
meio de mil antagonismos, mil c o n t r a d i ç õ e s .
LIVRO III

A FAMÍLIA BAIANA
C A P Í T U L O 9

U M P O U C O DE H I S T Ó R I A

Os conquistadores portugueses tiveram as mãos livres para edificar no Brasil uma vida
econômica baseada em grandes unidades de produção agrícola e uma vida social
organizada em torno da família. Como em todas as sociedades, a família se tornou,
também aqui, a base da organização social. Que família?
Com o extermínio progressivo dos povos indígenas, duas culturas — a branca
européia e a negra africana — influenciaram a estrutura familiar brasileira. Por moti-
vos evidentes, à primeira coube um papel preponderante, mas de forma alguma exclu-
sivo, A convivência com escravos africanos não era uma situação totalmente nova para
Portugal, onde a escravidão fora introduzida — ou reintroduzida — desde a época das
primeiras conquistas coloniais. Mas, ao que parece, o número de escravos nunca
1

ultrapassou 1 0 % da população da Metrópole.


Na Bahia mestiça, o peso do sistema escravocrata era bem maior, marcando a
sociedade local e impondo soluções novas ao modelo de família d^ém-mar. No
século XIX, os problemas cotidianos advinham de condições variadas e originais, que
exigiam grande flexibilidade por parte das estruturas familiais. Elas se adaptaram,
preservando o calor humano e protegendo as crianças. Para conhecer esse processo,
estudaremos em primeiro lugar a moldura legal que cercou a evolução da instituição
familiar de origem portuguesa; partindo dessa análise, tentaremos estabelecer uma
tipologia da família baiana; discutiremos depois o quadro estrutural criado por esses
novos tipos de família, cujos membros tinham diferentes origens, cores e estatutos
jurídicos.
O Estado português sempre esteve preocupado em formalizar as leis. No início do
século XV, dom Afonso IV encarregou João Mendes, eminente jurista e magistrado,
de reunir coerentemente as leis do reino. Nasceu daí o primeiro código português,
denominado Alfonsino e publicado em 1492. Vinte e um anos mais tarde, ele foi
substituído pelo Código Manuelino, publicado durante o reinado de dom Manuel
m a s destinado a ter vida c u r t a . Dom Sebastião, que reinou e n t r e 1555 e 1571, insti-

129
BAHIA, S É C U L O XIX
130

tuiu um terceiro código, incluindo, pela primeira vez, as leis ditas extravagantes, q u e

até então não haviam sido codificadas, p e r m a n e c e n d o fora do corpus júris. Finalmente,
em 1 6 0 3 , durante o reinado de Filipe III da E s p a n h a ( 1 5 9 8 - 1 6 2 1 ) , veio à luz un
um
duradouro código, que serviria de base legal inclusive para a formação do Estadlo
brasileiro, vigindo aqui durante t o d o o primeiro século posterior à Independênci ncia
(a parte civil das O r d e n a ç õ e s Filipinas só foi substituída n o Brasil em 1 9 1 7 ) .
As Ordenações estabelecem u m a distinção clara e reiterada entre 'nobres' e 'peões'.
M a s , em qualquer desses casos, a família portuguesa o u brasileira foi definida como
nuclear, formada por u m casal e seus filhos. Para traçar a evolução legal dessa família
entre 1 8 0 0 e 1 8 9 0 , interessa-nos e s p e c i a l m e n t e o p e n ú l t i m o dos c i n c o livros, que trata
do direito civil e c o m e r c i a l . T e n t a r e m o s , p r i m e i r o , saber c o m o se estabeleciam os
2

direitos pessoais n o â m b i t o das relações familiais stricto e lato sensu. Depois, numa
segunda etapa, definiremos os direitos e deveres d e c o r r e n t e s dessas relações.

REGIMES MATRIMONIAIS

N o Brasil, a grande m a i o r i a dos c a s a m e n t o s era e f e t u a d a e m r e g i m e de comunhão de


bens, t a m b é m c o n h e c i d o c o m o de ' c a r t a de m e t a d e ' . S e os f u t u r o s nubentes quises-
sem assinar u m p a c t o n u p c i a l — s i t u a ç ã o p o u c o f r e q ü e n t e — , deveriam ser maiores
de idade, livres de q u a l q u e r e m p e c i l h o e c o n s i d e r a d o s c a p a z e s , do p o n t o de vista
civil. A t é o século X I X , a m a i o r i d a d e legal era d e c a t o r z e a n o s para os rapazes e dc
doze anos para as m o ç a s , limites abaixo dos quais tornava-se necessário obter autori-
zação paterna ou j u d i c i a l para casar. A l g u n s desses c o n t r a t o s m a t r i m o n i a i s — na
verdade, raros — s i m p l e s m e n t e e x c l u í a m o u , ao c o n t r á r i o , formalizavam a comu-
nhão l e g a l . O u t r o s t i n h a m o b j e t i v o s d i f e r e n t e s , c o m o a d e f i n i ç ã o d o regime dos
3

bens (próprios ou doados pelos pais) i n c o r p o r a d o s ao p a t r i m ô n i o o u do montante


de doações feitas, n o presente o u n o f u t u r o , pelos n u b e n t e s e n t r e si (poderiam ser
feitas inclusive depois da m o r t e de u m d e l e s ) . A s s i m , m a r i d o o u m u l h e r podiam
oferecer dotes ao c ô n j u g e . N a s o c i e d a d e b a i a n a de e n t ã o , viúvos abastados e com
descendência c o s t u m a v a m dar u m d o t e o u u m a renda para o n o v o cônjuge ou as
filhas, c o m o forma de lhes assegurar u m p a t r i m ô n i o p r ó p r i o . T r a t a v a - s e , neste caso,
de um pacto dotal, q u e n ã o deve ser c o n f u n d i d o c o m u m c o n t r a t o dotal. O pacto
— utilizado sobretudo por filhos de famílias n o b r e s — destinava, à mulher, rendas
próprias para suas pequenas despesas. Essa lei foi abolida em 8 de o u t u b r o de 1835.
j u n t o c o m o m o r g a d i o . E m caso de f a l e c i m e n t o , o d o t e ficava c o m o cônjuge viúvo,
enquanto o resto da herança era distribuído e n t r e os outros herdeiros legítimos.
Naturalmente, os pactos que estabeleciam uma renda o u um d o t e anulavam o regi-
me de c o m u n h ã o legal de bens, c o m o está registrado na série intitulada Livros de
N o t a s e Escrituras. O m e s m o acontecia c o m o terceiro tipo de p a c t o , que estabelecia
a separação de bens entre os cônjuges.
LIVRO I I I - A FAMÍLIA BAIANA 131

Para que fossem válidos, esses três tipos de c o n t r a t o s deviam ser legalizados e m
cartório, estipulando-se o n o m e dos futuros c ô n j u g e s e de seus pais, b e m c o m o sua
nacionalidade, religião, data de b a t i z a d o , idade, d o m i c í l i o e, se fosse o caso, grau de
parentesco. 4
S e o c a s a m e n t o n ã o fosse f e i t o em c o m u n h ã o legal, era indispensável
fornecer u m a descrição d e t a l h a d a dos b e n s de cada parte. O s c o n t r a t o s que encontrei
raramente o b e d e c i a m a essas regras. O mais das vezes registravam apenas os n o m e s dos
futuros c ô n j u g e s , o l o c a l , a d a t a e o m o n t a n t e d o d o t e (só o d o t e da f u t u r a esposa era
estipulado). A l g u m a s vezes os n o m e s dos pais eram c i t a d o s .
E r a m , p o r t a n t o , três os r e g i m e s m a t r i m o n i a i s e m vigor n o Brasil n o século X I X :
c o m u n h ã o legal, r e g i m e de d o t e , e s e p a r a ç ã o de b e n s . E s t u d a n d o t e s t a m e n t o s e inven-
tários post mortem p u d e v e r i f i c a r q u e , na B a h i a , 9 0 % dos c a s a m e n t o s eram celebrados
segundo o ' c o s t u m e d o reino*, isto é, a c o m u n h ã o legal. D e f i n a m o s m e l h o r cada u m a
dessas três f o r m a s d e a s s o c i a ç ã o m a t r i m o n i a l .

REGIMES MATRIMONIAIS E REGIMES DE BENS

O s regimes d e b e n s e r a m f u n d a m e n t a i s para d i s t i n g u i r o s regimes m a t r i m o n i a i s entre


si. C o n s i d e r a v a - s e q u e h a v i a c o m u n h ã o legal e m q u a t r o casos: o c o n t r a t o nupcial
definira esse r e g i m e , o s f u t u r o s c ô n j u g e s h a v i a m d e c l a r a d o q u e seus b e n s passavam a
ser c o m u n s , o c a s a m e n t o f o r a c e l e b r a d o s e m c o n t r a t o e s p e c í f i c o o u o c o n t r a t o (assina-
do antes d o c a s a m e n t o ) f o r a c o n s i d e r a d o n u l o p o r a t e n t a r c o n t r a as leis da natureza,
do c a s a m e n t o e dos b o n s c o s t u m e s . A p a r e n t e m e n t e , e r a m m u i t o raras as c o n t e n d a s
5

entre c ô n j u g e s o u e n t r e h e r d e i r o s e m t o r n o deste ú l t i m o caso. /

N o Brasil, c o m o e m t o d o s o s países regidos p e l o d i r e i t o r o m a n o , o c a s a m e n t o em


regime de c o m u n h ã o d e b e n s era c o n s i d e r a d o u m a a s s o c i a ç ã o de t i p o universal, na
qual o passivo e o a t i v o d e c a d a c ô n j u g e , n o p r e s e n t e e n o f u t u r o , p e r t e n c i a m a a m b o s
em partes iguais. A c o m u n h ã o , q u e c o l o c a v a os b e n s d a família sob a d m i n i s t r a ç ã o do
marido, só era a d m i t i d a se o c a s a m e n t o fosse c e l e b r a d o " d i a n t e da I g r e j a " , se fosse
c o n s u m a d o e se n e n h u m d o s c ô n j u g e s fosse escravo. O c o n c u b i n a t o , p o r sua vez,
nunca deu d i r e i t o à c o m u n h ã o de b e n s pois, desde o C o n c í l i o de T r e n t o ( 1 5 4 5 -
1 5 6 3 ) , a c o a b i t a ç ã o era c o n t r á r i a aos p r i n c í p i o s m o r a i s e religiosos. T a m b é m estavam
excluídos da c o m u n h ã o os b e n s r e c e b i d o s s o b a f o r m a de d o a ç ã o , antes ou depois do
casamento, ou a t r i b u í d o s por t e s t a m e n t o c o m cláusula expressa nesse sentido.
O regime de c o m u n h ã o c o m p o r t a v a riscos — altos riscos, pode-se dizer , pois
tornava os esposos solidários e n t r e si, n o c o n t e x t o de u m a sociedade cuja e c o n o m i a era
m u i t o especulativa. As fortunas se faziam e se desfaziam em u m a m e s m a geração, o
que, aliás, explica o uso dos dois outros regimes m a t r i m o n i a i s . A separação de bens era
adotada e m diversas situações:
- q u a n d o havia o p ç ã o explícita por este regime; q u a n d o os futuros cônjuges
declaravam n ã o querer contrair m a t r i m ô n i o segundo o ' c o s t u m e do reino ;
132 BAHIA, SÉCULO X I X

- q u a n d o , n o c o n t r a t o , havia u m a cláusula i n c o m p a t í v e l com o regime d


c
c o m u n h ã o (exemplo: a c o m u n h ã o reduzia-se explicitamente aos bens adqui j r

dos, ou os cônjuges se declaravam solidários nas dívidas porventura contraídas


n o futuro, ou se previa a reversão da fortuna às respectivas famílias em caso de
morte sem descendência);
- finalmente, q u a n d o o marido c o n c e d i a , à m u l h e r , um dote, oferecendo-lhe
bens (ou seu usufruto) sob a f o r m a de rendas o u sob qualquer outra denomi-
nação. O dote que o m a r i d o dava a sua m u l h e r era u m a espécie de seguro sobre
o dote que ele recebia dos pais de sua m u l h e r . Esse ato podia ser comparado às
doações propter nuptiasàos r o m a n o s . As O r d e n a ç õ e s estipulavam que as rendas
não podiam exceder o terço do d o t e , mas esse regime era raro no Brasil.
O dote era constituído p o r todos os bens que a noiva trazia, ou por aquele
s
prometidos pelo noivo em ato cartorial. T a m b é m faziam parte do dote todos os
bens que a mulher adquiria depois do c a s a m e n t o por doação, herança ou legado, se
esses bens não fossem gravados c o m u m a cláusula que estipulasse que a mulher ti-
nha o direito de administrá-los, gozando de seu usufruto exclusivo. A não ser que
existisse uma cláusula específica definindo outra maneira, o regime de separação tam-
bém conferia ao marido a a d m i n i s t r a ç ã o dos b e n s , inclusive dotes e rendas, se exis-
t i s s e m . M a s os imóveis só p o d i a m ser vendidos o u hipotecados c o m o consenti-
6

m e n t o dos dois cônjuges. S ó bens móveis (exceto apólices da dívida pública) podiam
ser alienados pela esposa sem o c o n s e n t i m e n t o do m a r i d o ou de uma autoridade
judiciária. As restrições eram maiores nos casos e m q u e a separação de bens se con-
jugava com a oferta de dotes: n e m m e s m o os dois cônjuges, agindo de comum acor-
do, podiam vender ou hipotecar seus próprios bens, dependendo para isso de auto-
rização judicial, c o n c e d i d a e m casos ' m u i t o especiais', c o m o dotar as crianças,
comprovar extrema pobreza, saldar dívidas contraídas pela esposa, consertar outro
imóvel dotal, sofrer expropriação pelo E s t a d o o u c o m p e n s a r afastamento do domi-
cílio c o n j u g a l . 7

O regime de separação de bens era, p o r t a n t o , mais favorável à mulher do que o de


c o m u n h ã o . M a s , nos dois casos, o marido conservava o poder de administrar os bens
familiais. Além disso, c o m a c o m p l a c ê n c i a de um juiz pouco escrupuloso, os casos
especiais* acima citados possibilitavam toda espécie de abusos. N o caso de separação
simples (sem dotes), os maridos tinham a possibilidade de exercer todo tipo de pressão
para obrigar as mulheres a 'aprovar' as vendas por eles desejadas. A consulta a testa-
mentos c inventários post mortem mostra a freqüência desses falsos consentimentos »
extorquidos sobretudo quando havia separação legal entre os cônjuges, após um casa-
mento rompido.
Vê-se que a legislação do século X I X colocava a mulher numa posição muito
dependente da vontade do marido. Mas é preciso tentar saber até que ponto esse
quadro jurídico bastante estrito convivia, na prática, com diversos 'jeitos' que libera-
vam muitas mulheres do estrito controle do esposo.
LIVRO III - A FAMILIA BAIANA
133

DIVÓRCIO

O C ó d i g o Civil brasileiro só a d m i t i u o q u e a t u a l m e n t e se e n t e n d e por divórcio em


1 9 7 7 . A t é e n t ã o , o b e d e c i a - s e ao d i r e i t o c a n ó n i c o , q u e só a d m i t e a dissolução do
c a s a m e n t o p o r sua a n u l a ç ã o ditada pela Igreja c m casos de erro de pessoa, c o n d i ç ã o
legal d i f e r e n t e de u m dos c ô n j u g e s ( e x e m p l o : u m era escravo e o o u t r o , livre), cogna-
çáo (natural, espiritual o u l e g a l ) , c r i m e , religião d i f e r e n t e , c a s a m e n t o forçado, biga-
mia, i m p o t ê n c i a , r a p t o , a u s ê n c i a de padre e de t e s t e m u n h a s , r e c e b i m e n t o de ordens
sacras pela esposa o u p r o s t i t u i ç ã o d e s t a . M a s , n o s é c u l o X I X , c h a m a v a - s e ' d i v ó r c i o ' a
8

separação de c o r p o s d o s c ô n j u g e s , a u t o r i z a d a e m q u a t r o situações b e m definidas: se,


nos doze p r i m e i r o s m e s e s de v i d a c o m u m , os c ô n j u g e s o p t a s s e m por entrar n u m
c o n v e n t o ; se tivesse h a v i d o , p o r p a r t e de u m dos c ô n j u g e s , " f o r n i c a ç ã o espiritual por
heresia e a p o s t a s i a " ; se o c o r r e s s e m sevícias graves; e n f i m , se fosse c o m p r o v a d o adulté-
rio p r a t i c a d o p o r u m d o s e s p o s o s (se os d o i s c o m e t e s s e m adultério, a Igreja não
a d m i t i a a s e p a r a ç ã o , p o i s u m caso c o m p e n s a v a o o u t r o ) . 9

N a s o c i e d a d e b a i a n a de e n t ã o , o a d u l t é r i o era p r á t i c a c o r r i q u e i r a . Assim, sem que


o laço m a t r i m o n i a l fosse r o m p i d o , a s e p a r a ç ã o dos c ô n j u g e s t i n h a c o m o c o n s e q ü ê n c i a
a separação de seus b e n s e a p o s t e r i o r reorganização da vida de cada u m , em c o n c u b i n a t o .
C o n f o r m e o c a s o , o s d i v o r c i a d o s e r a m m a i s o u m e n o s aceitos na sociedade, c o m
maiores facilidades — c o m o s e m p r e , e m casos de transgressão de n o r m a s sociais —
para os h o m e n s . É v e r d a d e q u e a m u l h e r a b a n d o n a d a p o r causa de adultério do
marido r e c u p e r a v a sua a u t o n o m i a e sua i n d e p e n d ê n c i a material, mas essa era, o mais
das vezes, fictícia. G e r a l m e n t e , restava à m u l h e r r e t o r n a r à situação de dependência n o
seio de sua f a m í l i a de o r i g e m , s o b r e t u d o nas c a m a d a s mais elevadas da sociedade.

FILIAÇÃO

O direito português — e, p o r t a n t o , o brasileiro — r e c o n h e c e três tipos de filiação:


legítima, l e g i t i m a d a e natural. E prevê a filiação por a d o ç ã o .
Além das crianças nascidas de c a s a m e n t o s celebrados pela Igreja, eram considera-
dos legítimos os filhos p ó s t u m o s , o u seja, nascidos até dez meses depois da dissolução
de um desses c a s a m e n t o s , fosse p o r m o r t e d o pai, fosse por outras razões. O marido era
considerado pai dc todos os filhos gerados d u r a n t e o casamento, a menos que houvesse
j u l g a m e n t o a f i r m a n d o o c o n t r á r i o . P o r t a n t o , para provar a ilegitimidade de um filho
adulterino, era preciso recorrer à J u s t i ç a . M a s a lei reconhecia c o m o legítimos os filhos
cujos pais, falecidos, tivessem vivido p u b l i c a m e n t e em estado matrimonial. Abria-se
assim o c a m i n h o às uniões livres, forma de associação conjugai muito c o m u m na
sociedade baiana, c o m o veremos adiante.
C h e f e da família, o pai exercia o pátrio poder sobre os filhos menores de 21 anos
ou não e m a n c i p a d o s , chamados 'filhos-família'. A emancipação podia ser feita a partir
134 BAHIA. S É C U L O XIX

dos dezoito anos, por a t o cartorial. O c a s a m e n t o t a m b é m e m a n c i p a v a o filho menor


mas a idade m í n i m a legal para c o n t r a í - l o era de doze anos para as meninas e de catorze
para os m e n i n o s . O pai devia prover a l i m e n t a ç ã o e e d u c a ç ã o para os filhos, recebendo
destes, em c o n t r a p a r t i d a , sem r e c o m p e n s a , serviços c o r r e s p o n d e n t e s às suas idades. S
e
o pai estivesse passando necessidades, os filhos deveriam sustentá-lo. Sancionava- se
assim, p o r lei, a solidariedade d o n ú c l e o familiar.
O pai t a m b é m t i n h a direitos e o b r i g a ç õ e s para c o m os bens dos filhos, que podiam
ser 'bens o r d i n á r i o s ' (resultantes de h e r a n ç a r e c e b i d a da m ã e q u e falecera ou de outros
legados, doações ou h e r a n ç a s , v i n d o s de u m p a r e n t e o u de o u t r a pessoa qualquer) ou
'extraordinários', cuja lista era b a s t a n t e l o n g a . E r a m e x t r a o r d i n á r i o s os bens herdados,
legados o u recebidos em d o a ç ã o m a s c u j a a d m i n i s t r a ç ã o fora c o n f i a d a a terceiros; os
bens adquiridos p e l o t r a b a l h o d o filho-família, m e s m o q u e o capital tivesse sido em-
prestado pelo pai; os bens a d q u i r i d o s n o serviço civil, m i l i t a r o u eclesiástico, sob forma
de salários o u e m o l u m e n t o s ; os b e n s a d q u i r i d o s f o r t u i t a m e n t e pelo j o g o , apostas ou
formas afins; os bens h e r d a d o s pela i n c a p a c i d a d e d o pai e m herdar. C o m exceção de
situações que exigissem a a d m i n i s t r a ç ã o p o r t e r c e i r o s , o pai t i n h a c o m p e t ê n c i a para
gerir os bens de seus filhos. A l é m disso, era sucessor de u m filho falecido, a menos que
este tivesse deixado d e s c e n d e n t e s o u c ô n j u g e v i ú v o . C a s o c o n t r á r i o , m e s m o que hou-
vesse t e s t a m e n t o , o pai r e c e b i a pelo m e n o s 2/3 da h e r a n ç a , desde que n ã o tivesse sido
deserdado pelo filho p o r u m m o t i v o previsto e m lei.

M a s havia l i m i t a ç õ e s ao p o d e r p a t e r n o . S e m a u t o r i z a ç ã o d o juiz, o pai não podia


alienar, h i p o t e c a r o u t r o c a r os b e n s de seus filhos; n ã o p o d i a c o m p r a r esses bens, nem
m e s m o em leilões o u através de terceiros; n ã o p o d i a o b r i g a r u m filho a servir de fiador;
não podia repartir ' a m i g a v e l m e n t e ' , s e m a i n t e r v e n ç ã o de u m juiz, a herança deixada,
para o filho, pela m ã e o u p o r terceiros.
A m ã e t a m b é m t i n h a direitos e deveres para c o m os filhos, inclusive no que dizia
respeito aos bens destes. E m c o n d i ç õ e s n o r m a i s , dividia o e n c a r g o de criá-los e educá-
los. S u b s t i t u í a o m a r i d o ausente, n ã o p o d e n d o dar u m t u t o r aos filhos até que fosse
declarado o ' ó b i t o presuntivo' do pai ( p o d i a , ela m e s m a , exercer essa f u n ç ã o ) . Em caso
de dissolução do c a s a m e n t o , era obrigada a a m a m e n t a r as crianças até a idade de tres
anos ou dar-lhes amas-de-leite, pelo m e n o s e n q u a n t o n ã o contraísse novas núpcias.
E m seguida, devia zelar pela educação dos filhos, s o b r e t u d o se a fortuna do pai fosse
insuficiente.
Filhos naturais só podiam ser legitimados depois do c a s a m e n t o dos pais, adqui-
rindo então os mesmos direitos c deveres dos filhos legítimos, c o m o se tivesse ocorri-
do um novo n a s c i m e n t o . M a s os filhos nascidos de um c a s a m e n t o anterior deviam
gozar do direito de primogenitura, m e s m o se tivessem nascido após o filho legitima-
do, e os filhos adulterinos c aqueles cujos pais houvessem recebido ordens religiosas
(chamados filhos sacrílegos) estavam excluídos dessa possibilidade.
C o m exceção dos filhos nascidos desses 'coitos danados' (adultério, incesto ou
praticado por integrantes de ordens religiosas), qualquer criança nascida fora dos
LIVRO III - A FAMÍLIA BAIANA 135

casamentos p o d i a ser r e c o n h e c i d a pelo pai ou pela mãe, ou pelos dois c o n j u n t a m e n t e .


Desde que oferecessem prova de seu estado civil, viúvos dos dois sexos podiam reco-
nhecer u m a c r i a n ç a , m e s m o que j á tivessem outros filhos legítimos, legitimados, na-
turais, r e c o n h e c i d o s o u adotivos.

A idade dos filhos em vias de r e c o n h e c i m e n t o n ã o tinha importância. O s dispo-


sitivos se aplicavam inclusive aos n ã o - n a s c i d o s , apenas c o n c e b i d o s . T a m b é m era pos-
sível r e c o n h e c e r filhos naturais falecidos, se estes tivessem deixado descendentes. E m -
bora isso fosse p r o i b i d o p o r lei, os r e c o n h e c i m e n t o s de paternidade traziam quase
sempre o n o m e d o p a r c e i r o . 1 0
Isso p o d e ser explicado pelo fato de q u e , freqüentemen-
te, r e c o n h e c i a m - s e , n u m m e s m o a t o , crianças nascidas de mães diferentes, de modo
que as i n f o r m a ç õ e s s o b r e a m ã e p r o v a v e l m e n t e eram ditadas por excesso de zelo em
matéria de p r e c i s ã o !

O r e c o n h e c i m e n t o de u m filho n a t u r a l era f e i t o em c a r t ó r i o , produzindo um tipo


de ato legal r e l a t i v a m e n t e n u m e r o s o nos livros dos tabeliães baianos e praticado por
todas as c a m a d a s sociais da p o p u l a ç ã o livre: ricos c o m e r c i a n t e s portugueses, senhores
de e n g e n h o , a d v o g a d o s , m é d i c o s o u simples africanos alforriados. A criança não podia
recusar a p a t e r n i d a d e o u m a t e r n i d a d e r e c o n h e c i d a . N o e n t a n t o , m e s m o depois de
validado, o a t o c a r t o r i a l p o d i a ser c o n t e s t a d o p o r declarações que demonstrassem sua
nulidade (por e x e m p l o , pela c o m p r o v a ç ã o de que a paternidade o u maternidade reco-
nhecida era i m p o s s í v e l ) o u p e l o r e c o n h e c i m e n t o , por parte d a m ã e , de que o pai era

outro. 1 1

D e p o i s de r e c o n h e c i d o s , os filhos naturais passavam a gozar dos mesmos direitos


e deveres dos filhos l e g í t i m o s , inclusive n o q u e dizia respeito à h e r a n ç a . Aliás, os filhos
naturais n ã o r e c o n h e c i d o s p o r seus pais t a m b é m p o d i a m h e r d a r u m a parcela da parte
disponível ( t e r ç a ) . E x i s t i a p o s s i b i l i d a d e inclusive de r e c o n h e c i m e n t o judicial de um
filho que requeresse a simples o u t o r g a de a l i m e n t o s o u tivesse sido c o n c e b i d o por
estupro o u r a p t o de u m a m u l h e r .

FILHOS ADOTIVOS

A adoção estava prevista e m lei, p o d e n d o ser solicitada, em princípio, por qualquer


pessoa que tivesse m e n o s de c i n q ü e n t a a n o s e, n o m í n i m o , mais catorze anos que a
criança. Se fosse casado, o solicitante precisava o b t e r o c o n s e n t i m e n t o do cônjuge; se
vivesse c m u n i ã o livre, n ã o podia sequer solicitar uma a d o ç ã o . O s tutores só podiam
adotar seu pupilo q u a n d o tivessem liquidado as contas de tutela. N ã o podia ser ado-
tada u m a pessoa q u e já tivesse descendentes legítimos ou legitimados, nascidos ou
apenas c o n c e b i d o s .
Registrada em c a r t ó r i o , a adoção não podia ser revogada, garantindo à criança o
m e s m o estatuto de um filho natural r e c o n h e c i d o . M a s , na Bahia do século X I X , as
raras adoções — e n c o n t r e i apenas dez casos em 4 2 livros de tabeliães, que cobrem o
BAHIA, S É C U L O XIX
136

p e r í o d o de 1 8 0 0 a 1 8 9 1 — e r a m usadas c o m o a r t i f í c i o para r e c o n h e c e r filhos naturais


T r a t a v a - s e d e u m a m e n t i r a social c o m p l e t a m e n t e i n ú t i l , p o i s , nesses casos, as leis e 0 s

c o s t u m e s facilitavam o r e c o n h e c i m e n t o . S o b esse a s p e c t o , a s o c i e d a d e baiana não era


c o m p l e x a d a , n e m h i p ó c r i t a . O c o n c u b i n a t o estava t ã o e n r a i z a d o q u e ninguém se
p r e o c u p a v a e m e s c o n d ê - l o , m e s m o nas c a m a d a s m a i s a b a s t a d a s . U m exemplo entre
m i l : u m dos s e n h o r e s de e n g e n h o m a i s p o d e r o s o s d a B a h i a , F r a n c i s c o S o d r é Pereira
B a r ã o de A l a g o i n h a s , n ã o h e s i t o u e m p r o c l a m a r sua o r i g e m b a s t a r d a (era filho natural
de u m a g r a n d e d a m a d o R e c ô n c a v o , M a r i a n a R i t a d e M e n e z e s B r a n d ã o , que teve esse
filho i m e d i a t a m e n t e a p ó s sua viuvez, assim c o m o , aliás, o u t r o s filhos de pais diferen-
tes) ao pedir, e m 1 8 8 6 , o t í t u l o de fidalgo ( q u e n ã o l h e f o i c o n c e d i d o ) , o único título
de n o b r e z a t r a n s m i t i d o d e f o r m a h e r e d i t á r i a .
O s laços c o n j u g a i s c r i a v a m , s e m d ú v i d a , o b r i g a ç õ e s m ú t u a s e n t r e os cônjuges e
e n t r e estes e seus filhos, m a s a l e g i s l a ç ã o e m v i g o r era t o l e r a n t e p a r a c o m as situações
marginais. P r o c u r a v a , s o b r e t u d o , p r o t e g e r as c r i a n ç a s , f o s s e m l e g í t i m a s , legitimadas,
naturais o u adotivas, t o d a s elas q u a s e iguais p e r a n t e a lei.

DIREITOS DE SUCESSÃO E REGIME SUCESSÓRIO

A t é o i n í c i o d o século X I X , c o m o f a l e c i m e n t o d o t i t u l a r a p r o p r i e d a d e civil dos bens


passava aos herdeiros i n s c r i t o s o u l e g i t i m a d o s , a t é o d é c i m o g r a u de parentesco. Se
fossem i n c o n d i c i o n a i s e dissessem r e s p e i t o a u m a c o i s a i n f u n g í v e l , os legados podiam
ser t r a n s m i t i d o s a q u a l q u e r c a t e g o r i a d e l e g a t á r i o . 1 2
O c ô n j u g e sobrevivente guardava
a propriedade dos b e n s e n q u a n t o a p a r t i l h a n ã o estivesse t e r m i n a d a , a m e n o s que se
tratasse de bens p r ó p r i o s d o f a l e c i d o . S e n ã o h o u v e s s e c ô n j u g e o u se os bens fossem
i n c o m u n i c á v e i s , a p r o p r i e d a d e civil devia ser t r a n s m i t i d a a pessoas "notoriamente
c o n h e c i d a s " c o m o i r m ã o s , i r m ã s , tios, tios o u p r i m o s d o f a l e c i d o , s e g u n d o o Alvará de
1 7 5 4 . Se a sucessão fosse d e o r d e m t e s t a m e n t á r i a , essa p r o p r i e d a d e poderia pertencer
ao cônjuge sobrevivente, ao d e s c e n d e n t e , a o a s c e n d e n t e o u ao e x e c u t o r testamentario
e herdeiro inscrito. O s legatários só e n t r a v a m de posse de seus legados depois do ato
de partilha.
Havia um prazo de trinta dias ( c o n t a d o s a partir da abertura d o processo sucessó-
rio) para que se apresentasse u m a descrição detalhada de todos o s bens deixados pelo
falecido, mas isso era p o u c o respeitado. N a maioria dos casos, fazia-sc apenas uma
descrição sumária, que 'esquecia' u m a parte dos b e n s , s o b r e t u d o daqueles que estives-
sem fora da Província. Às vezes essa prática ocasionava processos. G e r a l m e n t e , porem-
os herdeiros preferiam se entender e resolver a m i s t o s a m e n t e as questões. O inventário
era redigido sob c o n t r o l e de um juiz c o m p e t e n t e , q u e fazia comparecer os credores e
os legatários, para que seguissem o desenrolar d o p r o c e s s o . 13

N o século X I X eram m u i t o raros os que morriam em Salvador deixando bens


declarados, c ainda mais raros os que faziam um t e s t a m e n t o . M a s a lei reconhecia 14
LIVRO I I I - A FAMÍLIA BAIANA 137

dois tipos de s u c e s s ã o : a t e s t a m e n t á r i a e a ab intestato ( o u l e g í t i m a , q u e tratava dos


casos e m q u e o f a l e c i d o n ã o d e i x a r a t e s t a m e n t o ) . N e s s e ú l t i m o c a s o , o c ô n j u g e t o r n a -
va-se o h e r d e i r o , s e g u i n d o - s e os d e s c e n d e n t e s , a s c e n d e n t e s e c o l a t e r a i s .
P r e v i a m - s e diversos casos de pessoas c o n s i d e r a d a s incapazes de suceder: os i n t e -
grantes de o r d e n s religiosas; os a u t o r e s o u c ú m p l i c e s de c r i m e s praticados c o n t r a o
falecido, i n c l u i n d o - s e aí o s c r i m e s c o n t r a a h o n r a , v i o l ê n c i a s e fraudes; o c ô n j u g e
sobrevivente q u e , t e n d o f d h o s , n ã o tivesse m a n d a d o fazer u m i n v e n t á r i o em seguida
ao f a l e c i m e n t o o u q u e , e m c a s o de l o u c u r a d o f a l e c i d o , n ã o o tivesse a j u d a d o a
recuperar a razão; a ' f i l h a - f a m í l i a ' q u e se tivesse d e s o n r a d o ; e, até 1 8 2 4 , os estrangei-
ros, os brasileiros p r i v a d o s d a n a c i o n a l i d a d e , o s p r o s c r i t o s , os h e r é t i c o s , os apóstatas,
os escravos, os b a s t a r d o s e os ' m o r t o s c i v i s ' . A C o n s t i t u i ç ã o de 1 8 2 4 ( q u e , m o d i f i c a d a
pelo A t o A d i c i o n a l e m 1 8 3 4 , p e r m a n e c e u e m v i g o r até 1 8 8 9 ) m a n t e v e essa i n t e r d i ç ã o
no caso dos escravos, dos b a s t a r d o s e dos ' m o r t o s civis'.
S e o c a s a m e n t o tivesse s i d o f e i t o e m r e g i m e de c o m u n h ã o de b e n s , o c ô n j u g e
sobrevivente r e c e b i a a m e t a d e d a h e r a n ç a t o t a l d e p o i s de feitos o i n v e n t á r i o e a avalia-
ção. A o u t r a m e t a d e c a b i a a o s d e m a i s h e r d e i r o s . A o r d e m de sucessão da m e t a d e
disponível era a s e g u i n t e : d e s c e n d e n t e s , a s c e n d e n t e s , c ô n j u g e e, finalmente, o Estado.
Se não houvesse a s c e n d e n t e s , d e s c e n d e n t e s o u colaterais até o d é c i m o grau, o c ô n j u g e
sobrevivente era h e r d e i r o ú n i c o . M a s , n o s s é c u l o s X V I I e X V T I I e n o p r i m e i r o terço do
século X I X , esse e s q u e m a p o d i a variar u m p o u c o q u a n d o e n t r a v a m e m c e n a duas
interessantes i n s t i t u i ç õ e s — o m o r g a d i o e a c a p e l a — q u e , abolidas em 1 8 3 5 , influen-
ciaram as t r a n s f e r ê n c i a s de b e n s e de p r o p r i e d a d e s de certas c a m a d a s sociais na B a h i a .
Bens de m o r g a d i o o u de c a p e l a e s t a v a m s u j e i t o s a l i m i t a ç õ e s n o d i r e i t o de propriedade
e deviam p e r m a n e c e r p e r p e t u a m e n t e c o m a m e s m a f a m í l i a , n ã o p o d e n d o ser partilha-
dos ou a l i e n a d o s .
O m o r g a d i o — q u e p a r e c e ter s i d o usado apenas u m a dezena de vezes na Bahia
durante o p e r í o d o c o l o n i a l — visava p r o t e g e r as f o r t u n a s de família, t e n d o sido ado-
tado s o b r e t u d o p o r p o r t u g u e s e s de a s c e n d ê n c i a n o b r e . P o d i a incluir bens situados n o
Brasil c em P o r t u g a l . 1 5
Essa i n s t i t u i ç ã o trazia c o n s i g o certas obrigações, pois os
administradores (ou seja, os herdeiros) deveriam gastar c o m obras 'piedosas' mais ou
menos a c e n t é s i m a parte das rendas das propriedades. A capela — mais c o m u m — era
uma instituição de caráter religioso, feita para expressar a piedade de seus fundadores,
que destinavam as rendas de certa área territorial para a c o n s t r u ç ã o e conservação de
um t e m p l o . N e m s e m p r e essa prática correspondia às intenções proclamadas. C o m
efeito, através desse m e c a n i s m o a propriedade em questão se tornava inalienável e não
podia ser hipotecada. N u m país cm que as terras mudavam freqüentemente de mãos
e nem m e s m o poderosos senhores de e n g e n h o escapavam ao risco de e m p o b r e c i m e n t o
rápido, era tentador impedir que os herdeiros alienassem ou hipotecassem certas pro-
priedades, m a n t e n d o aberta apenas a possibilidade de que fossem alugadas para saldar
dívidas e v e n t u a i s . 16
Assim, o proprietário original criava, para seus descendentes, um
escudo contra os reveses da fortuna.
BAHIA, S É C U L O XIX
13S

A o r d e m de sucessão para m o r g a d i o s e capelas era a s e g u i n t e : c o m o primeira


o p ç ã o , era herdeiro o filho m a i s v e l h o . S e este m o r r e s s e sem d e s c e n d ê n c i a , era substi-
t u í d o pelo i r m ã o i m e d i a t o o u , c m ú l t i m o c a s o , pelos p r i m o s , desde que do lado
p a t e r n o . A t é 1 7 7 0 , se n ã o houvesse i r m ã o s e p r i m o s h o m e n s , as m u l h e r e s entravam na
linha de t r a n s m i s s ã o . E m n e n h u m caso i n c l u í a m - s e os filhos i l e g í t i m o s . Se o morgadio
fosse p a t e r n o , os irmãos p o r parte de m ã e n ã o p o d i a m h e r d á - l o ; m a s , se fosse materno,
irmãos e p r i m o s - i r m ã o s p o d i a m c a n d i d a t a r - s e à s u c e s s ã o . A r e u n i ã o de dois morgadios
graças a u m c a s a m e n t o foi p r o i b i d a e m 1 7 6 9 . A n t e s desse a n o , para impedir tal
c o n c e n t r a ç ã o de privilégio, a lei o b r i g a v a a d o a r o m o r g a d i o m a i s r i c o a o primogênito
e o o u t r o ao s e g u n d o filho. S e tal divisão fosse i m p o s s í v e l d u r a n t e duas gerações (caso
n ã o houvesse h e r d e i r o d o sexo m a s c u l i n o ) u m dos m o r g a d i o s desaparecia automatica-
mente.

S e g u n d o C l ó v i s B e v i l á q u a , p e r m a n e c e r a m a l g u n s vestígios d o morgadio mesmo


após sua a b o l i ç ã o e m 1 8 3 5 . F o i o c a s o , p o r e x e m p l o , d o a r r e n d a m e n t o vitalício
{enfiteuse), q u e d u r o u até o fim d o s é c u l o . A o e n f i t e u t a s u c e d i a m os descendentes
legítimos, o r d e n a d o s p o r idade e s e x o (os h o m e n s a n t e s das m u l h e r e s ) . Se não houves-
se filhos l e g í t i m o s , a p a r e c i a m os filhos n a t u r a i s , o s a s c e n d e n t e s e os colaterais até o
quarto grau.

HERDEIROS

N o século X I X , havia, na B a h i a , três categorias de d e s c e n d e n t e s : legítimos, legitima-


dos e ilegítimos ( n a t u r a i s ) . O s d i r e i t o s das duas p r i m e i r a s e r a m iguais, sem distinção
de sexo, leito o u idade ( o c o s t u m e de favorecer o m a i s v e l h o o u o segundo dos filhos
h o m e n s n u n c a existiu e m P o r t u g a l n e m n o B r a s i l ) . S e n ã o houvesse filhos vivos, a
sucessão passava para os n e t o s , e assim s u c e s s i v a m e n t e , até a e x t i n ç ã o da descendência.
P o r direito de representação, os d e s c e n d e n t e s de u m grau inferior podiam concorrer
c o m os de grau superior, r e c e b e n d o u m a parte e q u i v a l e n t e da h e r a n ç a . Exemplo: se
um herdeiro morresse antes de seus pais, mas deixasse d e s c e n d e n t e s , estes recebiam a
herança, em pé de igualdade c o m seus tios e tias. Resultava disso tudo um grande
parcelamento das propriedades, s o b r e t u d o agrícolas.
E m b o r a os filhos ilegítimos t a m b é m fossem m u i t o protegidos pela lei, havia nesses
casos regras particulares (que, aliás, se aplicavam aos filhos adotivos). Segundo o
antigo direito português, os filhos naturais dos plebeus tinham direito à sucessão com
direitos iguais aos dos filhos legítimos. N o Brasil, o decreto n ° 4 4 6 3 , de 2 de outubro
de 1 8 4 7 , estendeu esse tratamento aos filhos naturais das famílias nobres. E m qual-
quer caso, porém, era necessário o r e c o n h e c i m e n t o cartorial ou testamentário da pa-
ternidade ou maternidade. U m filho natural reconhecido por uma pessoa casada só
recebia a metade daquilo a que teria direito, caso fosse legítimo. Alé disso, os filhos
legítimos e legitimados não pagavam nenhum direito de sucessão. Até serem assimila-
LIVRO I I I - A FAMÍLIA BAIANA
139

dos aos filhos l e g í t i m o s ( 1 8 6 1 ) , os filhos naturais r e c o n h e c i d o s pagavam u m a taxa de


1 0 % e o s filhos r e c o n h e c i d o s d u r a n t e o c a s a m e n t o pagavam 2 0 % (decretos de 1 8 0 9
e 1835 e regulamentos de 1 8 6 1 c 1 8 7 7 ) .

É fácil avaliar as c o n s e q ü ê n c i a s sociais de u m a legislação desse tipo na tolerante


Salvador: t o d o s o s filhos t i n h a m d i r e i t o a u m a p a r t e das h e r a n ç a s , de m o d o q u e se
criavam f o r t u n a s — a l g u m a s delas, a i n d a atuais — a p a r t i r de situações marginais. O s
atos de r e c o n h e c i m e n t o de p a t e r n i d a d e se t o r n a r a m c a d a vez m a i s n u m e r o s o s n o
correr d o s é c u l o X I X . C o n t e i u m a d e z e n a desses atos p o r a n o e n t r e 1 8 0 0 e 1 8 2 0 mas
esse n ú m e r o p a s s o u a c e r c a d e t r i n t a p o r a n o n o m e i o do s é c u l o .

Clóvis Beviláqua afirma q u e o c ó d i g o filipino " g u a r d a u m silêncio e n i g m á t i c o "


sobre os d i r e i t o s s u c e s s ó r i o s d o s filhos a d o t i v o s . É q u e , na é p o c a , se recorria ao direito
r o m a n o , i n t e r p r e t a d o p e l o u s o m o d e r n o . A pessoa a d o t a d a s u c e d i a a seus pais adoti-
vos, s e m p e r d e r seus d i r e i t o s à s u c e s s ã o d o s b e n s de sua f a m í l i a natural. M a s n ã o tinha
direito a u m a p a r t e l e g a l , p o i s n ã o era c o n s i d e r a d o h e r d e i r o necessário. L o g o , sua
situação era m e n o s f a v o r e c i d a d o q u e a d o filho n a t u r a l r e c o n h e c i d o , o que, aliás,
ajuda a e x p l i c a r o p e q u e n o n ú m e r o d e a d o ç õ e s e n c o n t r a d a s na B a h i a d o século X I X .
O s bastardos — filhos adulterinos ou incestuosos — n ã o estavam afastados das
sucessões. N ã o h e r d a v a m d e suas m ã e s , m a s estas n ã o t i n h a m direitos à h e r a n ç a dos
próprios pais. P r e o c u p a d a e m n ã o e x c l u i r a c r i a n ç a , a legislação previa q u e se pulasse
u m a g e r a ç ã o , f a z e n d o o b a s t a r d o h e r d a r d i r e t a m e n t e de seus avós. As crianças nascidas
de u n i õ e s ilícitas e n t r e m u l h e r e s solteiras e h o m e n s casados entravam na linha de
sucessão p e l o l a d o m a t e r n o , m a s n ã o p e l o p a t e r n o .

SUCESSÃO POR TESTAMENTO

A o r d e m de s u c e s s ã o era a m e s m a , t a n t o e m casos t e s t a m e n t á r i o s c o m o em casos ab


intestato. M a s a p o s s i b i l i d a d e de redigir u m t e s t a m e n t o suavizava os rigores da lei,
p e r m i t i n d o q u e o t e s t a d o r dispusesse l i v r e m e n t e da terça parte de sua fortuna a
'terça' — e m favor de q u e m escolhesse, o u a i n d a e m favor de u m a instituição, religiosa
ou leiga. T o d a s as pessoas p o d i a m fazer t e s t a m e n t o s , c o m exceção dos menores (de
catorze anos para os m e n i n o s e de doze para as m e n i n a s , c o m o n o caso dos casamen-
tos), dos 'filhos-família', dos loucos, dos heréticos, dos apóstatas, dos religiosos professos,
dos c o n d e n a d o s à m o r t e , dos s u r d o s - m u d o s ( q u e , na época, n ã o aprendiam a ler e a
escrever) e dos escravos. M a s , cm toda a Bahia, havia poucas pessoas alfabetizadas,
capazes de redigir. P o r isso, os testamentos podiam ser 'públicos', ditos também
'abertos', o u p r i v a d o s . 17

E m Salvador, os t e s t a m e n t o s serviam f r e q ü e n t e m e n t e para reconhecer paternida-


de, alforriar o u favorecer escravos, esclarecer a maneira c o m o se desejava ser enterrado,
indicar a q u a n t i a q u e se desejava distribuir na forma de esmolas, solicitar a celebração
de missas, legar b e n s o u dinheiro para instituições. Por isso, os testamentos são uma
140 BAHIA, S É C U L O XIX

inesgotável f o n t e de i n f o r m a ç õ e s sobre todas as c a m a d a s sociais de Salvador. N U m

leito de m o r t e , a sinceridade t o r n a - s e praxe. R i c o s e p o b r e s m o s t r a m então t r a ç 0s

m u i t o parecidos, e n t r e os quais a v o n t a d e de sobreviver na l e m b r a n ç a dos seus.

UMA LEGISLAÇÃO BEM ADAPTADA

Alguns traços originais a p a r e c e m nessa análise das bases legais da família. A forma de
associação c o n j u g a l mais c o m u m era a c o m u n h ã o legal de b e n s . Q u e podia significar
essa solidariedade, q u a n d o o s c ô n j u g e s n a d a p o s s u í a m ? M a i s d o que parece. Numa
sociedade e m q u e a riqueza era m u i t o c o n c e n t r a d a , o r e g i m e m a t r i m o n i a l era impor-
t a n t e m e s m o e n t r e os q u e n a d a p o s s u í a m , pois criava u m a solidariedade profunda
entre os dois p a r c e i r o s . Aliás, m e s m o n o c a s o de separação de bens, quase todos os
c o n t r a t a n t e s e s t a b e l e c i a m dotes o u r e n d a s . A t é o n d e p u d e ver, t o d o s os que optavam
pelo regime de separação de b e n s p e r t e n c i a m às c a m a d a s abastadas (comerciantes,
m e m b r o s de profissões liberais, m i l i t a r e s , f u n c i o n á r i o s ) . N o p e r í o d o de 1 8 0 1 a 1809,
e n c o n t r e i t a m b é m sete c o n t r a t o s desse t i p o feitos p o r escravos alforriados, mas foram
e x c e ç ã o . O r e g i m e d a c o m u n h ã o p o d i a ser m o d i f i c a d o n o d e c o r r e r da vida conjugal,
por e x e m p l o q u a n d o u m dos c ô n j u g e s recebesse u m a d o a ç ã o incomunicável.

A solidariedade era u m dos traços d o m i n a n t e s d a sociedade baiana n o século XIX.


A adoção quase a u t o m á t i c a d a c o m u n h ã o de b e n s n o s c a s a m e n t o s reforçava legalmen-
te essas características n a t u r a i s , m u i t o i m p o r t a n t e s para h o m e n s e mulheres. As socie-
dades ocidentais e r a m , n o m e s m o p e r í o d o , m a i s individualistas q u e a b a i a n a . 18

O superpoder dos m a r i d o s era b a s e a d o n u m r e g i m e de bens que — com exceção


de casos e x c e p c i o n a i s , previstos e m c o n t r a t o s o u i m p l í c i t o s em determinadas cláusulas
dos legados , heranças e d o a ç õ e s recebidas n o d e c o r r e r da vida conjugal — lhes atri-
buía a administração dos b e n s d o casal. A m u l h e r era d e p e n d e n t e da vontade do
marido, devendo pedir sua autorização até para certas despesas do dia-a-dia. Se ela
quisesse exercer u m a atividade c o m e r c i a l separada d o m a r i d o , necessitava de uma
autorização especial deste ú l t i m o , registrada e m c a r t ó r i o . 1 9
Apesar disso, a separação
legal de corpos podia, e m c e r t o s casos, afrouxar essa cadeia de dependência, sobretudo
nas classes médias e nas m e n o s favorecidas. Essa separação, bem c o m o a separação de
bens, não era c o m u m nas camadas mais abastadas, o n d e os desentendimentos conju-
gais geralmente terminavam c o m o a f a s t a m e n t o do marido, que ia constituir unia
família marginal. As mulheres dessa camada social raramente transgrediam as inter i-
ções fundadas na moral religiosa.
O casal solidário — legal ou não — tinha direitos e deveres para com sua descen-
dência. Através de alguma das diversas fórmulas legais disponíveis, deveria reconhece*
os filhos nascidos fora dos laços matrimoniais, prática comum a todas as cama
sociais. É difícil avaliar c o m precisão a proporção de filhos ilegítimos reconhecidos,
pois, em geral, isso não era feito por ocasião dos nascimentos, mas por testamentos-
LIVRO III - A F A M Í L I A BAIANA 141

O s próprios padres não hesitavam em apresentar-se aos tabeliães para confessar,


contritos, o número de filhos nascidos de sua "miséria e fragilidade humanas". 20

Legítimas ou legitimadas, reconhecidas ou por reconhecer, adotivas ou (no pior


dos casos) naturais sem esperanças de reconhecimento, todas as crianças eram muito
protegidas pelo legislador, mas submetidas ao poder do pai ou, na ausência deste, da
mãe ou de um tutor, até a maioridade. A sucessão não comportava nenhum direito de
primogenitura, menos nos casos, muito raros, de morgadio ou de capela, restritos às
21

camadas mais abastadas. A lei conferia uma existência real à família natural. Um casal
que vivesse em união livre era incitado a cumprir seus deveres e a regularizar sua
situação, nem que fosse no leito de morte, de modo a evitar contradição flagrante com
a moral cristã.
Vejamos agora como homens e mulheres de Salvador compreendiam essa mensa-
gem e como tiravam proveito de todas as aberturas, todas as possibilidades oferecidas
por uma legislação relativamente flexível.
CAPÍTULO 10

T I P O L O G I A DA FAMÍLIA BAIANA

Destacando apenas a família em seu sentido mais amplo, dita patriarcal, a historio-
grafia brasileira não fornece muitos dados sobre os núcleos familiares que existiam
na época colonial e no século X I X . Compreende-se: as descrições ressaltam a exis-
tência de uma sociedade dividida em dois grandes grupos, o dos senhores e o dos
escravos. Os engenhos de açúcar utilizavam mão-de-obra proveniente da África, en-
gendrando portanto, a partir da cor da pele, uma primeira estratificação social. Apli- 1

cado aos primeiros estabelecimentos coloniais, esse modelo foi estendido às estrutu-
ras oriundas de outras experiências produtivas — a mineração, por exemplo —, como
se nada tivesse mudado ao longo de séculos. Além disso, considerando-se o Brasil
como um país essencialmente agrícola, em geral nenhuma distinção se fazia entre os
meios urbano e rural. A estrutura agrícola e agrária herdada da Colônia, fundada na
monocultura, nos latifúndios e na escravidão, constituía "premissa fundamental" para
a análise da sociedade brasileira do século X I X . Assim, o grupo econômico era quase
2

completamente identificado com o grupo de parentela, ampliado pela presença de


dependentes e escravos, cujo conjunto formava a imensa clientela da família pa-
triarcal. A "grande família", hipertrofiada e multifuncional, englobava todos numa
mesma unidade econômica, "centro e núcleo da vida social", "força social que se
desdobrava em força política", verdadeira "aristocracia rural". Essa imagem era tal-
3

vez adequada à família existente nas plantações de cana-de-açúcar ou de café. M&>


que se passava nas regiões em que imperavam as atividades de extração? Ou naquela*
em que sc fazia uma agricultura de subsistência, através do cultivo de pedaços de
terra relativamente pequenos?
Nao é só. A descrição acima supõe que a família patriarcal — c o m seus aparenra-
dos, nem sempre ligados entre si por laços de s a n g u e — tenha sido nucleada apena*
por casais brancos, nunca mestiços o u misturados. Essa idéia não é correta, sobretudo
q u a n d o se trata do meio u r b a n o . Felizmente, alguns (raros) trabalhos de demofftf
Histórica propõem novos esquemas metodológicos. É o caso, por exemplo, do estu*>

142
LIVRO I I I - A FAMÍLIA BAIANA
143

pioneiro, de M a r i a L u i z a M a r c í l i o , s o b r e a p o p u l a ç ã o de S ã o P a u l o entre 1 7 5 0 e
1850, 4
q u e r e t o m a a d e f i n i ç ã o clássica de família e a estende aos n u m e r o s o s pais e
mães celibatários e n t ã o e x i s t e n t e s . 5
A c r e s c e n t a ainda a n o ç ã o de ' d o m i c í l i o ' , 6
local
o n d e viviam c o m u n i d a d e s c o n s t i t u í d a s p r i n c i p a l m e n t e p o r m e m b r o s de u m a família
_ _ a s c e n d e n t e s , n e t o s e o u t r o s p a r e n t e s , além de e m p r e g a d o s e hóspedes — que
c o m p a r t i l h a v a m o m e s m o t e t o d o c h e f e . P o d e - s e associar esse c o n c e i t o ao de ' f o g o s ' ,
usado nos a n t i g o s r e c e n s e a m e n t o s brasileiros. D e a c o r d o c o m a ausência ou a presença
de u m ou mais c h e f e s de f a m í l i a , M a r i a L u i z a M a r c í l i o distingue, entre a população
livre, três tipos d e d o m i c í l i o s — c o m a p e n a s u m c h e f e , c o m vários chefes e sem chefes

— por sua vez s u b d i v i d i d o s e m diversos tipos de associações f a m i l i a r e s . 7

E s t u d a n d o o c a s o d e V i l a R i c a ( M i n a s G e r a i s ) , Iraci del N e r o da C o s t a 8
propôs
outra classificação, m u i t o ú t i l , s o b r e t u d o q u a n d o se trata de d e t e r m i n a r o t a m a n h o e
a estrutura dos g r u p o s d o m é s t i c o s . E l a p a r t e de d u p l o c r i t é r i o : o institucional (família
livre o u escrava) e o l i g a d o aos c o s t u m e s ( f a m í l i a i n d e p e n d e n t e o u d e p e n d e n t e ) . Neste
último caso a p a r e c i a m os a g r e g a d o s — parentes o u a m i g o s p o b r e s , o u então escravos
alforriados — q u e e x i s t i a m e m t o d a s as regiões d o Brasil, t a n t o n o c a m p o c o m o na
cidade. E m b o r a livres, m a n t i n h a m laços de d e p e n d ê n c i a e s u b o r d i n a ç ã o em relação ao
chefe das famílias q u e os h a v i a m r e c e b i d o . É e v i d e n t e q u e essa classificação é útil para
determinar o t a m a n h o e a e s t r u t u r a dos g r u p o s d o m é s t i c o s .
Seria i n t e r e s s a n t e t e n t a r u m a classificação q u e pudesse servir para várias regiões
brasileiras, de m o d o a p e r m i t i r c o m p a r a ç õ e s e n t r e as estruturas familiais. Além disso,
é essencial d i s t i n g u i r f a m í l i a s f o r m a d a s p o r pessoas livres, alforriadas o u escravas, para
que se possam c a p t a r as m o b i l i d a d e s sociais e afastar a idéia de u m a sociedade bloquea-
da, dual, q u e o p u n h a , s e m n u a n c e s , s e n h o r e s b r a n c o s e escravos negros.

Adotei u m m é t o d o d i f e r e n t e , q u e m e pareceu útil para estudar primeiro a famí-


lia nuclear, e l e m e n t a r , b i o l ó g i c a , base de t o d a associação f a m i l i a l . 9
N o Brasil, essa
família era l e g í t i m a (ou seja, a b e n ç o a d a pela Igreja) ou natural. S o b r e esta última
— que podia ser f o r m a d a por u m c h e f e m a s c u l i n o , u m a m u l h e r 'agregada' e seus
filhos, sc existissem — há p o u c o s d o c u m e n t o s . Acrescentei ainda os casais sem fi-
lhos (que criam p r o b l e m a s de classificação, pois dizem respeito a três casos diferen-
tes: casal c o n s t i t u í d o c m idade tardia, casal sem filhos sobreviventes, e casal que
ainda não teve filhos) c as mães ou pais solteiros (não necessariamente a procriação
exigia c o a b i t a ç ã o prolongada; os atos cartoriais de r e c o n h e c i m e n t o de filhos natu-
rais mostram q u e era c o m u m que h o m e n s e mulheres tivessem vãrios filhos com
pessoas diferentes).
Para e n c o n t r a r todos os tipos dc associações que não fossem do tipo da família
simples, enfoquei depois os grupos domésticos, ou seja, " c o n j u n t o s de pessoas que
compartilham o m e s m o espaço dc v i d a " . " M e u estudo, que cobre o período 1 8 0 0 -
1

1 8 9 0 , se baseia essencialmente cm duas séries dc d o c u m e n t o s : o recenseamento reali-


zado em 1 8 5 5 na cidade dc Salvador c 1.101 inventários post mortem ( 7 1 5 de homens
C 3 8 6 dc mulheres), feitos por pessoas, livres ou alforriadas, de todas as camadas sociais
BAHIA, S Ê C L T O XJX
144

de Salvador. A p a r e c e m t a m b é m i n f o r m a ç õ e s s o b r e as famílias dos escravos q ç p U Ç r t ç

ciam aos testadores.


Q u a s e t o d o s os d o c u m e n t o s d o c e n s o d c 1 8 5 5 foram destruídos ou d c s a p a r ç c

ram. Restaram dados sobre c i n c o q u a r t e i r õ e s , localizados c m q u a t r o das onze p ^ a r

quias da c i d a d e : S é , S a n t o A n t ô n i o A l é m d o C a r m o , S ã o Pedro c P i l a r . 11
Trabalh
c o m apenas tres delas — 2 1 4
c 22 a
da S é c 1 0 a
d o Pilar, q u e abrigavam ao rodo \ \\
f a m í l i a s — pois só nesses casos p u d e e s t a b e l e c e r os graus dc parentesco dos integrantes
dos grupos d o m é s t i c o s . Para o e s t u d o s o b r e a família alforriada, utilizei uma terceira
série, formada p o r 4 8 2 t e s t a m e n t o s de escravos alforriados na Bahia no século XIX

FAMÍLIA LEGAL E CONSENSUAL

J o h i l d o L o p e s de A t h a y d e escreveu u m p i o n e i r o e s t u d o d e m o g r á f i c o sobre a cidade de


Salvador n o século X I X , r e c e n s e a n d o as três g r a n d e s variáveis — batismos, casamentos
e ó b i t o s . M a s não prosseguiu e m d i r e ç ã o a u m a análise a p r o f u n d a d a da família baiana.
N ã o o b s t a n t e , e n c o n t r e i nesse t r a b a l h o i n f o r m a ç õ e s m u i t o úteis, c o m o a média anual
de c a s a m e n t o s em períodos de dez a n o s . E n t r e 1 8 0 0 e 1 8 3 9 essa média oscilou entre
1 9 8 , 7 e 2 0 4 , 7 ; na década de 1 8 4 0 , caiu para 1 8 2 , 5 ; e n t r e 1 8 5 0 e 1 8 8 9 houve progres-
são c o n t í n u a : 2 7 1 , 3 ( 1 8 5 0 - 1 8 5 9 ) , 2 9 2 , 7 ( 1 8 6 0 - 1 8 6 9 ) , 3 5 8 , 7 ( 1 8 7 0 - 1 8 7 9 ) c 401,6
(1880-1889). 1 2
O forte a u m e n t o o b s e r v a d o na passagem da década de 1 8 4 0 - 1 8 4 9
para a de 1 8 5 0 - 1 8 5 9 ( 4 8 , 6 ) p e r m i t e duas e x p l i c a ç õ e s , c o m p l e m e n t a r e s entre si: as
epidemias de febre amarela e de cólera t o r n a r a m mais forte o m e d o da morte, levando
maior n ú m e r o de casais a regularizar suas situações, o u a Igreja a u m e n t o u sua influên-
cia, tornando-se mais r o m a n a e, p o r t a n t o , mais severa em matéria de moral. Seja como
for, o n ú m e r o de c a s a m e n t o s d o b r o u ao l o n g o o século X I X .

C o m o disse, para estudar a situação j u r í d i c a da família baiana, recorri a informa-


ções dos 1 . 1 0 1 inventários post mortem j á m e n c i o n a d o s e do recenseamento de 1855-
O s primeiros possibilitaram a identificação de 7 7 2 famílias e o segundo de 111* entre
1 4 6 grupos domésticos.
N o universo retratado nas duas séries de d o c u m e n t o s , a soma dos casais c das
pessoas viúvas que tinham filhos vivos chegava a 8 2 % d o total. Precisamos tentar saber
se os 1 8 % restantes tinham filhos falecidos. N o recenseamento nada se diz sobre isso.
embora apareça a idade dos dois parceiros; nos inventários o contrário se dá: fornecem-
sc a idade e o número dc filhos falecidos, mas raramente se diz a idade dos cônjuges-
T r ê s dos cinco casais sem filhos citados n o recenseamento de 1855 haviam ultra-
passado a idade dc procriação. Casamentos tardios eram então bastante freqüento,
fosse para legalizar antigas uniões livres, fosse para unir uma pessoa viúva a outra.
Doações feitas a um dos esposos muitas vezes explicitavam a situação. Entre 1806 C
1 8 6 1 , por exemplo, foram celebrados 8 2 2 casamentos na paróquia do Paço, vizinha
à da Sé, localizada no centro da Cidade Alta; 2 1 , 6 % dos homens e 1 1 , 9 % das
LIVRO I I I - A FAMÍLIA BAIANA
145

m u l h e r e s n e l e s e n v o l v i d o s t i n h a m m a i s de q u a r e n t a a n o s . 1 3
N a m a i o r i a desses c a -
sos, t r a t a v a - s e d e p e s s o a s a l f o r r i a d a s , o q u e n ã o é e s t r a n h o : a alforria era mais fre-
q ü e n t e m e n t e c o n s e g u i d a e m i d a d e r e l a t i v a m e n t e a v a n ç a d a . H a v i a t a m b é m portugueses
p o b r e s q u e se c a s a v a m t a r d e p o r q u e , d u r a n t e m u i t o t e m p o , v i v i a m a e x p e c t a t i v a de
fazer f o r t u n a e r e t o r n a r à p á t r i a . E m q u a l q u e r c a s o , os casais r e c é m - l e g a l i z a d o s eram
muito acolhedores em relação aos filhos n a t u r a i s j á e x i s t e n t e s . D o s 5 8 viúvos o u
viúvas r e g i s t r a d o s e m n o s s o q u a d r o , n o v e t i v e r a m filhos q u e f a l e c e r a m s e m deixar
d e s c e n d ê n c i a e n o v e e r a m e s t r a n g e i r o s ( q u a t r o a f r i c a n o s a l f o r r i a d o s , três p o r t u g u e -
ses, u m e s p a n h o l e u m f r a n c ê s ) .

TABELA 23

FAMÍLIAS LEGAIS ( 1 8 0 0 - 1 8 8 9 )

FAMÍLIA LEGAL RECENSEAMENTO DE 1855 INVENTÁRIOS TOTAL

Casais com filhos 31 (50,0) 464 (60,0) 495 (59,5)


Casais sem filhos 5 (8,3) 85 (10,9) 90 (10,8)

Viúvos com filhos 5 (8,3) 94 (12,2) 100 (12,0)

Viúvas com filhos 19 (31,6) 71 (9,2) 90 (10,8)

Viúvos sem filhos 1 (1,7) 16 (2,0) 17 (2,0)

Viúvas sem filhos 1 (1,7) 42 (5,4) 43 (5,1)

Total 62 (100,0) 772 (100,0) 835 (100,0)

E n t r e as 6 2 f a m í l i a s legais r e c e n s e a d a s e m 1 8 5 5 , q u a r e n t a e r a m b r a n c a s , dezesseis
mulatas e s o m e n t e seis n e g r a s , d i s t r i b u i ç ã o q u e n ã o c o r r e s p o n d i a de j e i t o n e n h u m ao
peso de c a d a e t n i a n a p o p u l a ç ã o b a i a n a , f o r m a d a p o r c e r c a de 5 0 % de negros, 2 0 % de
mestiços e 3 0 % d e b r a n c o s . A s s i m , p o d e - s e d i z e r q u e , e m p r i m e i r o lugar, as pessoas
livres e, d e p o i s , os b r a n c o s e r a m p r o p o r c i o n a l m e n t e os q u e m a i s se apresentavam para
obter a b e n ç ã o m a t r i m o n i a l . M a s , q u a n d o r e p a r t i m o s os chefes de família p o r cor e
profissão, v e r i f i c a m o s q u e o c a s a m e n t o legal representava u m a espécie de ascensão
social para o casal m e s t i ç o o u n e g r o , q u e dessa f o r m a assimilava os valores d o grupo
branco d o m i n a n t e . U m a u n i ã o legal c o n f e r i a , a u m n e g r o ou m e s t i ç o , a respeitabili-
dade necessária a u m a a s s i m i l a ç ã o , q u e facilitava a c o n q u i s t a de u m a posição social
melhor para os filhos.
S ó e n c o n t r e i q u a t r o c a s a m e n t o s legais e n v o l v e n d o pessoas brancas e de c o r . E m
dois deles, h o m e n s m u l a t o s — professores, profissão m u i t o prestigiada — se casaram
c o m mulheres b r a n c a s ; n o o u t r o , n ã o aparece a profissão d o marido ( t a m b é m m u l a t o ) ,
que, n o e n t a n t o , p o s s u i n d o três escravos, c o m certeza tinha u m a situação financeira
aceitável. N o q u a r t o c a s o , u m português, d o n o de armazém, casou-se c o m u m a mulata.
C o m q u e idade as pessoas se casavam na Bahia? O s n ú m e r o s apresentados por
J o h i l d o A t h a y d e para as paróquias d o P a ç o (1806-1861) e da C o n c e i ç ã o da Praia
146

( 1 8 5 5 - 1 8 6 5 ) p e r m i t e m algumas c o n c l u s õ e s . 1 4
A p r i m e i r a , c o m o v.mos, f l c a v a n a

C i d a d e Alta, p e r t o d a C a t e d r a l , e m p l e n o c o r a ç ã o do d . s t r . t o r e s . d e n a a l , e n q u a n t 0 a

s e e u n d a estava na C i d a d e B a i x a , n o d i s t r i t o c o m e r c i a l d a c i d a d e . N a s duas p a r ó q u ^
a m é d i a de idade dos h o m e n s ao casar ( 2 9 a n o s ) era s e n s i v e l m e n t e superior à das
m u l h e r e s ( 2 4 ) . A m a i o r i a destas se casava e n t r e 1 5 e 2 4 a n o s e os h o m e n s entre 20 ,
Z anos I e n o r o c o m o essas m é d i a s se r e p a r t i a m d e n t r o das diversas camadas sociais,
e s p e c i a l m e n t e n o q u e dizia respeito a pessoas livres, a i f o m a d a s e escravas.

TABELA 24

C o r e S i t u a ç ã o Profissional dos Chefes de Família


segundo o Recenseamento de 1 8 5 5

PROFISSÃO BRANCO MULATO NEGRO

Magistrado 1 - -
Escrivão 3 - -
Procurador de Justiça 1 - -
Escrevente - 1 -
Servidor público 8 I -
Advogado 1 - -
Médico 1 - -
Mestre - 1 -
Proprietário 1 - -
Comerciante 5 - -
Empregado no comércio 2 - -
Marítimo 1 - -
Ourívcs - I

Correeiro 1 - -
Artista 1 - -
Pedreiro
- 1 1

Marceneiro - 1 -
Pintor de paredes - 2 -
Chapelciro
- 1 -
Tanoeiro - - 1

Punileíro - 1 -
Açougueiro - 1 l

Sem profissão 2 3 I

Total 28 13 5
LIVRO I I I - A FAMUIA BAIANA 14?

TABELA 25

REPARTIÇÃO DOS CASAMENTOS SEGUNDO A IDADE


NAS P A R Ó Q U I A S D O P A Ç O ( 1 8 0 6 - 1 8 6 1 ) E CONCEIÇÃO DA PRAIA (1855-1865)

PAÇO CONCEIÇÃO DA PRAIA

IDADE AO CASAR HOMENS MULHERES HOMENS Mui HERES

até 15 anos - . - 12 (2.9) - - 11 (4,6)


dc 15 a 1 9 21 (5,1) 126 (30,7) 7 (2,9) 70 (29.1)

dc 20 a 24 88 (21,4) 94 (22.9) 53 (22,2) 62 (25.8)

de 25 a 29 115 (27,9) 65 (15,9) 61 (25,5) 30 (12.5)

de 30 a 34 60 (14.6) 40 (9,8) 37 (15,5) 15 (6,3)

de 35 a 39 39 (9,4) 24 (5,9) 19 (7.9) 11 (4.6)

de 40 a 44 43 (10,4) 30 (7,3) 22 (9,2) 17 (7,1)

de 45 a 4 9 11 (2,7) 7 (1,7) 10 (4,2) 8 (3,3)

50 ou mais 53 (8.5) 12 (2.9) 30 (12,6) 16 (6.7)

Total 430* (100,0) 410 (100,0) 239 (100,0) 240 (100,0)

(") Este total é falso. Com efeito, se somarmos o número de cônjuges da paróquia do Paço. apresentado pelo próprio autor
na tabela publicada na p. 323 de seu trabalho, encontramos 822, ou seja, 411 pessoas de cada sexo. O mesmo pode ser
constatado para o caso da paróquia de Conceição da Praia.
Fonte: Johildo Lopes de Athavde, La ville de Salvador au XIX siècle. Aspects démographiques (d'après les registres paroissiaux),
e

p. 3 2 5 e 3 2 9 .

O t a m a n h o das famílias legais t a m b é m é u m dado q u e permanece vago quando se


consultam inventários e o r e c e n s e a m e n t o de 1 8 5 5 . N o s melhores casos, obtêm-se ' f o -
tografias , q u e c a p t a m u m instante preciso. A busca de u m a sucessão de imagens da
1

mesma família constrói o mais das vezes u m a história irregular e hesitante. N a tabela
abaixo, incluí casais o u pessoas viúvas c o m filhos; depois, contei todas as crianças, mesmo
as falecidas, deixando d e fora só os filhos naturais q u e não moravam c o m os pais.

TABELA 26

T A M A N H O DA FAMÍLIA LEGAL, 1800-1890

INVENTARIOS T O T A l DE T O T A l DE
N° DE FILHOS RECENSEAMENTO Fll HOS
hist mortem FAMÍLIAS
DF. 1855
126 (18,5) 126 (5.0)
1 14 112
127 (18.6) 254 (10,2)
2 13 114
118 (17.3) 354 (14.2)
3 11 107

107 112 (16.4) 448 (18.0)


4 5
63 (9.2) 315 (12.6)
5 4 59

51 54 (7.9) 324 (13.0)


6 3
79 Hl (11.9) 669 (26.8)
7 ou mais 2
629 681 (100.0) 2.490 (100.0)
Total 52
BAHIA, SÉCULO XIX
148

Fica claro q u e a família legal na S a l v a d o r d o s é c u l o X I X era de t a m a n h o médio-


7 0 % delas t i n h a m entre u m e q u a t r o filhos, e apenas 1 2 % p o d i a m ser consideradas
n u m e r o s a s . Estas c o n c e n t r a v a m - s e e n t r e as c a m a d a s mais abastadas, pois, em 9 0 % d 0 s

casos, t i n h a m c o m o c h e f e u m profissional liberal, u m alto f u n c i o n á r i o o u um grande


c o m e r c i a n t e . Para o c o n j u n t o da c i d a d e , a m é d i a era de 3 , 7 filhos por família.
A tabela seguinte leva e m c o n t a , d e u m l a d o , casais casados e pessoas viúvas sem
filhos; de o u t r o , casais e viúvos c o m filhos vivos, d e m e n o s d e 2 0 a n o s e que viviam
c o m os pais. O r e c e n s e a m e n t o f o r n e c e a i d a d e d o s c ô n j u g e s e de seus filhos, mas os
inventários, n e m s e m p r e . N e l e s , c o m o v i m o s , o m i t i a - s e a p r ó p r i a idade do falecido.
Para u m a m a i o r a p r o x i m a ç ã o c o m a r e a l i d a d e , utilizei apenas os inventários que
f o r n e c i a m as idades dos filhos. D e v e - s e registrar, p o r é m , q u e , e m Salvador, os estudos
de r e c o n s t i t u i ç ã o de f a m í l i a s ã o e s p e c i a l m e n t e d i f í c e i s , pois o c o s t u m e permitia que,
depois de casadas, as m u l h e r e s c o n s e r v a s s e m o n o m e de s o l t e i r a . M u i t a s vezes, elas
utilizavam apenas o p r e n o m e o u d a v a m aos filhos ( d o m e s m o pai) n o m e s de outra
família. O s filhos de sexo m a s c u l i n o p o d i a m r e c e b e r o n o m e d a f a m í l i a de um parente
o u a m i g o que se desejava h o m e n a g e a r .

T A B E L A 27

FAMÍLIAS SEM F I L H O S E C O M F I L H O S V I V O S D E M E N O S D E 2 0 ANOS

N ° DE FILHOS RECENSEAMENTO INVENTÁRIOS TOTAL DE


DE 1855 post mortem FILHOS

0 7 (17,0) 155 (36,8) -


1 10 (24,3) 66 (15,7) 76 (8,5)

2 6 (14,6) 65 (15,4) 142 (15,9)

3 7 (17,0) 50 (11,8) 171 09.1)

4 2 (4,9) 36 (8,5) 152 (17,0)

5 5 (12,2) 23 (5.6) 140 05.7)

6 2 (4,9) 11 (2.6) 78 (8.7)

7 ou mais 2 (4,9) 15 (3,6) 134 (15,0)

Total 41 (100,0) 421 (100.0) 893 (100,0)

T a n t o n o r e c e n s e a m e n t o c o m o nos inventários, era grande a presença de casais e


dc pessoas viúvas sem filhos: 3 6 , 8 % , em m é d i a , percentual m a i o r d o que aquele
relativo aos casamentos tardios. Seriam casais ' v e l h o s ? N ã o m e parece. E m Salvador,
a morte atingia jovens de todas as idades e c o n d i ç õ e s sociais. N ã o se pode considerar
certo que os viúvos acima citados n u n c a tenham tido filhos, pois estes podem ter
morrido antes dos próprios pais. P o r o u t r o lado, a repartição de filhos por família é a
mesma que a da tabela precedente, mas houve uma d i m i n u i ç ã o importante das famí-
lias numerosas, em clara correspondência c o m os elevados índices de mortalidade do
século X I X , repleto de epidemias. São, aliás, abundantes as informações sobre os lutos
L I V R O III - A FAMILIA BAIANA
149

nas famílias baianas, 6 0 % das quais perdiam a metade de seus filhos antes da morte de
um dos pais. U m e x e m p l o e n t r e m i l : F r a n c i s c o Adães Vilas Boas, rico comerciante
português falecido e m 1 8 8 5 , declarou e m seu t e s t a m e n t o ter tido doze filhos, dos
quais seis m o r t o s e m tenra idade.

As famílias de S a l v a d o r t i n h a m , e m m é d i a , 1,9 filho ( n ú m e r o q u e subiria para três


se excluíssemos os casais e as pessoas viúvas sem filhos). E r a m , p o r t a n t o , pouco n u m e -
rosas, por causa da g r a n d e m o r t a l i d a d e infantil e juvenil, da idade relativamente
avançada dos n u b e n t e s e d o s s e g u n d o s c a s a m e n t o s (note-se q u e a média encontrada
em S ã o Paulo p o r M a r i a Luiza M a r c í l i o está m u i t o p r ó x i m a da m i n h a : 1,8 filho por
família e m 1 7 6 5 ) . 1 5
C o m o explicar e n t ã o o a u m e n t o da população da cidade e seus
grandes índices de c r e s c i m e n t o ? A resposta se e n c o n t r a na p r o p o r ç ã o , m u i t o elevada,
de filhos ilegítimos n a s c i d o s e m Salvador. À família legal, acrescentava-se a consensual,
que vamos analisar agora.

A FAMÍLIA CONSENSUAL

Fundada apenas n o c o n s e n t i m e n t o m ú t u o dos parceiros, a família consensual não era


reconhecida n e m pela I g r e j a n e m pelas leis, mas era encarada sem maiores problemas
pela sociedade b a i a n a desde o início da c o l o n i z a ç ã o . Influenciados por essa forte cor-
rente de tolerância e p r e o c u p a d o s e m proteger as crianças, os legisladores contribuí-
ram para dar a essas u n i õ e s a l g u m a existência legal, graças ao estatuto oferecido aos
filhos r e c o n h e c i d o s .

J o h i l d o Athayde m o s t r o u q u e , entre 1 8 5 6 e 1 8 6 5 , na paróquia da Sé, 4 5 , 7 % dos


homens e 5 1 , 5 % das mulheres — p o r t a n t o , quase a metade da população — perma-
neciam definitivamente c e l i b a t á r i o s . 16
O estado civil dos nossos recenseados confirma
esses dados?

TABELA 28

E S T A D O C I V I L D O S C H E F E S D E F A M Í L I A , SEUS C Ô N J U G E S E SEUS A G R E G A D O S

ESTADO CIVIL INVENTARIOS TOTAL GERAI


RECENSEAMENTO DE 1 8 5 5 POSTMORTEM

MULHERES HOMENS MULHERES HOMENS

Celibatário» 121 203 488 (35.9)


110 54

Casados 36 148 401 621 (45,7)


36

Viúvos 20 113 110 249 (18.3)


6

Total 382 714 1.358 (100.0)


152 110

Baseada no recenseamento de 1 8 5 5 , esta tabela inclui os solteiros adultos que não


viviam em concubinato c não tinham filhos. Quase 3 6 % dos recenseados estavam
nessa condição! Se fossem utilizados apenas os dados fornecidos pelos inventários post
BAHIA, SÉCULO X I X

mortem, o percentual cairia para 2 9 , 6 % , m u i t o m e n o r q u e o o b t i d o por J o h i l d 0

Athayde (que n ã o distingue escravos e livres). M a s os i n v e n t á r i o s só diziam respeito a

u m n ú m e r o restrito de b a i a n o s , o u seja, aqueles q u e legavam heranças. Tomemos


c o m o e x e m p l o a década de 1 8 5 0 , para a qual apurei p r a t i c a m e n t e todos os inventários
post mortem. S e g u n d o o e s t u d o de A t h a y d e , nessa é p o c a a m é d i a anual de óbitos em
Salvador — cidade c o m cerca de o i t e n t a m i l h a b i t a n t e s — era de 2 . 7 5 5 , 5 pessoas,
c o n s i d e r a n d o - s e todas as c o n d i ç õ e s j u r í d i c a s . E r a u m p e r í o d o de epidemias, e o ín-
dice b r u t o de m o r t a l i d a d e a t i n g i a 3 4 , 4 % ( J o h i l d o A t h a y d e f o r n e c e , para 1 8 0 5 , um
índice de m o r t a l i d a d e de 3 0 , 2 % . Para 1 8 7 2 , de 2 4 , 7 % ) . H a v i a n a cidade aproxima-
d a m e n t e 1 0 . 8 7 0 escravos, u m ' e s t o q u e ' q u e , o f i c i a l m e n t e , parara de se renovar desde
a abolição do tráfico, e m 1 8 5 0 . 1 7
P o d e - s e a d m i t i r q u e o í n d i c e de mortalidade dos
escravos era, pelo m e n o s , o d o b r o d o e x i s t e n t e e n t r e a p o p u l a ç ã o livre; afinal, mal
nutridos, mal tratados, fazendo e c o n o m i a s para p o d e r c o m p r a r sua liberdade, eles
enfrentavam c o n d i ç õ e s de vida m u i t o duras, apesar de serem mais independentes que
os escravos rurais. A m o r t a l i d a d e infantil representava c e r c a de 3 0 % dos óbitos. Res-
tam e n t ã o , para os adultos livres, c e r c a de 6 4 2 , 3 ó b i t o s a n u a i s e m m é d i a . Ora, traba-
lhando apenas c o m f a l e c i m e n t o s o c o r r i d o s na d é c a d a d e 1 8 5 0 , d i s p o n h o de uma
média de 3 1 , 4 inventários p o r a n o , feitos e n t r e u m a c a m a d a social q u e representava
apenas 4 , 9 % d a p o p u l a ç ã o adulta. É p o u c o .

D i s p o n h o de o u t r o recurso para m i n h a pesquisa s o b r e os celibatários definitivos:


as raras listas eleitorais ainda existentes. T o m e m o s , p o r e x e m p l o , a lista feita em 1857
na paróquia de S ã o P e d r o , situada n a C i d a d e A l t a e v i z i n h a da S é . C o m o esta, era uma
paróquia residencial, h a b i t a d a s o b r e t u d o p o r f u n c i o n á r i o s , pessoas que exerciam pro-
fissões liberais o u ofícios artesanais. E n t r e os 2 0 6 eleitores q u e j á haviam ultrapassado
os cinqüenta anos, 1 5 2 eram viúvos o u casados ( 7 3 , 8 % ) e 5 4 eram solteiros ( 2 6 , 2 % ) .
São números mais p r ó x i m o s d o resultado de m i n h a s c o n t a s d o que daquele apresen-
tado por J o h i l d o Athayde. N ã o há dúvida de q u e as listas eleitorais privilegiavam
certas classes, pois o sistema era censitário. M a s o p a t a m a r de rendas solicitado era tão
baixo ( 2 0 0 . 0 0 0 réis anuais) que figuram nesses d o c u m e n t o s pessoas humildes, como
pescadores, remadores e vendedores. É provável q u e u m percentual situado entre os
4 5 % de Athayde e os meus 3 0 % corresponda à realidade baiana. E m qualquer caso,
fica claro que o celibato era um f e n ô m e n o i m p o r t a n t e em Salvador.

UNIÕES LIVRES

Convicção, escolha ou coação induziam as pessoas ao celibato ? Q u e relação tinha esse


fenômeno c o m a formação de famílias consensuais? Seria tudo isso um traço caracte-
rístico das sociedades escravocratas?
C o m um número bem menor de escravos, tanto em termos relativos como abso-
lutos, Portugal experimentara uma verdadeira "crise de população", agravada p e ' a
LIVRO I I I - A FAMÍLIA BAIANA 151

expansão colonial, a p o n t o de a Igreja e o Estado passarem a admitir uniões extralegais. 18

U m a simples declaração d e vida c o m u m resolvia a questão, eximindo-se os mais


humildes da grande despesa representada pela c o n v o c a ç ã o de u m padre. O c a s a m e n t o
religioso só se tornara o b r i g a t ó r i o e m Portugal n o século X V I , o q u e , e v i d e n t e m e n t e ,
não impedira a existência d o s a m o r e s clandestinos q u e resultavam e m 'casamentos a
furto' e ' c a s a m e n t o s d e p ú b l i c a f a m a ' .
Essas práticas foram a c e n t u a d a s n o Brasil, c o m o afluxo d c h o m e n s e a falta de
mulheres d e raça b r a n c a . U m a t r a d i ç ã o d e c e l i b a t o s e d e f o r m a ç ã o d e famílias
consensuais nasceu e c r i o u p r o f u n d a s raízes n a sociedade baiana. T a n t o os humildes,
às vezes pobres d e m a i s p a r a assumir as despesas d e u m a c e r i m ô n i a religiosa, q u a n t o os
mais abastados r e c u a v a m d i a n t e das i m p o s i ç õ e s d o c a s a m e n t o legal, c o m o por e x e m -
plo a educação dos filhos e a o b r i g a ç ã o de sustentá-los. A tabela abaixo ajuda a avaliar
a proporção d e famílias c o n s e n s u a i s n a S a l v a d o r d o século X I X .

T A B E L A 29

FAMÍLIA L E G A L E FAMÍLIA C O N S E N S U A L NA BAHIA

FAMÍLIA LEGAL FAMILIA CONSENSUAL

REC. DE INVENTÁRIOS TOTAL REC. DE INVENTARIOS TOTAL


1855 (1800-1899) 1855 (1800-1889)

Casal com filho 35 464 499 17 - 17

Casal sem filho 5 85 90 18 - 18

Viúvo com filho 5 94 99 - - -


Viúva com filho 19 71 90 - - -
Viúvo sem filho 1 16 17 - - -
Viúva sem filho 1 42 43 - - -
Mãe celibatária - - - 32 41 73

Pai celibatário -
- - - 3 112 115

Total 66 772 838 70 153 223

(") Excluídos os celibatários sem filhos.

Segundo o r e c e n s e a m e n t o de 1 8 5 5 , 5 2 , 2 % dos casais viviam em união livre. M a s ,


segundo os inventários post mortem, esse índice seria de apenas 1 6 , 5 % . A grande
diferença se explica: esta ú l t i m a f o n t e não i n f o r m a c o m precisão sobre a eventual
coabitação de u m a pessoa solteira c o m alguém do sexo oposto. O recenseamento
parece tratar a questão d e f o r m a mais precisa, d e m o d o q u e se pode dizer que a família
consensual era, n a B a h i a , mais disseminada q u e a legal.
Casais c o m filhos e pais ou mães solteiros eram, por sua vez, m u i t o mais freqüen-
tes do q u e casais s e m filhos. N a série dos inventários, os h o m e n s representavam 7 3 , 2 %
das pessoas celibatárias c o m filhos; n o recenseamento a relação se invertia: eram m u -
lheres 8 9 , 2 % dos solteiros c o m filhos. Podemos resolver essa contradição atentando
BAHIA, S É C U L O XIX

para a p r ó p r i a n a t u r e z a d o s d o i s d o c u m e n t o s . Às vésperas da m o r t e , os pais reconh


c i a m seus filhos, para q u e estes p u d e s s e m herdar; até e n t ã o , na m a i o r parte das veze
a prole ficava i n t e i r a m e n t e aos e n c a r g o s da m ã e .

N a d é c a d a de 1 8 5 0 , os i n v e n t á r i o s post mortem registraram 1 2 1 mulheres e 203


h o m e n s c e l i b a t á r i o s . N o r e c e n s e a m e n t o de 1 8 5 5 s ó a p a r e c e r a m 1 1 0 h o m e n s e 54
m u l h e r e s nessa c o n d i ç ã o . N e n h u m desses h o m e n s era p o r t u g u ê s ou alforriado, e só
u m a m u l h e r figurava c o m o a l f o r r i a d a . M a s a f o r m a de e l a b o r a ç ã o d o recenseamento
n ã o p e r m i t e u m a resposta precisa a o p r o b l e m a q u e m e interessa aqui. Raramente os
inventários i n d i c a v a m a idade e a c o r d o f a l e c i d o , a n ã o ser q u a n d o ele fosse filho
natural ou escravo a l f o r r i a d o . E n t r e as q u a r e n t a m ã e s celibatárias c u j o testamento
c o n s u l t e i , c i n c o e r a m a f r i c a n a s alforriadas e seis e r a m filhas naturais. N ã o se deve
esquecer q u e , n a Á f r i c a , o c a s a m e n t o n ã o era c e l e b r a d o s e g u n d o as mesmas regras do
Brasil ' l u s i t a n i z a d o ' e c a t ó l i c o . A g r a n d e m a i o r i a das m u l h e r e s celibatárias era, sem
dúvida, b a i a n a . O s h o m e n s , n ã o : e r a m de o r i g e m e u r o p é i a 3 0 % e africana (alforria-
d o s ) 1 2 % dos 1 1 2 c e l i b a t á r i o s c u j o s i n v e n t á r i o s c o n s u l t e i . A s s i m , os recém-chegados
p e r p e t u a v a m , e m S a l v a d o r , o c o s t u m e da u n i ã o livre.

S e r i a possível d e f i n i r a c o r e o e s t a t u t o profissional desses pais e mães desacom-


p a n h a d o s de c ô n j u g e ? O r e c e n s e a m e n t o de 1 8 5 5 f o r n e c e u i n f o r m a ç õ e s úteis, mas
o m i t i u as profissões das m ã e s de f a m í l i a . S a b e m o s , n o e n t a n t o , q u e quase todas as
integrantes de camadas urbanas m e n o s favorecidas exerciam ofícios variados. Vendedoras
a m b u l a n t e s , lavadeiras, costureiras, passadeiras, a m a s - d e - l e i t e , bordadeiras e rendeiras
f o r m a v a m u m a p o p u l a ç ã o d i l i g e n t e e ativa, q u e p e r c o r r i a as ruas de Salvador, freqüen-
t e m e n t e a c o m p a n h a d a da filharada b a r u l h e n t a e alegre, q u e animava uma cidade
atravancada, ativa e tagarela.

T A B E L A 30

ORIGEM D E PAIS E M Ã E S CELIBATÁRIOS,


SEGUNDO INVENTÁRIOS, 1800-1899

BRASILEIROS EUROPEUS AFRICANOS

Pais 57 43 12

Mães 37
- 4

Q u a s e sempre os inventários post mortem diziam respeito a pessoas que deixavam


bens. Por isso, f o r n e c e m muitos dados sobre o estatuto profissional dc homens c
mulheres cujos bens estavam sendo inventariados, mas — a não ser quando se tratava
de estrangeiros ou dc africanos alforriados — não m e n c i o n a m a cor ou o país de
origem do falecido. Admiti que, nesses casos, tratava-se de brasileiros, que totalizaram
9 4 dos 1 5 3 casos estudados. C h a m a a atenção o fino de que 3 9 % das rendas das 37
mães celibatárias provinham da locação dc escravos, uma fonte de renda muito impor-
tante até a década de 1 8 6 0 , sobretudo para as camadas sociais mais humildes da
LIVRO III - A FAMÍLIA BAIANA
153

sociedade baiana. O u t r a f o n t e , que c o n t r i b u í a c o m 3 4 , 1 % das rendas das mães celiba-


tárias, eram os aluguéis de casas próprias ou tidas em usufruto, de ações bancárias, de
apólices da dívida pública e de e m p r é s t i m o s concedidos a t e r c e i r o s . 19

Q u a n t a s mães celibatárias n ã o t i n h a m recursos para educar os filhos sem ajuda?


N o levantamento q u e realizei, apareceram sete mulheres m u i t o pobres, para as quais

TABELA 31

S I T U A Ç Ã O P R O F I S S I O N A L E PAIS D E O R I G E M D E PAIS E M Ã E S SOLTEIRAS,


S E G U N D O I N V E N T Á R I O S post mortem, 1880-1889

PROFISSÃO PAIS SOLTEIROS MÃES SOLTEIRAS TOTAL

BRASILEIROS EUROPEUS AFRICANOS BRASILEIRAS EUROPÉIAS AFRICANAS

Senhor de engenho 1 - - - - _ j

Negociante — 4 - - _ _ 4

Proprietário - 2 - - — _ 2

Padre 7 7

Mestre 1 - - _ _ _ j

Funcionário público 1 — - - - - l

Comerciário 1 22 - - - - 3

Militai 5 2 7

Dono de barco 1 2 1 - - 4

Comerciante 4 20 2 26

Rentista 12 4 2 14 - 32

Alugador de escravos 7 2 2 14 - 2 27

Fazendeiro 2 - - - - - 2

Agricultor 4 2 - 2 - - 3

Músico _ - 1 - - - '

laneciro 1 - - _ - - 1

Sapateiro I - - _ - - I

Caldeireiro - 1 - *" ~

Carpinteiro ] - I ~~ ~

Funileiro 1 - ~

Padeiro 1 I - - - ~ 2

Peicador 1 - - - - ^- 1

Chapclciro 1 - - ~" _~ "


NSo declarada 4 2 - 7
__ " 1 3

To^r 57 43 "12 37 - 4 1 5 3

4
1*4 BARIA, SÉCULO XIX

h o u v e inventário» m a s n ã o o q u e inventariar; ao m o r r e r , d e i x a r a m e n u m e r a d o s vesti


dos surrados, b a ú s , cadeiras, c a m a s c mesas. Q u a n t o aos h o m e n s , seis eram pratica-
m e n t e indigentes. Q u a s e t o d o s e x e r c i a m u m a profissão q u e lhes permitia suprir as
necessidades, e a m a i o r parte dos 9 , 8 % q u e " v i v i a m de suas r e n d a s " eram antigos
c o m e r c i a n t e s de p e q u e n o p o r t e , artesãos o u l o c a d o r e s de escravos. A grande maioria
dos pais celibatários trabalhava n o p e q u e n o c o m é r c i o , na p r o d u ç ã o de artesanato ou
n o cultivo de terra alheia; 3 8 , 4 % deles e r a m de o r i g e m e u r o p é i a .
As u n i õ e s livres eram pois praticadas s o b r e t u d o nas c a m a d a s sociais inferiores e
e n t r e imigrantes e u r o p e u s . O s dados d o r e c e n s e a m e n t o de 1 8 5 5 , relativos ao estatuto
profissional das pessoas pesquisadas, c o n f i r m a m o q u e c o n s t a nos inventários post
mortem os pais c e l i b a t á r i o s e os c h e f e s de ' f a m í l i a c o n s e n s u a l ' exerciam ofícios ou
e m p r e g o s q u e os situavam nas c a m a d a s inferiores d a p o p u l a ç ã o u r b a n a ; 7 0 , 2 % eram
h o m e n s de c o r , o q u e c o r r e s p o n d e à c o m p o s i ç ã o racial da c i d a d e . O s mesmos dados
sugerem q u e as u n i õ e s extralegais e r a m praticadas t a n t o e n t r e negros c o m o entre
b r a n c o s e m u l a t o s , e q u e os pais c e l i b a t á r i o s e r a m raros nas c a m a d a s sociais mais
abastadas. Essa d u p l a a f i r m a ç ã o m e p a r e c e c o e r e n t e c o m o q u e s a b e m o s sobre a vida
e os c o s t u m e s dos b a i a n o s . E n t r e as 3 2 m ã e s solteiras registradas n o recenseamento de
1855» havia q u i n z e m u l a t a s , q u a t r o negras e treze b r a n c a s . E s t e ú l t i m o número não
deve espantar: tratava-se de m u l h e r e s h u m i l d e s , pois apenas q u a t r o delas possuíam
escravos (duas das mulatas t a m b é m os p o s s u í a m ) . V i v i a m sós o u , algumas vezes, com
a m ã e o u u m a agregada.

Casais de todas as cores de pele viviam l i v r e m e n t e u n i d o s , mas e m geral os dois


parceiros t i n h a m a m e s m a c o r . M e s m o assim, as u n i õ e s livres e n t r e pessoas de cores
diferentes eram mais freqüentes q u e os c a s a m e n t o s nessas m e s m a s condições. Só encon-
trei três c a s a m e n t o s m i s t o s n o r e c e n s e a m e n t o d e 1 8 5 5 . Eis o l e v a n t a m e n t o completo
dos casais c o n c u b i n o s , c o m a referência d a c o r dos dois parceiros: sete brancos com
brancas; três brancos c o m mulatas; dois b r a n c o s c o m negras; o i t o mulatos com mula-
tas; dois mulatos c o m b r a n c a s ; q u a t r o m u l a t o s c o m negras; nove negros c o m negras;
n e n h u m negro c o m m u l a t a o u b r a n c a . E n t r e os n o v e 'casais' negros, seis eram de
parceiros africanos. D o s três restantes, u m era f o r m a d o p o r duas pessoas negras nasci-
das n o Brasil e dois outros por negros brasileiros unidos a africanas. E m contrapartida,
os brancos c mulatos q u e viviam c o m negras as escolhiam e n t r e as nascidas no Brasil.
V o l t a r e m o s a essa questão q u a n d o t e n t a r m o s c o m p r e e n d e r c o m o , na Bahia, ocorriam
a ascensão social c o processo de ' e m b r a n q u c c i m e n t o \ ou seja, a passagem da categoria
de 'mulata' para ' b r a n c a ' .
Partindo do recenseamento de 1 8 5 5 , a tabela 3 2 nos fornece o número de filhos
vivos nas famílias legais e nas consensuais.
O percentual de casais sem filhos era mais elevado n o caso das famílias consensuais,
o que nada tem de espantoso: 115 dos casais de c o n c u b i n o s sem filhos era formado p ° r

africanos alforriados com mais de quarenta anos; outra terça parte também havia
ultrapassado a mesma faixa etária. Pode-se concluir que as uniões livres se formavam
Li\-Ro III - A FAMILIA BAIANA

TABELA 32

E SITUAÇÃO PROFISSIONAL DOS C H E F E S D E FAMÍLIA


n s e n s u a i SEGUNDO O RECENSEAMENTO DE 1 8 5 5 *

SITUAÇÃO PROFISSIONAI BRANCOS MULATOS N EG ROS TOTAL


Escrivão l
- — 1
Copista 1 1
- 2
Policial
- 1 - 1
Comerciante 3
- - 3
Comerciário 1
- - 1
Ganhador**
- - 6 6
Marinheiro
- 1 - 1

Pescador 1
- - 1

Açougueiro - - 1 1

Carpinteiro - 1
- 1

Sapateiro
- 2
- 2

Marceneiro 1 1
- 2

Pedreiro — — 1 1

Taneeiro 1 - - 1

Funileiro 1 1 - 2

Tintureiro 1 - - 1

Alfaiate - 3 - 3

Músico - 1
- 1

Sem profissão - 4 2 6

Total 11 16 10 37

(') Não estão computadas as mães solteiras. (**) Termo empregado para carregad.
dcira.s, vendedores amhulantes c assemelhados.

t a r d i a m e n t e o u e v i t a v a m resultar c m filhos? T a l v e z . Pelos testamentos e os atos cartonais


que registravam d o a ç õ e s , v ê - s e q u e vários desses casais se f o r m a v a m e m idade mais
avançada, m o v i d o s m a i s p o r b u s c a d e c o m p a n h e i r i s m o e fuga à solidão d o q u e pela
expectativa d e f o r m a r u m a f a m í l i a .
A f a m í l i a c o n s e n s u a l era responsável p o r 4 9 , 0 % d o total de filhos, apesar de
representar 6 2 , 7 % d o c o n j u n t o das famílias. M e s m o assim, a c o n t a r pela multidão d e
filhos i l e g í t i m o s , p o d e - s e j u l g a r q u e a maioria dos h a b i t a n t e s d e Salvador n a o estava
m u i t o p r e o c u p a d a e m l i m i t a r o u evitar n a s c i m e n t o s . C r i a n ç a s , na B a h i a , sempre ro-
ram c o n s i d e r a d a s c o m o dádivas d c D e u s . , . . ...
As famílias legais t i n h a m , e m m é d i a , 2 , 5 filhos e as consensuais 1 , 4 (a diferença
c m relação a o n ú m e r o d e 1.9 q u e apresentei a n t e r i o r m e n t e se deve à n a o - . n c o r p o r a -
BAHIA, S É C U L O X I X

TABELA 33

FAMÍLIAS L E G A I S E C O N S E N S U A I S SEM FILHOS


ou COM FILHOS VIVOS DE M E N O S DE 2 0 ANOS

N ° DE FILHOS FAMÍLIA TOTAL DE FAMÍLIA


TOTAL DE
LEGAL FILHOS CONSENSUAL FILHOS

0
7 (17,1)
- 18 (26,1)

1 10 (24,4) 10 22 (31,9) 22

2 6 (14,6) 12 16 (23,2) 32

3 7 (17,0) 21 7 (10,1) 21

4 2 (4,9) 8 6 (8,7) 24

5 5 (12,2) 25
- -
6 2 (4,9) 12
- -
7 ou mais 2 (4,9) 15
- - -
Total 41 (100,0) 103 69 (100,0) 99

ção dos inventários post morterri). F a t o c u r i o s o : n e n h u m a destas ú l t i m a s tinha mais


de q u a t r o filhos e 1/3 delas t i n h a apenas u m . C o m o o m a i o r n ú m e r o de casais estava
nessa situação, mais u m a vez a p a r e c e o p r o b l e m a dos n a s c i m e n t o s ilegítimos — estu-
dados por J o h i l d o A t h a y d e — , q u e t a n t o p r e o c u p a v a os p a r l a m e n t a r e s brasileiros de
e n t ã o . A t r i b u í a - s e à escravidão o g r a n d e n ú m e r o de c r i a n ç a s nessa situação, e havia
tolerância e m relação a elas: " N o B r a s i l , as c r i a n ç a s i l e g í t i m a s são mais numerosas
q u e e m todas as n a ç õ e s e u r o p é i a s . T r a t a - s e de u m a c o n s e q ü ê n c i a inevitável do siste-
m a escravocrata estabelecido e n t r e n ó s , c o n s e q ü ê n c i a l ó g i c a de u m a situação em que
u m a raça é proprietária d e o u t r a raça, c o m o se esta fosse u m a coisa e n ã o uma pes-
soa." 2 0
N ã o era raro q u e u m a viúva m i s t u r a s s e , aos seus p r ó p r i o s filhos, os filhos
naturais d o falecido m a r i d o . M a s o d e s t i n o social dessas crianças dependia, antes de
mais nada, de q u e fossem r e c o n h e c i d a s p e l o pai o u pela m ã e , o u e n t ã o colocadas, por
laços de a p a d r i n h a m e n t o , sob a p r o t e ç ã o de u m a f a m í l i a i n f l u e n t e . 21

Q u a l era o índice de n a s c i m e n t o s i l e g í t i m o s e m relação ao c o n j u n t o de nascimen-


tos em Salvador? O estudo de J o h i l d o A t h a y d e c o b r e os 1 4 . 9 8 2 registros de batismo
feitos na paróquia da S é n o p e r í o d o de 1 8 3 0 a 1 8 7 4 . A p r o p o r ç ã o encontrada foi
e n o r m e : 7 3 , 3 % dos registros diziam respeito a crianças ilegítimas, sendo 1 2 , 5 % enjei-
tadas (a Misericórdia, instituição q u e acolhia crianças a b a n d o n a d a s em toda Salvador,
encontrava-se na paróquia da S é ) . 2 2

Pensei encontrar índices de ilegitimidade m u i t o elevados entre a população escrava,


mas constatei que 2/3 das crianças livres nasciam fora de laços legais de matrimônio.
Eis aí um traço característico da sociedade baiana, cheio de implicações. Entre elas
destaca-se a ausência do pai, o que, para T h a l e s de Azevedo, teria privado as crianças
baianas de u m "ideal interior" c de agressividade. 23
Submetidas à tutela da mãe, da av
ou da madrinha, elas teriam desenvolvido traços de caráter que ajudam a explicar o
LIVRO III - A FAMILIA BAIANA
157

c h a m a d o ' e n i g m a b a i a n o ' , ou seja, a incapacidade de a cidade produzir os frutos


prometidos.

E n t r e a p o p u l a ç ã o livre, qual era a relação entre a cor das crianças e a proporção


de ilegitimidade?

TABELA 34

L E G I T I M I D A D E E I L E G I T I M I D A D E S E G U N D O A C O R DAS C R I A N Ç A S
PARÓQUIA DA SÉ, 1830-1874*
CONDIÇÃO BRANCOS MULATOS
NEGROS
Legítimos 2.306 (66,5) 677 (18,7) 200 (13,7)
Ilegítimos 1.163 (33,5) 2.949 (81,3) 1.261 (86,3)
Total 3.469 (100,0) 3.626 (100,0) 1.461 (100,0)
(*) Exclusivamente entre a população livre.

U m terço das crianças b r a n c a s e 4/5 das mulatas e negras eram ilegítimas. Assim,
os registros de b a t i s m o c o n f i r m a m os dados do r e c e n s e a m e n t o de 1855 e dos inven-
tários post mortem da década de 1850. S o b r e t u d o nas camadas populares, as pessoas se
casavam p o u c o , p o r q u e a c e r i m ô n i a custava caro e n ã o havia reprovação grave em
relação às u n i õ e s livres. E n t r e 1850 e 1875, só 12,3% dos casamentos celebrados na
paróquia d a S é e n v o l v i a m c ô n j u g e s de c o r . 2 4
N a s certidões de batismo era muito c o -
mum aparecer apenas o n o m e da m ã e .
O s pais de filhos naturais n ã o gostavam de dar o próprio n o m e n o dia do batizado
da criança, pois isso p o d e r i a ser utilizado para u m r e c o n h e c i m e n t o de paternidade
exigido pela m ã e o u , mais tarde, pelo p r ó p r i o filho ou sua descendência. Apenas a mãe
— nunca o h o m e m o u o casal — declarava na pia batismal um filho que nascera
escravo. 25

As autoridades m u n i c i p a i s s e m p r e intervieram para salvar crianças abandonadas,


dirás 'expostas', c u s t e a n d o sua e d u c a ç ã o , durante três anos, n o seio de famílias que as
recebiam. N ã o se sabe o que a c o n t e c i a c o m as crianças que completavam três anos,
aliás idade-limite da a m a m e n t a ç ã o obrigatória pela própria mãe ou por uma ama-de-
leite por ela c o n t r a t a d a . C o m o c r e s c i m e n t o da cidade, o n ú m e r o de crianças abando-
nadas a u m e n t o u de tal maneira que a C â m a r a Municipal — acatando uma proposta
real — passou a confiá-las a um instituto especializado, a Misericórdia, que obteve
para esse fim, cm 1734, um subsídio de 400.000 réis. Mas, rapidamente, a capacidade
de absorção se revelou insuficiente, de m o d o que a Municipalidade voltou a colocar as
crianças abandonadas em casas de particulares, para evitar que servissem de pasto aos
animais domésticos que circulavam livremente pela c i d a d e . 26
Apesar de existirem pes-
soas de boa vontade, t o d o esse sistema funcionava mal: n o fim do século X V I I I , Luiz
dos Santos Vilhena denunciou o abandono em que se encontrava o asilo da Misericórdia,
que funcionava mais c o m o h o s p i t a l . 27
N u m a única e imensa sala ficavam amontoados
doentes, amas-de-leite e crianças. A decisão de separar os primeiros só foi tomada em
158 BAHIA, S É C U L O XIX

1 8 4 4 , q u a n d o s e c o n s t r u i u u m a n e x o para as c r i a n ç a s . M a l ventilada, sombria c

ú m i d a , c o m alcovas e b e r ç o s c o m p r i m i d o s u n s aos o u t r o s , a nova sala terminou por s Cr

u m v e r d a d e i r o t ú m u l o para o s r e c é m - n a s c i d o s q u e lá esperariam u m a mãe de criação.


E r a e n o r m e , estarrecedora, a m o r t a l i d a d e das crianças a b a n d o n a d a s ! Dois terços
delas m o r r i a m em t e n r a idade. E m 1 8 6 2 , c o n t a n d o c o m a generosidade de seus
m e m b r o s , a Irmandade da Misericórdia c o m p r o u u m b o n i t o prédio situado cm
S a n t ' A n n a , p a r ó q u i a v i z i n h a , para o n d e t r a n s f e r i u o asilo dessas crianças. Houve — <¡
c e r t o _ considerável m e l h o r i a nas i n s t a l a ç õ e s , m a s a m o r t a l i d a d e c o n t i n u o u muito
alta. 2 8
O m e s m o , aliás, o c o r r i a c o m as frágeis c r i a n ç a s c o n f i a d a s a mães de criação, q U e

às vezes n ã o utilizavam c o m elas o d i n h e i r o q u e r e c e b i a m o u n ã o cuidavam delas dc


maneira a p r o p r i a d a . 29

A tabela 3 6 a p r e s e n t a i n d i c a ç õ e s s o b r e a p r o p o r ç ã o d e b a t i s m o s d e crianças aban-


d o n a d a s , e m relação ao total de b a t i s m o s . A m é d i a se situa em 2 , 5 % . O s dois anos que
ultrapassam este í n d i c e ( 1 8 5 4 e 1 8 5 5 ) c o r r e s p o n d e m a o á p i c e das epidemias de febre
amarela e de c ó l e r a - m o r b o . T r a t a - s e de a p r o x i m a ç õ e s , j á q u e o universo do abandono
n ã o se restringia às c r i a n ç a s resgatadas pela M i s e r i c ó r d i a , i n c a p a z de salvá-las todas. 30

N a série dos t e s t a m e n t o s , e n c o n t r e i a l g u m a s c o n f i s s õ e s q u e revelam a variedade de


origens sociais das c r i a n ç a s a b a n d o n a d a s . U m a m o ç a o r i u n d a de u m a família abastada,
p o r e x e m p l o , c o n f e s s o u q u e s u a h e r d e i r a era a m e n i n i n h a q u e havia sido 'exposta' na
porta de sua p r ó p r i a casa e c r i a d a c o m o c r i a n ç a a b a n d o n a d a , e m circunstâncias que ela
descreveu c o m p r e c i s ã o . 3 1
É u m a e s t ó r i a q u e c o n c o r d a p e r f e i t a m e n t e c o m a tradição
oral, s e g u n d o a q u a l m u i t a s f a m í l i a s , l e g a l m e n t e c o n s t i t u í d a s p o r é m em dificuldades,
a b a n d o n a v a m as c r i a n ç a s q u e se s e n t i a m incapazes de e d u c a r . Assim, segundo seu

T A B E L A 35

T A X A DE MORTALIDADE DE CRIANÇAS ABANDONADAS


NA C I D A D E DE SALVADOR, 1 8 0 5 - 1 8 5 4

PERÍODOS CRIANÇAS ABANDONADAS MORTES DE CRIANÇAS ABANDONADAS _

1805-1809 481 301 (62,6) _____ .

1810-1814 476 295 (62.0) .

1815-1819 528 368 (69,7)

1820-1824 414 317 (76.6) _

1825-1829 454 269 (59.3) _ _ _ _ _ _ _ _

1830-1834 363 230 (63.4) ________

1835-1839 357 283 (79.3)

1840-1844 442 267 (60.4) ____________

1845-1849 313 176 (56.2) -

1850-1854 350 237 (67.7) _________

Total 4.178 2.743 (65.7)


LIVRO III - A FAMUJA BAIANA 15')

B A T I S M O S DE C R I A N Ç A S A B A N D O N A D A S NA C I D A D E D E S A L V A D O R , 1852-1861
Avos ToTAi DE BATISMOS BATISMOS DE CRIANÇAS ABANDONADAS

1852 1.907 52 (2,7)


1853 1.937 44 (2,3)
1S>4 2.107 76 (3.6)
1855 2.338 73 (3,1)
1856 2.207 54 (2,4)
1857 2.035 51 (2,5)
1858 2.038 48 (2,3)
1859 1.901 41 (2,1)
1860 2.049 22 (1.1)
1861 2.135 48 (2,2)

Total 20.654 509 (2,5)

TABELA 37

C O R DAS C R I A N Ç A S A B A N D O N A D A S EM SALVADOR, 1830-1859

BRANCA MESTIÇA NEGRA TOTAL

805 909 88 1.802

(44,7) (50,4) (4,9) (100,0)

ponto de vista, davam a elas u m a o p o r t u n i d a d e de sobrevivência. As certidões de


batismo nos i n f o r m a m sobre a c o r dessas crianças abandonadas.
Parece espantoso q u e 4 4 , 7 % dessas crianças fossem brancas, mas a informação é
coerente c o m as evidências d o r e c e n s e a m e n t o de 1 8 5 5 , q u e registrou, na mesma
situação, treze mães b r a n c a s , q u i n z e mulatas e quatro negras. Resta explicar a ampli-
tude do f e n ó m e n o . Q u e razões levavam tantas mulheres brancas a manter esse tipo de
relação ilícita n u m a sociedade em q u e — dizem — a cor da pele desempenhava um
papel tão i m p o r t a n t e nas hierarquias sociais? O desespero e a miséria, c o m o afirmou
o médico Francisco Alves de L i m a F i l h o ? 3 3
A tentativa de 'salvar a honra" familiar,
abandonando o fruto de u m a sedução? Q u a n t a s famílias assumiam maternidades sol-
teiras e concubinatos? T r a t a v a - s e , talvez, de mulheres brancas 'da vida'? Neste caso, o
percentual seria cstarrcccdor, sobretudo se levarmos em c o n t a que a tolerância da
sociedade cm relação às uniões extralegais tinha c o m o contrapartida uma íorte intole-
rância em relação à prostituição. Penso que se tratava de pessoas (de todas as camadas
sociais e de todas as etnias) que viviam livremente sua sexualidade e não se deixavam
influenciar por preconceitos morais r i g o r o s o s . 34
Por isso, vou empreender um segun-
do estudo tipológico da família baiana, através da condição legal de seus membros.
BAHIA, SÉCULO XIX

A FAMÍLIA SEGUNDO O ESTATUTO LEGAL DE SEUS MEMBROS

A t é aqui, esta p a r t e de m e u e s t u d o esteve c e n t r a d a nas f a m í l i a s o r i u n d a s da população


livre de S a l v a d o r , Para q u e n o s a p r o x i m e m o s m a i s d a r e a l i d a d e b a i a n a , é indispensável
identificar as s e m e l h a n ç a s e d i f e r e n ç a s q u e e x i s t i a m e n t r e f a m í l i a s formadas por p e s _
soas livres, alforriadas e escravas.
As primeiras e r a m as mais n u m e r o s a s e as m a i s diversas, c o m o constatamos ante-
r i o r m e n t e . A partir d e q u e c r i t é r i o s elas p o d e m ser c o m p a r a d a s c o m as duas outras*
C o m o c o n s e q ü ê n c i a d e u m í n d i c e d e c e l i b a t o q u e c h e g a v a a 4 0 % ( m a i o r entre as
m u l h e r e s ) , a f a m í l i a c o n s e n s u a l r e p r e s e n t a v a 5 3 % das u n i õ e s livres. A mulher pob RC
t i n h a m u i t a d i f i c u l d a d e e m a r r a n j a r c a s a m e n t o , c o n s t a t a ç ã o c o n f i r m a d a pelo grande
n ú m e r o de agregadas aos g r u p o s d o m é s t i c o s . R a r a s m u l h e r e s solteiras sem filhos che-
fiavam u m desses g r u p o s . O c e l i b a t o a p a r e c i a m a i s c o m o c o n s e q ü ê n c i a da pobreza do
q u e c o m o resultado de u m a e s c o l h a .
A f a m í l i a c o n s e n s u a l era m a i s f r e q ü e n t e e n t r e pessoas de c o r , mas estava em
t o d a parte. As pessoas v i v i a m j u n t a s , d e p r e f e r ê n c i a c o m g e n t e d a mesma cor da
pele. D e s e j o s a s de a s c e n s ã o s o c i a l , m u l h e r e s b r a n c a s e m u l a t a s o p t a v a m por filhos
ainda mais claros, d e s c a r t a n d o u n i õ e s c o m h o m e n s de c o r m a i s escura. O 'negro 1

lembrava a Á f r i c a e a e s c r a v i d ã o . O ' e m b r a n q u e c i m e n t o ' dos b a i a n o s se fez através


das m u l h e r e s .

R e c o r d e m o s a l g u m a s i n f o r m a ç õ e s . E s s e s casais t i n h a m , e m m é d i a , 1,4 a 2,5 filhos,


e quase n u n c a ultrapassavam q u a t r o filhos; 6 2 , 3 % das c r i a n ç a s batizadas eram ilegíti-
mas e 2 0 % dessas e r a m b r a n c a s . E x a m i n a n d o o s m e s m o s d a d o s sob outro ângulo:
3 3 , 5 % dos b a t i s m o s d e c r i a n ç a s b r a n c a s e n v o l v i a m filhos i l e g í t i m o s . E m 8 5 , 9 % àos
casos, eram as mães q u e levavam seus filhos à pia b a t i s m a l ; l o g o , eram elas as declarantes,
c a b e n d o - l h e s a r e s p o n s a b i l i d a d e legal pela c r i a ç ã o d a p r o l e . S ó 2 , 5 % desses filhos ile-
gítimos eram a b a n d o n a d o s , p e r c e n t a g e m m a i s elevada q u e a de a b a n d o n o s de filho*
por mães solteiras (casais legais t a m b é m a b a n d o n a v a m filhos). Q u a s e a metade (44,7%)
das crianças a b a n d o n a d a s eram b r a n c a s , m a s isso se e x p l i c a : as mulheres brancas eram
mais f r e q ü e n t e m e n t e forçadas p o r seu m e i o social a 'salvar a h o n r a ' da respectiva
família, abrindo m ã o d e seu papel de m ã e . A l g u m a s grandes famílias guardavam
lembrança verdadeiras tragédias: a filha de u m s e n h o r de e n g e n h o das margens
Paraguaçu, altiva c bela, amava c o m ternura u m não m e n o s altivo e belo n l U
' a t
^
escravo da plantação. Para evitar a fuga e o e s c â n d a l o , a m o c i n h a grávida foi tranca
c m seu quarto, o n d e deu à luz um m e n i n o , atirado nas águas d o rio. O fim da estória
foi o suicídio da m o ç a , que c o r t o u as veias c o m cacos de vidro. é . -

N e m todos os amores ilegais terminavam tragicamente. A o contrário. I l e g j tinl

. . . B B
35 A lere)3 C

dade e bastardia eram traços característicos da Bahia de T o d o s os 5antos.


tentava moralizar os costumes, mas não o b t i n h a êxito, até porque ela mesma nao ^
o exemplo. E n t r e 1801 e 1 8 5 0 , declararam ter filhos 1 8 % dos padres baianos faleci
em Salvador. Entre 1851 e 1 8 8 7 essa proporção subiu para 5 1 % . 3 6
LIVRO III - A FAMÍLIA BAIANA 161

E m Salvador, era s o b r e t u d o a p o p u l a ç ã o livre (de todas as cores, mas c o m nítida


p r e d o m i n â n c i a b r a n c a ) q u e c o n s t i t u í a famílias legais ( 6 4 , 5 % ) . S o m e n t e 9 , 7 % dos
negros se casavam dessa f o r m a . O m a t r i m ô n i o era privilégio dos b r a n c o s , m i n o r i t á r i o s
mas detentores d o prestígio social. O s b a i a n o s se casavam p o u c o e relativamente tarde,
esperando até o m o m e n t o e m q u e c o n s i d e r a v a m ter os m e i o s materiais para criar e
educar as c r i a n ç a s . N e s s e s casos, a m i s c i g e n a ç ã o era rara ( 8 , 4 % dos casos) e n u n c a
envolvia negros, c o m os q u a i s as pessoas b r a n c a s viviam apenas uniões livres.
N a c i d a d e , p r a t i c a m e n t e n ã o existiam famílias n u m e r o s a s , e n c o n t r a n d o - s e , em
média, de dois a três filhos e m c a d a c a s o . A s e x c e ç õ e s ficavam p o r c o n t a das camadas
mais altas, nas q u a i s r e a p a r e c i a m as características das famílias de senhores de enge-
nho, tão f r e q ü e n t e m e n t e d e s c r i t a s . M e s m o q u a n d o t i n h a m m a i s de vinte anos e esta-
vam inseridos n o m e r c a d o d e t r a b a l h o , os filhos viviam n a casa p a t e r n a , às vezes sendo
sustentados, às vezes c o l a b o r a n d o nas despesas.
A família legal e a c o n s e n s u a l d i a l o g a v a m e n t r e si através de suas diferenças e,
sobretudo, de suas s e m e l h a n ç a s . T i n h a m , antes de mais nada, forte e m p e n h o em
educar seus filhos e d e s e j a v a m a j u d á - l o s a s u b i r na escala social. V e j a m o s agora se esse
esquema d u p l o se r e p r o d u z i a nas f a m í l i a s alforriadas e escravas.

FAMÍLIA DE LIBERTOS

Até a A b o l i ç ã o , a a l f o r r i a era u m a e t a p a o b r i g a t ó r i a para q u a l q u e r escravo c u j a descen-


dência viesse a se i n t e g r a r às c a m a d a s livres da p o p u l a ç ã o . D u r a n t e toda a sua vida, o
antigo escravo c o n t i n u a v a a ser u m ' a l f o r r i a d o ' . O u t o r g a d a c o m m u i t a largueza desde
as primeiras décadas de f u n c i o n a m e n t o d o s i s t e m a escravocrata, a m e d i d a não b e n e -
ficiava apenas a o e s c r a v o . 3 7
E m m a i s de 2/3 dos casos, as cartas eram vendidas aos
escravos, p o r q u a n t i a s g e r a l m e n t e i d ê n t i c a s às q u e h a v i a m sido gastas para c o m p r á - l o s .
Para os s e n h o r e s , q u e h a v i a m e x p l o r a d o o t r a b a l h o d o negro p o r m u i t o t e m p o , trata-
va-se de u m a f o n t e s u p l e m e n t a r de g a n h o s ; para os escravos, u m passo n o sentido da
liberdade perdida, s o n h a d a , a r d o r o s a m e n t e desejada. N a época da Independência
( 1 8 1 9 ) , todos os anos c e r c a de 2 , 7 5 % da p o p u l a ç ã o escrava de Salvador recebia sua
carta de alforria. E m 1 8 3 9 - 1 8 4 0 , essa p r o p o r ç ã o já chegara a 4 , 0 4 % , s u b i n d o depois
para 6 , 6 2 % e m 1 8 6 9 - 1 8 7 0 . A aceleração d o r i t m o de alforrias decorreu, ao m e s m o
tempo, da situação e c o n ô m i c a da B a h i a e da desintegração d o sistema escravocrata.
Q u e escravos c o n s e g u i a m a carta de alforria? A resposta é simples: os que podiam
pagar, sem d i s t i n ç ã o e n t r e africanos, m u l a t o s o u negros nascidos n o Brasil. O s primei-
ros, aliás, eram mais n u m e r o s o s na cidade que os nascidos aqui. U m escravo, na
cidade, podia j u n t a r u m p e q u e n o pecúlio.

P e r m a n e n t e m e n t e i m p o r t a d o s para assegurar a renovação do contingente, os afri-


canos — em sua m a i o r i a , h o m e n s — representavam cerca de 2/3 da mão-de-obra
escrava. As mulheres e crianças capturadas pelos negociantes internacionais eram ven-
162 BAHIA, S É C U L O X I X

TABELA 3 8

ORIGEM E SEXO DA P O P U L A Ç Ã O ESCRAVA DE SALVADOR ( 1 8 1 1 -• 1 8 6 0 )

ORIGEM HOMENS MULHERES TOTAI % HOMENS


% ORIGEM

Brasil Î.237 1.339 2.576 (31.8)


(37.2)

Africa 2.657 1.669 4.356 (68,2)


(62,8)

Total 3.894 3.008 6.932 (100,0) (100,0)

Fonte: J.J. Reis, Slave Rebellion in Brazii: The African Muslim Uprising in Bahia, 1835, p. 10.

didas p r e f e r e n c i a l m e n t e n a p r ó p r i a Á f r i c a , o n d e valiam mais d o q u e os h o m e n s . N 39

a
Bahia, a m a i o r parte das m u l h e r e s escravas devia e x e c u t a r o m e s m o trabalho d os
h o m e n s , s o b r e t u d o n a s p l a n t a ç õ e s d e c a n a - d e - a ç ú c a r , o n d e havia a média de uma
escrava para dois escravos.
D a s 1 . 1 4 1 cartas o u t o r g a d a s e m Salvador e n t r e 1 8 6 9 e 1 8 7 0 , 6 4 0 fornecem indi-
cações sobre a idade e o s e x o dos negros b e n e f i c i a d o s , m o s t r a n d o q u e as mulheres
eram mais alforriadas q u e os h o m e n s .

T A B E L A 39

IDADE E SEXO DOS ALFORRIADOS ( 1 8 6 9 - 1 8 7 0 )

IDADE MULHERES HOMENS % DE MULHERES TOTAL

0 a 11 anos 136 107 (56,0) 243 (38,0)

1 2 a 3 5 anos 129 61 (67,9) 190 (29,6)

3 5 a 5 0 anos 91 46 (66,4) 137 (21,4)

51 a 6 0 anos 27 18 (60,0) 45 (7,0)

mais de 6 0 anos 13 12 (52,0) 25 (3,9)

Total 396 244 (61,9) 640 (100,0)

« f c X ^ ^ u r t ^ ^ j ^ j ^ . ^
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$¡_f £ "
6
lf0r a
C O M
° FONTE
« " " P ' c m e n t a r para o escudo da rentabilidade da mio-

N a faixa etária e m q u e o c o r r e m as u n i õ e s e n t r e o s sexos, as mulheres alforriadas


representavam o d o b r o d o n ú m e r o d e h o m e n s , fazendo c r e r q u e m u i t a s delas tivessem
•FACULDADE c m c o n s e g u i r , e n t r e estes, u m m a r i d o o u c o m p a n h e i r o . Quando isso
acontecia, quais e r a m as características d a família resultante? O s testamentos e inven-
tários post mortem p e r m i t e m u m a p r i m e i r a análise. Para m e l h o r a r a amostra, eliminei
os testamentos para os quais dispunha d e i n v e n t á r i o , o q u e m e deixou 4 8 2 testamentos
c 4 7 inventários para o período de 1 8 8 0 - 1 8 9 0 . E , para facilitar a análise, montei dois
períodos: 1 8 0 0 - 1 8 5 0 c 1 8 5 1 - 1 8 9 0 .
Primeira pergunta: qual a origem étnica dos testadores e dos inventariados baianos?
A o contrário d o q u e se poderia pensar, a assimilação dos negros alforriados nascidos
n o Brasil não parece ter sido mais fácil que a dos negros originários da Africa. Os
negros brasileiros só representavam 1 5 % dos testadores e inventariados do primeiro
LIVRO I I I - A FAMÍLIA BAIANA 163

período ( 1 8 0 0 - 1 8 5 0 ) e 2 , 4 % d o segundo ( 1 8 5 1 - 1 8 9 0 ) , percentagens que subiriam


para 1 9 , 7 % e 7,7% se incluíssemos nessa categoria todos aqueles considerados de
'origem d e s c o n h e c i d a . O s d e m a i s eram africanos, aliás, c o m o v i m o s , majoritários
1

entre a p o p u l a ç ã o escrava da c i d a d e . S ó há u m a explicação para isso: considerados


estrangeiros, os africanos t i n h a m m a i o r c u i d a d o em proteger os direitos de suas c o m -
panheiras e de seus d e s c e n d e n t e s , t e n d e n d o a redigir t e s t a m e n t o s c o m mais freqüên-
cia. Essa hipótese é fortalecida pela d e c l a r a ç ã o d o c h e f e de P o l í c i a de Salvador em
1 8 3 5 : os africanos alforriados e r a m " e s t r a n g e i r o s indesejáveis (...). N e n h u m deles goza
dos direitos de c i d a d ã o o u dos direitos d o e s t r a n g e i r o " . Isso contrariava a fórmula que
figura em todas as cartas de alforria: " a partir desta data e para s e m p r e [o alforriado]
será respeitado e gozará dos m e s m o s direitos dos que nasceram livres, c o m o se ele
próprio tivesse n a s c i d o l i v r e " . 4 0

D e o n d e v i n h a m esses a f r i c a n o s ? A s i n f o r m a ç õ e s fornecidas pelos testamentos e


inventários e r a m m u i t o gerais e i m p r e c i s a s : ' c o s t a d a Á f r i c a ' o u 'costa do Leste', por
exemplo. M a s n ã o h á d ú v i d a de q u e , n a B a h i a , eram mais n u m e r o s o s os africanos
capturados a o n o r t e d o E q u a d o r d o q u e os p r o v e n i e n t e s da C o s t a S u l , que hoje
corresponde ao C o n g o e a A n g o l a . H a v i a m a i s 'sudaneses', e os ' b a n t o s ' representavam
apenas cerca de 1/4 d a p o p u l a ç ã o e s c r a v a . 41

A e t n i a de o r i g e m d e s e m p e n h a v a i m p o r t a n t e papel na vida social, religiosa e


mesmo p o l í t i c a dos a f r i c a n o s trazidos para a B a h i a n o século X I X . O s trabalhadores —
libertos ou escravos — se a g r u p a v a m e m certas esquinas da cidade, c o n f o r m e o ofício
que exerciam e a e t n i a a q u e p e r t e n c i a m . D e certa f o r m a , esses a g r u p a m e n t o s regula-
vam o m e r c a d o de t r a b a l h o , pois neles as tarefas eram distribuídas e repartidas, e as
pessoas c o n v e r s a v a m e se a j u d a v a m m u t u a m e n t e . A e t n i a t a m b é m estava presente
quando os escravos se o r g a n i z a v a m nas ' j u n t a s de alforria', t e n d o e m vista conseguir a
liberdade. Nesse c o n t e x t o , era n a t u r a l q u e o m e s m o fator influenciasse a escolha dos
parceiros e parceiras, m e s m o p o r q u e , n a relação mais í n t i m a , o africano tentava recriar
em terra alheia u m a m b i e n t e s e m e l h a n t e ao d a sua terra natal. N ã o p o r acaso, os
africanos c h a m a v a m de ' p a r e n t e s ' as pessoas d o m e s m o g r u p o é t n i c o , estabelecendo
com elas u m a v i n c u l a ç ã o essencial à r e d e f i n i ç ã o das solidariedades de linhagem e das
normas que c o m a n d a m as relações sociais.

Utilizei até aqui u m c o n c e i t o o c i d e n t a l para definir a família. M a s é preciso


lembrar que essa família nuclear, m e s m o extensiva, n ã o correspondia à experiência
dos africanos, o r i u n d o s de culturas polígamas, fratrilineares e patrilocais. Nelas, la-
ços familiares m u i t o distendidos eram parte essencial da organização social, cujas
regras não podiam ter sido fielmente reproduzidas na Bahia. A o contrário. Houve
transformações b e m c o n h e c i d a s . A mulher africana, por e x e m p l o , conquistou na
Bahia u m a independência c u m a p r e e m i n e n c i a que não possuía no â m b i t o do pa-
triarcado tradicional existente em sua terra natal. S e n d o minoritária n o Brasil, ela
ocupava posição privilegiada na sociedade escrava de então, d e s e m p e n h a n d o , na
Bahia, i m p o r t a n t e papel. Sozinha na criação dos filhos, sem família consanguínea,
164 BAHIA, SÊCULO X I X

cercada por g e n t e de várias etnias c forçada a viver s e g u n d o u m c ó d i g o social ',


d e n t a l ' , a m u l h e r africana p r o c u r o u — e a c h o u — e m sua e t n i a novos laços dc «
dariedade. T a l hipótese é c o r r o b o r a d a pela m a n e i r a c o m o essa solidariedade i f l n l

ciou a estrutura da família dos a l f o r r i a d o s .

T A B E L A 4 0

ESTADO CIVIL DE TESTADORES E INVENTARIADOS

ESTADO Crvii. 1801--1850 1851 - 1 8 9 0 ' ~-


HOMENS MULHERES HOMENS M ULHERES

Casados 64 (52,5) 36 (22,5) 40 (28,2) 28 (26,6)

Viúvos 25 (20,5) 56 (35,0) 18 (12,7) 18 (17,1)

Celibatários 33 (27,0) 62 (38,8) 84 (59,1) 51 (48,6;

Não declarado - - 6 (3,7)


- - 8 '7,6;

Total 122 (100,0) 160 (100,0) 142 (100,0) 105 (100,0,

Fonte: M.I. Cortes Oliveira, O liberto: o seu mundo e os outros (Salvador, 1790-1890), p. 120-127. A autora compara
umentos da população masculina livre e os testamentos dos alforriados nos mesmos períodos.

O c e l i b a t o , c a r a c t e r í s t i c a d a s o c i e d a d e b a i a n a d o s é c u l o X I X , era c o m u m entre os
alforriados, s o b r e t u d o e n t r e o s h o m e n s e na s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o . Entre a popu-
lação livre, o n ú m e r o d e c e l i b a t á r i o s p a s s o u d e 3 6 , 7 % a 4 5 % . E n t r e os libertos, de
27% a 59,1%.
N a medida e m q u e o s é c u l o passava, os a l f o r r i a d o s e x p e r i m e n t a v a m uma mutação
de o r d e m cultural. A s s i m i l a v a m o m o d e l o e u r o p e u 'livre' e rejeitavam o paradigma
m a t r i m o n i a l i m p o s t o p e l o m e s m o m o d e l o e u r o p e u c r i s t ã o . A n t e s de 1 8 5 0 , nenhum
pai solteiro declarava viver c o m u m a c o n c u b i n a . M a s , n a s e g u n d a m e t a d e do século,
3 8 deles, n u m total de 5 1 , m e n c i o n a r a m o n o m e da parceira. Africanos unidos a
a ricanas s o m a r a m 2 7 c a s o s ; sete n ã o d e c l a r a r a m as características da parceira; apenas
d o u v . a m c o m u m a n e g r a n a s c i d a n o B r a s i l . E r a , p o r t a n t o , i n c o n t e s t á v e l a predomi-
v l

nancia de uniões livres e n t r e os a f r i c a n o s , q u e n ã o a d o t a v a m o c a s a m e n t o legal como


m o d o de vida. A desagregação d o s i s t e m a escravocrata p r o v o c o u o surgimento de uma
atitude nova, ao m e s m o t e m p o reação c o n t r a a c u l t u r a d o m i n a n t e e tentativa de
a irmação d c u m a i d e n t i d a d e c u l t u r a l p r ó p r i a , d i f e r e n t e d o m o d e l o branco: os cultos
c origem africana se m u l t i p l i c a r a m e as c o n f r a r i a s cristãs, criadas para monitorar esses
novos cristãos, atraíram cada vez. m e n o s a d e s õ e s . 42
T o r n o u - s e m u i t o difundida a
prática da e n d o g a m i a e n t r e esses ' e s t r a n g e i r o s ' q u e n ã o eram nem completamente
brasileiros, nem c o m p l e t a m e n t e africanos. E m a m b o s os períodos, eram majoritárias
as uniões entre dois parceiros d c mesma o r i g e m .

E claro q u e o t e r m o genérico ' a f r i c a n o ' e s c o n d e uniões interétnicas, que ficam


mais explícitas q u a n d o sc estuda o r e c e n s e a m e n t o de 1 8 5 5 . Nesse período, J o ã o } . R**
¡ ode identificar a origem étnica de dezesseis uniões: treze delas ocorreram dentro do
LIVRO I I I - A FAMÍLIA BAIANA
[65

T A B E L A 41

CASAMENTOS E UNIÕES SEGUNDO A ORIGEM DOS PARCEIROS

MULHERES HOMENS
HOMENS
A N M B ND A N M B ND
Africana 62 2 2 2 43 88 1
_
Negra brasileira 3 3 2 6 2 — — _
Mulata - - - - - — — _ _
Branca
- -
- - - - - _ _
Não declarada .29 12
- - 21 2 _

A • africano; N = Negro brasileiro; M - mulato; B = bra nco; N D - não declarad 0

mesmo g r u p o , s e n d o n o v e e n t r e o s n a g ô s , dois e n t r e j e j e s , u m e n t r e haussás e u m entre


bornus; as u n i õ e s m i s t a s a c o n t e c e r a m e n t r e n a g ô s e n u j e s e e n t r e haussás e b o r n u s . 4 3

Apesar de p o u c o a b r a n g e n t e , este e x e m p l o c o n f i r m a os d a d o s q u e a p a r e c e m nas tabe-


las p r e c e d e n t e s . R a r a m e n t e o s a f r i c a n o s se u n i a m a negras brasileiras o u a mulatas. As
rivalidades e n t r e as d i f e r e n t e s n a ç õ e s d a Á f r i c a f o r a m d e v i d a m e n t e exportadas para o
Brasil, o n d e os b r a n c o s se e s m e r a v a m e m a l i m e n t á - l a s , t e n d o em vista dificultar revol-
tas de e s c r a v o s . 44
A e n d o g a m i a e a u n i ã o livre e r a m m u i t o f r e q ü e n t e s entre os africanos
libertos, s o b r e t u d o a p ó s 1 8 5 0 .
Apenas c e r c a d e 1/3 das pessoas viúvas t i n h a m filhos: c o m o v i m o s , f r e q ü e n t e m e n -
te os c a s a m e n t o s t a r d i o s e r a m m a i s v o l t a d o s para a c o n s t r u ç ã o de u m a vida c o m u m d o
que para a f o r m a ç ã o d e u m a p r o l e . N a p r i m e i r a m e t a d e d o século, em média, os casais
legais t i n h a m a p e n a s 1,7 filho ( m u i t o s pais t i v e r a m filhos antes de casar o u depois de
enviuvar). E m c o m p e n s a ç ã o , f a m í l i a s c o n s t i t u í d a s p o r pessoas solteiras parecem ter
sido mais n u m e r o s a s , c o m u m a m é d i a de 2 , 3 filhos.
A m é d i a de filhos se e l e v o u u m p o u c o nas famílias legais do p e r í o d o 1 8 5 1 - 1 8 9 0 ,
atingindo 2 , 1 . M a s os pais s o l t e i r o s t o r n a r a m - s e cada vez mais n u m e r o s o s , ampliando-
sc o c o s t u m e de dar, à c r i a n ç a , t a m b é m o n o m e da c o m p a n h e i r a . O r a , essas famílias
tinham, em m é d i a , 2 , 5 filhos, e n q u a n t o as mães solteiras t i n h a m 1,9. Assim, a família
consensual n ã o parcial p a r e c e s u p l a n t a r a parcial (chefiada p o r u m a m u l h e r sozinha)
na segunda m e t a d e d o século X I X . M u l h e r n e n h u m a dava o n o m e de seu c o n c u b i n o .
D e q u a l q u e r m a n e i r a , o m o d e l o familiar n o grupo dos alforriados era duplo, assim
> entre os livres: família legal e fiunHia consensual. M a s , a partir da segunda
e d o século, a f a m í l i a nuclear d c tipo consensual passou a suplantar a família
legal entre os alforriados de Salvador. O significativo índice de endogamia qjue carac-
teriza esse g r u p o p e r m i t e pensar q u e o fim d o tráfico negreiro, o a u m e n t o na quanti-
dade de cartas de alforria, a depressão e c o n ô m i c a - e n f i m , todos os sinais que pre-
nunciavam a irremediável desarticulação do sistema escravocrata — ajudaram a redefinir
os valores próprios desse grupo de antigos escravos. A família, célula e m o t o r da nova
estrutura, d e s e m p e n h o u nessa evolução um papel predominante.
BAHIA, S É C U L O XIX
166

T A B E L A 42

NÚMERO E CONDIÇÃO DAS C R I A N Ç A S S E G U N D O O E S T A D O C I V I L E O S E X O D O S P I A S

NÚMERO DE FILHOS
1801-1850

IN 1L 2N 2L 3N 3L 4N 4L 5N 5L +5N +5L

Homens casados 7 10 1 4 1 1
- l 1

- l 2
- ~~~ —•

Mulheres casadas 2 3
- 3 3 1
- - - - -
Homens viúvos 2 2 1 1
- 1
- - - - -
Mulheres viúvas - 5 3 2 4
1
- - - - - -
Homens celibatários 4 - 3 - 3 - - - - - -
Mulheres celibatárias 9
- 6
- 6
- 5
- - - - 1

1851-1890 NUMERO DE FILHOS

IN IL 2N 2L 3N 3L 4N 4L 5N 5L +5N +5L

Homens casados 3 2 - 2 1 3 - - - 2 - -
Mulheres casadas 2 3 1 1 1
- - 1 - - - -
Homens viúvos 1 2 3 1 1
- - 1
- - - -
Mulheres viúvas 1 3 1
- 1
- - - - - 1 -
Homens celibatários 17
- 13
- 9
- 7
- 1
- 4 -
Mulheres celibatárias 7 - 5
- 2
- 1
- 1 - - -
(1) 1 natural e 3 legítimos; (2) 2 naturais e 3 legítimos; (3) e (4) uma testadora tem 1 filho legítimo e 1 natural.

A FAMÍLIA ESCRAVA

Família escrava equivale a dizer, e s s e n c i a l m e n t e , família parcial. O s inventários post


mortem nada revelam sobre o estado civil dos escravos recenseados, embora sejam
prolixos em outros dados, c o m o a descrição de suas aptidões, de seus eventuais defeitos
físicos, de sua idade aproximada e de seu país de o r i g e m . C a s a m e n t o s entre escravos
existiam, mas eram tão raros q u e escaparam a toda d o c u m e n t a ç ã o q u e pude consultar.
O s 3 2 3 inventários post mortem da década de 1 8 5 0 relacionam ao t o d o 1 . 7 5 9 escravos,
sendo 9 8 3 homens e 7 7 6 mulheres, 1 0 9 das quais eram mães solteiras. A origem étnica
desses escravos é interessante.
A primeira vista, a tabela 4 3 cria um problema: por que a maioria
desses escravos
era de origem brasileira? As mulheres nascidas n o Brasil eram 5 9 , 8 % . ' M a s a e x p l i c a i 10

é fácil. O s dados foram coletados depois da abolição do tráfico, num período em que
era intenso o comércio interprovincial de escravos, c o m o envio de muitos africanos
para o Sul do país. Alem disso, a maior parte dos recenseados, sobretudo as mulheres-
trabalhava n o serviço d o m é s t i c o , 46
situação em que os escravos nascidos no Brasil
LIVRO I I I - A FAMÍLIA BAIANA 167

TABELA 43

SEXO E ORIGEM DOS ESCRAVOS INVENTARIADOS, 1 8 5 1 - 1 8 6 0

ORIGEM HOMENS MULHERES TOTAL

Negros brasileiros 379 (38,5) 367 (47,3) 746 (42,4)

Mulatos 70 (7,1) 97 (12,5) 167 (9,5)

'Africanos' 289 (29,4) 151 (19,4) 440 (25,0)

Nagõ 172 (17,5) 114 (14,7) 286 (16,3)

Haussá 15 (1,5) 1 (0,1) 16 (0,9)

Mina 7 (0,7) 5 (0,6) 12 (0,7)

Benim 4 (0,4) 1 (0,1) 5 (0,3)

Gege (Ewe) 8 (0,8) 15 (1,9) 23 (1.3)

Mondubi 1 (0,1) 1 (0,1) 2 (0,1)

Catocori 1 (0,1)
- - 1 (0,05)

Bornu 2 (0,2)
- - 2 (0,1)

Barba 2 (0,2)
- - 2 (0,1)

Tapa 5 (0,5) 3 (0,3) 8 (0,4)

Calabar 3 (0,3) - - 3 (0,1)

Congo 2 (0,2) 3 (0,3) 5 (0,3)

Cabinda 5 (0,5) 2 (0,2) 7 (0,4)

Angola 16 (1,6) 14 (1,8) 30 (1.7)

São Tomé 1 (0,1) - - 1 (0,05)

Moçambique 1 (0,1) 2 (0,2) 3 (0,1)

Total 983 (100,0) 776 (100,0) 1.759 (100.0)

eram preferidos. N ã o e s q u e ç a m o s , a i n d a , q u e a cólera e a febre amarela matavam mais


recém-chegados q u e filhos da terra, m a i s b e m p r o t e g i d o s .
O fim d o t r á f i c o d e s e n c o r a j a v a a c o m p r a de escravos e a m ã o - d e - o b r a livre, forma-
da por alforriados e i m i g r a n t e s p o b r e s c h e g a d o s da E u r o p a , era cada vez mais abun-
dante. O s q u e viviam d o aluguel de escravos foram obrigados a buscar outras fontes de
lucro, investindo por e x e m p l o e m ações bancárias o u e m apólices do Estado.
N a tabela 4 3 a p a r e c e m 4 8 % de africanos — dos quais os nagôs eram os mais
numerosos — , e n t r e os quais se e n c o n t r a v a a m a i o r parte dos jovens chegados depois
da abolição oficial do tráfico, q u a n d o os navios negreiros tinham q u e fugir do controle
exercido, n o m a r , por ingleses e franceses. S ó para as crianças os inventários forneciam
idades precisas. As faixas etárias apareciam da seguinte forma: 'moleque', moço',
'ainda m o ç o ' e ' v e l h o ' . M a s havia exceções. Alguns inventários e cartas de alforria
davam, s i m u l t a n e a m e n t e , as duas informações, o q u e tornou possível rraduzir em
números quatro categorias: m o l e q u e (até 13 anos), m o ç o (de 14 a 3 9 anos), ainda
BAHIA, S É C U L O XIX
168

m o ç o (de 4 0 a 5 0 anos) e velho ( 5 0 anos e m a i s ) . C i n q ü e n t a e seis por cento d 0 s

escravos tinham entre 14 e 5 0 anos e 4 4 , 4 % t i n h a m e n t r e 14 e 3 5 anos. As crianças


representavam 2 2 , 1 % .
Poucos escravos eram originários das costas sul o u leste da Africa, e o número de
mulatos não era negligenciável. E n t r e negros e m u l a t o s brasileiros, havia 9 7 homens
para cada cem mulheres, p r o p o r ç ã o c o e r e n t e c o m a de outras análises. M a s , para 0 s

africanos, essa p r o p o r ç ã o se desequilibrava: para 1 7 1 h o m e n s , só havia cem mulheres


E n t r e as mães solteiras, 6 4 , 2 % t i n h a m apenas u m filho e 3 8 , 5 % haviam nascido no
Brasil. A etnia mais b e m representada, a dos n a g ô s , t i n h a o m a i o r n ú m e r o de crianças,
pois 1/3 das 1 1 4 mulheres t i v e r a m filhos. L e m b r e m o s : em m é d i a , na Bahia as mães
solteiras alforriadas t i n h a m 1,9 filho, e n q u a n t o as mães solteiras livres tinham 1,7
Q u a n t o às mulheres nagôs, sua m é d i a era de 1,6 filho. As brasileiras e as africanas
tinham, r e s p e c t i v a m e n t e , 1 e 1 , 5 . N ã o há d ú v i d a de q u e os escravos brasileiros se
reproduziam p o u c o .
V i m o s q u e , n o c o n j u n t o d a p o p u l a ç ã o b a i a n a ( i n c l u i n d o libertos e brancos das
camadas superiores), era forte a e n d o g a m i a ligada à e t n i a o u à c o r dos parceiros. Que
se passava, a esse r e s p e i t o , e n t r e os escravos? Q u e grau d e m e s t i ç a g e m podemos detec-
tar entre eles? A m u l h e r escrava e s c o l h i a seu p r ó p r i o p a r c e i r o o u se encontrava exposta
ao arbítrio do s e n h o r e a relações fortuitas q u e e n g e n d r a v a m mestiços?

N a m a i o r i a dos casos, as m ã e s solteiras escravas t i n h a m filhos da sua própria cor,


especialmente as negras — l o g o , as africanas. S ó 1 0 % delas t i n h a m relações com
h o m e n s de pele m a i s clara, n ã o n e c e s s a r i a m e n t e s e n h o r e s b r a n c o s ( d i s p o n h o de exem-
plos de m u l a t o s q u e t a m b é m e r a m escravos). E m c o m p e n s a ç ã o , 3 0 % das negras bra-
sileiras t i n h a m filhos m e s t i ç o s . E r a m m a i s a b e r t a s , m a i s preparadas para a miscigena-
ção, que suas irmãs africanas.

Assim, r e e n c o n t r a m o s aqui o e s q u e m a e n d o g â m i c o j á o b s e r v a d o entre os libertos.


M e s m o q u e n ã o e n c o n t r a s s e u m c o m p a n h e i r o de sua e t n i a , u m a escrava podia preser-
var sua origem africana b u s c a n d o o u t r o n e g r o para ser o pai de seus filhos. Mais do
que a negra brasileira, a m u l h e r a f r i c a n a resistia ao p r o c e s s o de ' e m b r a n q u e c i m e n t o ,
e m b o r a este representasse u m c a m i n h o de assimilação mais seguro d o que a alforria e
a liberdade.
Alguns traços sobressaem nessa segunda análise tipológica da família nuclear sim-
ples na Salvador d o século X I X . E m p r i m e i r o lugar, as uniões livres eram mais fre-
qüentes que as legais, e as causas desse traço p a r t i c u l a r m e n t e característico da socieda-
de baiana devem ser procuradas c m razões de ordem institucional, econômica ou
psicológica, que t e n t a m o s descobrir c o m m a i o r precisão. U m segundo traço caracte-
rístico dessa sociedade era sua forte e n d o g a m i a , quase perfeita nos dois extremos da
estrutura social. O s brancos — d o m i n a d o r e s e f r e q ü e n t e m e n t e afortunados, exercen-
do o poder c os meios de c o n t r o l e da sociedade q u e eles próprios haviam organizado
reagiam exatamente da mesma maneira que seus escravos dominados e oprimidos-
Eram dois mundos separados em tudo, mas c o m as mesmas reações de autodefesa.
LIVRO I I I - A FAMÍLIA BAIANA 169

E n t r e esses do.s extremos da escala social havia uma numerosa população livre
parcialmente mestiça, formada por u m a multidão de homens e mulheres de comporta-
m e n t o m u i t o m e n o s rígido. E l o s intermediários dessa corrente, eles humanizavam as
relações s o c a i s , a p r o x i m a n d o os extremos e tornando os costumes mais flexíveis
Exerciam um difícil papel intermediário, que exigia sacrifícios e concessões, a fim de
manter equilíbrios precários entre essas duas estruturas — branca e negra — opostas
em tudo. Essas camadas intermediárias da população baiana faziam os brancos se
desprender de algumas de suas tradições européias e, ao m e s m o tempo, tornavam
menos africana a estrutura social negra. Graças a u m terceiro estudo tipológico — o
dos grupos d o m é s t i c o s , b e m mais extensos que as famílias de tipo nuclear, das alianças
matrimoniais e dos sistemas de parentesco — poderemos verificar com maior precisão o
importante papel desempenhado pelas camadas intermediárias da população de Salvador.

GRUPOS DOMÉSTICOS: TERCEIRO ESTUDO TIPOLÓGICO

A análise dos g r u p o s d o m é s t i c o s de Salvador n o século X I X é dificultada por dois


fatores: a grande diversidade de situações que induziam as pessoas a compartilhar do
mesmo teto e a presença de escravos e agregados, categorias ausentes da Europa O c i -
dental. C o m e c e m o s p e l o ú l t i m o fator.
'Ser escravo' era mais a m b í g u o do q u e parece. Sabe-se o que isso rcpresenrava do
ponto de vista j u r í d i c o . M a s , qual o lugar o c u p a d o pelo escravo n o lar do senhor? Q u e
diferenças havia, a esse respeito, nos m e i o s u r b a n o e rural? E m Salvador, o escravo era,
antes de mais nada, u m e m p r e g a d o d o m é s t i c o , que cumpria — melhor — o papel dos
seus numerosos c o n g ê n e r e s existentes nas sociedades ocidentais n o século X I X . 4 7
Nos
148 grupos d o m é s t i c o s q u e pesquisei, apenas quatro libertas apareceram citadas c o m o
criadas, trabalhando d a m e s m a maneira c o m o o faziam quando eram escravas. C o m o
tegra, o escravo era u m servidor n ã o assalariado e u m a fonte de renda para seu proprie-
tário, que o alugava a terceiros para fazer serviços externos, freqüentemente muito
penosos. M a s t a m b é m havia os que dominavam u m ou mais ofícios (artesão, barbeiro,
músico, alfaiate, sapateiro, pedreiro ou p i n t o r ) . O uso dessas aptidões era flexível e s e
adaptava às demandas m o m e n t â n e a s d o mercado de trabalho, tornando difícil distin-
guir, numa m e s m a casa, qual escravo era exclusivamente doméstico e qual era ganha-
dor'. O escravo só permanecia c o n t i n u a m e n t e no m e s m o trabalho se fosse a única
fonte de renda de seu senhor — o que era uma situação freqüente.
T e n d o sob sua responsabilidade manter a família do senhor e a sua própria, o
escravo era o verdadeiro esteio da organização familiar. Criavam-se, assim, laços de
interdependência entre ' d o m i n a d o r ' e 'dominado', abrindo a possibilidade de que a
dependência revertesse em favor do e s c r a v o . 48

E o papel dos agregados nos grupos domésticos? Diversas realidades se escondiam


atrás da palavra 'agregado', que designava genericamente os que v.viam com a famíha
170 BAHIA, S É C U L O XIX

c o m o pessoa da c a s a * . N o m e i o u r b a n o , eram pessoas que n ã o t i n h a m conseguido


o u t r o lugar, p o r falta de m e i o s , o u t i n h a m sido convidadas por p a r e n t e o u amigo a
alugar u m c ô m o d o na residência deste. E n t r e os e x e m p l o s de q u e d i s p o n h o , o de
A n t ô n i o J o s é de Souza M a t t o s é t í p i c o . B r a n c o , 51 a n o s , guarda na alfândega, casado
c o m d o n a M a r i a V i t ó r i a de S o u z a M a t t o s ( 3 0 a n o s , t a m b é m b r a n c a ) , era pai de cinco
filhos, cujas idades variavam de u m m ê s a o n z e a n o s . T o d o s viviam agregados à família
de G e r m a n o M e n d e s B a r r e t o , b r a n c o , 6 1 a n o s , escrivão do T r i b u n a l , casado com
d o n a T e r e s a ( b r a n c a , 5 5 a n o s ) , c o m q u e m t i n h a d o i s filhos. I g n o r o se havia parentesco
entre os dois casais (as duas esposas p o d e r i a m ter a d o t a d o o n o m e dos m a r i d o s , 50
ou
e n t ã o c o m p a r t i l h a v a m o t e t o p a t e r n o ) . O g r u p o d o m é s t i c o c o n t a v a a i n d a c o m duas
velhas mulatas e u m m u l a t o de q u i n z e a n o s , além de três escravos africanos: Gustavo
( 6 0 a n o s ) , E s p e r a n ç a ( 5 0 a n o s ) e E u g ê n i a ( 3 5 a n o s ) . C o n s i d e r a d a c o m o agregada, a
família Souza M a t t o s d e p e n d i a da o u t r a , e m b o r a os dois chefes fossem funcionários e
exercessem cargos p r a t i c a m e n t e e q u i v a l e n t e s , t a n t o d o p o n t o de vista do salário c o m o
do prestígio social. L o g o , o agregado p o d i a p e r t e n c e r à m e s m a categoria social do
c h e f e do g r u p o d o m é s t i c o .

I r m ã o s e i r m ã s , a f i l h a d o s , parentes afastados, viúvas, mães solteiras e seus filhos


eram c h a m a d o s , c o m f r e q ü ê n c i a , de agregados. V i v i a m à custa d o c h e f e da família, a
q u e m prestavam serviços, o u e n t ã o d i s p u n h a m de f o r t u n a pessoal, p a r t i c i p a n d o nesses
casos das depesas da casa. T a m b é m p o d i a m estar nessa c o n d i ç ã o os filhos de um antigo
escravo alforriado que tivesse p e r m a n e c i d o na casa de seu e x - s e n h o r . S e a família não
possuísse escravos, esses negros o u m u l a t o s t o r n a v a m - s e e m p r e g a d o s ; caso contrário,
o c u p a v a m u m a p o s i ç ã o i n t e r m e d i á r i a , c o m a n d a n d o e v i g i a n d o a c r i a d a g e m . D e qual-
q u e r m a n e i r a , o agregado era m u i t o c o n s i d e r a d o n o g r u p o . As crianças o tratavam com
respeito, c h a m a v a m - n o a f e t u o s a m e n t e p o r u m d i m i n u t i v o e o e s c o l h i a m c o m o padri-
n h o o u m a d r i n h a de c r i s m a . 5 1
F r e q ü e n t e m e n t e o agregado d e s e m p e n h a v a o papel que,
n o teatro clássico, cabe ao c o n f i d e n t e , p r i n c i p a l m e n t e dos jovens e dos senhores. Em
caso de necessidade, ele p o d i a se encarregar de cuidar da casa, fazendo guloseimas e
t r a n s f o r m a n d o - s e em v e n d e d o r a m b u l a n t e .

E m todas as camadas sociais da p o p u l a ç ã o livre — fosse ela branca, mulata ou


negra — encontravam-se agregados, cuja d e p e n d ê n c i a em relação à família da casa era,
às vezes, apenas aparente. Além disso, q u a n d o essa s u b o r d i n a ç ã o existia, não era obri-
gatoriamente de um negro o u um m e s t i ç o em relação a um b r a n c o . E n c o n t r e i , por
exemplo, o caso cm que uma negra liberta ( M a r i a J o a q u i n a dos Passos), nascida no
Brasil, solteira, dc 3 6 anos, tinha, c o m o agregada, uma branca ( D . S e n h o r i n h a Melânia
de Cerqueira), mãe solteira de dois filhos pequenos, c o m 3 4 anos de i d a d e . 52
Viviam
c o m as crianças, mas sem escravos. C o m o tinham praticamente a mesma idade, inferi
que haviam crescido juntas; a 'Senhorinha* dera um 'mau passo* e fora expulsa de casa,
recebendo dos pais, n o entanto, uma companheira na pessoa da alforriada. Esta 'irmã
crioula', provavelmente um pouco serviçal, em todo o caso fiel e responsável, não seria
o chefe da família?
LIVRO III - A FAMÍLIA BAIANA 171

O s escravos e os agregados d e s e m p e n h a v a m papéis variados nos grupos d o m é s t i -


cos a q u e p e r t e n c i a m . Seria necessário m u l t i p l i c a r e x e m p l o s para q u e se tivesse u m a
i m a g e m m a i s n í t i d a dos laços q u e existiam e n t r e esses d e p e n d e n t e s e os chefes dos
respectivos g r u p o s . A t é as m u l h e r e s q u e viviam c o m u m h o m e m eram c h a m a d a s de
agregadas — n u n c a de c o n c u b i n a s — e, se tivessem filhos, o pai n ã o era c i t a d o .
R e c o l h i d a d o s s o b r e 1 4 7 g r u p o s d o m é s t i c o s , q u e representavam u m c o n t i n g e n t e
de 7 4 2 pessoas, n o q u a l se m i s t u r a v a m , de f o r m a e x u b e r a n t e , livres, libertos e escra-
vos. 5 3
A frente das f a m í l i a s m a i o r e s , e n c o n t r a v a m - s e e m geral viúvos, viúvas o u casais,
m a i o r i t a r i a m e n t e b r a n c o s . O s casais casados t i n h a m , e m m é d i a , u m a família de dez
pessoas, ao passo q u e as famílias dos s o l t e i r o s t i n h a m , t a m b é m e m m é d i a , 3 , 2 pessoas.
O t a m a n h o das f a m í l i a s dos casais casados b r a n c o s ( 1 1 , 7 pessoas) era b e m m a i o r que
aquelas dos casais casados de c o r (seis pessoas). O s solitários e os g r u p o s sem estruturas
familiais n ã o t i n h a m escravos e, e n t r e os 4 1 g r u p o s dessas duas categorias — m a j o r i -
t a r i a m e n t e f o r m a d o s p o r l i b e r t o s e p o r m e s t i ç o s — só c i n c o possuíam agregados.

Desses g r u p o s d o m é s t i c o s , 2 8 , 6 % possuíam escravos, mas, e m c o m p e n s a ç ã o , 3 5 , 3 %


t i n h a m agregados e 5 , 5 % ( o i t o , n o total) t i n h a m agregados mas n ã o escravos. D e v e -
mos c o n c l u i r q u e os a g r e g a d o s eram a n e x a d o s a g r u p o s d o m é s t i c o s que t i n h a m os
meios materiais para sustentá-los? S e r i a m eles a d i c i o n a d o s aos escravos, c o m o s í m b o l o
da riqueza de u m a família?

E m 4 2 , 2 % dos casos os g r u p o s d o m é s t i c o s eram c h e f i a d o s p o r m u l h e r e s , 7 1 % das


quais eram solteiras, m u i t a s c o m filhos. Apesar da a p a r ê n c i a m a s c u l i n a da sociedade,
em todas as c a m a d a s de S a l v a d o r era f r e q ü e n t e q u e a m u l h e r assumisse sozinha o seu
destino e o dos seus filhos, d e s e m p e n h a n d o assim u m papel i m p o r t a n t e . A média de
idade dessas mulheres era de 4 0 a n o s , o q u e n ã o i m p e d i u q u e eu encontrasse dois
grupos chefiados, r e s p e c t i v a m e n t e , p o r mulatas — u m a de 1 9 , outra de 9 0 anos —
c o m p l e t a m e n t e fora dessa faixa etária. A j o v e m m u l a t a de 19 anos era mãe de um
filho. Sua p o u c a idade d e m o n s t r a o q u a n t o é ilusório utilizar critérios inspirados pelas
sociedades ocidentais para analisar u m a sociedade na qual as uniões livres são mais
numerosas que os c a s a m e n t o s . N o q u e dizia respeito aos h o m e n s , a média era a
mesma, mas o mais n o v o c h e f e de família tinha 2 5 anos e o mais velho era um
português de 7 7 anos.
O s grupos domésticos simples c sem estruturas famijiais (incluindo neles os 'soli-
tários') representavam 8 5 , 1 % do total, o que m e leva a receber com prudência a
afirmação dc que grupos 'extensivos' ou complexos eram característicos da organiza-
ção familiar dos baianos. Eles existiam, mas c o m o exceção. O modelo patriarcal,
característico da vida rural brasileira, foi substituído aqui por formas de organização
familial mais simples, mais flexíveis, mais adaptadas à cidade. Mas, c o m o mostra a
presença dos agregados, não se rompe assim com práticas sociais herdadas da família
de tipo patriarcal... Essa família baiana apresentava traços 'modernos' em suas estru-
turas e 'arcaicos' em seus fundamentos e atitudes. É o que tentarei definir agora mais
claramente.
CAPÍTULO 11

SISTEMAS DE PARENTESCO
E ALIANÇAS M A T R I M O N I A I S

Vimos que as familias legítima e consensual compartilhavam, na Bahia, os mesmos


traços fundamentais. Ambas eram essenciais para a coesão da sociedade local no sécu-
lo X I X . A família consensual era aceita entre as classes humildes e laboriosas da popu-
lação e não totalmente rejeitada pelas mais favorecidas. N ã o raro, aliás, o mesmo
homem sustentava duas famílias ao mesmo tempo.
Em Salvador, as relações sociais desconheciam qualquer formalismo. Em alguns
casos, o parentesco abria espaços para que pessoas nascidas pobres fossem integradas
em camadas mais abastadas. Filhos naturais — brancos, mulatos ou negros — podiam
nutrir esperança de ascensão social. É esse o sistema tradicionalmente qualificado de
'patriarcal'. A sociedade na qual se inseria, legalmente dividida em 'senhores' e 'escra-
vos*, se comportava c o m o se as divisões sociais pudessem ser ultrapassadas com facili-
dade. Por trás de uma rigidez aparente, sistemas de parentesco e de aliança eram
veículos para todo tipo de promoção, graças a solidariedades originais que, escondidas
atrás de aparências enganadoras, precisam ser detectadas. O pequeno mundo de Sal-
vador, flexível e cheio de vida, solidário e cheio de imaginação, ainda não conhecia
rigidez e imobilismo.

SISTEMAS DE PARENTESCO

Expressões c o m o 'parente', 'parentesco', nos r e m e t e m a laços biológicos que unem,


n u m a família, u m h o m e m e u m a m u l h e r a seus filhos, e e s t e s e n t r e si. S e g u n d o
M a r t i n e S e g a l e n , a a s s o c i a ç ã o h o m e m - m u l h e r j á é u m a ' a s s o c i a ç ã o s o c i a l ' , p o i s , em
princípio, liga duas pessoas o r i u n d a s de famílias diferentes. P o r t a n t o , o parentesco é
f u n d a d o , a o m e s m o t e m p o , c m l a ç o s b i o l ó g i c o s e s o c i a i s , d e s i g n a n d o t a n t o as pessoas
que são efetivamente parentes — pelo sangue ou por aliança — q u a n t o u m a das

172
L I V R O I I I - A FAMÍLIA BAIANA 173

instituições q u e regem o f u n c i o n a m e n t o da vida social nos setores e c o n ô m i c o , p o l í t i c o


e religioso. 1

M a s , e m certas s o c i e d a d e s , c o m o a brasileira, a n o ç ã o de parentesco ultrapassa


m u i t o esses l i m i t e s , graças a associações baseadas em laços espirituais ou vinculadas a
u m a e t n i a . N o t e c i d o social de S a l v a d o r , esses tipos eram t ã o i m p o r t a n t e s q u a n t o o
parentesco de t i p o c l á s s i c o , o q u e , aliás, fica c l a r o na própria t e r m i n o l o g i a de uso
c o m u m . É h á b i t o , p o r e x e m p l o , frisar a d i f e r e n ç a q u e existe e n t r e os tios e tias 'de
sangue e os ' p o r a l i a n ç a ' ; pai e m ã e n ã o são t e r m o s usados apenas para designar os pais
1

biológicos, m a s t a m b é m sogra e s o g r o . T o d o s m e r e c e m o t r a t a m e n t o de ' s e n h o r ' o u


'senhora', m a s se o s o g r o tiver u m d i p l o m a é c h a m a d o de ' d o u t o r ' (todos os d i p l o m a d o s
por escolas s u p e r i o r e s são d o u t o r e s ; m a s a m u l h e r , m e s m o q u e seja ' d o u t o r a ' , c o n t i n u a
a ser tratada p o r ' d o n a ' p o r seus g e n r o s e n o r a s ) . P a r a o s filhos d o p r i m e i r o l e i t o , o
segundo m a r i d o da m ã e é ' p a d r a s t o ' . Aliás, ' p a d r a s t o ' e ' s o g r o ' são t e r m o s q u e trazem
em si u m a t ê n u e idéia de e x c l u s ã o , de f r o n t e i r a e n t r e parentes naturais e parentes por
a l i a n ç a . O s a n t e p a s s a d o s t a m b é m r e c e b e m d e f i n i ç õ e s precisas, c o m o , p o r e x e m p l o ,
2

'tio-avô' e ' t i a - a v ó ' . A o m u l t i p l i c a r os avós, m u l t i p l i c a m - s e t a m b é m as responsabilida-


des e c o n s o l i d a - s e a m e m ó r i a f a m i l i a r .

A t e r m i n o l o g i a d o p a r e n t e s c o se a r t i c u l a n o B r a s i l s o b r e t u d o e m t o r n o dos m o -
dos de filiação e de a l i a n ç a , p r i n c í p i o s essenciais d o t e c i d o p a r e n t a l . A filiação, que
estudamos n o p r i m e i r o c a p í t u l o , é d e f i n i d a s e g u n d o seus aspectos j u r í d i c o s : trata-se
do r e c o n h e c i m e n t o dos l a ç o s de u n i ã o e n t r e i n d i v í d u o s q u e d e s c e n d e m biologica-
m e n t e uns dos o u t r o s — ' d e s c e n d e n t e s ' , p a r a a filiação de c i m a para b a i x o , o u 'as-
cendentes', para a q u e l a q u e vai de b a i x o para c i m a . E m q u a l q u e r s i t u a ç ã o , a filiação
pode existir e m l i n h a direta o u c o l a t e r a l . E m p o r t u g u ê s , cada caso t e m u m a designa-
ção própria, e neste p o n t o as g e n e a l o g i a s familiais são precisas. E x i s t e , pois, u m a
m e m ó r i a genealógica m u i t o p r o f u n d a nessa s o c i e d a d e de e m i g r a d o s , q u e faz questão
de r e m o n t a r a a n t e p a s s a d o s d e d u a s , três o u m a i s g e r a ç õ e s , s o b r e t u d o q u a n d o se trata
de afirmar a a s c e n d ê n c i a de u m colateral prestigioso, c u j a a t u a ç ã o c o n f e r e brilho à
família em q u e s t ã o . T o d o s o s r a m o s da f a m í l i a C a l m o n d u P i n e A l m e i d a , p o r e x e m -
plo, reivindicam até h o j e , c o m o a n t e p a s s a d o , u m h o m e m de E s t a d o do início d o
século X I X , o M a r q u ê s de A b r a n t e s , q u e n ã o teve filhos. Essa corrida ao ascendente
ilustre não é, aliás, u m a c a r a c t e r í s t i c a exclusiva dos d e s c e n d e n t e s de portugueses.
R e e n c o n t r a m o s a m e s m a p r e o c u p a ç ã o e n t r e os a f r i c a n o s , q u e conservaram, por tradi-
ção oral, os n o m e s de antepassados livres e de sangue real. Eles d e s e m p e n h a m papel
particularmente i m p o r t a n t e n o seio de u m a população q u e descende de antigos es-
cravos; o dado social, aqui, é mais i m p o r t a n t e q u e o dado p r o p r i a m e n t e biológico.
Ainda hoje, certas famílias negras q u e têm um m e m b r o em funções elevadas na hie-
rarquia religiosa dos c a n d o m b l é s dizem que p o d e m r e m o n t a r a u m a ascendência real
de uma etnia africana qualquer.

As filiações na família baiana são indiferenciadas ou cognáticas. N ã o é através de


um dos sexos que se define se u m a pessoa pertence a um grupo de parentesco. T o d o s
1-4 BAHIA, S É C U L O X I X

os descendentes de um indivíduo fazem parte d e seu grupo de parentesco. P o r sua vez,


o indivíduo é m e m b r o de tantas linhagens q u a n t o s ascendentes for capaz de identifi-
car. O filho guarda o n o m e d o pai e da m ã e , f o r m a n d o assim u m novo patronímico
que indica, c l a r a m e n t e , sua dupla origem tamilial. Q u a n d o casa, a m u l h e r substitui o
p a t r o n í m i c o m a t e r n o pelo de seu m a r i d o , sem q u e isso i n d i q u e um sistema de filiação
patrilincar. O e s p o s o conserva seu p a t r o n í m i c o d u p l o original. G e r a l m e n t e , os filhos
naturais t ê m u m ú n i c o p a t r o n í m i c o , d o pai o u da m ã e . Q u a n t o aos escravos, após a
alforria conservavam g e r a l m e n t e o n o m e da família de seu antigo s e n h o r .

PARENTESCO POR ESCOLHA

Existe outra m a n e i r a de expressar u m p a r e n t e s c o o u u m a filiação na B a h i a . O s termos


pai, m ã e , i r m ã o , i r m ã , p r i m o , tia e tio são utilizados para designar pessoas c o m as quais
n ã o existe n e n h u m laço c o n s a n g u í n e o o u de a l i a n ç a , m a s apenas de escolha, tão forte
e tão sólido q u a n t o os p r i m e i r o s . S e alguém é e s c o l h i d o para d e s e m p e n h a r o papel de
pai ou m ã e , tio o u tia, i r m ã o o u irmã, é impossível escapar. C r i a m - s e assim novas
relações, q u e se t o r n a m t ã o fortes q u a n t o as de p a r e n t e s c o c o n s a n g u í n e o . É o que os
baianos c h a m a m de ' p a r e n t e s c o por c o n s i d e r a ç ã o ' , que n ã o deve ser c o n f u n d i d o c o m
o parentesco p o r aliança. U m p a r e n t e por c o n s i d e r a ç ã o é parente na acepção plena da
palavra, c o m t u d o o q u e essa n o ç ã o i m p l i c a de mais estrito e p r o f u n d o . Assim, cada
qual pode escolher tios e tias, m u l t i p l i c a d o s sem l i m i t a ç õ e s . T a m b é m é freqüente que
esse tipo de a d o ç ã o salte u m a geração: u m n e t o pode decidir 'adotar' sua avó c o m o
' m ã e ' , transferindo para ela seu a m o r filial e d e i x a n d o a m ã e biológica à distância.
Aliás, esse papel m a t e r n a l pode ser d e s e m p e n h a d o p o r qualquer o u t r o m e m b r o da
família (tia, irmã mais velha, prima e t c ) , caso e m q u e a mãe verdadeira passará para
o m e s m o plano do filho, que c o m e ç a a c h a m á - l a pelo p r e ñ ó m e e a considerá-la c o m o
uma irmã mais velha. P r o m o v i d a a ' m ã e ' , a avó ou tia será tratada c o m o tal por todos
os que a cercam.
N u m a sociedade em que p r e d o m i n a v a m a aliança natural do casal parental e a
ilegitimidade dos nascimentos, não devem causar surpresa essas transferências, essas
escolhas de novas famílias. M a s é fácil constatar o grande impacto afetivo dessas
situações, bem c o m o sua influência sobre as organizações familiares. A relativa anomia
da sociedade baiana seria reforçada por tais fatores ou, ao contrário, eles atenuariam os
choques cm uma sociedade marcada pela escravidão?
A todos esses párenles 'por escolha', é preciso acrescentar o 'parentesco espiritual.
Ele existe cm outros lugares mas, na Bahia, sua importância é tamanha que é preciso
colocá-lo no mesmo nível do parentesco consanguíneo. Existem três tipos de padri-
nhos espirituais: o de batismo, o que consagra a criança a Nossa Senhora e o de crisma.
O primeiro é o mais importante (nem os negros africanos conseguiam evitá-lo, para si
e seus filhos). Cada criança tem, obrigatoriamente, um padrinho e uma madrinha de
LIVRO I I I - A FAMÍLIA BAIANA

b a t i s m o . N a z o n a rural, o n d e f r e q ü e n t e m e n t e a c o m u n i d a d e t e m mais h o m e n s q u e
m u l h e r e s , às vezes esta ú l t i m a é s u b s t i t u í d a pela p r ó p r i a N o s s a S e n h o r a . D e q u a l q u e r
m a n e i r a , o b a t i s m o n u n c a é c e l e b r a d o l o g o a p ó s o n a s c i m e n t o , s e n d o f r e q ü e n t e batizar
c r i a n ç a s q u e já c o m e ç a r a m a a n d a r . A c e r i m ô n i a é s e g u i d a d a c o n s a g r a ç ã o d a c r i a n ç a
a Nossa Senhora.

E m geral, p a d r i n h o s e m a d r i n h a s p e r t e n c i a m à m e s m a c a t e g o r i a social dos pais da


c r i a n ç a . N o e n t a n t o , r a r a m e n t e u m e s c r a v o era e s c o l h i d o para esse papel, e nas c a m a -
das sociais i n f e r i o r e s — e s c r a v o s e l i b e r t o s — a p r e f e r ê n c i a recaía s o b r e pessoas q u e
gozavam d e c e r t o p r e s t í g i o na c o m u n i d a d e , m e n o s pela f o r t u n a e mais pela p e r s o n a -
lidade e as r e l a ç õ e s e s t a b e l e c i d a s . N u m a s o c i e d a d e e m q u e as p o s i ç õ e s d e p e n d i a m da
ajuda de t e r c e i r o s , a e s c o l h a d e p a d r i n h o e m a d r i n h a b e m - r e l a c i o n a d o s integrava u m a
estratégia d e a s c e n s ã o s o c i a l o u , p e l o m e n o s , d e p r e s e r v a ç ã o de u m a c o n d i ç ã o j á
a l c a n ç a d a . A s s i m , c o n s o l i d a v a m - s e e e s t e n d i a m - s e os l a ç o s de s o l i d a r i e d a d e . Pais abas-
tados e s c o l h i a m c o m f r e q ü ê n c i a u m m e m b r o de f a m í l i a - i r m ã — u m i r m ã o , tio o u avô
— , o q u e r e f o r ç a v a as t e n d ê n c i a s e n d ó g a m a s das f a m í l i a s b a i a n a s m a i s i m p o r t a n t e s .

A o c o n t r á r i o d o q u e se passa h o j e , n o s é c u l o X I X a r e s p o n s a b i l i d a d e assumida p o r
p a d r i n h o s e m a d r i n h a s n ã o se l i m i t a v a ao q u e estava e s c r i t o n a c e r t i d ã o . Eles p o d i a m
ser e n c a r r e g a d o s d a e d u c a ç ã o , d a o r i e n t a ç ã o p r o f i s s i o n a l e d o e m p r e g o d o afilhado,
m e s m o q u e o s pais d e s t e f o s s e m v i v o s . E , se f a l h a s s e m , h a v i a a 'reserva', representada
pelo p a d r i n h o o u m a d r i n h a d e c r i s m a o u de c o n s a g r a ç ã o a N o s s a S e n h o r a . Assim,
desde o n a s c i m e n t o a c r i a n ç a era c e r c a d a p o r u m a rede p r o t e t o r a , m u i t o i m p o r t a n t e
n u m a s o c i e d a d e e m q u e a o r g a n i z a ç ã o f a m i l i a r era instável, havia g r a n d e n ú m e r o de
nascimentos ilegítimos e "crianças, h o m e n s e mulheres circulavam, construindo e
destruindo i n c a n s a v e l m e n t e , a o l o n g o de u m a m e s m a vida, f o r m a s d o m é s t i c a s precá-
r i a s " . A i m p o r t â n c i a d o a p a d r i n h a m e n t o era t ã o g r a n d e q u e , c o m o nos casos das
3

ligações de p a r e n t e s c o , t a m b é m havia p a d r i n h o s e m a d r i n h a s 'de c o n s i d e r a ç ã o ' . A t é


h o j e , aliás, são tratadas assim as pessoas q u e , ao l o n g o da vida, a j u d a m a l g u é m .
Existia u m t e r c e i r o e i m p o r t a n t e m o d o de filiação n ã o b i o l ó g i c a : a filiação étnica,
encontrada s o b r e t u d o e n t r e os a f r i c a n o s e seus d e s c e n d e n t e s . E m Salvador, escravos e
libertos da m e s m a etnia se e n c o n t r a v a m c o m mais facilidade que nas plantações de
cana-de-açúcar, o n d e os s e n h o r e s se e m p e n h a v a m em misturar africanos de todas as
origens, a fim de evitar c o n j u r a ç õ e s e revoltas. N a cidade reinava uma relativa liber-
4

dade de m o v i m e n t o , pois a própria natureza das tarefas exigia o c o n t a t o c o n t í n u o dos


trabalhadores e n t r e si. Livres para ganhar a vida c o m o quisessem ( c o n t a n t o que divi-
dissem os lucros c o m os s e n h o r e s , dos quais eram muitas vezes a única fonte de renda),
era raro que os escravos se apresentassem individualmente no mercado de trabalho.
Cada etnia tinha seus p o n t o s fixos de e n c o n t r o , em encruzilhadas chamadas de 'cantos'.
Ainda por volta de 1 8 9 8 , cerca de q u i n h e n t o s velhos africanos da Bahia continuavam
a formar esses ' c a n t o s ' , preferindo conviver c o m os compatriotas — gurunces, haussas,
nagôs, jejes e alguns minas — , m e s m o que estes fossem pouco estimados pelos negros
nascidos n o B r a s i l . Nessa época, os tapas, bornus, congos e angolas já haviam desa-
5
176 BAHIA, S É C U L O XIX

p a r e c i d o . Cada ' c a n t o ' tinha seu ' c a p i t ã o ' , prestigiado por seus camaradas e respon-
6

sável pelo grupo diante das autoridades da cidade.


A associação de natureza étnica n ã o era utilizada s o m e n t e para a organização do
trabalho. Escravos e libertos se e n c o n t r a v a m p o r etnia t a m b é m nas 'juntas de alforria
(associações que angariavam fundos para pagar cartas de alforria) e, sobretudo, nas
confrarias religiosas instaladas na B a h i a desde o fim do século X V I I . J á expliquei c o m o
o fato de pertencer a uma etnia podia influenciar até a escolha de u m parceiro sexual.
N ã o era, p o r t a n t o , casual q u e a m a i o r parte dos africanos alforriados escolhesse seus
próprios escravos — q u a n d o c o n s e g u i a m c o m p r á - l o s — d e n t r o da sua etnia. Esses
escravos eram f r e q ü e n t e m e n t e l i b e r t a d o s , s e m p a g a m e n t o , p o r ocasião da morte do
senhor; às vezes, herdavam os b e n s d o s e n h o r q u e n ã o tivesse herdeiros legítimos.
C o m p r e e n d e - s e p o r q u e a palavra p a r e n t e p o d i a designar qualquer pessoa que
pertencesse à m e s m a etnia, c r i a n d o - s e assim mais u m t i p o de filiação capaz de conso-
lidar laços tão necessários aos b a i a n o s mais p o b r e s . O s c a n d o m b l é s da Bahia são, ainda
h o j e , herdeiros desse sistema de filiação: seus m e m b r o s a f i r m a m pertencer à mesma
família, u m a 'família de s a n t o ' , q u e o c u p a o lugar da l i n h a g e m desaparecida. F a t o r de
redefinição dos valores a f r i c a n o s , a filiação é t n i c a faz referência a u m antepassado
c o m u m e d e s e m p e n h a u m papel t ã o i m p o r t a n t e q u a n t o a filiação b i o l ó g i c a . 7

PARENTELA

N u m grupo de pessoas aparentadas, t o d o s se s i t u a m e m relação a u m ou vários ante-


passados c o m u n s . E m c o m p e n s a ç ã o , a parentela c o l o c a o indivíduo (seja ele quem for)
n o centro e r e c o n h e c e seus parentes, p e l o sangue o u p o r aliança, até exaurir os laços
genealógicos q u e a m e m ó r i a possa a l c a n ç a r . S e o indivíduo assim o decidir, chegam-
8

se a incluir ascendentes e d e s c e n d e n t e s c u j o parentesco é apenas espiritual.


Nessa sociedade e m q u e os filhos naturais eram tão n u m e r o s o s , existia uma vasta
parentela ilegítima. A o c o n t r á r i o d o q u e se passava c o m a parte legítima e reconhecida
da família, os chamados 'parentes de m ã o t o r t a (gerados p o r uniões livres) podiam ser
reconhecidos ou não. A última hipótese ocorria s o b r e t u d o entre as camadas superiores
da sociedade, especialmente q u a n d o se tratava de parentes de cor. Às vezes não se
reconheciam sequer os descendentes de u m c a s a m e n t o desigual, m e s m o que legítimo
do ponto de vista j u r í d i c o . Esses parentes, f r e q ü e n t e m e n t e escamoteados, só apare-
9

ciam nas únicas cerimônias familiares realmente abertas: os enterros. A morte era
pública e sagrada, e as pessoas tinham o dever de prestar a última homenagem ao
defunto. Mas, terminada a c e r i m ô n i a fúnebre, todos se separavam novamente.
A parentela era, pois, uma associação de solidariedade familiar muito flexível e
multifuncional. C o m o o apadrinhamento, era uma via de multiplicação das solida-
riedades, um fator de coesão do grupo, um m o t o r para todas as promoções. Verda-
deira clientela, freqüentemente constituída de afilhados, filhos de afilhados, agrega-
LIVRO III - A FAMÍLIA BAIANA 1 "

dos, alforriados e parentes d i s t a n t e s , a parentela podia, inclusive, ter u m aspecto


unilateral: u m a pessoa p o d i a c o n s i d e r a r - s e p a r e n t e de o u t r a , m e s m o que esta negasse.
O r e c o n h e c i m e n t o d a c o n d i ç ã o de p a r e n t e implicava a aceitação de deveres e obriga-
ções r e c í p r o c o s . Q u a n t o m a i s prestigiosa fosse a p o s i ç ã o o c u p a d a por alguém, m a i o -
res e r a m suas r e s p o n s a b i l i d a d e s d i a n t e de u m p a r e n t e de s a n g u e , de aliança o u espiri-
tual. Essa r e s p o n s a b i l i d a d e era, aliás, t r a n s m i t i d a de geração a geração, m e s m o q u a n d o
novas parentelas e c l i e n t e l a s f o s s e m a c r e s c e n t a d a s às j á existentes.
A s s i m , nas velhas f a m í l i a s b a i a n a s , a s u s t e n t a ç ã o das posições dos antepassados
não exigia apenas a c a p a c i d a d e de m a n t e r e e d u c a r a p r ó p r i a família, mas t a m b é m de
ocupar-se de t o d a u m a h e r a n ç a de fiéis c l i e n t e s , que acreditavam firmemente n o poder
do p a r e n t e p r o t e t o r , m e s m o q u a n d o esse p o d e r n ã o existia m a i s . T r a t a v a - s e , às vezes,
de h e r a n ç a b a s t a n t e pesada, s o b r e t u d o q u a n d o a p a r e n t e l a e a clientela eram pobres ou
miseráveis. A t é a d é c a d a de 1 9 6 0 , n u n c a se recusava esse t i p o de p r o t e ç ã o , que repre-
sentava a f o r ç a e a fraqueza dessa s o c i e d a d e f r a t e r n a , e m que os laços criados pela ajuda
m ú t u a p o d i a m t r a n s f o r m a r - s e e m n ó s g ó r d i o s . As estratégias estabelecidas e m t o r n o de
alianças m a t r i m o n i a i s c o m p l e t a v a m e t o r n a v a m m a i s c o m p l i c a d o s esses sistemas.

ALIANÇAS MATRIMONIAIS: EXOGAMIA E ENDOGAMIA

Estabelecidas e m d o i s níveis e d o t a d a s de d u p l o a s p e c t o , a exogamia e a endogamia


coexistiam e m S a l v a d o r n o s é c u l o X I X , mas a p r i m e i r a era m u i t o mais difundida que
a segunda. C o m o j á se v i u , a t e n d ê n c i a à e n d o g a m i a se c o n c e n t r a v a nas duas situações
sociais e x t r e m a s : famílias dos s e n h o r e s de e n g e n h o e dos africanos alforriados.
O c o r r e e x o g a m i a q u a n d o a a l i a n ç a m a t r i m o n i a l é praticada fora do grupo domés-
tico. E m m a n u e l T o d d a f i r m a , em u m t e x t o a m b í g u o , q u e se trata de uma escolha
matrimonial l i v r e , 10
m a s essa d e f i n i ç ã o n ã o parece adequada para situações em que os
pais i m p õ e m sua p r ó p r i a e s c o l h a aos filhos. A palavra exogamia t a m b é m tem outro
sentido: c o r r e s p o n d e a u m " t i p o de c a s a m e n t o fora d o grupo social de o r i g e m " " que
permite estabelecer relação c o m o u t r o s grupos de filiação. Essa definição ampla tem a
vantagem de evidenciar as m o b i l i d a d e s sociais. A regra exogàmica, obviamente, proíbe
o incesto.
A endogamia, ao c o n t r á r i o , i m p õ e às pessoas a obrigação de contrair matrimônio
dentro do grupo d o m é s t i c o a que pertencem. O s casamentos preferenciais entre p n -
mos-irmãos, por e x e m p l o , expressam uma espécie de hipertrofia do sentimento de
fraternidade. 12
Na B a h i a , esse gênero de casamento era encorajado, mas não obrigató-
rio, coexistindo c o m os casamentos exógamos.
O termo ' e n d o g a m i a ' pode ser utilizado com um sentido mais amplo, de modo a
definir uma estratégia matrimonial dentro do grupo social de origem. Usei essa acepção
quando tratei do c o m p o r t a m e n t o sexual dos africanos e dos alforriados baianos, uni-
dos por fazerem parte da mesma etnia. Sem dúvida, o conceito de etn.a é muito mais
BAHIA, SÉCULO X I X

a m p l o que o de grupo d o m é s t i c o . P o r isso, é m e l h o r caracterizar esse tipo de endogamia,


u n i c a m e n t e , p o r u m a espécie de i n t e r d i ç ã o , extensiva aos dois sexos, mas n ã o de forma
absoluta: o c ô n j u g e n ã o p o d e ser e s c o l h i d o fora d o g r u p o de o r i g e m , seja ele social ou
é t n i c o . O r a , na B a h i a , o m o d e l o social era e s s e n c i a l m e n t e b r a n c o , pois a riqueza era o
c r i t é r i o f u n d a m e n t a l para q u a l q u e r a s c e n s ã o . Assim, a m a i o r i a dos baianos tendeu a
praticar a e x o g a m i a , s o b r e t u d o p o r q u e as estruturas da sociedade só eram rígidas na
aparência. N a realidade, o s c o m p o r t a m e n t o s n ã o se deixavam tolher pelas regras.
J á m e n c i o n e i o papel regulador q u e b r a n c o s e a f r i c a n o s d e s e m p e n h a v a m nos dois
e x t r e m o s da sociedade, i m p o n d o l i m i t e s firmes p o r é m incapazes de e n q u a d r a r total-
m e n t e a vida social. A c o r , o d i n h e i r o e as restrições da Igreja e m matéria de afinidade
espiritual o u de c o n s a n g ü i n i d a d e n ã o eram s u f i c i e n t e s para i m p e d i r algumas relações
sexuais e até c a s a m e n t o s . O s e s t u p r o s e raptos d e m o n s t r a m a força das paixões dos
q u e , c o m o u s e m ê x i t o , n ã o a c a t a v a m as regras i m p o s t a s pela I g r e j a e as famílias. S ó
u m a análise q u e c o n t a b i l i z a s s e dispensas de c a s a m e n t o p o r razão de consangüinidade,
associada a u m e s t u d o d i f e r e n c i a l dos c a s a m e n t o s , p e r m i t i r i a d e t e r m i n a r a influência
desses c o m p o r t a m e n t o s d i v e r g e n t e s . 13
E n t r e t a n t o , é possível i n d i c a r c o m exatidão
algumas estratégias m a t r i m o n i a i s de dois g r u p o s sociais b e m d i f e r e n t e s : os 1 1 3 baianos
q u e , n o século X I X , r e c e b e r a m t í t u l o s de n o b r e z a e os escravos alforriados de Salvador.
Q u a n t o aos estupros e raptos, d e s c o b r i a l g u m a c o i s a e m relatórios policiais e discursos
q u e solicitavam a c r i a ç ã o de casas para m o ç a s a b a n d o n a d a s o u expostas a esses perigos.

ESTRATÉGIAS MATRIMONIAIS DOS BAIANOS NOBILITADOS

Foi m u i t o recente a f o r m a ç ã o de u m a n o b r e z a brasileira. D u r a n t e o período colo-


nial, os portugueses (e seus d e s c e n d e n t e s ) q u e se t o r n a s s e m p o d e r o s o s senhores de
e n g e n h o n o Brasil p o d i a m pedir a o rei a c o n d i ç ã o hereditária de fidalgo. Depois da
I n d e p e n d ê n c i a , a j o v e m M o n a r q u i a brasileira c r i o u títulos de nobreza para recom-
pensar os q u e prestavam serviços ao país. O s dez conselheiros de E s t a d o d o impera-
dor d o m P e d r o I, q u e e l a b o r a r a m a C o n s t i t u i ç ã o de 1 8 2 4 , foram os primeiros: re-
conhecidos c o m o viscondes e depois elevados a marqueses. N u m e r o s o s participantes
das lutas pela I n d e p e n d ê n c i a na B a h i a t a m b é m receberam esses títulos. D u r a n t e o
reinado de d o m Pedro I I , eles foram o u t o r g a d o s aos q u e gozavam de grande prestí-
gio político e e c o n ô m i c o . 1 4
E n t r e as 9 8 6 pessoas tornadas nobres pelo Império, 113
nasceram na B a h i a .
M a s a nobreza brasileira era de o r d e m pessoal, isto é, não se transmitia aos descen-
dentes. S ó o título de 'fidalgo* c o n t i n u o u hereditário, c o m o n o tempo da monarquia
portuguesa. Aliás, nem todos os nobres eram fidalgos, e estes não recebiam forçosa-
mente um título de nobreza, c o m o mostra o caso de Francisco Pereira Sodré. Tornado
Barão de Alagoinhas em ] 8 7 9 , solicitou por duas vezes, a d o m Pedro I I , a condição de
fidalgo, hereditária em sua família havia duas gerações. E m vão. Explica-se: ele tivera
LIVRO III - A FAMÍLIA BAIANA 179

a infelicidade de nascer bastardo. O insistente apoio de seu m e i o - i r m ã o J e r ô n i m o ,


solteiro, e de suas duas m c i o - i r m ã s n ã o foi suficiente para sensibilizar o imperador. E m
c o m p e n s a ç ã o , em outra família, J o ã o J o s é de A l m e i d a C o u t o , fidalgo e Barão de
D e s t e r r o , obteve a m e s m a c o n d i ç ã o de fidalgo para seu genro — q u e não era nobre
alegando s i m p l e s m e n t e q u e n ã o t i n h a herdeiro d o sexo m a s c u l i n o em sua própria
família. Se um filho de pai t o r n a d o n o b r e quisesse ser n o b r e t a m b é m , teria que provar
o seu valor antes de fazer a solicitação.
O s baianos nobilitados f o r m a r a m dois grandes grupos: os que seguiram carreira e
fizeram suas alianças m a t r i m o n i a i s fora da Província e os que permaneceram nela até
morrer. C h a m a r e i de 'cariocas' os 3 9 (de u m total de 1 1 3 ) que se fixaram n o R i o de
J a n e i r o , capital do I m p é r i o . 1 5
S ó dois deles c o n t r a í r a m casamentos endógamos. O
primeiro foi J o s é C a r l o s de A l m e i d a T o r r e s ( 1 7 7 9 - 1 8 5 6 ) , V i s c o n d e de M a c a é , alto
magistrado, d e p u t a d o , s e n a d o r , m i n i s t r o e p r i m e i r o - m i n i s t r o . Era filho de José Carlos
Pereira, juiz do T r i b u n a l de R e l a ç ã o de Salvador, e de A n a Rita Zeferina de Almeida
T o r r e s . Aos 2 5 a n o s , q u a n d o era o u v i d o r da c o m a r c a de P o r t o Seguro, J o s é Carlos
J ú n i o r se casou c o m sua p r i m a - i r m ã , M a r i a E u d ó x i a Engracia B e r n a r d i n a de Almeida
T o r r e s , filha de seu tio m a t e r n o B e r n a r d i n o M a r q u e s de Almeida T o r r e s , senhor de
engenho, e de J o a n a Angélica de M e n e z e s D o r i a , t a m b é m oriunda de uma distinta
família do R e c ô n c a v o .
O o u t r o ' c a r i o c a ' e n d o g â m i c o foi C a r l o s C a r n e i r o de C a m p o s ( 1 8 0 5 - 1 8 7 8 ) , Vis-
conde de Caravelas, m e m b r o da poderosa família política dos C a r n e i r o de C a m p o s .
Era s o b r i n h o do M a r q u ê s de Caravelas ( 1 7 7 0 - 1 8 3 6 ) , alto funcionário do primeiro
Império, principal redator da C o n s t i t u i ç ã o de 1 8 2 4 , senador, várias vezes ministro,
m e m b r o do C o n s e l h o da R e g ê n c i a entre 1 8 3 5 e 1 8 3 6 . O u t r o tio seu era Francisco
Carneiro de C a m p o s ( 1 7 7 6 - 1 8 4 2 ) , magistrado de nível m u i t o elevado, senador e
ministro de d o m Pedro I. A esses dois tios, que permaneceram solteiros, Carlos Car-
neiro de C a m p o s deveu sua carreira de alto f u n c i o n á r i o , deputado, presidente de
província c ministro. C a s o u - s e , em primeiras núpcias, aos dezoito anos, antes de
terminar seu curso de direito em Paris, c o m Fabrícia Ferreira França, que tinha quinze
anos e era filha de seu tio m a t e r n o , o d o u t o r A n t ô n i o Ferreira França, e de dona Ana
da Costa Barradas, que morreu cm 1 8 4 8 . Q u i n z e anos depois, tendo enviuvado e se
tornado presidente da Província de M i n a s Gerais, contraiu novas núpcias com uma
moça da terra, Barbara Galdina, 2 5 anos mais moça que ele, nascida no poderosíssimo
clã dos Oliveira. Mas, nessa época, ele já era um homem de posição muito elevada. Era
doutor em direito pela Universidade de Paris, o que, na época, era bastante raro. Os
jovens baianos, nascidos no fim do século X V I I I ou nos primeiros anos do século X I X ,
continuavam fazer estudos superiores em C o i m b r a . 1 0

Esses dois baianos que se casaram dentro das respectivas famílias tiveram sólidos
apoios familiares desde o início de suas vidas. O Visconde de Macaé começou sua
carreira seguindo a trajetória de seu pai, desembargador do Tribunal da Relação da
Bahia. Mas é interessante notar que ele adotou o nome — mais prestigioso — de sua
180 BAHIA, SÉCULO X I X

mãe, q u e era filha e irmã de senhores de e n g e n h o do R e c ô n c a v o . Sua integração à


família materna foi de tal ordem, q u e ele acabou casando c o m a filha do irmão de sua
mãe, fazendo desaparecer de seu n o m e t o d o e qualquer vestígio do p a t r o n í m i c o Pereira.
O prestígio do proprietário de terras suplantava o do magistrado, p o r mais elevado que
fosse o grau atingido na magistratura.
N o que diz respeito a Carlos C a r n e i r o d e C a m p o s , as coisas são mais simples
ainda: aqui, o lado paterno era mais i m p o r t a n t e , graças aos dois tios solteiros, que
haviam feito carreiras brilhantes. É possível q u e o c a s a m e n t o tão precoce c o m sua
prima-irmã tenha sido c o n s e q ü ê n c i a d e u m desses 'acidentes* tão freqüentes, numa
época em que era c o m u m a c o a b i t a ç ã o de p r i m o s sob o m e s m o t e t o . Seja c o m o for, ao
casar Carlos s o m o u as endogamias familiar e de classe.

Essa endogamia de classe caracterizava os outros 3 7 'cariocas', e x ó g a m o s do ponto


de vista familiar. E n t r e eles, só u m utilizou sua aliança m a t r i m o n i a l para reforçar uma
posição conquistada p o r m é r i t o p r ó p r i o . F o i A n g e l o M o n i z da Silva Ferraz, Barão de
Uruguaiana, filho de u m p r o p r i e t á r i o rural d o sul do R e c ô n c a v o , d e t e n t o r de poucas
posses. E m primeiras núpcias, A n g e l o se c a s o u c o m M a r i a R o s a d e O l i v e i r a Junqueira,
que pertencia a u m a grande família d e senhores d e e n g e n h o e de altos magistrados do
Recôncavo. T e n d o enviuvado duas vezes, o B a r ã o de U r u g u a i a n a , deputado, senador,
presidente de província, m i n i s t r o e presidente do C o n s e l h o dos M i n i s t r o s , casou-se
sucessivamente c o m duas m o ç a s , originárias do R i o d e J a n e i r o .
A tabela 4 4 indica c l a r a m e n t e q u e a escolha m a t r i m o n i a l dos 'cariocas' recaía
sobre moças do seu nível social. M a s os pais recenseados n ã o exerciam u m a única

T A B E L A 44

ATIVIDADE D O S PAIS D E N O B R E S BAIANOS FIXADOS


N O Rio DE JANEIRO E D O S P A I S D E SUAS MULHERES*

ATIVIDADE PAI DOS MARÍDOS PAI DAS MULHERES

Senhor de engenho 8 7

Proprietário rural 3 2

Comerciante 4
-
Desembargador 2 4

Alto funcionário - 1

Militar 6 3

Médico 1
-
Advogado 2 3

Outras 2 1

Sem informação 8 15

Total 36 36

(*) Consideramos i p c n u a principal atividade de cada um. Não foram incluídos três nobres
que pcrmaxicteTifn solteiros.
LIVRO I I I - A FAMÍLIA BAIANA 181

atividade principal: magistrados e médicos podiam ser t a m b é m senhores de engenho


ou comerciantes. Além disso, n ã o se deve esquecer q u e as mães do marido e da mulher
também desempenhavam um papel essencial nessa avaliação social que tento fazer.
T r e z e 'cariocas' casaram c o m baianas, catorze c o m brasileiras não baianas, seis
c o m portuguesas, um c o m alemã e u m c o m francesa. E m um caso ignoro a origem da
esposa. P o r t a n t o , 2/3 casaram c o m mulheres n ã o baianas. E m geral, eles começaram
suas carreiras na magistratura o u eram funcionários que haviam iniciado suas ativida-
des fora da Província da B a h i a . As seis portuguesas casaram-se c o m baianos que
estudaram direito e m C o i m b r a e obtiveram em Portugal, antes da Independência do
Brasil, suas primeiras n o m e a ç õ e s . Aliás, 2 9 detentores de títulos de nobreza morreram
no R i o , sem retornar à B a h i a . Seus descendentes seguiram carreira na capital do
Império. O s baianos q u e , tornados nobres, permaneceram n a província natal repre-
sentam a maioria do grupo d e 1 1 3 : foram 7 4 pessoas, das quais dez permaneceram
solteiros. A tabela 4 5 t a m b é m é u m belo exemplo da endogamia de classe.

TABELA 45

A T I V I D A D E D O S PAIS D E N O B R E S BAIANOS F I X A D O S
N A B A H I A E D O S PAIS D E SUAS M U L H E R E S *

ATIVIDADE PAI DOS MARIDOS PAI DAS MULHERES

Senhor de engenho 37 38

Proprietário rural 11 10

Comerciante 1 5

Alto magistrado 2 1

Alto funcionário 5

Militar 2 2

Médico
- 1

Advogado 1
-
Outras — -

Sem informação 5 7

Total 64 64

(*) Consideramos apenas a princíp•aí atividade de cada um.Não foram incluídos dez nobres
que permaneceram solteiros.

A maioria, c o m efeito, era formada por filhos de proprietários de terras OU

pelos próprios — que se casaram c o m filhas de proprietários de terras. Sua estratégia


matrimonial tinha c o m o objetivo conservar e aumentar os bens que possuíam. A
legislação referente à herança favorecia por igual os filhos dos dois sexos. Produzia,
portanto, a partilha das propriedades, mas essa tendência era corrigida pela endogamia
de classe. C o m efeito, numa exploração de tipo agroindustrial, c o m o a da cana-de-
açúcar, é difícil repartir em partes iguais as terras de cultivo, as matas, os pastos, as
182 BAHIA, S É C U L O XIX

terras n ã o c u l t i v a d a s e a t é a m ã o - d e - o b r a escrava, s e m c o m p r o m e t e r o f u n c i o n a m e n t o
d a e m p r e s a ligada a o e n g e n h o . C o m p r a r as partes dos o u t r o s herdeiros era quase
i m p o s s í v e l , s o b r e t u d o p o r q u e , n o s é c u l o X I X , o e n g e n h o de a ç ú c a r era quase sempre
d e f i c i t á r i o , f a z e n d o c o m q u e os s e n h o r e s estivessem f r e q ü e n t e m e n t e e n d i v i d a d o s . 17

restavam d u a s s o l u ç õ e s : v e n d e r a p r o p r i e d a d e e repartir o d i n h e i r o , o u p e r m a n e c e r
n u m s i s t e m a q u e garantisse a p r o d u ç ã o u n i t á r i a . A p r i m e i r a s o l u ç ã o n ã o era atraente:
desfazer-se da terra s i g n i f i c a v a u m a i m e d i a t a p e r d a d e p r e s t í g i o e u m a inevitável
d e c a d ê n c i a s o c i a l ; a l é m d i s s o , h a v i a p o u c a s p o s s i b i l i d a d e s de i n v e s t i m e n t o interessan-
tes. A i n d i v i s ã o era a m e l h o r s o l u ç ã o . P a r a c o n s e r v a r p r e s t í g i o e f o r t u n a , era preciso,
a l é m disso, t e r várias p r o p r i e d a d e s . E n t e n d e - s e , a s s i m , q u e c i n c o dos d e t e n t o r e s de
t í t u l o s de n o b r e z a q u e figuram n a t a b e l a 4 5 t e n h a m c a s a d o c o m filhas de grandes
c o m e r c i a n t e s , q u e d o m i n a v a m a v i d a e c o n ô m i c a d a c i d a d e . E s s a d e t e r m i n a ç ã o de
c o n s e r v a r n a m e s m a classe s o c i a l o p a t r i m ô n i o t e r r i t o r i a l t o r n a - s e a i n d a mais evidente
q u a n d o se a n a l i s a m os v i n t e c a s a m e n t o s e n d ó g a r n o s , e n t r e os 6 4 r e c e n s e a d o s a q u i . U m
b o m t e r ç o d o s b a i a n o s e n o b r e c i d o s e s c o l h e u , c o m o esposas, p r i m a s - i r m ã s , primas
' c r u z a d a s ' e, e m q u a t r o c a s o s , s o b r i n h a s .
A análise das e s t r a t é g i a s m a t r i m o n i a i s de d u a s g r a n d e s f a m í l i a s d o R e c ô n c a v o , os
A r a ú j o G ó i s e o s C o s t a P i n t o , p e r m i t e c o m p r e e n d e r m e l h o r esse s i s t e m a enraizado nas
m e n t a l i d a d e s b a i a n a s . A f a m í l i a A r a ú j o G ó i s era u m a das m a i s antigas da p r o v í n c i a . O
f u n d a d o r p o r t u g u ê s , G a s p a r de A r a ú j o , o r i g i n á r i o d a vila de A r c o s de V a l - d e - V a z , no
M i n h o , e sua m u l h e r , d o n a C a t a r i n a d e G ó i s , o r i g i n á r i a d a vila de A l e n q u e r , p e r t o de
L i s b o a , c h e g a r a m e m 1 5 6 1 a S ã o J o r g e dos I l h é u s , sede d o d i s t r i t o da n o v a C a p i t a n i a
de P o r t o S e g u r o . E s s e casal p o r t u g u ê s teve seis filhos n a s c i d o s n o B r a s i l . 1 8
D e p o i s da
m o r t e de sua m u l h e r , G a s p a r se i n s t a l o u e m S a l v a d o r , s e n d o r e c e b i d o c o m o irmão
leigo n u m c o n v e n t o j e s u í t a , o n d e veio a m o r r e r .

Desses seis filhos, d o i s d e i x a r a m n u m e r o s a d e s c e n d ê n c i a : a filha mais velha, Antônia


de P á d u a de A r a ú j o G ó i s , casada c o m D o m i n g o s d a F o n s e c a Saraiva, português nas-
c i d o e m V i s e u ( B e i r a AJta) e e s t a b e l e c i d o e m C a i r u ( B a h i a ) , e seu i r m ã o S i m e ã o de
A r a ú j o G ó i s , q u e se c a s o u c o m a filha de u m a de suas irmãs e se t o r n o u s e n h o r de
engenho no Recôncavo.
A d e s c e n d ê n c i a de A n t ô n i a d e P á d u a foi i n t e r r o m p i d a n o fim do século X V I I ,
após quatro gerações e m l i n h a d i r e t a , ao passo q u e a de S i m e ã o c h e g o u a nossos dias.
N a primeira década d o século X I X , os d e s c e n d e n t e s de a m b o s ingressaram na vida
política e e c o n ô m i c a de Salvador e do R e c ô n c a v o . P o r isso, foram o b j e t o de estudos
genealógicos mais precisos, q u e i n c l u í r a m t a m b é m a genealogia dos ramos familiares
aliados. 19
I n t e r e s s a m - m e aqui q u a t r o dessas genealogias: a de A n t ô n i a de Pádua de
Araújo G ó i s ( 1 5 6 1 - 1 7 0 0 ? ) , a de S i m e ã o de A r a ú j o G ó i s ( 1 5 6 3 ? - l 8 6 7 ) , a de I n o c ê n c i o
M a r q u e s de A r a ú j o G ó i s , B a r ã o de A r a ú j o G ó i s ( 1 8 0 9 - 1 8 7 8 ) , e a de A n t ô n i o C a l m o n
de Araújo G ó i s , B a r ã o de C a m a ç a r i ( 1 8 2 8 - 1 9 1 2 ) . 2 0

Apesar d o cuidado e da exatidão típicos dos genealogistas, f r e q ü e n t e m e n t e faltam


dados sobre os anos de n a s c i m e n t o e as idades na época dos casamentos. Isso vale tanto
LIVRO I I I - A FAMÍLIA BAIANA 183

para os periodos recentes q u a n t o para os antigos. A l é m disso, muitas crianças natímortas


ou q u e m o r r e r a m e m tenra idade n e m foram assinaladas. E n f i m , por causa da e n o r m e
liberdade — q u e j á assinalei — e m utilizar p a t r o n í m i c o s diferentes n o seio da mesma
família, n e m t o d o s os c a s a m e n t o s e n d o g â m i c o s p u d e r a m ser registrados. E n t r e 1 5 6 1
e os p r i m e i r o s t r i n t a a n o s d o s é c u l o X X , o s d e s c e n d e n t e s c o n h e c i d o s de Gaspar de
A r a ú j o e de C a t a r i n a d e G ó i s , e m n o v e gerações, f o r m a v a m u m grupo de 3 7 5 pessoas;
entre elas, 2 1 7 se c a s a r a m , m a s , s e g u n d o essas genealogias, s o m e n t e 9 3 deixaram
d e s c e n d e n t e s . O u seja: 1 2 4 desses 2 1 7 c a s a m e n t o s n ã o t e r i a m gerado h e r d e i r o s . 21

P o r o u t r o l a d o , 6 0 h o m e n s e 4 3 m u l h e r e s , integrantes desse universo de 3 7 5


d e s c e n d e n t e s , m o r r e r a m a d u l t o s , m a s n a c o n d i ç ã o de celibatários. T o m a n d o c o m o
e x e m p l o a l i n h a g e m de S i m e ã o de A r a ú j o G ó i s , q u e é a mais longa e mais b e m
d o c u m e n t a d a , é possível c o n s t a t a r q u e a p r á t i c a d o c e l i b a t o variou segundo o sexo e
o p e r í o d o . E n t r e 1 5 6 1 e 1 8 0 0 , o c e l i b a t o dos h o m e n s ( 5 2 , 8 % d o total) foi mais
freqüente q u e o das m u l h e r e s ( 2 4 , 1 % ) , a o passo q u e e n t r e 1 8 0 1 e 1 9 2 0 a situação se
inverteu: 2 9 , 7 % dos h o m e n s e 4 4 , 8 % das m u l h e r e s p e r m a n e c e r a m nessa situação. H á
uma e x p l i c a ç ã o plausível. P o d e r i a ser m a i s fácil casar as m o ç a s n o p e r í o d o em que era
m a i o r a i m i g r a ç ã o d e j o v e n s p o r t u g u e s e s q u e c h e g a v a m ao N o v o M u n d o em busca de
f o r t u n a , c o n s e g u i a m e n r i q u e c e r n o c o m é r c i o e, e m seguida, t e n t a v a m receber a c o n -
sagração social c a s a n d o c o m u m a b a i a n a , filha de s e n h o r de e n g e n h o .

P o r o u t r o l a d o , c o m o j á foi m e n c i o n a d o , 4 4 dos 2 1 7 c a s a m e n t o s celebrados


p e r m a n e c e r a m estéreis. S e a c r e s c e n t a r m o s essas 4 4 pessoas às 2 3 q u e ficaram celiba-
tárias, o p e r c e n t u a l d e pessoas adultas s e m d e s c e n d ê n c i a passa para 4 5 , 0 % ( 4 8 das
3 7 5 pessoas recenseadas e r a m c r i a n ç a s q u e m o r r e r a m e m tenra i d a d e ) . O r a , 8 8 , 5 %
dos 1 9 3 c a s a m e n t o s dessa f a m í l i a f o r a m e x ó g a m o s , repartidos de maneira bastante
igual ao l o n g o dos três s é c u l o s e m e i o . N ã o h á dúvida de q u e os casamentos entre
primos l o n g í n q u o s e r a m f r e q ü e n t e s (ainda h o j e , os d e s c e n d e n t e s dessas famílias se
tratam de ' p r i m o ' e ' p r i m a ' ) , m a s esses p a r e n t e s c o s devem ser considerados laços
muito mais de classe q u e de s a n g u e . D e m o d o geral, o antepassado c o m u m se perde
na noite dos t e m p o s . As famílias d o R e c ô n c a v o se m i s t u r a r a m diversas vezes, mas na
maior parte d o t e m p o os laços s a n g ü í n e o s foram bastante c o n s t a n t e s . S ó há registros
de doze s e g u n d o s c a s a m e n t o s , o i t o dos quais c o n t r a í d o s p o r h o m e n s .
T a m b é m na família A r a ú j o G ó i s aparecia o m o d e l o e n d ó g a m o de toda a nobreza
baiana, a p r e s e n t a n d o inclusive u m a certa a n o m i a : todas as c o m b i n a ç õ e s eram possí-
veis, exceto o c a s a m e n t o entre irmãos e irmãs. N o decorrer d o século X I X , entre os
descendentes de I n o c ê n c i o M a r q u e s de A r a ú j o G ó i s ( 1 7 8 4 - 1 8 6 0 ) , que se casou em
1 8 0 3 c o m M a r i a J o a n a C a l m o n de Aragão, houve 5 2 casamentos e segundos casamen-
tos, dos quais só dez foram e n d ó g a m o s .
V o l t a r e m o s a esses tipos de uniões após analisar os casamentos endógamos dos
C o s t a P i n t o , outra dessas grandes famílias b a i a n a s . 22
A o contrário da família Araújo
G ó i s , fundada n o século X V I , o iniciador dos C o s t a P i n t o chegou a Salvador n o fim
d o século X V I I I . C o n s t i t u i u , pois, uma família brasileira recente, mas de ascensão
1S4 BAHIA, SÉCULO X I X

social m u i t o rápida: já n o m e i o do século X I X , seu prestígio era igual ao dos Araújo


G ó i s , c h e g a n d o a ultrapassá-lo n o fim d o s é c u l o . E m 1 8 8 0 , os C o s t a P i n t o fundaram a
usina de B o m J a r d i m , primeira usina central de açúcar da B a h i a e a segunda d o Brasil,
e foram pioneiros na i n t r o d u ç ã o de técnicas agrícolas m o d e r n a s . O s A r a ú j o G ó i s , por
sua vez, eram típicos representantes dos senhores de e n g e n h o c o m m e n t a l i d a d e arcaica.
O t r e m e n d o poder político e e c o n ô m i c o dos C o s t a P i n t o tornava desnecessário
buscar oriçens míticas para t e n t a r e n a l t e c e r a família. S u a genealogia era e x t r e m a m e n -
te simples: A n t ô n i o da C o s t a P i n t o , o f u n d a d o r , era o r i g i n á r i o da Província d'Entre-
D o u r o e M i n h o . C o m o m u i t o s c o m p a t r i o t a s , c h e g o u à B a h i a para fazer c o m é r c i o e,
depois, se estabeleceu n o R e c ô n c a v o c o m o p r o p r i e t á r i o rural. E m 1 7 9 9 , já possuía
várias propriedades e m S a n t o A m a r o , C a c h o e i r a e Á g u a F r i a . F o i o ú l t i m o administra-
dor da 'capela' instituída e m 1 7 2 6 p o r B e n t o S i m õ e s . S u a esposa, M a r i a n a J o a q u i n a
de Jesus, a ' l á G r a n d e ' , descendia dos L o p e s e dos Ferreira de M o u r a , duas famílias
importantes do R e c ô n c a v o . G r a ç a s a esse c a s a m e n t o , q u e gerou catorze filhos (sete dos
quais m o r t o s na p r i m e i r a i n f â n c i a ) , A n t ô n i o ingressou na fechada casta dos senhores
de e n g e n h o .
O s dados genealógicos de q u e d i s p o n h o c o b r e m três gerações dessa família. C i n c o
filhos de A n t ô n i o casaram-se e tiveram filhos, u m c a s o u - s e m a s n ã o teve filhos, e
Francisco, apelidado ' X i x i ' , p e r m a n e c e u c e l i b a t á r i o , t e n d o n o e n t a n t o vários filhos
naturais, entre os quais o c é l e b r e e n g e n h e i r o , geógrafo e h i s t o r i a d o r T h e o d o r o Sampaio,
que n u n c a foi o f i c i a l m e n t e r e c o n h e c i d o pelo pai. N e s s a p r i m e i r a geração, apenas
M a n u e l Lopes da C o s t a P i n t o , V i s c o n d e de A r a m a r é , foi tão prolífico q u a n t o seus
pais, tendo catorze filhos legítimos ( c o m u m a s o b r i n h a ) e o u t r o s tantos naturais! Só
quatro filhos sobreviveram até o c a s a m e n t o . D o i s , casados c o m p r i m o s - i r m ã o s , não
tiveram descendentes l e g í t i m o s : Elias ( 1 8 6 6 - 1 9 0 5 ) só teve filhos naturais; sua irmã
Júlia (dita J u l i n h a ) da C o s t a P i n t o ( 1 8 7 1 - 1 9 3 5 ) casou duas vezes ( c o m dois irmãos)
e morreu sem descendência, mas u m dos seus maridos t i n h a tido filhos naturais.
Assim, só dois filhos d o V i s c o n d e de A r a m a r é tiveram p r o l e legítima.

M e s m o deixando de lado q u a t r o c a s a m e n t o s q u e u n i r a m p r i m o s longínquos, 12


dos 2 6 casamentos dos descendentes diretos dos C o s t a P i n t o foram endógamos, se-
guindo o m e s m o m o d e l o presente na família A r a ú j o G ó i s : não havia regra, mas se
notava uma pequena preferência por uniões entre p r i m o s cruzados, em vez de primos
paralelos. Esse sistema encorajava o c a s a m e n t o de um h o m e m c o m a filha de sua
própria irmã, o que n ã o implicava de m o d o algum a existência de um modelo de
aliança assimétrica. Percebo, antes, um modelo nuclear desregrado, o da família anômica,
decorrente da coabitação entre pais c filhos. *
2
Ele p r e d o m i n o u numa estrutura social
muito flexível, sobretudo no que dizia respeito às famílias.
Esse tipo de solução não era expressamente procurado, mas era aceito. O s senho-
res de engenho, que cm suas terras possuíam apenas uma casa digna de ser habitada
por gente de sua classe, acabavam por formar grupos domésticos extensos, vivendo em
ambientes propícios a essas uniões endógamas. M a s , quando uma família era dona de
LIVRO III - A FAMÍLIA BAIANA 185

mais de um e n g e n h o , os recém-casados tinham para o n d e ir. E m n o m e da integridade


das propriedades, q u e m tivesse escolhido sua mulher n o seio da própria família era
encarregado de explorar as terras vizinhas à nova residência.
A trajetória da família C o s t a P i n t o se enquadra perfeitamente nesse modelo. E m
meio a casamentos endógamos, o tabu do incesto se atenuava logo na primeira gera-
ção, contada a partir do f u n d a d o r . C o m efeito, entre os seis filhos que sobreviveram
e se casaram, só u m se uniu a u m a m u l h e r não aparentada aos C o s t a Pinto! O s
outros c i n c o — três rapazes e duas moças — casaram c o m primos ou primas em
primeiro grau, o u então c o m sobrinhas. Tratava-se, naturalmente, de consolidar os
bens adquiridos por u m pai q u e , t e n d o casado c o m a filha de u m proprietário de
terras, deixara o c o m é r c i o e fora cuidar de bois e e s c r a v o s . 24
N o início do século X I X
esse tipo de troca j á n ã o era tão lucrativo c o m o fora n o fim do século X V I I I . 2 5
Mas
não importa: tratava-se de conservar as terras na própria família, se possível aumen-
tando a área territorial.

D o i s e x e m p l o s ilustram c l a r a m e n t e essa tática: M a r i a Luiza da C o s t a P i n t o casou-


se com seu p r i m o A n t ô n i o J o a q u i m de M o u r a em 1 8 2 6 ou 1 8 2 7 ; dois de seus oito
filhos m o r r e r a m em tenra idade, dois outros se casaram fora da família ( c o m filhas de
senhores de e n g e n h o dos arredores) e quatro se casaram c o m parentes (três com
primos-irmãos e a o u t r a c o m u m tio m a t e r n o ) . A i r m ã de M a r i a Luiza, Maria Rita
Ermelina, casou-se c o m seu p r i m o - i r m ã o , J o ã o Ferreira Lopes; sua filha única fez a
mesma coisa, casando-se mais tarde c o m o filho do i r m ã o de sua mãe.

As mesmas práticas p o d e r i a m ser descritas para a geração seguinte, dos bisnetos do


fundador. As t e n d ê n c i a s endógamas dos C o s t a P i n t o atingiram 4 6 , 2 % dos integrantes
da família, p r o p o r ç ã o m u i t o m a i o r q u e os 1 9 , 2 % registrados entre os Araújo G ó i s ,
muito mais antigos n o R e c ô n c a v o . D e z dos 5 2 casamentos o u segundos casamentos
celebrados na família A r a ú j o G ó i s n o século X I X foram endógamos (o n ú m e r o 5 2 só
representa 2 6 , 7 % do c o n j u n t o dos casamentos celebrados na família desde o século
X V I ) . O u t r a diferença i m p o r t a n t e : os filhos h o m e n s dos C o s t a P i n t o e quase todos os
seus genros trabalhavam na agricultura, e n q u a n t o os filhos dos Araújo Góis estudavam
direito ou medicina, seguindo carreira na magistratura, n o serviço público e na polí-
tica. Seria porque estes t i n h a m m e n o s propriedades rurais que aqueles? É possível.
Graças aos casamentos endógamos, o clã C o s t a P i n t o manteve o controle sobre onze
engenhos (Jacu, E u r o p a , B e n t o S i m õ e s , Regalo, Gameleira, Gravata, Bonsucesso,
Canabrava, O i t e i r o , M a t o Limpo e Aramaré), todos situados nas ricas terras de massapé
dos distritos de S a n t o A m a r o , Cachoeira e Água Fria. E m 1 8 8 0 , eles instalaram uma
moderna usina, logo famosa, para o refino do açúcar.
Esses dois modelos, tão contrastantes, se reproduziam em outras famílias do
Recôncavo baiano? Para descobri-lo, fiz um estudo mais geral, que abrangeu quatro
outras famílias baianas. Duas, muito importantes, estavam em pé de igualdade com os
Araújo Góis. Trata-se das famílias Bulcão e Sodré, cujos antepassados chegaram à
Bahia em meados do século X V I I .
186 BAHIA, SÉCULO X I X

Gaspar de Faria Bulcão se estabeleceu nas terras da paróquia de Nossa Senhora do


M o n t e do R e c ô n c a v o , fundada em 1 6 0 3 , fazendo parte do famoso distrito açucareiro
de São Francisco da Barra de Sergi do C o n d e . O genealogista dessa família — da qual,
aliás, ele m e s m o descendia — afirmou q u e Gaspar c o m p r o u nessa região uma grande
extensão de terras, e m q u e instalou a capela de S ã o J o s é e os engenhos Cravaçu,
Q u i c e n g u e , S ã o J o s é , N o v o , de B a i x o , G u a í b a , Cassarangongo, Pitinga, Queronte,
Acutinga e G u a b i n h a , este ú l t i m o situado na península de Iguapé, distrito de Cachoei-
ra. Ele e sua mulher, G u i o m a r , filha d o capitão Balthazar da C o s t a , grande proprietá-
rio de engenhos na mesma paróquia, deram início a u m a rica linhagem, q u e se desta-
c o u nos séculos X V I I I e X I X . 2 6
Esse Gaspar de Faria B u l c ã o teria trazido dos Açores
o capital que valorizou nas terras férteis da Bahia? O historiador n ã o esclarece. Mas é
verossímil, dada a rápida instalação de Gaspar c o m o proprietário de terras e fundador
de engenhos.
O s A r a ú j o G ó i s diziam ser de origem bretã, os B u l c ã o flamenga e os Sodré inglesa.
Estes consideravam-se descendentes de Fradique S o d r é , q u e fora para Portugal duran-
te o reinado de A f o n s o V ( 1 4 3 2 - 1 4 8 1 ) e se tornara o primeiro s e n h o r de Águas Belas
em R i b a m a r , distrito d o bispado de Lisboa. M e m b r o s da família se destacaram, servin-
do ao Estado português: J o s é Pereira Sodré foi governador da ilha de São T o m é , e
D u a r t e S o d r é P e r e i r a , c a p i t ã o - d e - m a r - e - g u e r r a e g o v e r n a d o r da C a p i t a n i a de
P e r n a m b u c o entre 1 7 2 7 e 1 7 3 7 . O r a m o baiano dessa família teve início c o m o mestre
de c a m p o J e r ô n i m o S o d r é Pereira ( 1 6 3 1 - 1 7 1 1 ) , q u e chegou à B a h i a por volta de 1 6 6 0
e se casou c o m Francisca de Aragão, filha de u m a das famílias mais poderosas do
Recôncavo. 27

Vários m e m b r o s da família c o n t i n u a r a m a servir ao Estado. U m dos netos de


J e r ó n i m o Sodré Pereira foi m e s t r e - d e - c a m p o auxiliar e integrou o C o n s e l h o Municipal
da cidade de Salvador. N o século X V I I I , alguns bisnetos — J e r ô n i m o Sodré Pereira
( 1 7 1 9 - 1 7 9 0 ) , J o ã o Sodré Pereira ( 1 7 4 5 - 1 7 9 0 ) , J o s é Álvaro Pereira Sodré ( 1 7 4 6 -
1 7 7 3 ) , J e r ô n i m o Sodré Pereira ( 1 7 5 4 - 1 8 0 8 ) , Francisco Sodré Pereira ( 1 7 5 8 - ? ) e de
Rodrigo Sodré Pereira ( 1 7 5 9 - 1 7 9 3 ) — exerceram as funções de mestre-de-campo
auxiliar, de sargento-mor da cavalaria e de coronel da Milícia.
As outras duas famílias escolhidas, B i t t e n c o u r t (ou Bethencourt) e Berenguer,
tinham raízes profundas no R e c ô n c a v o , o n d e eram proprietárias rurais, mas sua im-
portância social era menor. Essa não é, evidentemente, a opinião dos seus genealogistas,
que lhes atribuem papel tão prestigioso q u a n t o aquele dos Araújo Góis, dos Bulcão e
dos S o d r é . 28

Felix de Bittencourt c Sá, cavaleiro fidalgo da Casa Real, cavaleiro da Ordem de


Cristo c familiar do Santo O f í c i o , chegou h Bahia por volta de 1 6 8 5 , por razões
desconhecidas. Em 1 6 8 8 , casou com Catarina de Aragão Ayala, viúva de Jorge de
Britto, que morava na paróquia de São Pedro do Rio Fundo, no distrito açucareiro de
Santo Amaro. O s Bittencourt, que tiveram numerosos descendentes, instalaram-se em
outras áreas do próprio Recôncavo, c o m o São Gonçalo, São Sebastião do Passe,
LIVRO III - A FAMÍLIA BAIANA 187

S a n t ' A n n a d o C a t u e até m e s m o Salvador. C o n t u d o , não há m e n ç ã o de que algum


e n g e n h o de p o r t e t e n h a p e r t e n c i d o a essa família. Pode-se especular que eles fossem
proprietários agrícolas de m é d i o porte, pois n e n h u m m e m b r o da família recebeu título
de nobreza n o século X I X . A l é m disso, os B i t t e n c o u r t não desempenharam papel
político i m p o r t a n t e nas assembléias Provincial e N a c i o n a l . 2 9

A família B e r e n g u e r apresentava o m e s m o perfil. Português de F u n c h a l , c o m


ascendência e s p a n h o l a , D i o g o A n t ô n i o de B i t t e n c o u r t B e r e n g u e r Cesar chegou à
Bahia na segunda m e t a d e d o século X V I I I , t a m b é m s e m que se saiba a razão de sua
vinda. E m 1 7 6 0 , casou-se n a p a r p q u i a de N o s s a S e n h o r a d o M o n t e do R e c ô n c a v o
c o m A n a M a r i a B o r g e s de B a r r o s , filha de Alexandre V a z da C o s t a e de J o s e f a Maria
do S o c o r r o B a r r o s . O s dois m o r r e r a m em Salvador, J o s e f a em 1 7 9 1 e D i o g o em 1 8 0 5 .
Seus descendentes residiram n o R e c ô n c a v o e possuíram terras nas paróquias de Nossa
S e n h o r a da P u r i f i c a ç ã o , S ã o P e d r o d o R i o F u n d o , S ã o G o n ç a l o e B o m J a r d i m , todas
situadas n o distrito de S a n t o A m a r o , e s t e n d e n d o suas glebas para mais longe, até
Alagoinhas (Agreste da B a h i a ) , S ã o M a t e u s ( C a p i t a n i a do Espírito S a n t o ) e Aracaju,
capital da C a p i t a n i a de S e r g i p e . N e n h u m t í t u l o de n o b r e z a foi atribuído à família, que
só teve u m r e p r e s e n t a n t e n a A s s e m b l é i a P r o v i n c i a l , A n t o n i o B i t t e n c o u r t Berenguer
Cesar, eleito d e p u t a d o e m 1 8 3 5 e 1 8 3 9 . 3 0
P e l o j o g o das alianças m a t r i m o n i a i s , essas
duas famílias a c a b a r a m se t o r n a n d o parentes das grandes famílias dos senhores de
e n g e n h o , c o m o B o r g e s de B a r r o s , A r g o l o M e n e z e s , Lopes V i l l a s - B o a s , Pires de Carva-
lho e A l b u q u e r q u e , A r a g ã o , M o r e i r a P i n h o e t c .

Q u a i s e r a m as práticas m a t r i m o n i a i s dessas q u a t r o famílias? A p r o x i m a v a m - s e do


modelo dos C o s t a P i n t o o u d o dos A r a ú j o G ó i s ? A e n d o g a m i a de classe era tão
p r o n u n c i a d a aqui q u a n t o nas outras famílias i m p o r t a n t e s da B a h i a : as pessoas se
casavam d e n t r o d a m e s m a categoria social. M a s , e a e n d o g a m i a familiar? O caso da
família C o s t a P i n t o parece ser u m a e x c e ç ã o à regra. N o que tange a c i n c o dessas seis
famílias, o p e r c e n t u a l de e n d o g a m i a familiar era relativamente baixo ( 9 % , em mé-
dia). 31
N o t a - s e t a m b é m q u e , para três dessas seis famílias, a e n d o g a m i a familiar esteve
ausente nas primeiras gerações. O s c a s a m e n t o s e n t r e p r i m o s - i r m ã o s e entre sobrinhas
e tios se multiplicaram s o b r e t u d o n o século X I X .
As famílias B u l c ã o , S o d r é e B i t t e n c o u r t , que apresentavam o mais fraco percentual
de e n d o g a m i a , c h e g a r a m à B a h i a mais o u m e n o s ao m e s m o t e m p o , isto é, na segunda
metade do século X V I I . D u a s delas, B u l c ã o e B i t t e n c o u r t , se instalaram em terras
ainda pouco exploradas n o século X V I I , situadas na paróquia de Nossa Senhora do
M o n t e d o R e c ô n c a v o , de o n d e foi d e s m e m b r a d a , n o século X V I I I , a paróquia de São
Pedro do R i o F u n d o . A instalação dessas famílias na Bahia aconteceu num período de
depressão da e c o n o m i a açucareira. Isso não se deu n o caso das famílias Berenguer e
C o s t a P i n t o , que chegaram em um período de nova expansão da cultura de cana-de-
açúcar. Além disso, as famílias q ü c se instalaram na Bahia na segunda metade do
século X V I I e n c o n t r a r a m terras disponíveis no R e c ô n c a v o . As que chegaram no fim
do século X V I I I se estabeleceram n u m R e c ô n c a v o dotado de grande densidade
BAHIA, SÉCULO X I X

p o p u l a c i o n a l , c m q u e cada m e t r o q u a d r a d o de t e r r e n o t i n h a q u e ser d i s p u t a d o . Nessas


c i r c u n s t â n c i a s , a e n d o g a m i a era o ú n i c o m e i o de conservar os bens de u m a família.
A e x o g a m i a — não de classe, mas familiar — representaria u m a estratégia matrimo-
nial q u e , m a i s q u e a c o n s e r v a ç ã o de b e n s , p o s s i b i l i t a r i a a a q u i s i ç ã o de bens e
c o r r e s p o n d e r i a a u m a etapa d c c o n q u i s t a , n u m m o m e n t o e m q u e os laços familiais
ainda não estavam s o l i d a m e n t e e s t a b e l e c i d o s .
A e n d o g a m i a se m a n i f e s t o u na família A r a ú j o G ó i s — u m a das mais antigas da
Bahia — logo nas primeiras g e r a ç õ e s , m a s n o i n í c i o essa t e n d ê n c i a foi relativamente
fraca, c o m p a r a d a ao q u e o c o r r e u nas três gerações q u e atravessaram o século X I X . N o
i n í c i o da c o l o n i z a ç ã o da B a h i a , q u a n d o a i n d a era p e q u e n a a p o p u l a ç ã o de origem
européia, a e n d o g a m i a era q u a s e i n d i s p e n s á v e l . A p e s a r disso, n o s é c u l o X I X a incidên-
cia dessa prática foi mais a c e n t u a d a e m todas as famílias, pois nesse período a quan-
tidade de terras disponíveis d i m i n u i u e a c o n d i ç ã o de p r o p r i e t á r i o agrícola passou a
c o n f e r i r títulos de n o b r e z a a o s q u e aspiravam p o r eles. A d e m a i s , a atividade açucareira
era e c o n o m i c a m e n t e prestigiada, apesar da g r a n d e depressão p o r q u e passou esse setor,
s o b r e t u d o na s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o .
O e s t u d o g e n e a l ó g i c o dessas seis f a m í l i a s d o R e c ô n c a v o t a m b é m t o r n a possível
avaliar, m e s m o de f o r m a a p r o x i m a t i v a , o p e r c e n t u a l de c e l i b a t o e de mortalidade
i n f a n t i l . I m p r e s s i o n a , nesse c a s o , o a l t o p e r c e n t u a l de c e l i b a t á r i o s em todas as famílias
estudadas, inclusive a C o s t a P i n t o , o q u e e v i d e n c i a a prática da e n d o g a m i a . N a gera-
ção dos n e t o s se e n c o n t r a v a o m a i o r p e r c e n t u a l de c e l i b a t o , e x c e t o nas famílias Sodré
e C o s t a P i n t o . E x c e p c i o n a l m e n t e , esse p e r c e n t u a l p o d i a a t i n g i r até 9 0 % da população
adulta. M a s , c o m o o n ú m e r o de g e r a ç õ e s p o r f a m í l i a s e m p r e foi m u i t o variável,
t e n t e m o s c o m p a r a r apenas as três ú l t i m a s gerações q u e , de m o d o geral, corresponderam
ao século X I X .
F o r a m celibatários 4 2 , 0 % dos m e m b r o s d a f a m í l i a A r a ú j o G ó i s , 3 0 , 2 % da Bulcão,
3 3 , 3 % da S o d r é , 4 3 , 6 % d a B i t t e n c o u r t , 4 1 , 8 % d a B e r e n g u e r e 2 5 , 7 % da C o s t a Pinto.
A média ficou e m t o r n o d e 3 6 , 0 % , o q u e , aliás, c o i n c i d e c o m os percentuais de
celibato e n c o n t r a d o s para a p o p u l a ç ã o de S a l v a d o r . T a n t o nas zonas rurais q u a n t o na
cidade, um p o u c o mais dc 1/3 dos a d u l t o s p e r m a n e c i a m solteiros.
C o m e x c e ç ã o dos A r a ú j o G ó i s e dos B u l c ã o , esse percentual era ainda mais acen-
tuado nas famílias m e n o s e n d o g â m i c a s . T e n t a r e i explicar mais adiante essa discordância,
associando outros d a d o s . A n t e s d c mais nada, c o m p a r e m o s o percentual dc endogamia
e o de celibato nas seis famílias estudadas.

T A N EI. A 4 R»
ENDOGAMIA E CELIBATO NAS SEIS FAMÍLIAS ESTUDADAS (%)
AHAÜJO GOIS Bvucko SODRÉ BITTENCOURT BERENGUER COSTA PINTO

F.ndogamia 15,4 5.8 12,5 12,0 9,8 46,2

CdibttO 42,0 30,2 33,3 43,6 41,8 25.7


LIVRO I I I - A FAMÍLIA BAIANA
189

A endogamia familiar impedia que o percentual de celibato fosse mais elevado?


O celibato era praticado por um ou pelos dois sexos? V e j a m o s .

TABELA 47

C A S A M E N T O E C E L I B A T O E N T R E H O M E N S E M U L H E R E S DAS S E I S F A M Í L I A S E S T U D A D A S

ARAÚJO GÓIS BULCÃO S OD RE BITTENCOURT BERENGUER COSTA PINTO


CAS. CEL. CAS. CEL. CAS. CEL. CAS. CEL. CAS. CEL. CAS. CEL.
Homens 29 12 68 28 19 11 11 12 41 35 16 8
Mulheres 20 22 64 29 25 11 16 9 44 26 13 2

Total 49 34 132 57 44 22 27 21 85 61 29 10

À primeira vista, os resultados p e r m i t e m afirmar que os dois sexos praticavam o


celibato. M a s u m a análise mais profunda, família por família, esclarece diferenças
relativamente i m p o r t a n t e s . E n t r e os A r a ú j o G ó i s , por exemplo, 5 2 , 4 % das mulheres
e só 2 9 , 4 % dos h o m e n s p e r m a n e c e r a m solteiros; entre os C o s t a Pinto o celibato
masculino era maior, c o m 3 3 , 3 % , c o n t r a 1 3 , 3 % das mulheres. Essas duas famílias
apresentavam o m a i o r percentual de e n d o g a m i a familiar. C o m o explicar comporta-
mentos tão diferentes?
E m primeiro lugar, e m b o r a fixados n o R e c ô n c a v o , tudo indica q u e no século X I X
os Araújo G ó i s não viviam apenas d e atividades agrícolas. D e s d e a primeira metade do
século, cerca de 3 8 % dos h o m e n s dessa família haviam efetuado estudos superiores,
iniciando carreiras c o m o advogados, médicos, militares o u altos funcionários. Entre os
Costa P i n t o , e m b o r a 9 dos 2 5 filhos t e n h a m feito estudos superiores, nenhum deles
exerceu u m a profissão liberal, n e m seguiu carreira na magistratura. A principal ativi-
dade c o n t i n u o u sendo a exploração agrícola. Aliás, dos nove filhos q u e fizeram estudos
superiores, três se t o r n a r a m engenheiros, especializados e m agronomia, topografia ou
mecânica, profissões q u e podiam interessar ao b o m f u n c i o n a m e n t o da usina de açúcar
instalada e m suas terras e m 1 8 8 0 . C o m o a atividade agrícola ficara em segundo plano
entre os Araújo G ó i s , o d o t e de suas filhas tornou-se mais difícil. Esta pode ter sido a
causa do n ú m e r o considerável de mulheres dessa família que permaneceram celibatá-
rias (é interessante n o t a r q u e o genealogista da família — o mesmo da família Bulcão
— não citou n e n h u m n o m e de e n g e n h o que tenha pertencido aos Araújo Góis; o cia
dos Costa P i n t o , marcado por casamentos endógamos, tinha, c o m o vimos, onze enge-
nhos, todos situados e m ricas terras de massapé nos distritos de Santo Amaro, Ca-
choeira e Água F r i a ) .
Essa hipótese é corroborada pela análise das razões que levaram o imperador a
conceder títulos d e nobreza a alguns membros dessas famílias. S o m e n t e dois Araújo
Góis receberam esses títulos: I n o c ê n c i o Marques, Barão de Araújo Góis, magistrado
e político, e seu i r m ã o mais m o ç o , A n t ô n i o C a l m o n , que preferiu permanecer em
suas terras para fazè-las frutificar e se tornou Barão de Camaçari. A família Costa
190 BAHIA, S É C U L O XIX

P i n t o recebeu três títulos de nobreza, todos c o m o r e c o m p e n s a à sua i m p o r t a n t e ati-


vidade agroindustrial. A n t ô n i o da C o s t a P i n t o se t o r n o u V i s c o n d e (c depois C o n -
de) de S e r g i m i r i m , seu filho A n t ô n i o (dito T o t ô n i o ) da C o s t a P i n t o recebeu o títu-
lo de V i s c o n d e de Oliveira e seu i r m ã o , M a n o e l da C o s t a P i n t o , foi feito Visconde
de Aramaré, n o m e do e n g e n h o q u e possuía. A l é m disso, C í c e r o D a n t a s Martins,
um dos genros dos C o s t a P i n t o , associado a seu sogro e a seu c u n h a d o na instala-
ção da usina central de B o m J a r d i m , recebeu o título de B a r ã o de J e r e m o a b o , nome
de u m a localidade d o Agreste b a i a n o , c m q u e os D a n t a s possuíam m u i t a terra.
As famílias c u j o s filhos faziam estudos superiores — c o m o A r a ú j o G ó i s , Bulcão e
Sodré — d e s e m p e n h a v a m o principal papel n o p l a n o p o l í t i c o , c o m representantes nas
assembléias Provincial e N a c i o n a l , n o E x e c u t i v o e na magistratura. Assim, ao lado do
forte percentual de c e l i b a t o , havia i g u a l m e n t e u m forte percentual de jovens que
a b a n d o n a v a m as atividades agrícolas pelas d o setor terciário.
Q u a n t o à mortalidade i n f a n t i l , a irregularidade dos registros familiais dificulta a
interpretação. E x c e t o para as famílias A r a ú j o G ó i s e C o s t a P i n t o , os percentuais muito
baixos de mortalidade infantil registrados alhures levam a crer que houve sub-regis-
tros. D u r a n t e t o d o o século X I X , a m o r t a l i d a d e infantil beirava 3 0 % a 3 5 % , o que
coincide c o m os resultados o b t i d o s e m m i n h a s análises precedentes. O u t r o s 3 5 %
m o r r i a m celibatários. O grande n ú m e r o destes leva a pensar q u e os casamentos
endógamos talvez fossem u n i õ e s forçadas. T e r i a r e a l m e n t e sido o caso?

A autoridade paterna reduzia as mulheres ao estado de eternas menores, condena-


das a passar da submissão ao pai à submissão ao m a r i d o , sem conseguir uma autono-
mia real. Excluídas da vida social, dos b a n q u e t e s e das conversas oficiais, as mulheres
ou donzelas de boa família raramente saíam de casa, e n u n c a o faziam sozinhas.
Acompanhadas, iam à Igreja e ao baile. C o m o as donzelas tinham muito poucas
ocasiões de encontrar pessoas, a escolha do m a r i d o acabava por se restringir ao círculo
familiar, pois seu c o n t a t o c o m o m u n d o se resumia a primos e tios. Nesse contexto,
estabeleciam-se fortes laços afetivos intrafamiliares, fazendo com que, muitas vezes, os
desejos dos filhos coincidissem c o m os dos pais.
Para as moças, a situação de celibatária era penosa. Ficavam, nesses casos, ao
encargo de um irmão ou irmã, educando os filhos dos outros, numa sociedade que
prestigiava fortemente a maternidade, a criação dos próprios filhos e a boa administra-
ção de um lar. O s homens eram, quase sempre, e c o n o m i c a m e n t e independentes. Um
homem celibatário podia ter o prazer de ser pai, procriando fora de qualquer laço
familiar. Por exemplo, entre oito celibatários da família Costa Pinto, dois deixaram
filhos naturais, e seis dos dezesseis homens casados deixaram uma descendência ilegí-
tima; entre estes, três casaram com primas-irmãs e não tiveram filhos.32

Nessa época, aliás, a maior parte dos filhos era dócil, e o apoio familiar era
necessário durante toda a vida. Privar-se dele equivalia, no caso dos homens, a privar-
se de todas as relações sociais necessárias a uma carreira; no das mulheres, a abdicar de
uma vida honrosa. Para elas, o celibato só podia ser encarado c o m o um sacrifício de
moça sem dote. Manter boas relações com a família era fundamental para preservar
sua p a n e da herança familiar,
A endogamia familiar desses enobrecidos baianos se ligava, portanto, a imperati-
vos econômicos. U m a verdadeira endogamia de classe estreitava os laços que já exis-
tiam naturalmente entre os m e m b r o s das camadas dominantes da sociedade. Graças a
CVSJ V o o á o sem falhas*, os proprietários de terras conservavam seus privilégios, fazen-
do com que se impusesse .\ admiração dos baianos a imagem dos barões do açúcar*
todo-poderosos — unia imagem que tinha várias facetas pois, já o disse antes, nos
séculos X V I I I e X I X um c o m e r c i a n t e b e m - s u c e d i d o podia tornar-se senhor de enge-
nho, c o m p r a n d o terras ou se aliando, pelo c a s a m e n t o , às grandes famílias da região.
Assim, sangue novo e dinheiro renovavam c o n s t a n t e m e n t e uma classe social cujas
atividades estavam sujeitas a flutuações e c o n ô m i c a s imprevisíveis. N o decorrer do
século X I X esse m e c a n i s m o perdeu eficácia, n o que diz respeito à renovação dos
senhores de e n g e n h o , que passaram a fortalecer os laços de solidariedade no próprio
interior do grupo.
Existiram três razões para essa situação. A primeira: desde a Independência, mui-
tos portugueses retornaram ao seu país, para tugir da hostilidade dos brasileiros, que
os consideravam açambarcadores c aproveitadores. Foi inevitável admitir que a vida
econômica de Salvador e do R e c ô n c a v o sofreu muito com a evasão de capitais, relacio-
nada a esse processo. O governo imperial expulsou numerosos comerciantes portugue-
ses mas, cm seguida, os senhores de e n g e n h o consentiram em que eles retornassem,
para lutar contra o m o n o p ó l i o inglês e para proteger sua fonte de abastecimento de
escravos africanos, c u j o tráfico estava ameaçado pela ação da Inglaterra. O retorno dos
portugueses ao Brasil — agora c o m o estrangeiros — recomeçou por volta dos anos
1 8 3 5 - 1 8 4 0 , mas a maior parte deles não escondia o desejo de enriquecer e regressar
à pátria quando chegasse a velhice. Por isso, freqüentemente esses novos imigrantes
permaneciam celibatários. Por outro lado, os ingleses tiraram o maior proveito da
abertura dos portos aos comeciantes estrangeiros, decretada em 1 8 0 8 . Importação,
exportação c navegação passaram a partir daí, pouco a pouco, das mãos dos portugue-
ses à dos estrangeiros, sem contar com os brasileiros, igualmente tentados pelo comér-
cio de varejo. Em 1 8 5 4 , 8 3 , 6 % dos comerciantes eram portugueses. Em 1 8 7 3 , cies
não passavam de I 1 , 1 % . 3 3

A esse primeiro problema acrescentou-se um segundo, em 1 8 5 0 , com a abolição


definitiva do tráfico. Portugueses e brasileiros tinham sido muito atuantes nesse ramo,
trocado por atividades comerciais mais modestas, c o m o a distribuição de mercadorias
importadas por firmas estrangeiras.* Tornaram-se intermediários de um comércio
4

controlado por estrangeiros e passaram a emprestar dinheiro aos pequenos varejistas


da capital ou do interior, tornando-se indispensáveis a seus clientes. O comércio
intcrprovincial de alimentos permitiu que mantivessem laços estreitos com os senhores
de engenho, levando ao mercado a produção destes c abastecendo-os com toda espécie
de produtos. Continuaram, enfim, a desenvolver atividades típicas de um capitalismo
192 BAHIA, S É C U L O XIX

c o m e r c i a l arcaico e especulativo, mas s e m o b r i l h o de o u t r o r a . Alguns se achavam à


frente de empresas q u e t e n t a v a m m o d e r n i z a r - s e , c o m o certas indústrias têxteis ou
b a n c o s . M a s t a m b é m aí a e s p e c u l a ç ã o era mais forte: os fundadores da fábrica de
t e c i d o s se desinteressaram p o r ela e os b a n q u e i r o s retiraram os capitais de seus bancos
p o r a c h a r e m suficientes os l u c r o s , sem q u e houvesse p r e o c u p a ç ã o c o m o provável
d e s m o r o n a m e n t o d o t r a b a l h o e x e c u t a d o nos anos a n t e r i o r e s . 35

U m a terceira e x p l i c a ç ã o p o d e ser e n c o n t r a d a na p e r m a n e n t e crise açucareira, que


n ã o incitava mais à c o m p r a de e n g e n h o s . T o r n o u - s e m u i t o mais interessante investir
na c o m p r a de bens i m o b i l i á r i o s u r b a n o s o u de apólices da dívida pública, que tinham
m a i o r liquidez. O s raros portugueses q u e se c a s a r a m n o Brasil escolheram filhas de
c o m e r c i a n t e s o u de p a t r õ e s q u e p o d i a m a j u d á - l o s e m suas c a r r e i r a s . 36
D e qualquer
m a n e i r a , t o r n a d o s estrangeiros n o Brasil, os p o r t u g u e s e s passaram a ter que se natura-
lizar para p o d e r receber t í t u l o s de n o b r e z a . N a m a i o r parte dos casos eles se contenta-
r a m , desde e n t ã o , e m r e c e b e r c o n d e c o r a ç õ e s lisonjeiras.

A B a h i a c o n t i n u o u a assistir à a l i a n ç a dos grandes n e g o c i a n t e s e dos senhores de


e n g e n h o . M a s o c o n t i g e n t e p o r t u g u ê s n ã o se renovava mais e n t r e a população local, e
eram grandes os sacrifícios i m p o s t o s pela necessidade de conservar o prestígio social
q u e advinha d a p o p r i e d a d e de terras a ç u c a r e i r a s . A p a r t i r dos ú l t i m o s trinta anos do
século X I X , os filhos e filhas dessa velha a r i s t o c r a c i a rural c o m e ç a r a m a se casar com
filhos de profissionais liberais, f u n c i o n á r i o s o u m a g i s t r a d o s n ã o são necessariamente
aparentados c o m as grandes famílias d o R e c ô n c a v o . A sociedade m u d o u em proveito
desses r e c é m - c h e g a d o s . A B a h i a assistiu b a i a n o s o r i u n d o s d o i n t e r i o r , ou até mesmo
de outras províncias, a s s u m i r e m o c o n t r o l e da b o a sociedade de Salvador, outrora
c o m a n d a d a pelos o r g u l h o s o s s e n h o r e s de e n g e n h o d o R e c ô n c a v o .

ESTRATÉGIAS MATRIMONIAIS DOS BAIANOS ALFORRIADOS

N o o u t r o e x t r e m o da escala social, os alforriados f o r m a v a m u m grupo cada vez mais


n u m e r o s o , pois o n ú m e r o de alforrias a u m e n t o u consideravelmente n o decorrer do
século X I X . J á descrevi as fortes tendências à e n d o g a m i a étnica desse grupo, estratégia
matrimonial evidente, tanto para as u n i õ e s livres q u a n t o para os casamentos legais.
M a s , além da evidente preocupação em preservar a originalidade do grupo, que causas
incitavam antigos escravos, habituados ao celibato, a se unir q u a n d o reencontravam a
liberdade? O desejo de constituir família é uma explicação insuficiente, pois já de-
monstrei que os casais alforriados tinham poucos filhos. Deve haver outras razoes
talvez u m desejo de ajuda m ú t u a e de solidariedade num ambiente manifestamente
hostil a esses estrangeiros. Algumas estórias individuais, curtas mas sugestivas, ajudam
a aprofundar melhor esse universo.
O antropólogo Luiz M o t t encontrou recentemente na Bahia um documento muito
revelador, que atesta a influência do grupo étnico na escolha de um parceiro. Trata
Lr\-Ro III - A FAMUIA BAIANA 193

se de uma queixa feita ao arcebispo-primaz por um negro alforriado, nascido n o Brasil,


que tinha c o n c l u í d o as negociações necessárias para casar-se c o m a filha de uma
africana nagô. Esra última o acusava de ainda ser escravo e, além disso, casado; o
queixoso afirmava que essas alegações eram falsas. Ele explicava que vivia na casa da
fatura sogra e já m a n t i n h a relações sexuais c o m sua prometida mulher, que desejava
casar-se c o m ele; mas, por influência da c o m u n i d a d e , a 'sogra' desejava que a 'donzela'
se casasse c o m u m nagò.
Neste caso, é evidente a interferência da família étnica, que pretendia impor sua
própria estratégia m a t r i m o n i a l até a jovens negros brasileiros. Q u a n d o se tratava de
africanos adultos, esse t i p o de p r o b l e m a não era c o l o c a d o da mesma maneira. M a s é
fácil perceber qual era a escolha livremente c o n s e n t i d a na maior parte desses grupos.
O perfil do parceiro p r o c u r a d o em cada caso pode ser elucidado por algumas estórias
de negros que fizeram t e s t a m e n t o s na Salvador d o século X I X .
M a r i a de A r a ú j o R i b e i r o , p o r e x e m p l o , ' m u l h e r negra', originária da C o s t a da
Mina, c h e g o u ao Brasil c r i a n ç a , s e n d o vendida c o m o escrava. P o r volta dos cinqüenta
anos, conseguiu libertar-se e se c a s o u c o m Silvestre de A r a ú j o R i b e i r o , africano tam-
bém alforriado. E m t e s t a m e n t o redigido após sua viuvez, ela declarou ter tido dois
filhos q u a n d o ainda era celibatária. A m b o s haviam falecido, mas um deles deixara uma
filha. A n a F l o r ê n c i a de A n d r a d e , casada c o m Luiz G o n z a g a de Barros, sargento-mor
das 'entradas e a s s a l t o s ' . 38
Esse j o v e m casal foi designado c o m o legatário universal de
Maria. Nesse t e s t a m e n t o , A n a F l o r ê n c i a foi c h a m a d a de ' d o n a ' , tratamento habitual-
mente reservado àquelas c u j o m a r i d o ou pai o c u p a v a m u m a posição social reconheci-
da. O m a r i d o de A n a F l o r ê n c i a fora c o m a n d a n t e de um g r u p a m e n t o paramilitar cuja
função principal era capturar escravos fugitivos. Esses chefes de patrulha eram geral-
m e n t e recrutados entre os m u l a t o s .
Ana M a r i a da Silva Rosa, africana d o " p o v o da G u i n é " , declarou em testamento
ter se separado do m a r i d o , M a t h i a s de Souza, q u e nada tinha trazido à comunidade
conjugal na ocasião do c a s a m e n t o e que tinha desperdiçado os bens da mulher com
concubinas.
Rafael C o r d e i r o , africano da C o s t a da M i n a , se casou c o m Josefa do Rego, africa-
na jcje, mas não tiveram filhos. E m seu t e s t a m e n t o , Rafael declarou que todos os bens
do casal haviam sido adquiridos por sua mulher antes do c a s a m e n t o . 40
N o ano seguin-
te, quando morreu seu marido, Ana Josefa ditou um testamento, concedendo liberda-
de a seus quatro escravos c escolhendo c o m o herdeira sua antiga escrava Felicidade,
agora alforriada, jeje c o m o e l a . 41

Joaquim M o n t e i r o de Santa Ana, negro nascido no Brasil, cego, casado com


Brigida de Santa Rita Soares, negra também brasileira, declarou viver da esmola dos
fiéis c dos bens de sua mulher ("ele nada tem que lhe p e r t e n ç a " ) . 42
Nove anos mais
tarde, Brigida redigiu seu próprio testamento, no qual declarou ser proprietária de
duas casas, situadas em ruas importantes da cidade, a da Ajuda, na paróquia da Sé, e
a do T a n g u i , na paróquia de Sant'Anna. Além disso, deixou numerosas jóias de ouro
BAHIA, SÉCULO X I X
194

e prata. Seu legatário universal foi V i c e n t e Ferreira, filho de sua escrava Maria, que
Brigida tinha educado e libertado g r a t u i t a m e n t e . 43

M a r i a n a J o a q u i n a da Silva Pereira, africana da C o s t a da M i n a , casou-se c o m José


A n t ô n i o de Etra, africano da m e s m a região. E m 1 8 1 0 , ela o instituiu legatário univer-
sal de seus bens, que haviam sido "adquiridos por ele e a ela doados por causa do amor,
da fidelidade e do zelo que ele sempre m e dispensou e d o b o m casal q u e formávamos",
diz e l a . 44
T e n d o enviuvado, o m a r i d o fez redigir seu t e s t a m e n t o e m 1 8 2 6 , após ter
sido obrigado a vender uma grande parte de seus b e n s durante as guerras da Indepen-
dência, para poder nutrir os 2 2 escravos que possuía. L e g o u a eles a p o u c a fortuna que
lhe r e s t a v a . 45

Esses c i n c o exemplos p o d e r i a m ser m u l t i p l i c a d o s , mas a c h o que são bastante


reveladores das razões que levavam esses alforriados a se casar. O c a s a m e n t o era um
acordo de e n t e n d i m e n t o e ajuda m ú t u a , visando a m e l h o r a r a qualidade de vida dos
dois parceiros. A partir do m o m e n t o em que os d o i s c ô n j u g e s e n c o n t r a s s e m vantagens
e garantias na vida c o m u m , n ã o i m p o r t a v a q u e os bens estivessem repartidos de
maneira desigual: a m u l h e r buscava o a p o i o de u m a presença m a s c u l i n a , tão necessária
nessa sociedade em que o verbo ' p o d e r ' se c o n j u g a v a n o m a s c u l i n o ; o h o m e m , fre-
q ü e n t e m e n t e desprovido de bens, trocava, sem p r o b l e m a s , esse a p o i o p o r sustento.
O casamento dos africanos e n t r e si, n u m a m b i e n t e p r o f u n d a m e n t e hostil, estreitava os
laços de solidariedade e ajudava a sobrevivência d o g r u p o e dos indivíduos.

O s objetivos das alianças m a t r i m o n i a i s aparecem a q u i t ã o c o n c r e t o s , tão bem


adaptados à c o n d i ç ã o social desses alforriados, q u a n t o a p a r e c i a m n o caso das altas
camadas da sociedade baiana. C o i n c i d ê n c i a de o b j e t i v o s , c o i n c i d ê n c i a dos métodos
adotados para alcançar esses o b j e t i v o s . O q u e i m p o r t a v a era a c o n f i a n ç a e a ajuda
mútua, que tornariam possível a sobrevivência material e cultural do grupo. Dois
grupos tão opostos (de u m lado, aristocratas aparentados a senhores de engenho e, de
outro, ex-escravos) defendiam valores quase idênticos, c o m m e i o s bem adaptados:
para os alforriados, o essencial era, sem dúvida, a sobrevivência material, sem a qual
nada mais era possível. P r e c i s a m e n t e deste p o n t o de vista, as confissões que aparece-
ram no testamento de A n a M a r i a da Silva R o s a foram m u i t o claras: o marido não
ajudou a aumentar o u preservar os bens do casal. M a i s grave: ele colocou em perigo a
associação conjugal, dilapidando c o m c o n c u b i n a s os bens adquiridos c o m dificuldades
por sua mulher. U m perigo d u p l o , q u e aviltava o casamento, única instituição do
mundo branco que permitia, ao alforriado, inserir-se na sociedade, conquistando um
lugar reconhecido.

Existia, entretanto, uma fonte de novas tensões: os filhos desses alforriados, que
representavam para seus pais um verdadeiro investimento social. O s filhos dos africa-
nos não eram mais estrangeiros; os filhos de negros alforriados já nasciam livres e não
tinham mais a tara original da escravidão. Ademais, eles podiam tornar-se para seus
pais, já velhos, uma fonte de renda, trabalhando e trazendo seu salário para o grupo
familiar. Mas, esses filhos que já nasciam livres eram um elemento que diluía a coesão
LIVRO III - A FAM(I IA BAIANA 195

dos grupos é t n i c o s . T ã o c o e r e n t e s n o início d o século, tão chegados às etnias de


origem, esses grupos n ã o se renovaram e a c a b a r a m d e s a p a r e c e n d o . F o r a m substituídos
por grupos negros de etnias misturadas, q u e , para ascender, precisaram recusar essas
tradições, o u t r o r a b e m protegidas. A herança africana só sobreviveu n o c a n d o m b l é ,
relativamente p o u c o { r e q u e n t a d o até a explosão de formas alternativas de religiosidade
a partir da década de 1 9 6 0 . N a s e g u n d a m e t a d e d o século X I X , a m a i o r i a dos baianos
descendia de alforriados, t e n d o r e c e b i d o duas heranças: a transmitida pelos antigos
escravos e a c o p i a d a d o m o d e l o i m p o s t o pelos s e n h o r e s de e n g e n h o . As mulheres,
através desses dois m o d e l o s , c o n t i n u a r a m a d e s e m p e n h a r seu papel. A coesão dos
grupos e a m o b i l i d a d e social s e m p r e resultaram de alianças m a t r i m o n i a i s , c o m suas
estratégias tão flexíveis q u a n t o o b s t i n a d a s . A família, c o m o o E s t a d o e a Igreja, c o n -
tinuou a d e t e r m i n a r a vida dos b a i a n o s , para o m e l h o r e o p i o r .

RAPTOS E ESTUPROS (OU COMO TENTAR SE LIBERTAR


DE REGRAS IMPOSTAS PELA IGREJA E A FAMÍLIA)

Havia, p o r é m , i m p e d i m e n t o s para a realização de c a s a m e n t o s , m e s m o q u a n d o deseja-


dos pelos dois p a r c e i r o s . A I g r e j a p o d i a p r o i b i r , o u u m a das famílias podia i m p e d i r que
seu filho o u filha e n t r a s s e n u m g r u p o f a m i l i a r c o n s i d e r a d o s o c i a l m e n t e inferior. Aliás,
a primeira razão p o d i a d i s s i m u l a r a s e g u n d a , e vice-versa.
A Igreja t i n h a u m a série de m o t i v o s para p r o i b i r c a s a m e n t o s , e n t r e os quais
aqueles ligados à c o g n a ç ã o . 4 6
P a r a a Igreja, existiam três tipos de c o g n a ç ã o : natural,
quando os futuros c ô n j u g e s e r a m parentes c o n s a n g u í n e o s até o q u a r t o grau; espiritual,
quando havia laços e n t r e os f u t u r o s c ô n j u g e s , fosse pela a p r o x i m a ç ã o de suas famílias,
fosse pelos s a c r a m e n t o s d o b a t i s m o e da c r i s m a ; legal, q u a n d o , p o r e x e m p l o , um filho
adotivo pretendia se casar c o m u m filho da f a m í l i a q u e o adotara. Esses dois últimos
tipos de c o g n a ç ã o c r i a v a m laços t ã o fortes q u a n t o a c o n s a n g ü i n i d a d e real, c o m o o
mostra o valor a t r i b u í d o a p a d r i n h o s e m a d r i n h a s .
O u t r a situação suscitava a i n t e r d i ç ã o da Igreja — a afinidade. C o m efeito, pelo
casamento o h o m e m c a m u l h e r c o n t r a í a m afinidades c o m todos os parentes consan-
guíneos de a m b o s , até o q u a r t o grau. Para poder casar c o m u m a prima-irmã, uma
afilhada d o pai ou u m a irmã adotiva, era necessário o b t e r a permissão da Igreja. Esta
proibia casamentos c o n s e c u t i v o s a um rapto (aliás, as constituições primeiras do
arcebispado de Salvador n ã o faziam diferença entre rapto e e s t u p r o ) ; para reparar a
falta c o m e t i d a , era preciso pedir permissão.
É fácil imaginar o q u a n t o essas proibições deviam causar embaraços na sociedade
baiana, cm que as alianças matrimoniais e os a p a d r i n h a m e n t o s eram a chave do êxito
social. E m todos os m e i o s sociais, essas estratégias de alianças produziam imensa
diminuição d o n ú m e r o de pessoas (jovens ou mais idosas) não 'impedidas', c o m os
quais não havia problemas de afinidade ou cognação.
196 BAHIA, SÉCULO X I X

N a segunda metade do séxulo X I X , o tabu do incesto c o m e ç o u a se propagar: os


casamentos entre primos próximos (primos-irmãos, primos de primeiro grau, primos
'carnais', segundo as definições canónicas e civis) e entre tios e sobrinhas suscitavam
muito medo: 'taras de família', debilidade m e n t a l , inclinações para desvios de conduta
ou infidelidades femininas. D a í surgiu o ditado de que " m u l h e r e cachorro se escolhe
pela raça". Idéias c o m o esta c o n t r i b u í a m para que as pessoas aceitassem mais facilmen-
te as proibições impostas pela Igreja. M a s elas c o n t i n u a v a m a ser desrespeitadas: só na
paróquia de São Pedro, 1 4 5 dispensas p o r c o n s a n g ü i n i d a d e e vinte dispensas por
afinidade foram outorgadas entre 1 8 1 5 e 1 8 9 0 . Aliás, c o m o já vimos para as classes
sociais elevadas, o tabu do incesto n ã o a c a b o u c o m as práticas endogâmicas; os inte-
resses materiais eram m u i t o fortes para q u e considerações de ordem moral e até de
saúde pudessem sobrepujá-los. D e qualquer m a n e i r a , q u a n d o havia rapto o u estupro,
as vítimas eram as mulheres, sobre q u e m recaía a falta.
A moça que, apesar das proibições, tivesse " p e c a d o " , era trancada n u m conven-
to ou n u m a casa de correção, s e m p r e dirigidos p o r religiosas que se dedicavam à
regeneração das "perdidas o u e x t r a v i a d a s " . 47
O p r i m e i r o c o n v e n t o f e m i n i n o , Santa
Ciara de Nossa S e n h o r a do D e s t e r r o , data de 1 6 7 7 , f u n d a d o pelos senhores de en-
genho para suas filhas. M a s , 2 3 anos mais tarde, J o ã o de M a t t o s Aguiar deixou à
Misericórdia um capital de 8 0 . 0 0 0 cruzados, q u e devia servir à c o n s t r u ç ã o e ao sus-
tento de u m a Casa de R e c o l h i m e n t o c o l o c a d a sob a p r o t e ç ã o d o Santíssimo N o m e
de Jesus. Inaugurada em 1 7 1 6 , acolhia m o ç a s de famílias da classe média, em idade
de casar e cuja h o n r a estivesse ameaçada pela m o r t e de um ou dos dois progenito-
res. Essas moças recebiam u m d o t e ao casar. H a v i a u m segundo grupo de mulheres,
constituído por aquelas cujos maridos deviam se ausentar durante m u i t o tempo. 'Re-
colhendo' suas mulheres, os maridos garantiam sua fidelidade. 48
E m 1 7 3 9 , as religio-
sas ursulinas fundaram a C a s a de R e c o l h i m e n t o de Nossa S e n h o r a da Soledade, para
prostitutas arrependidas e para jovens extraviadas. F i n a l m e n t e , em 1 7 5 3 , o sargen-
to-mor Raimundo Maciel Soares f u n d o u a Casa de R e c o l h i m e n t o de São Raimundo,
que acolhia mocinhas pobres e desamparadas. S e g u n d o o instituidor dessa funda-
ção, a Casa de R e c o l h i m e n t o recebia " n ã o s o m e n t e as jovens que, vítimas da sedu-
ção do m u n d o , reassumem seus nobres sentimentos da virtude buscando volunta-
riamente este pio asilo, mas, t a m b é m , órfãs e moças cuja pobreza as expõe aos perigos
da corrupção"/* 9

Durante o século X I X , essas instituições existiram e até floresceram em Salvador,


desempenhando um duplo papel: eram, ao m e s m o tempo, instituições 'preventivas'
(que acolhiam moças órfãs ou sem parentes, por demais expostas ás tentações) e
'educativas'. Em um dos colégios mais famosos, o do Sagrado Coração de Jesus,
fundado pelo padre Francisco G o m e s cm 1 8 2 7 , as moças reclusas aprendiam "a reli-
gião, a moral, a leitura, a escrita, as línguas portuguesa e francesa, todas as prendas
domésticas, trabalhos de agulha c outros próprios a seu sexo e de sua condição de
pobreza, até mesmo os de lavar, passar e cozinhar". Q u a n d o sua educação se comple-
LIVRO III - A FAMÍLIA BAIANA \O~

tava, eram c o l o c a d a s c o m o e m p r e g a d a s d o m é s t i c a s em casas de famílias honestas.


Q u a n d o se c a s a v a m , r e c e b i a m u m enxoval m o d e s t o c um d o t e de 3 0 0 . 0 0 0 r é i s . 50

Havia u m e s f o r ç o para separar as Casas de R e c o l h i m e n t o — c o m o as de S ã o R a i m u n d o ,


Nossa S e n h o r a dos P e r d õ e s e N o s s a S e n h o r a dos H u m i l d e s — , freqüentemente
dedicadas a receber m u l h e r e s perdidas, e os asilos o u colégios que r e c e b i a m , c o m o
internas, t a n t o m o ç a s p o b r e s , g e r a l m e n t e órfãs, q u a n t o m o ç a s de famílias da classe
média, q u e ali e r a m e d u c a d a s . E s p e r a v a - s e , assim, afastar os perigos que poderiam
advir de u m a p r o m i s c u i d a d e e n t r e m u l h e r e s da vida e j o v e n s i n o c e n t e s .
T o d a s as casas de r e c o l h i m e n t o e c o l é g i o s eram dirigidos p o r freiras. As casas de
S ã o R a i m u n d o , d o s P e r d õ e s e dos H u m i l d e s estavam s u b m e t i d a s à autoridade do
arcebispado da B a h i a . A da S a n t a C a s a da M i s e r i c ó r d i a desapareceu e m 1 8 6 6 (após
u m século e m e i o de s e r v i ç o s ) p o r falta de r e c u r s o s . O s asilos-colégios d o C o r a ç ã o de
Jesus, a C a s a da P r o v i d ê n c i a e a de N o s s a S e n h o r a dos A n j o s (esta ú l t i m a só f u n c i o n o u
entre 1 8 5 5 e 1 8 6 0 ) f o r a m a d m i n i s t r a d o s pelas religiosas de S ã o V i c e n t e de Paula,
chegadas à B a h i a e m 1 8 5 3 . O C o l é g i o de N o s s a S e n h o r a da S á l e t e , p o r sua vez, foi
a d m i n i s t r a d o pelas religiosas p o r t u g u e s a s da O r d e m da A s s u n ç ã o . A Igreja, por c o n -
seguinte, estava p r e s e n t e e m t o d a p a r t e . M a s , a o passo q u e para a m u l h e r só existiam
perspectivas de p u n i ç ã o o u d e s e g r e g a ç ã o , para os h o m e n s suspeitos de terem c o m e t i -
do e s t u p r o havia duas p o s s i b i l i d a d e s : a de u m c a s a m e n t o f o r ç a d o c o m a vítima e a de
um c a s a m e n t o r á p i d o , c o m o u t r a m u l h e r , a n t e s de o escândalo vir à t o n a . Nessas
c i r c u n s t â n c i a s n ã o era raro q u e o c u l p a d o fosse o b r i g a d o , p o r s e n t e n ç a j u d i c i a l , a pagar
um d o t e à m u l h e r u l t r a j a d a , c o n f o r m e previsto nas O r d e n a ç õ e s Filipinas; podia t a m -
bém a c o n t e c e r q u e , m a i s t a r d e , c o m a ' h o n r a r e s t a u r a d a ' pelo c a s a m e n t o f o r ç a d o , o
h o m e m repudiasse sua m u l h e r , s o b o p r e t e x t o de q u e d e s c o n f i a v a de sua honestidade.
A m u l h e r p o d i a ser r e p u d i a d a pela p r ó p r i a f a m í l i a , o q u e talvez e x p l i q u e o caso das
mulheres celibatárias b r a n c a s , c o m f i l h o s , v i v e n d o s o z i n h a s , q u e descobri ao estudar a
estrutura dos casais e m S a l v a d o r . O d o t e p o d i a servir, e v e n t u a l m e n t e , para que a moça
se casasse n o v a m e n t e .
O rapto e o d e f l o r a m e n t o e r a m utilizados pelos próprios n a m o r a d o s , para forçar
o c o n s e n t i m e n t o de pais r e c a l c i t r a n t e s . C o m o isso se passava na Salvador do século
X I X ? C o n s e g u i e n c o n t r a r u m c o m e ç o de resposta a essa questão ao examinar as dis-
pensas para c a s a m e n t o s , pedidas à Igreja pelos h a b i t a n t e s da paróquia de S ã o Pedro
entre 1 8 1 5 e 1 8 9 0 . 5 1
As dispensas eram soliciradas p r i n c i p a l m e n t e nos casos de impe-
d i m e n t o causado por u m a afinidade espiritual e n t r e os futuros cônjuges (por exemplo,
padrinhos de b a t i s m o c o m u n s ) o u c m casos de c o n s a n g ü i n i d a d e . A dispensa da Igreja
era necessária, t a m b é m , em caso de estupro ou de rapto.
N a primeira metade d o século X I X , essas dispensas por rapto ou estupro foram
inexistentes, ou raras, mas, a partir de 1 8 5 4 , c o m e ç a r a m a se multiplicar. C o m o
explicá-lo? N u m e r o s a s hipóteses poderiam ser formuladas, mas os exemplos de que
disponho são por demais limitados para gerar uma explicação c o n v i n c e n t e . A hipótese
mais plausível parece ser a seguinte: durante a primeira metade do século X I X , os
BAHIA, SÉCULO X I X

TABELA 48

P E D I D O S D E D I S P E N S A D E C A S A M E N T O NA P A R Ó Q U I A D E S Ã O P E D R O
1815-1854 E 1871-1890

PERÍODOS C o N S ANO 01N! DADE AFINIDADE RAPTO ESTUPRO

1815-1824 10 4 - -
1825-1S34 12 1 3
-
1835-1844 27 5 2
-
1845-1S54 24 2 6 1

1871-1880 34 2 13 10

1S81-1890 38 6 9 13

raptos e estupros t e r i a m sido s u b - r e g i s t r a d o s . O c r e s c i m e n t o verificado por volta do


fim d o século talvez t e n h a d e c o r r i d o d e u m m a i o r rigor p o r parte da Igreja, menos
i n c l i n a d a a p e r d o a r atos c o n t r á r i o s à s u a m o r a l : ela p a s s o u a i m p o r longos processos,
c u j a c o n c l u s ã o era i m p r e v i s í v e l , t a n t o p a r a os f u t u r o s c ô n j u g e s q u a n t o para suas famí-
lias. A d o t a n d o essa a t i t u d e , a I g r e j a c r i o u , a o m e s m o t e m p o , a possibilidade de regu-
larizar situações q u e talvez tivessem r e d u n d a d o e m u n i õ e s livres, pois o n ú m e r o de pais
celibatários a u m e n t o u d u r a n t e a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o .

Q u e pessoas c o m e t i a m esses atos de r a p t o e estupro? I n f e l i z m e n t e , os pedidos de


dispensa n ã o revelam g r a n d e coisa. Eles g e r a l m e n t e i n c l u í a m os n o m e s dos requeren-
tes, sua filiação ( l e g í t i m a o u n a t u r a l ) , r a r a m e n t e s u a idade, sua religião, seu estatuto
j u r í d i c o (escravos o u a l f o r r i a d o s ) , às vezes sua c o r e o n o m e dos pais.
D u r a n t e t o d o o p e r í o d o c o b e r t o pelos d a d o s ( 1 8 1 5 - 1 8 5 4 e 1 8 7 1 - 1 8 9 0 ) , raptos e
estupros parecem ter o c o r r i d o apenas e n t r e a p o p u l a ç ã o livre, q u e provavelmente
incluía os libertos. E s b a r r a m o s n o v a m e n t e n u m caso d e sub-registro, pois é difícil
admitir q u e a p o p u l a ç ã o escrava n ã o praticasse e s t u p r o s . M a s o escravo "era c o m o
e r a " . Seus atos n ã o p o d i a m envolver h o m e n s livres, n e m prejudicar o c o n j u n t o da
sociedade. C o m o o c a s a m e n t o n ã o era a n o r m a para as associações conjugais entre
escravos, o poder eclesiástico n ã o dava i m p o r t â n c i a a o fato de q u e tivesse ou não
havido estupro.
Só as pessoas livres t i n h a m o privilégio de preocupar a Igreja! A grande maioria
dos casos em q u e a c o r d o s peticionários foi registrada referia-se a h o m e n s não bran-
cos, c o m nítida p r e d o m i n â n c i a de mulatos: três raptos envolveram parceiros brancos,
só um envolveu negros ( q u e , aliás, eram nascidos n o Brasil) c c i n c o eram mulatos. Só
um estupro dizia respeito a b r a n c o s , dois a negros nascidos no Brasil, nove a mulatos
e um envolvia um mulato c u m a negra. O s atos devassos eram cometidos contra
pessoas da mesma c o r . N ã o há registro de caso de mulher branca vítima de um homem
de cor (lembremos que entre a população de cor se encontrava o maior número de
famílias consensuais). Tratar-se-ia de um modelo de comportamento? N ã o se deve
generalizar, diante de um número de exemplos tão reduzido. U m a resposta c o n d u -
LIVRO I I I - A FAMÍLIA BAIANA 199

dente só poderia advir de um estudo sobre o c o n j u n t o das dispensas outorgadas no


século X I X em Salvador.

Esses atos eram praticados p o r h o m e n s e mulheres oriundos de famílias legalmen-


te constituídas o u naturais. O s registros tratam de quatro rapazes de filiação legítima
que seqüestraram m o c i n h a s , filhas naturais, talvez c o m i n t e n ç ã o de forçar os pais a
aceitar, na família, u m a j o v e m de c o n d i ç ã o social inferior, ou cuja pele fosse mais
escura. Q u a n t o aos estupros, parece ser o c o n t r á r i o : rapazes de filiação natural estupra-
vam moças de filiação l e g í t i m a . M a s os dados de q u e disponho sobre essa questão não
são mais n u m e r o s o s , e m relação às m u l h e r e s , que aqueles que dizem respeito aos
raptos. N ã o p u d e , p o r isso, satisfazer m i n h a curiosidade.

A idade dos r e q u e r e n t e s foi f o r n e c i d a c m q u a t r o dos nove raptos registrados no


período de 1 8 8 1 - 1 8 9 0 : a m é d i a de idade era de 2 0 , 5 anos para os h o m e n s e 19 anos
para as m o ç a s , m u i t o inferior à idade m é d i a c o m q u e os baianos se casavam (respec-
tivamente, 2 8 e 2 4 a n o s ) . Isso fortalece a idéia de q u e os raptos eram cometidos para
forçar as famílias a aceitar os c a s a m e n t o s , mas esta é u m a c o n c l u s ã o n ã o demonstrada,
dado o p e q u e n o n ú m e r o de casos c o n h e c i d o s . N o t e m o s ainda que em dois desses
raptos (para os quais a idade dos parceiros n ã o foi fornecida) os d o c u m e n t o s declaram
que houve i m p e d i m e n t o : u m p o r afinidade ilícita de primeiro grau em linha transver-
sal; o u t r o p o r c o n s a n g ü i n i d a d e de s e g u n d o grau e m p r i m e i r a linha lateral igual.
D e q u a l q u e r m a n e i r a , raptos e estupros eram práticas correntes em Salvador,
sobretudo e n t r e a p o p u l a ç ã o de c o r , m a j o r i t á r i a . M a s , infelizmente, os documentos
não indicam a q u a l i d a d e dos requerentes — s o b r e t u d o n o que diz respeito aos rapazes
— e de seus pais, o q u e teria p e r m i t i d o saber em que camadas da população de cor tais
atos eram c o m e t i d o s . Q u a n d o u m r a p t o o u u m estupro ocorria envolvendo dois
jovens, a m o ç a era e n c l a u s u r a d a n u m asilo o u o c a s a m e n t o era precipitado, para
'restaurar a h o n r a da f a m í l i a ' o mais r a p i d a m e n t e possível.

Assim se casavam os b a i a n o s : todas as estratégias, doces o u violentas, que acabo de


estudar eram o p r e ç o c o t i d i a n o que as famílias pagavam p o r viver n u m a terra em que o
sangue é quente, mas em q u e os individualismos e os limites impostos pelas mentalidades
acabavam por criar u m a sociedade relativamente h a r m o n i o s a . Nela, celibatos forçados,
casamentos (arranjados o u livremente c o n s e n t i d o s ) , divórcios (às vezes extorquidos),
eram freqüentemente efetuados à revelia das mulheres, mas a maioria dos casais sabia
construir u m a vida equilibrada e educar da melhor maneira possível filhos que amavam.
M a s , em q u e a m b i e n t e viviam essas famílias c o m estruturas tão originais? C o m o
organizavam sua vida cotidiana? D e que maneira e a que preço nasciam as relações
sociais que m a n t i n h a m a coesão c a paz numa sociedade aparentemente sujeita a graves
tensões, mas habilidosa cm evitar confrontos dolorosos? Q u e gênero de concessões
deviam ser aceitas para galgar a escala social? S ã o perguntas para as quais não é fácil
encontrar respostas. Espero que elas m e permitam evidenciar alguns traços dessas
mentalidades coletivas, c m torno das quais se organizava uma sociedade dotada de
componentes tão ricos e tão diversos.
C A P Í T U L O 12

A FAMÍLIA BAIANA E AS RELAÇÕES SOCIAIS

O papel que as famílias desempenhavam na educação não pode ser esquecido. Até a
Independência, as instituições religiosas praticamente monopolizavam a instrução,
sobretudo no nível secundário. O primeiro Império criou, aqui e ali, cátedras de
gramática, latim, grego e francês. Mas só no segundo Império, em 1 8 3 4 , o Ato Adi-
cional autorizou as assembléias legislativas das províncias a elaborar leis concernentes
ao ensino de nível primário e secundário. E m 2 2 de abril de 1 8 6 2 , após dois anos de
1

discussões, foi regulamentada uma lei orgânica de 1 8 6 0 , definindo a estrutura escolar.


Foram criadas duas escolas normais: uma para moços, outra para moças, com profes-
sores do mesmo sexo que os alunos. As classes eram numerosas. Só conseguiam vagas
os filhos de famílias abastadas, que se destinavam ao curso superior de direito, após o
que se tornariam funcionários. O acesso de escravos e filhos de escravos aos estabele-
cimentos de ensino era oficialmente vedado.
E m 1 8 7 3 , tentou-se acrescentar às disciplinas tradicionalmente ministradas no
ensino elementar — línguas, geografia, história, catecismo e aritmética — a de traba-
lhos manuais. N o mesmo espírito, fundou-se o Liceu de Artes e Ofícios, destinado a
educar filhos de operários e artesãos. E m 1 8 8 1 , ato do presidente da Província promo-
veu grande reforma do ensino. Criaram-se cursos de pedagogia e instituiu-se o jardim*
de-infância. O currículo do curso primário passou a compreender: leitura, escrita,
gramática portuguesa, aritmética, desenho, ciências naturais, religião, educação cívica
e artes decorativas. Mas o acesso às escolas públicas e privadas continuava restrito,
2

como o demonstram os dados do recenseamento de 1872.


É interessante notar que, embora os escravos não pudessem freqüentar a escola, 63
deles, entre os 1 6 7 . 8 2 4 recenseados em 1872 na Província da Bahia, sabiam ler e
escrever. Só três desses privilegiados, porém, viviam em Salvador. A população escrava
masculina era de 9 8 . 0 9 4 pessoas, das quais 4 7 sabiam ler e escrever, assim distribuídos:
quatro em Camamu, dois em Caravelas, um em Viçosa, dois em Entre Rios, um em
Purificação, um em Itapicuru, um em Pombal, um em Santa Isabel do Paraguaçu, três

200
LIVRO III - A FAMIUA BAIANA

cm C a e t i l é , dois c m M o n t e Alto, um c m R i o dc Éguas, um em X i q u e x i q u e , três na


paróquia d o Pilar ( S a l v a d o r ) , um n o distrito de C a c h o e i r a , três n o de S a n t o A m a r o ,
sete n o de T a p e r a e treze n o d c N a z a r é . Havia ainda 7 8 . 7 3 0 escravas mulheres, das
quais q u i n z e sabiam ler e escrever: u m a em I t a p i c u r u , duas c m X i q u c x i q u e e doze n o
distrito de N a z a r é . N e s t e ú l t i m o , s i t u a d o n o R e c ô n c a v o Sul — o n d e a cultura da
m a n d i o c a parecia s u p l a n t a r a do a ç ú c a r — , se c o n c e n t r a v a m p o r t a n t o esses escravos
l e t r a d o s : treze h o m e n s e doze m u l h e r e s , c u j o a p r e n d i z a d o se fazia na casa do senhor.
4

O s dados d o c e n s o relativos ao c o n j u n t o d a p o p u l a ç ã o de Salvador foram os seguintes:

TABELA 49

H O M E N S E M U L H E R E S ALFABETIZADOS, 1 8 7 2

PAROQUIAS HOMENS MULHERES


SIM NÃO TOTAL SIM NÃO TOTAL

Sé 2.629 3.245 5.874 2.922 4.217 7.139

São Pedro 1.921 4.068 5.989 642 5.766 6.408

Sanc'Anna 3.427 6.020 9.447 2.820 5.227 8.047

Conceição da Praia 2.630 700 3.330 651 359 1.010

Vitória 2.041 3.452 5.493 1.843 2.092 3.935

Paço 525 1.077 1.602 137 1.459 1.596

Pilar 1.627 2.241 3.868 722 2.847 3.569

Santo Antônio Além do Carmo 2.529 4.728 7.257 2.119 6.127 8.246

Brotas 3.090 400 3.490 806 200 1.006

Mares 500 1.328 1.828 224 1.526 1.750

Penha 842 1.499 2.341 604 1.808 2.412

'lotai 21.761 28.758 50.519 13.490 31.628 45.118

Esses n ú m e r o s sugerem q u e 3 7 % dos h a b i t a n t e s da capital eram alfabetizados, o


que m e parece m u i t o para a é p o c a (talvez fossem c o n s i d e r a d o s assim os que apenas
assinavam o p r ó p r i o n o m e ) . C o m o era de esperar, o n ú m e r o dc mulheres que sabiam
ler c escrever era m e n o r q u e o d c h o m e n s ( 3 0 e 4 3 % , r e s p e c t i v a m e n t e ) . O percentual
referente ao c o n j u n t o da população revela que nem todos os alfabetizados eram brancos,
pois apenas 3 1 % da p o p u l a ç ã o eram declarados de c o r branca e m u i t o s dos imigrantes
europeus — c o m forte presença portuguesa — eram analfabetos. Entre 1 8 5 2 e 1 8 8 9 ,
7 . 8 1 5 portugueses dc sexo m a s c u l i n o estabelecem-se na Bahia. S a b e m o s a idade que
3 . 1 5 5 deles t i n h a m ao aportar: 3 4 , 5 % estavam entre o i t o e catorze anos — eram quase
crianças — e chegavam c o m o aprendizes d o c o m é r c i o j u n t o a negociantes portugueses.
É legítimo pensar q u e muitos não eram alfabetizados, tendo aprendido a ler na Bahia.
É interessante comparar dados das várias paróquias sobre a distribuição por cor da
população livre e o percentual dos que sabiam ler e escrever:
2o; BAHIA, SÉCULO X I X

T ABELA 5 0
T A X A DE ALFABETIZAÇÃO E C O R DA PELI; DA POPULAÇÃO LIVRE, 1 8 7 2 ( %)

PAROQUIAS HOMENS Mui HERES

BRANCOS NAO-BR. Al FABET. BRANCAS NAO-BR. Al FABET.

Sé 36.3 63,7 44.8 34,7 65,3 40,9

São Pedro 35.6 64,4 32.0 24.8 75.2 10.0


Sant'Anna 40,5 59,5 36,3 37,1 62,9 35,0

Conceição d.i Praia 61,7 38,3 79.0 41.0 59.0 64.4

Vitória 35,6 64,4 37.1 28,9 71,1 46,8

Paço 23,4 76,6 33.0 10,9 89,1 8.6

Pilar 41,5 58,5 42,0 38,3 61,7 20,2

Santo Antônio Além do Carmo 31,0 69,0 34,8 27,2 72,8 25.7

Brotas 54,8 45,2 88,5 37,6 62,4 80,1

Mares 36,1 63,9 27,3 36,3 63,7 12,8

Penha 33,6 66,4 36,0 26,8 73,2 25.0

N o geral, os d a d o s s u g e r e m q u e havia m a i o r n ú m e r o de a l f a b e t i z a d o s nas paró-


quias em q u e p r e d o m i n a v a m os b r a n c o s . A análise p o r sexo, c o n t u d o , i n t r o d u z nuances.
N o t o c a n t e aos h o m e n s , a p a r ó q u i a de B r o t a s s u r p r e e n d e : 8 8 , 5 % d e seus habitantes
m a s c u l i n o s s a b i a m ler e escrever. T i n h a u m a f o r t e c o n c e n t r a ç ã o de b r a n c o s — é a
s e g u n d a , desse p o n t o de vista — m a s isto n ã o é s u f i c i e n t e para e x p l i c a r índice tão
elevado, q u a n d o se sabe q u e se t r a t a v a de u m a p a r ó q u i a s e m i - u r b a n a . J á os índices
referentes às p a r ó q u i a s c o m e r c i a i s da C o n c e i ç ã o d a P r a i a e d o Pilar ( 7 9 % e 4 2 % ,
r e s p e c t i v a m e n t e ) n ã o s u r p r e e n d e m . T a m b é m n ã o e s p a n t a e n c o n t r a r 4 4 , 8 % de ho-
m e n s alfabetizados na p a r ó q u i a da S é — t e r c e i r o lugar — , q u e c o n c e n t r a v a profissio-
nais liberais e f u n c i o n á r i o s . N a s d e m a i s p a r ó q u i a s o p e r c e n t u a l se m a n t i n h a acima de
30%, exceto na de M a r e s , o n d e caía para 2 7 , 3 % .
T a m b é m n o t o c a n t e às m u l h e r e s a p a r ó q u i a de B r o t a s s u r p r e e n d e : 8 0 , 1 % eram
alfabetizadas, um dos mais altos p e r c e n t u a i s e n t r e as paróquias da cidade, q u a n d o as
brancas não passavam de 3 7 , 6 % ( p e r c e n t u a l b a i x o c m relação ao de alfabetizadas,
mas um dos maiores entre as várias p a r ó q u i a s ) . P e r c e n t u a i s bastante elevados de
mulheres alfabetizadas — mais de 4 0 % — foram registrados nas paróquias burguesas
e comerciais da S é , da C o n c e i ç ã o d a Praia e da V i t ó r i a . N a s de S ã o Pedro e de
Mares, baixavam a 1 0 % e 1 2 , 8 % , r e s p e c t i v a m e n t e . N a d o P a ç o , só 8 , 6 % das mulhe-
res sabiam ler c escrever, mas é preciso c o n s i d e r a r q u e ali só eram brancos 1 0 , 9 % da
população f e m i n i n a .

E m suma, quer se tratasse de h o m e n s o u de mulheres, o percentual de alfabetizados


era proporcional ao c o m p o n e n t e b r a n c o na p o p u l a ç ã o livre das paróquias. Aliás, o
mesmo censo revelou o n ú m e r o de crianças que sabiam ler e escrever, por paróquia.
LIVRO I I I - A FAMÍLIA BAIANA

S ó 1/3 dos m e n i n o s e p o u c o mais q u e 1/4 das meninas entre seis e quinze anos
freqüentavam a escola em Salvador. O percentual de alfabetização entre as crianças
( 2 7 , 9 % ) era dez pontos percentuais m e n o r q u e o referente à população adulta ( 3 7 % ) .
A paróquia de Brotas mais u m a vez aparece à frente: 8 2 , 8 % dos meninos e 8 0 , 9 % das
meninas freqüentavam a escola; na C o n c e i ç ã o da Praia o percentual referente aos
meninos caía para 7 3 % > mas o das meninas, 8 9 % , era o mais alto de todos. Nas
demais, m e n o s de 3 0 % das meninas iam à escola, c o m exceção da de Vitória, c o m
6 7 , 7 % . c d e S a n t o A n t ô n i o Além do C a r m o , c o m 4 0 , 6 % . Surpreende o percentual
registrado e m Sant^Anna: só 8 , 8 % das m e n i n a s iam à escola nessa paróquia habitada
por camadas médias da sociedade. A situação dos m e n i n o s era bastante parecida c o m
a das meninas: a p a r ó q u i a de S a n t ' A n n a registrava o mais baixo índice de escolaridade
( 1 4 , 6 % ) , seguida pela da V i t ó r i a ( 1 8 , % ) e de M a r e s ( 2 4 , 9 % ) . N a s outras paróquias o
índice ficava acima de 3 5 % .
Seja c o m o for, são percentuais m u i t o baixos: a grande maioria das crianças baianas
não aprendiam a ler e e s c r e v e r . E m 1 8 7 3 , t o m o u - s e a decisão de generalizar a alfabe-
4

tização, c r i a n d o escolas primárias noturnas para adultos nas paróquias da Sé, da C o n -


ceição da Praia, d e S a n t o A n t o n i o A l é m d o C a r m o , da P e n h a , do Passo e da Vitória.
N o primeiro a n o de sua c r i a ç ã o , as aulas eram freqüentadas por 6 4 8 alunos, mas nos
anos seguintes este n ú m e r o d i m i n u i u progressivamente, c o m algumas oscilações, até
atingir 6 4 e m 1 8 8 3 . N o a n o seguinte, foram suprimidos os cursos primários noturnos.

É preciso dizer, p o r é m , q u e as crianças ausentes da escola não estavam, de todo,


privadas de e d u c a ç ã o : recebiam afeto, cuidados e a instrução possível de familiares.

TABELA 51

CRIANÇAS D E SEIS A Q U I N Z E A N O S ESCOLARIZADAS, 1872

PARÓQUIAS MENINOS MENINAS

% ESCOI-ARIZAPAS
TOTAL % ESCOIARIZADOS TOTAI.

Sc* 1.453 40,2 1.420 27,7

São Pedro 818 43.0 915 24.0

Sant'Anna 2.701 14,6 2.283 8.8

73,0 120 89.0


Conceição da Praia 167

Vitoria 1.658 18,3 715 67,7

Paco 222 74,8 221 16,3

Pilar 42.0 1.49*) 19,0


1,561
66,0 1.979 40.6
Santo Antonio Ale*m do Carmo 1.823

290 82,8 157 80,9


Brotas
607 24.9 538 21,1
Mares
380 36,7 380 19,5
Penha
Total 11.680 30,0 10.227 25,4
204 BAHIA, SÉCULO XIX

padrinhos c amigos. A história insiste em falar nos vagabundos, esquecendo que, na


intimidade dos lares pobres baianos, a criança reinava. Nos mais humildes casebres
eram treinados artesãos c o m p e t e n t e s , operários habilidosos. Era isto que permitia que,
na ausência de associações dc classe ou dc escolas técnicas, se fabricassem na Salvador
do século X I X produtos de excelente qualidade para uso c o t i d i a n o , para não falar das
obras de arte para o culto de Deus e de todos os santos. M a s a educação doméstica
nunca substitui a instrução pública.
A vida universitária era reduzida. A Faculdade dc M e d i c i n a da Bahia, a primeira
do Brasil, fundada em 1 8 0 8 , foi a única instituição de ensino superior da Província até
I S " . Nesse a n o foram fundadas a Escola Superior de Agricultura e a Academia de
Belas-Artes; foi preciso, p o r é m , esperar a R e p ú b l i c a para que fossem criadas a Facul-
dade de Direito ( 1 8 9 1 ) e a Escola P o l i t é c n i c a ( 1 8 9 5 ) . 5
Q u e r e n d o estudar direito, os
jovens baianos iam para O l i n d a , em P e r n a m b u c o , ou para S ã o Paulo, que contavam
com essas faculdades a partir de 1 8 2 7 . Inútil dizer que só filhos dos ricos podiam se
dar a esse luxo. Entre eles, era c o m u m , até a I n d e p e n d ê n c i a , fazer o curso superior em
Portugal, mas a partir de e n t ã o a F r a n ç a e a A l e m a n h a ganharam a preferência.
A vida cultural era tipicamente provinciana. Por volta de 1 8 6 3 , existiam várias
associações de caráter literário, recreativo, artístico, a cuja frente estavam quase sempre
as mesmas pessoas, em geral médicos, advogados, eclesiásticos, magistrados, funcioná-
rios. A mais prestigiosa, e m b o r a recente, era o I n s t i t u t o H i s t ó r i c o da Bahia, fundado
em 1 8 5 8 sob a égide de d o m Pedro I I , a m a n t e das ciências, letras e artes. Reunindo
os expoentes da cultura baiana, o instituto dava o t o m da vida cultural. Atividades
musicais e literárias eram fomentadas por diversas entidades, c o m o a Associação Euterpe
(que reunia músicos oriundos das camadas populares) e a Associação Filarmônica da
Bahia. As agremiações recreativas eram m u i t o numerosas e quase sempre ocupavam-
se de obras de caridade, c o m o a Associação Italiana ou a Associação Portuguesa. As
outras associações agrupavam funcionários, artesãos e empregados do comércio. Não
raro, desavenças entre os m e m b r o s davam lugar a cisões, c o m o ocorreu com a Socie-
dade Recreio Literário da M o c i d a d e , fundada em 1 8 6 0 n u m a cisão da Sociedade
Recreio Literário, que existia desde 1 8 4 5 .
Era na arte dramática, porem, que os baianos mais se esmeravam: nada menos que
três associações competiam c m 1 8 6 0 para atrair os jovens talentos. O Conservatório
Dramático, o Clube D r a m á t i c o e o Instituto D r a m á t i c o disputavam também os palcos
dos dois teatros da cidade, o de São Pedro de Alcântara e o de São J o ã o . este o mais
célebre. Inaugurado em 1 8 1 2 , durante o governo do conde dos Arcos, substituiu o
velho teatro, conhecido c o m o dc Guadalupe ou Casa dc Opera Velha, que desapare-
ceu em 1 8 3 7 , quando o prédio foi comprado pela Câmara Municipal, pelo módico
preço dc 8 0 0 réis! 6

O s testemunhos dos viajantes são variados. Avé-Lallemant fala de um público


"seleto c d i s t i n t o " , mas zomba dos atores ou cantores. Wetherell observa: "embora as
7

peças representadas sejam ou péssimas traduções de obras francesas ou estúpidos


LIVRO III - A FAMÍLIA BAIANA 205

dramalhôes portugueses, e que os cenários e o vestuário dos atores sejam dos mais
pobres, os teatros estão quase sempre r e p l e t o s " . 8
Por volta de 1 8 2 0 , os 'mistérios',
c o m o o de Santa Cecília — a que assistiu L. F. T o I I c n a r e 9
— , e espetáculos mais
populares tinham a preferencia d o público. O s enredos eram inspirados no cotidiano
das famílias; c o n t a v a m , por e x e m p l o , os amores grotescos entre um velho negro ciu-
m e n t o e uma velha negra provocante, o u mostravam um inglês bêbado tentando falar
português, ou ainda cenas de empregados domésticos poltrões. Representavam-se tam-
bém tragédias, c o m o u m a baseada em Maomé, de V o l t a i r e , ou o drama Duas filhas do
conde de Bragança, do a u t o r português A n t ô n i o Pereira da C u n h a . N ã o faltavam
farsas, c o m o A vila fidalga, n e m obras de Scribe e Alexandre D u m a s , além da indefectível
Hernâni de V i c t o r H u g o . Ó p e r a s líricas eram encenadas por companhias italianas,
c o m o Dilúvio universale Lucia de Lamermoor (de D o n i z e t t i ) e Templário (de N i c o l a i ) .
Foi t a m b é m nos teatros q u e , na segunda m e t a d e do século X I X , c o m e ç a r a m a se
realizar bailes de máscaras q u e a n t e c i p a v a m os clubes carnavalescos do fim do século.
A julgar pelo que se lê n o Diário da Bahia de j a n e i r o de 1 8 6 3 , esses bailes favoreciam
os encontros extraconjugais, pois u m a n ú n c i o assinado por u m certo Cavaleiro V e r -
melho c o m e ç a v a p o r u m alegre "viva a m a s c a r a d a " e declarava: "estou te esperando
hoje n o teatro... E n t e n d e u , bela d a m a ? " O u t r o a n ú n c i o , escrito n u m claudicante
francês, dizia: " M a d a m e F . . . E s t o u te esperando h o j e n o baile de máscaras para dançar
contigo c b e b e r c h a m p a n h e . Pierrô E s c a r l a t e . " 10
O s baianos cultos — ou os que,
pertencendo à b o a sociedade, queriam parecê-lo — p r o m o v i a m os chamados saraus,
que t i n h a m lugar à n o i t e , e m geral nas casas das famílias, ensejos para brilhantes
duelos de retórica, f u n d a d o s s o b r e t u d o na capacidade m n e m ó n i c a dos contendores.

T u d o era pretexto para festas na B a h i a , sobretudo em lugares abertos, na rua.


Festas cívicas — c o m destaque para as datas de expulsão das tropas portuguesas da
Bahia (2 de j u l h o ) e de I n d e p e n d ê n c i a do Brasil (7 de setembro) — e religiosas se
sucediam n u m r i t m o f r e n é t i c o . S ó n o calendário religioso havia dezenove grandes
ciclos de festas, sem c o n t a r as inúmeras procissões promovidas pelas ordens terceiras
e as confrarias religiosas, além das festas das comunidades africanas, que não eram
poucas. Festas c o m u n i d a d e s adotaram o calendário religioso católico, para passar desa-
percebidas da vigilância exercida pelo poder. E m dezembro, as festas do calendário
litúrgico eram Santa Bárbara (dia 4 ) , Nossa S e n h o r a da C o n c e i ç ã o (dia 8 ) , Santa Luzia
(dia 13) e Natal (dia 2 5 ) . E m j a n e i r o , A n o - N o v o (dia I ) , acompanhado da procissão
o

marítima dedicada a Nosso S e n h o r dos Navegantes (festa instituída pelos capitães e


pilotos que praticavam o tráfico negreiro), Epifania (dia 6 ) , Nosso Senhor do Bonfim
(segundo d o m i n g o d o mês) c o Entrudo. Em fevereiro ou março, a Quaresma, com a
procissão de Nosso S e n h o r dos Passos. E m março, a festa de São José (dia 1 9 ) . Em
março, abril e maio, D o m i n g o de R a m o s , Quinta-Feira Santa, Sexta-Feira Santa,
Sábado de Aleluia, D o m i n g o de Q u a s í m o d o , Ascensão, Pentecostes, festa do Divino
(acompanhada da festa do Imperador) e Corpus Christi. Em j u n h o , a festa de Santo
Antônio de Pádua (dia 1 3 ) , de São J o ã o (dia 2 4 ) , de São Pedro e São Paulo (dia 2 9 ) .
»6 BAHIA, SÉCULO X I X

E m agosto. Assunção de Nossa S e n h o r a (dia 1 5 ) , q u e fechava o c i c l o . 1 1


Celebrações,
tanto da cultura popular q u a n t o da cultura das elites, t ê m até h o j e grande peso no
cotidiano dos baianos.
T a m b é m se lia na B a h i a . M a s q u e m lia? E o quê? E m 1 8 1 1 , n o g o v e r n o do C o n d e
dos Arcos, foi fundada a B i b l i o t e c a P ú b l i c a . As autoridades portuguesas, porém, não
mostraram grande e m p e n h o em d o t á - l a d o material necessário ao seu f u n c i o n a m e n t o .
D e fato, tudo ficou na d e p e n d ê n c i a da iniciativa privada, e m u i t o s foram os baianos
que doaram seus livros à i n s t i t u i ç ã o . D o a ç õ e s dos irmãos P e d r o e Alexandre G o m e s
Ferrão Castello B r a n c o e de F r a n c i s c o A g o s t i n h o G o m e s c o n s t i t u í r a m o primeiro
acervo dessa b i b l i o t e c a . 12
E m 1 8 1 9 , ela c o n t a v a c i n c o m i l v o l u m e s , j o r n a i s em várias
línguas c panfletos e m i n g l ê s . 1 3
Em 1 8 6 3 , o s u í ç o T s h u d i avaliou seu acervo em
dezesseis mil volumes, especificando q u e eram quase t o d o s escritos em língua estran-
geira, o que n a t u r a l m e n t e limitava o n ú m e r o l e i t o r e s . 14
U m i n v e n t á r i o datado de
1 8 8 7 recenseia cerca de v i n t e mil v o l u m e s , m a p a s i n c l u í d o s .
D a leitura dos relatórios anuais dos seus diretores, depreende-se q u e a biblioteca
não podia crescer r a p i d a m e n t e , p o r q u e o g o v e r n o n ã o liberava as verbas necessárias.
E m 1 8 7 3 , por e x e m p l o , o d i r e t o r A n t ô n i o F e r r ã o M o n i z assinalava q u e u m a bibliote-
ca, para ser útil, deveria possuir obras de base e m c a d a r a m o das ciências teóricas e
aplicadas, u m a coleção c o m p l e t a das obras clássicas de todas as literaturas, ou ao
menos das principais, além de j o r n a i s , revistas e obras novas. Queixava-se de que a
instituição não contava c o m d i c i o n á r i o s , g r a m á t i c a s , quase nada de filosofia compara-
da e da escassez das obras e m inglês, q u a n d o " a t u a l m e n t e o m o v i m e n t o intelectual na
Inglaterra talvez seja superior ao da F r a n ç a e quase e q u i v a l e n t e ao da A l e m a n h a " . 1 5
De
fato, obras de autores franceses o u publicadas em francês existiam em n ú m e r o consi-
derável na biblioteca, c o m o j á o observara e m 1 8 1 7 o francês T o l l e n a r e . 1 6
Infelizmen-
te, não foi possível e n c o n t r a r u m inventário dos acervos dessa biblioteca n o século
X I X , mas entre as aquisições feitas em 1 8 7 0 e n c o n t r a m - s e : Homme primitif,de Figuier,
obras de Claude B e r n a r d , de N i e m e y e r , u m a Histoire de France de H e n r i M a r t i n , a
Histoire Universelle de Paradel, u m a Vie de Jésus Christ do padre D u p a n l o u p e a Vie de
la Vierge Marie do abade O r s i n i . A biblioteca t i n h a a assinatura da Revue des Deux
Mondes, do Journal d'Agriculture, d o Journal des Savants, do Journal des Economistes e
da revista Illustration.

Encontra-se o m e s m o p r e d o m í n i o da língua e da literatura francesas nas coleções


privadas, embora me pareça arriscado julgar o gosto dos leitores baianos por aquele
dos proprietários de bibliotecas. Estas, além de refletirem gostos pessoais, eram em
sua maior parte especializadas, pertencendo a médicos, advogados, magistrados ou
religiosos. A julgar pelos inventários m u i t o sumários de dois livreiros falecidos em
1 8 8 0 , os leitores davam grande preferência aos romances c obras históricas, em detri-
mento das obras filosóficas ou científicas. Em francês, liam-se sobretudo obras de
autores do próprio século X I X , c o m o M a d a m e de Staël, Chateaubriand, Lamartine,
Lammenais, Balzac, V i c t o r Hugo, Tocqucvillc, Guizot, Michelet e Minguet, que,
LIVRO III - A FAMÍLIA BAIANA 203

por volta do m e i o d o século, d e s t r o n a r a m os grandes clássicos do século X V I I I . C u -


riosamente, a o b r a de Auguste C o m t e estava ausente das bibliotecas particulares,
apesar do grande sucesso q u e lhe é a t r i b u í d o no Brasil. As literaturas portuguesa e
brasileira estavam m u i t o bem representadas pelos grandes n o m e s da é p o c a : Alexan-
dre H e r c u l a n o , J ú l i o D i n i z , C a s t e l l o B r a n c o , G a r r e t t , J o s é de Alencar, M a c h a d o de
Assis c o u t r o s .
A falta de interesse pelas obras c i e n t í f i c a s é u m a c o n s t a n t e nos relatórios dos
diretores da B i b l i o t e c a P ú b l i c a , q u e t a m b é m se queixavam de seu alto c u s t o . 1 7
A
biblioteca era f r e q ü e n t a d a por u m a clientela restrita, f o r m a d a s o b r e t u d o pela popula-
ção estudantil — s e m i n a r i s t a s , a l u n o s d o curso s e c u n d á r i o , das escolas normais e da
Faculdade de M e d i c i n a — e p o r a d u l t o s q u e lá iam ler j o r n a i s e revistas.

A população b a i a n a d i s p u n h a ainda de outras fontes de i n f o r m a ç ã o . A imprensa


— tribuna ideal para o espírito c r í t i c o dos h a b i t a n t e s de Salvador — era m u i t o
desenvolvida. O p r i m e i r o j o r n a l da cidade, Idade de Ouro do Brasil, c o m e ç o u a circular
em 14 de m a i o de 1 8 1 1 . O Constitucional surgiu n o p e r í o d o da I n d e p e n d ê n c i a e foi
publicado até depois de 1 8 5 0 . M a s os grandes j o r n a i s baianos do século X I X foram o
Diário da Bahia ( 1 8 3 3 - 1 9 5 8 ) e o Jornalde Notícias ( 1 8 8 3 - 1 9 1 7 ) . E m 1 8 8 0 , Salvador
tinha sete diários, a l i n h a d o s c o m o liberais ou conservadores {Diário de Notícias, Diário
da Bahia, O Monitor, Gazeta da Bahia, Jornal de Notícias, Alabama e Gazeta da
Tarde), e c i n c o periódicos {Gazeta Médica, Escola, Voz do Comércio, Baiano t O Balão).
Era bastante para u m a c i d a d e em que só 1/3 da p o p u l a ç ã o era alfabetizada. E m b o r a
lessem m u i t o s j o r n a i s e se i m p r e g n a s s e m da literatura francesa, os h o m e n s cultos da
Bahia escreviam p o u c o . O s é c u l o X I X só pode se o r g u l h a r de u m grande poeta, Castro
Alves, e de um grande r o m a n c i s t a , X a v i e r M a r q u e s . 1 8

N u m a avaliação global, i m p õ e - s e r e c o n h e c e r q u e a e d u c a ç ã o , pública ou privada,


fez notáveis progressos n o século X I X . E x c e l e n t e s escolas leigas privadas se multiplica-
ram. As famílias abastadas c o n t i n u a v a m a m a t r i c u l a r as filhas nas Ursulinas das M e r -
cês, mas os m e n i n o s freqüentavam cada vez m e n o s as escolas religiosas. Depois do
advento da R e p ú b l i c a , jesuítas e maristas passaram a d e s e m p e n h a r importante papel
na educação primária e secundária dos jovens baianos.

FAMÍIJA, EIXO DAS RELAÇÕES SOCIAIS

Ao longo de t o d o o século X I X o local em q u e se formavam inteligências e mentali-


dades foi, na Bahia, a família, fosse legítima, abençoada pela Igreja, ou consensual,
chefiada muitas vezes por uma mulher, situação aceita sem grande dificuldade pela
sociedade. Ser filho natural não acarretava, ao que parece, grandes problemas de
inserção ou m e s m o de ascensão social, pelo menos no â m b i t o das classes médias e
inferiores da sociedade. E, quando sc era rico, origens humildes ou naturais eram
rapidamente esquecidas.
:o8 BAHIA, S É C U L O X I X

A família natural, criada pela mera vontade dos parceiros, era tão c o m u m na Bahia
quanto a sacramentada pela Igreja C a t ó l i c a . Aliás, por razões de ordem institucional,
e c o n ô m i c a e dc mentalidades, as uniões livres eram mais numerosas q u e as legais. D o
ponto de vista institucional, a sociedade se c o m p u n h a d c indivíduos cujos estatutos
legais e sociais eram diversos — os livres, os alforriados e os escravos — e, c o m muita
freqüência, as uniões consensuais se davam entre pessoas de c o n d i ç õ e s diferentes. Era
c o m u m que homens livres (brancos o u de c o r ) escolhessem c o n c u b i n a entre alforriadas
ou escravas. Várias situações podiam ocorrer.
A união legal c o m u m a escrava — m e s m o m u l a t a ou quase branca — era proibida
por lei. A união c o m u m a alforriada era l e g a l m e n t e viável, m a s tendia a permanecer
consensual, pois o casamento c o m u m a m u l h e r de nível inferior podia ocasionar a
decadência social do h o m e m , privando-o ainda da possibilidade de vir a se unir for-
malmente c o m outra mulher, q u e pudesse auxiliá-lo a ascender. P o r o u t r o lado, a vida
em c o m u m c o m u m a m u l h e r branca podia indicar q u e ela j á era casada ou vinha de
um meio social inferior. E r a t a m b é m f r e q ü e n t e q u e , t e n d o em vista a preservação de
bens, viúvas preferissem m a n t e r u m a relação oficiosa, r e n u n c i a n d o a novo casamento,
m e s m o quando se d i s p u n h a m a ter filhos dessa relação i l e g í t i m a . 19

As motivações de um h o m e m livre e de c o r para viver n o c o n c u b i n a t o eram muito


semelhantes às do h o m e m b r a n c o , s o b r e t u d o e m se tratando d e alguém q u e fizera
fortuna e q u e podia se valer disso para o b t e r as graças de u m a m u l h e r de condição
social superior à sua. N o s dois casos, o c o n c u b i n a t o podia ser brevemente interrom-
pido, mas não raro se eternizava, c o m o o c o r r e u c o m os portugueses q u e chegaram ao
Brasil após a Independência.
Essas situações só eram c o m u n s nas camadas médias da população livre. Nas
camadas superiores, os h o m e n s , quer ficassem solteiros ou se casassem, tendiam a
multiplicar suas aventuras sexuais, m a n t e n d o ligações sucessivas ou simultâneas com
várias mulheres. Foi aliás o c o m p o r t a m e n t o desses h o m e n s que deu origem à idéia,
muito difundida na época, de q u e reinava a devassidão, idéia reforçada pelo combate
intransigente da Igreja aos que transgrediam as leis civis e religiosas.
H o m e n s livres, por um lado, e escravos e alforriados, por outro, não eram julga-
dos pelos mesmos padrões. Razões de ordem institucional e e c o n ô m i c a atuavam, mas
o econômico pesava mais. O liberto, c o m o o h o m e m livre, só podia se casar com
uma escrava sc a libertasse, o que pressupunha grande disponibilidade material. H a -
via casos em que isso era possível, mas de modo geral os alforriados viviam em
concubinato com alforriadas ou escravas. Em 1 8 5 3 , por exemplo, o alforriado nagô
Luiz Vieira, carregador dc cadeirinha dc arruar, alugava um quarto por 8 0 0 réis
mensais no imóvel n° 61 da rua Direita, onde morava com Felicidade, também de
origem nagó, escrava de outro alforriado. U m segundo quarto no mesmo imóvel
estava alugado ao alforriado J a c i n t o c a sua amiga Firmina, ambos de mesma origem.
Segundo o estudo de J . J . Reis, o concubinato de alforriados ou alforriadas com escra-
vos era coisa rara, os alforriados preferindo um parceiro que tivesse o mesmo estatuto
209

jurídico. 2 0
Aliás, as u n i õ e s livres, e m geral c o n t r a í d a s em idades mais avançadas — o
q u e t a m b é m a c o n t e c i a c o m os c a s a m e n t o s — , c o n s t i t u í a m a c o r d o s de e n t e n d i m e n t o
e a j u d a m ú t u o s para m e l h o r a r a vida dos d o i s p a r c e i r o s , assim c o m o u m a tentativa
de p e r p e t u a r o r i g e n s é t n i c a s c o m u n s . 2 1

Q u a n t o aos e s c r a v o s , c o m o já i n d i q u e i , n ã o se c a s a v a m , fato a q u e os s e n h o r e s n ã o
davam m u i t a i m p o r t â n c i a . T a m p o u c o e n c o n t r e i , nas m i n h a s pesquisas, registro de u m
caso s e q u e r d e e s c r a v o s v i v e n d o e m c o n c u b i n a t o . A o q u e t u d o i n d i c a , as u n i õ e s livres
eram privilégio dos q u e g o z a v a m d o e s t a t u t o de c i d a d ã o livre o u de a l f o r r i a d o . 22

É fácil i m a g i n a r a a f l i ç ã o dos e s c r a v o s , p r i v a d o s de t o d o t i p o de vida familiar.


M a s c a b e p e r g u n t a r se essa p r i v a ç ã o era i m p o s t a u n i c a m e n t e d o exterior, pela p r ó -
pria n a t u r e z a d a s o c i e d a d e e s c r a v o c r a t a . A t é c e r t o p o n t o , ela p o d e ter refletido u m a
escolha d o p r ó p r i o e s c r a v o . C o m e f e i t o , a q u a l i d a d e de pessoa lhe era recusada. T i -
n h a u m a e x i s t ê n c i a de c o i s a , q u e se c o m p r a e v e n d e . T o r n a r - s e pessoa implicava a
c o m p r a d a a l f o r r i a , e esta e r a m u i t o c a r a . O r a , a v i d a e m c o m u m envolve obriga-
ções m ú t u a s e t e n d e a m e l h o r a r a s i t u a ç ã o d o s p a r c e i r o s d o p o n t o de vista material.
O s escravos, rurais o u u r b a n o s , q u e v i v i a m na casa d o seu s e n h o r , t i n h a m a s o b r e -
vivência a s s e g u r a d a . D a u n i ã o , c a s a m e n t o ou c o n c u b i n a t o , resultam filhos, cuja
existência cria obrigações também de o r d e m moral. Assumir responsabilidades
parentais afastava para s e m p r e a p o s s i b i l i d a d e d a alforria, pois resgatar a liberdade
de u m a f a m í l i a seria c a r í s s i m o . M e l h o r era, p o r t a n t o , evitar a u n i ã o e suas c o n s e -
q ü ê n c i a s . N o c a s o d o s e s c r a v o s de g a n h o , ter u m c ô n j u g e e filhos era i g u a l m e n t e
um o b s t á c u l o para a c o n s e c u ç ã o d a g r a n d e m e t a , a alforria. A causa principal para a
ausência de c a s a m e n t o s e c o n c u b i n a t o s e n t r e escravos era, a o q u e parece, u m a forte
coação material.

E m c o n t r a p a r t i d a , a a s s o c i a ç ã o e n t r e escravos d o m e s m o sexo, vivendo sob o


m e s m o t e t o , era, c o m o v i m o s , p r á t i c a c o r r e n t e . É preciso n ã o esquecer q u e a Igreja,
que censurava a v i d a devassa da p o p u l a ç ã o livre e liberta, c o n d e n a n d o o c o n c u b i n a t o ,
não d e m o n s t r a v a g r a n d e interesse pela vida q u e levavam os escravos, c u j o s desvios de
conduta sempre desculpava. 23
F r e q ü e n t e m e n t e , as m u l h e r e s trabalhavam c seus c o m -
panheiros m a s c u l i n o s a j u d a v a m a t o m a r c o n t a das crianças. Na época d o processo
contra os p a r t i c i p a n t e s da R e v o l t a dos M a l e s , de 1 8 3 5 , Ajadi, por e x e m p l o , declarou
que ficava em casa t o m a n d o c o n t a de seus três filhos, e n q u a n t o a m ã e das crianças
estava na rua v e n d e n d o m e r c a d o r i a s . E I g n a c i o S a n t a n a declarou que sua vida de
h o m e m idoso o reduzira a e d u c a r seus dois filhos mais velhos, dos quais um ia à escola
C o o u t r o aprendia o o f í c i o de c a r p i n t e i r o , e a criar mais duas crianças, ainda m u i t o
pequenas. Q u a n d o C a s p a r da Silva C u n h a foi preso, as autoridades o encontraram
preparando um m i n g a u para sua amiga T e r e s a q u e estava d o e n t e . . .
Essa relativa a n o m i a da sociedade baiana, em que as uniões livres eram maioria,
não parece ter t i d o influencia negativa sobre os c o m p o r t a m e n t o s de ordem familiar.
Filhos o r i u n d o s de laços m a t r i m o n i a i s ou consensuais gozavam da mesma proteção e
estavam s u b m e t i d o s ao poder paterno, m a t e r n o o u ao de um tutor. Desde que reco-
210 BAHIA, SÉCULO X I X

n h e c i d o s , esses ú l t i m o s t i n h a m t a m b é m o m e s m o d i r e i t o à h e r a n ç a p a t e r n a , numa
a t i t u d e permissiva d o legislador, q u e era ao m e s m o t e m p o causa e e f e i t o do grande
n ú m e r o de u n i õ e s livres p r a t i c a d o nessa s o c i e d a d e . N ã o era, aliás, m e r a c o n s e q ü ê n c i a
da s i t u a ç ã o e s c r a v o c r a t a e c o l o n i a l d o B r a s i l , pois vigorava e m P o r t u g a l , o n d e as uniões
livres e os n a s c i m e n t o s i l e g í t i m o s e r a m t a m b é m f r e q ü e n t e s . 2 5
N o m á x i m o , pode-se
a d m i t i r q u e a q u i o f e n ô m e n o se a m p l i o u , e m d e c o r r ê n c i a da m a i o r desigualdade entre
h o m e n s e m u l h e r e s e p o r q u e se t r a t a v a de u m a s o c i e d a d e e m q u e o c a s a m e n t o era visto
c o m o m e i o d e a s c e n s ã o s o c i a l : era p r e c i s o p e n s a r d u a s vezes a n t e s de se unir oficial-
m e n t e a a l g u é m para f u n d a r u m a f a m í l i a .
R e c o n h e c e n d o as u n i õ e s livres e o s d i r e i t o s d o s f i l h o s i l e g í t i m o s , a sociedade
brasileira se a f i g u r a v a m u i t o ' a v a n ç a d a ' p a r a a é p o c a , c r i a n d o u m a realidade que
teve e n o r m e i n f l u ê n c i a s o b r e c o m p o r t a m e n t o s e r e l a ç õ e s s o c i a i s . E s t e s tenderam a
ser m e n o s f o r m a i s , t o r n a n d o possível a i n t e g r a ç ã o , n a s c a m a d a s s u p e r i o r e s , de toda
u m a massa o r i u n d a de castas m e n o s f a v o r e c i d a s . G r a ç a s a laços de p a r e n t e s c o indis-
cutíveis, u m m u l a t o — e às vezes u m n e g r o — p o d i a s u b i r n a h i e r a r q u i a social,
protegido por u m sistema ao m e s m o t e m p o rígido e flexível, f r e q ü e n t e m e n t e frouxo
e tolerante.

E i s u m p r i m e i r o t r a ç o c a r a c t e r í s t i c o dessa s o c i e d a d e , q u e dava m a r g e m a c o m p o r -
t a m e n t o s sociais q u e t r a n s g r e d i a m o s e s t a t u t o s legais q u e a d i v i d i a m e n t r e b r a n c o s e
n e g r o s , s e n h o r e s e e s c r a v o s . F o i a s s i m q u e a i n s t i t u i ç ã o f a m i l i a r t o r n o u - s e u m m e i o de
p r o m o ç ã o s o c i a l . J á o d e m o n s t r e i a o a n a l i s a r as e s t r a t é g i a s m a t r i m o n i a i s q u e me
revelaram a a m p l i t u d e dessa e v o l u ç ã o . E m t o r n o d a f a m í l i a d e v e m ser buscados os
e l e m e n t o s para se c o m p r e e n d e r as c o m p l e x a s h i e r a r q u i a s s o c i a i s , p o i s a família era o
e i x o a c u j a volta g i r a v a m as r e l a ç õ e s s o c i a i s , c o m b a s e n a s q u a i s as h i e r a r q u i a s se faziam
o u se desfaziam. R e u n i n d o p a r e n t e s , a g r e g a d o s e v i z i n h o s d e rua o u de b a i r r o , os
c a s a m e n t o s , n a s c i m e n t o s , e n t e r r o s e o u t r o s a c o n t e c i m e n t o s f a m i l i a r e s eram atos pú-
blicos e, c o m o tais, c r i a v a m s i t u a ç õ e s privilegiadas p a r a a p r e e n d e r a t r a m a tecida pelos
laços sociais.

A escolha d o c ô n j u g e se realizava e m p e l o m e n o s duas e t a p a s : o n a m o r o e o


n o i v a d o . Esta sucessão d e fases n ã o era a r b i t r á r i a , o b e d e c e n d o a preceitos definidos
pela família c a s o c i e d a d e . O n a m o r o era u m a f o r m a de relação q u e se estruturara no
i n í c i o d o século X I X , a partir da crise d o c a s a m e n t o d e c o n v e n i ê n c i a , i m p o s t o pelos
pais, v e n c i d o pela força d o a m o r r o m â n t i c o . N o t e m p o c m q u e o c a s a m e n t o era
d e c i d i d o pelos pais, havia n o i v a d o — g e r a l m e n t e l o n g o — mas n ã o n a m o r o . Antes do
c o m p r o m i s s o , os futuros c ô n j u g e s n ã o t i n h a m n e n h u m c o n t a t o e n t r e si.
O n a m o r o c o m e ç a v a c o m u m a t r o c a d e olhares e gestos expressivos. A iniciativa
geralmente p a t t i a d o rapaz. O s a v a n ç o s e x p l o r a t ó r i o s eram discretos. U m antigo
Manual dos namorados r e c o m e n d a v a ao rapaz m u i t a p r u d ê n c i a ao se dirigir à moça
c u j o a m o r pretendia c o n q u i s t a r . U m t o m b r u s c o e ousado p o d i a ter resultados desas-
trosos. 26
Se a primeira tentativa fosse b e m - s u c e d i d a , se podia arriscar um passo um
pouco mais o u s a d o .
LIVRO III - A FAMÍLIA BAIANA 211

E n t r e os rapazes, a idade d o n a m o r o c o m e ç a v a por volta dos dezoito aos dezenove


anos; entre as m o ç a s , u m p o u c o mais c e d o , e n t r e catorze e quinze anos. Apesar da
reclusão em q u e viviam as mulheres, as o p o r t u n i d a d e s para u m primeiro e n c o n t r o
eram muitas: missas, novenas e outros atos litúrgicos, assim c o m o as festas familiares.
É preciso dizer, p o r é m , q u e esses m o v i m e n t o s eram secretos e assim permaneciam
durante a m a i o r parte d o n a m o r o . F r e q ü e n t e m e n t e , mães, irmãs mais velhas ou tias se
tornavam c o n f i d e n t e s da j o v e m a p a i x o n a d a . U m dos papéis t i p i c a m e n t e reservados às
tias solteironas, q u e viviam na d e p e n d ê n c i a de u m i r m ã o o u c u n h a d o , era o de servir
de 'pau-de-cabeleira', ou seja, vigiar de p e r t o o d e s e n v o l v i m e n t o do n a m o r o ou pro-
mover seu t é r m i n o , se o rapaz n ã o fosse d o agrado da família. Assim, c o n f o r m e o caso,
a tia celibatária tornava-se c ú m p l i c e o u espiã.

D u r a n t e a s e g u n d a etapa, q u e p r e s s u p u n h a a aquiescência do futuro parceiro,


estabelecia-se e n t r e os n a m o r a d o s u m a relação a m b í g u a , q u e só podia ser legitimada
pelo n o i v a d o . O s dois c o n t i n u a v a m a se e n c o n t r a r em lugares públicos, mas — fre-
q ü e n t e m e n t e graças à c u m p l i c i d a d e de u m m e m b r o da família — tornavam-se possí-
veis rápidos e n c o n t r o s , n o p o r t ã o da casa da m o ç a , ou j u n t o a u m a janela térrea, quando
havia. Seja c o m o for, esses e n c o n t r o s deviam ser p ú b l i c o s , à vista de todos: e n c o n t r o s
em lugares escuros c e s c o n d i d o s , s o b r e t u d o à n o i t e , eram s i n ô n i m o de má c o n d u t a e
expunham a m o ç a ao e s c â n d a l o . O pai era o ú l t i m o a saber do n a m o r o de sua filha ou
de seu filho e só ele t i n h a o p o d e r de criticar, recusar o u aprovar a e s c o l h a . 27

A f u n ç ã o d o n a m o r o era preparar a u n i ã o de 'iguais' e m estatuto social, maneiras


e tipo físico. N o f u n d o , o c a s a m e n t o era u m p r o b l e m a de família, cujo sucesso depen-
dia do acaso, j á q u e " c a s a m e n t o e m o r t a l h a , n o céu se t a l h a " . M a s era preciso a
máxima a t e n ç ã o para prevenir certos desacertos. P o r isso, deviam ser levadas em conta
noções c o m o " s o m o s o q u e é nossa f a m í l i a " , o u "as famílias devem se parecer m u i t o " ,
repetidas p o r u m c o n s e l h e i r o familiar da é p o c a . 2 8

V e n c i d a esta s e g u n d a etapa, o n a m o r o c a m i n h a v a para o ' c o m p r o m i s s o ' : juras de


fidelidade entre os j o v e n s n a m o r a d o s , q u e os encorajavam a revelar suas relações às
respectivas famílias. N e s s a n o v a etapa, o rapaz conquistava o direito de freqüentar a
casa da sua eleita alguns dias por semana, s e m p r e sob a vigilância direta dos pais ou de
outros m e m b r o s da família. F i n a l m e n t e , q u a n d o a união era decidida e o rapaz estava
em condições de 'pensar em c a s a m e n t o , era feito o pedido oficial ao pai da moça.
1

Celcbrava-sc e n t ã o o noivado, uma etapa de maior aproximação entre as duas famílias.


E n q u a n t o isso, os jovens c o n t i n u a v a m a se ver, sempre sob vigilância. A virgindade era
o bem mais precioso da m o ç a . 2 9

O n a m o r o n ã o era exclusivo da burguesia: t a m b é m as classes médias da sociedade


baiana o praticavam. Aliás, segundo a tradição, era até mais c o m u m nestas últimas,
pois na classe alta c o n t i n u a v a freqüente a escolha do cônjuge pelos pais. O elevado
percentual de mulheres celibatárias que encontrei entre as famílias burguesas estuda-
das é um indício de que as famílias preferiam que as filhas ficassem solteiras a vê-las
'desclassificadas' pelo casamento com um rapaz de condição i n f e r i o r . 30
212 BAHIA, SÉCULO X I X

E v i d e n t e m e n t e , esse era o p a r a d i g m a d o n a m o r o e d o c a s a m e n t o , o m o d e l o ideal


f o r m a l , ritualizado e h i e r a r q u i z a d o , a q u e a realidade n e m s e m p r e se ajustava com
perfeição. P o d i a haver desvios m a i o r e s o u m e n o r e s , s e g u n d o as c i r c u n s t â n c i a s . Havia
por e x e m p l o , n a m o r o e c a s a m e n t o d o rapaz ' p o b r e e b o m ' c o m a m o ç a rica, de família
respeitada; havia t a m b é m c a s a m e n t o de rapaz d e c o r c o m m o ç a b r a n c a . E r a m 'arran-
j o s ' — q u e sempre f u n c i o n a r a m b e m na sociedade brasileira — à m a r g e m da endogamia
o u da isogamia das classes, q u e c o m p e n s a v a m a falta d e c a n d i d a t o s mais b e m qualifi-
cados e p e r m i t i a m a i n c o r p o r a ç ã o d e i n d i v í d u o s c o m dotes intelectuais ou políticos
em famílias de c o m e r c i a n t e s , p r o p r i e t á r i o s agrícolas, s e n h o r e s de e n g e n h o , h o m e n s de
g o v e r n o , sem q u e isso p r e j u d i c a s s e a m u l h e r . 3 1

Assim, n e m s e m p r e o c a s a m e n t o u n i a os ' s o c i a l m e n t e iguais'. O s portugueses, por


e x e m p l o , casavam-se f a c i l m e n t e c o m m u l a t a s r i c a s , e n ã o raro u m a b r a n c a sem dote
casava-se c o m u m m u l a t o t a l e n t o s o o u r i c o . Isso a c o n t e c i a s o b r e t u d o nas categorias
i n t e r m e d i á r i a s , a q u e l a dos q u e t i n h a m pressa e q u e r i a m c o r t a r c a m i n h o até o t o p o da
h i e r a r q u i a social.
P o r o u t r o l a d o , as r e l a ç õ e s e n t r e n a m o r a d o s e até e n t r e n o i v o s n ã o eram tão puras,
c o m o j á d e m o n s t r e i ao analisar o s r a p t o s e e s t u p r o s . F r e q ü e n t e m e n t e ocorria que a
m o ç a fosse d e s v i r g i n a d a — p o r t a n t o , c o m p r o m e t i d a — p e l o n a m o r a d o o u aquele a
q u e m t i n h a sido p r o m e t i d a . C o m raras e x c e ç õ e s , a m u l h e r q u e p e r d e r a a virgindade,
se n ã o c o n s e g u i a g u a r d a r o f a t o e m s e g r e d o , e v i t a n d o assim q u a i s q u e r problemas,
t i n h a três e s c o l h a s : a p r o s t i t u i ç ã o — d e c l a r a d a , se fosse p o b r e , discreta se tivesse alguns
recursos — , o c e l i b a t o o u u m c a s a m e n t o d e c o n v e n i ê n c i a . 3 2

Q u a n d o o n a m o r o c o n d u z i a a o c o m p r o m i s s o e ao p e d i d o de c a s a m e n t o , celebra-
va-se o n o i v a d o , e m c e r i m ô n i a p r e s e n c i a d a p o r p a r e n t e s , a m i g o s , vizinhos e empre-
gados. P o r vezes, c o m o v i m o s , n ã o era p r e c e d i d o d e n a m o r o , p o i s tratava-se de esco-
lha dos pais. E r a c o m u m fazer, n o dia d o n o i v a d o , u m a e x p o s i ç ã o do enxoval da
noiva, em geral a d m i r a d o c o m e s t a r d a l h a ç o n a p r e s e n ç a d a n o i v a e de seus familiares
e c o m f r e q ü ê n c i a a c e r b a m e n t e c r i t i c a d o mal se cruzava o p o r t ã o , na saída. Bebia-se,
c o m i a - s e , c o n t a v a m - s e m i l e u m m e x e r i c o s e se fazia u m a provisão de futricas para as
semanas vindouras.
Para o c a s a m e n t o , os dias preferidos e r a m as quintas-feiras e os sábados. Sexta-
feira, j a m a i s : era dia aziago. E m geral a c e r i m ô n i a era celebrada na presença das
famílias e dos a m i g o s , na igreja da p a r ó q u i a de u m dos noivos, por u m número de
padres c o r r e s p o n d e n t e às posses das famílias. O s filhos dos grandes proprietários rurais
e senhores de e n g e n h o casavam-se m u i t a s vezes nas casas dos pais. Até o advento da
R e p ú b l i c a , o c a s a m e n t o era u m ato e x c l u s i v a m e n t e religioso, pois n ã o existia casamen-
t o civil. E r a necessária a presença de duas t e s t e m u n h a s , mas este n ú m e r o podia ser
multiplicado q u a n d o havia m u i t o s amigos a h o m e n a g e a r . E r a c o m u m que entre esses
amigos fosse incluída u m a pessoa de c o n d i ç ã o social inferior, q u e podia ser um bom
artesão, u m a m i g o de cor o u u m e m p r e g a d o cujas qualidades fossem especialmente
apreciadas. P o r t r a d i ç ã o , a esposa podia conservar seu s o b r e n o m e , e alguns dos filhos
LIVRO III - A FAMILIA BAIANA
213

m u i t a s vezes o h e r d a v a m , o u o de algum parente q u e tivesse posição social de desta-


q u e , c o s t u m e q u e a c a r r e t a n ã o p o u c o s p r o b l e m a s para o h i s t o r i a d o r que tenta
r e c o n s t i t u i r a história das famílias baianas.

V i a g e m de l u a - d e - m e l a i n d a n ã o existia. F i n d a a c e r i m ô n i a e as c o m e m o r a ç õ e s
h a b i t u a . * , os n o . v o s iam para sua n o v a casa, o u para a dos pais de um deles Era
c o m u m , em s m a l de alegria, l i b e r t a r escravos em dia de c a s a m e n t o . S e g u n d o T h a l e s de
Azevedo, n o s é c u l o X I X o d o t e a i n d a era u m a c o n d i ç ã o imprescindível ao casamento
e era assegurado p e l o pai o u pelos i r m ã o s a f o r t u n a d o s . 3 3

N a s c i m e n t o s e r a m t a m b é m o c a s i ã o para grandes festas familiares, preparadas c o m


e s m e r o ao l o n g o d a g e s t a ç ã o . N e s s e p e r í o d o , a m u l h e r era s u b m e t i d a a um sem-
n ú m e r o d e ^interdições e r i t o s : grávida n ã o p o d i a passar e m b a i x o de u m a corda, pois
isso p o d i a " a t a r o s e u v e n t r e " e d i f i c u l t a r o p a r t o ; se enjoasse, devia t o m a r chá c o m
c a n e l a ; p a r a t e r u m m e n i n o , o casal devia m a t a r u m a g a l i n h a e deixar seu coração
i n t e i r o ; p a r a t e r u m a m e n i n a , d e v i a c o r t a r o c o r a ç ã o d a galinha em dois; barriga
r e d o n d a era m e n i n a ; b a r r i g a p o n t u d a , m e n i n o n a certa.

C h e g a d a a h o r a , a p a r t e i r a e as indispensáveis vizinhas experientes acorriam. Ser-


v i a m à p a r t u r i e n t e o v o s q u e n t e s , café e v i n h o d o P o r t o . D e p o i s d o n a s c i m e n t o , a
parteira se o c u p a v a p r i m e i r o d a m ã e , p o i s , s e g u n d o a t r a d i ç ã o "se u m recém-nascido
m o r r e r , está m o r t o : é u m a n j o a m a i s j u n t o d e D e u s " . D e p o i s do parto vinha o
resguardo, e a m u l h e r d e v i a s e g u i r u m a d i e t a estrita: o p r a t o r e c o m e n d a d o era galinha,
e até as escravas q u e d a v a m à luz s e g u i a m esse p r e c e i t o . A s c o m i d a s proibidas forma-
v a m u m a lista i n t e r m i n á v e l : c o u v e , a b ó b o r a , m a x i x e , f r u t a - p ã o , m e l ã o , abacaxi, cozido
de c a r n e , f e i j ã o , c a r n e d e p o r c o , b a n a n a . . . S e o r e c é m - n a s c i d o sobrevivia, os que dele
c u i d a v a m n u n c a se e s q u e c i a m d e l h e p i n g a r n o s o l h o s u m a s gotas de l i m ã o , providen-
ciar para q u e fosse m o r d i d o p o r u m a pessoa de belos dentes, e, p o r fim, pôr uma
m o e d a g r a n d e n a á g u a d o p r i m e i r o b a n h o , para q u e fosse rico. A criança recebia
t a m b é m u m a m e d a l h a d a V i r g e m M a r i a , a c o m p a n h a d a de u m a figa.
Esperava-se q u e a c r i a n ç a crescesse u m p o u c o para batizá-la, o que dava ensejo a
nova f e s t a n ç a para a f a m í l i a e os a m i g o s . G e r a l m e n t e os padrinhos eram escolhidos
pelos pais. Esses l a ç o s ficavam registrados nos d o c u m e n t o s oficiais: raros são os testa-
m e n t o s e i n v e n t á r i o s post mortem q u e n ã o m e n c i o n a m os afilhados d o finado. Parece
t a m b é m m u i t o c l a r o q u e os pais p r o c u r a v a m escolher os padrinhos de seus filhos
n u m a c a m a d a social mais elevada q u e a sua; n o caso dos q u e já eram das camadas
superiores a e s c o l h a recaía s o b r e pessoas de especial prestígio e influência. Era uma
escolha decisiva, p o r q u e os laços de a p a d r i n h a m e n t o não diziam respeito apenas ao
afilhado; e r a m , s i m u l t a n e a m e n t e , laços de c o m p a d r i o , que podiam ser proveitosos
para toda a f a m í l i a . Assim sc reforçavam solidariedades sociais, para além do contexto
familiar, p r o l o n g a n d o as relações. P o d i a ser mais interessante ter um padrinho in-
fluente q u e u m pai r i c o ; q u a n d o se tratava de alguém que pertencia a uma camada
superior da s o c i e d a d e , era u m a relação q u e valia o u r o . N e m todos, porém, podiam ter
padrinhos e n t r e o s m a i s influentes, e isto se aplica em especial ao humildes, alforriados
214

o u escravos: para eles, tratava-se de e s c o l h e r alguém q u e tivesse alguns bens e gozasse


de prestígio m o r a l na sua p r ó p r i a c a t e g o r i a s o c i a l . 3 4
A o q u e t u d o i n d i c a , o apadri-
n h a m e n t o c o m o m e i o d e a s c e n s ã o social só d e s e m p e n h a v a papel i m p o r t a n t e entre a
p o p u l a ç ã o livre e b r a n c a , o u e n t r e a d e c o r , q u a n d o j á s o l i d a m e n t e estabelecida na
sociedade.
N u m o u t r o a t o , q u e se seguia i m e d i a t a m e n t e a o b a t i s m o , podia-se apelar para
alguém mais h u m i l d e . T r a t a v a - s e da ' a p r e s e n t a ç ã o a N o s s a S e n h o r a ' , em q u e a criança
era posta s o b a p r o t e ç ã o d a V i r g e m M a r i a . A s s i m , a l é m dos p a d r i n h o s de batismo,
havia a ' m a d r i n h a de a p r e s e n t a ç ã o ' , q u e p o d i a ser e s c o l h i d a até e n t r e os agregados,
escravos alforriados, u m a v i z i n h a s o l í c i t a o u u m p a r e n t e p o b r e . E r a u m a prova de
a m i z a d e e c o n s i d e r a ç ã o q u e p e r m i t i a c o n q u i s t a r a d e d i c a ç ã o de pessoas, alargando o
c í r c u l o familiar. P o r o c a s i ã o d o c r i s m a , c h e g a d a à i d a d e d a razão, p a d r i n h o s o u madri-
nhas p o d i a m ser e s c o l h i d o s e n t r e o s m a i s h u m i l d e s .

A n i v e r s á r i o s e f o r m a t u r a s e r a m t a m b é m o c a s i õ e s d e festas nas f a m í l i a s abastadas,


q u e a i m p r e n s a d a é p o c a n ã o d e i x a v a d e r e p o r t a r . O s p o b r e s , q u e n ã o festejavam seus
próprios aniversários, e r a m c o n v i d a d o s p a r a esses f e s t e j o s , q u a n d o t i n h a m a l g u m laço
c o m u m a f a m í l i a d e posses. D i p l o m a r - s e n u m a e s c o l a s u p e r i o r era, para o jovem
b a i a n o , a c o n t e c i m e n t o t ã o i m p o r t a n t e q u a n t o c a s a r - s e . M u i t o s escravos f o r a m liber-
tados n o século X I X e m h o m e n a g e m a o s u r g i m e n t o de m a i s u m ' d o u t o r ' .

Q u a n t o à m o r t e , t o d o s a t e m i a m nessa c i d a d e e m q u e as c o n d i ç õ e s de higiene
eram precárias e as e n d e m i a s e e p i d e m i a s g r a s s a v a m . O í n d i c e de m o r t a l i d a d e infantil,
já o c o n s t a t a m o s , era c a t a s t r ó f i c o . I g n o r o a e x p e c t a t i v a de v i d a da p o p u l a ç ã o adulta,
talvez e n t r e 4 5 e 5 0 a n o s . U m a c o i s a é c e r t a : a m o r t e a t e r r o r i z a v a e estava sempre
presente. T o d o s usavam figas, a m u l e t o q u e , s e g u n d o se a c r e d i t a v a , c o n j u r a v a essa
fatalidade. O s padres, e m suas o r a ç õ e s e h o m i l i a s , n ã o se c a n s a v a m de t r a n s m i t i r aos
baianos a i m a g e m de u m D e u s v i n g a t i v o e c i o s o , e m d e t r i m e n t o daquele T o d o -
M i s e r i c o r d i o s o d o N o v o T e s t a m e n t o . M u i t o c e d o , o b a i a n o era p r e p a r a d o para en-
frentar a m o r t e , q u e o p o r i a f a c e a face c o m o C r i a d o r . E s s a p r e p a r a ç ã o envolvia duas
etapas: p r i m e i r o , o ingresso n u m a das n u m e r o s a s i r m a n d a d e s , o q u e dava a segurança
de ter um e n t e r r o d e c e n t e ; d e p o i s , a r e d a ç ã o d o t e s t a m e n t o , expressão das últimas
vontades, c m q u e as p r e o c u p a ç õ e s de o r d e m religiosa s u p e r a v a m d e m u i t o as de ordem
familiar.

Eram m u i t o s , de f a t o , os b a i a n o s q u e redigiam seu t e s t a m e n t o " n o gozo de ótima


saúde, c o m a m e s m a m e n t e sadia q u e D e u s [lhe] d e u , i g n o r a n d o a hora que Deus
N o s s o S e n h o r haveria por b e m c h a m á - f l o ] " . Frases desse g ê n e r o eram geralmente
seguidas por toda u m a série de i n v o c a ç õ e s , tais c o m o : " R e c o m e n d o m i n h ' a l m a ao
T o d o - P o d e r o s o , que a c r i o u , c a J e s u s C r i s t o seu F i l h o Ú n i c o , m e u S e n h o r , que a
resgatou c o m seu precioso sangue, à V i r g e m M a r i a , Nossa S e n h o r a m u i t o santa, a meu
santo padroeiro, a m e u a n j o da guarda c p e ç o a todos os o u t r o s santos q u e intercedam
por m i m agora e na hora de m i n h a m o r t e . " O u a i n d a : " R e c o m e n d o m i n h ' a l m a à
Santíssima T r i n d a d e , q u e a c r i o u , rogando à santíssima M ã e de D e u s , a m e u anjo da
L I V R O I I I - A FAMÍLIA BAIANA 215

guarda c s a n t o p a d r o e i r o e a t o d o s os s a n t o s e santas da c o r t e celestial que i n t e r c e d a m


p o r m i m a g o r a e q u a n d o m i r u Y a l m a d e i x a r m e u c o r p o , para q u e , c o m o u m verdadeiro
c r i s t ã o , eu possa e s p e r a r ser salvo graças aos m é r i t o s desse m e s m o F i l h o Ú n i c o de
D e u s " . Hm s e g u i d a , o t e s t a m e n t o listava as i r m a n d a d e s religiosas a q u e p e r t e n c i a o
testador, pois e m t o d a s as classes s o c i a i s — inclusive as c a m a d a s mais h u m i l d e s , c o m o
a dos a l f o r r i a d o s — era c o m u m o i n g r e s s o de u m a pessoa e m várias delas. D e s c o b r i
algumas q u e p e r t e n c i a m a o i t o .

A t é 1 8 6 0 , era r a r o q u e se d e i x a s s e m à f a m í l i a as d e c i s õ e s s o b r e o e n t e r r o , e mais
raro a i n d a d e s e j a r - s e u m e n t e r r o s i m p l e s , s e m p o m p a ; para o p e r í o d o de 1 7 9 0 - 1 8 2 6 ,
e n t r e c e m t e s t a d o r e s e x - e s c r a v o s s ó 2 1 % dos h o m e n s e 2 4 % das m u l h e r e s deixaram
suas f a m í l i a s d e c i d i r s o b r e s e u s e p u l t a m e n t o . M a s , se f i z e r m o s o c á l c u l o para o p e r í o d o
de 1 8 6 3 - 1 8 9 0 , e n t r e c e m t e s t a d o r e s , s e m p r e e x - e s c r a v o s , 6 8 % dos h o m e n s e 6 4 % das
m u l h e r e s n ã o m e n c i o n a r a m a m a n e i r a c o m o d e s e j a v a m ser s e p u l t a d o s o u deixaram
isso a c r i t é r i o d a f a m í l i a . 3 5
N o s t e s t a m e n t o s d o s p o b r e s , b o a p a r t e dos p a r c o s bens que
p o s s u í a m era d e s t i n a d a a o p a g a m e n t o das m u i t a s missas a s e r e m rezadas nos meses ou
anos s u b s e q ü e n t e s à m o r t e . A t é os a f r i c a n o s r e c é m - s a í d o s d a e s c r a v i d ã o q u e r i a m um
enterro aparatoso.

U m e x e m p l o é D a m i a n a Vieira, africana da C o s t a da M i n a , ganhadeira, que


c o m p r a r a sua a l f o r r i a p o r c e m m i l réis.. E m 1 8 0 5 fez seu t e s t a m e n t o , o n d e a p a r e c e m
as sete i r m a n d a d e s a q u e p e r t e n c i a : N o s s a S e n h o r a d o R o s á r i o das P o r t a s d o C a r m o ,
B o m J e s u s das N e c e s s i d a d e s e da R e d e n ç ã o , S ã o B e n e d i t o de S ã o F r a n c i s c o , S a n t a
Ifigênia de S ã o F r a n c i s c o , N o s s a S e n h o r a d o R o s á r i o de S a n t a n a , N o s s a S e n h o r a do
R o s á r i o da C o n c e i ç ã o d a P r a i a e B o m J e s u s d o s M a r t í r i o s . 3 6
P e d i a q u e seu c o r p o fosse
enterrado c o m o h á b i t o d o seráfico S ã o Francisco e o féretro a c o m p a n h a d o pelo
r e v e r e n d í s s i m o p á r o c o , s e u s a c r i s t ã o e m a i s o i t o p a d r e s . S e u c o r p o deveria ser t r a n s -
p o r t a d o n o c a i x ã o d a I r m a n d a d e d e N o s s a S e n h o r a d o R o s á r i o das P o r t a s d o C a r m e l o
e seguido p o r t o d a s as i r m a n d a d e s a q u e p e r t e n c i a . D e i x o u t a m b é m u m a e s m o l a de 12
réis para c a d a u m d o s 1 2 p o b r e s q u e d e v i a m t r a n s p o r t a r o c o r p o até a Igreja d o
R o s á r i o de N o s s a S e n h o r a das p o r t a s d o C a r m o , o n d e q u e r i a ser e n t e r r a d a . O r d e n a v a
q u e fossem rezadas seis missas d e c o r p o p r e s e n t e pela a l m a de seu finado m a r i d o , seis
pela de sua filha, t a m b é m f a l e c i d a , e q u a t r o p o r t o d a s as pessoas c o m q u e lidara "seja
para c o m p r a r , seja para v e n d e r " . C o m o l i n i c o b e m , d e i x o u u m a escrava avaliada e m
5 0 . 0 0 0 réis c m ó v e i s s i n g e l o s , d e c l a r a d o s d e p o u c o valor.

J o a q u i m de S ã o J o s é escreveu seu t e s t a m e n t o c m 1 8 5 7 . Era u m africano de mais


de sessenta a n o s , c x - e s c r a v o de S e r a f i m G o n ç a l v e s , viúvo em primeiras núpcias de
Rosa B á r b a r a — africana q u e cie libertou para desposar — e casado em segundas
núpcias c o m M a r i a d o B o n f i m , t a m b é m africana, libertada pela filha do próprio
J o a q u i m , d o p r i m e i r o c a s a m e n t o . N o t e s t a m e n t o , declarou ser i r m ã o das Confrarias
de S ã o B e n e d i t o e de S ã o V i c e n t e Ferrer, a m b a s ligadas ao c o n v e n t o dos franciscanos.
Pediu q u e lhe fizessem o e n t e r r o " o mais d e c e n t e possível" e e n c o m e n d o u 2 4 missas
cantadas por sua a l m a , mais 2 4 pela a l m a d a primeira m u l h e r . À filha, deixou uma casa
216 BAHIA, S É C U L O XIX

na rua de Baixo e " q u a t r o f i l h i n h a s " — q u e sua segunda mulher tivera antes do ca-
s a m e n t o — que deveriam ser "batizadas e educadas da maneira mais apropriada pela
dita filha V e r í s s i m a " . Assim, as filhas que M a r i a do B o n f i m tivera quando ainda
escrava, fora dos laços m a t r i m o n i a i s , não foram libertadas, mas dadas à filha legítima
para s e r v i - l a . 37

E m 1 8 4 6 , o n o r t e - a m e r i c a n o T h o m a s E w b a n k escrevia: " O c o r p o [do defunto]


fica sempre exposto na peça principal da casa; r a r a m e n t e é velado por mais de 36
horas e, muitas vezes, m e n o s q u e as 2 4 impostas pela lei. S e o finado for casado, um
pano preto o r n a d o c o m fios dourados é p e n d u r a d o na porta de entrada; se for celiba-
tário, as cores são lilás e d o u r a d o ; se for c r i a n ç a , azul e d o u r a d o . O s casados tinham
sempre caixões pretos, a m e n o s q u e fossem j o v e n s , caso em que eram azul e verme-
lho. O s religiosos eram levados à sepultura n u m c a i x ã o q u e ostentava u m a grande
cruz, o que não era p e r m i t i d o aos leigos (...). A m a n t e s de belos trajes, os brasileiros
eram sempre enterrados c o m suas m e l h o r e s r o u p a s , e x c e t o q u a n d o algum hábito ou
roupa especial era preferido p o r razões religiosas. As m u l h e r e s casadas eram envoltas
em lençóis negros e t i n h a m os b r a ç o s c r u z a d o s , c a d a m ã o p o u s a n d o n o braço oposto.
As solteiras eram envoltas em l e n ç ó i s b r a n c o s , e n f e i t a d o s de guirlandas de flores bran-
cas, as mãos j u n t a s em p o s i ç ã o de o r a ç ã o . H o m e n s e rapazes t i n h a m as mãos cruza-
das n o p e i t o . O s o c u p a n t e s de cargos oficiais e r a m e n t e r r a d o s c o m suas vestimentas
de f u n ç ã o , os padres c o m suas b a t i n a s , os s o l d a d o s c o m farda, os m e m b r o s das con-
frarias c o m as i n d u m e n t á r i a s próprias. C r i a n ç a s de até dez o u doze anos eram vesti-
das c o m h á b i t o s religiosos o u c o m o santas, c o m o a n j i n h o s o u c o m o m a d o n a s . Meni-
nos p e q u e n o s , por e x e m p l o , e r a m vestidos de S ã o J o ã o , c o m u m a p l u m a e um livro
nas m ã o s , ou de S ã o J o s é , s e g u r a n d o u m p e q u e n o b a s t ã o g u a r n e c i d o de flores. Meni-
n o c h a m a d o F r a n c i s c o o u A n t ô n i o e m geral era e n t e r r a d o c o m roupa de m o n g e . Se o
n o m e era M i g u e l , vestiria u m saiote e u m a t ú n i c a , teria u m capacete dourado e uma
das mãos e m p u n h a n d o u m a espada. As crianças eram consideradas anjos, e as mães
se alegravam de vê-las subir aos céus, preservadas das t e n t a ç õ e s e pecados que encon-
trariam na T e r r a . " 3 8

N a visita q u e fez à B a h i a em 1 8 6 0 , M a x i m i l i a n o , p r í n c i p e d o Império Austro-


Húngaro — e futuro i m p e r a d o r d o M é x i c o — , ao passar diante do cemitério do
C a m p o S a n t o viu u m c o r t e j o f ú n e b r e n o qual havia " u m a carreta dourada, atrelada a
quatro cavalos pretos, c o m um dossel de veludo cheio de franjas douradas e plumas de
avestruz pretas. Na rica boléia estava s e n t a d o , enfeitado c o m o um macaco, um negro
velho em libré espanhola. N o carro triunfal havia uma cobertura preta e dourada que,
visivelmente, nada c o b r i a . Atrás seguia um corso de c o c h e s . Dessa vez tinham despa-
chado um ricaço, c os herdeiros voltavam a galope para casa, para o banquete alegre,
para a boa sesta, feliz e d e s p r e o c u p a d a . " 39

O espetáculo e o esplendor do cerimonial que cercava os enterros eram muitas


vezes iguais para ricos c pobres, brancos ou negros, alforriados ou livres. M a s se tais
exibições de fausto e p o m p a eram solicitadas por gente que muitas vezes só escrevia
LIVRO I I I - A FAMÍLIA BAIANA 21-

testamenco para c o n s i g n a r esses desejos, havia t a m b é m p o b r c s - c o i t a d o s , cujos cor-


pos eram c o n d u z i d o s f u r t i v a m e n t e à sua ú l t i m a m o r a d a , graças à caridade pública.
O r o m a n c i s t a X a v i e r M a r q u e s d e i x o u u m a b o a descrição do enterro de um desses
infelizes: " D a rua Baixa surge o c o r t e j o f ú n e b r e de u m e n t e r r o de b r a ç o , c o m p o s t o
de u m a confraria de negros e n v o l t o s e m capas da c o r de j u n q u i l h o s e de negras que
levam na c a b e ç a , g u a r n e c i d o s de flores, os tabuleiros c o m que v e n d e m frutas e le-
gumes na rua. u m a delas s e g u r a n d o até u m b a n q u i n h o e m q u e se podia pousar o
caixão para descansar .

O rato é q u e a ' b o a m o r t e ' estava n o c e n t r o das p r e o c u p a ç õ e s de t o d o s os baianos.


' M o r r e r b e m ' era o ú l t i m o dever social d o h o m e m . O c o r p o era velado pela família, os
parentes, os v i z i n h o s . Q u a n d o era levado para igreja de p a r ó q u i a , o d o n o d a casa e m
que fora veiado j o g a v a u m c o p o d ' á g u a n a d i r e ç ã o d o c o r t e j o , d i z e n d o : " E u te c o n j u r o ,
que D e u s te r e c e b a ! " D e p o i s , t o d a a casa era l i m p a , para q u e o d e f u n t o n ã o voltasse.
Após o e n t e r r o , a f a m í l i a o f e r e c i a , e m h o m e n a g e m ao finado, um lauto banquete a
i 41
todos os p r e s e n t e s .

A QUALIDADE DAS RELAÇÕES SOCIAIS

C a s a m e n t o s , n a s c i m e n t o s , a n i v e r s á r i o s , f o r m a t u r a s e e n t e r r o s e r a m p o r t a n t o , na Bahia,
a c o n t e c i m e n t o s q u e u l t r a p a s s a v a m os l i m i t e s da vida familiar. T o r n a v a m - s e p ú b l i c o s ,
c o m p a r t i l h a d o s p o r t o d o s o s a m i g o s e v i z i n h o s . N a alegria e na tristeza, os laços de
amizade se e s t r e i t a v a m , as s o l i d a r i e d a d e s se c o n s o l i d a v a m . Parentes e clientes estavam
sempre p r e s e n t e s , p o r h u m i l d e s q u e f o s s e m eles p r ó p r i o s o u a família q u e ria ou
chorava.

Essa rede de a p o i o m ú t u o a m e n i z a v a o peso das responsabilidades. N ã o raro u m


chefe de família e n t r e g a v a a e d u c a ç ã o de filhos m e n o r e s a escravos de sua c o n f i a n ç a ,
libertados p o r c l á u s u l a t e s t a m e n t á r i a . D e p r o t e g i d o , o escravo passava a protetor — e
até a provedor — da f a m í l i a q u e o e d u c a r a e, m u i t a s vezes, o fizera a p r e n d e r um ofício.
U m a c o n t í n u a t r o c a d c serviços e r e s p o n s a b i l i d a d e s , n u m espírito de solidariedade que
respeitava t e n u e m e n t e barreiras sociais i m p o s t a s p o r lei, m a n t i n h a aberta e flexível essa
sociedade. E r a r e l a t i v a m e n t e fácil passar de escravo a h o m e m livre, 'assimilar-se ,
adquirir nova p o s i ç ã o , tornar-se h o m e m o u m u l h e r na plena acepção da palavra,
assumindo todas as responsabilidades de c h e f e de família.
A sociedade b a i a n a abria u m s e m - n ú m e r o de c a m i n h o s para a assimilação e tinha
a capacidade d c apagar certas diferenças raciais e até sociais, dois planos em que a
população m e s t i ç a d a devia 'assimilar-se' para alcançar a c o m p l e t a integração. U m tipo
de assimilação podia preceder o o u t r o . A assimilação social era obtida por vezes em
etapas, via ' b r a n q u e a m e n t o ' , pelo c a s a m e n t o o u c o a b i t a ç ã o c o m parceiro de c o r mais
clara. Havia t a m b é m assimilações rápidas c c o m p l e t a s n u m a única geração: um grande
sucesso material permitia galgar a escala social sem passar pelo b r a n q u e a m e n t o ' . M a s
BAHIA, S É C U L O XIX

era o c o r r ê n c i a rara. O grande salto para a ascensão social era a alforria, e o ex-escravo
podia passar m u i t o t e m p o m a r c a n d o passo na c a m a d a inferior da hierarquia s o c i a l . 42

J á na s e g u n d a geração, e s o b r e t u d o na t e r c e i r a , se tivesse havido m e s t i ç a g e m , se os


traços da raça negra tivessem s i d o a t e n u a d o s e se o sucesso material e social fosse
n o t ó r i o , origens negras p o d i a m ser c o m p l e t a m e n t e e s q u e c i d a s . 43
Aliás, q u a n t o maior
o êxito e c o n ô m i c o e social, m e n o s l e m b r a d a s e r a m as o r i g e n s .
É e v i d e n t e q u e esse p r o c e s s o estava s u j e i t o a n o r m a s ditadas ' d e c i m a ' , isto é,
fundadas n u m m o d e l o b r a n c o q u e e n v o l v i a relações de t i p o patriarcal, c o m tensões
e n t r e d o m i n a d o r e s e d o m i n a d o s , p r o t e t o r e s e p r o t e g i d o s . R e l a ç õ e s de dependência
p e r m e a v a m toda a escala social. O c o m e r c i á r i o q u e quisesse p r o g r e d i r e m seu ramo
p u n h a - s e sob a p r o t e ç ã o d o p a t r ã o ; o f u n c i o n á r i o , p a r a a s c e n d e r n o serviço público,
d e p e n d i a dos favores de a l g u é m d e p o s i ç ã o m a i s elevada, q u e r e t r i b u í a c o m sua fide-
lidade; o artesão q u e t r a b a l h a v a p a r a u m e m p r e i t e i r o c u i d a v a de fazer u m b o m traba-
l h o , q u e l h e granjeasse a c o n f i a n ç a d o p a t r ã o ; o s e n h o r de e n g e n h o d e p e n d i a do
n e g o c i a n t e q u e , a o v e n d e r sua p r o d u ç ã o , a j u d a v a - o a m a n t e r sua p o s i ç ã o social; o
político q u e dava as cartas n o seu d i s t r i t o s e n t i a - s e m u i t o m a i s c o m p r o m e t i d o com
o u t r o s p o l í t i c o s — os q u e p a r t i c i p a v a m das t o m a d a s de d e c i s ã o , n a c a p i t a l — que com
seu e l e i t o r a d o . S ã o c o m p o r t a m e n t o s q u e , e m ú l t i m a a n á l i s e , g e r a v a m laços de solida-
riedade q u e i n t e r l i g a v a m o s h a b i t a n t e s d a c i d a d e p a r a a l é m d o s l i m i t e s t a c a n h o s im-
postos pela c a t e g o r i a social de o r i g e m , a c o r o u o e s t a t u t o j u r í d i c o .

O grande e n g a n o d a m a i o r p a r t e dos h i s t o r i a d o r e s s o b r e a q u a l i d a d e das relações


sociais e m S a l v a d o r p r o v é m de suas f o n t e s , l a r g a m e n t e baseadas nas descrições feitas
p o r viajantes e s t r a n g e i r o s . N ã o p e r t e n c e n d o ao m e i o , eles e m geral n a d a mais viam
q u e a e s p u m a das o n d a s q u e a g i t a v a m m a i s p r o f u n d a m e n t e as relações sociais, deixan-
do-se iludir p o r u m a a p a r e n t e i n t e g r a ç ã o racial e, s o b r e t u d o , social. C i t o alguns de-
p o i m e n t o s , t a n t o do i n í c i o c o m o d o fim d o p e r í o d o q u e e s t u d o .

P o r volta de 1 8 0 0 , o inglês L i n d l e y c o n f e s s o u sua surpresa a o c o n s t a t a r a insensa-


tez das hierarquias sociais b a i a n a s : " A F r a n ç a , e m sua fase de m a i s c o m p l e t a revolução
e igualdade dos c i d a d ã o s , j a m a i s a e x c e d e r i a a esse r e s p e i t o . V ê - s e , a q u i , o empregado
b r a n c o conversar c o m o p a t r ã o e m t e r m o s da m a i o r igualdade e cordialidade, discutir-
lhe as ordens e q u e s t i o n a r a seu r e s p e i t o , se s ã o c o n t r á r i a s à o p i n i ã o q u e julgue mais
fundada. E o superior o r e c e b e de b o a cara, c o n c o r d a n d o f r e q ü e n t e m e n t e c o m ele. O
sistema n ã o fica nisso, mas e s t e n d e - s e aos m u l a t o s e até m e s m o aos negros (...)•
A t r i b u o essa p r o m i s c u i d a d e à i g n o r â n c i a geral q u e i m p r e g n a o país, pois nenhum
povo tem pretensões c mais hauteur o u reserva d o q u e o brasileiro, ao passo que, na
realidade, m e n o s a possui c m sua própria s o c i e d a d e . " 4 4

É u m c o m e n t á r i o c u r i o s a m e n t e c o n t r a d i t ó r i o . Parece q u e Lindley tenta opor o


c o m p o r t a m e n t o coletivo aos c o m p o r t a m e n t o s individuais: a sociedade seria em geral
igualitária e cordial, ao passo q u e as reações dos indivíduos seriam marcadas pela
altivez e a reserva. O r a , Lindley dá precisamente u m e x e m p l o de relação pessoa a
pessoa. Q u a n d o e q u e m dava mostras da altivez e da reserva que ele postula c o m o
LIVRO III - A FAMÍLIA BAIANA 219

traços d o povo baiano? Estariam reservadas aos estrangeiros? O u tratar-se-ia de u m a


duplicidade de c o m p o r t a m e n t o : cordial e igualitário e n q u a n t o as normas sociais se
m a n t i n h a m , altivo e reservado q u a n d o estavam ameaçadas? S ó u m a análise dos m e c a -
nismos de c o n t r o l e das relações sociais permitiria elucidar estas questões.
V i n t e a n o s d e p o i s , os alemães S p i x e M a r t i u s escreveram: " N o t a m - s e , sobretudo,
m e s m o nas c a m a d a s superiores da sociedade, feições que fazem lembrar a mistura
c o m índios e negros, e tal a c o n t e c e p r i n c i p a l m e n t e em algumas das mais antigas
famílias da burguesia q u e se o r g u l h a m , c o m razão, de sua o r i g e m , considerando-se
brasileiros naturalizados (...). N ã o o b s t a n t e , nota-se o p r e c o n c e i t o c o n t r a essa origem
mestiça, pelo f a t o q u e m u i t o s p r o c u r a m declarar, m e s m o c o m d o c u m e n t o s legais,
c o m o , por e x e m p l o , n o s registros de b a t i s m o , a c o r de sua família, de u m a tonalida-
de que d i f i c i l m e n t e lhes p o d e r á r e c o n h e c e r o j u l g a m e n t o imparcial d o estrangeiro.
A d e m a i s , as t o n a l i d a d e s m a i s leves da c o r n ã o fazem perder o prestígio na sociedade;
há pessoas de c o r d i s t i n t a m e n t e m i s t a , s e m q u e isso cause estranheza, e s o m e n t e para
o estatístico será difícil d e t e r m i n a r o l i m i t e e n t r e os de c o r e os b r a n c o s legítimos, e
contar-lhes o n ú m e r o . " 4 5

A i n t e g r a ç ã o racial, m a i s q u e a social, atraiu a a t e n ç ã o desses viajantes, e m b o r a


fossem f e n ô m e n o s t ã o i n t e r d e p e n d e n t e s . D e f a t o , a descrição põe e m primeiro plano
o c o m p l e x o racial d a q u e l e s b a i a n o s q u e t i n h a m c o n s e g u i d o ascender e tentavam,
d e s e s p e r a d a m e n t e , passar p o r b r a n c o s , o u , pelo m e n o s , p o r d e s c e n d e n t e s de índios.
Era m o t i v o de o r g u l h o ser b r a s i l e i r o , s e m d ú v i d a , m a s desde q u e se pudesse provar que
não se t i n h a traços d o p e c a d o o r i g i n a l d a escravidão. T r i s t e a situação dos q u e tenta-
vam a t o d o p r e ç o passar p o r b r a n c o s , de s a n g u e p u r a m e n t e e u r o p e u . T a l v e z fosse essa
a origem da a m b i g ü i d a d e q u e m a r c a v a as relações sociais, ora abertas, ora rígidas, ao
sabor das c i r c u n s t â n c i a s . M o s t r a r altivez e reserva — as características notadas por
Lindley — c o m os e s t r a n g e i r o s n ã o seria reflexo do desejo de mostrar que se era igual
ou m e s m o s u p e r i o r a eles?

A i n d a s o b r e a s o c i e d a d e b a i a n a , W e t h e r e l escreveu: " N ã o existem altas classes


fechadas de s o c i e d a d e — q u a l q u e r q u e seja o lugar o n d e se vai, n o t a - s e q u e todos os
tipos de pessoas são a c e i t o s n o m e s m o pé de ' c a m a r a d a s m u i t o b e m ' . Nas recepções
e n c o n t r a m - s c , e n t r e a l g u m a s das m e l h o r e s pessoas, visitas q u e , na Inglaterra, seriam
corridas da s o c i e d a d e r e s p e i t á v e l . * 46
Q u e m seriam essas pessoas " d e todos os tipos"?
G e n t e pobre o u g e n t e c u j a pele escura a riqueza fazia esquecer?
J á no fim d o século X I X , o u t r o a l e m ã o , D e t m e r , deu o seguinte d e p o i m e n t o :
" M a i s q u e t u d o i m p r e s s i o n a que n o Brasil, apesar da sensível diferença q u a n t o à
propriedade, n ã o existe p r a t i c a m e n t e n e n h u m p r e c o n c e i t o social. R i c o s e pobres,
instruídos c n ã o instruídos, r e l a e i o n a m - s c uns c o m os outros d o m o d o mais cordial.
F r e q ü e n t e m e n t e , o q u e sobressai dc maneira mais louvável é o r e l a c i o n a m e n t o pura-
m e n t e h u m a n o ; n e n h u m o r g u l h o de um lado, e, do o u t r o , n e n h u m a desagradável
manifestação de s e r v i l i s m o . " 47
D e t m e r chega a acrescentar q u e os alemães, deste p o n t o
dc vista, deviam t o m a r os brasileiros c o m o m o d e l o !
As muitas festas — familiares, profanas, religiosas — tonificavam as relações
sociais. Ruas e mercados eram locais de encontros cotidianos. Ninguém vivia enclau-
surado. A comunicação livre, natural, no seio das famílias, tecia a trama de laços
sólidos e efetivos. Era em grande parte graças à família — no sentido mais amplo do
termo — que o baiano lutava peia vida e tentava contornar segregações e preconceitos.
Era com seu apoio que buscava progredir na vida e enfrentar a morte. As famílias
podiam por vezes ser sufocantes, mas sempre representavam um amparo. Eram previ-
dentes e, em geral, mais conciliadoras do que pareciam. C o m o Proteu, mudavam de
forma segundo as circunstâncias: para melhor ajudar os adultos ou proteger as crian-
ças, reparar fraquezas humanas ou adaptar-se aos problemas criados por uma socieda-
de em que a extrema diversidade das cores de pele, das fortunas e das capacidades
podia engendrar tensões catastróficas.
L I V R O IV

O ESTADO: ORGANIZAÇÃO
E EXERCÍCIO DOS PODERES
CAPÍTULO 13

A HERANÇA: ORGANIZAÇÃO DO ESTADO


NO FIM DO PERÍODO COLONIAL

P e l o m e n o s n a a p a r ê n c i a , a a d m i n i s t r a ç ã o c o l o n i a l p o r t u g u e s a era m a i s c e n t r a l i z a d o r a
q u e a e s p a n h o l a . N o i n í c i o d o s é c u l o X I X , as c o l o n i a s e s p a n h o l a s se d i v i d i a m e m
q u a t r o v i c e - r e i n a d o s e q u a t r o c a p i t a n i a s g e r a i s , q u e , e m c i n q ü e n t a a n o s , se t r a n s f o r -
m a r a m e m d e z e s s e t e p a í s e s i n d e p e n d e n t e s . N a m e s m a é p o c a , o B r a s i l estava d i v i d i d o
em d e z o i t o c a p i t a n i a s g e r a i s q u e p e r m a n e c e r a m u n i d a s d e p o i s d a I n d e p e n d ê n c i a . O
c a p i t ã o - g e r a l d e c a d a c a p i t a n i a era n o m e a d o d i r e t a m e n t e pela C o r o a p o r t u g u e s a e
t i n h a q u e p r e s t a r c o n t a s a ela p e l o q u e a c o n t e c i a n o t e r r i t ó r i o q u e a d m i n i s t r a v a . N o
fim d o s é c u l o X V I I I , o v i c e - r e i e s t a v a e s t a b e l e c i d o n o R i o de J a n e i r o , m a s só exercia
sua a u t o r i d a d e s o b r e as c a p i t a n i a s d o R i o d e J a n e i r o , S ã o P a u l o e S a n t a C a t a r i n a e a
c o l ô n i a d o S a c r a m e n t o . M e s m o após^a c h e g a d a d a f a m í l i a real ao B r a s i l , e m 1 8 0 8 , o
Pará e o M a r a n h ã o c o n t i n u a r a m a t r a t a r c o m L i s b o a , o q u e e x p l i c a a resistência q u e
opuseram à Independência do Brasil.

Essa s i t u a ç ã o foi d e s c r i t a p o r S a i n t - H i l a i r e , q u e v i s i t o u o país n o fim desse p e r í o d o :


" C a d a c a p i t a n i a p o s s u í a seu p e q u e n o t e s o u r o ; a c o m u n i c a ç ã o e n t r e elas era difícil e
f r e q ü e n t e m e n t e elas a t é i g n o r a v a m r e c i p r o c a m e n t e sua e x i s t ê n c i a . N ã o havia u m c e n t r o
c o m u m n o B r a s i l : e x i s t i a u m c í r c u l o i m e n s o , c u j o s raios c o n v e r g i a m para m u i t o longe
da c i r c u n f e r ê n c i a . " 1
C o n s e q ü ê n c i a : c a d a c a p i t ã o - g o v e r n a d o r - g e r a l parecia ser um s e n h o r
em sua casa, e x e r c e n d o p l e n a a u t o r i d a d e s o b r e a J u s t i ç a , as F i n a n ç a s e o E x é r c i t o .

JUSTIÇA E FINANÇAS

O m a g i s t r a d o m a i s i m p o r t a n t e era o o u v i d o r - g e r a l , r e s i d e n t e na capital d e cada c a p i -


tania e s u p e r i o r h i e r á r q u i c o de o u v i d o r e s civis e c r i m i n a i s (magistrados superiores, o u
d e s e m b a r g a d o r e s , q u e d e l i b e r a v a m n o T r i b u n a l de R e l a ç ã o , de segunda i n s t â n c i a ) , de
ouvidores d e c o m a r c a s e distritos (que t a m b é m e x e r c i a m o o f í c i o de corregedores e m

223
BAHIA, SÉCULO X I X
224

causas civis e criminais) e de numerosos juízes, entre os quais os 'juízes de fora , que
geralmente presidiam as câmaras m u n i c i p a i s e eram provedores da R e a ! Fazenda (en-
carregados dos testamentos, dos bens dos d e f u n t o s , dos ausentes e dos ó r f ã o s ) . 2

Até a declaração de I n d e p e n d ê n c i a , só a B a h i a , o R i o de J a n e i r o e o Maranhão


tinham T r i b u n a i s de Relação, presididos pelo c a p i t ã o - g o v e r n a d o r - g e r a l . P o r volta de
3

1 8 0 0 , a Bahia tinha cerca de 8 5 juízes de p r i m e i r a e segunda instâncias, residentes em


Salvador, alguns dos quais pagavam à C o r o a pelo direito de exercer o cargo. Segundo
Vilhena, os desembargadores pagavam esses direitos ainda em L i s b o a , antes de partir
para o B r a s i l . 4

N o início da colonização, havia u m a estrita separação entre as administrações finan-


ceira — confiada ao provedor da F a z e n d a — e p o l í t i c a . M a s , n o governo do Marquês
de P o m b a l ( 1 7 5 5 - 1 7 7 7 ) , c r i o u - s e a j u n t a de A r r e c a d a ç ã o da Real Fazenda, verdadeiro
conselho de finanças, presidida p e l o governador-geral e integrada p o r altos magistra-
dos e altos f u n c i o n á r i o s . N a B a h i a , p o r e x e m p l o , faziam parte desse conselho, entre
outros, o chanceler d o T r i b u n a l de R e l a ç ã o , o p r o c u r a d o r da C o r o a , o intendente da
Marinha e o oficial-mor da Secretaria. 5
O u t r o s serviços c o m p l e t a v a m a organização
financeira da C a p i t a n i a : a J u n t a de A r r e c a d a ç ã o d o S u b s í d i o V o l u n t á r i o , a Secretaria
de Estado e G o v e r n o , a I n t e n d ê n c i a G e r a l d o O u r o , a C a s a da M o e d a , a Mesa de
Inspeção (encarregada de c o n t r o l a r a q u a l i d a d e dos p r o d u t o s exportados pela Bahia),
a I n t e n d ê n c i a da M a r i n h a e A r m a z é n s R e a i s e a A l f â n d e g a .
N a B a h i a , o ú n i c o cargo h e r e d i t á r i o era o de secretário de E s t a d o e de Governo
que, desde meados do século X V I I I , estava nas m ã o s da família Pires de Carvalho e
Albuquerque. T a m b é m neste c a s o , só titulares de cargos subalternos deviam pagar
direitos ao serem n o m e a d o s . E x i s t i a m 1 2 3 f u n c i o n á r i o s n a área financeira da Capita-
nia no século X V I I I . S o m a d o s aos 8 5 juízes o u oficiais de J u s t i ç a , chegavam, portanto,
a 2 0 8 as pessoas envolvidas nessas áreas de g o v e r n o . A l t o s magistrados e altos funcio-
nários eram escolhidos e m Portugal, pois os brasileiros n ã o t i n h a m o direito de ocupar
os postos administrativos mais elevados, n e m p o d i a m ter esperanças de o b t e r promo-
ções. Mas havia u m a exceção, r a r a m e n t e efetivada antes de 1 8 0 8 : eram os cargos de
juízes de fora — juízes ordinários, geralmente f o r m a d o s em C o i m b r a , que lideravam
o Poder Judiciário nos 3 3 T e r m o s da C a p i t a n i a da B a h i a . 6

O EXÉRCITO

C o m seu peso n u m é r i c o , c o m as hierarquias sociais q u e acentuava e revelava, com as


solidariedades que suscitava ou recusava, o Exército pesava de maneira original nas
estruturas de um Estado que sempre manifestara, diante dos militares, sentimentos
ambíguos, mesclados de admiração e confiança, receio e ciúmes.
As forças armadas eram compostas por regimentos de primeira linha (ou 'tropa
paga') e por milícias e 'tropas de o r d e n a n ç a ' 7 N o início do século X I X , a guarnição
i^iXz^I^: ° R G
A N I Z A Ç A O E EXERCÍCIO DOS PODERES
225

m i l i t a r d a c a p i t a l b a i a n a c o m p r e e n d i a três r e g i m e n t o s (dois de infantaria e u m de


a r t i l h a r i a ) e u m a c o m p a n h i a de i n f a n t a r i a , esta e n c a r r e g a d a de guardar a fortaleza do
M o r r o de S a o P a u l o , q u e c o n t r o l a v a a b a r r a d o sul e a e n t r a d a da b a í a . A o E x é r c i t o real
só c a b i a p r o t e g e r a c i d a d e d e S a l v a d o r e suas i m e d i a ç õ e s .

E m tese, as t r o p a s d e p r i m e i r a l i n h a d e v e r i a m c o n t a r c o m 3 . 2 0 0 oficiais e solda-


d o s , m a s esses e f e t i v o s n u n c a e s t a v a m c o m p l e t o s . A p e s a r d o serviço militar o b r i g a t ó -
rio, o E x é r c i t o t i n h a d i f i c u l d a d e e m a t r a i r o pessoal de q u e necessitava, pois os salários
eram m u i t o b a i x o s , m e s m o q u a n d o se leva e m c o n t a a c o m p l e m e n t a ç ã o representada
p o r rações (feitas d e f a r i n h a de m a n d i o c a , c a r n e - s e c a , sal e t o u c i n h o ) e pelo forneci-
m e n t o d e v e s t u á r i o . V i l h e n a avalia e m d o i s m i l h o m e n s o e f e t i v o das tropas por volta
de 1 8 0 0 , q u a n d o o s a l á r i o m e n s a l d e u m s o l d a d o d e i n f a n t a r i a era de 1 . 4 1 0 réis (para
e f e i t o d e c o m p a r a ç ã o , r e g i s t r e - s e q u e u m a r t e s ã o r e c e b i a u m a diária de c e r c a de 3 2 0
réis). A p a r t i r d o m o m e n t o e m q u e a l g u é m se alistava n o E x é r c i t o , tornava-se soldado
para o r e s t o d a v i d a , s u b m e t i d o u n i c a m e n t e à J u s t i ç a M i l i t a r , q u e t i n h a u m a reputação
de rigor p a r a c o m o s s o l d a d o s rasos e d e c l e m ê n c i a p a r a c o m os o f i c i a i s . 8
Qualquer
h o m e m e n t r e dezesseis e q u a r e n t a a n o s p o d i a ser r e c r u t a d o , s o b r e t u d o se fosse solteiro;
mas e r a m p r i n c i p a l m e n t e o s m u l a t o s livres q u e se a p r e s e n t a v a m c o m o v o l u n t á r i o s para
o a l i s t a m e n t o . E r a m i s e n t o s d o s e r v i ç o o b r i g a t ó r i o o s c u l t i v a d o r e s de m a n d i o c a , os
escravos, o s q u e p e r t e n c i a m a o S a n t o O f í c i o , os d e t e n t o r e s dos m o n o p ó l i o s de sal,
v i n a g r e , azeite d e o l i v e i r a e, e n t r e o u t r o s , a t é os q u e d e t i n h a m c o n c e s s õ e s para explorar
jogos de cartas!

P o r c a u s a dessa f a l t a d e v o l u n t á r i o s , o E s t a d o se via o b r i g a d o a recorrer ao recruta-


m e n t o f o r ç a d o , q u e m a n t i n h a a c i d a d e e seus a r r e d o r e s e m c o n s t a n t e estado de alerta.
V i l h e n a c o n t a d e t a l h a d a m e n t e o s p r o c e d i m e n t o s " r e p u g n a n t e s " d o E x é r c i t o , q u e es-
palhava u m r e g i m e n t o i n t e i r o p e l a c i d a d e , c o m o r d e m d e p r e n d e r t o d o s os brancos,
sem e x c e ç ã o , p a r a t r a n c á - l o s n a p r i s ã o . S o m e n t e u m a dessas o p e r a ç õ e s p e r m i t i u q u e
" 4 4 5 pessoas d e diversas q u a l i d a d e s " f o s s e m levadas, e n t r e as quais havia até dois
padres! R e c r u t a m e n t o s desse t i p o t a m b é m e r a m o r g a n i z a d o s n o R e c ô n c a v o e nos
c a m p o s v i z i n h o s , e m q u e c a p i t ã e s " m e n o s p i o s q u e u m N e r o " davam livre curso a suas
paixões e c a p r i c h o s . V i l h e n a a c r e s c e n t a q u e , assim q u e c o m e ç a v a m essas c a m p a n h a s de
r e c r u t a m e n t o , a f o m e t o r n a v a - s e fatal p o i s os " a g r i c u l t o r e s , t a n t o pais c o m o filhos,
receosos de os p r e n d e r e m , se m e t e m ao m a t o " , d e i x a n d o de cultivar os alimentos
indispensáveis à s o b r e v i v ê n c i a de p o p u l a ç õ e s q u e estavam s e m p r e à mercê da f o m e .
Esse s i s t e m a a c a r r e t a v a g r a n d e p r o b l e m a para as tropas: a deserção. E m 1 8 0 8 , 2 0 % dos
efetivos d a g u a r n i ç ã o de S a l v a d o r f u g i r a m , e m geral para o S e r t ã o , em c u j o p o v o a m e n -
to o s desertores a c a b a r a m p o r d e s e m p e n h a r i m p o r t a n t e p a p e l . 1 0
N o regimento de ar-
tilharia, q u e n o r m a l m e n t e c o n t a v a c o m 1 . 2 0 0 h o m e n s , houve 7 1 desertores em 1 8 1 3 .
O n ú m e r o de o f i c i a i s n ã o guardava p r o p o r c i o n a l i d a d e c o m o das tropas, porque
a carreira d a q u e l e s c o n t i n u a v a a ter c e r t o prestígio social. O s regimentos t i n h a m
oficiais extras e m todas as p a t e n t e s , q u e eram c h a m a d o s 'agregados'. Eles eram fre-
q ü e n t e m e n t e r e c r u t a d o s e m Portugal e, m u i t a s vezes, antes de chegar a Salvador
126 BAHIA, SÉCULO X I X

t i n h a m servido em outras partes do R e i n o . Tratava-se essencialmente de oficiais de


alta patente, já q u e nessa época o c o m a n d o militar estava nas mãos dos 'reinóis\ ou
seja, os o r i u n d o s da M e t r ó p o l e . N a B a h i a , os oficiais subalternos eram recrutados de
outra forma: 9 0 % dos sargentos, alferes e cadetes eram g e n t e do lugar. O s primeiros
eram recrutados na tropa, em geral e n t r e pessoas de c o r , e t i n h a m pouca possibilidade
de chegar a t e n e n t e (ou alferes). M a s , para e n t r a r n o E x é r c i t o c o m o cadete, era preciso
pertencer a u m a família de militares o u ser p a r e n t e de d e t e n t o r do título de fidalgo
N o fim do p e r í o d o c o l o n i a l , a c o r p o r a ç ã o m i l i t a r havia se t o r n a d o numa casta
relativamente fechada. O mais das vezes, as patentes eram concedidas aos descenden-
tes dos oficiais mais a n t i g o s , m e s m o e n t r e vivos. M a s , da m e s m a forma que no servi-
ç o civil, não havia c o m p r a de cargos: tratava-se de r e c o m p e n s a r os que serviam ao
rei, e a r e c o m p e n s a p o d i a ser a t r i b u í d a até a colaterais b a s t a n t e afastados. Numerosas
famílias de senhores de e n g e n h o ( p o r e x e m p l o , os M e n e s e s , os D ó r i a , os Argolo, os
M u n i z B a r r e t o ) deram oficiais às forças a r m a d a s . H a v i a t a m b é m famílias de militares
portugueses ( c o m o os B a l t h a z a r da Silveira, os M a t t o s T e l l e s , os M e n e z e s ou os Sou-
za P o r t u g a l ) que t i n h a m criado raízes n a B a h i a e, para o b t e r p r o m o ç õ e s , dependiam
da v o n t a d e d o g o v e r n a d o r . M o r t o n c i t a o c a s o d o m a j o r Pedro A l e x a n d r i n o de Souza
Portugal, filho e n e t o de m i l i t a r e s , q u e requereu duas vezes, sem êxito, o grau de
t e n e n t e - c o r o n e l , ao qual c o n s i d e r a v a ter d i r e i t o : na p r i m e i r a vez, u m oficial portu-
guês obteve o p o s t o ; na s e g u n d a , foi a vez de u m oficial originário da Capitania de
Minas Gerais. 1 1

D u r a n t e o p e r í o d o c o l o n i a l , os postos de c o m a n d o p e r m a n e c e r a m , em geral, nas


mãos dos portugueses, m a s os brasileiros f o r m a v a m a m a i o r parte dos efetivos das
forças armadas. As tropas portuguesas só c h e g a r a m ao Brasil depois de 1 8 0 8 e, sobre-
tudo, de 1 8 1 7 , c o n c e n t r a n d o - s e e s p e c i a l m e n t e nas capitanias da B a h i a e do Rio de
J a n e i r o . A m a i o r i a desses soldados brasileiros era f o r m a d a por mulatos oriundos das
classes m e n o s favorecidas da p o p u l a ç ã o . M u l a t o s e b r a n c o s formavam a oficialidade
média e subalterna, de m o d o q u e , às rivalidades q u e o p u n h a m brasileiros e portugue-
ses, acrescentaram-se as que o p u n h a m b r a n c o s e mestiços. Elas se tornaram explosivas
durante as guerras pela I n d e p e n d ê n c i a da B a h i a e tiveram grande peso nas revoltas de
1824 e 1837.
A defesa dos territórios baianos t a m b é m era assegurada por corpos auxiliares,
c o m o os regimentos de milícias e de ordenanças, colocados, c o m o beneplácito do
Estado, sob o c o m a n d o direto das classes privilegiadas, que deviam prover seu susten-
to. As milícias, criadas n o século X V I I , formavam na Bahia doze regimentos, dos quais
quatro c o m sede em Salvador e quatro n o Recôncavo. C o m exceção dos majores e
sargentos (pagos pelas respectivas municipalidades), a oficialidade desses corpos auxi-
liares não seguia neles uma carreira, nem era remunerada, pois as funções que exer-
ciam, consideradas honoríficas, eram muito cobiçadas, além de compatíveis com o
exercício de outros ofícios. Ser oficial das milícias representava freqüentemente o
primeiro passo para conseguir o enobrecimento e abria caminho para que os filhos
LIVRO I V - Q E S T A D O ; ORGANIZAÇÃO E E X E R C Í C I O DOS PODERES
227

servissem c o m o cadetes nas forças armadas regulares. O prestígio t a m b é m decorria do


fato de q u e a n o m e a ç ã o d e p e n d i a de uma patente real e da fortuna necessária ao
exercício d o c a r g o . Para c h e g a r a c o m a n d a n t e de um regimento de milícia, era preciso
ter servido em u m r e g i m e n t o de primeira l i n h a . 1 2

Para a C a p i t a n i a da B a h i a , o c r i t é r i o de organização dos regimentos era geográfi-


c o . M a s , e m Salvador, esse c r i t é r i o era de o r d e m profissional e racial. Ali faziam
parte das milícias t o d o s os h o m e n s adultos e livres que n ã o servissem nas tropas de
primeira l i n h a o u nas o r d e n a n ç a s . O 1° R e g i m e n t o de Salvador era todo branco
c o n s t i t u í d o p o r c o m e r c i a n t e s e seus e m p r e g a d o s ; o 2 ° R e g i m e n t o t a m b é m era consti-
tuído p o r b r a n c o s ; m a s o 3 ° e o 4 " e r a m f o r m a d o s p o r pessoas de cor. O s negros do
3 o
R e g i m e n t o e r a m c h a m a d o s ' h e n r i q u e s ' , e m h o m e n a g e m a H e n r i q u e Dias, negro
livre q u e o r g a n i z a r a a r e s i s t ê n c i a c o n t r a os holandeses n o século X V I I . N o início do
século X I X , o c o r o n e l desse r e g i m e n t o era b r a n c o , mas todos os outros oficiais eram
negros, c o m o J o a q u i m F é l i x d e S a n t ' A n n a , u m ex-escravo, nascido n o Brasil, que se
tornara b a r b e i r o ; 1 3
o 4 o
Regimento — o dos m u l a t o s — era c o m a n d a d o por um
sargento-major m u l a t o . 1 4

T e o r i c a m e n t e , o s efetivos desses q u a t r o r e g i m e n t o s auxiliares eram os mesmos que


os dos r e g i m e n t o s d e p r i m e i r a l i n h a : 3 . 2 0 0 h o m e n s . M a s eles t a m b é m viviam i n c o m -
pletos ( 2 7 % de h o m e n s a m e n o s , p o r v o l t a de 1 8 0 0 ) . A l é m disso, eram considerados
mal p r e p a r a d o s 1 5
e ineficientes. 1 6
T o d a v i a , foi graças às milícias que o poder real
c o n s e g u i u associar as p o p u l a ç õ e s da C a p i t a n i a para m a n t e r a o r d e m pública (aumen-
t a n d o a i n f l u ê n c i a das f o r m a ç õ e s p a r a m i l i t a r e s ) e, ao m e s m o t e m p o , pela distribuição
de p a t e n t e s e f u n ç õ e s , i n c e n t i v a r o g o s t o dos brasileiros por cargos honoríficos.

O s o r d e n a n ç a s t a m b é m e r a m c o r p o s auxiliares, organizados segundo o T e r ç o '


I b é r i c o , c o m q u a t r o p a t e n t e s d e o f i c i a i s , e m vez de seis, c o m o nos outros r e g i m e n t o s . 17

M a s n ã o t i n h a m o p r e s t í g i o das milícias. As p e q u e n a s c o m u n i d a d e s do interior da


C a p i t a n i a só d i s p u n h a m de c o m p a n h i a s de o r d e n a n ç a s . E m Salvador, n o início do
século X I X , o T e r ç o da C a v a l a r i a t i n h a q u a t r o soldados e . . . quarenta oficiais!

T a m b é m c u s t e a d a s p o r particulares, essas c o m p a n h i a s exerciam, sobretudo, fun-


ções policiais, c o m o a p r o t e ç ã o dos g ê n e r o s a l i m e n t í c i o s que cruzavam as estradas com
destino às c i d a d e s . C a b i a ao g o v e r n a d o r da C a p i t a n i a , e não ao rei, conceder as
patentes, q u e n ã o c o n t a v a m para efeito de e n o b r e c i m e n t o . Apenas o capitão-mor
gozava de e s t a t u t o social s e m e l h a n t e ao dos oficiais da milícia. M a s , c o m o no caso das
milícias, cabia aos oficiais prover as armas, as roupas e a m a n u t e n ç ã o das tropas.
N a s c o m u n i d a d e s d o i n t e r i o r , os capitães-mores — escolhidos a partir de ista
tríplice — eram encarregados de m a n t e r a o r d e m , fazer respeitar a lei, recrutar solda-
dos para o E x é r c i t o e vigiar os escravos, exercendo c o m a n d o inclusive sobre os capi-
t ã e s - d o - m a t o , especializados na captura de escravos fugitivos. Eram escolhidos entre as
famílias ricas de cada localidade: grandes cultivadores de mandioca e outros produtos
básicos n o Litoral S u l , proprietários de gado bovino n o Sertão e importantes senhores
de e n g e n h o n o R e c ô n c a v o . 1 8
22S BAHIA, SÉCULO X I X

E r a a uma elire prestigiosa que a C o r o a confiava os encargos policiais e, contanto


que a paz fosse m a n t i d a , n ã o se preocupava em saber quais os m é t o d o s empregados
pelos representantes de sua autoridade. Para ela, esses c o r p o s auxiliares proporciona-
vam vantagens evidentes: c o m p l e t a v a m os efetivos d o E x é r c i t o regular, de recrutamen-
to difícil, pois aos brasileiros desagradava a idéia de serem soldados a vida toda;
permitiam ao Estado dispor de forças militares o u paramilitares q u e n ã o lhe custavam
nada; satisfaziam os desejos de poder dos chefes locais e os associavam à defesa do país
e da o r d e m ; enquadravam a p o p u l a ç ã o livre, b o a parte c o m p o s t a de alforriados ou
descendentes destes. M e l h o r ainda, essas f o r m a ç õ e s armadas reforçavam laços de soli-
dariedade estabelecidos por parentescos de o r d e m b i o l ó g i c a o u espiritual, que já des-
crevemos. As hierarquias desses c o r p o s paramilitares r e p r o d u z i a m e perpetuavam exa-
tamente as hierarquias s o c i a i s , 19
e n ã o m e c o n s t a q u e se t e n h a m revoltado alguma vez
c o n t r a o poder real.

O GOVERNO LOCAL

As estruturas básicas d o g o v e r n o local eram t ã o antigas q u a n t o as d o governo geral:


havia dois juízes ordinários, três vereadores escolhidos a n u a l m e n t e , u m escrivão, um
procurador e dois ' a l m o t a c é s ' (encarregados de c o n t r o l a r a qualidade dos produtos
vendidos nos mercados locais, os pesos e medidas e as c o n d i ç õ e s de higiene e limpeza).
J u n t o s , eles formavam a Casa de V e r e a ç ã o , o u C o n s e l h o de V e r e a ç ã o , t a m b é m chama-
do em Salvador, desde 1 6 4 6 , de S e n a d o da C â m a r a . N o i n í c i o do século X I X , este
órgão conservava a m e s m a estrutura de 1 6 9 6 , m a s o n ú m e r o de funcionários que ali
deliberavam aumentara b a s t a n t e , a t i n g i n d o 3 2 , c o m f u n ç õ e s b e m e s p e c í f i c a s . 20

Tratava-se de conselhos sem n e n h u m a a t r i b u i ç ã o legislativa, mas n e m por isso


desprovidos de i m p o r t â n c i a na vida local. A o c o n t r á r i o . C a b i a - l h e s tratar de pequenos
roubos, agressões ou injúrias, cuidar das vias públicas, fixar taxas urbanas (pagas por
comerciantes e artesãos) e assim por d i a n t e . 2 1
J u í z e s e vereadores eram escolhidos entre
os ' h o m e n s b o n s \ reconhecidos por sua riqueza e seu estatuto social elevado e chama-
dos a compor esses conselhos municipais q u e , se não t i n h a m atribuição legislativa, até
o fim do século X V I I desempenharam u m papel político i m p o r t a n t e , defendendo,
j u n t o ao poder central, os interesses dos produtores estabelecidos em Salvador e no
Recôncavo. A tal p o n t o que, em 1 6 9 6 , a presidência do C o n s e l h o Municipal de
Salvador foi confiada a um juiz de fora, n o m e a d o pela C o r o a . D a í em diante, em tese,
os membros do conselho municipal passaram a ser nomeados pelo governador; na
prática, porém, continuaram a ser escolhidos por seus p a r e s . 22

N o século X V I I I , o papel político da C â m a r a Municipal de Salvador diminuiu, ao


passo que aumentou o das câmaras das vilas do Recôncavo c do interior. Ali, os juízes
de fora nomeados pela C o r o a nunca tiveram bastante autoridade para oferecer resis-
tência à atuação dos poderosos locais. Alguns votos dos vereadores conseguiam anular
LIVRO I V - O ESTADO: ORGANIZAÇÃO E EXERCÍCIO DOS PODERES 229

decisões dos magistrados que, depois de certo t e m p o , acabavam por adotar os pontos
de vista do patriarcado rural local. O s ofícios mais i m p o r t a n t e s eram v i t a l í c i o s , 23
e os
seus beneficiarios estavam isentos de alguns i m p o s t o s . 2 4

O s analistas definem o E s t a d o português c o m o patrimonial. O rei organizava o


poder político de m a n e i r a patriarcal, c o m a estreita c o l a b o r a ç ã o de seus súditos, que
dele esperavam favores e f u n ç õ e s . ' O r d e m p ú b l i c a ' e 'ordem privada' operavam j u n -
tas, 25
n u m sistema de difícil g e r e n c i a : era mister q u e o rei limitasse o crescimento da
aristocracia local, a duração dos cargos c o n c e d i d o s e a i n f l u ê n c i a das relações familiais
e, sobretudo, tomasse c o n t a de todos os níveis administrativos, t o r n a n d o competitivos
os diversos setores p o l í t i c o s , para q u e exercessem vigilancia uns sobre os o u t r o s . 2 6
Esse
Estado p a t r i m o n i a l c o r r e s p o n d e p e r f e i t a m e n t e às descrições q u e fizemos. N o Brasil,
em todos os níveis, o r d e m p ú b l i c a e o r d e m privada colaboravam estreitamente. Falta
saber qual a natureza dessas relações, e, sobre este p o n t o , as o p i n i õ e s divergem.
O b a i a n o N e s t o r D u a r t e representa u m a posição e x t r e m a . A n a l i s a n d o o sistema
político do Brasil C o l ô n i a , enfatiza o poder da aristocracia rural dos senhores de
engenho e dos criadores de g a d o , p o d e r baseado n a o c u p a ç ã o e p o v o a m e n t o das terras
por esses m e s m o s proprietários, s e m i n t e r v e n ç ã o da C o r o a . D e s t a r t e , os proprietários
eram livres para ' g o v e r n a r ' suas terras c o m o achassem m e l h o r . T o r n a n d o - s e centrífu-
go, esse poder m u d o u de natureza, d e i x a n d o de ser u m a f u n ç ã o pública para transfor-
mar-se n u m a f u n ç ã o privada. D u a r t e assegura q u e as aristocracias rurais governavam,
promulgavam leis, faziam j u s t i ç a , c o m b a t i a m tribos indígenas. N o s estabelecimentos
rurais ele vê verdadeiros castelos feudais. Esse m o d e l o se teria perpetuado ao longo de
todo o século X I X : " A grande paz d o I m p é r i o e seu equilíbrio encontravam apoio
j u n t o a esses senhores territoriais q u e forjavam a força e c o n ô m i c a e o poder material
do Estado. E l a representava t a m b é m a única parcela ' p o l í t i c a ' da população brasilei-
ra." 2 7
O s senhores d a terra t e r i a m , pois, t o m a d o o poder, atributo d o Estado, e o
teriam conservado m e s m o depois da I n d e p e n d ê n c i a .
R a i m u n d o F a o r o diz e x a t a m e n t e o c o n t r á r i o . Para ele, a c o n q u i s t a da terra e a
colonização foram o b r a do poder real, que s o u b e orientá-las nos m í n i m o s detalhes.
A iniciativa privada agia sob a p r o t e ç ã o e a tutela do rei e de seus vigilantes agentes.
O Estado português seria, por natureza, centralizador e patrimonial; possuiria um
vasto mecanismo de c o n t r o l e sobre a vida e c o n ô m i c a e a ação política da aristocracia
agrária. Faoro admite a existência de tendências centrífugas e descentralizadoras, mas
afirma que, tanto na época colonial q u a n t o n o século X I X , o poder central soube
c o m o combatê-las, c o m maior ou m e n o r sucesso. Segundo este autor, uma grande
parte da história política do Brasil gira em torno dos temas da centralização e da
descentralização. 28

O que separa os dois autores não é uma divergência q u a n t o à natureza do poder.


O s dois admitem a dualidade 'poder público' e 'poder privado'. Divergem sobre os
procedimentos adotados pela aristocracia rural para exercer uma parte do poder do
Estado e sobre os limites desse poder. Para Duarte, a aristocracia, usurpadora do
230 BAHIA, SÉCULO XIX

poder, era capaz de ditar sua lei ao Estado, ao passo que, para Faoro, ela gozava tão-
somente de um poder delegado por um Estado que controlava perfeitamente a situa-
ção. Ambas as teses têm sido revistas. Fernando Uricoechea, por exemplo, admite que
a empresa colonial e comercial foi conduzida e estimulada pela Coroa, mas frisa a
importância da iniciativa privada nos setores da produção canavieira, em que o enge-
nho funcionou como uma instituição de fronteira. 29

Na realidade, o modelo brasileiro é muito complexo. Tudo se passa como se, no


fim da época colonial, o Estado brasileiro fosse a combinação de um poder altamente
centralizado, dirigido pelo monarca e sua administração, e de um poder descentraliza-
do, monopolizado pelos senhores da terra. Os senhores de terra, aliás, receberam o
poder por delegação da autoridade central. Hoje, os historiadores buscam o momen-
30

to em que o Estado assumiu a plenitude do poder que compartilhara com a 'ordem


privada' e tentam definir os meios que ele usou para isso. O período imperial parece
ter sido uma encruzilhada para essa mutação profunda, estrutural, que transformou o
Estado patrimonial em Estado burocrático. A Independência criou as condições neces-
sárias para o desenvolvimento de uma vida política mais ampla. O surgimento de
novas instituições permitiu que os brasileiros enfrentassem diretamente o governo e
deu, a este último, condições para exercer um controle mais rigoroso sobre seus tute-
lados. O estudo dessas novas instituições acentua com vigor as mutações que surgiram
no decorrer do século X I X e nos permite compreender o que mudou e o que perma-
neceu estático na relação de forças entre as diversas categorias sociais chamadas a
participar desses novos poderes. Pois, em última análise, o que importa é saber se a
antiga ordem privada conservou todas as suas prerrogativas ou se foi obrigada a dividi-
la com agentes oriundos de novas camadas sociais.
CAPÍTULO 14

O REGIME MONÁRQUICO BRASILEIRO


1822-1889

O Brasil n u n c a foi c o n s i d e r a d o pelos p o r t u g u e s e s c o m o u m a c o l ô n i a , mas c o m o u m a


'terra de a l é m - m a r ' . A p a r t i r de 1 8 0 8 - 1 8 1 0 , a I n d e p e n d ê n c i a brasileira a m a d u r e c e u
g r a d a t i v a m e n t e , c o m a c h e g a d a da f a m í l i a real a o R i o de J a n e i r o , a a b e r t u r a dos portos
às n a ç õ e s a m i g a s , a a s s i n a t u r a d e u m t r a t a d o de c o m é r c i o c o m a Inglaterra, e, sobre-
t u d o , e m 1 8 1 5 , c o m a e l e v a ç ã o d o B r a s i l à c o n d i ç ã o de r e i n o , ainda u n i d o a Portugal.
F o i necessário e c l o d i r , e m P o r t u g a l , a R e v o l u ç ã o C o n s t i t u c i o n a l i s t a de 1 8 2 0 para que
o rei d o m J o ã o V I t o m a s s e a d e c i s ã o de d e i x a r o Brasil e regressar a L i s b o a , e n t r e g a n d o
a regência d o E s t a d o a s e u filho P e d r o . M a s as c o r t e s portuguesas se recusaram a
r e c o n h e c e r q u e o B r a s i l tivesse o s d i r e i t o s p o l í t i c o s e e c o n ô m i c o s de u m E s t a d o s o b e -
rano, p r o v o c a n d o a s s i m , n o s b r a s i l e i r o s , s e n t i m e n t o s de revolta em t u d o semelhantes
aos que c o n d u z i r a m as o u t r a s regiões d a A m é r i c a L a t i n a à i n d e p e n d ê n c i a . A maioria
dos brasileiros e n v i a d o s às c o r t e s p o r t u g u e s a s p r e v e n i u essa assembléia de q u e a união
entre os d o i s países ficaria a m e a ç a d a se o a n t i g o e s t a t u t o fosse restabelecido e Lisboa
insistisse e m n o m e a r os g o v e r n a d o r e s das p r o v í n c i a s , indicar os c o m a n d a n t e s milita-
res, exigir a volta d o p r í n c i p e r e g e n t e e se o p o r à c r i a ç ã o de u m p a r l a m e n t o e de uma
universidade n o B r a s i l .
O s grupos d o m i n a n t e s da s o c i e d a d e brasileira se dividiam em três tendências,
q u e f r e q ü e n t e m e n t e se o p u n h a m c o m v i o l ê n c i a . O s 'tradicionalistas' eram portu-
gueses, o u brasileiros d e s c e n d e n t e s de portugueses, m u i t o s dos quais haviam feito
na M e t r ó p o l e o c u r s o u n i v e r s i t á r i o . N e g o c i a n t e s , f u n c i o n á r i o s , oficiais ou m e m b r o s
da alta hierarquia eclesiástica, só depositavam c o n f i a n ç a em instituições já estabele-
cidas. O s 'realistas' — fortes e n t r e os proprietários de terras e os altos funcionários
brasileiros — compartilhavam as idéias d o s tradicionalistas, na medida em que
desejavam preservar a sociedade tradicional. R e c o n h e c i a m , e n t r e t a n t o , a necessidade
de reformas. P o r fim, os ' e x a l t a d o s ' , mais n u m e r o s o s , queriam mudanças sócio-

231
BAHIA, S É C U L O XIX

políticas mais profundas. P e q u e n o s c médios proprietários, pequenos comerciantes


m e m b r o s das profissões liberais, p e q u e n o s f u n c i o n á r i o s , quadros médios do Exército
e m e m b r o s do baixo clero integravam essa t e n d ê n c i a , que dispunha de oradores in-
flamados, capazes de galvanizar os deserdados, os brancos pobres, os homens de cor
e até os escravos.
Essas três t e n d ê n c i a s c o m e ç a r a m a se f o r m a r n o fim d o século X V I I I , quando um
v e n t o de liberdade s o p r o u e m toda a A m é r i c a L a t i n a . N o Brasil, duas tentativas
revolucionárias tiveram lugar nessa é p o c a : a I n c o n f i d ê n c i a M i n e i r a , liderada por
T i r a d e n t e s ( 1 7 8 9 ) , e a R e v o l u ç ã o dos Alfaiates ( 1 7 9 8 ) . 1
O r o m p i m e n t o do pacto
c o l o n i a l , a i n d e p e n d ê n c i a dos Estados U n i d o s , a R e v o l u ç ã o Francesa e a crise das
nações ibéricas nos p r i m e i r o s a n o s d o século X I X prepararam o terreno para as revoltas
que, entre 1 8 0 7 e 1 8 2 3 , d e s e s t r u t u r a r a m , n a A m é r i c a , o i m p é r i o e s p a n h o l . 2

O Brasil ficou p r a t i c a m e n t e à m a r g e m dessas agitações ( e m 1 8 1 7 a Capitania de


P e r n a m b u c o e suas vizinhas — Paraíba, R i o Grande do N o r t e e Ceará — foram
sacudidas p o r u m m o v i m e n t o r e v o l u c i o n á r i o , m a s foi e x c e ç ã o , rapidamente debelada
pelas forças d a o r d e m ) . H á t e n d ê n c i a e m explicar esse p a r a d o x o pela flexibilidade do
3

aparelho d o E s t a d o q u e , i n t r o d u z i n d o r e f o r m a s e c o n ô m i c a s , teria conseguido evitar a


explosão p o r alguns a n o s : o m o n o p ó l i o português d o c o m é r c i o exterior foi quebrado
pela presença de c o m e r c i a n t e s de o u t r o s países europeus e da A m é r i c a do Norte; as
restrições às atividades industriais f o r a m abolidas e m 1 8 0 8 ; novas oportunidades apa-
receram para os investidores brasileiros. M a s a transferência, para o Brasil, do centro
das decisões em t o d o s os setores t a m b é m d e u , aos brasileiros, esperanças de maior
participação nos n e g ó c i o s d o país.
A partir da decisão de t o r n a r - s e país s o b e r a n o , o Brasil c o n q u i s t o u total indepen-
dência n u m p e r í o d o e x t r e m a m e n t e c u r t o , se c o m p a r a d o aos quinze anos de cruéis
guerras civis ocorridas nas c o l ô n i a s e s p a n h o l a s . A i n d e p e n d ê n c i a brasileira não fez
tantas vítimas — o u mártires — q u a n t o a dos países de língua espanhola, mas isso não
impediu q u e certas capitanias d o N o r t e e d o N o r d e s t e ( M a r a n h ã o , Piauí, Pernambuco
e, sobretudo, B a h i a ) tivessem q u e recorrer à luta armada para conquistá-la. O s com-
4

bates opuseram as três t e n d ê n c i a s políticas rivais, deixando feridas dolorosas durante


mais de vinte a n o s .
Nesse c o n t e x t o , c o n s t r u i r o Estado brasileiro e preservar a unidade territorial do
país foram tarefas árduas e laboriosas. O sucesso foi garantido pelo triunfo das tendên-
cias conservadoras, que souberam unir as elites políticas de todos os matizes, alicerçando
as novas estruturas dc u m Estado poderoso. O mérito ainda é maior, se considerarmos
que os problemas internos eram a c o m p a n h a d o s de graves problemas de política exter-
na: além de se fortalecer e c o n o m i c a m e n t e , o novo Estado brasileiro devia afirmar-se
internacionalmente e lutar para preservar suas fronteiras numa região em que as anti-
gas metrópoles ibéricas, deliberadamente, tinham mantido incertezas e indefinições
geográficas. Antes da Independência, os portugueses chegaram a lutar com a França,
em Caiena, que conquistaram cm 1 8 0 8 e restituíram em 1 8 1 7 . E, desde o fim o
1 RÓ I V - O ESTADO: ORGANIZAÇÃO E EXERCÍCIO DOS PODERES 233

século X V I I , Portugal e E s p a n h a se defrontavam, sobretudo na região limítrofe do


Prata, que o primeiro t e n t o u o c u p a r sucessivamente cm 1 8 1 1 , 1 8 1 6 c 1 8 2 0 . O con-
flito t e r m i n o u em 1 8 2 8 c o m a criação de um 'estado t a m p ã o ' , o Uruguai, onde era a
antiga Província Cisplatina, n ã o sem antes quase provocar uma guerra entre o Brasil
e as Províncias U n i d a s d o R i o da Prata.

N ã o t e n h o a i n t e n ç ã o de traçar u m a análise m i n u c i o s a e circunstanciada das lutas


do Brasil c o m as nações estrangeiras e da c o n s t r u ç ã o do E s t a d o brasileiro na época da
M o n a r q u i a . P r o p o n h o apenas, c o m grandes pinceladas, u m quadro cronológico, dis-
tinguindo três períodos e n t r e 1 8 2 2 e 1 8 8 9 : o da c o n s t r u ç ã o (até 1 8 5 0 ) , o da consoli-
dação (de 1 8 5 1 a 1 8 7 0 ) e o da degradação d o sistema de governo m o n á r q u i c o e cons-
titucional (até 1 8 8 9 ) .

A CONSTRUÇÃO DO ESTADO ( 1 8 2 2 - 1 8 5 0 )

D o m Pedro I, regente d o Brasil depois d a partida de seu pai em 1 8 2 1 foi coroado


imperador u m mês a p ó s a p r o c l a m a ç ã o da I n d e p e n d ê n c i a , ocorrida em setembro do
ano seguinte. N u m e r o s a s c a p i t a n i a s ( q u e , e n t ã o , se t o r n a r a m províncias) ainda esta-
vam em fase de p a c i f i c a ç ã o . D i v i d i d a , a B a h i a lutava p e n o s a m e n t e c o n t r a os corpos
expedicionários p o r t u g u e s e s , e n q u a n t o o Pará p r o c l a m a v a seu apego à M e t r ó p o l e e
P e r n a m b u c o p r o p u n h a u m s i s t e m a de g o v e r n o descentralizado e federativo. E m 1 8 2 4
a pacificação estava feita, m a s as tensões políticas cresceram — especialmente em
Bahia, S ã o P a u l o e M i n a s — d e p o i s d o f e c h a m e n t o da Assembléia C o n s t i t u i n t e e a
outorga, pelo m o n a r c a , da p r i m e i r a C a r t a C o n s t i t u c i o n a l do novo país, discutida
pelos seis m i n i s t r o s e as q u a t r o personalidades (todos brasileiros) que integravam o
C o n s e l h o de E s t a d o .

N a primeira A s s e m b l é i a Legislativa ( 1 8 2 6 - 1 8 2 9 ) , os deputados liberais eram mais


numerosos q u e os fiéis a d o m P e d r o I. P o r o u t r o lado, a situação e c o n ô m i c a do país
não era b r i l h a n t e . N a s regiões tradicionais do açúcar, a I n d e p e n d ê n c i a , c o m suas lutas,
revoltas populares e sedições militares, foi responsável por baixas na produção e na
exportação. J á n ã o havia mais o recurso ao crédito dos c o m e r c i a n t e s portugueses. A
fabricação de falsa m o e d a de c o b r e p r o v o c o u u m a inflação'que o B a n c o do Brasil não
pôde controlar, i n d o à falência em 1 8 2 9 . A situação de beligerância contra as Provín-
cias Unidas d o R i o da Prata absorvia recursos, aumentava a dívida pública e desvalo-
rizava o real ( m o e d a nacional de e n t ã o ) . O s deputados queriam participar de fato das
decisões do Estado. N ã o ficaram satisfeitos nem c o m a abolição do tráfico, nem c o m
alguns privilégios de o r d e m comercial, que gostariam de ver concedidos a todas as
nações amigas, e não só à França e à Inglaterra, c o m o ocorreu.
A partir de 1 8 2 6 , entre a M o n a r q u i a e as forças políticas do país instalou-se um
conflito, atiçado por u m a j m p r e n s a e s ^ l h a f a t o s a j ^ y i g j j g n t a . D o m Pedro I teve que
abdicar em favor de seiTfilho m e n o r . N ã o obstante esse quadro, a Constituição e a
234 BAHIA, SÉCULO X I X

organização d o novo E s t a d o puderam ser votadas, p e r m a n e c e n d o em vigor durante


todo o período m o n á r q u i c o , sem grande m o d i f i c a ç ã o .
A Regência, que durou de 1 8 3 1 a 1 8 4 0 , teve q u e enfrentar desorganização das
produções tradicionais (açúcar, t a b a c o , algodão, especiarias), sedições e lutas políticas
E n q u a n t o os m o v i m e n t o s revolucionários i m p e d i a m o desenvolvimento da agricultu-
ra n o c a m p o , lutava-se na C o r t e para decidir se o poder devia ser c o n f i a d o a um grupo
de h o m e n s ( R e g ê n c i a T r i n a , 1 8 3 1 - 1 8 3 5 ) ou a um só ( F e i j ó , 1 8 3 5 - 1 8 3 7 , e Araújo
Lima, 1 8 3 7 - 1 8 4 0 ) . N o c a m p o da política exterior, nesse período o Brasil se opôs à
Santa Sé (a respeito d o P a d r o a d o , de q u e t r a t a r e m o s d e p o i s ) , à França e à Inglaterra
(a respeito de suas fronteiras c o m u n s nas G u i a n a s ) e ao Uruguai (a respeito das
fronteiras fixadas em 1 7 7 1 pelo T r a t a d o de S a n t o I l d e f o n s o ) . Esta ú l t i m a era questão
melindrosa, pois o R i o G r a n d e d o Sul estava em plena sedição desde 1 8 3 5 .

Ainda n ã o havia verdadeiros partidos p o l í t i c o s , m a s os deputados se agrupavam


em t o r n o de três f o r m a ç õ e s : a dos ' c a r a m u r u s ' , t e n d ê n c i a conservadora que conspirava
para restaurar o poder de d o m P e d r o I; a dos ' e x a l t a d o s ' , q u e queriam maior autono-
mia para as províncias; e a dos m o d e r a d o s ' c h a m a n g o s ' , nos quais se apoiava o gover-
n o , que tinha m u i t a d i f i c u l d a d e para m a n t e r a u n i d a d e d o E s t a d o . E n t r e 1 8 3 1 e 1845,
foram recenseadas trinta revoltas a r m a d a s n o B ras ih N o N o r t e e Nordeste, as duas
províncias mais atingidas p o r esses m o v i m e n t o s foram a B a h i a e_o Pará, que se loca-
lizavam longe da sede d o g o v e r n o e eram c e n t r o s e x p o r t a d o r e s de algodão, especiarias,
tabaco e, s o b r e t u d o , n o caso da B a h i a , a ç ú c a r .

Apesar das revoltas, d o déficit d a b a l a n ç a c o m e r c i a l (pois as exportações dos


produtos tradicionais ficaram n o m e s m o nível de antes da I n d e p e n d ê n c i a , mas as
importações progrediram a partir de 1 8 3 0 ) , da falta de créditos e da inflação ascenden-
te, a R e g ê n c i a conseguiu c o m p l e t a r a o b r a legislativa d o p e r í o d o a n t e r i o r . E m 1840,
5

com quinze anos de idade, d o m Pedro II foi c o r o a d o . S u a m a i o r i d a d e antecipada tinha


sido exigida por grande parte das forças políticas do país. J o v e m demais para governar
sozinho, ora buscou o apoio dos liberais, ora dos conservadores, mas conseguiu paci-
ficar as províncias ainda revoltosas ( P e r n a m b u c o e m 1 8 4 8 , R i o G r a n d e do Sul em
1 8 4 9 ) . A promulgação, cm 1 8 4 7 , da nova lei eleitoral e a criação do cargo de primeiro-
ministro, responsável pelo governo diante d o P a r l a m e n t o , contribuíram para que se
estabelecesse certo equilíbrio entre liberais e conservadores, iniciando-se uma alternância
n o exercício do poder, que contrastava c o m as eleições truncadas e os movimentos
sediciosos do período anterior. O s tratados de c o m é r c i o foram renegociados e o gover-
n o , após 1 8 4 4 , instaurou uma política protecionista que favoreceu um relativo pro-
gresso industrial c melhorou as finanças do E s t a d o . O tráfico de escravos foi abolido
6

por Eusébio de Q u e i r ó s C o u t i n h o M a t t o s o da C â m a r a em 1 8 5 0 . Liberaram-se, assim,


capitais até então consagrados a esse c o m é r c i o , estimulou-se a emigração estrangeira e
os esforços do Estado foram reorientados para a melhoria dos transportes. 7

Entre 1 8 4 3 c 1 8 5 1 , a guerra c o n t i n u o u nas fronteiras do Rio Grande do Sul,


constantemente pilhadas por incursões das tropas d o uruguaio Manuel Oribe, o
LIVRO i v - O E S T A D O : O R G A N I Z A Ç Ã O E E X E R C Í C I O nos PODERES 235

T A B E I. A i :

REVOLTAS ARMADAS N O BRASIL, 1 8 3 1 - 1 8 4 5

PERNAMBUCO PARA BAHIA MARANHÃO R. G. DO SUL TOTAL

1831 2 3 - 5

1832 1 - 1

1833 - 1 - 1

1834
- - - - 0

1835 1 - 1 2

1836 1 1 2

Í22Z 1 1 1 3

im 1 1 1 1 4

1939 1 1 1 3

1840 1 - 1 1 3

1841 - - I 1 2

1842 I 1

1843 1 1

1844 1 1

1845 1 1

Total 3 6 6 4 11 30

Fome: Simon Schwartzman, São Paulo e o Estado Nacional* p. 76.

C o l o r a d o . O s brasileiros a f i r m a v a m ter p e r d i d o o i t o c e n t a s m i l cabeças de gado nessas


regiões entre 1 8 4 3 e 1 8 5 1 » m a s esse a r g u m e n t o dissimulava pretensões expansionistas
do Brasil, q u e apoiava o c h e f e dos B i a n c o s , F o r t u n a d o Rivera, em sua luta c o n t r a
O r i b e . N o o u t r o e x t r e m o , o Brasil n ã o c o n s e g u i u resolver c o m a F r a n ç a o litígio em
torno do território d o A m a p á . M e s m o assim, o b a l a n ç o d o p e r í o d o é relativamente
positivo: o país c o n s e r v o u sua d i m e n s ã o territorial e os poderes do Estado (oram
reforçados por um sistema p a r l a m e n t a r estável. S ó os resultados e c o n ô m i c o s não
estiveram à altura das a m b i ç õ e s d o j o v e m Estado i n d e p e n d e n t e , apesar da crescente
importância da cultura d o café.

A CONSOLIDAÇÃO ( 1 8 5 0 - 1 8 7 0 )

O apogeu do I m p é r i o brasileiro ocorreu entre 1 8 5 1 c 1 8 6 4 , período em que os dois


partidos principais se entenderam n o Parlamento, alternando-sc no poder sob a égide
do marques de Paraná. Novas leis eleitorais foram votadas em 1 8 5 5 e 1 8 6 0 . M a s , na
e c o n o m i a , nem tudo ia b e m . As tarifas alfandegárias eram constantemente modificadas
2J6 BAHIA, SÉCULO X D Í

(cm 1856—185^ peio Barão dc C o t c j i p e , c m 1858-1859 por B e r n a r d o de Souza


F r a n c o e c m 1 8 6 0 p e l o B a r ã o d c U r u g u a i a n a ) . A i n f l a ç ã o persistia, as finanças públicas
e r a m deficitárias, as despesas m i l i t a r e s pesavam d e m a i s n o o r ç a m e n t o d o E s t a d o (eram
rcírerados os c o n f l i t o s c o m a A r g e n t i n a c p r i n c i p a l m e n t e o U r u g u a i , c o m o qual 0

Brasil estava e m p e r m a n e n t e e s t a d o de g u e r r a ) . M a s , a partir de 1 8 6 4 , os c o n f l i t o s que


o p u n h a m brasileiros, u r u g u a i o s e a r g e n t i n o s a o p a r a g u a i o S o l a n o L o p e z arrastaram o
Brasil a u m a guerra q u e d u r o u ate 1 8 7 0 . E l a p r o v o c o u o d e s c o n t e n t a m e n t o em alguns
m e i o s sociais, p o l i t i z o u o E x é r c i t o e f a v o r e c e u o a p a r e c i m e n t o de u m movimento
republicano.

A DESAGREGAÇÃO ( 1 8 7 0 - 1 8 8 9 )

Em 1 8 7 0 , c o m o fim d a G u e r r a d o P a r a g u a i , c o m e ç o u u m n o v o p e r í o d o de crise
p e r m a n e n t e . D i v e r s a s t e n d ê n c i a s p o l í t i c a s p a s s a r a m a se e n f r e n t a r p o r causa da A b o -
lição da escravatura e de c o n f l i t o s e n t r e M o n a r q u i a , I g r e j a e E x é r c i t o . A l g u n s — entre
os quais muitos militares — a d e r i r a m a idéias positivistas o u r e p u b l i c a n a s , outros
p e r m a n e c e r a m fiéis a u m a m o n a r q u i a m a i s o u m e n o s l i b e r a l . N o dia 15 d e n o v e m b r o
de 1 8 8 9 , a R e p ú b l i c a foi p r o c l a m a d a , a p ó s v i n t e a n o s de lutas políticas e discursos
fratricidas. Apesar d o a p a r e c i m e n t o de u m i n c i p i e n t e s e t o r i n d u s t r i a l , o Brasil c o n t i -
nuava a ser u m país a g r í c o l a , 8
d o t a d o de d i s t r i b u i ç ã o d c r e n d a m u i t o desigual. O s
' b a r õ e s d o c a f é ' se t o r n a r a m c o n c o r r e n t e s d o s ' b a r õ e s d o a ç ú c a r ' e a c a b a r a m por
s u p l a n t á - l o s ; c o m e r c i a n t e s , e m p r e g a d o s e f u n c i o n á r i o s d o s g r a n d e s c e n t r o s tinham
rendas c o n f o r t á v e i s ; os c a m p o n e s e s e r a m m u i t o p o b r e s .

P o u c o a p o u c o o c e n t r o de g r a v i d a d e e c o n ô m i c a se d e s l o c a v a d o N o r d e s t e para o
C c n t r o - S u l , mas era i m e n s a a d i s p a r i d a d e e n t r e as rendas r e g i o n a i s . C o m o o setor
e x p o r t a d o r era o mais d i n â m i c o da e c o n o m i a , é possível c a l c u l a r a repartição regional
da renda a partir das e x p o r t a ç õ e s e f e t u a d a s : p o r volta de 1 8 8 0 , o café produzido nas
províncias de S ã o P a u l o , R i o d c J a n e i r o e M i n a s G e r a i s c o b r i a mais de 5 5 % do total
das e x p o r t a ç õ e s . S e a c r e s c e n t a r m o s o a ç ú c a r , o a l g o d ã o , as peles, os c o u r o s c outros
p r o d u t o s , as e x p o r t a ç õ e s d o C e n t r o - S u l e d o Sul passam a representar 6 5 % . ou seja,
1 8 % a 2 0 % da renda g l o b a l . A d m i t i n d o - s e q u e os 8 0 % restantes se repartissem dc
maneira proporcional à p o p u l a ç ã o , p o d e - s e calcular q u e as províncias situadas entre
M i n a s Gerais e R i o G r a n d e d o Sul ( c o m a m e t a d e da p o p u l a ç ã o d o país) respondiam
por 6 0 % da renda i n t e r n a . E m 1 8 7 2 , 6 3 , 7 % dos escravos estavam c o n c e n t r a d o s nas
9

províncias d o S u l . 1 0
A falta dc i n o v a ç õ e s n o s e t o r agrícola tradicional (açúcar c produ-
tos dc subsistência) c a i n s u f i c i ê n c i a d o s t r a n s p o r t e s a u m e n t a r a m ainda mais o
distanciamento entre o Nordeste c o S u l . O cacau, que acabava dc surgir, não conse-
guiu modificar o d e s e m p e n h o e c o n ô m i c o negativo da B a h i a . 11

A Independência trouxera mais problemas que soluções. Seria o Brasil uma vítima
dc estruturas arcaicas, herdadas do período colonial? É evidente o peso dessa herança,
LIVRO IV - O E S T A D O : ORGANIZAÇÃO E EXERCÍCIO DOS PODERES 237

mas as respostas t a m b é m devem ser buscadas n o c o m p o r t a m e n t o dos h o m e n s , em sua


c a p a c . d a d e de assimilar e a d a p t a r novas idéias. S o b todos os p o n t o s de vista, no que
tange à f o r m a ç ã o d o n o v o E s t a d o , o papel de Salvador e das elites baianas foi exem-
plar. A B a h i a teve u m a p a r t i c i p a ç ã o decisiva nos setores e c o n ô m i c o , religioso e polí-
tico. A d e m a i s , a análise d o s fracassos e dos êxitos b a i a n o s t o r n a possível c o m p r e e n d e r
m e l h o r o c o m p o r t a m e n t o de todas as elites brasileiras nesse novo universo vigente
entre 1 8 2 2 e 1 8 8 9 . A p e s a r de c e r t o s insucessos, o I m p é r i o do Brasil soube se impor
v a l e n t e m e n t e n o c o n t e x t o i n t e r n a c i o n a l . A n t e s de estudar o c o m p o r t a m e n t o das elites
baianas, é b o m t r a ç a r u m e s b o ç o d o q u a d r o i n s t i t u c i o n a l (nacional e local) n o qual os
baianos t r a b a l h a r a m ao l o n g o de t o d o o século X I X , c o n t r i b u i n d o c o m uma ação
c o n s t a n t e , dos mais h u m i l d e s a o s m a i o r e s e n t r e eles, para a f o r m a ç ã o do Estado.

Os PODERES CENTRAIS ( 1 8 2 2 - 1 8 8 9 )

N a p r i m e i r a m e t a d e d o s é c u l o X I X ( e s p e c i a l m e n t e d u r a n t e as regências), quando se
faziam s e n t i r as m a i o r e s pressões dos m o v i m e n t o s federalistas ou republicanos, a m a i o -
ria dos brasileiros o p t o u p o r u m g o v e r n o m o n á r q u i c o , c h e f i a d o e encarnado pelo
P r í n c i p e . E l e c o n t r i b u í r a p e s s o a l m e n t e para a I n d e p e n d ê n c i a , u n i n d o em t o r n o de si
a m a i o r parte das forças p o l í t i c a s d o país. T o d a v i a , p e r m a n e c e u sendo visto c o m o um
m o n a r c a p o r t u g u ê s , ligado à a n t i g a s i t u a ç ã o . A l é m disso, o p t o u por governar c o m seus
conselheiros, q u e e r a m fiéis à m o n a r q u i a p o r t u g u e s a . N ã o aceitou que suas prerroga-
tivas fossem l i m i t a d a s p o r u m t e x t o c o n s t i t u c i o n a l d e m a s i a d a m e n t e liberal. E n t r o u ,
assim, em rota de c o l i s ã o c o m o s m e m b r o s da A s s e m b l é i a C o n s t i t u i n t e , reunida pela
primeira vez e m 17 de abril de 1 8 2 3 .
A C â m a r a era c o n s t i t u í d a p o r n o v e n t a d e p u t a d o s , dos quais 2 6 formados em
direito, 2 2 m a g i s t r a d o s , 1 9 padres, 7 oficiais e 1 6 m é d i c o s , proprietários rurais ou
funcionários. Estavam representadas catorze das dezenove províncias, faltando Sergipe,
Piauí, M a r a n h ã o , G r ã o - P a r á e P r o v í n c i a C i s p l a t i n a . 12
O p r o j e t o constitucional apre-
sentado pelo d e p u t a d o paulista A n t ô n i o C a r l o s de Andrada e Silva fora inspirado nas
idéias do suíço B e n j a m i n C o n s t a n t , 1 3
q u e preconizava um Poder Executivo forte e
um regime eleitoral c e n s i t á r i o , baseado em níveis de renda. Para participar do pro-
cesso de escolha em â m b i t o p a r o q u i a l , provincial ou nacional (neste caso, de deputa-
do ou s e n a d o r ) , era necessário ter uma renda líquida anual correspondente, respecti-
vamente, ao valor de 1 5 0 , 2 5 0 , 5 0 0 ou 1 . 0 0 0 alqueires de farinha — exigência estranha
e pitoresca, que inspirou o h u m o r d o povo c fez surgir a expressão 'constituição da
mandioca'. 14

D o s 2 7 8 artigos apresentados, só 24 foram debatidos pois, desde o início, surgiu


um desacordo f u n d a m e n t a l : as leis votadas pelo Parlamento deveriam ou nao ser
sancionadas pelo imperador? N ã o tendo sido encontrada solução, a Assembléia foi
dissolvida em 1 2 de n o v e m b r o de 1 8 2 3 . A redação da Carta Constitucional foi então
238 BAHIA, S É C L T _ O X I X

c o n f i a d a a u m a c o m i s s ã o d c dez m e m b r o s , erigida c m C o n s e l h o de E s t a d o . C i n c o
m e m b r o s eram b a i a n o s : C l e m e n t e Ferreira F r a n ç a , M a r q u ê s de N a z a r é e ministro da
J u s t i ç a ; Luiz J o s é de C a r v a l h o c M e l o , V i s c o n d e de C a c h o e i r a e m i n i s t r o das Relações
E x t e r i o r e s : J o s é E g í d i o Álvares d e A l m e i d a , M a r q u ê s de S a n t o A m a r o ; e Antônio
J o a q u i m C a r n e i r o de C a m p o s , M a r q u e s de C a r a v e l a s . 1 5
E m 2 5 de m a r ç o de 1 8 2 4 , foi
o u t o r g a d a u m a C a r t a C o n s t i t u c i o n a l a v a n ç a d a para a é p o c a e c o n s i d e r a d a obra dos
irmãos C a r n e i r o de C a m p o s , j u r i s t a s d a B a h i a .

A INSTALAÇÃO DE PODERES NOVOS


r

E m b o r a inspirada p o r d o u t r i n a s e e x p e r i ê n c i a s q u e v i g o r a v a m na E u r o p a , a redação
da C a r t a C o n s t i t u c i o n a l brasileira t a m b é m levou e m c o n t a a t r a d i ç ã o j u r í d i c a luso-
brasileira, c a r a c t e r i z a d a p o r u m a g r a n d e flexibilidade, de m o d o a p e r m i t i r a adição
p o s t e r i o r de e m e n d a s p a r a v á r i a s leis f u n d a m e n t a i s . Resultou uma Constituição
unitária, c o m u m P o d e r E x e c u t i v o f o r t e m e n t e c e n t r a l i z a d o , c a p a c i t a d o a m a n t e r com
firmeza a u n i ã o e n t r e as p r o v í n c i a s brasileiras. O i m p e r a d o r , assistido pelo C o n s e -
lho de E s t a d o e pela A s s e m b l é i a G e r a l , passou a c o n t r o l a r u m g o v e r n o q u e recebeu
amplas a t r i b u i ç õ e s .
O P o d e r Legislativo era e x e r c i d o pela A s s e m b l é i a G e r a l , q u e c o m p r e e n d i a dois
c o r p o s , o S e n a d o ( c u j o s m e m b r o s e r a m eleitos p o r sufrágio c e n s i t á r i o e n o m e a d o s de
m a n e i r a vitalícia p e l o i m p e r a d o r , q u e os e s c o l h i a e m listas tríplices) e a C â m a r a dos
D e p u t a d o s ( c u j o s m e m b r o s e r a m eleitos p o r p e r í o d o s de q u a t r o anos e que podia ser
dissolvida p e l o i m p e r a d o r ) . O P o d e r J u d i c i á r i o s ó foi d e f i n i d o em linhas gerais. M a s
a C o n s t i t u i ç ã o de 1 8 2 4 i n t r o d u z i u u m a g r a n d e n o v i d a d e : o P o d e r M o d e r a d o r , exclu-
sivamente reservado a o c h e f e de E s t a d o , isto é, o i m p e r a d o r , "a c h a v e de toda a
organização p o l í t i c a " , d e s t i n a d o a zelar " p e l a m a n u t e n ç ã o da I n d e p e n d ê n c i a , equilí-
brio e h a r m o n i a dos d e m a i s p o d e r e s " .
Através d o P o d e r M o d e r a d o r , c a b i a ao i m p e r a d o r n o m e a r o s senadores, convocar
a Assembléia G e r a l , s a n c i o n a r os d e c r e t o s e resoluções desta, aprovar o u suspender as
resoluções dos conselhos provinciais (que, a partir d o A t o Adicional de 1 8 3 4 , se tornaram
assembléias legislativas), p r o l o n g a r o m a n d a t o o u adiar a A s s e m b l é i a G e r a l , dissolvera
C â m a r a dos D e p u t a d o s , n o m e a r e d e m i t i r l i v r e m e n t e os m i n i s t r o s , suspender magis-
trados, perdoar c m o d e r a r penas c c o n c e d e r anistia. O P o d e r Executivo também
deveria ser exercido pelo i m p e r a d o r , p o r i n t e r m é d i o dos m i n i s t r o s de E s t a d o , mas na
verdade ele nunca exerceu a m b o s os poderes em sua plenitude. M e s m o durante o período
mais crítico da crise dc 1 8 3 0 / 1 8 3 1 , n u n c a dissolveu a C â m a r a , nem adiou suas reuniões.

Q u a n d o , em 7 dc abril dc 1 8 3 1 , d o m Pedro I a b d i c o u , deixando o Império para


dom Pedro de Alcântara, então c o m c i n c o anos dc idade, tornou-se evidente que o
Poder M o d e r a d o r , exercido por regentes, não tinha c o n d i ç õ e s de ser tão forte quanto
o exercido pelo próprio imperador. A Lei de 1 8 3 1 , sobre o exercício da Regência,
LrvRO I V - O E S T A D O : ORGANIZAÇÃO E EXERCÍCIO DOS PODERES 239

modificou esse Poder. Os regentes perderam o direito de dissolver a Câmara dos


Deputados, bem como a prerrogativa real de conceder títulos de nobreza e condeco-
rações. Os regentes Feijó ( 1 8 3 5 - 1 8 3 7 ) c Araújo Lima ( 1 8 3 7 - 1 8 4 0 ) tiveram que se
inclinar à Câmara e abandonar o cargo antes do fim de seus mandatos.
Em 183-4 a oposição liberal (majoritária) conseguiu que se votasse um Ato Adicio-
nal que estabeleceu uma regência única por quatro anos c representou o triunfo do
federalismo. As assembléias legislativas provinciais substituíram os antigos conselhos
gerais das províncias, cujo papel era puramente consultivo. Passaram então a legislar
sobre a organização civil, judiciária e eclesiástica de suas circunscrições, sobre a instru-
ção pública, as exportações, a Polícia, os negócios econômicos dos municípios, as
despesas e os impostos, os transportes e as obras públicas.
Mas, considerando algumas dessas atribuições muito liberais, a Lei Interpretativa
de 1 8 4 0 reduziu a autonomia dos municípios e devolveu ao poder central a faculdade
de decidir certas nomeações para a função pública e a magistratura. Assim, os prin-
16

cípios centralizadores acabaram por suplantar o federalismo, numa época em que o


Estado brasileiro já consolidara suas bases. O monarca passou a governar ora com os
liberais, ora com os conservadores, com o apoio do Conselho de Estado e do Senado,
cujos membros eram nomeados por ele. Os titulares dos sete ministérios (Império,
Justiça, Negócios Estrangeiros, Guerra, Marinha, Agricultura, Comércio e Indústria e
Finanças) eram escolhidos pelo imperador entre membros dos dois partidos (Liberal e
Conservador) que se formaram no fim do período das Regências. Os presidentes de
províncias se relacionavam diretamente com o ministro da Justiça, depois do Interior,
que foi, nesse período, o ministério mais importante. Os poderes locais, como vere-
mos, tinham margem muito pequena de autonomia.

Em 1 8 4 7 , dom Pedro II decidiu não mais escolher seus ministros, mas nomear um
presidente do Conselho que formaria, ele mesmo, uma equipe ministerial. Estabeleceu
assim um regime em que os ministros passavam a ser responsáveis diante do Parlamen-
to, detendo necessariamente a confiança tanto do imperador quanto da Câmara, que
em quase cinqüenta anos de reinado de dom Pedro II só foi dissolvida em 1 8 4 6 , 1 8 4 8 ,
1 8 6 2 , 1 8 7 2 , 1 8 7 9 e 1 8 8 5 . Foi notável c inesperada a estabilidade alcançada por um
país sern experiência em governos desse tipo. A bem da verdade, ela decorreu, de um
lado, da pouca diferença entre os projetos liberal e conservador de governo c, de outro,
do fato de que os políticos eram sempre recrutados não só nas mesmas categorias
sociais, mas quase sempre nas mesmas famílias.
O Poder Legislativo, como vimos, era exercido pela Assembléia Geral, composta
pelo Senado (onde os cargos eram vitalícios) c a Câmara dos Deputados. O número
de senadores era igual à metade do número de deputados de cada província. Para
figurar entre os três nomes submetidos ao imperador , era preciso ser brasileiro, ter
mais de 4 0 anos, ser culto, ter prestado serviços a sua pátria c... auferir rendas anuais
dc mais de 8 0 0 . 0 0 0 réis. Um senador tinha grande chance de se tornar ministro e
17

conselheiro dc Estado.
240 BAHIA, S É C U L O XIX

O s deputados da C â m a r a do I m p é r i o eram eleitos pelo sufrágio censitário de dois


graus. N o primeiro, as eleições se realizavam n o â m b i t o da paróquia, computando-se
os votos de todos os cidadãos ativos — o u seja, h o m e n s casados, maiores de idade, que
não fossem empregados domésticos n e m m e m b r o s de ordens monásticas — de mais
de 2 5 anos e q u e tivessem u m a renda anual de pelo m e n o s 1 0 0 . 0 0 0 réis. Para se tornar
grande eleitor e votar para a eleição dos senadores, dos deputados e dos membros do
C o n s e l h o da Província, era preciso ter renda superior a 2 0 0 . 0 0 0 réis, não ser alforriado
e ter u m a folha corrida c o m p l e t a m e n t e l i m p a . 1 8

N ã o há dtivida de q u e esse m o d o de eleição favorecia as classes abastadas. Mas, no


caso da B a h i a , o direito de v o t o era e x e r c i d o p o r grande parte da população livre.
E n t r e os cidadãos ativos, existiam n u m e r o s o s representantes de todos os pequenos
ofícios da época: pescadores, r e m a d o r e s , p e q u e n o s c o m e r c i a n t e s e pequenos funcioná-
rios, lavradores, alfaiates e b a r b e i r o s . N a t u r a l m e n t e , apenas os notáveis — ricos pro-
prietários, religiosos, juízes, oficiais de P o l í c i a — elaboravam as listas dos cidadãos
ativos das paróquias, o q u e dava m a r g e m a t o d o tipo de abusos: as leis eleitorais de
1 8 4 2 , 1 8 4 6 , 1 8 5 5 e 1 8 7 5 foram e l o q ü e n t e s a este r e s p e i t o . 19
A partir de 1 8 7 5 , a
Justiça foi encarregada de zelar pela aplicação correta da lei eleitoral e cada eleitor
recebeu u m a carteira pessoal de i d e n t i f i c a ç ã o .

O princípio da eleição direta foi finalmente c o n s a g r a d o pela Lei Saraiva, de 1 8 8 1 ,


que m a j o r o u de 1 0 0 . 0 0 0 para 2 0 0 . 0 0 0 réis a renda anual m í n i m a exigida para ser
eleitor. A m e s m a lei estabeleceu a renda m í n i m a de 8 0 0 . 0 0 0 réis para os deputados e
de 1 . 0 0 0 . 0 0 0 de réis para o s s e n a d o r e s . 20
Foi preciso esperar a P r o c l a m a ç ã o da Repú-
blica para que se generalizasse o sufrágio m a s c u l i n o a todos os cidadãos brasileiros no
gozo de seus direitos civis e p o l í t i c o s que soubessem ler e escrever, q u e fossem maiores
de 21 anos e não fossem m e n d i g o s , praças de pré e religiosos de ordens monásticas. 21

A C o n s t i t u i ç ã o de 1 8 2 4 só definiu as linhas gerais do Poder J u d i c i á r i o , que foi


organizado de maneira relativamente simples: n o t o p o da hierarquia judiciária, se
encontrava o S u p r e m o T r i b u n a l de J u s t i ç a , cujos m e m b r o s tinham o status de minis-
tro. Seu presidente era o magistrado mais antigo na f u n ç ã o . N a s províncias, a instância
mais importante permaneceu sendo, c o m o na época da C o l ô n i a , o T r i b u n a l de Rela-
ção, cujos juízes tinham o título de desembargadores e julgavam tanto questões civis
quanto penais. Cada distrito judiciário tinha juízes municipais, juízes de órfãos e
promotores nomeados pelo governo, e cada paróquia elegia seu juiz de paz. C o m a
eleição destes — até 1 8 4 1 , feita j u n t o c o m a eleição dos conselheiros municipais >
a Justiça ficava entregue, cm larga escala, a magistrados oriundos da escolha popular.
A 'justiça togada* se limitava a fornecer uma 'assistência pericial'.
Entre outras atribuições, previstas pelo C ó d i g o de Processo Criminal de 1832, os
juízes de paz deviam zelar pela ordem pública, controlar o tribunal de jurados eleitos
e propor à Câmara Municipal a nomeação de escrivães e de inspetores de quarteirão.
Seu poder era maior que o dos conselheiros municipais. Por isso, eles eram cooptados
entre os notáveis, que desta forma garantiam o controle sobre um aparato de justiça
LIVRO I V - O ESTADO: ORGANIZAÇÃO E EXERCÍCIO nos PODERES 241

que, apesar das aparências, era organizado para reforçar os potentados locais em detri-
m e n t o da a d m i n i s t r a ç ã o c e n t r a l . 2 2

Houve reação. A Lei Interpretativa (de 12 de maio de 1 8 4 0 ) e a reforma do código


criminal (de 3 de d e z e m b r o de 1 8 4 1 ) retiraram a maior parte das funções dos juízes
de paz, inclusive as de caráter policial (pois a eles cabia a n o m e a ç ã o dos chefes de
Polícia e de seus s u b o r d i n a d o s ) , 23
reduzindo-os a um papel quase que de tabeliães. O
Estado passou a n o m e a r os juízes m u n i c i p a i s e os juízes de carreira, que passaram a
tutelar tribunais d o júri, de m o d o q u e todas as instância judiciárias ficaram subordi-
nadas à magistratura de toga.

N ã o se deve esquecer, aliás, q u e os m e m b r o s da magistratura desempenharam um


papel político e m i n e n t e . A t é 1 8 5 5 , eles p o d i a m , inclusive, exercer m a n d a t o s eletivos,
tornando-se d e p u t a d o s , s e n a d o r e s , c o n s e l h e i r o s de E s t a d o e ministros. M e s m o após a
proibição da a c u m u l a ç ã o de c a r g o s , o papel dos magistrados c o n t i n u o u a ser m u i t o
importante. Eles faziam e desfaziam carreiras políticas, p o r influência o u por ação
política direta.

Os PODERES DO EXÉRCITO

O Império n ã o fez g r a n d e s m o d i f i c a ç õ e s na o r g a n i z a ç ã o m i l i t a r herdada da época


colonial ( r e g i m e n t o s de p r i m e i r a l i n h a , milícias e o r d e n a n ç a s ) , mas apoiou-se n u m a
estrutura d u p l a : além d o E x é r c i t o , havia t a m b é m a G u a r d a N a c i o n a l , u m a milícia de
cidadãos-soldados.
D e p o i s d a I n d e p e n d ê n c i a , a h o s t i l i d a d e dos brasileiros c o n t r a o E x é r c i t o regular
— força repressiva d o g o v e r n o c o l o n i a l — g a n h o u nova d i m e n s ã o . O s oficiais supe-
riores eram quase t o d o s p o r t u g u e s e s e, para a elite p o l í t i c a , o E x é r c i t o se identificava
com o p r i m e i r o i m p e r a d o r , c o n s i d e r a d o apenas u m 'brasileiro de a d o ç ã o ' . Era quase
uma guarda p r e t o r i a n a , fiel a u m m o n a r c a centralizador, a b s o l u t o , quase despótico.
A abdicação de d o m P e d r o I e m 1 8 3 1 n ã o logrou m o d i f i c a r a opinião generalizada de
que, q u a n d o d e m a s i a d o forte, o aparato m i l i t a r c o n s t i t u í a u m a a m e a ç a à liberdade, à
democracia e à prosperidade e c o n ô m i c a . 2 4
O s políticos — liberais à frente — esforça-
ram-se por marginalizar o E x é r c i t o , d e s c o n f i a n d o de u m a força militar disciplinada,
permanente, n a c i o n a l . Preferiam u m a milícia civil, constituída por cidadãos-soldados,
sob a autoridade de um c o m a n d o regional. O s discursos dos parlamentares são muito
esclarecedores a esse respeito. E m 1 8 2 3 , o deputado H e n r i q u e de Rezende declarava
na Assembléia C o n s t i t u i n t e : " D e s d e q u e as nações tiveram forças militares regulares e
disciplinadas, elas foram reduzidas h escravidão, porque as corporações que vivem sob
leis tão duras e despóticas, c o m o são os regulamentos militares, n ã o podem admitir
que outros cidadãos possam gozar de uma legislação mais suave e mais fácil ( . . . ) .
O bem n u n c a c h e g a n d o ao alcance do soldado, este n ã o tem interesse em que e x i s t a . . . "
C i n c o anos mais tarde, o deputado baiano L i n o C o u t i n h o afirmava mais o u m e n o s a
112 BAHIA, SÉCULO X I X

m e s m a c o i s a : s e g u n d o ele, o E x é r c i t o e a M a r i n h a de G u e r r a e r a m " b o c a s que devoram


i l e g a l m e n t e , t o d o s os a n o s , os r e c u r s o s d a n a ç ã o " . U m a n o d e p o i s , ele acrescentava q U e

" o I m p é r i o d o B r a s i l n ã o é o I m p é r i o f r a n c ê s (sic), e m q u e u m c o m a n d a n t e militar


r e p r e s e n t a t u d o n u m a v i l a " . P a r a q u e serve, p e r g u n t a v a ele, u m militar c h a m a d o de
c o m a n d a n t e ? E ele l e v a n t a v a a q u e s t ã o d e s a b e r se n ã o a c a b a r i a m t o d o s sob o " d o m í
n i o d e f e r r o " d o s m i l i t a r e s se n ã o fosse p o s t o u m fim a o " s i s t e m a m i l i t a r " . 2 5

TABELA 53

EVOLUÇÃO DO EFETIVO LEGAL DO EXÉRCITO

ANO EFETIVO VARIAÇÃO ANO EFETIVO VARIAÇÃO

1830 30.000 100,0 1871 19.000 63,3

1831 14.342 47,8 1880 15.000 50,0

1841 20.925 69,7 1889 13X)00 43,3

1848 16.000 53,3 1892 27.013 90,0

1855 20.000 66,6 1907 30.066 100,2

1863 16.000 53,3 1920 45.405 151,3

1865 35.689 118,9

O 1830 = 100,0.
Fonte: Relatórios do Ministério da G uerra, citados por E . Campos Coelho, Em busca da identidade: o exército e a polícia na
sociedade brasileira, p . 4 0 .

A a b d i c a ç ã o d e d o m P e d r o I n o c o n t e x t o d e u m a r e v o l t a m i l i t a r c r i o u a oportu-
n i d a d e ideal p a r a reduzir o s e f e t i v o s d o E x é r c i t o , a c u s a d o de i n d i s c i p l i n a , e criar a
Guarda Nacional, demonstrando a força e a influência da corrente política
a n t i m i l i t a r i s t a . S e d e s c o n t a r m o s a é p o c a d a G u e r r a d o P a r a g u a i , os efetivos do Exér-
c i t o s ó r e t o r n a r a m a o n í v e l de 1 8 3 0 d e p o i s d a P r o c l a m a ç ã o d a R e p ú b l i c a . N ã o se
e s t a v a d i a n t e de u m p r e c o n c e i t o e n r a i z a d o a p e n a s e n t r e os p o l í t i c o s . N o s m e i o s popu-
lares, o serviço m i l i t a r t i n h a c r i a d o e s t e r e ó t i p o s n e g a t i v o s . A s razões eram múltiplas:
r e c r u t a m e n t o f o r ç a d o , j o v e n s m a l t r a t a d o s , s e r v i ç o s m u i t o l o n g o s , s o l d o insuficiente e
s e m p r e p a g o c o m a t r a s o . O s e r v i ç o n a G u a r d a N a c i o n a l , ao c o n t r á r i o , gozava de
g r a n d e p r e s t í g i o s o c i a l . N e m a guerra c o n t r a o P a r a g u a i l o g r o u m e l h o r a r a i m a g e m do
E x é r c i t o , pois t o d a a glória d o s c o m b a t e s foi a t r i b u í d a aos c o r p o s de voluntários,
r e c r u t a d o s e s p e c i a l m e n t e nessa o c a s i ã o . A c a r r e i r a de oficial só atraía os que nao
p o d i a m ingressar e m profissões liberais e os f i l h o s de famílias em q u e já existia tradição
m i l i t a r . O D u q u e de C a x i a s ( f i l h o c n e t o de oficiais superiores, q u e se t o r n o u ministro
e d e p o i s p r i m e i r o - m i n i s t r o ) , D e o d o r o da F o n s e c a e o u t r o s oficiais q u e , n o século X I >
se d i s t i n g u i r a m n a vida social d o país ficaram mais c o n h e c i d o s c o m o políticos. Q u a n
d o d e s e j a v a m ser a c e i t o s pela s o c i e d a d e civil, eles tiravam o u n i f o r m e . "

Essa m a r g i n a l i z a ç ã o d o E x é r c i t o c o r r e s p o n d i a , aliás, a u m a certa reserva, a uma


g r a n d e d i s c r i ç ã o das t r o p a s q u e v i v i a m na r o t i n a das casernas e das guarnições on
LIVRO I V - O ESTADO: ORGANIZAÇÃO E EXERCÍCIO DOS PODERES 243

gínquas. O s oficiais eram f r e q ü e n t e m e n t e transferidos e os c o m a n d a n t e s cram c o n -


trolados pelos presidentes das provincias — pelo m e n o s até 1 8 8 4 , q u a n d o explodiu
a questão m i l i t a r ' , q u e teve um peso decisivo na q u e d a da M o n a r q u i a . A P r o c l a -
m a ç ã o da R e p ú b l i c a p o d e ser c o n s i d e r a d a c o m o o artificio usado pelo E x é r c i t o para
não p e r e c e r . 2

A partir da G u e r r a d o P a r a g u a i , m u d o u a m e n t a l i d a d e dos militares, q u e c o n s i d e -


raram mal r e c o n h e c i d o s e mal r e c o m p e n s a d o s os serviços por eles prestados. P o r o u t r o
lado, a guerra m o s t r o u a o s j o v e n s oficiais as graves i m p e r f e i ç õ e s do E x é r c i t o . N a
época, o E s t a d o c o n s a g r o u 5 0 % de seu o r ç a m e n t o ao c o n f l i t o , m a s esse m o n t a n t e foi
d r a s t i c a m e n t e r e d u z i d o , c h e g a n d o a 8 % e m 1 8 7 8 - 1 8 7 9 , o mais b a i x o nível de toda a
história do I m p é r i o . U m real m a l - e s t a r se i n s t a l o u nas fileiras e foi expresso em vários
artigos p u b l i c a d o s na Revista do Exército Brasileiro ( 1 8 2 2 ) , u m a revista profissional,
que p r e t e n d i a ser a p o l í t i c a , m a s q u e m o s t r a v a b e m a m u d a n ç a de m e n t a l i d a d e s , já que
em alguns artigos t r a n s p a r e c i a o d e s c o n t e n t a m e n t o dos j o v e n s oficiais. A m o r t e do
D u q u e de C a x i a s , e m 1 8 8 0 , foi o c h o q u e q u e r e s t i t u i u a l i b e r d a d e aos oficiais. A forte
personalidade de C a x i a s c o n s t i t u í r a u m o b s t á c u l o à l i q u i d a ç ã o d o E x é r c i t o , cuja c o e -
são fora m a n t i d a p o r s e u c a r i s m a . E l e era pai e p r o t e t o r , m a s t o t a l m e n t e dedicado à
C o r o a . S u a m o r t e l i b e r o u o c o r p o de o f i c i a i s de u m a t u t e l a rigorosa, p e r m i t i n d o o
a p a r e c i m e n t o d e n o v o s c h e f e s e o fim dos c o n f o r m i s m o s . 2 8

D u r a n t e o I m p é r i o , o E x é r c i t o era m u i t o h e t e r o g é n e o . A o s oficiais recrutados e m


suas próprias fileiras — os m a i s n u m e r o s o s — se o p u n h a m os q u e saíam das academias
militares. A m a i s c é l e b r e delas era a d a P r a i a V e r m e l h a , n o R i o de J a n e i r o , o n d e
pontificava o j o v e m B e n j a m i n C o n s t a n t , a d e p t o das idéias de A u g u s t e C o m t e . O s
primeiros p r e f e r i a m t e n t a r r e s t a b e l e c e r a h o n r a de sua c o r p o r a ç ã o , ao passo q u e os
' c i e n t í f i c o s , f o r m a d o s nas e s c o l a s , r e i v i n d i c a v a m para os militares o d i r e i t o à livre
1

expressão e à c r í t i c a ao g o v e r n o . Essas duas t e n d ê n c i a s a c a b a r a m p o r se unir, transfor-


m a n d o a ' q u e s t ã o m i l i t a r ' n u m dos g r a n d e s p r o b l e m a s d o país e n t r e 1 8 8 3 e 1 8 8 5 .
Nada há de s u r p r e e n d e n t e , p o r t a n t o , na c o n s t a t a ç ã o de q u e as reivindicações do
E x é r c i t o , i m b u í d a s do idéias positivistas de ordem eprogresso e apoiadas pelos republi-
canos civis, t e n h a m d e s e m p e n h a d o u m papel p r e p o n d e r a n t e na instauração do regime
republicano em 1889. 2 9

ORGANIZAÇÃO DAS FORÇAS PARAMILITARES: A GUARDA NACIONAL E A POLÍCIA

N o c o n t e x t o da década de 1 8 3 0 , d e s p e r t o u n a t u r a l m e n t e a idéia de f o r m a r corpos


paramilitares, sob a a u t o r i d a d e direta d o g o v e r n o civil. E s t e tinha um o b j e t i v o d u p l o :
dispor de u m c o n t r a p e s o a um E x é r c i t o cuja fidelidade era duvidosa e associar os civis
às tarefas de p o l i c i a m e n t o c defesa de um E s t a d o ainda p o u c o burocratizado. Excelen-
te maneira de exercer, sobre a n a ç ã o inteira, u m c o n t r o l e c o n t í n u o e discreto.
A lei de 18 de agosto de 1 8 3 1 extinguiu os corpos de milícias e ordenanças,
244 BAHIA, SÉCULO X I X

heranças do período colonial e subordinados ao M i n i s t é r i o da G u e r r a , e criou a


Guarda N a c i o n a l , 3 0
colocada sob autoridade judiciária e c o n c e b i d a c o m o um instru-
m e n t o de luta c o n t r a os q u e se o p u n h a m à nova o r d e m l e g a l . 31
Cabia-lhe defender a
C o n s t i t u i ç ã o , a independência, a integridade do I m p é r i o , as leis e a tranqüilidade
pública, além de ajudar o E x é r c i t o n o c o n t r o l e de fronteiras e costas.
A organização p e r m a n e n t e da G u a r d a N a c i o n a l foi confiada ao poder civil: juízes
de paz, juízes de primeira instância, presidentes das províncias e M i n i s t é r i o da Justiça.
Para afirmar o caráter apolítico da nova organização armada, a lei estipulava que toda
deliberação t o m a d a p o r ela e m matéria de assuntos civis seria "considerada c o m o um
atentado c o n t r a a liberdade e u m delito c o n t r a a C o n s t i t u i ç ã o " , garantindo-se, ao
governo, poder para dissolver a G u a r d a , se julgasse necessário. O artigo 7 da lei que
criava a G u a r d a N a c i o n a l proibia os integrantes da c o r p o r a ç ã o de t o m a r e m as armas
sem ordem expressa de seus c o m a n d a n t e s q u e , p o r sua vez, deviam tê-la recebido da
autoridade civil à qual estavam s u b o r d i n a d o s .

O r e c r u t a m e n t o para a G u a r d a N a c i o n a l atingia " t o d o s os b o n s cidadãos" livres


que tivessem mais de dezoito anos e m e n o s de sessenta, cujas rendas fossem superiores
a 2 0 0 . 0 0 0 réis anuais para as províncias do R i o , B a h i a , P e r n a m b u c o e M a r a n h ã o , e de
1 0 0 . 0 0 0 réis para as outras províncias. Assim, só os 'cidadãos ativos* serviam como
guardas nacionais, e m a n a n d o daí o caráter elitista e conservador desse corpo. Podiam
servir na reserva aqueles para q u e m o 'serviço o r d i n á r i o ' exercido dentro d o município
fosse considerado m u i t o o n e r o s o . S e g u n d o o artigo 18 da lei que criou a Guarda Na-
cional, faziam parte da reservaos funcionários públicos, advogados, médicos, cirurgiões,
farmacêuticos (que o b t i n h a m dispensa), estudantes, empregados dos arsenais e de ofi-
cinas de cerâmica. P o r o u t r o lado, a organização d o serviço era considerada c o m o 'or-
dinária' q u a n d o os guardas nacionais exerciam suas responsabilidades dentro do muni-
cípio. Havia, a mais, os serviços prestados em auxílio ao Exército em caso de força maior.

N a infantaria e na artilharia, a unidade de base era u m a c o m p a n h i a de 1 0 0 a 140


homens, comandada por u m capitão e dividida em seções. Q u a t r o a oito companhias
formavam um batalhão, sob o c o m a n d o de u m t e n e n t e - c o r o n e l . A unidade de base da
cavalaria era o esquadrão de três companhias, cada u m a c o m 1 4 0 a 2 0 0 homens. Dois
a quatro esquadrões formavam um c o r p o . O n d e havia mais de mil homens, a Guarda
Nacional formava uma legião. Salvador tinha duas legiões.
Entre 1831 c 1 8 3 4 , os oficiais e suboficiais eram eleitos pelas tropas (ao governo,
cabia nomear apenas os majores-instrutores e os comandantes de legião), mas esse
sistema foi modificado pouco a pouco, até desaparecer com a lei de 1 8 5 0 . A partir
dela, só os oficiais subalternos continuaram sendo eleitos pela tropa. O comandante
superior da Guarda c todos os integrantes de seu estado-maior, nomeados pelo gover-
no central, passaram a submeter, aos presidentes das províncias, indicações para os
comandos locais e os oficiais de companhia.
Os guardas nacionais forneciam seus próprios uniformes, armas e munições, o que
era muito vantajoso para o Estado. Fica claro, portanto, que essa instituição estabele-
LIVRO I V - O ESTADO: ORGANIZAÇÃO F. EXERCÍCIO DOS PODERES 245

cia um n o v o m o d e l o d e relação e n t r e o p o d e r (ainda p a t r i m o n i a l ) e a sociedade civil,


tornando-se a artífice da c o n s o l i d a ç ã o d o n o v o E s t a d o , pois reproduzia fielmente
todas as estruturas da s o c i e d a d e brasileira. A e x c l u s ã o dos escravos conservava e a c e n -
tuava a clivagem essencial d a s o c i e d a d e . A e s c o l h a de oficiais de todas as p a t e n t e s e n t r e
as camadas sociais livres e a b a s t a d a s indicava u m a s e g u n d a c l i v a g e m . T o d a a p o p u l a -
ção livre se associava, n u m a e s p é c i e de serviço l i t ú r g i c o prestado ao E s t a d o . O o f í c i o
exercido p o r u m i n d i v í d u o era u m c r i t é r i o m a i s i m p o r t a n t e para sua admissão n o
corpo de o f i c i a i s d o q u e o m o n t a n t e de suas r e n d a s . E m p r i n c í p i o , os artesãos e os
pequenos c o m e r c i a n t e s n ã o p o d i a m se t o r n a r oficiais (as raras e x c e ç õ e s a essa regra
estavam e x p o s t a s à p e r d a d e p a t e n t e ) , o q u e t a m b é m c o n t r i b u í a para c o n s o l i d a r as
hierarquias sociais e x i s t e n t e s . 3 2

Até 1 8 7 3 , o g o v e r n o r e c o r r e u à G u a r d a N a c i o n a l para t o d o s os serviços policiais


do território — p r e s e r v a ç ã o d a o r d e m , c a p t u r a e g u a r d a dos c r i m i n o s o s , repressão a
revoltas a r m a d a s , e s c o l t a de f u n d o s p ú b l i c o s e de g ê n e r o s a l i m e n t í c i o s , c a ç a aos escra-
vos fugitivos e d e s t r u i ç ã o de seus e s c o n d e r i j o s , repressão a o tráfico e t c . — e para
serviços h o n o r í f i c o s , c o m o a p a r t i c i p a ç ã o n a s p r o c i s s õ e s , paradas e revistas, tão fre-
qüentes e m S a l v a d o r . N a s s o l e n i d a d e s m i l i t a r e s , a G u a r d a t i n h a p r e c e d ê n c i a sobre o
Exército. N e s s e a n o foi p r o m u l g a d a a lei q u e r e t i r o u as f u n ç õ e s policiais da G u a r d a ,
baixou o l i m i t e de i d a d e p a r a q u a r e n t a a n o s e s u p r i m i u as p a t e n t e s h o n o r í f i c a s de
oficial. A p a r t i r d a í , e s o b r e t u d o d e p o i s de 1 8 8 0 , ela g r a d a t i v a m e n t e se t o r n o u u m a
espécie de c o r p o r a ç ã o f o r m a d a e x c l u s i v a m e n t e p o r seus o f i c i a i s . D e i x o u de interessar
ao poder, c u j a s e s t r u t u r a s a d m i n i s t r a t i v a s j á e s t a v a m e s t a b e l e c i d a s . N a B a h i a , a criação
de u m a verdadeira P o l í c i a , s e p a r a d a da G u a r d a N a c i o n a l , serve c o m o e x e m p l o dos
problemas e n c o n t r a d o s p e l o j o v e m E s t a d o i n d e p e n d e n t e para organizar a defesa das
instituições e a p r o t e ç ã o d a paz c i v i l .

O p r i m e i r o c o r p o de P o l í c i a d a c i d a d e d e S a l v a d o r foi c r i a d o p o r d e c r e t o i m p e -
rial em 17 de fevereiro de 1 8 2 5 , c o m p o s t o p o r u m e s t a d o - m a i o r e duas c o m p a n h i a s ,
cada u m a c o m 1 1 6 h o m e n s , e n t r e o f i c i a i s e s o l d a d o s , r e c r u t a d o s e n t r e os integrantes
das tropas regulares. Eles t i n h a m a m i s s ã o de zelar pela preservação da o r d e m e a
aplicação das portarias d o C o n s e l h o M u n i c i p a l . Esse p r i m e i r o c o r p o de Polícia pres-
tou serviços apreciáveis n a B a h i a , e n t ã o t u m u l t u a d a pelas revoltas de escravos, dos
levantamentos civis e dos m o t i n s a n t i p o r t u g u e s e s , q u e d u r a r a m até 1 8 3 1 . M a s sua
participação n o s t u m u l t o s q u e seguiram a a b d i c a ç ã o de d o m P e d r o I levou o presi-
dente da Província a d i s s o l v e - l o , s u b s t i t u i n d o - o pela G u a r d a M u n i c i p a l , criada em 5
de j u n h o de 1 8 3 1 . Tratava-se d c u m c o r p o de m i l i c i a n o s r e m u n e r a d o s , recrutados
entre as pessoas fiéis a o g o v e r n o da R e g ê n c i a , d i r e t a m e n t e s u b o r d i n a d o s aos juízes de
paz e destinados p r i n c i p a l m e n t e a ajudar a J u s t i ç a c preservar a o r d e m pública.

Essas guardas m u n i c i p a i s n ã o foram um privilegio c o n c e d i d o a Salvador, sendo


criadas c m t o d o s os distritos da P r o v í n c i a . M a s , c o m o advento da G u a r d a N a c i o n a l ,
apenas a capital m a n t e v e um c o r p o m u n i c i p a l p e r m a n e n t e , criado em fevereiro de
1 8 3 2 c f o r m a d o por u m e s t a d o - m a i o r , uma c o m p a n h i a de cavalaria e duas de infanta-
246 BAHIA, SÉCULO X I X

ria. A c o m p a n h i a s u p l e m e n t a r de p e r m a n e n t e s de infantaria, encarregada a partir de


1 8 3 3 da segurança de toda a P r o v í n c i a , n e m s e m p r e interveio de f o r m a imparcial nas
disputas de poder travadas entre chis familiares, c o m o f i c o u patente n o caso da disputa
q u e opôs dois poderosos clãs familiais, os Passos e os S i n t r a , na vila de N o s s o Senhor
do B o n f i m , e n t r e 1 8 3 1 c 1 8 3 2 . 3 3

O A t o A d i c i o n a l de 1 8 3 4 , q u e s u b s t i t u i u os c o n s e l h o s j n u n i c i p a i s por uma Assem-


bleia Legislativa, delegou a esta ú l t i m a o p o d e r de organizar a P o l í c i a da Província. Em
j a n e i r o de 1 8 3 5 , o c o m a n d a n t e d o E x é r c i t o na B a h i a c r i o u um c o r p o de Polícia
provisório para substituir o 3 o
B a t a l h ã o , q u e c u m p r i r a até e n t ã o essa f u n ç ã o , mas que
fora dissolvido depois de u m m o t i m . Esse n o v o c o r p o era f o r m a d o por destacamentos
dos batalhões da g u a r n i ç ã o d a c i d a d e . P a r a evitar n o v o s m o t i n s , c a d a destacamento
assumia, a l t e r n a d a m e n t e , suas f u n ç õ e s policiais d u r a n t e u m m ê s , f i c a n d o sob o co-
m a n d o de u m m a j o r . A i n d a e m 1 8 3 5 , u m a g u a r d a foi a c r e s c e n t a d a ao c o r p o munici-
pal dos p e r m a n e n t e s , s o b o c o m a n d o de u m c h e f e de P o l í c i a d i r e t a m e n t e subordinado
ao presidente da P r o v í n c i a . A n o v i d a d e : c a d a distrito teria d o r a v a n t e u m corpo de
guarda, c o m a n d a d o p o r u m d e l e g a d o responsável p e r a n t e o c h e f e d a P o l í c i a .

O r e c r u t a m e n t o dos guardas revelou-se t ã o difícil q u a n t o o dos soldados: não


havia vocações e o s salários eram m u i t o b a i x o s . E n t r e 1 8 3 8 e 1 8 4 9 , os efetivos da
c o r p o r a ç ã o variaram de q u i n h e n t o s a seiscentos h o m e n s , apesar da fusão c o m os
guardas m u n i c i p a i s . 3 4
E r a p o u c o , para u m t e r r i t ó r i o de m a i s de 5 0 0 . 0 0 0 k m ! Na 2

capital, para t e n t a r s u p r i r a essa i n s u f i c i ê n c i a (que p e r m a n e c e r i a c r ô n i c a ao longo de


t o d o o século X I X ) c r i o u - s e u m a 'guarda de pedestres', i n i c i a l m e n t e c o m duzentos
h o m e n s , efetivo q u e foi d o b r a d o em 1 8 5 1 .

A e p i d e m i a de c ó l e r a de 1 8 5 5 - 1 8 5 6 desorganizou a v i d a da cidade e suscitou


providências t a m b é m na área de s e g u r a n ç a . E m 1 8 5 9 , os efetivos do corpo da Polícia
chegavam a 8 5 9 h o m e n s , sem i n c l u i r a guarda u r b a n a , q u e nesse a n o contava c o m 155
h o m e n s . E m 1 8 7 0 , os efetivos a t i n g i r a m 9 0 0 h o m e n s ; e m 1 8 7 2 , u m a nova companhia
de guardas urbanos de 1 1 7 h o m e n s foi criada. M a s os salários c o n t i n u a m a ser ridicu-
lamente baixos, apesar da m o b i l i d a d e exigida para esse c o r p o , que devia vigiar toda a
Província. U m a guarda u r b a n a , de c e m h o m e n s , foi criada para ajudar o corpo de
Polícia. D u r a n t e a G u e r r a do Paraguai, cerca de m e t a d e dos efetivos policiais ( 4 7 7
homens) partiu v o l u n t a r i a m e n t e para a frente de c o m b a t e , de o n d e só 7 7 voltariam.
O s demais foram colocados sob o c o m a n d o de um capitão da Guarda Nacional,
corporação a que o governo provincial f r e q ü e n t e m e n t e recorria para preservar a ordem
nas partes mais longínquas do território. E m 1 8 7 3 , c o m a perda das funções policiais
•pela Guarda Nacional, a situação ficou caótica. N o interior, os chefes locais (quase
sempre proprietários de terras) c sua clientela c o n t i n u a r a m a ditar leis por conta
própria. Consolidou-se a influencia dos todo-poderosos 'coronéis , que durante muito 1

tempo marcaram a política r e g i o n a l . 35

Se a Guarda Nacional criou uma espécie de militarização da sociedade brasileira,


foi em prol do Estado e dos chefes locais. O controle exercido pelos presidentes de
- O ESTADO: ORGANIZAÇÃO E EXERCÍCIO DOS PODERES 24-

província era muito relativo, por causa do número reduzido dos efetivos e a imensidão
de um território servido por precárias redes de comunicação. Aos brasileiros restava
uma dupla submissão: ao Estado, em primeiro lugar, que os transformava em milicianos,
e depois aos chefes locais, que monopolizavam o comando dessas milícias.
Mesmo assim, é preciso reconhecer que, com o fim do período colonial, novas
estruturas, correspondentes a um Estado moderno, foram criadas. O papel centralizador
do governo imperial — ajudado pela eficiência dos poderes locais no enquadramento
das populações — permitiu que o Brasil conservasse sua unidade. Depois de 1850,
praticamente não houve mais revoltas de caráter regional.
C APíTULO 15

Os PODERES LOCAIS

Até a Independência, os governos locais eram formados por uma única instituição, as
câmaras municipais. A lei de 2 3 de outubro de 1 8 2 3 , que transformou as antigas
capitanias em províncias, criou a função de presidente de província, conservando o
município como base da administração. De modo geral, a função de presidente de
província podia ser assimilada à de governador de Capitania na época colonial, pois
em ambos os casos as nomeações emanavam de um poder central. Mas havia uma
importante diferença: o governador concentrava todos os poderes, ao passo que o
presidente de província administrava apoiado nas decisões de uma Assembléia Provin-
cial e não tinha sob seu comando os poderes judiciário e militar.
Ao longo dos 6 7 anos de governo imperial, as instâncias municipais e provinciais
tiveram destinos diversos. A evolução política e administrativa refletiu a determinação
com que o Estado desejava controlar todas as atividades da vida pública brasileira.
Manipulou-se a instituição do governo provincial para restringir o poder municipal —
tarefa árdua, contestada com mais ou menos sucesso, o que provocou um encaminha-
mento por etapas, cujos resultados nem sempre corresponderam ao que as partes
envolvidas desejaram.

A INSTITUIÇÃO DO GOVERNO PROVINCIAL

N u m a p r i m e i r a e t a p a ( 1 8 2 3 - 1 8 3 4 ) , o s g o v e r n o s p r o v i n c i a i s se a p o i a r a m n o s p r e s i d e n -
tes, n o m e a d o s pelo i m p e r a d o r , q u e c o n t a v a m c o m a c o l a b o r a ç ã o de u m conselho
c o n s u l t i v o de seis m e m b r o s , e l e i t o s d a m e s m a f o r m a q u e o s d e p u t a d o s à A s s e m b l é i a
G e r a l . E l e s d e v i a m t e r p e l o m e n o s t r i n t a a n o s d e i d a d e e seis d e r e s i d ê n c i a na p r o v í n -
cia. E m c a s o d e v a c â n c i a d a f u n ç ã o p r e s i d e n c i a l , o P o d e r E x e c u t i v o passava ao vice-
p r e s i d e n t e , p o s t o o c u p a d o p e l o c o n s e l h e i r o q u e tivesse o b t i d o o m a i o r n ú m e r o de

248
LIVRO I V -
249

votos na eleição precedente. Se não houvesse suplente ou conselheiro disponíveis, o


sucessor seria o presidente da C â m a r a Municipal da capital.
Essas substituições Foram muito freqüentes na Bahia, mas os conselheiros eleitos
entre 1 8 2 4 e 1 8 2 9 eram, sem exceção, homens com ideias conservadoras, fiéis ao
imperador, alheios às tendências separatistas ou federalistas que abalavam o Brasil. 1
O
primeiro C o n s e l h o foi f o r m a d o por dois altos magistrados, dois senhores de engenho
que haviam c o m a n d a d o tropas durante a guerra pela Independência, um cónego e um
coronel que já integrara o C o n s e l h o M u n i c i p a l de Salvador.

A lei de 1 8 2 3 permitia aos a u t ó c t o n e s aconselhar presidentes que, freqüentemen-


te, vinham de outras províncias. Nas legislaturas entre 1 8 2 5 e 1 8 3 5 , todos os membros
dos conselhos provinciais eram h a b i t a n t e s de Salvador e do R e c ô n c a v o . Além de 2

pouco numerosos, esses conselheiros quase n ã o se renovavam, m a n t e n d o inalterada a


influência das classes d o m i n a n t e s locais.

O A t o A d i c i o n a l de 1 8 3 4 a c a b o u t r a n s f o r m a n d o essa organização. O Conselho de


Província foi substituído p o r u m a Assembléia Provincial Legislativa. Houve uma ten-
tativa de descentralização, nociva porém à a u t o n o m i a das câmaras municipais, pois
todo o c o m a n d o dos n e g ó c i o s da Província foi colocado nas mãos da oligarquia
política, o r i u n d a das classes d o m i n a n t e s . A Assembléia tornou-se uma instituição
poderosa. C o n t r o l a v a , ao m e s m o t e m p o , as câmaras municipais e o presidente e podia
legislar sobre assuntos q u e , nas m o n a r q u i a s unitárias da E u r o p a O c i d e n t a l , eram
reservados ao p o d e r c e n t r a l . Ela p o d i a criar novas paróquias e termos, c o m todo o
aparato j u d i c i á r i o , eclesiástico e escolar c o r r e s p o n d e n t e , decidia sobre desapropria-
ções, elaborava o o r ç a m e n t o da Província, suprimia impostos, criava o u extinguia
postos de f u n c i o n á r i o s provinciais (estipulando seus salários), organizava a Polícia e
assim por diante. A A s s e m b l é i a Provincial controlava, pois, estreitamente, as Câmaras
Municipais, t r a n s f o r m a d a s e m simples órgãos executivos, ao m e s m o tempo que tam-
bém controlava o p r e s i d e n t e . 3

O PODER MUNICIPAL

Na época da I n d e p e n d ê n c i a , q u a n d o a autoridade dos capitães-gerais e dos represen-


tantes de Portugal fora contestada em t o d o o país, criando-se vacâncias de poder em
toda parte, as municipalidades assumiram a direção dos negócios políticos e desempe-
nharam o papel de verdadeiros representantes da nação, ajudando dom Pedro a procla-
mar a Independencia e legitimando o novo r e g i m e . O decreto de 3 de j u n h o de 1 8 2 2
4

encarregou essas mesmas municipalidades de organizar a eleição para a Assembléia


Constituinte de 1 8 2 3 . D u r a n t e todo o período imperial, elas conservaram sua influen-
cia e poder sobre as eleições de deputados, contando sempre com a ajuda da Igreja.
A Carta Constitucional de 1 8 2 4 estipulou os grandes princípios da nova adminis-
tração municipal, mas uma organização mais precisa só foi empreendida após a pro-
2*0 BAHIA, SÉCULO X I X

mulgação da lei de I o
de o u t u b r o de 1 8 2 8 . D e m o d o geral, a legislação adotada foi
centralizadora. C a d a cidade passou a c o n t a r c o m nove vereadores (ou sete, nas cidades
m e n o r e s ) , eleitos por períodos de quatro a n o s .
O artigo 2 4 da C a r t a de 1 8 2 4 especificava q u e o poder das Câmaras Municipais
era de natureza exclusivamente administrativa. T o d a s as posturas municipais que
em geral tratavam da preservação da o r d e m e da saúde pública — deviam ser aprova-
das pelos C o n s e l h o s G e r a i s das províncias, q u e p o d i a m revogá-las o u modificá-las. Em
períodos eleitorais, isto é, de vacância dos C o n s e l h o s , essas portarias eram submetidas
à aprovação d o presidente d a P r o v í n c i a . Q u a l q u e r ' a t o p o l í t i c o ' era expressamente
p r o i b i d o . Para vender, alugar o u p e r m u t a r os b e n s imóveis do m u n i c í p i o , por exem-
plo, as C â m a r a s d e p e n d i a m da a u t o r i z a ç ã o do presidente. Q u a l q u e r c o n t r a t o de loca-
ção devia ser s u b m e t i d o ao referendo do C o n s e l h o G e r a l . T r a t a v a - s e , por conseguinte,
de u m regime centralizador, q u e s u b m e t i a a m u n i c i p a l i d a d e à autoridade provincial.
A b e m da verdade, essa tutela era c o n t r á r i a a alguns artigos da C o n s t i t u i ç ã o de 1 8 2 4 ,
que definiam a separação de a t r i b u i ç õ e s e c o m p e t ê n c i a s e n t r e os poderes e definiam a
independência e c o n ô m i c a das m u n i c i p a l i d a d e s . O artigo 7 8 da Lei de 1 8 2 8 também
era i n c o n s t i t u c i o n a l , ao l e m b r a r i n d e v i d a m e n t e q u e as câmaras municipais estavam
"subordinadas aos presidentes das p r o v í n c i a s , seus p r i m e i r o s administradores". Esse
artigo proibia até a reunião das c â m a r a s , se a pauta fosse considerada 'contrária à l e i ' . 5

E m b o r a tenha sido c o n s i d e r a d a a b u s i v a m e n t e centralizadora, por não deixar ne-


n h u m a a u t o n o m i a e c o n ô m i c a às m u n i c i p a l i d a d e s , essa lei permitia alguma margem de
manobra política e c o n c e d i a , às C â m a r a s M u n i c i p a i s , a t r i b u i ç õ e s apreciáveis. O s elei-
tos souberam tirar proveito dessa situação, s o b r e t u d o q u a n d o se tratava de manter o
d o m í n i o sobre seus c o n c i d a d ã o s . V i m o s q u e o C ó d i g o de Processo C r i m i n a l conferira
diversas prerrogativas às m u n i c i p a l i d a d e s , c o m o a de apresentar, aos presidentes das
províncias, sugestões para a n o m e a ç ã o de t o d o s os f u n c i o n á r i o s do P o d e r Judiciário e
da Polícia locais, recolher as m u l t a s , influir na eleição dos inspetores de quarteirão e
dos juízes de paz, indicar pretendentes à G u a r d a N a c i o n a l e até c o m p o r a lista dos
eleitores do primeiro e d o segundo graus.

T o d o s esses privilégios criaram, aliás, n u m e r o s o s conflitos entre os notáveis locais


e o C o n s e l h o da P r o v í n c i a , a p o n t o de obrigar a Regência a rever essas leis. Resul-
6 7

tante de paixões políticas — c o m o é c o m u m na história d o Brasil — , o A t o Adicional


de 1 8 3 4 reforçou os poderes provinciais em d e t r i m e n t o da autonomia municipal,
aumentando os poderes da Assembléia Provincial em todos os setores que, previamen-
te, eram de competência municipal. As Câmaras Municipais perderam todo poder de
decisão, conservando apenas atribuições administrativas, especialmente nos setores
viário e de higiene e saúde. Passaram à alçada da Assembléia Provincial decisões sobre
desapropriações, repartição de impostos municipais c provinciais, nomeação de fun-
cionários municipais, determinação de seus salários, criação ou supressão de cargos e
indicação de chefes e delegados de Polícia em cada localidade, desde o Sertão até o
Litoral. O único contrapoder às pretensões centralizadoras do Estado passou a ser o
Ü\-RO I V - O ESTADO: ORGANIZAÇÃO E EXERCÍCIO DOS PODERES 251

dos juízes de paz eleitos, mas isso, c o m o vimos, não durou muito. O s próprios liberais,
arquitetos do A t o Adicional, não tardaram a perceber seus defeitos. Tavares Bastos
demonstrou que o Ato não precisou o que era o 'poder municipal'. O u t r o liberal, o
Visconde de Uruguai, d e m o n s t r o u c o m o o poder local ficara reduzido ao papel de
simples administrador. Q u a n t o aos conservadores, suas críticas não foram menos
enérgicas, c o m o era de se esperar. 9

Finalmene, a Lei Interpretativa de 12 de maio de 1 8 4 0 retirou o que restava de


poder às municipalidades, pois os juízes de paz (magistrados eleitos que tinham tanto
funções judiciárias c o m o policiais) foram substituídos por magistrados de carreira que,
nomeados pelo governo central, acumularam as funções de delegados de Polícia, pas-
sando a chefiar os subdelegados. Assim, conferindo maior autonomia aparente ao
poder local, o Estado reforçou a centralização.
Durante todo o p e r í o d o imperial, as municipalidades tentaram recuperar sua
independência, mas n e n h u m projeto teve êxito, apesar dos esforços de deputados
como o Marquês de O l i n d a e o V i s c o n d e de Uruguai. O Império brasileiro tornou-se
um Estado autoritário e centralizador, c o m u m a população legalmente dividida em
homens livres, alforriados e escravos. As instituições refletiam a hierarquia das classes
sociais, fortemente enraizada n o s e n t i m e n t o de toda gente. O s privilégios dos que
possuíam bens ficavam m u i t o claros na escolha dos guardas nacionais, dos magistra-
dos, dos conselheiros municipais e dos conselheiros provinciais.
Mas falta entender os m e c a n i s m o s que permitiam a esses homens açambarcar o
poder e os limites que havia para o exercício desse poder, tantas vezes qualificado de
absoluto. T o d o s os analistas da vida política brasileira do século X I X estão de acordo
sobre o papel desempenhado pelas províncias do Nordeste na formação do Estado
Nacional. Qual foi o papel da Bahia, especialmente de suas elites? Sugiro uma realida-
de mais 'quente* e bastante diferente desta, por demais fria e formal, que acabo de
expor. Na verdade, a m i n u c i o s a descrição que fizemos era necessária para que possa-
mos captar agora se esse grilhão administrativo podia adaptar-se ou não — e c o m o
poderia fazê-lo — à ação das forças que se enfrentavam. Poderes, interesses e forças
locais e nacionais não eram o reflexo exato da organização administrativa, mas sabiam
tirar proveito dessa organização. É preciso que se veja c o m o isso sc passava, sem
esquecer, aliás, que os interesses freqüentemente convergiam, quando se tratava de
controlar, enquadrar e vigiar. N e m todos os brasileiros — mesmo entre os que tinham
certos direitos de voto — participavam, verdadeiramente, da vida política.
CAPÍTULO 16

A E L I T E BAIANA E A FORMAÇÃO
D O E S T A D O NACIONAL

E l i t e é a p r i m e i r a p a l a v r a a s e r d e f i n i d a n e s t e c a p í t u l o . S e g u n d o o d i c i o n á r i o , ela é o
q u e h á d e m e l h o r e m u m g r u p o . L o g o , as p e s s o a s q u e o c u p a m o s p r i m e i r o s lugares em
u m a s o c i e d a d e f a z e m p a r t e d a e l i t e . M a s , a b e m d a v e r d a d e , tais c r i t é r i o s s ã o abstratos:
s ó se p o d e ser o m e l h o r ' e m u m g r u p o d o t a d o d e c e r t a h o m o g e n e i d a d e .
c

O r a , nada m e n o s h o m o g ê n e o do q u e a sociedade baiana, formada por homens


livres e e s c r a v o s , r i c o s e p o b r e s , l i b e r t o s e filhos d e l i b e r t o s . C a d a g r u p o teria os seus
m e l h o r e s , a s u a elite? O e s c r a v o q u e se t o r n a v a o p o r t a - v o z d e seus c o m p a n h e i r o s
j u n t o a o s e n h o r era r e c o n h e c i d o p o r t o d o s — escravos e senhores — c o m o membro
de u m a e l i t e . S e fosse n e c e s s á r i o , o a l u f á , c h e f e r e l i g i o s o m u ç u l m a n o , era escolhido
c o m o i n t e r l o c u t o r pelas a u t o r i d a d e s c i v i s e j u d i c i á r i a s . 1
L o g o , e x i s t i a m elites fora do
â m b i t o dos p r i v i l e g i a d o s p e l a f o r t u n a e o p o d e r . O s h o m e n s livres t i n h a m suas hierar-
q u i a s , os c a t i v o s t a m b é m .

E l i t e s d e s c o n h e c i d a s s a e m d o a n o n i m a t o e m s i t u a ç õ e s d e crise, r e v e l a n d o brusca-
m e n t e p o d e r e s a t é e n t ã o s e c r e t o s o u , p e l o m e n o s , m a l c o n h e c i d o s e m a l apreciados. O
p o d e r p o l í t i c o f o r m a l é p e r c e b i d o c o m m a i s f a c i l i d a d e , f a z e n d o c o m q u e aqueles que
o e x e r c e m e m q u a l q u e r nível p a r e ç a m i n t e g r a r a e l i t e . C o n s i d e r a d a , p o r é m , c o m o um
t o d o , c o m o esta e l i t e vive e se m o v i m e n t a d e n t r o d a m a s s a ? T e n t a r e m o s c o m p r e e n d e r
c o m o u m i n d i v í d u o — o u g r u p o d e i n d i v í d u o s — c o n s e g u e p e n e t r a r na elite r e c o n h e -
c i d a , a c e i t a p o r t o d o s os i n t e r l o c u t o r e s .

N u m a p r i m e i r a e t a p a , o ' m e l h o r * é d e s i g n a d o p o r u m c o n s e n s o social, segundo


critérios de c o m p o r t a m e n t o , b e r ç o , e d u c a ç ã o e r i q u e z a . M a s é indispensável que esse
r e c o n h e c i m e n t o se t o r n e p ú b l i c o , a l c a n ç a n d o as i n s t i t u i ç õ e s e o p o d e r oficial. N a
B a h i a , u m c o m e r c i a n t e , p o r mais r i c o , p o r mais respeitado e p o r mais i n s t r u í d o que
fosse, t i n h a s e m p r e u m p o d e r l i m i t a d o e u m p r e s t í g i o p u r a m e n t e local.
D u r a n t e t o d o o p e r í o d o i m p e r i a l , o s c o m e r c i a n t e s baianos o c u p a r a m posições
secundárias na c e n a política, ofuscados pelos p r o p r i e t á r i o s de terras, s e m p r e em evi-

252
J j V R O Í V
- O E
* T W
» ORWMZAÇto E EXERCÍCIO POS PODERES 253

d c n c a c detentores dos primeiros papéis no plano nacional. Nem todo mundo .


era
senhor de engenho ou filho de senhor de engenho, mas só eles tinham prestigio
mesmo que houvesse homens mais ricos. Embora muito recente — a família Costa
Pinto, por exemplo, cuja genealogia ja analisei, passou ., ocupar lugares proeminentes
em apenas duas gerações - a propriedade da terra era a certidão necessária c suficiente
para ingressar no grupo dos privilegiados oficiais, reconhecidos como integrantes da
elite do país.
O nascimento e a propriedade da terra eram passaportes indispensáveis para in-
gressar no restrito círculo da elite dc Salvador. Mas não eram os únicos. Existiam
funções (a magistratura e algumas elevadas funções do Estado, por exemplo) ou con-
dições (diploma de direito ou de medicina, por exemplo) que abriam vias de acesso a
essa posição social.

A distinção entre elite graças à riqueza e ao berço e elite graças ao cargo não
deve nos iludir. T o d o s esses homens pertenciam ao mesmo meio social, que era o
núcleo onde se formavam as elites baianas e se confirmavam os atributos do peque-
no círculo de proprietários de terras. Apenas indivíduos excepcionais, vindos de ou-
tros meios sociais ou de outras comunidades, conseguiam penetrar nesse pequeno
mundo fechado.

A elite baiana a que estou me referindo agora não é a dos verdadeiros líderes —
raros, mas mais numerosos do que se pensa — que surgiram em meio a crises sociais
ou políticas e cuja força só foi reconhecida por autoridades (privadas ou públicas) que
buscavam interlocutores capazes de aplainar dificuldades momentâneas. A elite baiana
que queremos definir é aquela que desempenhou um papel oficial na formação do
Estado nacional e que era, na verdade, a elite de uma elite. Algumas centenas de
afortunados homens que — por laços familiares, alianças, riqueza, estudos e tempera-
mento — souberam c quiseram servir a seu país, ajudando o imperador a organizar c
fortalecer as estruturas de um Estado ainda jovem e mal estabelecido no contexto
internacional.
O Estado brasileiro não nasceu ex nihilo. Foi mais transformado que criado. À
gestão patrimonial portuguesa, o Estado monárquico brasileiro tomou emprestada a
colaboração do poder privado, nascido das próprias circunstâncias do processo coloni-
zador. Foi o que garantiu seu sucesso. Este poder — que ora foi sentido no Brasil
corno usurpador, ora c o m o detentor dc uma delegação do Estado centralizador —
conseguiu sobreviver graças ao ritmo muito lento da evolução das estruturas sociais c
econômicas c das mentalidades. O 'novo Estado brasileiro', que se construiu sem
confrontos graves mas implantou um sistema de governo centralizador c autoritário,
manteve a união nacional contra ventos c marés. Mas, na segunda metade do século,
embalado por seus primeiros sucessos, ele não soube ampliar suas bases políticas: em
18K9, no fim do período imperial, só 1 0 % da população tinham direito a voto, e a
escravidão tinha sido rcccm-abolula. O monarca compartilhava cada vez menos o seu
1'odcr Moderador.
254 BAHIA. SÉCULO XIX

A principal p r e o c u p a ç ã o do poder central n o século X I X foi transformar as insti-


tuições locais, regionais e até nacionais c m cargos de alta fiscalização. A organização
judiciária, policial e política dos m u n i c í p i o s c das províncias foi, aliás, um excelente
i n s t r u m e n t o para um poder central e x i g e n t e , c o n t r o l a d o r , às vezes esmiuçador. A
colaboração das elites locais era, sem dúvida, desejada, mas p o u c o a p o u c o se criou um
c o r p o paralelo de f u n c i o n á r i o s c de magistrados, d e d i c a d o s ao g o v e r n o imperial c não
subordinados aos representantes da o r d e m privada. V e r e m o s , por e x e m p l o , como
açiam os altos magistrados, q u e c o l o c a v a m o interesse nacional antes do de suas
províncias ou m u n i c í p i o s de o r i g e m . N a a p a r ê n c i a , e r a m p o t e n t a d o s locais; na reali-
dade, eram eficazes agentes da i n t e g r a ç ã o n a c i o n a l . As forças centrípetas venceram as
2

centrífugas. Após 1 8 5 0 , o n ú m e r o de a ç õ e s c o n t e s t a d o r a s d e i x o u de ser significativo,


firmando-se o c o n t r o l e do E s t a d o .
O debate entre c e n t r a l i z a ç ã o e d e s c e n t r a l i z a ç ã o é u m falso d e b a t e . Talvez fosse
melhor levar em c o n t a as diferenças e n t r e , de u m l a d o , u m sistema político suposta-
mente representativo e inspirado nos m o d e l o s e u r o p e u s e, de o u t r o , o autoritarismo
patrimonial e h i e r á r q u i c o do P o d e r E x e c u t i v o c e n t r a l . F i n a l m e n t e , o universo político
só comportava poucos eleitores e m u i t o p o u c o s políticos. Isso não significa que inexistisse
certo t i p o de representação p o l í t i c a . A t é a d é c a d a de 1 8 7 0 , o sistema era, ao mesmo
3

tempo, oligárquico e representativo de a l g u m a s c a m a d a s sociais.

S ó após 1 8 7 0 — e, m e s m o assim, em grandes cidades c o m o Salvador — é que


uma nova classe social, u m a 'classe m é d i a ' e d u c a d a , c o m e ç o u a a f i r m a r sua capacidade
de governar. O g o v e r n o imperial m o s t r o u - s e i n c a p a z de aceitar e integrar essas forças
políticas locais e regionais, c a d a vez mais ativas. T e v e i n í c i o u m processo de desinte-
gração, p a r t i c u l a r m e n t e n í t i d o nesse m a g n í f i c o p o s t o de observação q u e é a Bahia.
Para c o m p r e e n d e r o peso desse m o v i m e n t o , basta estudar, em t o d o o decorrer do
século, essas elites regionais e seu papel n a c i o n a l .

A ELITE POLITICA BAIANA

N ã o disponho de n e n h u m a análise geral das elites políticas da Bahia n o século X I X .


Só tenho informações sobre alguns vultos que fizeram carreiras excepcionais. Além 4

disso, este estudo sobre a sociedade baiana m e leva a colocar algumas questões de
antemão.
C o n t a n d o com membros eleitos, o novo Poder Legislativo — definido pela Consti-
tuição de 1 8 2 4 , completada pela Lei O r g â n i c a dos M u n i c í p i o s ( 1 8 2 8 ) , o Ato Adicional
de 1834 e diversas leis eleitorais — se manifestava cm todos os níveis da administração
publica: municipal, provincial c nacional. O Poder Judiciário oferecia alguns cargos
aos cidadãos ativos: juízes de paz eleitos (mais tarde, nomeados), delegados e subde-
legados de polícia nomeados. A Guarda Nacional, milícia de cidadãos-soldados, era
comandada, em diversos níveis, por oficiais oriundos da sociedade civil. O s titulares de
I j V R O l X
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todos esses cargos tinham a oportunidade de exercer legalmente uma parcela de poder,
inserida no esforço de construção de um Estado nacional, independente e unitário. O s
homens investidos dessas responsabilidades pertenciam, cm sua grande maioria, à elite
da sociedade baiana. Eram os notáveis, relativamente numerosos se levarmos em conta
ã quantidade de funcionários das municipalidades e de membros das Assembléias
Provinciais. É impressionante constatar o grande número de deputados que, nascidos
cm famílias de Salvador ou de sua hinterlândia, se tornaram representantes dos distritos
mais longínquos do S e r t ã o , s o b r e t u d o nos vinte primeiros anos da vida parlamentar.
Achei interessante tentar acompanhar, na medida do possível, a evolução desse papel
preponderante de Salvador ou do R e c ô n c a v o na vida política de toda a Província. Nessa
perspectiva, surgiu u m a série de perguntas: cm que 'camadas superiores' da hierarquia
social se elegiam os m e m b r o s das câmaras municipais, e das assembléias Provincial e
Nacional? Q u a l era o grau de instrução e a profissão desses eleitos? A quem representam
e por que o faziam? E m que m o m e n t o Salvador e sua hinterlândia deixaram de desempe-
nhar um papel p r e p o n d e r a n t e e as elites locais assumiram, nos parlamentos, a repre-
sentação de seus distritos? E r a m diferentes as carreiras dos h o m e n s políticos nascidos
na capital ou n o R e c ô n c a v o e as daqueles que nasciam nos municípios do interior?
C o m o um político b a i a n o adquiria envergadura nacional, habilitando-se a se tornar
ministro, senador, c o n s e l h e i r o de Estado o u presidente do Conselho? A carreira políti-
ca ajudava a o c u p a ç ã o posterior de cargos administrativos ou judiciários? E, inversa-
mente, uma carreira c o m e ç a d a na administração ou na magistratura podia desdobrar-
se na política? Q u e m e c a n i s m o s faziam a articulação entre o poder local exercido pela
organização municipal e o poder provincial? Até que p o n t o o primeiro permanecia
subordinado ao segundo? Existiam elos de ligação entre o poder municipal e o poder
central, o u essa ligação passava necessariamente pelo poder provincial? Depois de
conquistar poderes i m p o r t a n t e s , os políticos baianos lutavam pelos interesses da Pro-
víncia que os elegera ou se identificavam c o m o interesse nacional, m e s m o quando os
dois se opunham? A 'carreira' obrigava os políticos a subir todos os degraus — munici-
pal, provincial e nacional — da representação o u era possível queimar etapas?

Se pudermos responder a essas dez perguntas, ou pelo m e n o s propor hipóteses de


trabalho sobre cias, teremos uma b o a visão geral sobre a atuação da elite baiana e sua
participação na f o r m a ç ã o do Estado nacional. C o m e ç a r e i pela última, que coloca o
problema das etapas de uma carreira política, pois cia permite que se conheça uma
instituição eletiva de base, a municipalidade de Salvador.

A MUNICIPALIDADE DE SALVADOR E SEUS CONSELHEIROS

C o m o vimos, a Câmara do Senado era uma instituição antiga, cuja estrutura foi
simplificada depois da Independência c da promulgação da lei orgânica de 1 8 2 8 (que
mudou a d e n o m i n a ç ã o do órgão para Câmara Municipal). Segundo o Almanaqueáç
BAHIA, SÉCULO X I X
256

1 8 6 2 , assim sc distribuíam os m e m b r o s e f u n c i o n á r i o s da i n s t i t u i ç ã o : n o v e vereadores,


nove suplentes, secretário, a d v o g a d o , oficial m a i o r , s e g u n d o o f i c i a l , dois amanuenses,
c o n t a d o r , p r o c u r a d o r , agente, tesoureiro, p o r t e i r o , a j u d a n t e de p o r t e i r o , engenheiro,
a d m i n i s t r a d o r de o b r a s , escrivão das vistorias c a l i n h a m e n t o s , a d m i n i s t r a d o r dos cur-
rais, escrivão dos ditos, p o r t e i r o d o c u r r a l , a d m i n i s t r a d o r da c a m p í n h a , recebedor d
a
balança grande, m é d i c o , escrivão d o j ú r i , fiscal geral c doze fiscais parciais.
E n t r e 1 8 0 0 e 1 8 2 9 , os vereadores eram s u b s t i t u í d o s a n u a l m e n t e , mas podiam ser
reeleitos. P o r e x e m p l o , F e l i s b e r t o C a l d e i r a B r a n d t P o n t e s , c o r o n e l d o E x é r c i t o , foi
vereador e m 1 8 0 6 , 1 8 1 2 c 1 8 1 3 ; M a n u e l I n á c i o da C u n h a M e n e z e s , futuro Visconde
do R i o V e r m e l h o c p r e s i d e n t e i n t e r i n o d a P r o v í n c i a em três o c a s i õ e s , foi vereador em
1812, 1 8 1 3 e 1 8 2 3 . Era freqüente que famílias importantes — c o m o os Pires de
C a r v a l h o e A l b u q u e r q u e , o s G a l v ã o e os B r a n d ã o — estivessem representadas no
C o n s e l h o M u n i c i p a l p o r u m d e seus m e m b r o s . Aliás, e n t r e 1 8 0 0 e 1 8 2 3 a eleição
estabelecia apenas u m a lista prévia de n o m e s , s u b m e t i d o s à e s c o l h a d o governador da
Capitania.

A partir de 1 8 2 9 c a t é 1 8 4 0 , os vereadores f o r a m e l e i t o s p o r d o i s a n o s , e n t r e 1841


e 1 8 4 8 por três a n o s c , e n f i m , e n t r e 1 8 4 8 e 1 8 8 9 , p o r q u a t r o a n o s . O n ú m e r o de
vereadores a u m e n t o u r e g u l a r m e n t e — e r a m n o v e e m 1 8 2 9 e q u i n z e em 1 8 8 6 — para
a c o m p a n h a r o c r e s c i m e n t o d e m o g r á f i c o de S a l v a d o r .

Q u a l a o r i g e m social e q u a i s as profissões dos vereadores? Apesar d e m e u s esforços,


não consegui o b t e r d o c u m e n t a ç ã o s o b r e as famílias dessas pessoas, além de listas
i n c o m p l e t a s . E m c o m p e n s a ç ã o , c o n s e g u i i n f o r m a ç ã o farta s o b r e suas profissões e car-
reiras políticas. D o s 4 4 vereadores eleitos e n t r e 1 8 4 0 e 1 8 7 2 , i d e n t i f i q u e i profissional-
m e n t e 3 4 : havia dez m é d i c o s , o i t o a d v o g a d o s , sete f u n c i o n á r i o s , q u a t r o proprietários,
três c o m e r c i a n t e s , u m padre e u m oficial. E n t r e os dez n ã o i d e n t i f i c a d o s , dois eram
vagamente qualificados de ' d o u t o r e s ' . S e i n c l u i r m o s estes ú l t i m o s , vinte conselheiros
(quase a m e t a d e ) t i n h a m profissões liberais. T a m b é m era significativa a presença de
funcionários, mas n ã o havia t a n t o s representantes das atividades e c o n ô m i c a s da cidade.

N ã o se deve, p o r é m , a t r i b u i r a esses n ú m e r o s u m a s i g n i f i c a ç ã o que eles não têm.


E m geral, essas pessoas exerciam várias atividades s i m u l t â n e a s , s u p e r p o n d o funções.
Assim, um advogado o u m é d i c o p o d i a ser ao m e s m o t e m p o alto funcionário; um
proprietário dc terras, e n g e n h e i r o o u até c o m e r c i a n t e . J o s é A u g u s t o Pereira de Mattos,
por exemplo, era advogado e tesoureiro da alfândega da B a h i a . Aliás, todos os verea-
dores pertenciam a famílias e m q u e sc recrutavam f u n c i o n á r i o s i m p o r t a n t e s , c o m o os
Almeida Galvão, os Almeida C o u t o , os M o n t e i r o , os M e n e z e s c outras.
É interessante frisar que só um desses vereadores era de origem nobre: J o s é Félix
da C u n h a Menezes ( 1 8 1 3 - 1 8 7 0 ) , c u j o pai, M a n u e l Inácio da C u n h a Menezes ( 1 7 7 9 -
1 8 5 0 ) , desempenhara um papel i m p o r t a n t í s s i m o na época das guerras da Independên-
cia. Nascido no a n o cm que seu pai voltou a Portugal, M a n u e l Inácio era filho de
Manuel da C u n h a Menezes, governador c capitão-geral da Bahia ( 1 7 7 4 - 1 7 8 0 ) e
terceiro C o n d e de Lumiares, c de Perpétua Gertrudes de Menezes S a r m e n t o . O jovem
257

Manuel a c o m p a n h o u seu rio, F r a n c i s c o da C u n h a M e n e z e s , q u a n d o este último


retornou a Portugal em 1 8 0 5 , depois de c u m p r i r um m a n d a t o de três anos c o m o
governador-geral da B a h i a ( 1 8 0 2 - 1 8 0 5 ) . Seu biógrafo c o n t a c o m o , apesar do fausto e
dos divertimentos da vida lisboeta, M a n u e l Inácio preferiu voltar à Bahia, renuncian-
do à herança deixada por seu t u t o r , o marechal J o s é Rodrigues Pinheiro. N ã o foi,
registre-se, uma a t i t u d e dc c o m p l e t o d e s p r e n d i m e n t o . N o s s o M a n u e l Inácio fizera
uma das maiores fortunas de S a l v a d o r , graças — ainda segundo o biógrafo — ao
monopólio de ó l e o de baleia (esse m o n o p ó l i o foi a b o l i d o em 1 8 2 0 e M a n u e l Inácio só
voltou à Bahia e m 1 8 1 0 ! ) . ^ N a d a disso i m p e d i u q u e ele se tornasse um dos vultos
importantes desse p e r í o d o : v e r e a d o r em 1 8 1 2 , 1 8 1 3 e 1 8 2 3 , m e m b r o da J u n t a de
G o v e r n o Provisório e m 1 8 2 3 , n e g o c i a d o r nos c o n f l i t o s entre Portugal e d o m Pedro,
membro d o C o n s e l h o d a P r o v í n c i a , s e n a d o r , c o m a n d a n t e - e m - c h e f e da G u a r d a N a c i o -
nal, seu curstts honorum era e x e m p l a r . Q u a n d o de sua m o r t e , em 1 8 5 0 , seu filho
herdou tanto a f o r t u n a m a t e r i a l q u a n t o a f o r t u n a política do pai, mas teve uma
carreira relativamente m e d í o c r e , pois s ó c o n s e g u i u ser vereador e c o m a n d a n t e - e m -
chefe da G u a r d a N a c i o n a l . R e c e b e u , m e s m o assim, várias distinções honoríficas do
imperador: fidalgo cavaleiro da C a s a I m p e r i a l , oficial da O r d e m da Rosa e c o m e n d a d o r
das ordens de C r i s t o , I m p e r i a l d o C r u z e i r o e M i l i t a r de Aviz. E m 1 8 5 4 , d o m Pedro II
só lhe c o n c e d e u o t í t u l o de b a r ã o , apesar dc ele pleitear o de visconde, c o m o seu pai.

A falta de o u t r o s representantes da n o b r e z a j u n t o ao C o n s e l h o M u n i c i p a l de
Salvador d u r a n t e t o d o esse p e r í o d o p o d e ser explicada f a c i l m e n t e : a maioria dos n o -
bres morava n o R e c ô n c a v o , e n ã o na cidade p r o p r i a m e n t e dita. E n t r e os 4 4 vereadores
de minha lista, doze a c r e s c e n t a r a m , à carreira m u n i c i p a l , outra de deputado às assem-
bléias Provincial o u G e r a l . A p e n a s c i n c o — três médicos e dois bacharéis em direito
— foram representar sua p r o v í n c i a n o R i o . N ã o era indispensável ter sido vereador
para tornar-se d e p u t a d o provincial o u geral, pois n ã o havia hierarquias ou sucessões
obrigatórias nesses m a n d a t o s .
O advogado L e o n e l Estelita F e r n a n d e s N e t o , p o r exemplo, tornou-se deputado
provincial c m 1 8 5 0 , aos 2 4 a n o s , e c o n t i n u o u nesse posto até 1 8 6 1 . S ó então foi eleito
vereador, m a n d a t o que exerceu até 1 8 6 6 . O m é d i c o A n t ô n i o Garcia Pacheco Brandão,
6

por sua vez, só c o m e ç o u sua carreira política aos 3 5 anos, c o m o vereador ( 1 8 6 1 -


1 8 6 6 ) , tornando-se c m seguida deputado provincial entre 1 8 6 8 e 1 8 7 5 .
Podia até haver c o i n c i d ê n c i a de mandatos provinciais e municipais. Foi O caso de
Fernando A n t o n i o Filgueiras, q u e a c u m u l o u mandatos e funções: de 1 8 4 4 a 1852 foi
vereador; de 1 8 4 8 a 1 8 5 5 c de 1 8 6 0 a 1 8 6 1 . foi deputado provincial, chegando a ser
vice-presidente da Assembléia. F.m 1 8 4 5 ele fora capitão da Guarda Nacional e, segun-
do o Almanaque, c o n t a d o r da C â m a r a Municipal. Em 1 8 6 2 , Francisco José foi major
do 3o Batalhão de Reserva da Guarda Nacional, posto que, tradicionalmente, era
ocupado por oficiais de carreira especializados na instrução militar.
Acumular mandatos entre os deputados era quase praxe C i t o um un.co exemplo:
0 médico Francisco de Azevedo M o n t e i r o tornou-se vereador pela pr.me.ra vez aos
2^8 BAHIA, Sfxxxo XJX

q u a r e n t a a n o s , e m 1 8 4 9 ; serviu n o v a m e n t e e m 1 8 5 2 ; de 1 8 5 8 a 1 8 7 7 , foi deputado


provincial quase sem i n t e r r u p ç ã o (as e x c e ç õ e s f o r a m as legislaturas de 1 8 6 4 e 1 8 6 8 ) ,
c a r e o q u e a c u m u l o u p o r duas vezes, e m 1 8 6 7 e 1 8 7 0 , c o m o de vereador. Corno
também foi e l e i t o duas vezes ( 1 8 7 3 e 1 8 7 7 ) para a A s s e m b l é i a G e r a l , acumulou
s e g u i d a m e n t e m a n d a t o s de d e p u t a d o p r o v i n c i a l , v e r e a d o r e d e p u t a d o geral.
E r a m raros os h o m e n s capazes de e x e r c e r esses c a r g o s . F a l t a v a m pessoas instruídas
e n t r e o p e q u e n o n ú m e r o d e ' c i d a d ã o s a t i v o s ' , o q u e facilitava o d o m í n i o da oligarquia
sobre o c o n j u n t o da p o p u l a ç ã o livre. U m a a n á l i s e d e t a l h a d a d o s p o l í t i c o s que repre-
sentavam a P r o v í n c i a nas a s s e m b l é i a s P r o v i n c i a l e G e r a l p e r m i t e q u e se avalie o peso
relativo dos fatores i n s t r u ç ã o e f o r t u n a p e s s o a l nessas c a r r e i r a s .

A ASSEMBLÉIA PROVINCIAL: PRESIDENTE E VICE-PRESIDENTE

O s deputados provinciais ficavam n a B a h i a e a s s e s s o r a v a m o p r e s i d e n t e da Província,


n o m e a d o pelo p o d e r c e n t r a l e c o n s i d e r a d o ' o o l h o d o m o n a r c a ' . O s deputados da
A s s e m b l é i a G e r a l t r a b a l h a v a m n o R i o d e J a n e i r o e, a o c o n t r á r i o d o s p r i m e i r o s , torna-
vam decisões de â m b i t o n a c i o n a l , t a m b é m c o l a b o r a n d o c o m o E x e c u t i v o . N a prática,
n e n h u m a c o n t e s t a ç ã o grave o p ô s v e r d a d e i r a m e n t e o s ' r e p r e s e n t a n t e s d o p o v o ' ao
P o d e r E x e c u t i v o , e m n e n h u m dos d o i s n í v e i s .
E m 6 5 a n o s , a B a h i a teve 4 7 p r e s i d e n t e s , o q u e d á u m a m é d i a de u m a n o e quatro
meses para c a d a m a n d a t o . A l t o s f u n c i o n á r i o s fiéis ao i m p e r a d o r , n e m s e m p r e eles eram
originários d a p r o v í n c i a q u e g o v e r n a v a m . P o d i a m , i n c l u s i v e , ser sucessivamente no-
m e a d o s para presidir diversas p r o v í n c i a s , b e m d i f e r e n t e s u m a s das o u t r a s . Tratava-se.
c o m o se vê, de u m s i s t e m a q u e e s t i m u l a v a f o r t e m e n t e a c e n t r a l i z a ç ã o , reforçada pela
rotação dos presidentes, q u e f r e q ü e n t e m e n t e n ã o criavam raízes. D e s f r u t a v a m de grande
liberdade de a ç ã o , m a s , s e n d o f u n c i o n á r i o s e s s e n c i a l m e n t e passageiros, não tinham
c o n d i ç õ e s de c o n s t r u i r u m a v i d a p o l í t i c a c o n s e q ü e n t e , o q u e implicava certa ineficácia.
Essa falta de c o n t i n u i d a d e evitava q u a l q u e r i n g e r ê n c i a mais profunda dos presi-
dentes na vida e c o n ó m i c a e social de c a d a região. A s s i m , os políticos t i n h a m a impres-
são de que ainda gozavam de grande l i b e r d a d e , c o m o na é p o c a colonial ou das capi-
tanias gerais. O s c o n t a t o s e n t r e as províncias eram raros. A partir d o m o m e n t o em que
um presidente — e até u m d e p u t a d o — saía dos limites de sua região para servir ao
Estado» deixava de lado toda e q u a l q u e r reivindicação de o r d e m l o c a l . 9

Era c o m u m os presidentes c o m e ç a r e m suas carreiras c o m o magistrados, inscreven-


do-sc cm seguida num dos dois partidos q u e se alternavam n o poder. D e p o i s de
nomeados para a chefia do Executivo local, sua principal missão era fazer seu partido
ganhar as e l e i ç õ e s . 10
A c i m a de tudo, o Estado n ã o queria q u e se estabelecessem laços
duradouros entre os chefes de partidos locais c seus representantes nas províncias. D a í
essa contínua rotação de pessoal. T o w n e y c i t a o e x e m p l o d o desembargador Freitas
Henriques, que sucedeu ao d o u t o r J o a q u i m Pires M a c h a d o Portella, em I O
de julho
259

l l c 1 8 7 2 . Este acabava de deixar a presidência da Província do Pará, onde havia


passado alguns meses dcpo.s de ter sido presidente de Minas Gerais, também durante
alguns meses. D e 7 de ,ane,ro de 1871 a 1» de julho de 1 8 7 2 , passara pela presidência
de três províncias. J o ã o A n t o n i o de Araújo Freitas só ficou na presidência da Bahia
durante o.to meses, e M a c h a d o Portella também não ocupou o cargo durante muito
tempo, po.s em n o v e m b r o desse m e s m o ano de 1 8 7 2 foi novamente transferido'
Entre a partida de um presidente e a chegada de seu sucessor podia decorrer um
lapso de tempo bastante grande. O s negócios da província eram então entregues a
um presidente interino, e s c o l h i d o entre os seis vice-presidentes, também nomeados
pelo imperador e integrantes da elite local de h o m e n s públicos. Entre 1 8 2 4 e 1 8 8 9 , a
Bahia teve mais vice-presidentes do que presidentes no exercício do governo. Cha-
mados c i n q ü e n t a vezes, aqueles responderam, ao t o d o , por onze anos e meio de
governo! Alguns desses presidentes interinos exerceram suas funções ao longo de seis,
sete e até o i t o m e s e s . 1 2

Se, a esses tempos de interinidade, acrescentarmos a soma dos 21 mandatos cum-


pridos por dezessete presidentes de origem baiana (alguns estiveram n o cargo mais
de uma vez), veremos q u e o mais alto posto da administração provincial esteve nas
mãos dos baianos d u r a n t e 4 1 dos 6 5 anos considerados. O s governos mais longos
foram exercidos p o r b a i a n o s . J o a q u i m J o s é Pinheiro de Vasconcellos, futuro Vis-
conde de M o n t s e r r a t , p o r e x e m p l o , governou a Bahia três vezes (de j u n h o de 1 8 3 2
a dezembro de 1 8 3 4 ; de j u n h o de 1 8 4 1 a agosto de 1 8 4 4 e de maio de 1 8 4 8 a
setembro d o m e s m o a n o ) , s o m a n d o c i n c o anos e oito meses no cargo. J o ã o Maurí-
cio Wanderley, B a r ã o de C o t e j i p e , e A n t ô n i o de Araújo Bulcão, terceiro Barão de
São Francisco, t a m b é m governaram durante m u i t o tempo sua província natal. O
primeiro foi presidente e n t r e s e t e m b r o de 1 8 5 2 e m a i o de 1 8 5 5 e o segundo entre
novembro de 1 8 7 8 e m a r ç o de 1 8 8 1 .

T o d o s esses baianos p e r m a n e c e r a m fiéis ao poder central que os escolheu e no-


meou. E x c e p c i o n a l m e n t e , certos candidatos que se julgavam incapazes de exercer a
função de f o r m a imparcial n ã o hesitaram em recusar a nomeação: em 1 8 3 5 , por
exemplo, Miguel C a l m o n du Pin e Almeida, Marquês de Abrantes, alegou que "nas-
cido nesta Província e p e r t e n c e n d o a uma família numerosa, entrelaçada com muitas
outras, não m e julgo habilitado para desempenhar, com o acerto e a imparcialidade
necessária, o lugar de seu a d m i n i s t r a d o r " . 13

Dezesseis dos dezessete presidentes da Província de origem baiana estudaram


direito c o último era m é d i c o . T o d o s pertenciam a famílias abastadas que detinham o
poder econômico e político cm Salvador e seu Recôncavo. Só J o ã o Maurício Wanderley,
Barão de C o t e j i p e , e Manoel Pinto de Souza Dantas eram oriundos do interior; o
primeiro nasceu às margens do S ã o Francisco, em Vila da Barra, e o segundo em
Itapicuru, regiões em que suas famílias possuíam muita terra. Estudos de direito em
Coimbra (Portugal) ou em O l i n d a (Pernambuco) lhes abriram os caminhos da magis-
tratura, onde eram recrutadas as altas personalidades da administração pública. Nove
BAHIA, SÉCULO X I X

dos dezessete p r e s i d e n t e s de o r i g e m b a i a n a t a m b é m p r e s i d i r a m os d e s t i n o s de outras


p r o v í n c i a s brasileiras c q u a s e t o d o s f o r a m d e p u t a d o s às a s s e m b l e i a s Provincial c Na-
c i o n a l . T r ê s f o r a m s e n a d o r e s , m i n i s t r o s e p r i m e i r o - m i n i s t r o s d o g o v e r n o central. V c -
se q u e a f u n ç ã o de p r e s i d e n t e de P r o v í n c i a era u m a e t a p a n u m a carreira p o l í t i c a , assim
c o m o a magistratura ou um m a n d a t o parlamentar.
V a m o s a a l g u n s e x e m p l o s b a i a n o s i l u s t r a t i v o s das c a r r e i r a s p o l í t i c a s d o Império
brasileiro. F r a n c i s c o V i c e n t e V i a n a , p r i m e i r o B a r ã o d e R i o das C o n t a s c primeiro
p r e s i d e n t e d a P r o v í n c i a d a B a h i a , era o r i g i n á r i o de S a l v a d o r , o n d e nascera em 1 7 5 4 ,
filho d e F r a n c i s c o V i c e n t e V i a n a , u m c o m e r c i a n t e p o r t u g u ê s q u e c h e g a r a à Bahia em
1 7 2 5 , c o m c a t o r z e a n o s de i d a d e , e q u e se t o r n a r a s e n h o r d e e n g e n h o n o distrito de
São Francisco do C o n d e , n o R e c ô n c a v o . 1 4
U m a i m e n s a f o r t u n a c várias plantações
de c a n a t o r n a r a m - n o r a p i d a m e n t e u m a p e r s o n a l i d a d e e m i n e n t e d a e l i t e baiana. Foi
m e m b r o d o S e n a d o M u n i c i p a l e d o S a n t o O f í c i o . S e u s três filhos — F r a n c i s c o Vicente,
Fructuoso Vicente e J o ã o Vicente — e s t u d a r a m d i r e i t o e m C o i m b r a e voltaram ao
Brasil para i n g r e s s a r n a m a g i s t r a t u r a (os d o i s m a i s v e l h o s ) e n o c l e r o ( o mais m o ç o ) .
A o s 2 1 a n o s , F r a n c i s c o V i c e n t e foi n o m e a d o j u i z d o s ó r f ã o s da c i d a d e de Salvador.
E m 1 7 8 7 , foi p r o m o v i d o a o u v i d o r - g e r a l e p r o v e d o r d a c o m a r c a d a c a p i t a l , passando
a ser p e r s o n a g e m d e g r a n d e d e s t a q u e n a c i d a d e . C a s a n d o - s e c o m C a e t a n a d o Sacra-
m e n t o B a n d e i r a , se a l i o u a u m a p o d e r o s a f a m í l i a d e c o m e r c i a n t e s e s e n h o r e s de
e n g e n h o p o r t u g u e s e s , o s R o d r i g u e s B a n d e i r a . A p e s a r d e suas o r i g e n s portuguesas e
de sua e d u c a ç ã o e m C o i m b r a , d u r a n t e as g u e r r a s p e l a I n d e p e n d ê n c i a (1822-1823)
F r a n c i s c o V i c e n t e l u t o u p e l a c a u s a b r a s i l e i r a , c h e g a n d o a p r e s i d i r a J u n t a Provisória de
G o v e r n o da B a h i a . S u a r e p u t a ç ã o de h o m e m m o d e r a d o e sua fidelidade à causa
brasileira l e v a r a m a q u e fosse n o m e a d o p a r a a c h e f i a d o E x e c u t i v o b a i a n o em 1 8 2 4 ,
posto que o c u p o u c o m relativo sucesso d u r a n t e dezenove meses. Foi recompensado
c o m o t í t u l o d e B a r ã o de R i o das C o n t a s , c o n c e d i d o p e l o i m p e r a d o r d o m Pedro I em
o u t u b r o de 1 8 2 5 .
H o n o r a t o José de Barros Paim ( 1 7 9 2 - 1 8 5 5 ) t a m b é m estudou direito em Coimbra,
antes de seguir u m a c a r r e i r a t í p i c a de m a g i s t r a d o . 1 5
D u r a n t e as guerras pela Indepen-
d ê n c i a , foi a u d i t o r d o E x é r c i t o L i b e r t a d o r da B a h i a , e s t a b e l e c e n d o sólidos laços com
a elite local, q u e ficou i n c o n d i c i o n a l m e n t e a o l a d o de d o m P e d r o I. T o r n o u - s e , em
seguida, juiz de fora dos distritos d e J a g u a r i p e e de M a r a g o j i p e , n o R e c ô n c a v o , inte-
grou o T r i b u n a l Civil d c S a l v a d o r c , p o r volta de 1 8 3 0 , t o r n o u - s e d e s e m b a r g a d o r do
T r i b u n a l de R e l a ç ã o da B a h i a . T e v e , p o r c o n s e g u i n t e , u m a carreira m u i t o rápida,
galgando em p o u c o s a n o s t o d o s o s degraus da h i e r a r q u i a j u d i c i á r i a . E n t r e 1 8 2 8 e
1 8 3 1 , foi m e m b r o d o C o n s e l h o da P r o v í n c i a . E l e i t o duas vezes ( 1 8 3 0 - 1 8 3 3 e 1 8 3 4 -
1 8 3 7 ) à Assembléia Geral d o I m p é r i o , t o r n o u - s e t a m b é m d e p u t a d o provincial em
1 8 3 5 , sucessivamente reeleito até 1 8 4 3 , t e n d o presidido a mesa da Assembléia Provin-
cial em 1 8 3 7 , 1 8 3 8 e 1 8 4 1 . Exerceu a presidência d a Província e n t r e j u n h o de 1 8 3 1
e j u n h o de 1 8 3 2 e, d e p o i s , i n t e r i n a m e n t e , e m n o v e m b r o de 1 8 3 7 . F o i vice-presidente
de 1 8 3 5 a 1 8 4 9 . E l e i t o pelo Partido C o n s e r v a d o r o u n o m e a d o pelo governo, H o n o r a t o
LrvRQlV-OEsTADO:0 R G A ! ! 1 Z A C A N E E X E R C I A O TOS P O D £ R £ S

261

Jose a c u m u l o u v a n a s f u n ç õ e s e n t r e 1 8 3 5 e 1 8 4 3 . T e v e , inclusive, uma breve incursão


na cena n a a o n a l , p o r ocasião de seu m a n d a t o de deputado à Assembléia Geral M a -
gistrado o n i s c i e n t e e o n . p r e s e n t e , a p t o a exercer todos os mandatos, sua carreira -
m u i t o parecida c o m a d o s d e m a i s o c u p a n t e s de cargos provinciais - exemplifica a
necessidade. ,á Citada, d e recrutar s e m p r e o s m e s m o s h o m e n s n u m m u n d o político
restrito, e m q u e o s j u r i s t a s eram i n t e r c a m b i á v e i s assim que adquiriam experiência nos
negócios. D e s c o n h e ç o detalhes s o b r e sua família, mas sei que morreu solteiro em
1 8 5 5 . s e m deixar h e r d e i r o s .

A carreira desse c o n s e r v a d o r p o d e ser c o m p a r a d a c o m a de u m liberal, José Luiz


de A l m e i d a C o u t o ( 1 8 3 8 - 1 8 9 5 ) , ú l t i m o presidente da Província da Bahia e o único
que n ã o era m a g i s t r a d o . F i l h o de J o ã o C a e t a n o de A l m e i d a C o u t o e de Luiza Benvinda
D o r e a C o u t o , m é d i c o , e l e i t o a o s 2 4 a n o s para a A s s e m b l é i a Provincial, o n d e exerceu
três m a n d a t o s sucessivos e n t r e 1 8 6 2 e 1 8 6 9 , ele foi i g u a l m e n t e vereador ( 1 8 6 7 / 1 8 6 9 ) ,
deputado à A s s e m b l é i a G e r a l ( 1 8 7 8 / 8 1 ) e professor da Faculdade de M e d i c i n a da
Bahia, antes d e ser n o m e a d o p o r alguns meses presidente da Província de São P a u l o . 1 6

D e p o i s , foi duas vezes p r e s i d e n t e da B a h i a , p o r três meses e m 1 8 8 5 e por c i n c o meses


em 1 8 8 9 . S u a c a r r e i r a f o i b r i l h a n t e , m a s , c o m e x c e ç ã o d o p e q u e n o episódio paulista,
não ultrapassou o s l i m i t e s d e sua p r o v í n c i a natal, assim c o m o ocorreu c o m as carreiras
de F r a n c i s c o V i c e n t e V i a n a e H o n o r a t o J o s é de Barros P a i m .

O cursus honorum d e J o ã o M a u r í c i o W a n d e r l e y , ilustre Barão de C o t e j i p e , 1 7


foi
c o m p l e t a m e n t e d i f e r e n t e . F i l h o de u m p r o p r i e t á r i o rural, nasceu em Vila da Barra, na
margem e s q u e r d a d o r i o S ã o F r a n c i s c o , e m região então p e r t e n c e n t e a P e r n a m b u c o ,
anexada à B a h i a e m 1 8 2 7 . D i z a t r a d i ç ã o q u e W a n d e r l e y era descendente de u m
holandês q u e viera c o m M a u r í c i o d e N a s s a u n o século X V I I e q u e se chamava Gaspar
Van der L a y . O bisavô d e J o ã o M a u r í c i o teria dilapidado a fortuna da família, obri-
gando seu filho a e m i g r a r para o i n t e r i o r da capitania, n u m a bem-sucedida busca de
riqueza. A f o r t u n a p e r d i d a teria s i d o refeita e m duas gerações. O pai de J o ã o M a u r í c i o
era c o n t a d o r da d í z i m a , possuía grandes propriedades rurais e se ocupava de numero-
sos e i m p o r t a n t e s n e g ó c i o s , i n t e g r a n d o o g r u p o de notáveis da região. N a época das
guerras pela I n d e p e n d ê n c i a , a p o i o u a causa d o s brasileiros, o q u e lhe valeu a O r d e m

do C r u z e i r o d o S u l e m 1 8 2 5 .
E m q u e é p o c a o s W a n d e r l e y m i s t u r a r a m seu sangue àquele de uma descendente
de africanos a n ô n i m o s ? A h i s t ó r i a , que c a n t a loas às origens européias da família, nao
o revela. Seja c o m o for, a tez escura e o nariz achatado de J o ã o M a u r í c i o , nascido em
1 8 1 5 , não foram u m o b s t á c u l o a u m a brilhante carreira política no Partido Conserva-
dor, encerrada apenas c o m sua m o r t e , ocorrida e m 1 8 8 9 . Ele cursou a escola secunda-
ria em Salvador e e s t u d o u direito e m O l i n d a , o n d e desde 1 8 2 7 funcionava uma das
duas únicas faculdades brasileiras dessa especialidade (a outra estava em S a o Paulo).
Iniciou sua carreira pública c o m o juiz municipal e de órfãos e m Barra e Xiquexique,
longínquas cidades d o S e r t ã o baiano. Foram os eleitores da r e g i ã o d o S ã o F r a n c s c o
que o levaram à Assembléia Provincial, primeiro c o m o suplente em 1 8 4 0 e em segu.da
262 BAHIA, SÉCULO X I X

c o m o d e p u t a d o até 1 8 5 2 . A o m e s m o t e m p o , ele se a p r o x i m o u de Salvador, sendo


n o m e a d o , c m 1 8 4 4 , juiz de direito em S a n t o A m a r o , n o R e c ô n c a v o . D e 1 8 4 8 a 1852
foi várias vezes c h e f e de Polícia de Salvador, f u n ç ã o que a c u m u l o u c o m mandatos
parlamentares (foi d e p u t a d o provincial até 1 8 5 3 c d e p u t a d o à Assembléia (íeral dc
1843 a 1856),
Nesse m e s m o a n o de 1 8 5 2 íoi n o m e a d o , s i m u l t a n e a m e n t e , juiz do Tribunal dc
Relação da B a h i a ( c a r g o q u e o c u p o u até 1 8 5 7 ) e presidente da Província. Km 1855
deixou a presidência pelo M i n i s t é r i o da M a r i n h a , i n i c i a n d o u m a carreira de âmbito
n a c i o n a l . Foi e s c o l h i d o s e n a d o r em 1 8 5 6 . N o a n o s e g u i n t e , casou-se c o m Antónia
T e r e z a d c Sá Pita e A r g o l o , filha d c A n t ô n i o B e r n a r d i n o da R o c h a Pita e Argolo,
C o n d e de Passe, r i c o s e n h o r de e n g e n h o d o R e c ô n c a v o . 1 8
Várias vezes ministro e
m e m b r o d o P a r t i d o C o n s e r v a d o r , J o ã o M a u r í c i o foi u m dos principais negociadores
do t r a t a d o c o m o Paraguai em 1 8 7 1 c só teve u m p e r í o d o de relativo ostracismo
d u r a n t e o g o v e r n o liberal d o b a i a n o J o s é M a r i a da Silva P a r a n h o s , V i s c o n d e de Rio
B r a n c o ( 1 8 7 1 - 1 8 7 5 ) . Nessa é p o c a , residiu em S a l v a d o r , n u m c u r t o 'exílio' político,
m a r c a d o pelo e s f o r ç o e m m o d e r n i z a r o e n g e n h o J a c a r a c a n g a , q u e c o m p r a r a . Voltou à
política — e ao poder — em 1 8 7 5 , c o m o m i n i s t r o das F i n a n ç a s , na equipe do Duque
de C a x i a s ( 1 8 7 5 - 1 8 7 8 ) . F i n a l m e n t e , t o r n o u - s e p r e s i d e n t e d o C o n s e l h o dos Ministros
de 1 8 8 5 a 1 8 8 8 e, d e p o i s , p r e s i d e n t e d o B a n c o d o Brasil, cargo que ocupou até a
m o r t e . S e u b i ó g r a f o e n e t o , J o s é W a n d e r l e y de A r a ú j o P i n h o , a f i r m a q u e o avô morreu
pobre e q u e sua casa d o R i o de J a n e i r o teve q u e ser leiloada para que suas dívidas
pudessem ser p a g a s . 1 9

A o c o n t r á r i o d o B a r ã o de C o t e j i p e , o V i s c o n d e de R i o B r a n c o era um liberal.
José Maria — 'J u c a
' P a r a
°s íntimos — d a Silva P a r a n h o s ( 1 8 1 9 - 1 8 8 0 ) era quatro
anos mais m o ç o q u e J o ã o M a u r í c i o W a n d e r l e y , mas m o r r e u n o v e anos antes dele.
F i l h o d o português A g o s t i n h o d a Silva P a r a n h o s e de J o s e f a E m e r e n c i a n a Gomes
Barreiros, ele nasceu e m S a l v a d o r , n u m a f a m í l i a de grandes c o m e r c i a n t e s , arruinada
na época da I n d e p e n d ê n c i a . C o m o d e s a p a r e c i m e n t o da f o r t u n a familiar, o jovem
J o s é M a r i a teve q u e prosseguir seus e s t u d o s às custas d o E s t a d o , c o m o cadete da
Escola Naval do R i o de J a n e i r o ( 1 8 3 6 - 1 8 4 0 ) , de o n d e saiu aspirante c o m o posto de
guarda-marinha. Q u a t r o a n o s d e p o i s , o b t e v e o d i p l o m a de bacharel em matemáticas
e ciências físicas. M u i t o a p r e c i a d o por seus dotes intelectuais e sua inteligência, tor-
nou-se professor c a t e d r á t i c o da E s c o l a M i l i t a r e m 1 8 4 8 . E m 1 8 6 0 , era professor na
Escola C e n t r a l , reorganizada em 1 8 7 4 c o m a d e n o m i n a ç ã o de Escola Politécnica.
E m paralelo, trabalhou n o jornal liberal O Novo Tempo e n o Jornal do Commercio,
o b t e n d o destaque. O futuro V i s c o n d e d c R i o B r a n c o era considerado um conserva-
dor m o d e r a d o , o q u e mostra c o m o era imprecisa a linha divisória entre conservado-
res e liberais da época. A passagem de um partido para o o u t r o se fazia segundo os
interesses d o m o m e n t o . Foi deputado provincial na legislatura de 1 8 4 4 - 1 8 4 5 e de-
putado geral nas legislaturas de 1 8 4 8 , 1 8 5 3 - 1 8 5 6 e 1 8 5 7 - 1 8 6 0 (pelo R i o de Janeiro)
e na de 1 8 6 1 - 1 8 6 3 (por Sergipe).
LIVRO I V - O ESTADO; ORGANIZAÇÃO E EXERCÍCIO DOS PODERES 263

Sua carreira de político e h o m e m de Estado começou na década de 1 8 4 0 . E m


1 8 5 1 , foi secretário da missão diplomática que negociou na região do Rio da Prata e
em seguida o c u p o u o posto de ministro plenipotenciário para ajustar com os represen-
tantes da Argentina, Paraguai e Uruguai o tratado definitivo de paz ( 1 8 5 8 ) Foi
senador pela Província do M a t o Grosso em 1 8 6 2 e enviado especial às Repúblicas
Orientais em 1 8 6 3 . Fez carreira na diplomacia quase cm paralelo ao exercício de
cargos ministeriais: foi m i n i s t r o de Negócios Estrangeiros em 1 8 5 5 - 1 8 5 7 e 1 8 5 8 -
1 8 5 9 ; da M a r i n h a em 1 8 5 3 - 1 8 5 5 e 1 8 5 6 - 1 8 5 7 ; da Fazenda em 1 8 6 1 , 1 8 6 2 e 1 8 7 1 ;
e, finalmente, presidente d o C o n s e l h o entre 1 8 7 1 e 1 8 7 5 . T e v e neste último cargo ó
apogeu de sua carreira. N o G a b i n e t e sob sua presidência, foi sancionada a Lei n° 2 0 4 0 ,
de 2 8 de s e t e m b r o de 1 8 7 1 , dita Lei do V e n t r e Livre, que declarava livres os filhos de
mães escravas. T o r n a n d o - s e grão-mestre da M a ç o n a r i a em 1 8 7 1 , participou intensa-
mente da c h a m a d a 'questão r e l i g i o s a ' . 20

Ao c o n t r á r i o d o B a r ã o de C o t e j i p e , o V i s c o n d e de R i o B r a n c o se integrou menos
nos meios baianos. E r a filho de u m c o m e r c i a n t e português, odiado, c o m o os demais,
pelos brasileiros. A l é m disso, seu pai t i n h a ido à falência. A perda da fortuna somava-
se à perda d o prestígio social. E m segundo lugar, a carreira de R i o Branco se fez longe
da Província, de m o d o que ele foi m e n o s envolvido que Cotejipe por compromissos
ou promessas. M a s , s o b r e t u d o , ele não estudara direito. N ã o pertencia à casta fechada
dos magistrados. O s a p o i o s q u e C o t e j i p e podia encontrar j u n t o à elite baiana ou a
colegas profissionais, R i o B r a n c o era obrigado a ir buscar alhures, talvez junto aos
membros dessas lojas m a ç ó n i c a s em que se faziam e desfaziam solidariedades próprias
às pessoas desprovidas de raízes s ó l i d a s . 21

As carreiras q u e a c a b o de evocar indicam claramente c o m o se imbricavam os


poderes E x e c u t i v o , Legislativo e J u d i c i á r i o . V o l t e m o s a um p o n t o : a grande maioria
dos vice-presidentes que ocuparam interinamente a presidência da Província era formada
por magistrados. O r a , os vice-presidentes foram freqüentemente chamados ao exercí-
cio do governo, sempre segundo a ordem definida pelo imperador. Nos dois primeiros
lugares de sua lista, este colocava quase sempre m e m b r o s do corpo judiciário, deixan-
do os quatro seguintes a personalidades de reconhecido peso social e e c o n ô m i c o . 22

M u i t o honrados ao receberem o título, os nomeados ficavam freqüentemente infelizes


quando tinham q u e assumir u m governo interino. Muitos deles recorreram a pretextos
de saúde para não ter q u e receber o cargo maior. E m 1 8 5 7 , por exemplo, o presidente
da Província, C a n s a ç ã o de S i n i m b u , originário das Alagoas, pediu uma licença para
tratamento de saúde, em seguida a um ataque de febre amarela. Cinco de seus vice-
presidentes recusaram-se a aceitar a p r e s i d ê n c i a . 23
O sexto, Joaqu.m Torquato Carnei-
ro de C a m p o s , teria aceito c o m prazer, mas sua indicação não agradou à equipe
ministerial do R i o de J a n e i r o . Foi preciso modificar a lista, para que um magistrado
pudesse assumir a direção dos negócios baianos."
C o m o vimos, eram numerosas as ocasiões em que interinos assumiam. Havia
presidentes q u e . q u a n d o eram nomeados, estavam em outra provinc.a; presidentes
264 BAHIA, SÉCULO X I X

p a r l a m e n t a r e s , o c u p a d o s e m sessões b i - a n u a i s ; p r e s i d e n t e s s e n a d o r e s , e m reuniões no
R i o ; d o e n ç a s e m o r t e s c o m p l e t a v a m as m u i t a s o c a s i õ e s e m q u e era preciso apelar para
u m s u b s t i t u t o . T o d o s esses m a g i s t r a d o s , q u a n d o a s e r v i ç o d o E x e c u t i v o , deviam deixar
de exercer sua f u n ç ã o n a m a g i s t r a t u r a . M a s p e r m a n e c i a m m e m b r o s d o J u d i c i á r i o , para
o q u a l regressavam assim q u e t e r m i n a v a sua m i s s ã o . S u s p e n s o s p r o v i s o r i a m e n t e , man-
t i n h a m rodos os seus elos c o m sua c o r p o r a ç ã o d e o r i g e m .
A faixa etária dos p r e s i d e n t e s o u v i c e - p r e s i d e n t e s de p r o v í n c i a era de cerca de 4 6
a n o s . T r a t a v a - s e de h o m e n s m a d u r o s , d o t a d o s d e l o n g a e x p e r i ê n c i a parlamentar ou
judiciária. O s e s t u d o s s u p e r i o r e s e o i n g r e s s o n o J u d i c i á r i o a b r i a m ao j o v e m baiano as
portas de u m a carreira ao m e s m o t e m p o j u r í d i c a , legislativa e a d m i n i s t r a t i v a , de modo
q u e as f u n ç õ e s d o E s t a d o ficavam n a s m ã o s d e p o u c a s p e s s o a s , o q u e p e r m i t i a ao poder
central e x e r c e r u m c o n t r o l e s o b r e s e r v i d o r e s m u i t o fiéis. É fácil e n t e n d e r por que
h o u v e t ã o p o u c a c o n t e s t a ç ã o a u m a m o n a r q u i a q u e s o u b e c o n s o l i d a r seu poder e
u n i f i c a r as t e n d ê n c i a s c e n t r í f u g a s das p r o v í n c i a s . A l i á s , r e c e b e n d o títulos honoríficos
e c o n d e c o r a ç õ e s , o u c o n s e g u i n d o r á p i d a s p r o m o ç õ e s e m suas carreiras, esses mesmos
h o m e n s se l i g a v a m a i n d a m a i s a o p o d e r c o n s t i t u í d o . T o d o s os p r e s i d e n t e s de província
de o r i g e m b a i a n a f o r a m c o n d e c o r a d o s c o m as o r d e n s d o C r i s t o , d e Aviz, d o Cruzeiro
ou da R o s a , e seis e n t r e eles r e c e b e r a m t í t u l o s de n o b r e z a .

Os DEPUTADOS À ASSEMBLÉIA PROVINCIAL

O s p a r l a m e n t a r e s b a i a n o s , p r o v i n c i a i s o u gerais, e r a m p o u c o n u m e r o s o s , sobretudo
p o r q u e a r e e l e i ç ã o era regra e p o r q u e v á r i o s d e p u t a d o s e x e r c i a m os dois mandatos
s i m u l t a n e a m e n t e . O a r c e b i s p o d a B a h i a , d o m R o m u a l d o A . de S e i x a s , p o r exemplo,
foi eleito d e p u t a d o geral n a t e r c e i r a legislatura ( 1 8 3 4 - 1 8 3 7 ) e d e p u t a d o provincial na
p r i m e i r a ( 1 8 3 5 - 1 8 3 7 ) . O c o r r e u o m e s m o c o m dez o u t r o s d e p u t a d o s à Assembléia
G e r a l . D o s d e z o i t o d e p u t a d o s gerais dessa legislatura, o n z e t i n h a m , p o r conseguinte,
m a n d a t o d u p l o . T r ê s dos q u i n z e i n t e g r a n t e s b a i a n o s da A s s e m b l é i a Geral (legislatura
de 1 8 6 9 - 1 8 7 2 ) t a m b é m eram d e p u t a d o s p r o v i n c i a i s . F i n a l m e n t e , na ú l t i m a legislatura
da Assembléia Geral ( 1 8 8 6 - 1 8 8 9 ) , os d o i s m a n d a t o s (provincial e geral) não coinci-
diam mais. E n t r e t a n t o , o n z e dos dezesseis d e p u t a d o s gerais já haviam exercido um
m a n d a t o provincial.
A criação de u m a assembléia q u e exercia o P o d e r Legislativo ocorreu em 1 8 3 5 ,
pois, antes dela, o C o n s e l h o G e r a l da Província t i n h a caráter u n i c a m e n t e consultivo.
A duração de uma legislatura provincial era de dois a n o s . E n t r e 1 8 3 5 e 1 8 8 9 , houve
2 7 legislaturas, c o m 5 0 9 deputados, e n t r e titulares e s u p l e n t e s . 25

O s funcionários do p a r l a m e n t o provincial pareciam renovar-se constantemente.


Cada legislatura trazia novos e l e m e n t o s , em n ú m e r o que podia ir d o quarto à metade
do total de deputados. Podcr-se-ia então pensar n u m processo de c o n t í n u a renovação
de políticos, graças à c o n t r i b u i ç ã o desses novos e l e m e n t o s . Várias evidências podem
LIVRO I V - O ESTADO: ORGANIZAÇÃO E EXERCÍCIO DOS PODERES 265

TABELA 54

PERCENTAGEM DE N O V O S DEPUTADOS NA ASSEMBLÉIA PROVINCIAL, 1835-1889

ANOS % ANOS % ANOS %

1835-1837
- 1854-1855 26,8 1872-1873 35,7

I83S-1S39 51,0 1856-1857 28,8 1874-1875 34,1

1840-1841 26,0 1858-1859 49,0 1876-1877 30,2

1842-1843 37,0 1860-1861 41,0 1878-1879 34,1

1844-1845 31,5 1862-1863 40,0 1880-1881 53,5

1846-1847 30,8 1864-1865 42,8 1882-1883 61,9

1848-1849 34,0 1866-1867 30,8 1884-1885 30,8

1850-1851 32,5 1868-1869 45,2 1886-1887 37,5

1852-1853 33,3 1870-1871 58,1 1888-1889 37,5

d e m o n s t r a r o c o n t r á r i o . A p r i m e i r a delas é f o r n e c i d a pelo n ú m e r o d e deputados,


titulares o u s u p l e n t e s , q u e r e p a r t i r a m as 1 . 2 3 2 cadeiras d i s p o n í v e i s . 26
Foram 5 0 9 .
L o g o , c a d a d e p u t a d o f o i c h a m a d o a o c u p a r , e m m é d i a , 2 , 4 2 cadeiras. E m outras
palavras, c a d a e l e i t o c u m p r i u q u a s e duas legislaturas e m e i a . P o d e - s e m u i t o b e m
retorquir q u e c i n c o a n o s d e m a n d a t o r e p r e s e n t a m u m a m é d i a n o r m a l , q u e permite
renovar o g r u p o d o s e l e i t o s . M a s u m a análise mais fina da d u r a ç ã o dos mandatos
d e m o n s t r a o q u a n t o essa m é d i a de 2 , 4 2 cadeiras p o r d e p u t a d o é enganadora:

E n t r e os 5 0 9 d e p u t a d o s p r o v i n c i a i s , 4 0 6 ( 7 9 , 8 % ) f o r a m eleitos p o r , n o m á x i m o ,
três legislaturas, o q u e c o r r e s p o n d i a a u m m a n d a t o d e seis a n o s . P o r o u t r o lado, 4 4 , 6 %
desses 5 0 9 d e p u t a d o s f o r a m eleitos apenas u m a vez, desaparecendo e m seguida da
cena política, pelo m e n o s n o q u e d i z respeito à representação provincial. U m grupo
relativamente restrito d e h o m e n s (20,1%) f o i eleito c o n s t a n t e m e n t e , c o n c e n t r a n d o
em t o r n o d e si a vida p o l í t i c a da P r o v í n c i a .
T e n h o i n f o r m a ç õ e s mais o u m e n o s detalhadas sobre 7 7 dos 1 0 3 deputados q u e
serviram d u r a n t e mais d e três sessões legislativas. F o r a m dezessete advogados, onze
médicos, dois e n g e n h e i r o s d o E x é r c i t o e da M a r i n h a , . 2 1 magistrados, onze altos
funcionários provinciais, q u a t r o padres e u m jornalista. H o u v e ainda dois 'doutores
não especificados, um c o m e r c i a n t e e sete pessoas s i m p l e s m e n t e qualificadas c o m o
'proprietários'. 27

Havia, p o r t a n t o , dois tipos de parlamentares. Aqueles cuja carreira alcançava um


nível nacional e q u e eram às vezes c h a m a d o s a assumir as mais altas responsabilidades
c aqueles cuja carreira, e m b o r a circunscrita nos estreitos limites de suas províncias, não
deixava de ser prestigiosa. O primeiro grupo era representado p o r 3 3 parlamentares
que exerceram m a n d a t o s n o nível provincial e nacional. Deles, só dezessete continua-
ram c o m o simples representantes de seus eleitores. O s outros dezesseis tornaram-sc
senadores e ministros (três), vice-presidentes da Província da Bahia ( c i n c o ) , presidentes
266 BAHÍA. SECTIO X I X

T ABK I A S S

NÚMERO DE LF.<3ISLATURAS DE CADA


DEPUTADO PROVINCL M NA BAI nA. 1 8 3 5 - 1 8 8 8

LEGISLATURAS N ' DE DEPUTADOS


1

Urna III (44.6)

Duas 110 (21.6)

Tres 69 (13,6)

Quatro 36 (7,0)

Cinco 31 (6,0)

Seis 19 (3,7)

Sete 5 (1.0)

Oito 7 (1,4)

Nove 2 (0,4)

Dez 2 (0,4)

Onze

Doze 1 (0,2)

Total 509 (100,0)

de província (três), ministro (um), ministro e presidente de província (um) e ainda


houve três parlamentares que se tornaram presidentes da Assembléia Provincial, mi-
nistros do Supremo Tribunal e, respectivamente, presidente da Província, senador,
ministro e presidente do Conselho.
O segundo grupo de parlamentares — aqueles que fizeram carreiras tipicamente
provinciais — foi formado por pessoas que exerceram uma influência permanente
sobre a vida política, pois seus mandatos foram constantemente renovados. Quase
sempre integraram a Mesa da Assembléia Provincial, onde exerceram funções de secre-
tário, vice-presidente ou presidente. Por outro lado, grande número desses parlamen-
tares provinciais também foram magistrados ou altos funcionários do poder central, o
que lhes permitia controlar a fundo a vida política provincial.
Vamos a alguns exemplos. José de Barros Reis ( 1 7 9 9 - 1 8 8 1 ) nasceu na paróquia
de Santo Antônio Além do Carmo. Seu pai c homônimo, rico proprietário, casara-se
com uma moça do clã dos Araújo Góis, de nome Teodora. Rico proprietário que vivia
de suas rendas, cm 1818 o nosso José contraiu primeiras núpcias com Berenice da
Silva, filha do cirurgião militar Cristóvão Pessoa da Silva c irmã do contador da
I esouraria Geral, Cristóvão Pessoa da Silva Filho, deputado durante sete legislaturas,
entre 1835 c 1851. Com a morte da primeira esposa, casou-se com Ana Geralda
Martino Vallasques, filha legitimada de Manuel dos Santos Martins Vallasques ( 1 7 9 2 -
1862), magistrado, ministro do Supremo Tribunal de Justiça (a partir de 1855) e
senador pela Província da Bahia ( 1 8 3 6 - 1 8 6 2 ) . Contando com sólidas alianças familiais,
}f^Z O^EST^ORGAMZ^O E ExERCfCIO DOS PoDERHS 267

losé foivereador e d e p u t a d o provincial H , , N N , . • i • i


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a é r a n t e oito legislaturas, entre 1 8 3 5 e 1 8 5 3
m c i a l

c h e c a n d o a vice-presidente da Assembléia A ™ j •

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;
n

d o i f f i l h o s naturais e u m a f o r t u n a I ^ . ^ 2
N ã o se sabe q u e m foram os pais do m é d i c o Fiel José de Carvalho e Oliveira, nem
a data de seu f o m e n t o . N a s c e u provavelmente em 1 8 2 7 e, aos 2 5 anos, foi depu-
tado a A s s e m b l e , ProvmcraL C a s o u - s e e m data ignorada c o m Francisca Dantas, irmã
de C i c e r o D a n t a s M a r t m s , B a r ã o de J e r e m o a b o , integrante da poderosa família dos
Dantas, do Agreste b a i a n o , e casado c o m u m a filha de A n t ô n i o da Costa Pinto C o n d e
de S e r g i m m m . Através de sua sogra, era aliado da família Lopes, de importantes
senhores de e n g e n h o d o R e c ô n c a v o . O s dois tiveram carreiras b e m diferentes- Fiel José
foi d e p u t a d o provincial de 1 8 5 2 a 1 8 6 1 , secretário e vice-presidente da mesma Assem-
bléia e responsável p e l a c o n s e r v a ç ã o da b i b l i o t e c a da Faculdade de M e d i c i n a . Líder do
Partido C o n s e r v a d o r , o B a r ã o de J e r e m o a b o foi deputado à Assembléia Geral durante
quatro legislaturas ( 1 8 6 9 a 1 8 8 9 ) , duas vezes d e p u t a d o provincial ( 1 8 6 0 - 6 1 e 1 8 7 0 -
7 1 ) e c o n t i n u o u sua carreira p o l í t i c a depois d a P r o c l a m a ç ã o da República. Reencon-
tramo-lo, c o m e f e i t o , c o m o s e n a d o r na A s s e m b l é i a C o n s t i t u i n t e da Bahia, que veio a
presidir e m 1 8 9 1 , e x e r c e n d o o m a n d a t o até 1 8 9 6 . 2 9

F i n a l m e n t e , J o a q u i m d a C o s t a P i n t o ( 1 8 4 1 - 1 8 7 9 ) , filho de A n t ô n i o da Costa
Pinto, C o n d e de S e r g i m i r i m e c u n h a d o d o B a r ã o de J e r e m o a b o , acima citado. Eleito
deputado p r o v i n c i a l aos 2 9 a n o s , ele foi c o n s t a n t e m e n t e reeleito até sua morte em
1 8 7 9 . O c u p o u e m 1 8 7 7 a f u n ç ã o de vice-presidente da Assembléia P r o v i n c i a l . 30

M a n o e l d a S i l v a B a r a ú n a ( 1 7 9 9 - 1 8 7 6 ) , J o a q u i m T i b ú r c i o Ferreira G o m e s e
Bernardo d o C a n t o B r u m t a m b é m são b o n s exemplos. N ã o consegui muitas informa-
ções sobre a família d o p r i m e i r o , que era s o b r i n h o de um célebre pregador, o franciscano
Xavier da Silva B a s t o s , d i t o ' i r m ã o B a s t o s B a r a ú n a ' . Casou-se c o m Delfina Maria, da
qual se ignora o s o b r e n o m e , e teve sete filhos, c i n c o dos quais meninas. O mais velho
dos m e n i n o s seguiu a carreira do pai, t o r n a n d o - s e funcionário e deputado provincial.
Lm 1 8 4 5 , M a n o e l c h e f i o u a Secretaria de G o v e r n o da Província e em 1 8 6 2 foi secre-
tário-geral d o I n s t i t u t o B a i a n o de Agricultura. N a época do recenseamento de 1 8 5 5 ,
Manoel estava à frente de u m a grande família. C o m ele viviam sua sogra, sua cunhada
c duas de suas c i n c o filhas, M a r i a Hildetrudes, solteira de 2 4 anos, e Amélia Augusta,
viúva aos 2 3 anos e m ã e d c três filhos: M a n u e l Augusto Carigé Baraúna (sete anos),
f-milia Augusta C a r i g é B a r a ú n a ( c i n c o anos) e Eduardo Augusto Carigé Baraúna (dois
anos). M a n o e l criava mais sete netos, filhos de Gustavo de Sá e Menezes e de sua filha
Celestina C â n d i d a . Ainda faziam parte d o grupo familiar doze escravos adultos, sendo
seis mulheres e seis h o m e n s . Alto funcionário, gozando de grande prestígio Manoel
era considerado 'figura dc relevo , tendo sido sucessivamente eleito deputado entre
1

1 8 4 2 e 1 8 6 1 . T o r n a n d o - s e oficial da O r d e m da Rosa em 1 8 6 2 , foi elevado ao grau de


comendador aleuns anos d e p o i s . 31
•: :
.
Sobre J o a q u i m T i b ú r c i o Ferreira G o m e s tenho poucas informações Era filho do
padre V i c e n t e Ferreira G o m e s , vigário da paróquia de São G o n ç a l o (situada no centro
268 BAHIA, SÉCTLO X I X

da região p r o d u t o r a de t a b a c o ) e r i c o p r o p r i e t á r i o , d e t e n t o r d o prestigioso título de


c ó n e g o h o n o r á r i o de S a l v a d o r . A partir de 1 8 4 8 , foi e l e i t o d e p u t a d o provincial em seis
legislaturas, t e n d o c h e g a d o a p r i m e i r o - s e c r e t á r i o da A s s e m b l é i a em 1 8 5 4 e a juiz de
primeira instância da c o m a r c a de C a r a v e l a s e m 1862. 3 2

B e r n a r d o d o C a n t o B r u m nasceu c m 1 8 1 1 ou 1 8 1 2 , em Salvador, n u m a família


sobre a qual n ã o t e n h o n e n h u m a r e f e r e n c i a . E m 1 8 6 2 , a i n d a era solteiro e exercia o
cargo de c o n t a d o r d o T e s o u r o G e r a l , alta f u n ç ã o q u e exigia r e p u t a ç ã o de honestidade,
à qual B e r n a r d o parece ter f e i t o j u s , p o i s se t o r n o u oficial da O r d e m da Rosa quando
da passagem de S u a M a j e s t a d e pela B a h i a e m 1 8 5 9 . C o m e ç o u sua carreira política
relativamente tarde, aos 5 9 o u 6 0 a n o s , o q u e era e x c e p c i o n a l , pois geralmente isso
ocorria na casa dos t r i n t a . E l e i t o pela p r i m e i r a vez e m 1 8 7 0 , foi reeleito até 1 8 8 2 ,
tendo presidido a A s s e m b l é i a na ú l t i m a legislatura de q u e fez p a r t e . 3 3

N a s c i d o e m 1 7 9 3 , o padre J o a q u i m de A l m e i d a parece ter s i d o u m h o m e m do


século X V I I I . S e u n o m e n ã o c o n s t a v a m a i s e n t r e as a u t o r i d a d e s eclesiásticas que
r e c e p c i o n a r a m d o m P e d r o I I , e m visita à B a h i a . S o b r e esse padre secular, tenho
pouquíssimas i n f o r m a ç õ e s , pois i g n o r o sua filiação e t a m b é m n ã o sei qual foi o papel
político q u e d e s e m p e n h o u . V i g á r i o da p a r ó q u i a d e N o s s a S e n h o r a da Vitória, em
1 8 4 5 ele era m e m b r o d o T r i b u n a l E c l e s i á s t i c o , o q u e d e m o n s t r a q u e integrava a elite
do A r c e b i s p a d o local, d o qual foi, aliás, u m dos oradores sacros mais célebres. Foi
eleito d e p u t a d o provincial e m 1 8 3 5 e c o n t i n u o u a ser reeleito até 1 8 5 4 - 1 8 5 5 . Exer-
ceu, por c o n s e g u i n t e , v i n t e anos de m a n d a t o , t e n d o sido f r e q ü e n t e m e n t e secretário da
M e s a da A s s e m b l é i a P r o v i n c i a l . 34

O advogado R o m u a l d o A n t ô n i o de Seixas era s o b r i n h o d o arcebispo da Bahia, seu


h o m ô n i m o , figura de relevo d o e p i s c o p a d o brasileiro e u m dos primeiros reformadores
da Igreja C a t ó l i c a brasileira. E m 1 8 6 2 , R o m u a l d o foi eleito pela primeira vez à Assem-
bléia Provincial, q u a n d o o c u p a v a o cargo de i n s p e t o r do g o v e r n o j u n t o à Caixa Eco-
n ó m i c a de Salvador. E r a diretor d o C l u b e D r a m á t i c o , u m a das duas associações tea-
trais que existiam na época e m Salvador. I g n o r o se ele c o n s t i t u i u uma família. Foi
eleito deputado durante sete legislaturas, entre 1 8 6 2 e 1 8 7 2 , tendo sido duas vezes
secretário e vice-presidente da Assembléia Provincial. A família Seixas teve ainda cinco
outros m e m b r o s eleitos para a Assembléia Provincial: d o m R o m u a l d o Antônio de
Seixas, já citado, arcebispo da Bahia de 1 8 2 7 a 1 8 6 0 , Eustáquio P r i m o de Seixas, o
médico D o m i n g o s Rodrigues Seixas, o advogado Arsênio Rodrigues Seixas c o padre
Romualdo Maria de Seixas Barroso. N ã o há dúvida de que a carreira do arcebispo
facilitou as carreiras dos seus familiares pois, naquela época, os Seixas estavam longe
de ser uma das famílias mais importantes do R e c ô n c a v o . 35

O advogado J o ã o dos Reis dc Souza Dantas nos conduz de volta à poderosa


família dos Dantas, ricos proprietários de terras na região do J e r e m o a b o , Rio Real c
Itapicuru, no Agreste baiano. J o ã o era filho de Maurício José de Souza e de Carolina
Francisca Dantas, filha dc J o ã o d'An tas dos Imperiais Itapicuru e de Francisca Xavier
de Souza Leite, e irmã dc José Dantas Itapicuru ( 1 7 9 8 - 1 8 6 2 ) , primeiro Barão de Rio
_Lrv^V - O ^ T A D A O R G A N I 2 A Ç A O E E X E R C [ C ,
o DOS PODERES 269

Real. A vida adulta de dois dos filhos desse B a r í n A ^ N U ;a

j o ã o Gualberto o r ( 1 s 2 9 - 1 8 8 8 ) ) J £ 1 ^ ^ ^ £ Z «
gurando u m c a s o b a s t a n t e raro e m q u e o filho recebeu o m e s m o título nobiliárquico
do pai (a n o b r e z a n a o era h e r e d i t á r i a ) . J o ã o G u a l b e r t o foi deputado às assembléias
Provincial e G e r a l , d i r e t o r d a C a . x a E c o n ô m i c a de Salvador, c o m a n d a n t e - e m - c h e f e da
G u a r d a N a c i o n a l na região de I t a p i c u r u e m e m b r o e m i n e n t e d o Partido Liberal Sua
irmã, A n a Ferreira de J e s u s D a n t a s , c a s o u - s e c o m u m p r i m o - i r m ã o pelo lado m a t e r n o
J o ã o dos R e i s d e S o u z a D a n t a s , a c i m a c i t a d o . D o i s parentes deste tiveram carreiras
políticas prestigiosas. E m p r i m e i r o l u g a r seu i r m ã o , M a n o e l P i n t o de Souza Dantas
( 1 8 3 1 - 1 8 9 4 ) , m a g i s t r a d o q u e foi s u c e s s i v a m e n t e j u i z dos órfãos ( 1 8 5 3 ) , deputado
provincial ( 1 8 5 2 - 1 8 5 7 ) , p r o c u r a d o r ( 1 8 5 7 - 1 8 5 8 ) , d e p u t a d o geral ( 1 8 5 7 - 1 8 8 1 ) , pre-
sidente da P r o v í n c i a das A l a g o a s ( 1 8 5 9 - 1 8 6 0 ) , presidente da Província da Bahia
( 1 8 6 5 - 1 8 6 6 ) , m i n i s t r o d a A g r i c u l t u r a , d o C o m é r c i o e de O b r a s Públicas ( 1 8 6 6 ) ,
senador ( 1 8 7 9 - 1 8 8 9 ) , m i n i s t r o da J u s t i ç a e d o I m p é r i o ( 1 8 8 0 ) e, e n f i m , presidente do
Conselho em 1 8 8 4 . C h e f e p r e s t i g i o s o d o P a r t i d o L i b e r a l , ele foi u m fervoroso
a b o l i c i o n i s t a e fez v o t a r a L e i dos S e x a g e n á r i o s , q u e libertava t o d o s os escravos que
tinham mais d e s e s s e n t a a n o s .
O o u t r o h o m e m i m p o r t a n t e d a f a m í l i a D a n t a s foi C í c e r o D a n t a s M a r t i n s , Barão
de J e r e m o a b o ( 1 8 3 8 - 1 9 0 3 ) , filho d e J o ã o D a n t a s dos R e i s , i r m ã o d o primeiro Barão de
Rio R e a l , p r i m o - i r m ã o p e l o l a d o m a t e r n o de J o ã o dos Reis e de seu i r m ã o M a n o e l
P i n t o . J á m e n c i o n e i o B a r ã o de J e r e m o a b o q u e , graças a seu c a s a m e n t o , aliou-se à
família C o s t a P i n t o . L e m b r o q u e o B a r ã o foi u m dos líderes do Partido Conservador
na B a h i a , r e p r e s e n t a n d o , c o m o tal, a região na A s s e m b l é i a Provincial ( 1 8 6 0 - 1 8 6 1 e
1 8 7 0 - 1 8 7 1 ) e n a A s s e m b l é i a G e r a l ( 1 8 6 9 - 1 8 8 6 ) . J o ã o dos Reis de Souza Dantas
estava m u i t o b e m c e r c a d o p e l o s m e m b r o s de sua f a m í l i a , q u e evoluíam c o m sucesso n o
plano n a c i o n a l . E l e i t o d e p u t a d o pela p r i m e i r a vez e m 1 8 5 4 , esteve presente na cena
política d a p r o v í n c i a a t é 1 8 8 9 , c o m o d e p u t a d o e presidente da Assembléia Provincial
( 1 8 6 8 - 1 8 8 1 , 1 8 8 4 - 1 8 8 5 e 1 8 8 8 - 1 8 8 9 ) , o u c o m o vice-presidente n o m e a d o pelo i m -
perador e m 1 8 7 8 , 1 8 7 9 , 1 8 8 2 e 1 8 8 5 . C h e g o u a exercer i n t e r i n a m e n t e a presidência
da Província e n t r e 5 de j a n e i r o e 2 9 de m a r ç o de 1 8 8 2 . 3 6

O ú l t i m o e x e m p l o é o de A n t ô n i o O l a v o C a l m o n de Araújo G ó i s ( 1 8 4 7 - 1 9 1 9 ) .
Por seu pai, ele era a p a r e n t a d o ao poderoso clã dos A r a ú j o G ó i s , a cujas práticas
matrimoniais já nos r e f e r i m o s . P o r sua m ã e , era aliado à família C a l m o n du Pin e
Almeida. Aliás, ele e s t r e i t o u os laços c o m essa família ao se casar em 1 8 7 3 , com sua
prima C l a r a M a r i a C a l m o n du Pin e Almeida. A n t ô n i o O l a v o foi o o.tavo filho de
I n o c ê n c i o M a r q u e s de A r a ú j o G ó i s , B a r ã o de A r a ú j o G ó i s , e de sua primeira mulher,
Maria F r a n c i s c a C a l m o n de Abreu. Seu pai fez carreira na magistratura e terminou
como ministro do Supremo Tribunal d.
deputado provincial d u r a n t e várias legislaturas ( 1 8 3 7 a 1 8 5 ; ) P * d c u

1 8 5 7 a 1 8 6 0 C o m o seu irmão mais velho, I n o c ê n c i o Marques de Araujo G o i s J r .


( I S ^ m t ele e s t u d o u direito na Faculdade de O l i n d a . Aquele, n o entanto, seguiu
BAHIA, SÉCULO X I X
270

carreira como deputado nas duas assembléias, tornando-se até presidente da Província
de Pernambuco em 1 8 8 9 , enquanto Antônio Olavo limitou sua ação à Bahia. Isso não
impediu que desempenhasse um papel eminente, pois, tendo sido eleito pela primeira
vez em 1 8 7 2 , foi reeleito até 1 8 8 6 , ocupando os postos de secretário ( 1 8 7 2 ) , vice-
presidente ( 1 8 7 9 e 1 8 8 2 ) e presidente da Assembléia Provincial ( 1 8 8 6 ) . 3 7
CAPÍTULO 17

Os BAIANOS NO GOVERNO CENTRAL:


O R I G E M SOCIAL E FORMAÇÃO

V i m o s q u e u m g r u p o d e 2 0 % d o s p a r l a m e n t a r e s dirigiam a A s s e m b l é i a Provincial.
C e r c a d e m e t a d e d o g r u p o s o b r e o q u a l o b r i v e i n f o r m a ç õ e s fez carreira gravitando em
t o r n o d o p o d e r c e n t r a l , a t r a v é s d e m a n d a t o s de d e p u t a d o s gerais, presidentes de
províncias, m i n i s t r o s c a t é p r e s i d e n t e s d o C o n s e l h o . Q u a l foi a p r o p o r ç ã o de deputa-
dos p r o v i n c i a i s q u e e x e r c e r a m u m d u p l o m a n d a t o ( p r o v i n c i a l e geral) e quais, entre
eles, a s s u m i r a m altas f u n ç õ e s n o E x e c u t i v o n a c i o n a l ?

O s d e p u t a d o s b a i a n o s o c u p a v a m c a t o r z e cadeiras na A s s e m b l é i a G e r a l , q u e teve
vinte legislaturas d e q u a t r o a n o s e n t r e 1 8 2 6 e 1 8 8 6 / 1 8 8 9 . P o r c o n s e g u i n t e , foram 2 8 0
as cadeiras o c u p a d a s p o r eles, e l e i t o s c o m o titulares o u s u p l e n t e s , ao l o n g o de sessenta
anos. H o u v e suplentes entre a primeira ( 1 8 2 6 - 1 8 2 9 ) e a décima (1857-1860)
legislaturas e , d e p o i s , a p e n a s n a 1 7 a
l e g i s l a t u r a ( 1 8 7 8 - 1 8 8 1 ) . O r a , apenas 1 3 5 pessoas
o c u p a m e f e t i v a m e n t e esses l u g a r e s , o q u e n o s faz r e e n c o n t r a r a m é d i a de duas cadeiras,
o u legislaturas, p o r d e p u t a d o . M a s , t a m b é m a q u i , a realidade foi outra, dada a fre-
q ü ê n c i a de r e e l e i ç õ e s : 5 4 d e p u t a d o s o c u p a r a m seu p o s t o apenas u m a vez, e 3 1 , duas
vezes. A s s i m , c e r c a d e 7 3 % d o s d e p u t a d o s f o r a m eleitos n o m á x i m o duas vezes,
e n q u a n t o 2 7 , 0 % e s t i v e r a m n a A s s e m b l é i a G e r a l p o r mais de duas legislaturas.
T e m o s a q u i o m e s m o e s q u e m a v e r i f i c a d o n a A s s e m b l é i a Provincial, c o m a dife-
rença de q u e a legislatura geral durava m a i s . P o d e - s e o b j e t a r q u e s o m e n t e um a c o m -
p a n h a m e n t o d e m u i t a s legislaturas p e r m i t i r i a u m a análise c o n c r e t a . M a s , ao fazer esse
e s m i u ç a m e n t o , v e r i f i c a - s e q u e as reeleições se s u c e d i a m . E r a m p o u c o freqüentes os
casos e m q u e u m a pessoa deixava de ser reeleita p o r mais de u m a legislatura. Resultava
daí u m a classe p o l í t i c a m u i t o p e q u e n a , p r i n c i p a l m e n t e se c o n s i d e r a r m o s que apenas
3 2 desses 1 3 5 d e p u t a d o s n ã o c u m p r i r a m m a n d a t o s provinciais. Q u e m eram eles e o

que r e p r e s e n t a v a m ? , .
O s c a t o r z e d e p u t a d o s gerais das legislaturas de 1 8 2 6 e 1 8 3 0 não poderiam ter
participado da A s s e m b l é i a P r o v i n c i a l , q u e ainda não existia. T o d o s eram m u i t o c o -

271
272 BAHIA, SÉCULO X I X

n h e c i d o s nos m e i o s políticos b a i a n o s , pois t i n h a m a t u a d o c o m destaque nas guerras


pela I n d e p e n d ê n c i a , t i n h a m s i d o eleitos para o C o n s e l h o G e r a l da P r o v í n c i a em 1 8 2 6 1

o u , já instalados na capital d o I m p é r i o , t i n h a m e x e r c i d o altas f u n ç õ e s n o aparelho de


E s t a d o . E r a esse o caso, e n t r e o u t r o s , de J o s é da C o s t a de C a r v a l h o ( M a r q u ê s de
M o n t e A l e g r e ) , F r a n c i s c o de A c a i a b a M o n t e z u m a ( V i s c o n d e de J e q u i t i n h o n h a ) e do
médico José Lino C o u t i n h o .
O s 3 2 d e p u t a d o s q u e n u n c a e x e r c e r a m m a n d a t o p r o v i n c i a l eram h o m e n s nascidos
na B a h i a , q u e t i n h a m famílias ali, m a s q u e v i v i a m na capital d o I m p é r i o , c o m o o
m é d i c o F r a n c i s c o B o n i f á c i o de A b r e u , B a r ã o da V i l a da B a r r a , 2
R o d o l f o Epifânio de
Souza D a n t a s ( c u j o pai, M a n o e l P i n t o d e S o u z a D a n t a s , foi m i n i s t r o e presidente do
C o n s e l h o ) e Luís A c c i o l i P e r e i r a F r a n c o ( f i l h o d o B a r ã o de Pereira F r a n c o , magistra-
d o , presidente da P r o v í n c i a e várias vezes m i n i s t r o ) . T r a t a v a - s e , p o i s , de baianos que
tiraram p r o v e i t o de alianças f a m i l i a i s o u de relações pessoais para conseguir uma
cadeira de d e p u t a d o p o r sua p r o v í n c i a de o r i g e m .

O r i t m o de r e n o v a ç ã o dos d e p u t a d o s à A s s e m b l é i a G e r a l n ã o foi diferente do


observado para a A s s e m b l é i a P r o v i n c i a l . N o t e - s e , p o r é m , q u e essa renovação podia
chegar a até 7 0 % dos e f e t i v o s .

TABELA 56

ASSEMBLÉIA G E R A L : PERCENTUAL DE N O V O S DEPUTADOS EM C A D A LEGISLATURA


1826-1889

ANOS % ANOS % ANOS %

1826-1829
- 1850-1852 15,0 1873-1875 33,3

1830-1833 66,7 1853-1856 25,0 1876-1877 21,4

1834-1837 55,5 1857-1860 70,0 1878-1881 62,5

1838-1841 53,3 1861-1863 28,6 1882-1884 42.3

1842-1844 66,7 1864-1866 333 1885-1885 14,3

1845-1847 25,0 1867-1868 23,0 1886-1889 37.5

1848-1849 28,3 1869-1872 46,7

T o d o s os deputados levados a d e s e m p e n h a r u m papel d e â m b i t o nacional ou


provincial t i n h a m a m e s m a o r i g e m e a m e s m a f o r m a ç ã o e, na m a i o r parte das vezes,
exerciam simultaneamente as duas f u n ç õ e s , nas assembléias Provincial e Geral. Filhos
de senhores de e n g e n h o , grandes proprietários de terras n o S e r t ã o , comerciantes ricos,
oficiais, altos magistrados o u m e m b r o s de profissões liberais, eram recrutados nas
mesmas camadas sociais abastadas de o n d e saíam os presidentes e vice-presidentes de
província. Filhos de senhores de e n g e n h o c de outros proprietários rurais somavam
6 6 , 5 % dos 161 deputados cujas origens sociais pude verificar. C a b e perguntar, no
entanto, se, nas informações, não havia super-representaçâo destas categorias sociais,
que eram mencionadas c o m evidente satisfação.
LIVRO I V - Q ESTADO: OR^ANIZACAOE EXERCÍCIO DOS PODERES
273

TABELA 57

ORIGEM SOCIAL DOS DEPUTADOS

PROFISSÃO DO PAI DEPUTADOS PROVINCIAIS DEPUTADOS GERAIS DF.P. COM MANDATO DUPLO
Senhor de engenho 47 3 21
Proprietário rural 20 4 12
Comerciante 7 3 5
Oficia! 6
- 2
Magistrado 5 3 4
Afro funcionário 3
- 5
Profissional liberal 5
- 2
Outros 3 1 -
Sem informação 310 18 52
Toral 406 32 103

Talvez os três d e p u t a d o s de origens modestas possam ser considerados representa-


tivos, pois n ã o d e v e m ter sido de m o d o a l g u m os únicos políticos oriundos de meios
sociais relativamente simples q u e c o n s e g u i r a m c o n s t r u i r uma bela carreira. Vejamos
primeiro o e x e m p l o de F r a n c i s c o G o m e s B r a n d ã o ( 1 7 9 4 - 1 8 7 0 ) , que nasceu em Sal-
vador. S e u pai, M a n o e l G o m e s B r a n d ã o , capitão de um brigue que praticava o tráfico
de negros na Á f r i c a , casara-se c o m u m a certa N a r c i s a T e r e z a de Jesus Barreto, ambos
baianos. D e q u e m o j o v e m F r a n c i s c o herdara sua c o r e seus traços mulatos, pouco
importa. O certo é q u e passou a m a i o r parte da infância em P e n e d o , pequena cidade
de Alagoas, e n t ã o parte da C a p i t a n i a de P e r n a m b u c o . D o s 1 4 aos 2 1 anos, fez o curso
secundário na E s c o l a dos F r a n c i s c a n o s de Salvador, pois seus pais o haviam destinado
à vida sacerdotal. M a s , sem v o c a ç ã o religiosa, decidiu estudar medicina, que também
não concluiu. A p ó s u m a b r e v e e x p e r i ê n c i a c o m o cirurgião a b o r d o de navios negreiros
portugueses, d e s e m b a r c o u e m L i s b o a e seguiu para C o i m b r a , o n d e cursou direito e
filosofia, g a n h a n d o b r i l h a n t e reputação nos estudos e péssima nos costumes.
D c volta à B a h i a em 1 8 2 1 , lançou-se i m e d i a t a m e n t e na vida política, c o m o reda-
tor do jornal O Diário Constitucional, o n d e i m p ô s u m estilo cheio de veemência e
energia. Adepto i n c o n d i c i o n a l da I n d e p e n d ê n c i a , em 1 8 2 2 Francisco G o m e s Brandão
foi emissário do g o v e r n o provisório b a i a n o j u n t o a dom Pedro I, que o acolheu
calorosamente e o c o n d e c o r o u c o m a O r d e m do Cruzeiro, que acabara de fundar D e
volta a Bahia em 1 8 2 3 . Francisco criou um novo jornal político, o Independente
Constitucional, ferozmente antilusirano, e trocou seu n o m e de batismo — tão portu-
guês - pelo de G ê Acaiaba de M o n t e z u m a , estranha mistura de três nomes ameríndios:
G ê é um vocábulo tapuia, Acaiaba é tupi e M o n t e z u m a foi um ilustre príncipe asteca.
D e p u t a d o à Assembléia C o n s t i t u i n t e de 1 8 2 3 , Montezuma foi notado por suas
posições muito firmes, consideradas liberais demais pelo imperador. Depois da disso-
274

lução da C o n s t i t u i n t e , ele e o u t r o s d e p u t a d o s foram ' d e p o r t a d o s ' para a F r a n ç a , onde


p e r m a n e c e u exilado d u r a n t e o i t o a n o s . S o b o regime de prisão d o m i c i l i a r c m Orleans,
e s t u d o u direito francês, c o n t i n u a n d o seus e s t u d o s , d e p o i s , e m L o n d r e s , na Bélgica e
na H o l a n d a .
E m 1 8 3 1 » após a a b d i c a ç ã o d e d o m P e d r o I, p ô d e voltar a o Brasil, sendo imedia-
t a m e n t e eleito s u p l e n t e à s e g u n d a legislatura da A s s e m b l é i a G e r a l ( 1 8 3 1 - 1 8 3 3 ) . Para-
d o x a l m e n t e , se a p r o x i m o u dos c o n s e r v a d o r e s , os f a m o s o s ' c a r a m u r u s ' , q u e pediam a
volta de d o m P e d r o . C h e g o u a se p r o n u n c i a r c o n t r a a r e f o r m a c o n s t i t u c i o n a l , defen-
deu a m a n u t e n ç ã o d o s t í t u l o s de n o b r e z a e das o r d e n s h o n o r í f i c a s e se manifestou
c o n t r a o exílio d o i m p e r a d o r q u e , e n t r e t a n t o , o t i n h a e x i l a d o dez a n o s antes. Publicou
vários p a n f l e t o s em defesa dos " p r i n c í p i o s f e d e r a l i s t a s " e c o n t r a a "liberdade dos
r e p u b l i c a n o s " e, o f i c i o s a m e n t e , d i r i g i u d o i s i m p o r t a n t e s j o r n a i s q u e faziam oposição
ao g o v e r n o da R e g ê n c i a : o Ipiranga ( 1 8 3 1 / 1 8 3 2 ) e o Catão ( 1 8 3 2 / 1 8 3 3 ) . Todavia,
q u a n d o o padre D i o g o A n t ô n i o F e i j ó a s s u m i u a R e g ê n c i a e m 1835, Montezuma
c o m e ç o u a se afastar d o P a r t i d o C o n s e r v a d o r , r e c u s a n d o - s e a ajudar as numerosas
forças políticas u n i d a s c o n t r a o n o v o r e g e n t e . E m r e c o n h e c i m e n t o de sua atitude
m o d e r a d a , foi n o m e a d o m i n i s t r o d a J u s t i ç a e d o s N e g ó c i o s E s t r a n g e i r o s entre maio e
s e t e m b r o de 1 8 3 7 , d u r a n t e os ú l t i m o s meses d a R e g ê n c i a de F e i j ó .

S u a versatilidade p o l í t i c a i m p e d i u q u e fosse reeleito d e p u t a d o à Assembléia na


legislatura de 1 8 3 4 - 1 8 3 7 , m a s n ã o n a s e g u i n t e , c o n s i d e r a d a a m a i s i m p o r t a n t e da
história p a r l a m e n t a r brasileira. T e n d o a p o i a d o a d e c i s ã o de d e c r e t a r a maioridade de
d o m Pedro I I a n t e s de este a t i n g i r a i d a d e legal, foi n o m e a d o m i n i s t r o plenipotenciá-
rio em L o n d r e s , o n d e ficou de s e t e m b r o de 1 8 4 0 a a g o s t o de 1 8 4 1 . Intransigente,
acabou por se d e s e n t e n d e r c o m o m i n i s t r o dos N e g ó c i o s E s t r a n g e i r o s e foi obrigado
a regressar ao B r a s i l , o n d e d e c i d i u fazer c a r r e i r a de a d v o g a d o (foi f u n d a d o r da Ordem
dos Advogados d o B r a s i l e m 1 8 4 3 ) , s e m t o d a v i a a b a n d o n a r suas atividades políticas.
D e 1 8 4 7 a 1 8 5 0 , foi d e p u t a d o à A s s e m b l é i a P r o v i n c i a l F l u m i n e n s e . T e n t o u duas
vezes, sem ê x i t o , e n t r a r n o S e n a d o c o m o r e p r e s e n t a n t e d a P r o v í n c i a d o R i o de Janeiro,
realizando seu desejo q u a n d o , n a terceira t e n t a t i v a , e m 1 8 5 1 , apresentou-se c o m o
c a n d i d a t o pela B a h i a . Sua r e p u t a ç ã o de a d v o g a d o j á era tão grandiosa que, desde
1 8 5 0 , fora n o m e a d o c o n s e l h e i r o e x t r a o r d i n á r i o d o C o n s e l h o de Estado. E m 1 8 5 4 , o
senador M o n t e z u m a obteve de d o m P e d r o II o título de V i s c o n d e de J e q u i t i n h o n h a
(todos os conselheiros do i m p e r a d o r foram e n o b r e c i d o s nesse m e s m o a n o ) . Até sua
m o r t e cm 1 8 7 0 , m a n t e v e uma ação política i n d e p e n d e n t e e apresentou vários projetos
de reformas, que incluíam uma e x t i n ç ã o gradual da escravidão. A discussão dessa
proposta foi prejudicada pelo início da G u e r r a d o Paraguai. Este é o resumo da carreira
de um mulato b a i a n o , de origem modesta, mas a m b i c i o s o , c o m b a t i v o e versátil. Para
abrir seu c a m i n h o e chegar aos primeiros postos da vida política brasileira, ele soube
tirar proveito das circunstâncias favoráveis e das perturbações de um período agitado.
T a m b é m foi exemplar a carreira de Angelo M u n i z da Silva Ferraz ( 1 8 1 2 - 1 8 6 7 ) .
originário da região Sul d o R e c ô n c a v o , filho de um modesto proprietário rural da
LIVRO I V - Q ESTADO: Q R ^ ^ EXERCÍCIO DOS PODERES
275
E

r e g , á o de V a l e n ç a . E s c u d o u direito em O l i n d a ( P e r n a m b u c o ) e c o m e ç o u sua carreira


c o m o p r o m o t o r p u b h c o do d.strito dc Salvador. E m 1 8 3 5 , casou-se c o m Maria Rosa
de Oliveira J u n q u e i r a u m ã de J o ã o J o s é de Oliveira J u n q u e i r a , desembargador do
T r i b u n a l de R e l a ç ã o d c S a l v a d o r e d e p u t a d o às assembléias Provincial e Geral Entre

1 8 3 7 C 184

esteve
-\ ^V ,«/V ° , '
U,Z AC
A
BÍ NA

entre 1 8 3 8 e 1 8 4 5 . A aliança
° d e g e U P a f
Provincial', onde
a 3 A s

m a t r i m o n i a l e as excepcionais qualidades do
s e m b l é i a

jovem Angelo M u n . z estiveram presentes, sem dúvida, na construção de uma rápida


carreira, iniciada c o m a n o m e a ç ã o para o cargo de desembargador j u n t o ao T r i b u n a l
de Relação, q u e o c u p o u até a p o s e n t a r - s e em 1 8 5 7 . D e 1 8 4 3 a 1 8 4 8 e d e 1 8 5 3 a 1 8 5 6 ,
foi d e p u t a d o à A s s e m b l é i a G e r a l . N o R i o , t r a b a l h o u n o M i n i s t é r i o das Finanças c o m o
inspetor-gerai da A l f â n d e g a de 1 8 4 8 a 1 8 5 3 ( u m a tarifa alfandegária recebeu seu
n o m e ) , i n t e g r o u o C o n s e l h o de E s t a d o e foi senador, presidente d o C o n s e l h o de 1 8 5 9
a 1 8 6 1 e m i n i s t r o d a G u e r r a de 1 8 6 5 a 1 8 6 6 . D o m Pedro II o recompensou c o m o
título de B a r ã o d c U r u g u a i a n a , q u i n z e meses antes de sua inesperada morte, ocorrida
em j a n e i r o d c 1 8 6 7 . E m p o u c o a n o s , esse filho de modestíssimos proprietários rurais
se tornara u m a figura de p r o j e ç ã o : era G r a n d e d o I m p é r i o , c o m e n d a d o r da O r d e m de
Cristo, d i g n i t á r i o d a O r d e m da R o s a , d e t e n t o r da G r ã - C r u z da Real O r d e m de Nosso
S e n h o r J e s u s C r i s t o , de P o r t u g a l , e t i n h a o título d o C o n s e l h o de Sua M a j e s t a d e . 4

B e l l a r m i n o Sylvestre T o r r e s ( 1 8 2 9 - 1 8 9 6 ) talvez tenha sido u m h o m e m público


menos i m p o r t a n t e q u e o B a r ã o de U r u g u a i a n a , já que o brilho de suas funções não
ultrapassou os l i m i t e s d a p r o v í n c i a baiana. M a s , nascido em Nazaré ( R e c ô n c a v o ) , filho
de um h u m i l d e f o g u e t e i r o , sua carreira t a m b é m foi exemplar. Após brilhantes estudos
no S e m i n á r i o D i o c e s a n o de S a l v a d o r , B e l l a r m i n o foi ordenado padre em 1 8 5 2 e
n o m e a d o c h a n t r e - a d j u n t o d a catedral de Salvador. U m a ligação sentimental com a
viúva U m b e l i n a E m í l i a dos S a n t o s a c a b o u c o m sua carreira sacerdotal em 1857,
quando foi e n v i a d o para u m a espécie de exílio n o l o n g í n q u o sertão da região de
Caetité, o n d e se t o r n o u vigário da paróquia do Santíssimo Sacramento de S a n t o
António da B a r r a , m a i s tarde cidade de C o n d e ú b a . S e g u n d o seu biógrafo, o homem
"tinha t e m p e r a m e n t o " c , m u i t o b o n i t o c o m seus ares de "pastor anglicano", mexia
com os corações f e m i n i n o s . Sua u n i ã o c o m U m b e l i n a , viúva de José Rodrigues Coe-
lho, foi declarada escandalosa. Nessa época, a alta hierarquia da Igreja consagrava toda
a sua energia à tentativa de moralizar um clero repleto de chefes de família, que parecia
muito mais fiel ao c o n c e i t o b í b l i c o dc "crescei e multiplicai-vos" que ao voto de
castidade exigido pela Igreja R o m a n a . 5
.
U m b e l i n a Emília dos S a n t o s , filha natural de Umiliana dos Santos, deu seis filhos
naturais a seu eclesiástico c o n c u b i n o , que «eve mais quatro filhos com outra mu her,
Francisca B e n t a de S ã o J o s é . S ó nasceu em Salvador o mais velho desses dez filhos (sete
meninos e três m e n i n a s ) , J o ã o N e p o m u c e n o T o r r e s . Eles despertaram contra seu pai
as fúrias da hierarquia e provocaram o exílio no interior. É interessante notar que todos
os filhos de U m b e l i n a tiveram carreiras aceitáveis, até brilhantes, para crianças naturais:
João N e p o m u c e n o e T r a n q u i l i n o Lcovigildo tornaram-se altos magistrados. Américo
BAHIA, SÉCULO X I X
278

A t a ú l f o foi m é d i c o e E l g i d i o B e n i g n o teve s u c e s s o c o m o c o m e r c i a n t e . Isso se deveu ao


6

fato de q u e n o s s o v i g á r i o se t o r n a r a u m c h e f e p o l í t i c o i m p o r t a n t e n a sua r e g i ã o , comis-


sário de e n s i n o p ú b l i c o e n t r e 1 8 5 7 e 1 8 7 5 , f u n d a d o r d o I n s t i t u t o G e o g r á f i c o e Histórico
da B a h i a , m e m b r o d o P a r t i d o L i b e r a l e d u a s vezes d e p u t a d o à A s s e m b l é i a Provincial
( e m 1 8 8 2 e 1 8 8 6 ) . A P r o c l a m a ç ã o da R e p ú b l i c a a f e t o u sua c a r r e i r a p o l í t i c a , fazendo
c o m q u e B e l l a r m i n o fosse m o r r e r n a c i d a d e d e C o n d e ú b a , o n d e p a s s o u a m a i o r parte
d e sua vida c o m o m i n i s t r o d o S e n h o r , c h e f e local e b o m pai de p r o l e n u m e r o s a . N o
seu c a s o , t u d o se p a s s o u c o m o se o s a c e r d ó c i o , a l i a d o a u m a s ó l i d a i n s t r u ç ã o e a muitos
d o n s pessoais, tivesse a p a g a d o m o d e s t a s o r i g e n s sociais e c o s t u m e s p o u c o recomendáveis.

Essas carreiras n ã o d e v e m o b s c u r e c e r o f a t o de q u e a g r a n d e m a i o r i a dos parla-


m e n t a r e s p e r t e n c i a às classes a b a s t a d a s d a s o c i e d a d e b a i a n a . E r a e x c e p c i o n a l que um
filho de f a m í l i a m a i s m o d e s t a tivesse a c e s s o a o s e s c a l õ e s s u p e r i o r e s das carreiras que
levavam a o p o d e r p o l í t i c o . I s s o fica a i n d a m a i s c l a r o q u a n d o , à a n á l i s e das origens
sociais, a g r e g a m o s a das o r i g e n s g e o g r á f i c a s d o s h o m e n s p ú b l i c o s b a i a n o s . Salvador e
suas elites c o n t r o l a r a m as a t i v i d a d e s e c o n ô m i c a s a c e n a p o l í t i c a d a P r o v í n c i a ao longo
de t o d o o s é c u l o X I X . P a r a p o d e r s o n h a r c o m u m a b r i l h a n t e c a r r e i r a de h o m e m
p ú b l i c o o u para i n g r e s s a r n o P a r l a m e n t o , n ã o era s u f i c i e n t e n a s c e r n u m a família
prestigiosa e r e c e b e r u m a i n s t r u ç ã o s u p e r i o r . E r a p r e c i s o n a s c e r n a capital o u em seu
R e c ô n c a v o . D o s 1 . 2 3 2 d e p u t a d o s q u e p a s s a r a m p e l a A s s e m b l é i a P r o v i n c i a l entre 1835
e 1 8 8 9 , t e n h o i n f o r m a ç õ e s s o b r e a o r i g e m de 7 8 0 . D e s t e s , 5 5 0 e r a m de Salvador, 116
do Recôncavo e 1 1 4 do interior.

S ã o escassas, c o m o se v ê , as i n f o r m a ç õ e s s o b r e g r a n d e n ú m e r o de deputados.
M e s m o a s s i m , n ã o h á d ú v i d a de q u e , a t é a d é c a d a d e 1 8 7 0 , o n ú m e r o de deputados
o r i g i n á r i o s d a c a p i t a l e de s e u R e c ô n c a v o era s u p e r i o r a o dos q u e v i n h a m do resto da
P r o v í n c i a , o q u e c o m p r o v a a i n f l u ê n c i a d a m e t r ó p o l e s o b r e o i n t e r i o r l o n g í n q u o . Essa
p r e d o m i n â n c i a t o r n a - s e e v i d e n t e q u a n d o se c o n s t a t a a o r i g e m dos 9 1 deputados que
representaram a B a h i a n a A s s e m b l é i a G e r a l e n t r e 1 8 2 6 e 1 8 8 9 . C o n s e g u i estabelecer
o local de n a s c i m e n t o de 8 4 deles e c o n s t a t e i q u e 5 4 n a s c e r a m e m Salvador e 2 4 no
R e c ô n c a v o . O r a , assim c o m o o s d e p u t a d o s p r o v i n c i a i s , os d e p u t a d o s à Assembléia
Geral t e o r i c a m e n t e r e p r e s e n t a v a m todas as z o n a s eleitorais da P r o v í n c i a .
S e m dúvida, a capital d o m i n a v a a c e n a p o l í t i c a . M a s n ã o d e v e m o s c o n c l u i r muito
rapidamente q u e os d e p u t a d o s representassem oS interesses das oligarquias de Salvador
e de seus arredores. As terras l o n g í n q u a s só se integraram t a r d i a m e n t e à economia
baiana. E m alguns casos, regiões c o n s e g u i r a m se libertar d o d o m í n i o de Salvador,
a u m e n t a n d o os i n t e r c â m b i o s c o m outras províncias. N o Sul da Bahia, por exemplo, a
nova expansão d o cultivo do cacau após 1 8 7 0 levou as oligarquias locais a buscar
apoios e m M i n a s Gerais, Espírito S a n t o e R i o de J a n e i r o , c u j o s centros econômicos
eram até mais acessíveis do que S a l v a d o r . O m e s m o f e n ô m e n o ocorreu nas regiões do
7

Alto e do M é d i o S ã o Francisco, cujas cidades ribeirinhas souberam usar o grande rio


para desenvolver intercâmbios c o m as províncias vizinhas de P e r n a m b u c o e Minas
Gerais. A perda de influência da capital baiana se a c e n t u o u depois de 1 8 7 0 , e tudo leva
L I X T O I V - O E S T A D O : ORGANIZAÇÃO E EXERCÍCIO DOS PODERES
2 "

a c r e r q u e d e c o r r e u de a t i t u d e s relapsas dos p o l í t i c o s da c a p i t a l . M i n h a s d i f i c u l d a d e s

para e n c o n t r a r a o r i g e m d o s d e p u t a d o s p r o v i n c i a i s d e p o i s de 1 8 7 5 m o s t r a m q u e algo

m u d o u na r e p r e s e n t a ç ã o à A s s e m b l é i a Provincial

TABELA 58

LOCAL DE O R I G E M DOS DEPUTADOS À ASSEMBLÉIA PROVINCIAL, 1835-1889*

LEGISLATURAS SAI VADOR RECÔNCAVO PROVÍNCIA SF.M INFORMAÇÃO TOTAL


1835-1837 39 9 3 11 62
1838-1839 33 3 1 12 49
1840-1841 33 3 1 9 46

1842-1843 37 2 1 22 62

1844-1845 39 3 3 9 54

1846-1847 27 3 3 6 39

1848-1849 31 3 2 8 44

1850-1851 26 5 4 5 40

1852-1853 27 4 6 8 45

1854-1855 24 4 6 7 41

1856-1857 25 4 9 14 52

1858-1859 20 2 8 21 51

1860-1861 25 8 13 22 68

1862-1863 18 5 7 12 42

1864-1865 16 7 5 14 42

1866-1867 10 8 4 17 39

14 6 7 15 42
1868-1869

2 4 17 43
1870-1871 20

2 20 42
1872-1873 17 3

2 17 41
1874-1875 18 4

1 21 43
1876-1877 15 6

21 41
1878-1879 11 8 1

4 25 43
1880-1881 10 4

28 42
1882-1883 7 4 3

30 39
1884-1885 4 2 3

32 40
1886-1887 2 3
3
29 40
2 8
1888-1889 1
114 452 1.232
Toul 550 116

(*) O* números correspondem as cadeiras que foram ocupadas pelos £ ^ 1 8 6 1 . o,


ram com muita freqüência por causa de imped.mentos dos titularei.
suplentes assumi
BAHIA, SÉCULO X I X

O s novos eleitos seriam o r i u n d o s das regiões q u e representavam e teriam interes-


ses o p o s t o s aos dos h o m e n s políticos da capital? N ã o p r e t e n d o elucidar essas questões
aqui, e m b o r a n ã o t e n h a dúvida de q u e h á u m a d o l o r o s a lacuna nas pesquisas sobte a
vida política da B a h i a n o fim d o século passado.

TABELA 59

ORIGEM DOS N O B R E S , SENADORES E MINISTROS BAIANOS

Regiões Nobres Senadores Ministros

Salvador 46 15 15

Recôncavo 43 4 9

Recôncavo Sul 5 2 2

Agreste 7 2 2

Sertão 9 2 1

Sem informações 2 1 2

Total 112 26 31

Esta tabela d i s p e n s a c o m e n t á r i o s . N ã o h á dúvida de q u e a m a i o r parte dos enobre-


cidos ( 7 9 , 5 % ) , dos s e n a d o r e s ( 7 3 , 0 % ) e dos m i n i s t r o s ( 7 7 , 4 % ) saíam das classes
superiores de S a l v a d o r e de seu R e c ô n c a v o . H á u m a e n o r m e d i f e r e n ç a entre as carrei-
ras dos h o m e n s p o l í t i c o s n a s c i d o s nessa região e as d a q u e l e s q u e nasceram n o interior
d a P r o v í n c i a . E r a m s o b r e t u d o os p r i m e i r o s q u e c h e g a v a m aos cargos mais elevados. As
origens familiares, o local de n a s c i m e n t o , o m e i o social e a i n s t r u ç ã o formavam um
c o n j u n t o a r t i c u l a d o de c i r c u n s t â n c i a s q u e i n f l u e n c i a v a m a carreira política de cada
u m , c o m o fica p a r t i c u l a r m e n t e e v i d e n t e q u a n d o se t e n t a saber as origens de alguns
d e p u t a d o s provinciais q u e e x e r c e r a m f u n ç õ e s a d m i n i s t r a t i v a s e judiciárias em outras
províncias d o país. O s o i t o d e p u t a d o s q u e serviram c o m o d i p l o m a t a ( u m ) , presidentes
de província ( d o i s ) , magistrados j u n t o aos T r i b u n a i s da R e l a ç ã o da Província ou ao
S u p r e m o T r i b u n a l de J u s t i ç a (dois) e c o m o oficiais superiores (três) eram m e m b r o s de
grandes famílias baianas enobrecidas o u integrantes da alta magistratura: Aragão Bulcão,
V i c e n t e de A l m e i d a , P i n t o G a r c e z , Pessoa da Silva, C a l m o n du Pin e Almeida, Moniz
Ferrão de Aragão. I n s t r u ç ã o superior era a b s o l u t a m e n t e necessária para permitir que
ambiciosos, o r i u n d o s de um m e i o social m o d e s t o , tivessem acesso ao poder.

Apesar de relativamente escassas, as i n f o r m a ç õ e s q u e possuo sobre o grau de


instrução dos parlamentares baianos m o s t r a m que só 2 2 5 dos 5 5 4 deputados recensea-
dos fizeram cursos universitários. N a m e d i d a em q u e nos adiantamos n o século, os
dados se tornam cada vez mais raros, pois as fontes se t o r n a m mais imprecisas e os
arquivos da Assembléia Legislativa baiana têm pouquíssima i n f o r m a ç ã o . D e qualquer
maneira, sobretudo para os deputados d o interior, u m a boa instrução — que pressu-
punha algum recurso familiar — era u m a garantia de êxito. Às vezes, ela podia atenuar
as limitações de uma origem relativamente modesta.
J ^ J Y J ^ ^ P O D E R E S
279

As pessoas p o b r e s n a o u n h a m a m e n o r possibilidade de oferecer estudos a seus


filho. O ensino p r i m á r i o era gera m e n t e m i n i s t r a d o p o r padres e vigários, por profes-
sores f o r m a d o s na E s c o l a N o r m a l ( f u n d a d a em 1 8 3 7 ) e por leigos, ou seja, autodidata,
a l f a b e t a d o s . M u i t a s vezes, o nível de instrução desses leigos permitia apenas uma
leitura d e f i c i e n t e e u m a o r t o g r a f i a a p r o x i m a t i v a . Aprendia-se, c o m eles, alguns rudi-
m e n t o s de a r i t m é t i c a e o r e c o n h e c i m e n t o das letras, suficiente para que o aluno
pudesse ass.nar s e u n o m e . O s filhos das famílias abastadas c o n t i n u a v a m seus estudos
em colégios p r i v a d o s , n u m e r o s o s e m S a l v a d o r , q u e f u n c i o n a v a m em regime de inter-
nato e r e c e b . a m a l u n o s o r i u n d o s das grandes famílias d o R e c ô n c a v o . N a primeira
m e t a d e d o s é c u l o , f o r a m f u n d a d o s u m liceu provincial, u m seminário m e n o r e um
seminário maior.

P a r e c e - m e q u e a m a i o r p a r t e dos d e p u t a d o s b a i a n o s fez, pelo m e n o s , estudos


s e c u n d á r i o s e m S a l v a d o r . O s q u e q u e r i a m e m p r e e n d e r estudos universitários só en-
c o n t r a v a m na B a h i a u m a e s c o l a de m e d i c i n a , f u n d a d a e m 1 8 0 8 . Para estudar direito,
era preciso ir p a r a O l i n d a ( P e r n a m b u c o ) o u S ã o P a u l o . A passagem pelo liceu ou por
u m a f a c u l d a d e c r i a v a s ó l i d o s l a ç o s e n t r e os e s t u d a n t e s . A l g u m a s carreiras foram feitas
graças às a m i z a d e s q u e n a s c e r a m n o s b a n c o s escolares, c o m p l e m e n t a n d o as solidarie-
dades de classe s o c i a l .

TABELA 60

E S T U D O S SUPERIORES DOS
D E P U T A D O S PROVINCIAIS, 1835-1889

Direito 152

Medicina 42

Sacerdócio 19

Outros* 9

Total 222

(*) Três engenheiros e seis 'doutores' genericamente referidos.

H á u m a f o r t e p r e d o m i n â n c i a de b a c h a r é i s e m direito, q u e correspondiam a 6 8 , 5 %
dos d e p u t a d o s p o r t a d o r e s d e d i p l o m a s universitários. F r e q ü e n t e m e n t e , aliás, tratava-
se de m a g i s t r a d o s e a l t o s f u n c i o n á r i o s - p o u c o s se consagravam unicamente a profis-
são de a d v o g a d o - , de m o d o q u e , p o r seu i n t e r m é d i o , o Estado tinha, no meio
p a r l a m e n t a r , bases sólidas e aliados p r e c i o s o s . A eles devem-se acrescentar todos os
outros q u e t a m b é m e x e r c i a m f u n ç õ e s p ú b l i c a s , c o m o , por e x e m p l o , os sacerdotes que,
graças ao P a d r o a d o , e r a m f u n c i o n á r i o s d o E s t a d o , n o m e a d o s c.recruta dos p o r . e -
O perfil profissional dos p a r l a m e n t a r e s P ^ ^ ^ ^ ^

não causa s u r p r e s a : m a g i s t r a d o s , ^ ^ ^ ^ ^ <* "


maior parte dos g r u p o s p a r l a m e n t a r e s . P * ^ £ i n f o r m a ç õ c s $ ã o e s c a s .
ter p e r m a n e c i d o i n a l t e r a d a n o s anos s e g u i n t e ^ ^ c o n c i d a d ã o s , q u e

sas). Q u e m esses p a r l a m e n t a r e s representavam na Assemoi


BAHIA, SÉCULO X I X

lhes confiavam o mandato, ou o próprio Estado, ao qual já deviam tantos favores?


É uma pergunta importante, para a qual ainda não tenho resposta. Mas parece que
havia uma cisão bem nítida entre os interesses das coletividades locais e os do Estado,
e que os parlamentares representavam, de preferência, os interesses deste último, e não
os de seus eleitores. É uma hipótese que pode ser verificada de forma mais clara,
quando se passa a analisar os representantes baianos junto às autoridades nacionais.
Teoricamente, os deputados provinciais deveriam representar os interesses das regiões
pelas quais foram eleitos, enquanto aos deputados gerais corresponderia a defesa dos
interesses da Província como um todo, no plano nacional.
Num sistema de sufrágio censitário, os eleitores pertenciam em grande maioria às
categorias abastadas da sociedade, que se congregavam em grupos de interesses, ou de
pressão, e procuravam interlocutores no plano nacional, por intermédio dos parla-
mentares. No caso da Bahia, dois grupos de pressão eram particularmente nítidos: o
dos produtores de açúcar, agrupados a partir de 1859 em torno do Imperial Instituto
Baiano de Agricultura, e o dos comerciantes, filiados à Associação Comercial da Bahia,
fundada em 1840. De modo geral, os eleitos para a Assembléia Geral tinham o mesmo
perfil dos que iam para a Assembléia Provincial. Na verdade, entre os deputados gerais
era ainda maior (63%) a percentagem de membros de famílias originárias do Recôncavo
e de Salvador, cm geral proprietárias de engenhos ou chefiadas por altos funcionários.
Só encontrei o local de nascimento de 94 dos 135 deputados: 55 deles nasceram em
Salvador, 26 no Recôncavo, 4 no Recôncavo Sul, 6 no Agreste e 3 no Sertão. O peso
dos formados em direito também se mantinha nesse caso.

TABELA 61

C U R S O S SUPERIORES DOS
D E P U T A D O S GERAIS, 1826-1889
Direito 70

Medicina 12

Sacerdócio* 4

Outros 3

Total 89

O Só encontrei parlamentares que pertenciam ao clero nai trís


primeiras legislaturas.

Como sc vê, os parlamentos eram muito homogêneos. As carreiras dos deputados


dependiam da fidelidade ao poder c de solidariedades nascidas na escola e, em seguida,
no próprio parlamento. Habitualmente, entre eles eram escolhidos os ministros, os
presidentes do Conselho, os senadores e os conselheiros de Estado. Ter nascido no
Recôncavo ou na capital ou ter ingressado, pelo casamento, numa poderosa família de
senhores de engenho eram trunfos suplementares para fazer uma carreira de âmbito
nacional.
L - v R o ^ - O j ^ O R ^ ^ Q E Ex E R C f C I O D O S P o D E R E S
2S1

Os SENADORES

Para completar os dados sobre os parlamentares baianos, precisamos mencionar uma


casta ainda mais fechada: a dos senadores. Para um político brasileiro do período
imperial, a n o m e a ç ã o vitalícia para o S e n a d o era a suprema recompensa. Por um lado,
implicava uma presença p e r m a n e n t e — e sem ônus eleitoral — na cena política dò
país; por o u t r o , era o c a m i n h o que c o n d u z i a à c o o p t a ç ã o para funções ministeriais. A
nomeação era feita a partir de u m a lista tríplice, elaborada por consenso nos meios
políticos da P r o v í n c i a e s u b m e t i d a pelo presidente ao imperador.

T o d o s os senadores e r a m 'ministeriáveis', e o próprio recrutamento senatorial —


recompensa para experiências administrativas anteriores — era feito c o m essa perspec-
tiva. U m a n o m e a ç ã o para o S e n a d o libertava o político de qualquer laço c o m os meios
políticos provinciais. O s e s c o l h i d o s gostavam de usar o título 'senador da nação',
rejeitando assim, m u i t o n i t i d a m e n t e , a ideia de que permanecessem vinculados a uma
província de o r i g e m . Aliás, era possível tornar-se senador por u m a província sem ser
9

originário dela.

N o caso da B a h i a , n o e n t a n t o , n u n c a houve senador de fora. Entre 1 8 2 6 e 1 8 8 9 ,


quando se deram as n o m e a ç õ e s para o S e n a d o , houve 2 6 senadores pela Província,
todos baianos ( h o u v e , isso s i m , b a i a n o s n o m e a d o s para representar outras províncias).
E, c o m u m a e x c e ç ã o , t o d o s os n o m e a d o s eram verdadeiros notáveis, oriundos das
famílias mais abastadas, c o m u m a i n s t r u ç ã o superior adquirida em C o i m b r a (mais de
metade) o u e m escolas superiores brasileiras. S ó I n á c i o M a n u e l da C u n h a Menezes,
Visconde de R i o V e r m e l h o ( 1 7 7 9 - 1 8 5 0 ) não t i n h a curso superior, mas era filho de
um antigo g o v e r n a d o r e c a p i t ã o - g e r a l da B a h i a , M a n u e l da C u n h a Menezes, terceiro
Conde de L u m i a r e s , e t i n h a s i d o p e r s o n a g e m m u i t o i m p o r t a n t e nas guerras pela
Independência. 10

O s quinze senadores q u e e s t u d a r a m e m C o i m b r a pertenciam ao pessoal adminis-


trativo c político d o A n t i g o R e g i m e . H a v i a m servido ao Estado português, sobretudo
c o m o magistrados e, e m seguida, a d o m Pedro I, q u e os brasileiros sempre considera-
ram c o m o um m o n a r c a p o r t u g u ê s . 11
D e p o i s da Independência, a maior parte deles
integrou o c í r c u l o de altos f u n c i o n á r i o s que assumiram responsabilidades ministeriais
no novo E s t a d o .
Manoel Vieira T o s t a , M a r q u ê s de M u r i t i b a , foi o último senador do clã dos
'coimbranos', c o n s e r v a n d o sua cadeira até 1 8 8 9 . ' C o i m b r a n o s ' ou formados no Brasil,
dezesseis senadores baianos aderiram ao Partido Conservador e dez ao Liberal (tres
desses dez liberais foram conservadores c m algum m o m e n t o ) . - Isso reforça a idéia de 1

que o Senado sempre foi um baluarte do conservadorismo. O s libera^ representavam


31,20/0 dos senadores n o m e a d o s antes dc 1 8 5 6 c 5 0 , 0 % dos nomeados depois. Isso
indica, de u m lado, q u e o m o n a r c a desejava maior equilíbrio, ao promover, mesmo de
forma imperfeita, a alternância; dc outro, indica que entre os homens políticos da
Bahia encontravam-se espíritos abertos às idéias novas.
BAHIA, SÉCULO X I X

M a s , de m o d o geral, os p o l í t i c o s da B a h i a eram m a i s c o n s e r v a d o r e s que liberais


d e n o m i n a ç õ e s q u e p r e c i s a m ser m a i s b e m precisadas nos planos d o u t r i n á r i o e ideoló-
g i c o . A f o r m a ç ã o de partidos p o l í t i c o s a c o n t e c e u n a é p o c a das R e g ê n c i a s ( 1 8 3 1 -
1 8 4 0 ) , s o b r e t u d o n a ú l t i m a delas, e x e r c i d a p o r A r a ú j o L i m a ( 1 8 3 7 ) . C o n s t i t u í r a m - s e
e n t ã o os dois p a r t i d o s , C o n s e r v a d o r e L i b e r a i , q u e passaram a governar o país por
a l t e r n â n c i a . Essa a l t e r n â n c i a n o g o v e r n o teve duas e x c e ç õ e s : d u r a n t e o p e r í o d o dito de
C o n c i l i a ç ã o , e m q u e c o n s e r v a d o r e s e liberais g o v e r n a r a m j u n t o s ( 1 8 5 3 - 1 8 5 7 ) , e du-
rante a existência d a L i g a Progressista, q u e g o v e r n o u d e 1 8 6 2 a 1 8 6 6 .
O P a r t i d o C o n s e r v a d o r n a s c e u de u m a c o a l i z ã o e n t r e a n t i g o s m o d e r a d o s e anti-
gos c o n s e r v a d o r e s , e s t a b e l e c i d a p o r u m a n t i g o liberal, B e r n a r d o Pereira de Vascon-
cellos, c o m o p r o p ó s i t o de r e f o r m a r as leis, j u l g a d a s d e s c e n t r a l i z a d o r a s , impostas
pelo A t o A d i c i o n a l de 1 8 3 4 . O s d e f e n s o r e s dessas leis o r g a n i z a r a m - s e e n t ã o n o Par-
tido L i b e r a l . Essa b i p o l a r i d a d e d a v i d a p o l í t i c a brasileira teve, d o p o n t o de vista
f o r m a l , duas m o d i f i c a ç õ e s i m p o r t a n t e s , c o m a f o r m a ç ã o d o e f ê m e r o P a r t i d o Pro-
gressista, n a s c i d o da L i g a P r o g r e s s i s t a e m t o r n o de 1 8 6 4 , e d o P a r t i d o Republicano.
C o m p o s t o s de liberais e c o n s e r v a d o r e s d i s s i d e n t e s , a m b o s r e s u l t a r a m d o m o v i m e n t o
d e c o n c i l i a ç ã o realizado e m 1 8 5 3 sob a égide dos c o n s e r v a d o r e s . C o n d u z i d o por
N a b u c o de A r a ú j o e Z a c a r i a s de G ó i s e V a s c o n c e l o s (este ú l t i m o , b a i a n o ) , o Partido
Progressista ficou n o g o v e r n o de 1 8 6 2 a 1 8 6 6 , q u a n d o foi dissolvido p o r causa de
dissensões i n t e r n a s . A l g u n s d e seus m e m b r o s f o r m a r a m o n o v o P a r t i d o Liberal, ou-
tros e n t r a r a m n o P a r t i d o R e p u b l i c a n o , f u n d a d o e m 1 8 7 0 . 1 3
A t é o fim d o Império,
o sistema p e r m a n e c e u t r i p a r t i t e , c o m o P a r t i d o R e p u b l i c a n o se o p o n d o aos dois
partidos m o n a r q u i s t a s q u e se a l t e r n a v a m n o p o d e r . M a s , i n c a p a z e s de unificar suas
ações e sua d o u t r i n a , o s r e p u b l i c a n o s n u n c a e s t i v e r a m n o p o d e r , pelo m e n o s até a
queda do I m p é r i o . 1 4

Q u e d i f e r e n ç a s e x i s t i a m e n t r e o s d o i s p a r t i d o s q u e d o m i n a r a m a vida política
brasileira e n t r e 1 8 4 0 e 1 8 8 9 ? E n t r e os especialistas, três p o s i ç õ e s se destacam.
P r i m e i r a m e n t e há aqueles q u e a f i r m a m q u e a b i p o l a r i z a ç ã o conservadores-liberáis
foi u m a ficção, pois, nas questões f u n d a m e n t a i s , n a d a separava esses dois p a r t i d o s . 15

A v i n c u l a ç ã o a u m o u a o u t r o resultava mais de c o m b i n a ç õ e s q u e estabeleciam perio-


d i c a m e n t e a relação de força e n t r e p a r t i d o n o g o v e r n o e p a r t i d o na oposição, que de
c o n v i c ç õ e s ligadas a u m a teoria p o l í t i c a q u a l q u e r . C o n s e r v a d o r e s e liberais tentavam
reforçar as oligarquias políticas que governavam o país, sem apresentar projetos de
sociedade c de governo capazes de m u d a r o c u r s o dos a c o n t e c i m e n t o s . 1 6

A segunda tendência afirma q u e esses dois partidos não recrutavam seus membros
nas mesmas classes sociais. M a s os três autores dessa tese divergem entre si. Raymundo
F a o r o considera o Partido C o n s e r v a d o r c o m o o partido dos corpos burocráticos do
Império, e n q u a n t o os liberais representavam os interesses agrários, contrários ao m o -
v i m e n t o centralizador apoiado pela b u r o c r a c i a . 17
Azevedo Amaral, p o r sua vez, consi-
dera o Partido Conservador c o m o o representante dos interesses rurais e o Partido
Liberal c o m o a voz dos grupos intelectuais e de outros grupos marginais em relação ao
283

processo p r o d u t i v o . A f o n s o A n n o s considera os liberais c o m o representantes da


burguesia u r b a n a , dos c o m e r c i a n t e s , dos intelectuais e dos magistrados. Segundo ele,
0 Partido C o n s e r v a d o r a p o i a v a os interesses agrários, s o b r e t u d o d o setor cafeeiro do
R i o de J a n e i r o .

F e r n a n d o de A z e v e d o e J o ã o C a m i l o de O l i v e i r a T o r r e s - representantes da
terceira t e n d ê n c i a - e s t a b e l e c e m u m a diferença de tipo rural-urbano entre os dois
grandes partidos n o p o d e r . O s dois s u s t e n t a m a tese de que o Partido Liberal repre-
sentava g r u p o s u r b a n o s e o C o n s e r v a d o r , g r u p o s rurais. S e g u n d o F e r n a n d o de Aze-
vedo, os g r u p o s u r b a n o s s e r i a m f o r m a d o s p o r h o m e n s f o r m a d o s e m direito, intelec-
tuais, p e q u e n o - b u r g u e s e s , i n t e g r a n t e s d o c l e r o , militares e m e s t i ç o s (sicf). N ã o deixa
de ser c u r i o s a essa c a t e g o r i a , assim isolada, mas deve-se registrar q u e numerosos
d i p l o m a d o s e m d i r e i t o e o u t r o s i n t e l e c t u a i s e r a m m e s t i ç o s q u e c o m p u n h a m a pe-
q u e n a b u r g u e s i a , p e l o m e n o s n a B a h i a . N o q u e diz respeito à ideologia, esses gru-
pos u r b a n o s se c a r a c t e r i z a r i a m p o r u m p e n s a m e n t o a l i e n a d o , i m p o r t a d o do exterior
e de t i p o u t ó p i c o , a o passo q u e os g r u p o s c o n s e r v a d o r e s rurais seriam dotados de
um p e n s a m e n t o m a i s a d a p t a d o e f l e x í v e l . 2 0
A g r a n d e burguesia u r b a n a seria aliada
aos g r u p o s r u r a i s .

A s d i v e r g ê n c i a s e n t r e essas três p o s i ç õ e s n ã o são tão grandes q u a n t o a f i r m a m seus


autores. A p e s a r d e ligeiras n u a n c e s , t o d o s eles o p õ e m o m u n d o rural ao u r b a n o , c o m o
se a l i n h a d i v i s ó r i a passasse e n t r e essas duas grandes categorias q u e p e r m a n e c e m , aliás,
mal d e f i n i d a s . O p o r , p o r e x e m p l o , os p r o p r i e t á r i o s de terras escravocratas (a burguesia
reacionária, c o n s e r v a d o r a ) à b u r g u e s i a d o c o m é r c i o e d a finança, c o m o faz C a i o Prado
J ú n i o r , é o m i t i r o f a t o d e q u e as d u a s e r a m proprietárias e escravocratas, j á que a
p r o p r i e d a d e d e e s c r a v o s e x i s t i a e m t o d a s as c a m a d a s da s o c i e d a d e e n ã o caracterizava
u n i c a m e n t e o s s e n h o r e s a g r á r i o s . P o r o u t r o l a d o , a f i r m a r q u e os conservadores repre-
sentavam o c o r p o b u r o c r á t i c o , ao passo q u e o s liberais faziam o m e s m o c o m os
interesses a g r á r i o s , c o m o faz F a o r o , é n ã o levar e m c o n t a o f a t o de q u e os dois partidos
a r r e g i m e n t a v a m seus m e m b r o s n a s m e s m a s c a m a d a s sociais e até n o m e s m o grupo, o
da m a g i s t r a t u r a .
A q u e s t ã o s ó p o d e r i a ser r e s o l v i d a através de u m estudo sistemático da ideologia
dos p a r t i d o s , b a s e a d a n a a n á l i s e d o s d i s c u r s o s o u dos escritos dos h o m e n s que a eles
p e r t e n c e r a m . N ã o t e n h o este p r o p ó s i t o . P a r e c e - m e , e n t r e t a n t o , q u e os dois partidos
representavam s i m u l t a n e a m e n t e os interesses, quase s e m p r e c o m u n s , das burguesias
agrária e u r b a n a . , . „ 6

E n t r e o s 2 6 s e n a d o r e s b a i a n o s , o s n a s c i d o s e m Salvador e nos dots R e c ô n c a v o s


eram a g r a n d e m a i o r i a ( 8 0 , 8 % ) . C o m duas exceções - o V i s c o n d e de J e q u m n h o n h a
e o Barão de Uruguaiana - , t o d o s p e r t e n c i a m a famílias qual.ficadas c o m o preem.-
uentes', s o b r e t u d o pela o r i g e m ancestral e a profissão d o pat, a o n g e m
e a f o r t u n a d o s d o £ . » A o m o r r e r , t o d o s os senadores integravam o grupo das pessoas
ricas d o pais. A l g u n s levavam para a vida pol/.ica numerosos m e m b os da fiund a
c o m o í o c a s o d e F e r r e i r a F r a n ç a , C a l m o u d u P i n e A l m e . d a , Gonçalves M a r t m s e
BAHIA. SÉCULO X I X

S o u z a D a n t a s , e n t r e o u t r o s . C r i a r a m - s e , assim, verdadeiras dinastias q u e dominaram


a vida p o l í t i c a das p r o v í n c i a s . Isso d e m o n s t r a , m a i s u m a vez, o q u a n t o o recrutamento
dos h o m e n s p o l í t i c o s ficava restrito a a l g u m a s famílias. E r a m as seguintes as funções
exercidas pelos s e n a d o r e s a n t e s d e sua n o m e a ç ã o , t o m a n d o c o m o referência o grupo
profissional n o q u a l c a d a u m c o m e ç o u sua c a r r e i r a : v i n t e m a g i s t r a d o s , u m funcioná-
rio, d o i s d i p l o m a t a s , u m p r o f e s s o r , u m a d v o g a d o e u m p r o p r i e t á r i o .
P o r t a n t o , a e n o r m e m a i o r i a d o s s e n a d o r e s c o m e ç o u na vida profissional corno
m a g i s t r a d o . M u i t o s f o r a m , e m s e g u i d a , altos f u n c i o n á r i o s d o M i n i s t é r i o das Finanças,
p r e s i d e n t e s de p r o v í n c i a o u m e m b r o s d o S u p r e m o T r i b u n a l de J u s t i ç a . Zacarias Góis
e V a s c o n c e l o s , p o r e x e m p l o , foi p r e s i d e n t e d o C o n s e l h o e m 1 8 6 2 , a n t e s de entrar para
o S e n a d o e m 1 8 6 4 . A p r e s i d ê n c i a d o C o n s e l h o d e M i n i s t r o s foi c r i a d a e m 1 8 4 7 . Até
1 8 8 9 , o i t o dos 2 6 s e n a d o r e s b a i a n o s o c u p a r a m esse c a r g o , e q u i v a l e n t e ao de primeiro-
m i n i s t r o , d i r i g i n d o o n z e d o s t r i n t a m i n i s t é r i o s q u e se s u c e d e r a m . D o i s baianos presi-
d i r a m os m i n i s t é r i o s q u e d u r a r a m m a i s t e m p o : J o s é M a r i a da Silva P a r a n h o s , Vis-
c o n d e de R i o B r a n c o , e n t r e 1871 e 1 8 7 5 , e J o ã o M a u r í c i o W a n d e r l e y , Barão de
C o t e j i p e , e n t r e 1 8 8 5 e 1 8 8 8 . R i o B r a n c o , r e g i s t r e - s e , era s e n a d o r p o r M a t o Grosso, e
n ã o pela B a h i a . O i t o d o s v i n t e m a g i s t r a d o s - s e n a d o r e s e r a m filhos de proprietários
rurais, e m b o r a n e m t o d o s f o s s e m s e n h o r e s d e e n g e n h o . A l g u n s eram mais modestos,
c o m o , p o r e x e m p l o , A n g e l o M u n i z d a Silva F e r r a z , B a r ã o de U r u g u a i a n a , cujo pai,
c o m o foi d i t o , era a g r i c u l t o r d a região de V a l e n ç a , n o R e c ô n c a v o .

Q u e e t a p a s d e v i a m ser p e r c o r r i d a s e n t r e a m a g i s t r a t u r a e o acesso ao Senado?


P e r g u n t a d i f í c i l , se t o m a r m o s o g r u p o de s e n a d o r e s c o m o u m t o d o . A resposta fica
mais fácil se s e p a r a r m o s o s ' c o i m b r a n o s ' , n o m e a d o s a n t e s d e 1 8 5 6 , dos o u t r o s , nomea-
dos d e p o i s dessa d a t a . C o m o d i s s e m o s , esses h o m e n s d o A n t i g o R e g i m e começaram
sua c a r r e i r a d u r a n t e o p e r í o d o c o l o n i a l . Q u a t o r z e deles n a s c e r a m antes do último
q u a r t o do s é c u l o X V I I I e s ó dois* n o s p r i m e i r o s a n o s d o s é c u l o X I X . E n t r a r a m no
S e n a d o p o r t e r e m servido à C o r t e c o m d i s t i n ç ã o . V a m o s seguir a carreira de alguns
deles, cheias de l i ç õ e s .
T o m e m o s , p o r e x e m p l o , os d o i s i r m ã o s C a r n e i r o de C a m p o s . S e u pai era portu-
guês, o r i g i n á r i o d o M i n h o , " p r o p r i e t á r i o r u r a l " , s e g u n d o os b i ó g r a f o s . 22
José Joa-
q u i m , o filho mais v e l h o , n a s c e u e m 1 7 6 8 . D e s t i n a d o ao serviço da Igreja, recebeu o
h á b i t o da O r d e m de S ã o B e n t o — c o m o n o m e de i r m ã o J o s é de S ã o J o a q u i m — em
8 de d e z e m b r o de 1 7 8 2 , dia e m q u e os b a i a n o s f e s t e j a m c o m fausto e fervor a
Imaculada C o n c e i ç ã o de M a r i a . M a s sua v o c a ç ã o n ã o era firme, pois em 1 7 9 7 , após
ter estudado m a t e m á t i c a , t e o l o g i a e direito em C o i m b r a , se t o r n o u preceptor dos
filhos de d o m R o d r i g o d c S o u z a C o u t i n h o , h o m e m de E s t a d o português. Esse presti-
gioso p a t r o c i n a d o r abriu os c a m i n h o s para que J o s é J o a q u i m fizesse uma típica car-
reira de f u n c i o n á r i o , p r i m e i r o n o P o r t o , n o M i n i s t é r i o das Finanças, e em seguida, a
partir de 1 8 1 5 , n o Brasil, n o M i n i s t é r i o dos N e g ó c i o s Estrangeiros. D u r a n t e o reina-
do de d o m Pedro I ( 1 8 2 2 - 1 8 3 1 ) , J o s é J o a q u i m foi, sucessivamente, m e m b r o do
C o n s e l h o de E s t a d o , m i n i s t r o dos N e g ó c i o s Estrangeiros e do Império ( 1 8 2 3 ) , pr* ~ n
' * S O I V
. E X E - C C O nos PODERES 285

cipal redator da C a r t a C o n s t i t u c i o n a l de \MÁ . .

Adicionai » C a r r a C o n s t i t u c i o n a l . E m . 8 3 4 , dois anos antes de m o r r e r (com 68


anos, sem d e m t r d e s c e n d e n t e s ) , v o t o u pela d e s t i t u i ç ã o d c J o s é B o n i f á c i o de Andrada
e Silva, t u t o r d o j o v e m d o m P e d r o I I .

F r a n c i s c o , seu i r m ã o m a i s m o ç o ( 1 7 7 6 - 1 8 4 2 ) , e s t u d o u direito em Coimbra


C h e g o u ao Brasil c o m o o u v i d o r - g e r a l d a c o m a r c a de P o r t o S e g u r o , o n d e foi juiz dos
órlaos e n t r e 1 8 1 5 e 1 8 2 1 . E m seguida, foi n o m e a d o , e m Salvador, juiz d o T r i b u n a l de
Relação e i n t e n d e n t e d o o u r o . D u r a n t e a guerra de I n d e p e n d ê n c i a da Bahia ( 1 8 2 2 -
1 8 2 3 ) , foi s e c r e t á r i o d a J u n t a d o G o v e r n o P r o v i s ó r i o e, e m 1 8 2 5 , t e n d o sido n o m e a d o
juiz n o R i o , d e i x o u d e f i n i t i v a m e n t e sua p r o v í n c i a natal. A p o s i ç ã o d o i r m ã o , o i t o anos
mais v e l h o , t e v e , s e m d ú v i d a , g r a n d e i n f l u ê n c i a e m sua carreira. Aliás, Francisco foi
considerado o v e r d a d e i r o r e d a t o r d a C a r t a d e 1 8 2 4 , a t r i b u í d a o f i c i a l m e n t e a J o s é
J o a q u i m . A m b o s f o r a m n o m e a d o s s e n a d o r e s e m 1 8 2 6 . E m 1 8 3 0 , F r a n c i s c o assumiu
a chefia d o M i n i s t é r i o d o s N e g ó c i o s E s t r a n g e i r o s e, em 1 8 3 1 , tornou-se juiz d o
S u p r e m o T r i b u n a l d e J u s t i ç a . E m b o r a fosse q u a l i f i c a d o de 'conservador', t o m o u p o -
sições m u i t o p r ó x i m a s às d o ' l i b e r a l ' J o s é J o a q u i m , v o t a n d o , p o r e x e m p l o , a favor do
Senado v i t a l í c i o e d a d e s t i t u i ç ã o de J o s é B o n i f á c i o c o m o t u t o r de d o m Pedro I I . O s
dois irmãos t a m b é m f o r a m a f a v o r d a L e i I n t e r p r e t a t i v a d o A t o A d i c i o n a l de 1 8 3 4 ,
votada e m 1 8 4 0 . M a s , c o n t r a r i a m e n t e a seu i r m ã o , F r a n c i s c o quis a maioridade de
d o m P e d r o I I e m 1 8 4 0 . M o r r e u c o b e r t o de h o n r a r i a s e m 1842. 2 3

A t r a j e t ó r i a d e D o m i n g o s B o r g e s de B a r r o s foi b e m diferente da dos irmãos


C a r n e i r o de C a m p o s . N a s c i d o e m 1 7 7 ? , n a p a r ó q u i a de S ã o P e d r o d o R i o F u n d o , n o
distrito a ç u c a r e i r o de S a n t o A m a r o d o R e c ô n c a v o , filho d o c o r o n e l Francisco de
Barros, r i q u í s s i m o s e n h o r d e e n g e n h o , e de L u i z a C l a r a de S a n t a R i t a , D o m i n g o s
estudou filosofia e m C o i m b r a . O n o m e de sua m ã e m e leva a pensar que o sangue
africano t e n h a v i n d o p o r esse l a d o (os B o r g e s de B a r r o s da geração de D o m i n g o s eram
'brancos da t e r r a ' ) . B a c h a r e l , ele v o l t o u a Salvador e m 1 8 0 4 , t o r n a n d o - s e diretor do
Passeio P ú b l i c o d a c i d a d e e , d e p o i s , professor de agricultura. E m 1 8 1 4 , aos 3 5 anos,
casou-se c o m u m a r i q u í s s i m a viúva, M a r i a d o C a r m o G o u v e i a Portugal, nascida em
1 7 9 5 , filha d e P e d r o A l e x a n d r i n o de S o u z a P o r t u g a l . D e s t e casamento nasceu em
1 8 1 6 , Luiza M a r g a r i d a P o r t u g a l B o r g e s de B a r r o s , que se casou, em 1 8 3 7 , c o m J e a n
H o r a c e J o s e p h E u g è n e , C o n d e de Barral, M a r q u ê s de M o n t f e r r a t , M a r q u e s de La
Batie d'Arvillars, q u e c o n h e c e u d u r a n t e u m a longa estadia na França A Condessa de
Barral foi u m a p e r s o n a g e m m u i t o i m p o r t a n t e na C o r t e de d o m Pedro I I , à qual se
integrou e m 1 8 5 4 c o m o p r e c e p t o r a das princesas reais Isabel e ^ p o l d m a . U n i d a ao
imperador p o r u m a «amizade a m o r o s a ' , essa m u l h e r finíssima e dotada de m r e h g e n a a
notável deixou u m a c o r r e s p o n d ê n c i a fascinante.
BAHIA, SÉCULO X L X

M a s v o l t e m o s a seu pai q u e , de 1 8 1 5 a 1 8 2 1 , fora e l e i t o e reeleito vereador. Nesse


a n o , foi e n v i a d o às C o r t e s de L i s b o a , e n t r e o s r e p r e s e n t a n t e s da C a p i t a n i a da Bahia.
A o voltar ao Brasil, elegeu-se para a C o n s t i t u i n t e de 1 8 2 3 . Suas posições cheias de
p r u d ê n c i a foram r e c o m p e n s a d a s p o r d o m P e d r o I, q u e o n o m e o u e n v i a d o extraordi-
n á r i o e m i n i s t r o p l e n i p o t e n c i á r i o na F r a n ç a , o n d e p e r m a n e c e u de 1 8 2 3 a 1 8 2 8 , quan-
d o se t o r n o u s e n a d o r , já c o m o t í t u l o ( r e c e b i d o e m 1 8 2 5 ) de B a r ã o da Pedra Branca.
M o r r e u em 1 8 5 5 , d e i x a n d o , a sua filha e a um filho b a s t a r d o , vários engenhos.
C o b e r t o de títulos e de h o n r a s , D o m i n g o s era figura de d e s t a q u e n o I m p é r i o , digni-
tário da O r d e m da R o s a , G r ã - C r u z d a O r d e m d e C r i s t o e V e a d o r d a C a s a Imperial.
Ele foi u m dos raros d a velha g u a r d a ' c o i m b r a n a ' q u e e n f r e n t a r a m e m 1 8 2 6 o sufrágio
de seus c o n c i d a d ã o s , m a s n ã o e x e r c e u o m a n d a t o p o r ter s i d o e s c o l h i d o senador
(1829). 2 4
O s o u t r o s s e n a d o r e s e l e i t o s f o r a m M a n o e l dos S a n t o s , M a r t i n s Vallasques
(pelo M a r a n h ã o ) , C a s s i a n o E s p i r i d i ã o d e M e l l o M a t t o s , M a n o e l Alves B r a n c o , José
C a r l o s de A l m e i d a T o r r e s , M a n o e l A n t o n i o G a l v ã o , G ê A c a i a b a de M o n t e z u m a ,
Francisco Gonçalves M a r t i n s e M a n o e l Vieira T o s t a .

Q u a n t o aos s e n a d o r e s n o m e a d o s e n t r e 1 8 5 6 e 1 8 8 9 , t o d o s e s t u d a r a m n o Brasil e
t o d o s eram b a c h a r é i s e m d i r e i t o . C o m e x c e ç ã o de Z a c a r i a s de G ó i s e V a s c o n c e l o s ,
professor d a F a c u l d a d e de D i r e i t o de O l i n d a , e de P e d r o L e ã o , a d v o g a d o e jornalista,
os senadores c o m e ç a r a m n a m a g i s t r a t u r a e i n i c i a r a m suas carreiras políticas c o m o
d e p u t a d o s às a s s e m b l é i a s P r o v i n c i a l e G e r a l .

M a n o e l P i n t o de S o u z a D a n t a s , c h a m a d o C o n s e l h e i r o D a n t a s , n a s c e u em 1 8 3 1 ,
e m I t a p i c u r u , n o r i c o A g r e s t e b a i a n o . S e u p a i , M a u r í c i o J o s é de S o u z a , proprietário
rural a b a s t a d o , era s o b r e t u d o o m a r i d o de C a r o l i n a F r a n c i s c a de S o u z a D a n t a s , filha
de u m a p o d e r o s í s s i m a f a m í l i a d a r e g i ã o . E m 1 8 5 1 , M a n o e l se c a s o u c o m A n a Amália
J o s e f i n a B a r a t a , de R e c i f e , o n d e o j o v e m e s t u d a v a d i r e i t o . U m a vez b a c h a r e l , voltou a
Salvador o n d e foi, s u c e s s i v a m e n t e , p r o c u r a d o r de finanças, j u i z dos órfãos e p r o m o t o r
j u n t o ao p r o c u r a d o r - g e r a l . N ã o passou pela A s s e m b l é i a P r o v i n c i a l , pois, em 1 8 5 7 , foi
eleito d e p u t a d o à A s s e m b l é i a G e r a l , o n d e p e r m a n e c e u até 1 8 8 1 , a m e n o s dos anos
e n t r e 1 8 7 1 e 1 8 7 7 . Foi m i n i s t r o da A g r i c u l t u r a , d o C o m é r c i o e das O b r a s Públicas em
1 8 6 6 , m i n i s t r o da J u s t i ç a e d o I m p é r i o e m 1 8 8 0 , p r e s i d e n t e d o C o n s e l h o e chefe do
P a r t i d o Liberal c m 1 8 8 4 . F e r v o r o s o a b o l i c i o n i s t a n u m a é p o c a e m q u e o p r o b l e m a da
escravidão exacerbava as paixões p o l í t i c a s , o c o n s e l h e i r o D a n t a s esbarrou n u m a opo-
sição cada vez mais forte, sendo o b r i g a d o a c e d e r seu lugar a o u t r o b a i a n o , o Barão de
C o t c j i p e , que liderava a ala conservadora. Ele m o r r e u c i n c o anos a p ó s a Proclamação
da República, cercado pelo respeito de t o d o s , q u e o c o n s i d e r a v a m figura proemiente
dessa alta classe política baiana, tão característica da é p o c a . 2 3

O último senador b a i a n o n o m e a d o pelo i m p e r a d o r , em 1 8 8 8 , foi Luiz A n t ô n i o


Pereira F r a n c o , Barão de Pereira F r a n c o , nascido em Salvador em 1 8 2 6 , filho de um
rico c o m e r c i a n t e , cujas atividades, n o e n t a n t o , deixavam a desejar. M a s ele soube
casar-se, em 1 8 4 9 , c o m L e o n o r Felisberta Accioli de V a s c o n c e l o s , c u j o pai, também
magistrado, juiz do T r i b u n a l de Relação da B a h i a , m e m b r o de u m a excelente família
LivR0T^- 0_^ 1 E E x t R c ( c ] o p o D E R E s

baiana, c u i d o u da c a r r e r a d o g e n r o . Foi uma carreira clássica. O jovem Luiz A n t ô n i o


toi, sucessivamente, ,u.z m u n i c i p a l e m Irará ( 1 8 4 8 - 1 8 5 0 ) e em Nazaré ( 1 8 5 0 - 1 8 5 5 )
depois juiz de direito e m Feira de S a n t a n a ( 1 8 5 5 - 1 8 7 1 ) . D e 1 8 4 8 a 1 8 6 3 foi suces'
sivamente eleito s u p l e n t e de d e p u t a d o provincial e deputado provincial De 1857 a
1 8 7 7 , foi d e p u t a d o à A s s e m b l é i a G e r a l , o que não i n t e r r o m p e u sua carreira de magis-
trado; de 1 8 7 5 a 1 8 7 7 loi j u i z de d i r e i t o e m N i t e r ó i ( R J ) e de 1 8 8 7 a 1888
desembargador da R e l a ç ã o da C o r t e . F o i m i n i s t r o d a M a r i n h a duas vezes ( 1 8 7 0 - 1 8 7 1
e 1 8 7 5 - 1 8 7 8 ) , e m i n i s t r o da G u e r r a i n t e r i n o em 1 8 7 6 . O cargo senatorial, outorgado
em 1 8 8 8 , r e c o m p e n s o u suas atividades n o c a m p o j u r í d i c o e n o político, que não
foram i n t e r o m p i d a s p e l o r e g i m e r e p u b l i c a n o . A t é sua m o r t e ( 1 9 0 2 ) foi ministro do
Supremo T r i b u n a l f e d e r a l . 2 6

Para o I m p e r a d o r , as n o m e a ç õ e s r e c o m p e n s a v a m b o n s e leais serviços e conquis-


tavam a m i g o s nas a d m i n i s t r a ç õ e s . A p e q u e n a tabela q u e segue d e m o n s t r a b e m essa
estratégia.

T A B E L A 62

CARGOS O C U P A D O S PELOS SENADORES BAIANOS, 1 8 2 6 - 1 8 8 9

Cargos 1826-1840 1840-1889

Presidente do Conselho - 8

Ministro 3 15

Conselheiro de Estado 3 10

Deputado Geral 1 16

Conselheiro do Conselho Geral da Província 1 -


Deputado provincial - 11

Conselheiro municipal - 4

O p e r í o d o de 1 8 2 6 - 1 8 4 0 i n c l u i os senadores falecidos antes desse último ano. Foi


uma época difícil para a M o n a r q u i a brasileira, pois correspondeu à criação das estru-
turas do n o v o E s t a d o . O s senadores eram escolhidos entre os ministros e antigos
ministros de d o m P e d r o I, e n t r e h o m e n s q u e haviam deixado a Bahia muito tempo
antes. D e p o i s de 1 8 4 0 , f r e q ü e n t e m e n t e os senadores integravam também as assem-
bléias Provincial e G e r a l , ou e n t ã o o c u p a v a m altas funções, c o m o a de presidente da
Província. Pedro Leão V e l l o z o , por e x e m p l o , foi sucessivamente presidente das pro-
víncias do C e a r á , Espírito S a n t o , Pará, M a r a n h ã o , R i o G r a n d e do N o r t e e Alagoas; e
Manoel A n t o n i o G a l v ã o foi presidente das províncias de Alagoas, Espírito S a n t o ,

Minas Gerais e R i o G r a n d e d o S u l .
Essas n o m e a ç õ e s refle.iam o brilhantismo dos políticos baianos n o plano nacional.
A Bahia tinha e n o r m e peso nos negócios públicos, c o m o é fácil perceber quando se
analisa o papel desempenhado pelos baianos à frente dos ministérios encarregados de
conduzir o Estado brasileiro.
r* 4 BAHIA, SÉCULO X I X

MINISTROS E PRESIDENTES DO CONSELHO

N e m todos os senadores baianos, é claro, foram m i n i s t r o s o u presidentes do Conse-


lho, mas a maioria o foi: 19 (em 2 6 ) exerceram essas funções. O s sete que não
assumiram essa alta responsabilidade foram e s c o l h i d o s pelo i m p e r a d o r ou pelos
regentes d o I m p é r i o antes de 1 8 7 0 . 2 7
J á v i m o s q u e se tratava de n o m e a ç õ e s q u e

recompensavam altos magistrados, d i p l o m a t a s e presidentes de província. Nesse pe-


ríodo de fundação d o E s t a d o , a v o n t a d e de r e c o m p e n s a r era mais i m p o r t a n t e que a
n o ç ã o de 'ministeriável', n o q u e dizia respeito às escolhas d o m o n a r c a . M a s , quan-
do se agrupam as províncias d e o r i g e m dos m e m b r o s d o s gabinetes d o Segundo
Império, aparece c l a r a m e n t e a alta f r e q ü ê n c i a c o m que os p o l í t i c o s baianos ocupa-
ram os primeiros lugares. Eles d o m i n a r a m o c e n á r i o p o l í t i c o , particularmente no
período 1 8 5 7 - 1 8 7 1 , q u a n d o a B a h i a ainda d e s e m p e n h a v a u m i m p o r t a n t e papel eco-
n ô m i c o , pois a crise latente desde a década de 1 8 3 0 a i n d a n ã o se manifestara com
todas as suas c o n s e q ü ê n c i a s .

TABELA 63

PROVÍNCIAS DE O R I G E M DOS M E M B R O S DO GABINETE


DURANTE o SEGUNDO IMPÉRIO, 1 8 4 0 - 1 8 8 9 (%)

1840-1853 1857-1871 1873-1889

Norre 1,75 1>59 _


Pará 1,75 1,59
Nordeste 12,28 25,39 30,00

-
Maranhão 1,59 7,50
Piauí 6,35 5,00
Ceará — — 2,50

-
Paraíba — 2,50
Pernambuco 12,28 14,28 10,00

-
Alagoas 3,17 2,50
Leste 77,20 61,91 65,00

-
Sergipe — 2,50
Bahia 26,32 34,92 22,50
Minas Gerais 19,30 7,94 32,50
Rio de Janeiro 31,58 19,05 7,50
Sul 8,77 11,12 5.00
São Paulo 7,02 7,94 2,50
Santa Catarina 1.75 1,59

Brasil
Rio Grande do Sul
-
100,0
1,59 2.50

100.0 100,0
N ° Absoluto 57 40
63
Home: Simon Scliwamman, São Paulo t o Estado Nacional, p. 79.

O s representantes da Bahia dominaram a cena política. A Província de Pernambuco,


sua rival, nunca forneceu mais do que 1 5 % dos ministros, e a futura provincia-
locomotiva do Brasil, São Paulo, nessa época tinha u m a representação muito medio-
^ o ^ - O J s T ^ O ^ ^ E EXERCÍCIO DOS PODERES

cre: seu í n d i c e m a i s e l e v a d o foi de 7 , 9 % , o e o antes d o Pia,,,' . c •


. ... _ , * u
> qe s a o 1 U U 1 u e
sempre foi, em quase
todos os s e t o r e s , o u l t i m o v a g ã o d o t r e m brasileiro.

E n t r e 1 8 4 7 e 1 8 8 9 , o n z e dos trinta presidentes d o C o n s e l h o foram baianos, o que


representou u m r e c o r d e ; R , o d e J a n e i r o e M i n a s G e r a i s forneceram, respectivamente
quatro e c m c o p r e s i d e n t e s d o C o n s e l h o . Essa e n o r m e participação na chefia do gover-
no central p o d e r i a t e r s i d o p a r t i c u l a r m e n t e b e n é f i c a aos negócios da Bahia se os
políticos tivessem l u t a d o p e l o s interesses de sua p r o v í n c i a de o r i g e m . M a s , j á o disse
e é preciso r e p e t i - l o , p a r e c e q u e n u n c a foi o caso. N o p o d e r , os h o m e n s se'identifica-
vam r a p i d a m e n t e c o m o E s t a d o N a c i o n a l , e essa era u m a c o n d i ç ã o para sua p e r m a n ê n -
cia à frente d o s n e g ó c i o s p o l í t i c o - a d m i n i s t r a t i v o s .
N e m t o d o s os m i n i s t r o s b a i a n o s c o n s e g u i r a m se t o r n a r senadores, mas os o i t o
baianos n o m e a d o s p a r a a p r e s i d ê n c i a d o C o n s e l h o depois de 1 8 4 7 — a n o em que a
função foi c r i a d a — e r a m s e n a d o r e s m u i t o e x p e r i e n t e s , q u e faziam parte da pequena
equipe p r ó x i m a ao p o d e r , g r a ç a s à r e p r e s e n t a ç ã o p a r l a m e n t a r na Assembléia Geral.
Eles levaram p a r a a C o r t e o u t r o s p o l í t i c o s b a i a n o s c o m p o t e n c i a l para se tornar m i n i s -
tros. F o i o c a s o , p o r e x e m p l o , de C a r l o s C a r n e i r o de C a m p o s ( 1 8 0 5 - 1 8 7 8 ) , terceiro
V i s c o n d e de C a r a v e l a s , s o b r i n h o d e d o i s s e n a d o r e s , m i n i s t r o s de d o m Pedro I e da
Regência, p r o f e s s o r n a F a c u l d a d e de D i r e i t o de S ã o P a u l o , presidente da Província,
ministro dos N e g ó c i o s E s t r a n g e i r o s , d i r e t o r d o B a n c o d o Brasil, inspetor geral do
T e s o u r o e c o n s e l h e i r o de E s t a d o . 2 8
O s e x e m p l o s p o d e r i a m ser multiplicados, pois foi
grande o n ú m e r o desses b a i a n o s c h a m a d o s ao p o d e r , preparados e amparados em sua
carreira n a c i o n a l p o r estreitas solidariedades familiares. O s n ú m e r o s são eloqüentes:
entre 1 8 4 0 e 1 8 8 9 , e x a t a m e n t e 1/4 dos 2 2 8 m i n i s t r o s de E s t a d o t i n h a m origem na
Bahia, q u e só n ã o esteve r e p r e s e n t a d a e m c i n c o gabinetes ( 1 8 4 0 , 1 8 4 3 , 1 8 4 8 , 1 8 7 8 e
1 8 8 8 ) . A l é m d i s s o , m u i t o s b a i a n o s s e g u i a m carreira n a administração, c o m o presiden-
tes de p r o v í n c i a o u c o m o altos f u n c i o n á r i o s n o s ministérios e na magistratura. O peso
da Bahia na c o n s t r u ç ã o d o E s t a d o n a c i o n a l foi e n o r m e e essencial.

Antes de t e r m i n a r este c a p í t u l o , c o n s a g r a d o à elite política baiana, vou tentar


esboçar rápidos perfis t í p i c o s d o alto magistrado e do político do I m p é r i o . Entre essas
duas vocações havia f o r t e p a r a l e l i s m o , c o m o j á c o n s t a t a m o s nas biografias esboçadas
ao longo destas páginas.
Em p r i m e i r o lugar, esses h o m e n s eram recrutados n o m e s m o meio social. M a s a
origem familiar n ã o era u m critério a b s o l u t o : a M o n a r q u i a brasileira tinha orgulho de
apoiar-se em 'talentos individuais', t a n t o q u a n t o em tradições familiares. N u m a socie-
dade j o v e m , c o m o a brasileira, a 'tradição' se estabelecia c o m a notoriedade conquis-
tada, dispensando a necessidade de que se tivesse uma longa lista de ilustres antepas-
sados. O impulso seguinte para as trajetórias estava nas faculdades de direito, de onde,
aos 2 0 o u 2 2 anos, saíam os bacharéis. A nova etapa começava na magistratura, de
preferência na própria Província da Bahia: juiz municipal, juiz de direito promotor e
assim por diante. N o t e - s e que só os juízes de primeira instância faziam realmente parte
do corpo judiciário. F r e q ü e n t e m e n t e , o exercício de uma função de justiça se acom-
BAHIA, SÉCULO X I X
290

panhava de u m a f u n ç ã o p o l i c i a l , p o i s m u i t a s vezes os juízes e r a m d e l e g a d o s locais da


Polícia n o l u g a r e j o o n d e r e s i d i a m . E essa f u n ç ã o policial era da c o m p e t ê n c i a direta do
Executivo e não do Judiciário.
E n t r e 2 5 e 3 0 a n o s , se fosse e l e i t o d e p u t a d o , o j o v e m m a g i s t r a d o , q u e já represen-
tava ao m e s m o t e m p o os p o d e r e s J u d i c i á r i o e E x e c u t i v o , era i n v e s t i d o de u m poder
legislativo. F r e q ü e n t e m e n t e , o c u p a v a u m a c a d e i r a n a A s s e m b l é i a P r o v i n c i a l durante
várias legislaturas. N e s s a fase de sua c a r r e i r a , os l a ç o s c o n s t r u í d o s c o m as grandes
famílias das regiões q u e r e p r e s e n t a v a p o d i a m ter u m papel d e t e r m i n a n t e . A carreira
podia ser u n i c a m e n t e l o c a l , o u e n t ã o u l t r a p a s s a r as f r o n t e i r a s d a P r o v í n c i a , segundo o
desenrolar de u m j o g o c h e i o de n u a n c e s .
P o r e x e m p l o , u m m a g i s t r a d o q u e fosse e l e i t o d e p u t a d o a p e n a s u m a vez nunca
faria carreira n a p o l í t i c a e, p r o v a v e l m e n t e , n e m n a m a g i s t r a t u r a . O m a i s provável é
q u e estacionasse n o p o s t o de j u i z de d i r e i t o . E n t r e o s m a g i s t r a d o s e l e i t o s várias vezes
para a A s s e m b l é i a P r o v i n c i a l , três t i p o s d e c a r r e i r a se a p r e s e n t a v a m :
- A carreira a p e n a s p r o v i n c i a l , c o m g r a n d e i n f l u ê n c i a n a s o c i e d a d e l o c a l . Integra-
v a m f r e q ü e n t e m e n t e a m e s a d a A s s e m b l é i a ( c o m o s e c r e t á r i o , v i c e - p r e s i d e n t e o u pre-
s i d e n t e ) , i r m a n d a d e s r e l i g i o s a s , a s s o c i a ç õ e s literárias e b e n e f i c e n t e s . P r e s e n t e s n a capi-
tal, e m S a l v a d o r , d u r a n t e as sessões p a r l a m e n t a r e s , eles p o d i a m p r o s s e g u i r na carreira
de m a g i s t r a d o : os q u e a t i n g i a m as m e l h o r e s p o s i ç õ e s t e r m i n a v a m suas carreiras c o m o
desembargadores d o T r i b u n a l d a R e l a ç ã o , e sua n u m e r o s a c l i e n t e l a p o l í t i c a incrementava
as fileiras d o p a r t i d o ao q u a l p e r t e n c i a m .
- A c a r r e i r a q u e ultrapassava os l i m i t e s d a P r o v í n c i a , c o m a e l e i ç ã o p a r a a Assem-
bléia G e r a l , c u j a sede era n o R i o de J a n e i r o . F r e q ü e n t e m e n t e , esses m a g i s t r a d o s torna-
vam-se chefes de P o l í c i a d e o u t r a p r o v í n c i a , i n g r e s s a v a m e m várias a s s o c i a ç õ e s religio-
sas e b e n e f i c e n t e s , e r a m n o m e a d o s v i c e - p r e s i d e n t e s de suas p r o v í n c i a s de origem e,
depois, presidentes de o u t r a p r o v í n c i a . L á p e l o s q u a r e n t a a n o s , t o r n a v a m - s e juízes do
T r i b u n a l d a R e l a ç ã o . A o s 5 5 o u 6 0 a n o s , sua c a r r e i r a n a m a g i s t r a t u r a era então
c o r o a d a c o m u m a n o m e a ç ã o a o S u p r e m o T r i b u n a l , n o R i o , o n d e r e c e b i a m títulos de
n o b r e z a , c o n d e c o r a ç õ e s e outras h o n r a r i a s .

- A carreira q u e usava a m a g i s t r a t u r a c o m o t r a m p o l i m para a p o l í t i c a . Juízes


m u n i c i p a i s o u de direito c o m m a i s o u m e n o s 2 3 a n o s , e n t r e 2 5 e 3 0 a n o s se tornavam
d e p u t a d o s provinciais e e n t r e 3 0 e 3 5 a n o s e r a m e l e i t o s para a A s s e m b l é i a Geral.
F r e q ü e n t e m e n t e reeleitos, t o r n a v a m - s e c o n h e c i d o s . P o d i a m e n t ã o a c e d e r à presidên-
cia de u m a l o n g í n q u a p r o v í n c i a a o s 3 5 o u 4 0 a n o s , a n t e s d e c o n q u i s t a r a chefia de um
ministério o u u m posto n o C o n s e l h o de E s t a d o o u n o S e n a d o . M u i t a s vezes a carreira
politica i n t e r r o m p i a neste p o n t o a carreira j u r í d i c a : dos treze b a i a n o s q u e foram
ministros e magistrados, dez sc a p o s e n t a r a m c o m o d e s e m b a r g a d o r e s d o T r i b u n a l da
Relação e três c o m o m i n i s t r o s d o S u p r e m o T r i b u n a l . A f u n ç ã o m i n i s t e r i a l n ã o podia
ser acumulada c o m u m alto p o s t o na m a g i s t r a t u r a , ao passo q u e n ã o existia n e n h u m a
incompatibilidade e n t r e as f u n ç õ e s d e j u i z de d i r e i t o , de delegado de P o l í c i a e de
deputado.
LIVRO I V - O ESTADO: ORGANIZAÇÃO E EXERCÍCIO DOS PODERES

Desse ponto de vista, o caso de João Maurício Wanderley, futuro Barão de Cotejipe,
foi exemplar: juiz de direito da cidade de Santo Amaro, no Recôncavo, e, logo depois,
chefe da Polícia de Salvador, entre 1848 e 1852. Desse ano ate 1855, acumulou os
cargos de juiz do Tribunal da Relação da Bahia c presidente da mesma Província.
É óbvio que não exerceu magistratura nessa época, mas continuou a receber os respec-
tivos vencimentos, detendo influência junto a seus colegas do Tribunal de Instância.
Como se vê, as mesmas pessoas concentravam em torno de si esses três poderes
que Montesquieu queria ver separados. Essa situação pouco se modificou, mesmo
depois da queda da Monarquia. Alguns historiadores brasileiros se equivocam ao
apontar nisso uma mudança de estrutura, uma burocratização do Estado brasileiro.
A realidade foi bem diferente: sob as aparências de uma modernização do aparato de
Estado, continuaram tenazes as tradições do Antigo Regime. Há uma explicação muito
simples para esse fenômeno: a falta de pessoal instruído. Onde recrutar os funcioná-
rios, os deputados, os magistrados, quando só os descendentes de certas categorias
sociais bem definidas e pouco numerosas podiam obter o mínimo de educação neces-
sária? Apesar disso, as estruturas do Estado brasileiro eram suficientemente flexíveis
para permitir que alguns — poucos — 'homens de talento' fizessem carreiras decentes,
apesar de origens familiares medíocres. Na medida em que o século XIX avançava,
novas instituições estabeleciam, cada vez mais, regras estritas, capazes de esclerosar a
sociedade brasileira, tornando-a ainda mais corporativa do que era antes.
Que aconteceu? Diante da eventualidade de sangue novo, o medo se apoderou dos
homens que estavam acostumados a ter nas mãos as alavancas de comando?
L I V R O V

A IGREJA
C A P Í T U L O 18

INTRODUÇÃO

A prodigiosa transformação que ocorreu na vida política, econômica e social do


Ocidente no século X I X forçou a Igreja Católica a modificar-se, tendo em vista
reforçar a autoridade do papa. O desmoronamento do Antigo Regime acarretara o
enfraquecimento geral das regalias de tipo galicano ou josefista. A Igreja se liber-
tava de seus antigos entraves, afirmando a profundidade da fé católica e a neces-
sidade de os poderes leigos, defensores da ordem social, se curvarem ante as forças
espirituais.
O reforço da autoridade do papa implicava um enfraquecimento do poder políti-
co temporal. Mas, durante o pontificado de Pio I X ( 1 8 4 6 - 1 8 7 8 ) , a Igreja se viu
investida de poderes ilimitados no plano da doutrina. Inquieta com as possíveis con-
seqüências da filosofia do século XVIII e do liberalismo do século X I X , ela decidiu
fixar os princípios de que não podia abrir mão: o resultado foi a encíclica Quanta Cura
(1864), seguida da Syllabus, "catálogo dos erros principais do nosso tempo". Nesta
última — que os adversários transformaram no compêndio de obscurantismo do
Vaticano — nem todos os erros foram condenados pela mesma razão: alguns eram
heresias (como o panteísmo, o naturalismo e o racionalismo absoluto), outros diziam
respeito a questões de disciplina, às relações entre Igreja e Estado, ao casamento dos
padres etc. Pio XI visava essencialmente o socialismo, a franco-maçonaria e o libera-
lismo moderno, sob todas as suas formas, até mesmo as religiosas. Essa renovação da
doutrina foi completada com a proclamação de dois dogmas: o da Imaculada Concei-
ção (1854) c, sobretudo, o da infalibilidade do pontífice, decidido no Concílio do
Vaticano (Pastor aeternusy 1870). No mesmo momento, a perda de seus estados obri-
gou o papado a abondonar suas preocupações políticas.
Essas novas orientações criaram um clima de intransigência, que se traduziu
no triunfo cada vez mais nítido, sobretudo entre os bispos, de um ultramonta-
nismo que suscitou em alguns países, como o Brasil, muitas dificuldades. A Igreja
entrou em choque com a Suíça quando da guerra de Sonderbund (1846), com a

295
BAHIA, SÉCULO X I X
296

Bélgica por causa do p r o b l e m a escolar, c o m a Áustria ( q u e , em 1 8 7 3 , denunciou


a C o n c o r d a t a ) c , s o b r e t u d o c o m a A l e m a n h a de B i s m a r c k e sua p o l í t i c a de
Kulturkampf.
A justificativa desses atos era a determinação de manter e reforçar a fé dos fiéis e de
propagar essa fé entre aqueles que a ignoravam. A Igreja m u l t i p l i c o u então as manifes-
tações exteriores e sensíveis, c o m o as devoções à V i r g e m M a r i a n o â m b i t o de um ciclo
ampliado (La Salette, 1 8 4 6 ; Lourdes, 1 8 5 6 ; p r o c l a m a ç ã o do d o g m a da Imaculada
Conceição) e o fortalecimento dos cultos do S a n t í s s i m o S a c r a m e n t o , do Sagrado
Coração e dos Santos. Multiplicaram-se as peregrinações. A partir d o pontificado de
Gregório X V I ( 1 8 3 1 - 1 8 4 6 ) , as missões em terras estrangeiras foram estimuladas,
levando, com notável sucesso, aos c a m i n h o s da África, do M é d i o e E x t r e m o Orientes e
da América Latina.
Terra de missões e de evangelização desde o século X V I , o Brasil foi colonizado
pela dupla ação do Estado e da Igreja, estreitamente associados. O P a d r o a d o fez do rei
de Portugal, desde o século X V I , o protetor da Igreja C a t ó l i c a n o país, inclusive nas
colônias. O catolicismo se t o r n o u religião oficial do E s t a d o . E m 1 5 2 2 , o papa Adriano
ortorgou a dom J o ã o III o título de grão-mestre da O r d e m de C r i s t o , transmitido
depois a todos os reis de Portugal. E m 1 5 5 0 , as ordens de S a n t i a g o e de São Bento
foram reunidas à O r d e m de C r i s t o , fundada em 1 3 1 9 , em S a n t a r é m , por d o m Diniz
( 1 2 7 9 - 1 3 2 3 ) . Grãos-mestres de três ordens militares, os reis portugueses estavam
habilitados a receber e administrar os dízimos eclesiáticos, mas eram obrigados a zelar
pelo bem-estar espiritual de seus súditos.
Eram os reis que nomeavam os dirigentes de u m a diocese ou de uma paróquia e
preenchiam as demais funções eclesiásticas. E m contrapartida, arcavam c o m uma série
de obrigações, c o m o construir e manter os edifícios do c u l t o , remunerar o clero e
promover, por todos os meios, a expansão da fé católica. Exerciam poderes religiosos
em todas as terras conquistadas e nas colônias. Assim, os privilégios seculares e espi-
rituais do Padroado foram naturalmente introduzidos na A m é r i c a Latina com o pri-
meiro bispado, o da Bahia, criado em 1 5 1 5 . 1

Na bula Super specula militantes ecclesiae, o papa J ú l i o I I I ( 1 5 5 0 - 1 5 5 5 ) instituiu


e dotou o bispado de Salvador, colocando-o sob a proteção do soberano português pro
tempons existentis. N ã o se devem c o m p r e e n d e r esses p r o c e d i m e n t o s c o m o uma
usurpação, por parte dos monarcas, de atribuições da Igreja, mas sim c o m o a expressão
de um entendimento entre R o m a — interessada na cristianização dos pagãos — e
Lisboa, no apogeu da expansão portuguesa n o além-mar. Graças ao Padroado, a Santa
Sé se desvencilhava de qualquer ação direta nas novas terras conquistadas e fazia do rei
de Portugal uma espécie de delegado do pontífice. Na realidade, dotado de múltiplos
direitos, o monarca português se tornava o chefe efetivo de uma Igreja em formação,
pois era impossível controlar as obrigações previstas c o m o contrapartida. Nomeado,
mantido e dirigido pelo rei, o clero brasileiro permaneceu isolado de qualquer contato
com Roma até a década de 1 8 2 0 .
LIVRO V - A IGREJA 297

A Igreja brasileira foi criada e m c o m p l e t a s u b o r d i n a ç ã o ao E s t a d o , n u m regime


em q u e a p r o t e ç ã o p r o m e t i d a às estruturas eclesiásticas e à vida religiosa era mal
equilibrada, c o m u m a i n g e r ê n c i a opressiva d o secular n o sagrado. S e g u n d o C a i o P r a d o
J ú n i o r , " p o r e f e i t o d o P a d r o a d o , a Igreja n ã o g o z o u n u n c a n o Brasil de i n d e p e n d ê n c i a
e a u t o n o m i a . O s n e g ó c i o s e c l e s i á s t i c o s da C o l ô n i a s e m p r e estiveram nas m ã o s do rei,
que deles se o c u p a v a através d o D e p a r t a m e n t o de sua a d m i n i s t r a ç ã o j á c i t a d o a c i m a ,
a M e s a da C o n s c i ê n c i a e O r d e n s " . 2

I n t e g r a d a p o r seis t e ó l o g o s e j u r i s t a s , essa M e s a foi criada pelo g o v e r n o português


em 1 5 3 2 para a d m i n i s t r a r a v i d a religiosa d a C o l ô n i a , p a s s a n d o a f u n c i o n a r c o m o u m a
espécie de d e p a r t a m e n t o r e l i g i o s o da a d m i n i s t r a ç ã o geral, o u u m m i n i s t é r i o do c u l t o .
Suas relações c o m o rei g i r a v a m e m t o r n o d a g e r ê n c i a dos e s t a b e l e c i m e n t o s de carida-
de, da i n s t i t u i ç ã o de capelas e h o s p i t a i s , d a f u n d a ç ã o de o r d e n s religiosas o u de
universidades, d o resgate d e c a t i v o s , d a c r i a ç ã o d e n o v a s p a r ó q u i a s , das n o m e a ç õ e s de
todos os titulares d e c a r g o s e c l e s i á s t i c o s e d o t r a t a m e n t o dc q u a l q u e r c o n t e n c i o s o
jurídico r e l a c i o n a d o c o m a s s u n t o s r e l i g i o s o s . E r a m , p o r t a n t o , a t r i b u i ç õ e s m u i t o vas-
3

tas, q u e c o n f e r i a m i m p o r t â n c i a c o n s i d e r á v e l a essa alta c â m a r a religiosa. A m a i o r parte


das suas decisões foi t o m a d a n a M e t r ó p o l e , p o r h o m e n s q u e , m u i t o f r e q ü e n t e m e n t e ,
n u n c a e s t i v e r a m e m c o n t a t o c o m a r e a l i d a d e e a v i v ê n c i a da C o l ô n i a .

A p ó s a I n d e p e n d ê n c i a e o e s t a b e l e c i m e n t o de u m g o v e r n o n a c i o n a l que instaurou
o regime m o n á r q u i c o e m 1 8 2 2 , a I g r e j a teve q u e e n f r e n t a r i n ú m e r o s p r o b l e m a s , t a n t o
nas relações c o m o E s t a d o e o s fiéis c o m o nas relações i n t e r n a s à p r ó p r i a i n s t i t u i ç ã o , ou
seja, e n t r e a h i e r a r q u i a e c l e s i á s t i c a e seu c l e r o . O n o v o I m p é r i o brasileiro r e a f i r m o u o
Padroado real, c o n f i r m o u o c a t o l i c i s m o c o m o religião d o E s t a d o e m a n t e v e a p a r ó q u i a
(circunscrição eclesiástica) c o m o u n i d a d e a d m i n i s t r a t i v a básica. M a s exigiu que a
Igreja fosse t o t a l m e n t e s u b m i s s a a o E s t a d o . A s e p a r a ç ã o definitiva e n t r e as duas insti-
tuições viria, m a i s t a r d e , n o â m b i t o de u m v i o l e n t o c o n f l i t o , c h e i o de c o n s e q ü ê n c i a s
para os fiéis. C o n s e q ü ê n c i a s d i f e r e n t e s , aliás, s e g u n d o o m e i o social a q u e p e r t e n c i a m .

A Igreja t a m b é m teve q u e resolver i n ú m e r a s q u e s t õ e s referentes a o c l e r o , para que


este pudesse e x e r c e r suas missões espirituais e sociais c o m d i g n i d a d e . A tarefa foi dura,
sobretudo p o r q u e o c l e r o estava h a b i t u a d o a u m a disciplina frouxa, a d o t a n d o atitudes
f r e q ü e n t e m e n t e c o n t r á r i a s às d a h i e r a r q u i a . O r a , nesse m o m e n t o a Igreja precisava
arregimentar todas as suas forças para lutar c o n t r a a ascensão do ateísmo e das doutri-
nas heterodoxas.
Essas c o n d i ç õ e s particulares q u e c e r c a r a m o e s t a b e l e c i m e n t o c a propagação da fé
católica n o Brasil fazem c o m q u e as o b r a s consagradas à Igreja apresentem a imagem
de uma instituição passiva, submissa ao poder t e m p o r a l , c ú m p l i c e das oligarquias
e c o n ô m i c a s e sociais, responsável por tensões e conflitos que perduram ainda h o j e na
sociedade brasileira, incapaz dc sc libertar da autoridade do Estado e i m p o r sua própria
trajetória. T r a t a - s e de j u l g a m e n t o s severos, q u e acentuam os aspectos negativos da
4

ação da Igreja n o Brasil. M a s são a n a c r ô n i c o s , pois julgam séculos passados partindo


dc premissas e de critérios próprios às realidades c o n t e m p o r â n e a s .
BAHIA, SÉCULO X I X
298

Pode-se conseguir alívio de c o n s c i ê n c i a e dirigir a a ç ã o atual n u m s e n t i d o preten-


samente expiatório através da catarse dos erros de u m passado d e l i b e r a d a m e n t e esva-
ziado de qualquer especificidade. M a s , s e g u i n d o essa trajetória, a I g r e j a c o r r e o risco
de deixar c o m p l e t a m e n t e de lado g r a n d e parte de sua h i s t ó r i a , e s t a b e l e c e n d o uma
ruptura que desvaloriza a i n s t i t u i ç ã o divina q u e ela p r o c l a m a ser, assim c o m o t o d o um
c o n j u n t o de p r i n c í p i o s d o g m á t i c o s , m o r a i s e é t i c o s q u e t e m o dever de sustentar.
C o m o crer n u m a Igreja q u e , através de seu mea culpa, s e m e i a a d ú v i d a e n t r e os menos
preparados e mais fracos e renega u m a ação m u l t i s s e c u l a r ?
C o m o c r e r na p e r e n i d a d e , n a universalidade dessa I g r e j a , q u e s e m p r e enquadrou
estreitamente a família brasileira, sua e d u c a ç ã o , sua s a ú d e m o r a l e física, suas manifes-
tações coletivas? C r i t i c a r s e m n u a n c e s t o d o esse passado é o b s c u r e c e r u m a trajetória
histórica, negar as sucessivas a d a p t a ç õ e s a u m a realidade s e m p r e d i f e r e n t e e, sobretu-
d o , reduzir a i m a g e m da Igreja a seus traços de passividade, s u b m i s s ã o e inércia — ou
seja, de c u m p l i c i d a d e c o m u m p o d e r q u e s e m p r e esteve ao lado dos opressores.

Parece ser p e r f e i t a m e n t e possível d a r , à a ç ã o espiritual e t e m p o r a l d a Igreja C a t ó -


lica, u m a interpretação mais positiva e m e n o s c u l p a d a . A s o b r a s r e c e n t e s , c o m efeito,
deixam de inserir a e v o l u ç ã o d a i n s t i t u i ç ã o e m u m a tripla perspectiva:
- Primeira, a de seu c o n t e x t o h i s t ó r i c o . T r a t a v a - s e de u m a I g r e j a oficial, e o
Estado lhe i m p u n h a algumas c o a ç õ e s , q u e evoluíram c o m o t e m p o , através de anuências
e recusas. As revoltas das autoridades eclesiásticas d e s e m b o c a r a m , n o fim do século
X I X , na separação entre Igreja e E s t a d o . M a s , nas i n t e r p r e t a ç õ e s da ação da Igreja no
Brasil, impressiona o caráter a t e m p o r a l . M e s m o o n d e c e r t o s c o r t e s c r o n o l ó g i c o s são
respeitados, o discurso p e r m a n e c e i n t e i r a m e n t e fora d o t e m p o .
- S e g u n d a , a da posição da Igreja (e daqueles q u e a serviam) n o d e b a t e f u n d a m e n -
tal que o p u n h a , n o Brasil, opressores e o p r i m i d o s , livres e escravos, b r a n c o s , negros e
mestiços.
- T e r c e i r a , a da atitude da I g r e j a oficial d i a n t e das religiões minoritárias — o
animismo, o islamismo, o p r o t e s t a n t i s m o — e das novas filosofias que se desenvolve-
ram no século X I X .
Para estudar a ação e o d e s t i n o da Igreja C a t ó l i c a n o Brasil, os historiadores
propõem dois modelos c r o n o l ó g i c o s . N o p r i m e i r o , t a m b é m adotado por T r i s t ã o de
Athayde, o sociólogo b a i a n o T h a l e s de Azevedo distingue três períodos, definidos
pelo papel que a religião e a Igreja d e s e m p e n h a r a m na ordem civil e política do
Brasil. Para esses autores, o primeiro período ( 1 5 0 0 - 1 7 5 9 ) foi o da catequese, da
conversão dos pagãos ao cristianismo, essencialmente obra dos jesuítas. O segundo,
marcado pelo regalismo (doutrina que defende a ingerência do chefe de Estado nas
questões religiosas), c o m e ç o u c o m a expulsão dos jesuítas ( 1 7 5 9 ) e terminou com a
chamada Questão Religiosa, matriz do conflito entre Igreja e Estado ( 1 8 7 2 ) . Final-
mente, no terceiro período ( 1 8 7 3 - 1 8 9 1 ) c o m e ç o u a firmar-se a independência da
Igreja em relação ao Estado, com a revolta dos bispos, que levou à separação definiti-
va das duas instituições. 5
LIVRO V - A IGREJA 299

E m b o r a i n t e r e s s a n t e , essa c r o n o l o g i a t e m aspectos q u e n ã o c o n c o r d s
Iam c o m os
fatos: e m p r i m e i r o lugar, n ã o é aceitável' a a f i r m a ç ã o de q u e a expulsão dos jesuítas
i n t e r r o m p e u a c o n v e r s ã o dos p a g ã o s . N ã o há d ú v i d a de q u e os m e m b r o s da C o m p a -
n h i a de J e s u s d e s e m p e n h a r a m u m papel p r i m o r d i a l na catequese das populações
a m e r í n d i a s e a f r i c a n a s , m a s , d e c e r t o m o d o , o t r a b a l h o c o n t i n u o u , c o m outras ordens
religiosas e até c o m o c l e r o s e c u l a r . C o m e f e i t o , f o r a m e n v i a d o s padres seculares para
a m a i o r p a r t e das aldeias q u e t i n h a m s i d o o u t r o r a c o n f i a d a s à a d m i n i s t r a ç ã o dos
j e s u í t a s , e nelas f u n d a r a m - s e p a r ó q u i a s . P a d r e s seculares e regulares c o n t i n u a r a m a
evangelizar os n u m e r o s o s a f r i c a n o s q u e c h e g a v a m ao país ( n o século X V I I , 1,7 m i l h ã o
deles v i e r a m de A n g o l a e d a C o s t a d a M i n a ) . P o r o u t r o l a d o , o regalismo c o m e ç o u a
6

ser c o n t e s t a d o l o g o n o i n í c i o d a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o X I X p o r u m liberalismo
religioso q u e p e d i a , i n c a n s a v e l m e n t e , a l a i c i z a ç ã o d o E s t a d o . F i n a l m e n t e , essa c r o n o -
7

logia, p o r sua g e n e r a l i d a d e , n ã o leva e m c o n t a as diversas r e f o r m a s feitas na instituição


eclesiástica, q u e l e v a r a m à r o m a n i z a ç ã o d a I g r e j a brasileira e a o a u m e n t o d o n ú m e r o
de padres s e c u l a r e s e r e g u l a r e s d e o r i g e m e s t r a n g e i r a .

O s e g u n d o m o d e l o a p r e s e n t a d o na História da Igreja no Brasil p r o p õ e t a m b é m


três c o r t e s c r o n o l ó g i c o s , m a s u n i c a m e n t e n o q u e se refere ao século X I X . D e m o d o
geral, eles c o r r e s p o n d e m aos q u e f o r a m utilizados pelos h i s t o r i a d o r e s d a é p o c a . N o
p r i m e i r o desses p e r í o d o s ( 1 8 0 8 — 1 8 4 0 ) , d e s t a c a - s e o papel d a Igreja n o processo de
e m a n c i p a ç ã o n a c i o n a l ; n o s e g u n d o ( 1 8 4 0 - 1 8 7 5 ) , e s t u d a - s e a p o s i ç ã o d a I g r e j a diante
da f o r m a ç ã o d o E s t a d o l i b e r a l ; n o t e r c e i r o ( 1 8 7 5 - 1 8 8 8 ) , t e n t a - s e d e f i n i r a ação da
Igreja d u r a n t e a crise final d o I m p é r i o . A p e s a r de a l g u m a s v a n t a g e n s , essa c r o n o l o g i a
8

t e m u m g r a n d e i n c o n v e n i e n t e : ela e s m i u ç a o p r o c e s s o h i s t ó r i c o e m fases demasiada-


m e n t e c u r t a s , i n c a p a z e s de ressaltar m u t a ç õ e s i m p o r t a n t e s , q u e se processam n u m
t e m p o m a i s l o n g o , m o v i d a s pelas n o v a s forças i d e o l ó g i c a s q u e o r i e n t a r a m a ação do
E s t a d o , pelos p r o b l e m a s e x t e r n o s e i n t e r n o s d a p r ó p r i a I g r e j a e pelo p o v o , c o m sua
vinculação e submissão aos poderes d o Estado e da Igreja.

A c h e i útil p r o p o r u m a n o v a c r o n o l o g i a , r e d u z i n d o esse s e g u n d o m o d e l o a dois


períodos: 1 8 2 2 - 1 8 4 0 e 1 8 4 0 - 1 8 8 8 . O p r i m e i r o c o r r e s p o n d e , ao m e s m o t e m p o , à
organização das n o v a s estruturas d o E s t a d o brasileiro e à reorganização da Igreja
C a t ó l i c a , o c o r r i d a q u a n d o se fez s e n t i r a necessidade de ^reformas, expressas na busca
de novas atitudes c m relação ao E s t a d o , a seu clero e aos fiéis. D u r a n t e esse primeiro
período, a h i e r a r q u i a da I g r e j a se a p r o x i m o u de R o m a para t e n t a r liberta-se da presen-
ça de u m E s t a d o d e m a s i a d a m e n t e opressor, c o m e ç o u a preparar m e l h o r o clero para
sua missão, r e f o r m o u seus c o s t u m e s e, e n f i m , p r o c u r o u assegurar para si a direção das
numerosas f u n ç õ e s q u e cia havia a b a n d o n a d o aos leigos. E n t r e 1 8 2 2 e 1 8 4 0 a Igreja
l a n ç o u os f u n d a m e n t o s de sua ação f u t u r a , c o n s c i e n t i z o u - s e de sua própria existência
e quis afirmar-se c o m o poder i n d e p e n d e n t e .
N o s e g u n d o p e r í o d o ( 1 8 4 0 - 1 8 8 8 ) , aparecerem correntes favoráveis às idéias libe-
rais e positivistas. Elas engendraram tendências políticas e ideológicas que c o n t r i b u í -
ram para a preservação d o regime imperial, mas t a m b é m prepararam sua queda. Nesse
BAHIA, SÉCULO X I X

novo c l i m a , a Igreja a c a b o u de se r o m a n i z a r , a p r o x i m a n d o - s e ainda mais d a S a n t a S é ,


e c o m p l e t o u suas r e f o r m a s i n t e r i o r e s , q u e o b j e t i v a r a m a f o r m a ç ã o i n t e l e c t u a l e moral
d o c l e r o . E n t r e t a n t o , ao se o p o r v i g o r o s a m e n t e à i n g e r ê n c i a d o poder civil n o c a m p o
espiritual, ela m o s t r o u u m a face até e n t ã o d e s c o n h e c i d a , q u e n e m s e m p r e produziu,
j u n t o ao p o v o , os efeitos d e s e j a d o s .
A o a f i r m a r o d e s e j o de se t o r n a r i n d e p e n t e n t e d o E s t a d o , a I g r e j a n ã o conseguiu
garantir sua i n f l u ê n c i a s o b r e a p o p u l a ç ã o , c o n t r a r i a d a c o m a perda de algumas prer-
rogativas o r i u n d a s da é p o c a c o l o n i a l e, s o b r e t u d o , c o m a d e s c o n f i a n ç a d e m o n s t r a d a
em relação à sua religiosidade e suas d e v o ç õ e s . Estas e n c o n t r a r a m possibilidades de
expressão j u n t o a o p r o t e s t a n t i s m o e aos c u l t o s a n i m i s t a s . C o m b a t i d o a r d o r o s a m e n t e
pela I g r e j a m a s a p o i a d o f o r t e m e n t e pela c o r r e n t e u l t r a l i b e r a l , o p l u r a l i s m o religioso
a c a b o u p o r se i m p o r e m d e t r i m e n t o d o c a t o l i c i s m o , o u t r o r a t o d o - p o d e r o s o .

T e n d o c o m o p a n o de f u n d o a divisão c r o n o l ó g i c a q u e p r o p o n h o , m a s c o n t i n u a n -
d o a seguir o c u r s o d a n a r r a t i v a , os c a p í t u l o s s e g u i n t e s t r a t a r ã o d a e v o l u ç ã o da Igreja
C a t ó l i c a brasileira n o século X I X . S e m p r e q u e possível, m i n h a s análises t o m a r ã o c o m o
e x e m p l o a P r o v í n c i a da B a h i a . O t e m a d o p r i m e i r o c a p í t u l o d e s t a p a r t e será as relações
e n t r e I g r e j a e E s t a d o , q u e c o l o c a r a m f r e n t e a f r e n t e a a l t a h i e r a r q u i a c a t ó l i c a e as elites
dirigentes d o país e g i r a r a m e m t o r n o d o c o m p o r t a m e n t o da Igreja, e m todos os
c a m p o s de sua atividade. T e n t a r e i m o s t r a r c o m o , através de u m a e v o l u ç ã o relativa-
m e n t e rápida, a h i e r a r q u i a eclesiástica t o m o u c o n s c i ê n c i a de si p r ó p r i a e f o r j o u u m a
n o v a identidade para a I g r e j a . V e r e m o s , e m seguida, c o m o essa n o v a i d e n t i d a d e foi
c a p t a d a pelas elites d i r i g e n t e s , t o r n a n d o - s e f o n t e de v i o l e n t a s o p o s i ç õ e s , q u e acarreta-
r a m ' a ruptura e n t r e as duas i n s t i t u i ç õ e s . E x p o r e i , finalmente, a p o s i ç ã o dos bispos
brasileiros e m relação à escravidão e à A b o l i ç ã o .

O s e g u n d o c a p í t u l o será e x c l u s i v a m e n t e c o n s a g r a d o a o clero secular. A b o r d a r e i os


temas referentes à estrutura da Igreja, a o r e c r u t a m e n t o d o c l e r o , à sua f o r m a ç ã o , às
suas rendas e às suas atitudes d i a n t e d a h i e r a r q u i a eclesiástica e d o p o d e r temporal.
Darei a t e n ç ã o especial à c o n s c i ê n c i a d o c l e r o s o b r e sua m i s s ã o sacerdotal e à maneira
c o m o a exercia.
A renovação da vida m o n á s t i c a é o o b j e t o d o t e r c e i r o c a p í t u l o . T e n d o entrado
em crise na segunda m e t a d e d o s é c u l o X V I I I , as o r d e n s religiosas atravessaram
longo período de d e c a d ê n c i a . M a i s do q u e a falta de v o c a ç õ e s , o poder temporal foi
responsável pela persistência dessa situação, a o t o m a r u m a série de medidas que vi-
saram a apropriação, pelo E s t a d o , dos bens do clero regular, julgados consideráveis.
Q u a l q u e r doação esbarrava em interdições, e a admissão de noviços foi proibida.
Por isso a renovação monástica tardou t a n t o . D e p e n d e u da chegada de religiosos
estrangeiros, que, numerosos após 1 8 7 0 , revitalizaram as ordens tradicionais d e c a :

dentes e criaram novas ordens, inexistentes na c e n a brasileira durante o período


colonial.
O quarto capítulo trata das manifestações de fé do povo de D e u s . V e r e m o s então
c o m o o clero católico transmitia sua mensagem a pessoas que viviam realidades dife-
LrvRO V - A IGREJA 301

rentes, separadas por estatutos legais, cores de pele, tradições culturais, tipos de vida
material e graus de instrução.
No quinto capítulo, estudaremos a concorrência feita à Igreja Católica pelas ou-
tras doutrinas cristãs e cultos religiosos. N u m a primeira etapa, tentarei explicar por
que o clima foi favorável à eclosão de novas expressões religiosas. Em seguida, mostra-
rei como outras doutrinas cristãs, assimo c o m o o Islã, tentaram ocupar um espaço
religioso outrora exclusivo da Igreja Católica. Tentarei, finalmente, demonstrar como
e por que emergiram os cultos ditos afro-brasileiros, tão antigos quanto a escravidão,
e como conseguiram tornar-se vitoriosos na concorrência com o catolicismo a partir
do século X I X .
CAPÍTULO 19

HIERARQUIA ECLESIÁSTICA E P O D E R
POLÍTICO NO SÉCULO X I X
(1822-1890)

Às vésperas da I n d e p e n d ê n c i a , a I g r e j a t r a n s m i t i a a i m a g e m d e u m a c o r p o r a ç ã o servil
ao p o d e r t e m p o r a l . 1
O c a t o l i c i s m o era r e l i g i ã o ú n i c a e o f i c i a l , as a u t o r i d a d e s eclesiás-
ticas c u i d a v a m d a e d u c a ç ã o , s a ú d e e a s s i s t ê n c i a p ú b l i c a e, a t é m e a d o s d o s é c u l o X I X ,
os padres e x e r c i a m , e m n o m e d o E s t a d o , n u m e r o s a s f u n ç õ e s civis. A l é m de responsa-
bilizar-se pelos registros p a r o q u i a i s — t a r e f a q u e l h e era c o n f i a d a d e s d e a é p o c a c o l o -
nial — , o p a d r e - f u n c i o n á r i o se e n c a r r e g a v a , p o r e x e m p l o , d e o r g a n i z a r a lista de
eleitores locais, c o n v o c á - l o s nas é p o c a s d e e l e i ç õ e s e fazer o c a d a s t r o das terras. Apesar
das p r o i b i ç õ e s i m p o s t a s pelas C o n s t i t u i ç õ e s P r i m e i r a s d o A r c e b i s p a d o da B a h i a , a
C a r t a C o n s t i t u c i o n a l de 1 8 2 4 p e r m i t i u a a d m i s s ã o d e p a d r e s e m t o d a s as f u n ç õ e s da
magistratura (inclusive a de i n t e g r a n t e s de j ú r i s ) e, a t é os a n o s 1 8 5 0 , n a própria
G u a r d a N a c i o n a l . A essas f u n ç õ e s j u d i c i á r i a s e p a r a m i l i t a r e s , o E s t a d o acrescentou as
policiais. A t é 1 8 5 3 , os padres p o d i a m ser n o m e a d o s d e l e g a d o s e subdelegados de
P o l í c i a sem q u e fosse n e c e s s á r i o o b t e r p e r m i s s ã o f o r m a l da h i e r a r q u i a . T o d a s essas
funções — registre-se — e r a m t o t a l m e n t e d e s a p r o v a d a s pelas d i o c e s e s . 2

M a s , à m e d i d a que o E s t a d o n a c i o n a l o r g a n i z a v a seus serviços, a Igreja era afastada


dessas funções, q u e passavam às m ã o s de f u n c i o n á r i o s leigos. Essa nítida d i m i n u i ç ã o
de atribuições n ã o deve ser e s q u e c i d a , p o i s p e r m i t e a p r o f u n d a r a análise das tensões
q u e dificultaram as relações e n t r e Igreja e E s t a d o d u r a n t e b o a parte do século X I X .
C o m efeito, a r o m a n i z a ç ã o da I g r e j a C a t ó l i c a e sua a t i t u d e u l t r a m o n t a n a a partir dos
anos 1 8 7 0 n ã o são a única e x p l i c a ç ã o para o c h o q u e q u e se produziu e n t r e as c o n c e p -
ções julgadas retrógradas e conservadoras e aquelas q u e e x p r i m i a m modernidade e
progresso. A perda de c o n t r o l e sobre o c o t i d i a n o do povo foi p r o p o r c i o n a l ao apareci-
m e n t o e circulação de novas ideologias, novos d o g m a s e novos credos. Q u e camadas
da população foram afetadas por eles? C e r t a m e n t e não as grandes massas. M a s , mane-

302
LIVRO V - A IGREJA 303

j a d a s c o m o n o v o s i n s t r u m e n t o s das e l i t e s , essas i d é i a s , d o g m a s e c r e d o s p e r m i t i a m q u e
se c o m b a t e s s e a I g r e j a n o q u e ela p o s s u í a d e m a i s p r o f u n d o , c o m o o b j e t i v o de
d i m i n u i r sua i n f l u ê n c i a m u l t i s s e c u l a r . A l u t a n ã o se d e s e n r o l o u a p e n a s n o plano
ideológico o u d o u t r i n á r i o . A q u e s t ã o d o p o d e r esteve f o r t e m e n t e presente. A q u e m e
como obedecer — ao Estado ou à Igreja — foi o p r o b l e m a d e u m p o v o i n t e i r o . A t é
h o j e a h i s t o r i o g r a f i a b r a s i l e i r a e s c a m o t e o u esse a s p e c t o d a q u e s t ã o .

REFORMAS NA IGREJA, REFORMAS PELO ESTADO ( 1 8 2 2 - 1 8 4 0 )

C o l o c a d a s o b as o b r i g a ç õ e s d o P a d r o a d o , a I g r e j a C a t ó l i c a p a r e c i a d i r i g i d a p o r l e i g o s . 3

A hierarquia era p o u c o respeitada p o r padres e fiéis. N a m a i o r p a r t e dos casos, o


d i n h e i r o d e s t e s ú l t i m o s m a n t i n h a o c u l t o e a c h a m a d a fé das i r m a n d a d e s . M a s foi
c o m o e s t í m u l o da Igreja, c o m o i m p u l s o da fé q u e esta s o u b e despertar nos corações
dos fiéis, q u e a a ç ã o d o s l e i g o s s e t o r n o u p o s s í v e l . Ecclaesia quer dizer assembléia do
p o v o . N a f a m í l i a , n a p a r ó q u i a o u n a i r m a n d a d e r e l i g i o s a , esse e n c o n t r o s e m p r e se fez
em n o m e de u m a fé cristã e católica.

A c r i a ç ã o d e p a r ó q u i a s d e p e n d i a , e m p r i n c í p i o , d a v o n t a d e d o rei, q u e t i n h a
obrigação de c o n s t r u i r a igreja, o r n á - l a e n o m e a r seu p á r o c o . N o e n t a n t o , durante
t o d o o p e r í o d o c o l o n i a l a r e a l e z a m o s t r o u - s e p a r c i m o n i o s a n a c r i a ç ã o d e novas p a r ó -
q u i a s , q u e a c a r r e t a v a g a s t o s . E l a s s u r g i a m p o r i n i c i a t i v a d o s fiéis, q u e e d i f i c a v a m e
o r n a v a m c a p e l a s c o m r e c u r s o s p r ó p r i o s . M u i t o f r e q ü e n t e m e n t e o rei recusava as p e t i -
ções e os b i s p o s v i a m - s e o b r i g a d o s a n o m e a r u m v i g á r i o ad nutum, a t é q u e viesse a
nomeação oficial, q u e p o d i a d e m o r a r vários anos. Estas duas modalidades de fundação
de p a r ó q u i a s l e v a r a m à e x i s t ê n c i a d e d o i s t i p o s d e p á r o c o s : o c o l a d o , n o m e a d o p e l o rei,
e o encomendado, n o m e a d o pelo bispo.

N o A g r e s t e b a i a n o , p o r e x e m p l o , a p a r ó q u i a d e N o s s a S e n h o r a de N a z a r é de
Itapicuru de C i m a teve o r i g e m e m u m oratório particular, construído em 1 6 4 8 e
elevado à c a t e g o r i a d e i g r e j a p a r o q u i a l e m 1 6 8 0 . M a s o p á r o c o s ó foi o f i c i a l m e n t e
n o m e a d o e m 1 7 0 0 . A p o s s i b i l i d a d e de c o n t o r n a r as d i f i c u l d a d e s i m p o s t a s pelo P a d r o a -
do m o s t r a q u e o s b i s p o s t i n h a m u m a c o n s i d e r á v e l m a r g e m de m a n o b r a . Quando
n o m e a d o p e l o rei, o p á r o c o r e c e b i a u m p o s t o v i t a l í c i o , e seus v e n c i m e n t o s a
'porção côngrua' — ficavam a s s e g u r a d o s pelos c o f r e s reais. Q u a n d o n o m e a d o pelo
b i s p o , o vigário m a n t i n h a c o m ele u m c o n t r a t o a n u a l e ad nutum da a u t o r i d a d e d i o -
cesana. O b i s p a d o n ã o r e m u n e r a v a o vigário e n c o m e n d a d o , q u e recebia de seus p a r o -
q u i a n o s as conhecenças, e s p é c i e de d í z i m o pessoal q u e , na verdade, era u m a p e q u e n a
c o n t r i b u i ç ã o e m d i n h e i r o o u in natura, paga pelos fiéis p o r ocasião d o c i c l o pascoal.

Q u a l era o papel d o padre? S e m dúvida, ele t i n h a q u e e n f r e n t a r m a i s p r e o c u p a ç õ e s


m u n d a n a s q u e e s p i r i t u a i s . M a s q u e m p o d e a f i r m a r , c o m serenidade, q u e os c o n t a t o s
entre pastores e fiéis s c r e d u z i a m a celebrações festivas e p r o c i s s õ e s ? Essa atitude do 5

padre, a p r e s e n t a d a d e m a n e i r a v o l u n t a r i a m e n t e abstrata, despojada de toda h u m a n i -


BAHIA. SÉCULO XIX

dade e de toda postura sacra, c o n d u z a uma imagem que n e m sempre corresponde


àquela transmitida por d o c u m e n t o s p o u c o analisados até h o j e . V o l t a r e m o s a esse
assunto q u a n d o tratarmos d o clero. N o c o n f l i t o entre Igreja c Estado, os bispos e
alguns m e m b r o s e m i n e n t e s d o capítulo é que t o m a v a m posição. Q u e consciência
tinham de sua missão? C o m o assimilavam o Estado? C o m o c o m p r e e n d i a m o clero e
os fiéis? C o m o evoluiu sua atitude d u r a n t e esses setenta anos de história da Igreja
Católica n o Brasil?
À época da I n d e p e n d ê n c i a , c o m u m a população de cerca de quatro milhões de
habitantes, o Brasil tinha um arcebispado ( B a h i a ) , seis bispados ( O l i n d a , Rio de
J a n e i r o , São Luís, B e l é m , M a r i a n a e S ã o P a u l o ) , duas prelazias ( G o i á s e C u i a b á ) , 6 5 0
a 7 0 0 paróquias e algumas c e n t e n a s de capelas. Apesar de recrutados quase sempre no
clero m e t r o p o l i t a n o , os bispos não pensavam n e m agiam da m e s m a maneira. Repre-
sentavam mais os interesses da C o r t e q u e os interesses pastorais, e o Estado só exigia
deles que mantivessem a disciplina d o clero e a o b e d i ê n c i a d o p o v o . A prova disso é
que, mais c e d o o u mais tarde, eram c h a m a d o s a d e s e m p e n h a r algum papel político nos
negócios da C o l ô n i a . P o r c o n s e g u i n t e , sua atividade pastoral estava ligada às próprias
limitações da f u n ç ã o episcopal, impostas pelo P a d r o a d o .

Considerados nobres, ligados à C o r o a portuguesa, os bispos do Brasil viam-se fre-


qüentemente obrigados ao exercício de funções administrativas, c o m o substituir o go-
vernador-geral em caso de vacância. O s que mostravam certa independência n o cumpri-
mento de suas obrigações pastorais eram afastados pela autoridade real. As sedes episcopais
permaneciam, por vezes, vagas durante m u i t o t e m p o , fosse por razões políticas (às vezes
Lisboa não conseguia escolher um novo b i s p o ) , fosse porque o bispo nomeado resolvia
tomar posse de sua diocese por procuração, retardando cm meses, o u m e s m o anos, sua
chegada de além-mar. Alguns acabavam por renunciar à perigosa viagem Portugal-
Brasil. Este absenteísmo parece ter sido freqüente. N a verdade, o direito canónico obri-
gava os membros do clero secular e regular — bispos, cónegos, párocos, abades c priores
— a habitar na sede de seu posto, mas a necessidade de os concílios reiterarem sucessiva-
mente essa obrigação demonstra c o m o ela era descumprida. N a França, só no século
X V I I a 'residência* passou a fazer parte dos costumes sacerdotais, generalizando-sc ape-
nas no século X V I I L N o Brasil, o período de vacância entre dois bispos sucessivos
durava, cm média, três ou quatro anos, mas houve casos de intervalos muito mais longos,
c o m o O que ocorreu após a partida de dom Pedro da Silva Sampaio, bispo da Bahia entre
1634 e 1 6 4 9 : seu sucessor chegou 2 3 anos depois. Durante ausências tão prolongadas,
a instituição eclesiástica não podia funcionar normalmente, já que se via privada dc
dois poderes exclusivos dos bispos: o poder dc ordenar c o poder jurídico eclesiástico.
O primeiro define a confirmação c a ordem (na ausência dos bispos, nenhum padre
pode ser ordenado). O segundo prevê que eles governem 0 povo cristão, fiscalizem o
ensino da doutrina, legislem, administrem e julguem causas eclesiásticas. 6

Educados em Portugal, os bispos recebiam formação teológica marcada pela men-


talidade e espírito regalistas c pelo jansenismo da Universidade de Coimbra, onde a
Lr\-RO V - A IGREJA 305

maior parte estudava. D e m o d o geral, o e p i s c o p a d o n ã o se o p ô s ao m o v i m e n t o de


I n d e p e n d ê n c i a (a e x c e ç ã o ficou p o r c o n t a d o vigário geral da diocese d o Pará e futuro
arcebispo d a B a h i a , d o m R o m u a l d o A n t ô n i o de Seixas, q u e se declarou, às C o r t e s de
Lisboa, contrário à Independência em 1 8 2 1 ) . M a s , depois de 1 8 2 2 , surgiram dois
tipos de p r o b l e m a s n o v o s : os q u e d i z i a m respeito às relações e n t r e a Igreja e E s t a d o ,
que deviam ser d e f i n i d a s , e o s q u e se r e f e r i a m à r e f o r m a da própria Igreja.

O p r i m e i r o p r o b l e m a foi o d o P a d r o a d o : seria l e g í t i m o e j u r i d i c a m e n t e aceitável


que o i m p e r a d o r d o B r a s i l , país a g o r a i n d e p e n d e n t e , c o n t i n u a s s e a ter u m privilégio
que fora c o n c e d i d o a o rei d e P o r t u g a l ? O p o d e r r e s p o n d i a a f i r m a t i v a m e n t e . Com
efeito, o artigo 5 da C o n s t i t u i ç ã o de 1 8 2 4 declarava: " a I g r e j a C a t ó l i c a A p o s t ó l i c a
R o m a n a c o n t i n u a r á a s e r a r e l i g i ã o d o I m p é r i o . T o d a s as o u t r a s religiões são p e r m i t i -
das, c o m a c o n d i ç ã o d e q u e s e u c u l t o seja d o m é s t i c o o u privado, e m casas a isso
destinadas, m a s q u e n ã o t e n h a m as f o r m a s e x t e r i o r e s de u m t e m p l o . " A o dizer ' c o n -
7

tinuará', a C o n s t i t u i ç ã o d o n o v o país a f i r m a v a a d e t e r m i n a ç ã o de m a n t e r o statu quo


ante e, c o m e l e , t o d o s os p r i v i l é g i o s d o p a s s a d o . P a r a c o n t r a b a l a n ç a r o privilégio
c o n c e d i d o ao c a t o l i c i s m o , a C a r t a d e c l a r a v a n o p a r á g r a f o 1 4 d o artigo 1 0 2 que todos
os decretos c o n c i l i a r e s , c a r t a s a p o s t ó l i c a s e o u t r o s r e g u l a m e n t o s eclesiásticos deveriam
receber o b e n e p l á c i t o i m p e r i a l a n t e s d e s e r e m d i f u n d i d o s . C o m essas m e d i d a s , o n o v o
8

Estado d e i x a v a c l a r o q u e d e s e j a v a m a n t e r c o m a S a n t a S é relações privilegiadas, nos


moldes q u e v i g i a m e m P o r t u g a l . M a s , a o m e s m o t e m p o , reivindicava o direito de
i m p o r l i m i t e s à a ç ã o d a I g r e j a , a f a s t a n d o a p o s s i b i l i d a d e de i n g e r ê n c i a d ó papa nos
negócios b r a s i l e i r o s .
Para q u e seus d i r e i t o s f o s s e m r e c o n h e c i d o s e p u d e s s e n e g o c i a r u m a c o n c o r d a t a , o
imperador d o m Pedro I enviou a R o m a , c o m o ministro extraordinário, o monsenhor
F r a n c i s c o C o r r e i a V i d i g a l . N a s c i d o n o R i o de J a n e i r o e m 1 7 6 6 , este ú l t i m o abraçara
ainda j o v e m a c a r r e i r a e c l e s i á s t i c a , m a s , f o r m a d o t a m b é m e m d i r e i t o , exercia em
paralelo a profissão de a d v o g a d o . T i n h a idéias m u i t o m o d e r n a s — até heterodoxas
— , s o b r e t u d o n o q u e dizia r e s p e i t o às relações d o E s t a d o c o m R o m a . Considerava,
por e x e m p l o , q u e a s u p r e m a c i a e a i n f a l i b i l i d a d e d o papa e r a m doutrinas " q u e fora
de R o m a n ã o se s u s t e n t a m " . A l é m disso, estabelecia clara d i s t i n ç ã o e n t r e o papado e
a Igreja C a t ó l i c a , c o n s i d e r a n d o o p r i m e i r o c o m o u m a i n s t i t u i ç ã o p u r a m e n t e políti-
c a . O s resultados dessa l o n g a e laboriosa missão f o r a m o r e c o n h e c i m e n t o do Brasil
9

c o m o n a ç ã o s o b e r a n a e a b u l a Praeclara PortugalUa, datada de m a i o de 1 8 2 7 , na qual


Leão X I I c o n c e d i a ao g o v e r n o brasileiro os m e s m o s direitos e privilégios acordados
com os reis portugueses desde o século X V I (observemos que a Assembléia Geral
brasileira j u l g o u inútil o c o n t e ú d o d a bula, p o r q u e , segundo a maioria dos deputa-
dos, os direitos d o i m p e r a d o r sobre a a d m i n i s t r a ç ã o da Igreja eram inerentes ao seu
cargo e p r o v i n h a m d o t e x t o c o n s t i t u c i o n a l de 1 8 2 4 ) .

N a verdade, R o m a c o n c e d e u esses direitos ao imperador, mas não assinou uma


c o n c o r d a t a , de m o d o q u e o r e c o n h e c i m e n t o t i n h a , a seus olhos, caráter t e m p o r á r i o .
A Santa Sé d e s i g n o u u m representante, u m n ú n c i o apostólico, mas suas atribuições se
906 BAHIA, SÉCULO X I X

limitaram a apreciar pedidos de dispensa de votos religiosos. Isso c o n v i n h a ao governo,


que p r o m o v e r a c a m p a n h a visando a extinguir as ordens religiosas. M a s a presença de
um n ú n c i o inspirou m u i t a d e s c o n f i a n ç a nos liberais, q u e o c o n s i d e r a r a m c o m o repre-
sentante de um poder estrangeiro disposto a interferir e m n e g ó c i o s que, m e s m o sendo
de c u n h o religioso, eram de exclusiva c o m p e t ê n c i a d o E s t a d o .
Essas primeiras medidas d e f i n i r a m , de u m lado, as relações e n t r e Igreja e Estado
e, de o u t r o , as d o E s t a d o c o m a S a n t a S é . A o s o l h o s d o p o d e r , legitimaram seu papel
de direção dos n e g ó c i o s eclesiásticos. O g o v e r n o passou a agir c o m o chefe religioso
incontestável. E R o m a t o l e r o u sua a t i t u d e . A C o n s t i t u i ç ã o foi c o m p l e t a d a c o m uma
i m p r e s s i o n a n t e série de leis, d e c r e t o s e portarias, s o b r e t u d o n o q u e dizia respeito ao
f u n c i o n a m e n t o d o J u d i c i á r i o ; a p ó s t e r s u p r i m i d o a L e g a ç ã o , t r i b u n a l de terceira ins-
tância q u e f u n c i o n a v a sob a égide d a N u n c i a t u r a , o g o v e r n o se o u t o r g o u o direito de
julgar as causas eclesiásticas, q u e deviam s u b m e t e r - s e " e m s e g u n d a e ú l t i m a instância
ao tribunal de apelação c o m p e t e n t e " . E s s a m e d i d a a t i n g i a d i r e t a m e n t e a competência
j u r í d i c a d a Igreja. P o r o u t r o l a d o , o C ó d i g o P e n a l d o I m p é r i o considerava crime
c o n t r a a s o b e r a n i a n a c i o n a l q u a l q u e r " c o n c u r s o a u m a a u t o r i d a d e estrangeira, dentro
o u fora do I m p é r i o , sem u m a l e g í t i m a p e r m i s s ã o , para i m p e t r a r graças espirituais,
distinções o u privilégios na hierarquia eclesiástica, o u autorização de u m ato religioso". 11

A o reafirmar-se o P a d r o a d o , exigir-se o b e n e p l á c i t o i m p e r i a l para qualquer ato


c o n c e r n e n t e à vida espiritual e m a t e r i a l d a Igreja e d e t e r m i n a r - s e a possibilidade de
recursos à C o r o a para d i r i m i r divergências e n t r e u m a a u t o r i d a d e eclesiástica e um
terceiro, c r i o u - s e u m a s i t u a ç ã o e m q u e a Igreja n ã o só p e r m a n e c i a s u b m i s s a ao poder
t e m p o r a l , m a s t a m b é m era i m p e d i d a de exercer l i v r e m e n t e sua m i s s ã o . P o r o u t r o lado,
esse modus vivendi — "novo dentro do antigo" — s ó p o d i a gerar atritos entre um
poder civil q u e queria conservar sua p r e e m i n ê n c i a e u m a h i e r a r q u i a eclesiástica cada
vez mais desejosa de c o n d u z i r seu p r ó p r i o d e s t i n o .

O s problemas da reforma diziam respeito, essencialmente, à preparação e moralidade


d o clero e à i n s t r u ç ã o religiosa d o p o v o . M a s as s o l u ç õ e s previstas estiveram longe de
o b t e r u n a n i m i d a d e j u n t o a u m c l e r o d i v i d i d o s o b r e c o m o tratar as relações com o
E s t a d o e a S a n t a S é e mais p r e o c u p a d o c o m atividades políticas d o q u e c o m sua missão
pastoral. Até as questões c o n c e r n e n t e s à vida i n t e r i o r da Igreja passaram a ser discuti-
das em praça pública.
Por volta de 1 8 2 5 , a parte mais ativa d o clero se dividiu p o l i t i c a m e n t e em dois
grupos: o dos reformadores de t e n d ê n c i a liberal, f o r m a d o p o r padres que pertenciam
ao baixo c l e r o , e o dos reformadores conservadores, c u j o s m e m b r o s se reuniam em
torno dos bispos. O primeiro era liderado pelos padres D i o g o A n t ô n i o Feijó, chefe
pragmático do m o v i m e n t o , e M a n u e l J o a q u i m d o Amaral G u r g e l , o principal teórico.
As biografias desses dois chefes religiosos paulistas apresentam muita semelhança. 1

E m b o r a filhos ilegítimos, receberam boa educação, habilitando-se a brilhar na política


e n o magistério. Eram dotados de forte vocação religiosa e compartilhavam uma
mesma forma de ver a realidade d o país. F o r a m grandes defensores da abolição do
LIVRO V - A IGREJA
307

celibato s a c e r d o t a l , m a s a v i d a pessoal d e cada u m c a r a c t e r i z o u - s e pela integridade d e


c o m p o r t a m e n t o e d e h á b i t o s . N a P r o v í n c i a de S ã o P a u l o , eles f o r a m seguidos p o r u m a
dezena d e colegas s a c e r d o t e s , q u e f o r m a r a m o grosso desse g r u p o de r e f o r m a d o r e s , d e
idéias avançadas, q u e r e c e b e u a a d e s ã o d e a l g u n s padres d e o u t r a regiões do Brasil ( o
padre F r a n c i s c o J o s é C o r r ê a d e A l b u q u e r q u e , d e p u t a d o pela P r o v í n c i a de Alagoas,
chegou a a p r e s e n t a r à A s s e m b l é i a G e r a l , e m 1 8 3 0 , u m p r o j e t o para a c o n v o c a ç ã o d e
um c o n c í l i o n a c i o n a l ) . 1 3
I n t e g r a n d o , n o m o m e n t o da I n d e p e n d ê n c i a , o p e q u e n o grupo
de h o m e n s c u l t o s d o B r a s i l , m u i t o s p a d r e s f o r a m eleitos d e p u t a d o s e tiveram presença
marcante nas a s s e m b l é i a s p r o v i n c i a i s o u n a A s s e m b l é i a G e r a l a t é a década d e 1 8 4 0 .
Esses r e p r e s e n t a n t e s d o c l e r o e x e r c i a m u m a i n f l u ê n c i a d e p r i m e i r í s s i m a o r d e m e a c r e -
ditavam q u e o s p r o b l e m a s d a I g r e j a p o d e r i a m ser resolvidos através d e ação p o l í t i c a .
T a m b é m f o i p o l í t i c a a a ç ã o d o g r u p o d o s c o n s e r v a d o r e s , q u e , a seu m o d o , eram
reformadores. E v o l u í a m e m t o r n o d a a l t a h i e r a r q u i a eclesiástica, s e g u i n d o a liderança
de d o m R o m u a l d o A n t ô n i o d e S e i x a s , a r c e b i s p o d a B a h i a e u m a das personalidades
mais m a r c a n t e s d o e p i s c o p a d o b r a s i l e i r o , e d o m M a r c o s A n t ô n i o d e S o u s a C o e l h o ,
bispo d o M a r a n h ã o . 1 4
E l e i t o s d e p u t a d o s à A s s e m b l é i a G e r a l d o I m p é r i o , a partir dessa
tribuna l i d e r a r a m s u a b a t a l h a p e l a r e f o r m a d a I g r e j a , o p o n d o - s e v i g o r o s a m e n t e a o
discurso d o s r e f o r m a d o r e s l i b e r a i s , d o s q u a i s n ã o c o m p a r t i l h a v a m n e m os o b j e t i v o s ,
nem os p r i n c í p i o s . As d i v e r g ê n c i a s d i z i a m r e s p e i t o , s o b r e t u d o , às relações e n t r e Igreja
e Estado e a o p r o b l e m a d o c e l i b a t o d o s p a d r e s .

O tradicional regalismo t o m o u novas dimensões depois da Independência. O s


reformadores c o n s e r v a d o r e s p r e g a v a m u m r e g a l i s m o m o d e r a d o , os reformadores liberais
um regalismo r a d i c a l . A d i f e r e n ç a dessas duas a t i t u d e s p o d e ser c o n s t a t a d a n a m a n e i r a
de situar a I g r e j a e m r e l a ç ã o a o E s t a d o : o s m o d e r a d o s c o l o c a v a m os poderes espiritual
e temporal e m p é d e i g u a l d a d e , a o passo q u e o s radicais s u b o r d i n a v a m o espiritual a o
temporal. 15
E s s a s e g u n d a c o n c e p ç ã o p a r t i a d o p r i n c í p i o d e q u e a "religião era um
objeto p o l í t i c o " , o q u e s i g n i f i c a v a q u e ela — e, p o r c o n s e g u i n t e , a Igreja — era atri-
buição do g o v e r n o , i n t e g r a n t e d a b u r o c r a c i a d e s t e . Para exercer sua f u n ç ã o espiritual
c social, a I g r e j a precisaria i n c l i n a r - s e d i a n t e d o E s t a d o , q u e devia traçar a linha d e
conduta a ser s e g u i d a . N e s s a p e r s p e c t i v a , as m o t i v a ç õ e s políticas c o n d u z i a m a u m a
espécie de n a c i o n a l i s m o r e l i g i o s o , f e c h a d o e a r r o g a n t e , c o m pretensão de independên-
cia cm relação a q u a l q u e r i n f l u ê n c i a estrangeira. C o m o c o n s e q ü ê n c i a , os reformadores
liberais quiseram d e s l o c a r o p ó l o d a a u t o r i d a d e , alargando os limites dos poderes
episcopais, c m d e t r i m e n t o da j u r i s d i ç ã o d o papa. N ã o se p o d e dizer q u e esses
reformadores t e n h a m n e g a d o c l a r a m e n t e a primazia d o p o n t í f i c e , m a s eles a afirma-
vam c o m formas restritivas, d i m i n u i n d o o c a m p o d e suas atividades ou exigindo a
convocação d e c o n c í l i o s gerais para c o o r d e n a r a vida da Igreja e controlar os poderes
pontificais. P o r o u t r o l a d o , eles achavam possível liberalizar o f u n c i o n a m e n t o da
autoridade n a Igreja, d a n d o mais a u t o n o m i a aos bispos, d i m i n u i n d o o peso da hierar-
quia e c o n c e d e n d o a o clero m a i o r participação n a administração diocesana. Essa ati-
tude ultraliberal se transformou n u m a luta sistemática — cuja direção f o . confiada ao
BAHIA, SÉCULO X I X
.ws

governo — contra R o m a . 1 6
N e g a n d o a p r i m a z i a d o p a p a , r a d i c a l i z a n d o suas posições,
os r e f o r m a d o r e s liberais p r o p u n h a m a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a I g r e j a N a c i o n a l , c u j a au-
toridade s u p r e m a seria c o n f i a d a a u m c o n c í l i o , t a m b é m n a c i o n a l .
A posição dos reformadores conservadores era diametralmente oposta.
U l t r a m o n t a n o s , eles eram a favor d e u m a estreita c o l a b o r a ç ã o c o m R o m a e reconhe-
ciam o papa c o m o c h e f e d o c r i s t i a n i s m o c a t ó l i c o . A d e p t o s d o p r i n c í p i o de igualdade
entre os poderes espiritual e t e m p o r a l , d e s e j a v a m u m a larga a u t o n o m i a da Igreja,
s o b r e t u d o n o q u e dizia respeito às q u e s t õ e s e s p i r i t u a i s . D e f e n d i d a c o m vigor, essa
posição só p o d i a ser f o n t e de c o n f l i t o s , j á q u e o E s t a d o t i n h a c o n s e g u i d o o reconheci-
m e n t o de seus d i r e i t o s s o b r e a d i r e ç ã o dos n e g ó c i o s d a I g r e j a . Esses reformadores
consideravam q u e a a u t o r i d a d e s u p r e m a d a I g r e j a devia ser e x e r c i d a pelos bispos,
sucessores dos a p ó s t o l o s , s e m p a r t i l h a . F a v o r á v e i s às a n t i g a s e s t r u t u r a s institucionais
d a Igreja, eram i n i m i g o s d o s q u e p r e g a v a m a i n t r o d u ç ã o de e l e m e n t o s novos, que
diziam respeito s o b r e t u d o a d o i s p r o b l e m a s : o c e l i b a t o dos p a d r e s e a e x t i n ç ã o das
ordens regulares. A d i s c u s s ã o ficou r a p i d a m e n t e p ú b l i c a , j á q u e os d e b a t e s tiveram
lugar em p l e n a A s s e m b l é i a G e r a l e até m e s m o e m a l g u m a s a s s e m b l é i a s provinciais.
O s dois g r u p o s d e s e j a v a m r e f o r m a s capazes de c o n f e r i r u m a n o v a personalidade à
Igreja. A i n t e n ç ã o era a m e s m a , m a s os m e i o s de realizá-la d i v e r g i a m d e m o d o estranho.

QUE REFORMAS PARA O C L E R O BRASILEIRO?

O clero, na é p o c a d a I n d e p e n d ê n c i a , c o n s e r v a v a as c a r a c t e r í s t i c a s d o p e r í o d o colonial.
I n s u f i c i e n t e m e n t e f o r m a d o s para e x e r c e r sua m i s s ã o s a c e r d o t a l , s e m t e r e m recebido
u m a preparação religiosa séria, os padres e s t a v a m m u i t o m a i s i m p r e g n a d o s de litera-
tura francesa p r o f a n a q u e de letras l a t i n a s p i e d o s a s . 1 7
A d e p t o s das idéias liberais e
d e m o c r á t i c a s d o século X V I I I , eles i n f l u í r a m n o s n e g ó c i o s p o l í t i c o s d o país. D e 1 7 8 9
a 1 8 3 1 , participaram a t i v a m e n t e de t o d o s os m o v i m e n t o s r e v o l u c i o n á r i o s . E n t r e t a n t o ,
c o m o já o a f i r m e i , as p o s i ç õ e s d o c l e r o n ã o e r a m h o m o g ê n e a s , o s c i l a n d o do
conservadorismo mais tradicional ao r a d i c a l i s m o m a i s e x t r e m a d o , passando muitas
vezes por um liberalismo t e ó r i c o i n c o n s e q ü e n t e . 1 8
S e m d ú v i d a , a influência desse clero
sobre a alma popular c o n t i n u a v a a ser g r a n d e ; m a s o c o m p o r t a m e n t o de boa parte dele
levou os fiéis a estabelecerem u m a diferença e n t r e o padre d e n t r o da Igreja, em sua
função sagrada, e o padre na vida profana e c o t i d i a n a , q u e ele vivenciava c o m o todo
m u n d o . Poucos padres usavam h á b i t o , d e f i n i d o c o m o o b r i g a t ó r i o nas Constituições
Primeiras do Arcebispado da B a h i a . 1 9
Na verdade, p o u c o s , e n t r e eles, acreditavam
verdadeiramente em sua missão sacerdotal. C o n s i d e r a v a m - s e simples funcionários —
aliás, mal pagos — do Estado. Para sobreviver, c o b r a v a m taxas s o b r e atos religiosos
(que, cm princípio, deviam ser gratuitos) ou exerciam ofícios incompatíveis com sua
condição. O celibato tornara-se ficção para grande parte do clero; muitos, padres
chefiavam famílias, às vezes numerosas, que precisavam criar e educar.
LIVRO V - A IGREJA 309

H o m e n s d o século mais d o q u e h o m e n s da Igreja, os padres representavam, entre-


tanto, u m a parte i m p o r t a n t e da elite intelectual da nova n a ç ã o , sendo chamados a
participar a t i v a m e n t e da v i d a p o l í t i c a . F u n c i o n á r i o s de Estado e deputados, eram
solicitados a p o s i c i o n a r - s e s o b r e questões referentes à a u t o n o m i a da Igreja diante do
Estado e t o m a r atitudes s o b r e p r o b l e m a s q u e i n c i d i a m sobre o f u n c i o n a m e n t o interno
da instituição eclesiástica, d a qual eram os servidores. Conservadores e liberais reco-
nheciam o caráter a m b í g u o da situação d o clero, o q u e os motivava a propor profun-
das reformas. As q u e s t õ e s d o c e l i b a t o e d a e x t i n ç ã o das ordens religiosas ajudaram a
mostrar a u r g ê n c i a de r e s t a b e l e c e r o e s p l e n d o r e a dignidade da Igreja.

D e s d e os p r i m ó r d i o s a q u e s t ã o d o c e l i b a t o dividiu clero e leigos. N a f o r m a de uma


pergunta i m p r o v i s a d a p e l o d e p u t a d o b a i a n o A n t ô n i o Ferreira F r a n ç a , m é d i c o de pro-
fissão, o p r o b l e m a foi c o l o c a d o n a A s s e m b l é i a G e r a l e m 1 8 2 7 . R e t o m o u - s e a discussão
em 1 8 3 4 , a partir de p r o p o s t a d o p a r l a m e n t a r b a i a n o , q u e surpreende p o r sua concisão
e rudeza: " q u e o n o s s o c l e r o se case e q u e os religiosos e religiosas desapareçam de
nosso m e i o " , disse e m sessão p a r l a m e n t a r , a b r i n d o l o n g a p o l ê m i c a que prendeu a
atenção do p ú b l i c o , t o r n o u - s e u m dos assuntos preferidos da i m p r e n s a e suscitou a
produção de m u i t o s p a n f l e t o s .

N o c a m p o dos r e f o r m a d o r e s c o n s e r v a d o r e s , n u m e r o s o s leigos — c o m o J o s é da
Silva L i s b o a , o V i s c o n d e de C a i r u — saíram e m defesa d o arcebispo da B a h i a , d o m
R o m u a l d o A n t ô n i o de S e i x a s , e d o b i s p o d o M a r a n h ã o , d o m M a r c o s A n t ô n i o de
Sousa, porta-vozes d a o r t o d o x i a . P r o c u r a n d o a b o r d a r os aspectos teológicos, jurídi-
cos e h i s t ó r i c o s da q u e s t ã o , eles se baseavam nas decisões d o C o n c í l i o de T r e n t o ,
cuja validade só foi r e c o n h e c i d a p e l o E s t a d o brasileiro e m n o v e m b r o de 1 8 2 7 , c o m
três séculos de atraso e m relação à I g r e j a . E m suas Memórias, o arcebispo da Bahia
descreveu u m a sessão p a r l a m e n t a r e m q u e o padre D i o g o F e i j ó defendeu a abolição
do celibato: " N o fim da sessão, t o m e i a palavra e m e opus vigorosamente à célebre
dissertação q u e p r o p u s e r a a revogação da antiga e venerável disciplina do celibato.
Fazendo alusão a E r a s m o — q u e o b s e r v o u q u e a R e f o r m a de Lutero tinha um ar
de c o m é d i a , p o r q u e t u d o devia c o n d u z i r ao c a s a m e n t o — eu lamentei que se pu-
desse fazer e n t r e nós a m e s m a observação, c o n c l u i n d o assim os trabalhos da sessão
com um ato v e r d a d e i r a m e n t e c ô m i c o e r i d í c u l o . " 2 0
Para esses conservadores, a re-
forma moral d o clero passava pela reforma geral dos costumes, por uma formação
verdadeiramente religiosa d e n t r o dos s e m i n á r i o s e por uma rigorosa seleção dos
candidatos ao s a c e r d ó c i o . 21

C o m o vimos, os adeptos da e x t i n ç ã o do celibato clerical tinham c o m o expoente o


padre D i o g o A n t ô n i o F e i j ó , q u e unia c m t o r n o de si boa parte do clero de São Paulo
e numerosos leigos. D e f e n d i a m que a reforma moral do clero passava pela abolição do
celibato: " E s t a n d o certo de que a lei d o celibato, através de uma experiência ininterrupta
de quinze séculos, produziu a imoralidade numa classe de cidadãos encarregados do
ensino da moral pública e que por essa razão sua missão é não somente inútil c o m o
prejudicial, q u a n d o os povos constatam em sua conduta o desmentido de sua doutrina
310 BAHIA, SÉCULO X I X

(...) é e n t ã o dever da A s s e m b l é i a G e r a l retirar a seus servidores p ú b l i c o s t o d a ocasião


que os t o r n a inúteis o u n o c i v o s à s o c i e d a d e . S u p o n d o i g u a l m e n t e q u e a Assembléia
Geral revogue o i m p e d i m e n t o da O r d e m m a s q u e a I g r e j a , a o m e s m o t e m p o em que
reconheça a validade do c a s a m e n t o dos padres, c o n t i n u e a d e m i t i - l o s e até a e x c o m u n g á -
los, é e v i d e n t e q u e esse c h o q u e e n t r e a c o n c e p ç ã o d o p o d e r t e m p o r a l e a p r o i b i ç ã o do
poder espiritual deve p r o d u z i r m u r m ú r i o s , f o m e n t a r p a r t i d o s e a c a b a r p o r perturbar
a paz p ú b l i c a . A A s s e m b l é i a G e r a l , e m vez de revogar o i m p e d i m e n t o da O r d e m , não
s o m e n t e p o d e , m a s deve e n t ã o s u s p e n d e r s e u b e n e p l á c i t o às leis referentes ao celibato,
para q u e elas n ã o p o s s a m se t o r n a r i m p o s i t i v a s n o I m p é r i o d o B r a s i l . " 2 2

Para os r e f o r m a d o r e s l i b e r a i s , o c e l i b a t o n ã o havia p r o v a d o seus m é r i t o s . A h i p o -


crisia q u e se instalara e n t r e os s a c e r d o t e s a t i n g i a as bases m o r a i s da s o c i e d a d e . P ô r fim
ao c e l i b a t o equivalia a prestar u m i m e n s o s e r v i ç o aos c r i s t ã o s . O E s t a d o , p o r intermé-
dio d o P a r l a m e n t o , devia agir nesse s e n t i d o , j á q u e o c e l i b a t o n ã o t i n h a f u n d a m e n t o
t e o l ó g i c o : era apenas u m a lei de d i r e i t o e c l e s i á s t i c o . O r e c u r s o a o E s t a d o , convidado
a legislar s o b r e essa q u e s t ã o e s s e n c i a l m e n t e i n t e r n a à I g r e j a e de caráter universal,
d e m o n s t r a c l a r a m e n t e o q u a n t o a ala radical d o c l e r o estava d i s p o s t a a a b d i c a r de seus
direitos, c o n t a n t o q u e pudesse a t i n g i r s e u o b j e t i v o .

Apesar de v e e m e n t e s , os d e b a t e s f o r a m i n s a t i s f a t ó r i o s e se a b r a n d a r a m c o m rapi-
dez. O s espíritos n ã o e s t a v a m p r e p a r a d o s p a r a e n f r e n t a r esse t i p o de p r o b l e m a , que
v o l t o u à pauta sete a n o s d e p o i s . 2 3
P a r e c e - m e necessário tratar a questão no contexto
mais geral q u e agitava a p o l í t i c a d a é p o c a : a c o n t e s t a ç ã o p a r l a m e n t a r s o b r e os tratados
assinados c o m P o r t u g a l , I n g l a t e r r a e F r a n ç a , a d i s c u s s ã o s o b r e a b o l i ç ã o d o tráfico de
escravos, a falência d o B a n c o d o B r a s i l , a o r g a n i z a ç ã o dos ó r g ã o s de a d m i n i s t r a ç ã o
m u n i c i p a l e j u d i c i á r i a e, s o b r e t u d o , a o p o s i ç ã o das c o r r e n t e s liberais à p o l í t i c a autori-
tária de d o m P e d r o I, q u e se m a n i f e s t o u e m u m a sucessão d e m o v i m e n t o s s e d i c i o s o s . 24

A discussão m u d o u de t o m a o ser r e t o m a d a e m 1 8 3 4 . N ã o se falou mais em abolir


o c e l i b a t o , mas em dispensar aqueles q u e fizessem s o l i c i t a ç ã o e s p e c í f i c a nesse sentido.
P o r o u t r o lado, n ã o se c o g i t o u m a i s de s o l u ç ã o n a c i o n a l , pois essa p r o p o s t a só foi
apresentada pela diocese de S ã o P a u l o ; as dispensas d e v e r i a m p e r m i t i r ao bispo orde-
nar até pessoas casadas, " s e g u n d o o e x e m p l o da I g r e j a grega e dos cristãos reforma-
dos". 2 5
Aberta na A s s e m b l é i a P r o v i n c i a l de S ã o P a u l o , essa discussão foi o b j e t o de uma
representação entregue pelos p a r l a m e n t a r e s ao b i s p o local, d o m M a n u e l J o a q u i m
G o n ç a l v e s de A n d r a d e , q u e a e n v i o u à a p r e c i a ç ã o d o c a p í t u l o . Ela se baseava em
numerosos a r g u m e n t o s : a dispensa d o c e l i b a t o era necessária para o bem-estar espiri-
tual dos fiéis e a utilidade da Igreja, o q u e influiria na prosperidade da pátria; a
c o n d u t a imoral d o clero era u m o b s t á c u l o à elevação espiritual d o povo, de m o d o que
o c a s a m e n t o dos padres corrigiria os males existentes e serviria de e x e m p l o aos celiba-
tários leigos, para q u e estes t a m b é m fossem atraídos ao c a s a m e n t o ; o E s t a d o se benefi-
ciaria do a u m e n t o n o n ú m e r o de c a s a m e n t o s , que ajudaria a a u m e n t a r a população do
país; a medida contava c o m o apoio da o p i n i ã o pública; o exercício do ministério
sacerdotal exigia u m a c o n s c i ê n c i a pura, e a dispensa d o celibato, estabelecendo a
LIVRO V - A IGREJA 311

d e c ê n c i a d o c u l t o , faria cessar o e s c â n d a l o ; a m e d i d a p e r m i t i r i a t a m b é m resolver o


p r o b l e m a da escassez de p a d r e s , p o i s os casados p o d e r i a m ser o r d e n a d o s e grande
n ú m e r o de h o m e n s v e n c e r i a sua h e s i t a ç ã o . 2 6

O parecer d o c a p í t u l o foi favorável à d i s p e n s a , mas d o m J o a q u i m preferiu s u b m e -


ter o caso ao m i n i s t r o da J u s t i ç a , A u r e l i a n o de S o u s a O l i v e i r a , por receio de abrir u m a
" b r e c h a n o d i r e i t o c a n ó n i c o " . P o r essa via, o d e b a t e g a n h o u d i m e n s ã o n a c i o n a l , j á q u e
o m i n i s t r o p e d i u a o p i n i ã o d o a r c e b i s p o d a B a h i a e da C o m i s s ã o Eclesiástica da
Assembléia G e r a l .

O a r c e b i s p o d a B a h i a e p r i m a z d a I g r e j a d o B r a s i l , d o m R o m u a l d o A n t ô n i o de
Seixas, p e r m a n e c e u fiel às idéias q u e expressara e m 1 8 2 7 , é p o c a da p r i m e i r a discussão.
R e f u t o u os a r g u m e n t o s e m f a v o r d a d i s p e n s a da lei d o c e l i b a t o , n e g a n d o q u e ela fosse
o ú n i c o m e i o de i m p e d i r o e s c â n d a l o da i n c o n r i n ê n c i a dos padres. P a r a o arcebispo, a
moralização d o c l e r o passava p o r três p o n t o s : a r e f o r m a m o r a l da sociedade brasileira,
o f o r t a l e c i m e n t o d o s s e m i n á r i o s d i o c e s a n o s e, e n f i m , a rigorosa seleção dos candidatos
ao s a c e r d ó c i o : " O m e i o d e elevar o c l e r o d o e s t a d o a b j e t o e d e p r i m e n t e e m q u e se
e n c o n t r a n ã o reside n o c a s a m e n t o , m a s , a n t e s de t u d o , na r e f o r m a dos costumes
públicos, p o r q u e os m i n i s t r o s d a I g r e j a , p r o v i n d o s d o m e i o secular e nele v i v e n d o , não
podem deixar de p a r t i c i p a r m a i s o u m e n o s d a c o r r u p ç ã o geral, c o m o todos os outros
h o m e n s , s e j a m eles c e l i b a t á r i o s o u c a s a d o s ( . . . ) . E m s e g u n d o lugar, u m a educação
cuidada e a d a p t a d a a o s fins a se q u e p r o p õ e e q u e , f o r m a n d o - o s na c i ê n c i a e na
piedade, t o r n e sua v o c a ç ã o i n d u b i t á v e l , b e m c o m o sua c a p a c i d a d e para o s a n t o m i n i s -
tério. F o i neste e s p í r i t o q u e a I g r e j a i n i c i o u os s e m i n á r i o s eclesiásticos, q u e os padres
de T r e n t o ( C o n c í l i o ) r e c o m e n d a m c o m o o m e i o m a i s eficaz para preservar da p r o p a -
gação dos v í c i o s a j u v e n t u d e q u e se d e s t i n a a o e s t a d o eclesiástico, i n s p i r a n d o - I h e esta
pureza de c o s t u m e s q u e ele e x i g e . O e c l e s i á s t i c o q u e , e m u m b o m s e m i n á r i o , teve
c o n t a t o estreito c o m as l e t r a s , q u e foi e d u c a d o e m u m a disciplina regular, não é,
h a b i t u a l m e n t e , t ã o v i c i o s o e d e s a m p a r a d o c o m o a q u e l e q u e u n e a ignorância aos
hábitos de u m a vida i n t e i r a m e n t e m u n d a n a . " F i n a l m e n t e , o arcebispo da Bahia defen-
dia a idéia de q u e t o d a o r d e n a ç ã o deveria ser p r e c e d i d a p o r u m e x a m e detalhado dos
candidatos: " A o a d m i t i r e m os c a n d i d a t o s à o r d e n a ç ã o , os bispos devem ser rigorosa-
mente e s c r u p u l o s o s . S o m e n t e devem a c e i t a r aqueles q u e , m e d i a n t e aprendizado em
-seminários c c o n d u t a irrepreensível, p r o v e m q u e são a n i m a d o s por um verdadeiro
espírito eclesiástico, c n ã o aqueles q u e d ã o provas equívocas de u m a aplicação assídua.
Q u a l q u e r i n d u l g ê n c i a nesta matéria é a l t a m e n t e p e r i g o s a . " 27

E n c o n t r a m o s , nesses três p o n t o s , um r e s u m o d o programa reformista e m p r e e n d i -


do pela alta hierarquia da Igreja — os c h a m a d o s bispos reformadores — nos anos
1 8 4 0 . M a i s tarde esse p r o g r a m a foi c o m p l e t a d o pela criação de conferências eclesiás-
ticas e pela i n t r o d u ç ã o de novas ordens missionárias e educativas. As posições assumi-
das por d o m R o m u a l d o m o s t r a m c l a r a m e n t e que, n o espírito da alta hierarquia, a
reforma da Igreja devia partir de uma visão que transcendia o m u n d o eclesiástico, o
que correspondia p e r f e i t a m e n t e ao espírito do C o n c í l i o de T r e n t o , reavivado em
BAHIA, SÉCULO X I X
312

quase toda parte, àquela é p o c a , n o â m b i t o d a c r i s t a n d a d e c a t ó l i c a . A atividade pastoral


estava c o n d i c i o n a d a pela f o r m a ç ã o espiritual a n t e r i o r dos s a c e r d o t e s .
A C o m i s s ã o Eclesiástica da A s s e m b l é i a G e r a l foi favorável à reapresentação da
Assembléia Provincial de S ã o P a u l o . M a s d e i x o u ao b i s p o de S ã o P a u l o o cuidado
de t o m a r a decisão final, d a n d o - l h e t o d o o a p o i o . 2 8
N a v e r d a d e , apesar desses deba-
tes preliminares, a a b o l i ç ã o d o c e l i b a t o clerical n ã o foi o b j e t o de discussão pública
na Assembléia G e r a l . C o n t i n u o u a ser o b j e t o de c o n s i d e r a ç õ e s d e t a l h a d a s n o pro-
j e t o da nova c o n s t i t u i ç ã o eclesiástica, a p r e s e n t a d o pelos padres r e f o r m a d o r e s paulis-
tas e m 1 8 3 5 .
Apesar de n ã o p r e t e n d e r t o r n a r - s e u m m o d e l o para a r e f o r m a i n t e r n a da Igreja, o
projeto, m u i t o a b r a n g e n t e , e x p r i m i u as i n t e n ç õ e s desse g r u p o d e r e f o r m a d o r e s radicais
e, por essa via, foi de e n c o n t r o às p r e o c u p a ç õ e s de t o d a a I g r e j a C a t ó l i c a brasileira. A
i n t e n ç ã o dos r e f o r m a d o r e s paulistas era de q u e a n o v a c o n s t i t u i ç ã o substituísse a
elaborada pela A r q u i d i o c e s e da B a h i a n o i n í c i o d o s é c u l o X V I I I e a d o t a d a e m seguida
por todas as dioceses brasileiras. D u r a n t e o p e r í o d o c o l o n i a l , d o i s s í n o d o s diocesanos
haviam sido c o n v o c a d o s p e l o q u a r t o b i s p o d o B r a s i l ( 1 6 0 0 - 1 6 1 8 ) , d o m C o n s t a n t i n o
Barradas, e pelo arcebispo da B a h i a ( 1 7 0 2 - 1 7 2 2 ) , d o m S e b a s t i ã o M o n t e i r o da Vide.
O s artigos da c o n s t i t u i ç ã o redigida p e l o p r i m e i r o s í n o d o n u n c a f o r a m i n t e g r a l m e n t e
publicados, c a i n d o e m d e s u s o . O Brasil c o n t i n u o u a o b e d e c e r às c o n s t i t u i ç õ e s de
Lisboa. C o m o s e g u n d o s í n o d o , f o r a m finalmente p r o m u l g a d a s , e m 1 7 0 7 , as C o n s t i -
tuições Primeiras d o A r c e b i s p a d o da B a h i a . A d o t a d a s p o r t o d a s as dioceses brasileiras,
elas p e r m a n e c e r a m e m v i g o r até o fim d o s é c u l o X I X . J o ã o C a m i l o de O l i v e i r a T o r r e s
c o n s t a t o u sua i m p o r t â n c i a , ao escrever: " A a n t i g a s o c i e d a d e brasileira era essencial-
m e n t e sagrada, as leis da I g r e j a eram o f i c i a l m e n t e r e c o n h e c i d a s p e l o E s t a d o . . . " 2 9

O s m e m b r o s d a C o m i s s ã o E c l e s i á s t i c a q u e t r a b a l h a r a m n o p r o j e t o paulista de
1 8 3 5 desejavam o s e g u i n t e : restabelecer o a n t i g o e s p l e n d o r e a d i g n i d a d e da Igreja;
fazer desaparecerem os abusos " q u e o t e m p o i n t r o d u z nas m e l h o r e s instituições";
realizar reformas disciplinares q u e estivessem e m h a r m o n i a c o m o E v a n g e l h o , a pureza
da doutrina e a disciplina dos p r i m e i r o s séculos d o c r i s t i a n i s m o ; auxiliar o bispo no
exercício de seu múnus pastoral através de u m c o n s e l h o de padres ( p r e s b i t é r i o ) , subs-
tituindo o capítulo; simplificar o processo j u d i c i á r i o eclesiástico; fazer do padre um ser
moralmente sadio, c u l t u r a l m e n t e a p t o a exercer seu m i n i s t é r i o , financeira e politica-
mente independente, graças à instituição de u m a caixa eclesiástica q u e o a j u d a r i a . 30

Duas observações sobressaem. P r i m e i r a : o o b j e t i v o principal era a reforma dos


costumes de bispos, padres e d i á c o n o s (ou seja, a r e f o r m a da Igreja passava pela
reforma dc seus m i n i s t r o s ) . S e g u n d a : ao a n u n c i a r e m esse o b j e t i v o principal, os
reformadores paulistas fizeram coro c o m o discurso da outra facção d o clero. Mas, se
o objetivo era o m e s m o , os meios para alcançá-lo divergiam: para uns, a reforma
deveria passar, antes de t u d o , pela reforma da moral pública; para outros, a solução
passava pela abolição da lei do celibato. O p e n s a m e n t o d o arcebispo da Bahia, dom
Romualdo, era representativo da primeira corrente: " É necessário recorrer a outros
LIVRO V - A IGREJA
313

m e i o s : c r e i o q u e o p r i m e i r o séria m e l h o r a r o sistema de e d u c a ç ã o particular e p ú b l i c o ,


p r e s e r v a n d o a j u v e n t u d e d o s e r r o s e d o s vícios c u j o v e n e n o lhe é s u t i l m e n t e a d m i n i s -
t r a d o p o r t a n t o s e s c r i t o s í m p i o s e l i c e n c i o s o s , e i m p r i m i r , assim, em suas jovens almas,
h á b i t o s de v i r t u d e e d e m o r a l religiosa, s e m os q u a i s c a i r ã o i n f a l i v e l m e n t e as m e l h o r e s
leis e i n s t i t u i ç õ e s . S e g u n d o o g r a n d e L e i b n i t z , o p r i n c i p a l m e i o de r e f o r m a r o m u n d o
é a e d u c a ç ã o ; d i g n o s r e p r e s e n t a n t e s d o s a c e r d ó c i o c o n t r i b u i r i a m , através de seu e x e m -
plo, à r e f o r m a d o s c o s t u m e s p ú b l i c o s . " 3 1

E m b o r a n ã o estivesse i s o l a d o d o r e s t o , o p r o b l e m a d o c e l i b a t o era i m p o r t a n t e .
T o d a s as r e f o r m a s c u l t u r a i s , financeiras, p o l í t i c o - e c l e s i a i s e pastorais p r o p o s t a s pelos
reformistas p a u l i s t a s d e p e n d i a m d a s o l u ç ã o desse p r o b l e m a . Aliás, o silêncio q u e e n -
c o b r i u esse p r o j e t o d a c o n s t i t u i ç ã o e c l e s i á s t i c a s ó p o d e ser e x p l i c a d o pela i n q u i e t a ç ã o
d e m o n s t r a d a p e l o b i s p o d e S ã o P a u l o e p e l o s p o l í t i c o s leigos da P r o v í n c i a . O p r i m e i r o
n u n c a d e u s e g u i m e n t o a o p a r e c e r , n o e n t a n t o favorável, e x p r e s s o pela C o m i s s ã o E c l e -
siástica d a A s s e m b l é i a G e r a l ; e o s s e g u n d o s e v i t a r a m c o l o c a r e m p a u t a , d u r a n t e as
sessões p a r l a m e n t a r e s , o p r o j e t o de c o n s t i t u i ç ã o ! O s e s p í r i t o s a i n d a n ã o t i n h a m a m a -
d u r e c i d o b a s t a n t e p a r a a c e i t a r e m c o m o p r i n c í p i o c o n d u t o r da r e f o r m a u m a s o l u ç ã o
c o n s i d e r a d a h e r é t i c a . A e n c í c l i c a Mirare Vos, p u b l i c a d a e m 1 8 3 2 p o r G r e g o r i o X V I ,
c o n d e n a v a o d e s e j o e x p r e s s o p o r a l g u n s e c l e s i á s t i c o s , q u e , " e s q u e c e n d o sua d i g n i d a d e
e c o n d i ç ã o e a r r a s t a d o s p e l a a n s i e d a d e d o d e s e j o , c h e g a r a m a tal p o n t o de l i b e r t i n a g e m
que o u s a m p e d i r p u b l i c a m e n t e e c o m i n s i s t ê n c i a a o s P r í n c i p e s a a b o l i ç ã o desta i m p o -
sição d i s c i p l i n a r ( o c e l i b a t o ) " . E s t e p a r á g r a f o visava, s e m dúvida, o padre F e i j ó e os
outros ' n o i v o s ' p e r t e n c e n t e s ao c l e r o b r a s i l e i r o , s e g u n d o a p i t o r e s c a expressão de d o m
R o m u a l d o A n t ô n i o de S e i x a s . 3 2

A p o s i ç ã o u l t r a - r e g a l i s t a e x p r e s s a p o r esse g r u p o d e r e f o r m a d o r e s só p o d i a trazer
p r e o c u p a ç õ e s p a r a u m a classe p o l í t i c a d o m i n a d a pelos c o n s e r v a d o r e s e i n i m i g a de
tudo o q u e p u d e s s e levar a e x c e s s o s . M a s o u t r o s a c o n t e c i m e n t o s c o n t r i b u í r a m para
preservar o s i l ê n c i o e m t o r n o d o p r o j e t o de c o n s t i t u i ç ã o eclesiástica. As discussões
sobre a s i t u a ç ã o m a t e r i a l d o c l e r o e m 1 8 3 1 , p o r e x e m p l o , resultaram n a m a n u t e n ç ã o
do staiu quo: os s a c e r d o t e s c o n t i n u a r a m a ser f u n c i o n á r i o s d o E s t a d o , e o p r o j e t o de
uma caixa eclesiástica n ã o foi v o t a d o . 3 3
O s e g u n d o a c o n t e c i m e n t o foi o c o n f l i t o e n t r e
0 Estado b r a s i l e i r o c a S a n t a S é e m t o r n o d a ' i n d i c a ç ã o ' , e m 1 8 3 3 , do padre A n t ô n i o
M a r i a de M o i r a para o b i s p a d o d o R i o de J a n e i r o . R e c u s a d o pela S a n t a S é , o padre
M o i r a foi o b r i g a d o a r e n u n c i a r c m 1 8 3 8 . Esse c o n f l i t o c o n t r i b u i u para afrouxar os
laços e n t r e a h i e r a r q u i a da Igreja C a t ó l i c a , q u e professava um regalismo moderado, e
o E s t a d o . D e f e n s o r e s da S a n t a S é , os bispos viam c o m desconfiança tudo o que
pudesse c o n t r i b u i r para a u m e n t a r a ingerência d o E s t a d o nos negócios religiosos. O s
reformadores paulistas, ao c o n t r á r i o , contavam c o m o Estado para apoiar suas propostas.

E m 1 8 3 7 , o g o v e r n o d a P r o v í n c i a de S ã o Paulo, c o m o acordo do bispo diocesano,


aprovou o r e g u l a m e n t o c o n c e r n e n t e ao capítulo-catedral, seguindo as normas regaiistas
mais estritas, q u e n ã o levavam c m c o n t a as propostas de estabelecimento de um
presbyterium, em c o n f o r m i d a d e ao que determinavam a linha tradicional do C o n c í l i o
BAHIA, SÉCULO X I X
314

de T r e n t o e as exigências d o d i r e i t o . 3 4
O s i l ê n c i o q u e e n v o l v e u o p r o j e t o paulista de
r e f o r m a t i n h a relação c o m o e s f o r ç o dos bispos locais para c o n d u z i r o c a t o l i c i s m o
brasileiro a u m t i p o de regime e de pastoral p r ó x i m o à q u e l e q u e se desenvolvia na
E u r o p a à m e s m a é p o c a . A tarefa foi facilitada pela s o l u ç ã o de o u t r o s p r o b l e m a s rela-
tivos à Igreja, c o m o o q u e dizia r e s p e i t o à e x t i n ç ã o das o r d e n s religiosas, de que
trataremos a d i a n t e .
O b s e r v a d o c o m d i s t a n c i a m e n t o , o p e r í o d o d e 1 8 2 6 - 1 8 4 0 m o s t r a - s e crucial para
a Igreja — c o m o o foi, aliás, para o E s t a d o . S e m d ú v i d a , a r e n o v a ç ã o d o Padroado
m a n t e v e aquela n u m a p o s i ç ã o s u b a l t e r n a e m r e l a ç ã o a e s t e . O s b i s p o s , m e n o s isolados
nas cadeiras p a r l a m e n t a r e s q u e a n t e s , t o m a r a m c o n s c i ê n c i a d o p e s o q u e t i n h a m na
sociedade e n o E s t a d o , assim c o m o d o papel q u e p o d i a m d e s e m p e n h a r j u n t o a um
clero d i v i d i d o . F o i u m p e r í o d o difícil p a r a a a l t a h i e r a r q u i a , q u e p e r c e b e u c o m o a
politização do c l e r o criava f a c ç õ e s n o s e i o d a I g r e j a e a e n f r a q u e c i a , a b r i n d o a porta a
n u m e r o s a s c r í t i c a s , h a b i l m e n t e utilizadas p e l o E s t a d o p a r a r e d u z i r a a u t o n o m i a da
i n s t i t u i ç ã o . U m n o v o s o p r o r e n o v a d o r i m p ô s , p o u c o a p o u c o , a idéia de u m a reforma
c o n t r á r i a à q u e era p r e c o n i z a d a p e l o s a d e p t o s d e u m a I g r e j a c a t ó l i c a nacional,
desvinculada de R o m a , s e m as o r d e n s religiosas e c o m u m c l e r o s e c u l a r l i b e r a d o do
celibato.
E m t o r n o de d o m R o m u a l d o de S o u s a C o e l h o , b i s p o d o P a r á e n t r e 1 8 1 9 e 1 8 4 1 ,
f o r m o u - s e u m p r i m e i r o n ú c l e o , d e q u e f e z p a r t e d o m R o m u a l d o A n t ô n i o de Seixas, "
f u t u r o a r c e b i s p o da B a h i a . C o n s e r v a d o r e s e h o s t i s à I n d e p e n d ê n c i a d o Brasil, esses
bispos, aos q u a i s v e i o j u n t a r - s e m a i s t a r d e d o m M a r c o s d e S o u s a , b i s p o d o M a r a n h ã o
( 1 8 2 7 - 1 8 4 2 ) , f o r a m os p r i m e i r o s a s u s t e n t a r o p r i n c í p i o de u m a r e f o r m a i n t e r n a da
Igreja e a a p r e s e n t a r o s m e i o s p a r a realizá-la. M a i s t a r d e , j u n t a r a m - s e a eles d o m
A n t ô n i o Ferreira V i ç o s o , b i s p o de M a r i a n a ( 1 8 4 4 - 1 8 7 6 ) , e d o m A n t ô n i o J o a q u i m de
M e l o , b i s p o de S ã o P a u l o ( 1 8 5 1 - 1 8 6 1 ) . T r i d e n t i n o e m sua e s s ê n c i a , o p r o g r a m a de
reformas l a n ç a d o p o r eles se r e s u m i a a três p o n t o s : fazer d o c l e r o brasileiro um corpo
instruído e sadio — o e x e r c í c i o d e sua m i s s ã o e s p i r i t u a l d e v i a s u p l a n t a r suas atividades
políticas — , trabalhar pela i n s t r u ç ã o religiosa d o p o v o através da c a t e q u e s e e assegurar
a i n d e p e n d ê n c i a da I g r e j a e m relação a o p o d e r t e m p o r a l . E s s e p r o g r a m a , q u e revelou
os novos c o m p o r t a m e n t o s da h i e r a r q u i a c a t ó l i c a , era i n é d i t o n o Brasil: p o u c o a pouco,
os bispos reformadores i m p u s e r a m u m a i m a g e m m a i s sacralizada d o c l e r o , sem deixar
de exortá-lo a p e r m a n e c e r a t e n t o aos d e b a t e s p o l í t i c o s . P o r o u t r o lado, a hierarquia e o
clero, ao t o m a r e m c m mãos os d e s t i n o s da Igreja, d i m i n u í r a m a i m p o r t â n c i a das
irmandades religiosas na f o r m a ç ã o da religiosidade p o p u l a r . F i n a l m e n t e , à medida que
se passou a apelar cada vez mais para a a u t o r i d a d e de R o m a , as relações entre Igreja e
Estado brasileiros t o r n a r a m - s e c o n f l i t a n t e s , d e m o n s t r a n d o q u e o episcopado estava
determinado a r o m p e r c o m o passado. U m e x e m p l o dessa e v o l u ç ã o pode ser percebido
nas relações da Igreja c o m a m a ç o n a r i a , q u e tinha n u m e r o s o s m e m b r o s na alta admi-
nistração do Estado. As duas instituições se haviam unido diante dos p r o b l e m a s políti-
cos enfrentados pelo país e n t r e 1 8 2 2 e 1 8 4 0 . M a s a nova c o n d e n a ç ã o , p o r R o m a , das
LURO V - A IGREJA
315

lojas m a ç ó n i c a s levou a I g r e j a C a t ó l i c a do Brasil a u m a hostilidade que d e s e m p e n h o u


papel d e t e r m i n a n t e q u a n d o d a Q u e s t ã o dos B i s p o s , em 1 8 7 2 .

O EPISCOPADO BRASILEIRO E O ESTADO:

DA A P A R E N T E S U B M I S S Ã O À R E V O L T A A B E R T A (1840-1890)

Essa s e g u n d a fase foi m a r c a d a pela ' r o m a n i z a ç ã o ' d a Igreja, q u e se t o r n o u menos


n a c i o n a l . E s b o ç o u - s e e n t ã o u m a m p l o m o v i m e n t o e m favor da a u t o n o m i a e m relação
ao E s t a d o , a f i r m a n d o - s e q u e os b r a s i l e i r o s e r a m , a n t e s de m a i s n a d a , " c a t ó l i c o s r o m a -
n o s " e n ã o " c a t ó l i c o s d o C o n s e l h o d o E s t a d o " . A I g r e j a se t o r n o u mais intransigente
e m m a t é r i a d e o r t o d o x i a . A p o s t u r a d e ' d o n a da v e r d a d e ' foi reforçada depois da
proclamação, e m 1 8 7 0 , d o d o g m a da infalibilidade d o papa, defendido ardorosamente
pelo e p i s c o p a d o b r a s i l e i r o . E s t e t a m b é m s u s t e n t a v a q u e a verdade era s e m p r e católica,
e o e r r o , s e m p r e l i b e r a l e p r o t e s t a n t e . Essas p o s i ç õ e s radicais fizeram da Igreja u m a
i n s t i t u i ç ã o m i l i t a n t e . E n t r e o s b i s p o s , p r e d o m i n a v a a idéia de u m a vasta c o n s p i r a ç ã o
dirigida c o n t r a a I g r e j a , q u e d e v i a ser c o m b a t i d a a q u a l q u e r p r e ç o . É claro q u e tal
c o m b a t e era e m i n e n t e m e n t e c o n s e r v a d o r , d i r i g i d o c o n t r a as idéias liberais, "novidades
nocivas d o s é c u l o " . C o m o d o n a d a v e r d a d e , a I g r e j a devia c o m b a t e r o " m u n d o de
e r r o s " , q u e e n c o n t r a v a e c o n o g o v e r n o e era e s t i m u l a d o p o r ele. Isso exigia a u t o n o m i a .
D o m V i t a l , b i s p o d e O l i n d a , u m dos p r i n c i p a i s p e r s o n a g e n s d a Q u e s t ã o Religiosa,
p r o c l a m a v a c a t e g o r i c a m e n t e : " O s p r í n c i p e s e os m o n a r c a s são ovelhas de J e s u s C r i s t o
e n ã o seus p a s t o r e s ; s ã o filhos d a S a n t a M a d r e I g r e j a e n ã o seus pais; são súditos e n ã o
prelados." 3 5
E s s a a s p i r a ç ã o p o r a u t o n o m i a e o d e s e j o de a f i r m a r a universalidade da
Igreja C a t ó l i c a c o n d u z i u o e p i s c o p a d o a u m a u n i ã o m a i s í n t i m a c o m R o m a , o c e n t r o
da o r t o d o x i a .

Em 1 8 7 0 , 5 7 brasileiros (dezoito de P e r n a m b u c o , oito do Ceará, oito do Rio


G r a n d e d o N o r t e , s e t e d a B a h i a , u m d a P a r a í b a , u m de Sergipe, doze do R i o G r a n d e
d o Sul e d o i s d e S a n t a C a t a r i n a ) j á e s t u d a v a m n o S e m i n á r i o L a t i n o - A m e r i c a n o de
Roma. 3 6
A a ç ã o de P i o I X t a m b é m i n f l u i u m u i t o nessa r e a p r o x i m a ç ã o ; para estreitaras
relações, ele c h a m o u os b i s p o s a R o m a e m três ocasiões: a p r o c l a m a ç ã o do d o g m a da
Imaculada C o n c e i ç ã o ( 1 8 5 4 ) , a c e l e b r a ç ã o d o X I X C e n t e n á r i o da M o r t e dos Apósto-
los Pedro e Paulo ( 1 8 6 7 ) e a r e u n i ã o d o C o n c í l i o d o V a t i c a n o ( 1 8 6 9 - 1 8 7 0 ) . Finalmente,
a invasão dos E s t a d o s p o n t i f i c a i s e sua perda pela S a n t a S é despertaram u m m o v i m e n -
to de solidariedade, inclusive c o m coletas nas igrejas para ajudar o papa, apresentado
c o m o v í t i m a de injustiças. A r o m a n i z a ç ã o da Igreja p r o v o c o u maior hostilidade dos
meios liberais, q u e n ã o viam c o m b o n s olhos essa a p r o x i m a ç ã o c o m a Santa S é .
T e n h o q u e abrir parêntesis a q u i , para esclarecer qual a situação da Igreja por
volta da d é c a d a de 1 8 7 0 , qual sua influência no c o n j u n t o da população e por que
essa Igreja suscitou nos m e i o s liberais uma hostilidade que a c o n d u z m a at.tudes
politicamente militantes.
BAHIA, SÉCULO X I X
316

UMA IGREJA S O B TUTELA

Por volta de 1 8 7 0 , a I g r e j a C a t ó l i c a brasileira t i n h a u m a a r q u i d i o c e s e e o n z e dioceses.


D u r a n t e o S e g u n d o I m p é r i o ( 1 8 4 0 - 1 8 8 9 ) , n u m a é p o c a e m q u e o país j á t i n h a 1 4 , 3
m i l h õ e s de h a b i t a n t e s , s ó duas d i o c e s e s f o r a m c r i a d a s , a de D i a m a n t i n a ( M G ) e a do
C e a r á . A d o m A n t ô n i o de M a c e d o C o s t a , b i s p o d o P a r á , q u e p e d i u a divisão de sua
i m e n s a diocese, d o m P e d r o I I r e s p o n d e u q u e ele p r ó p r i o a d m i n i s t r a v a u m território
maior que toda a A m a z ô n i a ! 3 7

E m c o m p e n s a ç ã o , n i n g u é m p o d i a acusar o i m p e r a d o r de e s c o l h e r bispos incompe-


tentes, j á q u e a S a n t a S é a c e i t o u s e m restrições t o d o s os i n d i c a d o s . C o m o v i m o s , entre
esses bispos reinava u m espírito r e f o r m i s t a , q u e a b r a n g i a t o d a s as dioceses, sobretudo
c o m a c o l a b o r a ç ã o dos c a p u c h i n h o s , dos lazaristas e d e m u i t a s c o n g r e g a ç õ e s femininas
que se estabeleceram n o Brasil a partir de m e a d o s d o s é c u l o X I X . Esse v e n t o reformista
foi, e n t r e t a n t o , f o n t e de m u i t a s tensões e n t r e u m a I g r e j a q u e se dizia herdeira distante do
C o n c í l i o de T r e n t o e u m g o v e r n o q u e , a n t e s de m a i s n a d a , q u e r i a ser visto c o m o liberal.

As r e f o r m a s a l m e j a d a s pela h i e r a r q u i a e n v o l v i a m s o b r e t u d o o c l e r o , m a s se torna-
v a m difíceis p o r causa d a d e p e n d ê n c i a d a I g r e j a . A p e n a s o E s t a d o estava a u t o r i z a d o a
n o m e a r padres e criar n o v a s p a r ó q u i a s . C a b i a a c a d a b i s p o a p r e s e n t a r candidatos,
g e r a l m e n t e s e l e c i o n a d o s através de e x a m e s , a p r e s e n t a d o s e m g r u p o s de três e listados
por o r d e m de p r e f e r ê n c i a . A c o m p a n h a d a d o curriculum vitae Aos c a n d i d a t o s e de uma
c a r t a do b i s p o j u s t i f i c a n d o a e s c o l h a , a lista e r a e n v i a d a ao i m p e r a d o r , q u e p o r vezes
n ã o levava e m c o n t a a i n d i c a ç ã o e n o m e a v a , p o r e x e m p l o , o ú l t i m o c o l o c a d o ou
mesmo alguém que não fora cogitado, o q u e i n c o m o d a v a os prelados.

C o n s c i e n t e s das d i f i c u l d a d e s d e c o r r e n t e s dessa d e p e n d ê n c i a , o s bispos procura-


ram adquirir, pelo m e n o s , u m a a u t o n o m i a e s p i r i t u a l q u e l h e s p e r m i t i s s e assumir, em
relação ao c l e r o , u m status superior àquele o c u p a d o pela autoridade temporal. Mas,
sem desencadear u m a o p o s i ç ã o f r o n t a l a seus b i s p o s , o c l e r o f r e q ü e n t e m e n t e adotou
atitudes i n c o m p a t í v e i s c o m o n o v o e s p í r i t o q u e a I g r e j a t e n t a v a i m p o r .
C o m novos d e c r e t o s , o E s t a d o d o m i n a v a c a d a vez m a i s a I g r e j a : e m m a i o d e 1 8 5 5 ,
o governo r e f o r ç o u sua p o s t u r a c o n t r a as o r d e n s regulares, p u b l i c a n d o u m a circular
que suspendeu o f u n c i o n a m e n t o dos n o v i c i a d o s ; e m p r i n c í p i o provisória, a medida
vigorou durante dezenas de a n o s , c o m o se tivesse p o r o b j e t i v o e x t i n g u i r as ordens.
U m a portaria publicada c m o u t u b r o de 1859 regulamentou a constituição do
p a t r i m ô n i o q u e q u a l q u e r c a n d i d a t o a o s a c e r d ó c i o devia ter para ser o r d e n a d o : daí em
diante, esse p a t r i m ô n i o passou ser d e s c o n t a d o da c ô n g r u a recebida pelo padre (e pago
pelo E s t a d o ) . E m 1 8 6 2 , os bispos passaram t a m b é m a ter residência obrigatória,
dependendo de permissão imperial para sair de suas dioceses. E m 1 8 6 3 , a nomeação
de professores para os seminários passou a ser s u b m e t i d a à aprovação do imperador,
que desejava exercer c o n t r o l e sobre certas disciplinas.
M a s foi a lei n ° 1 . 1 9 1 , de 2 8 de m a r ç o de 1 8 5 7 , q u e p r o v o c o u os maiores
protestos: ela regia a c o m p e t ê n c i a , a interposição, o efeito e a f o r m a do j u l g a m e n t o
LIVRO V - A IGREJA
317

de recursos à C o r o a . O poder t e m p o r a l t o r n o u - s e juiz de atos eclesiásticos. O pará-


grafo 3 ° d o artigo l o declarava q u e c a b i a recurso à C o r o a sempre que houvesse vio-
lência n o t ó r i a n o e x e r c í c i o d o poder espiritual, s u s p e n d e n d o assim o direito natural
ou os c â n o n e s da Igreja C a t ó l i c a . 3 8
E m 1 8 6 6 , d o m A n t ô n i o de M a c e d o C o s t a , bispo
do Pará, r e s u m i u a s i t u a ç ã o d a Igreja: " O g o v e r n o ingere-se em tudo e quer decidir
sobre t u d o ( . . . ) . E assim vão os avisos, os decretos, as consultas dos magistrados
seculares s u b s t i t u i n d o p o u c o a p o u c o os c â n o n e s d a I g r e j a . " 3 9
A ingerência do Esta-
do na vida espiritual da I g r e j a s ó p o d i a p r o v o c a r u n i ã o e protestos por parte dos
prelados: " A c a t e q u e s e , a r e s i d ê n c i a dos p á r o c o s , o noviciado dos c o n v e n t o s , a admi-
nistração das igrejas deles, os e s t a t u t o s das catedrais e dos seminários, a organização
que se lhe deve dar e a t é os n o m e s q u e lhes c o m p e t e m , as c o n d i ç õ e s que se devem
exigir para a a d m i s s ã o às o r d e n s — t u d o isto o G o v e r n o julga ser da sua alçada",
escreveu em 1 8 6 3 d o m M a c e d o C o s t a , c o n c l u i n d o : " E s c r a v i d ã o , e escravidão igno-
miniosa, é o q u e q u e r e i s i m p o r , c o m vossas teorias de E s t a d o pagão, de Estado sem
D e u s , de E s t a d o f o n t e e c r i t é r i o d e t o d o s os direitos, a b s o r v e n d o o cidadão todo
inteiro ( . . . ) . E s c r a v i d ã o d u r a e i g n o m i n i o s a é esse E s t a d o civil de m i t r a e báculo,
governando a I g r e j a . . . " 4 0

PRÁTICAS RELIGIOSAS E POLÍTICAS DA ELITE LEIGA

A oposição e n t r e I g r e j a e E s t a d o foi a l i m e n t a d a pelas posições doutrinárias da elite


leiga do país. D e m o d o geral, p o v o e elites n ã o eram católicos n o sentido estrito da
doutrina o r t o d o x a . O 'país legal' se declarava c a t ó l i c o , m a s o 'país real' vivia à margem
da fé r o m a n a . M a j o r i t a r i a m e n t e i g n o r a n t e e iletrado, o p o v o vivia c o m uma religião
que m a n t i n h a relação q u a s e sensível c o m D e u s e os santos, materializados em ima-
gens, ramos e e s c a p u l á r i o s . A s pessoas se r e c o m e n d a v a m aos santos de sua devoção,
único recurso d i s p o n í v e l d i a n t e das dificuldades e opressões de que eram vítimas no
cotidiano. Atraídas p o r m i s t é r i o s , apreciavam estórias de milagres, principalmente
quando estavam ligadas a c u r a s , o q u e , aliás, a i n d a h o j e é atestado pelos milhares de
cx-votos q u e o r n a m as 'salas dos m i l a g r e s ' de m u i t o s santuários. O s populares parti-
cipavam p o u c o dos s a c r a m e n t o s . C o n f i s s õ e s e c o m u n h õ e s eram raras fora do ciclo
pascoal. O b a t i s m o servia m a i s para inserir a criança na sociedade civil d o que c o m o
sinal de que havia n a s c i d o u m a nova criatura de D e u s . " A religião do povo era mais
uma religião de paixão q u e de ressurreição. Ela se manifestava melhor numa procissão
do S e n h o r M o r t o q u e n o T r i u n f o E u c a r í s t i c o . " 41

O papel d o padre era relativamente p o u c o importante, já que a religiosidade


popular se apoiava s o b r e t u d o c m orientações leigas (rezadeiras de terços, benzedores
e t c ) ou em i m a g e n s milagrosas e outros o b j e t o s protetores (medalhas, rosarios,
escapulários, fitinhas etc.) munidos de poder suficiente para resolver todas as s.tuaçoes :

Para o povo, a Igreja era " a propriedade dos padres"; ela era vista mais c o m o expressão
318 BAHIA, SÉCULO X I X

da lei d o que c o m o i n t e r m e d i á r i a na relação pessoal c o m D e u s . N a s palavras do padre


J ú l i o M a r i a , u m dos mais i m p o r t a n t e s teólogos brasileiros d o fim do século X I X , o
c a t o l i c i s m o estava reduzido a " c e r i m ô n i a s q u e n ã o e d i f i c a m , a devoções que não
apuram a espiritualidade, a n o v e n ó r i o s q u e n ã o revelam fervor, a procissões que ape-
nas divertem, a festas q u e n ã o a p r o v e i t a m n e m d ã o glória a D e u s . " 4 3

N o m e i o desse p o v o i g n o r a n t e e iletrado, c u j a religiosidade inquietava os meios


clericais, destacava-se u m p e q u e n o n ú m e r o de pessoas cultas e instruídas. U m a boa
m a i o r i a dessa elite era c a t ó l i c a p o r h á b i t o , p o r t r a d i ç ã o e p o r c o n v e n i ê n c i a s o c i a l . 44

U m a m i n o r i a í n f i m a t i n h a acesso à e s p i r i t u a l i d a d e d a I g r e j a e seguia fielmente a


o r i e n t a ç ã o dos prelados, t o r n a n d o - s e p a r a eles, n o s m o m e n t o s difíceis, u m apoio
apreciado. 45
E s s a m i n o r i a c o m p a r t i l h a v a os ideais u l t r a m o n t a n o s d o n e o c a t o l i c i s m o ,
que afirmava a s u p r e m a c i a papal e se insurgia c o n t r a a idéia de u m E s t a d o sem
religião, isto é, leigo e n e u t r o . 4 6

N o o u t r o g r u p o , duas t e n d ê n c i a s se d e l i n e a v a m : u m a , regalista, p r e d o m i n a n t e na
primeira m e t a d e d o século X I X , pregava a u n i ã o dos p o d e r e s espirituais e temporais,
c o n c e d e n d o de fato s u p r e m a c i a ao E s t a d o s o b r e a I g r e j a ; o u t r a , ultraliberal, tentava
o b t e r d o E s t a d o u m v e r d a d e i r o l i b e r a l i s m o r e l i g i o s o . E s t a t e n d ê n c i a era formada por
liberais, r e p u b l i c a n o s e positivistas. E s t e s , a d e p t o s d a R e p ú b l i c a , c o n s i d e r a v a m o Es-
tado c o m o o p o n t o c u l m i n a n t e d a s o c i e d a d e e n ã o p o d i a m a c e i t a r a p r o p o s t a de uma
Igreja q u e se c o l o c a v a a c i m a das i n s t i t u i ç õ e s seculares. A a t i t u d e dos positivistas,
p o r é m , foi m u i t o m e n o s radical e m u i t o m a i s a m b í g u a q u e a dos liberais. N a prática,
os positivistas a d o t a r a m c o m o m i s s ã o s u b s t i t u i r a v e l h a fé d a p o p u l a ç ã o católica por
u m novo c r e d o , u m a religião c i e n t í f i c a e h u m a n a . E n q u a n t o os liberais lutavam aber-
t a m e n t e c o n t r a a i m a g e m u l t r a m o n t a n a d a I g r e j a , o s positivistas se l a n ç a r a m numa
política racionalista, baseada n o s e n s i n a m e n t o s d e A u g u s t e C o m t e .

E m sua luta c o n t r a os liberais, os positivistas se a p o i a v a m e m alguns pontos


essenciais da d o u t r i n a d a Igreja, c o m o d i r e i t o d e p r o p r i e d a d e , p r o t e ç ã o à família e
moralidade pública. Eles e s t i m u l a v a m a p a r t i c i p a ç ã o d a I g r e j a n a vida pública, mas
c o m a c o n d i ç ã o de q u e ela e o E s t a d o se separassem. A c e i t a v a m u m a vasta participação
da Igreja na vida social, mas c o n t a v a m tirar p r o v e i t o d a tradição católica do povo
brasileiro para implantar sem m u i t a d i f i c u l d a d e seu p r ó p r i o p r o j e t o de u m a sociedade
leiga, c o m um governo a u t o r i t á r i o e racional. E n f i m , os positivistas seguiam uma
estratégia na qual a Igreja servia de i n s t r u m e n t o para sua p e n e t r a ç ã o nas camadas
populares, razão pela qual evitavam q u a l q u e r tipo de c o n f l i t o c o m e l a . 4 7

Houve c o n f r o n t o s o b r e t u d o c o m os ultraliberais» q u e d e f e n d i a m , em relação à


Igreja, uma política de E s t a d o ainda mais t e m i d a e execrada pelos católicos do que a
inspirada pelos princípios c prática regalistas. Pregavam a laicização do Estado e a
secularização das instituições públicas e privadas. N o plano dos princípios, proclama-
vam a neutralidade do Estado em matéria de religião e, c o m o conseqüência lógica, a
separação das duas instituições. Debatidas na imprensa, essas idéias foram objeto de
vários projetos apresentados nas casas legislativas. A maçonaria, por sua vez, tomou
LIVRO V - A IGREJA 319

parte n o c o m b a t e a favor da l i b e r d a d e religiosa e d o a f a s t a m e n t o da Igreja brasileira em


relação a R o m a e às o r d e n s religiosas estrangeiras. E n t r e elas, a C o m p a n h i a de Jesus era
especialmente v i s a d a . 4 8
T r a t a v a - s e , s o b r e t u d o , de libertar o país de q u a l q u e r i n f l u e n c i a
clerical. C u r i o s a a t i t u d e , q u a n d o se s a b e q u e , nessa é p o c a , t o d o b o m m a ç o m era, antes
de tudo, b o m c a t ó l i c o ( o u , p e l o m e n o s , pensava q u e e r a ) .
Para e x e c u t a r esse p r o j e t o , os ultraliberais lideraram u m a dupla ação: n o p l a n o
ideológico, a p o i a r a m e foram a p o i a d o s p o r c o r r e n t e s de p e n s a m e n t o hostis à filosofia
e à d o u t r i n a cristãs, c o m o o p o s i t i v i s m o , o m a t e r i a l i s m o h a e c k e l i a n o , o n a t u r a l i s m o
criticista, o d a r w i n i s m o e o e v o l u c i o n i s m o s p e n c e r i a n o , 4 9
cujas teorias eram estudadas
nas faculdades de d i r e i t o e e m o u t r a s e s c o l a s superiores d o país, além de a b e r t a m e n t e
discutidas e m i n ú m e r o s p a n f l e t o s e n a i m p r e n s a . Q u a l era a a t i t u d e da Igreja diante
dessa agitação e s p i r i t u a l , q u e aliás se i n t e g r a v a p e r f e i t a m e n t e ao processo de m o d e r n i -
zação do E s t a d o b r a s i l e i r o , v i s a n d o à r e f o r m u l a ç ã o dos e s q u e m a s e m o d e l o s de c o m -
p o r t a m e n t o e à m u d a n ç a de seus valores m o r a i s ? 5 0

A l é m de c o n d e n a r esses s i s t e m a s filosóficos e as c o r r e n t e s políticas q u e os apoia-


vam, ela se a p r e s e n t a v a c o m o d e f e n s o r a da a u t o r i d a d e , d i a n t e de u m a liberdade exces-
siva; do statu quOy d i a n t e d a b u s c a c a ó t i c a d e u m a n o v a o r d e m ; da t r a d i ç ã o , diante de
inovações s e m p r e p e r i g o s a s . 51
E r a u m a a t i t u d e q u e levava T a v a r e s Bastos a incitar a
que todos se l e v a n t a s s e m p a r a c o m b a t e r " o i n i m i g o invisível e c a l a d o q u e nos persegue
nas trevas. E l e se c h a m a e s p í r i t o c l e r i c a l , isto é, c a d á v e r d o passado. S o m o s o espírito
liberal, isto é, os a r t e s ã o s d o f u t u r o . "

A estratégia ultraliberal l a n ç a v a m ã o de t o d o s os m e i o s para a t i n g i r o ' p ú b l i c o


esclarecido'. S u a s idéias e r a m d i f u n d i d a s p o r artigos de j o r n a i s , pela p u b l i c a ç ã o de
livros e, s o b r e t u d o , pela d i s c u s s ã o e m c l u b e s , salões, escolas e p a r l a m e n t o s . A isso,
acrescentavam-se as c a m p a n h a s lideradas p e l o b a i a n o R u i B a r b o s a e p o r T i t o F r a n c o
de Almeida, s e m falar n a q u e l a s , agressivas, de u m S a l d a n h a M a r i n h o o u de u m Tavares
Bastos. 53
E m 1 8 7 4 , u m a representação apresentada à Assembléia Geral pelos ultraliberais
Tavares B a s t o s , Q u i n t i n o B o c a i ú v a , V i e i r a F e r r e i r a , F J . de L e m o s e J . do C o u t o
C o u t i n h o resumia as p r e t e n s õ e s dessa c o r r e n t e : inteira liberdade e igualdade para
todos os c u l t o s ; a b o l i ç ã o da Igreja oficial e sua e m a n c i p a ç ã o do E s t a d o , c o m supressão
de seus privilégios; e n s i n o p ú b l i c o s e p a r a d o do e n s i n o religioso; instituição do casa-
m e n t o civil o b r i g a t ó r i o ; registro civil dos n a s c i m e n t o s , c a s a m e n t o s c ó b i t o s ; seculari-
zação dos c e m i t é r i o s .
Esse c o n j u n t o d c reivindicações era r e f o r ç a d o p o r c o m p o r t a m e n t o s julgados revo-
lucionários pelos u l t r a m o n t a n o s , p o r q u e visavam a secularizar a política e, por esta via,
"anular a influencia política do c l e r o " . 5 4
A crescente laicização do E s t a d o , entretanto,
não decorria u n i c a m e n t e de q u e os liberais desejassem impor seus princípios. Dois
outros fatores pesavam m u i t o nessa o r i e n t a ç ã o : a imigração de estrangeiros não c a t ó -
licos e os p r o b l e m a s escolares. .
P o r volta da década de 1 8 7 0 , a necessidade de m ã o - d e - o b r a era cada vez maior,
sobretudo na agricultura. F i n d a a imigração africana forçada, a E u r o p a tornou-se o
BAHIA, SÉCULO X I X
320

p r i n c i p a l f o r n e c e d o r de m ã o - d e - o b r a p a r a o B r a s i l . E n t r e o s n o v o s g r u p o s de •mi-
grantes, havia p r o t e s t a n t e s , q u e a I g r e j a v i a c o m d e s c o n f i a n ç a , p o i s s u a p r e s e n ç a a m e -
açava r o m p e r a u n i d a d e religiosa d o p a í s . E m 1 8 6 9 , o e d i t o r i a l i s t a d o j o r n a l c a t ó l i c o
O Apóstolo escrevia: " A P r o v í n c i a d o R i o de J a n e i r o t e m g r a n d e n e c e s s i d a d e de ser
povoada. Necessita u m a população laboriosa e útil, mas t a m b é m h o m o g ê n e a quanto
a p r i n c í p i o s p o l í t i c o s e r e l i g i o s o s . E s t a h o m o g e n e i d a d e d e p r i n c í p i o s d e v e ser a base
da c o l o n i z a ç ã o e a p r e o c u p a ç ã o m a i o r d o l e g i s l a d o r . T r a z e r c o l o n o s q u e s ã o c o n t r á -
rios às nossas c r e n ç a s ( . . . ) é d e s t r u i r o b e m q u e se d e s e j a f a z e r p e l o m a l q u e , i n e v i t a -
velmente, causarão os princípios h e t e r o g ê n e o s dos c o l o n o s ; é i m p l a n t a r , senão au-
mentar, a anarquia na qual v i v e m o s . " 5 5

D o p o n t o de vista legal, o s g r u p o s d e i m i g r a n t e s n ã o c a t ó l i c o s i n s t a l a d o s n o Brasil


se e n c o n t r a v a m n u m a s i t u a ç ã o m u i t o e m b a r a ç o s a . Em p r i m e i r o l u g a r , s ó o casa-
m e n t o c a t ó l i c o era o f i c i a l m e n t e r e c o n h e c i d o , e s ó ele c o n f e r i a d i r e i t o s . C o m o o re-
gistro das c e r t i d õ e s d e b a t i s m o , c a s a m e n t o e ó b i t o e s t a v a n a s m ã o s d a I g r e j a , o casa-
m e n t o de n ã o c a t ó l i c o s n ã o era r e c o n h e c i d o e seus filhos, n ã o p o d e n d o ser registrados,
n ã o t i n h a m e x i s t ê n c i a legal. A l é m d i s s o , q u a l q u e r c a n d i d a t o a u m c a r g o n o E s t a d o , o u
até a u m lugar nas escolas s u p e r i o r e s , e r a o b r i g a d o a p r e s t a r j u r a m e n t o d e fé c a t ó l i c a .
A lei eleitoral t a m b é m i m p e d i a , e m t o d o s o s n í v e i s , a e l e i ç ã o d e n ã o c a t ó l i c o s . Estes
n ã o eram c i d a d ã o s e m t o d a a a c e p ç ã o d o t e r m o . S ó e m 1 8 7 9 o s f u n c i o n á r i o s do
Estado foram dispensados do ' j u r a m e n t o c a t ó l i c o ' e de q u a l q u e r o u t r o j u r a m e n t o
religioso, e só a p a r t i r de 1 8 8 1 a lei e l e i t o r a l ( L e i S a r a i v a ) p e r m i t i u a e l e i ç ã o de n ã o
católicos. 5 6

O E s t a d o se e s f o r ç o u p o r laicizar o e n s í n o a p a r t i r d a d é c a d a d e 1 8 3 0 , q u a n d o
escolas primárias c o m e ç a r a m a ser c o n f i a d a s a m e s t r e s leigos e f o r a m c r i a d a s escolas
n o r m a i s destinadas à f o r m a ç ã o d e p r o f e s s o r e s . M a s o e n s i n o p e r m a n e c e u , de m o d o
geral, nas m ã o s d a I g r e j a . N u m e r o s a s c o n g r e g a ç õ e s r e l i g i o s a s e s t r a n g e i r a s abriram
e s t a b e l e c i m e n t o s escolares, e m u i t o s p a r t i c u l a r e s l e i g o s q u e e n t r a v a m nesse r a m o eram
p r ó x i m o s da Igreja. M e s m o nas e s c o l a s m a n t i d a s p e l o E s t a d o , o e n s i n o religioso era
obrigatório e t ã o i m p o r t a n t e q u a n t o o a p r e n d i z a d o d o a l f a b e t o .
N a década de 1 8 6 0 o m o v i m e n t o e m f a v o r d a l i b e r d a d e d e e n s i n o c r e s c e u e n t r e os
liberais, favoráveis à m u l t i p l i c a ç ã o das escolas privadas e à s u p r e s s ã o d o e n s i n o re-
ligioso em todos os e s t a b e l e c i m e n t o s escolares. N o q u e t o c a à s u p r e s s ã o d o e n s i n o
religioso, a vitória dos ultraliberais foi l i m i t a d a : o b t i v e r a m a p e n a s a d i s p e n s a das aulas
de instrução religiosa para os a l u n o s n ã o c a t ó l i c o s . 5 7
P a r a a I g r e j a , a l i b e r d a d e de
ensino trazia dois grandes perigos q u e d e v i a m ser evitados a t o d o c u s t o : a a b e r t u r a de
escolas e colégios protestantes c o fim d o e n s i n o religioso, q u e d e s e m p e n h a v a i m p o r t a n t e
papel n o programa de reformas d e s e j a d o ; s u p r i m i - l o era d e s f e c h a r u m d u r o golpe
numa longa tradição c privar a Igreja de um p o d e r o s o i n s t r u m e n t o de i n f l u ê n c i a .
As reivindicações apresentadas pelos ultraliberais levavam a u m d e s f e c h o l ó g i c o e
evitável: a separação entre Igreja e E s t a d o . Nesse c o n f r o n t o e n t r e u l t r a m o n t a n o s e
ultraliberais, qual foi a atitude do Estado?
UVRO V - A IGREJA 321

Antes da explosão da Q u e s t ã o dos Bispos em 1 8 7 2 , o Estado vetou o b s t i n a d a m e n -


te codos os p r o j e t o s a p r e s e n t a d o s pelos ultraliberais. O imperador considerava a sepa-
ração uma c a l a m i d a d e que devia ser evitada a qualquer c u s t o ; só o statu quo podia
garantir a paz e a o r d e m s o c i a l . 5 8
S o b r e esse p o n t o a atitude do Estado c o i n c i d i u c o m a
da Igreja, hostil a q u a l q u e r s e p a r a ç ã o : hierarquia e leigos católicos lutavam pelo fim da
tutela do Estado s o b r e a Igreja, mas d e f e n d i a m o p r i n c í p i o de u n i ã o entre as duas
instituições. A Igreja, aliás, s e m p r e a p o i o u essa posição c o m firmeza (depois, ela afir-
mou q u e a s e p a r a ç ã o toi i m p o s t a pelo p o d e r t e m p o r a l ) . E m sua pastoral coletiva de
1 8 9 0 , q u a n d o era i m i n e n t e a s e p a r a ç ã o , os b i s p o s brasileiros d e f e n d e r a m que a inde-
pendência da Igreja d i a n t e d o E s t a d o n ã o se p o d i a traduzir em separação: " E m n o m e
da ordem social, e m n o m e d a paz p ú b l i c a , em n o m e da c o n c ó r d i a e n t r e os cidadãos,
em n o m e d o s d i r e i t o s d a c o n s c i ê n c i a , n ó s , c a t ó l i c o s , r e j e i t a m o s a separação entre a
Í£re¡a e o E s t a d o ; e x i g i m o s a u n i ã o e n t r e os dois p o d e r e s . ' 5 9

A paz e n t r e a I g r e j a e E s t a d o foi possível e n q u a n t o n i n g u é m d e f e n d e u as prerroga-


tivas da p r i m e i r a f r e n t e à p r o t e ç ã o s u f o c a n t e do s e g u n d o e de suas intervenções n o
c a m p o e s p i r i t u a l . A Q u e s t ã o R e l i g i o s a , o u Q u e s t ã o dos B i s p o s , serviu para esclarecer
c o n t r a d i ç õ e s e m a l - e n t e n d i d o s q u e já e x i s t i a m e n t r e as duas i n s t i t u i ç õ e s .

QUESTÃO RELIGIOSA O U QUESTÃO DOS BISPOS

A h i s t o r i o g r a f i a t r a d i c i o n a l a p r e s e n t o u a Q u e s t ã o Religiosa c o m o u m c o n f l i t o entre
bispos brasileiros e a m a ç o n a r i a . E s t a ú l t i m a , sem dúvida, d e s e m p e n h o u i m p o r t a n t e
papel na vida p ú b l i c a d o país e nessa q u e s t ã o . 6 0
M a s h o j e a interpretação a c i m a foi
a b a n d o n a d a c m prol de u m a análise mais a m p l a e mais rica, q u e vê n o c o n f l i t o entre
Igreja e E s t a d o a e x p r e s s ã o brasileira da o p o s i ç ã o universal e n t r e liberalismo triunfante
e ultramontanismo conservador e intransigente. 61
A Q u e s t ã o Religiosa, n o e n t a n t o ,
marcou uma r u p t u r a e n t r e os d e s t i n o s d a I g r e j a C a t ó l i c a e da m o n a r q u i a n o Brasil,
pois e n f r a q u e c e u esta ú l t i m a e c o n t r i b u i u para desacreditar, até m e s m o entre os cató-
licos, a u n i ã o das duas i n s t i t u i ç õ e s . 6 2

( ) c o n f l i t o c o m e ç o u em 1 8 7 2 , q u a n d o d o m P e d r o M a r i a de Lacerda, bispo do Rio


do J a n e i r o , s u s p e n d e u o padre m a ç o m A l m e i d a M a r t i n s , q u e fora orador oficial de
urna íc.sta organizada pela loja do G r a n d e O r i e n t e d o Lavradio em c o m e m o r a ç ã o à Lei
do V e n t r e Livre, p r o m u l g a d a c m 2 8 dc s e t e m b r o de 1 8 7 1 . O homenageado fora o
Visconde dc R i o B r a n c o , presidente d o C o n s e l h o dc M i n i s t r o s , a u t o r da lei c grao-
mestre da m a ç o n a r i a brasileira. Esta reagiu ã p u n i ç ã o c o m um manifesto, publicado
cm abril dc 1 8 7 2 , d e f e n d e n d o o p r i n c í p i o de que uin m a ç o m podia s e r ' u m b o m
católico: o fato d c pertencer a u m a loja não excluía o c o m p r o m i s s o c o m a Igreja. O
manifesto afirmava q u e a suspensão d o padre expressava o espírito u l t r a m o n t a n o e
jesuíta da Igreja, disposta a se o p o r à m a ç o n a r i a . O r a , essa oposição estava bem
explícita desde o século X V I I I e vinha sendo reafirmada em uma longa série de doeu-
322 BAHIA, SÉCULO X I X

m e n t o s preparados p o r d i f e r e n t e s papas: as c o n s t i t u i ç õ e s In eminenti, de Clemente XII


( 1 7 3 8 ) , Providas, de B e n t o X I V ( 1 7 5 1 ) , Ecclesiam injesu Christo, de P i o V I I ( 1 8 2 1 ) ,
Quo graviora, de L e ã o X I I ( 1 8 2 5 ) ; a encíclica Qui pluribus e a alocução Quibus
quantisque, de P i o I X ( 1 8 4 6 ) ; a l é m das e n c í c l i c a s Noscitis et nobiscum (1849) e Quanto
conficiamur moerere ( 1 8 6 3 ) , d a a l o c u ç ã o Singulari quadam ( 1 8 5 4 ) e da constituição
Apostolicae sedis ( 1 8 6 9 ) .
A partir da s u s p e n s ã o d o p a d r e M a r t i n s , os a t a q u e s da m a ç o n a r i a à Igreja se
tornaram violentos. N u m e r o s o s artigos foram publicados na imprensa. A campanha
s i s t e m á t i c a de d i f a m a ç ã o c h e g o u a passar aos a t o s , f a z e n d o - s e c e l e b r a r u m a missa,
apesar da i n t e r d i ç ã o d o b i s p o d o m P e d r o M a r i a . A igreja ficou c h e i a de g e n t e e o
b i s p o , s e g u i n d o os c o n s e l h o s d a n u n c i a t u r a , n ã o o u s o u s u s p e n d e r o c e l e b r a n t e . 6 3

O c o m p o r t a m e n t o a r r o g a n t e d a m a ç o n a r i a e as c a m p a n h a s p a r a ridicularizar a
Igreja e sua h i e r a r q u i a levaram os b i s p o s b r a s i l e i r o s a t o m a r p o s i ç ã o . I n i c i a l m e n t e de
caráter l o c a l i z a d o , o c o n f l i t o a l c a n ç o u d i m e n s õ e s n a c i o n a i s c o m a i n t e r v e n ç ã o de dom
Vital M a r i a , 6 4
b i s p o de O l i n d a ( P E ) , e d e d o m A n t ô n i o d e M a c e d o C o s t a , 6 5
b i s p o do
Pará. Estes d o i s p r e l a d o s p a s s a r a m à c o n t r a - o f e n s i v a , e x i g i n d o q u e as i r m a n d a d e s
religiosas e de o r d e n s t e r c e i r a s d e m i t i s s e m seus m e m b r o s q u e f o s s e m m a ç o n s . As
i r m a n d a d e s r e s i s t i r a m , d e s o b e d e c e n d o a o s p r e l a d o s e o b r i g a n d o - o s a suspendê-las.
Elas apelaram e n t ã o ao i m p e r a d o r , a l e g a n d o q u e t i n h a m c a r á t e r m i s t o — e r a m , ao
m e s m o t e m p o , i n s t i t u i ç õ e s civis e religiosas — e, p o r i s s o , d e v i a m r e s p o n d e r a duas
a u t o r i d a d e s : os bispos ( e m q u e s t õ e s e s p i r i t u a i s ) e o E s t a d o ( e m q u e s t õ e s t e m p o r a i s ) .
E m seguida, l e m b r a v a m q u e o g o v e r n o b r a s i l e i r o n u n c a r a t i f i c a r a o s d o c u m e n t o s do
Vaticano que condenavam formalmente a m a ç o n a r i a . 6 6

O C o n s e l h o de E s t a d o d e l i b e r o u , às pressas, q u e o s b i s p o s t i n h a m " u s u r p a d o a
jurisdição d o p o d e r t e m p o r a l " e q u e e r a " d a c o m p e t ê n c i a e x c l u s i v a d o p o d e r civil
presidir à c o n s t i t u i ç ã o o r g â n i c a das i r m a n d a d e s " ( p e l o P a d r o a d o , c a b i a a o i m p e r a d o r
aprovar os c o m p r o m i s s o s q u e r e g i a m as c o n f r a r i a s e as o r d e n s t e r c e i r a s ) . 6 7
Ordenou,
por c o n s e q ü ê n c i a , a r e i n t e g r a ç ã o dos m a ç o n s e p r o i b i u q u a l q u e r n o v a expulsão.
A decisão d o C o n s e l h o de E s t a d o f o i i m e d i a t a m e n t e r e j e i t a d a pelos prelados.
D o m Vital M a r i a d e c l a r o u ser " m a i s i m p o r t a n t e o b e d e c e r a D e u s q u e aos h o m e n s " ,
reafirmando q u e , c m m a t é r i a religiosa, o p o d e r t e m p o r a l devia estrita o b e d i ê n c i a à
Igreja: " S c o g o v e r n o brasileiro é c a t ó l i c o , n ã o s o m e n t e ele n ã o p o d e ser o c h e f e ou o
superior da religião c a t ó l i c a , m a s é até seu s ú d i t o " . A f i r m a n d o q u e seria u m a apostasia
da fé r e c o n h e c e r a a u t o r i d a d e d o p o d e r civil na c o n d u ç ã o das q u e s t õ e s espirituais,
d o m M a c e d o C o s t a a c r e s c e n t o u : " N ã o posso s a c r i f i c a r - l h e m i n h a c o n s c i ê n c i a e a lei
de D e u s . " 6 8

A atitude altaneira c i n t r a n s i g e n t e dos prelados a c i o n o u u m a terrível e n g r e n a g e m .


O procurador da C o r o a d e n u n c i o u d o m V i t a l e m 1 0 de o u t u b r o de 1 8 7 3 , baseando
sua a r g u m e n t a ç ã o e m nada m e n o s d o q u e sete artigos d o C ó d i g o C r i m i n a l . Recusan-
do-se a r e c o n h e c e r a c o m p e t ê n c i a do g o v e r n o nessa m a t é r i a , o b i s p o foi f o r m a l m e n t e
acusado pelo S u p r e m o T r i b u n a l de J u s t i ç a q u e , e m 2 2 de d e z e m b r o , expediu um
LIVRO V - A IGREJA 323

m a n d a d o de p r i s ã o , c u m p r i d o e m R e c i f e e m 2 d e j a n e i r o de 1 8 7 4 . L e v a d o à prisão d o
Arsenal, n o R i o , d o m V i t a l o p t o u p e l o s i l ê n c i o — q u e representava o n ã o - r e c o n h e c i -
m e n t o d a a ç ã o da J u s t i ç a — a o l o n g o d o p r o c e s s o i n i c i a d o e m 1 8 de fevereiro, mas foi
d e f e n d i d o p o r d o i s g r a n d e s j u r i s t a s d a é p o c a , C â n d i d o M e n d e s de A l m e i d a e Z a c a r i a s
de G ó i s e V a s c o n c e l o s , q u e t a m b é m e r a m s e n a d o r e s , c o n h e c i d o s p o r seu g r a n d e fervor
c a t ó l i c o e p o r d e f e n d e r e m a m a i s e s t r i t a o r t o d o x i a . T e n t a r a m afastar o s aspectos
políticos q u e o p r o c e s s o c o m p o r t a v a , para ater-se e x c l u s i v a m e n t e ao t e r r e n o j u r í d i c o ,
o q u e , d o p o n t o d e vista p e n a l , p e r m i t i r i a m i n i m i z a r as ações d o b i s p o , e v i t a n d o assim
u m a c o n d e n a ç ã o . F r a c a s s a r a m . As i m p l i c a ç õ e s p o l í t i c a s e r a m o v e r d a d e i r o p a n o de
f u n d o d o c a s o . O j u l g a m e n t o d u r o u três dias e t e r m i n o u c o m a c o n d e n a ç ã o de d o m
Vital a q u a t r o a n o s de t r a b a l h o s f o r ç a d o s , p e n a c o m u t a d a d e p o i s , e m 1 2 de m a r ç o , e m
prisão s i m p l e s .

O i n d i c i a m e n t o d e d o m M a c e d o C o s t a s e g u i u o m e s m o p e r c u r s o . Preso e m 2 8 de
abril 1 8 7 4 , o b i s p o d o P a r á foi j u l g a d o e n t r e 2 7 d e j u n h o de I o
de j u l h o d o m e s m o
a n o . T a m b é m o p t o u p e l o s i l ê n c i o d u r a n t e o p r o c e s s o e foi d e f e n d i d o p o r Ferreira
V i a n n a e Z a c a r i a s d e G ó i s e V a s c o n c e l o s . A c o n d e n a ç ã o de d o m V i t a l t o r n a r a previ-
sível a s e n t e n ç a . D o m M a c e d o C o s t a teve a m e s m a p e n a d o b i s p o de O l i n d a , t a m b é m
comutada em prisão simples em 2 3 de julho do m e s m o a n o . 6 9

E n t r e o i n í c i o d o c o n t e n c i o s o e o e n c a r c e r a m e n t o dos d o i s bispos, surgiu u m


a c o n t e c i m e n t o c o n s i d e r a d o p e l a g r a n d e m a i o r i a dos h i s t o r i a d o r e s brasileiros c o m o
"um autêntico absurdo d i p l o m á t i c o " . 7 0
E m a g o s t o de 1 8 7 3 , o i m p e r a d o r e n v i o u o
Barão de P e n e d o à S a n t a S é . P o r q u ê ? Q u a l o papel dessa m i s s ã o d i p l o m á t i c a , q u a n d o
o g o v e r n o n ã o t i n h a a m í n i m a i n t e n ç ã o d e c e d e r e até apressava o a t o de acusação
formal aos b i s p o s ? O q u e b u s c a v a o e n v i a d o especial a R o m a , j á q u e os espíritos n ã o
estavam v o l t a d o s para a c o n c i l i a ç ã o ? A m i s s ã o seria o p o r t u n a ? R o q u e S p e n c e r M a c i e l
de B a r r o s p a r e c e d a r u m a r e s p o s t a clara a essas q u e s t õ e s , d i s s o c i a n d o a Q u e s t ã o dos
Bispos e o o b j e t i v o d a m i s s ã o P e n e d o : e v i t a r , n o f u t u r o , q u a l q u e r a t o de i n s u b o r d i n a -
ção dos prelados b r a s i l e i r o s . N o r a c i o c í n i o d o m o n a r c a , a u n i ã o c o m a Igreja deveria
ser m a n t i d a , apesar da p u n i ç ã o aos bispos q u e t i n h a m ferido a majestade imperial.
Eram ousadas as p r e t e n s õ e s d o g o v e r n o , q u e pedia s i m p l e s m e n t e q u e R o m a se curvas-
se à sua v o n t a d e . M a s essa p r e t e n s ã o n ã o era c o n t r a d i t ó r i a c o m a idéia q u e o governo
tinha de suas próprias prerrogativas.
Apesar das difíceis n e g o c i a ç õ e s c o m P i o I X e seu secretário de E s t a d o , o cardeal
Antonelli, a missão p a r e c e u a t i n g i r seu o b j e t i v o : e m 2 0 de d e z e m b r o de 1 8 7 3 , o Barão
de P e n e d o e n v i o u u m a carta ao m i n i s t r o das Relações Exteriores, o V i s c o n d e de
Caravelas, i n f o r m a n d o - o da decisão d o papa de admoestar o bispo de O l i n d a , exigin-
do que levantasse o i n t e r d i t o q u e atingia as igrejas de sua diocese. Isso não significa
que o papa tivesse a c a t a d o os q u e s t i o n a m e n t o s sobre a c o n d e n a ç ã o da maçonaria, nem
as alegações de q u e as seitas m a ç ó n i c a s brasileiras eram diferentes das européias. O
determinante foi sua i n f o r m a ç ã o sobre as leis que regiam as confrarias n o Brasil,
instituições mistas, s u b m e t i d a s s i m u l t a n e a m e n t e , c o m o vimos, aos poderes temporal
324 BAHIA. SÉCULO X I X

e espiritual. 71
A carta de a d m o e s t a ç ã o seria escrita pelo cardeal Antonelli e remetida a
d o m Vital por i n t e r m é d i o do n ú n c i o , m o n s e n h o r D o m ê n i c o Sanguigni.
M a s o sucesso o b t i d o pelo B a r ã o de P e n e d o foi irremediavelmente comprometido
pela prisão de d o m V i t a l . Pio I X e seu secretário declararam ter sido enganados pelo
emissário do governo brasileiro e o papa o r d e n o u que a carta fosse destruída. D o m
Vital sempre negou tê-la recebido, m a s está provado q u e d o m Pedro M a r i a de Lacerda,
bispo do R i o , fez a entrega. O r e c u o d o V a t i c a n o e sua firme c o n d e n a ç ã o dos atos que
atingiram os prelados brasileiros tiraram q u a l q u e r possibilidade de vitória ao governo.
Restava-lhe ir até o fim para m a n t e r sua a u t o r i d a d e i n t a c t a . 7 2
U m a n o após a conde-
nação, os dois bispos foram anistiados e restabelecidos em suas f u n ç õ e s pastorais. Essa
medida, e n t r e t a n t o , n ã o c o n s e g u i u abafar u m a q u e s t ã o q u e tinha t o r n a d o públicas as
incompatibilidades q u e existiam e n t r e as duas i n s t i t u i ç õ e s . Pela primeira vez na histó-
ria das relações e n t r e Igreja e E s t a d o , o c o r r e r a u m c h o q u e de e x t r e m a violência. Qual
foi sua verdadeira significação?

À primeira vista, ele parecia ser u m a t r a n s p o s i ç ã o , ao Brasil, da controvérsia entre


liberais e u l t r a m o n t a n o s q u e agitava a E u r o p a O c i d e n t a l . 7 3
O q u e se passava nos países
europeus tinha i m e d i a t a repercussão n o Brasil, p o i s cada vez m a i o r n ú m e r o de prela-
dos eram f o r m a d o s sob o r i e n t a ç ã o r o m a n a . A atitude i n t r a n s i g e n t e e c o m b a t i v a de Pio
I X levou a hierarquia brasileira a t o m a r posições inflexíveis e exasperou os liberais
brasileiros, inclusive aqueles que n ã o a d o t a v a m posições radicais. Q u a n d o foi procla-
mado o d o g m a da infalibilidade d o p a p a , a situação se degradou. O B a r ã o de Penedo,
liberal m o d e r a d o , p o u c o s u s p e i t o , expressou sua i n q u i e t a ç ã o : " O que está acontecen-
do n o Brasil é o que está se passando quase n o m u n d o inteiro. As tendências prepotentes
d e m o n s t r a d a s h o j e p e l o p o d e r e c l e s i á s t i c o s ã o a c o n s e q ü ê n c i a desse elemento
perturbador (a infalibilidade p o n t i f i c a l ) i n t r o d u z i d o n o c a t o l i c i s m o . N a Itália, na
Alemanha e na S u í ç a , a origem das lutas e n t r e as milícias da C ú r i a romana e os
governos desses Estados é a m e s m a q u e n o B r a s i l . " 7 4

Além disso, a Q u e s t ã o Religiosa d e c o r r e u de u m a união imperfeita entre uma


Igreja que se tornara gradativamente u l t r a m o n t a n a e um Estado que permanecera
regalista e preocupado em m a n t e r antigas prerrogativas, transformadas em direitos
indiscutíveis. As novas atitudes da Igreja C a t ó l i c a transparecem nitidamente nessa
frase de d o m V i t a l : " N ã o é um g o v e r n o s i n c e r a m e n t e católico aquele que nada aprova
e nada condena do que a Igreja aprova e c o n d e n a . " N o espírito desse prelado educado
em R o m a , não havia dúvida de que o poder temporal devia calcar seus atos e atitudes
nos atos e atitudes da Igreja. Ao pretender impor seus pontos de vista, a Igreja contri-
buía para radicalizar as posições do listado e dos liberais. Para estes últimos, os bispos
não deviam julgar os atos do poder t e m p o r a l . 75

A Questão Religiosa também expressava a vontade de afirmação de um Estado


cioso de suas prerrogativas, sobretudo duas: o beneplácito imperial para as colações
eclesiásticas e o recurso à arbitragem da C o r o a para os casos de divergência entre
cidadãos do Império e fiéis da Igreja. Ambas eram consideradas pela Igreja como
LIVRO V - A IGREJA
325

inaceitáveis, heréticas e subversivas, e m b o r a estivessem codificadas e m textos legais


aprovados p e l o P o d e r Legislativo e tolerados p o r R o m a , que n u n c a os denunciara
f o r m a l m e n t e A Q u e s t ã o R e l i g i o s a f o r n e c i a à Igreja u m excelente m o t i v o para tentar
definir os poderes de cada i n s t i t u i ç ã o . E l a recusava s o b r e t u d o — e firmemente — a
ingerência do E s t a d o n o c a m p o espiritual.

F i n a l m e n t e , a Q u e s t ã o R e l i g i o s a foi o r e s u l t a d o l ó g i c o da r e f o r m a da Igrej
a no
Brasil. Q u a l q u e r e s f o r ç o nesse s e n t i d o c o n t r i b u í a para q u e a I g r e j a percebesse
esse sua
própria n a t u r e z a e sua p r ó p r i a m i s s ã o , f a z e n d o f r u t i f i c a r u m a nova c o n s c i ê n c i a que
se c h o c a v a c o m o P a d r o a d o e as prerrogativas reais. T o r n a n d o - s e c a d a vez mais
i n t r a n s i g e n t e n o c a m p o d a o r t o d o x i a , a I g r e j a n ã o p o d i a m a i s calar-se diante da
difusão de d o u t r i n a s q u e j u l g a v a p e r n i c i o s a s . P o r o u t r o l a d o , a Q u e s t ã o Religiosa
permitia aos c a t ó l i c o s l e i g o s u n i r e m - s e e m t o r n o da I g r e j a e a t é encararem a possi-
bilidade de c r i a ç ã o de u m p a r t i d o c a t ó l i c o , a p t o a d e f e n d e r nas assembléias as
posições da a l t a h i e r a r q u i a .

P o r diversas razões, o p r o j e t o de c r i a ç ã o desse p a r t i d o n ã o teve m u i t o sucesso. A o


recusar p e r s o n a l i d a d e j u r í d i c a ao D i r e t ó r i o N a c i o n a l das Associações Católicas, funda-
das nas diversas p r o v í n c i a s , o E s t a d o p r i v o u os c a t ó l i c o s da possibilidade de criarem
um verdadeiro p a r t i d o . U m a d i r e ç ã o c e n t r a l era necessária para c o o r d e n a r os movi-
mentos das a s s o c i a ç õ e s c a t ó l i c a s , i m p r i m i n d o neles unidade de ação, a fim de organi-
zar o partido e m t o d o o p a í s . 7 6
M a s n ã o foi o caso. A l g u n s historiadores, c o m o Basílio
de Magalhães, a f i r m a m q u e a idéia da f u n d a ç ã o de u m partido católico n ã o foi sufi-
c i e n t e m e n t e m o b i l i z a d o r a : " S e houvesse n o Brasil u m a fé cristã sincera e ardente, e
não apenas palavras e s t e r e o t i p a d a s , palavras q u e transformassem o coração e o espírito
daqueles q u e r e c e b e m a á g u a b e n t a d a Igreja, a questão e p í s c o p o - m a ç ô n i c a teria fatal-
mente levado a u m a revolta a r m a d a n o país, e m defesa dos bispos mártires ( . . . ) . E que,
no Brasil, a p o l í t i c a partidária e os interesses e c o n ô m i c o s sempre prevaleceram sobre
o credo r e l i g i o s o " . 77
O u t r o s , c o m o V i l h e n a de M o r a e s , afirmam que houve mobilização,
mas o E s t a d o i m p e d i u a c r i a ç ã o d o p a r t i d o ; apresentam c o m o prova o número de
'representações' enviadas de t o d o s os recantos d o I m p é r i o , protestando contra a prisão
e a c o n d e n a ç ã o dos b i s p o s . 7 8

O s c a r de F i g u e i r e d o L u s t o s a a t r i b u i o insucesso d a iniciativa de fundação desse


partido a causas m ú l t i p l a s , t a n t o exógenas q u a n t o endógenas. E n t r e as primeiras,
citou a h o s t i l i d a d e d o E s t a d o e dos parlamentares. C o m efeito, conservadores e
liberais m a n i f e s t a v a m m u i t a s restrições a esse p a r t i d o , julgado ultramonrano, cleri-
cal, eclesiástico e t e o c r á r i c o . O s princípios regalistas não podiam ser facilmente
compatibilizados c o m as i n t e n ç õ e s de u m partido q u e , por ideologia, tentaria elabo-
rar u m m o d e l o p o l í t i c o sacralizado, nostálgico da cristandade medieval, sem levar
em c o n t a as idéias m o d e r n a s que, apesar de ambíguas, c o n t i n h a m elementos pro-
gressivamente i n c o r p o r a d o s em mentalidades e c o m p o r t a m e n t o s . Essa desconfiança
dos parlamentares era, aliás, compartilhada pela imprensa, de m o d o geral c n t i c a em
relação à d o u t r i n a u l t r a m o n t a n a e, por conseguinte, às correntes políticas que a
326 BAHIA, SÉCULO X I X

apoiavam. A c r e s c e n t e m o s que, em todas as províncias, os chefes locais considera-


vam-se ameaçados, inclusive p o l i t i c a m e n t e , pelos padres que tentavam conquistar
ascendência sobre a p o p u l a ç ã o /
As causas endógenas t a m b é m foram numerosas. O s brasileiros tomaram como
modelo os partidos católicos europeus que tentaram se afirmar na década de 1 8 7 0 . 8 0

Havia, entretanto, uma e n o r m e diferença entre os meios católicos europeus e brasilei-


ros; na Europa, o pluralismo religioso e a tolerância t i n h a m conseguido se impor, por
necessidade, ao passo que aqui não havia c l i m a para a liberdade de c u l t o . N o Brasil
o catolicismo era u m a religião de E s t a d o , e o g o v e r n o d e s e m p e n h a v a o papel de
defensor dos interesses eclesiásticos. O desejo de f o r m a r u m partido católico trazia em
si uma contradição. Além disso, a grande m a i o r i a dos católicos d e m o n s t r o u certa
indiferença em relação ao e n g a j a m e n t o p o l í t i c o .

Aquela parte do clero que desejava um c o n t r o l e a b s o l u t o sobre a vida individual e


social esbarrou nos leigos, q u e queriam preservar sua i n d e p e n d ê n c i a . Este desejo fica
manifesto q u a n d o e x a m i n a m o s c o m a t e n ç ã o as diversas facções presentes n o ambiente
político. Havia aqueles q u e , ligando a existência d o partido c a t ó l i c o à Q u e s t ã o Reli-
giosa, o consideravam inútil após a anistia aos b i s p o s . O u t r o s c a t ó l i c o s , de tendência
liberal e republicana, apoiaram a p r o p o s t a de f o r m a r o p a r t i d o , mas n u n c a aderiram
aos princípios da Syllabus, o que a c a b o u c o n t r i b u i n d o para seu a f a s t a m e n t o . Final-
m e n t e , o p r ó p r i o clero estava d i v i d i d o : os padres q u e integravam as assembléias
legislativas aprovavam, em geral, a política g o v e r n a m e n t a l . R e p r e s e n t a n t e s do baixo
clero, eles se sentiam ligados aos partidos tradicionais — C o n s e r v a d o r e Liberal — nos
quais faziam carreira. P o r o u t r o lado, os bispos n u n c a se e n g a j a r a m d i r e t a m e n t e junto
àqueles que lutavam para fundar u m partido c a t ó l i c o . S e u apoio era indireto e se
limitava à aprovação das associações católicas.
A posição dos católicos da B a h i a era representada p e l o j o r n a l Chronica Religiosa.
F u n d a d o em 8 de d e z e m b r o de 1 8 6 9 , o j o r n a l desapareceu em 1 8 7 4 , c o m a morte de
seu fundador, o arcebispo d o m M a n u e l J o a q u i m da Silveira. S e g u i n d o a mais estrita
ortodoxia, ele defendia q u e a moral era o p r ó p r i o p r i n c í p i o da autoridade e estava na
própria base do t r o n o imperial. Publicava d o c u m e n t o s da S a n t a S é , pastorais de bispos
brasileiros, transcrições de artigos de j o r n a i s estrangeiros e refutações a matérias
publicadas na imprensa liberal de Salvador. A partir de 1 8 7 2 , o jornal dirigiu seus
ataques c o n t r a a maçonaria, a C o m u n a de Paris e a Internacional Socialista. Em
novembro de 1 8 7 3 , foi fundada u m a Associação C a t ó l i c a , cujos m e m b r o s pertenciam
às camadas mais abastadas da sociedade e defendiam os princípios ortodoxos da Igreja.
C o m o todas as associações católicas, a da Bahia teve i m p o r t a n t e papel na vida política
local, mas jamais constituiu um verdadeiro partido da I g r e j a . 81

O s prelados da Bahia e do R i o de J a n e i r o apoiaram os bispos de O l i n d a c do Pará,


mas os do M a r a n h ã o e de M a t o Grosso mantiveram-se neutros. A falta de unidade dos
meios católicos, as posições utópicas dos ultramontanos que pregavam um retorno ao
passado — proclamando-se o "partido de Jesus C r i s t o " ou o "partido da realeza social
LIVRO V - A IGREJA
327

do C r i s t o " - e sua f a l t a d e flexibilidade e de r e a l i s m o foram fatores negativos na busca


de u m a v e r d a d e i r a s o l u ç ã o aos p r o b l e m a s e x i s t e n t e s . 8 2

A o s o l h o s da g r a n d e massa d o p o v o b r a s i l e i r o , todas essas brigas (e os c o m p r o m e -


t i m e n t o s q u e o c a s i o n a v a m ) e r a m ' n e g ó c i o s de g e n t e i m p o r t a n t e ' . M e s m o i g n o t a n d o
as q u e s t õ e s d e d o u t r i n a , o p o v o , i n f l u e n c i a d o p e l o c l e r o , estava c o n v e n c i d o de que a
m a ç o n a r i a , b o d e e x p i a t ó r i o d a i d e o l o g i a u l t r a l i b é r a l e positivista, era u m a 'coisa erra-
da', q u e d e v i a s e r e l i m i n a d a . M a s se, e m sua g r a n d e m a i o r i a , o p o v o a p o i o u o clero e
os bispos na defesa d a r e l i g i ã o t r a d i c i o n a l , u m a p e q u e n a m i n o r i a aderiu ao p r o t e s t a n -
t i s m o e a o s c u l t o s a n i m i s t a s q u e c o m e ç a r a m a m a n i f e s t a r - s e na s e g u n d a m e t a d e d o
século X I X . O p l u r a l i s m o r e l i g i o s o , c u j a e x i s t ê n c i a era i g n o r a d a p e l o E s t a d o e c o m b a -
tida pela I g r e j a , se e s t a b e l e c e u n o B r a s i l n o m o m e n t o p r e c i s o e m q u e a separação e n t r e
Igreja e E s t a d o s c t o r n o u i n e v i t á v e l .

A IGREJA E A ESCRAVIDÃO

D u r a n t e o p e r í o d o c o l o n i a l , a s o c i e d a d e e s c r a v o c r a t a c o n t o u c o m o a p o i o da Igreja,
que e n s i n a v a , a o s t r a b a l h a d o r e s c a t i v o s , as v i r t u d e s d a p a c i ê n c i a , d a h u m i l d a d e , da
resignação e d a o b e d i ê n c i a e m r e l a ç ã o à o r d e m e s t a b e l e c i d a . A I g r e j a se manifestara
c o n t r a a e s c r a v i d ã o das p o p u l a ç õ e s a m e r í n d i a s , m a s s e m p r e fora favorável à escravidão
africana. 8 3
J u s t i f i c a v a sua p o s i ç ã o a f i r m a n d o ser n e c e s s á r i o c r i s t i a n i z a r esses pagãos
para salvá-los. A o p e r m i t i r essas c o n v e r s õ e s s a l v a d o r a s , a e s c r a v i d ã o era n ã o s o m e n t e
necessária, m a s t a m b é m l e g í t i m a . M a s , a p a r t i r d a s e g u n d a m e t a d e d o século X I X , essa
discussão e v o l u i u , e a l e g i t i m i d a d e d o s i s t e m a p a s s o u a ser c o l o c a d a em dúvida em
alguns m e i o s c l e r i c a i s .
E n q u a n t o o t r á f i c o foi c o n s i d e r a d o legal, n ã o se c o g i t o u d o p r o b l e m a . A partir de
1 8 3 1 , ele foi d e c l a r a d o ilegal, e a e s c r a v i d ã o c o m e ç o u a a d q u i r i r traços 'fora da lei',
pelo m e n o s para u m a p a r t e d o c l e r o , para q u e m a posse d e escravos, e n t r a d o s por
fraude n o país, t o r n a r a - s e i m o r a l e c o n t r á r i a à lei n a t u r a l . E m 1 8 4 2 , o padre lazarista
A n t ó n i o V i ç o s o , f u t u r o b i s p o de M a r i a n a , e r g u e u - s e c o n t r a a escravatura e abriu um
l o n g o d e b a t e c o m o padre L e o n a r d o R a b e l o de C a s t r o , t a m b é m lazarista, para q u e m
esse sistema n ã o era r e p u g n a n t e , n e m c o n t r á r i o à j u s t i ç a ; sua a b o l i ç ã o , dizia este
ú l t i m o , destruiria a o r d e m social d o p a í s . 8 4

A m i n o r i a a n t i e s c r a v i s t a d e f e n d i a a m o d i f i c a ç ã o da o r d e m legal do país. P o r
e x e m p l o , em 1 8 7 1 o padre J o s é Alves M a r t i n s L o r e t o , professor do G r a n d e S e m i n á r i o
de Salvador, escrevia n o j o r n a l c a t ó l i c o Chronica Religiosa q u e , desde sua infância, em
seu m e i o familiar e fora dele, tinha o u v i d o c o n d e n a ç õ e s à escravidão c o m o d o u t r i n a
e t o m a d o c o n h e c i m e n t o das injustiças q u e a s a n c i o n a v a m . " M a s q u a n d o o padre ,
escreveu, " m e n c i o n a essa injustiça aos senhores de escravos, estes i m e d i a t a m e n t e tran-
qüilizam sua c o n s c i ê n c i a , justificando-se que a escravidão é c o n f o r m e às leis d o Esta-
d o . " Ele apelava para o s legisladores, e x o r t a n d o - o s a suprimir essa "lei injusta que lesa
BAHIA, SÉCULO X I X

os direitos.piais sagrados da pessoa h u m a n a " . 8 5


L o g o , era o E s t a d o q u e devia abolir
essa injustiça, para que os padres pudessem pregar a a b o l i ç ã o da lei da escravidão sem
serem taxados de subversão c instigação à revolta.
P o r outro lado, os que justificavam a existência da escravidão apoiavam-se em dois
princípios: o direito inalienável h propriedade e a c o n s i d e r a ç ã o de q u e os escravos eram
o p r o l o n g a m e n t o da família do s e n h o r . N o q u e dizia respeito ao p r i m e i r o princípio, a
Igreja estava em má posição para c o n d e n a r a propriedade de pessoas h u m a n a s e sua
identificação c o m o b j e t o s próprios para c o m p r a e v e n d a : ordens religiosas e padres
seculares eram, eles próprios, proprietários de escravos. É s i n t o m á t i c a , aliás, a distin-
ção que a Igreja fazia entre os ' o b j e t o s sagrados' e as pessoas h u m a n a s reduzidas à
c o n d i ç ã o de escravos. S e g u n d o as c o n s t i t u i ç õ e s s i n o d a i s , havia e x c o m u n h ã o expressa
para todos os que utilizassem para fins p r o f a n o s m a d e i r a , telhas o u tijolos que tivessem
servido à edificação de u m a igreja. M a s a escravização de m i l h a r e s de seres humanos
nunca foi c o n d e n a d a pelo direito c a n ó n i c o . P e r d i g ã o M a l h e i r o , que publicou em
1 8 6 7 sua célebre obra A escravidão no Brasil, j u s t i f i c o u a Igreja: " S e padres, igrejas e
conventos possuíram c possuem escravos, isto prova apenas u m a b u s o , u m fato, e não
que faça parte do espírito da religião cristã l e g i t i m a r a e s c r a v i d ã o . " 8 6
Defensora da
ordem legal estabelecida, a Igreja só c o m e ç o u a t o m a r u m a a t i t u d e q u a n d o os meios
leigos c o m e ç a r a m a falar da escravidão c o m o u m a 'lei i n j u s t a ' .

A o incitar os cativos à o b e d i ê n c i a e à r e s i g n a ç ã o , a I g r e j a c o n t r i b u i u m u i t o para


legitimar a tese de que os escravos eram u m p r o l o n g a m e n t o da família do senhor.
C o m o se fossem crianças, os escravos t i n h a m deveres para c o m o pai, mas nenhum
direito. 87
A evolução d o p e n s a m e n t o j u r í d i c o da Igreja foi a c o m p a n h a d a pela evolução
de seu p e n s a m e n t o t e o l ó g i c o . Essa lenta m u t a ç ã o , e n t r e t a n t o , foi devida sobretudo à
marcha dos a c o n t e c i m e n t o s , m u i t o mais q u e a u m a p r o f u n d a m e n t o doutrinário ou
teológico. 88
C o m efeito, u m a série de m e d i d a s p r e n u n c i a v a m a e x t i n ç ã o definitiva da
escravidão. E m 1 8 5 0 , o tráfico foi d e f i n i t i v a m e n t e a b o l i d o . E m 1 8 5 3 , foram parcial-
mente emancipados todos os africanos livres, i m p o r t a d o s c l a n d e s t i n a m e n t e entre 1831
e 1 8 5 3 , que tivessem servido à n a ç ã o d u r a n t e c a t o r z e a n o s ( o u seja, eles eram consi-
derados livres, mas ficavam sob tutela do g o v e r n o , q u e os empregava em obras públi-
cas ou os alugava pelo t e m p o necessário à f o r m a ç ã o de u m p e c ú l i o que lhes permitisse
pagar sua passagem de volta à África; esta ú l t i m a m e d i d a , n o e n t a n t o , nunca foi
realmente posta em prática). E m 1 8 6 4 foram finalmente e m a n c i p a d o s todos os africa-
nos bem c o m o seus filhos — i m p o r t a d o s c l a n d e s t i n a m e n t e e que se encontravam
a serviço do Estado ou de particulares. D u r a n t e a G u e r r a d o Paraguai foi oferecida
liberdade gratuita a todos os escravos que se alistassem n o Exército, medida depois
estendida às suas m u l h e r e s . 89
T r ê s anos mais tarde proibiram-se leilões de escravos.
Finalmente, a Lei do V e n t r e Livre declarou em 1 8 7 1 q u e eram livres todas as crianças
nascidas de mães escravas.

Esses acontecimentos — aos quais é preciso acrescentar a Fala do T r o n o ( 1 8 6 8 ) ,


em que dom Pedro II tratou c o m insistência do fim da escravidão — fortaleceram na
LI\-RO V - A IGREJA

opinião p ú b l i c a a c o r r e n t e e m favor da A b o l i ç ã o . A partir de 1 8 7 0 , associações


e m a n c i p a d o r a s f o r a m f u n d a d a s e m q u a s e t o d o o território brasileiro, e as idéias
antiescravisras passaram a e n c o n t r a r m a i o r receptividade na i m p r e n s a . 90

Q u e posição t o m o u a Igreja? Q u a n d o a Lei d o V e n t r e Livre foi p r o m u l g a d a , e m


1 8 7 1 , o e p i s c o p a d o brasileiro se d e c l a r o u favorável à liberdade o u t o r g a d a aos r e c é m -
nascidos, em n o m e d o d i r e i t o natural e das e x i g ê n c i a s d o E v a n g e l h o . 9 1
E m mensagem
enviada ao m i n i s t r o da A g r i c u l t u r a , d o C o m é r c i o e de O b r a s P ú b l i c a s , o arcebispo da
Bahia festejou o a d v e n t o da Lei d o V e n t r e L i v r e : " J á tive a ocasião de manifestar a
Vossa E x c e l ê n c i a m i n h a o p i n i ã o a respeito d a escravidão e disse q u e infeliz foi o di
a
em que o p r i m e i r o e s c r a v o e n t r o u n o B r a s i l . " 9 2
Esse m e s m o prelado, e n t r e t a n t o ,
em
sua circular aos seus p á r o c o s , s e m se referir e x p l í c i t a o u i m p l i c i t a m e n t e ao p r o b l e m a d
a
escravidão, l i m i t a v a - s e a i n d i c a r q u e : " O g o v e r n o i m p e r i a l se dirige ao episcopado
brasileiro, m a n i f e s t a n d o sua c o n v i c ç ã o d e q u e este e t o d o s os padres de suas dioceses,
i n t i m a m e n t e c o n v e n c i d o s da alta m i s s ã o à q u a l se c o n s a g r a m , t r a b a l h a r a m , c o m suas
luzes, palavra a u t o r i z a d a e i n f l u ê n c i a , p a r a a b o a e p e r f e i t a e x e c u ç ã o da lei, a qual
precisa da a j u d a de t o d o s o s h o m e n s de b o a v o n t a d e para ser c o m p r e e n d i d a e respeita-
da." 9 3
C o m o se v ê , o a r c e b i s p o a p e n a s l e m b r o u aos padres seu papel de servidores d o
Estado, e v i t a n d o t o m a r , d i a n t e deles, u m a p o s i ç ã o clara e d e f i n i d a . Seria p o r m e d o de
ferir os s e n t i m e n t o s escravistas de u m a p a r t e d a elite baiana? P o r p r u d e n t e desejo de se
manter n e u t r o ? O f a t o é q u e o u t r o s p r e l a d o s brasileiros n ã o hesitaram em afirmar
claramente suas c o n v i c ç õ e s e m favor da L e i de 1 8 7 1 .

N o R i o de J a n e i r o , d o m P e d r o M a r i a d e L a c e r d a a f i r m o u e m sua carta pastoral de


I o
de o u t u b r o de 1 8 7 1 : " N ã o haverá u m só b e r ç o q u e n ã o seja e m b a l a d o pelo a n j o da
liberdade cristã ( . . . ) . A o s pés d a c r u z foi rasgado o m a n u s c r i t o q u e c o n d e n a v a tantas
futuras gerações de h o m e n s a n a s c e r e m n a e s c r a v i d ã o . " 94
D o m A n t ô n i o V i ç o s o , bispo
de M a r i a n a , e m c i r c u l a r a o s p á r o c o s de sua diocese, e m 14 de o u t u b r o de 1 8 7 1 ,
afirmou: " a q u e l e q u e é a m i g o da paz e d o verdadeiro b e m na N a ç ã o , deve ser firme em
seus s e n t i m e n t o s (antiescravistas) q u e a razão e o c r i s t i a n i s m o nos e n s i n a m " . 9 5
Mesmo
em P e r n a m b u c o , c u j a s estruturas sociais e e c o n ô m i c a s eram tão parecidas c o m as da
Bahia, o c ó n e g o J o ã o C r i s ó s t o m o de Paiva T o r r e s n ã o hesitou em escrever em sua
carta pastoral de 13 de o u t u b r o de 1 8 7 1 : " E x i s t e ainda e n t r e nós a influência religiosa
que nos diz q u e a escravidão é u m sistema q u e se o p õ e às leis divinas e humanas. C o m
efeito, em q u e parte d o E v a n g e l h o o h o m e m pode se apoiar para autorizar-se a dizer
a um o u t r o h o m e m : tu és m e u e s c r a v o ? " 9

Apoiar a lei de 1 8 7 1 n ã o significava ser favorável à pura e simples abolição da


escravidão. A posição d o b i s p o d o R i o de J a n e i r o a esse respeito foi exemplar. N a
pastoral acima citada, ele deu livre curso a sentimentos antiabolicionistas. Dirigindo-
se aos escravos, disse: " S c , até agora, por t e m o r e consciência, vocês deviam a seus
senhores respeito, obediência c a m o r , a partir de hoje lhes devem um respeito ainda
maior, uma obediência redobrada, um a m o r redobrado, porque a gratidão deve subs-
tituir o t e m o r ( . . . ) . Provem então sua dedicação e sua obediência, defendendo seus
330 BAHIA, SÉCULO X I X

senhores e t u d o q u e lhes p e r t e n c e . " A p ó s tê-los c o n v i d a d o a n ã o c o l o c a r obstáculos à


e x e c u ç ã o da lei, d o m P e d r o M a r i a dizia aos s e n h o r e s q u e n ã o permitissem que " a

negligência, a inveja, a miséria o u o desespero levassem as m ã e s a c o m e t e r o aborto, o


i n f a n t i c í d i o , o a b a n d o n o de crianças i n o c e n t e s e d e s a m p a r a d a s " . E m n e n h u m mo-
m e n t o o p r e l a d o carioca c o n t e s t o u a l e g i t i m i d a d e da escravidão o u afirmou o direito
natural d o escravo à l i b e r d a d e . A o c o n t r á r i o , c o l o c a n d o - s e d o p o n t o de vista legal, ele
se insurgiu c o n t r a os q u e d e s e j a v a m a a b o l i ç ã o d a e s c r a v i d ã o , p o r causa da desordem
que isso acarretaria. D e q u a l q u e r m a n e i r a , a lei previa q u e os pais permanecessem
cativos. O s padres t i n h a m o dever de c o n t i n u a r a pregar, aos escravos, resignação e
obediência. 9 7
D e m o d o geral, a a t i t u d e d o c l e r o p e r m a n e c e u c a u t e l o s a .
Nesse p o n t o n ã o e s t a m o s d e a c o r d o c o m o p a d r e J o s é O s c a r B e o z z o , para quem
d o m P e d r o M a r i a d e L a c e r d a se o p u n h a à e s c r a v i d ã o e desejava a A b o l i ç ã o . A afir-
m a ç ã o de d o m P e d r o M a r i a — " Q u e s e j a m os r e v o l u c i o n á r i o s (abolicionistas) a pro-
fanar a palavra l i b e r d a d e ; n ó s , n o e n t a n t o , m o s t r a m o s q u e a l i b e r d a d e , q u a n d o jus-
ta (isto é, l e g a l ) , p o d e l e v a r - n o s a a l g u n s s a c r i f í c i o s q u e d e v e m ser compensados
pela m a n u t e n ç ã o d a o r d e m e das v a n t a g e n s m a t e r i a i s e p e c u n i á r i a s " — é u m a pro-
va s u f i c i e n t e m e n t e clara d o e s p í r i t o c o n s e r v a d o r e a n t i a b o l i c i o n i s t a do prelado ca-
rioca, c u j o s a r g u m e n t o s a l i n h a v a v a m - s e c o m os d o s p r o p r i e t á r i o s d e escravos, antia-
bolicionistas.

As o r d e n s religiosas e o b a i x o c l e r o e r a m m a i s favoráveis à A b o l i ç ã o . E m 1 8 6 9 , por


e x e m p l o , a O r d e m de S ã o B e n t o , n o R i o de J a n e i r o , l i b e r t o u t o d o s os seus escravos de
mais de c i n q ü e n t a a n o s e, e m seguida, as c r i a n ç a s n a s c i d a s de m ã e s escravas. Q u a n d o
a Lei d o V e n t r e Livre foi p r o m u l g a d a , e m 1 8 7 1 , a O r d e m d e u l i b e r d a d e a todos os
seus escravos, q u e e r a m q u a s e três m i l . " O b a i x o c l e r o t a m b é m l i b e r t o u escravos e fez
doações aos f u n d o s de e m a n c i p a ç ã o c r i a d o s p a r a a j u d á - l o s . 1 0 0

S ó em 1 8 7 9 a A b o l i ç ã o foi d i s c u t i d a de n o v o n a A s s e m b l é i a G e r a l d o I m p é r i o . O
m o v i m e n t o a b o l i c i o n i s t a era c h e f i a d o e n t ã o p o r J o a q u i m N a b u c o , j o v e m depurado
eleito p o r P e r n a m b u c o . S o b s e u i m p u l s o e o de seus a d e p t o s , novas associações
e m a n c i p a d o r a s f o r a m criadas e m t o d a s as g r a n d e s cidades d o país. A partir de 1 8 8 3 ,
através de u m a c a m p a n h a n a c i o n a l , os a b o l i c i o n i s t a s c o n c e n t r a r a m seus esforços em
três frentes: nâs assembléias legislativas, na i m p r e n s a ( o n d e p e d i a m a suspensão das leis
sobre a escravidão) e na a r r e c a d a ç ã o de f u n d o s destinados a c o m p r a r a liberdade dos
escravos. E m 1 8 8 4 , as províncias d o C e a r á e da A m a z ô n i a t i n h a m conseguido libertar
todos os seus escravos. E m 1 8 8 5 , a A s s e m b l é i a G e r a l a p r o v o u a Lei dos Sexagenários,
q u e declarava livres t o d o s os escravos de mais de sessenta a n o s , i m p o n d o - l h e s , todavia,
mais três anos de serviço j u n t o a seus antigos s e n h o r e s . P o r volta de 1 8 8 7 a escravidão
estava moral e p o l i t i c a m e n t e c o n d e n a d a : e m 13 de m a i o de 1 8 8 8 a Lei Áurea a
extinguiu. M a s , tendo d u r a d o mais de três séculos, ela m a r c o u p r o f u n d a m e n t e a carne
e as mentalidades b r a s i l e i r a s . 101

Nesse período crucial de quase nove anos q u e precedeu a A b o l i ç ã o , a hierarquia


episcopal m o s t r o u - s e cautelosa. A participação da Igreja n o m o v i m e n t o abolicionista
foi l o n g í n q u a , h e s i t a n t e e fria, pelo m e n o s até- 1 8 8 7 i r-
, ... r , ínenos ate 1 8 8 7 , q u a n d o enfim alguns bisDos
decidiram p o s i c i o n a r - s e f a v o r a v e l m e n t e . - , M a s , m e s m o então o fizeram c o m a u m
reserva, p o i s o m o v i m e n t o a b o l i c i o n i s t a lhes parecia ser liberal e revolucionário
A a t i t u d e de d o m L u t z A n t ô n i o dos S a n t o s , primaz do Brasil e arcebispo da
Bahia, evidencio*i a m e n t a l i d a d e dos religiosos brasileiros. Ele se posicionou numa
carta pastora de 2 9 de j u l h o de 1 8 8 7 , dez meses antes d a p r o m u l g a ç ã o da Lei Áurea
recomendando a r e d e n ç ã o dos cativos e o a p o i o às suas liberdades". Para o arcebis-
po a l i b e r t a ç ã o fazia p a r t e das o b r a s de m i s e r i c ó r d i a : " F e l i z m e n t e , h o j e o povo brasi-
leiro t e m c o n s c i ê n c i a de q u e a e s c r a v i d ã o , além de ser u m a cruel injustiça praticada
c o m t a n t o s i r m ã o s nossos resgatados c o m o n ó s p e l o sangue d o D i v i n o Redentor, é
um grande m a l p a r a o I m p é r i o e u'a m á c u l a q u e m a n c h a a bandeira brasileira, entre
todas as n a ç õ e s civilizadas. N ã o s a b e m o s se nas libertações, a lei será mais forte que
as iniciativas privadas; m a s é c e r t o q u e nas festas familiares, as lágrimas dos convivas
regarão s e m p r e u m d o c u m e n t o d e l i b e r d a d e . É a c o n s c i ê n c i a pública confessando
que a e s c r a v i d ã o n o s i n c o m o d a . " C é t i c o q u a n t o à eficácia de u m a lei capaz de liber-
tar todos os escravos, d o m L u i z A n t ô n i o j u s t i f i c o u a indiferença demonstrada pela
hierarquia: " O m e d o de graves c o n s e q ü ê n c i a s acarretadas p o r u m a precipitação que
poderia ser p e r i g o s a n o c o m e ç o reteve p o r a l g u m t e m p o a v o z da Igreja que nunca se
elevou para p r e j u d i c a r a s o c i e d a d e . M a s h o j e , q u a n d o e m toda parte procura-se subs-
tituir o b r a ç o escravo p e l o b r a ç o livre, h o j e , q u a n d o nos estabelecimentos agrícolas os
contratos e n t r e os s e n h o r e s c seus escravos d ã o os m e l h o r e s resultados para transição
em r u m o dessa n o v a v i d a q u e d e s p o n t a para a s o c i e d a d e brasileira, assim c o m o para
os infelizes c a t i v o s , c h e g o u a h o r a da religião intervir, sem perigo de c o m p r o m e t e r a
ordem na s o c i e d a d e . " O p r e l a d o b a i a n o r e c o m e n d o u ainda que se organizassem socie-
dades voltadas para a j u d a r o s l i b e r t a d o s : " T o m a n d o a frente desse m o v i m e n t o alta-
m e n t e civilizador, n o s s o s R e v e r e n d o s P á r o c o s prestariam o m a i o r dos serviços e da-
riam o e x e m p l o m a i s louvável à I g r e j a de J e s u s C r i s t o e à sociedade b r a s i l e i r a " . 103

Fiel ao p r i n c í p i o de q u e a I g r e j a era u m f a t o r de preservação da coesão e da paz


social, ele a c o l o c a v a e m p o s i ç ã o i n t e r m e d i á r i a e n t r e os grupos sociais dominantes e
as camadas p o p u l a r e s .

M a s , se a a t i t u d e d o p r i m a z d o Brasil e x p r i m i u a posição de u m a parte da hierar-


quia c a t ó l i c a , o u t r o s prelados t i v e r a m atitudes m u i t o mais corajosas. D o m Antônio
Benevides, b i s p o de M a r i a n a , libertara em 1 8 8 5 todos os escravos de Macau b a s e
fundara e m sua d i o c e s e a A s s o c i a ç ã o M a r i a n e n s e R e d e n t o r a dos Cat.vos que, apesar de
dispor de parcos recursos, c o n s e g u i u libertar b o m n ú m e r o de escravos. Q u a n d o aben-
ç o o u a p r i m e i r a pedra d o e n g e n h o d o V i s c o n d e d o R i o B r a n c o , pronunciou um
discurso m e m o r á v e l e m favor da a b o l i ç ã o imediata da escravidão, correndo o risco de

perder a s i m p a t i a dos p o d e r o s o s fazendeiros da região.

S u f o c a d a pelas leis q u e & * » * W ™ U


T"""^ ' 0
tí Ssé
atacada por c o r r e n t e s adversarias, a hierarquia católica c o n * g u . u
impor c o m o força h o m o g ê n e a e travar a luta para libertar-se da tutela do Estado. H o , e ,
BAHIA, S É C U L O XIX
352

jdos empregados parecem brutais. Mas continuaram a tradição dos que foram
os metoí
empregados sempre que a Igreja, em toda parte, teve que enfrentar hostilidade cres-
cente da parte dos leigos. Mais próxima de R o m a , t o m o u consciência de sua univer-
salidade e da necessidade de aliar sua doutrina e suas práticas às da Igreja Católica
universal. N o fim do Império, a Igreja ainda não resolvera o problema de sua separa-
ção do Estado — resolvido finalmente e m 1 8 9 1 — mas já construíra as bases para tal.
Qual a importância das reformas feitas dentro da instituição? É o que vou tentar

avaliar agora.
CAPÍTULO 20

CÓNEGOS E PÁROCOS:
UMA VERDADEIRA RIQUEZA EM HOMENS

A Igreja C a t ó l i c a d i s p u n h a de três tipos de instituições: a estrutura de base, represen-


tada pelo clero secular, i n c u m b i d o de m a n t e r o culto e zelar pela fé dos fiéis; o clero
regular, f o r m a d o pelas diferentes ordens religiosas estabelecidas n o país desde meados
do século X V I ; e instituições dirigidas por leigos, c o m o as irmandades e as ordens
terceiras, q u e floresciam e m cidades e lugares de alguma importância, sem depender
diretamente do p o d e r d i o c e s a n o exercido pelos bispos. As duas últimas dessas institui-
ções desempenharam i m p o r t a n t e papel, sobretudo n o período colonial, c o m o instru-
mento de evangelização das populações pagãs (caso d o clero regular) e locais de con-
graçamento de u m p o v o que se diferenciava pelo estatuto legal, pela cor da pele e por
pertencer a grupos sociais diferentes (caso das irmandades e ordens terceiras).

N o t o p o da hierarquia estava o bispo (ou o arcebispo) que, à frente da diocese,


administrava a vida religiosa c o m a ajuda de u m capítulo e de um tribunal eclesiástico
encarregado de julgar litígios que envolvessem m e m b r o s da Igreja. J u n t o com os
bispos, os integrantes destes últimos órgãos formavam o alto clero. A eles é necessário
acrescentar os abades e superiores das ordens religiosas, cuja posição, no entanto, não
era comparável à de seus colegas europeus, m e s m o portugueses; seu papel político e
sua influência social eram quase nulos.
O culto e os sacramentos eram assegurados pelo baixo clero — párocos e coadjutores
— que dirigia as paróquias. E m todos os escalões, os m e m b r o s do clero eram nomea-
dos pelo rei de Portugal e, depois, pelo imperador do Brasil. Mas havia párocos
nomeados pela autoridade episcopal e padres que, escolhidos por irmandades religio-
sas ou contratados por particulares, serviam c o m o capelães. N o Brasil, só podiam ser
cónegos os integrantes dos capítulos das igrejas catedrais (havia a categoria de cónegos
honorários, título c o m o qual eram agraciados alguns sacerdotes de destaque). Segun-
do o direito c a n ó n i c o , o capítulo-catedral podia aconselhar o bispo (a pedido deste) e
governar a diocese vacante, designando um vigário capitular.

333
BAHIA. SÉCULO X I X
334

O ALTO CLERO: O CAPÍTULO-CATEDRAL

O c a p í t u l o - c a t e d r a l d a B a h i a foi i n s t a l a d o na S é j u n t o c o m o b i s p a d o , e m 1 5 5 2 . N o
c o m e ç o , t i n h a treze c a p i t u l a r e s , e n t r e o s q u a i s c i n c o d i g n i t á r i o s ( d e c a n o , chantre,
m e s t r e - e s c o l a , a r q u i d i á c o n o e t e s o u r e i r o ) , seis c ó n e g o s p r e b e n d a d o s e d o i s cónegos
s e m i p r e b e n d a d o s , q u e f u n c i o n a v a m c o m o m e s t r e s d e c e r i m ô n i a s e c u i d a v a m da capela.
M u i t o s desses i n t e g r a n t e s d o a l t o c l e r o b a i a n o e r a m o r i g i n á r i o s das famílias mais
i m p o r t a n t e s d a c i d a d e e d e s e u R e c ô n c a v o . S e u s c a r g o s s e r v i a m , a n t e s d e mais nada,
para a u m e n t a r o p r e s t í g i o s o c i a l d e q u e e l e s e s u a s f a m í l i a s g o z a v a m , p o i s as rendas
auferidas n a I g r e j a v i n h a m d e u m a C o r o a p o u c o g e n e r o s a c o m seus s e r v i d o r e s . Supe-
r a v a m as r e c e b i d a s p e l o s t i t u l a r e s d e p a r ó q u i a s , m a s e r a m m u i t o i n f e r i o r e s às recebidas
nos países c a t ó l i c o s e u r o p e u s .
M a i s t a r d e , d u r a n t e o r e i n a d o d e d o m J o ã o V ( 1 7 0 6 - 1 7 3 0 ) , t r ê s c ó n e g o s suple-
m e n t a r e s se s o m a r a m a o c a p í t u l o - c a t e d r a l d a B a h i a , e x e r c e n d o f u n ç õ e s de peniten-
c i á r i o ( e n c a r r e g a d o das a b s o l v i ç õ e s e m ' c a s o s e s p e c i a i s ' ) , t e o l o g a l ( e n c a r r e g a d o da
t e o l o g i a ) e de m a g i s t é r i o ( p r o v a v e l m e n t e e n c a r r e g a d o d a a ç ã o m i s s i o n á r i a em novas
t e r r a s ) . E m s e g u i d a , n o m e a r a m - s e m a i s d o i s c ó n e g o s s e m i p r e b e n d a d o s e d o i s capelães.
O papel p o l í t i c o d o c a p í t u l o - c a t e d r a l e r a g r a n d e , p o i s seus m e m b r o s representavam,
n o seio d a I g r e j a , o s i n t e r e s s e s d a e l i t e s o c i a l d a C o l ô n i a , a q u e p e r t e n c i a m . A l é m disso,
e m c a s o s d e v a c â n c i a e p i s c o p a l , e x e r c i a m , o u e l e g i a m u m d o g r u p o p a r a exercer, o
p r ó p r i o g o v e r n o e c l e s i a l . E m r e l a ç ã o a o g o v e r n o c i v i l , eles r e p r e s e n t a v a m u m corpo
constituído, disponível para situações de dificuldade.

E m 1 8 1 2 , o c a p í t u l o - c a t e d r a l e s t a v a q u a s e c o m p l e t o : t o d a s as d i g n i d a d e s tinham
seus t i t u l a r e s , e x c e t o p a r a os c a r g o s d e p e n i t e n c i á r i o e t e o l o g a l . N a é p o c a , o capítulo
t i n h a o n z e c a p e l ã e s , a l é m d e m e s t r e s d e c e r i m ô n i a e d e c a p e l a e u m s a c r i s t ã o . O cargo
de vigário-geral era e x e r c i d o p e l o c ó n e g o L o u r e n ç o d a Silva M a g a l h ã e s , c u r a da paróquia
de S ã o P e d r o , u m a das m a i s i m p o r t a n t e s d a c i d a d e . E n t r e o s m e m b r o s d o capítulo,
e n c o n t r a v a m - s e m u i t o s n o m e s p r e s t i g i o s o s d a elite b a i a n a , ligados à p r o d u ç ã o açucareira,
c o m o T e l l e s de M e n e z e s , M a r q u e s B r a n d ã o e Pires d e C a r v a l h o . Às vezes, havia vários
m e m b r o s d a m e s m a f a m í l i a nas fileiras d e s s e a l t o c l e r o . M a n u e l d e A l m e i d a Maciel
( d e c a n o d o c a p í t u l o ) c M a n o e l M a r q u e s B r a n d ã o ( a r q u i d i á c o n o ) e r a m tios de cónegos
s e m i p r e b e n d a d o s . A f u n ç ã o s a c e r d o t a l , c o m o se vê, era apreciada pelas famílias ilustres.

O ALTO CLERO: O TRIBUNAL ECLESIÁSTICO

A instalação d o T r i b u n a l da R e l a ç ã o E c l e s i á s t i c a ( t r i b u n a l eclesiástico de instância) foi


c o n s e q ü ê n c i a d i r e t a d a elevação d o b i s p a d o da B a h i a a a r c e b i s p a d o , em 1 6 7 6 , ano a
partir d o qual o b i s p o local passou a d e t e r o t í t u l o d e p r i m a z d o Brasil. U m número
variável de padres-juízes prestavam serviços sem r e m u n e r a ç ã o , mas 1/3 dos que ali
t i n h a m assento — os d e s e m b a r g a d o r e s — e r a m efetivos, r e c e b e n d o salário de 1 5 0 tn'ú
335

r e , a n u a , , C o m a t n b u . ç o e s h m . t a d a s , o t r i b u n a l julgava causas eclesiásticas e e x a m i -


nava o r e c r u t a m e n t o d o s f u t u r o s p á r o c o s e dos eventuais c a n d i d a t o s ao s a c e r d ó c i o . '
E m 1 8 1 2 , L o u r e n ç o da S,Iva M a g a l h ã e s era vigário-geral d o a r c e b i s p a d o , p á r o c o
de S a o P e d r o e ,u,Z d o 1 n b u n a l d e I n s t â n c i a , e x e r c e n d o , p o r c o n s e g u i n t e , três funções
i m p o r t a n t e s n o g o v e r n o da I g r e j a . M a n o e l M a r q u e s B r a n d ã o , p o r sua vez exercia as
h m ç ó e s d e p r o v i s o r e , u . z das J u s t i f i c a ç õ e s , a r q u i d i á c o n o da diocese e juiz m a t r i m o -
nial. O s dois o u t r o s pnzes e f e t . v o s e r a m M a n o e l A n s e l m o de A l m e i d a S a n d e , c ó n e g o
p r e b e n d a d o , e A n t ó n i o P e r e i r a de A b r e u , c ó n e g o m e s t r e - e s c o l a ! A l é m dos dois juízes
sem r e m u n e r a ç ã o , o t r i b u n a l se c o m p u n h a e n t ã o d e dezessete e x a m i n a d o r e s sinoidais,
entre os q u a i s e s t a v a m o d e c a n o , o c h a n t r e e dois c ó n e g o s q u e integravam o c a p í t u l o !
sem talar n o p r o v i n c i a l e n o e x - p r o v i n c i a l dos c a r m e l i t a s descalços. D o s o u t r o s treze
e x a m i n a d o r e s , o n z e v i n h a m d o c l e r o regular (três b e n e d i t i n o s , dois franciscanos, u m
carmelita c a l ç a d o , três c a r m e l i t a s d e s c a l ç o s e d o i s o r a t o r i a n o s ) e apenas dois perten-
ciam ao c l e r o s e c u l a r ( M a r c o s A n t ô n i o de S o u z a , c u r a da p a r ó q u i a de N . S . da V i t ó r i a
e futuro b i s p o d o M a r a n h ã o , e D a n i e l d a Silva L i s b o a , d i r e t o r das religiosas do c o n -
vento da L a p a ) . U m s e c r e t a r i a d o de d o z e m e m b r o s — o padre L u i z J o s é da Silva,
o f i c i a l - m o r da s e c r e t a r i a , e o n z e leigos — c o m p l e t a v a o g o v e r n o d i o c e s a n o da B a h i a .
Vários m e m b r o s desse s e c r e t a r i a d o t i n h a m n o m e s c o n h e c i d o s , c o m o Soares de Almeida,
Marinho Cavalcanti e M o n i z Barreto.

O s diversos p á r o c o s p a r t i c i p a v a m t a m b é m , e m m a i o r o u m e n o r escala, do governo


da Igreja d i o c e s a n a . E m 1 8 1 2 , o a r c e b i s p a d o d a B a h i a t i n h a 8 9 p a r ó q u i a s — dirigidas
por padres q u e m o r a v a m nas c e r c a n i a s dos p r ó p r i o s t e m p l o s — , duas capelas c o m
'encargo das a l m a s ' e seis m i s s õ e s de f r a n c i s c a n o s , duas de carmelitas descalços e três
de c a p u c h i n h o s .
E m 1 8 6 1 , o c a p í t u l o - c a t e d r a l d a B a h i a e o T r i b u n a l de I n s t â n c i a m a n t i n h a m as
mesmas e s t r u t u r a s d a é p o c a c o l o n i a l . O p r i m e i r o era c o m p o s t o p o r n o v e cónegos
prebendados c seis s e m i p r e b e n d a d o s , m u i t o s c o m n o m e s prestigiosos da elite baiana,
c o m o C a m p o s , S o u z a M e n e z e s , S o u z a B r a n d ã o , B o r g e s de L e m o s e t c . Acumulavam
funções e h o n r a r i a s ; e r a m , a o m e s m o t e m p o , j u í z e s d o T r i b u n a l Eclesiástico de Instân-
cia, e x a m i n a d o r e s s i n o d a i s e titulares das principais paróquias de Salvador. Esta última
hinção lhes p e r m i t i a a u m e n t a r suas rendas, graças aos donativos e aos direitos de estola
que todo c a t ó l i c o devia r e m e t e r à Igreja.
Esse a c ú m u l o de f u n ç õ e s podia ser ainda maior. E n c o n t r a m o s esses mesmos c ó n e -
gos e n s i n a n d o nos s e m i n á r i o s M a i o r e M e n o r e nas escolas públicas, c o m o o presti-
gioso Liceu da B a h i a , f u n d a d o em 1 8 3 5 . Além disso, o n ú m e r o de cónegos aumentara,
Por causa da c o n c e s s ã o de títulos h o n o r á r i o . ! entre os 2 8 cónegos do arcebispado
baiano, só q u i n z e receberam p r e b e n d a ; dois cónegos honorários eram párocos fora de

Salvador. , . n

r. , i j i - n n K , o m e s m o papel político de outrora. Primeiro, por-


U capítulo-catedral n a o t i n n a o m e . M i i « j -y r . „„
. . as. d o t r o n o episcopal,
que as vacânc • „„l nl¿m
alem de p o u c o freqüentes,
a e }>«"«-" M eram de curta duração,
I vacancias u o i r u n « y r i r raoidamente os n o v o s titulares. Além
n n m r

pois o poder imperial t i n h a o cuidado de n o m e a r rapiaam


BAHIA, SÉCULO X I X

d i s s o , este m e s m o p o d e r n ã o apelava m a i s para a I g r e j a e m c a s o s de v a c â n c i a da


p r e s i d ê n c i a d e u m a p r o v í n c i a , pois as n o v a s e s t r u t u r a s a d m i n i s t r a t i v a s c o n f i a v a m essa
tarefa a u m dos v i c e - p r e s i d e n t e s , t a m b é m n o m e a d o s p e l o i m p e r a d o r . M a s n ã o há
d ú v i d a de q u e a a s s e m b l e i a de c ó n e g o s r e p r e s e n t a v a u m c o r p o c l e r i c a l privilegiado,
q u e i n f l u í a n o s n e g ó c i o s das d i o c e s e s . A falta d e e s t u d o s s o b r e essa q u e s t ã o não me
p e r m i t e s a b e r q u a i s e r a m as r e l a ç õ e s e n t r e o c a p í t u l o e o c o n j u n t o d o s padres que
serviam nas p a r ó q u i a s d e c a d a d i o c e s e .
C o m o n o p a s s a d o , o T r i b u n a l de I n s t â n c i a c o n t i n u a v a a ser p r e s i d i d o p e l o arce-
b i s p o . M a s , e m m e a d o s d o s é c u l o X I X , o n ú m e r o d e j u í z e s a u m e n t o u , t o d o s açora
r e m u n e r a d o s . O T r i b u n a l E c l e s i á s t i c o d e J u s t i ç a p a s s o u a t e r d o z e j u í z e s , dos quais
n o v e e r a m c ó n e g o s e três p a d r e s ; d o i s d e s t e s ú l t i m o s t i n h a m o t í t u l o de d o u t o r , ou
s e j a , h a v i a m f e i t o e s t u d o s u n i v e r s i t á r i o s . P o r o u t r o l a d o , o t r i b u n a l d e i x o u de ser
responsável p e l o e x a m e d o s c a n d i d a t o s a o s a c e r d ó c i o , t a r e f a e n t r e g u e e x c l u s i v a m e n t e
a o c o r p o d e d e z o i t o e x a m i n a d o r e s d o s í n o d o . O n z e deles e r a m c ó n e g o s , seis perten-
c i a m a o r d e n s religiosas e d o i s e r a m s i m p l e s p a d r e s . P o r c o n s e g u i n t e , a g r a n d e maioria
dos m e m b r o s d o t r i b u n a l era f o r m a d a p o r c ó n e g o s .

O a r c e b i s p o , o c a p í t u l o e o T r i b u n a l d e I n s t â n c i a f o r m a v a m o g o v e r n o d o arce-
b i s p a d o , d e t e n d o o p r e s t í g i o , o s c a r g o s e as d i g n i d a d e s . A s e u l a d o e s t a v a m os párocos
de S a l v a d o r , c a n d i d a t o s às m e s m a s h o n r a r i a s n o f u t u r o . E n t r e a l t o e b a i x o c l e r o e entre
c l e r o d a c a p i t a l , d o R e c ô n c a v o e das terras l o n g í n q u a s d o i n t e r i o r , as d i f e r e n ç a s eram
n í t i d a s . N o m e i o rural e s t a v a m o s m e n o s f a v o r e c i d o s m a t e r i a l m e n t e , q u e além disso
e x e r c i a m tarefas m a i s p e s a d a s .
O s cleros s e c u l a r e r e g u l a r c o n c e n t r a v a m a m a s s a dos e c l e s i á s t i c o s , e m p e n h a d o s
em p r o p a g a r e m a n t e r a fé c a t ó l i c a . O p r i m e i r o g r u p o se d i s t i n g u i a d o s e g u n d o porque
estava s u b m e t i d o ao g o v e r n o o r d i n á r i o d a I g r e j a , e x e r c e n d o suas f u n ç õ e s s o b a autori-
dade d o b i s p o , a o passo q u e o s e g u n d o o b e d e c i a às regras d e u m a o r d e m chefiada por
um a b a d e o u u m p r i o r . C a d a u m desses g r u p o s d e s e m p e n h o u u m papel diferente — c
complementar — n o e n r a i z a m e n t o d a I g r e j a n o B r a s i l . É indispensável estudá-los
separadamente.

O BAIXO CLERO: CURAS E CAPEIAES

N a década de 1 8 2 0 , a situação d o b a i x o c l e r o l e m b r a v a m u i t o a q u e existia na época


c o l o n i a l . N a s zonas rurais, p o u c o p o v o a d a s , p r e d o m i n a v a m os capelães, encarregados
de celebrar missas, a d m i n i s t r a r s a c r a m e n t o s , presidir as festas c a b e n ç o a r as colheitas.
C o n t r a t a d o s por particulares, ensinavam religião aos moradores, subordinando-se muito
mais aos grandes proprietários agrícolas q u e à hierarquia da Igreja, que adotou em
relação a eles, por m u i t o t e m p o , u m a atitude l o n g í n q u a . O s capelães, aliás, não foram
os únicos a e x p e r i m e n t a r essa p r e p o n d e r â n c i a das relações laicas sobre as religiosas.
I n ú m e r o s padres viveram na m e s m a d e p e n d ê n c i a , q u e perdurou durante o século X I X
LIVRO V - A IGREJA
337

(e m e s m o d e p o i s ) c o m o u m t r a ç o c a r a c t e r í s t i c o , c h e i o de c o n s e q ü ê n c i a s , d o clero rural
brasileiro. F r e q ü e n t e m e n t e , aliás, o c a p e l ã o n ã o m o r a v a nas p r o p r i e d a d e s e m q u e ia
c u m p r i r seus d e v e r e s r e l i g i o s o s n o s fins de s e m a n a .

N a c i d a d e , o p a d r e n o m e a d o p e l o E s t a d o (vigário c o l a d o ) o u pelo b i s p o (vigário


e n c o m e n d a d o ) e s t a v a à f r e n t e d e u m a p a r ó q u i a e t i n h a o ' e n c a r g o das a l m a s ' q u e nela
habitavam. M a s t a m b é m p o d i a s e r v i r c o m o c o a d j u t o r o u ser c o n t r a t a d o p o r u m a
i r m a n d a d e r e l i g i o s a . A d e n o m i n a ç ã o d e c a p e l ã o , p o r sua vez, e n c o b r i a três realidades
d i f e r e n t e s : a d o p a d r e r e s p o n s á v e l p o r u m a c a p e l a s i t u a d a n o p e r í m e t r o de u m a p a r ó -
quia e s u b m e t i d a à a u t o r i d a d e d e s e u p á r o c o ( o v i g á r i o p o d i a e x e r c e r esse c a r g o ) ; a do
que e x e r c i a s u a s f u n ç õ e s s a c e r d o t a i s j u n t o a u m a i r m a n d a d e religiosa o u u m a f a m í l i a ;
e a d o q u e a j u d a v a n o c o r o d a c a t e d r a l , a p e s a r de n ã o ser c ó n e g o .

A categoria dos capelães m e interessa particularmente. M u i t o importante durante


todo o p e r í o d o c o l o n i a l , s e u . p a p e l f o i , n o B r a s i l , a b s o l u t a m e n t e o r i g i n a l , irredutível
aos m o d e l o s e u r o p e u s d a é p o c a . 3
T i n h a o e n c a r g o das a l m a s d e u m a p a r t e da p o p u -
lação, f r e q ü e n t e m e n t e n u m e r o s a , q u e e s c a p a v a ao c l e r o s u b m e t i d o à a u t o r i d a d e epis-
copal. O s p a d r e s - c a p e l ã e s q u e s e r v i a m j u n t o às i r m a n d a d e s religiosas o u às famílias —
eram m a i o r i a — d e v i a m suas f u n ç õ e s a c o n t r a t o s privados.

O c a p e l ã o d e u m a i r m a n d a d e r e l i g i o s a era n o m e a d o p e l o d i r e t ó r i o desta. E s c o l h i -
do por leigos e c o l o c a d o s o b s e u c o n t r o l e , n ã o se t o r n a v a a u t o r i d a d e , c o m o o p á r o c o . 4

Ficava até s u j e i t o a s a n ç õ e s , se n e g l i g e n c i a s s e a t o s d o c u l t o o u se c o b r a s s e p o r eles m a i s


do q u e f o r a e s t i p u l a d o . A d e m a i s , o c a p e l ã o d e v i a d e f e n d e r a i r m a n d a d e e m caso de
c o n f l i t o c o m o p á r o c o . E s s a s i t u a ç ã o s u s c i t o u d i f i c u l d a d e s p a r a a Igreja, s o b r e t u d o n o
século X V I I I , q u a n d o as i r m a n d a d e s e s t i v e r a m n o a p o g e u : h a v i a a igreja do p á r o c o ,
h i e r á r q u i c a , e a i g r e j a - i r m a n d a d e , a d m i n i s t r a d a p o r seus m e m b r o s . M u i t a s c o n t e n d a s
opuseram as d u a s , s o b r e t u d o p o r q u e o s p á r o c o s , c o m r a z ã o , c o n s i d e r a v a m - s e as únicas
autoridades r e l i g i o s a s l o c a i s , o q u e as i r m a n d a d e s c o n t e s t a v a m . Festas e procissões, por
exemplo, ensejavam c h o q u e s .
Apesar dessas c o n t r a d i ç õ e s , os c a p e l ã e s t a m b é m c o m p l e m e n t a v a m a ação dos
m e m b r o s da I g r e j a h i e r á r q u i c a , q u e n ã o e r a m s u f i c i e n t e m e n t e n u m e r o s o s para assegu-
rar a e v a n g e l i z a ç ã o d e g r a n d e p a r t e das p o p u l a ç õ e s marginalizadas. A o e l i m i n a r essa
dualidade d u r a n t e a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o X I X , a r o m a n i z a ç ã o da Igreja C a t ó l i c a
brasileira a b r i u e s p a ç o s para o c r e s c i m e n t o d e diversas igrejas protestantes e de seitas
religiosas. T a l v e z as classes p o p u l a r e s — as q u e p r i m e i r o se c o n v e r t e r a m ao protestan-
5

tismo — encontrassem nas e s t r u t u r a s dessas igrejas u m a gestão d e m o c r á t i c a (que


caracterizava o u t r o r a as c o n f r a r i a s ) e u m a a d m i n i s t r a ç ã o colegiada dotada de grande

autoridade m o r a l . . .
Essa d i f e r e n ç a n o e x e r c í c i o da f u n ç ã o sacerdotal t a m b é m se manifestava nas rela-
ções e n t r e u m a I e r e j a h i e r á r q u i c a , mas d i s t a n t e , e um capelão cujas funções se exer-
ciam j u n t o de u m a f a m í l i a . N o r m a l m e n t e os e n g e n h o s n ã o t i n h a m mais de oitenta
« c r a v o s , m a s e m suas terras, à volta d o m o i n h o de açúcar, gravitava uma população
dc h o m e n s livres e a l f o r r i a d o s . N a s grandes explorações canavie.ras, que concentravam
BAHIA, SÉCULO X I X
338

de pessoas, era h á b i t o ter u m padre à disposição. Ele vivia n o e n g e n h o , quase


centenas
sempre m o r a n d o em casa separada, para que pudesse ter certa i n d e p e n d ê n c i a e m

relação ao s e n h o r . S e g u n d o o jesuíta A n t o n i l , " o p r i m e i r o , q u e se há de escolher com


6

circunspecção e i n f o r m a ç ã o secreta do seu p r o c e d i m e n t o e saber, é o capelão, a quem


se há de e n c o m e n d a r o ensino de t u d o o q u e p e r t e n c e à vida c r i s t ã " . O capelão tem a
obrigação de dizer a Missa na capela da propriedade t o d o s os d o m i n g o s e feriados, de
explicar o catecismo, isto é, os principais mistérios da fé e os m a n d a m e n t o s que Deus
e a Santa Igreja m a n d a m observar, de o u v i r as confissões dos fiéis c o m a autorização
do ordinário, de administrar o s s a c r a m e n t o s , de fazer c o m q u e t o d o s vivam em paz, de
zelar para que Deus seja l o u v a d o , assim c o m o a V i r g e m N o s s a S e n h o r a , c a n t a n d o suas
litanias todos os sábados e, d u r a n t e o mês e m q u e o m o i n h o n ã o roda, recitando o
terço e, enfim, n ã o tolerar risos, conversas e práticas i n d e c e n t e s , n ã o s o m e n t e na capela
c o m o na galeria coberta, s o b r e t u d o d u r a n t e a c e l e b r a ç ã o d o S a n t o S a c r i f í c i o da M i s s a . 7

Além de dar aulas aos filhos do s e n h o r d e e n g e n h o e a b e n ç o a r o e n g e n h o , pedindo a


Deus que a m o a g e m fosse rentável, o capelão t i n h a a o b r i g a ç ã o de casar, batizar e fazer
com que o dever pascoal fosse c u m p r i d o . M a s isso devia ser f e i t o c o m autorização in
scriptis do cura da paróquia encarregado dessas f u n ç õ e s . 8

O s capelães das irmandades religiosas o u das grandes p l a n t a ç õ e s n e m de longe se


enquadravam no m o d e l o t r i d e n t i n o . M a n t i n h a m laços m u i t o f r o u x o s c o m as autori-
dades eclesiásticas, s u b m e t i a m - s e ao clero o r d i n á r i o sem q u e dele fizessem parte, eram
dotados de ampla m a r g e m de ação ( t a m b é m prestavam serviços, p o r e x e m p l o , a navios
negreiros) e a c o m p a n h a v a m expedições às terras interiores, e n t r a n d o em c o n t a t o com
índios. Por todas essas razões, alguns c o n s i d e r a m q u e " o capelão representa uma
religião familiar, um cristianismo d o m é s t i c o q u e se o p õ e a o da Igreja oficial, em que
o bispo e o pároco representam R o m a , tão d i s t a n t e , e toda sua o r g a n i z a ç ã o " . 9

Deve-se realmente ver n o capelão, padre secular c o m o q u a l q u e r o u t r o , um opositor


sistemático da Igreja hierárquica? Será r e a l m e n t e útil o p o r religião familiar e cristianis-
mo doméstico a religião oficial e cristianismo universal? E m ú l t i m a análise, que ele-
mentos diferenciam os dois universos? A religião dita familiar e o cristianismo deno-
minado doméstico não estão c o n t i d o s no c o n j u n t o m a i o r da Igreja Católica? N o plano
da catequese e da moral nunca houve divergências. Parece-nos, pois, que é necessário
ver aí, menos que uma oposição, uma c o m p l e m e n t a r i d a d e nascida das estruturas desta
Igreja surgida sob o regime do Padroado.

O s padres encontravam no Brasil possibilidades variadas — e complementares —


de exercer seu ministério. M a s todas essas funções, desenvolvidas na cidade ou no
campo, não criavam um d i n a m i s m o verdadeiro. Relacionavam-se a u m a rotina inca-
paz de satisfazer as ambições pessoais de um clero cujo nível cultural era superior ao
do conjunto da p o p u l a ç ã o . 10
Ele sc engajava cm atividades profanas que demandavam
mais energia c imaginação. C o m o expliquei anteriormente, entre o fim do século
c a década de 1 8 4 0 o clero regular participou ativamente de todos os movimen-
tos revolucionários que agitavam o país.
LIVRO V - A IGREJA 339

O s padres se t o r n a r a m figuras i m p o r t a n t e s nesses m o v i m e n t o s , s o b r e t u d o no


N o r d e s t e . D u r a n t e a C o n f e d e r a ç ã o d o E q u a d o r , e m 1 8 2 4 , o frade c a r m e l i t a J o a q u i m
do A m o r D i v i n o C a n e c a ( F r e i C a n e c a ) d e s e m p e n h o u i m p o r t a n t e papel, t e n d o sido o
único chefe revolucionário fuzilado. A i n d a c m P e r n a m b u c o , o d e c a n o Bernardo Luiz
Ferreira e os p a d r e s J o ã o R i b e i r o e M i g u e l i n h o p a r t i c i p a r a m d o c o m a n d o da R e v o l u -
ção de 1 8 1 7 . N a B a h i a , o c ó n e g o M a n u e l J o s é de F r e i t a s B a t i s t a M a s c a r e n h a s , c o -
n h e c i d o c o m o p a d r e M a n u e l D e n d ê B u s , e d o m M a r c o s de S o u z a C o e l h o , f u t u r o
bispo d o M a r a n h ã o , ficaram a o l a d o d o s b r a s i l e i r o s q u a n d o d a g u e r r a pela i n d e p e n -
dência ( 1 8 2 2 - 1 8 2 3 ) .

A d o t a n d o p o s i ç õ e s q u e i a m d o e x t r e m a d o r a d i c a l i s m o a o l i b e r a l i s m o de c u n h o
mais t e ó r i c o , p a r t e d o c l e r o m o s t r a v a t e r u m a c o n s c i ê n c i a m a i s p a t r i ó t i c a q u e e c l e -
siástica. H a v i a , é c e r t o , o s q u e c o m p a r t i l h a v a m os p o n t o s d e vista d a a l t a h i e r a r q u i a e,
do alto dos p ú l p i t o s , p r e g a v a m o r d e m c t r a n q ü i l i d a d e , a c u s a n d o d e a n a r q u i s t a s os
movimentos liberais dos primeiros anos de independência do p a í s . 1 1

O s m e m b r o s m a i s c u l t o s e m a i s i n f l u e n t e s d o c l e r o e r a m i n f l u e n c i a d o s por J e a n -
Jacques R o u s s e a u , A d a m S m i t h , E m m a n u e l K a n t e V i c t o r C o u s i n . O s b a i a n o s liam L a
Fontaine, mas t a m b é m M o n t e s q u i e u , V o l t a i r e , C o n d i l l a c e B e n t h a m . 1 2
A l g u m a s des-
sas obras e r a m c o n d e n a d a s p o r R o m a , p o i s d e f e n d i a m d o u t r i n a s declaradas h e r é t i c a s
havia m u i t o t e m p o . 1 3
A l i á s , o s c o n h e c i m e n t o s t e o l ó g i c o s desse c l e r o n ã o eram n a d a
o r t o d o x o s . B a s e a v a m - s e n o Catecismo de M o n t p e l l i e r e n o Manual de teologia de L y o n ,
obras j a n s e n i s t a s , t a m b é m c o n d e n a d a s p o r R o m a . O p r i m e i r o era a t r a d u ç ã o das
Instruções gerais, e m f o r m a d e c a t e c i s m o , f e i t a pelo. o r a t o r i a n o F r a n ç o i s - A i m é P o u g e t ,
diretor d o s e m i n á r i o d e M o n t p e l l i e r . F o r a i m p r e s s o e m Paris e m 1 7 0 2 e várias vezes
c o n d e n a d o p e l a S a n t a S é d e s d e 1 7 2 1 . A s Institutiones Theologiae ad usum scholarum
haviam s i d o p u b l i c a d a s e m L y o n e m 1 7 8 0 , e m seis v o l u m e s , p e l o o r a t o r i a n o J o s e p h
Valia e c o l o c a d a s n o Index d o s livros p r o i b i d o s e m 1 7 9 2 . A p e s a r dos p r o t e s t o s d o
núncio C a l e p p i , a c o m i s s ã o p o r t u g u e s a d e c e n s u r a a u t o r i z o u a p u b l i c a ç ã o d o livro,
que foi a p o i a d a p e l o b i s p o d o R i o d e J a n e i r o . E m 1 8 1 3 , o b i s p o J o s é C a e t a n o d a Silva
C o u t i n h o e o n ú n c i o m a n t i v e r a m u m a p o l ê m i c a s o b r e a Teologia de L y o n , utilizada
como texto básico para os padres. O bispo desafiou o n ú n c i o a apontar pelo menos um
erro na o b r a . E s t e n ã o a c e i t o u o d e s a f i o , c o n s i d e r a n d o - o s u p é r f l u o , já q u e o livro
estava n o Index.
Cirande parte d o c l e r o era m e m b r o de lojas m a ç ó n i c a s , apesar da c o n d e n a ç ã o
destas pela S a n t a S é . O padre A n t ô n i o F e i j ó , d o m J o s é C a e t a n o da Silva C o u t i n h o
(bispo d o R i o d e J a n e i r o e n t r e I 8 0 8 e 1 8 3 3 c C o n d e de I r a j á ) , o c ó n e g o J a n u á r i o da
C u n h a B a r b o s a e os i r m ã o s F r a n c i s c o de S a n t a T e r e s a de J e s u s S a m p a i o e F r a n c i s c o
M o n t a l v e r n e e r a m a l g u n s m e m b r o s d o c l e r o brasileiro p o l i t i c a m e n t e m u . t o ativos e
notoriamente ligados, em alto grau, à m a ç o n a r i a . 1 4

E m grande m e d i d a a u t o d i d a t a , i m b u í d o de d o u t r i n a s p o u c o ortodoxas e m u i t o
Politizado, o c l e r o agia da m e s m a f o r m a q u e a p o p u l a ç ã o em geral. O povo sab.a
diferenciar o padre q u e c e l e b r a v a o s m i s t é r i o s da fé em sua igreja e o h o m e m que vivia
ím BAUSA, S c c i t o XIX

sua vida p r o f a n a . M a s esses h o m e n s , q u e a p a r e n t e m e n t e se d i s t i n g u i a m tão pouco dos


o u t r o s , e x e r c i a m g r a n d e i n f l u e n c i a . É p r e c i s o , por isso. a n a l i s a r a f u n d o a figura
mais regra d o q u e e x c e ç ã o , m e s m o d e p o i s das r e f o r m a s , c m p l e n o s é c u l o X I X — ¿ 0

p a d r e q u e vivia c e r c a d o p o r sua família, assim c o m o a figura d c sua ' e s p o s a , dedicada


aos c u i d a d o s da casa. O p a i - p á r o c o , f r e q ü e n t e m e n t e c h a m a d o d c ' p a d r i n h o 1
por seus
p r ó p r i o s filhos, o c u p a v a - s e da e d u c a ç ã o e das carreiras d e s t e s , c o m o qualquer p j a

D u r a n t e o p r i m e i r o q u a r t o d o s é c u l o X I X , c m e s m o d e p o i s , os padres n ã o usavam
b a t i n a , vestindo-se da m e s m a m a n e i r a q u e suas o v e l h a s . O p a d r e C o r r e i a , por exem-
plo, p r o p r i e t á r i o de u m a g r a n d e f a z e n d a e m T r ê s R i o s ( R J ) , a p r e s e n t o u - s e ao viajante
a l e m ã o P o h l c o m u m a j a q u e t a e u m a c o n d e c o r a ç ã o da O r d e m de C r i s t o ! O mesmo
viajante i d e n t i f i c o u o u t r o p a d r e graças a s e u b a r r e t e ; o u t r o usava u m casaco azul-
celeste, m e i a s c u n a s e t a m a n c o s n o s pés, c o m as p e r n a s n u a s .

H a v i a padres ricos, m a s e r a m m i n o r i a . E m b o r a , s e m d ú v i d a , privilegiados, eles em


geral n ã o t i n h a m vida f a r t a . D o E s t a d o o u das i r m a n d a d e s , r e c e b i a m salários insufi-
cientes. 1 5
N o s é c u l o X I X , d e i x a r a m d e s e r a g r i c u l t o r e s , c o m e r c i a n t e s , ferreiros ou
d o n o s de a l b e r g u e s , m a s essas a t i v i d a d e s f o r a m s u b s t i t u í d a s p o r o u t r a s . M u i t o s se
t o r n a r a m d e p u t a d o s , professores o u d i r e t o r e s de e s c o l a s . P o r o u t r o l a d o , perpetuou-se
a prática de s o l i c i t a r d o n a t i v o s d o s fiéis, a p e s a r d o s e s f o r ç o s da h i e r a r q u i a para aboli-la.

N o fim d o s é c u l o X V I I I havia e m S a l v a d o r u m p a d r e para s e t e n t a h a b i t a n t e s , mas


essa p r o p o r ç ã o foi m o d i f i c a d a d u r a n t e a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o X I X , c o m a dimi-
n u i ç ã o havida n o c l e r o . A c h e g a d a de p e q u e n a q u a n t i d a d e de padres e religiosos
estrangeiros n ã o a j u d o u a resolver o p r o b l e m a d a escassez de v o c a ç õ e s , considerado na
é p o c a c o m o c o n s e q ü ê n c i a d o d e s c r é d i t o e m q u e se e n c o n t r a v a o s a c e r d ó c i o . O s baixos
salários t a m b é m c o n t r i b u í a m para i s s o , 1 6
m a s é p r e c i s o a c r e s c e n t a r o u t r o s fatores. Em
p r i m e i r o lugar, a c r i a ç ã o d o e n s i n o s u p e r i o r d r e n a r a u m a p a r t e da j u v e n t u d e para
ofícios m u i t o mais p r e s t i g i o s o s , c o m o os de a d v o g a d o , m é d i c o , e n g e n h e i r o , juiz e
p o l í t i c o . T a m b é m a c o n t e c i a c o m f r e q ü ê n c i a q u e o p e r í o d o de estudos nos pequenos
seminários n ã o levasse ao s a c e r d ó c i o , c o m os s e m i n a r i s t a s p r e f e r i n d o ingressar no
serviço p ú b l i c o , o n d e as r e m u n e r a ç õ e s e r a m m a i o r e s e as vantagens sociais, mais
c o n c r e t a s . U m f u n c i o n á r i o i n s i g n i f i c a n t e gozava, j u n t o ao p ú b l i c o , de u m prestígio
m u i t o superior ao de u m padre. A l é m disso, a f u n ç ã o d a q u e l e trazia uma série de
benefícios, que podiam inclusive abrir c a m i n h o para a f o r t u n a .

A firme d e t e r m i n a ç ã o de r e f o r m a r os c o s t u m e s d o clero exigia que os candidatos


tivessem vocação. O s bispos r e f o r m a d o r e s sacrificaram d e l i b e r a d a m e n t e a quantidade
à qualidade, c a r o m a n i z a ç ã o da Igreja — sua estrita o r t o d o x i a , sua posição intransi-
gente d i a n t e das novidades d o século — fez 0 resto.
Essa era a imagem transmitida pelo clero brasileiro nos primeiros anos posterio-
res à I n d e p e n d ê n c i a . Apesar d c suas características negativas, os padres eram muito
bem acolhidos pela população, fossem capelães de e n g e n h o ou de irmandades, pá-
rocos rurais ou urbanos. Apesar de suas inúmeras limitações, eles foram conselhei-
ros e amigos das famílias, protetores dos o p r i m i d o s , mestres-escola informados e
ü\no V - A IGREJA
341

e s c u t a d o s , v e r d a d e i r o s pais p a r a suas o v e l h a s . As r e f o r m a s i n t r o d u z i d a s pela I g r e j a


alteraram essa i m a g e m ? O s padres p e r d e r a m sua c o n d i ç ã o de 'pais' c o m a romanização
da Igreja? As r e f o r m a s c r i a r a m u m n o v o p e r s o n a g e m , e m r u p t u r a c o m a sociedade
em q u e vivia? V o u t e n t a r e l u c i d a r essas q u e s t õ e s , t o m a n d o c o m o e x e m p l o o clero
secular da B a h i a .

O CLERO BAIANO DIANTE DAS REFORMAS

Pioneiro n o Brasil, o a r c e b i s p a d o da B a h i a administrava u m i m e n s o território, contan-


do c o m p a d r e s r e g u l a r e s e s e c u l a r e s . N o i n í c i o d o s é c u l o X I X , e m t o d a a C a p i t a n i a
existiam 8 9 p a r ó q u i a s ( d a d o s d e 1 8 0 8 ) p a r a u m a p o p u l a ç ã o de 3 3 6 . 0 7 2 h a b i t a n t e s
(dados de 1 8 1 2 ) . A s p a r ó q u i a s e r a m m u i t o d i f e r e n t e s e n t r e si, t a n t o p e l o t a m a n h o de
seus t e r r i t ó r i o s c o m o p e l o n ú m e r o d e seus h a b i t a n t e s . O r e c e n s e a m e n t o de 1872
registrou 1 6 9 p a r ó q u i a s e 1 . 3 8 0 . 1 8 6 h a b i t a n t e s ; o de 1 8 9 0 , 1 9 6 p a r ó q u i a s e 1 . 9 0 3 . 4 4 2
h a b i t a n t e s . E m r e l a ç ã o a o n ú m e r o d e h a b i t a n t e s , o n ú m e r o de p a r ó q u i a s d i m i n u i u , o
que m o s t r a q u e , c o m o o rei d e P o r t u g a l , o i m p e r a d o r d o B r a s i l n ã o se interessava pela
criação d e n o v a s p a r ó q u i a s .
A p a r t i r d e m e a d o s d o s é c u l o X I X , a figura d o c a p e l ã o t e n d e u a desaparecer dos
e n g e n h o s , p o i s a p r o d u ç ã o a ç u c a r e i r a e n t r o u e m d e c a d ê n c i a . M a n t e r u m serviço reli-
gioso p r i v a d o t o r n o u - s e u m p e s o n o o r ç a m e n t o d o s s e n h o r e s , p r e o c u p a d o s em c o r t a r
despesas j u l g a d a s s u p é r f l u a s . N o p e r í o d o 1 8 3 0 - 1 8 8 9 , n e n h u m i n v e n t á r i o de s e n h o r
de e n g e n h o a s s i n a l o u d e s p e s a s relativas à m a n u t e n ç ã o de u m c a p e l ã o , c u j a f u n ç ã o de
m e s t r e - e s c o l a p e r d e u i m p o r t â n c i a d e p o i s d a c r i a ç ã o , e m S a l v a d o r , de i n t e r n a t o s priva-
dos, c a d a vez m a i s p r o c u r a d o s p a r a e d u c a r os filhos de f a m í l i a s t r a d i c i o n a i s .

A fraca r e l a ç ã o e n t r e n ú m e r o d e p a r ó q u i a s e de h a b i t a n t e s p o d e indicar u m a
d i m i n u i ç ã o n o s e f e t i v o s d o c l e r o ? N ã o p o s s u o n e n h u m d a d o q u a n t i t a t i v o que permita
afirmá-lo. 17
E m c o m p e n s a ç ã o , análises q u a l i t a t i v a s p e r m i t e m deduzir que a Bahia n ã o
escapou a u m a sensível q u e d a n o n ú m e r o de c a n d i d a t o s a o s a c e r d ó c i o , característica
c o m u m a t o d o o B r a s i l . E m 1 8 4 9 , o p r o b l e m a foi c o l o c a d o p e l o presidente da Provín-
cia, J o ã o J o s é de M o u r a M a g a l h ã e s , n o s s e g u i n t e s t e r m o s : " S e u d e s t i n o [dos padres] é
bem m e s q u i n h o e d i g n o de c o m i s e r a ç ã o . N i n g u é m ignora q u e os primeiros [os páro-
cos] c o m 3 0 0 m i l réis c os s e g u n d o s [os c o a d j u t o r e s ] c o m 5 0 mil réis anuais, n ã o têm
meios de prover a sua indispensável s u b s i s t ê n c i a . Por o u t r o lado, é impossível que uma
côngrua i n s i g n i f i c a n t e , s e m outras c o n s i d e r a ç õ e s sociais, possa atrair distintos cida-
dãos capazes de f o r m a r u m c l e r o virtuoso e c u l t o . " O presidente acrescentou que os
paroquianos recusavam-se a pagar os direitos de estola e outros e m o l u m e n t o s devidos
ao clero, s e g u n d o a legislação c m vigor. D e c l a r o u t a m b é m que " o destino dos cónegos
e dignitários m e t r o p o l i t a n o s n ã o é mais favorável pois, reduzidos a côngruas insigni-
ficantes, n ã o t ê m m e i o s de se m a n t e r c o m decência n u m a capital em que os gêneros
alimentícios de primeira necessidade são tão caros".
BAHIA, SÉCULO X I X

P r a g m á t i c o , o p r e s i d e n t e d a P r o v í n c i a a t r i b u i u a falta d e i n t e r e s s e dos jovens p l e a

vida s a c e r d o t a l à m o d é s t i a d o s s a l á r i o s , s e m se i n t e r r o g a r s o b r e as o u t r a s razões q U ç

p o d i a m afastá-los d o m i n i s t é r i o eclesial. Q u a t r o a n o s m a i s t a r d e , a o festejar a funda-


ç ã o d o S e m i n á r i o M e n o r e m q u e o s p a d r e s v i c e n t i n o s d a v a m a " p r i m e i r a educação
para o s a c e r d ó c i o " , o n o v o p r e s i d e n t e , J o ã o M a u r í c i o W a n d e r l e y , f u t u r o Barão de
C o t e j i p e , a d m i t i u q u e " a i n d a h á m u i t o a fazer p a r a q u e t e n h a m o s u m clero de boa
moralidade e instruído". O t e m a d o s b a i x o s s a l á r i o s v o l t o u e m sua a l o c u ç ã o : "Os
v e n c i m e n t o s d o r e v e r e n d o c a p í t u l o e as c ô n g r u a s d o s p á r o c o s s ã o e x t r e m a m e n t e insu-
ficientes para as necessidades básicas d a v i d a e, se e m a l g u m a s p a r ó q u i a s h á emolumentos
s u b s t a n c i a i s , c o m o a f i r m a o E x c e l e n t í s s i m o M e t r o p o l i t a n o , n a m a i o r p a r t e dessas, eles
[os p á r o c o s ] só p a r t i l h a m u m a p o b r e z a e u m a m i s é r i a a v i l t a n t e s e p o d e m se considerar
c o m o verdadeiros m e n d i g o s . " 1 9

E m 1 8 5 6 , Á l v a r o T i b é r i o d e M o n c o r v o L i m a , t a m b é m p r e s i d e n t e da Província,
repetiu o m e s m o t i p o d e c o m e n t á r i o : a p ó s f e l i c i t a r u m a p a r t e d o c l e r o q u e apresentava
sinais d e sensível m e l h o r a e n ã o r e c u s a r a t r a b a l h a r n o s l o c a i s a f e t a d o s p e l a epidemia de
cólera-morbo — " m u i t o s p e r d e r a m suas v i d a s p o r a q u e l a s d e seus i r m ã o s " — acres-
c e n t o u : " N ã o b a s t a se o c u p a r d a e d u c a ç ã o d o c l e r o , m a s é n e c e s s á r i o , p a r a a santidade
e a i m p o r t â n c i a d e s e u c a r á t e r , f o r n e c e r - l h e r e c u r s o s p a r a q u e p o s s a viver d e c e n t e m e n -
te, p o u p a d o d a i n d i g ê n c i a ; é p r e c i s o c o n f e s s a r q u e s ã o m e s q u i n h a s as c ô n g r u a s de 3 0 0
m i l réis q u e os c u r a s r e c e b e m . " P a r a r e p a r a r tal s i t u a ç ã o , ele p r o p ô s q u e a Assembléia
P r o v i n c i a l a u m e n t a s s e o s 2 0 m i l réis e x t r a o r d i n á r i o s q u e o s p a d r e s r e c e b i a m dos cofres
p ú b l i c o s , s e n d o o b r i g a d o s a c o m p l e t a r , d o p r ó p r i o b o l s o , o s a l á r i o d e seus coadjutores,
aos q u a i s os f u n d o s p r o v i n c i a i s só d a v a m 5 0 m i l réis a n u a i s . 2 0
A A s s e m b l é i a não
r e s p o n d e u ao a p e l o d o p r e s i d e n t e .

O p r o b l e m a d o salário d o s p a d r e s f o i n o v a m e n t e c o l o c a d o p o r o u t r o presidente de
P r o v í n c i a , J o ã o L i n s V i e i r a C a n s a n ç ã o d e S i n i m b u , q u e aliás o fez de f o r m a mais
precisa q u e seus p r e d e c e s s o r e s , d a n d o a t é u m a e x p l i c a ç ã o i n t e r e s s a n t e . S e g u n d o ele, o
p á r o c o , m e s m o c o m p a r c o s r e c u r s o s , era o u t r o r a u m p e r s o n a g e m i m p o r t a n t e que, se
precisasse de d i n h e i r o — para consertar sua igreja, p o r exemplo — era capaz de
levantá-lo. A g o r a , esbarrava n o p o d e r p o l í t i c o : " s e o r e s p e i t o d e q u e goza for um
o b s t á c u l o ao p r o j e t o a m b i c i o s o de u m p o t e n t a d o p o l í t i c o local, sua paróquia será
dividida c seus recursos d i m i n u í d o s " . E m t o d a p a r t e o s padres t i n h a m q u e encontrar
protetores. N ã o p o d i a m pedir d i n h e i r o aos p a r o q u i a n o s , n e m .obrigá-los a cumprir
seus deveres religiosos. H a v i a o s q u e c h e g a v a m a b a t e r d e p o r t a e m porta para distri-
b u i r cédulas eleitorais dos seus b e n f e i t o r e s . P o r t u d o isso, era necessário dar a eles
m e i o s de vida e só ajudar c o m d i n h e i r o p ú b l i c o as p a r ó q u i a s c u j o s m e m b r o s tivessem
d e m o n s t r a d o , através de o f e r e n d a s , q u e t a m b é m estavam dispostos a colaborar (é
interessante observar q u e , a o pedir ao Legislativo para m e l h o r a r a sorte d o clero, o
presidente n ã o e s c o n d e u a i n t e n ç ã o de fazer c o m q u e os p a r o q u i a n o s colaborassem
também). 2 1
Assim c o m o das vezes precedentes, o s parlamentares baianos n ã o a c a t a r a m
essa nova r e c o m e n d a ç ã o . O s salários do pessoal eclesiástico p e r m a n e c e r a m fixos e
LIVRO V - A IGREJA
343

e x t r e m a m e n t e b a i x o s a t é o fim d o p e r í o d o i m r w . a l « ™ J •
F c r i o a o i m p e r i a l , s e m q u e os donativos dos fiéis
aumentassem.
S e m d ú v i d a , as p o b r e s c o n d i ç õ e s m a t e r i a i s i m p o s t a s ao c l e r o influíam f o r t e m e n t e
na r e l u t â n c i a d o s j o v e n s e m a b r a ç a r esse c a m i n h o . M a s n ã o se devem afastar as razões
evocadas a c i m a , t ã o i m p o r t a n t e s q u a n t o o f a t o r m a t e r i a l : a carreira eclesiástica t o r n o u -
se m e n o s p r e s t . g i o s a q u e as p r o f i s s õ e s liberais, a m a g i s t r a t u r a e até o f u n c i o n a l i s m o
p ú b l i c o . N ã o d e v e m o s e s q u e c e r t a m b é m q u e o n ú m e r o de c a n d i d a t o s d i m i n u i u quan-
d o a alta h i e r a r q u i a p a s s o u a s e l e c i o n á - l o s c o m m a i o r c u i d a d o . D e s t e p o n t o de vista,
a a t i t u d e d o a r c e b i s p o d o m R o m u a l d o A n t ô n i o d e Seixas foi m u i t o clara: " E se hoje
n ã o é t ã o fácil e n c o n t r a r h o m e n s de vidas i n o c e n t e s e s e m m á c u l a s , c o m o nos primei-
ros s é c u l o s , p e l o m e n o s é n o s s o dever f e c h a r as p o r t a s d o s a n t u á r i o aos intrusos que
o u s a m a p r e s e n t a r - s e s e m luzes e s e m c o s t u m e s e q u e só vão servir para arruinar (a
Igreja) c o m o u m a r e d e e s t e n d i d a s o b r e o T a b o r , c o m o dizia o p r o f e t a . " 2 2

E m m e a d o s d o s é c u l o X I X , o c l e r o b a i a n o era c o n s i d e r a d o o mais c u l t o e o de
moral mais elevada d o B r a s i l . 2 3
A r i g o r o s a s e l e ç ã o e l i m i n a v a m u i t o s candidatos, le-
v a n d o - o s a r e n u n c i a r a o s a c e r d ó c i o . M e s m o a s s i m , apesar dessa laboriosa seleção e
das r e f o r m a s d e s t i n a d a s a p r e p a r a r m e l h o r o s padres para o t r a b a l h o a p o s t ó l i c o , as
" i m p e r f e i ç õ e s m o r a i s " e a " f a l t a d e a p t i d õ e s p r o f i s s i o n a i s " desse clero foram d e n u n -
ciadas p e l o p r e s i d e n t e d e P r o v í n c i a e m 1 8 6 8 : " A i n d i f e r e n ç a c o m a qual alguns pá-
rocos e n c a r a m esse e s t a d o d e c o i s a s , só se o c u p a n d o de assuntos n ã o relacionados
c o m seu m i n i s t é r i o s a g r a d o , n o s d ã o a m e d i d a d o s grandes m a l e s q u e afligem nossa
sociedade." 2 4
S e r á q u e as r e f o r m a s n ã o h a v i a m c h e g a d o n u m m o m e n t o adequado?
E m que consistiam?
O m o v i m e n t o r e f o r m i s t a estava p r e o c u p a d o e m regenerar m o r a l m e n t e o clero
antigo e criar u m c l e r o n o v o , i n s p i r a d o n o m o d e l o d o C o n c í l i o de T r e n t o , de 1 5 4 5 -
1 5 6 3 . E n t r e as m e d i d a s t o m a d a s p o r d o m R o m u a l d o A n t ô n i o , arcebispo da B a h i a e
figura e m i n e n t e d o m o v i m e n t o , d e s t a c a r a m - s e : a o b r i g a ç ã o de usar o hábito ecle-
siástico, c o m o sinal d i s t i n t i v o d o c l e r o e m suas f u n ç õ e s litúrgicas; a prática restau-
rada d o c e l i b a t o , s e g u n d o os d e c r e t o s t r i d e n t i n o s ; a instituição de conferências ecle-
siásticas p a r a m e l h o r a r o nível d o c l e r o ; e, finalmente, a c r i a ç ã o de seminários
d i o c e s a n o s . As três p r i m e i r a s iniciativas t i n h a m c o m o o b j e t i v o 'repor nos trilhos o
clero mais a n t i g o , e n q u a n t o a ú l t i m a dizia respeito à f o r m a ç ã o dos novos cândida-
tos ao s a c e r d ó c i o .

O Uso DA BATINA

O padte devia, a n t e s de t u d o , ser pata seus semelhantes " u m exemplo vivo d e ^ r t u d e


e tetidão, n ã o a p e n a s e m sua vida de todos os dias e em seus c o s t u m a * t a m b é m
em sua m a n e i m de vestit-se, gesticulât, c a m i n h a t , p o » » ^ ^ é J Z »
i- • ~ • ^ „ r ; r . n i i p m - s e c o m seu estado . As exigências a e caráter
religioso, para q u e suas ações i d e n t i f i q u e m se c u »
BAHIA, SÉCULO X I X
Hi

m o r a l , a I g r e j a a c r e s c e n t a v a e x i g ê n c i a s de a p a r ê n c i a e x t e r i o r . N a s C o n s t i t u i ç õ e s Pri-
meiras d o A r c e b i s p a d o da B a h i a , a p r e o c u p a ç ã o de e s t a b e l e c e r regras s o b r e a aparência
dos padres e m sua vida c o t i d i a n a p r e c e d e u a p r e o c u p a ç ã o d e ditar seu c o m p o r t a m e n t o
m o r a l . E l e s d e v i a m vestir-se s e m p o m p a , l u x o e o r n a m e n t o s , de p r e f e r ê n c i a c o m bar-
retes negros e roupas, t a m b é m negras, q u e lhes c o b r i s s e m o s a r t e l h o s . A p e n a s os cónegos
e os padres l i c e n c i a d o s ( o u d o u t o r e s ) p o d i a m usar o a n e l , q u e devia ser retirado
d u r a n t e a c e l e b r a ç ã o da m i s s a . E m casa, e s t a v a m a u t o r i z a d o s a usar roupas de 'cores
h o n e s t a s ' : n e g r o , m a r r o m , r o x o e b r a n c o . V e r m e l h o , a m a r e l o , v e r d e e escalarte esta-
v a m p r o i b i d o s . Para q u e sua a d e s ã o à I g r e j a fosse visível e m t o d o lugar e p o r todos, a
t o n s u r a devia estar b e m - f e i t a , a b a r b a e o b i g o d e r a s p a d o s e os c a b e l o s c o r t a d o s curtos,
p o r c i m a das o r e l h a s . P o r t a r espada, sair à n o i t e , b e b e r , c o m e r e m tavernas, freqüentar
t e a t r o , d a n ç a r , m a s c a r a r - s e e p a r t i c i p a r de j o g o s d e azar e r a m atividades proibidas.

M a s , para a h i e r a r q u i a d a I g r e j a , n ã o se t r a t a v a a p e n a s de d a r n o v a vida aos


decretos t r i d e n t i n o s , a d o t a n d o m e d i d a s j á p r e s c r i t a s n a s C o n s t i t u i ç õ e s Primeiras do
A r c e b i s p a d o d a B a h i a , d o i n í c i o d o s é c u l o X V I I I ; t r a t a v a - s e , s o b r e t u d o , de r e n o v a r a
consciência da dignidade eclesiástica. O h á b i t o passou a exprimir a renúncia e a
a b n e g a ç ã o de u m a v i d a i n t e i r a m e n t e d e d i c a d a ao s e r v i ç o de D e u s . D o m Romualdo
A n t ô n i o , i n i c i a d o e m sua f u n ç ã o e m 1 8 2 8 , a s s u m i u nesse p o n t o u m a p o s i ç ã o firme e
i n t r a n s i g e n t e . J á na sua s e g u n d a p a s t o r a l , d a t a d a de 2 0 de f e v e r e i r o de 1 8 2 9 , afirmou:
" C o m o se caracterizarão a q u e l e s (se é q u e h á a l g u n s n e s t a d i o c e s e ) q u e se apresenta-
riam para c e l e b r a r o terrível S a c r i f í c i o , o u para s e n t a r - s e n o S a n t o T r i b u n a l da Peni-
tência, s e m o h á b i t o clerical c o m o q u a l a I g r e j a os h o n r o u , m a s c o m r o u p a s inteira-
m e n t e seculares e p r o f a n a s ? " O b i s p o o r d e n o u e n t ã o q u e " n e n h u m padre possa celebrar
o S a n t o Sacrifício s e m b a t i n a , n e m o u v i r u m a c o n f i s s ã o n a m e s m a I g r e j a sem a batina
e a sobrepeliz". E a c r e s c e n t o u : " N ó s e n c a r r e g a r e m o s t a m b é m , s o b sua mais estrita
responsabilidade, os R e v e r e n d o s P r e l a d o s dos c o n v e n t o s , os p á r o c o s , os sacristãos ou
outras pessoas aptas a dar p e r m i s s ã o p a r a a c e l e b r a ç ã o d a M i s s a , de recusá-la aos padres
que se apresentarem sem b a t i n a . " 2 5
N o t e - s e q u e , nessa p r i m e i r a r e c o m e n d a ç ã o , o
arcebispo se l i m i t o u a prescrever o uso d o h á b i t o eclesiástico u n i c a m e n t e nas funções
litúrgicas. Isso é m u i t o revelador: o c l e r o de e n t ã o a c o s t u m a r a - s e a celebrar a liturgia
vestido c o m o os leigos.

Esse primeiro passo pára i m p o r o uso d o h á b i t o foi mais detalhado na pastoral de


1 8 3 2 , que tratou dos estudos e das o r d e n a ç õ e s sacerdotais. D e p o i s de lembrar os
decretos de 5 de j u n h o e de 19 de s e t e m b r o de 1 8 3 0 s o b r e o uso o b r i g a t ó r i o da batina,
sem a qual "havia prova de falta de verdadeira v o c a ç ã o " , d o m R o m u a l d o Antônio
insistiu na exigência: " E n q u a n t o a Igreja procura dar u m a tão alta idéia da importância
c o m a qual h o n r a e distingue seus ministros (...) q u e reputação pode merecer o
ordenável que, apesar de nossas repetidas advertências e durante o curto período de
seu aprendizado, durante o qual só a modéstia, o r e c o l h i m e n t o e o fervor da piedade
devem brilhar, tem o desejo de se apresentar a nossos olhos, exibindo sua desobediên-
cia e c o m o não denunciá-lo de não ter presente em seu espírito o a m o r do estado ao
LIVRO V - A IGREJA
345

qual p r e t e n d e , t e n d o u m pé n o s a n t u á r i o e o o u t r o no ifeiiln . « A B

• • j i j j -r- , século, segundo a exDressão


l u n o

enérgica dos prelados de T r e n t o ( . . . ) P a u e r c m n,„> „ . . . P ° C A r c s s a

, - , , . . V
- ;
;
I C (
qu e
P e r m a n e ç a m o s indiferentes dian-
r e m u c

te de u m a tao e s c a n d a l o s a v i o l a ç ã o das leis da Igreja "

• A P e S a
h
á
Z 7» ™ '
r ÕeS
T ° P r d a d 0 n â 0 f 0 Í
-latamente obedecido,
pois e m abril de 1 8 3 8 s u s p e n d e u padres r e c a l c i t r a n t e s . ^ N ã o sei se essa nova medida
serviu para generalizar o u s o d a b a t i n a . S e m dúvida, o clero da capital se submeteu
mais f a c i l m e n t e q u e o p o b r e c l e r o das zonas rurais e das paróquias afastadas. M a s por
volta de 1 8 8 0 , havia padres q u e , n o c o t i d i a n o , ignoravam a batina. Bellarmino Sylvestre
T o r r e s , p o r e x e m p l o , se vestia c o m roupas c o m u n s , n o exercício de seu mandato de
deputado à A s s e m b l é i a P r o v i n c i a l . A s s i m aparece, na única f o t o q u e possuímos, este
padre p a r l a m e n t a r q u e era, a d e m a i s , pai de n u m e r o s a família.

O CELIBATO

O c e l i b a t o , j á o v i m o s , foi u m d o s p r o b l e m a s d e b a t i d o s p u b l i c a m e n t e durante a
década de 1 8 3 0 . N ã o o b s t a n t e a v i t ó r i a final de seus adeptos, a questão foi, sem
dúvida, u m a das m a i s e s p i n h o s a s q u e a I g r e j a e n f r e n t o u . E l a parecia resolvida desde o
C o n c í l i o de L a t r ã o , realizado e m 1 1 2 3 , q u a n d o o p a p a C a l i x t o I I declarou nulos os
casamentos d o s s a c e r d o t e s e i m p ô s a m e d i d a .

E m b o r a c o n f i r m a d o p e l o C o n c í l i o de T r e n t o , o celibato foi, n o Brasil, mais ficção


do que realidade. O s padres brasileiros n u n c a o b t i v e r a m , é c l a r o , permissão para casar,
mas o e p i s c o p a d o m o s t r o u - s e t o l e r a n t e para c o m aqueles que viviam em c o n c u b i n a t o .
Q u a n d o da r e d a ç ã o das C o n s t i t u i ç õ e s P r i m e i r a s ( 1 7 0 7 ) , houve um esforço especial
para l e m b r a r as razões d a c a s t i d a d e : a c o n s a g r a ç ã o a D e u s exigia pureza e reforma de
costumes. A o s o l h o s d o s fiéis, t o d a transgressão a esses preceitos tornava o padre
indigno de sua alta m i s s ã o e c o b r i a de d e s o n r a o estado clerical.
M a s , para além de e x o r t a ç õ e s m o r a i s , q u e medidas foram tomadas para erradicar
a prática d o c o n c u b i n a t o ? O a r c e b i s p o devia i n i c i a l m e n t e admoestar os padres faltosos,
em segredo para evitar e s c â n d a l o p ú b l i c o , e aplicar c o n t r a eles uma multa de dez
cruzados. S c a s i t u a ç ã o perseverasse, o padre perdia e m seguida 1/3 de seu salário; num
terceiro estágio é q u e se cogitava d e retirar dele todos os benefícios materiais e suspen-
der suas f u n ç õ e s d u r a n t e u m a n o . S e o padre continuasse em pecado, era privado para
sempre de t o d o s o s b e n e f í c i o s , salvo se fizesse confissão pública, podendo, neste caso,
recuperar tudo o q u e lhe fora retirado. Q u a l q u e r nova reincidência levava à excomunhão.
Essas medidas m o s t r a m c o m o a Igreja se preocupava cm não agir precipitadamen-
te, ao tentar trazer de volta a ovelha perdida. M o s t r a m , t a m b é m , que ela precisava sc
esforçar para i m p e d i r que u m a questão moral causasse grandes perdas cm suas fileiras.
Pragmática, a Igreja C a t ó l i c a brasileira preferia impor sanções materiais antes decor-
rer às espirituais. Privar o padre de sua renda parece ter sido o melhor meio dc chamá-
lo à razão, o que n ã o nos surpreende. M a s , que fazia a IgrCja quando o padre nao
546 BAHIA, SÉCULO X I X

recebia a c ô n g r u a ? N e s s e s casos, a p a r e c i a u m a a l t e r n a t i v a i n t e r e s s a n t e : o padre era


i n i c i a l m e n t e r e p r e e n d i d o , r e c e b e n d o u m a m u l t a de 1 . 5 0 0 réis; se persistisse e m suas
i n t e n ç õ e s , era e n v i a d o à prisão p o r u m m ê s ; e m s e g u i d a , se errasse de n o v o , era exilado
d u r a n t e d o i s a n o s d o t e r r i t ó r i o de sua d i o c e s e e pagava m u l t a de dez c r u z a d o s ; final-
m e n t e , caso persistisse, era e x i l a d o na Á f r i c a e pagava u m a m u l t a fixada pelo arcebispo.
M e s m o nesses casos, as s a n ç õ e s m a t e r i a i s p r e c e d i a m as e s p i r i t u a i s . O pecado de
c o n c u b i n a t o n ã o levava a n e n h u m p r o c e s s o , p o i s o b i s p o e r a c o m p e t e n t e para aplicar
a p e n a , q u e a t i n g i a t a m b é m a c o n c u b i n a , aliás c o m m a i s f o r ç a d o q u e n o caso das
mulheres que m a n t i n h a m relações ilícitas c o m leigos.

A n t e s de aplicar as s a n ç õ e s , n o e n t a n t o , h a v i a m e d i d a s p r e v e n t i v a s . P a r a evitar
q u a l q u e r f o r n i c a ç ã o , a m o r a l i d a d e das s e r v i ç a i s d e v i a e s t a r a c i m a de q u a l q u e r suspeita,
s e n d o f o r m a l m e n t e p r o i b i d o q u e o p a d r e tivesse c r i a d a s c o m m e n o s d e c i n q ü e n t a
a n o s , a n ã o ser q u e se tratasse d e f a m i l i a r e s ( a v ó s , m ã e s , i r m ã s , s o b r i n h a s e primas-
i r m ã s ) , " p o i s o e s t r e i t o l a ç o d e p a r e n t e s c o as c o l o c a a c i m a d e s u s p e i t a s " . Apesar dos
esforços, n u m e r o s o s f o r a m o s p a d r e s q u e v i o l a r a m essa d i s c i p l i n a f u n d a m e n t a l da vida
religiosa c a t ó l i c a . P a r a e x p l i c á - l o , é p r e c i s o l e m b r a r q u e a i m a g e m d e padres casados e
c o m filhos era t ã o a n t i g a n o B r a s i l q u a n t o a p r ó p r i a p r e s e n ç a d a I g r e j a . E s s e c o s t u m e
era aceito p e l o p o v o e e s t a v a p r o f u n d a m e n t e e n r a i z a d o n o s h á b i t o s clericais. N o
m o m e n t o e m q u e as r e f o r m a s i n t e r v i e r a m p a r a a b o l i - l o , g r a n d e p a r t e d o c l e r o vivia
maritalmente.

O caso d a B a h i a é e d i f i c a n t e . M e u e s t u d o se b a s e i a e m 1 1 4 testamentos e 29
inventários d e padres f a l e c i d o s n a P r o v í n c i a e n t r e 1 8 0 1 e 1 8 8 7 , o q u e c o n f i g u r a uma
a m o s t r a r a z o a v e l m e n t e r e p r e s e n t a t i v a . I g n o r o , p o r é m , a i d a d e e m q u e c a d a u m desses
padres f a l e c e u . D e s s e s 1 1 4 p a d r e s , d o i s — J o s é A l v e s de B a r a t a e I g n a c i o J o s é M a r i a
— eram viúvos q u a n d o r e c e b e r a m a o r d e n a ç ã o . O p r i m e i r o , f a l e c i d o e m 1 8 2 7 , tinha
sido c a s a d o c o m d o n a F e l í c i a , q u e l h e d e r a d u a s filhas e c i n c o filhos, u m dos quais
seguira a carreira d o p a i . 2 7
I g n a c i o J e s u s M a r i a , f a l e c i d o e m 1 8 3 7 , t o r n a r a - s e padre
para superar o s o f r i m e n t o c a u s a d o pela m o r t e d a m u l h e r e m u m p a r t o . 2 8

R e s t a m os i n v e n t á r i o s d e 1 1 2 p a d r e s , t o d o s d e c l a r a d o s c e l i b a t á r i o s , c o m o exigia a
lei. S e s s e n t a e sete deles m o r r e r a m e n t r e 1 8 0 1 e 1 8 5 0 ; 4 5 , e n t r e 1 8 5 0 e 1 8 8 7 . S e
a d m i t i r m o s q u e , e m geral, m o r r e r a m c o m 5 5 a 6 5 a n o s de i d a d e , nasceram entre
meados do século X V I I I e m e a d o s d o s é c u l o X I X . T r a t a r - s e - i a e n t ã o de um clero an-
tigo, f o r m a d o sem a i n f l u ê n c i a das d u a s r e f o r m a s essenciais — a restauração d o celi-
b a t o e a f u n d a ç ã o dos s e m i n á r i o s e p i s c o p a i s — i n t r o d u z i d a s a partir dos anos 1 8 4 0 .
Q u e c o m p o r t a m e n t o teve esse clero?
A tabela 6 4 é clara: 8 2 % dos padres falecidos e n t r e 1 8 0 1 c 1 8 5 0 n ã o declararam
filhos, mas entre 1 8 5 1 e 1 8 8 7 esse p e r c e n t u a l caiu para m e n o s da metade ( 4 8 , 9 % ) - É
espantoso, mas é fácil explicar: os padres falecidos n o s e g u n d o p e r í o d o ainda eram, por
idade e m e n t a l i d a d e , h o m e n s d o século X V I I I .
Por que, e n t ã o , n o p e r í o d o anterior, ainda mais p r ó x i m o d o século X V I I I , só 1 8 %
declararam filhos? Aqui t a m b é m a explicação é simples: e m 11 de abril de 1 8 3 1 foi
LIVRO V - A IGREJA
MJ

TABELA 64

N Ú M E R O D E F I L H O S D E PADRES BAIANOS (1801-1887)


PERÍODO
1801-1850
1851--1887
N ° DE PADRES
67 (%)
45 (%)
N ° DE FILHOS DECIARADOS
Z c r o
55 (82,0)
22 (48,9)
U m
6 (9.0) 3
Dois (6,7)
3 (4,5) 6
Ir cs (13,3)
3 (4,5) 6
Quatro (13.3)
4 (8,9)
Cinco ou mais
4 (8,9)
Fontes: Testamentos e inventários depositados no Arquivo do Estado da Bahia, Seção ludi-
ciária. ' ' v

publicado u m d e c r e t o , assinado pelo m i n i s t r o da Justiça, padre D i o g o Antônio Feijó,


c o n c e d e n d o a o s filhos i l e g í t i m o s d e q u a l q u e r n a t u r e z a a c a p a c i d a d e j u r í d i c a de herdar
de seus p a i s , c o n t a n t o q u e e s t e s n ã o t i v e s s e m h e r d e i r o s n e c e s s á r i o s ( " n e m a lei d o
Livro 4 , t í t u l o 9 3 d o C ó d i g o F i l i p e n s e n e m o u t r a L e g i s l a ç ã o e m v i g o r p r o í b e q u e os
filhos i l e g í t i m o s d e q u a l q u e r n a t u r e z a s e j a m i n s t i t u í d o s h e r d e i r o s p o r t e s t a m e n t o s de
seus pais, c a s o n ã o t e n h a m e s t e s h e r d e i r o s r e s e r v a t ó r i o s " ) . 2 9
A o declarar lacónicamente
que q u a l q u e r filho i l e g í t i m o p o d i a ser c i t a d o e m t e s t a m e n t o e h e r d a r de seu pai, esse
decreto d e u a o s p a d r e s a p o s s i b i l i d a d e d e r e c o n h e c e r seus b a s t a r d o s , tornando-os
herdeiros. L e m b r e m o s q u e , a t é e n t ã o , o filho n a t u r a l n ã o p o d i a s e r r e c o n h e c i d o p o r
um pai ( o u m ã e ) q u e t i v e s s e r e c e b i d o o r d e m r e l i g i o s a . O d e c r e t o resolveu situações
sem s o l u ç ã o , l e g a l i z a n d o - a s , n u m p e r í o d o e m q u e se d i s c u t i a a a b o l i ç ã o do c e l i b a t o .
E m nossa a m o s t r a , a n t e s d e 1 8 3 1 s ó d o i s p a d r e s d e c l a r a r a m p o s s u i r filhos naturais,
m e s m o assim g e r a d o s a n t e s d a s r e s p e c t i v a s o r d e n a ç õ e s .

M a i s d a m e t a d e d o s p a d r e s f a l e c i d o s e m S a l v a d o r e r a m pais de f a m í l i a . Pode-se
estender esse r e s u l t a d o à t o t a l i d a d e d o c l e r o b a i a n o ? C r e i o q u e n ã o , p o r duas razões.
E m p r i m e i r o l u g a r , f a z e r t e s t a m e n t o n ã o era p r á t i c a generalizada. N a m a i o r parte das
vezes, p r e t e n d i a - s e r e g u l a r i z a r s i t u a ç õ e s singulares o u favorecer terceiros c o m legados
que, f r e q ü e n t e m e n t e , n ã o i n t e g r a v a m o s b e n s familiais. A l é m disso, o n ú m e r o de
t e s t a m e n t o s c i n v e n t á r i o s u t i l i z a d o s nessa análise está l o n g e de a b r a n g e r o total de
padres f a l e c i d o s e m S a l v a d o r e n t r e 1 8 0 1 c 1 8 8 7 . S ó a r e c o n s t i t u i ç ã o de todos os casos
permitiria verificar se a c o n s t a t a ç ã o a c i m a é exata, d a n d o u m significado real ao

percentual e n c o n t r a d o . . . , , - , . A

Focalizemos agora a figura d o p a d r e - p a i . c o n h e c i d a na n d a d e de Salvador. A


tabela 6 4 i n f o r m a s o b r e o n ú m e r o d e filhos vivos n o m o m e n t o em que seus pa,s
faziam o t e s t a m e n t o . À p r i m e i r a visca, poderia parecer q u e esses » ^ " » e
" t 0
" ™ "
acidentais, já q u e a legislação eclesiástica proibia o c o „ c u b m a , o , , m p o n d o severas
sanções c m c l d e transgressão. Q u a s e todos os testadores ; u s t , f i c a v a m s e u «n»
i n v o c a n d o a 'fragilidade h u m a n a ' o u a 'fraqueza da carne ? ™
«ahor particular na b o c a de h o m e n s consagrados à Igre,a. Essa exphcaçao s 6 s e n a
BAHIA, SÉCULO X I X
348

aceitável se se tratasse de encontros amorosos episódicos, simples e sem conseqüên-


cias. Não parece ter sido o caso: se tomarmos toda a amostra, apenas 2 5 % dos pa-
dres declararam um filho — e não se sabe se disseram toda a verdade. Quarenta
por cento deles chefiavam famílias numerosas, com três filhos ou mais, o que exclui
a idéia de relações acidentais, resultantes de fragilidades passageiras. Notemos que o
percentual das famílias numerosas girava, na Bahia, em torno de 50%. Ou seja: as
famílias dos padres eram muito semelhantes às outras.
Os padres mantinham sempre a mesma mulher, mãe de seus filhos, o que ex-
clui a possibilidade de encontro fortuito ou relação sexual acidental. A que meio
social pertenciam essas mulheres? Para responder, sou obrigada a recorrer a hipóte-
ses. Seus nomes — Joaquina Rita do Amor Divino, Ana Joaquina de São José, Rita
do Paraíso etc. — eram típicos da classe média baixa da população livre. A ausência
de um patronímico era comum nas classes populares. Além disso, nota-se também a
falta da palavra 'dona', que sempre precedia os prenomes de mulheres das classes
superiores. Um padre admitiu que a mãe de seus filhos era sua escrava mulata, Ana
Maria da Saúde.
Essas mulheres eram jovens quando entraram na vida dos padres, geralmente a
serviço, desobedecendo à interdição eclesiástica, que, como vimos, exigia que as empre-
gadas tivessem uma 'idade canónica', isto é, mais de cinqüenta anos. O concubinato
com um padre trazia muitas vantagens para tais mulheres, em termos de segurança e
ascensão social, mesmo que as rendas do parceiro não fossem muito grandes. As crianças
que nascessem dessas uniões tinham futuro assegurado e freqüentemente prestigioso,
pois quase todos os filhos de padres se inseriam nas camadas superiores da sociedade,
fazendo carreira como advogados, médicos, magistrados, funcionários, professores,
comerciantes ou mesmo religiosos. Quanto às meninas, devidamente dotadas por seu
pai, casavam com homens do mesmo meio social que seus irmãos ou, se ficassem
solteiras, herdavam bens paternos que as protegeriam da pobreza e da indigência.
O prestígio da função do pai era-extensivo à mulher e às crianças, mesmo que essas
últimas só fossem reconhecidas — quando o fossem — por testamento. Numa socie-
dade em que nascimentos ilegítimos não eram obstáculo social — até porque eram
mais regra que exceção — , ser filho ou filha de padre não mudava grande coisa. Ao
contrário. Essa filiação era considerada um privilégio, já que facilitava o acesso a
profissões e funções respeitadas. Se a sociedade aceitava com naturalidade o comporta-
mento faltoso do clero, compreende-se como era difícil para a alta hierarquia da Igreja
impor o celibato. Reformar tais hábitos era, em certa medida, reformar costumes de
toda a sociedade. Exigia-se um duplo combate. Por isso, o arcebispo dom Romualdo
Antônio colocava a reforma moral da sociedade brasileira antes da reforma clerical.
Tanto quanto podemos depreender, a atitude da hierarquia eclesiástica baiana foi
extremamente discreta diante dessa situação. O biógrafo de dom Romualdo Antônio
descreveu assim a atividade pastoral deste, no tocante à reforma moral do clero:
Reformador prudente e circunspecto, seu primeiro cuidado foi de regenerar o clero,
mas assim como é dever do médico de comerar n „ , t f

c começar o tratamento extirpando um tumor


cujas raízes cresceram nos tecidos orgânicos do m m A n

. a •, j 6 »'cos ao corpo, da mesma maneira o prelado


d

consagrou todo o seu cu.dado e a maior delicadeza para extirpar o mal que afetava o
clero; mas resguardando u a d.gmdade sem escândalos e sem recorrer a método"
S

coercmvos, sempre pengosos, sobretudo para a época à qual nos referimos."» Foi uma
demonstração de prudenca c sabedoria do prelado baiano, que decidiu não precipitar
a evolução de um processo cujos resultados poderiam provocar perigoso mal-estar na
sociedade e no clero.
No único caso de que tenho conhecimento - o do padre Bellarmino Sylvestre
Torres — o bispo preferiu transferir o culpado para outra paróquia, evitando infligir-
lhe punições, "sempre perigosas". Mais uma prova de lucidez. Sabendo que não con-
seguiria modificar essa realidade, o bispo concebeu sua ação reformadora em perspec-
tiva, com vistas ao futuro, exigindo dos novos padres o que os antigos não podiam
oferecer. Essa linha foi seguida por todos os bispos que lhe sucederam à frente da
arquidiocese (dom Manoel Joaquim da Silveira, 1 8 6 1 - 1 8 7 4 ; dom Joaquim Gonçalves
de Azevedo, 1 8 7 7 - 1 8 7 9 ; dom Luiz Antônio dos Santos, 1 8 7 9 - 1 8 9 0 ; dom Antônio de
Macedo Costa, nomeado em 1 8 9 0 e morto em seguida).
Sem dúvida, a regra do celibato continuou a ser transgredida, sobretudo nas zonas
rurais. Mas, no fim do século X I X , o concubinato clerical tornou-se 'coisa escondida' e
inconfessável, tolerado porém ignorado pela Igreja, aceito pela sociedade sem discussão.
Quando recebiam visitas dos bispos, os padres costumavam mandar seus filhos para a
casa de padrinhos, o que provocava comentários mais ou menos generalizados. Deve-
mos lamentar essa mudança de atitude, que introduziu hipocrisia onde antes havia
clareza e nitidez? Talvez. Não há dúvida de que isso fez mais mal do que bem à Igreja.

As CONFERÊNCIAS ECLESIÁSTICAS

Para parte do clero, uma reforma imediata em seus costumes parecia impossível. Mas
o surgimento das conferências eclesiásticas pelo menos permitia que todos os padres
aprofundassem o estudo das disciplinas religiosas, especialmente a teologia moral.
Iniciadas no século XVI pelo bispo de Milão, são Carlos Borromeu, elas se destinavam
a ajudar o bispo ou seu representante a acompanhar mais de perto a vida espiritual c
moral do clero, criando as condições para que fossem transmitidas 'recomendações.
Dom Romuaido Antônio instituiu essas conferências logo no iníco de seu episcopa-
do: "A honra de nosso estado, a causa da religião da qual somos os n u «
própria característica de nossa época exigem de nós todos os esforços para obter maior
grau de instrução», escreveu em 1830. «Mas, se é vergonhoso que umi p a d r e - o nha
. . . i n n nara servir melhor a religião, seria ainaa
í a m

o mesmo níve que os leigos de seu tempo para servir n f mini«rA.


. . j r r í n ^ essenciais e específicas de seu ministe-
mais vergonhoso que ele ignorasse as doutrinas essenciais
r t l l
^
r
*o ou sua profissão."
BAHIA, SÉCULO X I X
350

O c l e r o d e S a l v a d o r foi c o n v i d a d o a r e u n i r - s e d u a s vezes p o r m ê s n a sede do


s e m i n á r i o e p i s c o p a l para assistir c o n f e r ê n c i a s s o b r e t e o l o g i a m o r a l . 3 1
O b i s p o se preo-
c u p a v a t a m b é m c o m o c l e r o r u r a l , c u j o nível c u l t u r a l era m u i t o b a i x o : " E p o r q u e não
é j u s t o q u e o s r e v e r e n d o s c u r a s das p a r ó q u i a s rurais s e j a m p r i v a d o s desse s o c o r r o que,
n o s locais e m q u e v i v e m , t o r n a - s e a i n d a m a i s n e c e s s á r i o p o r f a l t a d e o u t r o s m e i o s e por
causa d a d i f i c u l d a d e de e s c l a r e c e r d ú v i d a s q u e n a s c e m a c a d a passo d o e x e r c í c i o das
f u n ç õ e s p a r o q u i a i s e, p r i n c i p a l m e n t e , n a a d m i n i s t r a ç ã o d o s s a c r a m e n t o s d a penitência
e d o m a t r i m ô n i o , o r d e n a m o s q u e , e m c a d a u m a das p a r ó q u i a s n o s d i s t r i t o s das quais
h a j a m a i s d e três p a d r e s q u e p o s s a m se r e u n i r s e m m u i t a s d i f i c u l d a d e s , m e s m o que se
trate de c a p e l ã e s d e c a p e l a s o u d e e n g e n h o s , tais c o n f e r ê n c i a s t e n h a m l u g a r n o prin-
cípio de cada mês, no curato o u n a sacristia da igreja m a t r i z . " 3 2

N ã o sei e m q u e m e d i d a essas c o n f e r ê n c i a s e f e t i v a m e n t e f u n c i o n a r a m c o m a re-


g u l a r i d a d e p r e s c r i t a . E r a , s e m d ú v i d a , m a i s fácil r e u n i r o s p a d r e s de S a l v a d o r que
o s d o i n t e r i o r , d i s p e r s o s n u m t e r r i t ó r i o i m e n s o e a f a s t a d o s u n s d o s o u t r o s p o r cen-
tenas de q u i l ô m e t r o s . D e q u a l q u e r m a n e i r a , essa i n i c i a t i v a d o b i s p o b a i a n o foi exem-
plar, l o g o r e p r o d u z i d a e m o u t r a s d i o c e s e s , c o m o a d o M a r a n h ã o . 3 3
M a s , a i n d a nes-
se p a r t i c u l a r , e r a m m u i t o t ê n u e s as p o s s i b i l i d a d e s d e i m p o r n o v a s a t i t u d e s a um
c l e r o mal p r e p a r a d o p a r a o e x e r c í c i o d o m i n i s t é r i o e h a b i t u a d o a i n d e p e n d ê n c i a e
i s o l a m e n t o . As c o n f e r ê n c i a s e c l e s i á s t i c a s e r a m s o l u ç ã o p r o v i s ó r i a . H a v i a necessidade
de e m p r e e n d e r u m á r d u o t r a b a l h o d e s e l e ç ã o e e d u c a ç ã o . C o m a c r i a ç ã o dos semi-
nários e p i s c o p a i s , o s b i s p o s b r a s i l e i r o s t e n t a r a m f o r m a r u m n o v o t i p o d e padre, mais
fiel ao m o d e l o t r i d e n t i n o . A b a n d o n o u - s e a v e l h a p r á t i c a d e r e c r u t a r o c l e r o entre
jovens sem formação sistemática.

FORMAÇÃO D O CLERO

N a é p o c a c o l o n i a l , q u a t r o c a m i n h o s , n ã o e x c l u d e n t e s e n t r e si, p o d i a m preparar para


a vida religiosa. O p r i m e i r o e r a m as C o n f r a r i a s d o M e n i n o J e s u s . C r i a d a s n o s Colégios
Jesuítas n o século X V I , elas e r a m d i r i g i d a s e m a n t i d a s p o r leigos. Desapareceram
m u i t o c e d o , pois os jesuítas n ã o a c e i t a v a m c o m f a c i l i d a d e q u e leigos se imiscuíssem
nos negócios da O r d e m ,

O s e g u n d o eram os p r ó p r i o s C o l é g i o s J e s u í t a s q u e , e n t r e 1 5 6 0 e 1 7 5 9 , funciona-
ram em regime d c i n t e r n a t o , s e n d o responsáveis pela e d u c a ç ã o de j o v e n s , independen-
t e m e n t e de sua o p ç ã o pela carreira s a c e r d o t a l . O e n s i n o era m i n i s t r a d o ali em três
graus — e l e m e n t a r , s e c u n d á r i o ( h u m a n i d a d cs) e s u p e r i o r (artes) — e, d u r a n t e certo
período, os q u e p r e t e n d i a m seguir na vida religiosa faziam, à parte, u m curso de
teologia moral e especulativa. D e p o i s d o fracasso das confrarias, os colégios se dedica-
ram à f o r m a ç ã o dos futuros sacerdotes.
O terceiro c a m i n h o eram os s e m i n á r i o s eclesiásticos. N a s últimas seções do C o n -
cílio de T r e n t o os participantes insistiram na necessidade d e preparar m e l h o r os pa-
drcs, c o m a c r i a ç ã o d e s e m i n á r i o s . A s s i m c o m o nos países da E u r o p a católica, n o Brasil
esse desejo t a m b é m t a r d o u e m t r a n s f o r m a r - s e e m realidade O L • T
w n d a d o n o fim d o s é c u l o X V I I p e l o j e s u í t a B a r t o l o r l e Í t C u " Z^e
C a c h o e i r a n o R e c ô n c a v o b a i a n o , p r e t e n d i a e n s i n a r as crianças a ler, escrever e c o n t a r
e dar-lhes h ç o e s de g r a m á t i c a e h u m a n i d a d e s , m a s n ã o de filosofia. As homilias d o m i
nicais b a s t a r i a m p a r a e n s i n a r - l h e s o s m i s t é r i o s da fé. T r a t a v a - s e , e m s u m a , de formar
bons curas d e p a r ó q u i a e n ã o d o u t o r e s d a I g r e j a o u t e ó l o g o s . S e m p r e pela iniciativa
dos j e s u í t a s , n u m e r o s o s s e m i n á r i o s f o r a m d e p o i s f u n d a d o s n o Brasil.
P o r fim, n a é p o c a c o l o n i a l h a v i a o s s e m i n á r i o s d i o c e s a n o s q u e , ao c o n t r á r i o dos
eclesiásticos, d e p e n d i a m d a a u t o r i d a d e e p i s c o p a l . C o m e ç a r a m a surgir a partir do
m e i o d o s é c u l o X V I I I , t a m b é m s o b i n f l u ê n c i a d o s j e s u í t a s . G a b r i e l M a l a g r i d a , "ver-
dadeiro m i s s i o n á r i o p o p u l a r " , foi s e u i n i c i a d o r . T e n d o v i s i t a d o as terras do N o r t e e
do N o r d e s t e n o s a n o s 1 7 4 0 , esse j e s u í t a p e r c e b e u q u e era necessário agir para m e l h o -
rar a f o r m a ç ã o d o s j o v e n s s a c e r d o t e s . E m 1 7 5 1 , o b t e v e p e r m i s s ã o do rei de Portugal
para f u n d a r s e m i n á r i o s o n d e q u e r q u e se fizessem necessários. A t é 1 6 7 6 o Brasil
contava c o m u m ú n i c o b i s p a d o , o d a B a h i a , e o s f u t u r o s padres faziam seus estudos
nos colégios d o s j e s u í t a s , t e r m i n a n d o sua f o r m a ç ã o , e v e n t u a l m e n t e , e m Portugal, de
o n d e v o l t a v a m d o u t o r e s e m d i r e i t o c a n ó n i c o o u d i r e i t o civil. A idéia do padre
Malagrida d e f u n d a r u m s e m i n á r i o d i o c e s a n o r e c e b e u a p o i o integral do arcebispo
d o m B o t e l h o , c h e g a d o à B a h i a e m 1 7 4 1 . H á i n d i c a ç õ e s de q u e a direção desse semi-
nário foi c o n f i a d a a o s p a d r e s d a C o m p a n h i a , e é provável q u e ele t e n h a f u n c i o n a d o
nas d e p e n d ê n c i a s d o C o l é g i o d o s J e s u í t a s e m S a l v a d o r . E m 1 7 5 6 , foi transferido para
imóvel p r ó p r i o , i n s t a l a n d o - s e s o b a i n v o c a ç ã o d e N o s s a S e n h o r a da C o n c e i ç ã o . E m
dezembro d e 1 7 5 9 , foi i n v a d i d o p o r s o l d a d o s , q u e p r e n d e r a m os jesuítas e expulsa-
ram o s a l u n o s . F o i n e c e s s á r i o e s p e r a r o i n í c i o d o século X I X para abrir um novo
seminário d i o c e s a n o , s o b o u t r a d i r e ç ã o . D e p o i s da expulsão dos jesuítas, todos os
seminários d i r i g i d o s p o r eles f o r a m f e c h a d o s , c o m e x c e ç ã o d o de M a r i a n a ( M G ) , que
continuou a funcionar i n t e r m i t e n t e m e n t e .

Apesar dos e s f o r ç o s , a f o r m a ç ã o dos padres c o n t i n u o u e x t r e m a m e n t e precária


durante o p e r í o d o c o l o n i a l e m e s m o d e p o i s . O s j o v e n s q u e queriam abraçar a car-
reira eclesiástica p o d i a m a p r e s e n t a r - s e d i a n t e dos e x a m i n a d o r e s sinodais sem haver
passado p o r u m c o l é g i o j e s u í t a o u u m s e m i n á r i o . O s candidatos ao sacerdócio ad-
quiriam seus c o n h e c i m e n t o s c o m professores particulares, na maioria das vezes reli-
g i o s o s . ^ A p a r t i r de m e a d o s d o século X I X , dois institutos passaram a zelar pela

formação dos c a n d i d a t o s . , . , „. .,.


O Seminário Menor, f u n d a d o e m 1 8 5 2 c o m o n o m e de S e m i n á r i o de S a o Vicente
de Paula, a b r i u suas p o r t a s , i n i c i a l m e n t e , para todos os jovens: Q u e os pais o e
famílias não fiquem receosos pela d e n o m i n a ç ã o de seminário eclesiástico ou pela
idéia de q u e ele é u n i c a m e n t e d e s t i n a d o ao aprendizado dos que aspiram ao sacerdó-
c i o " , escrevia o a r c e b i s p o . « M e s m o que esta seja nossa primeira intenção, sem d u v ^
digna da a p r o v a ç ã o d e t o d o s os que desejam o m e l h o r a m e n t o do clero, suas portas
BAHIA, SÉCULO X I X
352

e s t ã o a b e r t a s a t o d o s o s j o v e n s q u e se a p r e s e n t a r e m c o m as c o n d i ç õ e s prescritas p l e 0 s

e s t a t u t o s , a v o c a ç ã o d e c a d a u m p a r a q u a l q u e r o u t r o e s t a d o p e r m a n e c e n d o inteira-

m e n t e 1-livre. " 3 5
M a s e m 1 8 5 6 o s p a d r e s lazaristas t o m a r a m a d i r e ç ã o d o s e m i n á r i o , q u e passou

a d e d i c a r - s e e x c l u s i v a m e n t e a c a n d i d a t o s a o s a c e r d ó c i o . E s s a o r i e n t a ç ã o correspondia
m e l h o r a o n o v o m o d e l o d e I g r e j a , q u e d e s e j a v a s e p a r a r o m u n d o espiritual e o
m aterial, c l é r i g o s e l e i g o s . O s p a d r e s d e v i a m s e r f o r m a d o s p a r a t o r n a r - s e exclusiva-
m e n t e os " c u r a s das a l m a s " . N e s s e s e m i n á r i o , e n s i n a v a m - s e l a t i m , f r a n c ê s , grego,
3 6

geografia, retórica e filosofia, m a t é r i a s c o n s i d e r a d a s p r e p a r a t ó r i a s p a r a o curso de


t e o l o g i a . Q u a n d o f o i f u n d a d o , ele f u n c i o n a v a c o m a l u n o s e x t e r n o s e i n t e r n o s ; mas,
q u a n d o o s lazaristas a s s u m i r a m a d i r e ç ã o , o e x t e r n a t o f o i s u p r i m i d o , s e n d o restabe-
l e c i d o e m j u n h o d e 1 8 6 2 . O e s t a b e l e c i m e n t o n ã o r e c e b i a n e n h u m a s u b v e n ç ã o do
E s t a d o e vivia e x c l u s i v a m e n t e d e a n u i d a d e s p a g a s p e l o s a l u n o s , o q u e , aliás, explica
e m p a r t e suas sucessivas t r a n s f o r m a ç õ e s .
A p r o v a d o s e m 1 8 6 1 , o s e s t a t u t o s e x i g i a m q u e o s a l u n o s t i v e s s e m p e l o m e n o s dez
a n o s de i d a d e , m a n i f e s t a s s e m i n t e n ç ã o d e s e g u i r a c a r r e i r a s a c e r d o t a l , n ã o tivessem
sido expulsos d e o u t r a escola e n ã o f o s s e m filhos n a t u r a i s . C o m p r e e n d e - s e o quanto
esta ú l t i m a c o n d i ç ã o c a u s a v a p r o b l e m a s a o s b a i a n o s . E l a f o i finalmente s u p r i m i d a em
1 8 8 8 , o q u e d e m o n s t r a q u e n e s s a é p o c a , a p e s a r d o s e s f o r ç o s d a I g r e j a p a r a r e f o r m a r os
c o s t u m e s d o s fiéis, o s n a s c i m e n t o s i l e g í t i m o s a i n d a e r a m c o m u n s n a s o c i e d a d e baiana.
M a s a n o r m a f o i r e s t a b e l e c i d a e m 1 9 0 0 , o q u e m o s t r a c o m o a I g r e j a estava apegada a
esses p r i n c í p i o s d e a p l i c a ç ã o t ã o d i f í c i l . 3 7
P o u c o s a l u n o s p o b r e s e r a m admitidos no
S e m i n á r i o M e n o r , p o i s as vagas g r a t u i t a s e r a m e s c a s s a s . D a v a - s e p r e f e r ê n c i a àqueles
q u e , " a l é m d o a t e s t a d o de p o b r e z a , a p r e s e n t a s s e m t r a ç o s d e t a l e n t o e b o m caráter,
t r a n s m i t i n d o u m a e s p e r a n ç a b e m f u n d a d a d e q u e p o d e r i a m ser ú t e i s à I g r e j a " . 3 8
Não
se c o n h e c e a o r i g e m s o c i a l desses j o v e n s s e m i n a r i s t a s , m a s é p r o v á v e l q u e pertencessem
às c a m a d a s s o c i a i s m é d i a s d a s o c i e d a d e b a i a n a . M u i t o s d e l e s p r o v a v e l m e n t e v i n h a m de
regiões rurais, o n d e o p a d r e m a n t i n h a c e r t o p r e s t í g i o . 3 9

U m a vez a d m i t i d a s n o s e m i n á r i o , essas c r i a n ç a s e r a m s u b m e t i d a s a severa discipli-


na d u r a n t e o s q u a t r o a n o s d e e s t u d o s . O s dias e r a m p r e e n c h i d o s c o m serviços religio-
sos e t r a b a l h o . E m p r e g a v a m - s e t o d o s os m e i o s — c o m o r e c l u s ã o n o seminário e
vigilância — para assegurar a m o r a l i d a d e e a a p t i d ã o d o s c a n d i d a t o s , evitando o
c o n t a t o destes c o m a ' c o r r u p ç ã o d o s é c u l o ' . E r a u m a tarefa fácil q u a n d o o seminário
f u n c i o n a v a e m r e g i m e de i n t e r n a t o , m a s i m p o s s í v e l q u a n d o havia estudantes externos,
q u e traziam c o n s i g o as t e n t a ç õ e s d o m u n d o e x t e r i o r . N e m s e m p r e era fácil afastar esses
estudantes das i n f l u ê n c i a s d a vida c m s o c i e d a d e .

E m 1 8 1 5 , a n t e s da c r i a ç ã o d o S e m i n á r i o M e n o r , o a r c e b i s p o d o m Frei Francisco
de S ã o D â m a s o A b r e u V i e i r a f u n d o u o Seminário Maior, o u S e m i n á r i o de Ciências
Eclesiásticas, e s t a b e l e c i d o na a n t i g a r e s i d ê n c i a d o t e s o u r e i r o d o capítulo-catedral, c ó -
n e g o R o d r i g o T e l l e s de M e n e z e s q u e , ao m o r r e r , legara seus b e n s à Igreja. Q u a n d o , em
1 8 2 8 , d o m R o m u a l d o A n t ô n i o t o m o u posse e m sua diocese e n c o n t r o u ali condições
353

TTi«l7 Z r V° * nS
V a C
°
â n d
P - o p a l , sem pastor
a d t r o n o

desde 1 8 1 6 , e as g u e r r a s pela i n d e p e n d ê n c i a da B a h i a h a v i a m d e s m a n t e l a d o a institui-


e

ção, a b a n d o n a d a p e l o s e s t u d a n t e s , q u e c o n t i n u a v a m a a c o m p a n h a r aulas de u m
franciscano, frei L u i z d e S a n t a T e r e z a , m i n i s t r a d a s n o m o n a s t é r i o de S ã o B e n t o
E m 1 8 2 4 , o g o v e r n o i m p e r i a l c e d e u à I g r e j a o a n t i g o c o n v e n t o dos agostinianos
recoletos - o hospício de Palma - para q u e ali fosse e s t a b e l e c i d o o s e m i n á r i o O
prédio estava e m tal e s t a d o q u e s ó r e a b r i u as p o r t a s dez a n o s d e p o i s , sob a direção do
padre J o s é M a r i a L i m a . 0
E m h o n r a de s e u f u n d a d o r , c o n t i n u o u a se c h a m a r S e m i -
nário de S ã o D â m a s o . E m s u a p a s t o r a l de 1 2 de m a r ç o de 1 8 3 4 , d o m R o m u a l d o
A n t ô n i o a n u n c i o u a r e a b e r t u r a d o s e m i n á r i o e e n u m e r o u as disciplinas q u e seriam
ensinadas: " T e r í a m o s d e s e j a d o a p r e s e n t a r i m e d i a t a m e n t e u m sistema c o m p l e t o de
estudos e c l e s i á s t i c o s ; m a s esse p r o j e t o é a b s o l u t a m e n t e irrealizável p o r q u e o s e m i n á -
rio só d i s p õ e d e p o u q u í s s i m o s r e c u r s o s . É p o r esta razão q u e n o s l i m i t a m o s a estabe-
lecer p o r e n q u a n t o as c á t e d r a s d e l í n g u a f r a n c e s a , r e t ó r i c a e filosofia r a c i o n a l , história
eclesiástica, t e o l o g i a d o g m á t i c a e m o r a l . O s c a n d i d a t o s ( a o s e m i n á r i o ) devem, por
conseguinte, anexar a seu p e d i d o u m certificado declarando que foram examinados e
aprovados e m l í n g u a l a t i n a . . . " 4 1
O p r e l a d o b a i a n o e n c o n t r o u dificuldades para re-
crutar p r o f e s s o r e s c a p a z e s d e d a r u m a s ó l i d a f o r m a ç ã o espiritual aos c a n d i d a t o s ao
sacerdócio. E m 1 8 5 2 , e n t r e t a n t o , a a b e r t u r a d o S e m i n á r i o M e n o r p e r m i t i u c o n c e n -
trar o e n s i n o d o S e m i n á r i o M a i o r e m d i s c i p l i n a s e s s e n c i a l m e n t e religiosas, c o m o
história e c l e s i á s t i c a , e x e g e s e e h i s t ó r i a s a n t a ( p r i m e i r o a n o ) , direito natural e teologia
d o g m á t i c a ( s e g u n d o a n o ) , d i r e i t o c a n ó n i c o e t e o l o g i a m o r a l ( t e r c e i r o a n o ) , teologia
moral, e l o q ü ê n c i a s a c r a e l i t u r g i a ( q u a r t o a n o ) . 4 2
Nesse magistério distinguiam-se
padres s e c u l a r e s , p e r t e n c e n t e s à d i o c e s e , e t e ó l o g o s b a i a n o s , c o m o frei A n t ô n i o de
V i r g e m M a r i a I t a p a r i c a , q u e e n s i n o u d u r a n t e m a i s de t r i n t a a n o s teologia d o g m á t i c a
e história d o d o g m a , e f r e i R a i m u n d o N o n a t o de M a d r e de D e u s P o n t e s , professor
de teologia m o r a l e s a c r a m e n t a l .

A teologia ensinada estava a serviço da f o r m a ç ã o d o clero. M e n o s do que 'ciência',


d a se p r o p u n h a a ser s i s t e m a t i z a ç ã o — r e p e t i t i v a , n ã o criativa — de i n f o r m a ç õ e s
teológicas e d o m a g i s t é r i o e c l e s i á s t i c o . U m a t e o l o g i a a serviço d a o r t o d o x i a r o m a n a , o
que era c o e r e n t e c o m as p o s i ç õ e s a s s u m i d a s pela Igreja, q u e t o m a r a partido do papa.
Aliás, a r o m a n i z a ç ã o d a I g r e j a brasileira teria s i d o impossível sem essa tentativa de
« t i r p a r as d o u t r i n a s l i b e r a i s e regalistas, glória d o e n s i n o religioso de o u t r o r a , que teve
no c ó n e g o d o m A n t ô n i o J o a q u i m das M e r c ê s ( 1 7 8 6 - 1 8 5 4 ) u m dos n o m e s mais
representativos. S e m d e i x a r de d e f e n d e r a o r t o d o x i a r o m a n a , a teologia ensinada nos
seminários foi c o l o c a d a a s e r v i ç o d a defesa da Igreja e assumiu caráter apologético n o
c o m b a t e a idéias e m v o g a . Q u a n d o , em 1 8 7 3 , d o m M a n u e l J o a q u i m da Sdveira
Preparou u m a resposta t e o l ó g i c a ao m a n i f e s t o m a ç ó n i c o , recorreu às teses do teólogo
franciscano frei A n t ô n i o d a V i r g e m M a r i a Itaparica, para q u e m a Igreja se imitava a
Pregar a b o a n o v a d e u m a m a n e i r a simples e narrativa, c o m o S a o Paulo h a , o -
Presença d o A e r ó p a g o , na G r é c i a , visto q u e esta b o a nova n a o era u m a escola de
BAHIA, SÉCULO X I X
354

c i ê n c i a ( . . . ) . N o e n t a n t o , a I g r e j a r e s p o n d e c o m discussão c i e n t í f i c a a todas as d i f i | .Cu

dades q u e lhe são a p r e s e n t a d a s . " 44

Apesar de todos esses e s f o r ç o s , o e n s i n o n o s s e m i n á r i o s d e i x o u a desejar durante


m u i t o t e m p o . E m 1 8 7 2 , o g o v e r n o imperial d e c l a r o u q u e esse e s t a b e l e c i m e n t o conta-
va c o m professores q u e n ã o estavam à a l t u r a de sua t a r e f a . E m S a l v a d o r , essa afirmação
apareceu, p o r e x e m p l o , n o j o r n a l c a t ó l i c o Chronica Religiosa, q u e a t r i b u i u a situação à
i n t e r v e n ç ã o d o p r ó p r i o g o v e r n o n o s n e g ó c i o s da I g r e j a , feita c o m " m á vontade cm
relação aos negócios religiosos". O e n s i n o n o s s e m i n á r i o s t i n h a s i d o reduzido e o número
de padres, l i m i t a d o . 4 5
C o m e f e i t o , c o n t r a r i a m e n t e a o s s e m i n á r i o s m e n o r e s , mantidos
p o r anuidades pagas p o r seus a l u n o s , os g r a n d e s s e m i n á r i o s r e c e b i a m subvenções do
E s t a d o , q u e d e m o n s t r a v a p o u c o i n t e r e s s e e m a u m e n t a r suas despesas nessa atividade. 46

O n ú m e r o de c a n d i d a t o s q u e f r e q ü e n t a v a m o S e m i n á r i o M a i o r da B a h i a era, com
e f e i t o , p e q u e n o . E n t r e 1 8 5 7 e 1 8 6 1 o s c i l o u e n t r e 2 0 e 2 3 a l u n o s e desse ú l t i m o ano até
1 8 8 9 e n t r e 4 0 e 5 0 , a t i n g i n d o o n ú m e r o m á x i m o de 5 4 a l u n o s e m 1 8 7 9 . E m 1 8 6 1 só
h o u v e seis o r d e n a ç õ e s ; e m 1 8 7 0 , o i t o ; e m 1 8 8 6 e 1 8 8 9 , c i n c o . J á e m 1 8 7 0 , o presiden-
te da P r o v í n c i a , B a r ã o d e S ã o L o u r e n ç o , a s s i n a l o u q u e a q u a n t i d a d e de padres forma-
dos era i n s u f i c i e n t e , a t r i b u i n d o esse f a t o à d i m i n u i ç ã o d o g o s t o pela v i d a religiosa. 47

H o r á r i o s , d i s c i p l i n a s e n s i n a d a s , regras d e c o n d u t a , s a n ç õ e s aplicadas c o n t r a recal-


c i t r a n t e s e t o d o s os d e m a i s a s p e c t o s d o s e s t a t u t o s desse S e m i n á r i o de C i ê n c i a s Ecle-
siásticas eram t ã o severos q u a n t o o s d o S e m i n á r i o M e n o r . P o r e x e m p l o , os seminaris-
tas q u e , d u r a n t e as férias, se vestissem c o m o leigos e f r e q ü e n t a s s e m teatros ou cafés —
para n ã o falar e m l o c a i s m e n o s d e c e n t e s — p o d i a m p e r d e r o a n o letivo o u sofrer outra
p u n i ç ã o i m p o s t a p e l o a r c e b i s p o . S ó era p e r m i t i d o i n t r o d u z i r n o s e m i n á r i o o jornal da
diocese. Apesar dessas i n t e r d i ç õ e s , r e l a c i o n a d a s c o m o d e s e j o de f o r m a r u m clero que
tivesse a p r e n d i d o c o s t u m e s i r r e p r e e n s í v e i s , d o m A n t ô n i o d e M a c e d o C o s t a foi obriga-
d o a r e c o n h e c e r fracassos. E l e n ã o h e s i t o u , p o r e x e m p l o , e m c r i t i c a r o padre Romualdo
M a r i a de Seixas B a r r o s o , p o s t u l a n t e a b i s p o : " F a l a - s e m u i t o n a B a h i a e alhures do que
o governo pensa s o b r e o padre R o m u a l d o M a r i a de Seixas B a r r o s o c o m o candidato a
u m t r o n o episcopal v a c a n t e . Esse j o v e m m i n i s t r o d o c u l t o n ã o m e parece reunir as
qualidades requeridas para se t o r n a r b i s p o . O p a d r e B a r r o s o t e m u m c o n h e c i m e n t o
m u i t o superficial em m a t é r i a de t e o l o g i a e d i r e i t o c a n ó n i c o e t e m grandes lacunas na
d o u t r i n a , o que se pode c o n s t a t a r e m seus escritos. N o m e a d o há alguns anos reitor do
S e m i n á r i o da B a h i a , c o n t r i b u i u para q u e esse e s t a b e l e c i m e n t o caísse n u m terrível
estado de desorganização. N ã o é p i e d o s o n e m t e m espírito sacerdotal. Apresentados
por ele, foram ordenados alunos q u e já eram c o n c u b i n o s n o t ó r i o s , imorais, devassos
e sem i n s t r u ç ã o . " 48

O padre R o m u a l d o M a r i a era s o b r i n h o de d o m R o m u a l d o A n t ô n i o , grande pre-


lado reformador, e integrava a elite intelectual da arquidiocese. Deve-se considerar que
d o m A n t ô n i o fez um j u l g a m e n t o severo demais a seu respeito? Talvez n ã o . A o lado de
seu ministério sacerdotal, o padre R o m u a l d o M a r i a exercia funções políticas — foi
deputado à Assembléia Provincial por mais de vinte anos ( 1 8 5 4 - 1 8 7 6 ) — que fizeram
LIVRO V - A IGREJA 355

TABELA 65

NÚMERO DE A L U N O S EM SEMINÁRIOS BAIANOS, 1853-


-1889.
ANOS
SEMINÁRIO MENOR SEMINARIO MAIOR

INTERNOS EXTERNOS INTERNOS EXTERNOS


1853 70 102 32 53
1855'
- 256 —

1857 2

- 37 23
1858
- 80 21

1860
- 93 20

1861
- 83 23

1863 3
47 25 40

1863 4
84 22 38

1868
- 70-80 49

1870 113 39 45

1871
- 111 41

1878 78 40 45

1879 - 109 54

1881 88 9 39

1884 - 99 39

1885 5
- . 103 45

1886 - 97 48

1887 - 101 45

1889 - 73 40

(1) Só há dados para o Seminário Menor; (2) Supressão dos externatos; (3) Recriação dos
externatos do Seminário Menor; (4) Decreto n° 3.073, de 22 de abril, reforma o ensino nos
seminários; (5) Supressão dos externatos no Seminário Menor. Para 1868,1871 e 1879 temos
apenas os números totais.
Fonte: Falas dos presidentes da Província, 1853-1889.

dele u m p e r s o n a g e m i m p o r t a n t e n o s n e g ó c i o s d a P r o v í n c i a . Estava, pois, m u i t o longe


do m o d e l o de padre — a f a s t a d o das q u e s t õ e s m u n d a n a s — desejado pelos bispos de

formação européia e romana.


O peso d a t r a d i ç ã o era e n o r m e c n u n c a foi c o m p l e t a m e n t e anulado pelas refor-
mas. Padres q u e se p r e o c u p a v a m c o m n e g ó c i o s d o século eram tão c o m u n s q u a n t o
padres c o n c u b i n o s c pais de f a m í l i a , p e l o m e n o s até o fim d o século X I X . A t é o h m
d o p e r í o d o i m p e r i a l , eles c o n t i n u a r a m s e n d o eleitos para a Assembléia Provincial,
quase s e m p r e r e p r e s e n t a n d o distritos eleitorais d o interior, o n d e eram raros os h o m e n s
instruídos. N a s e g u n d a m e t a d e d o século X I X , p o u c o s m e m b r o s d o clero representa-
vam os distritos da capital o u de seu R e c ô n c a v o .
BAHIA, SÉCULO X I X
356

O RECRUTAMENTO DO CLERO

C o m raras e x c e ç õ e s n o r m a l m e n t e ligadas a f a m í l i a s i m p o r t a n t e s , é impossível saber a


origem familiar d o c l e r o b a i a n o . E m c o m p e n s a ç ã o , p o d e - s e s a b e r sua n a c i o n a l i d a d e e
o estado civil de seus pais, u t i l i z a n d o t e s t a m e n t o s e i n v e n t á r i o s post mortem.
Até o fim d o século X V I I I , p a n e d o c l e r o b a i a n o , s o b r e t u d o a q u e p e r t e n c i a aos
altos escalões d a h i e r a r q u i a , era de o r i g e m p o r t u g u e s a . E n t r e os 6 9 padres falecidos
e n t r e 1 8 0 1 e 1 8 5 0 , e n c o n t r a v a m - s e treze p o r t u g u e s e s , u m e s p a n h o l e u m o r i g i n á r i o de
L u a n d a ( A n g o l a ) . U m p o u c o m a i s d o q u i n t o e n t r e e l e s , p o r c o n s e g u i n t e , nascera no
exterior ( 2 1 , 7 % ) , ao passo q u e n o p e r í o d o de 1 8 5 1 - 1 8 8 7 s ó e n c o n t r e i dois padres de
o r i g e m estrangeira ( u m p o r t u g u ê s e u m e s p a n h o l ) , n u m t o t a l de 4 5 .

TABELA 66

O R I G E M E FILIAÇÃO DO C L E R O BAIANO (1801-1887)

1801-1850 1851-1887

LOCAL DE ORIGEM

Bahia 37 (53,6) 31 (68,9)

Outras Províncias do Brasil 7 (10,1) 4 (8,9)

Portugal 13 (18,8) 1 (2,2)

Espanha 1 (1,5) - -
Luanda 1 (1,5) - -
Itália
- - 1 (17,8)

Não indicado 10 (14,5) 8 (17,8)

Total 69 (100,0) 45 (100,0)

FILIAÇÕES

Legítima 51 (73,9) 29 (64,4)

Legitimada
- - 2 (4,4)

Natural 8 (11.6) 3 (6.6)

Não indicada 10 (14,5) 11 (24,4)


Total 69 (100,0) 45 (100,0)
Ponta: Testamentos e inventários depositados no Arquivo do F-stado da Bahia, Scçío Judi-
ciiria.

A grande maioria dos padres era baiana, o u seja, recrutada n o local. Nota-se,
entretanto, que u m a minoria ( 1 4 , 5 % n o período 1 8 0 1 - 1 8 5 0 e 1 7 . 8 % n o período
1 8 5 1 - 1 8 8 7 ) não m e n c i o n o u c m t e s t a m e n t o o país o u a região de origem. C o m o todos
os nomes c prenomes eram portugueses, pode-se deduzir q u e se tratava de brasileiros
ou, pelo menos, de portugueses naturalizados, tornados brasileiros depois da Indepen-
dência. Numerosos padres, seguindo o exemplo de M a n u e l D e n d ê Bus, adotaram a
LIVRO V - A IGREJA
357

causa brasileira, e m b o r a a l g u n s m e m b r o s d a hierarquia t e n h a m deixado Salvad


ior em
1 8 2 3 , s e g u i n d o as t r o p a s p o r t u g u e s a s de M a d e i r a de M e l o .

Isso c o n f i r m a a i n f o r m a ç ã o d e q u e n o N o r t e e N o r d e s t e do país eram raros os


padres de o r i g e m e s t r a n g e i r a i E m a m b o s o s períodos, mais de 2/3 dos religiosos eram
filhos de f a m í l i a s l e g a l m e n t e c o n s t i t u í d a s . M a s t a m b é m era bastante expressivo o
número d o s q u e se d e c l a r a v a m filhos l e g i t i m a d o s o u naturais: mais de 1 1 % . A ilegi-
timidade d o n a s c i m e n t o era, p o r t a n t o , u m o b s t á c u l o fácil de ser c o n t o r n a d o , apesar
das i n t e r d i ç õ e s c a n ó n i c a s . C u r i o s a m e n t e , g r a n d e n ú m e r o de padres — 1 4 , 5 % no
período 1 8 0 8 - 1 8 5 0 e 2 4 , 5 % n o p e r í o d o 1 8 5 1 - 1 8 8 7 — o m i t i a m os n o m e s de seus
próprios pais, m e s m o e m d o c u m e n t o s q u e exigiam esse d a d o . P o r quê? J u l g a v a m -
se
s u f i c i e n t e m e n t e c o n h e c i d o s ? P r o c u r a v a m e s c o n d e r situações ilegítimas, difíceis d
e
admitir o f i c i a l m e n t e ? L e m b r e m o s q u e a I g r e j a n ã o favorecia a o r d e n a ç ã o de filh
os
naturais, e m b o r a n ã o a p r o i b i s s e f o r m a l m e n t e .

A m a i o r i a d o c l e r o b a i a n o p e r t e n c i a às classes m é d i a s . E n t r e os padres nascidos


de c a s a m e n t o s legais, 1 2 % v i n h a m d e f a m í l i a s ricas e c o n h e c i d a s e 1 4 % tinham
origem m u i t o m o d e s t a . E n t r e estes, h a v i a os q u e e r a m capazes de renegar u m a as-
cendência e m b a r a ç o s a . O c a s o d e A n t ô n i o S e g u n d o da R o c h a pode servir de exem-
plo. E r a u m dos d o i s filhos de D i o n i s i a M a r i a d a E n c a r n a ç ã o , q u e morava na paró-
quia de B r o t a s e p e r t e n c i a à I r m a n d a d e de N o s s a S e n h o r a do Rosário, freqüentada
sobretudo p o r pessoas h u m i l d e s e d e c o r . A o m o r r e r , ela deixou u m a casinha de
terra batida, c o m t e t o d e t e l h a s , para sua escrava B e n e d i t a , a q u e m devia 9 0 mil
réis. E avisou q u e c o n f i a r a 1 8 m i l réis a J o s é J o a q u i m de S a n t a T e r e s a , para despe-
sas de seu p r ó p r i o e n t e r r o , c a s o seu filho n ã o se ocupasse desse assunto, c o m o dese-
java. O fato de q u e a m ã e de u m padre t e n h a t i d o esse tipo de apreensão é revelador
das relações, q u e p o d i a m t o r n a r - s e p e n o s a s , e n t r e familiares q u e ocupavam posições

desiguais n a s o c i e d a d e .
O s c a n d i d a t o s a o s a c e r d ó c i o n ã o precisavam mais apresentar prova de pureza de
sangue, exigida d u r a n t e o p e r í o d o c o l o n i a l . O s n u m e r o s o s 'cristãos-novos' — muitos
dos quais de o r i g e m a f r i c a n a — j á t i n h a m sido perfeitamente assimilados à sociedade
baiana, e a m i s c i g e n a ç ã o t o m a r a tal d i m e n s ã o q u e se tornara impossível excluir cand.-
datos por causa d a c o r da p e l e . 5 0
A mestiçagem estava presente em todas as categorias
sociais, m e s m o as mais elevadas. P r o i b i ç õ e s desse tipo só podiam ter validade em casos
muito específicos, c o m o o de ' m u l a t o s escuros' o u de candidatos apadrinhados por
Pessoas n ã o m u i t o i m p o r t a n t e s . ' M a s , e v i d e n t e m e n t e , em uma sociedade cujas rela-
5

ções se baseavam em alianças familiares ou na clientela, era sempre possível contar com

a condescendência das pessoas. %


E m c o m p e n s a ç ã o , tornara-se regra geral a exigência de que, n o m o m e n t o da
ordenação, o c a n d i d a t o tivesse um patrimônio que lhe garantisse renda mínima de 3 0
mil réis. T o d o padre aspirava receber o benefício de uma paróquia, dmeo meio de te
estabilidade material e prestígio social. Entretanto, quando da fundação das
ou da nomeação de seus titulares, o Império brasileiro se mostrou tao parcimonioso
358 BAHIA, SÉCULO X I X

q u a n t o f o r a a M o n a r q u i a p o r t u g u e s a . P e r p e t u o u - s e a v e l h a d i f e r e n ç a e n t r e vigários
c o l a d o s , n o m e a d o s p e l o i m p e r a d o r , e v i g á r i o s e n c o m e n d a d o s , n o m e a d o s ad tempus
pelos b i s p o s . E s t e s ú l t i m o s t i n h a m p o u c a s p o s s i b i l i d a d e s de ser n o m e a d o s inperpetuum
p e l o p o d e r i m p e r i a l , a m e n o s q u e d i s p u s e s s e m d e s ó l i d o s a p o i o s p o l í t i c o s . A ingerência
d o p o d e r civil n o s n e g ó c i o s d a I g r e j a se t o r n a r a t ã o a m p l a , q u e n e m s e m p r e os mais
p u r o s , m a i s i n s t r u í d o s e m a i s c a r i d o s o s r e c e b i a m o s c a r g o s e c l e s i á s t i c o s . As opiniões
dos bispos s o b r e o s c a n d i d a t o s p r a t i c a m e n t e n ã o e r a m levadas e m c o n t a . O s políticos
f r e q ü e n t e m e n t e i m p u n h a m suas e s c o l h a s .
I g n o r o , para o c o n j u n t o d o p e r í o d o , a relação entre vigários colados e encomen-
d a d o s . E m 1 8 8 7 , 1 2 4 das 1 9 0 p a r ó q u i a s b a i a n a s e r a m d i r i g i d a s p o r estes ú l t i m o s ou
p o r u m a n o v a c a t e g o r i a , i n e x i s t e n t e n o p e r í o d o c o l o n i a l : o s c u r a s n o m e a d o s interina-
mente pelo próprio g o v e r n o . 5 2
M a i s d e 2/3 das p a r ó q u i a s e s t a v a m e n t r e g u e s a titulares
provisórios. Aliás, j á e m 1 8 8 1 , o p r e s i d e n t e d a P r o v í n c i a , J o ã o L u s t o s a da Cunha
P a r a n a g u á , a t r i b u í a o e s t a d o l a m e n t á v e l e m q u e se e n c o n t r a v a m as igrejas paroquiais
à i n t e r i n i d a d e d e seus v i g á r i o s : s e m s a b e r se i a m p e r m a n e c e r , eles n ã o p e d i a m donativos
para realizar o b r a s . D e p o i s d e l e m b r a r q u e , s e g u n d o as d e t e r m i n a ç õ e s d o C o n c í l i o de
T r e n t o , o c a r g o d e v i a ser p r e e n c h i d o n o s d e z d i a s s u b s e q ü e n t e s à v a c â n c i a e que, pela
lei de 2 2 de s e t e m b r o de 1 8 2 8 , as n o m e a ç õ e s d e v i a m ser feitas m e d i a n t e apresentação
de u m a lista t r í p l i c e pelos b i s p o s a o g o v e r n o c e n t r a l , o p r e s i d e n t e d e n u n c i a v a a lenti-
d ã o desse p r o c e s s o , q u a n d o h a v i a n a d i o c e s e d a B a h i a u m c l e r o n u m e r o s o e reconhe-
cidamente c o m p e t e n t e . 5 3

S e r i a o p o d e r c e n t r a l o ú n i c o r e s p o n s á v e l p o r essa s i t u a ç ã o ? T a l v e z o arcebispo
tivesse parte d a r e s p o n s a b i l i d a d e , p o i s t a m b é m n ã o se interessava e m apressar a no-
m e a ç ã o de c a n d i d a t o s q u e — s a b i a — n ã o d e p e n d i a m de sua a p r o v a ç ã o . T r a t a - s e de
u m a h i p ó t e s e s o b r e u m p r o b l e m a q u e m e r e c e e s t u d o m a i s a p r o f u n d a d o . O manuseio
de diversos dossiês p r e p a r a d o s p e l o s b i s p o s s o b r e c a n d i d a t o s n ã o a j u d o u a esclarecer
detalhes a esse r e s p e i t o .
A s categorias dos p á r o c o s c o l a d o s , e n c o m e n d a d o s e i n t e r i n o s , p o d e - s e acrescentar
os c o a d j u t o r e s e os capelães, c u j o n ú m e r o deve t e r v a r i a d o m u i t o n o d e c o r r e r do século
e s t u d a d o . O s c o a d j u t o r e s c o n t i n u a r a m a ser n o m e a d o s p e l o g o v e r n o e pelo bispo, e
sua situação m a t e r i a l n ã o m e l h o r o u . Aliás, h a v i a p o u c a oferta de g e n t e para essa
f u n ç ã o , s o b r e t u d o q u a n d o se tratava d e servir e m p a r ó q u i a s rurais. Para atraí-los, os
párocos eram o b r i g a d o s a c o m p l e t a r d o p r ó p r i o b o l s o os salários oferecidos, encargo
insuportável para os q u e t i n h a m rendas m o d e s t a s . A l é m disso, m u i t o s párocos rurais
t i n h a m que c o m p a r t i l h a r seus t o s t õ e s — e o faziam de m á v o n t a d e — c o m os capelães
que trabalhavam e m seu território p a r o q u i a l .
N o m o m e n t o em q u e d i m i n u i u o n ú m e r o de c a n d i d a t o s ao sacerdócio, diminuí-
ram t a m b é m as possibilidades de fazer-se carreira eclesiástica fora da estrutura da
Igreja hierárquica c p a r o q u i a l . O n ú m e r o de capelães de família e de irmandades
religiosas provavelmente caiu a partir da segunda m e t a d e d o século X I X , o que, aliás,
era do interesse da hierarquia, q u e d u r a n t e a é p o c a colonial n ã o conseguira exercer
LrVR0V-AlGR£JA
359

S 0 b r e eles a i n f l u ê n c i a d e s e j a d a . O s b i s p o s r e f o r m a d o r e s de t o d o o Brasil t i n h a m c o m o
o b j e u v o s c o l o c a r o c l e r o s o b a a u t o r i d a d e t u t e l a r d a Igreja, u n i f i c a r sua c o n d u l e
evitar possíveis h e t e r o d o x i a s . A B a h i a n ã o era e x c e ç ã o . tonaura e

As RENDAS DO CLERO

N a é p o c a c o l o n i a l , a d o t a ç ã o d a d a a o s p a d r e s p e l o rei de P o r t u g a l variava s e g u n d o as
dioceses. N o fim d o s é c u l o X V I I I , p o r e x e m p l o , p á r o c o s e c o a d j u t o r e s b a i a n o s c u s t a -
ram 10:671 d e réis a o s c o f r e s r e a i s .

TABELA 67

D E S P E S A S D A C O R O A C O M A I G R E J A NA B A H I A , 1800

Igreja catedral, Tribunal Eclesiástico de Instância


e capítulo do Grão-Pará 13:788.000
Párocos e coadjutores do arcebispado 10:671.000

Missões de religiosos no sertão 532.600

Ordinários das igrejas 564.000

Capelães que oficiam como párocos 346.840

Aumentos de alguns vencimentos 732.000

Total 26:634.440

Fonte: Segundo dados dc Luiz de Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, v. 2, p. 463.
Observação: A notação 13:788 equivale a 13 contos de réis (ou 13 milhões de réis) e 788 mil
reis. A notação 564.000 equivale a 564 mil réis.

M a s q u a n t a v a r i a ç ã o n o s v e n c i m e n t o s d o s padres! D o s 9 2 p á r o c o s da B a h i a , 5 4
recebiam c ô n g r u a i n f e r i o r a c e m m i l réis e três i n f e r i o r a 5 0 m i l , o u seja, m e n o s d o que
a C o r o a pagava e m 1 6 0 8 . N e s s e a n o , p o r causa d a elevação d o custo de vida, um
decreto real a u m e n t a r a a c ô n g r u a d o s c u r a s para 5 0 m i l réis e a dos c o a d j u t o r e s para
2 5 mil réis. O s q u e c u i d a v a m d e t e r r i t ó r i o m u i t o g r a n d e r e c e b i a m , às vezes, ajuda de
custo anual de 2 3 . 9 2 0 réis. N o fim d o s é c u l o X V I I I havia curas c u j a c ô n g r u a anual era
de 2 0 0 mil réis, e n q u a n t o o u t r o s a i n d a r e c e b i a m 5 0 m i l ! Para os c o a d j u t o r e s , p e r m a -
neceu e m v i g o r até o fim d o p e r í o d o c o l o n i a l u m salário de 2 5 mil réis.

As s o m a s e r a m irrisórias, d e m o d o q u e mais de m e t a d e d o clero baiano vivia em


condições a p a r e n t e m e n t e precárias. O p r e ç o m é d i o de um escravo h o m e m , p o r exem-
plo, era c e m m i l réis nessa é p o c a . E n t r e os q u e estavam em m e l h o r situação, só quatro
recebiam 2 0 0 m i l réis o u m a i s (a c ô n g r u a mais elevada era de 2 2 3 . 9 2 0 ré,s); os
v e n c i m e n t o s de 3 4 p á r o c o s s i t u a v a m - s e e n t r e c e m e 1 5 0 mil réis. V i l h e n a explica que
* diferença e n t r e as c ô n g r u a s se devia ao fato de q u e os curas das paróqu.as rurais
recebiam subsídios s u p l e m e n t a r e s para a m a n u t e n ç ã o de cavalos e barcas, necessários
para que percorressem seus t e r r i t ó r i o s . 54
BAHIA, SÉCULO X I X
360

O s p á r o c o s r a r a m e n t e a t i n g i a m os níveis da r e m u n e r a ç ã o m é d i a recebida p 0 r

artesãos, p e d r e i r o s e m a r c e n e i r o s , q u e era de 2 0 0 m i l réis a n u a i s . 5 5


A s i t u a ç ã o dos 80
coadjutores — 2 5 m i l réis p o r a n o — era a i n d a m a i s d i f í c i l . 5 6
H a v i a , e n t t e eles,
verdadeira miséria? É difícil r e s p o n d e r . S e u s ' s a l á r i o s ' e r a m a u m e n t a d o s pelas contri-
b u i ç õ e s dos fiéis, c h a m a d a s ' p é - d e - a l t a r ' o u ' a l e l u i a ' c r e m e t i d a s v o l u n t a r i a m e n t e , em
h o n r a de D e u s e dos s a n t o s . P a r a e v i t a r casos de c o n s t r a n g i m e n t o , d e n u n c i a d o s p 0 r

vários p a r o q u i a n o s , as C o n s t i t u i ç õ e s P r i m e i r a s d e f i n i r a m q u e o p a d r e s ó estava auto-


rizado a recebê-las e m d o i s c a s o s : c o n s t r u ç ã o de i g r e j a s e c e l e b r a ç ã o de missas particu-
lares. E r a f o r m a l m e n t e p r o i b i d o c o b r a r c o n t r i b u i ç õ e s e m t r o c a d a a d m i n i s t r a ç ã o dos
s a c r a m e n t o s . N ã o p o d e m o s avaliar a o r d e m d e g r a n d e z a desses r e c u r s o s , m a s é eviden-
te q u e eles e r a m m a i s s u b s t a n c i a i s n a s r e g i õ e s e m q u e a p o p u l a ç ã o p a r o q u i a l era mais
numerosa, concentrada e ricá.

O s p á r o c o s c o n t a v a m c o m u m a t e r c e i r a f o n t e d e r e n d a s , as c o n h e c e n ç a s , outro
t i p o de c o n t r i b u i ç ã o pessoal, c u j o m o n t a n t e foi e s t a b e l e c i d o n o i n í c i o d o século X V I I I
pelas C o n s t i t u i ç õ e s P r i m e i r a s : u m pai d e f a m í l i a p a g a v a 8 0 réis; u m c e l i b a t á r i o apto
a r e c e b e r o s a c r a m e n t o d a e u c a r i s t i a ( m e n i n o s c o m m a i s d e c a t o r z e a n o s , m e n i n a s com
mais de d o z e ) , 4 0 réis; os q u e s ó p o d i a m t e r o s a c r a m e n t o d a p e n i t ê n c i a ( q u e exigia
pelo menos cinco anos de idade), 2 0 r é i s . 5 7

A s f o n t e s de r e n d a dos v i g á r i o s c o l a d o s e r a m a p a r e n t e m e n t e n u m e r o s a s , mas,
c o m o j á foi m e n c i o n a d o , as q u a n t i a s a r r e c a d a d a s v a r i a v a m s e g u n d o o n ú m e r o e a
riqueza dos p a r o q u i a n o s . A s p a r ó q u i a s b a i a n a s c o m p o p u l a ç ã o n u m e r o s a e rica eram
minoria — 3 5 n u m total de 91 — n o fim d o s é c u l o X V I I I . A g r a n d e m a i o r i a dos
padres n o m e a d o s p e l o rei e n f r e n t a v a d i f i c u l d a d e s n o s fins de m ê s . N ã o o b s t a n t e , eles
integravam u m g r u p o p r i v i l e g i a d o , p o i s a n o m e a ç ã o l h e s a s s e g u r a v a c a r g o s vitalícios.
A situação d o s vigários e n c o m e n d a d o s era p i o r , j á q u e s ó p o d i a m c o n t a r com a
g e n e r o s i d a d e dos p a r o q u i a n o s . S u a s r e n d a s se l i m i t a v a m a c o n h e c e n ç a s e c o n t r i b u i -
ções b e n é v o l a s , r e c o m e n d a d a s p e l o b i s p a d o a o s fiéis, mas voluntárias. Nas Consti-
tuições P r i m e i r a s n ã o h á m e n ç ã o s o b r e e v e n t u a i s s a n ç õ e s a o s fiéis q u e n ã o contri-
b u í s s e m , de m o d o q u e n a falta d e p a g a m e n t o s s ó restava a o b i s p o e x o n e r a r o cura
de suas f u n ç õ e s , p r i v a n d o os c r i s t ã o s d a p r e s e n ç a d e u m p a d r e . As p a r ó q u i a s recal-
citrantes c o n t a v a m c o m a c u m p l i c i d a d e d o p o d e r real, h o s t i l a q u a l q u e r c o n t r i b u i -
ção q u e viesse a o n e r a r a i n d a m a i s o s fiéis, o b r i g a d o s a p a g a r a d í z i m a eclesiástica
recebida pelo rei. As C o n s t i t u i ç õ e s P r i m e i r a s d e t e r m i n a v a m aos c u r a s q u e lembras-
sem a seus p a r o q u i a n o s essa o b r i g a ç ã o , a m e a ç a n d o de e x c o m u n h ã o os pecadores.
C o m o disse o m o n s e n h o r E u g ê n i o de A n d r a d e V e i g a , " p a g a n d o i n t e i r a m e n t e a
dízima, p o d e r ã o r e c e b e r as r e c o m p e n s a s t e m p o r a i s e eternas e evitar os castigos de
pobreza e esterilidade, b e m c o m o q u a l q u e r c a s t i g o de q u e D e u s , p o r m e i o de seus
S a n t o s e de seus P r o f e t a s , se serve para a m e a ç a r o s transgressores desse p r e c e i t o " . 5 8

A situação m a t e r i a l dos vigários e n c o m e n d a d o s t a m b é m era m u i t o precária.


D e s e n c o r a j a d o s , m u i t o s deles pediam dispensa de suas f u n ç õ e s o u s i m p l e s m e n t e dei-
xavam as paróquias. E m 1 8 1 2 , por e x e m p l o , o p á r o c o de V i l a N o v a de Alcobaça
LIVRO V - A IGREJA
361

escreveu a o b . s p o , q u e . x a n d o - s e de ser f o r ç a d o a andar descalço e n ã o e r sequer u m t

| 0 v e m n e g r o a seu s e r v . ç o , p o . s n e m r i n h a o necessário para c o m e , C a n s a d o de senrir


fome, c o m u n . c a v a sua m r e n ç a o d e a b a n d o n a r a p a r o q u i a e rerornar a Salvador, o que
e f e t i v a m e n t e viria a razer.-^ M

R e s t a m o s c a p e l ã e s : e r a m m e s m o privilegiados, c o m o alguns c o n t e m p o r â n e o s
afirmavam? N e m t a n t o A s i t u a ç ã o deles era t ã o diversificada q u a n t o a dos vigários
colados o u e n c o m e n d a d o s . D e m o d o geral, os capelães q u e serviam nos engenhos de
açúcar c o n s t i t u í a m u m g r u p o à p a r t e , privilegiado p o r diversas razões. S ó os grandes
e n g e n h o s p o d i a m t e r u m c a p e l ã o p r i v a d o . Q u a l era a sua remuneração? A n t o n i l escre-
veu n o i n í c i o d o s é c u l o X V I I I : " O q u e se c o s t u m a dar ao capelão cada a n o , pelo seu
trabalho, q u a n d o t e m as missas d a s e m a n a livres, são q u a r e n t a o u c i n q ü e n t a mil réis;
e c o m o q u e l h e d ã o o s a p l i c a d o s , v e m a fazer u m a p o r ç ã o c o m p e t e n t e , b e m ganhada,
se guardar t u d o o q u e a c i m a está d i t o . E se h o u v e r de ensinar aos filhos do senhor do
e n g e n h o , se l h e a c r e s c e n t a r á o q u e f o r j u s t o e c o r r e s p o n d e n t e ao t r a b a l h o . " 6 0
N o s dias
de s e m a n a o c a p e l ã o e s t a v a livre p a r a rezar missas e n c o m e n d a d a s , que eram pagas
"salvo se se c o n c e r t a r d e o u t r a s o r t e c o m o s e n h o r da capela, r e c e b e n d o estipêndio
p r o p o r c i o n a d o ao t r a b a l h o . " 6 1

C o m p a r a d a à dos v i g á r i o s c o l a d o s o u e n c o m e n d a d o s , a situação de um capelão de


e n g e n h o era i n v e j á v e l , s o b r e t u d o p o r q u e ele t i n h a c a m a e c o m i d a . A grande maioria
das igrejas p a r o q u i a i s n ã o possuía presbítero para alojar seus clérigos, que eram obrigados
a alugar o u c o m p r a r u m a casa. N o i n í c i o d o século X V I I I , d o m Sebastião M o n t e i r o de
V i d e , a r c e b i s p o d a B a h i a , e s c r e v e u : " Q u a n d o u m c u r a assume u m a paróquia, dispõe
de 5 0 m i l réis; c o m e ç a t e n d o u m a g r a n d e despesa para c o m p r a r u m a casa (já que a
paróquia n ã o p o s s u i n e n h u m a ) o u para alugá-la e m o b i l i á - l a , c o m p r a r negros para
servi-lo e u m a b a r c a p a r a t r a n s p o r t á - l o o n d e sua presença for solicitada. Deve t a m b é m
vestir-se e a l i m e n t a r - s e . A s s i m s e n d o , três vezes 5 0 mil réis n ã o b a s t a m . . . "

A l é m disso, m e s m o e s t a n d o ao serviço de u m particular, o capelão m a n t i n h a


grande l i b e r d a d e de a ç ã o . N e n h u m a a l t a a u t o r i d a d e eclesiástica estava lá, para vigiá-lo
e c o a g i - l o . A s s i m , ele p o d i a j u n t a r u m a p e q u e n a f o r t u n a , desde que os senhores
seguissem os c o n s e l h o s de A n t o n i l . M a s , c o m o os senhores de engenhos não deixaram
c o n t a b i l i d a d e , n e m 'livros de razão", n ã o p o d e m o s calcular exatamente os custos de
um capelão.
O s salários dos capelães das irmandades religiosas dependiam da riqueza da insti-
tuição e dos a c o r d o s feitos n o a t o de c o n t r a t a ç ã o . N ã o há estudos que permitam
determinar se a situação desses capelães era m e l h o r ou pior que a de seus confrades,
mas o interesse d e m o n s t r a d o pelos clérigos leva a crer que o cargo era tentador.
E m m e a d o s d o século X I X . as rendas de um pároco nomeado pelo governo (vi-
gário colado) eram constituídas pela côngrua, os direitos de estola (que^haviam substi-
tuído as c o n h e c e n ç a s ) e o guisamento - ajuda extraordinária, de 2 0 mil réis, ao
clero - votado peia Assembléia Provincial em 1 8 3 5 e desde então tornado perma-
nente. E m relação aos v e n c i m e n t o s do clero, a grande inovação da adm.n.straçao
362 BAHIA, SÉCULO X I X

imperial foi o n i v e l a m e n t o e m 3 0 0 m i l réis a n u a i s para o s p á r o c o s e 5 0 m i l réis p a r a

os c o a d j u t o r e s , v e n c i m e n t o s q u e p e r m a n e c e r a m estáveis d u r a n t e t o d o o p e r í o d o q U e

nos interessa, apesar d a i n f l a ç ã o . 6 3


N ã o s a b e m o s , n o e n t a n t o , os p a t a m a r e s que po-
d i a m ser a t i n g i d o s a n u a l m e n t e pelos d i r e i t o s de e s t o l a , n ã o o b r i g a t ó r i o s , recebidos
d u r a n t e certas c e l e b r a ç õ e s .
E m b o r a t a m b é m se b e n e f i c i a s s e m d a a j u d a e x t r a o r d i n á r i a v o t a d a pela Assembléia
P r o v i n c i a l , o p á r o c o n o m e a d o p e l o b i s p o ( v i g á r i o e n c o m e n d a d o ) e o i n t e r i n o deviam
o essencial d e seus r e c u r s o s à b e n e v o l ê n c i a d o s p a r o q u i a n o s , s e m p r e recalcitrantes para
pagar n o v o s d i r e i t o s , j u l g a d o s a b u s i v o s . N ã o sei se o s v e n c i m e n t o s dos capelães
c o r r e s p o n d i a m aos dos p á r o c o s n o m e a d o s o u e r a m m a i s e l e v a d o s .
E m s u m a , para o b a i x o c l e r o e m geral a s i t u a ç ã o n ã o m e l h o r o u , e as condições
m a t e r i a i s c o n t i n u a r a m a s u s c i t a r o s m e s m o s p r o b l e m a s a g u d o s d o p a s s a d o . E r a melhor
a situação do bispo e dos m e m b r o s de seu capítulo?

TABELA 68

F O L H A D E P A G A M E N T O S D O A R C E B I S P A D O DA B A H I A , 1800

Arcebispo metropolitano 2:910.000

Deão 400.000

Quatro dignitários a 300.000 réis cada 1:200.000

Nove cónegos a 250.000 réis cada 2:250.000

Quatro cónegos semiprebendados a 125.000 réis cada 500.000

Tesoureiro, para a cera, o vinho e as hóstias 244.000

Para o pároco da catedral 50.000

Para o coadjutor do mesmo 30.000

Para o subchantre 125.000

Para dez capelães a 80.000 réis cada 800.000

Para o mestre dc cerimônias 40.000

Para'seis meninos do coro a 20.000 réis cada 120.000

Para o sacristão 120.000

Para o macciro 30.000

Para o mestre dc capela 180.000

Dois organistas a 50.000 réis cada 100.000


Para o sineiro 100.000

Para o fabriqueiro do estabelecimento da Sé 200.000


Para o guarda 40.000

Très juíies do Tribunal dc Apelação a 150.000 réis cada 450.000


Total 9:889.000
e: Mapeado de \AIIZ dos Samos Vilhena. A Bahia no século XVIU, v. 2, p. 461.
h oZ^TsOO r* ~ C O m
° a f
° , h a d e
P i n t o s do
a r c e b , s p a d o em 1800 n o t a - s e «mediatamente u m a e n o r m e diferença entre as
côngruas receb.das p o r esses d . g m t á r i o s o u c ó n e g o s e os vencimentos do vigário da
paróqu.a-catedral e seu c o a d j u t o r . E s t e ú l t i m o recebia u m p o u c o mais do que os
coadjutores da d . o c e s e , m a s , e m c o m p e n s a ç ã o , o vigário estava entre os mais mal
remunerados, e m c o m p a r a ç ã o c o m o u t r a s paróquias. O m o t i v o é simples- conside
rava-se q u e ah se c o n c e n t r a v a a p o p u l a ç ã o mais abastada da cidade, cujas oferendas
podiam c o m p l e t a r u m a c ô n g r u a m e d í o c r e . Essas c o n t r i b u i ç õ e s — conhecenças ou
pés-de-altar — n ã o e r a m repartidas c o m o arcebispo, os dignitários, os cónegos, o
coadjutor o u o s dez capelães q u e estavam a serviço da principal igreja da cidade.
Isso não i m p e d i a q u e as c ô n g r u a s recebidas pelo arcebispo e seu capítulo represen-
tassem 7 8 % das d e s p e s a s d a c a t e d r a l e 3 3 , 9 % das despesas de t o d a a diocese
( 2 2 : 7 3 5 . 4 4 0 de r é i s ) . Esses b e n e f í c i o s , q u e p a r e c e m desproporcionais à côngrua dos
padres, m o s t r a m q u e d i g n i t á r i o s e c ó n e g o s t i n h a m prestígio e poder b e m superiores
aos dos p á r o c o s , c o m e x c e ç ã o d o c u r a da S é (que p o d e ser considerado integrante
do alto c l e r o ) .

A s e g u n d a f o l h a de p a g a m e n t o eclesiástica a q u e tivemos acesso data de 1 8 3 5 e diz


respeito a u m a d o t a ç ã o v o t a d a pela A s s e m b l é i a P r o v i n c i a l , encarregada doravante da
parte material d o s n e g ó c i o s eclesiásticos da arquidiocese. Ela serve para a análise de
todo o p e r í o d o , p o i s a t é 1 8 8 9 s ó v a r i o u e m f u n ç ã o do n ú m e r o de padres. T o d a s as
côngruas c o n c e d i d a s aos d i g n i t á r i o s e c ó n e g o s haviam sido aumentadas, assim c o m o
os v e n c i m e n t o s d o pessoal a serviço d a igreja catedral. E m c o m p e n s a ç ã o , os v e n c i m e n -
tos do arcebispo d i m i n u í r a m e m 3 3 0 m i l réis e desapareceram os vencimentos dos três
juízes do T r i b u n a l d e I n s t â n c i a , q u e figuravam na folha eclesiástica de 1 8 0 0 . A grande
inovação, n o e n t a n t o , o c o r r e u n o s salários do vigário da catedral e de seu coadjutor,
que passaram a ser c o r r i g i d o s de a c o r d o c o m os salários dos párocos e coadjutores da
diocese. Essa c o r r e ç ã o se d e v e u a o fato de q u e a S é perdera u m a parte de sua população
abastada, que e m i g r a r a para p a r ó q u i a s m e n o s povoadas e mais arejadas, c o m o a da
Vitória. M a s t a m b é m c o r r e s p o n d e u a u m desejo p r o f u n d o da Igreja, que pretendia
aliviar os p a r o q u i a n o s de u m peso material j u l g a d o insuportável, tornando o governo
« d a vez mais responsável pelo s u s t e n t o d o clero (em 1,883, o presidente m t e n n o da
Província queixava-se d a falta de espírito religioso dos baianos e de seu háb.to

feto
inveterado de esperar tudo do g o v e r n o " ) . 6 4
_
Foi espantoso c o n s t a t a r que apenas a côngrua do arcebispo diminum, para o
qual só encontrei u m a explicação: o legislador se limitou a lembrar a Prov.sao de 4 de
março de l 4 l , q u e fixou o m o n t a n t e dessa côngrua. Se levarmos em
7

- c o e s de d o m M a n u e l J o a q u i m da Silveira, estava na Bah.a o b.spado m a ^ « d o


Brasil. c o n t o u q u e , q u a n d o chegou á P r o v i a para « P ^ ^ ^ E
^^^T^cZ
E l e

que levava vantagem sobre do conhecimento dos


ter meios sequer para tratar da saúde abalada, tato qu
sequer para
presidentes da P r o v í n c i a . 65
364 BAHIA, SÉCULO X I X

TABELA 69

FOLHA DE PAGAMENTOS DO ARCEBISPADO DA BAHIA, 1 8 3 5

Arcebispo 2:680.000

Deão 600.000

Quatro dignitários a 500.000 réis cada 2:000.000

Quatro cónegos semiprebendados a 300.000 réis cada 1:200.000

Tesoureiro principal 224.000

Pároco da catedral 300.000

Coadjutor 50.000

Subchantre 187.500

Dez capelães a 120.000 réis cada 1:200.000

Mestre de cerimônias 160.000

Seis meninos do coro a 30.000 réis cada 180.000

Sacristão 189.000

Maceiro 45.000

Mestre da capela 270.000

Organista 225.000

Sineiro 150.000

Fabriqueiro 300.000

Ferreiro 40.000

Total 13:600.500

Fonte: Adaptado de Ignacio de Cerqueira e Silva Accioli, Memórias históricas e politicas da


Provinda da Bahia, v. 5, p. 120.

E m 1 8 3 5 , o o r ç a m e n t o eclesiástico v o t a d o pela A s s e m b l é i a Provincial foi de


5 8 : 3 1 4 . 7 2 0 de réis, dos quais 1 6 : 0 0 0 . 0 0 0 destinados à c o n s t r u ç ã o de igrejas paroquiais.
M a s houve outra novidade i m p o r t a n t e : a d o t a ç ã o d o c a p í t u l o foi votada separadamen-
te, alcançando 1 3 : 6 0 0 . 5 0 0 de réis. L o g o , para o c o n j u n t o do c l e r o foram destinados
5 5 : 9 1 5 . 2 2 0 de réis, o que representava 9 % d o O r ç a m e n t o da Província para o exer-
cício 1 8 3 5 - 1 8 3 6 , c o m u m a u m e n t o de 1 4 5 % e m relação à d o t a ç ã o de 1 8 0 0 . 6 6

C o m p a r a n d o os níveis de 1 8 0 0 e de 1 8 3 5 , para o alto clero o a u m e n t o foi o


seguinte: decano, 5 0 % ; dignitário, 6 6 , 6 % ; c ó n e g o , 6 0 % ; c ó n e g o semiprebendado,
1 4 0 % ; vigário da catedral, 5 0 0 % . Para o b a i x o clero ( i n c l u i n d o nesta categoria os
padres que, a diversos títulos, encarregavam-se da igreja catedral): coadjutor da cate-
dral, 6 6 , 6 % ; subchantre, 6 2 , 1 % ; capelão, 5 0 % . O s clérigos das outras paróquias
tiveram sua côngrua aumentada em 5 0 0 % e os coadjutores em 1 0 0 % . N o período
seguinte, a côngrua d o clero b a i a n o se estabilizou.
A côngrua, os direitos de estola e outros e m o l u m e n t o s n ã o constituíam as únicas
rontes de renda do clero. A análise de testamentos e inventários mostra que todos os
LIVRO V - A IGREJA
365

padres falecidos em Salvador entre 1 8 0 1 e 1 8 8 7 L

£ j • , 1 8
* a r a m bens a seus herdeiro
8 7 dei TOS.

Quando «asna - pois o ato de testar era facultativo - , esse documento tinha pía
m n ç a o : definia a realização de atos religiosos, como missas, esmolas e modos de
seputamento; reconheça a paternidade, permitindo a destinação de herança a filhos
gerados fora dos laços matrimoniais; e, finalmente, definia legados a pessoas Os
beneficiários dos legados - segundo a legislação em vigor, ficava disponível para este
fim até 1/3 dos bens — podiam ser a Igreja, os institutos de educação ou de caridade
e as irmandades religiosas, mas o testador também podia utilizar esse meio para favo-
recer alguns de seus filhos, parentes próximos ou afastados, afilhados, amigos ou
empregados fiéis.
A repartição dos legados fornece indicações para o estudo das relações entre o
testador e o meio social em que vivia: que tipo de pessoas eram favorecidas? Passavam
necessidade? Mantinham relações de que tipo com o testador? Para responder, usarei,
para efeito de comparação, um exemplo recolhido entre a população livre e alforriada
de Salvador. Primeiro, vejamos como eram definidos o direito de testar dos clérigos e
a maneira como eles adquiriam seus bens.
O direito canónico proibia que os clérigos dispusessem, em testamento, de bens
adquiridos da Igreja e das rendas que obtinham. Todavia, com a aquiescência do papa
e dos bispos, fora consagrado no Brasil o princípio de que eles podiam dispor, por via
testamentária, dos bens adquiridos durante o exercício de seu ministério. As Consti-
tuições Primeiras justificavam esse costume, lembrando que a diminuta porção côngrua
era insuficiente para prover às necessidades dos padres. Estes só podiam dispor de seus
bens pessoais e nunca dos "paramentos, cibórios, missais e outros objetos pertencentes
à Igreja, como casas e senzalas, que ele ou seus predecessores tivessem construído em
benefício desta mesma Igreja". Por outro lado, os herdeiros eram obrigados a indenizar
qualquer dano material feito à Igreja e reembolsar as dívidas que diziam respeito à
compra de alimentos. As Constituições Primeiras recomendavam ainda que os clérigos
deixassem uma parte de seus bens para a Igreja, como prova de gratidão. Essas regras
67

continuaram a vigorar até a adoção da nova legislação civil sobre os testamentos, em


1835, a partir das quais as condições para testar tornaram-se iguais para clérigos e
leigos, menos no que dizia respeito aos bens da Igreja, para os quais as antigas inter-
dições foram mantidas.
Os clérigos podiam, por conseguinte, dispor livremente de seus bens pessoais.
Para atenuar o atraso com que a Coroa os nomeava para um cargo remunerado, ou
para evitar que os não-nomeados se tornassem indigentes, no século X I X , antes de
receber as ordens maiores, todos os postulantes ao sacerdócio devam provar que
possuíam um patrimônio d ütulum patrimoni suí)I no valor de 6 0 0 m,l réis, capaz de
{ a

fornecer uma renda mínima de 3 0 mil réis anuais," considerada necessária para que
se pudesse esperar, sem maiores preocupações, a nomeação «
detalhes, adianto que o salário anual de um professor era de 8 0 0 m d r ó e de um
Pedreiro, de 2 5 0 mil réis).- Era ilusória a segurança oferecida por essa pequena renda,
BAHIA. SÉCULO X I X

q u e d e v i a ser c o m p l e m e n t a r a o u t r a s , i n c e r t a s , o b t i d a s n o e x e r c í c i o das f u n ç õ e s sacer-


d o t a i s , de a c o r d o c o m a b o a v o n t a d e d o s fiéis.
O p a t r i m ô n i o d o f u t u r o p a d r e era f o r m a d o p o r seus pais o u p a r e n t e s , o u ainda p o r

t e r c e i r o s . N o i n í c i o d o s é c u l o , e l e às vezes e r a c o n s t i t u í d o d e f o r m a p r o v i s ó r i a , encon-
trando-se, nos atos cartoriais, freqüentes restrições c o m o estas: " c o m a condição q U e

ele só t o m e posse da dita f a z e n d a d e p o i s d e t e r s i d o o r d e n a d o ( . . . ) e q u e esse património


r e t o r n e a seu c o n s t i t u i n t e se s e u b e n e f i c i á r i o a d q u i r i r u m c a r g o e m c o l a ç ã o " o u ainda
" e n q u a n t o ele n ã o t i v e r c a r g o s " . T a m b é m p o d i a a c o n t e c e r q u e o f o r m a d o r de um pa-
t r i m ô n i o o d e c l a r a s s e n u l o se s e u b e n e f i c i á r i o n ã o t i v e s s e s i d o o r d e n a d o padre num
prazo aceitável, n ã o e s p e c i f i c a d o . 7 0
E v i t a v a - s e a s s i m o p a r a s i t i s m o , várias vezes denuncia-
d o , p r a t i c a d o n o m e i o c l e r i c a l . E s s a s c l á u s u l a s r e s t r i t i v a s , c o n t u d o , n ã o e r a m generali-
zadas, e o p a d r e a s s u m i a suas f u n ç õ e s s a c e r d o t a i s m u n i d o d e u m p e q u e n o pecúlio que
l h e p e r m i t i a e n f r e n t a r as n e c e s s i d a d e s m a i s u r g e n t e s . A l i á s , a p a r t i r d e 1 8 3 5 a legisla-
ção proibiu a supressão do p a t r i m ô n i o dos padres sob q u a l q u e r pretexto.
O p a d r e s e c u l a r t a m b é m p o d i a a d q u i r i r b e n s p o r h e r a n ç a o u l e g a d o . Ele herdava
de seus p a i s , m a s era o b r i g a d o a t r a z e r e m c o l a ç ã o as d o a ç õ e s q u e r e c e b e r a durante a
v i d a d e s t e s . S o m e n t e o s r e g u l a r e s r e d u z i d o s a o e s t a d o s e c u l a r se b e n e f i c i a v a m do
m e s m o d i r e i t o , o q u e foi o m o t i v o a l e g a d o p a r a n u m e r o s a s r e d u ç õ e s d e religiosos ao
estado s e c u l a r n o s é c u l o X I X . E l e s t a m b é m p o d i a m r e c e b e r , a t í t u l o pessoal, legados
d e sua f a m í l i a o u de t e r c e i r o s . À s v e z e s , m a s r a r a m e n t e ( c a t o r z e casos em 1.115
a n a l i s a d o s ) , esses l e g a d o s e r a m c o n t e s t a d o s p e l a f a m í l i a d o s d e f u n t o s . E m compensa-
ç ã o , o s p a d r e s r e c e b i a m severas c r í t i c a s d o s fiéis, q u e r e p r o v a v a m sua v o r a c i d a d e por
d i n h e i r o n o e x e r c í c i o d e sua m i s s ã o s a c e r d o t a l — v e l h a c e n s u r a , f e i t a a todas as Igrejas
d o m u n d o , às vezes i n j u s t a m e n t e .

C o m o a movimentação financeira das p a r ó q u i a s n ã o estava s u j e i t a a nenhum


registro f o r m a l , é i m p o s s í v e l s a b e r q u a l a p a r t i c i p a ç ã o d o d i n h e i r o d o s fiéis na receita
a c u m u l a d a . T a m b é m é i m p o s s í v e l d i s t i n g u i r , e n t r e o s b e n s dos p a d r e s , aqueles origi-
nados de h e r a n ç a , l e g a d o o u i n v e s t i m e n t o s . É c e r t o , n o e n t a n t o , q u e os padres inves-
tiam c m a v e n t u r a s c o m e r c i a i s — c o m o a c o m p r a de escravos na c o s t a africana, por
e x e m p l o — , terras e p r o p r i e d a d e s i m o b i l i á r i a s .
Apesar d o t a m a n h o i n s u f i c i e n t e — a p e n a s 2 3 i n v e n t á r i o s — , nossa amostra apre-
senta u m a i m a g e m c h e i a de matizes s o b r e a f o r t u n a d o s p a d r e s q u e morreram em
Salvador. E n t r e 1 8 2 1 c 1 8 5 0 , eles d e i x a r a m h e r a n ç a s e n t r e 1 : 3 6 6 d e réis (inventário n°
5 / 7 2 4 , d o padre M a n u e l de S a n t a M ó n i c a D e l f i m , f a l e c i d o e m 1 8 2 1 ) e 1 2 : 0 8 2 de réis
(inventário n ° 6 / 7 9 7 , d o c ó n e g o J o ã o C o r r e i a de B r i t o , falecido c m 1 8 3 6 ) . Entre os
o i t o inventários de padres falecidos nesse p e r í o d o , só u m d e i x o u passivo ( n ° 4/789, do
padre J o s é d o Amaral M a c e d o , falecido c m 1 8 3 4 ) . Para o s e g u n d o p e r í o d o , de 1851
a 1 8 8 7 , as fontes são mais substanciais: os q u i n z e inventários analisados mostram que
as fortunas dos padres se situavam e n t r e 2 8 1 . 0 0 0 réis ( n ° 3 / 1 0 8 4 , do padre Francisco
H e n r i q u e de A l m a d a , falecido c m 1 8 8 6 ) e 4 7 : 1 1 2 de réis ( n ° 5 / 7 2 2 3 , d o cónego J o ã o
José de A l m e i d a , falecido n o m e s m o a n o ) . O c ó n e g o L o u r e n ç o Borges de Lemos,
LrvRoV- A IGREJA
367

pároco de N o s s a S e n h o r a da P e n h a , falecido em 1 8 7 S A~; •


réis ( i n v e n t á r i o n « 7 / 3 6 8 2 ) . W 5
' ^ U m d e 1 : 4 8 8 d e

Esses d a d o s n ã o s ã o s u f i c i e n t e s p a r a q u e se t i r e m c o n c l u s õ e s s o b r e as f o r t u n a s d o
clero b a i a n o . M a s p e r m i t e m c o m p a r a ç õ e s c o m o u t r o s i n v e n t á r i o s post manem d e i x a -
dos p o r h o m e n s e m u l h e r e s livres e a l f o r r i a d o s d e S a l v a d o r .

E n t r e 1 8 2 1 e 1 8 5 0 , a m a i o r f o r t u n a d e i x a d a p o r u m p a d r e f o i d e 1 2 : 0 8 2 d e réis 7 1

P e r t e n c i a a J o ã o C o r r e i a d e B r i t o , p o r t u g u ê s d e n a s c i m e n t o e brasileiro n a t u r a l i z a d o
c ó n e g o e c h a n t r e d a c a t e d r a l , p a i d e t r ê s filhos r e c o n h e c i d o s n o t e s t a m e n t o . A parte
mais i m p o r t a n t e d e s u a f o r t u n a e r a f o r m a d a p e l a m e t a d e de u m s o b r a d o , d i n h e i r o e m
espécie, e m p r é s t i m o s c o n c e d i d o s a t e r c e i r o s , e s c r a v o s , m ó v e i s e o b j e t o s de o u r o e
prata. E m c o m p e n s a ç ã o , o s b e n s d e i x a d o s p e l o p a d r e M a n o e l d e S a n t a M ô n i c a D e l f i m
l i m i t a v a m - s e a u m a c a s i n h a d e t r ê s c ô m o d o s , c i n c o e s c r a v o s , d o i s c a v a l o s , q u a t r o vacas
e alguns m ó v e i s , t o d o s " a d q u i r i d o s h o n e s t a m e n t e p e l o e x e r c í c i o e m i n i s t é r i o d e m i -
nhas o r d e n s e a l g u n s n e g ó c i o s t a m b é m h o n r o s o s " , v a l e n d o o total 1 : 3 6 6 de réis. Esse
m o n t a n t e , d e i x a d o p e l o p a d r e M a n o e l , se a p r o x i m a v a d o v a l o r m é d i o de 1 : 6 4 0 de réis
deixados e m h e r a n ç a p e l a p o p u l a ç ã o l i v r e e a l f o r r i a d a e m 1 8 2 1 . J á o c ó n e g o J o ã o
Correia de B r i t o d e c l a r o u u m valor p r ó x i m o da m a i o r fortuna — 1 3 : 9 8 6 de réis — ,
deixada e m 1 8 3 6 p e l o m é d i c o J o ã o M a c i e l d e S o u z a ( i n v e n t á r i o n ° 8 / 7 9 7 ) .

N o p e r í o d o 1 8 2 1 - 1 8 5 0 , a m a i o r f o r t u n a i n v e n t a r i a d a foi a d e u m a viúva sem


filhos, A n n a M a r i a d a C o n c e i ç ã o , f a l e c i d a e m 1 8 3 4 , c o m 1 6 4 : 8 6 5 de réis. S e u i n -
ventário, n ° 7 / 7 8 7 , a r r o l o u 5 8 : 0 9 8 d e réis e m e m p r é s t i m o s a terceiros, 5 4 : 0 3 6 de réis
em espécie ( p r o v e n i e n t e s d e q u o t a s e m u m a s o c i e d a d e c o m e r c i a l ) , 3 7 : 2 7 4 de réis e m
imóveis, 1 2 : 0 0 0 d e réis c o r r e s p o n d e n t e s a u m a p r o p r i e d a d e rural e 2 0 escravos avalia-
dos e m 3 : 1 7 0 d e réis — para ficarmos a p e n a s n o s i t e n s m a i s i m p o r t a n t e s . Nesse
p e r í o d o , 6 9 i n v e n t á r i o s d e h o m e n s e m u l h e r e s livres ( 2 9 , 6 % d o total) deixaram h e r a n -
ças superiores a 1 0 : 0 0 0 d e r é i s . O v a l o r d e u m a p e q u e n a f o r t u n a se situava e n t ã o em
t o r n o de 3 : 0 0 0 d e réis, e o v a l o r m é d i o das m e n o r e s h e r a n ç a s era de 4 9 0 mil r é i s . 7 2

A s s i m , a m e n o r f o r t u n a d e i x a d a p o r u m p a d r e e m 1 8 2 1 ( 1 : 3 6 6 de réis) estava
abaixo d a m é d i a das f o r t u n a s m e n o r e s d o q u e 1 0 : 0 0 0 de réis, deixadas pela população
livre d a c i d a d e . H a v i a p a d r e s q u e n ã o e r a m a b a s t a d o s , m a s q u e t a m b é m n ã o se e n c o n -
travam e m s i t u a ç ã o c r í t i c a : e n t r e o i t o i n v e n t á r i o s de padres, só u m deixou herança
inferior a 1 : 5 0 0 de r é i s . 7 3
C o m p a r e m o s agora essas f o r t u n a s d e padres e de h o m e n s e
mulheres livres d e S a l v a d o r c o m aquelas deixadas p o r alforriados.
E m 1 8 2 6 , p e l o i n v e n t á r i o n ° 9 / 7 5 1 , P e t r o n i l h a de J e s u s d o O u t e i r o , verdure.ra,
deixou a b e l a s o m a d e 6 : 2 1 1 de réis, q u e representava a s o m a d o valor de quinze
escravos ( 1 : 8 1 5 de r é i s ) , 1 : 6 8 8 de réis em d i n h e i r o líquido, duas casas (valendo j u n t a s
1 : 7 5 0 de réis) c 1 : 1 1 2 d e réis e m jóias. Esta última q u a n t i a era e n o r m e para uma
pessoa c o m o ela. E m c o m p e n s a ç ã o , o africano alforriado J o s é Severo, falecido em
1 8 3 1 , d e i x o u u m a h e r a n ç a de 5 8 0 mil réis, p r o d u t o da venda de dois escravos, únicos
bens q u e possuía ( i n v e n t á r i o n ° 2 / 7 2 1 ) . E n t r e os vinte inventários feitos nesse período
por alforriados, u m d e i x o u dívidas, quatro deixaram somas infenores a cem m,l réis,
368 BAHIA, SÉCULO X I X

cinco deixaram somas entre 101 e 500 mil réis, quatro somas entre 500 mil réis e

1:000 de réis e seis outros somas entre 1:000 e 6:000 de réis. A média de fortuna desse
grupo de pessoas que ocupava os escalões mais baixos da hierarquia social era de cerca
de 1:025 de réis, o que é coerente com a posição que os alforriados ocupavam na
sociedade de então.
Para a segunda metade do século XIX, temos quinze inventários de padres. 74

Dois deles deixaram dívidas, quatro deixaram menos de 2:000 de réis e dez deixaram
bens avaliados entre 4:926 de réis e 47:112 de réis. A herança mais modesta, de 182
mil réis, foi a do padre Francisco Henrique de Almada, falecido em 1886; no mesmo
ano, o cónego João José de Almeida deixou a seus herdeiros 47:112 de réis. A dife-
rença entre essas duas fortunas é considerável. O cónego João José era membro de
uma poderosa família de senhores de engenho do distrito de Santo Amaro, no
Recôncavo, ao passo que o padre Francisco era, do ponto de vista da origem familiar,
um desconhecido. Sem dúvida, o cónego herdou da família uma parte de seus bens,
entre os quais figurava uma fazenda e um rebanho de ovelhas. Ele não era, aliás, o
único padre baiano muito rico. Em 1885, o cónego Henrique de Souza Brandão,
tesoureiro do capítulo e filho de uma poderosa família do distrito de Santo Amaro,
deixou a seus herdeiros a interessante soma de 2 9 : 0 0 0 de réis (inventário n° 5/1985).
Grandes fortunas seriam características de cónegos? E difícil responder. Um ano mais
tarde, o cónego Gustavo Adolfo de Sá Barreto, membro de uma família muito co-
nhecida na cidade de Salvador, deixou apenas dívidas, num valor de 119.634 réis
(inventário n° 7/1097).
Continuemos a comparar os inventários dos padres e os da população livre e
alforriada desse período. Tomemos novamente um só ano, o de 1866. A maioria dos
sete inventários desse ano diz respeito a fortunas superiores a 10:000 de réis. Com
efeito, a não ser os 1:566 de réis deixados pelo alforriado Eliseu Augusto Pires, horte-
lão dos arredores da cidade (inventário n° 1/1089 de 1886), e os 4:143 de réis em
ações bancárias e obrigações do Estado deixados por Joaquim Luiz Aguiar (inventário
n° 7/1089 de 1886), todos os outros registraram fortunas superiores a 15:000 de reis
em valores brutos (antes da subtração de despesas e dívidas). Mas três entre elas
estavam muito oneradas por dívidas, razão pela qual os herdeiros só receberam entre
8,5% e 49,5% do seu valor.
Não tenho a intenção de me alongar nessa questão, à qual consagrarei um
estudo à parte. Por enquanto, basta acentuar que a fortuna mais baixa, a do
75

alforriado Eliseu Augusto Pires (1:566 de réis), foi maior que a do padre Francisco
Henrique de Almada (281.000 réis); e que a do comerciante português Antônio José
Luiz Brandão (87:773 de réis) foi quase duas vezes maior que a do cónego João Jose
de Almeida (47:112 de réis). A análise dessas d uas últimas fortunas mostra que a do
cónego nada tinha de exorbitante. Se a compararmos à deixada pelo comerciante
português Francisco Adies Vilas Boas (1.189:687.979 réis, segundo o inventário
n° 4/7216 de 1884), ela se transforma numa fortuna boa, mas não excepcional. No
LIVRO V - A IGREJA
369

período q u e nos interessa aqui, há 81 fortunas superiores a 5 0 - 0 0 0 A r


superiores a 2 0 0 : 0 0 0 de réis. p e r i o r c s a 5 0 . 0 0 0 de réis e 2 4

D o s 3 0 4 i n v e n t á r i o s f e i t o s p o r pessoas livres e alforriadas 3 3 M i n<JM HP'


v a l o r e S i n f e r i o r e s a 1 : 0 0 0 d e réis, 1 2 3 ( 4 0 . 5 % ) d e i x a r a m e , ' ^
e , 1 2 ( 3 6 . 8 % ) d e i x a r a m m a i s d o q u e este ú l t i m o p a t a m a r . A p a r e c e r a m Z a s m
( U , 8 % ) c a s o s N o - s ó d o s p a d r e s 4 3 , 8 % d e i x a r a m bens superiores a 1 0 : 0 0 0 de réis
ao passo q u e 1 8 , 8 % t i n h a m e n t r e 4 : 0 0 0 e 1 0 : 0 0 0 de réis.

Notemos finalmente q u e , e n t r e o s a l f o r r i a d o s , a m a i o r f o r t u n a era de J o a q u i m


de A l m e i d a , d e o r i g e m a f r i c a n a e c e l i b a t á r i o . A o m o r r e r , e m 1 8 5 7 , ele deixou o i t o
escravos ( d o s q u a i s c i n c o a d u l t o s , q u e v a l i a m 7 : 7 0 6 de réis), duas casas avaliadas
em 3 : 8 0 0 e 2 : 7 7 7 d e réis e u m p o u c o d e d i n h e i r o e m e s p é c i e . Para u m alforriado,
essa f o r t u n a e r a t ã o e x c e p c i o n a l q u a n t o a d o c o m e r c i a n t e p o r t u g u ê s F r a n c i s c o Adães
Vilas B o a s .

Essas a n á l i s e s e s p e c í f i c a s q u e a c a b o d e fazer p e r m i t e m c o n s t a t a r q u e , n o que diz


respeito a s u a s f o r t u n a s , o s p a d r e s d a c a p i t a l , c o m a l g u m a s e x c e ç õ e s , integravam
uma c a m a d a r e l a t i v a m e n t e p r i v i l e g i a d a . N e m p o b r e s n e m ricos, estavam protegidos
da a n g ú s t i a e m q u e v i v i a a m a i o r p a r t e d a p o p u l a ç ã o livre, alforriada e escrava. M a s ,
será essa c o n s t a t a ç ã o e x t e n s i v a a t o d o o c l e r o b a i a n o ? N a g r a n d e m a i o r i a dos casos
de q u e t r a t a m o s , o s p a d r e s t i n h a m c a r g o s c o m r e n d i m e n t o s , e sua riqueza só apare-
cia n a h o r a d a m o r t e . C o m o n ã o d i s p o n h o d e m u i t o s e x e m p l o s , n ã o posso chegar a
c o n c l u s õ e s r e a l m e n t e c o n v i n c e n t e s s o b r e a v i d a m a t e r i a l d o clero e m geral. Possivel-
m e n t e , a m a i o r i a d o c l e r o b a i a n o t e v e u m a e x i s t ê n c i a mais parecida c o m as dos
padres M a n o e l d e S a n t a M ô n i c a D e l f i m e F r a n c i s c o H e n r i q u e de A l m a d a do que
c o m as d o s c ó n e g o s J o ã o d e B r i t o C o r r e i a e J o ã o J o s é de A l m e i d a . T a l v e z tenha
sido o c a s o d o s j o v e n s p a d r e s . M a s n ã o t e n h o m e i o s de s a b ê - l o . E s t a análise abre,
n o e n t a n t o , n o v o c a m i n h o d e p e s q u i s a s s o b r e u m t e m a n e g l i g e n c i a d o pela historio-
grafia religiosa n o B r a s i l .

Dois MODELOS PARA A MESMA MISSÃO

De o r i g c m b a i a n a o u b r a s i l e i r a , r e c r u t a d o s e m rodos os meios »*Mh»*


famUias l e g a l m e n t e c o n s t i t u í d a s , cies m e s m o s f r e q ü e n t e m e n t e pats

uma e x i s t ê n c i a p r o t e g i d a de W 6
« ^ n S I ^ ~ MaíaTma-
d e r o t r a n s m i t i d a p e l o e s t u d o dos t e s t a m e n ^ ^ ~ s L corresponde ao c o n -
gem d c padres c o m c o m p o r t a m e n t o e m e n t a l i d a d e antigo
j u n t o d o c l e r o b a i a n o , s o b r e t u d o depois d o d c p a d r e , A c a b o

D e p o i s da d é c a d a d e 1 8 5 0 , e x . s u a m lado a do do s ^
de descrever as p r i n c i p a i s características d o P " m
° m o r a H d a d e e a cducaçSo, mais
curava m o l d a r u m a h i e r a r q u i a p r e o c u p a d a 00 d o £ , „ W o

condimente c o m o m o d e l o ideal d o padre c a t ò l . c o . N a m ^


370 BAHIA, SÉCULO X I X

p a d r e ' devia ser b r a s i l e i r o e r e c r u t a d o e m f a m í l i a s l e g a l m e n t e c o n s t i t u í d a s , talvez


m o d e s t a s , m a s c o m h á b i t o s i r r e p r e e n s í v e i s . D e p o i s d e passar pela seleção e entrar
n o S e m i n á r i o M e n o r , o c a n d i d a t o devia s u b m e t e r - s e a q u a t r o a n o s de internato
o n d e r e c e b i a s ó l i d a i n s t r u ç ã o e m o l d a v a o c a r á t e r e o c o m p o r t a m e n t o . S e fosse jul-
g a d o a p t o a p r o s s e g u i r , era a d m i t i d o n o S e m i n á r i o M a i o r , o n d e , d u r a n t e mais qua-
t r o a n o s , preparava-se para e x e r c e r sua m i s s ã o s a c e r d o t a l . N e s s a e t a p a , os superiores
h i e r á r q u i c o s j u l g a v a m n o v a m e n t e a v o c a ç ã o d o c a n d i d a t o e d e c i d i a m se era oportu-
no ordená-lo.
O r d e n a d o p a d r e , o j o v e m n ã o t i n h a m a i s o l e q u e d e p o s s i b i l i d a d e s de outrora, q u e

p e r m i t i a a u m a p a r t e d o c l e r o p r o t e g e r - s e d e p r e o c u p a ç õ e s m a t e r i a i s p r e m e n t e s e viver
c o m a l g u m a i n d e p e n d ê n c i a m a t e r i a l e e s p i r i t u a l . A g o r a , a n t e s de ser aprovado pela
a u t o r i d a d e g o v e r n a m e n t a l , o e x e r c í c i o d e q u a l q u e r f u n ç ã o s a c e r d o t a l dependia da
a u t o r i d a d e d i o c e s a n a ( n o a n t i g o s i s t e m a das c a p e l a n i a s o E s t a d o n ã o e x e r c i a nenhuma
i n f l u ê n c i a s o b r e o r e c r u t a m e n t o d o s p a d r e s f e i t o p o r p a r t i c u l a r e s ; e m contrapartida,
e x e r c i a i n f l u ê n c i a i n d i r e t a n o r e c r u t a m e n t o d o s c a p e l ã e s pelas c o n f r a r i a s religiosas, já
q u e os e s t a t u t o s destas e s t a v a m s o b s e u c o n t r o l e ) . A l é m d i s s o , o s n o v o s padres tinham
q u e viver a p e n a s c o m a c ô n g r u a e n ã o p o d i a m m a i s e x e r c e r a m u l t i p l i c i d a d e de ofícios
q u e o u t r o r a l h e s p e r m i t i a m viver m o d e s t a m e n t e e a t é a n g a r i a r a l g u n s b e n s (ou mesmo
f o r t u n a s ) . M a s , c o m u m p o u c o d e s o r t e , eles a i n d a p o d i a m p r e s t a r serviços remune-
rados — m e s t r e - e s c o l a o u p r e c e p t o r , p o r e x e m p l o — , c o n t a n t o q u e isso n ã o os afas-
tasse dos seus l o c a i s d e m o r a d i a e fosse p e r m i t i d o p e l o b i s p o . A t u d o isso se acrescen-
tava a falta de e n t u s i a s m o d e m o n s t r a d a p e l o g o v e r n o p a r a c r i a r n o v a s paróquias e até
para n o m e a r titulares de p a r ó q u i a s o u seus c o a d j u t o r e s .

P o r o u t r o l a d o , c o m p r e e n d e - s e a h e s i t a ç ã o d o s b i s p o s e m utilizar seu direito de


n o m e a r p á r o c o s a t í t u l o p r o v i s ó r i o , p o i s o s u s t e n t o destes r e c a í a s o b r e os fiéis. O
m é t o d o t i n h a , aliás, o u t r o i n c o n v e n i e n t e : n a p r á t i c a , s u b o r d i n a v a o p á r o c o a um chefe
local o u , n a m e l h o r das h i p ó t e s e s , a u m a c o m u n i d a d e . E l e ficava p o i s s u b m e t i d o a
tripla a u t o r i d a d e : a d o b i s p o , a d o E s t a d o e a d o c h e f e p o l í t i c o da p a r ó q u i a em que
servia. Este ú l t i m o e x e r c i a , s e m d ú v i d a , o p o d e r m a i s p e s a d o c o p r e s s o r , mas seu apoio
era m u i t a s vezes indispensável para a c a r r e i r a d o p a d r e .
O s padres de f o r m a ç ã o e c o m p o r t a m e n t o a n t i g o s e r a m capazes de conviver
t i r a n d o p r o v e i t o d a s i t u a ç ã o , às vezes e m d e t r i m e n t o dos fiéis — c o m essas três
autoridades, c u j o s p r i n c í p i o s e r a m f r e q ü e n t e m e n t e c o n t r a d i t ó r i o s . M a s qual era a
atitude dos padres f o r m a d o s s e c u n d o o m o d e l o t r i d e n t i n o e r o m a n o ? A Igreja conse-
guiu i m p o r esse m o d e l o , q u e enfatizava o a s p e c t o espiritual e m relação ao material, c
difícil responder.
N ã o há dúvida de q u e as r e f o r m a s introduzidas a p a r t i r de m e a d o s do século X I X
c o n f e r i r a m à Igreja brasileira — e baiana, em particular — u m aspecto clerical: a
imagem familiar d o p a d r e - p r e c e p t o r , d o p a d r e - t i o , d o padre-pai, do padre-padrinho,
tendeu a se e n f r a q u e c e r , surgindo em seu lugar a d o padre-cura, c o m h á b i t o s reforma-
dos e educação religiosa superior. Essa i m a g e m era verdadeira, s o b r e t u d o em Salvador
371

e freqüentemente e m seu Recôncavo, onde a a u t o r i a

* "T*
m a . S e os padres t o m a r a m u m a a p a r ê n c i a m a " s a , d *******
a m e n t o e a ç ã o t e n d e r a m a se
t d i L c T . T d t t ^ "n" ^
pouco m u d o u . S e r e n e m d o povo, cuja mentalidade

A n t e s p r i s i o n e i r o o b e d i e n t e de seus fiéis, o padre era agora o mestre que c o n t r o -


lava suas d e v o ç õ e s , q u e q u e n a d m g i r sua c o n s c i ê n c i a em nova direção, difícil de ser
c o m p r e e n d i a pela m a s s a i g n o r a n t e e a n a l f a b e t a e por u m a parte da elite, submetida
às i n f l u ê n c i a s i d e o l ó g i c a s d o s é c u l o . D e s e j a n d o c o l o c a r os fiéis sob c o m p l e t a depen
d è n a a e s p i r i t u a l d o c l e r o , a I g r e j a C a t ó l i c a c o n t r i b u i u para afastá-los dele. Sem dúvi-
da, procissões e o u t r a s c e l e b r a ç õ e s religiosas c o n t i n u a v a m presentes n o dia-a-dia dos
p a r o q u i a n o s . M a s , p o u c o a p o u c o , elas p e r d e r a m a espontaneidade e a vivacidade
populares. A c a b a r a m p o r se t o r n a r s í m b o l o s d e u m a religiosidade que perdera
espiritualidade, f e r v o r e , s o b r e t u d o , papel social. P r o p i c i a n d o o u t r o r a uma alegre
c o n v i v ê n c i a d e t o d a s as c a t e g o r i a s s o c i a i s , elas se t o r n a r a m o refúgio das pessoas mais
carentes, q u e a I g r e j a t i n h a i n t e r e s s e e m p r o t e g e r , t o l e r a n d o práticas que, aliás, julgava
supersticiosas.

As p r o c i s s õ e s r e l i g i o s a s e o u t r a s práticas populares se t o r n a r a m um espetáculo


o r q u e s t r a d o p e l a I g r e j a , n o q u a l o s a t o r e s e r a m u m a m i n o r i a de pobres, fiéis ao
c a t o l i c i s m o t r a d i c i o n a l , e o s e s p e c t a d o r e s e r a m os ' n o v o s ' c a t ó l i c o s , tomados pela
dúvida e a i n d i f e r e n ç a . S ó as c e r i m ô n i a s realizadas nas igrejas, c o m o a recitação do
rosário o u a a d o r a ç ã o d o S a n t í s s i m o S a c r a m e n t o , r e u n i a m g r u p o s de fiéis c o m
espiritualidade n o v a , n o s q u a i s as m u l h e r e s e r a m m a i o r i a . A volta do padre à sacristia,
ressacralizando o s a n t u á r i o , c o n f e r i u n o v a d i m e n s ã o à confissão, à missa e à c o m u -
n h ã o , m a s a f a s t o u desses a t o s g r a n d e p a r t e dos fiéis. A Igreja C a t ó l i c a ganhou em
qualidade o q u e p e r d e u e m q u a n t i d a d e ? M a i s u m a p e r g u n t a q u e ficará sem resposta.

N a s z o n a s rurais o a m b i e n t e q u e cercava o padre era c o m p l e t a m e n t e diferente.


N o m e a d o p á r o c o o u c o a d j u t o r , in perpetuum o u a título provisório, ele geralmente
vivia a c e n t e n a s o u m e s m o m i l h a r e s de q u i l ô m e t r o s da sede episcopal. A distànc.a
afrouxava os l a ç o s e p o d i a p r o d u z i r c e r t a i n d e p e n d ê n c i a , sobretudo quando as visitas
pastorais e r a m raras, s u b s t i t u í d a s p o r missões de ordens religiosas. Era frequente que
o padre de u m a p a r ó q u i a d o i n t e r i o r ficasse isolado espiritualmente, entregue a s,
m e s m o , c o m o o c u r a de o u t r o r a , apesar das c o n f e r ê n c i a s eclesiásncas. A l e m ã o
poder - q u e ele repartia a n t e s c o m u m c h e f e local, representante da
~ tinha q u e ser c o m p a r t i l h a d o agora c o m n u m e r o s o s agentes: ^ ^ " ^ f o
tos, delegados e s u b d e l e g a d o s de Polícia, integrantes da G u a r d a N « ^ g
políticosLais. Nem « £ • eles eram ^ ^ ^ ^ ^ ^
cia sobre a p o p u l a ç ã o . P a r a vencer na = ^ ^ vezes, atitudes que ás
c o m esse c í r c u l o , e isso n ã o era fácil. Apareciam e m .

vezes n ã o c o r r e s p o n d i a m aos desejos da fedlmeate às c o n t r a - .


O s novos padres, f o r m a d o s pelos s é c u I o X I X ) conseguiram
dicões de seu m e i o . R a r o s foram os párocos rurais que,
BAHIA, SÉCULO X I X
3~2

viver plenamente sua missão. Aliás, os prelados reformadores sabiam perfeitamente


76

como era ilusório impor reformas sem que a Igreja tivesse reencontrado sua autonomia
espiritual e material. Apesar dos progressos havidos na preparação do clero para o
exercício de sua missão, o padre rural conservou a feição familiar que lhe era própria
durante o período colonial. E m relação aos da capital e das demais grandes cidades,
continuou mais próximo do povo.
CAPITULO 21

As ORDENS RELIGIOSAS

No período colonial, homens e mulheres desejosos de ingressar na vida monástica po


diam entrar em conventos das ordens estabelecidas no Brasil desde o século XVI Apesar
de enfrentarem algumas restrições, os primeiros tinham diante de si numerosas possibi-
lidades. A situação das mulheres era muito diferente. À Coroa não interessava hmdar
conventos femininos num país em que era rara a presença de mulheres brancas. Além
disso, as necessidades da Colônia no plano religioso estavam relacionadas sobretudo a
evangelização e conservação da fé. Na época, a vida religiosa feminina era sobretudo
contemplativa, pois moças de boa família não deviam fazer trabalhos produtivos, consi-
derados degradantes. Era, pois, necessário dotar os conventos de um patrimônio que
gerasse renda, e isso não estava ao alcance dos brasileiros no início da colonização.

Além de ser obrigada a manter os conventos, a Coroa portuguesa perdia, com eles,
a possibilidade de arrecadar certos impostos, pois as propriedades eclesiásticas se bene-
ficiavam de isenções. Por tudo isso, eles foram pouco numerosos: quatro na Bahia
(Desterro, 1 6 6 7 ; Mercês, 1 7 3 5 ; Soledade, 1 7 3 9 ; Conceição da Lapa, 1744); um no
Rio de Janeiro (Nossa Senhora da Ajuda, 1 6 8 3 ) ; e um em São Paulo (Santa Teresa,
1885). Apenas o de Desterro foi fundado pela Coroa e só nele as religiosas podiam
receber heranças ou adquirir bens. Nos demais casos, isso era proibido. Os outros
conventos surgiram c o m o retiros, chamados 'recolhimentos', por iniciativa de mulhe-
res piedosas, geralmente integrantes das camadas médias. A transformação dessas casas
cm verdadeiros conventos dependia da permissão do rei e do bispo.
Além de garantir retiro para mulheres, muitas vezes viúvas ou abandonadas pelos
maridos, os recolhimentos abrigavam moças órfãs ou separadas de suas famílias, ex-
prostitutas em vias de regeneração (chamadas madalenas) e mulheres dedicadas à vida
monástica, que usavam hábito, praticavam a clausura e faziam votos particulares,
raramente reconhecidos pela Coroa. Havia, ainda, casos - necessariamente autoriza-
dos pelas autoridades coloniais ou eclesiásticas - de refúgio de esposas maltratadas e
de reclusão de outras, suspeitas de adultério ou mau comportamento.

373
J74 BAHIA, SÉCULO X I X

P a r a l e l a m e n t e a esses i n s t i t u t o s o f i c i a i s da I g r e j a C a t ó l i c a , havia u m a forma mais


p o p u l a r de vida p i e d o s a , expressa na r e c l u s ã o v o l u n t á r i a de m u l h e r e s celibatárias - a s

beatas. S e m lugar n o s c o n v e n t o s e nos r e c o l h i m e n t o s , s e m f o r t u n a q u e lhes facilitasse


c a s a m e n t o ou carreira religiosa, a l g u m a s delas se t r a n c a v a m e m casa, faziam votos
particulares e se s u b m e t i a m a rigorosas p e n i t e n c i a s ; o u t r a s , verdadeiras peregrinas
p e r c o r r i a m vastas regiões, p e d i n d o e s m o l a para s o c o r r e r os n e c e s s i t a d o s . T a l v e z tenha
h a v i d o , e n t r e elas, v o c a ç õ e s religiosas m a i s v e r d a d e i r a s d o q u e as d e m u i t a s freiras.
N o Brasil, o caso m a i s c é l e b r e de b e a t a p e r e g r i n a foi o de J o a n a G o m e s de Gusmão
filha de f a m í l i a a r i s t o c r á t i c a da C a p i t a n i a d e S ã o V i c e n t e e casada c o m um rico
a g r i c u l t o r , A n t ô n i o F e r r e i r a d e G a m b o a . O casal fez u m p a c t o : o q u e sobrevivesse ao
o u t r o c o n s a g r a r i a o resto d a v i d a a p e r c o r r e r o m u n d o a s e r v i ç o d e D e u s e do próximo.
V i ú v a , J o a n a c u m p r i u a p r o m e s s a : v e s t i d a c o m h á b i t o r ú s t i c o , t r a z e n d o nos braços um
p e q u e n o o r a t ó r i o c o m a i m a g e m d o M e n i n o J e s u s , i n i c i o u u m a p e r e g r i n a ç ã o que a
levou de P a r a n a g u á a D e s t e r r o , e m S a n t a C a t a r i n a . E m 1 7 6 2 , a duas léguas da vila,
c o n s t r u i u u m a p e q u e n a c a s a , o n d e p a s s o u a servir n e c e s s i t a d o s e a e d u c a r meninas,
v i v e n d o d a c a r i d a d e d o p o v o . M a i s t a r d e , u n i r a m - s e a e l a d u a s m u l h e r e s . M e m b r o da
c o n f r a r i a de N o s s a S e n h o r a d o s P a s s o s e de u m a o r d e m t e r c e i r a f u n d a d a e m Desterro,
J o a n a foi r e c o n h e c i d a c o m o b e a t a c e x e r c e u m a r c a n t e a ç ã o a p o s t ó l i c a .

E s t e t i p o de v i d a r e l i g i o s a e x i s t i u , s e m d ú v i d a , n a B a h i a , m a s n ã o d e i x o u vestígios.
N o ú l t i m o t e r ç o d o s é c u l o X I X , A n t ô n i o C o n s e l h e i r o , c h e f e m í s t i c o d o S e r t ã o baiano,
era c h a m a d o b e a t o p o r seus a d e p t o s , q u a l i f i c a t i v o t a m b é m u s a d o para numerosos
h o m e n s e m u l h e r e s de s e u g r u p o . 2
M a s o e q u i v a l e n t e m a s c u l i n o m a i s c o m u m dessa
f o r m a de r e l i g i o s i d a d e s i t u a d a f o r a d o m o d e l o t r a d i c i o n a l era r e p r e s e n t a d o pelos ere-
m i t a s , q u e d e s e j a v a m viver u m a v i d a c r i s t ã p e r f e i t a , v o l t a d a para a o r a ç ã o e o serviço
a o c u l t o d i v i n o . A e x p e r i ê n c i a d a s o l i d ã o m o n á s t i c a n ã o e r a n o v i d a d e para a Igreja,
mas o m o v i m e n t o e r e m í t i c o , i n i c i a d o n o B r a s i l a i n d a n o s é c u l o X V I , foi aqui essen-
c i a l m e n t e l e i g o . J á e m 1 5 5 8 , d e p o i s de h a v e r p a s s a d o p e l a B a h i a , o f r a n c i s c a n o espa-
nhol P e d r o P a l a c i o s v i a j o u para a C a p i t a n i a d o E s p í r i t o S a n t o , l e v a n d o c o n s i g o uma
i m a g e m de N o s s a S e n h o r a . E m V i l a V e l h a , f u n d o u o s a n t u á r i o d e N o s s a S e n h o r a da
Penha, onde morreu cm 1 5 7 0 . É possível q u e o u t r o s e r e m i t a s t e n h a m existido no
Brasil n o s é c u l o X V I , m a s sua i n f l u e n c i a foi m a i s m a r c a n t e na é p o c a d o c i c l o do ouro
d e M i n a s G e r a i s , i n i c i a d o n o fim d o s é c u l o X V I I .

S e t e , e n t r e eles, se d i s t i n g u i r a m n o p e r í o d o c o l o n i a l , d e i x a n d o traços de sua


passagem na d o c u m e n t a ç ã o da é p o c a . D o i s se e s t a b e l e c e r a m n o S e r t ã o b a i a n o : Félix da
C o s t a , q u e c o n s t r u i u seu e r e m i t é r i o e a c a p e l a d e N o s s a S e n h o r a da C o n c e i ç ã o em
M a c a ú b a s , p e r t o d o r i o das V e l h a s , e F r a n c i s c o da S o l e d a d e , q u e se instalou nas
margens d o rio S ã o F r a n c i s c o , o n d e f u n d o u o e r e m i t é r i o de B o m J e s u s da Lapa, até
h o j e local de p e r e g r i n a ç ã o d o s b a i a n o s .
O s e r e m i t a s usavam h á b i t o religioso e deixavam crescer barba e cabelos. Para
recolher as esmolas necessárias à m i s s ã o e m q u e se e m p e n h a v a m , percorriam freqüen-
t e m e n t e e n o r m e s d i s t â n c i a s , c a r r e g a n d o nos braços p e q u e n o s o r a t ó r i o s . Às vezes pr°~
LIVRO V - A IGREJA
375

n u n a a v a m v o t o s , p e r p é t u o s o u p o r t e m p o l i m i t a d o , mas sempre ligados à idéia de


p e n i t c n c . a . G a n h a v a m f a c i l m e n t e r e p u t a ç ã o de santidade, mas, entre eles, havia tam-
b é m falsos p r o f e t a s q u e , a p r o v e i t a n d o - s e da c r e d u l i d a d e d o povo, viviam às suas
custas, f r e q u e n t a n d o t a v e r n a s c o m o d i n h e i r o das e s m o l a s .

Apesar de s e m p r e ter c o n t a d o c o m p r o t e ç ã o e respeito das autoridades eclesiásti


cas. essa f o r m a de vida religiosa e n t r o u em d e c a d ê n c i a n o início do século X I X em
parte p o r causa d a f o r m a n i t i d a m e n t e clerical a s s u m i d a e n t ã o pela Igreja C a t ó l i c a Os
quatro e r e m i t a s a i n d a vivos e s t a v a m velhos e n ã o t i n h a m esperanças de encontrar
s u c e s s o r e s / O m e s m o p r o c e s s o a t i n g i u o u t r a s m a n i f e s t a ç õ e s leigas de fé.
N a p r i m e i r a m e t a d e d o s é c u l o X V I I I as o r d e n s religiosas viveram u m m o m e n t o de
grande e x p a n s ã o , c o m a m u l t i p l i c a ç ã o de i n s t i t u i ç õ e s e o f o r t a l e c i m e n t o de seu poder
e c o n ô m i c o . À s d o a ç õ e s d e t e r r a s , feitas pela C o r o a para a c o n s t r u ç ã o de conventos e
m o n a s t é r i o s , a c r e s c e n t a r a m - s e d o a ç õ e s de particulares de t o d o tipo. C o m exceção dos
f r a n c i s c a n o s e d o s c a p u c h i n h o s , o r d e n s m e n d i c a n t e s , todas as outras se tornaram
proprietárias d e t e r r e n o s e i m ó v e i s u r b a n o s , e n g e n h o s c fazendas de gado. F r e q ü e n t e -
m e n t e seu p o d e r e c o n ô m i c o p r o v o c a v a c o n f l i t o s c o m leigos, p r i n c i p a l m e n t e nas re-
giões N o r t e e S u l d a C o l ô n i a . N a s g r a n d e s c i d a d e s d o litoral, as ordens financiavam
n u m e r o s a s e m p r e s a s c o m e r c i a i s e a g r í c o l a s . J e s u í t a s , b e n e d i t i n o s , carmelitas e religio-
sas d o c o n v e n t o de S a n t a C l a r a d o D e s t e r r o d e s e m p e n h a v a m , na Bahia, papel de
b a n q u e i r o s , q u a n d o a i n d a n ã o e x i s t i a m e s t a b e l e c i m e n t o s formais de c r é d i t o . 4

O a p o g e u foi s e g u i d o p o r u m a l o n g a crise, q u e d u r o u mais de um século, causada


em parte pela h o s t i l i d a d e d o M a r q u ê s d e P o m b a l , m i n i s t r o português entre 1 7 5 4 e
1 7 7 4 . E m b o r a c u r t o , esse c o n t u r b a d o p e r í o d o d e s a r t i c u l o u a vida religiosa n o Brasil.
O s p r i m e i r o s a t i n g i d o s f o r a m o s j e s u í t a s , a q u e m P o m b a l reprovava a ingerência nos
negócios de g o v e r n o e a a c u m u l a ç ã o de p o d e r e c o n ô m i c o excessivo. N a verdade, a
C o m p a n h i a de J e s u s foi v í t i m a das p r e t e n s õ e s i m p e r i a i s d o g o v e r n o de P o m b a l . M e m -
bros da O r d e m d o m i n a v a m , n o B r a s i l , os d o i s p o n t o s mais e x t r e m o s — e sensíveis
das f r o n t e i r a s : n o N o r t e , a b a c i a a m a z ô n i c a e, n o S u l , as terras situadas entre os rios
Uruguai c P a r a g u a i . A l é m de p r a t i c a r u m a p o l í t i c a a m b í g u a e m relação aos índios, a
C o m p a n h i a de J e s u s n ã o pagava i m p o s t o s , o q u e desagradava uma administração
p r e o c u p a d a em c o n t r o l a r t u d o .
A essas causas e c o n ô m i c a s c políticas d e v e m - s e acrescentar outras, culturais e
ideológicas: o s é c u l o X V 1 1 I brasileiro vibrava c o m os apelos das novas idéias, antijesuí-
ticas c a n t i c a t ó l i c a s , da E n c i c l o p é d i a e da Filosofia das Luzes. Elas fizeram explodir
uma poderosa c o r r e n t e , i m b u í d a de l a i c i s m o , q u e repercutiu fortemente por aqui.
P o m b a l estava seduzido pelos n o v o s m é t o d o s de ensino e desejava reformar essa ativi-
dade, d o m i n a d a pela C o m p a n h i a de Jesus c por outras ordens rel.g.osas que concen-
travam seus esforços c m arte c teologia, desprezando as ciências exatas
O c h o q u e o c o r r e u q u a n d o os jesuítas reagiram contra as cláusulas do Tratado d e
M a d r i , de 1 7 5 0 , q u e reduziria sua influência no Sul d o país. A o ameaçarem defl grar
u m a revolta a r m a d a , apoiados nos índios que protegiam, sua expulsão se tornou
376 BAHIA, SÉCULO X I X

inevitável, s e n d o c o n s u m a d a e m 1 7 5 9 . A p a r t i r de e n t ã o , a p o l í t i c a de Pombal
c u r o u t o l h e r a a ç ã o dos regulares. H o u v e s u p r e s s ã o de c o n v e n t o s e até de mosteirr
tal era o desejo de se a p o d e r a r d o s b e n s das o r d e n s , j u l g a d a s i m p r o d u t i v a s . Diminuiu
o prestígio d a vida religiosa. A s s o c i a d a às r e s t r i ç õ e s i m p o s t a s p e l o g o v e r n o ao recruta
m e n t o de n o v i ç o s , essa i n f l u ê n c i a esvaziou c o n v e n t o s e m o n a s t é r i o s . 6

A I n d e p e n d ê n c i a a g r a v o u esse q u a d r o . A o g r i t o d o d e p u t a d o b a i a n o Ferreira
França — "que desapareçam entre nós m o n g e s e m o n j a s " — r e s p o n d e u o deputado
C u s t ó d i o D i a s : " N o s dias de h o j e , seria l o u c u r a q u e u m h o m e m quisesse ser monge ou
j e s u í t a ; t e m o s e n t ã o a o b r i g a ç ã o de p a r a r c o m isso, p o i s n ã o se p o d e consentir todas
as l o u c u r a s . " A a n t i p a t i a m a n i f e s t a d a c o n t r a os regulares era geral. P o v o e governo
7

c o n c o r d a v a m e m q u e as o r d e n s religiosas e r a m i n ú t e i s , pois c o n g r e g a v a m em seus


c o n v e n t o s apenas u m p u n h a d o d e m o n g e s , c u j a v i d a p r i v a d a n a d a t i n h a de exemplar
H a v i a l u x o e se d e s o b e d e c i a m flagrantemente os v o t o s de c a s t i d a d e e de pobreza.
R e c o n h e c i a - s e q u e o s r e g u l a r e s t i n h a m u m a c u l t u r a a c i m a da m é d i a , m a s isso não era
s u f i c i e n t e para t o r n á - l o s úteis. B o a p a r t e d o p r ó p r i o c l e r o era favorável à extinção das
o r d e n s , c u j o s i n t e g r a n t e s , p o u c o s e v e l h o s , m o r a v a m e m c o n v e n t o s i m e n s o s ou diri-
giam propriedades agrícolas.

E m b o r a n u n c a t e n h a d e c r e t a d o o f e c h a m e n t o p u r o e s i m p l e s dos conventos, o
g o v e r n o t o m o u m e d i d a s q u e t e r i a m essa c o n s e q ü ê n c i a . C o n s i d e r a n d o - s e herdeiro e
sucessor l e g í t i m o das o r d e n s , ele c o b i ç a v a esses b e n s , i n t e g r a d o s ao seu património
pela lei de 9 de d e z e m b r o de 1 8 3 0 . C o u b e à o r d e n s , desde e n t ã o , o direito de administrá-
l o s , a t é a m o r t e d e seu ú l t i m o m e m b r o . D e p o i s , os b e n s m o b i l i á r i o s e imobiliários
passavam ao c o n t r o l e d i r e t o d o E s t a d o . E m 1 8 3 4 , u m a c i r c u l a r d o M i n i s t é r i o da
J u s t i ç a p r o i b i u q u e c a n d i d a t o s a o n o v i c i a d o f o s s e m a d m i t i d o s s e m permissão expressa
d o g o v e r n o . E l a b o r a d o c o m o u t r o e s p í r i t o , o a r t i g o 1 0 d o A t o A d i c i o n a l de 1834
a t r i b u i u às A s s e m b l é i a s Legislativas a f a c u l d a d e de legislar s o b r e os conventos e as
outras f o r m a s d e a s s o c i a ç ã o r e l i g i o s a . 8
F i n a l m e n t e , e m m a i o de 1 8 5 5 , o governo
reforçou suas m e d i d a s , s u s p e n d e n d o o f u n c i o n a m e n t o d o n o v i c i a d o , o q u e provocaria
u m e s v a z i a m e n t o total d o s c o n v e n t o s . A p e s a r disso, v e r e m o s q u e foi estimulada a
9

entrada de m i s s i o n á r i o s e s t r a n g e i r o s , i n i c i a l m e n t e i n c u m b i d o s da evangelização dos


í n d i o s , mas logo i n f l u e n t e s n a r e f o r m a d o c l e r o e na i n s t r u ç ã o religiosa dos fiéis.
N u m e r o s a s o r d e n s m a s c u l i n a s e f e m i n i n a s estavam instaladas em Salvador desde
m e a d o s d o século X V I , q u a n d o a c i d a d e era capital da C o l ô n i a . . Desenvolveram ação
missionária m u i t o apreciada na área d o e n s i n o e a j u d a r a m a Igreja secular, tanto na
conversão de p o p u l a ç õ e s a u t ó c t o n e s e africanas, c o m o na preservação da fé das popu
lações cristianizadas. G r a ç a s aos d o n a t i v o s dos fiéis e aos dotes recebidos por ocasião
da admissão de seus m e m b r o s , algumas dessas ordens — c o m o a dos beneditinos, a
dos carmelitas e a das religiosas d o C o n v e n t o d o D e s t e r r o — acumularam fortunas
bastante consideráveis desde o fim d o período c o l o n i a l . M a s as ordens e congregações
instaladas na B a h i a n ã o escaparam à decadência q u e atingiu os estabelecimentos re
gíosos n o Brasil. As restrições impostas pelo governo ao recrutamento de noviços
fizeram d i m i n u i r s e n s i v e l m e n t e o n ú m e r o dc seus m e m b r o s , m u i t o s dos quais se
adaptavam mal à v.da em c o n v e n t o s c m o n a s t e r i o s . T a m b é m ali, a disciplina cedeu
t e r r e n o à o s t e n t a ç ã o . ( ) inglês T h o m a s I indley d e i x o u uma pitoresca descrição de uma
refeição feita c m c o m p a n h i a de q u a t r o religiosos baianos c m 1 8 0 2 : " O reverendíssimo
superior era, sem d m ida. u m frade alegre, e seus irmãos não lhe d e s m e n t i a m o piedoso
e x e m p l o dc m a n e i r a a l g u m a . O j a n t a r foi e x c e l e n t e , b e b e n d o - s e vinhos franceses da
mais fina q u a l i d a d e , além de cerveja clara c o u t r a , de tipo porttr, dc Londres \
refeição p r o l o n g o u - S C ate m a i s n ã o p o d e r ; e n t ã o , o g r u p o fe/ u m a interrupção indo
para um t e r r a ç o f r e s c o , f o r m a n d o - s e parcerias para o j o g o de cartas, todos se entregan-
do, ainda, c o p i o s a m e n t e , à bebida. R e t i r e i - m e antes de acabar-se a festa, mas fui
i n f o r m a d o pela pessoa q u e m e a p r e s e n t a r a a eles q u e os tais frades dc Jerusalém não se
l i m i t a r a m , a b s o l u t a m e n t e , a o s prazeres cia m e s a . " 1 0

B u r l a v a m - s e c a d a vez m a i s os e s t a t u t o s de cada o r d e m . N ã o raro, religiosos pas-


mavam m e s e s , a t é a n o s , fora d c seus c o n v e n t o s , c o r r e n d o o m u n d o sem prestar contas
a seus s u p e r i o r e s . O u t r o s passavam de u m a o r d e m a o u t r a , antes dc solicitar sua
secularização. O c a s o d o c ó n e g o e d o u t o r A n t ô n i o J o a q u i m das M e r c ê s ( 1 7 8 6 - 1 8 5 4 )
é e x e m p l a r , hez seus e s t u d o s n o c o n v e n t o dos b e n e d i t i n o s , sob a direção do reputado
mestre M a n o e l da C o n c e i ç ã o N e v e s , e r e c e b e u as o r d e n s , c o m e ç a n d o pois c o m o
m o n g e dessa o r d e m . P o r o b s c u r a s q u e s t õ e s 'de c o n s c i ê n c i a " , solicitou transferência
para os c a r m e l i t a s c a l ç a d o s em 181H. Em 1 8 2 1 , p r e t e x t a n d o perseguições de seu
s u p e r i o r , p a r t i u para P e r n a m b u c o , o n d e foi p r i o r do c o n v e n t o dos carmelitas. D e -
pois d c haver p a r t i c i p a d o da R e v o l u ç ã o de 1 8 2 4 , v o l t o u à Bahia, para seu antigo
c o n v e n t o , o n d e foi n o m e a d o p r o f e s s o r . D e z a n o s m a i s tarde obteve do papa Gregório
a u t o r i z a ç ã o para s e c u l a r i z a r - s c , " p o r razões espirituais q u e o i m p e d i a m de viver em
c l a u s u r a " . U m a n o m a i s tarde a p r e s e n t o u sua s u b m i s s ã o ao prelado metropolitano dc
Salvador e t o r n o u - s e m e m b r o d o c l e r o da d i o c e s e . R e p u t a d o professor dc filosofia,
m e s m o a p ó s a s e c u l a r i z a ç ã o e n s i n o u n o c o l é g i o dos c a r m e l i t a s e n o Liceu Provincial,
foi d e s e m b a r g a d o r d o T r i b u n a l E c l e s i á s t i c o e m e m b r o d o c a p í t u l o - c a t e d r a l . . . além
dc venerável da Ix>ja M a ç ó n i c a U n i ã o e S e g r e d o . E m seu t e s t a m e n t o reconheceu três
filhos, flois rapazes e u m a m o ç a , "para d e s e n c a r g o d c m i n h a consciência c para que
rne possam s u c e d e r . . . " ' 1

É fácil e n t e n d e r a a n i m o s i d a d e q u e esses religiosos despertavam n o governo, nos


leigos f UA própria hierarquia da Igreja q u e , n ã o c o n s e g u i n d o controlá-los, preferia vê-
los desaparecer, t e m e n d o e s c á n d a l o s . A o m e s m o t e m p o , todos eram obrigados a reco-
nhecer q u e , . p e s a r de d e c a d e n t e s , essas ordens prestavam excelentes serviços nas esco-
las superiores. Isso n ã o i m p e d i a um j u l g a m e n t o mais ou m e n o s generalizado: teriam
• i mais úteis
sido - • se n a-o tivessem perdido
. ^, o.. cqsupii n rclipioso c seus membros não
n it oo rt-ugiw
vivessem c o m o q u a l q u e r u m " . " . I V

I g n o r o a e v o l u ç ã o d o n ú m e r o de religioso» da Bahia durante o século X I X , mas


alguns dados e x i s t e m . E m 1 8 5 4 havia 2 1 4 deles vivendo, de rendas ou dc doações, nos
oito c o n v e n t o s dc Salvador.
37a BAHIA, SÉCULO X I X

TABELA 70

O R D E N S R E L I G I O S A S EM S A L V A D O R , 1854

ORDENS MASCUI INAS NÚMERO RENDA AMAI *

Beneditinos 31 19:000

Carmelitas 40 4:963

Franciscanos 36
-
Capuchinhos 13 5:000

Subtotal 120

ORDENS FEMININAS

Franciscanas do Desterro 33 12:000

Franciscanas da Lapa 16 5:000

Ursulinas das Mercês 25 7:000

Ursulinas da Soledade 20 2:860

Subtotal 124

TOTAL 214 55:823

(*) Renda anual em contos de réis.


Fonte: Fala do presidente da Província (João Maurício Wanderley) em 1 8 5 4 .

Capuchinhos e franciscanos viviam de doações dos fiéis, ao passo que as rendas de


todas as outras ordens vinham da locação de imóveis e das atividades em suas proprie-
dades agrícolas. Os beneditinos eram os mais ricos, com 3 4 % da renda de todas as
ordens e 6 5 % da das masculinas. Este cálculo não leva em consideração a renda dos
franciscanos, não publicada ño documento consultado. Mas, se atribuirmos a estes
uma renda igual àquela recebida pelos capuchinhos (5:000 de réis), os beneditinos
permanecem com uma proporção muito alta (31,2% da renda total das ordens e
55,9% da das masculinas). Infelizmente não tivemos acesso aos seus arquivos, guarda-
dos na clausura e proibidos às mulheres. Mas sabemos que eles eram os maiores
proprietários de imóveis da cidade.
No século X I X desapareceram algumas ordens religiosas, como a dos carmelitas
calçados, que haviam fundado o convento de Santa Teresa. Essa ordem era rida como
proprietária de imensa fortuna, e uma parte de sua renda era regularmente emprestada
a particulares. O historiador Valentín Calderón afirma que os carmelitas deviam figu-
rar entre os maiores emprestadores da cidade, mas não nos dá a prova disso."
Outro destaque eram as religiosas do Desterro, com 2 1 , 5 % da renda total e 44,7%
da das ordens femininas. Estes haveres tinham sido constituídos por doações de particu-
lares e pelos dotes das moças que entravam no convenro, nem sempre pagos imedia-
tamente. Por causa da falta de liquidez que atingia a maior parte dos agricultores e
comerciantes, era costume fazer um contrato com o pai ou o tutor da futura religiosa,
concedendo à ordem direito de propriedade sobre uma porção de terra, uma proprie-
LIVRO V - A IGREJA 379

dade a g r í c o l a o u u m i m ó v e l . . A i n s t i t u i ç ã o religiosa n ã o entrava i m e d i a t a m e n t e na


posse desses b e n s , m a s r e c e b i a j u r o s de 6 , 2 5 % ao a n o , até q u e lhe fosse e n t r e g u e o ca-
piral d e v i d o . S e , c o m o era c o m u m , a p r o p r i e d a d e fosse v e n d i d a , o c o m p r a d o r assumia
a dívida. E s t e m é t o d o t o r n a v a m u i t o a l e a t ó r i o o p a g a m e n t o do principal da dívida, que
f r e q ü e n t e m e n t e era ' e s q u e c i d a ' , r e d u z i n d o a reserva de capital do c o n v e n t o . Ademais, n o
s é c u l o X V I I I esses d i r e i t o s d e s a p a r e c e r a m p o u c o a p o u c o , e os devedores passaram a
pagar a p e n a s os j u r o s a n u a i s , r e d u z i d o s a p a r t i r d e 1 7 5 7 a 5 % d u r a n t e 2 5 a n o s . 1 4

O s dados o b t i d o s s ã o c o e r e n t e s e n t r e si. B e n e d i t i n o s e irmãs d o D e s t e r r o eram,


e f e t i v a m e n t e , as o r d e n s m a i s ricas d a c i d a d e . I g n o r o , c o m o disse, o p a t r i m ô n i o i m o b i -
liário dos p r i m e i r o s , m a s c o n h e ç o o das irmãs, graças a e s t u d o da historiadora Susan
S o e i r o . F u n d a d o n o fim d o s é c u l o X V I I , m e n o s de c e m anos depois o c o n v e n t o do
D e s t e r r o j á p o s s u í a u m a f o r t u n a c o n s i d e r á v e l . E m p r é s t i m o s a particulares eram u m item
de p r i m e i r a i m p o r t â n c i a até o fim d o s é c u l o X V I I I . D u r a n t e t o d o o período colonial,
ordens religiosas c a l g u m a s i r m a n d a d e s leigas, c o m o a M i s e r i c ó r d i a , d e s e m p e n h a r a m o
papel de b a n c o s , q u e s ó c o m e ç a m a existir e m 1 8 0 8 . 1 5
A partir de 1 7 7 2 , n o e n t a n t o , os
haveres l í q u i d o s p e r d e r a m p o s i ç ã o , p o i s as m o n j a s e m p r e s t a v a m d i n h e i r o sem saber se os
devedores e r a m solváveis. G r a n d e s s o m a s f o r a m assim perdidas. E m 1 7 6 4 , p o r exemplo,
51 devedores m o r r e r a m , l e v a n d o c o n s i g o 3 3 : 4 3 6 . 0 6 7 de réis da o r d e m . 1 6
Para resolver
o p r o b l e m a , o a r c e b i s p o d a B a h i a c r i o u n o p r ó p r i o c o n v e n t o u m a seção de contabili-
dade, d e s i g n a n d o u m c o m e r c i a n t e c o m o a d m i n i s t r a d o r . A ele s o m a r a m - s e dois juristas,
um para se o c u p a r d e c o n t e n c i o s o s j u r í d i c o s , o o u t r o para coletar os aluguéis e os juros
dos e m p r é s t i m o s . E m 1 7 7 8 , finalmente, o p a d r e I n á c i o P i n t o de Almeida foi n o m e a d o
a d m i n i s t r a d o r d c t o d o s o s b e n s , d a i n s t i t u i ç ã o e das m o n j a s .

E m 1 7 7 8 , o p a t r i m ô n i o i m o b i l i á r i o d o D e s t e r r o era f o r m a d o p o r oitenta casas


u r b a n a s , " d o i s p e d a ç o s de t e r r a " e u m a f a z e n d a , avaliados e m 4 6 : 5 5 9 . 7 6 6 de réis, que
davam u m a r e n d a a n u a l de 2 : 4 7 8 . 3 2 0 de réis, o u s e j a , 5 , 3 % d o capital (note-se que
estes m e s m o s d a d o s s ã o f o r n e c i d o s pela h i s t o r i a d o r a a m e r i c a n a para o a n o de 1 7 7 1 ) .
M a s será verdade q u e , e n t r e os c o n v e n t o s da c i d a d e , o do D e s t e r r o era o m a i o r
p r o p r i e t á r i o , o leading landlord^ 7
P a r e c e - m e u m a a f i r m a ç ã o precipitada, pelo m e n o s
e n q u a n t o os b e n s d o s o u t r o s c o n v e n t o s e m o n a s t e r i o s , assim c o m o os das ordens
terceiras e i r m a n d a d e s religiosas, n ã o tiverem s i d o e s t u d a d o s . 1 8
É preciso admitir, no
e n t a n t o , q u e o D e s t e r r o era u m dos mais ricos p r o p r i e t á r i o s de imóveis da Bahia. E m
1 8 5 9 , o c o n v e n i o possuía 1 0 4 casas, a d q u i r i d a s p o r d o a ç õ e s , legados ou compras.
D e q u e t i p o dc casas se tratava? S e g u n d o Susan S o e i r o , a cidade tinha umas cinco
mil casas por volta de 1 8 0 0 . J á v i m o s q u e o r e c e n s e a m e n t o de 1 8 7 2 a p o n t o u 1 5 - 2 5 7
casas, das quais 1 4 . 6 3 1 h a b i t a d a s . N e n h u m a das duas fontes fornece uma tipologia
dessas h a b i t a ç õ e s . U t i l i z a n d o i n f o r m a ç õ e s dc viajantes e declarações de um funcioná-
rio real, a h i s t o r i a d o r a n o r t e - a m e r i c a n a a f i r m a , e n t r e t a n t o , que os imóveis das ordens
religiosas, e s p e c i a l m e n t e d o D e s t e r r o , eram casas térreas, sem andares superiores e
habitadas g e r a l m e n t e por pessoas pobres. Afirma t a m b é m que conventos, monasterios,
irmandades e o r d e n s terceiras não d e m o n s t r a v a m interesse em melhorar as condições
BAHIA, SÉCULO X I X
3S0

residenciais da cidade, pois as rendas que angariavam com esses casebres eram suf i _ lc en

tes. 20
Esse ponto de vista deve corresponder à realidade pois, segundo minha análise,
na Cidade Alta — onde se concentravam esses bens — as casas eram efetivamente
térreas em sua maioria. Referindo-se ao estado miserável das casas de Salvador, U m

funcionário real declarou que "a principal causa desta desordem é que as casas perten-
cem aos conventos e a outras corporações, que não podem alienar seus bens e não se
envergonham do fato de que suas rendas provenham desses miseráveis casebres". 21

De qualquer forma, a situação das ordens religiosas era muito melhor que a do
clero secular. Seus membros contavam com o serviço de escravos e tinham teto gratui-
to, ao passo que os seculares enfrentavam suas obrigações apenas com a porção côngtua,
rendas de seu patrimônio e donativos dos fiéis. Em termos per capita, essas tendas
eram: beneditinos, 613.000 réis; carmelitas, 124.000; capuchinhos, 384.000;

franciscanos do Desterro, 364.000; franciscanos da Lapa, 312.000; ursulinas das Metcês,


280.000; e ursulinas da Soledade, 143.000. Uma tal situação pode ter contribuído —
é o que consta — para criar ciúmes no clero secular, que aliás demonstrou pouquíssimo
interesse em apoiar seus irmãos em religião, quando isso se fez necessário (lembremos
que o governo propunha utilizar os bens dos regulares para melhorar o ensino nos
seminários diocesanos). Esses dados, de 1 8 5 4 , foram parcialmente confirmados em
22

1 8 5 7 , quando inquérito do Ministério da Justiça revelou (para as ordens masculinas)


o número de conventos e de religiosos por diocese.

TABELA 71

RESIDÊNCIA E N Ú M E R O DE RELIGIOSOS
POR DIOCESE, 1 8 5 7 - ORDENS MASCULINAS

DIOCESES N ° RESIDÊNCIAS N ° RELIGIOSOS POPULAÇÃO (EM MIL HAB.)


Bahia 19 161 1.500

Rio de Janeiro 22 78 1.470

Pernambuco 20 73 1.900
Maranhão 6 21 600
Pará 2 14 380
São Paulo 13 19 930
Mariana 4 21 736
Rio Grande do Sul 1 - 350
Diamantina 1 - 394
Goiás - - 240
Mato Grosso - - 70
Ceará - - 508
Total 88 387 9.078
Fonte RioUndo A n i (org.). A vida religiosa no Brasil, p. 8 8 .
381

TABM.A 72

R E S I D Ê N C I A DI RELIGIOSAS POR D I O C E S E ,
1857 - ORDENS FEMININAS

DKM Í S I S
N'" D l R E S I D Ê N C I A S
Bahia
7
R i o de faneiro
9
Pernambuco
5
Maranhão
i
São Paulo
3

Mariana
4

Rio Grande do Sul 1


Total 30

Fonte: R i o l a n d o Azzi í o r g j , A vtda religiosa no Brasil, p. 9 2 ,

O e x a m e d a s t a b e l a s 7 0 , 7 1 e 7 2 t o r n a possível u m a análise c o m p a r a t i v a . N o t a - s c
em p r i m e i r o l u g a r q u e , na B a h i a , o n ú m e r o de religiosos a u m e n t o u . E r a m 1 2 0 em
1 8 5 4 e, três a n o s d e p o i s , 1 6 1 . O i n q u é r i t o d o M i n i s t é r i o da J u s t i ç a e x a m i n o u dezeno-
ve casas de r e g u l a r e s , e s p a l h a d a s p o r t o d o o t e r r i t ó r i o da P r o v í n c i a . N ã o t e n h o infor-
m a ç ã o s o b r e o n ú m e r o de religiosas, m a s na tabela 7 2 e s t ã o incluídas as irmãs de S ã o
V i c e n t e de P a u l a , c o m trés casas i n s t a l a d a s .

A B a h i a t i n h a o m a i o r n ú m e r o de i n t e g r a n t e s de o r d e n s masculinas, mas era


ultrapassada p e l o R i o de J a n e i r o q u a n t o a o n ú m e r o d e casas ( 1 9 c o n t r a 2 2 ) . Nessa
é p o c a , as d i o c e s e s de G o i á s , M a t o G r o s s o e C e a r á n ã o t i n h a m c o n v e n t o s , e só lazaristas
e f r a n c i s c a n o s e s t a v a m i n s t a l a d o s nas d i o c e s e s de M a r i a n a e D i a m a n t i n a ( M G ) . Isso se
explica p o r u m a a n t i g a d e c i s ã o da C o r o a , q u e p r o i b i u a instalação de ordens nas
regiões d o o u r o e d o s d i a m a n t e s . 2 3
B a h i a , R i o de J a n e i r o , P e r n a m b u c o e São Paulo
abrigavam 8 4 , 1 % das i n s t a l a ç õ e s e 8 4 , 5 % d o s religiosos d o país. S o z i n h a , a Bahia
c o n c e n t r a v a 4 1 , 6 % de t o d o s os religiosos. N o t e - s e , finalmente, q u e os jesuítas, expul-
sos d o Brasil c m 1 7 5 9 , i n s t a l a r a m - s e de volta, t i m i d a m e n t e , n o R i o G r a n d e do Sul, c
que a única o r d e m n o v a era a de S ã o V i c e n t e de Paula.
O s dados da tabela s o b r e o r d e n s f e m i n i n a s tem erros e lacunas. Para a Bahia, por
e x e m p l o , as q u a t r o casas q u e pertenciam às f r a n c i s c a n a s c às ursulinas foram
contabilizadas j u n t a s , c n ã o h o u v e m e n ç ã o aos tres r e c o l h i m e n t o s existentes em Salva-
dor. N e n h u m a i n f o r m a ç ã o aparece sobre o n ú m e r o de religiosas. Graças às sete pro-
priedades das irmãs de S ã o V i c e n t e de Paula, a diocese d o R i o de J a n e i r o detinha 3 0 %
d o c o n j u n t o das casas religiosas f e m i n i n a s , a Bahia vindo cm segundo lugar, com
2 3 , 3 % . N o t e - s c q u e , t e n d o c h e g a d o ao Brasil c m 1 8 4 9 , as religiosas dc S ã o V i c e n t e dc
Paula já possuíam, o i t o anos depois, catorze casas dc um total dc trinta, o que prova
o vigor dessa o r d e m , educadora c hospitaleira. K n q u a n t o isso, as ordens tradicionais
brasileiras sc estiolavam e n t r e as parcdci dc seus conventos, sem terem objetivo verda-
382 BAHIA, SÉCULO X I X

d e i r a m e n t e a p o s t ó l i c o . A e x c e ç ã o ficava p o r c o n t a dos r e c o l h i m e n t o s , que às v e z es

t i n h a m u m verdadeiro p r o g r a m a de e d u c a ç ã o para a j u v e n t u d e q u e lhes era confiada


N o século X I X , p o r é m , estavam t ã o d e c a d e n t e s q u a n t o os c o n v e n t o s . O d o Desterro
p o r e x e m p l o , n o século X V I I I f u n c i o n a v a t a m b é m c o m o i n s t i t u t o d e e d u c a ç ã o , ativi-
dade q u e foi r e t o m a d a pelas ursulinas n o s é c u l o X I X . E s t i m u l a d a s p e l o exemplo das
irmãs de S ã o V i c e n t e de P a u l a e das d o r o t e i a s , elas t r a n s f o r m a r a m os conventos em
c e n t r o s e x e m p l a r e s de e d u c a ç ã o para as j o v e n s b a i a n a s .
E n c o n t r e i n o v o s d a d o s s o b r e as o r d e n s religiosas t r a d i c i o n a i s e m u m relatório do
M i n i s t é r i o da A g r i c u l t u r a , C o m é r c i o e O b r a s P ú b l i c a s , d a t a d o d e 1 8 7 0 . S ó aparecem
resultados de â m b i t o n a c i o n a l . O s b e n e d i t i n o s , c o m 4 1 religiosos e m o n z e mostei-
ros, p o s s u í a m sete e n g e n h o s , m a i s de q u a r e n t a f a z e n d a s e t e r r e n o s , 2 3 0 imóveis,
1 . 2 6 5 escravos ( h a v i a m a l f o r r i a d o c e r c a de três m i l . . . ) e duas o l a r i a s . O s carmelitas,
c o m 4 9 religiosos e m c a t o r z e c o n v e n t o s , t i n h a m m a i s d e q u a r e n t a fazendas e terrenos,
1 3 6 i m ó v e i s , q u a t r o e n g e n h o s , duas olarias, 1 . 0 5 0 escravos e 9 1 0 c a b e ç a s de gado. Os
8 5 f r a n c i s c a n o s se d i v i d i a m p o r 2 5 c o n v e n t o s e p o s s u í a m q u a r e n t a escravos. O s mer-
cidários t i n h a m apenas u m r e l i g i o s o n o B r a s i l , m a s e r a m p r o p r i e t á r i o s de quatro
fazendas e d u z e n t o s e s c r a v o s . 2 4

O s dados d o r e c e n s e a m e n t o d e 1 8 7 2 t a m b é m n ã o p o d e m ser utilizados para a


B a h i a , pois nessa P r o v í n c i a a p e s q u i s a se l i m i t o u a o c l e r o s e c u l a r . E m 1 8 8 5 , um
relatório d o g o v e r n a d o r d o a r c e b i s p a d o d a B a h i a , m o n s e n h o r M a n u e l dos Santos
Pereira, a p r e s e n t o u o n ú m e r o d e 3 0 r e l i g i o s o s e 3 2 religiosas, r e p a r t i d o s n o s diferentes
c o n v e n t o s da P r o v í n c i a . O r e l a t o r a t r i b u i u esse b a i x o e f e t i v o à p o l í t i c a d o governo e
a o c o m p o r t a m e n t o d o s m o n g e s e m o n j a s : " N o s c o n v e n t o s f e m i n i n o s q u e ainda rece-
b e m m o c i n h a s para s e r e m e d u c a d a s , a d i s c i p l i n a r e g u l a r n ã o é m a i s q u e u m a pálida
i m a g e m do q u e foi e, q u a n d o se q u e r m u d a r esse e s t a d o d e coisas, n ã o se pode fazê-
lo por causa da idade a v a n ç a d a e das e n f e r m i d a d e s das religiosas/' E l e denunciou
t a m b é m a grande d i m i n u i ç ã o h a v i d a n o s p a t r i m ô n i o s d e t o d o s os c o n v e n t o s , sobretu-
do aqueles de religiosos q u e d e s a p a r e c e m c o m u m a rapidez vertiginosa. O s Beneditinos
c o n s o m e m os seus c o m u m prazer q u a s e e p i c u r i s t a . E n ã o sei se o p o u c o que resta
daquela dos C a r m e l i t a s será s u f i c i e n t e p a r a s u s t e n t a r o ú l t i m o s o b r e v i v e n t e " . 25
S ó os
seis c a p u c h i n h o s realizavam m i s s õ e s n o i n t e r i o r d a P r o v í n c i a .
A Igreja sabia c o m o era difícil r e f o r m a r h á b i t o s arraigados. T o r n a v a - s e , porém,
c ú m p l i c e do E s t a d o , q u e t i n h a outras razões para q u e r e r e x t i n g u i r as ordens antigas.
Foi preciso esperar o fim d o s é c u l o e a ajuda de religiosos estrangeiros para que elas
fossem restauradas. A dos b e n e d i t i n o s , p o r e x e m p l o , q u e em 1893 tinha apenas um
religioso n o m o s t e i r o , foi r e f o r m a d a e n t r e 1 8 9 0 c 1 9 1 0 , c o m auxílio dos monges da
C o n g r e g a ç ã o de B e a u r o n . 2 6

H o s t i l , por motivos e c o n ô m i c o s e políticos, às ordens instaladas há mais tempo no


Brasil, o Império facilitou a t i v a m e n t e a chegada de novas ordens e congregações,
chegando m e s m o a pedir ao g o v e r n o italiano q u e n ã o criasse obstáculos à vinda de
missionários. 27
Havia o desejo de dar ao Brasil u m a feição mais 'européia'. Além disso,
LIVRO V - A IGREJA
383

0 S reLgiosos e s t r a n g e i r o s e n t r a v a m aqui sob c o n t r o l e do governo, q u e t i n h a a firme


intenção de i m p e d i r a f o r m a ç ã o d e p a t r i m ô n i o s . C o m a abolição de antigos privilé-
gios, o E s t a d o se t o r n a r a , c o m o v i m o s , o ú n i c o herdeiro dos bens regulares e desejava
tomá-los d ó c l e r o .

Neste a s p e c t o , o s d e s e j o s d o g o v e r n o c o i n c i d i a m c o m os da alta hierarquia da


Igreja, pois, para os b i s p o s r e f o r m a d o r e s , as o r d e n s religiosas j á t i n h a m c u m p r i d o sua
tarefa. A vida dos religiosos e religiosas brasileiros estava, e m geral, voltada para d e n t r o
de c o n v e n t o s e m o n a s t é r i o s . A s e x c e ç õ e s e r a m as ursulinas dos c o n v e n t o s das M e r c ê s e
de Soledade, q u e m a n t i n h a m escolas p a r a m o ç a s , e os b e n e d i t i n o s , franciscanos e car-
melitas, q u e — c o m m e n o s i n t e n s i d a d e a p a r t i r d o s é c u l o X I X — m i n i s t r a v a m cursos
de filosofia. O s t e ó l o g o s dessas o r d e n s e n s i n a v a m e n t ã o n o S e m i n á r i o M a i o r d a diocese.
M a s os t e m p o s t i n h a m m u d a d o . O p r o g r a m a de r e f o r m a s precisava de novos
modelos de v i d a religiosa p a r a p o d e r e n f r e n t a r as exigências d a I g r e j a e da sociedade.
As novas o r d e n s e c o n g r e g a ç õ e s t r a z i a m p r o p o s t a r e n o v a d o r a , pois sua vinda para o
Brasil era m o t i v a d a p o r u m ideal m i s s i o n á r i o e a p o s t ó l i c o q u e se e x p r i m i a em missões
populares e e m a t i v i d a d e s e d u c a c i o n a i s e de assistência a d o e n t e s e pobres, áreas
prioritárias para a a l t a h i e r a r q u i a d a I g r e j a . D a í a estreita c o l a b o r a ç ã o q u e , ainda n o
período de d o m R o m u a l d o A n t ô n i o , elas e s t a b e l e c e r a m c o m o arcebispado d a B a h i a .
C a p u c h i n h o s , I r m ã s d e C a r i d a d e e P a d r e s d a M i s s ã o t i v e r a m i m p o r t a n t e participação
no m o v i m e n t o r e f o r m a d o r .

ORDENS E CONGREGAÇÕES RECÉM-CHEGADAS: OS CAPUCHINHOS

A fixação dos c a p u c h i n h o s n a B a h i a foi tardia. O s primeiros a chegar n o Brasil eram


franceses, q u e vieram e m 1 6 1 2 n a e x p e d i ç ã o d a L a Ravardière ao M a r a n h ã o e foram
expulsos dois anos m a i s tarde. E m 1 6 4 1 o u t r o grupo de franceses veio para o Brasil, mas
também foi expulso, e m 1 6 9 9 , q u a n d o da guerra entre F r a n ç a e Portugal. E m 1705
chegaram os italianos, q u e se instalaram na Bahia, R i o de J a n e i r o e P e r n a m b u c o , de
onde estenderam missões a M i n a s G e r a i s , Espírito S a n t o e às províncias do Sul do país.
Q u a n d o da ruptura e n t r e o governo d o M a r q u ê s de P o m b a l e a Santa Sé ( 1 7 6 0 ) , a maior
parte dos c a p u c h i n h o s italianos foi expulsa do Brasil, e m b o r a esta fosse a única ordem
que gozava de certa popularidade, pelo m e n o s na Bahia, n o final do século X V I I I .
V i n d o s da Itália, c o n h e c i d o s por seu espírito de pobreza e seu apostolado popular,
os capuchinhos percorreram vastas regiões do S e r t ã o em missões de evangelização de
índios e, além disso, m o s t r a r a m - s e excelentes guias espirituais para a população urba-
na. Sua ação era m u i t o apreciada pelos habitantes de Salvador, que ,am à igreja do
convento para ouvir as prédicas, sempre simples e acessíveis, e receber os sacramentos
Segundo V i l h e n a , n o c o n v e n t o da Piedade havia sempre " m u i t o povo devoto, n a o so
para o exercício da o r a ç ã o , em que aqueles exemplares religiosos o instruem, c o m o
para a freqüência dos sacramentos da penitência e da eucaristia, que todos os dias, com
BAHIA, SÉCULO X I X
3S4

caridade e zelo e x e m p l a r , lhes s u b m i n i s t r a m , a l é m das f r e q ü e n t e s prédicas da doutrina


. »29
evangélica c o m q u e incansáveis o e x p o r t a m .
N u m e r o s o s c o n t e m p o r â n e o s t e s t e m u n h a m q u e , d u r a n t e t o d o o s é c u l o X I X , os
c a p u c h i n h o s m a n t i v e r a m a p r e f e r ê n c i a p o p u l a r . A l é m d i s s o , f o r a m os primeiros a
c o l a b o r a r e f e t i v a m e n t e c o m a r e s t a u r a ç ã o da d i o c e s e . E m 1 8 3 9 , o a r c e b i s p o da Bahia,
d o m R o m u a l d o A n t ô n i o de S e i x a s , e l o g i o u as m i s s õ e s realizadas p o r esses religiosos,
s o b r e t u d o nas terras d o i n t e r i o r : " I n ú m e r o s e s c â n d a l o s são r e s o l v i d o s p e l o sacramento
do c a s a m e n t o ; ó d i o s e i n i m i z a d e s i n v e t e r a d a s e x t i n g u e m - s e ; e s p o s o s separados voltam
a unir-se; os t r i b u n a i s da p e n i t ê n c i a s ã o f r e q ü e n t a d o s e b a n h a d o s p o r lágrimas de
a r r e p e n d i m e n t o ; a p i e d a d e e a d e v o ç ã o s ã o p u r i f i c a d a s das p r á t i c a s supersticiosas
contrárias à s a n t i d a d e d o c u l t o ; o r e s p e i t o e a o b e d i ê n c i a às leis, f o r t e m e n t e inculcados
n ã o c o m o resultado de s i m p l e s a c o r d o s , m a s c o m o o o r d e n a o p r ó p r i o D e u s . " 3 0
Quem
eram esses irmãos? J á m o r a v a m na B a h i a o u t i n h a m v i n d o de P e r n a m b u c o , após terem
sido expulsos dessa P r o v í n c i a e m 1832?
D e p o i s de 1 8 4 0 , o c o n v e n t o d a B a h i a r e c e b e u , d a I t á l i a , r e f o r ç o s e x t r e m a m e n t e
insuficientes, se p e n s a r m o s q u e u m p u n h a d o d e r e l i g i o s o s t i n h a o e n c a r g o de adminis-
trar q u a r e n t a aldeias i n d í g e n a s e realizar i n ú m e r a s m i s s õ e s p o p u l a r e s j u n t o às popula-
ções cristianizadas d a P r o v í n c i a . D o m R o m u a l d o A n t ô n i o e s c r e v e u e m suas Memórias
do Marquês de Santa Cruz: " B a s t a l e m b r a r o e d i f i c a n t e e m a g n í f i c o e s p e t á c u l o apre-
sentado por n u m e r o s a s m i s s õ e s dos c a p u c h i n h o s ( . . . ) . P e s s o a s e c l é r i g o s os reclamam
e esperam c o m i m p a c i ê n c i a ( . . . ) . P o p u l a ç õ e s i n t e i r a s d e s l o c a m - s e a lugares distantes
para ouvir a palavra d i v i n a dos l á b i o s desses h o m e n s , a q u e m v e n e r a m c o m o anjos."
O q u a d r o p i n t a d o p e l o a r c e b i s p o é, n o e n t a n t o , e x a g e r a d o . A p e s a r d e populares,
as missões eram r e l a t i v a m e n t e raras n o s é c u l o X I X . O e n t u s i a s m o q u e despertavam nas
massas e o a r r e p e n d i m e n t o p r o f u n d o q u e delas se a p o s s a v a n ã o p o d j a m resistir às
inúmeras t e n t a ç õ e s d a vida c o t i d i a n a , j á q u e , f r e q ü e n t e m e n t e , p a s s a v a m - s e anos entre
u m a e outra missão. M a s n ã o h á dúvidas de q u e a o b r a e v a n g é l i c a desses missionários
foi exemplar. Eles t i v e r a m q u e lutar m a i s d e u m a vez c o n t r a a i n c o m p r e e n s ã o do poder
civil e a resistência dos chefes l o c a i s , d e s e j o s o s d e m a n t e r a tutela s o b r e o s moradores
da Província. C o m o n o passado, sua a ç ã o j u n t o a o s h u m i l d e s d a c i d a d e de Salvador foi
m u i t o positiva: sua igreja c o n t i n u o u a ser u m c e n t r o de a c o l h i m e n t o para m u i t a gente,
ávida por ouvir palavras simples e r e c e b e r u m t r a t a m e n t o c a m a r a d a , q u e contrastavam
c o m as prédicas p o m p o s a s c a severa austeridade de m u i t o s p á r o c o s .

ORDENS E CONGREGAÇÕES RECEM-CHEGADAS:


AS I R M Ã S D E SAO VICENTE DE PAULA

A primeira congregação f e m i n i n a que c h e g o u ao Brasil, a das Irmãs de S ã o Vicente de


aula, ou irmãs de Caridade, desenvolveu-sc mais d o que todas as instituições religio-
sas do período imperial. S e g u i n d o o e x e m p l o de d o m V i ç o s o , bispo de M a r i a n a , dom
LIVRO V - A IGREJA 385

R o m u a l d o d e c i d i u a p e l a r para q u e essa c o n g r e g a ç ã o exercesse suas atividades j u n t o a


doentes e mulheres jovens da capital. A n u n c i o u , então, em 1 8 5 0 , a f u n d a ç ã o da
S o c i e d a d e d e S ã o V i c e n t e de P a u l a , c u j o o b j e t i v o era a n g a r i a r f u n d o s para a vinda
dessas religiosas. S ó e m a g o s t o de 1 8 5 3 d e s e m b a r c a r a m o n z e delas e m S a l v a d o r . S u a
i n s t a l a ç ã o foi m u i t o r á p i d a . E m d e z e m b r o d o m e s m o a n o f u n d a r a m o c o l é g i o N o s s a
S e n h o r a dos A n j o s , c o m 1 6 0 a l u n a s , das q u a i s n o v e n t a i n t e r n a s ( e n t r e as quais 3 6
órfãs " q u e r e c e b e m a m e s m a e d u c a ç ã o q u e as o u t r a s " ) e s e t e n t a e x t e r n a s . 3 1
S e t e meses
mais t a r d e , e m j u l h o de 1 8 5 4 , a S o c i e d a d e das D a m a s d a P r o v i d ê n c i a , filiada à c o n -
g r e g a ç ã o das V i c e n t i n a s , f u n d o u a C a s a d a P r o v i d ê n c i a q u e a c o l h e u 1 8 internas órfãs
e " 0 externas e m cursos g r a t u i t o s . 3 2
A l é m d i s s o , as i r m ã s de S ã o V i c e n t e de Paula
visitavam os p o b r e s e c u i d a v a m d o s d o e n t e s a d o m i c í l i o .
P o v o e elites g o s t a v a m d e v e r u m a o r d e m r e l i g i o s a se o c u p a n d o dessas atividades.
M e s m o a s s i m , as religiosas f o r a m a c o l h i d a s c o m d e s c o n f i a n ç a . P o r quê? P o r causa da
a t i t u d e geral d o s l i b e r a i s , q u e c o n s i d e r a v a m as o r d e n s e s t r a n g e i r a s c o m o emissárias da
Santa S é ? 3 3
O u d a r e s i s t ê n c i a d e m e n t a l i d a d e s a c o s t u m a d a s a ver o b r a s de b e n e f i c ê n c i a
dirigidas p o r l e i g o s , c o m o os d a I r m a n d a d e d a M i s e r i c ó r d i a ? N ã o . O p r o b l e m a era,
e s p e c i a l m e n t e , o t r a b a l h o e d u c a c i o n a l das i r m ã s , c u j o s c o l é g i o s , para c o m e ç o de c o n -
versa, e r a m s o c i a l m e n t e m i s t o s , j á q u e a d m i t i a m a l u n a s o r i u n d a s de u m e s p e c t r o social
muito extenso. Filhas de escravos — é claro — e s t a v a m e x c l u í d a s , m a s m o ç a s de
família m a n t i n h a m c o n t a t o c o m i n t e r n a s p o b r e s o u órfãs e c o m e x t e r n a s q u e p e r t e n -
ciam a t o d a s as c a m a d a s livres d a s o c i e d a d e . E s s a m i s t u r a era e s t r a n h a para o l h o s
h a b i t u a d o s a c l i v a g e n s s o c i a i s m a i s n í t i d a s . E m s e g u n d o l u g a r , a e d u c a ç ã o estava nas
m ã o s de u m a c o n g r e g a ç ã o q u e era e s t r a n g e i r a n ã o s ó p o r suas o r i g e n s , m a s t a m b é m
pelas n o v i d a d e s q u e p r o p u n h a . E s s e s d o i s f a t o r e s d e s e m p e n h a r a m papel m u i t o i m p o r -
t a n t e na c a m p a n h a de d i f a m a ç ã o d e f l a g r a d a c o n t r a essas religiosas, q u e resultou, em
2 de fevereiro d e 1 8 5 8 , n u m a v e r d a d e i r a r e v o l t a p o p u l a r . A s freiras q u i s e r a m i m p o r
um p r o g r a m a de r e f o r m a s r e c u s a d o pelas m u l h e r e s d o r e c o l h i m e n t o da M i s e r i c ó r d i a ,
s u r g i n d o d a í o p r e t e x t o p a r a q u e o p o v o i n v a d i s s e a casa e molestasse as irmãs que lá
estavam. A m e s m a c e n a se r e p e t i u n a casa d a P r o v i d ê n c i a . F o i necessária u m a interven-
ç ã o d o E x e r c i t o para a c a l m a r e d i s p e r s a r o s r e v o l t o s o s .
Essas d e s o r d e n s f o r a m c o n d e n a d a s p e l o a r c e b i s p o , 3 4
mas deixaram u m a clara
' m e n s a g e m : as religiosas francesas d e v i a m l i m i t a r suas a m b i ç õ e s , a d a p t a n d o - s c à reali-
dade. A partir de I 8 6 1 , o c o l é g i o N o s s a S e n h o r a d o s A n j o s , c r i a d o para q u e m o c i n h a s
da boa s o c i e d a d e p u d e s s e m c o a b i t a r c o m o u t r a s , recrutadas em todas as camadas
sociais, passou para a a d m i n i s t r a ç ã o da I r m a n d a d e da M i s e r i c ó r d i a e m u d o u sua
proposta. As religiosas de S ã o V i c e n t e de Paula f u n d a r a m u m n o v o e s t a b e l e c i m e n t o ,
c h a m a d o Nossa S e n h o r a da S a l c t c , para a c o l h e r s o b r e t u d o m o ç a s pobres, oriundas do
interior, ou integrantes da classe m é d i a da c i d a d e . E m 1 8 7 1 , o presidente da Província
registrou a e x c e l ê n c i a d o e n s i n o religioso m i n i s t r a d o nesse colégio e pediu que se
c o n c e d e s s e a seus professores os m e s m o s salários pagos pelas escolas públicas.- Apesar
das dificuldades, a obra e m p r e e n d i d a pelas Irmãs de C a r i d a d e deu frutos. Várias
BAHIA. SÉCULO XIX

g e r a ç õ e s d e b a i a n a s r e c e b e r a m nesses c o l é g i o s u m a s ó l i d a e d u c a ç ã o — talvez demasia


d a m e n t e afastada da r e a l i d a d e q u e as c e r c a v a — , aliada a u m a i n s t r u ç ã o religiosa afi
nada c o m o e s p í r i t o da r e f o r m a d e s e j a d a pelos b i s p o s . S e m a p r e s e n ç a das religiosas
francesas, m u i t a s dessas m o ç a s n ã o t e r i a m a c e s s o a esse nível de i n s t r u ç ã o .
As freiras t a m b é m faziam o b r a s b e n e f i c e n t e s : e m 1 8 5 9 , t o m a r a m o e n c a r ç o dos
p o b r e s de três p a r ó q u i a s d a c i d a d e — S a n t a n a , C o n c e i ç ã o da Praia e S ã o Pedro
c h e c a n d o a s o c o r r e r 3 . 6 9 8 deles, t r a t a n d o d o e n ç a s e d i s t r i b u i n d o roupas e víveres r
p r ó p r i o e s p í r i t o de S ã o V i c e n t e d e P a u l a 3

ORDENS E CONGREGAÇÕES RECÊM-CHEGADAS: OS PADRES DA MISSÃO

Os Padres da M i s s ã o f o r a m a congregação m a i s i m p o r t a n t e para o movimento


reformador do século p a s s a d o . 3 7
F u n d a r a m e d i r i g i r a m v á r i o s s e m i n á r i o s diocesanos e,
e m certas d i o c e s e s , f o r a m r e s p o n s á v e i s p o r m i s s õ e s e pela e d u c a ç ã o dos jovens. Fun-
d a d a p o r S ã o V i c e n t e de P a u l a e m 1 6 2 5 , a c o n g r e g a ç ã o c h e g o u de Portugal em 1820.
sendo reforçada depois por padres f r a n c e s e s . 3 8
N a P r o v í n c i a de M i n a s Gerais, eles se
t o r n a r a m c é l e b r e s graças ao c o l é g i o C a r a ç a , e m q u e foi e d u c a d a p a r t e importante da
elite l o c a l . T a m b é m o b t i v e r a m a d i r e ç ã o d o s e m i n á r i o de M a r i a n a , diocese dirigida
p o r d o m V i ç o s o , u m dos pais d a r e f o r m a e c l e s i á s t i c a .

O s lazaristas c h e g a r a m à B a h i a e m 1 8 5 3 , c o m o c a p e l ã e s das o n z e irmãs de carida-


de c h a m a d a s p e l o a r c e b i s p o , m a s p r e c i s a r a m d e m a i s t e m p o q u e elas para assumir
r e s p o n s a b i l i d a d e s na e s t r u t u r a local da I g r e j a . F o r a m necessários três anos para que se
assinasse u m a c o r d o e n t r e o a r c e b i s p o de S a l v a d o r e o s u p e r i o r geral da congregação,
d a n d o aos lazaristas a d i r e ç ã o dos s e m i n á r i o s M e n o r e M a i o r . O a r c e b i s p o comunicou
a n o m e a ç ã o ao m i n i s t r o J o s é T o m á s N a b u c o d e A r a ú j o n o s s e g u i n t e s t e r m o s : " N a falta
de um p a t r i m ô n i o para sua m a n u t e n ç ã o , o S e m i n á r i o M e n o r n ã o podia continuar
nesta s i t u a ç ã o . P o r o u t r o l a d o , a e x p e r i ê n c i a m o s t r o u q u e é i n c o n c e b í v e l haver um
internato c o m u m para aqueles q u e se d e s t i n a m ao E s t a d o eclesiástico e aqueles que
seguirão o u t r a s carreiras, s o b r e t u d o c m u m p r é d i o q u e n ã o c o m p o r t a reformas para
separar uns dos o u t r o s . D e c i d i , pois, d e s l o c a r os p r i m e i r o s , q u e são trinta e um, para <>
S e m i n á r i o M a i o r , o n d e o c u p a m u m a parte d o p r é d i o c ali e s t u d a m . Doravante, em
c o n s e q ü ê n c i a dessa d e c i s ã o , s o m e n t e serão a c e i t o s n o P e q u e n o S e m i n á r i o , fundado
para e n s i n á - l o s , os aspirantes h vida eclesiástica. C o m o já tive a h o n r a de fazer saber d
Vossa E x c e l ê n c i a , a direção dos dois s e m i n á r i o s está c o n f i a d a ao Padre Laurcnt, supe-
rior das Irmãs dc C a r i d a d e , c a seus c o m p a n h e i r o s . . . " v >

I )iretorea — c n ã o professores — dos dois s e m i n á r i o s , os lazaristas se esforçaram


para seguir fielmente as orientações da hierarquia eclesiástica. E m suas Memórias, dom
R o m u a l d o A n t ô n i o justificou essa nova presença, escrevendo: " C o n v e n c i d o de que
um dos principais objetivos d o admirável I n s t i t u t o de S ã o V i c e n t e de Paula foi *
reforma dos seminários eclesiásticos, que deu frutos salutares para a regeneração do
LIVRO V - A IGREJA
387

clero da F r a n ç a e o u t r o s p a í s e s d a E u r o p a , q u e os b i s p o s e m p e n h a r a m - s e e m a d o t a r e m
suas d i o c e s e s , m o v . d o p e l o e x e m p l o d a d o p e l o e m i n e n t e B i s p o d e M a r i a n a encarre-
gando esses p a d r e s , fiéis d i s c í p u l o s e h e r d e i r o s d o e s p í r i t o de s e u i m o r t a l f u n d a d o r ,
não s o m e n t e d a f u n d a ç ã o m a s i g u a l m e n t e d a r e g ê n c i a das cátedras de seu s e m i n á r i o
c o m p r e e n d i q u e era p r e c i s o t a m b é m t o m a r essa m e d i d a p a r a p r o m o v e r a m e l h o r a dos
Pequeno e G r a n d e s e m i n á r i o s deste A r c e b i s p a d o , d o qual d e p e n d e m os futuros desti-
nos da I g r e j a m e t r o p o l i t a n a . N ã o p o r q u e n ã o h o u v e s s e nessa a r q u i d i o c e s e padres q u e
reunissem o s a b e r , a p i e d a d e e o z e l o p a r a e d u c a r o n o v o c l e r o , m a s p o r q u e estes, o u
bem t i n h a m o u t r o s e n c a r g o s i n c o m p a t í v e i s c o m a a s s í d u a v i g i l â n c i a q u e exige u m a
i n c u m b ê n c i a t ã o l a b o r i o s a c d e l i c a d a , o u e n t ã o p o r q u e , a p e s a r de suas q u a l i d a d e s , n ã o
tinham a a p t i d ã o e a e x p e r i ê n c i a a d q u i r i d a s p e l o s L a z a r i s t a s d u r a n t e o l o n g o a p r e n d i -
zado c o m o q u a l s e p r e p a r a m p a r a essa e s p e c i a l i d a d e p r ó p r i a de seu i n s t i t u t o . " 4 0

Os argumentos do arcebispo merecem a t e n ç ã o . S e r i a v e r d a d e q u e os clérigos


baianos q u e e n s i n a v a m n o s s e m i n á r i o s o c u p a v a m c a r g o s i n c o m p a t í v e i s c o m a d i r e ç ã o
destes? O d i r e t o r d o P e q u e n o S e m i n á r i o era o i r m ã o F r a n c i s c a n o A r s ê n i o d a N a t i v i -
dade M o u r a , p r o f e s s o r d e h i s t ó r i a e c l e s i á s t i c a n o G r a n d e S e m i n á r i o . A l é m dessa dire-
ção e de suas o b r i g a ç õ e s c o n v e n t u a i s , o ú n i c o c a r g o a s s u m i d o p o r esse i r m ã o era o de
examinador s i n o d a l , 4 1
m a s e l e a b d i c o u " c o m p r a z e r " d e seu c a r g o de d i r e t o r , s e g u n d o
dom R o m u a l d o A n t ô n i o . O r e i t o r d o G r a n d e S e m i n á r i o , p a d r e J o s é d e S o u z a L i m a ,
também apresentou sua d e m i s s ã o . P á r o c o do Pilar, juiz do T r i b u n a l Eclesiástico e
e x a m i n a d o r s i n o d a l , a t é 1 8 5 7 ele s ó m a n t e v e u m a c a d e i r a de p r o f e s s o r - s u b s t i t u t o n o
Seminário M a i o r . 4 2
O s m ú l t i p l o s c a r g o s q u e e x e r c e u , s o b r e t u d o o de p á r o c o , f o r a m
considerados i n c o m p a t í v e i s c o m a d i r e ç ã o d o s e m i n á r i o . M a s este n ã o foi o p r o b l e m a
verdadeiro, p o r q u e o s p r ó p r i o s lazaristas e s t a v a m s o b r e c a r r e g a d o s de t r a b a l h o , c o m o
capelães das I r m ã s d e C a r i d a d e e de suas casas, a c o m p a n h a n t e s assíduos dos p a r o q u i a -
nos e p a r t i c i p a n t e s d e m i s s õ e s , a o l a d o dos c a p u c h i n h o s . 4 3

Q u a l a e x p l i c a ç ã o ? A m e u v e r , d o m R o m u a l d o estava c o n v e n c i d o d e q u e n ã o era
possível f a b r i c a r o n o v o c o m o v e l h o . O s religiosos q u e e n s i n a v a m n o s s e m i n á r i o s
eram, e m sua m a i o r i a , r e g u l a r e s o u p a d r e s e c ó n e g o s f o r m a d o s e m p i r i c a m e n t e , sem
estudos regulares, a n ã o ser o s realizados n o s p r ó p r i o s c o n v e n t o s , c o m o m o n g e s o u
c o m o o u v i n t e s . F a l t a v a a esse c l e r o a c a p a c i d a d e de f o r m a r j o v e n s s e g u n d o u m a
educação " p r o p r i a m e n t e c l e r i c a l " , c o n f o r m e ao e s p í r i t o da r e f o r m a . As cátedras d e
teologia d o g m á t i c a e d e t e o l o g i a m o r a l , n o e n t a n t o , estavam nas m ã o s de dois francis-
canos, A n t ô n i o d a V i r g e m M a r i a I t a p a r i c a c R a i m u n d o N o n a t o de M a d r e de D e u s
f o n t e s , q u e t i n h a m o t í t u l o d e p r e d i c a d o r e s imperiais e eram c o n h e c . d o s p o r seu
« b e r . O p r i m e i r o e n s i n o u t e o l o g i a d o g m á t i c a p o r mais de 3 0 anos, c e r c a d o pela
admiração d c d i s c í p u l o s e c o l e g a s ; o s e g u n d o , professor de teologia m o r a l , era c o n s i -
derado, c m 1 8 7 0 , o d e c a n o das c i ê n c i a s eclesiásticas da diocese.

D o m R o m u a l d o protestava c o n t r a a "guerra i n j u s t a " travada c o n t r a os lazaristas


s
° b pretexto de q u e eram estrangeiros. M a s , apesar dos seus esforços, a m u d a n ç a n ã o
f
° i aceita. A o p o s i ç ã o à presença deles nos seminários foi tão violenta q u a n t o a que
3SS BAHIA, SÉCULO X I X

houvera contra as Irmãs de Caridade, embora sem tumultos populares. Ela explica p o r

que dom Romualdo não confiou imediatamente a eles uma parte do ensino: talvez
estivesse esperando que os espíritos se acalmassem. Depois da morte do arcebispo em
1860, o cónego Rodrigo Inácio de Souza Menezes, vigário-capitular, atacou aberta-
mente o direito do bispo de nomear lazaristas c o m o professores do seminário. Homem
político importante, várias vezes deputado à Assembléia Provincial e regalista convic-
to, o vigário exprimiu a oposição das elites provincianas, que não queriam ver a
instrução do clero confiada a estrangeiros. E m dezembro de 1 8 6 1 , ele conseguiu um
despacho do Ministério do Império, declarando nulos e sem procedência os contratos
assinados por dom Romualdo e os Padres da Missão, que se retiraram dos seminários
em julho de 1 8 6 2 . 4 5
A experiência lazarista durou seis anos, tempo muito curto para
imprimir o espírito de mudança num clero refratário às reformas. Pode-se então
perguntar se o movimento reformador na Bahia não foi, finalmente, uma piedosa
intenção que nunca realizou, em profundidade, as mudanças que se propunha a fazer.
A vida propriamente monástica permaneceu decadente durante todo o período
imperial. Só a Proclamação da Republica abriu caminho para a restauração das velhas
ordens decadentes e para a chegada das congregações estrangeiras, masculinas e femi-
ninas. Mas, ainda no Império, a Igreja Católica mostrou que havia congregações
capazes de transmitir a mensagem cristã através da educação e do alívio das misérias
materiais e espirituais de um povo cuja variada religiosidade, às vezes incompreendida,
é sinal de uma busca contínua e fator de solidariedade e coesão sociais entre homens
separados pela riqueza, pelo estatuto jurídico e pela cor da pele. Vejamos agora como
era vivida e sentida essa religiosidade.
C A P I T U L O 2 2

CATEQUESE DO POVO DE DEUS

A sociedade baiana do século X I X era das menos homogêneas. Além da diferenciação


em grupos sociais, dois outros fatores desempenhavam papel importante: o estatuto
jurídico (livres, alforriados, escravos) e a cor da pele (negra, mulata, branca) de seus
integrantes. N u m a sociedade desse tipo, diferentes critérios determinam as clivagens.
Examinarei aqui o fator cultural, fortemente influenciado pela ação da Igreja.
A agricultura dominava a imensa Província. Apesar dos esforços empreendidos a
partir da Independência, a urbanização permanecia medíocre, sobretudo no interior,
cuja população descendia dos índios, dos conquistadores portugueses e, em menor
grau, dos africanos trazidos à força. A essa tripla herança racial e cultural somava-se a
tradição católica. Surgiu daí uma espécie de síntese, na forma de uma religiosidade
popular original, cujas práticas dificultaram a obra reformadora que a Igreja pretendia
realizar.
Do ponto de vista social, as hierarquias eram mal definidas. A população vivia
num sistema comunitário em que se distinguia uma elite de proprietários, oriunda do
amálgama das três raças e detentora do poder político e econômico. Mas não havia
diferenças sensíveis entre a massa dos livres e alforriados (também formada pelas três
f
açtt) e a dos escravos, os dois grupos vivenciando as mesmas experiências de pobreza
e opressão. A condição dos moradores' era muito semelhante à dos escravos, e, às
vezes, pior. Privados da propriedade da terra, permanentemente ameaçados de expul-
* » . cies trabalhavam para um senhor que lhes fornecia instrumentos de produção e

alojamentos provisórios. . . ,
Ainda existiam muitas aldeias indígenas, mas a partir da expulsão dos jesuítas na
*gunda metade do século XVIII o poder temporal retomou o controle da administra-
d o desses povoados, rompendo seu isolamento, sobretudo no Agreste. A > n f ü ^
bancos, mulatos e negros provocou então uma perda gradativa na h o m o g ^ d c
Pinica dessa população^ Apenas as aldeias situadas na ^ g g S
"veram-se isoladas, pois a difícil situação econômica da região

389
390 BAHIA, SÉCULO X I X

A s i t u a ç ã o era c o m p l e t a m e n t e d i f e r e n t e n o l i t o r a l n o r t e e, s o b r e t u d o , na cidade d
S a l v a d o r e s u a h i n t e r l â n c i a . E m b o r a , t a m b é m ali, a a g r i c u l t u r a p r e d o m i n a s s e , a urb
n i z a ç ã o era m u i t o m a i o r . N o s d i s t r i t o s a ç u c a r e i r o s o u d e p r o d u ç ã o de mandioca
t a b a c o , as vilas f u n d a d a s n o s s é c u l o s X V I I e X V I I I se t r a n s f o r m a r a m , n o século X I X
e m p e q u e n a s c i d a d e s q u e a b r i g a v a m a t i v i d a d e s e c o n ô m i c a s d i v e r s i f i c a d a s , inclusive
c o m p r e s t a ç ã o de s e r v i ç o s a u m a p o p u l a ç ã o u r b a n a q u e l e m b r a v a a da capital No
i n t e r i o r , p r o c e s s o s e m e l h a n t e o c o r r e u a p e n a s e m F e i r a d e S a n t a n a , S e n h o r d o Bonfim
Juazeiro, L e n ç ó i s , V i t ó r i a da C o n q u i s t a e poucas localidades mais.

A s c i d a d e s se c a r a c t e r i z a v a m p e l a q u a n t i d a d e e q u a l i d a d e das atividades econômi-


c a s , q u e i n c l u í a m s e r v i ç o s , p e l o n í v e l d a s r i q u e z a s , p e l a i n s t r u ç ã o m a i s generalizada e
pelas a t i v i d a d e s p o l í t i c a s . A l i , a e l i t e se o p u n h a , d e u m l a d o , a u m a classe média
p e r f e i t a m e n t e c o n s t i t u í d a , e m b o r a n ã o m u i t o n u m e r o s a , e , d e o u t r o , a u m a paupérri-
m a p o p u l a ç ã o l i v r e , a l f o r r i a d a e e s c r a v a q u e v i v i a d e e x p e d i e n t e s . N e l a , o elemento
ameríndio foi cada vez m e n o s i m p o r t a n t e , c a b e n d o a o e l e m e n t o a f r i c a n o papel
d e t e r m i n a n t e . N o t e - s e a i n d a q u e a c a p i t a l e s e u R e c ô n c a v o i m p o r t a r a m u m a numero-
sa p o p u l a ç ã o d e o r i g e m j u d a i c a , f a z e n d o c o m q u e o j u d a í s m o e x e r c e s s e u m a influência
cultural durável.

O t i p o d e c o n t r o l e e x e r c i d o p e l a I g r e j a h i e r á r q u i c a n a s c i d a d e s era b e m diferente
d o p r a t i c a d o i n t e r m i t e n t e m e n t e n a s z o n a s r u r a i s . A l é m d e m a i s n u m e r o s o , o clero
u r b a n o e s t a v a m a i s p r e p a r a d o p a r a r e a l i z a r as r e f o r m a s e r e c u p e r a r , e m proveito da
I g r e j a , p r á t i c a s r e l i g i o s a s p o p u l a r e s . A r e l i g i o s i d a d e das p e s s o a s d o c a m p o tinha outras
dimensões.

RELIGIÃO OFICIAL E RELIGIÃO DO POVO

O s h i s t o r i a d o r e s d a I g r e j a d e f i n e m o c a t o l i c i s m o t r a z i d o a o Brasil pela colonização


c o m o l e i g o , s o c i a l , f a m i l i a r e m e d i e v a l . E s t e ú l t i m o a s p e c t o se caracterizava pela crença
na f o r ç a d o s e s p í r i t o s d o m a l ( q u e levava a p r á t i c a s de f e i t i ç a r i a ) , o uso da blasfêmia
( q u e liberava as pessoas d o f o r m a l i s m o d a religião o f i c i a l ) e o g o s t o pelas peregrina-
ç õ e s . M a s , a o lado d o c a t o l i c i s m o o f i c i a l , q u e i m p u n h a o b r i g a ç õ e s e deveres aos fiéis,
os p o r t u g u e s e s t r o u x e r a m para o Brasil u m a r e l i g i o s i d a d e m a i s í n t i m a , impregnada de
p r o f u n d a d e v o ç ã o , q u e i m p r e s s i o n a v a as m e n t a l i d a d e s p o p u l a r e s . Tolerada pela Igreja,
essa d i m e n s ã o s e n t i m e n t a l a b r i u e s p a ç o s para a a s s i m i l a ç ã o de e l e m e n t o s provenientes
de o u t r a s c r e n ç a s , e s p e c i a l m e n t e o j u d a í s m o e as religiões indígenas e africanas. D °
p r i m e i r o , os luso-brasileiros a d o t a r a m o sabá ( p o r e x e m p l o , venerava-se aos sábados o
n o m e de N o s s a S e n h o r a ) , o c u l t o dos m o r i o s c a esperança messiânica. D o s ameríndios»
o c u l t o d a s a n t i d a d e , as artes mágicas c o s e n t i d o de l i b e r t a ç ã o ; ser libertado 0

cativeiro por D e u s era um desejo dos índios cristianizados, q u e se assemelhava muito


à esperança messiânica t r a n s m i t i d a pelos j u d e u s . F i n a l m e n t e , as religiões africanas^
que d e r a m a m a i o r c o n t r i b u i ç ã o para a síntese dos e l e m e n t o s constitutivos dos i
391

v e r S o s credos — inspiraram aos brasileiros o gosto n,l, e


rituais e procissões. Essa síntese foi vivenciada d
1
• ! ' ^V*™™ " e m da ÇaS

locais em que residiam os crentes (índios, africanos ° ° ° C n f r m e $

distância que os separava da hierarquia eclesial P


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A religião católica oficial, a da Iereh hÍ*rA*~* : • i

con trolar í estruturas sociais e ^ 1 •^ '


fessa, f a . r a comunhão anua,, descansa, 1 1 ZZ^ ^ . 3
obr.gaçao, prancar absfnenctae ,e,uns e submeter-se aos sacramentos batismo e do d o

casamento. Nem sempte esses deveres etam cumptidos com facilidade, pois havia falta
de padres, sobretudono campo. Assim, além de participarem da Igreja oficial, os fiéis
também vrv.am sua fe cristã dando vazão, no cotidiano, a um profundo sentimento
religioso.
A religião do povo — "muita reza e pouca missa, muito santo e pouco padre" —
2

se diferenciava da praticada pela Igreja Católica por seu caráter leigo, familiar e social
e pela importância dada aos santos. Note-se, no entanto, que a devoção a estes últimos
— com seu cortejo de orações, procissões e peregrinações — não excluía práticas do
catolicismo oficial. Sempre que possível, as pessoas participavam dos sacramentos e da
missa e escutavam com fervor a pregação dos padres.

As DEVOÇÕES AOS SANTOS

A devoção aos santos, centro da religião do povo, tinha duplo aspecto. Era celebrada
coletivamente, nas famílias, nas irmandades e em outras reuniões defiéis,e era dirigida
tanto a pessoas canonizadas como a outras, que não estavam — mas se desejava que
estivessem — no panteão oficial. Isso corresponde à tradição da Igreja Católica, sem-
pre voltada para a vox populi quando trata de processos de canonização. Ao contrário
do que admite parte dos historiadores da Igreja, os milagres feitos e a fama junto ao
Povo foram a base do processo de canonização de todos os santos reconhecidos Mas,
independentemente disso, a devoção sempre se dirigiu também a santos Ioca.s e fami-
liares. Uma criança cruelmente assassinada, uma pessoa tragicamente morra ou um
leproso piedoso podiam tornar-se santos e desempenhar o papel de mtermed.ár.os
para a obtenção das cracas pedidas. 3
.
Outro aspecro era o caráter individual e privado da devoção aos santos Noes-
PWto dos devotos, Deus não era obje.o de um culro parucuiar. E ™ " ^
todo-poderoso, intervinha na vida cotidiana, sendo invocado pelo 8 ^ * * £
pressão "se Deus quiser", acrescentada a quase todas as frases »bre acontec.mentos
futuros. O povo L b é m venerava as "almas dos N * ^ ^ *
• j i o r í n p n muito solicitada nos mais ae treb
Purgatório» e os santos anônimos oua ^ ^ u T o s suplicantes haviam experi-
«»1 testamentos que estudamos. Isso demonstra que u
5
p
mentado sua eficacia. 6
392 BAHIA, SÉCULO XDC

H a v i a duas m o d a l i d a d e s de relação c o m os s a n t o s . A p r i m e i r a era de devoção, q U e

se estabelecia n o b a t i s m o da c r i a n ç a ( c u j o n o m e h o m e n a g e a v a u m s a n t o padroeiro)
p o r t r a d i ç ã o familiar (quase todas as famílias t i n h a m u m o r a g o , o u s a n t o , doméstico)
o u para c u m p r i r u m a p r o m e s s a feita pelos pais. Essa relação era definitiva e não podia
ser r o m p i d a ; o fiel t i n h a u m p a d r i n h o n o c é u " , a o q u a l c o n s a g r a v a sua devoção,
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p o i$
o s a n t o o p r o t e g i a nesta v i d a e f a c i l i t a v a sua p a s s a g e m à vida e t e r n a . Q u a s e sempre se
e n c o n t r a v a , ao lado d o s a n t o , o a n j o d a g u a r d a , invisível p r o t e t o r e diretor de cons-
c i ê n c i a , ao q u a l o fiel prestava c o n t a s d e seus atos t o d o s os dias.

A s e g u n d a relação era de t i p o c o n t r a t u a l . I m p l í c i t a o u e x p l i c i t a m e n t e , entre santo


e fiel se estabelecia u m c o n t r a t o q u e , e m p r i n c í p i o , d e v i a levar à o b t e n ç ã o de uma
graça o u u m b e n e f í c i o . S ó m o t i v o s s é r i o s j u s t i f i c a v a m p r o m e s s a s , m u i t a s vezes feitas
e m casos de p e r i g o , t e n d o e m v i s t a o b t e r p r o t e ç ã o : p e d i a - s e , p o r e x e m p l o , a interven-
ç ã o da V i r g e m M a r i a ( N o s s a S e n h o r a d o P a r t o ) e m u m p a r t o difícil o u de Santa
B á r b a r a q u a n d o soprava u m a t e m p e s t a d e v i o l e n t a . S e a g r a ç a fosse o b t i d a e o fiel
c u m p r i s s e o p r o m e t i d o , c o n s i d e r a v a - s e o c o n t r a t o c u m p r i d o ; m a s se a promessa não
fosse h o n r a d a , a pessoa c o r r i a o risco d e n ã o p o d e r s u b i r a o s c é u s , t o r n a n d o - s e uma
' a l m a p e n a d a ' , c o n d e n a d a a vagar p e l o m u n d o até q u e a l g u é m pagasse a dívida con-
traída. E m a l g u n s t e s t a m e n t o s a p a r e c e m p e d i d o s p a r a q u e o u t r o s c u m p r i s s e m uma
p r o m e s s a q u e o t e s t a d o r n ã o tivera t e m p o de h o n r a r .

A l g u m a s vezes o fiel c u m p r i a sua p a r t e d o c o n t r a t o a n t e s d o s a n t o , q u e se tornava


devedor. C o m as n o v e n a s , p o r e x e m p l o , esperava-se o b t e r u m a d e t e r m i n a d a graça ao
fim de c e r t o t e m p o , S e , n o fim, as d u a s p a r t e s tivessem a g i d o a c o n t e n t o , o contrato
se desfazia e as o b r i g a ç õ e s c e s s a v a m p a r a a m b a s as p a r t e s . F i c a c l a r o , p o r t a n t o , que, ao
c o n t r á r i o d o q u e o c o r r i a n o p r i m e i r o t i p o de r e l a ç ã o , nesse c a s o a a l i a n ç a era provisó-
ria, e a p r o t e ç ã o p e d i d a , t e m p o r á r i a .
A l i a n ç a e c o n t r a t o t i n h a m , e n t r e t a n t o , u m a c a r a c t e r í s t i c a c o m u m : a relação que se
estabelecia era s e m p r e d i r e t a e pessoal, s e m i n t e r m e d i á r i o s (ainda h o j e são publicados
nos jornais a g r a d e c i m e n t o s aos s a n t o s pelas "graças a l c a n ç a d a s " ) . A o s olhos do povo,
o santo n ã o era u m a realidade abstrata; estava s e m p r e e n c a r n a d o na estátua que o
representava. Q u a s e t o d o s os lares da B a h i a , m e s m o o s m a i s m o d e s t o s , tinham seus
oratórios c h e i o s de estatuetas de s a n t o s familiares. E m 6 0 % dos inventários post mortem
estudados, c o r r e s p o n d e n d o a o p e r í o d o 1801-1890, figuram o r a t ó r i o s c o m suas
estatuetas, ou apenas estas ú l t i m a s .

N o c a m p o e na cidade, a vida religiosa do fiel estava centrada em relações diretas,


pessoais, c o m os s a n t o s . Essa i n t i m i d a d e era, aliás, e n c o r a j a d a pela família e por toda
a sociedade, que via nessas relações u m a espécie de proteção suplementar àquela que
advinha dos s a c r a m e n t o s . C o m o já disse, as práticas religiosas privada e oficial nao
eram nem a u t ô n o m a s , nem opostas, mas sim c o m p l e m e n t a r e s . 7
Essa situação era
aceita pela Igreja oficial, mas a partir d e meados d o século X I X ela tentou imprimir à
religião privada u m a nova o r i e n t a ç ã o .
A religiosidade d o povo t a m b é m se exprimia através de superstições. Para se
LIVRO V - A IGREJA
393

p r e c a v e r c o n t r a a m a s o r t e , as p e s s o a s u s a v a m c o l a r e s f e i t o s d e c o n t a s (de pedras
preciosas, o u r o p r a t a , m a d e i r a o u p e q u e n o s c o c o s ) , m e d a l h a s , escapulários Las e
fitas c o m a m e d i d a e x a t a d e u m a e s t a t u e t a d e s a n t o ( a n t e c e s s o r a s das fitas q u e h o j e
são e n r o l a d a s n o s p u l s o s d o s b a i a n o s e d o s t u r i s t a s q u e v i s i t a m o s a n t u á r i o d o S e
n h o r d o B o n f i m , e m S a l v a d o r ) . A v i s ã o d e e s q u e l e t o s p r o v o c a v a u m s a n t o terror
e s t i m u l a d o p e l a c r e n ç a d e q u e o m u n d o e s t a v a p o v o a d o d e almas p e n a d a s . C o n s i -
derava-se q u e a v i d a d o s v i v o s e r a m a i s i n f l u e n c i a d a pela atividade dos m o r t o s n o
p e r í o d o d a Quaresma, e x i g i n d o p r o c i s s õ e s d e e x o r c i s m o , seguidas s o m e n t e p o r h o -
m e n s e a c o m p a n h a d a s d e c a n t o s l ú g u b t e s . S o b r e t u d o n o c a m p o , as encruzilhadas
e r a m o r n a d a s c o m c r u z e s q u e l e m b r a v a m a p r e s e n ç a d a m o r t e e a aparição de almas
defuntas. 8
G i l b e r t o F r e y r e e s c r e v e u q u e " a b a i x o d o s s a n t o s , m a s a c i m a dos vivos,
havia os m o r t o s , q u e d i r i g i a m e v e l a v a m p e l a v i d a d e seus filhos, n e t o s e bisnetos.
Suas f o t o g r a f i a s e r a m c o n s e r v a d a s n o s a n t u á r i o , e n t r e as i m a g e n s d o s santos, c o m o
m e s m o d i r e i t o q u e estes à l u z d a l â m p a d a v o t i v a e a o b u q u ê d e flores piedosas. P o r
vezes, c o n s e r v a v a m - s e t a m b é m t r a n ç a s d a s m u l h e r e s o u m e c h a s d e cabelos das crianças
que m o r r i a m ' a n j o s ' . " 9

O m e s m o a u t o r e n u m e r o u o u t r a s s u p e r s t i ç õ e s , a l g u m a s das quais presentes t a m -


b é m n o s p a í s e s m e d i t e r r â n e o s : " D e v e - s e e n t r a r n u m a casa c o m o p é direito e sair
pela m e s m a p o r t a . U m a v a s s o u r a atrás d a p o r t a faz c o m q u e a visita, q u e está de-
m o r a n d o , v á e m b o r a . N ã o se p o d e p ô r o p ã o n a m e s a às avessas; n e m o c h i n e l o ,
senão a m ã e d e s e u p r o p r i e t á r i o vai m o r r e r n o m e s m o a n o . N ã o se gosta de m o r a r
n u m a casa d e e s q u i n a p o i s ' c a s a d e e s q u i n a é m o r t e e r u í n a ' . A l g u m a s aves dão azar
q u a n d o e n t r a m n a c a s a o u p o u s a m n o t e t o : c o r u j a s i g n i f i c a m o r t e , assim c o m o o
colibri, q u a n d o e n t r a e m c a s a d e m a n h ã c e d o . R ã s , g a f a n h o t o s , besouros e formigas
aladas t ê m m á r e p u t a ç ã o . E m c o m p e n s a ç ã o , é r e c o m e n d a d o t o m a r b a n h o de m a r à
m e i a - n o i t e n a v é s p e r a d e S ã o J o ã o o u a r r a n c a r u m g a l h o d e arruda neste m o m e n t o
preciso. P a r a u m a j o v e m r e c é m - c a s a d a , a s p i r a r o p e r f u m e d e u m a rosa tem efeito
a n t i c o n c e p c i o n a l . P a r a q u e as c r i a n ç a s s e j a m b e m c o m p o r t a d a s , os adultos as ame-
d r o n t a m , a m e a ç a n d o - a s c o m b i c h o s - p a p õ e s q u e c o r r e m pelas matas c o m o focinho
n o c h ã o , p o r q u e suas patas traseiras são m a i o r e s q u e as dianteiras. H á adultos nas
zonas rurais q u e a c r e d i t a m firmemente n a existência d e , c h a r r e t e s invisíveis, que ran-
gem e c a n t a m pelas estradas nas noites d e lua c h e i a , puxadas p o r bois conduzidos
por alguém invisível, o u p o r m u l a s - s e m - c a b e ç a q u e t r o t a m pesadamente, abrindo e
f e c h a n d o c o m p o r t a s e u r i n a n d o n o s passantes. As pessoas t a m b é m acreditam que
existem p o r c o s negros q u e v a g a b u n d e i a m , invisíveis, nos corredores das casas dos
senhores." 10

H a v i a relações i m p l í c i t a s e n t r e essas superstições profanas e as religiosas, na m e -


dida e m q u e o m v i s í v e l , o ' o u t r o m u n d o ' imaterial, estava presente e m todas as crenças
populares: o além era p o v o a d o p o r santos, anjos e almas bem-aventuradas, dotados de
poderes benéficos, m a s t a m b é m pelo diabo e sua corte de auxiliares, fonte de medo e
de malefícios q u e precisavam ser neutralizados. Aos espíritos do maJ atribuíam-se
BAHIA. SÉCLXO X I X

p o d e r e s s o b r e n a t u r a i s , acessíveis p o r i n t e r m é d i o das b r u x a s , t a m b é m na B a h i a repte


s e n t a d a s pela i m a g e m de u m a m u l h e r v e l h a , a l t a , m a g r a , e n r u g a d a , feia, suja e esfar-
rapada, carregando u m a sacola cheia de o b j e t o s m i s t e r i o s o s e a n d a n d o pela noite
s o t u r n a e s i n i s t r a . A b r u x a t e m d u a s f u n ç õ e s c l á s s i c a s . A m a i s p o d e r o s a faz parte do
c i c l o d a a n g ú s t i a i n f a n t i l e se i n t e g r a e m a m e a ç a s n o t u r n a s , q u a n d o a criança fica
a c o r d a d a , d e s o b e d e c e n d o à v o n t a d e d a m ã e . P a r a o s a d u l t o s , a b r u x a enfeitiça e
amaldiçoa, mas igualmente, graças a poderosas orações e filtros, u n e o u separa os
n a m o r a d o s e t r a t a d o s d o e n t e s c o m r e m é d i o s c u j o s e g r e d o n ã o revela. S e g u n d o Câma-
ra C a s c u d o , c a d a l u g a r e j o , c a d a a l d e i a , c a d a vila t e m s e m p r e u m a " v e l h a misteriosa
rezadeira, a u r e o l a d a p e l o p r e s t í g i o d e u m a r e p u t a ç ã o de s a b e r e p o d e r " . 1 1

M a s as s u p e r s t i ç õ e s p r o f a n a s n e m s e m p r e p r e o c u p a v a m a I g r e j a de f o r m a espe-
c i a l , a n ã o ser c o m o e x p r e s s õ e s d e u m a m e n t a l i d a d e a t r a s a d a d o p o v o . A Igreja se
p r o p u n h a a l u t a r s o b r e t u d o c o n t r a s u p e r s t i ç õ e s q u e e n v o l v i a m seus p r ó p r i o s santos.
O u ç a m o s de n o v o G i l b e r t o F r e y r e : " O s g r a n d e s s a n t o s n a c i o n a i s t o r n a r a m - s e aqueles
a q u e m a i m a g i n a ç ã o d o p o v o a c h o u de a t r i b u i r m i l a g r o s a i n t e r v e n ç ã o e m aproximar
o s s e x o s , e m f e c u n d a r as m u l h e r e s , e m p r o t e g e r a m a t e r n i d a d e : S a n t o A n t ô n i o , São
J o ã o , S ã o G o n ç a l o de A m a r a n t e , S ã o P e d r o , o M e n i n o D e u s , N o s s a S e n h o r a do Ó ,
da B o a H o r a , d a C o n c e i ç ã o , d o B o m S u c e s s o , d o B o m P a r t o . N e m o s s a n t o s guerrei-
r o s , c o m o S ã o J o r g e , n e m o s p r o t e t o r e s das p o p u l a ç õ e s c o n t r a a p e s t e , c o m o São
S e b a s t i ã o , o u c o n t r a a f o m e , c o m o S a n t o O n o f r e — s a n t o s c u j a p o p u l a r i d a d e corres-
p o n d e a e x p e r i ê n c i a s d o l o r o s a m e n t e p o r t u g u e s a s — e l e v a r a m - s e n u n c a à importância
o u ao p r e s t í g i o . A o s o u t r o s , p a t r o n o s d o a m o r h u m a n o e d a f e c u n d i d a d e a g r í c o l a . " " 1

As f u n ç õ e s m a i s p o p u l a r e s d e S ã o J o ã o e r a m as a f r o d i s í a c a s , e seu c u l t o era acompa-


n h a d o p o r c a n t o s s e n s u a i s e o u t r a s p r á t i c a s . E l e e r a , p o r e x c e l ê n c i a , o s a n t o que fazia
os c a s a m e n t o s ; n a n o i t e o u n a m a n h ã d a f e s t a de S ã o J o ã o , e r a m feitos sorteios que
visavam, " n o B r a s i l c o m o e m P o r t u g a l , à u n i ã o d o s s e x o s , o c a s a m e n t o , o a m o r que
se d e s e j a e n ã o se e n c o n t r o u a i n d a " . 1 3
" S a n t o A n t ô n i o p r o t e g e o u t r o s interesses amo-
rosos, p o r e x e m p l o as a f e i ç õ e s p e r d i d a s . O s n o i v o s , os m a r i d o s , o s a m a n t e s desapare-
c i d o s . O s a m o r e s q u e a r r e f e c e r a m o u m o r r e r a m . . . A e s t á t u a d a q u e l e s a n t o é suspensa,
O mais f r e q ü e n t e m e n t e de c a b e ç a para b a i x o , n u m a c i s t e r n a o u n u m p o ç o , para que
ele realize suas p r o m e s s a s o m a i s r a p i d a m e n t e possível. O s mais i m p a c i e n t e s a colo-
c a m em velhos u r i n ó i s . " 1 4
O c u l t o d e S ã o G o n ç a l o d o A m a r a n t e estava ligado a
práticas mais livres e d e s p u d o r a d a s , a b r e j e i r i c e s e o b s c e n i d a d e s . Atribuía-se a ele o
p o d e r de e n c o n t r a r m a r i d o para as m u l h e r e s velhas, assim c o m o S ã o Pedro fazia com
as viúvas. Q u a s e t o d o s os n a m o r a d o s r e c o r r i a m a S ã o G o n ç a l o , c a n t a n d o : "casai-me,
casai-mc/São G o n ç a l i n h o / Q u e hei de rezar-vos/A m i g o S a n t i n h o " . 1 5
As pessoas esté-
reis, sem filhos o u i m p o t e n t e s pediam ajuda a S ã o G o n ç a l o , em c u j a festa se dançava
n o c o n v e n t o d o D e s t e r r o c cm outras igrejas baianas, m e s m o depois da interdição
d e t e r m i n a d a pela Igreja.
Esses santos p r o t e t o r e s d o a m o r e da f e c u n d i d a d e t a m b é m protegiam a agrieu -
tura. C o m e f e i t o , S ã o J o ã o c N o s s a S e n h o r a do Ó , adorada o u t r o r a sob a forma de
LIVRO V - A IGREJA
395

m u l h e r g r a v i d a , e r a m a m i g o s d o s a g r i c u l t o r e s , a q u e m a j u d a v a m t a n t o q u a n t o aos
n a m o r a d o s . Q u a n d o as p e s s o a s q u e r i a m c h u v a , m e r g u l h a v a m S a n t o A n t ô n i o n ' á g u a
Q u a n d o u m i n c ê n d i o d e v o r a v a as p l a n t a ç õ e s de c a n a , c o l o c a v a - s e a i m a g e m d o s a n t o
n u m a j a n e l a d a c a s a d o s e n h o r a t é q u e o f o g o se apagasse. A n o i t e de S ã o J o ã o t a m b é m
e r a a resta da a g r i c u l t u r a , s o b r e t u d o d o m i l h o , q u e , s e r v i d o c o m o c a n j i c a , p a m o n h a ou
b o l o , g u a r n e c i a as m e s a s de r i c o s c p o b r e s . 1 6

N a s c a n t i g a s d e n i n a r , as m ã e s n ã o h e s i t a v a m e m t r a n s f o r m a r seus filhos em
i r m ã o s m a i s m o ç o s d o M e n i n o J e s u s , c o n c e d e n d o a eles os m e s m o s direitos aos c u i -
d a d o s d e M a r i a , às v i g í l i a s d e S ã o J o s é , a o s m i m o s d e S a n t ' A n a . S ã o J o s é era e n c a r r e -
g a d o , s e m n e n h u m a c e r i m ô n i a , d e b a l a n ç a r o b e r ç o o u a rede d o b e b ê ; S a n t ' A n a , de
n i n á - l o n o p e i t o . T o m a v a m - s e t a n t a s l i b e r d a d e s c o m o s s a n t o s q u e eles e r a m e n c a r r e -
g a d o s a t é m e s m o d e p r o t e g e r o s v i d r o s d e g e l é i a e d o c e s c o n t r a a a ç ã o das f o r m i g a s :
" E m h o n r a d e S ã o B e n t o , p a r a q u e as f o r m i g a s n ã o e n t r e m " , escrevia-se n u m papel-
zinho c o l o c a d o na porta da d e s p e n s a ! 1 7

Esse c o m p o r t a m e n t o religioso, centrado n a d e v o ç ã o aos s a n t o s e n u m a rela-


ção c o m eles s i m u l t a n e a m e n t e i n d i v i d u a l , familiar, coletiva e supersticiosa, formava
a verdadeira religião d o p o v o , q u e se e x p r i m i a s o b o c o n t r o l e da Igreja hierárquica
o u n a f o r m a d e u m a p i e d a d e a u t ô n o m a , m u i t a s vezes s i t u a d a f o r a d o a l c a n c e dessa
mesma Igreja.

UMA RELIGIÃO NO COTIDIANO

A v i d a c o t i d i a n a se d e s e n r o l a v a s o b o s i g n o d a r e l i g i ã o . E m q u a s e t o d a s as casas havia
o r a t ó r i o s q u e , p e l o m e n o s t r ê s vezes a o d i a , s e r v i a m d e p o n t o de e n c o n t r o para os
m e m b r o s d a f a m í l i a , s e u s a g r e g a d o s e e s c r a v o s : p a r a as o r a ç õ e s d a m a n h ã , as vésperas
e as o r a ç õ e s d a n o i t e . N a s c i d a d e s , o r a t ó r i o s c o l o c a d o s e m e n c r u z i l h a d a s c o n g r e g a v a m
os transeuntes d u r a n t e a recitação do rosário.
T o d a s as f e s t a s , i n c l u s i v e as c i v i s , t i n h a m c a r á t e r r e l i g i o s o , e os rituais estabeleci-
d o s pela t r a d i ç ã o — o t i l i n t a r d o s s i n o s , a m ú s i c a , a o r d e m q u e devia existir nas
p r o c i s s õ e s — e r a m t r a n s m i t i d o s d e g e r a ç ã o a g e r a ç ã o . As missas festivas e r a m c e r
^ a d
* i s

de p o m p a : o p a d r e se a p r e s e n t a v a t o d o p a r a m e n t a d o , d i a n t e de u m altar e n t u l h a d o de
flores c e s t á t u a s p i e d o s a s , e d e s a p a r e c i a atrás de u m a n u v e m de i n c e n s o q u e o e s c
° n d i a

d o s o l h a r e s d o s fiéis. A m i s s a e r a c a n t a d a p o r u m c o r o p o l i f ó n i c o , a c o m p a n h a d o
o r q u e s t r a , e n q u a n t o , n o a d r o , f a z i a m - s e e x p l o d i r f o g u e t e s e fogos de a r t
' f i c ,
°- P° '~ S

ç ã o o c u p a d a pelos fiéis na igreja refletia a o r d e m s o c i a l : n o m e i o , cercadas d e


^
as m u l h e r e s se a j o e l h a v a m c m p e q u e n a s esteiras de palha o u ricos tapetes; os omens
r o d e a v a m essas g r a d e s , d e p é o u s e n t a d o s e m cadeiras o u p o l t r o n a s . s escravo
ficavam n a e n t r a d a . O s c a n t o r e s e a m ú s i c a o c u p a v a m o c o r o , em c i m a a en ,
o n d e se j u n t a v a m o s q u e q u e r i a m a p r e c i a r o e s p e t á c u l o d o a l t o . Lora o t
p a s c o a l , raras e r a m as p a r t i c i p a ç õ e s n a eucaristia.
396 BAHIA, SÉCULO X I X

C a d a t e m p o l i t ú r g i c o t i n h a suas p r ó p r i a s p r á t i c a s . N o N a t a l , p r e p a r a v a m - s e pre-
s é p i o s , f r e q ü e n t e m e n t e v e r d a d e i r a s o b r a s d e a r t e , r e p r e s e n t a n d o c o m r e a l i s m o o nas-
c i m e n t o d e C r i s t o o u i n s e r i n d o - o e m m a q u e t e s q u e r e c o n s t i t u í a m f i e l m e n t e Salvador
c o m as c i d a d e s B a i x a e A l t a , as igrejas e e d i f í c i o s p ú b l i c o s , as p r a ç a s , as ruas e até
pessoas. A a u s t e r i d a d e d e q u e era i m p r e g n a d o o T e m p o d o A d v e n t o n ã o impedia a
alegre c e l e b r a ç ã o das festas d e S a n t a B á r b a r a , d e N o s s a S e n h o r a d a C o n c e i ç ã o ou de
S a n t a L ú c i a , c o m m u i t a b e b i d a , c o m i d a , d a n ç a e c a n t o s , p r e n ú n c i o das festas popu-
lares e p a r a l i t ú r g i c a s — c h e g a n ç a s , b a i l e s p a s t o r i s , b u m b a - m e u - b o i e c u c u m b i s q U e

tinham lugar entre o Natal e o D i a d e R e i s . 1 9

As c h e g a n ç a s , o u f a n d a n g o s , e r a m e s p e t á c u l o s a o a r livre q u e representavam
a
c h e g a d a dos p o r t u g u e s e s a o B r a s i l , a v i t ó r i a d o c r i s t i a n i s m o s o b r e o p a g a n i s m o ou
as
batalhas e n t r e m o u r o s e c r i s t ã o s . O s b a i l e s p a s t o r i s c e l e b r a v a m a m e m ó r i a dos pastores
q u e a d o r a r a m J e s u s M e n i n o . C a r a c t e r í s t i c o s d a c l a s s e m é d i a b a i x a , r e u n i a m moças e
rapazes q u e , v e s t i d o s d e b r a n c o e a o s o m d e flautas e t a m b o r e s , i a m d e casa em casa
e cantavam diante dos presépios na n o i t e de N a t a l . As representações do bumba-meu-
b o i o c o r r i a m e n t r e m e a d o s d e n o v e m b r o e o D i a d e R e i s . N e l a s , h a v i a u m a cena
c a n t a d a , r e c i t a d a e d a n ç a d a , c u j o s p e r s o n a g e n s ( t i o M a t e u s , t i a C a t a r i n a , o médico, o
padre, o b o i a d e i r o , o c a r n e i r o e a j u m e n t a ) e n t r a v a m e m c o m p e t i ç ã o e lutavam entre
si e c o n t r a o b o i , p e r s o n a g e m c e n t r a l . S e g u n d o o f o l c l o r i s t a C â m a r a C a s c u d o , a
r e p r e s e n t a ç ã o d o b u m b a - m e u - b o i e r a e s s e n c i a l à n o i t e d e R e i s . O s c u c u m b i s , muito
populares n a B a h i a , e r a m d a n ç a s g u e r r e i r a s , e x e c u t a d a s e c a n t a d a s p e l o s negros ao som
de i n s t r u m e n t o s m u s i c a i s a f r i c a n o s .

E n t r e a E p i f a n i a e a Q u a r e s m a , festas p o p u l a r e s c e l e b r a v a m N o s s o S e n h o r do
B o n f i m e m j a n e i r o e a P u r i f i c a ç ã o de N o s s a S e n h o r a e m f e v e r e i r o . D a Quaresma à
Páscoa era t e m p o de p e n i t ê n c i a , j e j u m e o r a ç ã o , c o m n o i t e s p o v o a d a s de almas
a b e n ç o a d a s e p e n a d a s — q u e p r o v o c a v a m n o s fiéis u m a m i s t u r a d e m e d o e proximida-
d e . E r a u m a r e l i g i ã o e x p i a t ó r i a : as m a n i f e s t a ç õ e s d o c a t o l i c i s m o d o p o v o baseavam-se
mais na p a i x ã o de C r i s t o q u e e m S u a r e s s u r r e i ç ã o . D a í a i m p o r t â n c i a das procissões da
S e m a n a S a n t a , a c o m p a n h a d a s d e a u t o f l a g e l a ç õ e s , s o b r e t u d o nas z o n a s rurais, e a falta
de b r i l h o da c e l e b r a ç ã o p a s c o a l . E n t r e o d o m i n g o de P a s c o e l a e a festa da Assunção,
as festas d a A s c e n s ã o , P e n t e c o s t e s (festas d o D i v i n o ) , C o r p u s C h r i s t i , S ã o J o ã o e
A p ó s t o l o s P e d r o c P a u l o d a v a m lugar a p r o c i s s õ e s , s e m p r e a c o m p a n h a d a s de festejos
populares. 20

A essas grandes festas c o l e t i v a s , c m q u e o p r o f a n o e o religioso estavam inter-


ligados, a c r e s c e n t a v a m - s e c e l e b r a ç õ e s m a i s í n t i m a s . C o m e f e i t o , q u a l q u e r circuns-
t â n c i a era p r e t e x t o para q u e houvesse c e r i m ô n i a s de b ê n ç ã o s : celebrava-se solene-
m e n t e a b ê n ç ã o d o e n g e n h o n o i n í c i o d o c o r t e d a c a n a ; fazia-se benzer a casa por
t o d a espécie de razões (por e x e m p l o , q u a n d o havia suspeita de q u e alguém a tives-
se a m a l d i ç o a d o c o m u m ' m a u - o l h a d o ' ) . O s padres, aliás, n ã o hesitavam em f a z e r

esses trabalhos, c o m o s quais reafirmavam sua i n f l u ê n c i a e recebiam rendas suple-


mentares.
LIVRO V - A IGREJA
397

A FESTA RELIGIOSA: NEGÓCIO DOS LEIGOS

C o m e x c e ç ã o das c e l e b r a ç õ e s l i t ú r g i c a s , a festa religiosa s e m p r e foi m e n o s expressão da


Igreja d o q u e d o p r ó p r i o p o v o , cuja religião conservava u m espaço próprio, freqüen-
t e m e n t e c o m a n d a d o p e l a s c o m u n i d a d e s e s e m a p a r t i c i p a ç ã o efetiva d o c l e r o No
c a m p o , o n d e as d i f e r e n ç a s n a h i e r a r q u i a s o c i a l e r a m p e q u e n a s , o p o v o f o r m a v a u m
c o n j u n t o n o q u a l se d e s t a c a v a m o s ' c h e f e s ' , q u a s e s e m p r e o r i u n d o s dos m e i o s mais
p o b r e s , m a i s d e s e r d a d o s . E l e s s a b i a m c o n d u z i r a d e v o ç ã o ao s a n t o , a p r e c e dos fiéis, as
p e r e g r i n a ç õ e s a o s s a n t u á r i o s . P e r c e b e - s e n í t i d a s e p a r a ç ã o e n t r e a i n f l u ê n c i a exercida
p e l o r e p r e s e n t a n t e l o c a l d a r i q u e z a e d o p o d e r , m u i t a s vezes ao l a d o d a I g r e j a oficial,
e a i n f l u ê n c i a desse ' c h e f e ' religioso, q u e d e t i n h a o c o n s e n s o da c o m u n i d a d e e cujo
p r e s t í g i o e r a f r e q ü e n t e m e n t e v i s t o c o m d e s c o n f i a n ç a p e l o p á r o c o , se ele existisse. Esses
' c h e f e s ' r e l i g i o s o s m a n t i n h a m a c o e s ã o d o g r u p o e s e r v i a m m u i t a s vezes de m e d i a d o r e s
j u n t o a o s o u t r o s t i p o s d e c h e f e s , t o l e r a d o s m a s n ã o e s c o l h i d o s pela c o m u n i d a d e . A o
s a c r a l i z a r e m a t r a d i ç ã o , o p o n d o - s e a q u a l q u e r m u d a n ç a " d o q u e s e m p r e foi a s s i m " ,
m a n t i n h a m u m a c o n t i n u i d a d e q u e era fator de ordem e de d o m i n a ç ã o . 2 1

N a s c i d a d e s , a p o p u l a ç ã o e s t a v a d i v i d i d a e n t r e as diversas i r m a n d a d e s religiosas,
reflexos de u m a h i e r a r q u i a s o c i a l m a i s d i v e r s i f i c a d a . C o m e f e i t o , as diferenças e n t r e
elas d i z i a m r e s p e i t o a c r i t é r i o s de c o r , r i q u e z a e p r e s t í g i o s o c i a l . M a s as a t r i b u i ç õ e s dos
d i r i g e n t e s d e s s a s i r m a n d a d e s e r a m b e m d i f e r e n t e s das dos chefes das c o m u n i d a d e s
rurais, na m e d i d a e m q u e as p r e o c u p a ç õ e s m a t e r i a i s e r a m e q u i v a l e n t e s às p r e o c u p a -
ções de o r d e m e s p i r i t u a l . E n o e s p a ç o u r b a n o , q u a l era o papel dessas irmandades?

CONFRARIAS: IRMANDADES E ORDENS TERCEIRAS

C o m o e m t o d o o m u n d o c a t ó l i c o , as c o n f r a r i a s religiosas e r a m associações leigas.


D e s t a c a v a m - s e , e n t r e e l a s , as i r m a n d a d e s ( n o B r a s i l , r e m i n i s c ê n c i a s das antigas
c o r p o r a ç õ e s p o r t u g u e s a s de a r t e s e o f í c i o s ) e as o r d e n s terceiras (ligadas às ordens
religiosas t r a d i c i o n a i s , e s p e c i a l m e n t e aos f r a n c i s c a n o s , c a r m e l i t a s e d o m i n i c a n o s ) .
O p r i m e i r o o b j e t i v o d e u m a i r m a n d a d e era c o n g r e g a r c e r t o n ú m e r o de fiéis em
t o r n o da d e v o ç ã o a u m s a n t o e s c o l h i d o c o m o p a d r o e i r o . F r e q ü e n t e m e n t e seus mem-
b r o s viviam na v i z i n h a n ç a d a m e s m a p a r ó q u i a , m a s havia i r m a n d a d e s q u e associavam
pessoas por d e v o ç ã o , o f í c i o , c o r d a pele ou e s t a t u t o social. A base de tudo era o
' c o m p r o m i s s o ' , c o n j u n t o de regras — s u b m e t i d a s desde logo à aprovação do rei —
q u e d e t e r m i n a v a m os o b j e t i v o s da associação, as modalidades de admissão de seus
m e m b r o s , seus deveres e o b r i g a ç õ e s . A partir da aceitação do c o m p r o m i s s o , os m e m -
b r o s da i r m a n d a d e se c o m p r o m e t i a m a venerar o santo padroeiro, m a n t e r seu culto e
p r o m o v e r sua festa. Às vezes, o s a n t o já estava n u m altar da igreja paroquial, mas era
freqüente q u e o c u l t o fosse i n i c i a d o n u m oratório privado. Nesse caso, a irmandade
era fundada para angariar os f u n d o s necessários à construção de u m a igreja ou de uma
BAHIA, SÉCULO X I X
398

c a p e l a . E r a m c é l e b r e s e m t o d o o B r a s i l as i r m a n d a d e s d e e s c r a v o s , q u e admitiam
alforriados e t i n h a m u m e s p l e n d o r c o m p a r á v e l a o das i r m a n d a d e s exclusivas de ho-
m e n s livres e b r a n c o s . A l é m dessas c a r a c t e r í s t i c a s , d e v i d a s ao e s t a t u t o legal que dividia
a população, estabeleceu-se muito cedo o critério — f o r t e m e n t e encorajado p le a

a d m i n i s t r a ç ã o e pela I g r e j a — da c o r d a p e l e : b r a n c o s c o m b r a n c o s , mestiços com


mestiços, pretos c o m pretos.
N a C o l ô n i a e n o I m p é r i o , as i r m a n d a d e s m a i s d i f u n d i d a s n o Brasil foram as da
M i s e r i c ó r d i a , d o S a n t í s s i m o S a c r a m e n t o e d e N o s s a S e n h o r a d o R o s á r i o . A primeira
foi a ú n i c a v o l t a d a p a r a a c a r i d a d e , q u e visava a t i n g i r t o d a a c o m u n i d a d e cristã da vila
o u c i d a d e e m q u e estivesse i n s t a l a d a , e s p e c i a l m e n t e p o b r e s , d e f i c i e n t e s físicos e prisio-
n e i r o s . S e u s m e m b r o s p a r t i c i p a v a m m u i t o a t i v a m e n t e d a v i d a d a I g r e j a e tinham
d i r e i t o a seus b e n e f í c i o s e s p i r i t u a i s . A p r i m e i r a i r m a n d a d e d a M i s e r i c ó r d i a fora funda-
da, n o B r a s i l , e m 1 5 3 0 p o r B r á s C u b a s e m S a n t o s , C a p i t a n i a d e S ã o V i c e n t e , com o
o b j e t i v o de a j u d a r os c o l o n o s q u e m i g r a v a m p a r a a r e g i ã o . S e u e x e m p l o foi seguido em
q u a s e todas as c i d a d e s e vilas i m p o r t a n t e s d a C o l ô n i a . N a B a h i a , essa irmandade,
f u n d a d a e m 1 5 5 0 , d e s e m p e n h o u i m p o r t a n t e p a p e l , a s s i s t i n d o d o e n t e s , prisioneiros,
j o v e n s órfãs e c r i a n ç a s e n j e i t a d a s , e c u i d a n d o p a r a q u e i n d i g e n t e s e escravos tivessem
sepulturas d e c e n t e s . S o b a d i r e ç ã o d e m e m b r o s d a e l i t e l o c a l , teve g r a n d e peso finan-
c e i r o , e m p r e s t a n d o d i n h e i r o a s e n h o r e s d e e n g e n h o e a c o m e r c i a n t e s d a capital.

A s e g u n d a i r m a n d a d e d e s t i n a v a - s e a p r o m o v e r o c u l t o d o S a n t í s s i m o Sacramento
d a E u c a r i s t i a , o q u e e x i g i a a p r e s e n ç a de u m p a d r e p a r a c e l e b r a r missas e consagrar a
h ó s t i a . M u i t o a n t i g a e d i f u n d i d a d u r a n t e o s p e r í o d o s c o l o n i a l e imperial (1549-
1 8 8 9 ) , existiu e m q u a s e t o d a s as p a r ó q u i a s , m a s foi e s s e n c i a l m e n t e u r b a n a . Organiza-
va a procissão anual de C o r p u s C h r i s t i , t a m b é m c h a m a d a p r o c i s s ã o d o Triunfo
E u c a r í s t i c o . S e u s m e m b r o s c o m p r o m e t i a m - s e a assistir a m i s s a t o d a s as quintas-feiras
e a r e c e b e r a b ê n ç ã o d o S a n t í s s i m o , q u e se s e g u i a . P o r c a u s a da í n t i m a relação com o
c u l t o da e u c a r i s t i a , c o n g r e g o u b o a p a r t e d a e l i t e m a s c u l i n a , q u e se orgulhava de poder
servir à missa a o lado d o p a d r e .

A o u t r a i r m a n d a d e estava ligada à d e v o ç ã o d o r o s á r i o , i n t r o d u z i d a n o Brasil no


fim d o século X V I . N o s é c u l o s e g u i n t e surgiu o h á b i t o d e c o n s t r u i r , nas igrejas
paroquiais, d o i s altares laterais a o a l t a r - m o r . O q u e ficava d o lado da epístola era
c o n s a g r a d o a S ã o M i g u e l , e o q u e ficava d o l a d o d o e v a n g e l h o , a N o s s a Senhora do
R o s á r i o . O s i r m ã o s d o rosário e n c a r r e g a v a m - s e d e s t e altar e, t a m b é m , de preparar a
festa, g e r a l m e n t e celebrada n o p r i m e i r o d o m i n g o d o mês de o u t u b r o . Irmandade
mista, seus m e m b r o s deviam recitar p u b l i c a m e n t e o rosário d u r a n t e u m a celebração
mensal o u s e m a n a l . C o m o t e m p o , essas i r m a n d a d e s se t o r n a r a m exclusivas de negros
e m u l a t o s , fossem eles livres, alforriados o u escravos. P o r vezes, até o capelão era negro.
N ã o se c o n h e c e n e n h u m a i r m a n d a d e d o R o s á r i o criada n o fim d o período colonial c
cujos m e m b r o s fossem b r a n c o s . 2 2

T e n d o orientação espiritual das ordens religiosas regulares, c o m o a dos franciscanos


e a dos carmelitas, as ordens terceiras c o n t a v a m c o m grande participação leiga. Na
LIVRO V - A IGREJA
399

B a h i a , d o t a d a d e f o n e t r a d i ç ã o d e v i d a r e l i g i o s a comunitária, duas o t d e n s t e t c e i t a s
r o r a m c r i a d a s q u a s e s i m u l t a n e a m e n t e n o s é c u l o X V I I ( 1 6 3 5 e 1 6 3 6 ) u m a en 1 7 2 3
uma e m 1 8 0 7 . A p r i m e i r a delas - a Venerável O r d e m T e r c e i r a da PenitêncTa de São'
Francisco - t e v e c o m o f u n d a d o r e s as p e s s o a s m a i s importantes d e S a l v a d o r e d o
R e c ô n c a v o e se instalou n o c o n v e n t o d o s f r a n c i s c a n o s , s o b o patrocínio d e S a n t a
I s a b e l , r a i n h a d e P o r t u g a l , c u j a i m a g e m foi c o l o c a d a n o altar c o n s a g r a d o a N o s s a
S e n h o r a d a C o n c e i ç ã o ; a o s s e u s o b j e t i v o s e s p i r i t u a i s a i r m a n d a d e acrescentava a m i s -
são d e a j u d a r s e u s p r ó p r i o s m e m b r o s a t é a h o r a d a m o r t e .
U m a n o d e p o i s , t e n d o c o m o padroeira S a n t a T e r e s a D'Ávila, instalou-se a O r d e m
T e r c e i r a d o s Carmelitas, c u j o o b j e t i v o e r a g l o r i f i c a r o n o m e d e D e u s , p e r m i t i r q u e
seus m e m b r o s f o s s e m e n t e r r a d o s v e s t i n d o o v e n e r á v e l h á b i t o e g a r a n t i r q u e recebessem
o b e n e f í c i o d e m i s s a s . P r o p u n h a - s e , a i n d a , a o r g a n i z a r a celebração d a festa d o C a r m o ,
das p r o c i s s õ e s e d e o u t r a s manifestações r e l i g i o s a s . R e u n i n d o h o m e n s e m u l h e r e s d
as
c a m a d a s s u p e r i o r e s d a s o c i e d a d e , a i r m a n d a d e p o s s u í a t a n t o prestígio q u e , a o lado d
a
igreja d o C o n v e n t o , construíram o u t r a , d o m e s m o t a m a n h o , s ó p a r a e l a .

F o i p r e c i s o e s p e r a r q u a s e u m s é c u l o p a r a a f u n d a ç ã o , e m 1 7 2 3 , de u m a o r d e m
t e r c e i r a l i g a d a aos d o m i n i c a n o s , q u e n o e n t a n t o , c o m o c o r p o r a ç ã o , s ó c h e g a r i a m a o
Brasil m u i t o d e p o i s , n o final d o s é c u l o X I X . A o r i g e m desse f a t o paradoxal foi a
p a s s a g e m , p o r S a l v a d o r , e m 1 7 2 2 , d o d o m i n i c a n o G a b r i e l B a p t i s t a , q u e voltava das
í n d i a s . E l e f e z c o n t a t o c o m p o r t u g u e s e s r e s i d e n t e s n o Brasil q u e m a n i f e s t a r a m o
desejo d e f u n d a r na c a p i t a l d a B a h i a u m a o r d e m t e r c e i r a , n o s m o l d e s da q u e haviam
p e r t e n c i d o n o P o r t o , em L i s b o a e em V i a n a d o M i n h o . O i r m ã o B a p t i s t a levou o
pleito a o p r i o r p r o v i n c i a l d o s i r m ã o s p r e g a d o r e s d e P o r t u g a l . E m 1 7 2 3 , veio para o
Brasil o i r m ã o A n t ô n i o d o Sacramento, q u e i n s t a l o u a o r d e m n o c o n v e n t o dos
b e n e d i t i n o s , t o r n a n d o - s e s e u d i r e t o r . L o g o d e p o i s , e l a f o i t r a n s f e r i d a para o c o n v e n t o
de P a l m a , o c u p a d o p o r i r m ã o s a u g u s t i n i a n o s . E m 1 7 3 2 , a o r d e m c e l e b r o u a p n m e i r a
missa e m s u a p r ó p r i a i g r e j a , c o n s t r u í d a no c o r a ç ã o d a c i d a d e . F r e q ü e n r a d a s o b r e t u d o
pela c o m u n i d a d e p o r t u g u e s a , e l a t e n t a v a realizar d u p l a m i s s ã o , u m a espiritual (exaltar
a fé e e s t i m u l a r a p i e d a d e a t r a v é s d a o b s e r v â n c i a d o s m a n d a m e n t o s divinos) e u m a
t e m p o r a l ( o f e r e c e r a seus m e m b r o s u m a s e p u l t u r a n a sua p r ó p r i a igreja c m a n d a r rezar
missas pela s a l v a ç ã o d e suas a l m a s ) . C o n c e d i a , t a m b é m , p e n s õ e s aos m e m b r o s q u e
tivessem p e r d i d o seus b e n s , às viúvas e às ó r f ã s . N a v e r d a d e , a O r d e m T e r c e i r a de S ã o
D o m i n g o s servia d e t r a m p o l i m a o s p o r t u g u e s e s r e c é m - c h e g a d o s , q u e não podiam ser
i m e d i a t a m e n t e a d m i t i d o s n a s prestigiosas o r d e n s d o s c a r m e l i t a s e dos franciscanos.

A q u a r t a o t d e m terceira foi a da S a n t í s s i m a T r i n d a d e para a R e d e n ç ã o dos C a t i -


vos, f u n d a d a e m 1 8 0 7 , s e g u n d o o h i s t o r i a d o r b a i a n o B o r g e s d e Barros. Nesse ano, lb
irmãos fizeram sua profissão d c fé c dezesseis deles foram escolhidos para formar a
diretoria i n a u g u r a l . O p r i m e i r o p r i o r foi A g o s t i n h o G o m e s , filho d e um rico c o m e r -
c i a n t e , q u e havia r e c e b i d o as o r d e n s m e n o r e s . I n a d e q u a d a m e n t e c h a m a d o de padre
F r a n c i s c o A g o s t i n h o G o m e s , era u m a das personalidades mais marcantes da e..re
intelectual da B a h i a . A atividade dessa o r d e m fundada para libertar escravos foi. no
BAHÍA. SÉCULO X I X
400

e n t a n t o , m e d í o c r e , c o m o se p o d e ver p e l o p e q u e n o n ú m e r o d e b e n e f i c i a d o s . Mais dc
setenta a n o s d e p o i s , seus m e m b r o s j u s t i f i c a r a m a m u d a n ç a de o b j e t i v o s da ordem,
a l e g a n d o q u e , e m 1 8 7 8 , era i m p o s s í v e l l e v a n t a r f u n d o s s u f i c i e n t e s para comprar a

alforria dos e s c r a v o s . A O r d e m T e r c e i r a da S a n t í s s i m a T r i n d a d e para a R e d e n ç ã o dos


C a t i v o s c o n t i n u o u a c u i d a r de s e u c e m i t é r i o , d c sua c a p e l a e d o asilo q u e havia criado
para seus m e m b r o s .
A s s o c i a ç õ e s religiosas d o t a d a s d e regras e s p e c í f i c a s , essas c o n f r a r i a s exigiam q U e

seus m e m b r o s pagassem d i r e i t o s d e e n t r a d a ( j ó i a s ) e c o n t r i b u i ç õ e s m e n s a i s variáveis,


o f e r e c e n d o a estes, e m c o n t r a p a r t i d a , ao l a d o d e o b j e t i v o s e s p i r i t u a i s , assistência du-
rante a v i d a e n a h o r a d a m o r t e . P e n s õ e s , e n c a r g o d e despesas h o s p i t a l a r e s e digna
c e l e b r a ç ã o dos f u n e r a i s e r a m a l g u n s b e n e f í c i o s p r e v i s t o s . A s s i m , a l é m de considerações
de o r d e m religiosa, pesava o e s p í r i t o d e a j u d a m ú t u a , m u i t o i m p o r t a n t e n u m a cidade
e m q u e as f o r t u n a s se f a z i a m e se d e s f a z i a m n o e s p a ç o de u m a g e r a ç ã o . Ninguém
estava livre d o i n f o r t ú n i o . I n t e g r a r u m a i r m a n d a d e era p r o v a d e p r u d ê n c i a e garantia
de p e r m a n ê n c i a n o m e s m o g r u p o s o c i a l , e m c a s o de e m p o b r e c i m e n t o . As contribui-
ções p o d i a m ser i n v e s t i m e n t o a f u n d o p e r d i d o , m a s s e m p r e r e p r e s e n t a v a m também
u m a espécie de p o u p a n ç a d i a n t e desse f u t u r o i n c e r t o .

Para a Igreja, essas i r m a n d a d e s r e p r e s e n t a v a m , d e u m l a d o , u m a g a r a n t i a de que sua


m e n s a g e m era o u v i d a e, de o u t r o , u m m e i o de e x e r c e r c o n t r o l e s o b r e pessoas cuja fé
n e m s e m p r e era m u i t o a n t i g a . N o final, t o d o s t i n h a m a l u c r a r , i n c l u s i v e o Estado, que
se p o u p a v a p a r c i a l m e n t e de duas o b r i g a ç õ e s : s u s t e n t a r o c u l t o e s o c o r r e r materialmen-
te o s n e c e s s i t a d o s . C o m p r e e n d e - s e e n t ã o q u e tais i n i c i a t i v a s t e n h a m s i d o encorajadas.

D e p o i s d a f a m í l i a e j u n t o c o m ela, d e p o i s d o E s t a d o e suas i n s t i t u i ç õ e s , as irman-


dades e as o r d e n s terceiras d e s e m p e n h a r a m i m p o r t a n t e papel n a c r i a ç ã o e preservação
dos laços sociais q u e u n i a m o s b a i a n o s d o s é c u l o X I X . C o m e f e i t o , se a família, no
s e n t i d o mais a m p l o d o t e r m o , c o n t r i b u í a p a r a as r e l a ç õ e s e n t r e pessoas de camadas
diferentes, t a n t o d o p o n t o de vista s ó c i o - e c o n ô m i c o c o m o j u r í d i c o , as irmandades e
ordens terceiras eram n ú c l e o s e m t o r n o d o s q u a i s t a m b é m se t e c i a m as relações sociais,
c o m o , aliás, o c o r r i a c o m a l g u m a s i n s t i t u i ç õ e s d o E s t a d o . N o s d o i s ú l t i m o s casos, às
relações e n t r e i n d i v í d u o s se s u p e r p u n h a m relações e n t r e g r u p o s , ou camadas sociais,
n u m e s q u e m a h i e r a r q u i z a d o p o r é m s i m p l e s . A o r g a n i z a ç ã o d e g r u p o s — cujos crité-
rios dc v i n c u l a ç ã o eram baseados n a riqueza e n a e s t i m a , n a c o r da pele e no estatuto
legal — servia d c válvula de escape para a t ? n u a r a n t a g o n i s m o s q u e poderiam surgir do
c o n t a t o de c a m a d a s e c o n ô m i c a e j u r i d i c a m e n t e o p o s t a s .
Criadas para conservar a fé c a t ó l i c a e prestar, a seus m e m b r o s , serviços que o
Estado não tinha m e i o s dc g a r a n t i r , as irmandades c as ordens terceiras também eram
manifestações dc um s e n t i m e n t o c o l e t i v o . T i v e r a m êxito verdadeiro c o m o complemen-
tos desse c o n t r o l e d u p l o — exercido pela Igreja e o E s t a d o — pelo m e n o s até os anos
de T 8 7 0 , q u a n d o entraram c m decadência c perderam grande parte dc sua significação
social. O s testamentos deram prova disso: n o início d o século X I X , mais de 8 5 %
população adulta livre dc Salvador pertenciam a, pelo m e n o s , u m a irmandade. Noven-
LIVRO V - A IGREJA
401

ta a n o s m a . s t a r d e , esta p o r c e n t a g e m era d e a p e n a s 1 5 % . A l é m disso, n u m e r o s a s dessas


irmandades acabaram por fundir-se, c o m o , por exemplo, a do Santíssimo Sacramento
e a d e N o s s a S e n h o r a d a C o n c e i ç ã o , n a p a r ó q u i a d a C o n c e i ç ã o d a Praia e m 1 8 6 8
N o i n í c i o d o s é c u l o X I X , a c i d a d e d e S a l v a d o r t i n h a c e r c a de c e m i r m a n d a d e s 'em
p r i n c í p i o e s t r i t a m e n t e d i v i d i d a s e n t r e b r a n c o s , m u l a t o s e n e g r o s . Essa característica se
a t e n u o u u m p o u c o , n a m e d i d a e m q u e a l g u m a s i r m a n d a d e s de b r a n c o s se t o r n a v a m
m a i s c o n c i l i a d o r a s , os m u l a t o s s u b i a m n a e s c a l a s o c i a l e o s negros o b t i n h a m a l f o r r i a . 24

M a s , a p e s a r d e s s e s f a t o r e s , as d i v i s õ e s p e r s i s t i r a m .

H á p o u c o s e s t u d o s s o b r e i r m a n d a d e s n a B a h i a , e s p e c i a l m e n t e as q u e c o n g r e g a v a m
h o m e n s d e c o r , j u s t a m e n t e as m a i s n u m e r o s a s . B a s e a n d o - m e e m t e s t a m e n t o s de alfor-
r i a d o s , p u d e i d e n t i f i c a r m a i s d e t r i n t a , m a s seu papel p e r m a n e c e mal d e f i n i d o . O s
v i a j a n t e s d o s s é c u l o s X V I I I e X I X f i c a r a m i m p r e s s i o n a d o s c o m o zelo e o e n t u s i a s m o
dos n e g r o s e m r e l a ç ã o às m a n i f e s t a ç õ e s e x t e r i o r e s d a r e l i g i ã o c a t ó l i c a , m a s n ã o regis-
t r a r a m i n f o r m a ç õ e s s o b r e o l e g a d o c u l t u r a l a f r i c a n o , q u e se m a n i f e s t a v a na sobrevivên-
cia de c u l t o s a n i m i s t a s . N o e n t a n t o , a t r a v é s d o s t e s t a m e n t o s e d a t r a d i ç ã o oral (ainda
viva h o j e e m d i a ) p u d e d e s c o b r i r g r a d a t i v a m e n t e a i m p o r t â n c i a dessas associações
c o m o centros de conservação da herança africana.

P i e r r e V e r g e r c h a m o u a a t e n ç ã o p a r a o f a t o d e q u e era preciso evitar q u a l q u e r


s i m p l i f i c a ç ã o q u e levasse a c o n s i d e r a r o s n e g r o s — t o d o s os negros — do mesmo
p o n t o d e v i s t a , e s q u e c e n d o q u e e n t r e eles h a v i a m u i t a s e t n i a s . E l e deu o e x e m p l o das
p r i m e i r a s i r m a n d a d e s d o R o s á r i o , q u e r e u n i a a p e n a s n e g r o s de A n g o l a , o u a de N o s s o
Senhor Redentor da Bahia, fundada em 1 7 5 2 , composta unicamente por j e j e s . 2 5
Meu
p r o b l e m a é s a b e r se essas d i s t i n ç õ e s é t n i c a s c o n t i n u a v a m a existir n o século X I X ,
q u a n d o as n o v a s c o n d i ç õ e s i m p o s t a s p e l o t r á f i c o n e g r e i r o t o r n a r a m possível i m p o r t a r
escravos o r i u n d o s d e t o d o s o s m e r c a d o s a f r i c a n o s , m u l t i p l i c a n d o assim etnias e tribos
a t i n g i d a s p e l o t r á f i c o . R u s s e l l - W o o d m o s t r o u c l a r a m e n t e c o m o , n o século X V I I I , o
e x c l u s i v i s m o das i r m a n d a d e s d o R o s á r i o i m p e d i u o s u r g i m e n t o de irmandades mais
a b e r t a s , m a i s a c e s s í v e i s , c o m o a d e S a n t o A n t ô n i o de C a r t a g e r o n e , de 1 6 9 9 , e do
S e n h o r dos M á r t i r e s , d e 1 7 6 4 .
E m m e i o a i r m a n d a d e s reservadas a b r a n c o s e a negros — que mais uma vez
denotavam o exclusivismo, quase a intolerância, desses dois c o m p o n e n t e s raciais extre-
m o s da s o c i e d a d e d e S a l v a d o r — c r i a r a m - s e , p o u c o a p o u c o , irmandades tardias de
m u l a t o s , c o m o a de B o m J e s u s d a C r u z e a de N o s s a S e n h o r a d o B o q u e i r ã o . N o t e - s e
que esta ú l t i m a foi erigida e m o r d e m terceira em 1 8 4 8 , realizando uma passagem que
traduzia duas coisas: o d e s e j o d o s m u l a t o s de se erguerem à altura dos brancos únicos
a d m i t i d o s nas o r d e n s t r a d i c i o n a i s , e u m r e c o n h e c i m e n t o , p o r parte da Igreja, do peso
e da c r e s c e n t e i n t e g r a ç ã o d o s m u l a t o s na sociedade baiana, sempre em transformação.
U m m e s m o i n d i v í d u o podia fazer parte de várias irmandades. Havia c o m o vimos,
aquelas criadas e m f u n ç ã o d a c o r de seus m e m b r o s (e não de seu estatuto iegaJJ e as que
agrupavam pessoas q u e t i n h a m o m e s m o o f í c i o : S a n t o A n t ô n i o da Barra para os nego-
c i a n t e s . S ã o J o r g e para os ferreiros, ferrageiros, serralheiros e caldeireiros, S a o Crispim
402 BAHIA. SÉCULO X I X

para os sapateiros e c u r t i d o r e s . 2 6
T o d a s e n t r a r a m e m d e c a d ê n c i a n o s é c u l o X I X : fun-
dadas p o r b r a n c o s , desejosas de preservar u m a aura e u r o p é i a , n ã o c o n s e g u i r a m admitir
a massa de n e g r o s e m u l a t o s q u e c h e g a v a n o p e q u e n o c o m é r c i o e n o artesanato. Seus
m e m b r o s preferiram deixá-las d e s a p a r e c e r a p r a t i c a r u m a p o l í t i c a de a b e r t u r a .
I n t e r e s s a - m e ressaltar u m a s p e c t o : c o m a l g u m a s e x c e ç õ e s , c o m o a da Misericórdia
e as das o r d e n s terceiras d o C a r m o e de S ã o F r a n c i s c o , esse t i p o de associação quase
n ã o levava e m c o n t a h i e r a r q u i a s s o c i a i s baseadas na f o r t u n a . O u t r o s critérios predomi-
n a v a m , e s p e c i a l m e n t e a c o r e a e t n i a o r i g i n a l , t e s t e m u n h a n d o a forte coesão de tipo
c o r p o r a t i v o q u e c a r a c t e r i z a v a a s o c i e d a d e b a i a n a . O s c o n f l i t o s e n t r e diferentes grupos
raciais e e c o n ô m i c o s e r a m a t e n u a d o s pela c r i a ç ã o d e u m a i d e n t i d a d e social que, do
p o n t o de vista p s i c o l ó g i c o , a j u d a v a a v a l o r i z a r a t é os m a i s c a r e n t e s . N o seio de uma
i r m a n d a d e de m u l a t o s o u de n e g r o s , u m e s c r a v o se s e n t i a igual a u m p e q u e n o comer-
c i a n t e e, se gozasse d o r e s p e i t o de seus i r m ã o s e i r m ã s , p o d i a a s s u m i r as mesmas
r e s p o n s a b i l i d a d e s q u e ele. P o r o u t r o l a d o , n e g r o s e m u l a t o s se s e n t i a m iguais aos
b r a n c o s : t i n h a m a p o s s i b i l i d a d e d e c o n s t r u i r e o r n a m e n t a r suas p r ó p r i a s igrejas e ter
capelães; t e r e n t e r r o s t ã o s u n t u o s o s q u a n t o o s d o s s o c i a l m e n t e s u p e r i o r e s ; exibir-se
c o m b r i l h o e g r a n d e z a nas p r o c i s s õ e s religiosas q u e m a r c a v a m a v i d a da cidade.

D o m i n a d o pelos b r a n c o s , o c o r p o s o c i a l d e u m o s t r a d e m u i t o d i s c e r n i m e n t o ao
p e r m i t i r igualdade de c o n d i ç õ e s para q u e n e g r o s e m u l a t o s , livres, alforriados e escra-
vos c o m p a t i l h a s s e m d a m e s m a e x p e r i ê n c i a . A t r a v é s dessas a s s o c i a ç õ e s , a sociedade
b a i a n a d e m o n s t r o u ser r e l a t i v a m e n t e a b e r t a e p o u c o i n d i v i d u a l i s t a . P r o c u r o u ofere-
cer a t o d o s os seus m e m b r o s a p o s s i b i l i d a d e de a s s u m i r r e s p o n s a b i l i d a d e s e ter inicia-
tivas, i n d e p e n d e n t e m e n t e d o lugar d e c a d a u m na escala s o c i a l . A l é m de seus objetivos
t i p i c a m e n t e religiosos, essas a s s o c i a ç õ e s e r a m l o c a i s e m q u e f l o r e s c i a m solidariedades
q u e possibilitavam, p o r e x e m p l o , a ' r e s s o c i a l i z a ç ã o ' dos n e g r o s e m u m a sociedade
q u e a p a r e n t e m e n t e lhes era h o s t i l . 2 7
Isso o c o r r i a graças a t o d a espécie de ajuda que as
irmandades p r o p i c i a v a m a seus m e m b r o s : facilidades para a alforria, doações de di-
n h e i r o para casar ( e m casos d e m o ç a s s e m d o t e ) e, s o b r e t u d o , certeza de um enterro
d e c e n t e . N ã o m e parece e x a g e r a d o a f i r m a r q u e , d u r a n t e a p r i m e i r a m e t a d e do século
X I X , quase t o d o s os b a i a n o s p e r t e n c i a m a, p e l o m e n o s , u m a i r m a n d a d e . Elas entra-
ram em d e c a d ê n c i a mais t a r d e , p o r v o l t a de m e a d o s d o s é c u l o , q u a n d o os poderes
locais c o m e ç a r a m a se interessar s e r i a m e n t e pelos p r o b l e m a s sociais da cidade, crian-
do suas próprias i n s t i t u i ç õ e s de s o c o r r o , 2 8
e a s s o c i a ç õ e s privadas assumiram encargos
suportados o u t r o r a pelas i r m a n d a d e s . 2 9

C o n g r e g a n d o grupos sociais m u i t o diferentes, ordens terceiras e irmandades man-


tinham c o n t a t o s freqüentes e n t r e si, d u r a n t e as celebrações públicas e as festas religio-
sas que marcavam o a n o civil c litúrgico dos b a i a n o s . Essas antigas tradições não se
perderam, c ainda h o j e os h a b i t a n t e s dc Salvador apreciam as mesmas práticas, com
seus animados cortejos d c festas, procissões c desfiles. N o t e - s e , n o entanto, que a alta
e média burguesia a b a n d o n o u c o m p l e t a m e n t e essas manifestações, deixando inclusive
de financiá-las.
LIVRO V - A IGREJA
403

J o s é d a S i l v a C a m p o s d e s c r e v e u u m a dessas p r o c i s s õ e s t r a d i c i o n a i s , a d o B o m
J e s u s dos M á r t i r e s , c u , a i r m a n d a d e era c o m p o s t a p o r n e g r o s n a s c i d o s n o Brasil. Essa
procissão era c é l e b r e , p e l a r i q u e z a das r o u p a s e das j ó i a s usadas n a o c a s i ã o e pela fita
de seda v e r m e l h a , b o r d a d a d e o u r o , q u e as m u l h e r e s u s a v a m e m t o r n o d o p e s c o ç o para
l e m b r a r o s a n g u e d o s m á r t i r e s . O p r e s i d e n t e d a i r m a n d a d e , m u i t o c i o s o de sua i m p o r -
tância, c o n v i d a v a p e s s o a l m e n t e o p r e s i d e n t e d a P r o v í n c i a para assistir à c e r i m ô n i a ,
t r a t a n d o - o de ' c o l e g a ' . A t r á s d a c r u z d a i r m a n d a d e , o c o r t e j o apresentava quadros
vivos: A d ã o e E v a e x p u l s o s d o P a r a í s o , c o b r i n d o - s c c o m vestes de p e n i t e n t e s , a c o m p a -
nhados d e u m a n j o e x t e r m i n a d o r c o m s u a e s p a d a flamejante. V i n h a , d e p o i s , a 'árvore
do b e m e d o m a l ' , s e g u i d a p o r t o d a s as i r m a n d a d e s f o r m a d a s p o r pessoas de cor,
c a r r e g a n d o r i c o s e s t a n d a r t e s , t r a z i d o s d e suas r e s p e c t i v a s igrejas. P o r ú l t i m o , v i n h a a
estátua de N o s s o S e n h o r B o m J e s u s d o s M á r t i t e s . A l g u m a s i m a g e n s t e o r i c a m e n t e n ã o
p o d i a m sair das i g r e j a s , m a s as p r o i b i ç õ e s das a u t o r i d a d e s eclesiásticas n e m sempre
eram r e s p e i t a d a s . S o b a p l a u s o s , a p r o c i s s ã o se e n r i q u e c i a c o n s t a n t e m e n t e c o m novos
adereços, r e t i r a d o s d e c a d a i g r e j a p o r o n d e passava. A e n o r m e i m a g e m da S a n t í s s i m a
T r i n d a d e , p o r e x e m p l o , era r e c e b i d a e m festa, c a r r e g a d a c o m c u i d a d o através da única
porta e m q u e c a b i a . A p r o c i s s ã o a t r a v e s s a v a t o d a a c i d a d e , a c o m p a n h a d a p o r três
orquestras, t e r m i n a n d o n a i g r e j a d a B a r r o q u i n h a , t o d a i l u m i n a d a e decorada c o m
flores e p e s a d o s v e l u d o s . 3 0

O u t r a p r o c i s s ã o i m p o r t a n t e era o r g a n i z a d a e m 2 1 de s e t e m b r o pela i r m a n d a d e de
B o m J e s u s da C r u z , f u n d a d a p o r u m n e g r o n o s é c u l o X V I I I . C u s t a v a c a r o , m a s era tão
brilhante q u e a t r a í a m u l t i d õ e s , s o b r e t u d o de m u l a t o s , q u e t i n h a m p o r N o s s o S e n h o r
da C r u z u m a d e v o ç ã o t o d a e s p e c i a l . E l e s e s c o l h i a m esse dia para fazer batizados,
c a s a m e n t o s e r e u n i õ e s d e f a m í l i a . E m 1 8 8 0 , Silva C a m p o s descreveu c o m o a "socie-
dade café c o m l e i t e " saía às r u a s , c o m suas m e l h o r e s r o u p a s , para ir à igreja d o
c o n v e n t o d a P a l m a , o n d e a c o n t e c i a m os p r i n c i p a i s festejos do dia. Para dar à sua
procissão u m b r i l h o igual a o das m a i s ricas, os m e m b r o s dessa confraria freqüentemen-
te trabalhavam o a n o i n t e i r o . O p r e s i d e n t e da i r m a n d a d e devia usar, em baixo de uma
tapa de seda escarlate, u m a c a s a c a ( d e p o i s s u b s t i t u í d a p o r um fraque), e luvas de
pelica. E m 1 9 2 5 a l o n g a p r o c i s s ã o d e N o s s o S e n h o r da C r u z saiu pela última vez.

A partir da d é c a d a de 1 8 6 0 , festas religiosas e procissões até então encorajadas pela


Igreja passaram a ser criticadas pela própria Igreja, e m p e n h a d a em 'sanear uma reli-
gião repleta de m a n i f e s t a ç õ e s julgadas 'pagãs'. A r o m a n i z a ç ã o da Igreja brasileira fez os
padres voltarem para a sacristia: o c a t e c i s m o e a rígida observância das regras que
regiam a fé católica tornaram-se i n s t r u m e n t o s de propagação e conservação da fé.
Essa nova o r i e n t a ç ã o foi apoiada pelo g o v e r n o c por parte da opinião pública,
preocupados em que o Brasil apresentasse um aspecto mais c o n f o r m e às imagens que
vinham da E u r o p a . Eis o que escreveu o cditorialista do jornal Diário da Bahia em 12
de janeiro de 1 8 6 0 a respeito da festa d o S e n h o r do B o n f i m , uma das mais populares
de Salvador: " H a v e r á hoje na Igreja d o B o n f i m a lavagem da nave e do adro para as
festas que serão celehradas durante os três domingos a seguir. A bacanal de outrora,
404 BAHIA, SÉCULO X I X

que escandalizava os c o s t u m e s , a m o r a l e a religião, n ã o t o r n a r á a se repetir. Não


verão mais as m u l h e r e s b r a n c a s ou negras vestidas s u m a r i a m e n t e , c o m atitudes i m

pudicas, e m b r i a g a n d o - s e na t a b e r n a d o A d o n i s . N ã o t e r e m o s mais q u e deplorar esse


e x e m p l o de nosso atraso, o f e r e c i d o aos o l h o s de nossos h a b i t a n t e s e aos de estrangei
ros. H á vários anos que o venerável p r e l a d o d a d i o c e s e utilizava a palavra e f j a z a

exortações para desarraigar u m c o s t u m e t ã o b á r b a r o q u a n t o inqualificável. Como


m u i t o s p o d e m i m a g i n a r , a e x t i n ç ã o q u a s e t o t a l dessa l a v a g e m , c a n t a d a em prosa e
verso, n ã o é coisa fácil: é u m a p r o v a p e r f e i t a d e q u e a e d u c a ç ã o d o p o v o melhorou, q U e

os t e m p o s dos p i q u e n i q u e s n o s a d r o s das igrejas, das c a n ç õ e s a o s o m da viola e das


farras do B o n f i m a c a b a r a m p a r a s e m p r e . É u m a p r o v a p e r f e i t a de q u e a nossa civiliza-
ç ã o vem da E u r o p a e n ã o d a c o s t a a f r i c a n a , c o m o d i z i a u m ilustre senador de
P e r n a m b u c o . . . Q u a n d o u m h o m e m d a p o s i ç ã o e q u e t e m as v i r t u d e s de Monsenhor o
C o n d e de S a n t a C r u z [tratava-se de d o m R o m u a l d o A n t ô n i o , arcebispo da Bahia] se
ergue c o n t r a certos a b u s o s , a a u t o r i d a d e civil n ã o deveria n e g a r o seu a p o i o . A lavagem
d a Igreja d o B o n f i m , seja n a nave o u n o a d r o , d e n t r o o u fora d o t e m p l o , c o m seus ares
de bacanal, está m o r r e n d o . Q u a n d o n o i n í c i o , e r a m os p e r e g r i n o s e os penitentes que,
p o r devoção ao S a n t o P a d r o e i r o , i a m lavar a I g r e j a , e n t ã o s i m , era u m a t o de humilda-
de cristã. M a s , r a p i d a m e n t e , a l a v a g e m t o r n o u - s e u m m o t i v o de prazer, q u e teve como
c o n s e q ü ê n c i a s a b e b e d e i r a e a d e v a s s i d ã o ; e n t ã o era p r e c i s o c l a m a r c o n t r a ela para não
t e s t e m u n h a r c o n t r a n ó s , c o n t r a nossa e d u c a ç ã o , c o n t r a n o s s o s p r i n c í p i o s morais."

O editorialista c o n f u n d i a d e s e j o s e r e a l i d a d e . N e s s e m e s m o a n o de 1 8 6 0 , o teste-
m u n h o de M a x i m i l i a n o de H a b s b u r g o , f u t u r o i m p e r a d o r d o M é x i c o , não foi nada
lisonjeiro: depois de c o m p a r a r o c o m p o r t a m e n t o d o " p o v i n h o " , o u seja, negros e
m u l a t o s q u e c e r c a v a m a i g r e j a , c o m o d a q u e l e s q u e c e r c a v a m o t e m p l o de Salomão na
época de C r i s t o , c o n c l u i u : " p a r a u m c a t ó l i c o r e s p e i t o s o , t o d o esse reboliço é blasfe-
m a t o r i o , p o r q u e nessa festa p o p u l a r de n e g r o s m i s t u r a m - s e , além d o que é permitido,
restos de p a g a n i s m o . . . F e s t e j a v a m - s e as ' s a t u r n a i s ' dos n e g r o s " . 3 3
Celebrada até hoje,
essa festa m a n t e v e suas características t ã o c r i t i c a d a s , e m b o r a n o s tempos atuais a
presença de turistas c o n t r i b u a para e m b r a n q u e c e r o " p o v i n h o " e a cerveja tenha subs-
tituído a c a c h a ç a .

As grandes festas resistiram, m a s , p o r volta d o fim d o século X I X , as ordens ter-


ceiras e as irmandades já estavam ultrapassadas. F o r a m substituídas p o r novas associa-
ções, mais representativas d o espírito c a t ó l i c o de e n t ã o e das aspirações da hierarquia.

A PASTORAL E SEUS A G E N T E S

E m b o r a católicos fervorosos, os fiéis ignoravam a d o u t r i n a e os dogmas da I g t ) - c a

C o m o se fossem pagãos, viviam " n o a b a n d o n o dos sacramentos e n o esquecimento *


vida e t e r n a " , 3 4
tema que o c u p o u o c e n t r o das pastorais dos bispos baianos, s e m p re

preocupados c o m a falta de instrução religiosa dos fiéis. Aos olhos da hierarquia, estes
*0* BAHIA, SÉCULO X I X

rosário e as litanias e c a n t a r loas a M a r i a . N o s lugares e m q u e o p a d r e n ã o podia estar


p r e s e n t e , a d e v o ç ã o era l i d e r a d a p o r u m a s e n h o r a m a i s v e l h a , f r e q ü e n t e m e n t e mãe de
família n u m e r o s a e sempre r e c o n h e c i d a por ter hábitos irrepreensíveis.
A d e v o ç ã o a o S a g r a d o C o r a ç ã o d e J e s u s , p r a t i c a d a s o b r e t u d o na primeira sexta-
feira d o m ê s , foi i n t r o d u z i d a na d é c a d a d e 1 8 7 0 pela A s s o c i a ç ã o d o A p o s t o l a d o d
a
O r a ç ã o . G a n h o u a d e p t o s s o b r e t u d o n a s c i d a d e s , p o i s e x i g i a a c e l e b r a ç ã o de u m a missa
e a c o m u n h ã o o u e x p o s i ç ã o d o S a n t í s s i m o d u r a n t e as n o v e p r i m e i r a s sextas-feiras do
a n o . M u i t o s e n t i m e n t a l , essa d e v o ç ã o t i n h a m u i t o s t r a ç o s d a r e l i g i o s i d a d e do próprio
p o v o , e s t i m u l a n d o a q u e t o d o s p e r s e v e r a s s e m n o e s f o r ç o d e fazer j u s ao paraíso.
Essas n o v a s d e v o ç õ e s n ã o a b o l i r a m as a n t i g a s . A o c o n t r á r i o . O S a g r a d o Coração
de J e s u s e o mês de M a r i a s ã o c a d a vez m e n o s l e m b r a d o s , m a s a i n d a h o j e estão vivos
os c u l t o s p r e s t a d o s a S a n t o A n t ô n i o , S ã o J o ã o , S a n t a B á r b a r a o u S ã o G o n ç a l o do Ama-
rante, q u e a p r e s e n t a m a s p e c t o c a d a vez m a i s p r o f a n o , c o m f e s t e j o s nas ruas. A grande
festa d o S e n h o r d o B o n f i m , p o r e x e m p l o , a n u n c i a , e m p l e n o j a n e i r o , a aproximação
do Carnaval!
As a s s o c i a ç õ e s religiosas f u n d a d a s p a r a a p o i a r as n o v a s d e v o ç õ e s e r a m radicalmen-
te d i f e r e n t e s das a n t i g a s c o n f r a r i a s . E m p r i m e i r o l u g a r , e r a m d i r i g i d a s pelos párocos e
criadas para os leigos, n ã o m a i s p o r e l e s . A l é m d i s s o , m u i t a s festas realizadas outrora
por leigos f o r a m s u b s t i t u í d a s p o r festas l i t ú r g i c a s l i g a d a s a essas d e v o ç õ e s mais recen-
tes. P o r e x e m p l o , a festa d a C o r o a ç ã o d a V i r g e m , q u e d e u f a m a à A s s o c i a ç ã o das Filhas
de M a r i a , foi m u i t o e s t i m u l a d a pela h i e r a r q u i a e c l e s i á s t i c a , a o passo q u e outras, como
os bailes pastorais e as festas d o m ê s de j u n h o , f o r a m c o n s i d e r a d a s supersticiosas,
encaradas c o m d e s c o n f i a n ç a e a t é c o m b a t i d a s .
Estas festas j u n i n a s e r a m f r e q ü e n t e m e n t e a b e r t a s c o m a r e c i t a ç ã o , nos lares, de
u m a trezena em i n t e n ç ã o d e S a n t o A n t ô n i o , c u j a i m a g e m p e r m a n e c i a num altar
florido na sala p r i n c i p a l . A s o r a ç õ e s e r a m c o n d u z i d a s pela d o n a da casa, cercada por
seus filhos, agregados, escravos e v i z i n h o s m e n o s f a v o r e c i d o s , q u e n ã o t i n h a m condi-
ções de arcar c o m os c u s t o s de u m a festa p r ó p r i a . P a r a c a d a dia d a trezena havia uni
padroeiro ( u m m e m b r o da f a m í l i a o u u m a m i g o a b a s t a d o ) , q u e fazia o papel de dono
da festa', o f e r e c e n d o c í r i o s , l i c o r de j e n i p a p o , c a n j i c a , p a m o n h a s c broas d c milho para
os c o n v i d a d o s , após a r e c i t a ç ã o . E n t r e 13 c 2 3 de j u n h o , os dias eram consagrados aos
preparativos da festa de S ã o J o ã o , c e l e b r a d a c o m fogueiras nas ruas, c a n t o s e d a n ç a i
a c o m p a n h a d o s de p e t a r d o s , fogos de a r t i f í c i o c, p o r fim, alegres c o m e d o r i a s . As come-
m o r a ç õ e s c o n t i n u a v a m até o dia d c S ã o P e d r o c S ã o P a u l o , cm 2') de j u n h o .
Todas as medidas da h i e r a r q u i a , destinadas a extirpar as c r e n ç a s pagãs dos fiéis c
reformar seus c o s t u m e s , só poderiam ter ê x i t o sc a hierarquia pudesse c o n t a r corn a
c o l a b o r a ç ã o i n c o n d i c i o n a l d o clero c c o m a ajuda d c o u t r o s agentes de sua pastoral-
M a s era m u i t o desigual a eficiência da missão apostólica de u m clero heterogêneo,
5 0 % do qual não haviam f r e q ü e n t a d o s e m i n á r i o , c eram m u i t a s as resistências da
grande massa dos fiéis c t a m b é m dos chefes locais, inquietos c o m as mudanças q l i e

transtornavam as tradições.
LIVRO V - A IGREJA
407

O m o d e l o p r o p o s t o d u r a n t e o p o n t i f i c a d o de Pio I X dividiu o m u n d o em duas


sociedades d i s t i n t a s : a t e m p o r a l (encarregada dos p r o b l e m a s políticos, sociais e e c o n ô -
micos) e a espiritual (encarregada dos p r o b l e m a s religiosos). O r a , se em teoria já era
difícil separar n i t i d a m e n t e esses dois c a m p o s , na prática isto era impossível, sobretudo
no Brasil, p o r todas as razões q u e já apareceram n o s capítulos precedentes. Além disso,
havia m u i t o o p o v o t i n h a se h a b i t u a d o a u m c l e r o c u j o c o m p o r t a m e n t o social e moral
era m u i t o s e m e l h a n t e ao seu. A o afastar os padres d a política, reforçar o celibato,
limitar sua a ç ã o ao altar, a o p ú l p i t o e a o c o n f e s s i o n á r i o e i m p o r c o m o sua tarefa
essencial o e n s i n o da d o u t r i n a cristã e a a d m i n i s t r a ç ã o dos s a c r a m e n t o s , a orientação
da Igreja implicava afastá-los d a q u e l e í n t i m o c o n t a t o c o m os fiéis. M a s , ao m e s m o
tempo, a própria I g r e j a m a n i f e s t a v a sua v o n t a d e de r e f o r m a r os costumes do povo,
lutando c o n t r a a s u p e r s t i ç ã o , a i g n o r â n c i a e o p l u r a l i s m o religioso.

O PADRE E A PASTORAL

Autodidata o u f o r m a d o e m s e m i n á r i o s , a partir da segunda m e t a d e do século X I X


o clero b a i a n o viveu i m e r s o e m u m a r e f o r m a l a r g a m e n t e inspirada pelas determina-
ções do C o n c í l i o de T r e n t o e os r i g o r o s o s p o s i c i o n a m e n t o s da S a n t a S é . Exigiam-se
reforma m o r a l e n o v o s c o m p o r t a m e n t o s dos padres, vigor na missão apostólica, uni-
dade e m t o r n o de u m a l i n h a d o u t r i n á r i a e rigor s o b r e t u d o nas relações entre Igreja,
clero e fiéis.

D i r e t o r espiritual d a c o m u n i d a d e , o padre t i n h a q u e ter u m comportamento


social q u e servisse de m o d e l o aos p a r o q u i a n o s . B o n s c o s t u m e s , uso do h á b i t o e digni-
dade n o e x e r c í c i o das f u n ç õ e s s a c e r d o t a i s e r a m e l e m e n t o s essenciais para dar credibi-
lidade ao e x e r c í c i o de suas f u n ç õ e s , o b j e t i v o m a i o r de todas as reformas. N o exercício
de seu m i n i s t é r i o espiritual, o p a d r e t i n h a o dever de celebrar a missa, administrar os
sacramentos e explicar os s í m b o l o s d a fé e os d o g m a s da Igreja. Essa missão tinha
aspecto d u p l o : a i n s t r u ç ã o religiosa dos fiéis e o c u m p r i m e n t o dos atos litúrgicos e
sacramentais. N o i n í c i o d o século X I X , este ú l t i m o aspecto detinha a preferência de
párocos c fiéis, mas as r e f o r m a s introduzidas em m e a d o s d o século enfatizaram a
importância do p r i m e i r o .
Km 1 8 3 9 , o padre F e i j ó dizia: " E m toda a Província (São Paulo) dificilmente se
encontrará u m padre q u e c u m p r a seus deveres c o m o o r d e n a a Igreja, sobretudo no que
tange à instrução das crianças n o dia d o S e n h o r . " 3 8
A instrução religiosa, ou catequese,
fazia parte das obrigações do p á r o c o desde a época colonial, mas, salvo nas famílias que
dispunham de um c a p e l ã o , era mal observada. A formação religiosa era dada em casa.
As crianças aprendiam c o m suas mães as orações tradicionais, assim c o m o alguns
artigos de fé, mas o padre quase n u n c a examinava os c o n h e c i m e n t o s de seus candida-
tos antes que fizessem a primeira c o m u n h ã o . A religiosidade era muito forte, mas os
c o n h e c i m e n t o s da d o u t r i n a eram precários C mal assimilados. O primeiro livro brasi-
BAHIA, SÉCULO XIX
408

leiro de c a t e c i s m o a p a r e c e u n a é p o c a d a r o m a n i z a ç ã o d a I g r e j a , r e d i g i d o a pedido de
d o m A n t ô n i o F e r r e i r a V i ç o s a , b i s p o r e f o r m a d o r d e M a r i a n a , q u e t i n h a e s t u d a d o com
os o r a t o r i a n o s d e Paris. C o n h e c i d o p e l o n o m e d e Catecismo de Mariana, era composto
de três p a r t e s . A p r i m e i r a c o n t i n h a c e r t o n ú m e r o d e o r a ç õ e s , a p r o p r i a d a s para diferen-
tes o c a s i õ e s ; d e p o i s , s e g u i n d o o c o s t u m e d a é p o c a , a d o u t r i n a e r a a p r e s e n t a d a sob a

f o r m a de p e r g u n t a s e respostas q u e d e v i a m ser d e c o r a d a s ; p o r f i m , u m a p a r t e prática


propunha a aplicação dos ensinamentos a casos da vida cotidiana.
M a i s tarde f o r a m p u b l i c a d o s o u t r o s c a t e c i s m o s . N a B a h i a a d o t o u - s e o preparado
n o M a r a n h ã o p e l o b i s p o d o m M a n u e l J o a q u i m d a S i l v e i r a , q u e viria depois para
S a l v a d o r e se t o r n a r i a a r c e b i s p o e n t r e 1 8 6 1 e 1 8 7 4 . N a s e g u n d a m e t a d e d o século
X I X , q u a s e t o d a s as d i o c e s e s b r a s i l e i r a s p u b l i c a r a m c a t e c i s m o s , q u e s u b s t i t u í r a m o de
M o n t p e l l i e r , de i n s p i r a ç ã o j a n s e n i s t a . D o m L u i z A n t o n i o d o s S a n t o s , b i s p o d o Ceará
e depois a r c e b i s p o d a B a h i a e n t r e 1 8 8 1 e 1 8 9 0 , m a n d o u p u b l i c a r e m 1 8 7 1 u m Breve
resumo das principais verdades da religião. E s s e s l i v r o s e r a m u t i l i z a d o s e m escolas e
liceus p ú b l i c o s e n a q u e l e s f u n d a d o s p e l a d i o c e s e . S ó u m a p a r t e das c r i a n ç a s tinha
acesso a esse e n s i n o r e l i g i o s o , q u e c h e g a v a a p e n a s a o s e s c o l a r i z a d o s . A m a i o r i a das
crianças e os escravos e r a m e x c l u í d o s d e q u a l q u e r i n s t r u ç ã o r e l i g i o s a s i s t e m á t i c a .

A c a t e q u e s e t a m b é m era f e i t a através d e s e r m õ e s p r o f e r i d o s n a s g r a n d e s festas (não


eram d o m i n i c a i s ) . V e r d a d e i r a s p e ç a s l i t e r á r i a s , c o m e s t i l o e m p o l a d o e m u s i c a l , com
hábeis j o g o s de palavras, e r a m a d m i r a d o s p e l o p o v o , n o e n t a n t o i n c a p a z de com-
preender seu c o n t e ú d o . Essas p r e g a ç õ e s n u n c a a b o r d a v a m a v i d a c o t i d i a n a e não
analisavam o c o m p o r t a m e n t o m o r a l d o s fiéis: e r a m p a n e g í r i c o s q u e se l i m i t a v a m , por
exemplo, a apresentar os milagres d o s a n t o d o d i a . 3 9

A ú l t i m a m i s s ã o d o c l e r o s e c u l a r era a e v a n g e l i z a ç ã o d o s p a g ã o s . C o m o n o passa-
d o , tratava-se e s s e n c i a l m e n t e d e o b r a e n t r e g u e às o r d e n s r e l i g i o s a s , s o b r e t u d o n o meio
rural. A ação d o c l e r o s e c u l a r se l i m i t a v a às c i d a d e s e às p l a n t a ç õ e s d e cana-de-açúcar
e de café, p r o c u r a n d o s o b r e t u d o c o n v e r t e r os a f r i c a n o s . A a b o l i ç ã o d o t r á f i c o em 1 8 5 0
l i b e r t o u o clero dessa tarefa, m a s n ã o f o i s u f i c i e n t e p a r a i n d u z i - l o a e n s i n a r a doutrina
a esses pagãos " r e d u z i d o s a o c r i s t i a n i s m o " , c u j a i n s t r u ç ã o religiosa era praticamente
nula. S c a difusão dos d o g m a s e d a d o u t r i n a d a I g r e j a era t ã o d i f í c i l nos centros
u r b a n o s , ela se t o r n a v a p r a t i c a m e n t e i m p o s s í v e l e n t r e a p o p u l a ç ã o dispersa e analfabe-
ta dos m e i o s rurais. D a í o papel d e s e m p e n h a d o pelas m i s s õ e s , c o n f i a d a s a regulares
que vinham socorrer o c l e r o secular.

MISSÕES E PASTORAL

As missões excitavam o fervor p o p u l a r , p r o v o c a n d o n u m e r o s a s 'conversões', impondo


regras para c a s a m e n t o s e r e c o n c i l i a ç õ e s , c o m b a t e n d o as superstições dos fiéis e inciran-
do-os à prática dos s a c r a m e n t o s . 41
O s sermões dos m i s s i o n á r i o s invocavam o amor de
D e u s , a imortalidade da alma, a salvação pela conversão, a existência d o Inferno e o
409

J u í z o F i n a l ; c o n d e n a v a m o s a t o s v i n g a t i v o s e lascivos; q u a s e s e m p r e a úlrim
era c o n s a g r a d a a N o s s a S e n h o r a . s e m p r e , a u l t i m a pregação
M

U m a m i s s ã o d u r a v a d e o i t o a d e z dias. C o m e ç a v a g e r a l m e n t e n u m a sexta-feira ou
n u m s á b a d o à n o i t e , t e r m i n a n d o n o d o m i n g o s e g u i n t e , c o m u m a visita a o c c m i t é r i "
local. 4 2
Q u a n d o a p o p u l a ç ã o v , v , a m u i t o d i s p e r s a , o local de e n c o n t r o era um lugareio
ou u m a alde.a. A o raiar do sol, o missionário s e p u n h a a c a m i n h o da igreja recitando
o r a ç õ e s p a r a a c o r d a r o s fiéis. R e u n i d o s , e l e s e s c u t a v a m a p r e g a ç ã o , t a m b é m c h a m a d
a
c a t e c i s m o o u « n s t r u ç a o , e p a r t i c i p a v a m d a m i s s a , d u r a n t e a q u a l era e n t o a d o o h i n o de
N o s s a S e n h o r a . P e l a m a n h ã , o m i s s i o n á r i o c o n f e s s a v a m u l h e r e s , batizava, celebrava
c a s a m e n t o s e i n s t r u í a c r i a n ç a s . T o d o s esses a t o s , e x c e t o o p r i m e i r o , p o d i a m prosseguir
à tarde. O dia terminava c o m o s e r m ã o p r i n c i p a l , c o n s a g r a d o aos ú l t i m o s fins (a
m o r t e , o j u l g a m e n t o , o i n f e r n o e o p a r a í s o ) e a c o m p a n h a d o p o r t e s t e m u n h o s de
d e v o ç ã o . O s m i s s i o n á r i o s u t i l i z a v a m t o d o s os m e i o s p a r a i m p r e s s i o n a r o p o v o . C h e -
g a v a m , p o r e x e m p l o , a a m e a ç a r j o g a r o c r u c i f i x o n o c h ã o , p i s o t e a n d o - o . D e p o i s do
s e r m ã o e d a a d o r a ç ã o d o S a n t í s s i m o , m u l h e r e s e c r i a n ç a s se r e t i r a v a m para d o r m i r ,
mas os h o m e n s p e r m a n e c i a m f a z e n d o c o n f i s s õ e s a t é 2 1 : 0 0 h o r a s . 4 3

O s u c e s s o d o s m i s s i o n á r i o s e r a d e v i d o e m p a r t e à h a r m o n i a e n t r e os temas q u e
p r e g a v a m e a r e l i g i o s i d a d e d o p o v o , c h e i a d e p e n i t ê n c i a , m o r a l i z a d o r a e providencial.
As p r e g a ç õ e s e s t a v a m d e a c o r d o c o m o s e n t i m e n t o geral: nas missões efetuadas n o
i n t e r i o r d a B a h i a e m 1 8 7 0 , " a m a i o r i a d o s h o m e n s e m u l h e r e s usava coroas de espi-
n h o s e o s h o m e n s c a r r e g a v a m c r u z e s , a l g u m a s de g r a n d e d i m e n s ã o " . 4 4

A c r u z era a p r ó p r i a m a t e r i a l i z a ç ã o d e s s a m í s t i c a m i s s i o n á r i a q u e incitava o povo


a c o l o c a r c a l v á r i o s a o l o n g o das c o m p r i d a s e s t r a d a s q u e p e r c o r r i a . C o m o l e m b r o u
C â n d i d o d a C o s t a S i l v a , " n a s t e o l o g i a s d a r e d e n ç ã o q u e d o m i n a m a pregação e a
c a t e q u e s e d u r a n t e s é c u l o s , a c r u z n ã o r e p r e s e n t a o e v e n t o h i s t ó r i c o da m o r t e de Jesus:
ela é o s í m b o l o d o c u n h o d o l o r o s o d a r e c o n c i l i a ç ã o c o m D e u s " . 4 5
Eis a razão pela qual
a c r u z foi f r e q ü e n t e m e n t e u t i l i z a d a p a r a j u s t i f i c a r o s o f r i m e n t o , servindo às vezes de
p r e t e x t o p a r a c e r t a s f o r m a s d e r e p r e s s ã o . " E s q u e c i d a s d a r e a l i d a d e histórica da ação de
J e s u s e d e sua c o n d e n a ç ã o , as p o p u l a ç õ e s v o l t a m o s o l h o s p a r a seu p r ó p r i o s o f r i m e n t o ,
sua p r ó p r i a m o r t e , o m i t i n d o suas c a u s a s . " A s s i m , a c r u z era usada c o m o argumento
para i m p e d i r a r e v o l t a d o s h o m e n s , t o r n a n d o - s e s í m b o l o d e r e s i g n a ç ã o ou de opressão.
Para ser fiel a o C é u , o h o m e m d e v i a s o f r e r na T e r r a . A vida real era a vida futura, e
t u d o devia ser f e i t o para a l c a n ç a r o P a r a í s o .
As m i s s õ e s e r a m , s e m d ú v i d a , u m dos a c o n t e c i m e n t o s mais i m p o r t a n t e s na vida
das p o p u l a ç õ e s rurais. R e u n i a m o s d o i s aspecros da religiosidade d o p o v o : a expiação
e a festa. O s m i s s i o n á r i o s , e v i d e n t e m e n t e , t e n t a v a m afastar a festa profana, parte
i n t r í n s e c a das c e l e b r a ç õ e s d o c a t o l i c i s m o de a n t e s da r e f o r m a . M a s isso n ã o impedia
q u e o a m b i e n t e das m i s s õ e s fosse festivo. Festa sacra, b e m e n t e n d i d o . E m certa m e -
dida, esse a s p e c t o c o n t r a b a l a n ç a v a o rigor das pregações, q u e insistiam em faiar mais
de u m D e u s severo, j u s t i c e i r o e t o d o - p o d e r o s o do q u e n u m D e u s de a m o r e c o m -
preensão.
BAHIA, SÉCULO X I X
4!0

Estrangeiros, os missionários traziam ao Brasil a imagem de um Deus que prop u

nha o resgate dos pecados pelo sofrimento e pela dor, o que era perfeitamente coerente
com a doutrina da época e bem aceito pelos meios rurais e as camadas populares das
cidades, cuja vida estava imersa em sofrimento. A evangelização desse período era
baseada numa catequese que visava preparar os fiéis para os sacramentos.
Nas cidades, sobretudo em Salvador, o anúncio da Boa Nova também era vivido
como rotina litúrgica: os fiéis eram convidados a ir mais freqüentemente às igrejas para
cumprir seus atos de fé, assistindo à missa dominical e participando da recitação do
rosário ou da adoração do Santíssimo. O ensino da catequese era feito pelos párocos
e seus coadjutores, que se esforçavam por instruir as crianças, a maioria das quais não
freqüentava as escolas, que ofereciam instrução religiosa obrigatória. Assim, a renova-
ção da sociedade por intermédio da escola era muito aleatória. Nas cidades como
Salvador a catequese era permanente, pois o clero estava mais presente e uma parte da
população tinha livre acesso aos livros e periódicos religiosos, inacessíveis aos fiéis do
campo e das aldeias do interior.
Em meados do século XIX, o clero e os fiéis baianos se inspiravam em autores
franceses dos séculos XVII e XVIII. A literatura bem-pensante ocupava lugar de des-
taque nas três livrarias que existiam então em Salvador. O público letrado da capital
podia comprar livros de orações aprovados pelo arcebispo, como, por exemplo, o
Manuel de Doctrine Chrétienne, catecismo adotado nas escolas, impresso na França
mas traduzido para o português. Nessas livrarias encontravam-se, em língua francesa, .
Le prêtre face au siècle e Manifeste au monde politique de l'Eglise romaine, de Madrolle;
os Sermões, de Bossuet; as obras completas, em quinze volumes, de Massillon e a
Histoire abrégée de l'Eglise, de Lhomond. 4 6

As MULHERES E A PASTORAL

Além do a p o i o e s c o l a r , a n o v a o r i e n t a ç ã o d a I g r e j a c o n t a v a c o m o c o n c u r s o das
mulheres, c u j o papel social e r a a n t i g o e r e l e v a n t e . E l a s c o m a n d a v a m instituições reli-
giosas, c o m o escolas para a j u v e n t u d e f e m i n i n a e i n s t i t u i ç õ e s de caridade, c eram
maioria nas novas a s s o c i a ç õ e s religiosas. A l é m d i s s o , d i r i g i a m a vida í n t i m a nos lares.
A Igreja se a p o i o u nelas para d i m i n u i r a i n f l u ê n c i a das antigas confrarias, lideradas por
h o m e n s , infiltradas pela m a ç o n a r i a e a u t ô n o m a s e m relação ao p o d e r eclesiástico. Em
seguida, as m u l h e r e s se t o r n a r a m m a j o r i t á r i a s na c e l e b r a ç ã o das c e r i m ô n i a s litúrgicas
que, para evitar os abusos, eram praticadas cada vez m e n o s à noite. As mulheres
aceitaram m e l h o r a r e f o r m a , q u e , c o m o v i m o s , dava à religião um c u n h o nitidamente
clerical, acentuava o peso da a d m i n i s t r a ç ã o dos s a c r a m e n t o s e entregava aos clérigos o
controle sobre as associações r e l i g i o s a s . Além dessas considerações, parece-me que a
47

larga utilização das m u l h e r e s c o m o i n s t r u m e n t o s da c a t e q u e s e decorreu sobretudo do


importante papel que elas d e s e m p e n h a v a m na família brasileira.
LrvRO V - A IGREJA
41 1

A r e l i g i ã o d o p o v o n ã o se c a r a c t e r i z a v a s ó pela d e v o ç ã o e o i n d i v i d u a l i s m o , m a s
t a m b é m p o r s e u c u n h o e m i n e n t e m e n t e f a m i l i a r . O c a t o l i c i s m o estava p r e s e n t e n o s
batizados das c r i a n ç a s , n o e n s i n o das orações, na primeira c o m u n h ã o . A vivência
religiosa das f a m í l i a s c o m p l e t a v a - s e pela reza c o l e t i v a e a r e c i t a ç ã o d o r o s á r i o novenas
e t r e z e n a s , p o r o c a s i ã o das p r i n c i p a i s f e s t a s a n u a i s o u das festas dos s a n t o s p a d r o e i r o s
da p r ó p r i a f a m í l i a . O O f í c i o d e N o s s a S e n h o r a era r e c i t a d o n o s á b a d o e o O f í c i o das
Almas d o Purgatório nas s e g u n d a s - f e i r a s . 4 8
T o d o s esses a t o s c o l e t i v o s , e m q u e o p a d r e
estava g e r a l m e n t e a u s e n t e , e r a m d i r i g i d o s p o r u m a m u l h e r — m ã e , a v ó , t i a o u p r i m a
L o g o , a I g r e j a t i n h a i n t e r e s s e e m p r o m o v e r a m u l h e r , a c e n t u a n d o seu papel de p r e -
ciosa a u x i l i a r .

A a t i t u d e d a I g r e j a b r a s i l e i r a e m r e l a ç ã o às m u l h e r e s era a igual à d a I g r e j a d o resto


d o m u n d o e d a s s o c i e d a d e s o c i d e n t a i s d a é p o c a . A s o b r i g a ç õ e s i m p o s t a s eram as
m e s m a s t r a n s m i t i d a s p e l o s m a n u a i s d e c o n d u t a m o r a l d o s países c a t ó l i c o s . A m o ç a
devia ser m o d e s t a e m s u a s a ç õ e s , a g i r c o m p r u d ê n c i a e p e r m a n e c e r grave e c o n v e n i e n t e
e m seus g e s t o s e p a l a v r a s . D e v i a g o s t a r d e ficar e m c a s a , a j u d a n d o a m ã e . D e todas as
m a n e i r a s , d e v i a e v i t a r v a i d a d e s n o v e s t u á r i o e n o s a d o r n o s , c o n v e r s a s indiscretas c o m
h o m e n s e d i v e r t i m e n t o s p r o f a n o s . D e v i a , e n f i m , s a i r r a r a m e n t e , e x e r c i t a r a piedade,
ser f r a n c a , leal e a f e t u o s a c o m a m ã e , n ã o t e r s e g r e d o s p a r a c o m ela e ajudar seus j o v e n s
irmãos e i r m ã s através d o b o m e x e m p l o e da e x p l i c a ç ã o da doutrina.

A m u l h e r c a s a d a d e v i a , e m p r i m e i r o l u g a r , a m a r s e u m a r i d o , respeitá-lo c o m o
chefe e o b e d e c e r a suas d e c i s õ e s c o m afetuosa p r o n t i d ã o . Se necessário, podia chamar
sua a t e n ç ã o c o m p r u d ê n c i a e d i s c r i ç ã o , s e m d e i x a r d e s e r v i - l o s o l i c i t a m e n t e . S e ele
estivesse i r r i t a d o , e l a d e v i a c a l a r - s e e t o l e r a r seus d e f e i t o s c o m p a c i ê n c i a e m a n s i d ã o .
S e u c o r a ç ã o e s e u s o l h o s n ã o p o d i a m n u n c a s e r p a r a o u t r o . O s filhos precisavam ser
e d u c a d o s n a fé c a t ó l i c a . A e s p o s a d e v i a , e n f i m , s e r d o c e , p a c i e n t e e c a l m a na relação
com a família, a t e n c i o s a c o m os sogros e b e n e v o l e n t e c o m cunhados e cunhadas.

A v i ú v a d e v i a v i v e r c o m o as m u l h e r e s v i r g e n s , ser v i g i l a n t e c o m as mulheres
casadas e d a r e x e m p l o s v i r t u o s o s a u m a s e o u t r a s , s e n d o a m i g a dos retiros e inimiga
dos d i v e r t i m e n t o s m u n d a n o s . A p l i c a d a n a o r a ç ã o , d e v i a zelar c u i d a d o s a m e n t e pela sua
boa r e p u t a ç ã o , a m a r a m o r t i f i c a ç ã o e t r a b a l h a r p a r a a g l ó r i a d e D e u s . 4 9

E r a m esses o s m o d e l o s d e m u l h e r p r o p o s t o s p o r u m a I g r e j a desassociada do m e i o
cm q u e d e s e n v o l v i a sua a ç ã o . M a s , m e s m o q u e essa a t i t u d e n ã o t e n h a d a d o os frutos
« p c r a d o s , é c e r t o q u e as m u l h e r e s c o n t r i b u í r a m l a r g a m e n t e c o m as reformas deseja-
das pela h i e r a r q u i a c , p r i n c i p a l m e n t e , c o m a p r á t i c a dos s a c r a m e n t o s e das novas
d e v o ç õ e s . R e s t a s a b e r q u a l foi o a l c a n c e desse m o v i m e n t o r e f o r m a d o r q u e , p o r inter-
m é d i o de m i s s õ e s , e s c o l a s , n o v a s a s s o c i a ç õ e s religiosas e de u m clero mais instruído
t e n t o u i m p r i m i r u m a n o v a o r i e n t a ç ã o ao c o m p o r t a m e n t o d o povo de D e u s . N a o 6
fácil e s t a b e l e c e r tal b a l a n ç o . F a l t a m e s t u d o s q u a n t i t a t i v o s , os únicos capazes de p r e c -

sar as q u e s t õ e s . . , , i „ n

N o fim d o s é c u l o p a s s a d o , os fiéis brasileiros p o d i a m ser classificados em duas


categorias principais: os católicos praticantes (aqueles que freqüentavam a Igreja, levando
412 BAHIA, SÉCULO X I X

a sério a prática dos s a c r a m e n t o s e o s e n s i n a m e n t o s d o c l e r o ) e o s t r a d i c i o n a i s (que se


c o n t e n t a v a m c o m os rituais d o b a t i s m o , d o c a s a m e n t o e das missas de s é t i m o dia). Os
p r i m e i r o s eram c o n s i d e r a d o s c a t ó l i c o s de f a t o , e os o u t r o s , de n o m e . I g n o r o em q U e

p r o p o r ç ã o se d i v i d i a m e , s o b r e t u d o , e m q u e m e d i d a as velhas c r e n ç a s e superstições
haviam sido extirpadas — m e s m o e n t r e o s ' p r a t i c a n t e s 9
— graças à n o v a catequese.
T r a t a v a - s e , a f i n a l , de u m a s o c i e d a d e q u e r e c e b e r a diversas h e r a n ç a s culturais e étnicas
c o n s t a n t e m e n t e reelaboradas e s i n t e t i z a d a s . E s s a s í n t e s e n u n c a t e r m i n a d a impunha
regras de c o m p o r t a m e n t o e m q u e a a p a r ê n c i a t i n h a m a i s i m p o r t â n c i a q u e o conteúdo,
pois q u a n t o mais a l g u é m se afastava d o m o d e l o p r o p o s t o p e l a s o c i e d a d e , m e n o s pos-
sibilidade t i n h a de fazer r e c o n h e c e r seus v í n c u l o s s o c i a i s . E s s a f o r m a de assimilação era
c o n d i ç ã o prévia para t o d o t i p o d e ê x i t o . P a r a q u e u m i n d i v í d u o fosse considerado
c i d a d ã o p l e n o de d i r e i t o s , seu c o m p o r t a m e n t o r e l i g i o s o e r a m u i t o i m p o r t a n t e . No
caso dos a f r i c a n o s l i b e r t a d o s , isso era t ã o i m p o r t a n t e q u a n t o os l a ç o s q u e conservavam
c o m seus a n t i g o s s e n h o r e s .

A a c e i t a ç ã o das n o v a s o r i e n t a ç õ e s d a I g r e j a v a r i o u s e g u n d o a c a t e g o r i a social e o
g r u p o é t n i c o . N a s z o n a s rurais, e m q u e a s o c i e d a d e era m e n o s diversificada e a união
dos p o b r e s e d e s e r d a d o s era m a i s f o r t e q u e o a n t a g o n i s m o das raças — aliás, menos
típicas q u e nas c i d a d e s — , h a v i a u n a n i m i d a d e q u a n t o à a ç ã o d o s m i s s i o n á r i o s : os fiéis
se curvavam f a c i l m e n t e a u m a d o u t r i n a q u e c o n s e r v a v a o a s p e c t o c e n t r a l de sua devo-
ção e n ã o e n t r a v a e m c h o q u e c o m s u a p r ó p r i a r e l i g i o s i d a d e , c e n t r a d a n o sofrimento,
na p e n i t ê n c i a e n a espera d e u m a v i d a m e l h o r . N o c o r a ç ã o desses h o m e n s e mulheres
e m b r e n h a d o s n o m a t o , a c o n v e r s ã o s o l i c i t a d a n ã o era u m a n o v a o p ç ã o pelo Evange-
l h o . E r a s o m e n t e u m m e l h o r a p r o f u n d a m e n t o d a f é , através da p r á t i c a mais freqüente
dos s a c r a m e n t o s e d a a s s i m i l a ç ã o d e n o v a s d e v o ç õ e s . L o g o , essa evangelização deixava
a porta a b e r t a para n o v a s s í n t e s e s , f a z e n d o c o e x i s t i r h a r m o n i o s a m e n t e o antigo e o
n o v o . É difícil j u l g a r o grau de c o n v e r s ã o das p o p u l a ç õ e s rurais à d o u t r i n a e às práticas
de u m a Igreja r o m a n i z a d a , s o b r e t u d o se l e v a r m o s e m c o n t a q u e a presença de um
clérigo era e p i s ó d i c a e q u e as m i s s õ e s n ã o se r e p e t i a m c o m f r e q ü ê n c i a .

N a cidade a s i t u a ç ã o era c o m p l e t a m e n t e d i f e r e n t e . A estratificação social e a


diversidade racial eram m a i s claras, c r i a n d o u m a m b i e n t e e m q u e a adesão completa
podia conviver até c o m u m a séria o p o s i ç ã o às novas o r i e n t a ç õ e s d a Igreja. O papel do
clero secular era f u n d a m e n t a l . O s padres e n c a r r e g a d o s das p a r ó q u i a s de Salvador
faziam parte da elite da d i o c e s e . P o r volta d o fim d o s é c u l o , os q u e haviam estudado
nos seminários t i n h a m u m a f o r m a ç ã o t e o l ó g i c a mais sólida, a c e i t a n d o seguir o modelo
r o m a n o depurado das d o u t r i n a s h e t e r o d o x a s . M a s seu a p o s t o l a d o só atingia um nú-
mero limitado de p a r o q u i a n o s , e n t r e o s q u a i s os p o u c o s que p e r t e n c i a m às novas
congregações leigas. B e m e n q u a d r a d o s pelo c l e r o , esses privilegiados tinham acesso a
u m a instrução religiosa c o n t í n u a , assim c o m o à prática dos s a c r a m e n t o s .
Apesar dos esforços da hierarquia para separar o espiritual e o temporal e para
transformar o padre, antes de mais nada, e m diretor de consciências, a ação deste era
obstruída pela submissão à autoridade do E s t a d o . F u n c i o n á r i o , ele precisava manter a
ÜVftQ v _ A I g r e i a
413

o r d e m p u b h c a . C o l o c a d a c m p o s i ç ã o i n t e r m e d i á r i a e n t r e a p o p u l a ç ã o e o poder ,
r e h p a o d e v a ter c o m o o b . c u v o c o n g r e g a r os c i d a d ã o s c fortalecer laços de fiat^naad
e h a r m o m a . dos q u a i s d e p e n d i a , paz social. S e g u n d o o arcebispo d o m M a n u e l J o a q u i m
da Silveira, o d c s t . n o d o p o v o d e p e n d e dos b o n s padres q u e , c o n v e n c i d o s de sua 22
missão, d o m i n a m o s o b s t á c u l o s c fazem d o p ú l p i t o o local c o t i d i a n o de difusão das
verdades e t e r n a s d a r e h g . ã o , c o m b a t e n d o os erros e e x o r t a n d o ã prática das virtudes
d o a m o r ao t r a b a l h o e d o r e s p e i t o de t o d o s os d i r e i t o s c d e v e r e s " . 5 0
Discursos c o
esse m o s t r a m o q u a n t o era d i f í c i l s e p a r a r a ç ã o espiritual e a ç ã o temporal Erauma
situação a m b t g u a . q u e o b r i g a v a a Igreja a pregar u m e v a n g e l h o de resignação e aceitação
A a d e s ã o às r e f o r m a s e r a , c o m o v i m o s , s o b r e t u d o f e m i n i n a . E m Salvador, não
havia e q u i v a l e n t e m a s c u l i n o p a r a as a s s o c i a ç õ e s e i n s t i t u t o s f u n d a d o s na segunda
metade d o s é c u l o X I X . A S o c i e d a d e das D a m a s de C a r i d a d e reunia mulheres de
c a m a d a s elevadas d a s o c i e d a d e l o c a l , já q u e seus m e m b r o s eram recrutados entre ricos
proprietários d e t e r r a , g r a n d e s c o m e r c i a n t e s , p r o f i s s i o n a i s liberais e altos funcionários.
Essas m u l h e r e s e r a m p r e c i o s a s a u x i l i a r e s das I r m ã s de S ã o V i c e n t e de Paula, que
dirigiam a m a i o r p a r t e das o b r a s c a r i d o s a s f e m i n i n a s da c i d a d e . N o â m b i t o da paró-
quia, elas c o l a b o r a v a m t a m b é m c o m o c l e r o s e c u l a r , d o qual r e c e b i a m catecismo e
instrução r e l i g i o s a , p a r t i c i p a n d o das c e l e b r a ç õ e s l i t ú r g i c a s e dos atos de devoção. M a s
sua p r e s e n ç a e a i n f l u ê n c i a s o b r e as o u t r a s m u l h e r e s se l i m i t a v a m s o b r e t u d o às paró-
quias d o C e n t r o d a c i d a d e ( S ã o P e d r o , S a n t a n a e C o n c e i ç ã o da Praia). Era impensável
que elas s o c o r r e s s e m p e s s o a s nas p a r ó q u i a s m a i s afastadas e mais populares.

Q u a n t a s e r a m essas m u l h e r e s ? D u r a n t e a c é l e b r e Q u e s t ã o dos Bispos, 2 . 0 5 1 delas


— "damas d e alta p o s i ç ã o e das m a i s d i s t i n t a s " — assinaram a representação enviada
à i m p e r a t r i z T e r e s a C r i s t i n a e m f a v o r dos b i s p o s c o n d e n a d o s . N u m a população femi-
nina livre de 4 5 . 1 1 8 pessoas ( s e g u n d o o r e c e n s e a m e n t o de 1 8 7 2 ) , esse número repre-
sentava 4 , 5 % . É i m p o s s í v e l s a b e r se as m u l h e r e s c a t ó l i c a s da B a h i a chegaram a ultra-
passar esse p e r c e n t u a l . M a s , s e m d ú v i d a , as q u e assinaram na c o n d i ç ã o de 'católicas
seguiam as n o v a s o r i e n t a ç õ e s da I g r e j a e t i n h a m u m a p o s i ç ã o social que lhes permitia
exercer g r a n d e i n f l u ê n c i a . R e s t a r i a saber se essa adesão era c o n s c i e n t e e sincera.
A A s s o c i a ç ã o C a t ó l i c a estava c m m ã o s m a s c u l i n a s . Seus m e m b r o s fizeram um
manifesto s e m e l h a n t e ao das d a m a s , mas c o l h e r a m apenas 7 1 assinaturas ( 0 , 1 % da
população m a s c u l i n a livre da c i d a d e , ainda s e g u n d o o r e c e n s e a m e n t o de 1 8 7 2 ) , o
que mostra a p e q u e n a i n f l u e n c i a da Igreja e n t r e os h o m e n s da alta sociedade Para
eles, religião era 'coisa de m u l h e r ' . Além disso, era m u i t o forte a atração exercida por
outras c o r r e n t e s de p e n s a m e n t o «pie estavam na m o d a . Havia, aliás, a conv.cçao de
que a europeização d o Brasil passava pela adesão da elite aos princípios e condutas
propostos por essas novas filosofias. As lojas maçónicas t a m b é m desempenhavam
importante papel, e os h o m e n s c o n t r o l a v a m confrarias religiosas cuja direção era
cobiçada pela Igreja hierárquica. Nesses meios, as posições variavam da '"diferença,
que se exprimia por atitudes c o n v e n c i o n a i s e pela tolerância, à m a , ^ n « o p c « ,
çao, c o m o a exercida por Rui Barbosa. E m 1 8 7 1 . o editor da Chronua R*p~ -
- ^ BAHIA, SÉCULO XIX

queixava dessas elites: "Se o dinheiro sempre afastou Deus do coração do rico, hoje é
o Poder que causa essa ruptura. O rico, o alto funcionário, o Poderoso têm vergonha
de ir à Igreja c a desdenham."
O catolicismo oficial era uma religião elitista e dirigida a uma maioria feminina.
As reformas realizadas pela Igreja penetraram pouco nas camadas populares. A grande
maioria do povo continuou entregue a si própria, vivenciando uma religião em que a
prática das devoções sobrepujava a dos sacramentos. Talvez a maioria do "povo sim-
ples" _ segundo a expressão de frei Hugo F r a g o s o 52
— ainda estivesse enquadrada
pelas antigas irmandades. Vimos que estas haviam mudado de figura, perdendo grande
parte de sua função social como associações de ajuda mútua e passando a ser dirigidas
pelo clero paroquial. Mas, ainda uma vez, é difícil avaliar o apostolado desse clero nos
meios populares. Acrescento, para terminar, que a grande massa nunca ficou indife-
rente e que sua fé na Igreja permaneceu viva, mesmo que nem sempre compreendesse
o sentido das novas orientações e o afastamento de um clero que, outrora, compara-
lhava de forma mais próxima suas alegrias e agruras cotidianas.
CAPÍTULO 23

TEMPLOS, MESQUITAS ETERREIROS:


RELIGIÕES CONCORRENTES?

A atitude religiosa do povo apresentava uma aparente unanimidade. Mas, dentro dela,
afirmava-se uma tendência à diferença, relacionada sobretudo com os cultos afro-
brasiieiros que sempre foram praticados pelas comunidades negras. A novidade era a
possibilidade de fazer celebrações públicas dessas práticas outrora dissimuladas (no
passado, até irmandades religiosas serviam de lugar de encontro para os adeptos dos
cultos). Essa tendência à diferença se afirmou claramente em 1835, quando negros
alforriados e escravos — todos muçulmanos — participaram, em Salvador, da Revolta
dos Males. Na segunda parte do século X I X , também os protestantes começaram a
angariar adeptos. Que influência essas outras práticas religiosas exerceram? Consegui-
ram quebrar o monopólio da Igreja Católica? Em que camadas sociais eram recrutados
seus seguidores?
O artigo 5 da Constituição de 1824 garantia liberdade de culto aos cidadãos
brasileiros. Ninguém podia ser perseguido por razões religiosas. Mas havia restrições,
como a exigência de respeito ao Estado c à moral pública, prevista no artigo 179, que
ensejavam todo tipo de intervenção c repressão. A lei não indicava claramente o que
entendia por "respeito ao Estado" e "ofensa à moral pública", deixando a interpretação
ao julgamento subjetivo da administração policial.
A Igreja Católica parece ter tolerado melhor os cultos afro-brasileiros que a pene-
tração do protestantismo. Ela entendia os primeiros como expressão lúdica, c não
propriamente religiosa, dc um conjunto de superstições c de magias próprias às socie-
dades primitivas. Dotada dc longa prática dc conversão dc pagãos, a Igreja se sentia
perfeitamente capaz dc levar a cabo a missão dc extirpar essas falsas crenças dos negros,
teoricamente cristãos e católicos. Só depois da Abolição da escravidão cia passou a
considerar perigosos os cultos animistas, que angariaram numerosos adeptos <nm a
população pobre, agora completamente misturada com ex-escravos.

415
BAHIA, Século X I X

N o i n í c i o , a I g r e j a C a t ó l i c a sc m o s t r o u i g u a l m e n t e t o l e r a n t e c o m o protestantis-
m o , n u m a p o s t u r a t í p i c a d e q u e m n u n c a t i v e r a q u e se d e f e n d e r d o a t a q u e de outras
religiões r e c o n h e c i d a s . M a s , q u a n d o as igrejas p r o t e s t a n t e s sc e s t a b e l e c e r a m de fato n o

Brasil — a partir da s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o X I X — , a h i e r a r q u i a c a t ó l i c a endureceu


sua p o s i ç ã o , q u e g a n h o u ares de h o s t i l i d a d e . C o n t r a r i a m e n t e a o s c u l t o s afro-brasilei-
r o s , o p r o t e s t a n t i s m o o f e r e c i a à p o p u l a ç ã o o u t r o c a m i n h o de s a l v a ç ã o cristã, com
d o u t r i n a e p r á t i c a a t r a e n t e s . A l é m d i s s o , q u a n d o n e c e s s á r i o , e r a fácil ' p r o v a r que os
1

a d e p t o s d o s c u l t o s a f r o - b r a s i l e i r o s o f e n d i a m a m o r a l p ú b l i c a , m a s o m e s m o n ã o acon-
tecia c m r e l a ç ã o aos p r o t e s t a n t e s .
E n t r e o p r o t e s t a n t i s m o c o s c u l t o s a f r o - b r a s i l e i r o s h a v i a u m a d i f e r e n ç a fundamen-
tal: n o p r i m e i r o c a s o , a c o n v e r s ã o à n o v a té e x i g i a o a b a n d o n o de c r e n ç a s e práticas
a n t i g a s , e n q u a n t o n o s e g u n d o , n ã o . ^ A p e s s o a p o d i a m a n t e r - s e l i g a d a a o catolicismo,
inclusive r e c e b e n d o o s s a c r a m e n t o s ( b a t i s m o , p r i m e i r a c o m u n h ã o e e n t e r r o ) , expres-
são m a i o r d a v i n c u l a ç ã o à I g r e j a . Essas d i f e r e n ç a s r e s u l t a v a m d e e s c o l h a s estratégicas,
c o n d i c i o n a d a s p o r d o i s f a t o r e s : a o r i g e m e l u g a r d e c a d a u m a dessas d u a s religiões e os
g r u p o s sociais e m q u e se d e s e n v o l v e r a m .

O p r o t e s t a n t i s m o e r a u m a r e l i g i ã o c r i s t ã , d e b r a n c o s , d o m i n a n t e e m países da
E u r o p a e d a A m é r i c a d o N o r t e , o n d e dera p r o v a s d e d i n a m i s m o c de resistência.
T i n h a , pois, tanto prestígio q u a n t o o c a t o l i c i s m o . O m i s s i o n á r i o p r o t e s t a n t e que
vinha a t u a r n o Brasil r e p r e s e n t a v a a m e s m a c i v i l i z a ç ã o j u d a i c o - c r i s t ã d o missionário
c a p u c h i n h o o u lazarista e p r o p u n h a u m m o d e l o d c fé c d e vida c o m obrigações
e q u i v a l e n t e s às d o c a t o l i c i s m o . O s c u l t o s a f r o - b r a s i l e i r o s , ao c o n t r á r i o , eram conside-
rados fetichistas, p a g ã o s , d i r i g i d o s p o r e s c r a v o s , c x - e s c r a v o s o u seus descendentes.
O r i u n d o s d c terras l o n g í n q u a s e ' s e l v a g e n s ' , seu p r e s t í g i o derivava m u i t o mais de
práticas m á g i c a s , ligadas às s o l u ç õ e s d c p r o b l e m a s da vida, d o q u e de u m m o d e l o de fé.
D o i s e l e m e n t o s — u m espacial c u m t e m p o r a l — c o n d i c i o n a r a m o desenvolvi-
m e n t o d o s c u l t o s a f r o - b r a s i l e i r o s . N a s c i d a d e s , o s escravos e s t a v a m m a i s distantes da
Igreja d o q u e n o c a m p o , o n d e o s e n h o r fiscalizava para q u e t o d o s c u m p r i s s e m os
deveres religiosos, p a r t i c i p a s s e m das c e l e b r a ç õ e s c tivessem u m a sepultura cristã. Por
o u t r o lado, o c o n t r o l e q u e a Igreja e x e r c i a s o b r e os escravos d i m i n u i u sensivelmente,
a c o m p a n h a n d o a gradual e x t i n ç ã o das i r m a n d a d e s . E s c r a v o s c alforriados tiveram,
e n t ã o , possibilidade dc voltar à religião d c seus a n t e p a s s a d o s . Esta t e n d ê n c i a aeentUOU-
sc ainda rnais c o m a A b o l i ç ã o da escravatura c a separação e n t r e Igreja c Estado.
N o Brasil, religiões africanas e p r o t e s t a n t i s m o se desenvolveram e m áreas dife-
rentes: as primeira?, sc p r o p a g a r a m s o b r e t u d o nas cidades c m q u e havia predomínio
da população negra; o s e g u n d o estabeleceu suas primeiras igrejas nos campos do
Sul do país. M a s a m b a s as religiões recrutavam seus m e m b r o s n o m e s m o meio so-
cial, c o n s t i t u í d o dc gente p o b r e . N o caso d o c a n d o m b l é , parece natural a adesão dc
escravos, alforriados c pessoas q u e exerciam ofícios h u m i l d e s c precários, vivendo
quase c o m o indigentes, mas c h e i o s d c espírito dc i n d e p e n d ê n c i a (isso não impedia
que os chefes espirituais das casas dc c a n d o m b l é administrassem pequenas fortunas.
LIVRO V - A IGREJA
41-

c o n s t i t u í d a s p e l a , c o n t r i b u i ç õ e s d o s p a r t i c i p a n t e s e p e l o d i n h e i r o dos q u e p e d i a m
serviços d e magia).- H pcaiam
u c

Mas esse ripo de recrutamento soa paradoxal no caso de uma religião em oue a
lemira e o comentário da Bíblia desempenham papel essencial e o discurso é mu to
mais importante que o gesto.* Quem era o homem do campo adepto do protestante
mor Era posseiro ou sitiante numa pequena propriedade cedida pelo antigo dono ou
era trabalhador rural também dotado de espírito independente.* Essas comunidades
agrícolas se caracterizavam pela proximidade espacial dos seus integrantes e pelo espí
rito de auxílio mútuo, que se manifestava em mutirões (como, por exemplo para a
construção de caminhos vicinais). Os laços estabelecidos por esse trabalho comunitá-
6

rio eram fortalecidos por laços de parentesco, permeados por uma mestiçagem sobre-
tudo entre branco e índio, e pela participação em celebrações religiosas e profanas.

O PROTESTANTISMO NA BAHIA

A m e n s a g e m p r o t e s t a n t e d e s a l v a ç ã o d i r i g i a - s e a p e s s o a s c a t ó l i c a s , j u r i d i c a m e n t e livres,
que g e r a l m e n t e v i v i a m n o c a m p o e n ã o e r a m instruídas na doutrina, limitação que não
p o d i a ser s u p e r a d a p e l a s p r e g a ç õ e s d o s m i s s i o n á r i o s . O s h a b i t a n t e s d o i n t e r i o r viviam
e m í n t i m a r e l a ç ã o c o m o s s a n t o s d e s u a d e v o ç ã o , e x p e r i m e n t a n d o u m a religião difusa,
n ã o s i s t e m a t i z a d a e, p o r t a n t o , m u i t o v u l n e r á v e l . A a u s ê n c i a de sacerdotes fazia c o m
q u e l e i g o s a s s u m i s s e m a d i r e ç ã o d a s p r á t i c a s religiosas c o m u n i t á r i a s .

O c u n h o m í s t i c o e m e s s i â n i c o d a r e l i g i o s i d a d e p o p u l a r incitava os h o m e n s a
p r o c u r a r u m a e s p i r i t u a l i d a d e m a i s a u t ê n t i c a , q u e n ã o p o d i a m e n c o n t r a r na religião
o f i c i a l . E m p á g i n a s q u e se t o r n a r a m c é l e b r e s , E m i l e L e o n a r d c o m p a r o u as c o n d i ç õ e s
7

e x i s t e n t e s n o B r a s i l e m m e a d o s d o s é c u l o X I X às d a E u r o p a d o s é c u l o X V I , explican-
d o o a p a r e c i m e n t o d o p r o t e s t a n t i s m o n o c o n t e x t o d e u m d e s e j o de a u t o n o m i a das
igrejas n a c i o n a i s , d e f a l t a d e p r e s t í g i o d o c l e r o c a t ó l i c o , de e s g o t a m e n t o da Igreja
R o m a n a c o m o i n s t i t u i ç ã o , d a p r o l i f e r a ç ã o d e d e v o ç õ e s populares e de um certo inte-
resse pela l e i t u r a d a B í b l i a . 8
É e v i d e n t e q u e essas c o n d i ç õ e s existiam e se aplicavam
ao c o n j u n t o da p o p u l a ç ã o c a t ó l i c a . M a s n ã o e x p l i c a m a g r a n d e receptividade ao pro-
t e s t a n t i s m o , d e m o n s t r a d a p o r u m m u n d o rural q u e , n o s é c u l o X I X , SC mostrou pronto
para a c o l h e r essa n o v a m e n s a g e m . A n t e s , h o u v e r a tentativas frustradas, c o m os pro-
testantes franceses d c V i l l c g a i g n o n (século X V I ) c os holandeses de Maurício de Nassau
(século X V I I ) .
N o s é c u l o X I X , o s p r i m e i r o s a c h e g a r f o r a m os metodistas americanos, que D e -
c o r r e r a m o país d i s t r i b u i n d o B í b l i a s , a t i t u d e até e n t ã o inédita. M a s esta confissão, q
mais t a r d e viria a d e s e m p e n h a r i m p o r t a n t e papel, só se estabeleceu de maneira pe
n e n t e a partir de 1 8 7 6 . O s c o n g r e g a c i o n i s t a s chegaram em 1 8 5 5 , vindos da I ha da
M a d e i r a , de o n d e haviam s i d o expulsos. T i n h a m a vantagem d e f a l a r p o r t u g * . m a s
sua a ç ã o direta foi p o u c o expressiva, resultando na fundação de duas igrejas, uma
BAHIV. Secuto XIX

P e t r ó p o l i s ( R J ) c o u t r a c m P e r n a m b u c o . E m c o m p e n s a ç ã o , sua Coletânea de <¿{ m

hinos da religião reformada foi m u i t o utilizada pelas o u t r a s c o n f i s s õ e s protestantes o'


b a t i s t a s se i n s t a l a r a m c m S a n t a B á r b a r a ( S P ) e m 1 8 7 1 e, dez a n o s d e p o i s , na Bah"
o n d e a p r i m e i r a igreja dessa c o r r e n t e foi f u n d a d a p e l o p a s t o r R i c h a r d R a t c l i f f c o m
colaboração de u m antigo padre, A n t ô n i o T e i x e i r a . Os e p i s c o p a l i a n o s chegaram cm
P o r r o Alegre c m I S S ) . a n o d a P r o c l a m a ç ã o d a R e p ú b l i c a / '
1

E n t r e as diversas c o n f i s s õ e s p r o t e s t a n t e s q u e t e n t a r a m e s t a b c l c c c r - s c n o Brasil
o b t i v e r a m m a i o r s u c e s s o o s p r e s b i t e r i a n o s , o r i u n d o s d o s E s t a d o s U n i d o s . E m 1859
e s t a b c l c c c r a m - s e n o R i o d e J a n e i r o e, c m s e g u i d a , e m S ã o P a u l o , d e o n d e foram para
B r o t a s e C a m p i n a s , n o i n t e r i o r . E n t r e 1 8 5 0 e 1 8 5 9 , f u n d a r a m c e r c a de cinqüenta
igrejas, q u a t r o p r e s b i t é r i o s , u m s e m i n á r i o , d o i s c o l é g i o s e n u m e r o s o s jornais. Em
1 8 7 3 * d o i s deles f o r a m e n v i a d o s a R e c i f e , s e m p r e s e g u i n d o u m a estratégia inteligente,
q u e se a d a p t a v a p e r f e i t a m e n t e à r e a l i d a d e s ó c i o - e c o n ò m i c a d o país. N u m primeiro
m o v i m e n t o , a p r i m a z i a d e sua a ç ã o c a b i a a o i n t e r i o r , o n d e o c u p a v a m o e s p a ç o deixado
livre pela I g r e j a C a t ó l i c a . E r a m p e q u e n a s as p o s s i b i l i d a d e s de u m p r o s e l i t i s m o eficaz
nas c i d a d e s , o n d e o c a t o l i c i s m o o f i c i a l estava s o l i d a m e n t e e s t a b e l e c i d o e, nas camadas
mais abastadas e c u l t a s , n ã o h a v i a h o m e n s d i s p o n í v e i s para a c o n v e r s ã o — embora
houvesse s i m p a t i z a n t e s , c o m o T a v a r e s B a s t o s c R u i B a r b o s a .
Assim q u e c h e g a v a m , o s p r e s b i t e r i a n o s f o r m a v a m p a s t o r e s brasileiros, entre os
quais alguns a n t i g o s p a d r e s , c o m o J o s é M a n o e l d a C o n c e i ç ã o , q u e a b a n d o n o u as
ordens em 1864 para c o n v e r t e r - s e a o p r o t e s t a n t i s m o . S u a h i s t ó r i a é interessante.
S e g u n d o seu p r ó p r i o t e s t e m u n h o , a o s d e z e s s e t e a n o s leu a B í b l i a e c o m e ç o u a ter as
p r i m e i r a s d ú v i d a s s o b r e o c a t o l i c i s m o . E m s e g u i d a , t e v e c o n t a t o s c o m engenheiros e
t é c n i c o s ingleses, d i n a m a r q u e s e s e a l e m ã e s q u e t r a b a l h a v a m na f u n d i ç ã o de ferro de
I p a n e m a , p e r t o de S o r o c a b a , e q u e o i n i c i a r a m na t e o l o g i a p r o t e s t a n t e . M e s m o assim,
e n t r o u n o s e m i n á r i o , r e c e b e u as o r d e n s e foi e n v i a d o para o i n t e r i o r . E m Brotas, seu
ú l t i m o p o s t o , e n s i n a v a a seus p a r o q u i a n o s q u e a B í b l i a era a palavra de D e u s , que as
i m a g e n s dos s a n t o s n ã o e r a m sagradas e q u e p o d i a m c o n f e s s a r - s e d i r e t a m e n t e a Deus,
sem i n t e r m e d i a ç ã o , o q u e l h e v a l e u o a p e l i d o de " p a d r e p r o t e s t a n t e " . Convertido c
batizado (sic\)> foi f e i t o p a s t o r , n o R i o , p e l o r e v e r e n d o A . L . B l a c k f o r d , voltando cm
seguida à a n t i g a p a r ó q u i a d c B r o t a s , o n d e c o n t i n u o u seu m i n i s t é r i o . H o m e m de
caráter s o m b r i o , viveu c o m r e m o r s o d c haver s i d o padre, ter idolatrado a hóstia e a.
i m a g e n s d o s santos c ter i n d u z i d o seus p a r o q u i a n o s a erro. Passou o resto da vida
p e r c o r r e n d o as paroquiai o n d e havia sido vigário, e v a n g e l i z a n d o c t e n t a n d o converter
suas antigas o v e l h a s . 1 0

A instalação d c m i s s i o n á r i o s p r o t e s t a n t e s era g e r a l m e n t e seguida pela fundação


escolas ligadas a esses c u l t o s . Alfabetizar a p o p u l a ç ã o — p r i n c i p a l m e n t e no campo -
era torná-la capaz de c o n v c r t c r - s c . C) pastor se transformava c m professor prim.
papel t a m b é m d e s e m p e n h a d o por outras pessoas da c o m u n i d a d e , especialmente mu
íhercs. 11
M u i t a s educadoras americanas c h e g a r a m nas três últimas décadas do sécul i
introduzindo novos m é t o d o s pedagógicos c o m o , por e x e m p l o , a leitura silencios
LIVRO V - A IGREJA
419

n s . s n a . s e s o b r e t u d o n a l e i t u r a e c o m e n t á r i o da B í b l i a , n a s i g n i f i c a ç ã o dos D e z M a n
damentos e n o c a n t o d e h . n o s e c â n t i c o s . M a i s tarde, nos colégios fundados em São
P a u l o , c o m o o M a c k e n z i e , c a d a vez m a i s f r e q ü e n t a d o p e l o s filhos da burguesia oZ
s o u - s c a e n s i n a r l i t e r a t u r a , c i ê n c i a s , p o e s i a ( e m p o r t u g u ê s , f r a n c ê s e inglês) música e
g i n á s t i c a . E m o p o s i ç ã o a o e n s i n o c a t ó l i c o , c e n t r a d o n o l a t i m e n a h i s t ó r i a sagrada
f a z i a m - s e t r a b a l h o s m a n u a i s , c o n s i d e r a d o s n e c e s s á r i o s p a r a a f o r m a ç ã o de jovens d i s '
c i p h n a d o s , e n é r g i c o s , r e s p o n s á v e i s e a m a n t e s d a o r d e m . A e d u c a ç ã o p r o p o s t a por esses
c o l é g i o s à b u r g u e s i a d a s c i d a d e s r e p r o d u z i a , e m c e r t a m e d i d a , o s m o d e l o s da ideologia
norte-americana, baseada e m individualismo, liberalismo e pragmatismo. 1 2
N o cam-
p o , a i n s t r u ç ã o p e r m a n e c i a e l e m e n t a r e m e n o s s o f i s t i c a d a , m a s n ã o deixava de trans-
m i t i r a l g u m s a b e r às p o p u l a ç õ e s a t i n g i d a s .

O e s f o r ç o n ã o e r a d e s i n t e r e s s a d o . O p r o t e s t a n t i s m o é u m c u l t o de alfabetizados e
só p o d e s e r c o n d u z i d o d e m a n e i r a e f i c i e n t e se o s fiéis f o r e m capazes de p a r t i c i p a r das
leituras s a g r a d a s , c o m p r e e n d e n d o o s c o m e n t á r i o s f e i t o s s o b r e a palavra divina e c a n -
t a n d o h i n o s . O s n o v o s c a m i n h o s d e s a l v a ç ã o d e p e n d i a m de u m m í n i m o de c o n h e c i -
m e n t o s , n o p l a n o h u m a n o e d o u t r i n a l . T r a t a - s e , a d e m a i s , de u m a religião e x t r e m a -
m e n t e i n d i v i d u a l i s t a , j á q u e o l i v r e e x a m e d e c o n s c i ê n c i a e x i g e q u e o c r e n t e tenha
acesso d i r e t o a o t e x t o s a g r a d o . E s s a r e l a ç ã o d i r e t a c o m a palavra de D e u s , s e m passar
por u m i n t e r m e d i á r i o — o pastor só está presente para ajudar a compreender e não
para se i m p o r c o m o d e p o s i t á r i o d a ú n i c a v e r d a d e — , e x e r c e u g r a n d e atração sobre
u m a p o p u l a ç ã o a c o s t u m a d a a m a n t e r r e l a ç õ e s í n t i m a s e i n d i v i d u a i s c o m o sagrado.

P o r o u t r o l a d o , a m e n s a g e m p r o t e s t a n t e d á ê n f a s e à l i b e r d a d e individual (somos
livres p a r a a c e i t a r o u r e c u s a r a s a l v a ç ã o ) e faz u m a p r e g a ç ã o igualitária, j á q u e todos os
h o m e n s s ã o i g u a i s n o q u e d i z r e s p e i t o à u n i v e r s a l i d a d e d o p e c a d o . L i b e r d a d e individual
e igualdade e r a m f a t o r e s q u e c o n c o r d a v a m p e r f e i t a m e n t e c o m o espírito i n d e p e n d e n t e
desse p o v o , a q u e m se e n s i n a r a q u e a-salvação era o b t i d a pela feitura de obras piedosas
(e n ã o pela fé e pela g r a ç a ) e q u e d e p e n d i a d a m e d i a ç ã o da Igreja (e n ã o de u m a decisão
i n d i v i d u a l ) . O c a t o l i c i s m o a p r e s e n t a v a o m u n d o c o m o o reino d o mal, o que exigia
s o f r i m e n t o d o s h o m e n s q u e q u e r i a m c h e g a r à T e r r a P r o m e t i d a . E m oposição a essa visão
m a n i q u e í s t a , o p r o t e s t a n t i s m o p r o p u n h a o u t r a i m a g e m : na o r i g e m , o mal não existia e
o m u n d o era b o m . D e p o i s , esse m e s m o m u n d o se t o r n o u d e s o r d e n a d o , mas vai voltar
a ser b o m . T r ê s é p o c a s , a ú l t i m a das q u a i s c o l o c a d a fora d o t e m p o e da historia.
" O m u n d o p r o t e s t a n t e é u m m u n d o d u a l , mas i g u a l m e n t e um t e m p o dual: tempo
sacro e t e m p o p r o f a n o . O fiel vive sua fé e m atos q u e se realizam n o t e m p o e suas
devoções n ã o e s t ã o ligadas ao e s p a ç o : q u a l q u e r lugar é adequado c sagxado_ ara suas P

devoções pessoais o u c o l e t i v a s . N e g a n d o o valor dos atos e d * t é t i c a in ^ ^ ^ ^


e a ética p r o t e s t a n t e s c o n s t r o e m u m o u t r o t e m p o , q u e * q ^
t e m p o a t e m p o r a l e a - h i s t ó r i c o d o f u t u r o t a m b é m é dua , po ^ .
o u d o s o f r i m e n t o e t e r n o . - C o m o c o n s e q ü ê n c i a de sa e « m « r * ç ^ _
m e n s a g e m p r o t e s t a n t e o f e r e c i a aos fiéis n o r m a s de vida - espíritu
14
que os o r i e n t a v a m de m a n e i r a segura.
420 BAHIA, SÉCULO X I X

A p e s a r d a s i m p l i c i d a d e dessa m e n s a g e m , d o f a t o d e o c u l t o a ela associado não


exigir g a s t o s m a t e r i a i s p a r a o s fiéis, d a a t i t u d e t o l e r a n t e d a I g r e j a C a t ó l i c a e da in-
d i f e r e n ç a b e n e v o l e n t e das e l i t e s , a p e n e t r a ç ã o p r o t e s t a n t e n o B r a s i l p e r m a n e c e u pe-
q u e n a até o fim d o s é c u l o X I X : a I g r e j a P r e s b i t e r i a n a , m a i s e x i t o s a , s ó t i n h a 2 . 9 4 7
comungantes em 1 8 9 1 . 1 5
E s s e r e l a t i v o i n s u c e s s o p o d e ser f a c i l m e n t e e x p l i c a d o . N o
p r ó p r i o s e i o das i g r e j a s h o u v e u m a ê n f a s e e x c e s s i v a n o a s p e c t o i n s t i t u c i o n a l , com
r i g o r o s o s r i t u a i s d e a d m i s s ã o e c o m i m p o s i ç ã o d e u m a s e v e r a d i s c i p l i n a q u e , às ve-
zes, e x i g i a i n c l u s i v e o r o m p i m e n t o d o s l a ç o s d e f a m í l i a . A l é m d i s s o , a p r á t i c a pro-
testante era m u i t o intelectual, racional e discursiva para u m a população ignorante e
analfabeta.

O p r o t e s t a n t i s m o a p r e s e n t o u - s e c o m o u m a c o n t r a c u l t u r a q u e exigia comporta-
m e n t o s r a d i c a l m e n t e d i f e r e n t e s d o s h a b i t u a i s . E s s a s e x i g ê n c i a s a f a s t a v a m a m a i o r parte
d o s s i m p a t i z a n t e s e p r o v o c a v a m r e a ç õ e s e m t o d a a s o c i e d a d e , c o n t r i b u i n d o p a r a segre-
gar o s p r o t e s t a n t e s , a f a s t a d o s d e u m a c o n v i v ê n c i a c o t i d i a n a b a s e a d a nas relações do
t r a b a l h o , n a c e l e b r a ç ã o das festas e e m o u t r o s e v e n t o s c o m u n i t á r i o s q u e o c u p a v a m o
c e n t r o das r e l a ç õ e s s o c i a i s e n t r e o s h u m i l d e s .

O p o n d o - s e às festas d o c a t o l i c i s m o e c o n s i d e r a n d o o t e m p o c o m o i n t e i r a m e n t e
sacro, a m e n s a g e m protestante c o n t i n h a u m a ética c o m n o r m a s rigorosas e um modo
de v i d a b a s e a d o n a e s p e r a n ç a e n a r e c u s a , q u e e x i g i a d i s t â n c i a e m r e l a ç ã o ao m u n d o
e isolava os fiéis e m g r u p o s f e c h a d o s . P a r a o s c a t ó l i c o s , os p r o t e s t a n t e s e r a m os 'ou-
t r o s ' , o s q u e v i n h a m de f o r a , o s q u e v i v i a m à m a r g e m . U m s i t i a n t e d e M i n a s Gerais
e s t a b e l e c e u , p a r a seus i r m ã o s d e f é , as s e g u i n t e s Recomendações, q u e s e r v e m d e exemplo
das n o r m a s de v i d a d o s c r e n t e s : n ã o p e r m a n e c e r o c i o s o , n e m m e s m o u m a h o r a por
s e m a n a ; m a n t e r l i m p a a c a s a , m e s m o q u e s e j a u m a t a p e r a ; n ã o m e n t i r ; n ã o fazer
dívidas; n ã o ficar t r i s t e ; a t r a i r o s p e c a d o r e s p a r a o s pés d e J e s u s ; p a g a r impostos,
m e s m o q u e pesados; não andar a r m a d o q u a n d o for ao c u l t o . 1 6

T r a t a v a - s e , c o m o se v ê , d e u m a r e l i g i ã o s e v e r a e c o e r c i t i v a , q u e transtornava os
valores t r a d i c i o n a i s . P o r isso, n o s é c u l o X I X o p r o t e s t a n t i s m o n ã o teve n e n h u m suces-
s o na B a h i a . N u m e r o s o s m i s s i o n á r i o s p r o t e s t a n t e s t e n t a r a m fixar-se e m Salvador: em
1 8 7 1 , o a r c e b i s p o d o m M a n o e l J o a q u i m d a S i l v e i r a d e n u n c i o u " a a u d á c i a de certas
missões estrangeiras q u e , n e s t a c i d a d e , o u s a m q u e r e r a b a l a r nossa fé! O S e n h o r me
ajudará, e m e u s e s c r i t o s , q u e f o r a m a p r e c i a d o s pela E u r o p a c u l t a , expulsarão daqui os
pregadores d o erro q u e , s e g u n d o fui i n f o r m a d o , n ã o d e s e j a v a m abalar s o m e n t e nossa
fé, mas i g u a l m e n t e nossa a u t o n o m i a " . 1 7
A v i g o r o s a i n t e r v e n ç ã o d o arcebispo mostra
que a B a h i a n ã o escapara d o p r o s e l i t i s m o p r o t e s t a n t e . S ó dez a n o s depois, entretanto,
o m i s s i o n á r i o b a t i s t a a m e r i c a n o W i l l i a m B . B a g b y e s c o l h e u a B a h i a c o m o base
missionária de sua igreja: em 1 5 de o u t u b r o de 1 8 8 2 , j u n t o c o m o ex-padre A n t ô n i o
T e i x e i r a , f u n d o u e m terra baiana a p r i m e i r a Igreja Batista n a c i o n a l , c o m c i n c o mem-
bros, q u a t r o a m e r i c a n o s e u m b r a s i l e i r o . 18
D e p o i s de e n f r e n t a r sérias dificuldades
iniciais, ela c o m e ç o u v e r d a d e i r a m e n t e a se desenvolver n o século X X , c o m base num
r e c r u t a m e n t o c o n c e n t r a d o nas c a m a d a s p o p u l a r e s . 19
N o século X I X , o protestantismo
LIVRO V - A IGREJA
421

não conseguiu fazer concorrência à Igreja Católica, tampouco arrancar os baianos do


seu prohindo apego a todas as manifestações de seu culto.

O CATOLICISMO DOS AFRICANOS

Os africanos trazidos para o Brasil, especialmente para a Bahia, trouxeram consigo


o culto animista e o muçulmano. Constantemente reelaborado e adaptado às condi-
ções impostas pela sociedade branca, o primeiro resistiu vitoriosamente ao tempo,
ao passo que o segundo desapareceu. Para compreender o papel desempenhado por
essas duas religiões, devo situá-las no contexto da época. Primeira pergunta: em al-
gum momento, no século X I X , a Igreja modificou sua atitude em relação à cristia-
nização dos negros trazidos da África? Durante o período colonial, a instrução reli-
giosa dos escravos fixados no campo estava nas mãos de ricos proprietários agrícolas.
Estabelecera-se uma longa tradição de catolicismo doméstico, em que a catequese
dos negros era confiada ao senhor, que por isso se tornara o principal alvo da pas-
toral desenvolvida pela Igreja. Em nome da caridade cristã e do sangue de Cristo,
derramado para a salvação de senhores e escravos, a Igreja pedia aos primeiros que
a escravidão fosse suavizada; aos segundos, recomendava obediência e submissão. 20

Não é possível saber de que maneira os senhores, pouco instruídos em matéria de


doutrina, levavam sua missão a bom termo; nem todas as fazendas e engenhos dis-
punham dos serviços de um capelão, padre doméstico que, como vimos, desapare-
ceu gradativamente no decorrer do século XIX. No período colonial, apenas os
grandes engenhos, com mais de cem escravos, podiam permitir-se o luxo de ter um
capelão. Havia, no entanto, no Recôncavo baiano e em uma parte do Agreste que
estava próximo, numerosas fazendas de cana-de-açúcar ou de tabaco que emprega-
vam dez ou vinte escravos cuja instrução religiosa dependia essencialmente dos se-
nhores; mas a prática dos sacramentos era atribuição do padre da paróquia, cuja
sede podia ser distante das fazendas, principalmente no interior.
Em 1 8 7 8 , o engenheiro alemão Julius Naehrer, ligado à família do Barão Ferreira
Bandeira, passou vários meses no engenho de seu cunhado, no distrito de Santo
A m a r o , deixando uma descrição detalhada das atividades e dos habitantes locais, assim
c o m o da vizinhança. A capela, segundo ele, era o mais belo ornamento do engenho,
mas só se celebravam missas quando havia batizados, casamentos, enterros ou uma
nova colheita. Por conseguinte, nenhum capelão residia no loca , embora se tratasse
21

j . , , Ar* miais (nascidos n o Brasil;


de u m e n g e n h o c o m mais de d u z e n t o s escravos, ^ aos q u a v
envolvidos e serviços para a família do senhor, que rinha rreze m e n , , r o ^
m ^
O capelão, que pooco cempo anres desernpenhava o p ^
p a p

subsriruído por governanras esrrangeiras, sobrerudo alemãs, q lão- o c a D c

boas maueirL, m W * e talvez religião, mas só ^ ^ ^ J ^ k

preceptor se dirigia sem dificuldades a uma parte da comunidade


422

q u e vivia na i n t i m i d a d e d o s e n h o r . 2 4
M a s as s e n h o r a s d o s e n g e n h o s estavam cada y
m e n o s interessadas n a v i d a d o s filhos d e seus e s c r a v o s : "Até e n t ã o , a f u n ç ã o principa]
das s e n h o r a s das p l a n t a ç õ e s era d e se c o n s a g r a r c o t i d i a n a m e n t e ao d c s c n v o l v i m c n t 0

m a t e r i a l (sic) dessas c r i a n ç a s , para a u m e n t a r o c a p í t a l - t r a b a l h o . M a s d e p o i s dos limites


impostos à escravidão [ t r a t a - s e da Lei d o V e n t r e L i v r e , d e 1 8 7 1 ] q u e tornam as
c r i a n ç a s d e p o i s d e a d u l t a s h o m e n s livres q u e a b a n d o n a m as p l a n t a ç õ e s , i n d o à cata de
t r a b a l h o e m o u t r o l u g a r , s e u c u i d a d o e m r e l a ç ã o à s a ú d e dessas c r i a n ç a s d i m i n u i u . * *2

Esse a b a n d o n o m a t e r i a l era c e r t a m e n t e s e g u i d o p e l o e s p i r i t u a l , c o c a p e l ã o n ã o estava


mais p r e s e n t e p a r a l e m b r a r a o s s e n h o r e s o s seus d e v e r e s .
E m s u a n a r r a ç ã o m i n u c i o s a d a v i d a c o t i d i a n a n o e n g e n h o , N a e h r e r n u n c a men-
c i o n o u as o r a ç õ e s c o l e t i v a s rezadas o u t r o r a n a c a p e l a , e m t o r n o d o a l t a r familiar. A
d o n a da casa e r a a l e m ã e o d o n o , u m c a t ó l i c o i n d i f e r e n t e . S e r i a p o r isso? É pouco
provável. O v i a j a n t e se h o s p e d o u e m v á r i o s e n g e n h o s q u e p e r t e n c i a m a parentes de seu
c u n h a d o brasileiro e n u n c a falou a respeito desse h á b i t o a n t i g o de oração coletiva. 26

E m c o m p e n s a ç ã o , d e s c r e v e u m i n u c i o s a m e n t e o c o s t u m e d e p e d i r a b ê n ç ã o ao senhor,
t i r a n d o a p a r t i r d a í i l a ç õ e s s o b r e a r e l i g i o s i d a d e d o s e s c r a v o s : " Q u a n d o u m servidor
e n c o n t r a seu s e n h o r , s u a s e n h o r a o u u m o u t r o m e m b r o d a f a m í l i a , ele lhes pede a
b ê n ç ã o de D e u s , o l h a n d o p a r a o a l t o e e s t e n d e n d o a m ã o d i r e i t a i m p l o r a n d o : 'bênção',
a q u e seu s e n h o r r e s p o n d e : ' d e D e u s ' . E s s e c o s t u m e , a n t i g a m e n t e , era geral e todo
n e g r o pedia b ê n ç ã o a o b r a n c o . M a s , d e p o i s q u e e x i s t e m n u m e r o s o s alforriados e
h o m e n s de c o r q u e se m o s t r a m m a i s i n s o l e n t e s q u e e d u c a d o s c o m os b r a n c o s , esse
c o s t u m e s ó é p r a t i c a d o n a s p l a n t a ç õ e s , o n d e o s e n h o r c a s t i g a s e v e r a m e n t e a omissão
desse p e d i d o de b ê n ç ã o . " M e r a f o r m a l i d a d e , esse p e d i d o n ã o t i n h a m a i o r valor subje-
t i v o , d e v e n d o ser c o n s i d e r a d o u m a s i m p l e s s a u d a ç ã o d o s e r v i d o r a o s e n h o r : "Pessoal-
m e n t e , deixei d e a t r i b u i r - l h e q u a l q u e r i m p o r t â n c i a , q u a n d o p e r c e b i q u e as pretinhas
p r o c u r a v a m e s c o n d e r o r i s o c a d a vez q u e e u a t e n d i a s e u p e d i d o , o q u e d e m o n s t r a o
p o u c o valor q u e a t r i b u í a m à m i n h a b ê n ç ã o . . . " N o B r a s i l , a c r e s c e n t o u Naehrer, a
c o r r u p ç ã o faz p a r t e das m e n t a l i d a d e s d a é p o c a . R a r o s n ã o s ã o a t i n g i d o s p o r cia. C o m o
na E u r o p a , a r e l i g i ã o a p a r e c e c o m suas f o r m a s e x t e r i o r e s p o r q u e falta-lhe conteúdo
interior". 2 7

E l e n o t o u t a m b é m q u e , a p e s a r d o fim d o t r á f i c o n e g r e i r o , havia escravos apegados


a seus a n t i g o s c o s t u m e s , f o r m a n d o u m a e s p é c i e d c ' n a c i o n a l i d a d e particular': "Eles
c o n s e r v a m c m seus c o s t u m e s , n o i d i o m a c nas c a r a c t e r í s t i c a s espirituais, um nítido
c u n h o a f r i c a n o , q u e sc t o r n a p a t e n t e nas o c a s i õ e s festivas nas p l a n t a ç õ e s , quando os
q u e são o r i g i n á r i o s da África s e p a r a m - s e d o s o u t r o s negros para e x e c u t a r suas próprias
danças. U m a a m a - s e c a , d c mais o u m e n o s t r i n t a a n o s , m e disse c o m orgulho que
nasceu na África, d c o n d e , separada d c seus pais, t i n h a sido trazida para o Brasi
quando c r i a n ç a . " 2 8
M e s m o d e p o i s da a b o l i ç ã o d o tráfico, os negros africanos eram
majoritários nas p l a n t a ç õ e s d c c a n a - d e - a ç ú c a r . V i v i a m à m a r g e m da c o m u n i d a d e cris-
tã, que só exigia deles sinais exteriores dc u m a cristianização de fachada. E m compen-
sação, os escravos nascidojf n o Brasil, s o b r e t u d o os q u e serviam nos trabalhos domes-
LIVRO V - A IGREJA
423

ticos, t i n h a m u m a t r a d i ç ã o m a i o r n a fé cristã e nnAí


senhores. N a missa q u e ce,e ava o
b r ^ Z ^ Z L ^ t f ' 7
Alenquer, m e d o B a . o Ferreira Bandeira, eram seguidos por 2
5 Z de ^ *
estavam a seu s e m ç o ; o s « c r a v o s h o m e n s p a r t i c i p a v a m d a festa até altas horas d
noite, executando danças n e g r a s . 2 9 a

N u m e r o s o s t e s t e m u n h o s i n d i c a m q u e , n o s é c u l o X I X , os escravos q u e trabalha
v a m nas p l a n t a ç õ e s r e c e b i a m m e n o s a t e n ç ã o q u e os d o m é s t i c o s . 3 0
Essa a t e n ç ã o era
a i n d a m e n o r n a s c i d a d e s , o n d e era f r e q ü e n t e q u e os escravos vivessem fora da casa do
s e n h o r . A l é m d i s s o , as i r m a n d a d e s r e l i g i o s a s s e e n f r a q u e c i a m . E n t r e os s a c r a m e n t o s da
I g r e j a C a t ó l i c a , s ó o b a t i s m o e r a l a r g a m e n t e p r a t i c a d o e, m e s m o assim, n ã o atingia
t o d o s o s e s c r a v o s q u e c h e g a v a m d a Á f r i c a . B a t i s m o s d e escravos a d u l t o s eram c o m u n s ,
exigindo q u e eles r e c e b e s s e m i n s t r u ç ã o s u m á r i a .

A s r e f o r m a s i n t r o d u z i d a s p e l a I g r e j a n ã o t i n h a m m u d a d o em n a d a o catecismo
a b r e v i a d o u t i l i z a d o p a r a o s " e s c r a v o s b o ç a i s e de l í n g u a i g n o r a d a , c o m o todos os que
vêm d a [ C o s t a d a ] M i n a e d e A n g o l a " . N e s t e s c a s o s , bastava q u e respondessem, em
p o r t u g u ê s , a u m p e q u e n o q u e s t i o n á r i o a n t e s d e r e c e b e r o b a t i s m o : desejas lavar tua
alma c o m á g u a b e n t a ? Q u e r e s c o m e r o sal d e D e u s ? P õ e s t o d o s os teus pecados para
fora de sua a l m a ? N ã o p e c a r á s m a i s ? Q u e r e s ser filho de D e u s ? Expulsas o d e m ô n i o de
tua a l m a ? E r a u m a s i m p l i f i c a ç ã o d o a t o d e c o n t r i ç ã o q u e as C o n s t i t u i ç õ e s Primeiras
p r o p u n h a m a o s e s c r a v o s : " M e u D e u s e m e u S e n h o r : m e u c o r a ç ã o s ó deseja a vós, só
ama a v ó s . C o m e t i m u i t o s p e c a d o s e m e u c o r a ç ã o m e faz sofrer p o r q u e os c o m e t i .
P e r d o a i - m e , S e n h o r , e n ã o c o m e t e r e i m a i s p e c a d o s : e u os tiro de m e u c o r a ç ã o e de
minha alma pelo a m o r de D e u s . " 3 1

M a s , c o m o n ã o e r a c e r t o q u e o s escravos p u d e s s e m c o m p r e e n d e r u m dia os mis-


térios d a fé c r i s t ã — j á q u e , a p e s a r dos e s f o r ç o s para i n s t r u í - l o s , "parece que sabem
cada vez m e n o s " — , o a r c e b i s p o d a B a h i a p e r m i t i u q u e seus párocos lhes dessem os
s a c r a m e n t o s d a p e n i t ê n c i a , d a e x t r e m a - u n ç ã o e d o m a t r i m ô n i o , além do batismo-
(que seus filhos r e c e b i a m n o p r i m e i r o a n o de v i d a ) . N o s batizados de escravos adultos,
era f r e q ü e n t e q u e eles só tivessem o p a d r i n h o (às vezes, o u t r o escravo), sendo Nossa
Senhora invocada c o m o protetora, substituindo a m a d r i n h a . 3 3
Talvez os padrinhos
d e s e m p e n h a s s e m a l g u m papel na c a t e q u e s e , t e n d o o e n c a r g o de iniciar seus irmãos
cativos na nova vida, nova língua c nova religião. E m c o m p e n s a ç ã o , o sacramento do
m a t r i m ô n i o q u a s e n u n c a era a d m i n i s t r a d o . A u n i ã o consensual era a regra, apesar de
a Igreja r e c o m e n d a r f o r t e m e n t e aos s e n h o r e s q u e encorajassem e facilitassem casamen-

tos entre escravos. • ^ f r m n c r í

Para eles, o b a t i s m o ditava a entrada n o m u n d o dos brancos, num s . * e m _ S O -


ciai cujas regras deveriam ser aceitas. C o m efeito, aos olhos da s o a e d a d e
h o m e m batizado deixava de ser pagão. N ã o importava que a maior p a n e os -
L. /-nnr^rn efetivo com a a o u i n n a
vos nascessem, vivessem e morressem sem n e n h u m conta
cristã, desde q u e mantivessem todas as aparências e x t e r i o r * dess. r g J
rância, s o m a d a ao desinteresse d e m o n s t r a d o pelos senhores e a ig J P
424 BAHIA, SÉCULO X I X

o s escravos p r e s e r v a s s e m o u r e c r i a s s e m a v i d a e s p i r i t u a l ( a n i m i s t a o u muçulmana)
h e r d a d a d e seus a n t e p a s s a d o s . 3 4

O ISLÃ N A B A H I A

É provável q u e o s p r i m e i r o s a f r i c a n o s i s l a m i z a d o s t e n h a m c h e g a d o à B a h i a n o fim do
s é c u l o X V I I I e n o p r i n c í p i o d o X I X . T r a t a v a - s e e s s e n c i a l m e n t e d e n e g r o s haussas e
i o r u b a s ( o u n a g ô s ) , v í t i m a s d e p r o b l e m a s p o l í t i c o s e r e l i g i o s o s q u e devastaram seus
países. I n i c i a l m e n t e , o c o r r e r a m as G u e r r a s I o r u b a s n o s u l d a N i g é r i a atual, então
império de O y o , causadas pela revolta d o c o m a n d a n t e - e m - c h e f e (are-ona-kankafo)
A f o n j á c o n t r a a a u t o r i d a d e d o rei ( A l a f i n ) . A f o n j á , q u e n ã o e r a m u ç u l m a n o , aliou-se
a m u ç u l m a n o s i o r u b a s e a e s c r a v o s h a u s s a , t a m b é m m u ç u l m a n o s . V i t o r i o s o n o início,
o c u p o u a c i d a d e d e I l o r i n , q u e s e t o r n o u u m a " v e r d a d e i r a M e c a " p a r a o s i o r u b a s . Mas,
m a i s t a r d e , foi e l i m i n a d o p e l o s f u l a s , d o c a l i f a d o d e S o k o t o , q u e h a v i a c h a m a d o para
a j u d á - l o c o n t r a o rei d e O y o . N ú m e r o i n c a l c u l á v e l d e c a t i v o s m u ç u l m a n o s disponíveis
para o tráfico d o A t l â n t i c o t a m b é m r e s u l t o u d a jihad ( g u e r r a s a n t a ) lançada pelo
reformador m u ç u l m a n o S h e h u U s u m a n u dan F o d i o c o n t r a o regime n ã o muçulmano
d o rei Y e n f a d e G o b i n . 3 5
N a B a h i a , os m u ç u l m a n o s a f r i c a n o s ficaram conhecidos
c o m o m a l e s , n o m e c u j a o r i g e m d e u l u g a r a v á r i a s h i p ó t e s e s , d i s c u t i d a s p o r Roger
Bastide. 3 6
H o j e , a s s o c i a - s e a p a l a v r a m a l ê a i m a l ê , t e r m o i o r u b a p a r a d e s i g n a r o Islã ou
o muçulmano. 3 7

O i s l a m i s m o n u n c a f o i p r e d o m i n a n t e e n t r e o s a f r i c a n o s t r a z i d o s à B a h i a . Os
haussas e r a m o ú n i c o g r u p o é t n i c o c u j o s m e m b r o s , n a o r i g e m , p r o f e s s a v a m majori-
t a r i a m e n t e esse c r e d o . T a l v e z o s n u p e s ( c o n h e c i d o s c o m o t a p a s ) , o s b o r n u s e os
nagôs t i v e s s e m m u ç u l m a n o s e m s e u m e i o . D e q u a l q u e r f o r m a , eles s e m p r e foram
m i n o r i t á r i o s n a s o c i e d a d e a f r i c a n a d e S a l v a d o r , o n d e h a v i a p r e d o m i n â n c i a dos cul-
tos dos o r i x á s ( i o r u b a s ) e v o d u n s ( e w ê s ) , a l é m d e o u t r a s r e l i g i õ e s d a Á f r i c a ociden-
tal. O s m u ç u l m a n o s se d i s t i n g u i a m p o r s e u p r o s e l i t i s m o ; foi s o b r e t u d o de suas fi-
leiras q u e s u r g i u a m a i o r p a r t e d o s c h e f e s d a r e v o l t a n e g r a d e 1 8 3 5 , m u i t o bem
estudada p o r P i e r r e V e r g e r e J o ã o J o s é R e i s , 3 8
c u j a o b r a m e p e r m i t e descrever as
práticas religiosas desse g r u p o .

E s s a c o m u n i d a d e m u ç u l m a n a t e v e , de i n í c i o , v á r i o s c h e f e s , c h a m a d o s alufás. Nem
t o d o s eram e s c r a v o s : o haussa D a n d a r a , t a m b é m c o n h e c i d o p e l o n o m e cristão de
E l e s b ã o d o C a r m o , era a l f o r r i a d o e n e g o c i a n t e d e t a b a c o . S e u colega S a n i n , o u Luís,
era u m escravo de o r i g e m t a p a . O s d o i s diziam ter e n s i n a d o a m e n s a g e m d o C o r ã o em
seus países natais. A h u n a c P a c í f i c o L i c u t a n e r a m escravos, o r i g i n á r i o s da t r i b o ioruba,
e letrados. V á r i o s o u t r o s escravos o u alforriados presos d e p o i s da revolta frustrada de
1 8 3 5 c o n f e s s a r a m q u e s a b i a m ler e escrever e m árabe e q u e t i n h a m f r e q ü e n t a d o escolas
religiosas e m suas respectivas terras n a t a i s . A o s e r e m presos, aliás, m u i t o s deles leva-
vam c o n s i g o escritos em á r a b e . 3 9
LIVRO V - A IGREJA
425

A l i d e r a n ç a d a r e v o l t a m u ç u l m a n a era c o m p o s t a por h o m e n s letrados, o que lhes


c o n f e r i a e n o r m e v a n t a g e m s o b r e a .nassa de n e g r o s i n c u l t o s , a f r i c a n o s o u nascidos no
Brasil, e s c r a v o s o u a l f o r r i a d o s . A m e s m a v a n t a g e m existia e m relação a toda a popu
lação livre d a c i d a d e , a n a l f a b e t a c o m o os e s c r a v o s c os a l f o r r i a d o s . P o r sua instrução
os m u ç u l m a n o s e s t a v a m m u i t o m a i s p r ó x i m o s d o m o d e l o b r a n c o q u e os n ã o - m u ç u l '
m a n o s . I s s o a j u d a v a o p r o s e l i t i s m o , c u j o a l c a n c e d e s c o n h e ç o (os autos do processo
c o n t r a os d e r r o t a d o s d e 1 8 3 5 s ã o a ú n i c a f o n t e s o b r e a h i s t ó r i a d o i s l a m i s m o na
B a h i a ) . É i m p o s s í v e l s a b e r o c o n t e ú d o d a f é e n s i n a d a , o n ú m e r o e x a t o de prosélitos e
a q u a l i d a d e d a s c o n v e r s õ e s o p e r a d a s p e l o Islã e m terra hostil e c t i s t ã . 4 0
N ã o se pode
levar m u i t o a s é r i o a a f i r m a ç ã o d e N i n a R o d r i g u e s , q u e p r e t e n d e q u e " a c o n v e r s ã o (ao
i s l a m i s m o ) e r a t ã o g i g a n t e s c a q u e o n ú m e r o de seus fiéis c o n s t i t u í a m u m a l e g i ã o " . 4 1

O u s o d e o b j e t o s s i m b ó l i c o s e a c o r d a r o u p a d e s e m p e n h a v a m i m p o r t a n t e papel,
c o m o sinais e x t e r i o r e s d e v i n c u l a ç ã o a u m a c u l t u r a religiosa. C o n s i d e r a d o s poderosos
protetores m á g i c o s , o s a m u l e t o s islâmicos eram particularmente populares na Bahia,
mas isso n ã o d e v e n o s i m p r e s s i o n a r , p o i s n a Á f r i c a eles e r a m usados t a n t o por m u ç u l -
manos quanto por n ã o - m u ç u l m a n o s . C h a m a d o s de tira p e l o s i o r u b a s , e r a m um saqui-
n h o de c o u r o c o m e x t r a t o s d o C o r ã o o u o r a ç õ e s m u ç u l m a n a s escritas em folhas de
papel d o b r a d a s s e p a r a d a m e n t e . O u t r o s a m u l e t o s e r a m feitos c o m c o n c h i n h a s d e n t r o
de sacos d e t e c i d o a f r i c a n o , c h a m a d o p a n o d a c o s t a . P r o t e g i a m da m á influência dos
h u m a n o s e d o s e s p í r i t o s d o m u n d o s o b r e n a t u r a l e e r a m v e n d i d o s pelos mestres m u ç u l -
manos, cujos poderes míticos {baraka) e r a m t r a n s f e r i d o s a esses o b j e t o s mágicos bené-
ficos. O u s o desses a m u l e t o s v i r o u m o d a , n ã o i m p l i c a n d o adesão ao islamismo.

O u t r o sinal d a p r e s e n ç a i s l â m i c a n a c o m u n i d a d e a f r i c a n a de Salvador era o uso do


abada ( r o u p a s e t u r b a n t e s b r a n c o s ) , m a s n u n c a e m p ú b l i c o , p a r a n ã o c h a m a r a atenção
das a u t o r i d a d e s p o l i c i a i s . E s s e s trajes r i t u a i s só e r a m usados nas casas que faziam o
papel de m e s q u i t a s , s e r v i n d o d e l o c a i s p a r a o r a ç õ e s e o u t r a s celebrações. Para que
fossem r e c o n h e c i d o s pelos seus, os i s l â m i c o s d a B a h i a t i n h a m o c o s t u m e de usar anéis
de ferro e m vários d e d o s . E r a o s í m b o l o de q u e p e r t e n c i a m à sociedade dos males.
N o a m b i e n t e u r b a n o d e S a l v a d o r , os a m u l e t o s e r a m p o d e r o s o s auxiliares da difu-
são d a fé d o s m a l e s . A relativa i n d e p e n d ê n c i a d o s escravos u r b a n o s e a presença de
n u m e r o s o s a l f o r r i a d o s p o s s i b i l i t a v a m u m a rede de p r o s e l i t i s m o e agitação. O s ensina-
m e n t o s dos m e s t r e s e r a m d i v u l g a d o s e m lugares p ú b l i c o » o u nas casas que serviam de
mesquitas. R e l i g i ã o d o l i v r o , o Islã exige s i m u l t a n e a m e n t e o aprendizado da escrita e
da leitura c a m e m o r i z a ç ã o de o r a ç õ e s , c o n d i ç ã o para a plena participação nas rezas
coletivas e c o m p r o m i s s o d o i n i c i a d o c o m sua nova f é . 4 3
U m a das testemunhas do
processo sobre a R e v o l t a d o s M a l e s , a negra brasileira M a r i a da C o s t a P . n t o , declarou
que um alforriado n a g ô reunia o u t r o s africanos c sua nação em frente a uma praça
freqüentada por carregadores de cadeirinhas de arruar, a quem e n s i n a v a a escrita e »
orações. 44
O p r o s e l i t i s m o era feito diante de todos, e n q u a n t o esperavam c h e n t e s . h
espantoso q u e n i n g u é m t e n h a percebido a m a n o b r a — - ^ £ £ S
a ç ã o dos h o m e n s de c o r era vigiada. O u t r o e x e m p l o : Pacífico L i c u t a p
426 BAHIA, SÉCULO X I X

da c o m u n i d a d e m u ç u l m a n a , r e c o l h i d o à prisão p o r u m a dívida c o n t r a í d a pot seu


s e n h o r c o m os c a r m e l i t a s , r e c e b i a seus a l u n o s , escravos e a l f o r r i a d o s , aos quais conti
nuava a m i n i s t r a r seu e n s i n a m e n t o , d i a n t e d o c a r c e r e i r o . 4 5
Às vezes, c o m o na casa do
inglês S t u a r t , o s escravos a p r o v e i t a v a m a l i b e r a l i d a d e de seus s e n h o r e s e convidavam
c o r r e l i g i o n á r i o s para ir a seus q u a r t o s p r a t i c a r a escrita.

D e s c o n h e ç o a e s t r u t u r a e o c o n t e ú d o da v i d a religiosa dos males. N ã o tenho


i n f o r m a ç õ e s d e t a l h a d a s s o b r e os p r e c e i t o s e rituais m u ç u l m a n o s na B a h i a , exceto as
freqüentes m e n ç õ e s s o b r e as o r a ç õ e s d a s e x t a - f e i r a , a c e l e b r a ç ã o de certas cerimônias
o u os h á b i t o s c u l i n á r i o s d o s p a r t i c i p a n t e s . 4 6
V i v e n d o n u m a s o c i e d a d e de maioria
cristã, eles t i v e r a m q u e se a d a p t a r , m o d i f i c a n d o a l g u m a s práticas e c o m p o r t a m e n t o s
o que n ã o c o n s i s t i a n o v i d a d e . F a l a n d o das t r i b o s i s l a m i z a d a s , R o g e r Bastide afirmou-
" c o m raras e x c e ç õ e s , tratava-se de n e g r o s p u r o s o u de n e g r o s m e s t i ç a d o s c o m hamitas.
L o g o , e r a m a n t i g o s a n i m i s t a s i s l a m i z a d o s e n ã o m u ç u l m a n o s de o r i g e m . Suas antigas
c r e n ç a s n ã o h a v i a m i n t e i r a m e n t e d e s a p a r e c i d o e f o i esse s i n c r e t i s m o muçulmano-
fetichista q u e foi i n t r o d u z i d o n o B r a s i l e n ã o o i s l a m i s m o p u r o de M a o m é " . 4 7

C o m o os d e m a i s e s c r a v o s , os m u ç u l m a n o s p r o c u r a r a m c o n s e r v a r o essencial de
suas p r á t i c a s , e m p a r t i c u l a r a c e l e b r a ç ã o de festas e a l g u n s h á b i t o s alimentares. As
t e s t e m u n h a s d a f r u s t r a d a r e v o l t a de 1 8 3 5 d e i x a r a m i n f o r m a ç õ e s s o b r e o que era per-
m i t i d o e p r o i b i d o c o m e r e s o b r e as r e f e i ç õ e s q u e f a z i a m e m c o m u m . O grande consu-
m o de c a r n e de c a r n e i r o , a aversão de a l g u n s p o r t o u c i n h o e os ágapes coletivos
m o s t r a m q u e os m u ç u l m a n o s t e n t a r a m s e g u i r os p r e c e i t o s i s l â m i c o s , sobretudo o que
o r d e n a v a q u e só c o m e s s e m o q u e p r e p a r a v a m c o m as p r ó p r i a s m ã o s . 4 8
M a s sua liber-
dade era l i m i t a d a . M u i t o s v i v i a m nas casas d o s s e n h o r e s e c o m p a r t i l h a v a m sua comida.
Reis p ô d e i d e n t i f i c a r u m a c e l e b r a ç ã o d a festa de L a i l a t - a l - M i r a j (ascensão do
profeta M a o m é ao C é u ) e m n o v e m b r o de 1 8 3 4 , q u a n d o h o u v e u m a grande reunião
n u m a t e n d a q u e os escravos de u m inglês c h a m a d o A b r a h a m m o n t a r a m nos jardins da
residência deste, na p a r ó q u i a d a V i t ó r i a . T i n h a t a n t a g e n t e nessa c e r i m ô n i a que o
inspetor d o b a i r r o , A n t ô n i o M a r q u e s , resolveu i n t e r d i t á - l a , a p e l a n d o para o juiz de
paz, q u e repreendeu o inglês. A p e s a r d e t e r c o n s e n t i d o t u d o , este obrigou os escravos
a desmontarem a tenda. Essa iniciativa c o n f i r m a , s e g u n d o Reis, o sucesso do proselitismo
islâmico na B a h i a na década de 1 8 3 0 . 4 9

M a s c m q u e c o n s i s t i a esse sucesso? E r a de o r d e m quantitativa? Qualitativa? Não


há dúvida de q u e os africanos q u e se t o r n a v a m m u ç u l m a n o s davam prova de coragem.
R e n u n c i a v a m a suas próprias tradições religiosas, j á q u e Islã exigia deles uma verda-
deira conversão, precedida de u m l o n g o aprendizado, o q u e a Igreja Católica nunca
exigira. I r m ã o s pelo Islã, esses novos c o n v e r t i d o s se distinguiam dos outros irmãos
africanos. T i n h a m q u e c o m p a r t i l h a r c o m seus mestres o fanatismo e a intolerância que
estes demonstravam em relação aos outros africanos, pois os m u ç u l m a n o s despreza-
vam os incrédulos, recusando-se a estender-lhes a m ã o por serem kafirs. O desprezo
a intolerância se estendiam aos africanos católicos, acusados de ir à missa e de adorar
a madeira de estatuetas pretensamente s a n t a s . 50
LIVRO V - A IGREJA
427

Q u a l o n ú m e r o d e m u ç u l m a n o s b a i a n o s n a é p o c a d a revolta frustrada de 1 8 3 5 '


N e m t o d o s o s a c u s a d o s c o m p a r t i l h a v a m a m e s m a c r e n ç a , j á q u e u m a aliança mais

o u t r o s 9 7 n o m e s são de pessoas
indiciadas e m p r o c e s s o s a b e r t o s p o r d e n ú n c i a s , q u e n ã o f o r a m e n c o n t r a d a s , o u que

m o r r e r a m d u r a n t e a i n s u r r e i ç ã o , t e n d o s i d o i d e n t i f i c a d a s d e p o i s . S o b r e esses 189
presos, s ó h á t r a ç o s d e 1 1 9 j u l g a m e n t o s e o s 7 0 r e s t a n t e s o u f o r a m i n d u l t a d o s , o u ,
tendo sido c o n d e n a d o s , n ã o f o r a m e n c o n t r a d o s " . 5 2
M a s n e m J o ã o R e i s , n e m Pierro
Verger, separam os n ã o - m u ç u l m a n o s dos m u ç u l m a n o s .

A d m i t a m o s a h i p ó t e s e d e q u e , e m g r a u s d i v e r s o s , o s 2 8 6 a c u s a d o s tivessem a d o -
tado a r e l i g i ã o d o C o r ã o . E s s e n ú m e r o r e p r e s e n t a u m p e r c e n t u a l m í n i m o e m relação
ao c o n j u n t o d a p o p u l a ç ã o e s c r a v a e a l f o r r i a d a d a c i d a d e . E n t r e o s n e g r o s c o n v e r t i d o s
ao i s l a m i s m o n e n h u m e r a n a s c i d o n o B r a s i l . O o b j e t i v o d o s r e b e l a d o s , aliás, era m a t a r
todos o s b r a n c o s , o s ' c a b r a s ' ( m e s t i ç o s ) e o s n e g r o s b r a s i l e i r o s d a c i d a d e . 5 3
Segundo a
r e c o n s t i t u i ç ã o f e i t a p o r J . R e i s , n a c i d a d e d e S a l v a d o r haveria, e m 1 8 3 5 , cerca de
1 7 . 0 0 0 e s c r a v o s a f r i c a n o s , 1 0 . 5 0 0 e s c r a v o s n a s c i d o s n o B r a s i l , 1 2 . 0 0 0 negros livres e
26.000 brancos. 5 4
E n t r e as p e s s o a s livres d e c o r , h a v i a u m n ú m e r o i g n o r a d o de afri-
canos a l f o r r i a d o s , o q u e t o r n a i m p o s s í v e l c a l c u l a r o p e r c e n t u a l de acusados q u e perten-
ciam a essa c a t e g o r i a d a p o p u l a ç ã o b a i a n a . E m c o m p e n s a ç ã o , o s 1 6 0 escravos africanos
acusados ( n e m t o d o s m u ç u l m a n o s ) r e p r e s e n t a v a m e x a t a m e n t e 0 , 9 4 % d o t o t a l . E m b o -
ra a p r o x i m a d o s , esses n ú m e r o s s u g e r e m q u e a r e l i g i ã o m u ç u l m a n a s ó atingira u m a
parte m u i t o p e q u e n a d a p o p u l a ç ã o a f r i c a n a escrava. U m a r e v o l t a q u e t i n h a a pretensão
de ser uma. jihaddeveria t e r m u i t o s a d e p t o s , m a s isso n ã o se d e u . T a l v e z p o r isso, para
ter a l g u m a e x p e c t a t i v a d e v i t ó r i a , o s m u ç u l m a n o s t i v e r a m q u e apelar a n ã o - m u ç u l m a -
nos e a a f r i c a n o s q u e v i v i a m n o R e c ô n c a v o . 5 5

A religião m u ç u l m a n a d e s a p a r e c e u q u a s e p o r c o m p l e t o d o universo dos descen-


dentes de e s c r a v o s . R o g e r B a s t i d e a n a l i s o u m u i t o b e m o fato de os m u ç u l m a n o s
sempre terem s i d o m i n o r i t á r i o s e n t r e a p o p u l a ç ã o de c o r (ele poderia rer d i t o africa-
na). M a s ele n ã o t i n h a razão a o d e c l a r a r q u e essa religião p e r m a n e c e u passiva por ser
c o m p o s t a de n e g r o s c o n v e r t i d o s . D a í d e c o r r e r i a — para esse a u t o r — sua inaptidão ao
proselitismo e a falta de resistência de sua religião ao t e m p o . A ação levada adiante peia
d i t e m u ç u l m a n a na B a h i a c o n t r a d i z essas o b s e r v a ç õ e s . Essa ação deu sinais de a gum
d i n a m i s m o , m e s m o q u e n ã o t e n h a c o n s e g u i d o u m a conversão em massa da popu ação
africana. Esse o b j e t i v o , aliás, seria u t ó p i c o pois, s e n d o u m a religião de letrados, o s a
exige l o n g o a p r e n d i z a d o e i m p õ e severas c o a ç õ e s . M a s Bastide tinha razão a o
^ S
^
tar que o o r g u l h o c a austeridade m u ç u l m a n o s , bem c o m o o desejo e viver num
m u n d o à parte, afastavam os m u ç u l m a n o s d o c o n v í v i o com seus irmãos escravos.
"Para o n e g r o , o m a o m e t a n o não era um c o m p a n h e i r o de escrav.dao. ¡>o "»
circunstâncias e x c e p c i o n a i s podiam fazer dele u m chefe. O branco r e
P r e
^
-nundo da liberdade q u e podia ser alcançado pela alforria. Por essa razão, a .mitaçao
428 BAHIA, SÉCULO X I X

d o b r a n c o era a c o n d i ç ã o dessa a s c e n s ã o . D a í a a t r a ç ã o p e l o c a t o l i c i s m o . " 5 6


Note-s
p o r é m , q u e o s c u l t o s a n i m i s t a s t i n h a m o m e s m o p r o b l e m a . E n t ã o , p o r q u e consegui-
r a m resistir m e l h o r ? P o r q u e t ê m , a t é h o j e , t a n t o s u c e s s o ?
E m b o r a subestime a capacidade religiosa dos negros e ignore o funcionamento
das estruturas religiosas a f r i c a n a s , N i n a R o d r i g u e s a p r e s e n t a u m a análise que me
p a r e c e m a i s v e r o s s í m i l para a a d e s ã o a o c a t o l i c i s m o . E m p r i m e i r o lugar, desapare-
c e u g r a d u a l m e n t e a p r o t e ç ã o i s o l a n t e q u e as l í n g u a s a f r i c a n a s — g e r a l m e n t e desco-
nhecidas dos negros brasileiros — d a v a m a o Islã. T e n d o c h e g a d o n o s ú l t i m o s cin-
q ü e n t a a n o s a n t e s d a a b o l i ç ã o d o t r á f i c o , o s n e g r o s m u ç u l m a n o s t i v e r a m menos
possibilidades de a d a p t a r suas p r á t i c a s r e l i g i o s a s a o p o r t u g u ê s , ú n i c o laço entre as
d i f e r e n t e s e t n i a s , q u e f a l a v a m l í n g u a s d i f e r e n t e s . P r o p i c i a n d o u m r e f ú g i o inacessível
aos s e n h o r e s e seus r e p r e s e n t a n t e s , as l í n g u a s a f r i c a n a s h a v i a m f a v o r e c i d o a cateque-
se m u ç u l m a n a , o f e r e c e n d o r e f u g i o e s p i r i t u a l a o s a f r i c a n o s ( m a s n ã o aos negros nas-
c i d o s n o B r a s i l ) p e r s e g u i d o s pela r e l i g i ã o c a t ó l i c a d o s d o m i n a d o r e s . A l é m disso, o
c a t o l i c i s m o , c o m seus s a n t o s e a p o m p a d e s e u c u l t o e x t e r i o r , estava mais próximo
das m i t o l o g i a s m a i s o u m e n o s d e s e n v o l v i d a s n a Á f r i c a . A p o s s i b i l i d a d e de estabele-
cer e q u i v a l ê n c i a s e i d e n t i d a d e s e n t r e o s s a n t o s c a t ó l i c o s e as d i v i n d a d e s o u orixás
n a g ô s r e p r e s e n t o u , p a r a os n e g r o s d a B a h i a , u m d o s m a i o r e s a t r a t i v o s para o catoli-
c i s m o , q u e c o n t a v a a i n d a , a s e u f a v o r , c o m t o d o o a m b i e n t e e m q u e v i v i a m os ne-
gros. 5 7
N i n a R o d r i g u e s d e u a s s i m a p r ó p r i a r a z ã o d a s o b r e v i v ê n c i a dos cultos afri-
c a n o s , ao n o t a r a t o l e r â n c i a d a I g r e j a C a t ó l i c a p a r a c o m a f e s t a a f r i c a n a . O Islã foi
v e n c i d o p o r c a u s a d e sua i n t o l e r â n c i a e d e s u a f a l t a d e p o d e r d e a d a p t a ç ã o às reais
condições da sociedade baiana.

A HERANÇA AFRICANA: OS TERREIROS

F o i p o d e r o s a a c o n c o r r ê n c i a feita pelas r e l i g i õ e s a f r i c a n a s à I g r e j a C a t ó l i c a , que as


s u b e s t i m o u , p o r d e s c o n h e c e r suas e s t r u t u r a s e s ó r e c o n h e c e r , e m suas manifestações
exteriores, d i v e r t i m e n t o s p a g ã o s . A m e s m a a t i t u d e foi c o m p a r t i l h a d a pelos senhores
de escravos: p r e o c u p a d o s e m m a n t e r a paz e m suas p r o p r i e d a d e s agrícolas, n ã o somen-
te a d m i t i a m , m a s e n c o r a j a v a m , essas m a n i f e s t a ç õ e s . C o n t a v a apenas o l u c r o retirado
d o t r a b a l h o dos escravos, e isso d e p e n d i a d a paz s o c i a l . O s a f r i c a n o s , c h a m a d o s bo-
çais', o f e r e c i a m resistência à c r i s t i a n i z a ç ã o ? E n t ã o n ã o era r u i m ser t o l e r a n t e . Assim, os
cultos a n i m i s t a s e r a m p r a t i c a d o s sob o l h a r e s b e n e v o l e n t e s d o s e n h o r e da Igreja-
T e n h o algumas descrições s o b r e eles, m a s de o r d e m m u i t o geral, pois os observadores
só eram capazes de p e r c e b e r seus a s p e c t o s e x t e r i o r e s . Q u e m n ã o c r ê , o u n ã o se dá ao
t r a b a l h o de ver, nega q u a l q u e r valor a o u t r o s c u l t o s ; t o d a liturgia torna-se brincadeira,
t o d a prática aparece c o m o simples t e a t r o , t o d a representação vira d i v e r t i m e n t o . Sobre-
tudo p o r q u e , nesses p r i m e i r o s t e m p o s e sem dúvida até o século X V I I I , os cultos
africanos ainda n ã o estavam organizados.
429

E m terras b r a s i l e i r a s , e n t r a v a m e m c o n t a t o a f r i c a n o s de diferentes culturas Para


melhor controla-los e m c a d a p l a n t a ç ã o m i s t u r a v a m - s e escravos de etnias di ersa S

q u e p r o v a v e l m e n t e l e v o u a c n a ç ã o d e c u l t o s o r i g i n a i s . D o i s deles rapidamente se
«npuscram: o banto c o fon, e ioruba P o v o a d a s de espíritos relativos à natureza
ligados a n o s , florestas e m o n t a n h a s d a A f r i c a , as religiões b a n t o s se baseavam n o culto
dos a n t e p a s s a d o s m o r t o s . A o r e t i r a r seus a d e p t o s , à força, d o habitat tradicional e
q u e b r a r laços d e I t n h a g e m , a e s c r a v i d ã o p r o v o c o u u m a r u p t u r a nessas religiões que n o
Brasil, m o s t r a r a m - s e m u i t o p e r m e á v e i s a i n f l u ê n c i a s exteriores, inclusive reinterpretando
o c u l t o aos m o r t o s p r a t i c a d o p o r c a t ó l i c o s e p o r í n d i o s . N o s c a n d o m b l é s , por exem-
plo, os e s p í r i t o s d o s o r i x á s a f r i c a n o s e o s c a b o c l o s í n d i o s e r a m i n v o c a d o s , cada um em
sua p r ó p r i a l í n g u a , s e p a r a d a m e n t e , d u r a n t e a m e s m a c e r i m ô n i a de transe coletivo que
unia as d u a s c o m u n i d a d e s o p r i m i d a s , a a f r i c a n a e a a m e r í n d i a . Q u a n d o os bantos
r e i n t e r p r e t a r a m a f é c a t ó l i c a , a l g u n s s a n t o s c o m o S ã o B e n e d i t o o u S a n t a Efigênia, que
passam p o r ser s a n t o s n e g r o s , t o r n a r a m - s e a n t e p a s s a d o s familiares o u nacionais.

A esse c u l t o b a n t o o p u n h a - s e g e r a l m e n t e o c u l t o i o r u b a , mais fiel aos modelos


a f r i c a n o s : c a n d o m b l é s d a B a h i a , x a n g ô de P e r n a m b u c o e de Alagoas e batuques de
P o r t o A l e g r e s ã o c e r i m ô n i a s r e l i g i o s a s i o r u b a s . O s p o v o s n a g ô da G u i n é e do D a o m é ,
que c h e g a r a m e m g r a n d e n ú m e r o n o fim d o s é c u l o X V I I I , conseguiram influenciar
f o r t e m e n t e os c u l t o s b a n t o s m e n o s e s t r u t u r a d o s . S o b o n o m e coletivo de nagô há
diversas e t n i a s i o r u b a : k e t u , s a h e , a y o , e g b a , e g b a d o , ijesa e ijeba, de o n d e vieram
m u i t o s escravos d e s d e o final d o s é c u l o X V I I I . S u a c h e g a d a , relativamente tardia
porém m a c i ç a , t a l v e z e x p l i q u e o p a p e l p r e d o m i n a n t e q u e esse c u l t o desempenhou na
Bahia. 5 8

A religião d o s i o r u b a s é t ã o c o m p l e x a e e s t r u t u r a d a q u a n t o o c a t o l i c i s m o . 59
Para
os nagôs, a e x i s t ê n c i a h u m a n a se d e s e n v o l v e s i m u l t a n e a m e n t e em dois planos: o do
aié, isto é, o m u n d o visível e m q u e v i v e m o s , e o d o o r u m , o m u n d o do além. O
primeiro c o m p r e e n d e o u n i v e r s o f í s i c o e a v i d a de t o d o s os seres naturais, ao passo que
o s e g u n d o é u m e s p a ç o s o b r e n a t u r a l , p o v o a d o de seres, a b s t r a t o , i n f i n i t o , mas que nao
pode ser c o n f u n d i d o c o m o n o s s o c é u . N o espaço o r u m n ã o se e n c o n t r a m somente os
orixás, 60
as d i v i n d a d e s n a g ô s e t o d a espécie de antepassados, mas igualmente as 'dupli-
catas', os c o r p o s espirituais de t u d o o q u e se e n c o n t r a n o aiê. P o r conseguinte, o
espaço o r u m c o m p r e e n d e s i m u l t a n e a m e n t e o q u e p e r t e n c e ao aiê, inclusive a Terra e
o C é u e, e m c o n s e q ü ê n c i a , todas as e n t i d a d e s sobrenaturais associadas ao ar, à terra e
à água. O s orixás s ã o e s p e c i a l m e n t e associados à estrutura da natureza, do cosmo, ao
passo que os antepassados são associados à estrutura da sociedade.
C o m a diáspora, o a m b i e n t e a f r i c a n o foi de alguma forma transferido para o
terreiro, dividido e m d o i s espaços cujas características e funções sao diferentes u
primeiro c o m p r e e n d e c o n s t r u ç õ e s públicas e privadas que f o r m a m o espaço urban .
as casas-templos ( I l é - o r i x á ) , consagradas a u m orixá ou a um grupo de
construção q u e c o m p r e e n d e u m a parte estritamente reservada aos u m a

nha; u m a sala de entrada e outra semipública, destinada a certas celebrações, uma


430 BAHIA, SÉCULO X I X

g r a n d e sala p ú b l i c a , o n d e s ã o realizadas as c e l e b r a ç õ e s a b e r t a s a t o d o s ; por fim, a s

a c o m o d a ç õ e s , p e r m a n e n t e s o u t e m p o r á r i a s , d o s i n i c i a d o s e d e suas famílias. Entre


este ' e s p a ç o u r b a n o ' e o ' m a t o ' h á u m a casa ( I l é - I b o - A k u ) , o n d e são adorados os
m o r t o s . O ' e s p a ç o m a t o ' , acessível a p e n a s a o s s a c e r d o t e s , o c u p a 2/3 d o terreiro, com
d i f e r e n t e s á r v o r e s e a r b u s t o s c u j a s f o l h a s s e r v e m p a r a as p r á t i c a s l i t ú r g i c a s . 6 2
Eviden-
t e m e n t e , n o s é c u l o X I X n u m e r o s o s t e r r e i r o s n ã o p o d i a m t e r esta d u p l a estrutura
p o i s e s t a v a m i n s t a l a d o s e m casas s i t u a d a s n o C e n t r o d e S a l v a d o r : o t e r r e i r o urbano
n e s t e c a s o , p o s s u í a u m ' m a t o ' n o s e s p a ç o s v e r d e s q u e c e r c a v a m a c i d a d e {Diário da
Bahia, 2 de j u n h o de 1 8 5 9 ) . A p ó s a A b o l i ç ã o d a e s c r a v a t u r a , o s t e r r e i r o s buscaram
c o n d i ç õ e s ideais d e f u n c i o n a m e n t o , e s t a b e l e c e n d o - s e n a s p a r ó q u i a s semi-urbanizadas,
c o m o as d e V i t ó r i a e d e B r o t a s , p a r a o n d e , a l i á s , v i e r a m t a m b é m o s n e g r o s prove-
nientes do c a m p o .

O s i s t e m a r e l i g i o s o i o r u b a é d i n â m i c o . O c o n t e ú d o m a i s p r e c i o s o de u m terreiro
é o ase, a f o r ç a q u e t o r n a p o s s í v e l o p r o c e s s o v i t a l e a s s e g u r a o d e v i r . S e m o ase a
e x i s t ê n c i a ficaria p a r a l i s a d a , s e m p o s s i b i l i d a d e d e r e a l i z a ç ã o . E s t a f o r ç a é transmitida
p o r m e i o s m a t e r i a i s e s i m b ó l i c o s , m a s e x i g e a l g u m t i p o d e c o n t a t o , necessariamente
v o l u n t á r i o . T o d o s os m a t e r i a i s p r e s e n t e s n u m t e r r e i r o , b e m c o m o o s i n i c i a d o s , devem
r e c e b e r o ase, a c u m u l á - l o , m a n t ê - l o e d e s e n v o l v ê - l o . 6 3
N ã o v a m o s e n t r a r e m detalhes
s o b r e a c o m p l e x a c o m b i n a ç ã o e o f u n c i o n a m e n t o d o s três e l e m e n t o s — ase, orixás e
a n t e p a s s a d o s — q u e c o n s t i t u e m o s f u n d a m e n t o s d e s s e c u l t o . R e g i s t r e m o s apenas que
a c r e n ç a n u m a i n t e r v e n ç ã o p o d e r o s a , c a p a z d e d a r a o fiel u m a f o r ç a s u f i c i e n t e para
v e n c e r adversidades, era m a i s a t r a e n t e q u e as p r o m e s s a s d o c a t o l i c i s m o o u d o islamismo
para u m a v i d a feliz n o f u t u r o . O e s c r a v o e o a l f o r r i a d o r e c e b i a m m e l h o r o pragmatismo
dos c u l t o s a f r o - b r a s i l e i r o s . A d e m a i s , e n c o n t r a v a m , n o s t e r r e i r o s , s e g u r a n ç a e uma
h i e r a r q u i a s a c e r d o t a l c a p a z d e g a r a n t i r p r e s t í g i o p a r a o s q u e se s o b r e s s a í s s e m . O chefe
religioso se t o r n a v a c h e f e d e t o d a a c o m u n i d a d e , o r g a n i z a d a n a f o r m a de u m a vasta
família, parecida c o m a patriarcal, m a s s e m a ingerência dos brancos.

A t u d o isso se a c r e s c e n t a v a o c a r á t e r p o u c o c o e r c i t i v o dessas religiões negras.


N e n h u m c o m p r o m e t i m e n t o p a r t i c u l a r , n e n h u m a r e n ú n c i a , era i m p o s t a aos assisten-
tes dos c u l t o s , n e m m e s m o n o q u e dizia r e s p e i t o à p a r t i c i p a ç ã o e m atividades de outras
religiões. Essa d u p l a a d e s ã o , m u i t o c o m u m , se j u s t a p u n h a s e m p r o b l e m a s ao cotidiano
de escravos c a l f o r r i a d o s , d e a l g u m a f o r m a e n v o l v i d o s p e l o c r i s t i a n i s m o oficial. Pe-
cadas s i m u l t a n e a m e n t e , as duas religiões t i n h a m , c a d a u m a , suas regras, seus ambien-
tes, seus espaços físicos. N a s c i d a d e s , isso era v i v e n c i a d o t a m b é m nas confrarias, todas
elas católicas em sua f o r m a , m a s f r e q ü e n t e m e n t e perpassadas p o r esses cultos q " e

lembravam a Á f r i c a perdida.
N ã o se sabe se o c u l t o n a g ò , t ã o b e m - e s t r u t u r a d o , era p r a t i c a d o nas plantações
de c a n a - d e - a ç ú c a r , o n d e , a o q u e se s u p õ e , existiam t a m b é m cultos de origem banto.
O s escravos nagôs vieram s o b r e t u d o para as cidades. E m m e a d o s d o século X I >
numerosas notas p u b l i c a d a s nos j o r n a i s de Salvador relatavam ações policiais em
casas de alforriados, o u m e s m o fie negros nascidos livres, o n d e ocorriam celebrações
LIVRO V - A IGREJA
431

consideradas imorais. Percebe-se, no entanto, que eram ali encontradas pessoas de


todas as cores e todos os estatutos jurídicos, indicando uma capacidade de espraia-
mento que, entre os brasileiros, o islamismo não t e v e . 64
Segundo os jornais, esses
locais se multiplicaram depois da abolição do tráfico de escravos, movimentando
grandes somas de dinheiro, apropriadas por pretensos chefes religiosos. 65
Era este o
único aspecto que o establishment conseguia perceber nessa religião capaz de desper-
tar esperança nos pobres.

Apesar das denúncias da imprensa e da perseguição policial, esses cultos resistiram


ao tempo, mostrando talvez o quanto fora ilusória a cristianização promovida pelo
catolicismo r o m a n o . O m u n d o que se tentara romanizar estava cheio de pobres em
espírito e em verdades — que nada tinham a ver com teologia e dogmas. Queriam
integrar-se nas promessas de promoção social e de vida eterna presentes no modelo
branco, mas permaneciam fiéis a sentimentos de profunda religiosidade e a um forte
sentido de mistério. O combate de todos os dias, em meio a pobreza e dificuldades,
forjaram um povo aberto a todas as esperanças, corajoso, esperto e apto a defender-se
de todo tipo de agressão.
L I V R O VI

O COTIDIANO DOS HOMENS


QUE PRODUZIAM E TROCAVAM
C A P Í T U L O 24

S A L V A D O R : A C I D A D E N O SÉCULO XIX

"Entre o Bonfim e o cabo de Santo A n t ô n i o rasga-se uma formosa baía de duas léguas
de largura, no fundo da qual aparece a cidade de Salvador, edificada em anfiteatro
sobre uma encosta m u i t o escarpada. Vários edifícios consideráveis lhe dão uma apa-
rência de grandeza e de magnificência. O golpe de vista encantador que a construção
em anfiteatro dá à cidade perde muito do seu valor quando se põe pé em terra. A
montanha desce tão bruscamente para o mar que na praia não há mais espaço do que
o necessário para construir u m a só rua, cujas casas de um lado são banhadas pelo mar
e do outro aparadas de e n c o n t r o à montanha. (...) Esta Cidade Baixa é o centro dos
negócios; observa-se ali u m a grande atividade: transporte contínuo de mercadorias,
lojas muito freqüentadas, gritos de negros que vão e vêm nesse espaço tão estreito, que
ainda mais a u m e n t a o t u m u l t o . Se é acotovelado, fica-se atordoado. Quando não se
tem mais o que tratar nesta parte da cidade, procura-se deixá-la, com prazer tanto mais
vivo quanto ela é obscura e pouco asseada. (...) U m a vez chegado à Cidade Alta,
encontram-se ruas largas, calçadas e bem alinhadas; as casas são decentes e despidas das
tristes grades mouriscas que se observam com grande freqüência em Pernambuco." 1

Assim se expressava, em 1 8 1 7 , o francês Tollenare. Seu testemunho é corroborado


por quase todos os viajantes que vieram depois: a encantadora visão que de Salvador
*e tinha do alto-mar dava lugar à decepção, no desembarque. Em geral, porém, a
impressão melhorava quando se subia até o platô, no alto da escarpa. Seja como for,
Salvador sc apresentava aos olhos de um europeu do século X I X como uma cidade
imponente e notável.
Nossa Salvador do século X I X conservava os limites que a cidade tinha no século
anterior, com suas dez paróquias (a 1 1 , dos Mares, foi desmembrada em 1 8 7 1 das
a

paróquias do Pilar e de Santo Antônio Além do Carmo, como já v i m o s ) . Segundo os


autores da época, não era nem muito, nem pouco povoada. Na última terça parte do
século, as paróquias mais populosas eram as da Sé, de SanfAnna e de Santo A n t o n i o ,
além da paróquia do Carmo.

435
BAHIA, SÉCULO X I X
436

T o d o s os c a m i n h o s , t o d a s as ruas, c o n v e r g i a m n o e n t a n t o para os dois centros


mais a n t i g o s : o b a i r r o d a S é , n o t o p o d a e s c a r p a , e o d e C o n c e i ç ã o d a P r a i a , a paróquia
comercial, à beira-mar.

A CIDADE À BEIRA-MAR

E r a pois j u n t o a o m a r q u e as a t i v i d a d e s c o m e r c i a i s se e x e r c i a m , n u m estreito espaço,


l i m i t a d o p o r duas c o n s t r u ç õ e s r e l i g i o s a s : a o s u l , a b e l í s s i m a b a s í l i c a d e N o s s a Senhora
da C o n c e i ç ã o , q u e se e r g u e n o b a i r r o c h a m a d o ' d a P r e g u i ç a , e a o n o r t e — onde é
m e n o s í n g r e m e a ladeira q u e liga as c i d a d e s A l t a e B a i x a — a I g r e j a d e N o s s a Senhora
d o Pilar. Esse e s p a ç o , d e a p e n a s d o i s q u i l ô m e t r o s d e c o m p r i m e n t o , e r a c o r t a d o , até
1 8 7 0 , p o r u m a ú n i c a r u a p a r a l e l a a o m a r . N e l a e s t a v a m os p r é d i o s da Alfândega, do
C e l e i r o P ú b l i c o , d o A r s e n a l d a M a r i n h a e o d a B o l s a d e M e r c a d o r i a s , c o n s t r u í d o em
1 8 1 6 e m estilo n e o c l á s s i c o , e d e t o d o s o m a i s e l e g a n t e ( h o j e , f u n c i o n a ali a Associação
Comercial da B a h i a ) . E r a t a m b é m nessa r u a q u e ficavam os e n t r e p o s t o s e armazéns
o n d e se g u a r d a v a m os p r o d u t o s d e s t i n a d o s a e x p o r t a ç ã o e os q u e c h e g a v a m de ultra-
m a r . N e l a se c o n c e n t r a v a a i n d a u m a p r o f u s ã o d e b a z a r e s , l o j a s e m e r c a d o s e m que se
p o d i a c o m p r a r t o d a s o r t e d e m e r c a d o r i a s , d e l e g u m e s f r e s c o s a escravos.
E s t e s e r a m p o s t o s à v e n d a e m g r u p o , o u à p o r t a d a s l o j a s d o s p r o p r i e t á r i o s , ou2

n u m m e r c a d o e s p e c i a l , c o m o a q u e l e d e s c r i t o p e l o a l e m ã o F r e y r e s s : " O s escravos,
a m o n t o a d o s às c e n t e n a s n u m b a r r a c ã o , e s t ã o v e s t i d o s a p e n a s c o m u m l e n ç o ou trapo
de lã c m t o r n o d o v e n t r e . P o r u m a q u e s t ã o d e h i g i e n e , s ã o - I h e raspados os cabelos.
Assim nus e p e l a d o s , s e n t a d o s a o c h ã o , o l h a n d o c u r i o s a m e n t e o s q u e passam, não
diferem m u i t o , n a a p a r ê n c i a , d o s m a c a c o s ! " " M u i t o s e s c r a v o s " , acrescentava o natura-
lista, " j á v ê m d a Á f r i c a a t é m e s m o m a r c a d o s a f e r r o q u e n t e , c o m o a n i m a i s . " 3

E m lojinhas minúsculas — t a b e r n a s , livrarias e d r o g a r i a s , p o r e x e m p l o — * em


e s t a b e l e c i m e n t o s m a i s o u m e n o s b e m c u i d a d o s o u e m t e n d a s improvisadas, expu-
n h a m - s e r o u p a s , b i j u t e r i a s e t e c i d o s , s a p a t o s e b e b i d a s , r e m é d i o s para o c o r p o e para
os h u m o r e s , e o f e r e c i a m - s e t o d o s o s serviços necessários a residentes ou viajantes:
alfaiates, b a r b e i r o s , serralheiros, t o n e l e i r o s , f u n i l e i r o s , fabricantes d e f u m o para mas-
car ou de rapé. M u i t a s ruas e p r a c i n h a s d o bairro eram c o n h e c i d a s pelos n o m e s desses
ofícios h u m i l d e s : rua ' d o Peso d o F u m o ' , rua 'das G r a d e s d e F e r r o ' , praça 'dos T o n e -
leiros', praça ' d o s B a r b e i r o s ' , rua ' d o s C a l d e i r e i r o s ' . A i n d a h o j e , e m b o r a todos esses
n o m e s tenham desaparecido, velhos b a i a n o s ainda se l e m b r a m da época em que po-
diam evocar, naquele t r e c h o da cidade, t o d o u m m u n d o a n t i g o d e trabalhadores que
se misturavam, e aos quais seria preciso acrescentar os vendedores ambulantes e os
verdureiros, sem esquecer os escravos ' d o s cantos*.
Estes eram escravos q u e se postavam e m grupos, e m determinados locais o S

cantos' — , à espera de q u e solicitassem seus serviços, seja n o transporte d e carga, seja


na c o n s t r u ç ã o . T a m b é m c h a m a d o s escravos ' d e g a n h o ' , agrupavam-se p o r etnia de
l i V R O V I - O C O T I D I A N O DOS HOMENS QUE PRODUZIAM E TROCAVAM
43"

o r i g e m . S e g u n d o P . e r r e V e r g e r , s o b as arcadas de Santa Bárbara ficava o 'canto" dos


g u r u n c . s e. a a l g u n s passos dali, e n t r e S a n t a B á r b a r a e o H o t e l das N a ç õ e s o dos
haussas. O s n a g o s . m a . s n u m e r o s o s , se r e u n i a m no m e r c a d o e na rua d o C o m é r c i o no
lugar c h a m a d o " C o b e r t o G r a n d e ' , e en, vários p o n t o s da rua das Princesas, só inaugu-
rada e m 1 8 6 6 . O s m e m b r o s de c a d a g r u p o o b e d e c i a m às ordens do c a p i t á o - d o - c a n t o
responsável p o r sua d i s c i p l i n a p e r a n t e as a u t o r i d a d e s . E n q u a n t o os clientes não apare-
c i a m . n u n c a ficavam i n a t i v o s : c o n f e c c i o n a v a m c h a p é u s e cestos de palha, correntes de
a r a m e p a t a p r e n d e r p a g a g a i o s , gaiolas, c o l a r e s e braceletes de c o n t a s de otigem vegetal
ou a n i m a l .

A rua era t a m b é m l u g a r de c o m e r e beber. D e s d e as primeiras horas da manhã,


negras g a n h a d e i r a s ' c o m e ç a v a m a p r e p a r a r c a n j i c a , m i n g a u de tapioca, acaçás bem
quentes de f a r i n h a a r r o z e d e m i l h o , a r r o z c o m c a r n e - s e c a , i n h a m e cozido e t c . 4
Am-
bulantes, p o r sua vez, o c u p a v a m t o d o e q u a l q u e r espaço livre para oferecer frutas,
peixes fritos e g u l o s e i m a s .

Se a c r e s c e n t a r m o s a t u d o isto as c a d e i r i n h a s — o u cadeiras de arruar — , os porcos


e os c a c h o r r o s , os pássaros e n g a i o l a d o s , os negros a a p r e g o a r tapetes o u chapéus e as
valetas o n d e a p o r t a v a m , v i n d a s das lojas e das casas, todas as imundícies imagináveis,
teremos u m a idéia d o a t r a v a n c a m e n t o , dos ruídos e dos odores que reinavam nesse
industrioso b a i r r o d a c i d a d e . 5

M a s foi às c o r e s d o b a i r r o q u e S c h w i e g e r , p a s t o r p r o t e s t a n t e que visitou Salvador


em 1 8 9 7 , m o s t r o u - s e p a r t i c u l a r m e n t e sensível: ressaltou as grandes árvores verdes, os
frutos e legumes m u l t i c o r e s , os m a c a c o s c o r - d e - r o s a e m a r r o n s , os papagaios de penas
amarelas, azuis e a c i n z e n t a d a s , as a m e t i s t a s b r a n c a s e os límpidos cristais de rocha,
d e s o r d e n a d a m e n t e e x p o s t o s nos c o l o r i d o s m e r c a d o s . C a b e observar que, até o fim do
6

século, esses m e r c a d o s d a C i d a d e B a i x a f o r a m os únicos verdadeiros centros comer-


ciais da cidade. A v e n d a de peixes o u de q u a r t o s de carne na C i d a d e Aira era inclusive
proibida. 7

Todos os observadores se i m p r e s s i o n a v a m , t a n t o c o m o c o n j u n t o arquitetônico


c o m o c o m o labirinto de ruelas tortuosas que desciam d o pé da escarpa e cortavam a
comprida tua longitudinal. Mais tarde, novas superfícies foram conquistadas ao mar
t novas ruas paralelas à primeira vieram desafogar um espaço que, não obstante,
continuou repleto.
Assim, se ganhavam alguns metros quadrados de terreno, as paróquias da orla
marítima não perdiam seu caráter industrioso e turbulento, sem falar da sujeira, i n d e -
fectível nos relatos da época. A inglesa Maria G r a h a m , que conhecera outros países,
afirmou cm 1821 jamais ter visitado lugar mais emporcalhado que a Cidade Baixa de
Salvador. Alguns anos mais tarde, o francos Ferdinand Denis e o missionário metodista
8

Daniel P. Kidder, n o r t e - a m e r i c a n o , descreveram também a imundície das ruas. Mas


foi o cônsul inglês Wetherell. que residiu na Bahia de 1 8 4 3 a 1 8 5 7 , que deixou as
imagens mais fortes: " D e manhã, ao se passar pelas ruas da Cidade Baixa o nariz do
transeunte é assaltado por u m a profusão de cheiros, que positivamente nada tem a ver
BAHIA, SÉCULO XIX
438

c o m o s d a ' A r á b i a b e m - a v e n t u r a d a ' ! D e t o d o l a d o as a t i v i d a d e s c u l i n á r i a s dos pretos


e s t ã o e m a n d a m e n t o (...) f o r m a m m a i s u m p r a t o q u e e x a l a o m e s m o c h e i r o execrável."'
A C â m a r a M u n i c i p a l t e n t a v a e m v ã o l u t a r c o n t r a essa f a l t a d e h i g i e n e , editando
r e e d i t a n d o p o s t u r a s p a r a d i s c i p l i n a r a p o p u l a ç ã o e e n s i n á - l a a n ã o repetir gestos
e
secu lares, c o m o o d e l a n ç a r às ruas d e t r i t o s e á g u a s s u j a s . C a b e a c r e s c e n t a r q U e a

C i d a d e B a i x a r e c e b i a f o r ç o s a m e n t e o a f l u x o d e t o d a s as valas e t o d a s as i m u n d í c i e s das
casas c o n s t r u í d a s a c i m a , e m b o r a r e g u l a m e n t o s o b r i g a s s e m o s h a b i t a n t e s da Cidade
A l t a a r e c o l h e r seus d e j e t o s l o n g e d o m a r . 1 0

S e m c a n a l i z a ç õ e s o u e s g o t o s , c e n t r o d e v e n d a d e p r o d u t o s p e r e c í v e i s c o m o carnes,
peixes o u frutas, e n t u p i d a d u r a n t e o d i a p o r u m a m u l t i d ã o e x c e s s i v a p a r a o espaço
d i s p o n í v e l , a z o n a d o p o r t o , s o b r e t u d o s o b o c a l o r ú m i d o d o v e r ã o t r o p i c a l , dava
náuseas a o v i a j a n t e e s t r a n g e i r o , p o u c o a f e i t o a o o d o r d o s a l i m e n t o s e x ó t i c o s . A i n d a em
1 9 0 9 , o m é d i c o f r a n c ê s L a t t e a u x q u e i x a v a - s e d e t e r d e s e m b a r c a d o " e m m e i o a imun-
dícies e d e t r i t o s i n o m i n á v e i s " . " E i n f e c t o " , a c r e s c e n t a v a , " t e m - s e a i m p r e s s ã o de estar
e m certas c i d a d e s d o O r i e n t e , p o r o n d e j a m a i s p a s s o u u m a v a s s o u r a . " 1 1

C i d a d e B a i x a , c i d a d e s u j a , m a s c i d a d e m u i t o v i v a . O s p r e g õ e s dos vendedores
a m b u l a n t e s se m e s c l a v a m à m e l o p é i a b e m - r i t m a d a d o s c a r r e g a d o r e s n e g r o s curvados
sob pesadas c a r g a s , e m s e u v a i v é m . C i d a d e s u j a m a s c o l o r i d a , i n c l u s i v e pelas roupas e
as peles variadas d a s u a g e n t e . V e r d a d e i r a c i d a d e - p o r t o , o n d e o m a i s h u m i l d e acoto-
velava o m a i s i n s i g n e n o s a f a z e r e s d a v i d a c o t i d i a n a .

Esses ' i n s i g n e s ' , h o m e n s o r g u l h o s o s d e s u a p o s i ç ã o s o c i a l o u d e s e u sucesso, eram


grandes c o m e r c i a n t e s b a i a n o s o u e s t r a n g e i r o s d e q u e m , e m g r a n d e p a r t e , dependiam
o d e s t i n o e a paz d o s h a b i t a n t e s d o l u g a r . A p e s a r d o d e s l o c a m e n t o d e m u i t a s famílias
de c o m e r c i a n t e s p a r a o n o v o e m a i s s a l u b r e b a i r r o d e V i t ó r i a , b o m n ú m e r o de burgue-
ses c o n t i n u o u a residir nas p r o x i m i d a d e s d o p o r t o . A l i , i n s t a l a d o s e m casas de quatro,
c i n c o e até seis p a v i m e n t o s , c o m a n d a v a m seus p e q u e n o s i m p é r i o s . 1 2
A descrição da
casa de u m g r a n d e c o m e r c i a n t e b a i a n o , f e i t a p o r h i s t o r i a d o r e s l o c a i s , n o s mostra, no
térreo, o e m p ó r i o , o n d e se e m p i l h a v a m as m e r c a d o r i a s ; n o s e g u n d o a n d a r , os apo-
sentos da f a m í l i a ; n o t e r c e i r o , o s d o s c a i x e i r o s ; n o q u a r t o , o s escravos; n o q u i n t o e no
sexto, p o r f i m , n o v a m e n t e m e r c a d o r i a s e s t o c a d a s . Essas casas e m geral eram cons-
truídas d e materiais leves, u m a m i s t u r a d e t i j o l o e argila, às vezes de pedra e cal. Os
c ô m o d o s eram n u m e r o s o s e as f a c h a d a s , m u i t a s vezes, e n f e i t a d a s c o m azulejos vindos
de P o r t u g a l .
O s p e q u e n o s lojistas v i v i a m n o s f u n d o s das l o j a s . O r e s t a n t e da população ocu-
pava q u a r t o s c m i m ó v e i s , n u m a p r o x i m i d a d e p r o m í s c u a e n t r e famílias. Pode-se ter
u m a idéia das plantas e d o t a m a n h o desses i m ó v e i s a p a r t i r de descrições feitas por
c o n t e m p o r â n e o s na p r i m e i r a m e t a d e d o s é c u l o X I X e dos desenhos de interiores,
feitos mais r e c e n t e m e n t e por a r q u i t e t o s d a F u n d a ç ã o d o P a t r i m ô n i o Artístico e Cul-
tural da B a h i a . E m b o r a vivessem a b s u r d a m e n t e a m o n t o a d o s e e m c o n d i ç õ e s de total
desconforto, 13
d a n d o aos visitantes a impressão d e q u e a C i d a d e Baixa era densamen-
te povoada, os q u e ali residiam eram de fato p o u c o n u m e r o s o s .
LivKo V I - O C O ^ O D O S H O M E N S O U H PRODUZIAM E TROCAVAM
43»

F m d o o d , a , a m a i o r parte: das p e s s o a s d e m a n d a v a as ladeiras í n g r e m e s , as trilhas


ou escadarias r u m o a C i d a d e A l t a ; o u t r a s , t o m a n d o a praia, se dirigiam para o norte
além d o B o n f i m , a t é I t a p a j i p e e sua p e n í n s u l a , q u e o f e r e c i a mais e s p a ç o para seus
casebres o u q u i n t a i s . T r a j e t o s c a n s a t i v o s , p o r q u e as d i s t â n c i a s e r a m longas e os c a m i
nhos m a l p a v i m e n t a d o s , n u m a c i d a d e e m q u e o s p r i m e i r o s t r a n s p o r t e s coletivos só
a p a r e c e r a m a p ó s 1 8 5 0 : c h a m a v a m - s e b o n d e s essas e s p é c i e s de p e q u e n o s ô n i b u s puxa-
dos p o r c a v a l o s , c u j o s p r e ç o s , aliás, e r a m i n a c e s s í v e i s à p o p u l a ç ã o . O s privilegiados, os
mais r i c o s , d e s l o c a v a m - s e n a s c a d e i r i n h a s , q u e , e m b o r a d e s c o n f o r t á v e i s , os p u n h a m a
salvo das c h u v a s d o i n v e r n o t r o p i c a l , d o s c a l o r e s d o v e r ã o e da l a m a suja de todas as
estações, e m q u e p a t i n h a v a m o s pés d e s c a l ç o s de seus escravos, m o l h a d o s de suor sob
o peso d o p a l a n q u i m r u t i l a n t e . M e s m o q u a n d o , p o r v o l t a d o fim d o século, os trans-
portes c o l e t i v o s se i m p u s e r a m , bom n ú m e r o de b a i a n o s se o b s t i n a v a em se fazer
carregar p o r b r a ç o s h u m a n o s ; 1
e r a , aliás, u m m e i o de t r a n s p o r t e m e n o s dispendioso
que o b o n d e !

A t é p o r v o l t a d e 1 8 9 0 , r u a s e c a m i n h o s de S a l v a d o r c o n s e r v a r a m - s e tal c o m o
V i l h e n a os d e s c r e v e r a n o i n í c i o d o s é c u l o . A ú n i c a n o v a via p ú b l i c a , c o n s t r u í d a entre
a C i d a d e A l t a e a C i d a d e B a i x a , foi a f a m o s a l a d e i r a da M o n t a n h a , larga e espaçosa,
não m u i t o í n g r e m e , a b e r t a à c i r c u l a ç ã o e m 1 8 7 8 , p r o p o r c i o n a n d o u m a ligação mais
fácil e n t r e a c i d a d e d e c i m a e seu i n d u s t r i o s o p o r t o .
A p r i m e i r a l i n h a d e b o n d e d e b u r r o foi i n s t a l a d a na C i d a d e Baixa em 1 8 6 6 , sob
os a u s p í c i o s d o a u s t r í a c o R a p h a e l A r i a n i , f a z e n d o a ligação e n t r e a paróquia da P e n h a
e as de C o n c e i ç ã o d a P r a i a e d o P i l a r . T r ê s a n o s m a i s t a r d e , o m e s m o percurso era feito
por u m a l i n h a d e b o n d e s u r b a n o s , c h a m a d o s v e í c u l o s e c o n ô m i c o s , que se multiplica-
tam a p a t t i r de 1 8 6 9 .

A CIDADE ALTA

O intenso vaivém e n t r e C i d a d e B a i x a e C i d a d e A l t a t i n h a seu clímax em dois m o -


m e n t o s d o dia: as p r i m e i r a s horas da m a n h ã , q u a n d o desciam negociantes e trabalha-
dores, v e n d e d o r e s a m b u l a n t e s e c a r r e g a d o r e s ; o fim d a tarde, q u a n d o subiam para Sao
B e n t o " c o m e r c i a n t e s a b a f a d o s a l i m p a r o suor dos rostos lustrosos, a negraria dos
mercados e cais, de c e s t o à c a b e ç a , e m m a g o t e s faladores, empertigados caixeiros com
seus ares de s ó c i o s de casas fortes, m e n i n o s e raparigas que vinham de compras sobra-
çando p a c o t e s , v e n d e d o r e s de gazetas a apregoar o Diário e a Tribuna". Todas as
classes sociais se misturavam nas ladeiras da C o n c e i ç ã o da Gameleira e, a partir de
1 8 7 1 , n o elevador c o n s t r u í d o pelo c o m e r c i a n t e e c o m e n d a d o r A n t ô n i o de Lacerda.
Ladeiras e elevador levavam os trabalhadores até a paróquia da S e .
Algumas paróquias mais distantes já eram importantes desde o início dc.século:
Santo A n t ô n i o Além d o C a r m o , Nossa S e n h o r a de S a n t ' A n n a , Paço, Sao Pedro o
V e l h o . E r a m bairros residenciais arejados por jardins e praças, onde se erguiam muitos
BAHIA, S É C U L O XIX

e d i f í c i o s p ú b l i c o s , c o n v e n t o s e igrejas e t a m b é m m e r c a d o s . F o n t e s e p o ç o s se espalha-
v a m p o r t o d a p a r t e , nessa c i d a d e o n d e a á g u a d o c e e s t á s e m p r e a o a l c a n c e d e q u e m se
d á a o t r a b a l h o de cavar u m p o u c o .
A paróquia da S é — p u l m ã o a d m i n i s t r a t i v o da c i d a d e e da P r o v í n c i a — concen-
trava o m a i o r n ú m e r o d e p r é d i o s p ú b l i c o s e r e l i g i o s o s : e m t o r n o d e s u a p r a ç a central
e r g u i a m - s e o p a l á c i o d o p r e s i d e n t e d a P r o v í n c i a , a s e d e d a P r e f e i t u r a , a C a s a da M o e d a
e o T r i b u n a l d e I n s t â n c i a . M a i s a n o r t e , a r u a d a M i s e r i c ó r d i a — o n d e ficava a Santa
Casa, i m p o n e n t e c o n s t r u ç ã o d o século X V I I — levava a o p a l á c i o episcopal, construído
a o lado da a n t i g a c a t e d r a l , d e 1 5 5 1 , q u e v i r i a a ser d e m o l i d a e m 1 9 3 3 p a r a a b r i r espaço
diante do palácio a r c e b i s p a l . 1 7
E s c o l h i d o p o r t o d a s as o r d e n s r e l i g i o s a s p a r a s e d i a r seus
c o n v e n t o s e igrejas, esse b a i r r o i m p r e s s i o n a v a , n o s é c u l o X I X , p e l a extraordinária
riqueza de seus m o n u m e n t o s .
As c o m u n i c a ç õ e s e r a m r e l a t i v a m e n t e f á c e i s n a C i d a d e A l t a , a o l o n g o d o s vales que
s e r p e n t e i a m e n t r e as m u i t a s c o l i n a s d o horstcm q u e se e m p o l e i r a S a l v a d o r . D e 1 8 5 1
a 1859, fizeram-se o b r a s p a r a c a n a l i z a r e c o b r i r p a r c i a l m e n t e o r i o d a s T r i p a s , o que
e l i m i n o u as i n c o n t á v e i s p o n t e s e passarelas d a e r a c o l o n i a l ( h o j e , esse rio é i n t e i r a m e n -
te s e c o , m a s n a é p o c a c o r r i a a n o r o e s t e d a c i d a d e , a t r a v e s s a n d o u m v a l e e m cujos
declives e s t a v a m c o n s t r u í d a s as c a s a s ) .

O q u a d r o geral e r a o d e u m a c i d a d e m u i t o v e r d e , t o d a e m s u b i d a s e descidas;
a l g u m a s p a r ó q u i a s , c o m o as de V i t ó r i a e B r o t a s , e r a m q u a s e r u r a i s , a o p a s s o q u e a de
Nossa S e n h o r a d a P e n h a , a o n o r t e , p a s s o u a c o n c e n t r a r u m a i n d ú s t r i a têxtil q u e aii
fixou u m a m ã o - d e - o b r a b a s t a n t e c o n s i d e r á v e l . A s s i m , e n q u a n t o a p a r ó q u i a d e V i t ó r i a
se t o r n a v a c a d a vez m a i s a r i s t o c r á t i c a , a d a P e n h a a s s u m i a u m c a r á t e r c r e s c e n t e m e n t e
popular. C o n h e c e m o s p o u c o , i n f e l i z m e n t e , d a h i s t ó r i a dessa m u t a ç ã o , m a s s a b e m o s
q u e , a partir de m e a d o s d o s é c u l o X I X , I t a p a j i p e , r e l a t i v a m e n t e d i s t a n t e d o c e n t r o de
Salvador, já t i n h a fácil c o m u n i c a ç ã o c o m o p o r t o p o r t r a n s p o r t e s m a r í t i m o s e terrestres.
E r a na C i d a d e A l t a , q u e r e u n i a as c i n c o p a r ó q u i a s ' c e n t r a i s ' ( S é , S a n t o A n t ô n i o
Aiém d o C a r m o , S a n t a n a , S ã o P e d r o o V e l h o e P a ç o ) , q u e se c o n c e n t r a v a o grosso da
p o p u l a ç ã o b a i a n a , v i v e n d o na m a i s c o m p l e t a p r o m i s c u i d a d e s o c i a l : artesãos livres,
alforriados, escravos, f u n c i o n á r i o s , b u r g u e s e s e n o b r e s m o r a v a m lado a lado, numa
babel de casas, igrejas, c o n v e n t o s , u m e m a r a n h a d o de c a m i n h o s , praças, becos e
travessas q u e s o b e m c d e s c e m c c u j a s ligações e s c a p a m a o r e c é m - c h e g a d o " . 1 9
Ao lado
de modestas casinhotas de taipa, m u i t a s das q u a i s e x i b i a m a p e n a s u m a porta c uma
janela, erguiam-se pretensiosos palacetes n o b r e s , c o m o a ' G a s a dos S e t e C a n d e e i r o s , 1

o paço d o S a l d a n h a e o solar d o F e r r ã o , ou a i n d a prédios d c dois, três ou quatro


p a v i m e n t o s . Alguns eram i n t e i r a m e n t e o c u p a d o s p o r famílias burguesas d c senhores
de e n g e n h o , grandes c o m e r c i a n t e s e profissionais liberais; o u t r o s , divididos c m aloja-
m e n t o s , eram partilhados por toda espécie de g e n t e ; d c escravos 'de g a n h o ' a pequenos
funcionários públicos.
As informações q u e restaram do r e c e n s e a m e n t o de 1 8 5 5 m o s t r a m alguns aspectos
dessa promiscuidade social: t o m e m o s por e x e m p l o as casas q u e ficam atrás da rua da
— - " ° C
" m
" ™ Paoouz,„,, TROCAVAM
441

A.uda na 2 1 - c r c u n s c n ç a o da p a r ó q u i a da S c . H a v i a ali sete casas, seis delas h a b i t a -


das. D e s t a s , c i n c o e r a m t é r r e a s e a o u t r a u m s o b r a d o , c o m dois pavimentos N „ « 6

m o r a v a m d o t s m u l a t o s l.vres e u m p o l i c i a l , t a m b é m m u l a t o ; t i n h a m , respectivamente
3 0 , 2 3 e 2 4 a n o s e n e n h u m l a ç o de p a r e n t e s c o e n t r e si. N o n<> 8 , mais mulatos- a d o n a
da casa, Luiza M a n a C o n c e i ç ã o , 2 7 , s o l t e i r a , vivia c o m os três filhos e um irmão
M a n u e l da C u n h a P i n h e i r o , 2 2 a n o s , s o l t e i r o e m a r c e n e i r o . N o n ° 1 2 , o portu uês
Joaquim Rodrigues Vidal, m u l a t o , 2 6 anos, viúvo e c h a p e l e i r o , morava c o m a T ã e '
Gervaza P o r t á c i a J u l i a n a , m u l a t a , s o l t e i r a , 4 4 a n o s , e d o i r m ã o de doze anos, J o s é
M a r i a R o d r i g u e s V i d a l . N o n ° 1 4 m o r a v a m d o i s p o r t u g u e s e s b r a n c o s , J o s é A n t ô n i o de
Souza B r a g a , 4 9 a n o s , c o m e r c i a n t e , e seu c a i x e i r o J o s é L u i z P i n t o , de dezoito anos.
C o m a f a m í l i a d e M a l a q u i a s R o d r i g u e s dos S a n t o s , q u e o c u p a v a o n ° 1 3 , voltamos aos
m u l a t o s . O p a i , M a l a q u i a s , t i n h a 3 2 a n o s e era c a r p i n t e i r o ; sua m u l h e r , Felícia M a r i a ,
trinta a n o s , era o r i g i n á r i a d e N a z a r é , n o R e c ô n c a v o ; t i n h a m duas filhas, M a r i a Angé-
lica e M a r i a d a C o n c e i ç ã o , c o m d e z o i t o (sic) e seis a n o s , r e s p e c t i v a m e n t e (há evidente
engano na idade da p r i m e i r a ) .

O n ° 1 8 era u m s o b r a d o . N o t é r r e o havia três a l o j a m e n t o s : n u m deles vivia


J o a q u i m Alves d a S i l v a , 3 4 a n o s , m u l a t o , s o l t e i r o , t o r n e i r o ; em o u t r o , I g n a c i o Alves
dos S a n t o s , t a m b é m m u l a t o e s o l t e i r o , 2 5 a n o s , alfaiate. O terceiro era o c u p a d o pela
família da m u l a t a I n o c ê n c i a M a r i a R o m a n a , t r i n t a a n o s , solteira, q u e vivia c o m a mãe
e dois filhos. N o s e g u n d o p a v i m e n t o vivia a f a m í l i a d o e m p r e g a d o do c o m é r c i o J o s é
Lopes da C u n h a M e l l o , p o r t u g u ê s ; t i n h a q u a r e n t a a n o s , era viúvo e vivia c o m os
filhos, A d e l a i d e , q u i n z e a n o s , e J o s é , três a n o s , u m a p e q u e n a escrava (nascida no
Brasil) c h a m a d a M a r i a , d e s e t e a n o s , e três a g r e g a d a s , todas mulatas e solteiras: M a r i a
L e o c á d i a , q u a r e n t a a n o s , U r s u l i n a Alves de M a t o s , v i n t e a n o s , e M a r i a Agostinha, oito
anos. N a rua D i r e i t a d a A j u d a , n e s s a m e s m a c i r s c u n s c r i ç ã o , coabitavam no m e s m o
prédio o u na m e s m a r u a : n e g r o s e negras livres q u e eram pedreiros, domésticas ou
cozinheiras; m u l a t o s e m u l a t a s livres, e n t r e os q u a i s u m a a m a - d e - l e i t e , uma professora
primária a p o s e n t a d a , u m p r o f e s s o r de f r a n c ê s , u m alfaiate, u m sapateiro, um marce-
neiro c u m e s t u d a n t e ; a f r i c a n o s a l f o r r i a d o s q u e c o n t i n u a v a m a exercer suas atividades
'de g a n h o ' o u a lavar r o u p a ; e, p o r fim, b r a n c o s q u e eram pequenos funcionários,
estudantes, caixeiros, l o j i s t a s . 2 0

O u t r o t i p o de d o c u m e n t a ç ã o c o n f i r m a p l e n a m e n t e essa diversidade social: as


'qualificações' para as e l e i ç õ e s . E n c o n t r a m o s as de 1 8 6 2 para esse m e s m o quarteirão da
circunscrição da S é . Estas eram as profissões dos cidadãos ativos: médicos, advogados,
músicos, ourives, m a r c e n e i r o s , sapateiros, f u n c i o n á r i o s públicos, marujos de saveiro,
charuteiros, c o m e r c i a n t e s , alfaiates, escrivães, pedreiros, caixeiros, pintores, cala ates,
pessoas que viviam de rendas e t c . 2
.
Nesse c o n j u n t o , p r e d o m i n a v a m e v i d e n t e m e n t e as categorias sociais interme i -
rias, mas o e l e m e n t o b u r g u ê s , representado pelas profissões liberais e os comerciantes,
tinha aí presença expressiva: entre 6 6 cidadãos ativos do 2 1 ° quarteirão, 2 3 pertencia
a essas c a t e g o r i a s . 22
C a l d e a m e n t o racial e social tão intensos, que é impossível elass -
442 BAHIA, S É C U L O XIX

ficar s o c i a l m e n t e as várias p a r ó q u i a s de S a l v a d o r : a t i v i d a d e s e c o n ô m i c a s , fortunas e


p o s i ç õ e s s o c i a i s d í s p a r e s se a c o t o v e l a v a m n u m m u n d o e m q u e as d i f e r e n ç a s ainda não
estavam rigidamente cristalizadas.
E s s a h e t e r ó c l i t a p o p u l a ç ã o c i r c u l a v a pelas r u a s , j a r d i n s e a v e n i d a s d a C i d a d e Alta
c u j a a m p l i d ã o e asseio, aliás, t o d o s os v i a j a n t e s l o u v a v a m . D e v e - s e observar, porém
q u e esse asseio era b a s t a n t e r e l a t i v o . A s s i m c o m n a C i d a d e B a i x a , a l i m p e z a e a con-
s e r v a ç ã o das ruas d a C i d a d e A l t a era p r o b l e m á t i c a . A C â m a r a M u n i c i p a l multiplicava
e m v ã o as p o s t u r a s q u e p r o i b i a m o l a n ç a m e n t o de águas usadas e d e t r i t o s nas ruas ou
a p a s s a g e m de a n i m a i s pelas vias p ú b l i c a s . E r a c o m u m q u e n e l a s se abandonassem
a n i m a i s m o r t o s , q u e ali a p o d r e c i a m , e x a l a n d o o d o r e s n a u s e a b u n d o s . 2 3
A s posturas sobre
l i m p e z a e r a m r e n o v a d a s pela M u n i c i p a l i d a d e a c a d a a n o , e s t i p u l a n d o altas multas e
a m e a ç a n d o os i n f r a t o r e s c o m a p r i s ã o .

D e f a t o , a C i d a d e A l t a era a p e n a s u m p o u c o m e n o s s u j a q u e a C i d a d e Baixa.
A d e m a i s , n ã o era b e m - p a v i m e n t a d a . D i z i a W e t h e r e l l , p o r v o l t a de 1 8 4 0 : " A pavimen-
t a ç ã o das ruas é das p i o r e s : e n o r m e s p e d r a s i n t e r c a l a d a s c o m p e q u e n a s , s e m a menor
regularidade, p o r vezes j u n t a s e a p e r t a d a s , p o r o u t r a s q u a s e soltas, t o r n a m perigosa
q u a l q u e r c a m i n h a d a . U m a vez e s t r a g a d a s , as ruas p a r e c e m n u n c a ser consertadas, fican-
d o assim, c o n d e n a d a s a se t o r n a r e m , c o m o d e c o r r e r d o t e m p o , q u a s e i n t r a n s i t á v e i s . " 24

A p o l í t i c a d o s p o d e r e s p ú b l i c o s e m f a c e d e s s a s i t u a ç ã o era h e s i t a n t e : o r a se encar-
r e g a v a m d a p a v i m e n t a ç ã o e c o n s e r v a ç ã o das r u a s , o r a e x i g i a m q u e os p r ó p r i o s mora-
dores o fizessem. U m d e c r e t o d e 1 8 5 0 d e t e r m i n o u a p a v i m e n t a ç ã o d e a l g u m a s grandes
artérias até o B o n f i m , p e n í n s u l a d e I t a p a j i p e ; a l g u n s a n o s m a i s t a r d e , a M u n i c i p a l i d a d e
m a n d o u p a v i m e n t a r o S o d r é , a s u b i d a d e S a n t a T e r e s a e o C a m p o G r a n d e , calçar a rua
da V a l a ( 1 8 6 3 ) , a p l a i n a r o C a m p o d a P ó l v o r a e a b r i r u m a a v e n i d a e n t r e o R e t i r o e o
Engenho Conceição. 2 5
P o u c o "a p o u c o , s e n s í v e i s m e l h o r i a s a c a b a r a m p o r facilitar a
c o m u n i c a ç ã o e n t r e as d i f e r e n t e s p a r ó q u i a s d a c i d a d e , o q u e p e r m i t i u a abertura de
novos mercados, c o m o o da rua da V a l a , de a l i m e n t o s .

P r o b l e m a m a i o r q u e a p a v i m e n t a ç ã o das r u a s , n a q u e l a i m e n s a c i d a d e sem esgotos,


era a h i g i e n e , t e m a c o n s t a n t e n o s d e b a t e s d o s c o n s e l h o s m u n i c i p a i s . E r a c o s t u m e cavar
l o n g i t u d i n a l m e n t e , n o m e i o das ruas, u m a v a l e t a d e s t i n a d a ao e s c o a m e n t o das águas
pluviais — p r e c a u ç ã o i n d i s p e n s á v e l n u m a c i d a d e c h e i a de ladeiras, por vezes muito
í n g r e m e s , c e x p o s t a às t e m p e s t a d e s t r o p i c a i s . N a p r á t i c a , p o r é m , essas valetas viravam
o e s c o a d o u r o de t o d o t i p o de á g u a suja e d e t r i t o . " O p i o r castigo para o passante\$
c o n t a W e t h e r e l l , " n e m é o d o r , m a s o arriscar-se a c a d a passo a a f u n d a r na lama suja .
S ó as c h u v a s fortes l i m p a v a m de q u a n d o e m q u a n d o esses esgotos a céu a b e r t o .
A t é 1 8 5 6 , os m o r a d o r e s t i n h a m a o b r i g a ç ã o de l i m p á - l o s , mas n ã o o faziam, *
despeito das m u i t a s posturas m u n i c i p a i s s o b r e a q u e s t ã o e a c r i a ç ã o de diversos depó-
sitos públicos de l i x o . P o r fim, graças à c o n s c i ê n c i a despertada pela terrível epidemia
de c ó l e r a - m o r b o ( 1 8 5 5 - 1 8 5 7 ) , a lei provincial n ° 5 8 8 a u t o r i z o u o g o v e r n o a controlar
c o m mais rigor os p r o b l e m a s de salubridade. As responsabilidades foram transferi as
da a d m i n i s t r a ç ã o local para a provincial, m a s esta n ã o se m o s t r o u mais eficaz. P ° r
U V R 0 V 1
- 0 C O n D W m
° ? J W « Q U t iWzu* ETROCAVAM
443

contratos, c o n f i o u a l i m p e z a da c d a d e a particulares, q u e p o u c o faziam além de


embolsar o d m h e i n x E m 1867 a h m p c z a de S a l v a d o r t o r n o u - s e i n c u m b ê n c i a da
C â m a r a M u n i c i p a l ! O s e r v i ç o de c o l e t a d o lixo d o m é s t i c o c o n t i n u o u precário Por
volta de 1 8 7 0 , a P o l í c i a gastava, p o r c o n t a p r ó p r i a , e n o r m e s s o m a s para remover os
m o n t e s de lixo q u e se a c u m u l a v a m e m ruas e p r a ç a s . 2 7

U m c o n t r a t o a s s i n a d o e n t r e a C â m a r a M u n i c i p a l e u m a e m p r e s a que deveria
construir e s g o t o s , e m 1 8 7 3 , p e t m a n e c e u letra m o r t a , pois n u n c a foi aprovado pela
Assembléia P r o v i n c i a l . E m 1 8 8 0 , m a i s u m a vez se recorreu a particulates: alguns
cidadãos, m e d i a n t e c o n t r a t o , c u i d a r i a m d a r e m o ç ã o do l i x o . N o v o fracasso. T e n t a -
vam-se p a l i a t i v o s , q u a n d o a e x t e n s ã o d o p t o b l e m a exigia medidas drásticas.

A l é m d e s u j a s , as ruas e r a m estreitas e m a l a l i n h a d a s . O s r e g u l a m e n t o s da C â m a r a
Municipal 2 8
n e s s e c a m p o t a m p o u c o e r a m r e s p e i t a d o s : c a d a u m c o n s t r u í a a seu talante.
W e t h c r e l l , s e m p r e c r í t i c o , t e v e a p r i n c í p i o , ao passear pela C i d a d e A l t a , u m a impres-
são de a b a n d o n o , p o i s n ã o se v i a n i n g u é m nas ruas, e x c e t o negros, s o b r e t u d o nas horas
mais q u e n t e s d o d i a . M a s fez u m a ressalva: p o r f o r ç a d a " m a r c h a d o progresso",
muitos v e í c u l o s j á c i r c u l a v a m nesses b a i r r o s — " h á duas linhas de bondes e carros de
aluguel". 29

C u m p r e r e c o n h e c e r q u e , a p a r t i r d e 1 8 7 0 , realizaram-se esforços para facilitar a


circulação de pessoas e m e r c a d o r i a s e i n t e r l i g a r b a i r r o s distantes, e c o m sucesso. E m
1871, foi i n s t a l a d a u m a l i n h a e n t r e B a r r o q u i n h a e S e t e Portas; eta u m a espécie de
vagão, p u x a d o p o r u m a l o c o m o t i v a a v a p o r m o n t a d a sobre e n o r m e s rodas revestidas
de b o r r a c h a v u l c a n i z a d a , q u e até p o d i a s u b i r a í n g r e m e ladeira da C o n c e i ç ã o da Praia.
A C i d a d e B a i x a ficava l i g a d a assim a u m d o s bairros m a i s distantes d o noroeste da
cidade. E m 1 8 7 3 o g o v e r n o p r o v i n c i a l b a i x o u d e c r e t o s d e f i n i n d o os horários e os
preços d a C o m p a n h i a dos T r i l h o s C e n t r a i s , q u e explorava essa linha. A empresa foi
t a m b é m a u t o r i z a d a a c o n s t r u i r d o i s v i a d u t o s , q u e interligariam os bairros da Lapa,
Nazaré, B a r b a l h o e B a r r o q u i n h a . 3 0

Apesar desses p r o g r e s s o s , a c i r c u l a ç ã o pelas ruas, ruelas e aléias do c e n t r o c o n t i -


nuava difícil e e r a m l o n g a s as distâncias a p e r c o r r e r até as poucas grandes artérias
servidas por t r a n s p o r t e s p ú b l i c o s . Q u a n d o a n o i t e caía, a escuridão tomava conta das
ruas: a i l u m i n a ç ã o a gás c a r b ô n i c o só se generalizou em 1 8 6 2 . 3 1
Até 1 8 2 6 , a cidade
não dispunha de n e n h u m a i l u m i n a ç ã o p ú b l i c a . O s primeiros lampiões a óleo de baleia
foram instalados c m 1 8 2 9 , mas f o r n e c i a m u m a luz precária. Era preciso coragem para
sair à rua depois q u e o sol se p u n h a . U m tropeção ou um assalto eram perigos meno-
res: a cidade estava e n t r e g u e a marginais q u e n ã o hesitavam em puxar da faca e, por
muito t e m p o , a P o l í c i a p r a t i c a m e n t e inexistia. É verdade que, em 1 8 2 5 , o governo a
Província criou o ' c o r p o de Polícia', para servir tanto à cidade quanto aos arredores,
pois a c o m p a n h i a de voluntários e milicianos, encarregada da ordem pública desde
1 8 1 2 , mostrava-se insuficiente e inapta. M a s esse reforço também não bastou e, em
1 8 5 7 , u m corpo auxiliar — a 'guarda urbana', escolhida entre os cidadãos ativos que
funcionavam c o m o u m a espécie de inspetores de quarteirão — foi acrescenta o ao
444 BAHIA. SÉCULO XIX

c o r p o de Polícia. N a d a disso, p o r é m , resolveu o p r o b l e m a da segurança em Salvador. 32

D i s c u r s o s d o s p r e s i d e n t e s d a P r o v í n c i a p e r a n t e a A s s e m b l é i a P r o v i n c i a l , incontáveis
leis e r e g u l a m e n t o s , p r o i b i ç ã o da c i r c u l a ç ã o d e e s c r a v o s à n o i t e s e m a u t o r i z a ç ã o por es-
c r i t o d o s s e n h o r e s — t u d o isso a t e s t a a i n u t i l i d a d e d o s e s f o r ç o s d o s p o d e r e s p ú b l i c o s . 33

Estas i m a g e n s tristes d e u m a c i d a d e s u j a , m a l i l u m i n a d a , m a l d r e n a d a , mal pavi-


m e n t a d a , mal p o l i c i a d a , n ã o d e v e m o b l i t e r a r , p o r é m , a o u t r a f a c e , s o r r i d e n t e e alegre,
de u m a cidade que — privilégio raro — era p r ó d i g a e m p r a ç a s a r e j a d a s , recantos
b u c ó l i c o s , praias de a r e i a fina, c e n t e n a s d e f o n t e s e p o ç o s , aléias b e m c u i d a d a s , cantei-
ros e j a r d i n s c o m árvores i m e n s a s e s e m p r e v e r d e s . S o m a v a m m a i s de v i n t e as esplanadas
e praças o n d e a p o p u l a ç ã o p o d i a se r e u n i r p o r o c a s i ã o d e u m a festa (e c o m o os baianos
g o s t a m d e f e s t a ! ) . H a v i a u m a p r o f u s ã o d e m e r c a d o s , o n d e se p o d i a c o m p r a r e vender,
l o c a l i z a d o s ( p o r v o l t a de 1 8 3 1 ) a o l a d o das igrejas d a S o l e d a d e , d o P i l a r e d o antigo
n o v i c i a d o d o s j e s u í t a s , e m f r e n t e à f o r t a l e z a d e S a n t o A n t ô n i o , n o C a m p o da Pólvora,
n o s largos d a S a ú d e , d o P e l o u r i n h o , d e S ã o B e n t o , d o C a b e ç a , e m f r e n t e à igreja da
V i t ó r i a e e m f r e n t e à C â m a r a d e C o m é r c i o . N e l e s , se p o d i a v e n d e r t u d o , salvo carnes
e peixes, vendidos e m m e r c a d o s especiais estabelecidos n o s largos dos Q u i n z e Misté-
rios, de G u a d a l u p e , d e S ã o B e n t o , d e S ã o R a i m u n d o , d a r u a d o s P r e d r e i r o s e sob as
arcadas de S a n t a B á r b a r a . 3

O s i n c o n v e n i e n t e s d a c i d a d e e r a m e s q u e c i d o s p o r q u e m passeava p e l o esplêndido
J a r d i m P ú b l i c o , q u e t o d o s o s v i a j a n t e s e s t r a n g e i r o s l o u v a r a m . J á e m 1 8 1 3 , o sueco
B e y e r se s u r p r e e n d i a c o m esse " g r a n d e j a r d i m b e m c o n s e r v a d o , c u i d a d o s a m e n t e ilu-
minado à noite". 3 5
E r a , dizia e l e , p l a n t a d o c o m t o d a s o r t e d e árvores frutíferas e
o r n a d o p o r p e q u e n o s p a v i l h õ e s d e e s t i l o n e o c l á s s i c o . D e a l g u n s p o n t o s , t i n h a - s e uma
d e s l u m b r a n t e vista d a b a í a d e T o d o s o s S a n t o s , c o m suas ilhas. S e g u n d o W e t h e r e l l ,
c o m sua l í n g u a v i p e r i n a , esse j a r d i m e r a m u i t o p o u c o f r e q ü e n t a d o . O u t r o s viajantes
falaram d o m a u g o s t o das e s t á t u a s p i n t a d a s , e m t a m a n h o n a t u r a l , ali c o l o c a d a s . 36

A i n d a assim, era p o r c e r t o u m p u l m ã o d e S a l v a d o r , c o m f r o n d o s a s árvores a sombrear


a falésia da z o n a sul d a c i d a d e .
Q u a n d o o s b a i a n o s o r g a n i z a v a m p i q u e n i q u e s — d i s t r a ç ã o m u i t o de seu gosto no
século passado — preferiam ir u m p o u c o m a i s l o n g e , para a l g u m arrabalde ainda pouco
h a b i t a d o . U m deles era o D i q u e , e s p é c i e d e lagoa c e r c a d a p o r e x u b e r a n t e vegetação tro-
pical, o n d e Xavier M a r q u e s situou o f a m o s o p i q u e n i q u e da família B o t o em seu romance
O feiticeiro. P r a t i c a m e n t e desertas na é p o c a — h o j e o D i q u e está n o c o r a ç ã o da cidade
— , essas paragens levavam aos p o m a r e s e aos c a m p o s de N o s s a S e n h o r a das Brotas.
O u t r o lugar m u i t o e s c o l h i d o para p i q u e n i q u e s era V i t ó r i a , q u e s ó na década de
1 8 3 0 c o m e ç o u a ser mais h a b i t a d a . A t é e n t ã o , era u m a zona de plantações e jardins.
O s primeiros viajantes a m e n c i o n a r e m a p a r ó q u i a f o r a m F e r d i n a n d D e n i s , q u e fala de
um " r i s o n h o p r o m o n t ó r i o " , 3 7
c T o l l c n a r e , q u e ali m o r o u , n u m a casinha humilde, em
meio a "românticos" valczinhos. 38
D c acesso fácil, a c o l i n a de V i t ó r i a oferecia, para os
piqueniques dos dias de festa, grandes avenidas s o m b r e a d a s e pomares de laranjeiras,
limoeiros e bananeiras.
bwo V I - O COTIDIANO D O S H Q M P K QUE P R O D U Z A E TROCAV
AM 445

Q u a n d o se d i s p u n h a m a passeios m a i s l o n g o s , os b a i a n o s p o d i a m ir até o RnnP


d e bote, c o m o Lind.cv em , 8 0 2 , o u de s a v e i r o , c o m o Kidder
voltar a pé pela p'ra.a, c o m o o p r i m e i r o , o u s u b i n d o a e n c o s t a , pelo c a m i n h o que
passava pelo c o n v e n t o das U r s u l i n a s , c o m o o s e g u n d o .

O dia de N o s s o S e n h o r d o B o n f i m dava e n s e j o a grandes festejos, e a partir da


década de 1 8 6 0 . q u a n d o os t r a n s p o r t e s c o l e t i v o s c h e g a r a m ao B o n f i m , essas celebra-
ções g a n h a r a m v u l t o a i n d a m a i o r : e r a m dias de regozijo p o p u l a r d e q u e todos —
negros, b r a n c o s , m u l a t o s — q u e r i a m p a r t i c i p a r , f a z e n d o , e m seus melhores trajes, sua
peregrinação à q u e l e l u g a r c o n s a g r a d o . A d e v o ç ã o a N o s s o S e n h o r do B o n f i m data de
1 7 4 5 , q u a n d o o c a p i t ã o T e o d ó s i o R o d r i g u e s de F a r i a o f e r e c e u u m a imagem à pequena
igreja de N o s s a S e n h o r a d a P e n h a d a F r a n ç a , n o p o v o a d o de Itapajipe. N o v e a
'e anos
depois, n o v a igreja foi c o n s t r u í d a . S u c e s s i v a m e n t e r e f o r m a d a , adquiriu em 1 8 1 6 o
seu
aspecto a t u a l . 3 y

O u t r o s passeios p o d i a m levar a S ã o L á z a r o , a o M a t a t u o u a o C a b u l a , ou até ao R i o


V e r m e l h o , sítios a i n d a a g r e s t e s , q u e t i n h a m a o f e r e c e r u m a flora exuberante e abrigos
discretos (seja p a r a o s a m o r e s n a s c e n t e s , seja p a r a os c u l t o s africanos, então proibidos).
F o r m a v a m o c i n t u r ã o v e r d e d a c i d a d e , q u e a p e n e t r a v a , i n s i n u a n d o - s e por entre as
casas p i n t a d a s de c o r e s a l e g r e s .
Assim v i v i a m os b a i a n o s , e n t r e u m a n a t u r e z a p u j a n r e , q u e tentava tudo dominar,
e as o b r a s d e h o m e n s a r r o g a n t e s e frágeis, n u m a c i d a d e ao m e s m o t e m p o dura e
encantadora, q u e , se i n f l i g i a m u i t o s i n c ô m o d o s a seus h a b i t a n t e s , t a m b é m lhes pro-
porcionava r e f ú g i o s a m e n o s .

As CASAS: PROXIMIDADE E RESERVA

O que subsiste das casas d e m o r a d i a d o s é c u l o X I X i m p r e s s i o n a pela pouca variedade


dos m o d e l o s q u e se e n f i l e i r a m m o n o t o n a m e n t e , só g a n h a n d o c o r e vida graças à
alegria c à diversidade d o s m o r a d o r e s , ao passo q u e os prédios públicos são todos
muito ricos e m e s m o variados e o p u l e n t o s .
R u g e n d a s o b s e r v o u isto p o r volta de 1 8 2 0 e e s t r a n h o u as casas de três, quatro e até
cinco andares quase s e m j a n e l a s . 4 0
C a n s t a t t o c o n f i r m o u , e m 1 8 7 1 : " A construção das
casas não o f e r e c e n e n h u m a variedade notável; são todas simples e feias, uma raramente
^ distinguindo da vizinha pelo estilo; a u n i f o r m i d a d e das ruas só é atenuada quando
alguma igreja ou algum c o n v e n t o i n t e r r o m p e a fileira das casas. Alguns v,a,ante
explicaram a altura dos imóveis pela exiguidade do espaço. Razão vál.da. por certo nas
paróquias de C o n c e i ç ã o da Praia o u d o Pilar, na Cidade Baixa ou na.paróqu.a M.
onde de fato os prédios de vários andares eram mais numerosos. ,
Mas a falta de imaginação, a uniformidade na arquUetura, era
inconveniente maior: Ò^padrão não se adapta absolutamente d e

sempre ú m i d o . Praticamente não existia a verdadeira varanda. O que q


varanda", escreve W e t h e r e l l , *é u m a peça q u e t o m a toda a largura d o imóvel, com
janelas; simples galeria q u e integra a casa [ . . . ] . O s balcões d o s e g u n d o andar são locais
procurados para mandriar; nos dias de procissão ou de festa i m p o r t a n t e , são forrados
c o m tecidos adamascados e. SC há algo para ver. as belas elegantes da cidade a m o n t o a m -
se neles. V ê e m - s e t a m b é m alguns balcões c o m venezianas, c u j a parte superior pode
dobrar-se, p r o j e t a n d o - s e l e v e m e n t e sobre a balaustrada. O s lados são de madeira, com
u m a pequena abertura, em geral em f o r m a de cruz, q u e p e r m i t e ver a r u a . " * 2

Esta d e s c r i ç ã o se a p l i c a , é c l a r o , a i m ó v e i s de vários p a v i m e n t o s , os sobrados, que


p o d i a m abrigar u m a ú n i c a f a m í l i a , várias pessoas sós o u até várias famílias. C o m o
v i m o s , p o r é m , ao lado deles havia m u i t a s c a s i n h a s de t a i p a , c o m u m a porta e uma ou
n o m á x i m o duas janelas d a n d o para a rua. S e m p r e c o l a d a s u m a s às o u t r a s , alinhavam-
se e m lotes em geral m a i s c o m p r i d o s q u e l a r g o s , o q u e resultava e m fachadas estreitas
e mesquinhas.
C o n s t r u ç õ e s p o u c o sólidas, essas casas r u í a m t ã o l o g o d e i x a v a m de ser o c u p a d a s . * 4

M u i t a s posturas m u n i c i p a i s t i v e r a m p o r o b j e t o esses t e r r e n o s c h e i o s de escombros,


mas e m v ã o : n o s é c u l o X I X , t o d o o e s p a ç o das p a r ó q u i a s d o c e n t r o d a cidade estava
t o m a d o p o r c a s a s . . . o u ruínas de c a s a s . O s m a t e r i a i s u s a d o s nessas c o n s t r u ç õ e s eram
variados. A l g u m a s eram d e pedra c c a l , o u t r a s de t i j o l o s , o u de u m a argila seca ao sol,
espécie de a d o b e m u i t o r ú s t i c o , o u t r a s de t a i p a . A l g u m a s t i n h a m c h ã o de terra batida,
mas o t e l h a d o de todas, o u q u a s e t o d a s , era f e i t o c o m as telhas v e r m e l h a s abundante-
m e n t e produzidas e m M a r a g o j i p c , n o R e c ô n c a v o , c q u e a d q u i r i a m c o m o t e m p o uma
bela patina. P a r e d e s , j a n e l a s e p o r t a s p i n t a d a s c o m c o r e s vivas — a m a r e l o , azul, verde,
c o r - d e - o c r e , c o r - d e - r o s a — c o n f e r i a m às casas h a b i t a d a s u m a s p e c t o alegre e até uma
falsa a p a r ê n c i a de solidez. V a l e n o t a r q u e , p o r força de u m a p o s t u r a m u n i c i p a l , portas
c janelas a b r i a m - s e s e m p r e para d e n t r o .

Casas c o m belos s o a l h o s o u c a s e b r e s de c h ã o b a t i d o , i m p o n e n t e s palacetes de


vários andares o u c a s i n h o l a s d e u m a j a n e l a s ó , q u a s e t o d o s os imóveis tinham em
c o m u m um c o r r e d o r e s t r e i t o e e s c u r o q u e levava da p o r t a da rua até u m a espécie dc
pátio i n t e r n o indispensável — o quintal — c u j a s d i m e n s õ e s variavam segundo a
i m p o r t â n c i a da c o n s t r u ç ã o . E m c a d a q u a d r a , o c o n j u n t o desses p o m a r e s ou jardins
formava um espaço m a i s o u m e n o s verde. A c o z i n h a dava s e m p r e para o quintal, c
dependências dc diferentes alturas, a n e x o s mais o u m e n o s feios, mas práticos, faziam
dessa parte da casa o c e n t r o da vida privada dos m o r a d o r e s .
Hm Cenas da vida baiana, A. Ronzi faz u m a e l o q ü e n t e descrição da vida social que
as paredes das casas o c u l t a v a m . É , aliás, a única q u e t e m o s , pois viajantes c transeuntes
nada podiam adivinhar d o que se passava atrás das portas ( m u i t o e m b o r a , pelos
fundos, de quintal para q u i n t a l , a i n t i m i d a d e dos lares ficasse exposta à curiosidade
dos vizinhos). V e j a m o s o que ele diz sobre o d e s c o n f o r t o das casas: .
" L á se foram m u i t o s meses q u e morava cu em certa casa m u i t o mal construída sem
ar e sem luz, c c o m todos aqueles i n c ô m o d o s que tão facilmente olham-se ainda em
muitas casas por falta de b o a c o n s t r u ç ã o , e do n e n h u m c u m p r i m e n t o das leis da
UvRQ VI - O COTIDIANO DOS H O M E N S ^ » . PRODUZIAM P. TROCAVA..
AM 447

C â m a r a a este r e s p e t o ( . . . ) . D , r - s e - , a q u e m u i t a s casas f o r a m feitas para h o m e n s de


outra especie d a n o s s a , p a r a n ã o se o c u p a r e m d e satisfazer certas necessidades indis
pensáveis a t o d a a h u m a n i d a d e , e q u e d e v e m ser t o m a d a s em c o n s i d e r a ç ã o , não só por
quem e d i f i c a ; c o m o pela a u t o r i d a d e local e m c o n t e m p l a ç ã o d e S a ú d e pública — se é
que a saúde m e r e ç a d e q u a l q u e r C â m a r a M u n i c i p a l o m a i o r desvelo possível " 4 4

A l g u n s v i a j a n t e s c o n s e g u i r a m v i s l u m b r a r (e c h e i r a r ) a l g u m a coisa q u a n d o u m a
porta se e n t r e a b r i a : n a d a de c a n a l i z a ç ã o d e á g u a , n a d a de e s g o t o ; os b a n h o s eram de
bacia e c u i a . S e a i s t o s o m a r m o s o c h e i r o d o m o f o q u e , graças à u m i d a d e , esverdeava
madeiras e c o u r o s m a l c o n s e r v a d o s , t e r e m o s u m a idéia dos o d o r e s e eflúvios que
emanavam daqueles escuros c o r r e d o r e s , e n t r e a rua c o q u i n t a l . 4 5

A m a i o r p a r t e d a c l a s s e m é d i a h a b i t a v a p r é d i o s d e d o i s , três o u q u a t r o andares,
c o m u m a p o r t a e d u a s o u t r ê s j a n e l a s d a n d o p a r a a r u a , só abertas depois q u e sol se
punha. As p e ç a s d o s . a p a r t a m e n t o s t i n h a m d e s i g n a ç õ e s precisas: sala, ' q u a r t o da sala',
'quarto d o m e i o ' , ' q u a r t o d e d e n t r o ' o u ' d a sala d e j a n t a r ' , sala de j a n t a r , às vezes
uma c o p a , c o z i n h a e d e p e n d ê n c i a s . O ' q u a r t o d a sala', assim c h a m a d o porque se
c o m u n i c a v a c o m e s t a p o r u m a p o r t a e n v i d r a ç a d a , s ó era usado para receber hóspe-
des o u e m g r a n d e s o c a s i õ e s , c o m o r e c e p ç õ e s , d u r a n t e as q u a i s n ã o p o d i a m p e r m a -
necer n o s a l ã o d e festas as v i ú v a s e as m u l h e r e s q u e v i v i a m i r r e g u l a r m e n t e c o m um
homem. O ' q u a r t o d e d e n t r o ' era g e r a l m e n t e u s a d o c o m o d o r m i t ó r i o . N a s casas
ricas, s o b r e t u d o q u a n d o o c u p a v a m m a i s de u m a n d a r , havia duas salas de j a n t a r , a
'de b a i x o ' e a ' d e c i m a ' , s e n d o a p r i m e i r a delas o c e n t r o da vida familiar; lá se comia,
se costurava, se r e c e b i a m o s a m i g o s . A sala d o s e g u n d o a n d a r só era aberta p o r o c a -
sião de g r a n d e s festas; se, p o r i n f e l i c i d a d e , m o r r e s s e o d o n o da casa, ficava fechada
para s e m p r e .
N o s p r é d i o s d e v á r i o s p a v i m e n t o s , o s e g u n d o e o t e r c e i r o eram ocupados por
famílias de u m m e s m o n í v e l s ó c i o - e c o n ô m i c o ; os d e m a i s , a q u e se t i n h a acesso p o r es-
cadas a b r u p t a s , de d e g r a u s a l t í s s i m o s , se d e s t i n a v a m a famílias mais pobres ou a
estudantes. N ã o ficava b e m m o r a r n u m m e z a n i n o d o t é r r e o , s o b r e t u d o q u a n d o não se
era c o m e r c i a n t e , n e m n o s f u n d o s de u m a l o j a , n e m e m casa de c h ã o batido. D e fato,
o primeiro i n d í c i o d a d e c a d ê n c i a de u m a f a m í l i a era sua m u d a n ç a para um a l o j a m e n t o
térreo. N a o c o r r ê n c i a de tal i n f o r t ú n i o , a família se tornava e x t r e m a m e n t e discret^
evitando t o d o c o n v í v i o s o c i a l ; as j a n e l a s q u e davam para a rua ficavam eternamente
fechadas c pessoas ' d e c o n s i d e r a ç ã o ' n ã o mais eram recebidas.
O s m o r a d o r e s d o ' d e s ç a ' , c o m o era c h a m a d o o subsolo, formavam uma c a t e g o m
a parte. E r a m os agregados c escravos das famílias que moravam n o s c
&™*°**™ s o g

pavimentos, o u l o c a t á r i o s c u i d a d o s a m e n t e escolhidos, sobretudo quan o o


esses porões se fazia pela e s c a d a interna (por vezes tinham saída direta para
A 'boa v i z i n h a n ç a ' em q u e viviam essas pessoas insuflava-lhes aspirações^
social. B u s c a v a m granjear a amizade dos moradores 'de e m a , ain a q J ¿ o d e

prazer de aparecer vez p o r outra à j a n e l a de u m andar superior, dando


fazer parte da f a m í l i a .
448 BAHIA, S É C U L O XIX

J á as famílias abastadas, dos grandes c o m e r c i a n t e s o u p r o p r i e t á r i o s , ocupavam


todos os p a v i m e n t o s de u m s o b r a d o , de p r e f e r ê n c i a nas p a r ó q u i a s d a S é , de S ã o Pedro
ou de V i t ó r i a .
O s trabalhadores pobres, q u e mal g a n h a v a m o pão de c a d a dia, se acomodavam
nas casinholas q u e já d e s c r e v e m o s , c o m u m a o u duas peças mal iluminadas, sem
soalho e p o u c o s m ó v e i s . T i n h a m e m geral u m o u d o i s c a t r e s , u m a mesa, algumas
cadeiras o u b a n c o s , u m o u d o i s baús para g u a r d a r a r o u p a pessoal e os panos da c a s a . 46

O m o b i l i á r i o só era de fato v a r i a d o e m casas m u i t o m a i s ricas. O inventário


dos bens d o falecido D o m i n g o J o a q u i m A l v e s , p r o p r i e t á r i o d e u m a forja e morador
da praça da P i e d a d e , na p a r ó q u i a d e S ã o P e d r o , a r r o l a v a a p e n a s : duas mesas de
jacarandá, um sofá, u m a m e s a r e d o n d a , 2 4 c a d e i r a s , duas c a m a s , s e n d o uma de
jacarandá, um armário e um a p a r a d o r . 4 7
E m c o n t r a p a r t i d a , as residências abastadas
eram guarnecidas c o m n ú m e r o b e m m a i o r de m ó v e i s d e j a c a r a n d á o u vinhático,
lustres de cristal, grandes espelhos c o m m o l d u r a de m a d e i r a d o u r a d a , gravuras, bibelôs
de biscuit, l â m p a d a s de o p a l i n a , p i n t u r a s a ó l e o e o b j e t o s de prata, além de ricas
cortinas a d a m a s c a d a s . N ã o f a l t a v a m a i n d a o r a t ó r i o s , c o m i m a g e n s de santos de ma-
deira dourada p o l i c r o m a d a , c a r r e g a d a s de j ó i a s de o u r o e prata; n e m o piano, a
o c u p a r lugar de d e s t a q u e na s a l a . 4 8
O s n u m e r o s o s c ô m o d o s dessas casas tinham
destinações precisas: a sala de j a n t a r n ã o se c o n f u n d i a c o m a de visitas. S ó os muito
í n t i m o s eram c o n v i d a d o s para p a r t i l h a r u m a r e f e i ç ã o . E m q u a l q u e r nível da escala
social, p o r é m , n ã o p o d i a faltar u m a sala d e visitas — para os sociáveis baianos, taga-
relar era indispensável.

As famílias ricas t i n h a m e m geral m a i s f i l h o s q u e as o u t r a s e n ã o hesitavam em


abrigar parentes idosos, d o e n t e s o u e m p o b r e c i d o s , i r m ã s solteiras o u jovens recém-
casados. 49
C o m o v i m o s , f a m í l i a s n u c l e a r e s t r a n s f o r m a v a m - s e f a c i l m e n t e e m famílias
extensas, sem c o n t a r os a g r e g a d o s , s e m r e l a ç ã o de p a r e n t e s c o , q u e t a m b é m viviam sob
seu teto. Estes eram afilhados, e x - e s c r a v o s a l f o r r i a d o s , e m p r e g a d o s d o c h e f e da família,
o u s i m p l e s m e n t e pessoas p o b r e s , m a l - s u c e d i d a s na vida, q u e v i n h a m buscar, j u n t o a
amigos abastados, c a m a , m e s a e o a c o n c h e g o de u m lar o r g a n i z a d o . O número de
escravos variava m u i t o , s e g u n d o as possibilidades e as necessidades. A partir da década
de 1 8 7 0 , foram f r e q ü e n t e m e n t e s u b s t i t u í d o s p o r e m p r e g a d o s d o m é s t i c o s livres ou
recém-alforriados.
O pai — verdadeiro pater familias— t i n h a poderes absolutos. M a s a alma do lar
era a dona da casa, que m u i t a s vezes a d m i n i s t r a v a sozinha aquele p e q u e n o m u n d o , de
que raramente se afastava. C o n h e c e m o s mal a m u l h e r baiana d o século X I X . Os
viajantes poucas vezes eram c o n v i d a d o s às suas casas, c os q u e tiveram essa oportunida-
de formularam cm geral juízos superficiais c p o u c o e n t u s i a s t a s . 50
Maria G r a h a m , por
exemplo, achou a mulher baiana das classes ricas m u i t o negligente: andava pela casa
mal penteada (seria c o n s e q ü ê n c i a da prática d o c a f u n é ? ) , seminua, parecendo pouco
disposta a c u m p r i r seus deveres de d o n a de casa, e m b o r a cercada por um batalhão de
escravos. S e g u n d o ela, as mulheres da época recebiam uma educação rudimentar,
L j V R o V I
~ Q
C o ™ * ™ DOS H O M E N S Q U E PRODUZIAM , TROCAVAM
449

i t a d a à c o s t u r a , a o b o r d a d o , a o v i o l i n o e ao p i a n o . Raras falavam u m a líneua


i i r n

estrangeira. &

Nas classes m é d i a e alta as m u l h e r e s viviam reclusas, s a i n d o só para ir à i.reia ao


Passeio P ú b l i c o c o m a f a m í l i a - o u a r e u n i õ e s s o c i a i s , s e m p r e na c o m p a n h i a do mari
do, de a l g u m p a r e n t e o u a c o m p a n h a n t e . Q u a s e t o d o s os viajantes estrangeiros nota
ram isso: só se v i a m n a s ruas h u m i l d e s g a n h a d e i r a s ' à cata de clientes ou mulheres
envoltas em c a p o n a s , d a c a b e ç a aos pés, m e n s a g e i r a s de n e g ó c i o s i l í c i t o s . 53
M a i s uma
vez. W e t h e r e l l , q u e m o r o u l o n g o s a n o s n a B a h i a , n o s d e i x o u um t e s t e m u n h o : "As
mulhetes n ã o t ê m o h á b i t o d e sair p a r a fazer suas c o m p r a s . E s c o l h e m o que desejam
entre as m e r c a d o r i a s t r a z i d a s p o r n u m e r o s o s v e n d e d o r e s a m b u l a n t e s , q u e as exibem de
porta e m p o r t a . " E C o n s t a t t , d e z a n o s d e p o i s , c o n f e s s o u q u e sequer pudera ver as
mulheres d a c i d a d e , " p o r q u e n u n c a s a e m às r u a s , c o m o o fazem as alemãs; n o m á x i m o ,
e e x c e p c i o n a l m e n t e , se m o s t r a m nas j a n e l a s e n o s b a l c õ e s " . 5 4

Pode-se c o m p r e e n d e r e m p a r t e essa r e c l u s ã o à luz d o s i s t e m a social da época, pois,


graças ao g r a n d e n ú m e r o de e s c r a v o s , m u i t o s serviços h o j e feitos fora eram realizados
pela m ã o - d e - o b r a d i s p o n í v e l e m c a s a . P o r o u t r o l a d o , a m u l h e r baiana, se n ã o era
legalmente igual a o h o m e m , t i n h a u m a f u n ç ã o social i m p o r t a n t e , sobretudo c o m o
educadora. E n ã o s ó dos p r ó p r i o s f i l h o s : a l é m dos órfãos de parentes próximos ou
distantes, f r e q ü e n t e m e n t e e d u c a v a o s f i l h o s naturais d o m a r i d o . A d e m a i s , q u a n d o seu
pai o u seu m a r i d o m o r r i a m , o u q u a n d o era m ã e solteira — c o n d i ç ã o nada excepcional
— , a m u l h e r a s s u m i a a c h e f i a d o lar e m o s t r a v a - s e m u i t a s vezes capaz de gerir negócios
ou, pelo m e n o s , d e a d m i n i s t r a r u m a casa p o p u l o s a . F a l t a m estudos sérios sobre o
papel — p o r c e r t o m a i s i m p o r t a n t e d o q u e se p e n s a — das mães e esposas baianas do
século X I X , e s t e i o s d a c o e s ã o f a m i l i a r . S e g u n d o o s u í ç o T s c h u d i , "elas fazem da vida
familiar brasileira u m e x e m p l o de q u e m u i t a s n a ç õ e s p r e c i s a r i a m " . 55

Seja c o m o f o r , d a d o o d e s c o n f o r t o q u e reinava nas casas, o ofício de dona de casa


era e s p i n h o s o , pois era p r e c i s o estar s e m p r e a vigiar m u i t o s serviçais e crianças, equi-
lihrar o o r ç a m e n t o , r e c e b e r n u m e r o s a s visitas e até saber reagir em caso de catástrofe,
Pois a água e o f o g o e r a m a m e a ç a s c o n s t a n t e s à vida de todos os baianos. Ricas ou
Pobres, grandes o u p e q u e n a s , as m o r a d i a s eram frágeis e expostas às c i a d a s armadas
pela p r o m i s c u i d a d e e a i n s t a b i l i d a d e d o c l i m a e d o solo.
A m o r f o l o g i a d o s o l o , e m geral i n c l i n a d o c s e m p r e ú m i d o , o c h m a c a falta de
conservação c o n j u g a v a m - s e para p r o v o c a r deslizamentos de terra, ^ ¡ ¡ 1 ^ ^
desabamento» de casas desde os p r i m e i r o s t e m p o s da urbanização. N o ara de comer
,' . . . „...:t/Urin fl.is colinas c dos vales
todo espaço d i s p o n í v e l , os bbaianos
a i a n o s rromperal
o m p e r a m o equilíbrio das ? » " ^ s

m" que plantaram a c i d a d e . P r i m e i r o ooccuuppaarraam


cc r
m os estreitos pUtôs ^ ^ r ^ ^
foi preciso d
•«« preciso descer
e s c e r encostas
e n c o s t a s aa b
b aa ii xx o
o ,, ec m d eHtIrUi m
m O e n t o da vegetação
UHH" n . que ^ o rosário
D ^ ^
c õ e s

Sem fundações sólidas, as casas ficavam à mercê dos caprichos das es aç « . •


das catástrofes registradas n o século X I X , A w m ininterruptas
J u n h o e j u l h o de 1 8 1 3 , por exemplo, foram terríveis: 4 5 dias de c ( Q S

Provocaram ^ « m n r o n a m e n t o s c m toda a face da cidade voltada para


4 « BAHIA, S Ê C U L O X I X

f o r a m d e s t r u í d o s ; pelas ladeiras q u e ligam a C i d a d e A l t a à C i d a d e B a i x a (Misericórdia,


C o n c e i ç ã o , G a m b o a ) , d e s c i a m t o r r e n t e s d e l a m a q u e m a t a r a m várias pessoas. E m oito
dias, u m a parte i n t e i r a da C i d a d e A l t a d e s a b o u s o b r e a C i d a d e B a i x a . N i n g u é m mais
se aventurava a ir a o c e n t r o c o m e r c i a l . A t é a A l f â n d e g a i n t e r r o m p e u suas atividades.
Q u i n z e dias d e p o i s , n o v o s d e s l i z a m e n t o s de t e r r a , d e s t a vez nas p r o x i m i d a d e s do forte
de S a n t o A n t ô n i o . O t e r r o r d a p o p u l a ç ã o foi t a m a n h o q u e o C o n d e dos A r c o s , então
g o v e r n a d o r da c a p i t a n i a , c h e g o u a p r e p a r a r u m p l a n o a r r o j a d o , q u e d e s l o c a r i a a cida-
de, instalando-a ao norte, e m terrenos planos.
T r i n t a a n o s d e p o i s , e m 1 8 4 3 , n a e s t a ç ã o das c h u v a s , n o v a m e n t e o s solos começa-
ram a se m e x e r de m a n e i r a i n q u i e t a n t e , e n o v a s m o r t e s e d e s t r u i ç õ e s o c o r r e r a m . Em
1 8 6 2 , u m a f o r t e t e m p e s t a d e fez g r a n d e s e s t r a g o s n o p o r t o . E m 1 8 7 1 , a parte central
da s u b i d a da C o n c e i ç ã o d a P r a i a d e s m o r o n o u , e casas f o r a m a r r a s t a d a s até a Preguiça.
E m 1 8 7 3 , sete pessoas m o r r e r a m n u m d e s l i z a m e n t o de t e r r a n a F o n t e N o v a , e em
1 8 8 0 , m a l g r a d o r e c e n t e s t r a b a l h o s de c o n s o l i d a ç ã o d o s c o n t r a f o r t e s d a e n c o s t a que
d o m i n a a praia, várias casas f o r a m d e s t r u í d a s a o l o n g o d a l a d e i r a d a P r a i a . 5 6

F a l t a m nesta lista o s i n ú m e r o s d e s a b a m e n t o s d e m o d e s t o s c a s e b r e s , q u e se repe-


tiam a c a d a e s t a ç ã o e q u e f i c a r a m s e m r e g i s t r o . A i n d a q u e c a í s s e m s o b r e os moradores,
só alguns v i z i n h o s se a p i e d a v a m . Q u e m e s c a p a v a c o m v i d a r e e r g u i a seu casebre na
mesma encosta perigosa. Dali — c o m o o s m a r i n h e i r o s n a b a í a o u os agricultores do
R e c ô n c a v o — , v i g i a v a m as n u v e n s n o c é u , t e m e n d o as t e m p e s t a d e s , m a s n ã o arreda-
v a m pé de sua v e l h a c i d a d e e d o s e u p e d a c i n h o d e t e r r a , c u j o t í t u l o d e propriedade,
aliás, era o m a i s das vezes i r r e g u l a r . 5 7

Frágeis e precárias, essas c o n s t r u ç õ e s e s t a v a m , a d e m a i s , s e m p r e sujeitas a incên-


d i o s . A lista deles é l o n g a . E m j u n h o d e 1 8 3 3 , p o r e x e m p l o , o f o g o grassou por toda
a parte da p a r ó q u i a d a S é s i t u a d a atrás d a c a t e d r a l , i n c i n e r a n d o os p r e c i o s o s arquivos
d o tabelião A n t ô n i o L o p e z de M i r a n d a . E m 1 8 3 7 , d u r a n t e a S a b i n a d a , revolta federalista
e c o n t r a os p o r t u g u e s e s , b a i r r o s i n t e i r o s f o r a m d e s t r u í d o s . 5 8
E m 3 de n o v e m b r o de
1 8 4 8 , o fogo i r r o m p e u n a C i d a d e B a i x a , a m e a ç a n d o o p r é d i o da A l f â n d e g a . Nessa
ocasião, as t r i p u l a ç õ e s dos n a v i o s f r a n c e s e s e ingleses a n c o r a d o s n a baía vieram ajudar
os baianos n o c o m b a t e ao i n c ê n d i o e, pela p r i m e i r a vez, foi usada u m a ' b o m b a antifogo
adquirida na Inglaterra pela S o c i e d a d e C o m e r c i a l . N o a n o s e g u i n t e , as c h a m a s devo-
raram os trapiches da Q u a r t a P r e n s a , p r ó x i m o s da igreja d o Pilar; em 1 8 5 0 , outro
galpão do p o r t o , c o m os dois mil c a i x o t e s de a ç ú c a r q u e a r m a z e n a v a . E m 1 8 5 6 , mais
dois entrepostos, o Q u i r i n o c o Pilar; c m 1 8 5 7 , mais u m . E m 1 8 5 9 , foi o prédio do
B a n c o d o Brasil q u e pegou f o g o , mas dessa vez u m a ação rápida c bem coordenada
permitiu salvar a m a i o r parte dos papéis e valores.
Por m u i t o t e m p o , o c o m b a t e aos incêndios ficou nas mãos dos próprios habitantes.
Pelos regulamentos municipais, em caso de necessidade, todos os moradores das quinze
casas à esquerda e à direita da casa cm chamas e das trinta d o lado oposto da rua erani
obrigados a participar do c o m b a t e ao fogo; os que tinham poço deviam permitir que sua
água fosse usada. Multas severas incidiam sobre os que desobedecessem a essas posruras.
451

E m 22 d ,unho dc IS , o r g a m z o u - s c a a s s o c i a ç ã o dos «voluntários c o n t r a os


i n c c n d , o > . A n d a era u m a m i c i a n v a privada: f o r m a d a por pessoas l i g a d * a o c o n ~
d o . era d i n g i d a p o r d u a s c o m p a n h i a s de s e g u r o c o n t r a i n c ê n d i o s . D e L. o
J a época preferia d e i x a r esses s e r v i ç o s c u m ã o s de particulares, o que n o e n r a m o
encerrava p e g o s , u m a vez q u e . f a t a l m e n t e , estes n ã o d i s p u n h a m de recursos suficien
[ e $ . Isso ficou provado cm 1 8 7 2 . q u a n d o d o i s i n c ê n d i o s sucessivos destruíram um
imóvel v i z m h o a o t e a t r o e o d o B a n c o d o J u s t i n o . Hm 1 8 7 6 o c o r r e r a m pelo m e n o s sete
incêndios d c g r a n d e s p r o p o r ç õ e s na C i d a d e Alta e na C i d a d e Baixa, e os n ú m e r o s não
decresceram m u i t o n o s a n o s s e g u i n t e s . O f o g o a m e a ç a v a s o b r e t u d o as zonas comerciais
da c i d a d e , m a i s v u l n e r á v e i s p o r c a u s a d a m u l t i d ã o q u e e n t u p i a suas ruas estreitas.
O s m a i s e s p e t a c u l a r e s i n c ê n d i o s , p o r é m , f o r a m os o c o r r i d o s c m períodos de crise
social: a S a b i n a d a e m 1 8 3 7 , o fim da e p i d e m i a de c ó l e r a - m o r b o em 1 8 5 5 - 1 8 5 " . o
m o v i m e n t o p o p u l a r c o n t r a a c a r e s t i a e o d e s a b a s t e c i m e n t o em 1 8 7 7 - 1 8 7 8 . Nesses
casos, o q u e a r d i a e m c h a m a s e r a m lojas d e a l i m e n t o s o u d e p ó s i t o s de vívetes. D e v e -
mos c o n c l u i r q u e tais s i n i s t r o s e r a m t o d o s c r i m i n o s o s ? É u m t e m a a pesquisar, mas.
pelo q u e h o j e s a b e m o s , é d i f í c i l d i s t i n g u i r e n t r e a a n i m o s i d a d e e o descuido.

REVOLTAS E MOTINS

N e m só o f o g o p u n h a e m risco a t r a n q ü i l i d a d e dos b a i a n o s n o século X I X : é rica a


c r o n o l o g i a das s u b l e v a ç õ e s , m o t i n s , d i s t ú r b i o s s o c i a i s , revoltas armadas. F o r a m muitas
as sublevações d c e s c r a v o s de 1 8 0 7 a 1 8 3 5 . E n t r e 1 8 0 8 e 1 8 5 0 , a descolonização e a
instalação d c u m n o v o E s t a d o b r a s i l e i r o d e r a m lugar a lutas políticas e tensões sociais
entre a p o p u l a ç ã o livre d a c i d a d e . A p a r t i r d e 1 8 5 0 os c o n f l i t o s t o r n a r a m - s e m e n o s
freqüentes, m a s n ã o p e r d e r a m a g r a v i d a d e , a t e s t a n d o a fragilidade das bases e c o n ô m i -
cas da vida c o t i d i a n a dos b a i a n o s . E m t o d o s , os interesses se superpõem e se embaralham.
Essas t e n s õ e s , aliás mal e s t u d a d a s e q u e apenas e v o c a r e m o s a q u i , abalavam fortemente
os h a b i t a n t e s d c S a l v a d o r , c a l e m b r a n ç a desses c o n f l i t o s o u o m e d o dc novas sedições
está s e m p r e p r e s e n t e para esse p o v o , mais i n q u i e t o d o q u e parece.
E n t r e 1 8 0 7 c I 8 3 5 , q u a s e t o d o s os a n o s foram m a r c a d o s por revoltas de negros na
Kahia. Km m a i o de 1 8 0 7 , os escravos da n a ç ã o haussa q u e vivia n o Recôncavo plane-
jaram unir sc aos da c i d a d e para m a t a r seus s e n h o r e s , envenenar as fontes e, apoderan-
do-se dos navios a n c o r a d o s n o p o r t o , voltar para a Africa. D e n u n c i a d o s , os cabeças
foram c o n d e n a d o s >, m o r t e , o q u e n ã o i m p e d i u q u e novas insurreições sc sucedessem,
em d e z e m b r o d c 1 8 0 8 e c m j a n e i r o de 1 8 0 9 . Desta vez. os nagôs e os haussas se
uniram c as autoridades tiveram q u e recorrer ao Exército para atacar o «.cal onde se
e n t r i n c h e i r a v a m , a c i n q ü e n t a q u i l ô m e t r o s da cidade. Nova revolta em 1 8 1 0 , depo.s
em 1 8 1 4 , esta liderada por escravos pescadores que tinham c o m e ç a d o por massacrar os
contramestres c suas famílias. A infantaria e a cavalaria mataram 5 6 negros, quase
«odos haussas, n u m a verdadeira batalha campal planejada, travada em Itapoa, pequen
BAHIA, S É C U L O XIX

p o r t o b e m p e r t o de S a l v a d o r . As palavras de o r d e m d o s c o m b a t e n t e s n e g r o s eram:
' L i b e r d a d e ! V i v a os negros e s e u rei!' e ' M o r t e a o s b r a n c o s e aos m u l a t o s ! ' 5 9

E m j u n h o d o m e s m o a n o , o u t r a c o n s p i r a ç ã o foi d e n u n c i a d a e r e p r i m i d a , o que
n ã o i m p e d i u a e c l o s ã o de n o v o s m o v i m e n t o s e m 1 8 1 6 e d e p o i s e m 1 8 2 2 , 1 8 2 6 , 1 8 2 7 ,
1 8 2 8 , 1 8 2 9 , 1 8 3 0 e 1 8 3 5 . A c a d a u m a dessas r e v o l t a s , s e m d ú v i d a f a v o r e c i d a s pela
r e c e n t e p r o c l a m a ç ã o da I n d e p e n d ê n c i a d o p a í s , o s r e v o l t o s o s t e n t a v a m r o u b a r armas,
i n c e n d i a r e n t t e p o s t o s , l i b e r t a r seus i r m ã o s d o c a t i v e i r o .
A revolta de 1 8 3 5 , b e m p r e p a r a d a e c e r c a d a d e s e g r e d o , q u a s e l o g r o u sucesso.
O r g a n i z a d a p o r a f r i c a n o s d e o r i g e m m u ç u l m a n a , t i n h a a a d e s ã o d e m u i t o s alforriados.
Indiciaram-se 2 6 0 h o m e n s e 2 6 mulheres, m u i t o s dos quais foram condenados à
m o r t e e às galeras o u d e p o r t a d o s p a r a a Á f r i c a . 6 0

O s escravos se r e v o l t a v a m p a r a se l i b e r t a r e p a r a v o l t a r à Á f r i c a , de o n d e t i n h a m
s i d o a r r a n c a d o s . S u a h o s t i l i d a d e se v o l t a v a c o n t r a o s b r a n c o s , m a s t a m b é m c o n t r a os
m u l a t o s , desde q u e f o s s e m livres. D e f a t o , a l i b e r d a d e era m a i s n e c e s s á r i a à inserção
social q u e a b r a n c u r a da p e l e . M a s a v e r d a d e é q u e c a d a u m a dessas revoltas acabava
p o r isolar u m p o u c o m a i s os e s c r a v o s n u m c í r c u l o f e c h a d o , c o m o o a t e s t a esta sucessão
de m e d i d a s : p r o i b i ç ã o de livre c i r c u l a ç ã o d e e s c r a v o s a p ó s as n o v e h o r a s d a noite
( 1 8 0 7 ) ; proibição de festejos e danças, de dia ou de n o i t e ( 1 8 1 4 ) ; 6 1
p r o i b i ç ã o do
t r â n s i t o de escravos pelas r u a s , a n ã o ser n o c u m p r i m e n t o d e o r d e n s d o s s e n h o r e s
(1833). 6 2
A l é m d i s s o , os e s c r a v o s n ã o p o d i a m c o m p r a r a r m a s n e m i n s t r u m e n t o s cor-
t a n t e s . T o d a s essas r e g u l a m e n t a ç õ e s s ã o u m i n d í c i o d a i n s e g u r a n ç a q u e r e i n a v a então
nas ruas d a c i d a d e , s o b r e t u d o a t é a d é c a d a d e 1 8 4 0 , q u a n d o as a u t o r i d a d e s passaram
a reprimir c o m mais eficácia qualquer tentativa de revolta dos escravos.

O ' p e r i g o n e g r o ' , aliás, assustava m a i s o s e s t r a n g e i r o s r e s i d e n t e s n a B a h i a que


o s verdadeiros b a i a n o s . E m 1 8 2 4 , o c ô n s u l f r a n c ê s G u i n e b a u d e s c r e v e u a o m i n i s t r o
d a M a r i n h a : " E s p e r e m o s q u e o i m p e r a d o r a b r a e n f i m o s o l h o s p a r a o e n o r m e peri-
go de a d m i t i r n e g r o s n o E x é r c i t o . A classe n e g r a , livres o u c r i o u l o s (sic), é sempre
o b j e t o de relativo d e s d é m p o r p a r t e d o s b r a n c o s . E s t a s i t u a ç ã o s o c i a l inspira-lhes,
pois, u m s e n t i m e n t o de h o r r o r e m r e l a ç ã o a seus s e n h o r e s e o s leva a u m a o p o s i ç ã o
ao sistema de civilização destes ú l t i m o s . " 6 3

O s b a i a n o s n ã o e s q u e c i a m q u e b a t a l h õ e s f o r m a d o s p o r h o m e n s de c o r alforriados
t i n h a m l u t a d o nas guerras d a I n d e p e n d ê n c i a e c o m b a t i d o t o d o t i p o d e revolta. A
inexistência de fronteiras raciais n í t i d a s , n u m a s o c i e d a d e e m q u e o m e s t i ç o estava
presente em todas as classes s o c i a i s , nos leva a c r e r q u e a h o s t i l i d a d e m a n i f e s t a d a , pelos
negros, c o n t r a b r a n c o s c m u l a t o s p o r o c a s i ã o das revoltas era a n t e s a ira d o escravo
c o n t r a u m a p o p u l a ç ã o livre c c h e i a de privilégios q u e o ó d i o ao b r a n c o o u quase
b r a n c o . Se a liberdade é o b e m mais p r e c i o s o e n t r e t o d o s , o ' b r a n c o ' representava o
cidadão p l e n o , d o t a d o dos privilégios e s e n h o r d e sua vida. Para o s b a i a n o s , os 'bran-
cos da terra', a avalanche negra, o ' p e r i g o e s c r a v o ' , eram t e m o r e s a n á l o g o s aos q u e , na
m e s m a é p o c a , em Paris, as classes abastadas diziam s e n t i r das classes laboriosas, então
c h a m a d a s 'classes p e r i g o s a s ' . 64
J5= YhR ^ i ^ L J ^ ^ - - . T„OC
C H
E AVAM 4 5 3

A instalação d o I m p é r i o b r a s i l e i r o — q u c c o i n r i f j;,
c r a v a s na B a h i a , e n t r e 1 8 2 2 c 1 8 3 5 - inLtuiú n T ° d e r e V
°' t a s

descolonização, com t o d a s as c o n t r a d i ç õ e s que stKscitorirseirdrsoctd'T^-3' A

CTJSl
t e n t o u desordens sociais c m que ' p o r t u g u e s e s ' e 'brasileiros' se opu rn ra D

d a v a . s e a d e p e n d e n e t a etn q u e se e n c o n t r a v a a classe p r o d u t o r a .
m e nte P o r n a t i v o s n o B r a s i l , e m r e l a ç ã o a o g r a n d e c o m é r c i o , quase t o d o em mãos de
portugueses, de f a t o o s p r i n c i p a i s b e n e f i c i á r i o s de u m a e c o n o m i a voltada para o mer
cado exterior. P r o c l a m a d a a I n d e p e n d ê n c i a , os p r o d u t o r e s brasileiros exigiam que a
nova a d m i n i s t r a ç ã o finalmente os favorecesse.

Nas guerras d a I n d e p e n d ê n c i a ( 1 8 2 2 - 1 8 2 3 ) , nas revoltas federalistas ( 1 8 3 1 - 1 8 3 2 )


e na S a b i n a d a ( 1 8 3 7 - 1 8 3 8 ) e s t i v e r a m s e m p r e e m q u e s t ã o esses p r o b l e m a s da liberta-
ção do d o m í n i o e c o n ô m i c o p o r t u g u ê s e d a b u s c a de c o n d i ç õ e s q u e p o d a m o mercado
baiano a salvo d e t o d a i n g e r ê n c i a e s t r a n g e i r a e a t é n a c i o n a l , pois as elites locais rea-
giam às p r e t e n s õ e s c e n t r a l i z a d o r a s d o n o v o g o v e r n o . 6 5

J á os p o b r e s , as r a z õ e s q u e o s m o v i a m n ã o e r a m de o r d e m política, n e m ideoló-
gica. A crise e c o n ô m i c a r e s u l t a n t e d a d e s o r g a n i z a ç ã o da p r o d u ç ã o elevara os preços
dos p r o d u t o s d e s u b s i s t ê n c i a , e n q u a n t o os salários se m a n t i n h a m m u i t o b a i x o s . 66

Q u a n d o se a m o t i n a v a m , e m p u n h a n d o as b a n d e i r a s d a ' R e p ú b l i c a ' o u da 'Federação',


mal c o n h e c i a m o s i g n i f i c a d o dessas palavras: era c o n t r a a falta de pão que protestavam.

D e 1 8 2 2 a 1 8 3 7 , a f o m e foi o m ó v e l p r i n c i p a l das revoltas do povo baiano,


embora os r e b e l d e s m a l s o u b e s s e m e x p r e s s a r suas r e i v i n d i c a ç õ e s . V i v e n d o n o limite da
miséria, o p o v o f a m i n t o e r e v o l t a d o n ã o teria s i d o capaz de dizer c o n t r a q u e m lutava
nem que r e f o r m a s p r o p u n h a . 6 7
O s a q u e e a p i l h a g e m das lojas portuguesas, tão fre-
qüentes na é p o c a , f o r a m a e x p r e s s ã o e v i d e n t e das t e n s õ e s q u e , p o r ocasião da
descolonização, o p u n h a m a e l i t e b a i a n a — n a s c i d a n o Brasil o u de origem portuguesa
— e as classes p o p u l a r e s . M a s p r o d u t o r e s e c o m e r c i a n t e s , brasileiros natos e portugue-
ses, acabaram p o r se u n i r . A l u s o f o b i a das classes d o m i n a n t e s logo se transformou em
lusofilia.
A partir de 1 8 2 8 os c a p i t a i s p o r t u g u e s e s v o l t a r a m a ser b e m - v i n d o s e a paz insta-
lf,
u-se entre os a b a s t a d o s , fosse qual fosse sua o r i g e m . E n q u a n t o isso, as tensões entre
* clames dirigentes e as classes p o p u l a r e s persistiam, sem q u e n e n h u m a transformação
de estrutura viesse a t e n u á - l a s . A o c o n t r á r i o : a partir da década de 1 8 4 0 , um Estado
Nacional forte, d o t a d o de u m eficaz a p a r e l h o de vigilância e repressão, ve.o
manutenção d o statu quo. As elites estavam tão unidas e bem organizadas para repr.m.
as explosões da plebe q u e . e n t r e 1 8 5 0 e « 8 8 9 , só ocorreram duas sublevações popula-
r
es na B a h i a . • •

A revolta de 2 8 de fevereiro de 1 8 5 8 inscreveu-se num período de crises ep.: -


j - \*A* A febre amarela \io*tj
c
* s , misturadas a p r o b l e m a s de a b a s t e c i m e n t o da cidade, n i «51 e 1 8 5 2
1 8 5 4 ) , seguida pelo c ó l e r a - m o r b o ( 1 8 5 5 - 1 8 5 6 ) , as chuvas ^ e n c . a i s < e ^
« a terrível seca q u e se seguiu, d u r a n d o até 1 8 5 8 , acabaram por atetar era
da cidade: faltaram c a r n e , farinha de m a n d i o c a e outros produtos. A
4 ^ BAHIA. S É C U L O X I X

catastrófica em Salvador, 68
com o aumento dos preços, sobretudo dos artigos de
primeira necess idade. 69

Em 16 de janeiro de 1858, a Camara Municipal chegou a proibir a venda de


farinha de mandioca fora dos navios, armazéns e celeiros municipais instalados nos
diversos bairros. A medida desencadeou violentas reações da Assembléia Municipal. O
desfecho da crise foi a sublevação dita da "carne sem osso e farinha sem caroço". Os
amotinados gritavam contra os altos preços e a má qualidade das mercadorias à venda
Foi preciso um dia inteiro e a intervenção do Exército para aplacar os manifestantes.
Novamente, a partir do início de 1878, um longo período de seca e uma produção
insuficiente provocaram a alta dos preços dos produtos básicos. 70
Embora a cidade
tivesse enormes reservas de farinha de mandioca, os preços continuavam a subir a
patamares que tornavam os alimentos inacessíveis aos pobres. A causa principal foi
denunciada pelo próprio presidente da Província, o Barão Homem de Mello: a farinha
estava sendo exportada. Comerciantes contratavam a venda de grandes quantidades do
produto e, para reuni-las, enviavam agentes a todos os mercados do interior para
comprar a qualquer preço quanta farinha encontrassem. Compravam também toda a
farinha que chegava ao porto. A Câmara Municipal quis controlar essa exportação,
mas os comerciantes protestaram, invocando o princípio do livre comércio. Finalmen-
te, na noite de 3 0 de março, uma multidão se juntou diante do palácio do presidente,
exigindo aos brados o fim daquela "infeliz situação a que estavam reduzidos os mais
desfavorecidos". A Assembléia Municipal tomou então algumas medidas: criou um
71

imposto de cem réis por cada litro de farinha exportada e abriu um crédito de cem
contos de réis para a compra de reservas de farinha, que deveriam ser vendidas nos
mercados a preço de c u s t o . 72
Na realidade, eram medidas paliativas. A estrutura e o
funcionamento do mercado dos produtos de subsistência permaneceram intocados. O
motim fora abafado, mas os problemas continuavam sem solução para a maioria dos
habitantes de Salvador, obrigados a recorrer a um mercado em que oferta e procura
estavam em perpétuo desequilíbrio, em que faltava dinheiro, em que as atividades
produtivas tinham cada vez menos condições para se desenvolver.
C A P ( T U LO 2 5

As ATIVIDADES PRODUTIVAS:
CONDIÇÕES E DESENVOLVIMENTO

Informações qualitativas e quantitativas, esparsas e incompletas, penosamente


reuni-
das e analisadas ao longo dos últimos quinze anos, indicam que a atividade agrícol
a
voltada para a produção de bens primários para a exportação, como o açúcar e o fumo,
tinha absoluto predomínio na Bahia do século X I X . Contudo, ao longo do século,
esses produtos tradicionais não só foram perdendo lugar no mercado internacional,
como a integração da e c o n o m i a baiana na economia nacional diminuiu, embora os
grandes políticos da província dessem as cartas na vida política do país. Essa elite 1

política, apesar de talentosa, nunca se preocupou com o destino econômico de sua


província, aceitando as desventuras c o m o fatalidade. N ã o faltaram tentativas de diver-
sificar a produção agrícola da Província, mas ela ficou à margem da produção de café,
que aos poucos invadia o Centro-Sul do país, fomentando ali o progresso, por seus
muitos efeitos multiplicadores. A o desenvolvimento de províncias como as do Rio de
Janeiro, Minas Gerais e São Paulo no século X I X , contrapunha-se a 'involução' eco-
nómica da Bahia. . , 2

Não é fácil explicar este fenômeno, que alguns até chamam de 'o enigma baiano .
Em primeiro lugar, uma análise econômica requer dados quantitativos variados e
sobretudo confiáveis sobre todos os setores. Eu mesma, no passado tentei reunir e
organizar alguns desses dados, mas a tarefa revelou-se inviável, dada a falta de variáveis
"prescindíveis. Foi impossível, de fato, reconstituir séries relativas à renda sócia o
upw»"™ ' - a o movimento dos capitais
à produção líquida total da Província. Números n c o r a j a d a , res.g-
DeSC

c aos outros meios de pagamento não puderam ser


õcs mais modestas.
nei-me a pretensões , r p a r a r . Compreen-
c o m

Em segundo lugar, para explicar é preciso t a m W m p ^ ^ ^


de
- « o declínio da economia da Bahia no século X I X J ^ ,
% £ s t o n a o

nho com o das economias das províncias que P ^ g ^ d ed u t o s exporta-


pro

apenas com base em simples comparações entr q

455
BAHIA, SÉCULO XIX

dos c seu v a l o r . Estas p o d e m i n d i c a r o r d e n s d e g r a n d e z a , m a s n ã o f u n d a r verdadei-


ras e x p l i c a ç õ e s , p o i s , de u m lado c d c o u t r o , f a l t a m s e m p r e m u i t a s variáveis indis-
pensáveis. Por e x e m p l o , o açúcar — p r o d u t o de e x p o r t a ç ã o , mas t a m b é m dc consu-
m o local e n a c i o n a l — era p r o d u z i d o n ã o só n o N o r d e s t e , m a s nas províncias do
R i o d c J a n e i r o c S ã o P a u l o . Por q u e a B a h i a n ã o c o l o c a v a seu a ç ú c a r n o m e r c a d o
n a c i o n a l , d e i x a n d o - s e s u p e r a r p o r P e r n a m b u c o , m u i t o m a i s d i s t a n t e d o s mercados
d o Sul d o p a í s ? ;
( E s t a p r o v í n c i a , aliás, e x p o r t a v a p a r a o m e r c a d o i n t e r n a c i o n a l , a
partir d e 1 8 7 0 , d u a s a três vezes m a i s a ç ú c a r q u e a B a h i a . ) S e r i a m o s c u s t o s de
p r o d u ç ã o m a i s altos na B a h i a ? O u o s de t r a n s p o r t e ? As t é c n i c a s de p r o d u ç ã o seriam
diferentes? O u será q u e , d e s e n c o r a j a d o s , os p r o d u t o r e s b a i a n o s t e r i a m i n t e r r o m p i d o
sua a t i v i d a d e , e n q u a n t o o s d e P e r n a m b u c o p e r s e v e r a v a m ? S e r i a m as f o r m a s de cré-
d i t o m a i s favoráveis e m P e r n a m b u c o , o u t e r i a m seus s e n h o r e s de e n g e n h o m e n o s
dívidas? S ã o q u e s t õ e s q u e a p r e c a r i e d a d e de i n f o r m a ç õ e s d e i x a s e m resposta. M a s é
hora de i n t e r r o m p e r esta d i g r e s s ã o . S e m e d e t i v e n e s t e s p o n t o s , d e i x a n d o de lado
o u t r o s i g u a l m e n t e i m p o r t a n t e s , foi p a r a m o s t r a r os l i m i t e s i m p o s t o s pela deficiência
de nossas f o n t e s a u m a e x p l i c a ç ã o d o d e c l í n i o d a e c o n o m i a d a B a h i a .

A p a r t i r de 1 9 2 0 , a l g u n s b a i a n o s p r o c u r a r a m c o m p r e e n d e r essa s i t u a ç ã o , v a l e n d o -
se de estatísticas f r a g m e n t a d a s e, s o b r e t u d o , d e u m a d o c u m e n t a ç ã o q u a l i t a t i v a . Assim,
após descrever o c o m é r c i o d e S a l v a d o r e t r a ç a r o perfil d o s p r i n c i p a i s a g e n t e s e c o n ô -
m i c o s , G o e s C a l m o n p r o p ô s u m a e x p l i c a ç ã o para a d e c a d e n c i a d a e c o n o m i a baiana no
século a n t e r i o r . Para t a n t o , e n u m e r o u u m a s é r i e de f a t o r e s e x t r a - e c o n ô m i c o s , e n t r e os
quais d e s t a c o u a m i s t u r a racial e as m á s c o n d i ç õ e s c l i m á t i c a s r e i n a n t e s na Província,
fatalidades a q u e a s o c i e d a d e n ã o fora c a p a z d e r e a g i r . T a l e x p l i c a ç ã o , a i n d a que
a t r i b u a à fatalidade o papel d e V a r i á v e l ' , t e m o m é r i t o d e c h a m a r a a t e n ç ã o para as
secas p e r i ó d i c a s . S e g u n d o esse a u t o r , elas o c o r r i a m e m t o d o s os a n o s q u e t e r m i n a v a m
c o m os a l g a r i s m o s três e n o v e , a f e t a n d o s o b r e t u d o as r e g i õ e s d o S e r t ã o , c u j a p r o d u ç ã o
n ã o estava i n t e g r a d a a o c i r c u i t o a g r o e x p o r t a d o r . Ele definiu, assim, um quadro
c o n j u n t u r a l da e c o n o m i a b a i a n a c o m b a s e e m c i c l o s d e c e n a i s , a partir de 1 8 2 3 . Esse
recorte e m etapas de igual d u r a ç ã o na v i d a e c o n ô m i c a e financeira da p r o v í n c i a per-
m i t i u - l h e fixar c avaliar as p r i n c i p a i s o c o r r ê n c i a s de c a d a e t a p a . O e s q u e m a assim
m o n t a d o sugere q u e os p r i m e i r o s dezessete a n o s s u b s e q ü e n t e s à I n d e p e n d ê n c i a foram
d c crise, t a n t o c m razão das guerras c das p e r t u r b a ç õ e s sociais q u e se seguiram c o m o ,
s o b r e t u d o , em d e c o r r ê n c i a d a fuga d o s grandes n e g o c i a n t e s portugueses, c o m seus
capitais, o q u e teria d e s o r g a n i z a d o a p r o d u ç ã o c as trocas c o m e r c i a i s . A Bahia jamais
se teria r e c u p e r a d o dessa p e r d a . 4

U m a segunda tentativa de explicar o d e c l í n i o da B a h i a pelo estudo da c o n j u n -


tura e c o n ô m i c a foi feita c m 1 9 5 0 . Foi obra do economista R ó m u l o d c Almeida,
típico representante de uma g e r a ç ã o d c intelectuais baianos desejosos dc c o m p r e e n -
der — para dele escapar — o m a r a s m o da e c o n o m i a d o Estado. Para eles, todo
desenvolvimento d e p e n d i a da c o m p r e e n s ã o do passado, indispensável para lançar luz
sobre os p o n t o s dc e s t r a n g u l a m e n t o dc u m a d i n â m i c a regional q u e chegara a um
if^ N 1
- ° C O T I D I A N O D O S H O M E N S QUE PRODUZIAM E TROCAVAM
457

ponto morto. A análise Feita por Rómulo de Almeida é tão qualitativa quanto a de
Goes Calmon. Mas há uma d.ferença, e fundamental: foi a primeira a considerar
sistematicamente cada produto cultivado, cada produto extraído de todo o territó
rio da provínc.a. englobando ainda análises sobre a atividade industrial, financeira e
comercial e a questão do abastecimento de Salvador. De um exame' limitado ao
Recôncavo, passamos assim a avaliações que abrangiam, por longos períodos, o con-
junto das estruturas econômicas da Província. Rómulo de Almeida criticou, aliás, o
papel da administração provincial, mais interessada cm distribuir sinecuras do que
em investir em atividades produtivas os recursos que angariava com os impostos.
A partir do quadro geral, o economista analisou o papel comercial de Salvador.
Deu ênfase às relações entre a Bahia e o mercado internacional, indicando as cres-
centes dificuldades que a Província encontrava para colocar seus produtos num mer-
cado em que a demanda era irregular. A Bahia nunca conseguiu captar mercados
estáveis. Os economistas baianos mencionam sempre, a esse respeito, a irregularida-
de da demanda, mas não a da oferta. Ora, as crises políticas das décadas de 1820 e
1830, os efeitos das epidemias de febre amarela e de cólera-morbo na década de
1850, a praga da cana-de-açúcar na década de 1870, as periódicas crises climáticas
nas áreas produtivas — tudo isso deve ter contribuído para diminuir a oferta em
certos momentos da conjuntura econômica, somando-se à instabilidade de deman-
da, fartamente apontada.
Para Rómulo de Almeida, as flutuações nos preços tornavam ainda mais pre-
cária a circulação das mercadorias no exterior. Analisou em seguida as relações da
Bahia com as províncias do Sul, com as quais tinha uma balança comercial sempre
desfavorável, pagando-lhes um duplo tributo: comprava-lhes mercadorias de preço
mais alto (tecidos e produtos manufaturados de São Paulo, queijos de Minas Ge-
rais) e fornecia-lhes mão-de-obra barata e capitais para seu desenvolvimento. O fe-
cho desse estudo da conjuntura econômica da Bahia, de apenas dezoito páginas, é
um diagnóstico bastante claro: "Numa curva de longa duração (médias móveis em
Períodos longos), podemos representar esse período da história da Bahia por uma
alta no início do século, uma baixa nas décadas de 1820 e 1830, uma recuperação
cm meados no século (décadas dc 1840 e 1850), logo interrompida, uma breve re-
cuperação no início dos anos 1860 e em seguida um;í queda, com a Guerra
D . I , , » 5 Fm suma, afora as duas
Paraguai, até 1890, quando se registra uma nova alta. cm suma,
primeiras décadas do século, a economia baiana só teria conhecido precários epis -
dios dc recuperação. . *
A despeito de seus muitos méritos, estas duas explicações do declínio econ^mico
da Bahia não são dc todo satisfatórias. Elas sugerem, no entanto, o vexame ^
variáveis, que, combinadas a alguns dados recentes, talvez permitam c eg.
nova tentativa de explicação.
BAHIA, SÉCULO XIX

GEOGRAFIA DA PRODUÇÃO

A m a i o r parte da p o p u l a ç ã o d e S a l v a d o r , n o s é c u l o X I X , vivia d e atividades ligadas ao


c o m é r c i o , n u m m e r c a d o e m q u e se p r a t i c a v a m t o d a s as f o r m a s de t r o c a . As m e r c a d o -
rias p r o d u z i d a s na P r o v í n c i a , seja para c o n s u m o l o c a l , seja p a r a e x p o r t a ç ã o , s o m a v a m -
se às i m p o r t a d a s . C o m u m a p o p u l a ç ã o c o n s i d e r á v e l c u m p o r t o f r e q ü e n t a d o por
navios s e m p r e a trazer e levar m e r c a d o r i a s , a c i d a d e d e p e n d i a b a s i c a m e n t e dos gêneros
p r o d u z i d o s n o i n t e r i o r d a P r o v í n c i a , p r i m e i r o p a r a s u a s o b r e v i v ê n c i a , d e p o i s para
e x p o r t a r . M a s q u e g ê n e r o s se p r o d u z i a m n a B a h i a , e o n d e ?
O a ç ú c a r e o f u m o t i n h a m u m papel e s s e n c i a l , m a s n ã o m e n o s i m p o r t a n t e era a
f a r i n h a de m a n d i o c a , esse ' p ã o d a t e r r a ' , i m p r e s c i n d í v e l n a m e s a de ricos e pobres,
t r a n s p o r t a d o pelos n a v i o s de c a b o t a g e m , e c u j a e v e n t u a l m á q u a l i d a d e p o d i a provocar
até m o t i n s .

Q u a n t o aos d e m a i s g ê n e r o s d e s u b s i s t ê n c i a , a p r o d u ç ã o n u n c a c e s s o u d e se diver-
sificar e d e se e x p a n d i r , e m t o d o o t e r r i t ó r i o d a P r o v í n c i a . N o e n t a n t o , c o m o já se
m e n c i o n o u , p o r f a l t a d e t r a n s p o r t e a d e q u a d o , o q u e se p r o d u z i a p a r a a l é m d a z o n a do
Agreste, nas p r o f u n d e z a s d o S e r t ã o , r a r a m e n t e c h e g a v a ao m e r c a d o d e S a l v a d o r (vol-
t a r e m o s a i s t o ) . E m geral, tais g ê n e r o s s e r v i a m a o c o n s u m o de u m a p o p u l a ç ã o m u i t o
dispersa, m a s q u e a u m e n t o u c o n t i n u a m e n t e a o l o n g o d o s é c u l o . N a s r e g i õ e s cortadas
6

pelo S ã o F r a n c i s c o , e r a m t a m b é m o b j e t o de u m c o m é r c i o b a s t a n t e a t i v o c o m as
províncias l i m í t r o f e s , P e r n a m b u c o e M i n a s G e r a i s . M a s , se é f a t o q u e g r a n d e s áreas do
S e r t ã o b a i a n o t i n h a m u m c o m é r c i o l o c a l e e s t a v a m m a i s i n t e g r a d a s às e c o n o m i a s das
províncias vizinhas q u e à d a p r ó p r i a B a h i a , i g n o r a m o s t a n t o o v o l u m e de p r o d u ç ã o
c o m o as q u a n t i d a d e s e o s v a l o r e s n e g o c i a d o s . M e s m o s o b r e terras d o i n t e r i o r , próxi-
mas a S a l v a d o r , n ã o h á n e n h u m d a d o s o b r e q u a n t i d a d e s c u l t i v a d a s para e x p o r t a ç ã o e
consumo corrente.

A o q u e parece, n ã o h a v i a z o n a s e s p e c i a l i z a d a s de c u l t u r a , apesar d a e n o r m e diver-


sidade c l i m á t i c a e g e o l ó g i c a q u e c a r a c t e r i z a a p r o v í n c i a . T o m e m o s c o m o fio c o n d u t o r
a divisão da P r o v í n c i a e m três z o n a s e c o m p a r e m o s a p r o d u ç ã o , q u a n t o à sua variedade.
O q u a d r o é c l a r o : os p r i n c i p a i s g ê n e r o s d e c o n s u m o c o r r e n t e e r a m produzidos em
todas as regiões da P r o v í n c i a , i n c l u s i v e a q u e l a s f r e q ü e n t e m e n t e afetadas pela seca.
Essas regiões d o S e r t ã o c u l t i v a v a m i n c l u s i v e p r o d u t o s c o m o o f u m o e a cana-de-
açúcar, q u e , e v i d e n t e m e n t e , n ã o se d e s t i n a v a m ao p o r t o de S a l v a d o r . E r a m portanto
e c o n o m i a s locais, c o m u m a p r o d u ç ã o de g ê n e r o s a l i m e n t a r e s a p a r e n t e m e n t e bastante
b e m - e s t r u t u r a d a . O s relatórios anuais dos presidentes da P r o v í n c i a s u g e r e m , inclusive,
que havia geração de e x c e d e n t e s c o m e r c i a l i z á v e i s e m m e r c a d o s mais a m p l o s .
N o e n t a n t o , até o fim d o s é c u l o X I X , c b e m além disso, nada ou quase nada dessa
produção d o i n t e r i o r chegava à capital, s e m p r e desabastecida, obrigada a importar não
só trigo, c o m o feijão e arroz. H e r c u l a n o Ferreira P e n n a , presidente da Província,
observava em 1 8 6 0 : " É l a m e n t á v e l , senhores, q u e o agricultor b a i a n o , o rico senhor de
e n g e n h o , que dispõe de tantas terras férteis, a b a n d o n e a cultura da m a n d i o c a e dos
LIVRO V I - O C O T I D I A N O DOS H O M E N S Q U E PRODUZIAM E TROCAVAM

cereais e se c o l o q u e n a triste s i t u a ç ã o d e ver-se o b r i g a d o a c o m p r a r esses víveres de


o u t r a s p r o v í n c i a s para a m a n u t e n ç ã o dos escravos e m p r e g a d o s na a g r i c u l t u r a . " 7
Em
1 8 7 5 , M a n u e l J e s u í n o F e r r e i r a e s c r e v i a q u e o e s t a d o d a a g r i c u l t u r a b a i a n a era d e p l o -
rável " p e l a a u s ê n c i a d e c o m u n i c a ç õ e s rápidas c o m seus c e n t r o s p o p u l o s o s e ricos d o
i n t e r i o r . D e s t a r t e , m u i r o s v a l o r e s se p e r d e m , q u a n d o d e v e r i a m ter sido e m p r e g a d o s
para a f o r m a ç ã o d e r e c u r s o s e m b e n e f í c i o d e t o d a a P r o v í n c i a " . E l e a c r e s c e n t a v a q u e
a a g r i c u l t u r a era, a l é m d i s s o , v í t i m a d e i m p o s t o s " q u e a b s o r v e m (esses r e c u r s o s ) ,
a n i q u i l a n d o - o s " , p o i s , a o i n v é s d e s e r e m i n v e s t i d o s e m o b r a s p ú b l i c a s , serviam para
pagar f u n c i o n á r i o s e m a n t e r a P o l í c i a e casas d e c a r i d a d e . Q u a n t o aos presidentes da
8

P r o v í n c i a , d e n u n c i a v a m i n c a n s a v e l m e n t e a d e f i c i ê n c i a das vias de t r a n s p o r t e , sem


jamais apresentar projetos c o n c r e t o s para remediá-la.

TABELA 73

Z O N A S DE P R O D U Ç Ã O A G R Í C O L A NA BAHIA, 1 8 9 0

PRODUTOS DE EXPORTAÇÃO PRODUTOS DE CONSUMO INTERNO

ZONA A

Recôncavo açúcar, tabaco, algodão, café feijão, mandioca, cereais

ZONA B

Recôncavo Sul açúcar, tabaco, cacau feijão, mandioca, cereais

Litoral Sul açúcar, cacau feijão, mandioca

ZONA C

Agreste I 1
tabaco, algodão, café feijão, arroz, mandioca, cereais

Agreste II 2
açúcar, tabaco mandioca, batata

Centro-Oeste açúcar, tabaco, algodão, café, cacau feijão, arroz, mandioca, chá, cereais

Norte 3
Açúcar, tabaco, algodão, café feijão, arroz, mandioca, cereais

(1) Consideramos Agreste I a área a oeste de Salvador. (2) Agreste II corresponde à área ao norte de Salvador. (3) Para efeito
da rabeia. Norte inclui Extremo Norte, Extremo Oeste e Extremo Sudoeste.
Fonte: Francisco Vicente Viana, Memória sobre o Estado da Bahia, p. 419-560.

E m 1 9 2 3 , o s b a i a n o s a i n d a se q u e i x a v a m da i n s u f i c i ê n c i a de sua rede de transpor-


tes. G r a n d e parte d o a l g o d ã o c u l t i v a d o nos m u n i c í p i o s ' de C a e t i t é , R i o das C o n t a s ,
M o n t e A l t o e M o r r o d o C h a p é u , p o r e x e m p l o , era exportada para M i n a s Gerais,
e n q u a n t o as fábricas de t e c i d o de S a l v a d o r i m p o r t a v a m 6 0 % d e sua matéria-prima, tal
c o m o , n o século X I X , as fábricas instaladas em V a l e n ç a se abasteciam nas províncias
vizinhas de Sergipe e A l a g o a s . H a v i a , aliás, a idéia de prolongar a linha de C a r i n h a n h a
9

da Estrada de F e r r o C e n t r a l c a d o e n t r o n c a m e n t o do M o r r o d o C h a p é u até a cidade


de Barra, o n d e se instalariam fábricas de tecidos c u j a p r o d u ç ã o poderia ser escoada nos
estados vizinhos de G o i á s e d o Piauí e n o s sertões de P e r n a m b u c o e do Ceará.
A o q u e parece, as regiões d o S e r t ã o q u e , n o século X I X , viviam n u m a e c o n o m i a
praticamente fechada, n ã o careciam de d i n a m i s m o , malgrado as agruras do clima.
BAHIA, S É C U L O XIX

C h e g o u - s e m e s m o a criar u m a rede de trocas q u e interligava p o p u l a ç õ e s dispersas por


e n o r m e s extensões: n o final d o s é c u l o , B r e j o G r a n d e , O r o b ó , Palmeiras e C u r r a l i n h o
haviam se t r a n s f o r m a d o e m i m p o r t a n t e s m e r c a d o s regionais, e n q u a n t o Barreiras tor-
nava-se u m c e n t r o reputado p o r suas relações c o m e r c i a i s c o m J u a z e i r o (e, por seu
i n t e r m é d i o , c o m S a l v a d o r ) ; Casa N o v a , vilarejo i n s i g n i f i c a n t e em m e a d o s do século,
transformava-se n u m grande m e r c a d o graças ao c o m é r c i o de sal e de gado c o m o Piauí.
O esforço foi mais l o n g e . E c o n o m i c a m e n t e isoladas, essas regiões do S e r t ã o bus-
c a v a m produzir, elas m e s m a s , c e r t o s p r o d u t o s q u e e m geral só p r o s p e r a v a m n o litoral,
graças a c o n d i ç õ e s c l i m á t i c a s e g e o l ó g i c a s m a i s p r o p í c i a s . A s s i m , canaviais plantados
ao l o n g o de toda a bacia d o S ã o F r a n c i s c o p e r m i t i a m p r o d u z i r a ç ú c a r m a s c a v o , mela-
do e aguardente, d e s t i n a d o s ao c o n s u m o l o c a l . A l é m disso, o p l a n t i o de algodão deu
ensejo a u m a atividade artesanal, de f a b r i c a ç ã o de t e c i d o s e redes, c u j o v o l u m e se
ignora, mas parece ter s i d o i m p o r t a n t e . O s c e n t r o s dessa p r o d u ç ã o eram os povoados
de Angical, C a m p o L a r g o de C o n c e i ç ã o d o C o i t é , J u c i a p e e S a n t a M a r i a da V i t ó r i a ,
sendo q u e se fala até de u m a " i n d ú s t r i a d e t e c i d o s de a l g o d ã o " instalada n e s t a ú l t i m a . 11

N ã o p o d e n d o c h e g a r ao m e r c a d o de S a l v a d o r , o a l g o d ã o era m a n u f a t u r a d o , conver-
tendo-se n u m i m p o r t a n t e i t e m de c o m é r c i o e n t r e regiões da p r o v í n c i a e talvez até no
â m b i t o i n t e r p r o v i n c i a l (é possível q u e o a l g o d ã o p r o d u z i d o n o c e n t r o - o e s t e e n o
e x t r e m o oeste da P r o v í n c i a j á fosse e x p o r t a d o para M i n a s G e r a i s a n t e s d o século X I X ) .
N ã o se sabe, p o r é m , q u e p r o p o r ç ã o d o a l g o d ã o p o d i a ser m a n u f a t u r a d a n o local, e por
certo u m e x c e d e n t e c o n s i d e r á v e l da m a t é r i a - p r i m a a p o d r e c i a ali, n ã o p o d e n d o ser
r e m e t i d o para o litoral.

D e fato, os transportes terrestres n o s é c u l o X J X e r a m t ã o precários q u a n t o na


época c o l o n i a l : as m e r c a d o r i a s c i r c u l a v a m c m l o m b o de b u r r o , p o r trilhas abertas pela
m a r c h a das b o i a d a s . As distâncias e r a m l o n g a s e o t r a n s p o r t e d o a l g o d ã o — m e r c a d o -
ria de m u i t o v o l u m e e p o u c o p e s o — era e s p e c i a l m e n t e c a r o , fatores q u e elevavam
m u i t o o custo final d o p r o d u t o n o m e r c a d o de S a l v a d o r . M e s m o u m a região mais
p r ó x i m a da capital, c o m o a C h a p a d a D i a m a n t i n a , q u e p r o d u z i a , além de algodão e
cereais, produtos c o m o d i a m a n t e s e c a f é , t i n h a m a i s facilidade para c o m e r c i a r estes
itens — que propiciavam l u c r o m u i t o m a i o r — que os primeiros. Compreende-se,
p o r t a n t o , por que o i n t e r c â m b i o d a p r o d u ç ã o agrícola ficava l i m i t a d o aos mercados
locais. Pode-se supor que o p r e ç o d o t r a n s p o r t e de cereais era m u i t o elevado.
A produção d o Agreste — a ç ú c a r , f u m o , café e a l g o d ã o , além dos legumes e cereais
de c o n s u m o corrente — e n c o n t r a v a mais f a c i l m e n t e seu c a m i n h o para o m e r c a d o de
Salvador, graças à ligação ferroviária i m p l a n t a d a nos anos 1 8 6 0 , ainda q u e esta fosse
insuficiente.
N o R e c ô n c a v o , p r e d o m i n a v a m as culturas da c a n a - d e - a ç ú c a r c d o f u m o , e m b o r a
cidades c o m o M a r a g o j i p c , Nazaré das Farinhas e J a g u a r i p c produzissem mandioca,
legumes e cercais. O transporte m a r í t i m o era fácil, mas a p r o d u ç ã o não atendia à
demanda da região e da capital. O sul do R e c ô n c a v o e o do litoral produziam sobre-
tudo mandioca e certas leguminosas, c o m o o feijão, mas t a m b é m em quantidades
461

insuficientes. S e j a c o m o for, essas regiões estavam mais integradas à e c o n o m i a da


capital, c e n t r o d m a m i c o , q u e as d o c e n t r o , d o oeste e d o norte da Província

En
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T \ C r m 0 ^ C C r C
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São
S

M i g u e l da M a t a , S a o V . c e n t e F e r r e r de Areia e, mais ao sul, Caravelas, explorava-se até


d G A m a r s a

o café, e m b o r a c m p l a n t a ç õ e s i n s i g n i f i c a n t e s , c o m p a r a d a s às que se estendiam pelo


vale d o P a r a í b a , n o C e n t r o - S u l d o país. S e r i a m os produtores baianos m e n o s e m -
preendedores q u e o s d o R i o de j a n e i r o e S ã o P a u l o ? S e r i a m suas terras m e n o s propícias
a essa c u l t u r a ? O f a t o é q u e o c a f é de A m a r g o s a t i n h a e x c e l e n t e r e p u t a ç ã o . . . Seja c o m o
for, essa p r o d u ç ã o c a f e e i r a , n o c o n j u n t o , n ã o deixava de c o n t r i b u i r para reduzir o
d e s e q u i l í b r i o d a b a l a n ç a c o m e r c i a l d a P r o v í n c i a . Q u a n t o ao c a c a u , cultivado na região
de Ilhéus, só a p ó s 1 8 6 0 se t o r n a r i a u m i m p o r t a n t e p r o d u t o de e x p o r t a ç ã o . 1 2

R e s t a falar d o a ç ú c a r e d o f u m o , q u e d o m i n a v a m as e x p o r t a ç õ e s baianas. N ã o é
m i n h a i n t e n ç ã o n a r r a r a h i s t ó r i a desses d o i s p r o d u t o s n o século X I X — q u e , aliás, está
p o r ser feita — , m a s e v o c a r a l g u n s d a d o s dos p r o b l e m a s , s o b r e t u d o os relativos ao
açúcar.

E n t r e as c a u s a s q u e e m geral se a p r e s e n t a m para e x p l i c a r o d e c l í n i o da p r o d u ç ã o
açucareira, as m a i s c i t a d a s se l i g a m à p r o d u ç ã o e à c o m e r c i a l i z a ç ã o . A o b s o l e s c ê n c i a
das t é c n i c a s de p r o d u ç ã o e a f a l t a de m ã o - d e - o b r a para c u l t i v a r a terra e fabricar o
açúcar f o r a m causas p r i m e i r a s , m a s n ã o as m a i s i m p o r t a n t e s , pois o d e c l í n i o da ativi-
dade a ç u c a r e i r a r e s u l t o u s o b r e t u d o das n o v a s c o n d i ç õ e s i m p o s t a s pelo m e r c a d o inter-
n a c i o n a l . A p ó s a I n d e p e n d ê n c i a , até P o r t u g a l d e i x o u de c o m p r a r o a ç ú c a r b a i a n o ,
e n q u a n t o o u t r o s p a í s e s , c o m o a I n g l a t e r r a , a F r a n ç a e a E s p a n h a , se abasteciam nas
próprias c o l ô n i a s . A d e m a i s , n a E u r o p a c o n t i n e n t a l , o a ç ú c a r de b e t e r r a b a , f o r t e m e n t e
protegido, o p u n h a u m a segunda barreira à penetração do açúcar b a i a n o . 1 3
M a s , por
i m p o r t a n t e s q u e t e n h a m s i d o , essas c o n d i ç õ e s i n t e r n a c i o n a i s t a m p o u c o m e parecem
uma explicação suficiente.

N o t o c a n t e à c u l t u r a d a c a n a - d e - a ç ú c a r , o R e c ô n c a v o t i n h a três p r o b l e m a s a
enfrentar: u m , p e r m a n e n t e , era r e p r e s e n t a d o pela e s t i a g e m o u o excesso de c h u v a s ; os
outros d o i s se m a n i f e s t a v a m a l o n g o p r a z o : o desgaste e o e m p o b r e c i m e n t o d o solo e
0 d e s m e m b r a m e n t o das p r o p r i e d a d e s , seja p o r partilha e n t r e herdeiros, seja e m decor-
rência de crises e c o n ô m i c a s .
P r i m e i r o p r o b l e m a : e x c e s s o o u escassez d e c h u v a s . S a b e m o s h o j e que, n o massapé
impermeável — terra argilosa, f o r m a d a pela d e c o m p o s i ç ã o de calcáreos cretáceos — ,
nos anos s e c o s ( í n d i c e s p l u v i o m é t r i c o s de 1 . 2 0 0 a 1 . 5 0 0 m m ) , a c a n a - d e - a ç ú c a r cresce
c o m b o m r e n d i m e n t o ; já nos a n o s de m u i t a c h u v a (entre 1 . 8 0 0 e 2 . 2 0 0 m m ) , nesse
tipo de t e r r e n o , a c o l h e i t a é m á , s e n ã o c a t a s t r ó f i c a . N o s 'silõcs' — terras argilo-
arenosas, m a i s p r o f u n d a s c mais b e m drenadas — . o c o r r e e x a t a m e n t e o inverso: o
r e n d i m e n t o é b o m nos a n o s de chuvas a b u n d a n t e s e m a u nos anos secos. A t u a l m e n t e ,
sem uso de a d u b o o u i r r i g a ç ã o , c o n s i d e r a - s e b o a u m a p r o d u ç ã o de 5 5 toneladas de
cana por h e c t a r e c m á a de 3 5 toneladas p o r hectare. I g n o r a m o s , l a m e n t a v e l m e n t e ,
qual era o r e n d i m e n t o n o século X I X . 1 4
D i g a - s e de passagem q u e , entre 1 8 0 9 c 1 8 8 9 ,
462 BAHIA, S É C U L O XIX

registraram-se 2 5 a n o s secos e o n z e de c h u v a s excessivas, e q u e , n o R e c ô n c a v o , os solos


a r g i l o - a r e n o s o s , q u e precisam de c h u v a s , p r e d o m i n a m s o b r e as terras de massapé 1 S

S e g u n d o p r o b l e m a : o desgaste dos s o l o s . A c a n a - d e - a ç ú c a r , ainda que pouco


d a n o s a p a r a a terra, a c a b a p o r d e s t r u i r o h ú m u s fértil. A b a t i d a s as florestas, os solos do
R e c ô n c a v o f o r a m e x p l o r a d o s c o m o se f o s s e m m i n a s : buscava-se extrair o possível com
a m á x i m a b r e v i d a d e . Para s a b e r e m q u a n t o t e m p o a d e s t r u i ç ã o era levada a c a b o , seria
preciso c o m p a r a r e m l a b o r a t ó r i o s o l o s de m a s s a p é e de ' s i l õ e s \ cultivados e não cul-
tivados. M e s m o isto, aliás, p o d e r i a ser e n g a n o s o , já q u e o a m b i e n t e de o u t r o r a foi
d e s t r u í d o . A o q u e t u d o i n d i c a , n o e n t a n t o , o desgaste d o s o l o foi m a i o r do que em
geral se a d m i t e . 1 6

T e r c e i r o p r o b l e m a : o d e s m e m b r a m e n t o das p r o p r i e d a d e s . N o final d o século X V I I I ,


a B a h i a t i n h a 2 6 0 e n g e n h o s ; e m 1 8 1 8 , S p i x e M a r t i u s c o n t a r a m 5 1 1 . N u m famoso
ensaio s o b r e a f a b r i c a ç ã o d o a ç ú c a r , o f u t u r o M a r q u ê s de A b r a n t e s arrolou 6 0 3 em 1 8 3 3 .
M a i s tarde, e m 1 8 5 3 , e m r e l a t ó r i o à A s s e m b l é i a P r o v i n c i a l , o presidente da Província
falou de 7 5 9 e n g e n h o s registrados. F i n a l m e n t e , e m 1 8 7 5 , M a n u e l J e s u í n o Ferreira citou
8 3 9 e n g e n h o s , 2 8 2 dos q u a i s e q u i p a d o s c o m m á q u i n a s a v a p o r . 1 7
Assim, entre 1 8 0 0 e
1 8 7 5 , p e r í o d o de crise na h i s t ó r i a dos e n g e n h o s , seu n ú m e r o foi m u l t i p l i c a d o por três.

E m q u e terras o p l a n t i o d a c a n a - d e - a ç ú c a r se e x p a n d i a ? N o R e c ô n c a v o , zona
t r a d i c i o n a l d e c u l t u r a , as terras v i r g e n s r a r e a v a m ; as da p a r ó q u i a de S ã o P e d r o do R i o
F u n d o t i n h a m c o m e ç a d o a ser o c u p a d a s j á n o final d o s é c u l o X V I I I . P o r t a n t o , foi pelo
r e s t a n t e d o t e r r i t ó r i o d a P r o v í n c i a q u e a c u l t u r a da c a n a - d e - a ç ú c a r se e x p a n d i u . N ã o
s a b e m o s q u a n t o s e n g e n h o s se i n s t a l a r a m n o R e c ô n c a v o , n e m nas d e m a i s regiões. M a s
o s 6 0 3 e n g e n h o s a r r o l a d o s e m 1 8 3 2 - 1 8 3 3 p e l o M a r q u ê s d e A b r a n t e s talvez fossem
apenas os d o R e c ô n c a v o e d o A g r e s t e . O j o g o d o s d e s m e m b r a m e n t o s de unidades
m a i o r e s p e r m i t i a a d q u i r i r terras e nelas i n s t a l a r e n g e n h o s , graças à lei d e 13 de novem-
b r o de 1 8 2 7 , q u e a b o l i u a e x i g ê n c i a d e p e r m i s s ã o .

O d e s m e m b r a m e n t o se o p e r a v a de duas m a n e i r a s . U m a envolvia a venda das


terras, p r á t i c a c o m u m d e s d e o p e r í o d o c o l o n i a l , e q u e , na é p o c a , p e r m i t i r a aos produ-
tores de c a n a - d e - a ç ú c a r p l a n t a r c m terras d e sua p r o p r i e d a d e . 1 8
A segunda se efetuava
p o r via de h e r a n ç a : c o m o t o d o s o s filhos t i n h a m igual direito ao bens paternos, a
p r o p r i e d a d e tendia a se s u b d i v i d i r , f r a g m e n t a n d o - s e de g e r a ç ã o em geração, a menos
q u e a família praticasse a e n d o g a m i a .
Ê difícil d e t e r m i n a r a e x t e n s ã o dessas u n i d a d e s de p r o d u ç ã o , mas há indicações,
e m b o r a i m p e r f e i t a s , n o c a d a s t r o d c terras o r g a n i z a d o por d e t e r m i n a ç ã o d o imperador
(lei dc 18 de s e t e m b r o cie 1 8 5 0 ) . N a p a r ó q u i a d c S ã o Tiago d o Iguapé, n o R e c ô n c a v o ,
o e n g e n h o dc S ã o J o ã o d o A ç u , l a m b e m c h a m a d o E n g e n h o c a , pertencente ao tenente-
c o r o n e l F r a n c i s c o G o m e s M o n c o r v o , tinha 5 . 5 9 0 hectares, o q u e representava a quar-
ta parte das terras da p a r ó q u i a . D o i s o u t r o s proprietários possuíam entre mil e dois ml
hectares, o i t o t i n h a m e n t r e q u i n h e n t o s e m i l , u m a dezena entre cem e trezentos. Vinte
c c i n c o t i n h a m m e n o s d c cem h e c t a r e s . 19
O n d e estavam os grandes latifundiários do
açúcar d c q u e fala a historiografia brasileira? Aliás, na mesma época, e também no
LIVRO V I - O COTIDIANO DOS HOMENS QUE PRODUZIAM E TROCAVAM 463

R e c ô n c a v o , os sete e n g e n h o s q u e c o m p u n h a m a f o r t u n a fundiária da família R o c h a


Pita o c u p a v a m 3 . 6 2 4 h e c t a r e s . P o r t a n t o , eram e n g e n h o s c o m 5 1 8 hectares em m é -
dia, 2 0
q u e valiam aos R o c h a P i t a a f a m a de serem os mais ricos proprietários de terra
d o R e c ô n c a v o ! E m 1 8 9 1 , q u a n d o a família C o s t a P i n t o v e n d e u sua usina de açúcar,
as terras dos e n g e n h o s B o m J a r d i m e B o m S u c e s s o , q u e a integravam, t i n h a m , respec-
tivamente, 1 7 4 e 3 2 0 hectares. 21

C a b e n o t a r a i n d a q u e n e m todas as terras dos e n g e n h o s eram destinadas à cult


ura
da c a n a - d e - a ç ú c a r . I s t o , e m p a r t e , p o r necessidade: algumas terras eram mangues
i m p r ó p r i o s p a r a a c u l t u r a , o u t r a s serviam d e pasto para os a n i m a i s d o e n g e n h o o u
deviam ser deixadas e m d e s c a n s o . M a s , de f a t o , n ã o eram apenas essas parcelas que
deixavam d e ser c u l t i v a d a s . A s s i m , e m 1 8 8 9 , o e n g e n h o d'Água, propriedade d o
terceiro b a r ã o d e S ã o F r a n c i s c o , t i n h a dezessete hectares cultivados, n u m total de 4 3 5 ;
o e n g e n h o Q u i b a c a , d o b a r ã o de C o t e j i p e , apenas 2 5 hectares, t a m b é m e m 4 3 5 ; já o
visconde F e r r e i r a B a n d e i r a , d o n o d o e n g e n h o M a d r u g a , limitava-se a cultivar treze
dos seus 5 2 2 h e c t a r e s . 2 2
É v e r d a d e q u e estes dados se referem a u m m o m e n t o da
história da B a h i a e m q u e o p r o b l e m a da m ã o - d e - o b r a — q u e a f e t o u gravemente a
agricultura a ç u c a r e i r a a p a r t i r de m e a d o s d o s é c u l o — estava e s p e c i a l m e n t e agudo.

Estes e l e m e n t o s i n d i c a m q u e o d e c l í n i o d a i n d ú s t r i a açucareira m e r e c e r i a estudos


mais a p r o f u n d a d o s . N e l e s , h a v e r i a q u e c o n s i d e r a r as q u e s t õ e s ligadas ao capital e ao
f i n a n c i a m e n t o d o c r é d i t o , s e m e s q u e c e r as p o s i ç õ e s dos s e n h o r e s de e n g e n h o e das
autoridades g o v e r n a m e n t a i s e m relação aos p r o b l e m a s f i n a n c e i r o s .
A c u l t u r a d o f u m o , p o r sua vez, d e s e n v o l v e u - s e s o b r e t u d o a partir de meados do
século X V I I , q u a n d o o p r o d u t o c o m e ç o u a servir de m o e d a de t r o c a na c o m p r a de
escravos na c o s t a d a Á f r i c a . A s p l a n t a ç õ e s se e s t e n d e r a m n a região situada além da
c o n f l u ê n c i a d o s rios P a r a g u a ç u e J a c u í p e , e m q u e se destacava a p a r ó q u i a de S ã o
G o n ç a l o dos C a m p o s . V i m o s q u e , n o s é c u l o X I X , a c u l t u r a d o f u m o de disseminou
por t o d o o t e r r i t ó r i o d a p r o v í n c i a , m a s as regiões e x p o r t a d o r a s se situavam nas proxi-
midades n o l i t o r a l e n o s m u n i c í p i o s d e C a c h o e i r a , S ã o Félix, C r u z das A l m a s , São
Filipe, S a n t o A n t ô n i o d e J e s u s , N a z a r é , M a r a g o j i p e e S ã o M i g u e l das M a t a s , todos no
sul do R e c ô n c a v o .
D e s d e o p e r í o d o c o l o n i a l , a c u l t u r a d o f u m o era de t i p o familiar, praticada por
agricultores livres, m u i t o s dos q u a i s t i n h a m a posse d a terra q u e cultivavam. E r a
c o m u m t a m b é m q u e p r o p r i e t á r i o s alugassem partes de suas terras a p e q u e n o s agricul-
tores, o q u e a c a b o u por criar u m g r u p o h e t e r o g ê n e o de m é d i o s e pequenos proprietá-
rios e de rendeiros ( l o c a t á r i o s ) , a q u e se j u n t a v a m e m p r e g a d o s , c h a m a d o s c o l o n o s .
As unidades de p r o d u ç ã o t i n h a m de c e m a três mil acres, m a s 2/3 delas se c o n c e n t r a -

vam na faixa e n t r e c e m c mil a c r e s . 24

As propriedades q u e cultivavam o f u m o c o m p o r t a v a m em geral uma sede


c o n s t r u ç ã o térrea m u i t o simples, sem q u a l q u e r semelhança c o m as belas casas-gran-
des dos e n g e n h o s - e exigiam de dois a 2 5 escravos (segundo a superfície enluva-
d a ) , a l o j a m e n t o s para eles e u m barracão para a secagem e estocagem do p r o d u t o .
464 BAHIA, S É C U L O XIX

O capital a investir era, assim, três vezes m e n o r q u e o n e c e s s á r i o para o cultivo da


cana-de-açúcar. 2 5
A l é m d i s t o , o c i c l o de p r o d u ç ã o d o f u m o é m a i s c u r t o q u e o da
c a n a (seis a o i t o meses, c o n t r a 1 8 ) , o q u e p e r m i t i a duas c o l h e i t a s p o r a n o . 2 6
O ren-
d i m e n t o m é d i o p o r u n i d a d e de p r o d u ç ã o era de c e m a 1 5 0 arrobas por a n o . E m
1 7 8 8 , só n o d i s t r i t o d e C a c h o e i r a , havia o i t o m i l p l a n t a d o r e s de f u m o ; ao que pa-
rece, na m a i o r i a r e n d e i r o s . 2 7

As m e s m a s c o n d i ç õ e s p r e v a l e c e r a m n o s é c u l o X I X : o s i n v e s t i m e n t o s necessários
c o n t i n u a v a m m e n o r e s q u e o s e x i g i d o s para a c u l t u r a d a c a n a , as áreas cultivadas não
passavam e m geral de dez h e c t a r e s e o t r a b a l h o era f e i t o p e l o a g r i c u l t o r e sua família.
E s t e s , p a r a l e l a m e n t e , p l a n t a v a m g ê n e r o s de s u b s i s t ê n c i a , c o m o m i l h o , m a n d i o c a e
feijão. O f u m o c o n t i n u o u s e n d o u m a c u l t u r a de h o m e n s livres, o q u e evitava o
d i s p ê n d i o na c o m p r a d e escravos, c u j o s p r e ç o s e l e v a r a m - s e c o n s t a n t e m e n t e ao longo
d o s é c u l o . M u i t a s vezes p l a n t a v a - s e e m t e r r a a l u g a d a e, e n t r e o s e m p r e g a d o s , havia
escravos a l f o r r i a d o s . 28

M a s o s é c u l o X I X t r o u x e u m a g r a n d e n o v i d a d e : a i m p l a n t a ç ã o das m a n u f a t u r a s de
f u m o . A p r i m e i r a , f u n d a d a e m 1 8 1 9 p e l o c i d a d ã o s u í ç o F r é d é r i c M e u r o n , fabricava
rapé. 2 9
M a s foi n a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o q u e p r o l i f e r a r a m as m a n u f a t u r a s de
c h a r u t o s , c i g a r r o s e r a p é . N a m a i o r i a , e r a m p e q u e n a s f á b r i c a s de natureza familiar e
artesanal, c o m u m a m ã o - d e - o b r a c o m p o s t a b a s i c a m e n t e p o r m u l h e r e s e crianças. Poucas
usavam m á q u i n a s — c h a r u t o s e c i g a r r o s e r a m e n r o l a d o s a m ã o . U m a fábrica c o n h e -
c i d a , a Juventude, t i n h a e m 1 8 8 2 m a i s d e 1 5 0 o p e r á r i o s " c o n t a n d o c o m as muitas
famílias q u e t r a b a l h a m e m casa p o r c o n t a d a f á b r i c a " . E m o u t r a , c h a m a d a Fragrância,
dos s e t e n t a o p e r á r i o s v i n t e e r a m m u l h e r e s , e dez, c r i a n ç a s , t o d o s t r a b a l h a n d o sem a
ajuda de m á q u i n a s . N ã o s a b e m o s o n ú m e r o dessas f a b r i q u e t a s q u e , p o r sua estrutura
artesanal, d e m a n d a v a m p o u c o s i n v e s t i m e n t o s . A l é m disso, m u i t a s delas celebravam
c o n t r a t o s e registravam suas firmas n a J u n t a C o m e r c i a l , m a s q u a s e n u n c a c o m u n i c a -
vam a cessação de suas atividades, o q u e d i f i c u l t a q u a l q u e r c o n t a g e m r e a l i s t a . 30
A
literatura oficial, c o m o os relatórios dos p r e s i d e n t e s d e P r o v í n c i a , só m e n c i o n a m os
grandes e s t a b e l e c i m e n t o s , q u a n d o essa p e q u e n a p r o d u ç ã o artesal seria d o m a i o r inte-
resse, p o r q u a n t o e m p r e g a v a u m a m ã o - d e - o b r a r e c r u t a d a na p o p u l a ç ã o livre de Salva-
d o r . E m 1 8 8 9 , a c i d a d e c o n t a v a q u a t r o grandes fábricas de f u m o voltadas para a
e x p o r t a ç ã o : M e u r o n & C i a . e M o r e i r a & C i a . , fabricantes de rapé, a fábrica de cha-
rutos Leite & Alves, c u j a m a t r i z ficava n o R i o de J a n e i r o , e a fábrica de charutos
D a n e m a n n , fundada em 1 8 7 3 . 3 1

A PECUÁRIA

S e a p r o d u ç ã o de cereais e legumes da província circulava p o u c o e mal, n ã o chegando


ao m e r c a d o de Salvador e d o R e c ô n c a v o , a capital era sem dúvida bem abastecida de
cavalos, mulas e c a r n e b o v i n a fresca, graças aos rebanhos criados nas terras que se
LIVRO V I - O COTIDIANO DOS HOMENS QUE PRODUZIAM E TROCAVAM 465

e s t e n d i a m n o A g r e s t e e mais a l é m . O s imensos espaços do Sertão, essa "maravilhosa


paisagem de platos c o m seus d o m o s o n d u l a n t e s e seus tabuleiros r a s o s V eram o reino
2

das b o i a d a s , q u e . à b u s c a de pasto, iam rasgando estradas pela região 3 3

P r o i b i ç õ e s datadas de 1 6 8 8 e 1 7 0 1 haviam afastado a criação de gado para mais de


dez. leguas da c o s t a , para evitar que a pecuária disputasse c o m a cana-de-açúcar e
m e s m o c o m a m a n d i o c a , as ricas terras dali, próprias para essas culturas. Por outro
l a d o . s e g u n d o Thales de A z e v e d o , desde o século X V I I I as autoridades coloniais se
davam c o n t a d o p r o b l e m a do a b a s t e c i m e n t o de carne nas regiões de m o n o c u l t u r a . 34

Além disso, os e n g e n h o s precisavam de gado, n ã o só para alimentar seus moradores


c o m o para m o v e r m o i n h o s e transportar pessoal e a própria cana.
N o s é c u l o X I X as i n t e r d i ç õ e s d o p e r í o d o c o l o n i a l j á não vigoravam e os engenhos
do R e c ô n c a v o t i n h a m terras qualificadas c o m o 'pastos'. M a s estavam longe de ser
satisfatórios: d a d a a u m i d a d e da região, a vegetação c o n t i n h a água demais para servir
de a l i m e n t o a d e q u a d o aos a n i m a i s . O s d e s l o c a m e n t o s que seriam necessários eram
impensáveis, já q u e a m a i o r parte das terras se destinava à cultura da cana. Pior: as
chuvas a b u n d a n t e s , l i x i v i a n d o o solo, e m p o b r e c i a m - n o de sais minerais, o que preju-
dicava o d e s e n v o l v i m e n t o d o g a d o e a qualidade do seu leite. N a região do Paraguaçu,
só além de S a n t o A n t ô n i o , o n d e ressurge a bacia cristalina — na outra borda do horst
de Salvador — , a c r i a ç ã o de gado se tornava viável, pois ali, na época, os solos eram

ricos. 3 5

A pecuária e m g r a n d e escala só era rentável, p o r t a n t o , nas terras do Sertão, onde


o flagelo da seca e r a c o m p e n s a d o pelo c o n s t a n t e d e s l o c a m e n t o das boiadas em busca
de a l i m e n t o n a q u e l a s vastas terras desabitadas. É verdade que o gado ali criado não
chegava a S a l v a d o r e m m e l h o r e s c o n d i ç õ e s q u e o d o R e c ô n c a v o . A descrição que
Vilhena deixou — de tropas de a n i m a i s esqueléticos chegando penosamente até o
mercado de F e i r a de S a n t a n a — p e r m a n e c i a válida n o século X I X . 3 6
C o m o antes, o
gado vinha de m u i t o l o n g e , p e r c o r r e n d o por vezes mais de mil quilômetros, alimen-
tando-se d o p o u c o q u e achava n u m c a m i n h o cuja vegetação fora antes devastada por

muitas outras b o i a d a s .
I g n o r a m o s o n ú m e r o do r e b a n h o criado n o século X I X na Província e sua evolu-
ção. P a r e c e - m e q u e o a u m e n t o da população deve ter provocado um incremento da
pecuária, e se capital e o R e c ô n c a v o sempre se queixavam de um abastecimento defi-
ciente de c a r n e b o v i n a fresca, essa carência provavelmente se devia mais à estrutura do
mercado de Salvador d o que a u m a queda da produção.
D e V i t ó r i a d a C o n q u i s t a , n o e x t r e m o sudoeste da Província, passando por Barra,
X i q u e x i q u e , S e n t o Sé c Juazeiro, até o Agreste, em torno de Feira d e Santana e de
E n t r e R i o s , a pecuária estava por toda parte. Aliás, até do longínquo Piau. chegavam
boiadas a Salvador. Barreiras (no extremo oeste) e Alagoinhas (no Agreste) eram
importantes centros de b e n e f i c i a m e n t o de c o u r o , ' Segundo o censo de 1 8 7 , , a agri-
7

cultura e a pecuária ocupavam 4 7 2 . 3 2 9 pessoas, isto é, 3 9 , 9 % da população total e


5 6 % da população ativa. 7
466 BAHIA, S É C U L O XIX

PRODUTOS DA ATIVIDADE EXTRATIVA

Para c o m p l e t a r o q u a d r o d a p r o d u ç ã o a g r í c o l a d a B a h i a é p r e c i s o m e n c i o n a r itens que


sempre figuraram, a i n d a q u e d e m a n e i r a desigual c variável, na lista das e x p o r t a ç õ e s .
E r a m a p i a ç a b a , e x c e l e n t e para o f a b r i c o de vassouras; a i p e c a (Cephaelis ipecacuanha),
erva de virtudes m e d i c i n a i s ; a a r a r o b a , q u e dava o p ó - d e - g o a , utilizado em dermatologia;
a c a r n a ú b a , p a l m e i r a c u j a s f o l h a s f o r n e c e m c e r a para o f a b r i c o de velas; o t u c u m , outra
p a l m e i r a , esta c o m folhas cujas fibras se p r e s t a m à feitura de c o r d a s e esteiras; e
finalmente o s c o q u i l h o s {Canna glauca), c u j o c a r o ç o c o n t é m ó l e o . Essas p l a n t a s , na-
tivas e m t o d o o l i t o r a l , e r a m e x p o r t a d a s s o b r e t u d o para o u t r a s p r o v í n c i a s d o p a í s . 3 9

N o S e r t ã o , n o s m u n i c í p i o s d e A l a g o i n h a s , M o n t e A l t o , B a r r e i r a s e O l i v e i r a do
B r e j i n h o , c r e s c i a m á r v o r e s q u e f o r n e c i a m l á t e x . A b o r r a c h a delas e x t r a í d a , s o b r e a qual
t e n h o escassa i n f o r m a ç ã o , ficava r e s t r i t a a o c o n s u m o l o c a l . S ó n o fim d o século pas-
s o u - s e a e x p l o r a r s i s t e m a t i c a m e n t e a v a r i e d a d e m a n i ç o b a , d e J e q u i é , m u n i c í p i o d o sul
do estado, e a exportar a p r o d u ç ã o . 4 0

MINAS E MINERAIS

D i a m a n t e s , o u r o e a m e t i s t a s p o d i a m ser e n c o n t r a d o s s o b r e t u d o n a C h a p a d a D i a m a n -
t i n a , n o c e n t r o - o e s t e d a P r o v í n c i a , o n d e o o u r o j á f o r a e x p l o r a d o n o p e r í o d o colonial.
As jazidas d e s t e ú l t i m o m e t a l , d e s c o b e r t a s na B a h i a n a é p o c a c o l o n i a l , e r a m m e d í o c r e s ,
e o v o l u m e d a p r o d u ç ã o foi i n s i g n i f i c a n t e . U m a s e g u n d a r e g i ã o d i a m a n t í f e r a , m u i t o
m o d e s t a , era a de J a c o b i n a . U m a m i n a foi ali d e s c o b e r t a e m 1 7 7 5 , mas n ã o pôde ser
e x p l o r a d a , p o i s as a u t o r i d a d e s p o r t u g u e s a s p r e f e r i r a m c o n s e r v a r o m o n o p ó l i o detido
por Minas Gerais.

D e s c o b e r t o s , o u r e d e s c o b e r t o s , e m 1 8 4 2 , o s d i a m a n t e s p r o v o c a r a m u m a corrida
febril, m a s a e x p l o r a ç ã o das m i n a s d u r o u p o u c o , p o i s as pedras baianas foram vencidas
pela c o n c o r r ê n c i a das q u e v i n h a m d o C a b o . A a t i v i d a d e r e a n i m o u - s e depois c o m a
e x t r a ç ã o dos c a r b o n a t o s , de b a i x o p r e ç o na é p o c a , m a s q u e servia para c o r t a r e lapidar
os d i a m a n t e s . F o i seu u s o industrial q u e c o n f e r i u d e p o i s u m real valor aos c a r b o n a t o s ,
s o b r e t u d o na a b e r t u r a d o t ú n e l de S ã o G o t a r d o e dos canais de Suez c d o P a n a m á . Sua
e x p l o r a ç ã o , m u i t o lucrativa, era p r a t i c a m e n t e u m m o n o p ó l i o da Bahia, j á que a con-
t r i b u i ç ã o de B o r n é u foi s e m p r e m u i t o l i m i t a d a . M a s os filões aluviais logo se esgota-
ram c , por volta de 1 9 0 0 , p r e c i s a m e n t e q u a n d o a d e m a n d a i n t e r n a c i o n a l crescia, os
c a r b o n a t o s t o r n a r a m - s e raros.
As m i n a s eram exploradas por e m p r e s a s c p o r faiscadores\ pessoas q u e trabalha-
4

vam por c o n t a própria, sós ou c o m a ajuda de escravos. As empresas q u e atuavam nesse


c a m p o eram de porte c o n s i d e r á v e l , pois recebiam áreas de duzentos a c i n c o mil hecta-
res e seu capital n u n c a era inferior a 5 0 : 0 0 0 . 0 0 0 de réis. Valiam-se do braço escravo e
do trabalhador livre. O e m p r e g o destes ú l t i m o s era feito segundo duas modalidades.
LIVRO V I - O COTIDIANO DOS HOMENS QUE PRODUZIAM E TROCAVAM 46~

U m a era u m t i p o d e a r r e n d a m e n t o p r a t i c a d o pelos c h a m a d o s m e i a - p r a ç a \ Estes


t i n h a m d i r e i t o a 5 0 % d o valor b r u t o d o d i a m a n t e , depois de d e s c o n t a d o o quinto —
2 0 % d o valor d a p r o d u ç ã o — para o p r o p r i e t á r i o o u c o n c e s s i o n á r i o d o terreno. A
s e g u n d a m o d a l i d a d e era a m e r a c o n t r a t a ç ã o d o s serviços, p o r u m a paga diária, n ã o
t e n d o o e m p r e g a d o n e n h u m d i r e i t o s o b r e o p r o d u t o e x t r a í d o . E s t a f o r m a foi utilizada
s o b r e t u d o nos p e r í o d o s de i n t e n s a e x p l o r a ç ã o das m i n a s , q u a n d o o s d i a m a n t e s alcan-
çavam b o n s p r e ç o s n o m e r c a d o i n t e r n a c i o n a l . Q u a n d o os preços baixaram, o sistema
dos ' m e i a - p r a ç a ' t o r n o u - s e m a i s l u c r a t i v o para os p r o p r i e t á r i o s e concessionários dos
terrenos. O o u r o e as p e d r a s s e m i p r e c i o s a s ( c o m o as ametistas q u e se supunham
existir) n ã o f o r a m o b j e t o de e x p l o r a ç ã o s i s t e m á t i c a nesse p e r í o d o . 4 3
D e v o observar,
aliás, q u e o r e c e n s e a m e n t o d e atividades realizado e m 1 8 7 2 s u r p r e e n d e n t e m e n t e n ã o
i n d i c o u o n ú m e r o de pessoas e m p r e g a d a s n a p r o d u ç ã o de d i a m a n t e s e c a r b o n a t o s .
C r e i o q u e foi u m a f a l h a d o s r e c e n s e a d o r e s , q u e talvez t e n h a m acreditado n a palavra
dos h a b i t a n t e s l o c a i s , s e m v e r i f i c a r sua a u t e n t i c i d a d e .

M a s n ã o h á d ú v i d a s s o b r e a p r e d o m i n â n c i a das atividades agrícolas, fato coerente


c o m a v o c a ç ã o d a P r o v í n c i a . N a m a i o r p a r t e das regiões, essas atividades n ã o enrique-
ciam os h o m e n s , s o b r e t u d o p o r causa da d i f i c u l d a d e de c o l o c a r os excedentes c m
ercados m a i s a m p l o s , d a d a a p r e c a r i e d a d e dos m e i o s de t r a n s p o r t e .
m
C A P I T U L O 26

RELAÇÕES E COMUNICAÇÕES

Desde a época colonial o povoamento da Bahia concentrou-se no litoral ou nas mar-


gens dos rios navegáveis, de onde se tinha fácil acesso não só a Salvador, o centro
administrativo, c o m o às demais aglomerações urbanas do litoral. E n q u a n t o a navega-
ção de longo curso punha a Colônia em permanente c o n t a t o c o m a Metrópole, com
a África, que lhe fornecia os escravos, e até c o m o E x t r e m o Oriente, de onde lhe
chegavam produtos exóticos, uma próspera navegação de cabotagem interligava os
portos do Brasil, empregando muitos marinheiros em suas tripulações e fazendo a
riqueza dos moradores do litoral, cujos produtos transportava. C o m p l e t a m e n t e diver-
sa era a situação da população do interior, onde os primeiros núcleos se instalaram no
século X V I I . Foi a pecuária que induziu essa interiorização e abriu vias de comunica-
ção que acabaram por ultrapassar em m u i t o os limites da Capitania.

ESTRADAS

As primeiras estradas da Bahia remontam ao período colonial. Partindo de Salvador e


da vila de Cachoeira, tomavam duas direções: leste-nordeste e oeste-sudoeste. 1
No
século XVI elas eram os chamados 'caminhos de gado' e ligavam a capital apenas às
terras situadas a leste e ao noroeste. U m deles trazia até a cidade o gado da região onde
hoje fica Lagoa Grande, no Sertão de Pernambuco. Outra rumava para a Chapada
Diamantina e, na altura da atual cidade de Boa Vista do Tupim, bifurcava-se, toman-
do duas direções: nordeste, passando por Jacobina, até Juazeiro; e norte, chegando às
margens do São Francisco, num ponto situado entre Xiquexique e Sento Sé. Por essa
estrada chegava a Salvador não só o gado criado no Sertão baiano como o proveniente
do longínquo Piauí.
No século XVII, a rede de estradas melhorou consideravelmente, ligando novas
regiões da Capitania à capital. Os traçados começaram também a se tornar mais

468
RÓ V I - O C O T I D I A N O DOS H O M E N S QUE PRODUZIAM E T R O C A V A M 469

diretos e curtos. U m n o v o e i x o ligava S a l v a d o r , a o m e s m o t e m p o , a o s p r i n c i p a i s


n ú c l e o s d a c a p i t a n i a d e S e r g i p e dei R e i , a J u a z e i r o e à atual c i d a d e d e L i v r a m e n t o d o
B r u m a d o . D e u m t r o n c o c o m u m , s a í a m três e s t r a d a s . E s s e t r o n c o atravessava u m a
p a r t e d o R e c ô n c a v o , a l c a n ç a n d o o vale d o I t a p i c u r u n a a l t u r a da atual c i d a d e d e
A l a g o i n h a s . A l i a e s t r a d a se b i f u r c a v a , t o m a n d o d u a s d i r e ç õ e s : u m a atravessava a p a r t e
d o A g r e s t e , a leste d a c a p i t a l , l i g a n d o - a c o m as vilas d e L a g a r t o e L a r a n j e i r a s , e m
S e r g i p e dei R e i ; a s e g u n d a t o m a v a o r u m o n o r d e s t e , l e v a n d o a J u a z e i r o m a i s d i r e t a -
m e n t e q u e a v e l h a t r i l h a d o s é c u l o X V I . A n t e s d e ali c h e g a r , n a a l t u r a d e Q u e i m a d a s ,
essa e s t r a d a t a m b é m d a v a o r i g e m a u m a r a m i f i c a ç ã o q u e s e g u i a p a r a o c e n t r o - o e s t e ,
l e v a n d o a t é a r e g i ã o d o R i o das C o n t a s . A o e s t e d a a t u a l c i d a d e de L i v r a m e n t o do
B r u m a d o , u m a terceira b i f u r c a ç ã o : dirigindo-se ainda mais a oeste, um novo caminho
margeava o rio S ã o F r a n c i s c o , até o N o r d e s t e da capitania de M i n a s Gerais; voltando-
se p a r a o l e s t e , a o u t r a v i a p a s s a v a p o r C a e t i t é e t e r m i n a v a t a m b é m n o N o r d e s t e de
M i n a s , na região de M i n a s N o v a s , E r a u m a m a l h a viária m u i t o deficiente, que não
cortava n e m a m e t a d e d o território da C a p i t a n i a .
N o s é c u l o X V I I I n ã o h o u v e a l t e r a ç õ e s , s a l v o a n o v a e s t r a d a q u e p e r m i t i a a ligação
das vilas d e S e r g i p e d e i R e i à v i l a d ' A l m a s , n o e x t r e m o N o r d e s t e d a C a p i t a n i a da
B a h i a . E s s e n o v o e i x o , p a r t i n d o d e C a c h o e i r a , n o R e c ô n c a v o , dirigia-se p a r a o C e n t r o -
O e s t e e o S u d o e s t e d a C a p i t a n i a . N a verdade, era u m a variante — mais curta — da
v e l h a e s t r a d a a b e r t a pelas b o i a d a s n o s é c u l o X V I I , m a s t e v e u m papel essencial n o
t r a n s p o r t e d e e s c r a v o s , p r o d u t o s m a n u f a t u r a d o s e b e n s de l u x o para as regiões auríferas
de M i n a s G e r a i s , e m p l e n a e x p a n s ã o .

T a m b é m n o s é c u l o X I X o d e s e n v o l v i m e n t o d a r e d e d e estradas foi i n s i g n i f i c a n t e .
S ó se a b r i r a m d u a s v i a s , q u e p e r m i t i r a m a l i g a ç ã o das vilas de C a m a m u e M a r a u à
r e g i ã o d e J e q u i é , q u e , n o fim d o s é c u l o , t o r n o u - s e p r o d u t o r a d e b o r r a c h a .

FERROVIAS

A partir d a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o X I X , as a u t o r i d a d e s p r o v i n c i a i s c o m e ç a r a m
p o r fim a se i n q u i e t a r c o m o p r o b l e m a d a i n t e r l i g a ç ã o das diversas regiões. R e n d e -
r a m - s e à e v i d e n c i a de q u e as vias terrestres e x i s t e n t e s e r a m i n s u f i c i e n t e s , longas e
p o u c o rentáveis, para o t r a n s p o r t e t a n t o de pessoas c o m o de g a d o e de mercadorias.
As estradas d e f e r r o , q u e a p a r e c i a m c o m o a s o l u ç ã o ideal, e x i g i a m recursos e a
a n u ê n c i a dos legisladores. Era preciso a i n d a d e c i d i r s o b r e os traçados, q u e n ã o se-
riam f o r ç o s a m e n t e os m e s m o s das estradas. P o r sua vez, para estabelecer prioridades,
era preciso e s t u d a r as c o n d i ç õ e s g c o m o r f o l ó g i c a s . E m s u m a , a c o n s t r u ç ã o de ferro-
vias d e p e n d i a de capitais, de v o n t a d e política e de c o n d i ç õ e s geográficas. A n o apos
a n o , as Falas dos presidentes d e n u n c i a v a m as más c o n d i ç õ e s dos meios de transpor-
te, m a s o Legislativo n ã o t o m a v a decisões c o n c r e t a s sobre o assunto.
N a década de 1 8 5 0 , as receitas da Província eram irrisórias diante das proporções
BAHIA. SÉCULO X I X

de tal e m p r e i t a d a . A f o l h a salarial, a i n s t r u ç ã o p ú b l i c a c a P o l í c i a c o n s u m i a m cerca de


6 0 % d o m o n t a n t e a r r e c a d a d o . Apesar d a p e r m a n e n t e p r e o c u p a ç ã o c o m o e q u i l í b r i o
f i n a n c e i r o , o o r ç a m e n t o estava s e m p r e e m d é f i c i t , f o r ç a n d o a t o m a d a de e m p r é s t i m o s
O que o governo provincial — c o m o , aliás, t a m b é m o central — podia fazer era
r e m u n e r a r c o m j u r o s a n u a i s de 7 % os capitais i n v e s t i d o s p o r particulares. N e n h u m
d a d o nos p e r m i t e s a b e r se, e m S a l v a d o r , havia c a p i t a i s d i s p o n í v e i s para tal investimen-
t o . R e z a a t r a d i ç ã o q u e a c e s s a ç ã o d o t r á f i c o de escravos teria l i b e r a d o vultosas somas
mas atividades mais seguras e de m a i s r á p i d o r e t o r n o , c o m o o c o m é r c i o , talvez as
atraíssem m a i s . I n v e s t i m e n t o s de m é d i o e l o n g o p r a z o s , m e s m o c o m j u r o s garantidos,
provavelmente não seduziam o i n v e s t i d o r b a i a n o , h a b i t u a d o a práticas a l t a m e n t e
especulativas.
Aliás, o u t r a s o p o r t u n i d a d e s se o f e r e c i a m n a q u e l e p e r í o d o aos q u e t i n h a m algum
c a p i t a l : n o setor b a n c á r i o , n o d a m a n u f a t u r a de t e c i d o s e m e s m o n o das obras públi-
cas, n u m a c i d a d e q u e m o d e r n i z a v a seus s e r v i ç o s . A d e m a i s , os capitais liberados pelo
tráfico, p o r g r a n d e s q u e f o s s e m , t i n h a m l i m i t e s , s o b r e t u d o n u m a praça financeira
o n d e a p r o d u ç ã o a ç u c a r e i r a , c o m t o d o s o s riscos q u e envolvia, era financiada pelos
meios comerciais, c o m o nos velhos t e m p o s .

P a r a m o d e r n i z a r a rede d e c o m u n i c a ç õ e s terrestres i m p u n h a - s e , p o r t a n t o , à falta


de capital p ú b l i c o o u p r i v a d o a u t ó c t o n e , r e c o r r e r ao c a p i t a l privado estrangeiro. E isto
foi f e i t o . M a s esse c a p i t a l financiou a p e n a s u m a parte das ferrovias i m p l a n t a d a s na
B a h i a n o século X I X . D e f a t o , p o d e m o s d i s t i n g u i r duas fases: e n t r e 1 8 5 6 e 1 8 7 5 ,
c o n s t r u í r a m - s e estradas de f e r r o c o m capitais ingleses; d e 1 8 7 5 a 1 8 9 3 , o governo
provincial financiou as n o v a s c o n s t r u ç õ e s , a s s o c i a n d o - s e a investidores privados recru-
tados nos m e i o s financeiros da B a h i a ,

A c o n c e s s ã o para a c o n s t r u ç ã o e a e x p l o r a ç ã o de u m a ferrovia d e p e n d i a dos gover-


nos provincial e c e n t r a l . D a s c o n c e s s õ e s feitas e n t r e 1 8 5 2 e 1 8 9 3 , q u i n z e resultaram
em nada, n ú m e r o igual ao das q u e f o r a m a d e q u a d a m e n t e exploradas, o que dá uma
b o a medida das dificuldades q u e e n c o n t r a v a m os c o n c e s s i o n á r i o s para reunir os capi-
tais e f o r m a r c o m p a n h i a s . N e s s e p e r í o d o i n i c i o u - s e a c o n s t r u ç ã o de estradas de ferro
em seis direções d i f e r e n t e s .
A Estrada de F e r r o B a h i a - S ã o F r a n c i s c o visava ligar Salvador a Juazeiro. Em
1 8 5 3 , J o a q u i m F r a n c i s c o o b t e v e d o g o v e r n o imperial uma concessão que, em 1 8 5 5 ,
foi renovada à Bahia and S ã o F r a n c i s c o Railway C o m p a n y . Esta, sediada em Londres,
fez a ligação J c q u i t a i a - A r a t u - A l a g o i n h a s - S e r r i n h a - B o n f i m c finalmente, em 1 8 9 6 , che-
gou a Juazeiro. E n t r e 1 8 5 6 c 1 8 7 0 , ela i m p l a n t o u 1 2 3 , 3 4 quilômetros, ligando Salva-
dor a Alagoinhas. M a s os resultados financeiros não foram encorajadores: a partir de
1 8 6 0 , q u a n d o o primeiro trecho dessa ferrovia c o m e ç o u a ser explorado, a companhia
inglesa só teve b a l a n ç o positivo nos exercícios de 1 8 6 4 e 1 8 7 0 . N ã o se interessou,
portanto, em renovar a concessão. Até 1 8 8 7 , manteve apenas a construção e a explo-
ração do e n t r o n c a m e n t o A l a g o i n h a s - T i m b ó . Assim, a partir de 1 8 7 6 , o governo geral
encarregou-se do prolongamento da linha do S ã o Francisco: cm 1 8 8 0 foi inaugurada
LIVRO V I - O C O T I D I A N O DOS H O M E N S Q U E P R O D U Z IAM E T R O C A V A M 471

a e s t a ç ã o de S e r r i n h a , e m 1 8 8 7 a de B o n f i m e, n o v e a n o s d e p o i s . a de J uazeiro. Os
resultados financeiros d o g o v e r n o n ã o f o r a m , aliás, m c l h ores q u e os da c o m p a n h i a
inglesa: e n t r e 1 8 7 0 e 1 8 8 8 , as receitas s o m a r a m 8 . 1 5 3 . 4 4 7 . 0 0 0 réis e as despesas
8 . 7 2 0 . 6 5 1 . 0 0 0 réis.

T A B E L A 7 4

REDE FERROVIÁRIA DA P R O V Í N C I A DA BAHIA, 1 8 6 0 -- 1 8 9 0 (EM METROS)

ÜKHAS 1860 1870 1880 1890

Bahia-Alagoinhas 37.000 123.340 123.340 123.340

Central da Bahia - - 45.000 316.600

Santo Amaro - - - 35.940

Nazaré - - 34.000 34.000

Sáo Francisco - , - 110.581 321.993

Bahia-Minas - - - 142.400

Timbó - - - 82.580

Total 37.000 123.340 312.921 1.056.853

Concessão Imperial 37.000 123.340 278.921 844.513

Concessão Provincial - - 34.000 212.340

Fonte: A inserção da Bahia na evolução nacional* p. 227 (Anexo estatístico).

A l i n h a E s t r a d a de F e r r o C e n t r a l d a B a h i a , o u T r a m - R o a d P a r a g u a ç u , foi a u t o r i -
zada pela lei i m p e r i a l 1 . 2 1 2 e m j u n h o de 1 8 6 5 . D e v e r i a ligar C a c h o e i r a e S ã o Félix à
C h a p a d a D i a m a n t i n a , c o m u m a r a m i f i c a ç ã o para Feira de S a n t a n a . O c o n t r a t o foi
assinado c o m C h a r l e s M o r g a n , s e m g a r a n t i a de j u r o s . E s t e f o r m o u a c o m p a n h i a em
L o n d r e s e c o m e ç o u os t r a b a l h o s e m 1 8 6 7 . D o i s a n o s d e p o i s , a e m p r e s a faliu, mas
H u g h W i l s o n , u m dos m a i o r e s a c i o n i s t a s , c o m p r o u - a , desta vez c o m garantia de juros
de 7 % . R e o r g a n i z o u - a sob o n o m e Brazilian I m p e r i a l C e n t r a l B a h i a Railway C o m p a n y
L i m i t e d e r e t o m o u os t r a b a l h o s em 1 8 7 6 . Até 1 8 8 8 , p o r é m , as obras se limitaram a
u m a rede de ramificações e n t r e as vilas de C a c h o e i r a , Feira de S a n t a n a , T a p e r a ,
Q u e i m a d i n h a s , C r u z das A l m a s e S ã o G o n ç a l o . Apesar de u m a gestão tão deficiente,
a linha p e r m a n e c e u sob a d m i n i s t r a ç ã o inglesa até 1 9 0 1 , q u a n d o foi alugada a outros
particulares, sem jamais alcançar o o b j e t i v o previsto: c h e g a r ao S ã o Francisco através
da C h a p a d a D i a m a n t i n a .

A instalação da linha de S a n t o A m a r o — q u e , cruzando os rios Traripe, J a c u í p e


e P o j u c a , deveria interligar os distritos açucareiros do R e c ô n c a v o — enfrentou as
piores dificuldades. Entre 1 8 6 3 e 1 8 7 8 , nada m e n o s que quatro tentativas de encetar
os trabalhos malograram. A empreitada foi confiada, sucessiva e inutilmente, à C o m -
panhia A n i m a ç ã o Industrial ( 1 8 6 3 ) , ao e n g e n h e i r o A n t ô n i o Salustiano Antunes, a
A n t ô n i o da C o s t a P i n t o (Visconde de S e r j i m i r i m ) e até a H u g h W i l s o n , que explorava
-P2 BAHIA, SÉCULO XIX

a E . F . C e n t r a l d a B a h i a . M a s n ã o h a v i a c o m o e n c o n t r a r i n v e s t i d o r e s p r i v a d o s . Assim,
a lei n ° 1 . 8 1 2 d e 1 1 d e j u l h o d e 1 8 7 8 a u t o r i z o u o g o v e r n o p r o v i n c i a l a a s s u m i r ele
p r ó p r i o a c o n s t r u ç ã o . E m 1 8 9 0 , 3 5 , 9 4 q u i l ô m e t r o s de vias férreas e s t a v a m c o n s t r u í d o s ,
m a s a o b r a s ó foi c o m p l e t a d a e m 1917.
A c o n s t r u ç ã o da l i n h a d e N a z a r é , q u e ligaria essa c i d a d e — e s p é c i e de p e q u e n a
c a p i t a l d o sul d o R e c ô n c a v o — c o m o i n t e r i o r d a r e g i ã o , e n f r e n t o u as m e s m a s dificul-
d a d e s , q u e p r o v a r a m m a i s u m a v e z a r e s i s t ê n c i a dos b a i a n o s e m i n v e s t i r e m ferrovias.
E m 1 8 7 2 a T r a m - R o a d N a z a r é C o m p a n y g a s t o u e m u m a n o t o d o o seu capital — 4 0 0
c o n t o s d e réis — e t e v e d e i n t e r r o m p e r o s t r a b a l h o s . O s 3 4 q u i l ô m e t r o s q u e se
e s t e n d e r a m e n t r e N a z a r é , O n h a e S a n t o A n t ô n i o d e J e s u s f o r a m c o n s t r u í d o s por
c o m p a n h i a s q u e se s u c e d i a m , u m a c o m p r a n d o a m a s s a falida d a o u t r a . E s t a linha e a
d e S a n t o A m a r o e r a m , n o e n t a n t o , d a m a i o r i m p o r t â n c i a , u m a vez q u e d e v i a m atra-
vessar z o n a s f é r t e i s , e m q u e se p l a n t a v a m c a n a - d e - a ç ú c a r , c a f é , f u m o e cereais.

A i n d a n o s é c u l o X I X , o u t r a s três f e r r o v i a s f o r a m p l a n e j a d a s , m a s só foi posta em


e x e c u ç ã o a B a h i a - M i n a s , l i g a n d o C a r a v e l a s às c i d a d e s d o N o r d e s t e d e M i n a s G e r a i s .
F o i , aliás, a l i n h a m a i s r a p i d a m e n t e c o n c l u í d a : e m d o i s a n o s ( 1 8 8 0 - 1 8 8 2 ) i m p l a n t a -
r a m - s e seus 1 4 2 q u i l ô m e t r o s e i n a u g u r o u - s e a e s t a ç ã o d e A i m o r é s .

T A B E L A 75

R E D E FERROVIÁRIA NO BRASIL E NA BAHIA, 1 8 6 0 A 1890


( E M QUILÔMETROS)

ANOS BRASIL BAHIA BAHIA/BRASIL

1860 208 37 18%

1870 730 123 17%

1880 2.906* 313 11%

1890 9.578" 1.057 11%

(*) Dado de 1879. (**) Dado de 1889.


Fonte: A inserção da Bahia na evolução nacional, p. 227 (Anexo estatístico).

E m 1 8 9 0 havia 1 . 0 5 7 q u i l ô m e t r o s de vias férreas n a B a h i a , 1 1 % d o total implan-


tado n o B r a s i l . M a s só o A g r e s t e estava r e l a t i v a m e n t e b e m - s e r v i d o . O s imensos terri-
tórios q u e se e s t e n d i a m a o C e n t r o - O e s t e , ao N o r t e , ao N o r o e s t e e ao Sudoeste da
P r o v í n c i a p e r m a n e c i a m t ã o isolados de S a l v a d o r c o m o n o i n í c i o d o s é c u l o . 2

N ã o faltaram p r o j e t o s . B o a p a r t e , p o r é m , m a l o g r o u por falta de capital. É verda-


de q u e a e x p l o r a ç ã o deficitária das duas p r i m e i r a s linhas n ã o e s t i m u l o u os investido-
res. Esse m a l o g r o deve ser a t r i b u í d o t a n t o a dificuldades técnicas, q u e encareciam as
o b r a s , c o m o à falta de u m p l a n e j a m e n t o a d e q u a d o , q u e teria p e r m i t i d o a efetiva
integração das regiões cruzadas pelas linhas. P o r o u t r o lado, as c o m p a n h i a s estavam
autorizadas a c o b r a r preços m u i t o superiores aos q u e se pagavam para o transporte
em l o m b o de b u r r o , o q u e afastava clientes. Q u a n t o à falta de capitais, ela se agravou
q u a n d o os ingleses desistiram de investir na Bahia, o n d e os ganhos eram incertos,
LIVRO V I - O COTIDIANO nos HOMENS QUE PRODUZIAM F TROCAVAM

para c o n c e n t r a r seus e s f o r ç o s n o C e n t r o - S u l d o país, o n d e o c a f é p r o m e t i a resultados


mais s e g u r o s . O s m e i o s f i n a n c e i r o s da P r o v í n c i a , b e m c o m o os g o v e r n o s provincial e
geral, n ã o t i n h a m c o n d i ç õ e s de s u b s t i t u í - l o s , pois suas receitas estavam c o m p r o m e t i -
das e m o u t r o s s e t o r e s .
F i n a l m e n t e , c a b e a c r e s c e n t a r as resistências de u m a g e n t e arraigada a velhos h á b i -
t o s . Q u a n d o se p r e t e n d e u c o n s t r u i r a l i n h a de S a n t o A m a r o , por e x e m p l o , h o u v e
p r o t e s t o s dos s e n h o r e s de e n g e n h o c u j a s terras seriam c o r t a d a s . A B a r o n e s a de B o m
J a r d i m — proprietária dos engenhos T e r r a N o v a , Peripcri e Caracanha — , secundada
p o r seus h e r d e i r o s , r e c u s o u a q u a n t i a o f e r e c i d a pela P r o v í n c i a para a e x p r o p r i a ç ã o de
alguns h e c t a r e s . N ã o a c o n s i d e r a v a o p r e ç o j u s t o . O g o v e r n o a l e g o u q u e , s e n d o aquelas
terras u m a s e s m a r i a , a a d m i n i s t r a ç ã o t i n h a o d i r e i t o de e x p r o p r i á - l a s , p a g a n d o apenas
o c o r r e s p o n d e n t e à sua v a l o r i z a ç ã o . A p e n d e n g a foi parar n o T r i b u n a l S u p e r i o r de
J u s t i ç a , q u e d e c i d i u e m f a v o r dos p r o p r i e t á r i o s . O c a s o ilustra u m p o n t o i m p o r t a n t e :
a i n d e n i z a ç ã o p r o p o s t a era s e m d ú v i d a m e d í o c r e ( 2 . 1 9 0 . 1 0 0 réis!), m a s o q u e de fato
i m p o r t a v a era s a l v a g u a r d a r o d i r e i t o à p r o p r i e d a d e . Esses r e c u r s o s à J u s t i ç a atrasavam
a c o n s t r u ç ã o d e ferrovias q u e s e r i a m vitais p a r a reduzir o c u s t o d o t r a n s p o r t e d o
a ç ú c a r . O s interesses i n d i v i d u a i s i m e d i a t o s s o b r e p u j a v a m o interesse c o l e t i v o . 3

O f r a c a s s o de b o a p a r t e das ferrovias e a a u s ê n c i a de u m a p o l í t i c a de a m p l i a ç ã o e
m e l h o r i a da a n t i g a m a l h a de estradas — o p r i m e i r o p l a n o c o m esse i n t u i t o só surgiria
em 1 9 1 7 — r e s u l t a v a m n ã o só na m á i n t e g r a ç ã o e c o n ô m i c a das vastas regiões d o
i n t e r i o r , c o m o na sua m á i n t e g r a ç ã o a d m i n i s t r a t i v a , c o m a s o b r e v i v ê n c i a das velhas
estruturas, e m q u e os c h e f e s locais d e t i n h a m u m p o d e r m u i t o p o u c o c o n t r o l a d o pelos
governos provincial ou c e n t r a l . 4

TRANSPORTES MARÍTIMOS DE LONGO CURSO

A falta de b o a s vias de c o m u n i c a ç ã o terrestre e n t r e S a l v a d o r e o resto da Província


privilegiava a p o p u l a ç ã o e s t a b e l e c i d a nas p r o x i m i d a d e s da capital e n o litoral, limitan-
d o as a m b i ç õ e s do c o n j u n t o dos b a i a n o s . S e m m e r c a d o s para o n d e escoar sua produ-
ç ã o , a atividade agrícola d o i n t e r i o r estagnava. Isto n ã o só prejudicava a população
baiana c o m o , s o b r e t u d o , entravava o e n r i q u e c i m e n t o c o l e t i v o indispensável à elevação
do nível de vida. T o d o s p r o c l a m a v a m a i m p o r t â n c i a d o c r e s c i m e n t o da d e m a n d a
interna, mas a p e r m a n ê n c i a de estruturas e m e n t a l i d a d e s caducas o impedia. A capital
conservava sua v o c a ç ã o para a i n t e r m e d i a ç ã o c o m e r c i a l , mas seu raio de ação restnn-
gia-se d r a s t i c a m e n t e , por força da c o n c o r r ê n c i a de outras províncias e t a m b é m , talvez,
pela falta de p r o d u t o s a trocar. Salvador, tão mal ligada a seu próprio território, tinha,
em contrapartida, excelente c o m u n i c a ç ã o , por via m a r í t i m a , c o m todo o litoral do país
e c o m o exterior.
A abertura dos portos às nações amigas, em 1 8 0 8 , permitiu novos contatos c o m e r -
ciais c o m a Inglaterra e os Estados U n i d o s (até então, todo transporte de mercadorias
BAHIA. SÉCULO X D C

deveria ser f e i t o p o r navios n a c i o n a i s ) . O s d a d o s d i s p o n í v e i s s o b r e navegação de lon-


5

g o c u r s o c de c a b o t a g e m , e m b o r a f r a g m e n t á r i o s e por vezes i n c o n g r u e n t e s , d ã o uma


ideia d o tráfego m a r í t i m o i n t e r c o n t i n e n t a l e n a c i o n a l c p e r m i t e m d e t e c t a r as m u d a n -
ças o c o r r i d a s a partir da I n d e p e n d ê n c i a .
E n t r e 1 7 9 8 e 1 8 1 0 , o n ú m e r o de navios q u e a p o r t a v a m c m S a l v a d o r a u m e n t o u
c o n s i d e r a v e l m e n t e , apesar das d i f i c u l d a d e s a c a r r e t a d a s pelas g u e r r a s .

T A B P. I. A 76

M O V I M E N T O DE N A V I O S
N O P O R T O DE SALVADOR, 1798-1810

ANOS ENTRAÜAS SAÍDAS

1798 291 280

1799 315 328

1800 298 268

1801 309 283

1802 272 282

1803 325 262

1804 306 276

1805 381 351

1806 420 388

1807 360 353

1808 364 285

1809 439 380

1810 453 396

Fonte: Catherine Lugar, The Merchant Community of Salvador, Bahia,


1780-1830, p. 76.

O q u e o c o r r e u d e p o i s é i l u s t r a d o p o r u m a i n t e r e s s a n t e c o m p a r a ç ã o : se t o m a m o s o
a n o 1 8 2 1 — para o q u a l t e m o s d a d o s r e f e r e n t e s a e m b a r c a ç õ e s d e todas as nacionali-
dades , v e m o s q u e , de 5 2 navios de b a n d e i r a p o r t u g u e s a q u e passaram pelo p o r t o de
S a l v a d o r , 4 4 ( 8 4 , 6 % ) v o l t a r a m a p o r t o s p o r t u g u e s e s , a o passo q u e , das 9 5 e m b a r c a -
ções inglesas q u e p o r ali p a s s a r a m , 4 1 ( 4 3 , 1 % ) levaram m e r c a d o r i a s baianas para
o u t r o s p o r t o s e u r o p e u s q u e n ã o os ingleses.
É e v i d e n t e p o r t a n t o q u e , n u m t e m p o b a s t a n t e c u r t o , as c o m p a n h i a s inglesas de
navegação a ç a m b a r c a r a m o t r a n s p o r t e das m e r c a d o r i a s baianas, o que é c o n f i r m a d o
pela i m p o r t â n c i a q u e assumiram as i m p o r t a ç õ e s diretas de mercadorias produzidas na
Inglaterra. E m 1 8 1 0 , catorze navios portugueses partiram d e Salvador para portos
ingleses. J á em 1 8 2 1 n e n h u m deles teve esse d e s t i n o . É verdade q u e 1 8 1 0 foi um a n o
de guerra, e Portugal estava o c u p a d o p e l o e x é r c i t o francês. M a s dados referentes ao
a n o de 1 8 1 5 c o n f i r m a m a perda de i m p o r t â n c i a de Portugal n o transporte de merca-
LIVRO V I - O C O T I D I A N O DOS H O M E N S Q U E PRODUZIAM E T R O C A V
AM 47 S

d o r i a s : n a q u e l e a n o , a p e n a s d e z o i t o dos 6 6 navios p o r t u g u e s e s ( 2 7 , 3 % ) se destinavam


a p o r t o s n a o p o r t u g u e s e s e s o m e n t e três a p o r t o s ingleses.

P o r o u t r o l a d o , e n q u a n t o os n a v i o s das d e m a i s n a c i o n a l i d a d e s transportavam
m e r c a d o r i a s , a o q u e p a r e c e , a p e n a s para seus p o r t o s de o r i g e m , eram ingleses os navios
q u e , a p a r t i r d e 1 8 2 1 , a s s e g u r a v a m o t r a n s p o r t e p a r a o S u l d a E u r o p a . Aliás, o
aumen-
t o d o n ú m e r o d e n a v i o s e s t r a n g e i r o s e a p e r d a d a i m p o r t â n c i a de P o r t u g a l sã_
sao c o r r o -
b o r a d o s pela c o m p a r a ç ã o e n t r e a p a r t i c i p a ç ã o dos n a v i o s p o r t u g u e s e s e a dos navios
e s t r a n g e i r o s n o t r á f e g o i n t e r n a c i o n a l . S e g u n d o C a t h e r i n e L u g a r , e m 1 8 1 6 os navios
p o r t u g u e s e s j á r e p r e s e n t a v a m m e n o s d a m e t a d e d o t r á f e g o i n t e r n a c i o n a l q u e se dirigia
p a r a o p o r t o d o R i o d e J a n e i r o ; p a r a o de S a l v a d o r , c o n t u d o , ainda representavam
m a i s d a m e t a d e . E m c o n t r a p a r t i d a , e m 1 8 4 5 / 1 8 4 6 , os navios de b a n d e i r a brasileira
q u e p a r t i c i p a v a m d o t r a n s p o r t e i n t e r n a c i o n a l d e m e r c a d o r i a s eram apenas 5 % n o
p o r t o d o R i o d e J a n e i r o e 4 % n o de S a l v a d o r . A m a i o r p a r t e dos navios portugueses
— tornados 'estrangeiros' após a Independência — t o m o u a bandeira inglesa. 6

E c e r t o t a m b é m q u e , n o s a n o s 1 8 5 0 - 1 8 5 6 , as e m b a r c a ç õ e s portuguesas ainda
c o n s e r v a v a m a s u p r e m a c i a n o t r á f e g o m a r í t i m o e n t r e S a l v a d o r e P o r t u g a l e participa-
v a m d a l i g a ç ã o c o m o u t r o s p o r t o s a l é m d o s das possessões p o r t u g u e s a s , e m b o r a seu
p a p e l t e n d e s s e a d e c l i n a r . B o a p a r t e d o t r á f e g o c o m a Á f r i c a era f e i t o p o r essas e m b a r -
cações portuguesas, o q u e c o n f i r m a os dados qualitativos que destacam a importância
dos c a p i t a i s m e r c a n t i s d a a n t i g a M e t r ó p o l e n o t r á f i c o de escravos. A partir de 1 8 5 0 ,
esse c o m é r c i o e s t a v a o f i c i a l m e n t e a b o l i d o , m a s os a n t i g o s traficantes m a n t i v e r a m in-
t e n s o c o n t a t o c o m o s p o r t o s a f r i c a n o s . A b a s t e c i a m - n o s c o m f u m o , álcool de cana e
t o d a e s p é c i e d e m e r c a d o r i a s , i n c l u s i v e a r t i g o s m a n u f a t u r a d o s e u r o p e u s reexportados
p e l o p o r t o de S a l v a d o r , e v o l t a v a m c a r r e g a d o s de p a n o s da C o s t a — m u i t o do agrado
d a p o p u l a ç ã o a f r i c a n a d a c i d a d e — , t a p e t e s d e fibra vegetal, cestos de v i m e , sabão,
c o l a , a z e i t e - d e - d e n d ê e, às vezes, e s c r a v o s . B u r l a n d o a p r o i b i ç ã o , f a z i a m - n o s d e s e m b a r -
c a r c l a n d e s t i n a m e n t e e m praias d i s c r e t a s .

TABELA 77

ENTRADA DE EMBARCAÇÕES EM SALVADOR,


PROVENIENTES DE PORTOS PORTUGUESES, 1852-1856

ANO EMBARCAÇÕES

PORTUGUESAS BRASILEIRAS OUTRAS NACIONALIDADES TOTAL

13 41
1852 22
41
1853 33
38
1854 27
41
1855 35
42
1856 37
27 25 206
Tocai 154
Fonte: TânU Penido I t e m Portuguesa na Bahia na segunda metade do século XIX, p. 108.
476 BAHIA, S É C U L O X L X

T A B E L A 78

SAÍDA D E EMBARCAÇÕES DE SALVADOR,


COM DESTINO A PORTOS PORTUGUESES, 1 8 5 2 - 1 8 5 6

ANO EMBARCAÇÕES

PORTUGUESAS BRASILEIRAS OUTRAS NACIONALIDADES TOTAL


1852 26 6 3 35

-
1853 24 6 *-

30
1854 23 6
- 34
-—-

1855 35 7
- 42
1856 28 10
- 38
Toral 136 40 3* 179
(*) Duas embarcações da Áustria e uma da Sardenha.
Fonte: Tânia Penido Monteiro, Portugueses na Bahia na segunda metade do século XIX, p. 108.

T A B E L A 79

ENTRADA D E EMBARCAÇÕES PORTUGUESAS EM SALVADOR,

PROVENIENTES DE PORTOS ESTRANGEIROS, 1 8 5 1 - 1 8 5 6

ANO PROVENIÊNCIA E NÚMERO DE EMBARCAÇÕES

AFRICA GRÃ-BRETANHA ARGENTINA URUGUAI TERRA NOVA TOTAL

1851 5 1 2 8

1852 6 1
- 7

1853 4 1 1
- 6

1854 8 4 2 - 14

1855 6 2 - 8

1856 6 1 1 8

Total 35 5 8 2 1 51

Fonte: Tânia Penido Monteiro, Portugueses na Bahia na segunda metade do século XIX, p. 112.

T A B E L A 80

SAIDA DE E M B A R C A Ç Õ E S PORTUGUESAS DE SALVADOR,


EM DIREÇÃO A PORTOS ESTRANGEIROS, 1 8 5 1 - 1 8 5 6

ANO DESTINO E NÚMERO DE EMBARCAÇÕES

ITALIA HOLANDA TOTAL


AFRICA GRA-BRETANHA ALEMANHA ARGENTINA URUGUAI

1851 5 3 6 1 - - - 15

- - -
1852 6 12
3 1 2

- - -
1 28
1853 6 19 2

-
1854 1 4 20
9 4 l 1

- - -
1855 19
13 2 2 2
1856 11 2 _ 1 - - 1 15

Total 50 1 5 1 109
33 12 7
Fonte: Tinia Penido M o n t e i r o . Portuguesa na Bahia na segunda metadt do século XIX, p.
t'™J^OCo I ! ^ D _o ^
i s Q Ü E P r o d u z h m e T r o c a v a m

4 "

Mu,tas embarcações portuguesas tinham ainda por destino os portos ingleses, a


provar que o monopólio britânico não era absoluto. Muitos comerciantes portugueses
estabelecidos na Bahia tinham seus navios e importavam da Europa, principalmente
de Portugal, gêneros alimentícios, como vinhos, farinha de trigo, bacalhau, vinagre
toicinho, alho, azeite de oliva, azeitonas e até feijão, produtos que, em alguns casos',
vinham concorrer com os brasileiros. O carregamento era completado com produtos
manufaturados, como objetos de metal, tecidos de algodão e de linho, produtos far-
macêuticos e velas.

Durante esse curto período ( 1 8 5 1 - 1 8 5 6 ) , todas as embarcações portuguesas eram


a vela: barcas, galeras, brigues, patachos e escunas. Com a expansão da navegação a
vapor, os comerciantes portugueses se viram em desvantagem, sobretudo quando
Salvador foi ligada aos portos estrangeiros por linhas regulares de navios a vapor. A
partir de 1 8 5 6 , as importações/exportações portuguesas passaram a ser feitas em na-
vios a vapor ingleses e até de outras nacionalidades. 7

Desta primeira análise ressalta a importância dos barcos de bandeira estrangeira


no tráfego marítimo, sobretudo na segunda metade do século, mas não temos dados

TABELA 8 1

N A V E G A Ç Ã O D E L O N G O C U R S O N O BRASIL ( E M TONELADAS)

1853-1858, 1862-1867, 1876-1879, 1885-1888


ANOS ENTRADAS SAÍDAS TOTAL

1853/54 625.165 619.084 1.244.249

1854/55 696.916 771.872 1.468.788

1855/56 732.707 754.858 1.487.565

1856/57 775.972 788.539 1.564.511

1857/58 796.240 838.506 1.634.746

1862/63 67.831 931.634 1.699.465

1863/64 793.045 885.490 1.678.535

1.017.663 1.058.305 2.075.968


1864/65

1865/66 1.111.590 1.158.681 2.270.271

1.168.542 1.093.626 2.262.168


1866/67

2.036.065 1.941.189 3.977.254


1876/77

2.146.868 1.988.607 4.135.475


1877/78

2.285.651 2.165.811 4.451.462


1878/79

2.870.481 1.345.262 4.215.743


1885/86

4.377.983 3.629.128 8.017.111


1886/87

1.889.901 950.929 2.840.830


1888
da Bahia na evolução nacional, p. 2 0 5 (Anexo estatístico).
F o n t e : A imxrçâa
4""8 BAHIA, S f . c u i o X I X

TABELA 82

N A V E G A Ç Ã O D E L O N G O C U R S O NA B A H I A ( E M T O N E L A D A S )
1853-1858, 1862-1867, 1876-1879, 1885-1888

ANOS ENTRADAS SAÍDAS % SOBRE 0 BRASIL TOTAI.

1853/54 82.479 109.009 15,3 191.488

1854/55 72.113 114.026 12,6 186.139

1855/56 77.696 87.819 11,1 165.515

1856/57 95.193 103.077 12,6 198.270

1857/58 103.077 106.077 12,7 209.129

1862/63 183.185 208.747 23,0 390.932

1863/64 182.784 198.408 22,1 372.192

1864/65 198.717 195.463 18,9 394.180

1865/66 233.244 238.897 20,7 472.121

1866/67 223.026 262.939 17,0 385.965

1867/68 212.910 185.232


- 398.142

1876/77 575.549 548.011 28,2 1.123.560

1877/78 502.823 452.514 23,0 955.337

1878/79 539.186 500.262 23,3 1.039.448

1885/86 560.806 452.498 24,0 1.013.304

1886/87 769.104 604.502 17,1 1.373.606

1888 258.005 198.553 16,0 456.558

Fonte: A inserção da Bahia na evolução nacional, p. 205 (Anexo estatístico).

para q u a n t i f i c á - l a . P o d e - s e , p o r é m , m e s m o s e m s a b e r a n a c i o n a l i d a d e o u o n ú m e r o
dos navios, c o m p a r a r a t o n e l a g e m das e n t r a d a s e saídas d o s navios d e l o n g o curso dos
portos brasileiros e m geral e d a B a h i a e m p a r t i c u l a r , e n t r e 1 8 5 3 / 1 8 5 4 e 1 8 8 8 . Afora
os intervalo d e 1 8 5 4 / 1 8 5 5 a 1 8 5 7 / 1 8 5 8 — q u a n d o , p o r força das epidemias de febre
amarela c d e c ó l e r a - m o r b o , se a p r o x i m o u d e 1 2 % — , a p a r t i c i p a ç ã o do p o r t o da Bahia
na navegação de l o n g o c u r s o brasileira foi d e 2 0 % e m m é d i a , d e c l i n a n d o n o s exercí-
cios dc 1 8 8 6 - 1 8 8 7 c 1 8 8 8 para 1 7 , 1 % e 1 6 % , r e s p e c t i v a m e n t e . Salvador manteve,
p o r t a n t o , u m a p o s i ç ã o i m p o r t a n t e e n t r e os p o r t o s d o país, e m b o r a provavelmente
m u i t o s navios apenas aportassem ali, sem ser carregados ou descarregados. Era um dos
portos mais caros d o Brasil c as e m b a r c a ç õ e s p r o c u r a v a m nele permanecer o m e n o r
t e m p o possível.
A partir dos anos 1 8 6 0 , novas linhas regulares foram abertas, tanto para o exterior
c o m o para outros portos brasileiros. P e r t e n c i a m e m geral a c o m p a n h i a s formadas por
armadores estrangeiros, c o m sede n o exterior. As linhas d e vapores dessas empresas
para t r a n s p o n e d e carga e d e passageiros — beneficiavam-se de contratos privilegiados
c dc subvenções governamentais, f o r m a n d o muitas vezes m o n o p ó l i o s . O melhor exem-
LJVRO V U O C ^ O ^ H O K , ^ , PRODUZIAM . TROCAVAM
479

mensais enrre Salvador e Uvcrpoot Londres° A^v T°''"f * i w


™^
nove companhias estrangeiras que em 1 8 9 , ^e' ' * ™ m
^ ° a S

longo curso, rres eram f n ^ £

Z ^ Z L r a f a s t a a i d é i a d e m o n o p 6 l i o
^ - * • * - - p é . :

TRANSPORTES MARÍTIMOS: CABOTAGEM

O v a i v é m das e m b a r c a ç õ e s n o p o r t o de S a l v a d o r i m p r e s s i o n a v a os forasteiros. N o
início do século X I X , L i n d l e y e s c r e v i a : " O c o m é r c i o realizado nas imediações da
B a h i a , g r a n d e p a r t e d o q u a l c o m o i n t e r i o r , é r e a l m e n t e e s p a n t o s o . O i t o c e n t a s lanchas
e s u m a c a s d e v á r i o s t a m a n h o s t r a z e m c o t i d i a n a m e n t e sua c o n t r i b u i ç ã o para o c o m é r -
c i o c o m a c a p i t a l : f u m o , a l g o d ã o , m e r c a d o r i a s diversas, de C a c h o e i r a ; o maior sorti-
mento de louça c o m u m , d e J a g u a r i p e ; a g u a r d e n t e e ó l e o de baleia, de Itaparica;
f a r i n h a e p e i x e s a l g a d o , d e P o r t o S e g u r o ; a l g o d ã o e m i l h o , dos rios Real e S ã o F r a n -
c i s c o ; a ç ú c a r , l e n h a e l e g u m e s , de t o d o s o s lugares. U m a riqueza, em grau desconhe-
c i d o n a E u r o p a , é a s s i m p o s t a e c i r c u l a ç ã o . " M a i s de c e m viajantes q u e passaram pela
9

B a h i a a o l o n g o d o s é c u l o n o s d e i x a r a m t e s t e m u n h o s s e m e l h a n t e s . U m deles, o c o m a n -
d a n t e M o u c h e z , d a m a r i n h a f r a n c e s a , avaliou e m m a i s de m i l o n ú m e r o de embarca-
ç õ e s q u e f a z i a m a c a b o t a g e m e n t r e rios e a b a í a . 1

Essas e m b a r c a ç õ e s e r a m d o s m a i s variados tipos: havia o saveiro de transporte,


d i f e r e n t e d o s a v e i r o d e p e s c a ; a l a n c h a , o u ' r a b o de p e i x e ' , a jangada de caraux bippos
— n o m e d e u m p e i x e — , a j a n g a d a a r e m o , a j a n g a d a a vela, a canoa e a barcaça, e
finalmente a m a i o r de t o d a s , a ' b a r c a d o R e c ô n c a v o ' , h í b r i d o de nau e caravela, única
c o m velas r e d o n d a s . C o m velas latinas p o d i a m navegar os saveiros de transporte —
q u e o s t e n t a v a m , o r g u l h o s o s , velas triangulares — e os saveiros de pesca e as jangadas,
q u e se c o n t e n t a v a m c o m velas latinas bastardas. Alguns saveiros de transporte, lanchas
' r a b o de p e i x e ' e ' b a r c a s d o R e c ô n c a v o ' portavam velas quadrangulares. Q u e impressão
deviam causar rios e baías c o n s t e l a d o s de p o n t o s brancos inclinados pelo vento, os
cascos invisíveis de l o n g e . 1 1
A i n d a h o j e se vêem algumas dessas velhas barcas, transfor-
madas em e m b a r c a ç õ e s de lazer, e seria difícil adivinhar-lhes a história de cargas e
sobrecargas de m e r c a d o r i a s heteróclitas, de tempestades e calmarias. O s pescadores de
Salvador s a b e m até h o j e fabricar suas jangadas, minúsculas embarcações em que con-
seguem se m a n t e r e m e q u i l í b r i o durante horas, à espera de alguns pe.xes.
A partir de m e a d o s d o século X I X , a cabotagem baiana, que estava nas maos de
u m a p o p u l a ç ã o m o d e s t a , e m que os alforriados ocupavam lugar considerável, passou
a sofrer forte c o n c o r r ê n c i a . E r a a C o m p a n h i a de Navegação Baiana, que segu.a a risca
o m o d e l o das c o m p a n h i a s estrangeiras de longo curso: u n h a sede em Londres, obteve
480 BAHIA, S É C U L O XIX

T A B E L A 83

NAVEGAÇÃO DE C A B O T A G E M N O BRASIL (EM TONELADAS)


1 8 5 0 - 1 8 6 6 , 1 8 7 6 - 1 8 7 9 , 1 8 8 5 - 1 8 8 8

ANOS ENTRADAS SAÍDAS TOTAL

1850/51 347.471 334.149 681.620

1851/52 346.016 315.716 661.732

1852/53 397.917 366.231 764.148

1853/54 392.283 376.621 678.904

1854/55 381.509 372.720 754.229

1855/56 358.027 340.085 698.112

1856/57 413.741 403.492 817.233

1857/58 499.975 501.535 1.001.510

1858/59 956.017 956.837 1.912.854

1859/60 917.582 1.010.775 1.928.357

1860/61 657.728 556.392 1.214.120

1861/62 659.420 610.345 1.269.765

1862/63 726.390 724.489 1.450.879

1863/64 640.705 520.994 1.161.699

1864/65 671.967 610.002 1.281.696

1865/66 638.773 544.050 1.182.823

1876/77 1.592.585 1.593.070 3.185.655

1877/78. 2.188.371 2.201.319 4.389.690

1878/79 1.829.722 1.423.306 3.253.028

1885/86 2.592.752 2.598.459 5.191.211

1886/87 4.464.074 4.484.120 8.948.194

1887/88 1.838.579 1,778.532 3.617.111

Fonte: A inserção da Bahia na evolução nacional, p. 175-176 (Anexo estatístico).

c o n t r a t o s privilegiados e vivia a se q u e i x a r d a exiguidade dos seus lucros. Empregava


e m b a r c a ç õ e s a v a p o r e explorava três tipos d e l i n h a . A l i n h a d o N o r t e ia até Aracaju,
P e n e d o e M a c e i ó . Parece ter sido m u i t o requisitada, t a n t o para o transporte de carga
c o m o para o de passageiros. As q u a t r o partidas mensais eram fixadas de m o d o a
corresponder às chegadas de e m b a r c a ç õ e s provenientes d o S u l e de além-mar.
A l i n h a d o S u l seguia u m a vez p o r m ê s , n u m a viagem redonda, até os portos de
C a m a m u , Ilhéus, Canavieiras, P o r t o Seguro e C o l ô n i a L e o p o l d i n a . .O sistema, inau-
gurado e m 1 8 5 3 , apresentava m u i t o s i n c o n v e n i e n t e s : todos esses portos eram de diffci
acesso — t i n h a m a 'barra' característica d o litoral d o sul da Província e com
freqüência era impossível carregar ou descarregar mercadorias neles.
Í ^ X Í 1 ^ I ! ^ D O S H O M E N S Q U E PRODUZIAM E TROCAVAM 481

T A B E L A 84

NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM NA B A H I A (EM TONELADAS)


1 8 5 0 - 1 8 6 6 , 1876-1879, 1 8 8 5 - 1 8 8 8

ANOS ENTRADAS SAÍDAS % SOBRE o BRASIL TOTAL


1850/51 67.392 71.339 20,3 138.731
1851/52 94.727 77.599 25,9 172.326
1852/53 116.868 89.227 27,0 207.095
1853/54 84.981 72.696 23,2 157.677
1854/55 74.000 52.635 16,8 126.635
1855/56 69.908 50.184 17,1 120.092

1856/57 57.104 53.177 13,4 110.281

1857/58 47.673 49.145 9,7 96.818

1858/59 146.129 140.316 14,9 286.440

1859/60 105.221 122.553 11,8 227.774

1860/61 85-750 42.907 10,6 128.657

1861/62 99.968 63.211 12,8 163.179

1862/63 100.266 59.915 11,0 160.181

1863/64 74.918 57.019 15,6 181.937

1864/65 89.952 50.359 10,9 140.311

1865/66 81.463 • 48.967 10,9 130.430

1876/77 258.991 270.555 16,6 529.552

1877/78 257.100 290.974 12,2 548.074

1878/79 258.048 280.764 16,5 538.812

1885/86 355.433 393.507 14,4 748.940

587.180 708.037 14,4 1.295-217


1886/87

218.489 191.951 11,3 410.440


1887/88

Fonte: A inserção ¿11 Bahia na evolução nacional, p. 175- -176 (Anexo estatístico).

As Unhas para o i n t e r i o r , isto é, para o R e c ô n c a v o , penetravam pelos mil golfos


p r o f u n d o s d a baía e os m u i t o s rios q u e neles d a v a m . Levavam a S a n t o A m a r o , C a -
choeira e M a r a g o j i p e , N a z a r é , V a l e n ç a e Caravelas. O v a p o r de S a n t o A m a r o transpor-
tava s o b r e t u d o passageiros, ao passo q u e os d e m a i s c o n d u z i a m t a m b é m bastante carga,
indo e v i n d o dos S e r t õ e s e das vilas d o Agreste a Salvador. Essa navegação de cabota-
gem escoava assim parte dos gêneros produzidos n o interior, e m b o r a , c o m o assinala-
m o s , n ã o desse c o n t a de toda a p r o d u ç ã o . 1 3

O s pesados e b a r u l h e n t o s vapores n u n c a baniram os leves esquifes tradicionais. O s


dois tipos de e m b a r c a ç ã o se c o m p l e m e n t a v a m , percorrendo praias e rios, transportan-
do h o m e n s e g ê n e r o s , a c h a m a d o o u e m linhas regulares, c o m m a i o r o u m e n o r agih-
4S2 BAHIA, SÉCULO X I X

TABULA 85

PRINCIPAIS P R O D U T O S NACIONAIS TRANSPORTADOS


PARA A BAHIA POR CABOTAGEM, 1867-1868

PRODUTOS QUANTTIDADES* ORIGEM

Algodão bruto 324:464 Alagoas

Açúcar branco 173:542 Espírito Santo

Açúcar mascavo 429:980 Pernambuco

Carne-seca 660:593 Rio Grande do Sul

Farinha dc mandioca 82:273 Rio de Janeiro

Couros . 148:997 Sergipe

(*) Todas as quantidades estão expressas cm arrobas. menos a de couros, expressas em livros.
Fonte; A inserção da Bahia na evolução nacional* p- 59 (Anexo estatístico).

d a d e , e m m a i o r o u m e n o r q u a n t i d a d e , m a s c o m o m e s m o c o n h e c i m e n t o dos escolhos,
dos b a n c o s d e a r e i a e d o s v e n t o s e i g u a l m e n t e à m e r c ê das c ó l e r a s d e I e m a n j á .
N ã o s a b e m o s se o s d a d o s d i s p o n í v e i s s o b r e a n a v e g a ç ã o d e c a b o t a g e m referem-se
a t o d a s as e m b a r c a ç õ e s q u e e n t r a v a m e s a í a m d o p o r t o d a B a h i a , o u só aos barcos a
v a p o r , c u j a s l i n h a s u l t r a p a s s a v a m o s l i m i t e s d a P r o v í n c i a . A o q u e p a r e c e , e n t r e os
p r o d u t o s n a c i o n a i s t r a n s p o r t a d o s p o r c a b o t a g e m e q u e e n t r a v a m na B a h i a e m regime
de f r a n q u i a , s ó o s t r a n s p o r t a d o s pelas embarcações a vapor eram efetivamente
r e g i s t r a d o s . A c a r g a das p e q u e n a s e m b a r c a ç õ e s s o f r i a p a r c o c o n t r o l e , a j u l g a r pelas
c o n s t a n t e s r e c l a m a ç õ e s , n o s r e l a t ó r i o s d o s p r e s i d e n t e s d a P r o v í n c i a , s o b r e as c o n s t a n -
tes f r a u d e s n a v e n d a d e g ê n e r o s i n t r o d u z i d o s c l a n d e s t i n a m e n t e n o m e r c a d o d a c a p i -
tal. 1 4
Aliás, o g r a n d e n ú m e r o d e a n g r a s d e fácil a c e s s o às e m b a r c a ç õ e s de p e q u e n o
c a l a d o e a p r ó p r i a e s t r u t u r a d o p o r t o d e S a l v a d o r f a c i l i t a v a m t r a n s p o r t e s clandestinos
e todo tipo de fraude.

D o PORTO NATURAL AO PORTO MODERNO

L i n d l e y , o c o n t r a b a n d i s t a inglês q u e t ã o b e m s o u b e o b s e r v a r a B a h i a d o início do
século X I X , parece ter p e c a d o u m a vez p e l o e x a g e r o : e n t r e o p o r t o de S a n t o A n t ô -
n i o e a p o n t a de M o n t s c r r a t c o m a praia de I t a p a j i p e , disse ele, "fica o ancoradou-
ro, b e m a b r i g a d o de t o d o s os v e n t o s e e m lugar d e s i m p e d i d o , h a v e n d o espaço para
q u e se possam r e u n i r sem c o n f u s ã o todas as esquadras d o m u n d o " . 1 5
O que de fato
havia era, c o m o v i m o s , u m p o r t o e n g a r r a f a d o . D e s d e os primeiros anos do século
as autoridades e r a m u n â n i m e s em c l a m a r p o r m e l h o r i a s .
P o r volta de 1 8 1 6 , p o r iniciativa d o capitão-geral, o C o n d e dos Arcos, cogitou-se
seriamente em c o n s t r u i r u m canal q u e atravessaria Itapajipe, pois a p o n t a de Montserrat,
c o m seus recifes, era perigosa para as pequenas e m b a r c a ç õ e s q u e tentavam dobrá-la em
mar agitado. O canal de Itapajipe permitiria fácil a n c o r a g e m , na baía do m e s m o
Li\-Ro V I - O C O T I D I A N O DOS H O M E N S Q U E PRODUZIAM E TROCAVAM 483

n o m e , a barcos pequenos vindos do Litoral Sul e do Recôncavo, descongestionando o


p o r t o da c i d a d e , q u e ficaria reservado aos navios de l o n g o c u r s o . M a s o p r o j e t o ,
considerado caro demais pelo governo colonial, ficou relegado até 1 8 4 5 . A l g u m a s
o b r a s f o r a m i n i c i a d a s s o b a d i r e ç ã o d o p r e s i d e n t e d a P r o v í n c i a , o general A n d r e a .
N o v a m e n t e , p o r é m , f o r a m julgadas d i s p e n d i o s a s d e m a i s e cessaram e m 1 8 4 9 . 1 6
A
idéia de realizar essas o b r a s foi r e t o m a d a , e c o m m a i s a f i n c o , p o r particulares, o q u e é
m u i t o c a r a c t e r í s t i c o : e m S a l v a d o r , o g o v e r n o era f r a n c a m e n t e favorável a m e l h o r i a s do
p o r t o e d o cais — c o m o de o u t r o s serviços — , desde q u e realizadas e pagas pelos
grandes c o m e r c i a n t e s da praça!

E m 1 8 5 4 , J o ã o G o n ç a l v e s F e r r e i r a a p r e s e n t o u às a u t o r i d a d e s imperiais u m gran-
dioso projeto de aterro q u e a u m e n t a r i a o distrito comercial da Cidade Baixa. Pro-
pôs t a m b é m a c o n s t r u ç ã o d e diversos c a n a i s p a r a m e l h o r a b r i g a r os navios n o p o r -
t o . C o n f i a d o a o e n g e n h e i r o A n d r é P r z a w d o w s k i , o p r o j e t o valeu a G o n ç a l v e s Ferreira
o a p e l i d o d e ' J ° ã o dos C o c o s ' , e x p r e s s ã o q u e q u e r i a dizer h o m e m leviano, visioná-
r i o . . . A p ó s e n v i o d e várias p e t i ç õ e s a o g o v e r n o i m p e r i a l , t o d a s recusadas, a idéia foi
abandonada.

E m 1 8 7 0 , n o v a o f e n s i v a d a i n i c i a t i v a p r i v a d a : a p o i a d o s n o d e c r e t o imperial de 13
de o u t u b r o d e 1 8 6 9 , o s h e r d e i r o s de J o ã o G o n ç a l v e s F e r r e i r a , F r a n c i s c o I g n a c i o Ferreira
e M a n o e l J e s u í n o F e r r e i r a , p e d i r a m a o g o v e r n o p r o v i n c i a l p r e f e r ê n c i a para c o n s t r u i r
c i n c o d o c a s e e n t r e p o s t o s e n t r e o p r é d i o d a A l f â n d e g a e a p r a i a de J e q u i t a i a . E r a u m
p r o j e t o a m b i c i o s o : previa a c o n q u i s t a , a o m a r , da área q u e ia a t é o forte S ã o M a r c e l o ,
e o a l a r g a m e n t o dos t e r r e n o s s i t u a d o s e n t r e a A l f â n d e g a e a p r a ç a d o C o m é r c i o . Seriam
c o n s t r u í d o s ali c i n c o c a n a i s , de t r i n t a a c i n q ü e n t a m e t r o s de largura e c o m p r o f u n d i -
dade s u f i c i e n t e p a r a o t r â n s i t o d e n a v i o s d e g r a n d e c a l a d o , cais de e m b a r q u e de
passageiros e d e m e r c a d o r i a s e g r a n d e s e n t r e p o s t o s . O s i r m ã o s Ferreira p r o m e t i a m
t a m b é m a u m e n t a r a p a r t e c o m p r e e n d i d a e n t r e a praça d o C o m é r c i o c J e q u i t a i a e
encarregar-se da m a n u t e n ç ã o dos serviços gerais d o p o r t o . 1 7

A c o n c e s s ã o foi dada e m 1 8 7 1 e r e n o v a d a e m 1 8 7 2 , q u a n d o se criou em Londres a


B a h i a D o c k s C o m p a n y L i m i t e d , c o m capital de 9 0 0 . 0 0 0 libras e m noventa mil ações,
e m sua m a i o r parte e m m ã o s de i n g l e s e s . 18
O p r o j e t o a p r e s e n t a d o pelos irmãos Ferreira
foi i n t e i r a m e n t e r e f o m u l a d o p e l o e n g e n h e i r o C h a r l e s N e a t e , m e m b r o da c o m p a n h i a .
Pretendia-se agora c o n s t r u i r u m a d o c a de 1 5 8 . 0 0 0 m 2
e n t r e Água de M e n i n o s e o
Largo do Pilar, 2 . 4 0 0 m e t r o s de cais lineares e dois m o l h e s internos, equipados c o m
aparelhos hidráulicos, para o reparo de navios. Previa-se ainda a construção de duas
docas s u p l e m e n t a r e s , u m a delas para abrigar pequenas embarcações. Apresentado ao
governo em m a r ç o de 1 8 7 3 , o p r o j e t o n u n c a foi aprovado, malgrado os insistentes
esforços da c o m p a n h i a , que a c a b o u por dissolver-se em 1 8 7 9 (de fato, fora sepultado
em janeiro de 1 8 8 7 , q u a n d o o governo declarou caduca a c o n c e s s ã o ) .
N o m e s m o período, entre 1 8 7 1 e 1 8 8 7 , vários outros projetos foram submetidos
ao governo. M a n o e l J o a q u i m de Souza e Silva ( 1 8 7 5 ) propôs a construção de um cais
e de u m q u e b r a - m a r , partindo do forte de S ã o M a r c e l o em direção a G a m b o a , sufi-
4S4 BAHIA, S É C U L O XIX

ciente para abrigar q u i n h e n t o s navios. N o m e s m o a n o , César Farum solicitou uma


c o n c e s s ã o p a r a c o n s t r u i r d o c a s e u m p l a n o i n c l i n a d o l i g a n d o as c i d a d e s A l t a e B a i x a .
D o i s a n o s m a i s t a r d e , a e m p r e s a E d i f i c a d o r a , d i r i g i d a p e i o i n d u s t r i a l J o s é P i n t o da
S i l v a M o r e i r a , se p r o p ô s a a u m e n t a r a C i d a d e B a i x a , e n t r e a A l f â n d e g a e a igreja d o
Pilar. E m 1 8 7 8 , o n e g o c i a n t e J o s é A n t ô n i o d e A r a ú j o s u g e r i u a r e c o n s t r u ç ã o dos
m e r c a d o s d o O u r o e d e S a n t a B á r b a r a , b e m c o m o a c o n s t r u ç ã o de d o c a s . F i n a l m e n t e ,
e m 1 8 8 6 , o engenheiro inglês E d m u n d Penley C o x apresentou u m último projeto
q u e , e m b o r a c o n t a s s e c o m o a p o i o d e g r a n d e p a r t e d o s c o m e r c i a n t e s e a g e n t e s das
c o m p a n h i a s de navegação, foi r e c u s a d o . 1 9

C o m o se v ê , as t e n t a t i v a s d e f a z e r n o p o r t o d e S a l v a d o r as m e l h o r i a s t ã o necessá-
rias p a r a f a c i l i t a r o t r a n s p o r t e d e p a s s a g e i r o s e d e c a r g a n ã o t i v e r a m m a i o r ê x i t o q u e os
esforços para d o t a r a P r o v í n c i a d e u m s i s t e m a ferroviário. V i m o s que, neste último
c a s o , os g o v e r n o s p r o v i n c i a l e g e r a l e r a m a m b i v a l e n t e s : o r a f a v o r e c i a m os p r o j e t o s
p r i v a d o s e c h e g a v a m a g a r a n t i r a r e m u n e r a ç ã o d o s e u c a p i t a l , o r a se e n c a r r e g a v a m eles
m e s m o s d a c o n s t r u ç ã o d a s e s t r a d a s , s e m o b t e r m e l h o r e s r e s u l t a d o s q u e a g e s t ã o priva-
d a . S e r i a esse f r a c a s s o u m r e f l e x o d o p e s o n e g a t i v o d a e s t r u t u r a a d m i n i s t r a t i v a a u t o r i -
tária e c e n t r a l i z a d o r a d o I m p é r i o , c u j a l e n t i d ã o e n t r a v a v a os projetos? E n o e n t a n t o ,
c o m o m e n c i o n a m o s , a elite p o l í t i c a b a i a n a estava b e m - s i t u a d a n o governo central,
pelos ministérios q u e o c u p a v a , p o r sua r e p r e s e n t a ç ã o n o S e n a d o e n a Assembléia Geral
e p o r s u a p r e s e n ç a n o g o v e r n o p r o v i n c i a l . A o d e i x a r e m s u a s p r o v í n c i a s p a r a servir ao
E s t a d o c e n t r a l , o s p o l í t i c o s p a r e c i a m p a s s a r a se e m p e n h a r m a i s n a d e f e s a d e interesses
de caráter n a c i o n a l . S e n d o m e m b r o s da elite agrária da Província, n ã o p o d i a m esque-
c e r de t o d o o s p r o b l e m a s q u e a f e t a v a m a p r o s p e r i d a d e d e suas f a m í l i a s , m a s a t u a v a m
s e m e n t u s i a s m o e d e f r o n t a v a m c o m o s i n t e r e s s e s m a i s f o r t e s d o I m p é r i o . P a r a este,
m a n t e r o statu quo s i g n i f i c a v a p r e s e r v a r c e r t a s v a n t a g e n s fiscais q u e u m a m o d e r n i z a ç ã o
confiada ao capital privado poderia c o m p r o m e t e r . 2 0

D e f a t o , a c o n c e s s ã o o u t o r g a d a a o s i r m ã o s F e r r e i r a e m 1 8 7 1 e, p o r seu i n t e r m é -
d i o , à B a h i a D o c k s C o m p a n y L i m i t e d , t i n h a d u r a ç ã o p r e v i s t a d e n o v e n t a a n o s , após
o q u e a a d m i n i s t r a ç ã o d o p o r t o passaria a o g o v e r n o d a P r o v í n c i a . E s t e se reservava o
d i r e i t o de c o m p r a r a c o n c e s s ã o , r e s t i t u i n d o o c a p i t a l i n v e s t i d o c o m j u r o s d e 8 % , ao
a n o , m a s era p o u c o p r o v á v e l q u e , c o m s u a c r ô n i c a falta de d i n h e i r o , pudesse fazer tal
c o m p r a em prazo t ã o c u r t o . 2 1
A c o m p a n h i a t i n h a o d i r e i t o d e c o b r a r p o r seus serviços
(de cais, d o c a s , e m b a r q u e e d e s e m b a r q u e ) as m e s m a s tarifas fixadas para a C o m p a n h i a
d a D o c a da A l f â n d e g a , d o R i o d e J a n e i r o . P o d i a t a m b é m e m i t i r títulos de garantia
(warrants) das m e r c a d o r i a s d e p o s i t a d a s , q u e l h e s v a l i a m 2 5 % d o valor declarado das
m e s m a s . As tarifas eram passíveis de revisão, m a s só p o d e r i a m b a i x a r q u a n d o o l u c r o
l í q u i d o d a c o m p a n h i a fosse s u p e r i o r a 1 2 % d o capital i n v e s t i d o nas c o n s t r u ç õ e s e n o
material fixo e r o l a n t e . A d e m a i s , passageiros n a d a p a g a v a m , a m e n o s q u e portassem
v o l u m e s c o m m a i s de t r i n t a q u i l o s . 2 2

N a é p o c a c o l o n i a l , as m e r c a d o r i a s e x p o r t a d a s o u i m p o r t a d a s pelo p o r t o de Salva-
d o r e r a m depositadas e m t r a p i c h e s , m u i t o s dos q u a i s p e r t e n c e n t e s a c o m e r c i a n t e s .
486 BAHIA, S É C U L O XIX

lucros cessantes e seriam expropriados em troca de somas muito inferiores ao valor dos
imóveis de então. Cabe notar que esses donos de entrepostos eram também negociantes,
exportando e importando mercadorias, e ainda financiavam a atividade açucareira. A
perda dos trapiches significava para eles a perda de parte do controle que tinham sobre
os produtores de açúcar, bem como sobre suas próprias mercadorias, que passariam a ser
armazenadas em docas anônimas, freqüentadas por todos.
Para os modernizadores, interessava retirar do grupo conservador o domínio sobre
o porto, confiando-o a uma nova administração. Neste campo, convém distinguir
duas tendências. Havia os que, como os irmãos Ferreira, apresentavam projetos de
modernização global do porto e os que, como José Antônio de Araújo, se propunham
construir uma única doca e reconstruir dois grandes mercados, o de Ouro e o de S a n t a
Bárbara. Na verdade, as duas posições não diferiam muito. O individualismo demons-
trado por um José Antônio de Araújo equivalia ao de um Pedroso de Albuquerque ou
ao de um Pereira Marinho — todos desejavam conservar privilégios. Os que apresen-
tavam projetos sob o pretexto da modernização não me parecem mais abnegados que
os negociantes que a eles se opunham. Nos dois casos, o interesse privado primava
sobre o público. A atitude dos donos de trapiche não diferia da dos produtores de
açúcar que recusavam a passagem de ferrovias por suas terras. Isto explica o insucesso
de projetos mais completos, como o da Bahia Docks Company Limited ou o da Bahia
and São Francisco Railway Company. A primeira, apesar do capital inglês que captara,
jamais obteve a concessão; a segunda, também inglesa, interrompeu bruscamente suas
atividades antes de atingir o objetivo: Juazeiro e o São Francisco.

A responsabilidade do governo não foi menor, mas ainda ignoramos o papel que
a elite política baiana desempenhou nesse caso. O estudo de suas atitudes nesses
domínios — vitais, embora muito específicos — talvez permitisse compreender me-
lhor por que tantas linhas ferroviárias não foram concluídas, por que novas estradas
não foram abertas, por que, enfim, o novo porto de Salvador só veio a ser realizado —
entre 1 9 0 6 e 1 9 2 0 — exatamente quando a economia baiana chegava ao ponto mais
baixo de seu declínio. Declínio relativo, sem dúvida, porque a praça de Salvador
continuava a ser um centro comercial muito ativo.
C A P [ T U I. O 2 7

SALVADOR, PRAÇA COMERCIAL

Metrópole regional e centro de redistribuição de mercadorias, Salvador, no século


X I X , via-se à mercê de um mercado internacional caprichoso e tinha sua atividade de
exportação prejudicada pelo transporte deficiente dos produtos na Província. A pró-
pria cidade era cronicamente mal abastecida, e os gêneros de primeira necessidade mal
distribuídos por u m a população cada vez maior. A avidez dos homens não era a única
responsável por essa situação: atuavam sobre ela também o desgaste do solo, os azares
do clima, as enormes distâncias e até o incessante vaivém da população que vivia do
comércio. Era um mercado complexo, de oferta e demanda dos mais variados produ-
tos, animado por homens livres, alforriados e escravos.
A principal atividade de Salvador era comercial, malgrado tentativas feitas em
meados do século para implantar indústrias, logo frustradas. As trocas internacionais
1

sempre dominaram as atividades comerciais e financeiras da Bahia. Esse mercado


tradicional devia oferecer, aos consumidores estrangeiros, os frutos da terra e trazer,
aos habitantes desta, o que não podiam produzir: objetos manufaturados e até produ-
tos alimentares. A saúde material de toda a Província e particularmente da capital
dependia inteiramente desse comércio, controlado por grandes negociantes, a maioria
de fora da Bahia. Era um mercado que oscilava segundo os do exterior e segundo a
produção interna, sujeita a crises, fossem elas climáticas, políticas, decorrentes da
desorganização do crédito ou do processo inflacionário e da deterioração da moeda
2

nacional. Sem esquecer as epidemias, que podiam atingir tanto a produção (a cana-de-
açúcar em 1 8 7 3 ) quanto os homens, como a febre amarela e o cólera-morbo nos anos
1 8 5 0 . Essas crises esgotavam as forças da Província e desencorajavam os homens. As
exportações quase sempre superavam as importações, numa hemorragia de capitais
que exauria paulatinamente as forças econômicas locais, incapazes de reverter os ter-
mos de intercâmbio em favor da Bahia.
Os produtos tradicionalmente exportados, como já foi dito, eram açúcar, fumo,
algodão, aguardente, algum café e cacau, couro, e os diamantes e carbonatos que

487
48S BAHIA, SÉCULO X I X

tantas c t ã o fugazes esperanças d e s p e r t a r a m . O s preços d e p e n d i a m , o b v i a m e n t e , das


c o n d i ç õ e s vigentes n o s m e r c a d o s e x t e r n o s , s o b r e t u d o n u m a época em que a concor-
rência se acirrava, e m especial para o a ç ú c a r .
O s p r o d u t o s de i m p o r t a ç ã o eram os mais diversos. P o r volta de 1 8 7 5 , eram
tecidos de lã, l i n h o e seda, o b j e t o s de v i d r o , o u r o e prata, perfumaria, t o d o tipo de
i n s t r u m e n t o m u s i c a l , r e m é d i o s , v i n h o s , especiarias, farinha de trigo, óleo de oliva
bacalhau e t c . P r e d o m i n a v a m os b e n s de c o n s u m o , s o b r e t u d o após a p r o i b i ç ã o do
tráfico n e g r e i r o , p o i s a t é e n t ã o b o a p a r t e das i m p o r t a ç õ e s era f o r m a d a por escravos,
q u e e r a m b e n s d e p r o d u ç ã o . E n d o s s o p o r i n t e i r o a a f i r m a ç ã o de R ó m u l o de Almeida:
3

" T e n h o a i m p r e s s ã o de q u e se deveria e s t u d a r a i n f l u ê n c i a que teria t i d o o 'crédito em


m e r c a d o r i a s ' f o r n e c i d o à B a h i a p e l o c o m é r c i o de i m p o r t a ç ã o , s o b r e t u d o inglês, e isto
m e s m o a n t e s d a a b e r t u r a dos p o r t o s , a c r e r n o t e s t e m u n h o d o desembargador Brito,
t a n t o m a i s q u e sua i n f l u ê n c i a b e n é f i c a , q u a n d o se tratava de bens de p r o d u ç ã o , era
seguida p o r u m a i n f l u ê n c i a talvez m a l é f i c a n a m e d i d a e m q u e suscitava modelos
s u n t u a r i o s de c o n s u m o n u m a m i n o r i a de ' s e n h o r e s e ' d o u t o r e s ' q u e gastavam além de
1

suas possibilidades e q u e , a s s i m , t o r n a v a m mais p e s a d o o b a l a n ç o de pagamentos e


f a v o r e c i a m a q u e d a das taxas de c â m b i o . Esses h á b i t o s s u n t u a r i o s c o n t r i b u í a m (...)
para agravar as crises, i m p e d i n d o a f o r m a ç ã o d e m e l h o r e s reservas nos anos bons.
C o n s t i t u í a m e m s u m a u m f a t o r de m a i o r d e s c a p i t a l i z a ç ã o . " D e fato, produtos c o m o
4

t e c i d o s , c a l ç a d o s , c h a p é u s , p o r c e l a n a , o b j e t o s de o u r o e de prata, i n s t r u m e n t o s musi-
cais e certos g ê n e r o s a l i m e n t í c i o s dispensáveis f o r m a v a m , e m 1 8 7 4 - 1 8 7 5 , 8 1 , 9 % do
valor total das i m p o r t a ç õ e s . E x c e ç ã o feita ao carvão, c o b r e , a ç o , papel, pólvora, fósfo-
ros e a l g u n s p r o d u t o s classificados n a r u b r i c a 'diversos', todos os demais itens de
i m p o r t a ç ã o p o d e m ser c o n s i d e r a d o s de c o n s u m o s u n t u a r i o .

O s h á b i t o s s u n t u a r i o s a que o e m i n e n t e e c o n o m i s t a se refere n ã o eram exclusivos


de 'senhores e d o u t o r e s ' . D i s s e m i n a v a m - s e p o r todas as c a m a d a s sociais. N o s inventá-
rios feitos após a m o r t e de h u m i l d e s h a b i t a n t e s de Salvador, e até de alforriados, jóias
de o u r o o u prata, o u trajes de seda, são p o r vezes os ú n i c o s bens arrolados, e não é raro
e n c o n t r a r o registro de dívidas c o n t r a í d a s para sua c o m p r a . 5

As tentativas de restringir o sistema de ' c r é d i t o em mercadoria* sempre foram vãs.


J á em 1 8 5 0 o presidente da P r o v í n c i a se queixava da situação em que se encontrava a
e c o n o m i a baiana, crise q u e atribuía " à decisão dos negociantes da Inglaterra e das
outras nações de n ã o vender suas mercadorias ao c o m é r c i o do país do mesmo modo
que o faziam o u t r o r a , porque adotaram u m a nova prática que consiste em vender por
carta de crédito a prazo c u r t o c fixo, obrigando assim os compradores a reduzir
igualmente seus débitos anteriores e não lhes c o n c e d e n d o n e n h u m a outra possibilida-
de de compra se esta nova c o n d i ç ã o n ã o for satisfeita".
Seja c o m o for, a maior parte do lucro dos negociantes vinha desses bens importa-
dos, 7
pois, na época, os produtos primários de exportação, tradicionais o u novos,
sofriam a c o n c o r r ê n c i a estrangeira, além dos efeitos das crises locais de produção, da
degradação dos termos de troca e da inflação que fatalmente a acompanhava. E x a m i -
l'^^j^Ccrr^ Q U E p R O D U Z I A M p T r o c a v a m
489

nare, c o m o esses d i f e r e n t e s fatores atuavam sobre os preços de certos gêneros alimen-


tares de p n m c r a necessidade, t o r n a n d o c r ô n i c o o p r o b l e m a do d e s a b a s t e c i e n t e ,
Antes p o r é m , d e v o assinalar o i m p o r t a n t e papel d e s e m p e n h a d o pela Bahia c o m o
praça de c o m e r c i o r e g i o n a l .

D e f a t o , c o m o já foi d i t o , S a l v a d o r n ã o era s o m e n t e um grande c e n t r o de c o m e r -


ã o i n t e r n a c i o n a l ; c a b m - I h e r e d i s t r i b u i r as m e r c a d o r i a s importadas pelas regiões do
i n t e r i o r d a P r o v í n c i a , a l g u m a s m u i t o distantes, e isto por m e i o dos transportes marí-
t i m o s e das p o u c a s e m á s vias terrestres, para chegar ao S e r t ã o . R i o s e tropas de mulas
levavam aos m a i s l o n g í n q u o s r i n c õ e s n ã o só o b j e t o s m a n u f a t u r a d o s c o m o até alimen-
tos. A l é m das m e r c a d o r i a s v i n d a s de o u t r o s países, S a l v a d o r redistribuía as que chega-
v a m d e o u t r a s p r o v í n c i a s d o país — de Alagoas ao R i o G r a n d e d o Sul — , c o m o a
c a r n e - s e c a q u e , j u n t o c o m a f a r i n h a de m a n d i o c a , f o r m a v a a base da alimentação de
t o d o s os b r a s i l e i r o s .

A s s i m , graças a m a r i n h e i r o s e t r o p e i r o s , h o m e n s de t ê m p e r a forte e coragem


s e r e n a , a B a h i a se i n s e r i a n u m a m p l o e mal c o n h e c i d o m e r c a d o de trocas. T e m o s uma
idéia a p r o x i m a d a das t r o c a s feitas c o m o u t r o s países, m a s s o b r e as que se faziam entre
as p r o v í n c i a s s ó d i s p o m o s de d a d o s f r a g m e n t a d o s , q u e n ã o p e r m i t e m qualquer análise.
T a m p o u c o e x i s t e m , c o m o j á assinalei, dados sobre o fluxo c o m e r c i a l entre Salvador e
as diversas r e g i õ e s d a P r o v í n c i a . É c e r t o , e m t o d o caso, q u e n o século X I X a Bahia era
a v e r d a d e i r a c a p i t a l d o N o r d e s t e , apesar d a forte c o n c o r r ê n c i a de P e r n a m b u c o . D e
fato, A l a g o a s e S e r g i p e p a r e c i a m estar m a i s b e m integradas c o m a B a h i a que c o m a
v i z i n h a P e r n a m b u c o , e isto graças às ligações m a r í t i m a s desenvolvidas a partir de
meados do século.
N o i n t e r i o r , u s a v a m - s e as antigas trilhas abertas pela passagem das boiadas, que
c o n t i n u a v a m a c h e g a r de l o n g e para a b a s t e c e r de c a r n e os m e r c a d o s de Salvador. Esses
c a m i n h o s , q u e s u b i a m a t é as c h a p a d a s e atravessavam os rios p o r vaus bem c o n h e c i -
dos, v i a m passar l o n g a s t r o p a s de a n i m a i s , albardados e p e s a d a m e n t e carregados, em
caravanas b e m o r g a n i z a d a s , q u e levavam aos mais isolados lugarejos todo tipo de
m e r c a d o r i a , t r a z e n d o de v o l t a a l g o d ã o , café, d i a m a n t e s o u c a r b o n a t o s . T o d a casa
c o m e r c i a l de r e s p e i t o t i n h a seus t r o p e i r o s ; além deles, percorriam as trilhas os vende-
dores a m b u l a n t e s , q u e s o n h a v a m u m dia, q u a n d o tivessem amealhado um pequeno
capital, instalar-se c o m o lojistas n a l g u m a vila próspera ò u até na c a p i t a l . 8

E r a preciso t a m b é m suprir feiras e lojas da própria Salvador e das cidades e vilas


próximas. E s t e m e r c a d o local — de especial interesse p o r q u e dele dependia a subsis-
tência dos h a b i t a n t e s da capital - desenvolvia-se sobre bases relativamente c o m p l e -
xas, por ser e x p o r t a d o r dc matérias-primas, sobretudo agrícolas, e importador de
m a n u f a t u r a d o s . C o m suas i m p o r t a ç õ e s , o mercado de Salvador d e v a garantir aos
clientes estrangeiros lucros suficientes para remunerar o capital que investiam. O r a ,
c o m o o e s c o a m e n t o dos produtos importados dependia da capacidade de absorção do
mercado i n t e r n o , este devia estar em constante expansão, pelo menos a longo prazo.
M a s de q u e m a n e i r a a u m e n t a r o u elevar o nível do c o n s u m o e das necessidades n u m a
490 BAHIA, SÉCULO X I X

c i d a d e c o m o S a l v a d o r , c o m u m a e s t r u t u r a social de t i p o escravista, e cuja população


sofria as devastações das guerras, das s u b l e v a ç õ e s e das e p i d e m i a s , c o m seu lúgubre
c o r t e j o de m i l h a r e s de m o r t o s ? E v e r d a d e q u e , n u m g r a n d e p o r t o , há sempre u m a
massa de c o n s u m i d o r e s e s q u e c i d o s , u m a p o p u l a ç ã o flutuante c o m p o s t a de m a r i n h e i -
ros e v i a j a n t e s , t r o p e i r o s e b o i a d e i r o s , c a i x e i r o s - v i a j a n t e s , flagelados e soldados, cuja
presença c e r t a m e n t e i n f l u e n c i a v a os p r e ç o s p r a t i c a d o s na c i d a d e . 9

S e j a c o m o for, t r a t a v a - s e de u m a s o c i e d a d e escravista, q u e m a n t i n h a considerável


setor da p o p u l a ç ã o s o b u m r e g i m e m u i t o p a r t i c u l a r . E , se p o r u m lado os c o n s u m i d o -
res t i n h a m n e c e s s i d a d e s b a s t a n t e s l i m i t a d a s , p o r o u t r o o s i m p r e v i s t o s d e c o r r e n t e s das
e p i d e m i a s t o r n a v a m o m e r c a d o n e r v o s o , a o m e s m o t e m p o rígido e elástico, e, sobre-
t u d o , imprevisível a m é d i o e l o n g o p r a z o s . S e m c o n t a r q u e q u a s e t o d o s os s e n h o r e s de
e n g e n h o c o m p r a v a m suas f e r r a m e n t a s e b e n s de c o n s u m o a c r é d i t o , c o n t a n d o c o m
c o l h e i t a s f u t u r a s . T u d o isso fazia a o r i g i n a l i d a d e d o m e r c a d o de S a l v a d o r e engendrava
h á b i t o s e x t r e m a m e n t e e s p e c u l a t i v o s n o s m e i o s c o m e r c i a i s , o b r i g a d o s a conviver c o m
a i n c e r t e z a : t r a t a v a - s e d e realizar o s m a i o r e s l u c r o s possíveis n o m e n o r lapso de t e m p o ,
m e s m o q u e , a l o n g o p r a z o , isso a c a r r e t a s s e a d e t e r i o r a ç ã o dos t e r m o s de t r o c a do
m e r c a d o l o c a l , c u j a s p r i n c i p a i s v í t i m a s e r a m p o r c e r t o os c o n s u m i d o r e s .

A s s i m , os c o m e r c i a n t e s t i n h a m p o d e r s u f i c i e n t e para m a n i p u l a r as q u a n t i d a d e s e
as q u a l i d a d e s o f e r e c i d a s , e n q u a n t o n o i n t e r i o r e n c a l h a v a m e x c e d e n t e s , p r o m o v e n d o o
e m p o b r e c i m e n t o d a c i d a d e . M a s , para c o m p r e e n d e r o f u n c i o n a m e n t o dessa estrutura,
é preciso p r i m e i r o s a b e r q u e m e r a m esses h o m e n s , q u e t é c n i c a s c o m e r c i a i s e m p r e g a -
vam, com que meios de financiamento c o n t a v a m e q u e t i p o de n e g ó c i o s p r a t i c a v a m .

Os COMERCIANTES

V e n d e r era, de l o n g e , o o f í c i o m a i s p r a t i c a d o n a S a l v a d o r d o s é c u l o X I X . D e alto a
b a i x o da escala s o c i a l , h o m e n s e m u l h e r e s e x e r c i a m a l g u m t i p o de c o m é r c i o : eram
grandes n e g o c i a n t e s , c o m e r c i a n t e s de t o d o s os c a l i b r e s , c a i x e i r o s - v i a j a n t e s , a m b u l a n -
tes, leiloeiros, agentes de c â m b i o , c o r r e t o r e s , p r o p r i e t á r i o s de e n t r e p o s t o s . As realida-
des q u e se o c u l t a v a m sob tais atividades são difíceis de d e s l i n d a r ou de q u a n t i f i c a r . Era
um c o n j u n t o q u e só t i n h a c m c o m u m a essência da atividade q u e lhes garantia a
subsistência — a c o m p r a c a v e n d a — , c e x t r e m a m e n t e díspar n o t i p o , v o l u m e e nível
dos n e g ó c i o s p r a t i c a d o s .
N o fim d o século X V I I I , V i l h e n a m o s t r a v a - s c perplexo d i a n t e d o c o m é r c i o da
B a h i a . E l e c o n f e s s o u q u e , à falta d c " l u z e s " para descrevê-lo c o m c o e r ê n c i a , se c o n t e n -
taria c o m algumas c o n s i d e r a ç õ e s gerais q u e permitissem u m a classificação por peso
e c o n ó m i c o , ainda q u e os critérios fossem precários c i n s u f i c i e n t e m e n t e definidos.
N o t o p o da organização c o m e r c i a l , os grandes negociantes tratavam da exportação
de produtos primários para os mercados i n t e r n a c i o n a i s , dos quais importavam m a n u -
faturados, a l i m e n t o s c escravos. E r a m eles q u e financiavam a produção agrícola, m e s m o
LIVRO V I - Q COTIDlANOD^HoMENs QUE PRODUZIAM E TROCAVAM
491

a p ó s a c r a ç ã o de ó r g ã o s financeiros c o m essa f u n ç ã o precípua. Aliás, o C ó d i g o C o m e r -


cial b r a s i l e i r o d e 1 8 5 0 d e f i n i a o s b a n q u e i r o s c o m o « c o m e r c i a n t e s q u e t ê m por profis-
são h a b i t u a l , e m seu c o m é r c i o , as o p e r a ç õ e s c h a m a d a s de b a n c o " . 1 0
Segundo Vilhena
esses g r a n d e s c o m e r c i a n t e s - reservarei a eles a d e s i g n a ç ã o de negociantes, para
dist.ngu.-los dos demais — p o d i a m ser d i v i d i d o s e m dois grandes grupos- os que
t i n h a m seus p r ó p r i o s c a p i t a i s e os q u e , e m b o r a a g i n d o e m seu p r ó p r i o n o m e , o faziam
c o m f u n d o s de outras pessoas, desejosas de ocultar que c o m e r c i a v a m . 1 1
Q u e m eram
tais pessoas? M e m b r o s d a a d m i n i s t r a ç ã o c o l o n i a l , c u j a f u n ç ã o era i n c o m p a t í v e l c o m a
a t i v i d a d e m e r c a n t i l ? P r o f i s s i o n a i s liberais c o m r e n d i m e n t o s a fazer frutificar? Institui-
ç õ e s r e l i g i o s a s , p r o p r i e t á r i o s rurais o u g e n t e q u e residia f o r a d a C o l ô n i a ? C e r t a m e n t e
u m p o u c o de t u d o i s t o , m a s d e f a t o a d i s t i n ç ã o e n t r e c o m é r c i o p r a t i c a d o c o m o
p r ó p r i o d i n h e i r o o u c o m o d i n h e i r o a l h e i o é fictícia: t o d o s o s n e g o c i a n t e s i m p o r t a v a m
e e x p o r t a v a m c o m esses d o i s t i p o s d e f i n a n c i a m e n t o , o q u e os protegia dos riscos
inerentes à a t i v i d a d e . 1 2

V i l h e n a fala a i n d a d e u m a t e r c e i r a c a t e g o r i a , a d o s c o m i s s á r i o s , negociantes não


r e g i s t r a d o s m a s q u e , " c o m o p o r é m t o d o s d e s p a c h a m , p a g a m direitos e carregam efeitos,
d e m o s - l h e s a c o n s o l a ç ã o d e c h a m a r - l h e s c o m e r c i a n t e s , s e j a m o s gêneros de q u e f o r e m " .
Esses outsiders, q u e a m e a ç a v a m o m o n o p ó l i o d o s c o m e r c i a n t e s 'registrados', eram seve-
r a m e n t e c r i t i c a d o s p e l o a u s t e r o V i l h e n a , q u e m o s t r a v a tê-los e m m u i t o baixa c o n t a . 1 3

A t é a a b e r t u r a d o s p o r t o s o s g r a n d e s n e g o c i a n t e s e r a m luso-brasileiros, isto é,
p o r t u g u e s e s i n s t a l a d o s n a B a h i a o u seus filhos; n o geral, p o r é m , q u a n d o o pai fazia
f o r t u n a os filhos a b r a ç a v a m p r o f i s s õ e s l i b e r a i s , i n g r e s s a n d o m u i t a s vezes na a d m i n i s -
t r a ç ã o c o l o n i a l . O g r u p o e r a s e m p r e r e n o v a d o p e l a c h e g a d a de novas pessoas, q u e c o m
f r e q ü ê n c i a t i n h a m p a r e n t e s j á e s t a b e l e c i d o s n o r a m o , c o m os quais viviam e faziam seu
aprendizado. O s m a i s a f o r t u n a d o s c h e g a v a m a s u c e d e r a o e x - p a t r ã o à frente dos
n e g ó c i o s , o u t r o s c h e g a v a m a a d q u i r i r c r é d i t o s u f i c i e n t e para criar o p r ó p r i o estabele-
c i m e n t o (aliás, p a r a i s s o , e r a m a i s i m p o r t a n t e t e r c r é d i t o n a p r a ç a q u e c a p i t a l ) . A partir
d e 1 8 0 8 as c o n d i ç õ e s c o m e r c i a i s se t r a n s f o r m a r a m m u i t o : os portugueses perderam o
m o n o p ó l i o e as g r a n d e s t r a n s a ç õ e s c o m e r c i a i s passaram a ser exercidas p o r gente de
todas as n a c i o n a l i d a d e s .

Em 1 8 0 8 foi c a n c e l a d a t a m b é m a real p r o i b i ç ã o q u e i m p e d i a o exercício de


q u a l q u e r a t i v i d a d e i n d u s t r i a l n a C o l ô n i a . A s m a n u f a t u r a s q u e a partir de e n t ã o se
e s t a b e l e c e r a m e r a m , d e f a t o , u m p r o l o n g a m e n t o d o trabalho artesanal tradicional,
c o n c e n t r a n d o - s e na f a b r i c a ç ã o de c o r d a s e panos de vela. P r o j e t o s de criar manufaturas
de papel e de a l g o d ã o n u n c a tiveram ê x i t o . F r a n c i s c o I g n a c i o Siqueira N o b r e investiu
p e s a d a m e n t e na i m p l a n t a ç ã o de u m a fábrica de vidros, c h e g a n d o a trazer operarios da
A l e m a n h a , m a s cia j a m a i s p r o s p e r o u ; t a m b é m n ã o foi à frente sua idéia de introduzir
na B a h i a o c u l t i v o d o b i c h o - d a - s e d a . N a visão d o g o v e r n o , tratava-se de um h o m e m
de b o a v o n t a d e , m a s p o u c o i n t e l i g e n t e . 14
E m b o r a m a l o g r a d o s , esses esforços atestam
a lucidez d o s n e g o c i a n t e s portugueses, p r o n t o s a se adaptar às novas c o n d i ç õ e s i m p o s -
tas pela perda d e seu m o n o p ó l i o . T e n t a r a m inclusive penetrar n o c o m é r c i o direto
492 BAHIA, S É C U L O XIX

a n g l o - b r a s i l e i r o , m a s , n ã o o b s t a n t e os c o n t a t o s q u e m a n t i n h a m na G r ã - B r e t a n h a
os
o b s t á c u l o s foram excessivos. A h i s t o r i a d o r a n o r t e - a m e r i c a n a C . Lugar a p o n t a
uma
série deles: a rápida c h e g a d a , a S a l v a d o r , de c o m e r c i a n t e s ingleses, representantes d e
"casas c o m g r a n d e e x p e r i ê n c i a n o c o m é r c i o a n g l o - p o r t u g u ê s , a i m i g r a ç ã o de experien-
tes c o m e r c i a n t e s q u e t r a n s f e r i r a m sua base de o p e r a ç õ e s de L i s b o a para a B a h i a , o
d i m i n u t o m e r c a d o inglês para o s p r o d u t o s b a i a n o s (salvo o a l g o d ã o ) , a organização d o
m e r c a d o de L o n d r e s ( q u e , o p e r a n d o c o m s i s t e m a de c o r r e t a g e m , exigia c o n t a t o s
pessoais) e, finalmente, o a p o i o d i p l o m á t i c o inglês aos c o m e r c i a n t e s de seu p a í s . 1 5

O s n e g o c i a n t e s ingleses g a n h a r a m e n t ã o , s o b r e os p o r t u g u e s e s , a m p l a e rápida ascen-


dência: em 1 8 1 5 , o s r e c i b o s a l f a n d e g á r i o s p a g o s p o r eles representavam 2 4 % do
c o n j u n t o ; e m 1 8 2 5 , c h e g a v a m a 6 9 % . P o r o u t r o l a d o , e n t r e os v i n t e maiores n e g o -
c i a n t e s e m 1 8 1 5 , a p e n a s q u a t r o e r a m i n g l e s e s . E m 1 8 2 5 eles e r a m d o z e . 1 6

A a s c e n s ã o d o s ingleses se e x p l i c a t a m b é m pela p a r t i d a apressada dos negociantes


portugueses p o r o c a s i ã o d a I n d e p e n d ê n c i a , v o l u n t á r i a e m alguns casos, forçada na
m a i o r i a deles. D e f a t o , e m 1 8 2 3 , c e r t o s s e t o r e s radicais d a elite b a i n a , apoiados pelo
p o v o , e x i g i r a m sua e x p u l s ã o . Q u e r i a m a ' n a c i o n a l i z a ç ã o ' d o c o m é r c i o . M a s de fato os
portugueses n ã o f o r a m s u b s t i t u í d o s p o r n e g o c i a n t e s brasileiros: o s capitais disponíveis
na P r o v í n c i a e r a m i n s u f i c i e n t e s p a r a financiar t o d a s as atividades e c o n ô m i c a s , e m
especial a p r o d u ç ã o . A l g u n s a n o s d e p o i s os s e n h o r e s de e n g e n h o se d e r a m c o n t a disso
e p e d i r a m a v o l t a dos q u e t i n h a m e x p u l s a d o . P o r o u t r o l a d o , é evidente q u e , m e s m o
q u e a q u i tivessem p e r m a n e c i d o , os p o r t u g u e s e s n ã o t e r i a m p o d i d o c o n s e r v a r a posição
p r e e m i n e n t e de o u t r o r a .
N o n o v o e s q u e m a q u e se e s t a b e l e c e u n o s a n o s 1 8 3 0 , os n e g o c i a n t e s estrangeiros,
s o b r e t u d o ingleses, n ã o a s s u m i r a m o m o n o p ó l i o p o r t u g u ê s . L i m i t a r a m - s e a operações
de i m p o r t a ç ã o e e x p o r t a ç ã o n o p r ó p r i o p o r t o d e S a l v a d o r , d e i x a n d o aos luso-brasileiros
u m a m p l o e s p a ç o d e o p e r a ç õ e s c o m e r c i a i s e m d i f e r e n t e s setores: eram estes q u e faziam
a i n t e r m e d i a ç ã o e n t r e os e x p o r t a d o r e s e os p r o d u t o r e s agrícolas, financiando e colocando
a p r o d u ç ã o ; r e d i s t r i b u í a m as m e r c a d o r i a s i m p o r t a d a s , m a n t e n d o o c o n t r o l e de t o d o o
c o m é r c i o regional e i n t e r p r o v i n c i a l e m t o r n o d o q u a l se desenvolvia a navegação de ca-
botagem; finalmente, eram os luso-brasileiros q u e faziam o lucrativo tráfico de escravos.
Nesse e s p a ç o , c o n s i d e r a v e l m e n t e a m p l i a d o c o m a c r i a ç ã o de u m E s t a d o nacional,
m u i t o s n e g o c i a n t e s luso-brasileiros p r o s p e r a r a m , c o m o o s Pereira F r a n c o , os Cerqueira
L i m a , os P e d r o s o de A l b u q u e r q u e e o s Pereira M a r i n h o . E se, n o novo m o d e l o , o
c o m é r c i o nacional n ã o s u b s t i t u i u o c o m é r c i o p o r t u g u ê s de o u t r o r a , não faltaram aos
meios c o m e r c i a i s b a i a n o s o p o r t u n i d a d e s para e n r i q u e c e r . As fortunas dos c o m e r c i a n -
tes locais são, c o m o se verá, as primeiras fortunas da cidade d u r a n t e t o d o o século X I X .
Até 1 8 5 0 , eles detiveram o m o n o p ó l i o d o tráfico de escravos, considerado m u i t o
lucrativo; t i n h a m o m o n o p ó l i o da i m p o r t a ç ã o de produtos alimentares, c o m o a carne-
seca e a farinha de m a n d i o c a , igualmente rentáveis; redistribuíam mercadorias impor-
tadas e abasteciam t o d o o c o m é r c i o varejista da Província. M u i t o s tinham lojas pró-
prias. F i n a l m e n t e , seu papel de intermediários dos produtos agrícolas, que financiavam,
J í í ^ O C o T ^ P r o d u z i a m e T r o c a v a m

493

lhes valia b o n s g a n h o s S m m a i ^ r r« . ,
a t i v i d a d e s eme |L n P r O
' °'
V m h a
diversificação das
d c f a t d e s s a

aavidades, q u e lhes p e r m . u a ) o g a r a o m e s m o t e m p o e m vários c a m p o s . N ã o se regis-


t r a r a m , p o i s , f a l e n c i a s c s t r o n d o ^ c .-nt-™» i F g

/ c s r o n ü o s a s e n t r e e s s e s grandes n e g o c i a n t e s , q u e , aliás, investiam


na industria, e m mstitu cões banHriac m ^ L- i «.mraium
u ç o e s Dançarias, e m c o m p a n h i a s d e seguros, e m empresas de
t r a n s p o r t e s u r b a n o s e d e n a v e g a ç ã o d e c a b o t a g e m e q u e se d i s p u n h a m até a investir n a
c o n s t r u ç ã o d e e s t r a d a s d e ferro o u d e u m n o v o p o r t o . N a Vida econômico-financeira da
Bahia (elementos para a história) de 1808 a 1899, G o e s C a l m o n n o s dá a lista dos q u e
m a i s se d e s t a c a r a m n e s s e g r u p o n a d é c a d a d e 1 8 6 0 - são n o m e s q u e reaparecem a
t o d o m o m e n t o n a d o c u m e n t a ç ã o d a é p o c a , m a s a falta d e f o n t e s t o r n a impossível
a v a h a r a a m p l i t u d e d e suas a t i v i d a d e s e d e suas f o r t u n a s . É impossível, aliás, separar
i m p o r t a d o r e s - e x p o r t a d o r e s e varejistas, p o i s os p r i m e i r o s t a m b é m negociavam n o varejo.
P o r o u t r o l a d o , u m e s t u d o r e c e n t e , d e M á r i o A u g u s t o da Silva S a n t o s , p e r m i t e
c o n h e c e r u m p o u c o m e l h o r u m a o u t r a classe d e c o m e r c i a n t e s : a d o s lojistas. O traba-
l h o , q u e só a b a r c a d e 1 8 7 0 a 1 8 8 9 , 1 7
m o s t r a q u e , e m 1 8 8 5 , os varejistas d e origem
p o r t u g u e s a e r a m c e r c a d e 5 1 % d o s e s t a b e l e c i d o s n a p r a ç a d e Salvador. E m segundo
l u g a r v i n h a m o s b r a s i l e i r o s , c o m 4 3 % , s e g u i d o s p e l o s franceses e italianos ( 2 % para
c a d a g r u p o ) . O s i n g l e s e s n ã o p a r t i c i p a v a m dessa a t i v i d a d e . E n t r e 1 8 8 5 e 1 8 8 9 , a
t e n d ê n c i a se i n v e r t e u : o s b r a s i l e i r o s p a s s a r a m a ser 5 5 % d o s lojistas, e os portugueses
se l i m i t a r a m a 4 0 % ( e m 1 9 3 0 o s p o r t u g u e s e s n ã o passariam d e 7 % dos varejistas e os
brasileiros c h e g a r i a m a 6 8 % ) .
D e 1 8 7 0 a 1 8 8 9 , p o r t u g u e s e s e b r a s i l e i r o s p a r t i l h a v a m a v e n d a d e tecidos, gêneros
a l i m e n t a r e s , p r o d u t o s f a r m a c ê u t i c o s e d e d r o g a r i a , ferragens, v i n h o s e bebidas destila-
das, vestuário e m geral, porcelanas, vidros e jóias. T i n h a m pequenos estabelecimentos,
c o m o p a p e l a r i a s , c o n f e i t a r i a s , cafés e a ç o u g u e s . A s atividades d e i m p o r t a ç ã o e exportação
se d i s t r i b u í a m e n t r e as d u a s n a c i o n a l i d a d e s , c o m 4 7 % para c a d a u m a . Nesse p e r í o d o ,
c o n t u d o , o s i n v e s t i m e n t o s p o r t u g u e s e s e r a m m a i s d o d o b r o dos brasileiros. Aliás, Silva
S a n t o s m o s t r a q u e a c o n c e n t r a ç ã o d e c a p i t a i s p o r i n v e s t i d o r era m a i o r e n t r e os suíços,
os a l e m ã e s e os p o r t u g u e s e s d o q u e e n t r e brasileiros e pessoas d e o u t r a s nacionalidades.
O e s t u d o d e Silva S a n t o s t e m limites, pois, baseado n a série dos contratos registrados
na J u n t a d c C o m é r c i o d e S a l v a d o r , s ó a b a r c a os lojistas legalizados n a cidade. S a b e m o s
q u e n o v a r e j o a c l a n d e s t i n i d a d e era g r a n d e , e m b o r a o C ó d i g o C o m e r c i a i exigisse a
• • • „ Ai íiintíi n o Drazo d e o i t o dias após a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a
i n s c r i ç ã o n o s registros d a J u n t a n o pra¿u
r c
r
sociedade ou a abertura de u m estabelecimento.
A l é m d o s g r a n d e s d o c o m é r c i o , e x p o r t a d o r e s e i m p o r t a d o r e s , b p s t a s e^varqistas
cabe m e n c i o n a r os n a é p o c a c h a m a d o s 'atravessadores d e gêneros . ^ff^tZ
A • N M „ ™ r n t e s de c o m e r c i a n t e s estabelecidos, t i n h a m p o r tarera per-
c o n t a p r ó p r i a o u c o m o agentes a e wim
. a u r o r e s e c o m p r a r bois, farinha de m a n d i o c a , feijão e arroz,
c o r r e r os ^ ¡ ^ ^ ^ ^ sabe s o b r e essa categoria, exceto q u e
s e

d e p o i s t r a n s p o r t a d o s pa a S .vado ^ , . a e l e v a ç â o d o s p r e ç o s

tinham reputação ^ a p o p u l a ç ã o , embora o varejo fosse, p o r lei,


r e g i s t r a d L H a v i a alguma relação entre eles e os
P
4*4 BAHIA, SÉCULO X I X

c a i x e i r o s - v i a j a n t e s ? As duas f u n ç õ e s , e m b o r a o p o s t a s — u m a vez q u e os caixeiros


e s p a l h a v a m p e l o i n t e r i o r as m e r c a d o r i a s i m p o r t a d a s pela c a p i t a l — , e r a m p e r f e i t a m e n -
t e c o n c i l i á v e i s , e é p r o v á v e l q u e n ã o r a r o a m b a s f o s s e m e x e r c i d a s pelas m e s m a s pessoas,
o q u e p o r c e r t o lhes valia m a i o r e s g a n h o s .

TA B E L A 8 6

C O N C E N T R A Ç Ã O D E CAPITAIS NA B A H I A ,
1 8 7 9 - 1 8 9 9 (EM C O N T O S D E RÉIS)

Suíços 60:000

Alemães 40:000

Portugueses 37:000

Italianos 20:000

Franceses 16:000

Brasileiros 16:000

Espanhóis 5:000

Ingleses 4:000

Norte-americanos 4:000

Fonte: Mário Augusto da Silva Santos, O comércio português


na Bahia, 1870-1970, p. 33-45.

A c i d a d e r e u n i a t o d a e s p é c i e d e v a r e j i s t a s e r e v e n d e d o r e s . O s m a i s i m p o r t a n t e s , já
se v i u , t i n h a m m e r c e a r i a s , t a b e r n a s , p a d a r i a s e l o j a s d e t e c i d o s e de f e r r a g e n s instaladas
n o s b a i r r o s c e n t r a i s . S e r v i a m a u m a p o p u l a ç ã o n u m e r o s a . S e r p r o p r i e t á r i o de loja
c o n f e r i a c e r t o p r e s t í g i o s o c i a l . A o l a d o s d e l e s , c o n v i v i a e n o r m e q u a n t i d a d e de feirantes
e v e n d e d o r e s a m b u l a n t e s , q u e e x p u n h a m e m t a b u l e i r o s o u b a r r a c a s , o u levavam de
p o r t a e m p o r t a , d e s d e f r u t a s , l e g u m e s , p e i x e s , c a r n e s e g ê n e r o s d e m e r c e a r i a e m geral,
até t e c i d o s e m i u d e z a s v a r i a d a s . E r a m livres p a r a fixar seus p r e ç o s , m a s t i n h a m q u e ter
l i c e n ç a para c o m e r c i a r , p a g a n d o o i m p o s t o c o r r e s p o n d e n t e . C o m p e t i a à M u n i c i p a l i d a d e
c o n c e d e r o u r e c u s a r as l i c e n ç a s , a r r e c a d a n d o d e p o i s o i m p o s t o — e n t r e q u a t r o e c i n c o
réis — q u e i n c i d i a s o b r e o s ' t a b u l e i r o s ' e ' c a i x a s ' dos v e n d e d o r e s a m b u l a n t e s .

Essa g e n t e zanzava o dia t o d o , ladeira a b a i x o , ladeira a c i m a , os tabuleiros


s e m p r e h a r m o n i o s a m e n t e a r r u m a d o s — e q u i l i b r a d o s n a c a b e ç a , roupas de cores vivas,
p o r t e a l t a n e i r o , l í n g u a afiada, fosse a m u l h e r q u e v e n d i a m i n g a u de tapioca ou o
p a d e i r o , g e n t e m a d r u g a d o r a , o u a b a i a n a d e saia r o d a d a e m u i t o s colares, q u e chegava
de t a r d i n h a para o f e r e c e r a c a r a j é , d o c e de b a n a n a o u d e g o i a b a . V e n d i a - s e de tudo nas
ruas de S a l v a d o r , de carvão a l e g u m e s . Especialistas e m q u i t u t e s de p r o v e n i ê n c i a
africana n ã o faltavam c m n e n h u m b a i r r o . 1 8

Esse m o d e s t o c o m é r c i o a m b u l a n t e , q u e p o u c o i n v e s t i m e n t o exigia, permitia a


t o d a u m a parcela da p o p u l a ç ã o viver, o u sobreviver, n u m a cidade o n d e , c o m o a seguir
se verá, o m e r c a d o de t r a b a l h o era r e d u z i d o .
LTVRO V I ~ Q C O T I D I A N O DOS H O M E N S Q U E PRODUZIAM E TROCAVAM 495

A ORGANIZAÇÃO COMERCIAL

Q u a l q u e r p e s s o a , c i d a d ã o b r a s i l e i r o o u n ã o , p o d i a c o m e r c i a r , desde q u e dispusesse
l i v r e m e n t e d e s u a pessoa e d e seus b e n s . As m u l h e r e s casadas e m e n o r e s d e idade
p r e c i s a v a m d e a u t o r i z a ç ã o d o s m a r i d o s o u d o s pais.

E n t r e o s p r i v i l é g i o s d o s c o m e r c i a n t e s , havia u m m u i t o i m p o r t a n t e , resquício tal-


vez d o s t e m p o s c o l o n i a i s : q u a l q u e r u m deles p o d i a d a r a u m t e r c e i r o u m a p r o c u r a ç ã o ,
de p r ó p r i o p u n h o o u n ã o , m a s a s s i n a d a p o r e l e , c o m v a l o r igual a o d e u m d o c u m e n t o
p a s s a d o e m c a r t ó r i o . A l i á s , t o d o s os papéis r e f e r e n t e s a t r a n s a ç õ e s c o m e r c i a i s dispen-
s a v a m o r e c o n h e c i m e n t o d e u m t a b e l i ã o , e n t r e eles os q u e a t e s t a v a m a c o n c e s s ã o d e
c r é d i t o s a u m t e r c e i r o e a p r o m e s s a d e s t e d e q u i t a r a d í v i d a n o prazo ali f i x a d o .
O conjunto dos auxiliares d o c o r p o comercial incluía corretores, leiloeiros,
i n t e n d e n t e s , c o n t a d o r e s e c o m e r c i á r i o s , s e m e s q u e c e r os p r o p r i e t á r i o s e a d m i n i s t r a d o -
res d o s e n t r e p o s t o s , n e m o s t r a n s p o r t a d o r e s . N e s t a ú l t i m a c a t e g o r i a i n c l u í a m - s e b a r -
q u e i r o s , t r o p e i r o s e " o u t r o s c o n d u t o r e s d e g ê n e r o s o u a g e n t e s " . S e r i a m estes ú l t i m o s
os 'atravessadores d e gêneros ? D e fato, o C ó d i g o C o m e r c i a l os enquadrava c o m o
5

simples transportadores.

O c o m e r c i a n t e p o d i a exercer d i r e t a m e n t e sua f u n ç ã o o u delegá-la a u m terceiro,


o q u e exigia u m a p r o c u r a ç ã o , c h a m a d a pelo C ó d i g o C o m e r c i a l de m a n d a t o mercan-
til. Essa f o r m a d e c o m é r c i o p o r p r o c u r a ç ã o foi m u i t o c o m u m no período colonial,
pois c o m f r e q ü ê n c i a u m d o s sócios estava d o o u t r o lado d o A t l â n t i c o . 1 9
Mas conti-
n u o u s e n d o a m p l a m e n t e p r a t i c a d a n o s é c u l o X I X , u m a v e z q u e as grandes casas
c o m e r c i a i s t i n h a m i n t e r e s s e s t a n t o n o e s t r a n g e i r o c o m o e m diversas p r o v í n c i a s do
país e e m vilas e s p a l h a d a s p e l a B a h i a , p r e c i s a n d o t e r a g e n t e s p o r t o d a p a r t e . U m
m e s m o a g e n t e p o d i a ser m a n d a t á r i o de vários c o m e r c i a n t e s , assim c o m u m c o m e r -
c i a n t e p o d i a n o m e a r d i v e r s o s m a n d a t á r i o s p a r a u m m e s m o n e g ó c i o . E m geral, os
comerciantes q u e trabalhavam p o r procuração de u m confrade recebiam u m a comissão,
c u j a t a x a e r a fixada d e c o m u m a c o r d o , a m e n o s q u e t i v e s s e m p a r t i c i p a ç ã o n a socieda-
de c o m e r c i a l , c a s o e m q u e r e c e b i a m pro rata, s e g u n d o o c a p i t a l o u o t r a b a l h o inves-
tidos no n e g ó c i o .
A f o r m a m a i s d i f u n d i d a d e a s s o c i a ç ã o c o m e r c i a l e r a a ' s o c i e d a d e ' . B a s t a v a m duas
pessoas para f o r m a r u m a s o c i e d a d e c o m e r c i a l , d e s d e q u e a m b a s c o n t r i b u í s s e m para a
f o r m a ç ã o d o c a p i t a l , fosse e m d i n h e i r o , t í t u l o s c o m e r c i a i s o u o u t r o s b e n s , fosse n a
f o r m a d e t r a b a l h o o u d o e x e r c í c i o d e a l g u m a e s p e c i a l i d a d e . A a s s o c i a ç ã o p o d i a ser
m u i t o n u m e r o s a , c a s o e m q u e se f o r m a v a u m a s o c i e d a d e e m n o m e c o l e t i v o , a d m i -
nistrada por alguns dos sócios o u por gerentes contratados.
O s p a r t i c i p a n t e s d c u m a s o c i e d a d e e r a m solidários nas e v e n t u a i s dívidas p o r ela
c o n t r a í d a s , g a r a n t i n d o - a s c o m suas f o r t u n a s pessoais. As c o n s t a n t e s m u d a n ç a s d e
razão s o c i a l m o s t r a m q u e as s o c i e d a d e s c o s t u m a v a m ser e f ê m e r a s : o s s ó c i o s se separa-
v a m p o r m ú t u o c o n s e n t i m e n t o , pela saída d e a l g u m , q u e era s u b s t i t u í d o , o u q u a n d o ,
a p ó s a m o r t e d e u m deles, os h e r d e i r o s o p t a v a m p o r se retirar.
BAHU, Sf :UUO X I X

O u t r a f o r m a muito difundida d c associação c o m e r c i a l , s o b r e t u d o até meados d o


século X I X . época c m q u e o comercio l u s o - b r a s i l e i r o assumia grandes riscos, era a
c o m a n d i t a . As sociedades desse cipo fbrmavam-sc cm geral para vigorar e m periodos
m u i t o c u r t o s : podiam ser criadas, p o r exemplo, para durar o t e m p o de u m a viagem d c
ida c volta & COSta a f r i c a n a . S c os resultados t o s s e m bons, e s t a n d o os sócios dc a c o r d o
sua e x i s t e n c i a podia ser p r o l o n g a d a , m a s n a o por muito mais tempo q u e o necessário
para duas OU três v i a g e n s .

C o m a i n t e r d i ç ã o do t r á f i c o d e e s c r a v o s , s u r g i r a m o u t r a s possibilidades dc inves-
t i m e n t o , sc não m a i s r e n t á v e i s , bem m a i s s e g u r a s . D e f a t o , j á n o s a n o s 1 8 4 0 . c o m e ç a -
ram a ser f o r m a r , t a n t o e m S a l v a d o r c o m o e m p e q u e n a s c i d a d e s d o R e c ó n c a v o , c o m -
p a n h i a s d c c o m é r c i o o u ' s o c i e d a d e s a n ô n i m a s ' . S e g u n d o a legislação e m vigor na
é p o c a , tais c o m p a n h i a s d e v i a m ser e s t a b e l e c i d a s p o r u m t e m p o d e t e r m i n a d o c ter a
a u t o r i z a ç ã o d o g o v e r n o , e x i g ê n c i a q u e n ã o se a p l i c a v a n e m às sociedades simples de
pessoas, n e m às c o m a n d i t a s .

N a s s o c i e d a d e s s i m p l e s , v i m o s q u e o s s ó c i o s g a r a n t i a m as dívidas c o m os p r ó -
prios b e n s ; j á o s c o m a n d i t a r i o s s ó e r a m r e s p o n s á v e i s p o r dívidas da sociedade até o
limite de seu próprio i n v e s t i m e n t o ; 2 0
n a s s o c i e d a d e s a n ô n i m a s — sociedades d e c a -
pitais, p o r e x c e l ê n c i a — o s r i s c o s e r a m a i n d a m e n o r e s : os s ó c i o s só eram responsáveis
p e l o v a l o r d a s a ç õ e s e m i t i d a s . C o m o h o j e , n ã o t i n h a m c o m p r o m i s s o c o m dívidas
s o c i a i s , c u j a ú n i c a g a r a n t i a e r a o c a p i t a l s o c i a l c o n s t i t u í d o pelos i n v e s t i m e n t o s e os
lucros.

F o i essa a f o r m a a s s u m i d a pelas c o m p a n h i a s d c s e g u r o s , os b a n c o s , as fábricas dc


t e c i d o s e as d e p r e s t a ç ã o d c s e r v i ç o s , c o m o t r a n s p o r t e s u r b a n o s , m a r í t i m o s e ferroviá-
rios. E s s e t i p o d e a s s o c i a ç ã o e x i g i a , c o n t u d o , q u e o c a p i t a l fosse i n t e i r a m e n t e subscrito
c q u e p e l o m e n o s 1/4 d e l e fosse e f e t i v a m e n t e a p l i c a d o n a c o n s t i t u i ç ã o e n o f u n c i o n a -
m e n t o d a e m p r e s a . O r a , j á se v i u c o m o foi d i f í c i l , na B a h i a , i m p l a n t a r c o m p a n h i a s
para m e l h o r a r o p o r t o o u c r i a r u m a r e d e f e r r o v i á r i a . N ã o foi d i f e r e n t e e m relação aos
e s t a b e l e c i m e n t o s b a n c á r i o s , a l g u n s d o s q u a i s f u n d a d o s c o m c a p i t a l variável. A socie-
d a d e a n ô n i m a s ó p r o s p e r o u d c f a t o n o s a n o s 1 8 9 0 . A t é o fim d o p e r í o d o imperial, a
m a i o r p a r t e d o s n e g ó c i o s b a i a n o s c o n t i n u o u a ser c o n d u z i d a p o r sociedades c o m e r -
ciais, e m q u e o c o m p r o m i s s o t o t a l d o s s ó c i o s c a palavra e m p e n h a d a contavam mais
q u e q u a l q u e r o u t r a c o i s a n o c o n t a t o d i r e t o e pessoal c o m a c l i e n t e l a .

As TROCAS ENTRE O S GRANDES

N e g o c i a n t e s OU c o m e r c i a n t e s e s t a b e l e c i d o s estavam b e m e q u i p a d o s para o exercício de


seu o f í c i o : a partir dc 1 8 5 0 , t i n h a m u m C ó d i g o C o m e r c i a l e boas leis. C o n t a v a m
t a m b é m c o m a p r o t e ç ã o de sociedades s e g u r a d o r a s 21
c c o m instituições de crédito q u e ,
e m b o r a useiras c vezeiras c m falir, serviam aos interesses c o m e r c i a i s , f o m e n t a n d o a
circulação m o n e t á r i a .
- O COTIDIANO DOS H O M E N S QUE PRODUZIAM E TROCAVAM 497

O s g r a n d e s c o m e r c i a n t e s m a n t i n h a m t a m b é m sob seu c o n t r o l e a p r o d u ç ã o agrí-


cola, que continuavam a financiar. S o b r e t u d o a partir da I n d e p e n d ê n c i a , os l u s o -
brasileiros p e r d e r a m o d o m í n i o dos m e r c a d o s i n t e r n a c i o n a i s para os estrangeiros. M a s
até 1 8 5 0 c o n s e r v a r a m a p a r t e d o leão n o tráfico de escravos. A a b e r t u r a dos m e r c a d o s
i n t e r p r o v i n c i a i s e i n t e r - r e g i o n a i s p e r m i t i u q u e se reorganizassem e m c o n d i ç õ e s favo-
ráveis. P o r o u t r o l a d o , o p o d e r e c o n ô m i c o q u e r e p r e s e n t a v a m n u m a cidade e m q u e
t u d o girava e m t o r n o d o c o m é r c i o p e r m i t i u - l h e s m a n t e r suas atividades n u m a estru-
tura d e o l i g o p ó l i o , i m p o n d o os p r e ç o s q u e l h e s c o n v i n h a m . O s grandes i m p o r t a d o r e s
r a r a m e n t e se e s p e c i a l i z a v a m n a v e n d a de u m a ú n i c a m e r c a d o r i a o u m e s m o de u m a
série d e m e r c a d o r i a s s i m i l a r e s ( t e c i d o s d e a l g o d ã o , lã, l i n h o o u seda, p o r e x e m p l o ) . P o r
q u e s t ã o de e s t r a t é g i a , as o p e r a ç õ e s e r a m d i v e r s i f i c a d a s . M a s o ú n i c o m o n o p ó l i o de que
se t e m n o t í c i a era o d o n e g o c i a n t e J o a q u i m P e r e i r a M a r i n h o , a c u s a d o de haver m o n o -
polizado o a b a s t e c i m e n t o de carne-seca ao m e r c a d o de Salvador. A documentação
d i s p o n í v e l , n o e n t a n t o , n ã o p e r m i t e c o n t r o l a r a v e r a c i d a d e dessa a c u s a ç ã o .

E m b o r a se a p l i c a s s e a t o d o t i p o d e m e r c a d o r i a s , a a ç ã o dos o l i g o p ó l i o s se eviden-
ciava s o b r e t u d o n o c a s o d o s a l i m e n t o s , d a d a a i m p o r t â n c i a destes n a e c o n o m i a p o p u -
lar. N a p r á t i c a c o m e r c i a l d o s b a i a n o s , s e m p r e p r e v a l e c e u o e n t e n d i m e n t o , o a c o r d o ,
i m p e d i n d o a f o r m a ç ã o d e u m a v e r d a d e i r a c o n c o r r ê n c i a , o q u e p o d e ser c o n s t a t a d o
pela a n á l i s e d o s p r e ç o s d o s víveres c o n s u m i d o s p e l o H o s p i t a l d a M i s e r i c ó r d i a de
S a l v a d o r . M e s m o q u a n d o h a v i a m u d a n ç a de f o r n e c e d o r e s , os p r e ç o s n ã o baixavam.
E r a , a f i n a l , u m p e q u e n o g r u p o — n ã o m a i s q u e u m a v i n t e n a — q u e se m a n t i n h a n o
t o p o d a h i e r a r q u i a das a t i v i d a d e s c o m e r c i a i s , c o m o p o d e r d e d i t a r a 'lei d o m e r c a d o ' .

N a e s t r u t u r a das r e l a ç õ e s c o m e r c i a i s , c a d a c o m e r c i a n t e t i n h a sua clientela — ou


' f r e g u e s i a ' , c o m o se c o s t u m a v a dizer — de c o m e r c i a n t e s varejistas n a capital, nos
vilarejos e nas c i d a d e s d a P r o v í n c i a . E r a u m a c l i e n t e l a p r a t i c a m e n t e cativa, presa por
laços de p a r e n t e s c o , d e c o m p a d r i o e d e a m i z a d e , p o r q u e n u m a s i t u a ç ã o de o l i g o p ó l i o
há p o u c o lugar para a t r o c a d e c l i e n t e s . F i d e l i d a d e e s o l i d a r i e d a d e — c o m p a t í v e i s com
a própria e t i m o l o g i a d o t e r m o freguês — e r a m as chaves d o sucesso nesse c a m p o ,
c o m o e m t o d o s ; faziam a f o r ç a d a s o c i e d a d e b a i a n a , a o m e s m o t e m p o em que faziam,
c o m o se verá, sua f r a q u e z a . A s relações q u e se e s t a b e l e c i a m n o seio da classe comercial
n ã o diferiam m u i t o das q u e e r a m m a n t i d a s nas famílias, nos m e i o s paramilitares ou
políticos, c o m e s m o e s q u e m a se reproduzia nas relações e n t r e c o m e r c i a n t e s varejistas
e as c e n t e n a s de m e r c a d o r e s a m b u l a n t e s q u e p o v o a v a m os m e r c a d o s , percorriam pra-
ças e ruas da c i d a d e ou se e m b r e n h a v a m pelo i n t e r i o r . E esses a m b u l a n t e s t i n h a m ,
t a m b é m eles, sua freguesia certa.
D e fato, a palavra 'fregués era das mais empregadas d o vocabulário baiano. D e -
1

signando t a n t o q u e m vendia c o m o q u e m c o m p r a v a , substituía os tratamentos mais


p o m p o s o s de s e n h o r c s e n h o r a . S e r freguês de alguém significava ter optado p o r laços
que iam da fidelidade e da solidariedade a relações mais íntimas de amizade e compadrio.
M a s qual era a situação d o c o m e r c i a n t e q u a n d o , em vez de vender, comprava?
M o n o p s ô n i o o u o l i g o p s ô n i o ? Aqui a situação é u m p o u c o mais c o m p l i c a d a . Antes de
498 BAHIA, SÉCULO X I X

m a i s n a d a , havia o g r a n d e n e g o c i a n t e , q u e se m a n t i n h a e m r e l a ç ã o c o m os m e r c a d o s
internacionais e nacional. O c o m e r c i a n t e b a i a n o era u m i n t e r m e d i á r i o e n t r e esse
n e g o c i a n t e e s t r a n g e i r o , e x p o r t a d o r e i m p o r t a d o r , e o c o m e r c i a n t e l o c a l , q u e v e n d i a as
m e r c a d o r i a s i m p o r t a d a s n o v a r e j o ; era e l e t a m b é m , p o r o u t r o l a d o , q u e m f o r n e c i a ao
e x p o r t a d o r os p r o d u t o s a e x p o r t a r . P a r e c e - m e q u e , n o papel de r e d i s t r i b u i d o r de
m e r c a d o r i a s , o c o m e r c i a n t e b a i a n o era m e n o s a u t ô n o m o a o c o m p r a r d o q u e ao v e n -
d e r . P r i m e i r o , p o r q u e o a t o d e c o m p r a r era q u a s e s e m p r e a c o m p a n h a d o p e l o de
vender, pois era p o r i n t e r m é d i o dele q u e os p r o d u t o s da terra eram colocados no
exterior. D e p o i s , p o r q u e os p r o d u t o s exportados n e m sempre t i n h a m b o a demanda
n o s m e r c a d o s e x t e r i o r e s e n ã o h a v i a c o n c o r r ê n c i a e n t r e o s n e g o c i a n t e s e s t r a n g e i r o s da
p r a ç a d e S a l v a d o r , aliás p o u c o n u m e r o s o s . O r a , o c o m e r c i a n t e b a i a n o b u s c a v a l u c r o s ,
a o c o m p r a r m e r c a d o r i a s i m p o r t a d a s o u a o v e n d e r p r o d u t o s d a terra. N e s t e s e g u n d o
c a s o , tais l u c r o s e r a m m a i o r e s q u a n d o ele p r ó p r i o financiava os p r o d u t o r e s , a n t e c i p a n -
d o - I h e s d i n h e i r o o u r e m e t e n d o - l h e s t o d a e s p é c i e d e m e r c a d o r i a . N ã o é difícil i m a g i n a r
o s p r o b l e m a s q u e tal c o m e r c i a n t e p o d i a e n f r e n t a r : a c o n j u n t u r a m u n d i a l p o d i a ser
d e s f a v o r á v e l , o u a i n f l a ç ã o c o r r o e r o s l u c r o s , p o r e x e m p l o . S u a estratégia envolvia o
u s o d e c e r t a s t á t i c a s n a r e l a ç ã o t a n t o c o m o s n e g o c i a n t e s e s t r a n g e i r o s c o m o c o m seus
c o n f r a d e s . A m e t a e r a c o m p r a r m a i s b a r a t o e v e n d e r m a i s c a r o . M a s q u a l era a s i t u a ç ã o
e x a t a d o m e r c a d o ? S e a s i t u a ç ã o d o m e r c a d o d e v e n d a s d o s a t a c a d i s t a s aos varejistas era
de o l i g o p ó l i o , o m e r c a d o d e c o m p r a s se c a r a c t e r i z a v a p e l o o l i g o p s ô n i o , c o m a d i f e r e n -
ça de que neste plano estavam envolvidos dois grupos: o dos vendedores-compradores
(vendiam m a n u f a t u r a d o s e c o m p r a v a m p r o d u t o s da terra) e o de compradores-vende-
dores ( c o m p r a v a m m a n u f a t u r a d o s e v e n d i a m p r o d u t o s da terra).

Havia que aceitar sem discutir os termos propostos pelos vendedores-compradores


— o s n e g o c i a n t e s e s t r a n g e i r o s — o u era possível v a l e r - s e d a c o n c o r r ê n c i a ? A resposta
n ã o é fácil, pois m u i t o s f a t o r e s s ã o i g n o r a d o s . N ã o se s a b e , p o r e x e m p l o , q u e grau de
i n t e r d e p e n d ê n c i a havia e n t r e o s c o m p r a d o r e s - v e n d e d o r e s , n e m c o m o se c o m p o r t a v a m
os v e n d e d o r e s - c o m p r a d o r e s . A a ç ã o p o d i a s e r i n d i v i d u a l , o v e n d e d o r - c o m p r a d o r c o n -
d u z i n d o u m a p o l í t i c a c o m e r c i a l i n d e p e n d e n t e , o u c o l e t i v a , t o d o s a g i n d o de c o m u m
a c o r d o . O p r i m e i r o c a s o é p o u c o p r o v á v e l : n e n h u m c o m e r c i a n t e b a i a n o tinha força
s u f i c i e n t e para e n f r e n t a r , a o m e s m o t e m p o , c o m p r a d o r e s - v e n d e d o r e s e vendedores-
c o m p r a d o r e s , n e m d i s p u n h a das i n f o r m a ç õ e s n e c e s s á r i a s para t a n t o , inclusive as
c o n c e r n e n t e s aos c o m p r o m i s s o s e x i s t e n t e s n o i n t e r i o r desses g r u p o s .
Aliás, nas palavras de L e s t e r T c l s c r , " p a r a q u e haja u m a c o n c o r r ê n c i a , é preciso
q u e as trocas sejam v o l u n t á r i a s , isto é, q u e n e n h u m p a r t i c i p a n t e se veja o b r i g a d o a
aceitar ou a recusar as o f e r t a s sem ter l i v r e m e n t e c o n s e n t i d o e m fazê-lo. A própria
n o ç ã o de t r o c a i m p l i c a pois u m a c o r d o v o l u n t á r i o e n t r e partes d i r e t a m e n t e envolvi-
das na t r a n s a ç ã o , c o m base c m c o n d i ç õ e s aceitas l i v r e m e n t e p o r cada u m . N a troca
pura, e m b o r a as q u a n t i d a d e s totais de m e r c a d o r i a s trocadas pelas partes sejam c o n s -
tantes, cada u m deve c o n s i d e r a r q u e os bens o b t i d o s têm m a i o r valor q u e òs bens
cedidos. S e as partes p o d e m se e n t e n d e r sobre c o n d i ç õ e s de troca m u t u a m e n t e vanta-
499

j o s a s , disso resulta u m a d i s t r i b u i ç ã o d c m e r c a d o r i a s e n t r e os indivíduos q u e deve


m e l h o r a r a s i t u a ç ã o d e p e l o m e n o s u m deles, mas n ã o deve p r e j u d i c a r n i n g u é m ( . . . ) .
S u p o n h a m o s q u e os i n d i v í d u o s , assim c o m o os g r u p o s de t r o c a , s e j a m livres para
a c o r d a r c o n d i ç õ e s d c t r o c a m u t u a m e n t e v a n t a j o s a s . S u p o n h a m o s que n ã o estejam
l i m i t a d o s na e s c o l h a d o s p a r c e i r o s c o m e r c i a i s c o m q u e m p o d e m organizar trocas
m u l t i l a t e r a i s . S u p o n h a m o s a i n d a q u e c a d a i n d i v í d u o seja livre para aceitar o u recusar
as o f e r t a s , s e m p r e c i s a r d o c o n s e n t i m e n t o d e o u t r o s i n d i v í d u o s . A s trocas que resul-
t a m dessas c o n d i ç õ e s r e p r e s e n t a m u m e q u i l í b r i o c o n c o r r e n c i a l . " 2 2
O r a , é fácil c o n -
c l u i r q u e n e n h u m a das c o n d i ç õ e s d a c o n c o r r ê n c i a e s t i p u l a d a s nesta l o n g a c i t a ç ã o se
fazia p r e s e n t e e m S a l v a d o r .

P a r a c o m e ç a r , o n ú m e r o r e l a t i v a m e n t e p e q u e n o de n e g o c i a n t e s estrangeiros
e m q u e o s i n g l e s e s t i n h a m f o r t e p r e d o m í n i o e c u j o s m e m b r o s p o d i a m estar eventual-
m e n t e c o m p r o m e t i d o s e n t r e si — l i m i t a v a as c h a n c e s q u e t i n h a o c o m e r c i a n t e b a i a n o
de e s c o l h e r p a r c e i r o s . D e p o i s , c o m o v e n d e d o r de p r o d u t o s agrícolas dos quais era
t a m b é m p r o d u t o r i n d i r e t o , p r e c i s a v a até c e r t o p o n t o d o c o n s e n t i m e n t o dos clientes
q u e r e p r e s e n t a v a . P o r f i m , se a p r ó p r i a n o ç ã o de t r o c a i m p l i c a a c o r d o v o l u n t á r i o e n t r e
as p a r t e s s o b r e c o n d i ç õ e s l i v r e m e n t e a c e i t a s p o r c a d a u m a , c a b e p e r g u n t a r c o m o tais
c o n d i ç õ e s p o d i a m v i g o r a r e m f a c e das d i f i c u l d a d e s q u e c e r c a v a m a c o l o c a ç ã o dos
produtos locais n o m e r c a d o . O essencial é saber que possibilidades tinha o comercian-
te b a i a n o , n u m a e v e n t u a l n e g o c i a ç ã o , d e i m p o r suas p r ó p r i a s c o n d i ç õ e s , o . q u e passo
a a n a l i s a r n u m p l a n o t e ó r i c o e h i p o t é t i c o , l e v a n t a n d o p r o b l e m a s sem resolvê-los.

S e r i a p r e c i s o d i s p o r de c o r r e s p o n d ê n c i a s o u das m e m ó r i a s de c o m e r c i a n t e s , d o c u -
m e n t o s q u e i n e x i s t e m . H á a p e n a s três e s t u d o s s o b r e as casas c o m e r c i a i s da B a h i a , de
a u t o r i a de M á r i o A u g u s t o d a Silva S a n t o s , de A r n o l d W i l d b e r g e r e da C a s a W e s t p h a l e n ,
Bach e K r o h n , 2 3
m a s t o d o s s ã o c o m e m o r a t i v o s d e c e n t e n á r i o s , o q u e i m p e d e que
t e n h a m a i m p a r c i a l i d a d e n e c e s s á r i a . M e s m o assim, a c r e d i t o p o d e r a f i r m a r que o m e r -
c a d o de S a l v a d o r era d e o l i g o p ó l i o e o l i g o p s ô n i o , talvez a t é o l i g o p s ô n i o bilateral, já
q u e c o m p r a d o r e s e v e n d e d o r e s se e q u i v a l i a m e m n ú m e r o . E r a t a m b é m n o q u a d r o do
o l i g o p s ô n i o q u e se d a v a m as r e l a ç õ e s e n t r e c o m e r c i a n t e s e p r o d u t o r e s agrícolas: uns
p o u c o s c o m p r a d o r e s n e g o c i a v a m c o m m u i t o s v e n d e d o r e s . M a s , neste caso, os p r o d u -
tores sc d i s t r i b u í a m e n t r e os grandes c o m e r c i a n t e s , c a d a u m dos quais tinha a sua
freguesia. U m e x e m p l o é Aristides N o v i s , q u e veio dc G o i á s na segunda metade do
século X I X e t o r n o u - s e u m forte i n t e r m e d i á r i o — representante — d o açúcar, graças
ao a p o i o das mais prestigiosas famílias d o R e c ô n c a v o , c o m o os M o n i z de Aragão.
Laços dc interesse, mas t a m b é m dc a m i z a d e c d c c o m p a d r i o que, cem anos depois,
p e r m a n e c e m vivos e n t r e os d e s c e n d e n t e s , seja de u m grande c o m e r c i a n t e , seja de um
poderoso s e n h o r d c m u i t o s e n g e n h o s . Salvo o f u m o , cujos p e q u e n o s produtores c o m
freqüência se dirigiam d i r e t a m e n t e ao m e r c a d o , c r i a n d o relações de um o u t r o tipo
c o m os c o m p r a d o r e s — e m b o r a s e m p r e n o q u a d r o do o l i g o p s ô n i o — , para todos os
produtos valiam as mesmas regras que para o açúcar: entre exportador e produtor,
i n t e r p u n h a - s c o representante.
BAHIA, SÉCULO X I X

N a s t r a n s a ç õ e s i n t e r - r e g i o n a i s e i n t e r p r o v i n c i a i s o c o m e r c i a n t e b a i a n o t i n h a por
c e r r o m a i s l i b e r d a d e na e s c o l h a de p a r c e i r o s c , talvez, m a i s c a m p o para c o n c o r r e r . M a s
isto é m e r a h i p ó t e s e , p o i s i g n o r o c o m o se c o m p o r t a v a m as o u t r a s praças c o m e r c i a i s d o
país.
A falta d e d a d o s s o b r e o v o l u m e d o s b e n s t r o c a d o s , b e m c o m o dos preços n o
a t a c a d o e n o v a r e j o , n ã o m e p e r m i t e q u a l q u e r a n á l i s e das m a r g e n s de g a n h o e dos
l u c r o s realizados nas d i f e r e n t e s c a t e g o r i a s d o c o m é r c i o . A e s t r u t u r a de o l i g o p s ô n i o do
m e r c a d o sugere q u e os l u c r o s e r a m m a i o r e s e n t r e o s a t a c a d i s t a s .
U m a p e r g u n t a p e r t i n e n t e é q u a l teria s i d o a s i t u a ç ã o se o s c o m e r c i a n t e s baianos
tivessem c o n s e r v a d o o a c e s s o d i r e t o a o s m e r c a d o s i n t e r n a c i o n a i s . T e n t a r respondê-la
seria e s p e c u l a r d e m a i s , q u a n d o n ã o s a b e m o s s e q u e r se esses c o m e r c i a n t e s t i n h a m os
c o n h e c i m e n t o s e os m e i o s financeiros n e c e s s á r i o s p a r a tal e m p r e i t a d a . M a s trata-se
s e m d ú v i d a de u m p o n t o i m p o r t a n t e . E x c l u í d o s d o m e r c a d o e x t e r n o , d e l e g a n d o a
o u t r o s o p e r a ç õ e s d e l i c a d a s , d e d e s f e c h o i n c e r t o , o s c o m e r c i a n t e s b a i a n o s perderam o
g o s t o p e l o r i s c o , q u e f o r j a a p e r s o n a l i d a d e e d e s e n v o l v e o e s p í r i t o de c o m b a t i v i d a d e e
d e c o n c o r r ê n c i a . D e f a t o , o c o m e r c i a n t e b r a s i l e i r o , f e c h a n d o - s e n u m a estrutura de
g r u p o q u e d e f e n d e a q u a l q u e r c u s t o s u a s u p r e m a c i a , p e r p e t u a v a u m e s q u e m a arcaico
de r e l a ç õ e s c o m e r c i a i s . A a u s ê n c i a de t o d a c o n c o r r ê n c i a , de t o d a a ç ã o individual, de
t o d a p o s s i b i l i d a d e de e m p r e e n d e r u m a p o l í t i c a c o m e r c i a l pessoal, l i m i t a v a - l h e o espa-
ç o . O e s p í r i t o g r e g á r i o talvez e x p l i q u e p o r q u e a p r a ç a d e S a l v a d o r p e r d e u aos poucos
sua área d e i n f l u ê n c i a , r e s t r i n g i n d o - s e a o i n t e r i o r d a P r o v í n c i a , c u j a vida comercial
t a m p o u c o d o m i n a v a p o r c o m p l e t o . O g r a n d e n e g o c i a n t e d o i n í c i o d o século, cujos
navios s i n g r a v a m os o c e a n o s , foi s u b s t i t u í d o p o r u m m e r c a d o r l i m i t a d o a operações
l o c a i s . E a e x i s t ê n c i a d e u m a m u l t i d ã o d e i n t e r m e d i á r i o s e n t r e a c h e g a d a das merca-
dorias ao p o r t o e sua d i s t r i b u i ç ã o p e l o s c o n s u m i d o r e s c o n t r i b u í a para a elevação dos
p r e ç o s , o q u e dava lugar a c o n s t a n t e s p r o t e s t o s d o s m e i o s p o p u l a r e s , s o b r e t u d o no
tocante a gêneros alimentícios de primeira necessidade.

OUTRAS TROCAS

U m c o n t r a t o de c o m p r a e v e n d a de m e r c a d o r i a s era válido q u a n d o as partes concor-


davam q u a n t o à c o i s a , ao p r e ç o , às c o n d i ç õ e s de entrega e às percentagens. A partir
desse m o m e n t o , n e n h u m a delas p o d i a d e n u n c i á - l o , a m e n o s q u e a coisa vendida
apresentasse defeitos q u e n ã o t i n h a n o m o m e n t o d o a c o r d o . Neste caso, cabia ao
T r i b u n a l de C o m é r c i o d e c i d i r a c o n t e n d a , se um a c o r d o n ã o fosse o b t i d o . A compra
de q u a l q u e r b e m comercializávcl podia ser efetuada c o m ativos c o m o moeda metálica
ou p a p c l - m o c d a , títulos de f u n d o s p ú b l i c o s , ações de c o m p a n h i a s e todos os papéis de
crédito c o m e r c i a l . Além disso, tudo q u e pudesse ser c o m p r a d o ou vendido podia
t a m b é m ser t r o c a d o , sem a intervenção de q u a l q u e r m e i o de p a g a m e n t o : as mercado-
rias trocadas serviam de preço c c o m p e n s a ç ã o recíprocos.
- ™L
Y I T ^ ^ ^ O M H N S Q U E P R O D U Z A , E TROCAVAM 501

N a B a h i a , o q u e c o m o v i m e t*.*.,
V - 4 n
° « c o m e r c i a i s era a palavra, que 'valia o u r o '
a S t r a n s a c

Nas o p e r a ç õ e s q u e e n v o l v am i r ó 4 n n „,-i <• . "


1- . 1
°V , a m
**00 mil réis, a presença de tesremunhas substituía o
a t c

c o n t r a t o e s c r i t o . A t o s n o t a r ais ou privado* „ „ „ , u / .• r

,. privados, notas de corretores, livros-caixas e m e s m o


a c o r r e s p o n d e n c i a e n t r e c o m e r c i a n t e s p o d i a m provar a existência de c o n t r a t o s . " T e o -
r i c a m e n t e , p o r t a n t o , as relações c o m e r c i a i s estavam protegidas por numerosas salva-
guardas, m a s n a o se, se, na prática, essas regras f u n c i o n a v a m de m o d o a c o n t e n t a r
t o d o s os p a r c e i r o s , s o b r e t u d o q u a n d o se tratava de m e r a troca de mercadorias Neste
c a s o , p r o v a v e l m e n t e o m a i s f o r t e i m p u n h a sua lei, em especial em se tratando da troca
de g ê n e r o s p e r e c í v e i s p o r p r o d u t o s m a n u f a t u r a d o s , o u de transações q u e envolviam
m e r c a d o r i a s a r m a z e n a d a s e m regiões distantes de S a l v a d o r . As dificuldades d o trans-
p o r t e p o d i a m s u j e i t a r o c o m e r c i a n t e local, apressado e m passar as mercadorias adiante,
às i m p o s i ç õ e s d o c o m e r c i a n t e d a c a p i t a l . A l é m d i s t o , u m a c o n s t a n t e falta de dinheiro
vivo d e t e r i o r a v a os t e r m o s de t r o c a , e m p r e j u í z o dos c o n s u m i d o r e s , sempre na p o n t a
dessa c o m p l e x a c a d e i a de t r a n s a ç õ e s .
D u r a n t e t o d o o s é c u l o X I X , os c o n s u m i d o r e s de S a l v a d o r f o r a m afetados por três
fatores n e g a t i v o s . E m p r i m e i r o lugar, a o f e r t a , s o b r e t u d o de a l i m e n t o s básicos, sempre
ficava a q u é m d a d e m a n d a . N ã o m e deterei n o t e m a d o d e s a b a s t e c i m e n t o , j á explorado
e m c a p í t u l o s a n t e r i o r e s , m a s a p e n ú r i a c r ô n i c a de q u e sofria o m e r c a d o de Salvador
r e s u l t a v a t a m b é m d a s u a e s t r u t u r a o l i g o p ó l i c a . A i m p o r t a ç ã o de gêneros de primeira
n e c e s s i d a d e , c o m o f a r i n h a d e m a n d i o c a , c a r n e fresca, c a r n e - s e c a , feijão e arroz, estava
nas m ã o s d e p o u c a s casas i m p o r t a d o r a s , q u e m o n o p o l i z a v a m d e t e r m i n a d o s produtos
— J o a q u i m P e r e i r a M a r i n h o , p o r e x e m p l o , c o n t r o l a v a a c a r n e - s e c a — o u se c o m b i n a -
v a m e n t r e si p a r a s u p r i r o m e r c a d o c o m p a r c i m ô n i a , e l e v a n d o os preços. E t i n h a m
t o d a s as c o n d i ç õ e s p a r a i s s o , p o s s u i n d o d e p ó s i t o s para a r m a z e n a r as mercadorias pelo
t e m p o q u e l h e s c o n v i e s s e . O p o d e r p ú b l i c o , r e c r u t a d o na elite da c i d a d e , t i n h a pouca
p o s s i b i l i d a d e o u d e s e j o de i n t e r v i r , e e r a m afinal esses c o m e r c i a n t e s q u e pagavam os
mais g o r d o s i m p o s t o s , g a r a n t i n d o as receitas d o E s t a d o . 2 5
A partir de d a d o s fragmen-
tados, p o d e - s e c a l c u l a r q u e as r e c e i t a s p r o v e n i e n t e s das taxas de i m p o r t a ç ã o e exporta-
ção representavam, e m 1 8 6 0 - 1 8 6 1 , 8 9 , 6 % das receitas ordinárias da Província e
8 5 , 6 % d o total d a s r e c e i t a s . E m 1 8 7 7 - 1 8 7 8 , essas p e r c e n t a g e n s e r a m , respectivamen-
te, d e 8 8 , 7 % e 8 0 , 1 % .
A escassez d e d i n h e i r o e m c i r c u l a ç ã o t a m b é m gerava tensão e n t r e vendedores e
c o m p r a d o r e s e f a v o r e c i a a a d o ç ã o d a v e n d a a c r é d i t o , q u e a c u r t o prazo p a r e ç a
favorecer o s m a i s p o b r e s , m a s a m é d i o e l o n g o prazos os arruinava. P o r fim, a desor-
d e m r e i n a n t e n o u s o d o s pesos c das m e d i d a s era mais u m fator de perda para o

consumidor. , .. A

N o a t a c a d o o u n o v a r e j o , as m e r c a d o r i a s eram pagas à vista o u a c r é d i t o . A c o m p r a


à vista m u i t a s vezes envolvia discussão. V i l h e n a j á n o t a r a q u e o preço de certas m e r -
cadorias p e r e c í v e i s , c o m o peixe ou c a r n e , baixava c o m a passagem das horas. Nao
raro os v e n d e d o r e s t e n t a v a m disfarçar os sinais de degradação: vendia-se a carne j á
assada e o peixe f r i t o , c o n t r a r i a n d o as Posturas M u n i c . p a t s .
BAHÍA, SÉCULO X I X

D e s c r e v e n d o a vida c o t i d i a n a d e S a l v a d o r n o fim d o s é c u l o p a s s a d o , H i l d e ç a r d e s
V i a n a d i s t i n g u e e n t r e p r o d u t o s de p r e ç o fixo e a q u e l e s e m c u j a c o m p r a s e m p r e se
p o d i a b a r g a n h a r . T i n h a m p r e ç o fixo: o l e i t e , o p ã o , a c a r n e , o s b e i j u s , as balas, os
o b j e t o s de v i d r o e d e p o r c e l a n a ( e s t e s , diz cia, n e m s e m p r e ) , o m i n g a u , o cuscuz, o
acarajé, o a c a ç á e os m i ú d o s . " M a s c o m o v e n d e d o r de l e g u m e s , p o d i a - s e d i s c u t i r . Seus
legumes b e m arrumados n u m e n o r m e tabuleiro de madeira, carregado sobre a cabeça,
o tripé n o o m b r o , ele ia d e p o r t a e m p o r t a , a n u n c i a n d o sua c h e g a d a de m a n e i r a mais
o u m e n o s d i s c r e t a . T i n h a u m a m a n e i r a c o m p l i c a d a d e d i v u l g a r seus p r e ç o s : ' c i n c o por
um, um por u m ou u m p o r dois', o q u e os clientes, h a b i t u a d o s , facilmente entendiam
e t r a d u z i a m e m , p o r e x e m p l o , c i n c o b a n a n a s p o r u m v i n t é m , u m m o l h o de q u i a b o s
p o r u m v i n t é m o u u m m o l h o d e v a g e m p o r d o i s v i n t é n s . E m é p o c a d e c h u v a o u de
seca, o v e n d e d o r de l e g u m e s i n v e n t a v a ' c a s a r ' os l e g u m e s e n t r e si, o q u e divertia até os
c r o n i s t a s dos j o r n a i s l o c a i s , q u e a c h a v a m e n g r a ç a d o o c a s a m e n t o d a c o u v e c o m o
c h u c h u , d o q u i a b o c o m a b e r i n j e l a , d a b a t a t a c o m a a b ó b o r a e t c . P o r vezes, para b o n s
fregueses, o v e n d e d o r c o n c o r d a v a e m t r o c a r o s ' n o i v o s ' , v e n d e n d o o c h u c h u c o m a
b a t a t a o u a a b ó b o r a c o m a a l f a c e , e a t é a c r e s c e n t a v a , p o r u m v i n t é m , u m m o l h i n h o de
c h e i r o - v e r d e . M a s n e m o v e n d e d o r de l e g u m e s e s c a p a v a à p e c h i n c h a e, d e p o i s de
c o n c i l i á b u l o s m a i s o u m e n o s l o n g o s , c h e g a v a a fazer sete b a n a n a s p e l o p r e ç o de c i n c o ,
o u três b e r i n j e l a s p e l o p r e ç o d e u m a . N u n c a se d e v i a p e r g u n t a r a ele: ' a q u a n t o é isto?',
pergunta reservada a v e n d e d o r e s de mercadorias m a i s prestigiosas; a fórmula correta
era: a c o m o é ? \ s i g n o d o i n í c i o d e u m d i á l o g o c o m p l i c a d o , e m q u e t o d o s se diverti-
l

riam, mas c u j o v e n c e d o r era quase sempre o c l i e n t e . 2 7

N ã o p o d i a ser d i f e r e n t e n u m a c i d a d e e m q u e a m a i o r i a vivia n a p o b r e z a e o n d e
n i n g u é m sabia o q u e l h e t r a r i a o d i a de a m a n h ã . N ã o p o d e n d o e c o n o m i z a r , a p o p u -
lação t e n t a v a t i r a r o p r o v e i t o possível d e u m m e r c a d o c u j o s t e r m o s l h e e r a m p o u c o
favoráveis. A b a r g a n h a t o r n a v a - s e regra e n t r e v e n d e d o r e c o m p r a d o r . A l g u m a s m e r c a -
dorias, p o r é m , d e i x a v a m p o u c a m a r g e m p a r a esses a c e r t o s : as taxadas, c o m o a farinha
de m a n d i o c a e a c a r n e de b o i ; o u as m o n o p o l i z a d a s p o r g r a n d e s firmas i m p o r t a d o r a s ,
c o m o o f e i j ã o , o arroz, o b a c a l h a u o u a c a r n e - s e c a . S ó q u a n d o m a i s o u m e n o s deterio-
rados — o q u e era c o m u m — esses p r o d u t o s ficavam sujeitos a barganha.
O s preços a prazo t a m b é m p o d i a m ser d i s c u t i d o s , m a s a ú l t i m a palavra era d o
v e n d e d o r , q u e n ã o abria m ã o de c o b r a r pelos riscos q u e a s s u m i a , fossem os de bruscas
elevações dos p r e ç o s , fosse o d e n u n c a c h e g a r a r e c e b e r o d i n h e i r o . D e v e - s e ressaltar,
n o e n t a n t o , a h o n e s t i d a d e da p o p u l a ç ã o alforriada: nos 3 0 3 t e s t a m e n t o s examinados,
as dívidas, q u e r a r a m e n t e ultrapassavam 2 0 0 réis, f o r a m c u i d a d o s a m e n t e explicadas, e
os testadores invariavelmente insistiam c m seu i m e d i a t o p a g a m e n t o .
É difícil apurar a que taxas se faziam as vendas a prazo. A freqüência das menções
a dívidas resultantes desse t i p o de c r é d i t o em inventários post mortem sugere que eram
um i n s t r u m e n t o c o r r i q u e i r o . É p o c a s d c preços altos, q u a n d o o m e r c a d o de c o n s u m o
sofria certa retração, m e s m o n o t o c a n t e aos gêneros de primeira necessidade, favore-
ciam esse t i p o de venda. B e n é f i c o ao c o n s u m i d o r n o i m e d i a t o , produzia efeitos catas-
^oyi^-OCanpiANo DOS HOMENS QUE PRODUZIAM E TROCAVVAM 503

rroficos a m é d i o e l o n g o prazos: magras e c o n o m i a s porventura amealhadas em tempos


m e l h o r e s e r a m d r e n a d a s para o p a g a m e n t o dessas dívidas. M a i s grave ainda, o crédito
fácil i n c i t a v a ao c o n s u m o de artigos de luxo por u m a população que, em sua grande
p a r t e , n a o t i n h a c o m o pagá-los. A c o n c e s s ã o de c r é d i t o era cercada de precauções
s u f i c i e n t e s para o v e n d e d o r , e a b u n d a m nos inventários post mortem instruções sobre
o leilão a fazer d e u m escravo o u de u m a c a s i n h a , para quitar as dívidas de um defunto
q u e vivera a c i m a de suas posses. E m s u m a , nas relações e n t r e c o m p r a d o r e vendedor,
este g a n h a v a q u a s e s e m p r e .

P a r a c o m p l e t a r esta a n á l i s e , d e v o falar dos pesos e das medidas utilizados na época


e q u e , t a m b é m eles, p r e j u d i c a v a m o s c o n s u m i d o r e s . O sistema m é t r i c o só foi adotado
e m 1 8 7 4 . A t é lá, e a i n d a p o r m u i t o s a n o s , pois h á b i t o s n ã o se m u d a m do dia para a
n o i t e , u s a v a m - s e as u n i d a d e s d e peso e c o m p r i m e n t o herdadas da época colonial:
arroz, f a r i n h a de m a n d i o c a , f e i j ã o e sal, p o r e x e m p l o , eram vendidos a alqueire ( 3 6 , 2 7
l i t r o s ) ; a f a r i n h a d e t r i g o v i n d a d e P o r t u g a l , c a r n e fresca, b a c a l h a u , t o i c i n h o , açúcar,
café, a l g o d ã o e c a c a u e r a m v e n d i d o s a a r r o b a ( 1 4 , 7 4 q u i l o s ) ; líquidos, c o m o óleo,
v i n a g r e o u a g u a r d e n t e , e r a m v e n d i d o s e m c a n a d a s ( 4 , 1 8 l i t r o s ) . C e r t o s produtos
n o b r e s , c o m o o c h á e a m a n t e i g a , m e d i a m - s e e m libras. O alqueire se subdividia em
m e t a d e , q u a r t o e o i t a v o . H a v i a a i n d a o c e l a m i m , a 1 6 parte d o alqueire, correspon-
a

d e n t e p o r t a n t o a 2 , 2 7 l i t r o s , m a s t a m b é m c h a m a d o de litro. Arrobas e canadas tinham


t a m b é m suas s u b d i v i s õ e s . 2 8
F o r m a l m e n t e , t o d o s esses pesos e medidas eram aferidos
pelas a u t o r i d a d e s m u n i c i p a i s duas vezes p o r a n o , e m j a n e i r o e em j u l h o . As Posturas
M u n i c i p a i s d e f i n i a m q u e p e s o s superiores a 1/2 a r r o b a só p o d i a m ser usados c o m
a u t o r i z a ç ã o expressa d a C â m a r a , m e d i d a q u e visava m a n t e r a diferença entre varejistas
e v e n d e d o r e s a m b u l a n t e s o u f e i r a n t e s , q u e n e m pagavam os i m p o s t o s .
P e s o s c o m o o a l q u e i r e , a a r r o b a o u a c a n a d a só eram utilizados em transações de
v u l t o . P o u c a s f a m í l i a s b a i a n a s p o d i a m c o m p r a r a l i m e n t o s em grandes quantidades,
n ã o só p o r falta de d i n h e i r o , m a s t a m b é m p o r q u e n ã o p o d i a m armazená-los em suas
casas, p e q u e n a s e a b a r r o t a d a s de m o r a d o r e s . A l q u e i r e s , arrobas e canadas eram, aliás,
medidas d e c a p a c i d a d e , e u m m e s m o p r o d u t o p o d i a apresentar pesos m u i t o diversos,
m e s m o q u e o v e n d e d o r n ã o tivesse o i n t u i t o de lesar o c o n s u m i d o r . Por vezes a
c o m p o s i ç ã o d o p r o d u t o alterava sua m e d i d a : p o r e x e m p l o , a q u a n t i d a d e de farinha de
m a n d i o c a grosseira necessária para e n c h e r u m a medida é m e n o r q u e a da farinha fina.
A falta de e x a t i d ã o dos i n s t r u m e n t o s , as a p r o x i m a ç õ e s e m tudo que dizia respeito a
peso e m e d i d a t i n h a m por v í t i m a m a i o r o c o n s u m i d o r : faltavam-lhe meios de c o n t r o -
le, ao passo q u e o v e n d e d o r podia f a c i l m e n t e trapacear. N o t o c a n t e às medidas linea-
res, a c o n f u s ã o era a m e s m a . A substituição da vara ( 1 , 1 0 m ) e do côvado ( 0 , 6 6 m )
pelo m e t r o causou perplexidade, e m u i t a g e n t e deve ter c o m p r a d o côvado por m e t r o .
A decisão de introduzir o novo sistema data de 1 8 6 2 , definindo-se então um prazo de
dez anos para q u e o c o m é r c i o mudasse seus hábitos. Foi preciso, porém, um novo
decreto, em 1 8 7 2 , para que finalmente o sistema m é t r i c o fosse adotado em 1» de
j a n e i r o de 1 9 7 4 . N a s províncias d o Nordeste (Paraíba, P e r n a m b u c o , R i o G r a n d e do
>lX> BAHIA, S É C U L O X I X

fato papel-moeda. Esses b ô n u s , e m b o r a s e m a u t o r i z a ç ã o o f i c i a l , c o n q u i s t a r a m tal


confiança do público que, em 1 8 5 5 , o governo acabou por regulamentá-los, renden-
do-se ao fato c o n s u m a d o .
N e s s e m e i o t e m p o , d e 1 8 5 1 a 1 8 6 0 , as a u t o r i d a d e s d e n o v o se i n c l i n a r a m pelo
p r i n c í p i o da e m i s s ã o p o r u m ó r g ã o ú n i c o . C r i o u - s e u m n o v o B a n c o d o Brasil, a u t o -
rizado p e l o g o v e r n o i m p e r i a l a n e g o c i a r sua f u s ã o c o m b a n c o s p r o v i n c i a i s , q u e se
t o r n a r i a m suas filiais. A c a d a b a n c o a b s o r v i d o e t r a n s f o r m a d o e m filial, s u c e d i a u m
n o v o b a n c o e m i s s o r , a o m e s m o t e m p o q u e o B a n c o d o B r a s i l se via n a o b r i g a ç ã o de
p e d i r ao g o v e r n o i m p e r i a l a s u p r e s s ã o d o s b a n c o s p r i v a d o s e a i n t e r d i ç ã o d a c r i a ç ã o de
novos, ú n i c o m e i o de c o n s e g u i r i m p o r a u n i d a d e bancária pretendida. A reorganização
d o s i s t e m a b a n c á r i o e m 1 8 6 0 , r e a l i z a d a n e s s a p e r s p e c t i v a , v o l t a n d o as costas à realida-
de, conseguiu apenas acarretar a falência d o B a n c o d o Brasil e m 1 8 6 4 . 3 5
De 1864 a
1 8 8 8 , o d i r e i t o de e m i t i r p a p e l - m o e d a ficou n o v a m e n t e r e s e r v a d o ao T e s o u r o P ú b l i c o .
E m 1 8 8 8 , n o v o r e t o r n o ao sistema de vários b a n c o s emissores.
E s s a s i t u a ç ã o c o m p l e x a , m u t a n t e e i n d e f i n i d a n ã o p o d i a d e i x a r de ter reflexos na
B a h i a , q u e , m u i t o c e d o , t e n t o u f o r j a r s e u p r ó p r i o s i s t e m a b a n c á r i o , v a l e n d o - s e dos
p e r í o d o s d e l i b e r a l i z a ç ã o , e m q u e se a d m i t i a a m u l t i p l i c i d a d e d o s c e n t r o s de e m i s s ã o .
B u s c a v a - s e c r i a r n o v o s i n s t r u m e n t o s de financiamento, q u e i n j e t a s s e m na massa m o -
n e t á r i a c i r c u l a n t e e s p é c i e s c a p a z e s d e i m p r i m i r c e r t o d i n a m i s m o a o c o m é r c i o local. O s
p r i n c i p a i s a c i o n i s t a s desses b a n c o s e r a m , aliás, o s g r a n d e s n e g o c i a n t e s b a i a n o s , na
época luso-brasileiros.

Esse m o v i m e n t o levou à criação, e m 1 8 1 7 , d o B a n c o da B a h i a , que operava c o m o


filial d o p r i m e i r o B a n c o d o B r a s i l . C o m o c a i x a de d e s c o n t o s , d e v i a facilitar as opera-
ções mercantis, b e m c o m o f o m e n t a r o d e s e n v o l v i m e n t o agrícola. M a s , c o m a bancar-
r o t a d o B a n c o d o B r a s i l , t a m b é m o B a n c o d a B a h i a t e v e de f e c h a r as portas e, e m
1 8 2 9 , foi l i q u i d a d o . T r a t a v a - s e d e u m b a n c o c o m s i m p l e s f u n ç ã o c o m e r c i a l , o u era
t a m b é m , c o m o o B a n c o d o B r a s i l , u m s i m p l e s e s t a b e l e c i m e n t o de e m i s s ã o de papel-
m o e d a para a t e n d e r às n e c e s s i d a d e s d o T e s o u r o P ú b l i c o , s e m n e n h u m a relação c o m a
base m e t á l i c a e as n e c e s s i d a d e s reais d o s i s t e m a e c o n ô m i c o ? T e r i a t a m b é m perdido
seus capitais p o r causa da e v a s ã o dos g r a n d e s n e g o c i a n t e s p o r t u g u e s e s ? Q u e participa-
ç ã o t i n h a m nele os f u n d o s p ú b l i c o s , q u a n d o de sua f u n d a ç ã o ? S ã o questões q u e ficam
sem resposta, à falta d e d a d o s p r e c i s o s .
Em 1 8 3 4 foi f u n d a d a a C a i x a E c o n ô m i c a d a c i d a d e da B a h i a , c o m capital de
9 : 4 1 1 . 6 0 0 de réis, d i v i d i d o c m a ç õ e s de a p e n a s 3 0 0 réis. Pelos e s t a t u t o s , a instituição
devia " c o n c e n t r a r as p e q u e n a s q u a n t i a s de d i n h e i r o n o c o m é r c i o a u t o r i z a d o " e ofere-
cer "às classes l a b o r i o s a s o s m e i o s necessários para o a u m e n t o de seus capitais, ensinan-
do-Ihcs a o r d e m c a e c o n o m i a c s o c o r r e n d o - a s e m c a s o de i n d i g ê n c i a " . S e u capital
devia ser a p l i c a d o na c o m p r a dc apólices da dívida p ú b l i c a o u n o d e s c o n t o de bilhetes
alfandegários, e suas o p e r a ç õ e s se l i m i t a v a m à p e n h o r a de o u r o de particulares e a
hipotecas s o b r e i m ó v e i s situados nos limites e m q u e i n c i d i a a d é c i m a u r b a n a . O f e r e -
c e n d o ações e e m p r é s t i m o s ao a l c a n c e da m a i o r i a das pessoas, c o n s t i t u i u - s e c o m o u m a
-i\ RÓ V I - O COTIDIANO DOS HOMENS QUE PRODUZIAM E TROCAVAM 507

i n s t i t u i ç ã o d e s t i n a d a a r e c o l h e r as e c o n o m i a s dos p e q u e n o s p o u p a d o r e s para servir as


necessidades d o E s t a d o e fazer e m p r é s t i m o s a esses m e s m o p o u p a d o r e s , sob cauções
seguras. Aliás, o b a i x o c a p i t a l s u b s c r i t o n ã o lhe p e r m i t i r i a atuar c o m o verdadeiro
b a n c o c o m e r c i a l . N ã o o b s t a n t e o c a m p o restrito d e suas o p e r a ç õ e s , a C a i x a E c o n ô m i c a
foi a ú n i c a i n s t i t u i ç ã o b a n c á r i a f u n d a d a a n t e s de 1 8 5 0 q u e c o n s e g u i u atravessar o
s é c u l o X I X , e s e m m a i o r e s p r o b l e m a s . O f i c i a l m e n t e r e c o n h e c i d a e m 1 8 6 0 , passou a s e
chamar B a n c o E c o n ô m i c o da B a h i a . 3 6

A d é c a d a de 1 8 4 0 , b a s t a n t e favorável para a e c o n o m i a b a i a n a , t r o u x e a c r i a ç ã o de
b a n c o s capazes de o f e r e c e r os i n s t r u m e n t o s de c r é d i t o i n s i s t e n t e m e n t e reclamados
pelos m e i o s e c o n ô m i c o s l o c a i s . E m 1 8 4 5 , foi f u n d a d o o B a n c o C o m e r c i a l da P r o v í n -
cia d a B a h i a , c o m u m c a p i t a l de 2 . 0 0 0 : 0 0 0 de réis, d i r i g i d o n a p r i m e i r a fase por
pessoas m u i t o c o n h e c i d a s n o m u n d o dos g r a n d e s n e g ó c i o s d a B a h i a daquela época,
c o m o L u i z P a u l o de A r a u j o B a s t o s ( B a r ã o e, m a i s t a r d e , V i s c o n d e dos Fiais), J o s é
Agostinho Salles, Francisco Lang, J o a q u i m J o s é Rodrigues e Luiz A n t ô n i o Vianna. Era
u m a i n s t i t u i ç ã o de d e p ó s i t o e d e s c o n t o , c o m d i r e i t o a e m i t i r letras e valores pagáveis
ao p o r t a d o r c o m p r a z o s de m e n o s d e dez dias e v a l o r n o m i n a l de c e m mil réis, desde
q u e o v a l o r t o t a l n ã o superasse 5 0 % d o c a p i t a l e f e t i v o d o b a n c o . T r a t a v a - s e p o r t a n t o ,
s e m s o m b r a de d ú v i d a , d e u m b a n c o e m i s s o r de p a p e l m o e d a . E m 1 8 5 3 foi transfor-
:

m a d o e m filial d o B a n c o d o B r a s i l e c o m o tal f u n c i o n o u até 1 8 6 6 . 3 7

Mas o mal-estar financeiro persistia. E m 1 8 4 8 , três novas instituições foram cria-


das. A S o c i e d a d e d o C o m é r c i o d a B a h i a , de c a p i t a l variável — o q u e n ã o tardaria a ser
c o n s i d e r a d o m a u sinal — , t i n h a f u n ç õ e s m e r c a n t i s e h i p o t e c á r i a s q u e deviam abranger
t o d a a P r o v í n c i a . O B a n c o H i p o t e c á r i o d o B a h i a , q u e foi a u t o r i z a d o a e m i t i r trinta mil
ações de 2 0 0 m i l réis, o q u e c o m p u n h a u m c a p i t a l d e seis m i l h õ e s de c o n t o s . H i p o -
tecas feitas s o b r e b e n s i m o b i l i á r i o s p o r 2/3 de seu v a l o r g a r a n t i a m seu capital. Para
e m i t i r letras de c â m b i o e letras à vista, o b a n c o estava a u t o r i z a d o a triplicar seu capital
e a d e s c o n t a r t í t u l o s c o m e r c i a i s c o m j u r o s de 6 % a o a n o . O principal é que seus
acionistas p o d i a m utilizar seus p r ó p r i o s capitais n o d e s c o n t o de letras de crédito
garantidas p o r suas a ç õ e s , até 2/3 do m o n t a n t e q u e t i n h a m aplicado n o b a n c o . Por
fim, a C a i x a C o m e r c i a l da B a h i a , de capital variável, q u e permitia aos acionistas
retirarem seus f u n d o s l i v r e m e n t e . O p r i m e i r o capital s u b s c r i t o somava 8 3 : 9 2 0 de réis;
catorze anos d e p o i s era de 2 . 1 6 8 : 7 5 0 de réis, para finalmente transformar-se em
capital fixo de 2 . 5 0 0 : 0 0 0 de réis.
E m 1 8 5 3 , n u m n o v o surto de instituições bancárias, foram fundadas: a Caixa de
Reserva M e r c a n t i l (de capital variável até 1 8 6 0 , depois fixo até sua liquidação, em
1 9 0 1 ) , a C a i x a H i p o t e c á r i a da Bahia ( c o m capital de 1 . 2 0 0 : 0 0 0 de réis em doze mil
ações) e a C a i x a das E c o n o m i a s da C i d a d e da B a h i a . Esta última, cujos estatutos só
foram aprovados e m 1 8 6 0 , era u m b a n c o de capital variável destinado " a fornecer a
todas as classes da sociedade meios fáceis de acumular capitais". Foi liquidada em
1 8 7 7 . P o r fim, em 1 8 5 5 , foi fundada a C a i x a de U n i ã o C o m e r c i a l da Capital da
B a h i a . V a l e dizer que todos estes estabelecimentos, q u e se arrogavam o direito de
508 BAHIA, SÉCULO X I X

e m i t i r letras de c r é d i d o e o r d e n s de p a g a m e n t o , f u n c i o n a v a m mais o u m e n o s clandes-


t i n a m e n t e . A m a i o r i a desses b a n c o s s ó teve suas atividades legalizadas por volta de
1 8 6 0 , q u a n d o foi feita a r e f o r m a b a n c á r i a através da c h a m a d a Lei dos E n t r a v e s . 3 8

P r o l i f e r a r a m assim — a t é m e s m o e m p o v o a d o s d o R e c ô n c a v o , c o m o C a c h o e i r a ,
Nazaré, Valença e S a n t o A m a r o — instituições b a n c á r i a s 3 9
q u e , e m sua m a i o r i a ,
tinham u m capital flutuante e q u e , a p r e t e x t o de ' p r e s t a r assistência às classes l a b o r i o -
sas', v i s a v a m a t r a i r o d i n h e i r o d e p e q u e n o s p o u p a d o r e s p a r a u t i l i z á - l o e m o p e r a ç õ e s
e s p e c u l a t i v a s . À f r e n t e desses e s t a b e l e c i m e n t o s e n c o n t r a v a m - s e t o d o s os grandes n o -
mes da época: J o s é A g o s t i n h o Salles, J o a q u i m J o s é Rodrigues, Luiz A n t ô n i o Vianna,
J o a q u i m de C a s t r o G u i m a r ã e s , J o a q u i m J o s é T e i x e i r a L e a l , F r a n c i s c o T e i x e i r a R i b e i r o
e t c . E s s a f e b r e a c a b o u p o r t e r e f e i t o s p e r v e r s o s . A e n t r a d a e m c i r c u l a ç ã o de e n o r m e s
quantidades de papéis fiduciários, se p o r u m l a d o aliviava o s m e i o s c o m e r c i a i s n o
t o c a n t e às suas o b r i g a ç õ e s m a i s u r g e n t e s , p o r o u t r o f o m e n t a v a a i n f l a ç ã o , i n d u z i n d o
a alta dos preços dos p r o d u t o s de p r i m e i r a necessidade. As maiores vítimas eram c o m o
sempre os mais pobres, q u e , s e m acesso ao crédito b a n c á r i o , estavam excluídos da
e s p e c u l a ç ã o q u e f a v o r e c i a o s m a i s p r o v i d o s . P a r a eles, d e s e n v o l v e u - s e u m crédito
usurário, praticado p o r particulares e d e n u n c i a d o pelos c o n t e m p o r â n e o s , comprovado
por numerosos inventários post mortem, q u e i n d i c a m g r a n d e n ú m e r o de devedores
para u m ú n i c o credor, e n v o l v e n d o e m p r é s t i m o s de s o m a s medíocres.

N a v e r d a d e , essa m u l t i p l i c a ç ã o d e i n s t i t u i ç õ e s b a n c á r i a s era e s t i m u l a d a p e l o p r ó -
prio g o v e r n o i m p e r i a l q u e , c o m o a u m e n t o d o s a g e n t e s d e e m i s s ã o , s u p u n h a f o r t a -
l e c e r a c i r c u l a ç ã o m o n e t á r i a . M a s , a n t e o c a o s c r i a d o p o r esses e s t a b e l e c i m e n t o s na
circulação fiduciária, a p a r t i r d e 1 8 6 0 o E s t a d o a d o t o u n o v a p o l í t i c a . A faculdade
de e m i t i r p a p e l - m o e d a g a r a n t i d o p e l o p o d e r p ú b l i c o ficava reservada a u m a única
i n s t i t u i ç ã o r e g i o n a l . A s s i m , o B a n c o d a B a h i a , f u n d a d o e m 1 8 5 8 , c o n s e r v o u o di-
reito de e m i t i r , q u e m a n t e v e a t é 1 8 9 8 , q u a n d o a ele r e n u n c i o u p o r iniciativa p r ó -
pria. O o b j e t i v o p r o c l a m a d o d e s s e b a n c o era " a t e n d e r às r e c l a m a ç õ e s locais e ser
v e r d a d e i r a m e n t e u m i n s t r u m e n t o p o p u l a r (sic) d o d e s e n v o l v i m e n t o e do progresso
de sua t e r r a " . 4 0
Fora fundado com u m capital de 8 . 0 0 0 : 0 0 0 d e réis, dos quais
4 . 0 0 0 : 0 0 0 f o r a m i m e d i a t a m e n t e s u b s c r i t o s . O d e c r e t o q u e o c r i o u o autorizava a
e m i t i r b i l h e t e s de valor s u p e r i o r a dez réis, d e m o d o q u e suas e m i s s õ e s favoreciam
e x c l u s i v a m e n t e as classes p r o d u t o r a s e m e r c a n t i s . A l i á s , os b e n e f i c i á r i o s dos e m p r é s -
t i m o s d o B a n c o da B a h i a e r a m o g o v e r n o p r o v i n c i a l e as g r a n d e s firmas c o m e r c i a i s ,
pois até a a g r i c u l t u r a d e e x p o r t a ç ã o era e x c l u í d a .

A má o r g a n i z a ç ã o d o s i n s t r u m e n t o s de c r é d i t o fez c o m q u e , apesar de sua m u l -


t i p l i c a ç ã o , a p r o v í n c i a d a B a h i a c o n t i n u a s s e a se ressentir de u m a falta c r ô n i c a de
capitais, s o b r e t u d o nas duas d é c a d a s q u e p r e c e d e r a m a p r o c l a m a ç ã o da R e p ú b l i c a .
G o e s C a l m o n , u m b a n q u e i r o , escreveu e m 1 9 2 3 : " I n f e l i z m e n t e , nos c e n t r o s p r o d u -
tivos esta o b r a m e r i t ó r i a de d i f u s ã o d o c r é d i t o c o m e r c i a l e agrícola fracassou o
que d e m o n s t r a c o m o o c r é d i t o a i n d a era p o u c o desenvolvido na B a h i a do início do
século X X . 4 1
— V I - O C O T I D I A N O DOS H O M E N S Q U E PRODUZIAM E T R O C A V
AM 509

MEIOS COMERCIAIS DE PAGAMENTO

M a s o m u n d o c o m e r c i a l se vaha t a m b é m , e m suas transações, de i n s t r u m e n t o s de


p a g a m e n t o q u e lhe e r a m p r ó p r i o s . N a s relações e n t t e atacadistas e varejistas, eram eles
q u e p e r m i t i a m o fluxo das o p e r a ç õ e s m e r c a n t i s , a despeito da deficiente circulação da
moeda fiduciaria.

O uso da l e t r a de c â m b i o o u letra de c r é d i t o era m u i t o d i f u n d i d o . E r a u m meio


de p a g a m e n t o c ô m o d o , p o r p o d e r ser transferido à o r d e m o u endossado, o q u e o
t o r n a v a n e g o c i á v e l , e p e l a g a r a n t i a q u a s e p l e n a de q u i t a ç ã o n o v e n c i m e n t o . A letra de
c â m b i o p o d i a ser à vista o u estipular prazos, de até vários meses. N o v e n c i m e n t o ,
t o d o s o s s i g n a t á r i o s ( s a c a d o r , . e n d o s s a n t e , s a c a d o ) eram s o l i d a r i a m e n t e responsáveis
em f a c e d o p o r t a d o r d o t í t u l o . E s t e p o d i a , aliás, efetuar u m a o u t r a o p e r a ç ã o , o
' r e c a m b i o ' , q u e c o n s i s t i a e m e m i t i r u m a n o v a letra e m n o m e d o sacador o u de um dos
e n d o s s a n t e s , p o r m e i o d a q u a l r e e m b o l s a v a a o m e s m o t e m p o o p r i n c i p a l , os j u r o s e as
despesas legais d a l e t r a , s e g u n d o a taxa d o c â m b i o n o m o m e n t o . N e s s e caso, porém,
a letra de c â m b i o d e v i a ser a c o m p a n h a d a de u m d o c u m e n t o firmado p o r u m corretor
o u p o r d o i s c o m e r c i a n t e s , i n d i c a n d o o n o m e d o s a c a d o e o p r e ç o de r e c a m b i o a q u e
o t í t u l o f o r a n e g o c i a d o . Q u a n d o o s a c a d o era u m e n d o s s a n t e , a letra de r e c a m b i o devia
ser a c o m p a n h a d a t a m b é m de u m d o c u m e n t o q u e atestasse a taxa d o c â m b i o da praça
e m q u e e r a p a g á v e l , a t a x a d o c â m b i o n o local o n d e fora sacada e naquele o n d e se fizera
o reembolso.
A l é m d e s t e , o c o m e r c i a n t e b r a s i l e i r o d i s p u n h a d e três i n s t r u m e n t o s de paga-
m e n t o : a ' l e t r a d a t e r r a ' , i d ê n t i c a à letra de c â m b i o , m a s c o m curso restrito aos
l i m i t e s da p r o v í n c i a ; as n o t a s p r o m i s s ó r i a s , c o m v e n c i m e n t o p r e f i x a d o , e as notas à
o r d e m , t a m b é m c h a m a d a s n o t a s d e c r é d i t o m e r c a n t i l e pagáveis e m prazo fixo. E s -
tes d o i s ú l t i m o s i n s t r u m e n t o s t a m b é m só t i n h a m c u r s o na p r o v í n c i a e m q u e eram
emitidos. 4 2

Para c o m p l e t a r o quadro d o financiamento das o p e r a ç õ e s c o m e r c i a i s , falta m e n -


c i o n a r a p o s s i b i l i d a d e q u e t i n h a m os c o m e r c i a n t e s d e recorrer aos confrades, fosse por
e m p r é s t i m o s , fosse p o r c a u ç õ e s . O e m p r é s t i m o ' m ú t u o ' se dava q u a n d o o b e m e m -
prestado p o d i a ser c o n s i d e r a d o u m g ê n e r o m e r c a n t i l o u u m o b j e t o destinado ao
c o m é r c i o , e n e m s e m p r e a o p e r a ç ã o envolvia p a g a m e n t o de j u r o s . Assim, um c o m e r -
c i a n t e a q u e faltava a l g u m a m e r c a d o r i a p o d i a f a c i l m e n t e t o m á - l a emprestada de um
c o n f r a d e ; p o d i a a i n d a , n u m m o m e n t o de falta de liquidez, t o m a r emprestados artigos
f a c i l m e n t e n e g o c i á v e i s . A c a u ç ã o era t ã o - s o m e n t e u m a garantia suplementar e m n e g ó -
cios d e l i c a d o s . Q u a l q u e r pessoa q u e tivesse bens podia ser fiador de u m c o m e r c i a n t e . -
E r a c o m u m t a m b é m usar p e n h o r a s c o m o garantia de u m a obrigação comercial: u m
c o m e r c i a n t e p o d i a h i p o t e c a r bens imobiliários o u receber, e m depósito, dinheiro q u e
terceiros lhe confiavam para uso e m operações c o m e r c i a i s .
N u m a e c o n o m i a c m q u e a.circulação fiduciária era deficiente, a moeda escriturai
d e s e m p e n h a v a papel essencial. Foi graças a ela q u e o m u n d o d o c o m é r c i o pôde seguir
510 BAHIA, SÉCULO X I X

p r o s p e r a n d o , sem a t r i b u i r , aliás, g r a n d e i m p o r t â n c i a às instituições de c r é d i t o . Estas


eram reclamadas s o b r e t u d o pelas classes p r o d u t o r a s , q u e se j u l g a v a m lesadas pela
p e r e n i d a d e de práticas herdadas da é p o c a c o l o n i a l . D e f a t o , e m b o r a títulos à o r d e m o u
d e c r é d i t o n ã o fossem m o e d a s o f i c i a i s , era c o m essa m o e d a escriturai q u e os grandes
comerciantes financiavam a produção agrícola.
F o r m o u - s e assim u m c i r c u i t o m o n e t á r i o n ã o a p a r e n t e , m a s de grande impor-
t â n c i a , c u j a análise m o s t r a q u e , n o c a s o d o B r a s i l , as e m i s s õ e s oficiais de m o e d a
n ã o refletem fielmente a v i d a e c o n ô m i c a . E n t r e t a n t o , a i m p o s s i b i l i d a d e de aferir o
v o l u m e e o r i t m o de c i r c u l a ç ã o d o s t í t u l o s de c o m é r c i o n ã o m e p e r m i t e traçar c o m
nitidez o papel d a m o e d a e s c r i t u r a i , n ã o s ó n a s t r o c a s m e r c a n t i s c o m o n o crédito
ao c o n s u m i d o r .

A MOEDA E SUA CIRCULAÇÃO

C o m o foi d i t o , até 1 8 0 8 c i r c u l a v a a p e n a s a m o e d a m e t á l i c a . H a v i a os papéis e m i t i d o s


pelas casas c o m e r c i a i s , m a s estes i n t e r v i n h a m a p e n a s e m t r a n s a ç õ e s de v u l t o , n ã o nas
trocas d o c o t i d i a n o , nas feiras o u n o s m e r c a d o s . P a r a o c o n j u n t o d a p o p u l a ç ã o de
S a l v a d o r , a q u e s t ã o d a c o n v e r s ã o m o n e t á r i a s e q u e r se c o l o c a v a . S ó a p a r e c e u q u a n d o
foi i n t r o d u z i d o o p a p e l - m o e d a .
N o B r a s i l e m g e r a l , o s é c u l o X I X c a r a c t e r i z o u - s e p o r a l t e r n â n c i a s d e períodos de
c o n v e r s i b i l i d a d e e i n c o n v e r s i b i l i d a d e d o p a p e l - m o e d a , e até d a c o e x i s t ê n c i a de ambas.
A rigor, só h o u v e c o n v e r s i b i l i d a d e e n t r e 1 8 1 0 e 1 8 2 0 : as n o t a s e r a m garantidas, à vista,
p o r u m a b a s e m e t á l i c a . D e 1 8 2 1 a 1 8 5 3 , as n o t a s t i n h a m c u r s o o b r i g a t ó r i o ; mas de
fato só as n o t a s d o T e s o u r o P ú b l i c o c i r c u l a v a m s e m g a r a n t i a , pois as dos bancos
privados e r a m conversíveis à v i s t a (a ó b v i a p r e f e r ê n c i a d e q u e gozavam explica a
p r o l i f e r a ç ã o dos b a n c o s e m i s s o r e s n a é p o c a ) . D e 1 8 5 3 a 1 8 6 4 , as duas práticas coexis-
t i r a m : c u r s o f o r ç a d o das cédulas d o T e s o u r o P ú b l i c o , c u r s o legal das dos bancos
privados. D e 1 8 6 4 a 1 8 8 8 , de n o v o a i n c o n v e r s i b i l i d a d e .
A massa de cédulas e m c i r c u l a ç ã o t e n d i a s e m p r e a c r e s c e r . E m 1 8 0 8 era avaliada
em 1 0 . 0 0 0 : 0 0 0 de réis. A t é 1 8 2 1 , e m i t i r a m - s e 8 . 8 7 2 : 0 0 0 de réis, o q u e representa
u m a expansão m o n e t á r i a d e q u a s e 8 9 % . Q u a n d o o B a n c o d o Brasil foi liquidado, em
1 8 2 9 , o total das notas e m i t i d a s era d e 1 9 . 1 7 4 : 0 0 0 de réis. M a s as cédulas emitidas
pelo b a n c o foram reutilizadas pelo T e s o u r o , q u e r e t o m o u a atividade de e m i t i r . E m
1 8 5 3 , a massa m o n e t á r i a chegava a 7 0 . 3 0 0 : 0 0 0 d e réis, dos quais 4 6 . 7 0 0 : 0 0 0 em
cédulas emitidas pelo T e s o u r o , 1 8 . 0 0 0 : 0 0 0 e m m o e d a metálica e 5 . 6 0 0 : 0 0 0 em cédu-
las emitidas por b a n c o s privados. A expansão m o n e t á r i a e n t r e 1 8 0 8 e 1 8 5 3 foi portan-
t o de 6 0 3 % , ao passo q u e a inflação n o p e r í o d o foi estimada en) 1 5 3 % . Por outro
lado, entre 1 8 4 9 - 1 8 5 0 e 1 8 7 9 - 1 8 8 0 , o p a p e l - m o e d a e m i t i d o passou de 4 6 . 8 8 4 : 0 0 0
a 2 1 5 . 6 7 8 : 0 0 0 de réis, n u m a expansão de 3 6 0 % . D u r a n t e a G u e r r a do Paraguai o
governo se viu o b r i g a d o a intensificar as emissões para fazer face às despesas militares,
LIVRO \1 - O COTIDIANO DOS HOMENS QUE PRODUZIAM E TROCAVAM 511

mas os ú l t i m o s a n o s d o I m p é r i o foram de c o n t e n ç ã o m o n e t á r i a . E m 1 8 8 6 - 1 8 8 7 a
massa m o n e t á r i a em c i r c u l a ç ã o só superava a de 1 8 7 0 - 1 8 7 1 em 5 , 5 % . Esses dados
f r a g m e n t a d o s d ã o u m a idéia d o i n c h a ç o da massa m o n e t á r i a n o Brasil, mas f a l t a m - m e
n ú m e r o s s o b r e a s i t u a ç ã o específica da P r o v í n c i a da B a h i a .
Até 1 8 5 6 - 1 8 5 7 , o p r i n c i p a l responsável pelas e m i s s õ e s n ã o foi o T e s o u r o , m a s os
b a n c o s privados, o q u e p r o v o c o u a r e f o r m a b a n c á r i a de 1 8 6 0 , c o m o os parcos resul-
tados já referidos. D e p o i s , em 1 8 7 0 - 1 8 7 1 , e p o r causa d a G u e r r a d o Paraguai, os
déficits o r ç a m e n t á r i o s e x i g i r a m e m i s s õ e s vultosas e a i n f l a ç ã o se a c e n t u o u , sem c o n t u -
d o c h e g a r aos níveis de 1 8 5 6 - 1 8 5 7 ( 4 1 , 2 % ) . 4 5

Q u a n t o valia o p a p e l - m o e d a ? N a d é c a d a de 1 8 1 0 , a n o t a de mil réis valia mais que


a p r ó p r i a peça de o u r o c o r r e s p o n d e n t e . M a s sua d e p r e c i a ç ã o foi m u i t o rápida. J á em
1 8 3 0 , c o m e ç o u - s e a t e n t a r revalorizá-la, e m b o r a o reajuste e n t r e o o u r o e o papel só
t e n h a sido e s t a b e l e c i d o e m 1 8 5 0 . D a í até 1 8 6 9 , a desvalorização foi tão lenta que
alguns e c o n o m i s t a s c h e g a m a falar de u m p e r í o d o de e s t a b i l i d a d e m o n e t á r i a . M a s
e n t r e 1 8 6 9 e 1 8 8 9 n o v a m e n t e a d e s v a l o r i z a ç ã o d o papel se a c e n t u o u .
N a s suas t r a n s a ç õ e s i n t e r n a c i o n a i s , o Brasil a d o t a v a o p a d r ã o - o u r o , m e n o s sujeito
na é p o c a às f l u t u a ç õ e s dos p r e ç o s . 4 6
M a s , c o m p a r a n d o a e v o l u ç ã o d o p r e ç o do o u r o
e m relação ao v a l o r n o m i n a l da m o e d a , a p a r e c e u m ágio q u e é u m a b o a m e d i d a da
desvalorização desta ú l t i m a . O ágio d o o u r o foi de 2 8 % e m 1 8 2 1 , 2 1 0 % e m 1 8 3 1 ,
4 2 % em 1 8 4 0 , 6 % em 1 8 6 0 , 1 2 % em 1 8 6 7 , 2 3 % em 1 8 8 0 e 3 % em 1 8 9 0 . Só em
1 8 5 0 h o u v e ágio d o p a p e l - m o e d a , p o r c a u s a da d e s c o b e r t a de o u r o na C a l i f ó r n i a . 4 7

O e n o r m e ágio d o o u r o e m 1 8 3 1 reflete a d e s o r d e m m o n e t á r i a q u e r e i n o u na década


de 1 8 2 0 , c o m a d e s m o n e t i z a ç ã o d o país e m d e c o r r ê n c i a das e n o r m e s s o m a s de m o e d a
m e t á l i c a levadas para P o r t u g a l q u a n d o d a v o l t a d e D o m J o ã o V I . Q u a n t o à baixa do
ágio em 1 8 9 0 , ela se e x p l i c a : a lei q u e g a r a n t i a a e m i s s ã o m o n e t á r i a e m b a s e - o u r o ou
p o r o b r i g a ç õ e s d o T e s o u r o p e r m i t i a u m m o v i m e n t o de e s p e c u l a ç ã o c o m o o u r o : em
p r i n c í p i o , era mais i n t e r e s s a n t e para o s b a n c o s e m i t i r s o b r e u m a base-obrigações d o
que em b a s e - o u r o ( . . . ) ; h o u v e pois u m ligeiro a u m e n t o da oferta de o u r o .
A c o n s t a n t e elevação do p r e ç o d o o u r o acarretava, por o u t r o lado, u m a evolução
desfavorável nos c â m b i o s . A b a l a n ç a c o m e r c i a l d o país ficava c a d a vez mais desequili-
brada e os preços disparatados, pois variavam s e g u n d o o valor da m o e d a em que as
mercadorias t i n h a m sido pagas. D o r i v a l T e i x e i r a V i e i r a cita c o m o e x e m p l o o preço de
uma saca de café c m 1 8 2 1 e 1 8 2 9 . N o p r i m e i r o a n o ela custava, em média, 2 4 . 8 6 4 réis
em notas do B a n c o d o Brasil; c m moedas de o u r o c u n h a d a s n o Brasil, 1 9 . 4 2 4 réis; em
moedas c o l o n i a i s , 2 2 . 7 5 9 réis; e, em m o e d a s de prata, 2 3 . 6 2 3 réis. Essa m e s m a saca
custava, p o r é m , c m 1 8 2 9 , c m notas d o B a n c o d o Brasil, 1 4 . 6 0 0 réis; em moedas de
ouro nacionais, 5 . 6 7 5 réis; cm moedas c o l o n i a i s , 6 . 3 6 5 réis; e, e m moedas de prata,
7 . 7 5 0 réis. Até o c o b r e era mais valorizado q u e o p a p e l - m o e d a , pois podia c o m p r a r a
saca por apenas 1 0 . 6 9 6 r é i s . 49
C o m o os preços diferiam, era sempre difícil fechar os
negócios. A especulação cm t o r n o da m o e d a acabava por f o m e n t a r a alta dos preços e
desequilibrar o m e r c a d o .
si2 BAHIA, SÉCULO X I X

O a u m e n t o dos p r e ç o s ia de par c o m o a u m e n t o d o n ú m e r o de cédulas c m


c i r c u l a ç ã o . H á u m a estreita c o r r e l a ç ã o e n t r e o a u m e n t o d o v o l u m e das e m i s s õ e s e a
elevação dos p r e ç o s , a tal p o n t o q u e a c o r r e l a ç ã o e n t r e o s d o i s f e n ô m e n o s , calculada
para u m p e r í o d o de 1 3 0 a n o s , é d c + 0 , 9 3 ( q u a n d o a c o r r e l a ç ã o a t i n g e 1,0 ela é
c o m p l e t a , o u seja, u m f e n ô m e n o d e t e r m i n a t o t a l m e n t e o o u t r o ) . 5 0
Mircea Buescu,
p o r é m , atribui u m papel m e n o s i m p o r t a n t e à e x p a n s ã o d a massa m o n e t á r i a . A d m i t e
q u e era em parte j u s t i f i c a d a p e l o d e s e n v o l v i m e n t o das atividades e c o n ô m i c a s e em
parte podia r e p r e s e n t a r a a d a p t a ç ã o dessa m a s s a a o s n o v o s níveis de p r e ç o s . M a s
c o n s i d e r a q u e esses dois f a t o r e s n ã o b a s t a m p a r a e x p l i c á - l a , s e n d o preciso considerar
dois o u t r o s : os déficits d o g o v e r n o e a d e m a n d a d e c r é d i t o . 5 1
E s t a e x p l i c a ç ã o sem
dúvida se a j u s t a m e l h o r à s i t u a ç ã o financeira d o país.
B u e s c u m e n c i o n a a i n d a , c o m o possíveis c a u s a s d a i n f l a ç ã o , as crises cíclicas dos
países mais d e s e n v o l v i d o s , a p e q u e n a p r o d u ç ã o d e a l i m e n t o s (à q u a l dá m u i t a i m p o r -
t â n c i a ) e, finalmente, o a u m e n t o d o p r e ç o dos e s c r a v o s d e p o i s da a b o l i ç ã o d o tráfico.
A c o n s t a n t e i n s t a b i l i d a d e d o s p r e ç o s s ó p o d i a p r e j u d i c a r a s i t u a ç ã o e c o n ô m i c a e favo-
recer t o d a s o r t e de e s p e c u l a ç ã o . T o m a r u m e m p r é s t i m o era a r r i s c a d o . T o d o s busca-
vam operações que p r o m e t e s s e m g a n h o s imediatos e substanciais, de m o d o a poder
e n f r e n t a r prováveis c a t á s t r o f e s . T u d o era o b j e t o d e e s p e c u l a ç ã o : o p r e ç o das m e r c a d o -
rias, o c r é d i t o , o c â m b i o .

E n t r e esses t r á f i c o s b e m c o n h e c i d o s , 5 2
havia u m a o p e r a ç ã o q u e m e r e c e ser explicada
em d e t a l h e , p o r q u e d u r a n t e d é c a d a s a c a r r e t o u i n c a l c u l á v e i s prejuízos à e c o n o m i a
local. E r a a f a l s i f i c a ç ã o de d i n h e i r o , p r á t i c a i n t r o d u z i d a pela p r ó p r i a C o r t e , p o r volta
de 1 8 1 0 , q u a n d o m o e d a s de p r a t a das c o l ô n i a s e s p a n h o l a s f o r a m r e c u n h a d a s . C o m o
c o n t i n h a m u m a q u a n t i d a d e de p r a t a m u i t o s u p e r i o r à d o m i l réis p o r t u g u ê s , bastava
c o m p r a r pesos p o r seu v a l o r o f i c i a l de 7 5 0 réis, r e c u n h á - l o s e a t r i b u i r - l h e s o valor de
9 6 0 réis. O p e r a ç ã o t ã o l u c r a t i v a q u e " o p r ó p r i o p o v o a c o m p r e e n d e u e c o m e ç o u a
c o m p r a r pesos para r e c u n h á - l o s a d o m i c í l i o " .
A prática se d i f u n d i u pela B a h i a . A l i , p o r é m , a f a b r i c a ç ã o de m o e d a s falsas de
c o b r e teve c o n s e q ü ê n c i a s a i n d a m a i s nefastas para a e c o n o m i a p o p u l a r . O exemplo
mais u m a vez veio da C o r t e . C o m o o c o b r e valia mais q u e a c é d u l a , ela autorizou p o r
três alvarás (de 6 , 9 e 2 0 de s e t e m b r o de 1 8 2 2 ) o e n v i o d e m á q u i n a s de c u n h a r cobre
para todas as p r o v í n c i a s . " P o r q u e isto seria u m a f o n t e de renda para o país, uma vez
que u m a libra de c o b r e , custava 3 6 0 réis, e a m o e n d a d a p e r m i t i a a fabricação de
moedas n o valor de 2 . 0 0 0 réis, de o n d e u m l u c r o c e r t o de 1 . 6 4 0 r é i s . "
A primeira cunhagem dc moedas de c o b r e na Bahia ocorreu em j u n h o de 1 8 2 3 .
Eram peças de 8 0 réis, d c peso o mais incerto. A partir d e então, e por trinta anos, a
Polícia a todo m o m e n t o descobria falsificadores de moedas. A prática era até incentivada
por membros influentes do m u n d o comercial c agrícola da Bahia e, ao que tudo indica,
foi a origem de algumas fortunas. C a s o c o n h e c i d o é o do c o m e n d a d o r Antônio Pedroso
de Albuquerque, mais tarde Visconde de Pedroso de Albuquerque. U m dos maiores
negociantes da praça, não conseguia obter um título de nobreza brasileiro porque o
-LiVRQj^I - O COTIDIANO DOS HOMENS QUE PRODUZIAM E TROCAVAM 513

acusavam d e praticar tráfico de negros e de falsificar moedas. D e s t a ú l t i m a acusação, ele


se d e f e n d e u d . z c n d o : " Q u a n d o havia n a B a h i a c o b r e b e m a m o e n d a d o , cujo ágio sobre
o c o b r e de m á q u a l i d a d e era de 4 0 % , o suplicante, infringindo as ordens da época,
o p e r o u a t r a n s f e r ê n c i a e n t r e a C o r t e e esta P r o v í n c i a de cerca de 2 4 0 c o n t o s de réis. M a s
tratava-se da m e l h o r m o e d a d o I m p é r i o , e esta foi entregue em mãos próprias à presidên-
cia [da P r o v í n c i a ] ! S e r á a isto q u e se c h a m a traficar c o m m o e d a falsa? N ã o , Alteza, jamais
tal e s p é c i e d e t r á f i c o m a c u l o u m i n h a p r o b i d a d e . " 5 3
S e j a c o m o for, realizara-se sem
dúvida u m a o p e r a ç ã o especulativa, p o r q u e os f u n d o s t i n h a m sido transferidos ilegal-
m e n t e , c o m o o p r ó p r i o P e d r o s o de A l b u q u e r q u e o c o n f e s s o u .

N ã o se s a b e o v o l u m e d a m o e d a falsa de c o b r e q u e c i r c u l o u na B a h i a . S e g u n d o
u m a petição apresentada em 1 8 2 7 pelos c o m e r c i a n t e s locais, o valor c o n j u n t o das
m o e d a s v e r d a d e i r a s e falsas se a p r o x i m a r i a de 3 : 5 0 0 a 4 : 0 0 0 de réis. M a s , n o fim do
m e s m o a n o , f a l a v a - d e d e 5 m i l h õ e s , talvez m a i s , e m c i r c u l a ç ã o . 5 4
M a l o g r a r a m todos
o s e s t r a t a g e m a s i m a g i n a d o s p a r a ' l i m p a r ' a c i r c u l a ç ã o . E m 1 8 3 4 , o g o v e r n o imperial
se v i u o b r i g a d o a p r o m u l g a r u m a lei p e l a q u a l a m o e d a de c o b r e da B a h i a n ã o teria
m a i s c u r s o n o I m p é r i o ; s ó a m o e d a c u n h a d a n o R i o de J a n e i r o seria r e c o n h e c i d a
c o m o oficial. F o r a m então recolhidos 3 1 . 2 2 5 : 0 0 0 de réis e m m o e d a s de c o b r e . 5 5

N e s s e m e s m o a n o , a T e s o u r a r i a d o M i n i s t é r i o d a F a z e n d a d a B a h i a o r d e n o u à Alfân-
d e g a q u e s ó r e c e b e s s e e m m o e d a de c o b r e a m e t a d e d a s o m a devida p o r aqueles que
p a g a v a m i m p o s t o s a l f a n d e g á r i o s , p o r c a u s a d a f a l s i f i c a ç ã o . D e p o i s dessa lei, n e n h u m
p a g a m e n t o f o i f e i t o n e s s a m o e d a , o q u e leva a s u p o r q u e t o d a a m o e d a de c o b r e e m
circulação era f a l s a . 5 6

D e s n e c e s s á r i o d i z e r q u e o d i n h e i r o falso c o n t i n u o u c i r c u l a n d o , para b e m dos


e s p e c u l a d o r e s e p r e j u í z o de g r a n d e p a r t e d a p o p u l a ç ã o , q u e usava essa m o e d a de b a i x o
v a l o r n ã o s ó e m s u a s c o m p r a s c o m o p a r a fazer suas e v e n t u a i s e c o n o m i a s . O c l i m a de
d e s c o n f i a n ç a ficou t ã o p e s a d o q u e n i n g u é m m a i s q u e r i a v e n d e r a c r é d i t o , n e m aceitar
o p a g a m e n t o d e d í v i d a s , o q u e elevava o s p r e ç o s d o s a r t i g o s de p r i m e i r a necessidade.
O s p r ó p r i o s c o m e r c i a n t e s a f i r m a v a m : " O s s o l d o s das t r o p a s , d o s artífices e dos e m p r e -
g a d o s p ú b l i c o s e m b r e v e serão m u i i n a d e q u a d o s a seu s u s t e n t o . " 5 7
Em 1 8 3 1 , na
t e n t a t i v a d e c o m b a t e r a d e s c o n f i a n ç a geral, as a u t o r i d a d e s m u n i c i p a i s a c h a r a m p o r
b e m b a i x a r u m a p o s t u r a n o s s e g u i n t e s t e r m o s : " T o d o a q u e l e q u e recusar as moedas de
c o b r e de 8 0 , 4 0 , 2 0 e 1 0 réis será m u l t a d o p r i m e i r a vez n a q u a n t i a de 3 0 . 0 0 0 réis e
s o f r e r á o i t o d i a s d e p r i s ã o . " O s r e i n c i d e n t e s p a g a r i a m m u l t a de 6 0 . 0 0 0 réis, acrescida
de t r i n t a dias d e p r i s ã o . P e l a m e s m a p o s t u r a , s ó p o d i a m ser recusadas c o m o falsas as
peças i m p e r f e i t a s e m seu c u n h o o u c o m p e s o 1/8 m e n o r q u e o l e g a l , 5 8
especificação
que daria lugar a contestações sem conta e sem fim.
A s s i m , d u r a n t e seus t r i n t a p r i m e i r o s a n o s c o m o n a ç ã o i n d e p e n d e n t e , o Brasil
s o f r e u o s e f e i t o s desastrosos dessa c i r c u l a ç ã o ilegal, q u e solapava s o b r e t u d o o o r ç a m e n t o
das classes p o p u l a r e s . D u r a v i d a a d a q u e l a g e n t e , o b r i g a d a a e n f r e n t a r , p o r u m lado,
o a b a s t e c i m e n t o p r e c á r i o e, p o r o u t r o , u m s i s t e m a de c r é d i t o e u m m o d o de c i r c u l a ç ã o
d a m o e d a q u e e s t i m u l a v a m os c o m e r c i a n t e s a e s p e c u l a r .
BAHIA. S É C U L O X I X

DADOS SOBRE O MOVIMENTO COMERCIAL

As p o u c a s séries d e i n d i c a d o r e s e c o n ô m i c o s d i s p o n í v e i s s o b r e a B a h i a n o século X I X
r e f e r e m - s e e s s e n c i a l m e n t e a o c o m é r c i o e x t e r i o r e c o m o u t r a s províncias de 1 8 0 8
a
1 8 1 6 e d e 1 8 5 0 a 1 8 8 8 . E m b o r a n ã o p o s s a m f u n d a r u m a análise global da situação
econômica c financeira d a P r o v í n c i a , d ã o u m a visão a p r o x i m a t i v a da c i r c u l a ç ã o das
m e r c a d o r i a s n o s m e r c a d o s i n t e r n a c i o n a l e l o c a l , r e v e l a n d o os impasses criados pelas
estruturas p r o d u t i v a s . A c o m p a r a ç ã o d e d a d o s f r a g m e n t a d o s d o s d o i s períodos é tam-
b é m reveladora.

O s d a d o s s o b r e as t r o c a s c o m e r c i a i s d a B a h i a e n t r e 1 8 0 8 e 1 8 1 6 abrangem,
além d o i n t e r c â m b i o i n t e r n a c i o n a l , as t r o c a s c o m o R i o G r a n d e d o S u l , a n t i g o par-
c e i r o d a p r o v í n c i a , q u e l h e f o r n e c i a s o b r e t u d o c a r n e - s e c a e f a r i n h a de m a n d i o c a .
Nesses oito a n o s , a b a l a n ç a c o m e r c i a l da B a h i a apresentou u m déficit constante,
p r i n c i p a l m e n t e n a s t r o c a s c o m a E u r o p a — c o m destaque para Portugal — e a África,
seus p r i n c i p a i s p a r c e i r o s .

TABELA 87

BALANÇA COMERCIAL DA BAHIA, 1808-1816 (EM C O N T O S D E RÉIS)

1808 1809 1810 1813 1814 1815 1816

Europa -80 -171 -771 -3.279 -3.191 -2.700 -3.566

Portugal -396 -432 1.150 477 1.270 1.606 2.113

África -478 -420 -437 -663 -1.440 -1.006 -1.410

Rio Grande do Sul 15 -455 -603 -419 -662 -68 -78

Goa 9 10 12 26 23 36 13

Total -930 -1.468 -649 -3.858 -4.000 -2.132 -2.928

Fonte: Catherine Lugar, The Merchant Community of Salvador, Bahia, 1780-1830, p. 112.

Em 1 8 0 8 , c o m a o c u p a ç ã o d o t e r r i t ó r i o p o r t u g u ê s pela F r a n ç a , o c o m é r c i o da
B a h i a c o m o restante da E u r o p a ( 7 3 5 : 0 0 0 d e réis e m e x p o r t a ç õ e s e 8 1 5 : 0 0 0 e m
i m p o r t a ç õ e s ) foi b e m m a i o r d o q u e c o m P o r t u g a l ( 8 0 : 0 0 0 d e réis e m exportações e
4 7 6 : 0 0 0 c m i m p o r t a ç õ e s ) . J á n o a n o s e g u i n t e a M e t r ó p o l e foi responsável p o r 4 4 , 5 %
das e x p o r t a ç õ e s e u r o p é i a s para a B a h i a , e n q u a n t o o valor das e x p o r t a ç õ e s baianas para
Portugal era t a m b é m q u a s e m e t a d e d o valor e x p o r t a d o para toda a E u r o p a . M a s essa
r e t o m a d a foi c u r t a : de 1 8 1 0 a 1 8 1 6 , as e x p o r t a ç õ e s portuguesas foram e m média
2 2 , 6 % das e x p o r t a ç õ e s da E u r o p a para a B a h i a . Esse d e c l í n i o c o r r o b o r a o q u e foi dito
sobre a s u b s t i t u i ç ã o dos n e g o c i a n t e s portugueses p o r estrangeiros, sobretudo ingleses.
A perda sofrida pela praça c o m e r c i a l d e Salvador c o m a partida dos portugueses
afetou o financiamento da p r o d u ç ã o agrícola, m a s n ã o reduziu as importações da
B a h i a . A l t e r o u - a s : a o passo q u e a balança c o m e r c i a l c o m os demais países europeus
passou a ser deficitária a partir de 1 8 0 8 , a Província passou a ter superávit nas trocas
LIVRO V I - O COTIDIANO DOS HOMENS QUE PRODUZIAM F TROCAVAM 515

c o m P o r t u g a l , e x c e t o e m 1 8 0 8 e 1 8 0 9 , a n o s da o c u p a ç ã o francesa. E n t r e 1 8 1 0 e 1 8 1 6 ,
as e x p o r t a ç õ e s d a B a h i a para a M e t r ó p o l e foram 7 0 , 3 % d o total e x p o r t a d o para a
E u r o p a , s.nal d o q u a n t o P o r t u g a l d e p e n d i a d o Brasil, mas t a m b é m do p o u c o interesse
das o u t r a s n a ç õ e s e u r o p é i a s pelos p r o d u t o s b a i a n o s .
A surpresa nesses d a d o s é o v o l u m e das transações c o m o R i o G r a n d e do S u l , que,
e n t r e 1 8 0 S e 1 8 1 6 , r e p r e s e n t a r a m nada m e n o s q u e 1 4 , 8 e 1 1 , 6 % d o total das expor-
t a ç õ e s c i m p o r t a ç õ e s b a i a n a s . A b a l a n ç a c o m e r c i a l b a i a n a era deficitária nesse inter-
c â m b i o , e x c e t o e m 1 8 0 8 , e m q u e h o u v e u m superávit de 1 5 : 0 0 0 de réis. Surpreende
t a m b é m s a b e r q u e , n a q u e l e i n í c i o d o s é c u l o X I X , a B a h i a ainda m a n t i n h a relações
c o m o E x t r e m o O r i e n t e , e m b o r a as trocas c o m G o a fossem insignificantes. J á o
c o m é r c i o c o m a Á f r i c a ( C o s t a da M i n a , A n g o l a , B e n g u e l a e S ã o T o m é ) era deficitário:
a i m p o r t a ç ã o de escravos c o n t i n u a v a p e s a n d o m u i t o n a balança c o m e r c i a l .

C o m r e l a ç ã o a o p e r í o d o 1 8 1 6 - 1 8 5 0 , a c a r ê n c i a de dados é c o m p l e t a . C o m o teria
e v o l u í d o a s i t u a ç ã o a p a r t i r d o i n í c i o da d é c a d a de 1 8 2 0 , c o m a balança comercial
deficitária e m a i o r e s i m p o r t a ç õ e s d o c o n j u n t o d a E u r o p a q u e de Portugal? G u e r r a ,
revoltas, p r o b l e m a s p o l í t i c o s p o r c e r t o a f e t a r a m g r a v e m e n t e as trocas comerciais, de-
s o r g a n i z a n d o a p r o d u ç ã o d e b e n s de e x p o r t a ç ã o e p e r t u r b a n d o mais ainda os termos
das t r o c a s . A c o n j u n t u r a e c o n ô m i c a estava e m depressão, c o m o indica o estudo da
e v o l u ç ã o d o s p r e ç o s dos g ê n e r o s a l i m e n t a r e s . M a s e m 1 8 4 5 h o u v e u m a retomada que
se p r o l o n g o u a t é 1 8 6 0 . 5 9

P a r a os a n o s 1 8 5 0 - 1 8 8 8 , t e m o s u m a série e l a b o r a d a pela F u n d a ç ã o de Pesquisas


da B a h i a s o b r e o v a l o r das e x p o r t a ç õ e s e i m p o r t a ç õ e s da p r o v í n c i a . 6 0
S e m dúvida útil,
ela t e m o i n c o n v e n i e n t e d e n ã o i n c l u i r dados s o b r e as q u a n t i d a d e s de mercadorias
e x p o r t a d a s e i m p o r t a d a s . A c r e s c e n t a m o s o valor das e x p o r t a ç õ e s e importações em
libras inglesas. C o m dados i n c o m p l e t o s , a série deve ser utilizada c o m precaução,
c o m o os p r ó p r i o s a u t o r e s a d v e r t e m , 6 1
mas a i n d a assim f o r n e c e u m a idéia geral da
evolução da balança comercial da Bahia.
S e g u n d o esses d a d o s , e m 3 9 anos a b a l a n ç a c o m e r c i a l da B a h i a só apresentou
superávit e m c i n c o : 1 8 5 8 - 1 8 5 9 , 1 8 6 2 - 1 8 6 3 , 1 8 6 5 - 1 8 6 6 , 1 8 6 7 - 1 8 6 8 e 1 8 7 1 - 1 8 7 2 .
O s m e l h o r e s a n o s f o r a m 1 8 5 8 - 1 8 5 9 e 1 8 6 7 - 1 8 6 8 , q u a n d o o valor das exportações
e x c e d e u , r e s p e c t i v a m e n t e , em 6 0 % e 4 5 % o das i m p o r t a ç õ e s . S ó houve dois anos de
e q u i l í b r i o c m t o d o o p e r í o d o : 1 8 6 9 - 1 8 7 0 e 1 8 7 0 - 1 8 7 1 . N o s demais, a Bahia expor-
tou cerca de 4 0 % m e n o s d o q u e i m p o r t o u .
I m p o r t a v a - s c , p o r t a n t o , mais d o que se exportava, mas a análise fica incompleta
por falta d c dados sobre o b a l a n ç o de p a g a m e n t o s , q u e provavelmente era ainda mais
desfavorável. P o r o u t r o lado, o déficit da balança comercial da Bahia — no final da
década dc 1 8 8 0 as importações chegaram a corresponder a 2/3 d o m o v i m e n t o comer-
cial — mostra a i m p o r t â n c i a que, apesar de tudo, a Província conservava c o m o centro
distribuidor de mercadorias importadas.
E n t r e 1 8 5 1 e 1 8 7 1 , o valor das exportações esteve, n o c o n j u n t o , em alta, exceto
de 1 8 5 7 a 1 8 6 1 , em que ocorreu sensível baixa. O valor m á x i m o nas exportações foi
M6 BAHIA. SÉCULO X I X

a l c a n ç a d o e m 1 8 7 1 - 1 8 7 2 : 2 2 . 5 3 1 : 9 0 6 d e réis ( 2 . 3 4 3 : 3 2 8 l i b r a s ) . A partir de e n t ã o
esse v a l o r d e c l i n o u r a p i d a m e n t e , c h e g a n d o a 1 1 . 9 4 2 : 0 7 0 d e réis ( 1 . 0 7 4 . 7 8 libras) e m
1882-1883. D e p o i s h o u v e u m a ligeira e l e v a ç ã o , q u e d u r o u a t é 1887-1888. Em
c o n t r a p a r t i d a , as i m p o r t a ç õ e s a u m e n t a v a m c o n s t a n t e m e n t e , salvo e n t r e 1857-1859,
por certo e m decorrência do c ó l e r a - m o r b o que atigiu a capital e o Recôncavo em
1 8 5 5 - 1 8 5 6 , m a s talvez t a m b é m p o r c a u s a d a i m p o r t a ç ã o m a c i ç a feita e m 1856-1857.
A l i á s , nesse c u r t o p e r í o d o , o s v a l o r e s das e x p o r r a ç õ e s e das i m p o r t a ç õ e s flutuaram da
m e s m a m a n e i r a , m a s d e p o i s s ó o v a l o r das i m p o r t a ç õ e s p a s s o u a a u m e n t a r , acelerán-
d o l e a partir de 1881-1882.

F a z e n d o f l u t u a r o s v a l o r e s das e x p o r t a ç õ e s e i m p o r t a ç õ e s e m t o r n o d a m é d i a
desses v a l o r e s p o r t o d o o p e r í o d o , e u t i l i z a n d o m é d i a s m ó v e i s p o r t r i e n i o s , os e c o n o -
m i s t a s b a i a n o s t o r n a r a m suas t e n d ê n c i a s d i v e r g e n t e s m a i s visíveis, c o m o m o s t r a m os
gráficos abaixo.

EXPORTAÇÕES BAIANAS

150-j— —
y
) /
/
t
100
/ f
s
50-

52/53 57 /58 62 /63 67 /68 72 '73 77 78 82/83 87/88

IMPORTAÇÕES BAIANAS

52/S3 57/Vi 67/f.H 72/73 77/78 82/83 87/88

Mediu móveis trienais. 100 * média do período. Fonte: Ubinnan Castro dc Araiíjo, "A Bahia no século XIX". p. 61.

O b s e r v a - s e aí q u e , a partir d o s a n o s 1 8 6 7 - 1 8 6 8 , o valor das exportações baixou


rapidamente, r e c u p e r o u - s e l i g e i r a m e n t e c m 1 8 7 2 - 1 8 7 3 , para c o n t i n u a r em queda até
1 8 8 6 - 1 8 8 7 . A curva das i m p o r t a ç õ e s revela a baixa dos anos 1 8 5 5 - 1 8 5 6 , mas mostra
nítida t e n d ê n c i a a u m a alta c o n s t a n t e . O gráfico a seguir mostra q u e a taxa de c â m b i o
apresentou notável estabilidade, c o m breve q u e d a entre 1 8 6 4 e 1 8 6 8 .
LTVRO V I - O C O T I D I A N O D O S H O M E N S Q U E PRODUZIAM E TROCAVAM 517

TAXA DE CÂMBIO

Médias móveis trienais. 100 = 1851. Fonte: Ubiratan Castro de Araújo, "A Bahia no século XIX", p. 55. '

O g r á f i c o das e x p o r t a ç õ e s sugere a d i s t i n ç ã o e n t r e dois períodos: 1 8 5 2 - 1 8 6 7 e


1 8 6 7 - 1 8 8 8 . O p r i m e i r o se c a r a c t e r i z o u por u m a alta n o valor das exportações e das
i m p o r t a ç õ e s , ao passo q u e n o s e g u n d o as e x p o r t a ç õ e s b a i x a r a m e as importações
c r e s c e r a m . C o m o e x p l i c a t essa inversão de t e n d ê n c i a n o t o c a n t e às exportações? Tentarei
r e s p o n d e r pela a n á l i s e dos d a d o s r e f e r e n t e s aos p r i n c i p a i s p r o d u t o s que a B a h i a tro-
c a v a , t a n t o c o m o e s t r a n g e i r o c o m o c o m outras p r o v í n c i a s .

PRINCIPAIS PRODUTOS DE EXPORTAÇÃO

Q u e p a r t e t i n h a m os vários p r o d u t o s n o c o n j u n t o das exportações da Bahia? O s bem


conhecidos — a ç ú c a r , f u m o , c a c a u , café, a l g o d ã o , d i a m a n t e s , c a r b o n a t o s , peles e
c o u r o s — c o m p u n h a m c e r c a de 9 0 % d o t o t a l .
A série só f o r n e c e i n f o r m a ç õ e s c o m p l e t a s s o b r e o p e r í o d o de 1 8 5 0 - 1 8 5 1 a 1 8 7 5 -
1876. P a r a os a n o s s e g u i n t e s , a t é 1 8 8 8 - 1 8 8 9 , os dados escasseiam. A série mais
c o m p l e t a é a relativa ao c a c a u . P e r c e n t u a l m e n t e , o a ç ú c a r p r e d o m i n a . N o início desse
p e r í o d o , representava mais de 2/3 das e x p o r t a ç õ e s baianas, mas nos anos seguintes
d e c l i n o u , c h e g a n d o a n ã o c o m p o r mais de 1/4 das e x p o r t a ç õ e s o u m e s m o 1/5, com
ligeira r e c u p e r a ç ã o em 1 8 8 0 - 1 8 8 1 , q u a n d o representou u m p o u c o m a i s que 2/5.
A partir de 1 8 7 0 - 1 8 7 1 , o d e c l í n i o da participação d o açúcar nas exportações se
a c e l e r o u . E m parte, isto p o d e ser a t r i b u í d o à brusca q u e d a da d e m a n d a , resultante^da
depressão e c o n ô m i c a vivida pela E u r o p a a partir de 1 8 7 3 . Aliás entre 1871 e 1 8 8 9 ,
o preço do a ç ú c a r só em 1 8 7 7 atingiu o índice d o a n o 1 8 5 2 . Problemas de produçao
t a m b é m o c a s i o n a r a m essa q u e d a das exportações de açúcar. A partir de 1 8 7 2 - 1 8 / ^ a
c a n a - d e - a ç ú c a r foi atingida por u m a praga e a produtividade c a i u . Alem disto, havia
agudos p r o b l e m a s de m ã o - d e - o b r a em face da interrupção d o tráfico de escravos, da
sua baixa taxa de r e p r o d u ç ã o e, s o b r e t u d o , da sua venda maciça para a região C e n -
tro-Sul do país. por razões ainda mal elucidadas (talvez pelo a u m e n t o da oferta inter-
BAHIA, S É C U L O X I X
MS

nacional de açúcar, c o m o c o n s e q ü e n t e d c s e s t í m u l o aos produtores b a i a n o s ) . U m a


baixa da produção pode ter d e t e r m i n a d o a perda d e m e r c a d o s externos, q u e teriam
p a s s a d o a c o m p r a r d e o u t r a s p r a ç a s . S e j a c o m o f o r , esses d a d o s s e r i a i s c o n f i r m a m a
historiografia tradicional da B a h i a , q u e situa na d é c a d a d e 1 8 7 0 o i n í c i o d a grande
crise d a e c o n o m i a a ç u c a r e i r a . 6

T A B E L A 8 8

PRINCIPAIS PRODUTOS EXPORTADOS PELA BAHIA, 1 8 5 0 - 1 8 8 9


(% DA PAUTA DE EXPORTAÇÕES)

AÇÚCAR TABACO CACAU CAFÉ ALGODÃO DIAMANTES COUROS SUBTOTAL


ANOS

1S50-1851 69,8 12,6 0,5 4,6 3,3 3,6


- 94,4

1855-1856 49,4 12,7 0,9 8,0 2,0 15,2 5,6 93,8

1860-1861 32,0 18,3 2,4 12,0 0,1 15,0 8,9 88,7

1865-1866 36,5 20,4 1,1 9,0 20,0 7,2 1,6 95,8

1870-1871 38,8 28,6 2,0 5,6 9,2 5,1 9,1 98,4

1875-1876 20,4 40,7 2,4 23,3 0,3 2,8 2,9 92,8

1880-1881 42,3 22,4 5,6 15,4


- - - -
1885-1886
- - 14,9 - - - - -
1888-1889 - - 4,7
- - - - -
Fonte: A inserção da Bahia na evolução nacional, p. 8 5 .

T A B E L A 8 9

PREÇOS POR TONELADA* DE PRODUTOS DE EXPORTAÇÃO


(MÉDIAS MÓVEIS TRIENAIS, 1 8 5 2 = 1 0 0 )

ANOS AÇÚCAR ALGODÃO CACAU CAFÉ TABACO ÍNDICE GERAL**

1841 102 107 115 92 92 -


1845 104 81 112 67 87

1850 97 103 97 96 105 -


1855 141 110 136
189 106 137
1860 117 147 255 141 195 158

1865 106 276 265 143 133 137


1870 107 153 195 108 175 140
1875 96 109 326 205 164 143

-
1880 93 96 303 186 130
1885 60 100 316 118 117 -
1889 92 122 234 190 138 —

r^artfdpSo^ni ^ n l c ^ ^ ' ^ ° Í 0 >


° h Ú á
° p e U
P o n d c r a
Ç â o d o s í n d i c e s d c c a d a
P^iato, segundo

Fonte: U b i r a u n Castro de Araújo, " A Bahia no século X I X " , p . 5 8 .


LIVRO V I - O C O T I D I A N O DOS H O M E N S Q U E PRODUZIAM E TROCAVAM 519

S e g u n d o p r o d u t o m a i s i m p o r t a n t e d a p a u t a de e x p o r t a ç õ e s b a i a n a , o f u m o teve
u m c o m p o r t a m e n t o i n v e r s o ao d o a ç ú c a r : e n t r e 1 8 5 0 e 1 8 8 1 , n ã o só sua p a r t i c i p a ç ã o
nas e x p o r t a ç õ e s b a i a n a s c r e s c e u c o n s t a n t e m e n t e — embora com flutuações bastante
i r r e g u l a r e s — , c o m o seu p r e ç o a u m e n t o u , s ó s o f r e n d o u m a q u e d a forte e m 1881,
q u a n d o c h e g o u a 7 9 e m r e l a ç ã o ao í n d i c e - b a s e c e m , de 1 8 5 2 .

N o m o m e n t o m a i s d e s f a v o r á v e l ( 1 8 6 0 - 1 8 6 1 ) o a ç ú c a r e o f u m o ainda c o m p u -
n h a m m a i s de m e t a d e das e x p o r t a ç õ e s d a B a h i a . S u a p a r t i c i p a ç ã o n o total das ex-
p o r t a ç õ e s , q u e era de 4/5 n o i n í c i o d o p e r í o d o ( 1 8 5 0 - 1 8 5 1 ) , a i n d a chegava a 2/3
e m 1 8 8 0 - 1 8 8 1 , a p e s a r d a e n t r a d a e m c e n a d o c a c a u , a i n d a t í m i d a , e d o café, mais
forte.

O r a , e n q u a n t o a d e m a n d a d o a ç ú c a r n o e x t e r i o r se r e s t r i n g i a , a d o café a u m e n -
tava. A q u e d a b r u t a l ( p a r a 1/10) d e s u a p a r t i c i p a ç ã o nas e x p o r t a ç õ e s e m 1878-1879,
q u a n d o n o s d o i s a n o s a n t e r i o r e s r e p r e s e n t a r a q u a s e 1/5, s ó p o d e ser explicada p o r u m a
q u e d a d a p r o d u ç ã o o u p o r p r o b l e m a s d e t r a n s p o r t e , j á q u e e r a c u l t i v a d o e m regiões
d i s t a n t e s d a c a p i t a l . T a n t o m a i s q u e , n o a n o s e g u i n t e , v o l t o u a r e p r e s e n t a r 1/5 das
e x p o r t a ç õ e s . F a l t a m - m e d a d o s p a r a a c o m p a n h a r sua e v o l u ç ã o p o s t e r i o r .

A c o n s t a n t e p r o g r e s s ã o das e x p o r t a ç õ e s de c a c a u i n d i c a q u e a p r o d u ç ã o avançava
de m a n e i r a r e g u l a r , e m b o r a s ó a p ó s 1 8 8 3 - 1 8 8 4 t e n h a s o f r i d o e x p a n s ã o significativa e
a c e l e r a d a . A l i á s , o s p r e ç o s d o c a f é e d o c a c a u a p r e s e n t a v a m t e n d ê n c i a geral de alta, o
q u e i n d i c a u m a d e m a n d a e x t e r n a estável.
O a l g o d ã o e o s d i a m a n t e s t i v e r a m e v o l u ç õ e s b a s t a n t e s e m e l h a n t e s , c o m altas m a i s
notáveis para o p r i m e i r o n o s a n o s c o n s e c u t i v o s à G u e r r a de S e c e s s ã o ( 1 8 6 1 - 1 8 6 5 ) nos
E s t a d o s U n i d o s , A l i á s , c o m p a r a n d o a p a r t i c i p a ç ã o nas e x p o r t a ç õ e s e o í n d i c e d o preço
d o a l g o d ã o e n t r e 1 8 6 0 - 1 8 6 1 e 1 8 6 7 - 1 8 6 8 , o b s e r v a - s e q u e a p r i m e i r a ( q u e passa de
0,1 a 2 0 , 6 % ) a c o m p a n h o u a alta d o s e g u n d o (de 1 5 7 e m 1 8 6 0 para 1 7 5 em 1 8 6 8 ) .
N ã o t e n h o d a d o s q u e i n d i q u e m se a p r o d u ç ã o de a l g o d ã o c r e s c e u nesse p e r í o d o . E m
c o n t r a p a r t i d a , é de t o d o provável q u e o s c o m e r c i a n t e s b a i a n o s , d i a n t e dessa c o n s i d e -
rável alta dos p r e ç o s , t e n h a m i d o e m b u s c a d o p r o d u t o n o i n t e r i o r , pois o custo do
transporte poderia ser c o m p e n s a d o . A q u e d a da p a r t i c i p a ç ã o d o p r o d u t o nas exporta-
ções após 1 8 6 8 - 1 8 6 9 , q u a n d o os preços c a í r a m , c o r r o b o r a a hipótese.
Q u a n t o aos d i a m a n t e s , a despeito das esperanças q u e haviam despertado na déca-
da dc 1 8 4 0 , n u n c a passaram de 1 5 % do c o n j u n t o das e x p o r t a ç õ e s e n t r e 1 8 5 0 - 1 8 5 1
c 1 8 7 7 - 1 8 7 8 . N a o há dados sobre períodos posteriores. As peles e os couros mantive-
ram uma presença bastante regular n o c o n j u n t o das exportações, mas n u n c a atingiram
níveis significativos, apesar d o papel da pecuária tanto na Bahia c o m o nas províncias
vizinhas c o m q u e c o m e r c i a v a .

O declínio d o açúcar nas exportações baianas entre 1 8 5 0 e 1 8 8 1 (de 6 1 . 9 5 1


toneladas para 4 7 . 0 5 5 ) não foi a c o m p a n h a d o , p o r t a n t o , de uma diversificação da
pauta dc exportações. N e m o cacau ( 2 9 9 ton em 1 8 5 0 - 1 8 5 1 e 6 . 7 6 5 ton em 1 8 8 0 -
1 8 8 1 ) , o café ( 1 . 8 8 4 ton cm 1 8 5 0 - 1 8 5 1 e 6 . 7 6 5 ton em 1 8 8 0 - 1 8 8 1 ) e o f u m o ( 6 . 1 8 4
ton em 1 8 5 0 - 1 8 5 1 e 1 2 . 0 1 8 ton em 1 8 8 0 - 1 8 8 1 ) conseguiram destroná-lo. N o en-
520 BAHIA, S É C U L O X I X

TAB ELA 9 0

E X P O R T A Ç Õ E S BRASILEIRAS (%)

INGLATERRA* ESTADOS UNIDOS FRANÇA* PRATA CIDADES HANSEATICAS


ANOS OUTROS

1852-1853 29,0 31,5 5,9 1.4 4,5 27,7

1855-1856 30,7 32,2 6,5 5,2 5,3 20,1

1860-1861 38,4 32,5 11,2 3,2 3,8 10,9

1865-1866 44,2 19,1 12,2 4,8 2,7 17,1

1867-1868 29,8 21,5 11,2 6,2 2,8 28,1

(*) Inclui possessões.


Fonte: A inserção da Bahia na evolução nacional.

T A B E L A 91

EXPORTAÇÕES DA BAHIA PARA PAÍSES ESTRANGEIROS (%)

ANOS INGLATERRA* ESTADOS UNIDOS FRANÇA* PRATA CIDADES HANSEATICAS OUTROS

1852-1853 - 46 5 5 1 9 34

1855-1856 42 7 6 4 13 28

1860-1861 52 8 2 1 18 19

1865-1866 59 3 13 3 13 10

1867-1868 60 2 12 3 13 10

(*) Inclui possessões.


Fonte: A inserção da Bahia na evolução nacional.

t a n t o , e m 1 8 8 0 — 1 8 8 1 a B a h i a e x p o r t a v a s e t e vezes m a i s c a c a u , três vezes e m e i a mais


café e q u a s e o d o b r o d e a ç ú c a r q u e e m 1 8 5 0 - 1 8 5 1 . O b s e r v a - s e , p o r o u t r o l a d o , q u e
f o r a m o s n o v o s p r o d u t o s — c a c a u e c a f é — q u e m a i s g a n h a r a m i m p o r t â n c i a relativa
nas e x p o r t a ç õ e s , e isto n u m a p r o g r e s s ã o m u i t o r e g u l a r . O a ç ú c a r e a t é o f u m o sofreram
oscilações b e m mais acentuadas, o primeiro após 1 8 7 0 e o segundo antes.
F u m o , café e c a c a u e r a m c u l t i v a d o s p o r m ã o - d e - o b r a livre, e m geral familiar,
n ã o assalariada; j á o a ç ú c a r d e p e n d i a e x c l u s i v a m e n t e d a m ã o - d e - o b r a escrava. A pro-
gressão regular d o s v o l u m e s e x p o r t a d o s d e c a f é e c a c a u (e, a p ó s 1 8 6 7 - 1 8 6 8 , d e f u m o ) ,
m o s t r a q u e esses p r o d u t o s t i n h a m b o a p e n e t r a ç ã o n o e x t e r i o r . P o r q u e , e n t ã o , os
senhores de e n g e n h o n ã o s u b s t i t u í a m o a ç ú c a r p o r eles, q u a n d o as c o n d i ç õ e s c l i m á t i -
cas c pedológicas d o R e c ô n c a v o p e m i t i a m s e u c u l t i v o , p e l o m e n o s e m terras q u e n ã o
fossem d e massapé?
O r a , q u a n d o se d i s c u t i r a m n o s a n o s 1 8 5 0 os p r o b l e m a s da c o m e r c i a l i z a ç ã o d o
açúcar, jamais se c o g i t o u d e diversificar a p r o d u ç ã o d o R e c ô n c a v o . O q u e se defendia
(sem jamais tentar pôr c m prática, depois) era a m e c a n i z a ç ã o , a f o r m a ç ã o d e e n g e n h e i -
ros a g r ô n o m o s e de operários especializados, e a t é a s u b s t i t u i ç ã o da m ã o - d e - o b r a
escrava p o r imigrantes a s s a l a r i a d o s . 63
A prevalência de idéias antigas e o m e d o da
mudança pareciam paralisar q u a l q u e r p r o j e t o .
J ^ o ^OCormi^oDosHo^s Q U E PRODUZIAM E TROCAVAM 521

M a s h a o u t r o s a s p e c t o s a c o n s i d e r a r , l i g a d o s t a n t o à e x t e n s ã o e à q u a l i d a d e das
t e r r a s c o m o à f o r m a d a p r o p r i e d a d e . C e r t o s s e n h o r e s de e n g e n h o e x p l o r a v a m u m a só
p r o p r i e d a d e : se a t e r r a f o s s e m a s s a p é , e r a i m p r ó p r i a p a r a a c u l t u r a d o c a f é e d o c a c a u ;
p o r v e z e s , a e x t e n s ã o d a f a z e n d a n ã o p e r m i t i a e x p e r i m e n t a r as n o v a s c u l t u r a s j u n t o
c o m a p r o d u ç ã o da c a n a - d e - a ç ú c a r . A d e m a i s , o ú n i c o crédito disponível era o forne-
c i d o p e l o s n e g o c i a n t e s , q u e d i f i c i l m e n t e e s p e r a r i a m o s três a c i n c o a n o s necessários
p a r a q u e u m a r b u s t o d e c a c a u o u d e c a f é c o m e c e m a p r o d u z i r . O u t r o s s e n h o r e s de
e n g e n h o t i n h a m v á r i a s p r o p r i e d a d e s , m a s e s t a s e r a m p o s s e c o l e t i v a de d i f e r e n t e s ra-
m o s de u m a m e s m a f a m í l i a e o n ú m e r o de co-proprietários n ã o facilitava a t o m a d a
d e d e c i s õ e s d e v u l t o . A l é m d i s t o , as g r a n d e s u n i d a d e s p r o d u z i a m a c u s t o s m e n o r e s e
c o m m a i o r r e n t a b i l i d a d e , m e s m o q u e os lucros fossem repartidos. M a s o que atuava
c o m m a i s f o r ç a s o b r e t o d o s e r a , p o r u m l a d o , a c r e n ç a d e q u e o R e c ô n c a v o s ó se
p r e s t a v a à c u l t u r a d a c a n a - d e - a ç ú c a r e, p o r o u t r o , a c o n v i c ç ã o d e q u e a m ã o - d e - o b r a
a s s a l a r i a d a , s o b r e t u d o e u r o p é i a , l o g o c o n q u i s t a r i a a p o s s e d a t e r r a , p o r f o r ç a de s u a
t e n a c i d a d e e b o a o r g a n i z a ç ã o n o t r a b a l h o . O r a , era nessa posse q u e residiam o poder
e o p r e s t í g i o d e s s a c a t e g o r i a . O s n e g o c i a n t e s , g r a ç a s às suas p r ó p r i a s l i m i t a ç õ e s , r e f o r -
ç a v a m essa i n é r c i a e a s s i m se c o n t i n u a v a a p l a n t a r c a n a , a p e n a s c a n a , s e m c o n s i d e r a r
alternativas.

EXPORTAÇÕES PARA O EXTERIOR

A série d e q u e d i s p o n h o , e m b o r a l i m i t a d a a dezesseis a n o s , d e 1 8 5 2 - 1 8 5 3 a 1 8 6 7 -
1 8 6 8 , t e m a v a n t a g e m d e p e r m i t i r c o m p a r a r as e x p o r t a ç õ e s d o B r a s i l e as d a B a h i a .
Entre 1 8 5 2 - 1 8 5 3 e 1 8 5 5 - 1 8 5 6 , 2/5 d a s e x p o r t a ç õ e s d a B a h i a f o r a m para a G r ã -
B r e t a n h a e suas p o s s e s s õ e s . A p ó s 1 8 5 7 - 1 8 5 8 , m a i s d e m e t a d e , às vezes q u a s e 6 0 % ,
das e x p o r t a ç õ e s d a P r o v í n c i a t i v e r a m o m e s m o d e s t i n o . A B a h i a vivia, pois, s o b
forte d e p e n d ê n c i a d o c o m é r c i o i n g l ê s . C o m o e s t e t i n h a p o u c a n e c e s s i d a d e d e a ç ú -
c a r , s e n d o s u p r i d o p o r suas c o l ô n i a s , n ã o e s p a n t a q u e o a ç ú c a r b a i a n o tivesse p r o -
b l e m a s de m e r c a d o . J á nas e x p o r t a ç õ e s de t o d o o B r a s i l , a p a r c e l a d e s t i n a d a à G r ã -
B r e t a n h a ia de 1/3 a 2 / 5 , o q u e s u g e r e q u e as o u t r a s p r a ç a s c o m e r c i a i s d o país
dependiam m e n o s da Inglaterra q u e a de Salvador.
As e x p o r t a ç õ e s d a B a h i a para os E s t a d o s U n i d o s nesse p e r í o d o foram m e d í o c r e s ,
n u n c a m a i s q u e 8 % d o v a l o r e x p o r t a d o , a o passo q u e o Brasil destinava a esse país, em
média, 1/4 das suas e x p o r t a ç õ e s . O s níveis mais b a i x o s , p o r volta de 1 6 , 6 % , c o i n c i d i -
ram c o m a G u e r r a d e S e c e s s ã o , q u a n d o a c o m p r a d e p r o d u t o s primários brasileiros
deve ter s i d o s u b s t i t u í d a p o r i m p o r t a ç õ e s de guerra e talvez t e n h a o c o r r i d o u m a baixa
m o m e n t â n e a d a d e m a n d a . E m 1 8 6 5 - 1 8 6 6 as e x p o r t a ç õ e s d o Brasil para os Estados
Unidos já chegavam a 1 9 , 1 % do total.
As e x p o r t a ç õ e s d a B a h i a para a F r a n ç a assemelharam-se m u i t o às exportações
globais d o Brasil. E n t r e 1 8 5 6 c 1 8 6 0 , p o r é m , seu valor caiu c o n s i d e r a v e l m e n t e , b a i -
BAHIA, S É C U L O XIX
S22

x a n d o de 6 a 2 % d o t o t a l , o q u e n ã o o c o r r e u n o r e s t a n t e d o país. M a i s u m a c o n s e -
q ü ê n c i a d o c ó l e r a - m o r b o , q u e deve ter a f a s t a d o m u i t o s n a v i o s d o p o r t o de Salvador.
O s c o m a n d a n t e s franceses p a r e c e m t e r r e c e b i d o o r d e n s m a i s severas q u e o s ingleses o u
os norte-americanos.
As e x p o r t a ç õ e s d a B a h i a d i f e r i r a m das d o c o n j u n t o d o B r a s i l t a m b é m n o t o c a n -
te às c i d a d e s h a n s e á t i c a s , s o b r e t u d o p o r c a u s a d o f u m o . E n q u a n t o o país enviava
para elas, e m m é d i a , 4 % d o v a l o r t o t a l d e suas e x p o r t a ç õ e s , a B a h i a r e m e t i a até
1 2 % . E m contrapartida, a Província parece ter participado p o u c o d o c o m é r c i o com
os países d o R i o d a P r a t a , c o m q u e as o u t r a s p r a ç a s c o m e r c i a i s m a n t i n h a m relações
c o n s t a n t e s , m a n t e n d o - s e o v a l o r das e x p o r t a ç õ e s n o t a v e l m e n t e estável. A e x c e ç ã o
foi 1 8 6 6 - 1 8 6 7 , q u a n d o o v a l o r das e x p o r t a ç õ e s b a i a n a s p a r a esses países c h e g o u a
1 1 % do total.

E m r e s u m o , t a n t o o B r a s i l c o m o a B a h i a t i n h a m a G r ã - B r e t a n h a e suas possessões
c o m o seu m a i o r i m p o r t a d o r , o q u e m a i s u m a v e z c o n f i r m a a s u p r e m a c i a desse i m p é r i o
nas relações c o m e r c i a i s d o B r a s i l e de suas p r o v í n c i a s . P o r o u t r o l a d o , a B a h i a tinha
relações c o m e r c i a i s m a i s i n t e n s a s c o m as c i d a d e s h a n s e á t i c a s d o q u e c o m a F r a n ç a , os
E s t a d o s U n i d o s e o s países d o R i o d a P r a t a , e n q u a n t o , p a r a o c o n j u n t o d o B r a s i l , eram
os E s t a d o s U n i d o s q u e v i n h a m e m s e g u n d o l u g a r , s e g u i d o s pela F r a n ç a , os países do
R i o d a P r a t a e só d e p o i s as c i d a d e s h a n s e á t i c a s .

O COMÉRCIO DA BAHIA COM O ESTRANGEIRO E AS OUTRAS PROVÍNCIAS

A t a b e l a 9 2 t e m a v a n t a g e m d e a b r a n g e r o p e r í o d o d e 1 8 5 0 - 1 8 8 7 e f o r n e c e r dados
referentes à p a r t i c i p a ç ã o d a B a h i a t a n t o n o c o m é r c i o i n t e r n a c i o n a l c o m o n o c o m é r c i o
nacional, que no m o m e n t o m e interessa p a r t i c u l a r m e n t e .
R e t o m o as relações c o m e r c i a i s d a B a h i a c o m o e s t r a n g e i r o a p e n a s para assina-
lar mais u m a vez a p e r d a de i m p o r t â n c i a d a p r a ç a d a B a h i a c o m o e x p o r t a d o r a . E n -
q u a n t o e m 1 8 5 0 - 1 8 5 1 a B a h i a era r e s p o n s á v e l p o r 1 4 , 5 % d o v a l o r das e x p o r t a ç õ e s do
Brasil, e m 1 8 8 6 - 1 8 8 7 essa p a r t i c i p a ç ã o se l i m i t o u a 4 , 1 % . E s s a q u e d a teve início nos
anos 1 8 5 9 - 1 8 6 0 , m a s se a c e l e r o u e m 1 8 7 2 - 1 8 7 3 , q u a n d o c a i u a b a i x o de 1 0 % , nível
q u e não ultrapassou mais até o fim d o p e r í o d o . C o m b i n a d o a o a u m e n t o das i m p o r -
tações, isso só c o n f i r m a a d e t e r i o r a ç ã o dos t e r m o s d o i n t e r c â m b i o da B a h i a c o m o
exterior. M a s , s o b r e t u d o a p a r t i r de 1 8 7 3 - 1 8 7 4 , até as i m p o r t a ç õ e s da B a h i a declina-
ram. C o m e ç a v a ela a perder seu papel de r e d i s t r i b u i d o r a d e m e r c a d o r i a s ? As i m p o r t a -
ções se distribuíam m e l h o r pelo c o n j u n t o d o país? O u o m e r c a d o b a i a n o t i n h a menores
possibilidades de absorver os p r o d u t o s i m p o r t a d o s ?
Q u a n t o à balança do c o m é r c i o da B a h i a c o m as outras províncias, t e n h o dados
sobre 2 8 anos, ao l o n g o d o p e r í o d o 1 8 5 0 - 1 8 5 1 a 1 8 8 6 - 1 8 8 7 . N e l e s , surpreende
constatar q u e h o u v e q u i n z e anos de déficits e treze de superávits. O i n í c i o do período
( 1 8 5 0 - 1 8 6 2 ) foi de déficit c o n s t a n t e . M a s n o ú l t i m o d e c ê n i o a situação se inverteu:
V I - O COTIDIANO DOS HOMENS QUE PRODUZIAM E TROCAVAM 523

TABELA 92
EXPORTAÇÕES E IMPORTAÇÕES DA BAHIA COMO PERCENTAGEM DOS TOTAIS BRASILEIROS

ANOS PARA PAISES ESTRANGEIROS PARA OUTRAS PROVÍNCIAS

EXPORTAÇÕES IMPORTAÇÕES EXPORTAÇÕES IMPORTAÇÕES

1850-1851 14,5 - - -
1855-1856 13.6 14,7 - -
1860-1861 6,8 11,4
- -
1865-1866 12,2 12,8
-
1870-1871 10,9 14,4 8,1 9,5

1875-1876 8,4 12,0 4,4 5,0

1880-1881 6,6 11,6 20,3 7,6

1886-1887 4,1 15,9 13,3 5,4

Fonre: Adaptado dc A inserção da Bahia na evt lução nacional, p. 35, 40, 45 e 50 (Anexo estatístico).

a B a h i a a u m e n t o u suas e x p o r t a ç õ e s para as demais províncias e passou a importar


m e n o s . O s valores das e x p o r t a ç õ e s chegavam a ser muitas vezes superiores aos das
i m p o r t a ç õ e s . Esses superávits n o c o m é r c i o interprovincial compensavam então o dé-
ficit d o c o m é r c i o c o m o estrangeiro. Q u e m g a n h o u , s o b r e t u d o a partir de 1 8 6 9 - 1 8 7 0 ,
foram os c o m e r c i a n t e locais, que finalmente c o n s e g u i a m se safar, naquela segunda
m e t a d e d o s é c u l o X I X e m q u e mentalidades e estruturas pareciam combinadas para
tornar o j o g o da vida difícil para os b a i a n o s .
L I V R O VII

O DINHEIRO DOS BAIANOS


CAPÍTULO 28

O M E R C A D O DE TRABALHO

Falar de m e r c a d o d e t r a b a l h o ' n u m a e c o n o m i a escravocrata é sem dúvida correr u m


r i s c o , u m a vez q u e e s t a é u m a t e r m i n o l o g i a a t u a l , o u , p e l o m e n o s , a d a p t a d a de s o c i e -
d a d e s livres d o s é c u l o X I X . P e n s o , p o r é m , q u e v a l e a p e n a c o r r e r t a l r i s c o , p o i s as
h i p ó t e s e s q u e isso p e r m i t i r á l e v a n t a r s ã o s u f i c i e n t e m e n t e r i c a s p a r a j u s t i f i c a r u m a p a -
r e n t e a n a c r o n i s m o . A i n d a q u e p o r vezes n ã o p a s s e m d e s u g e s t õ e s , essas h i p ó t e s e s são
n o v a s , p o i s n e s s e d o m í n i o a h i s t o r i o g r a f i a b a i a n a é p e q u e n a . T o d a s as m i n h a s i n f o r -
mações v ê m de fontes indiretas.

C o m e x c e ç ã o das e s c r a v i s t a s , as r e l a ç õ e s d e t r a b a l h o d o s s é c u l o s passados p o u c o
i n t e r e s s a r a m a o s h i s t o r i a d o r e s b r a s i l e i r o s . Q u a n d o a b o r d a d o s , os p r o b l e m a s de m ã o -
d e - o b r a f o r a m t r a t a d o s d o p o n t o d e v i s t a d a o f e r t a i n t e r n a , e m f u n ç ã o das u n i d a d e s
q u e p r o d u z i a m m e r c a d o r i a s de e x p o r t a ç ã o . 1
A p ó s o fim d o t r á f i c o , o s p r o d u t o r e s
de a ç ú c a r se q u e i x a v a m a m a r g a m e n t e d a f a l t a d e m ã o - d e - o b r a . A s q u e i x a s eram u m a
c o n s t a n t e t a n t o n a s m a n i f e s t a ç õ e s p ú b l i c a s q u e f a z i a m através d o I n s t i t u t o I m p e r i a l
d e A g r i c u l t u r a d a B a h i a , f u n d a d o e m 1 8 5 9 , c o m o e m suas ' r e p r e s e n t a ç õ e s ' aos p r e -
sidentes da P r o v í n c i a . T a m b é m estes, a l i á s , e m seus r e l a t ó r i o s , r e p e t i a m a n o após
a n o a m e s m a r e c l a m a ç ã o , q u e se r e s u m i a n u m a c u r t a frase: " F a l t a m b r a ç o s para a
l a v o u r a . " C o m o o s p r ó p r i o s p r o d u t o r e s d e a ç ú c a r , o g o v e r n o p r o v i n c i a l n ã o era c a -
paz d e o p t a r e n t r e d i f e r e n t e s p r o j e t o s q u e p r o p u n h a m a i m p o r t a ç ã o de m ã o - d e - o b r a
c h i n e s a e e u r o p é i a . As p o u c a s e x p e r i ê n c i a s feitas c o m estes ú l t i m o s foram fiascos
c o m p l e t o s , q u e a r r u i n a r a m o s p r o d u t o r e s . O c a s o m a i s t í p i c o p a r e c e ter sido o de
T o m a z Pedreira G e r e m o a b o , rico senhor de engenho do Recôncavo que, em 1858-
1859, financiou a v i n d a d e 1 0 5 c o l o n o s d e P o r t u g a l , t e n d o e m vista a i n t r o d u ç ã o
de u m s i s t e m a de a r r e n d a m e n t o a m e i a s e m sua p r o p r i e d a d e . A e x p e r i ê n c i a nao
d u r o u um a n o , pois só dois colonos permaneceram n o e n g e n h o , c o m os demais
o p t a n d o p o r r e t o r n a r , n o p r ó p r i o R e c ô n c a v o o u e m S a l v a d o r , aos seus ofícios n o
c o m é r c i o o u n o a r t e s a n a t o . G e r e m o a b o p e r d e u assim u m a s o m a e q u i v a l e n t e ao p r e -
ç o de u m b o m e n g e n h o na r e g i ã o . 2

527
BAHIA, S É C U L O XIX

A l é m d e c o m p l e x o , o p r o b l e m a d a m ã o - d e - o b r a era p e r m e a d o d e a m b i g ü i d a d e s .
E n t r e t o d a s as a t i v i d a d e s r u r a i s , a ú n i c a q u e d e m a n d a v a b r a ç o s era a lavoura. E
m e s m o nesse d o m í n i o , s ó h á r e f e r ê n c i a à c a n a - d e - a ç ú c a r , c o m o se n ã o existissem
o u t r a s c u l t u r a s . A t é c e r t o p o n t o i s t o se j u s t i f i c a : a c u l t u r a d a c a n a , p o r sua natureza e
d i m e n s õ e s , exigia u m c o n t i n g e n t e d e m ã o - d e - o b r a m u i t o m a i o r q u e as de f u m o , café
o u c a c a u . M a s , se o f u m o e o c a c a u e r a m e m geral p r o d u z i d o s e m escala f a m i l i a r e
e m terras r e c é m - d e s b r a v a d a s , 3
a p r o d u ç ã o d o café teria p o d i d o ocupar extensões c o m -
paráveis às q u e t i n h a e m r e g i õ e s m a i s c e n t r a i s d o B r a s i l . D e f a t o , p o u c o sabemos
s o b r e as d i m e n s õ e s das p r o p r i e d a d e s c a f e e i r a s b a i a n a s n o s é c u l o X I X . O s i l ê n c i o das
f o n t e s a esse r e s p e i t o s u g e r e q u e a c u l t u r a d o c a f é t a m b é m e r a f e i t a e m escala f a m i -
liar, o q u e e x p l i c a r i a a p e q u e n a e n v e r g a d u r a d a p r o d u ç ã o e o s i l ê n c i o s o b r e a q u e s t ã o
da m ã o - d e - o b r a .

F u m o , café e c a c a u e r a m pois p l a n t a d o s e m unidades familiares, de pequenas


dimensões, q u e só s a z o n a l m e n t e d e m a n d a v a m u m a m ã o - d e - o b r a c o m p l e m e n t a r . Esta
era f a c i l m e n t e r e c r u t a d a , p o i s , n a s r e g i õ e s l o n g í n q u a s d a P r o v í n c i a , u m a p o p u l a ç ã o
f l u t u a n t e , l i v r e e n ã o p r o p r i e t á r i a d e t e r r a s f o r m a v a a v a s t a c a t e g o r i a d o s 'agregados
r u r a i s o u ' m o r a d o r e s ' . E r a m f a m í l i a s i n t e i r a s q u e p a s s a v a m d e u m a p r o p r i e d a d e para
5

o u t r a , o f e r e c e n d o seus s e r v i ç o s p o r t e m p o g e r a l m e n t e i n d e t e r m i n a d o , e m t r o c a de u m
teto e de u m p e d a ç o de terra q u e lhes garantisse a subsistência. E m condições ótimas,
esses t r a b a l h a d o r e s a g r í c o l a s c o n s e g u i a m a t é p r o d u z i r a l g u n s e x c e d e n t e s e v e n d ê - l o s
n o s m e r c a d o s l o c a i s . A l g u n s , b a f e j a d o s p e l a s o r t e , a p ó s a l g u n s a n o s de o c u p a ç ã o efe-
tiva t o r n a v a m - s e p r o p r i e t á r i o s d e t e r r a s d e v o l u t a s , e m r e g i õ e s e m q u e n ã o existiam
escrituras. A figura d o ' p o s s e i r o ' é t ã o a n t i g a c o m o a d o ' m o r a d o r ' e d o 'agregado
rural'. Apesar de a Lei d e T e r r a s de 1 8 5 0 n ã o r e c o n h e c e r q u e o desbravamento ou a
s i m p l e s p o s s e g e r a s s e m d i r e i t o s d e f i n i t i v o s , essas — e n ã o a c o m p r a , c o m o d e t e r m i n a -
v a a lei — f o r a m as f o r m a s m a i s c o m u n s d e f o r m a ç ã o das p r o p r i e d a d e s rurais n o
Brasil. 4
P o r o u t r o l a d o , a f r a g i l i d a d e d a r e d e u r b a n a , as p o u c a s o p o r t u n i d a d e s q u e
o f e r e c i a m o s v i l a r e j o s d i s s e m i n a d o s p o r u m v a s t o t e r r i t ó r i o e a falta d e transportes
fixavam essa p o p u l a ç ã o n o c a m p o . S ó g r a n d e s c a t á s t r o f e s , c o m o secas p r o l o n g a d a s o u
chuvas diluvianas, c o n s e g u i a m e m p u r r á - l a para o litoral. C o m o já observei, porém, no
s é c u l o X I X esses d e s l o c a m e n t o s f o r a m raros e d e c u r t a d u r a ç ã o : passada a crise, os
'flagelados' v o l t a v a m p a r a c a s a . A s a t i v i d a d e s a g r í c o l a s q u e se d e s e n v o l v i a m n o inte-
5

rior da P r o v í n c i a d i s p u n h a m p o r t a n t o d e m ã o - d e - o b r a s u f i c i e n t e . Aliás, os poderes


p ú b l i c o s da é p o c a c o g i t a v a m de d e s l o c á - l a p a r a o l i t o r a l , para q u e trabalhasse na
p r o d u ç ã o d o a ç ú c a r , o q u e sugere q u e era a t é a b u n d a n t e . 6

Seria a s i t u a ç ã o n o R e c ô n c a v o m u i t o d i f e r e n t e ? E m 1 8 7 2 , suas duas sub-regiões


( R e c ô n c a v o e R e c ô n c a v o S u l ) t i n h a m u m a p o p u l a ç ã o de 3 8 5 . 5 9 9 h a b i t a n t e s . C e r c a
de 1 5 % da p o p u l a ç ã o m a s c u l i n a e 1 3 , 5 % da f e m i n i n a e r a m escravos. S e n d o m a j o r i -
tária, a p o p u l a ç ã o livre p o d i a ser útil aos p r o d u t o r e s de a ç ú c a r c o m carência de escra-
vos, mas esta é u m a a f i r m a ç ã o p u r a m e n t e teórica, p o i s faltam dados sobre c o m o a
população dessas duas sub-regiões se distribuía, seja n o t o c a n t e à c o r , seja à idade.
LIVRO VII - o DUÍHHRO nos BAIANOS

L m c o n t r a p a m d a . há d a d o s s o b r e a idade e a c o r da p o p u l a ç ã o d o c o n j u n t o da
Província A d m i t i n d o a h i p ó t e s e , m u i t o plausível, de q u e eles reflitam t a m b é m a
K t u a ç a o d o R e c ô n c a v o , c o n c l u o q u e a p o p u l a ç ã o m a s c u l i n a e c o n o m i c a m e n t e ativa
(de o n z e a s e s s e n t a a n o s ) da P r o v í n c i a era c o m p o s t a e m m é d i a por cerca de 6 5 % da
p o p u l a ç ã o m a s c u l i n a livre e 6 9 % da p o p u l a ç ã o m a s c u l i n a escrava; a f e m i n i n a reunia
6 4 , 5 % das m u l h e r e s livres e 7 0 % das escravas. P o r o u t r o lado, negros e m u l a t o s -
s u p o s t a m e n t e p e r t e n c e n t e s às c a m a d a s m e n o s favorecidas — representavam 7 1 % d a
p o p u l a ç ã o livre m a s c u l i n a e 7 4 % d a f e m i n i n a nessas regiões p r ó x i m a s de Salvador.
Alias, t o m a d o s i s o l a d a m e n t e , h o m e n s e m u l h e r e s negros p a r t i c i p a v a m c o m o m e s m o
p e r c e n t u a l ( c e r c a de 2 3 % ) n a p o p u l a ç ã o livre d o R e c ô n c a v o . H a v i a e n t ã o u m a reser-
va de m ã o - d e - o b r a q u e n ã o era u t i l i z a d a nas atividades açucareiras.
E s t a a n á l i s e , a p a r e n t e m e n t e i m p r e c i s a , é a m p l a m e n t e c o r r o b o r a d a pela d o c u m e n -
tação qualitativa da época. E m 1 8 5 7 , o presidente da Província, J o ã o Vieira Lins
C a n s a n ç ã o d e S i n i m b u , d e c l a r a v a à A s s e m b l é i a P r o v i n c i a l : " N i n g u é m ignora q u e nas
p l a n t a ç õ e s a ç u c a r e i r a s e e m suas p r o x i m i d a d e s e x i s t e m i n d i v í d u o s o u famílias pobres
q u e , n ã o p o s s u i n d o t e r r a s , nelas h a b i t a m g r a t u i t a m e n t e o u p a g a m u m aluguel insig-
n i f i c a n t e , s e g u n d o a b o a v o n t a d e d o p r o p r i e t á r i o . " A c r e s c e n t a v a q u e essas famílias,
m e s m o q u a n d o , p o r a c a s o , p r o p r i e t á r i a s de u m p e q u e n o t e r r e n o , se v i a m m u i t a s vezes
o b r i g a d a s a v e n d ê - l o s a s e n h o r e s de e n g e n h o m a i s p o d e r o s o s , p a r t i n d o d e p o i s . 7
Em
1 8 7 0 , o u t r o presidente da Província, o Barão de S ã o Lourenço, retomava a mesma
cantilena. 8
E x i s t i a , p o r t a n t o , m ã o - d e - o b r a p o t e n c i a l . P o r q u e n ã o era utilizada?
A i n d a q u e n ã o e n t r e e m d e t a l h e s , a resposta deve ser m a t i z a d a , u m a vez q u e não
se d e v e p e r d e r d e v i s t a n e m a a t i t u d e dos s e n h o r e s de e n g e n h o , n e m a dos trabalhado-
res a g r í c o l a s . P a r a o s p r i m e i r o s , e m p r e g a r m ã o - d e - o b r a livre significava pagar diárias.
N a p r á t i c a d a é p o c a , u m a d i á r i a e n v o l v i a , a l é m de u m a s o m a e m d i n h e i r o , a m a n u t e n -
ção alimentar do trabalhador, o q u e aumentava consideravelmente o ônus do contra-
t a n t e , s o b r e t u d o e m p e r í o d o s e m q u e a c o m e r c i a l i z a ç ã o da p r o d u ç ã o era incerta. A
s o l u ç ã o t e r i a s i d o o a r r e n d a m e n t o a m e i a s , s o b r e t u d o q u a n d o se sabe q u e as plantações
t o m a v a m m e n o s d e 1 0 % das terras cultiváveis. Essas terras, p o r é m , c o n s t i t u í a m reser-
vas: q u a n d o a p r o d u t i v i d a d e d a t e r r a c u l t i v a d a d i m i n u í a , era preciso deslocar o cultivo
para o u t r a s terras, a t é e n t ã o n ã o utilizadas. P o r o u t r o l a d o , a idéia d e ver sua plantação
rodeada p o r u m n ú m e r o m a i s o u m e n o s g r a n d e d e p e q u e n o s produtores não agradava
aos s e n h o r e s d e e n g e n h o , q u e t e m i a m a c o n c o r r ê n c i a . Q u a n d o se c o m e ç o u a discutir
;i i n t r o d u ç ã o de i m i g r a n t e s e u r o p e u s na B a h i a , esse t e m o r ficou patente. E m 1884, o
B a r ã o de S ã o T i a g o , rico p r o p r i e t á r i o d o vale d o Iguapé, declarava: " A cessão gratuita,
ou c m m ó d i c a s c o n d i ç õ e s , de terrenos i n c u l t o s a imigrantes não pode ser feita pelos
agricultores desta P r o v í n c i a . Estes não possuem terrenos i n c u l t o s . A zona beira-mar, a
m e l h o r c b a s t a n t e extensa, em q u e se a c h a m estabelecidos canaviais e outras proprie-
dades agrícolas, c o m p õ e - s e de terrenos todos a p r o v e i t a d o s . " Havia, p o r t a n t o , recusa
9

em a d m i t i r a e x i s t ê n c i a de terras não cultivadas e rejeição aos imigrantes; mas, sobre-


tudo, havia recusa e m partilhar a atividade agrícola c o m descendentes de escravos, sob
BAHIA, SÉCULO XIX
530

o pretexto de q u e eram incapazes e, c o m o t e m p o , p o d e r i a m t o r n a r - s e e x i g e n t e s . A


p r o d u ç ã o só podia ser c o n c e b i d a n u m a relação de t r a b a l h o de t i p o escravista, o q u e j á
n ã o era viável.
A aversão do b a i a n o ao t r a b a l h o a g r í c o l a , s o b r e t u d o n a c a n a - d e - a ç ú c a r , está m u i t o
ligada a esse t i p o de relação. Assalariado o u m e e i r o , o a g r i c u l t o r , à f o r ç a de trabalhar
lado a lado c o m escravos, sentia-se r e c o n d u z i d o à e s c r a v i d ã o . Preferia viver na miséria
que se s u b m e t e r a u m p r o p r i e t á r i o de m e n t a l i d a d e escravista. A p ó s a A b o l i ç ã o , m u i t o s
escravos c o n t i n u a r a m a t r a b a l h a r c o m seus e x - s e n h o r e s , m a s n u m n o v o r e g i m e : traba-
lhavam q u a t r o dias d a s e m a n a para o s p a t r õ e s e três dias para si m e s m o s , q u e b r a n d o
u m r i t m o de t r a b a l h o antes c o n s i d e r a d o i n d i s p e n s á v e l n o c u l t i v o da c a n a - d e - a ç ú c a r .
Para pagá-los c o m o t r a b a l h a d o r e s a g r í c o l a s , o s a n t i g o s s e n h o r e s só p o d i a m c o n t r a t a r
1/3 o u até 1/4 dos seus e x - e s c r a v o s .
N ã o se sabe q u a l era o salário d o s t r a b a l h a d o r e s a g r í c o l a s . A n t e s d a A b o l i ç ã o ,
p o r é m , n e n h u m s e n h o r d e e n g e n h o p a r e c e t e r p r a t i c a d o a c o n t r a t a ç ã o de m ã o - d e - o b r a
assalariada. A m a n u t e n ç ã o d e r e l a ç õ e s d e t r a b a l h o de c a r á t e r e s c r a v i s t a foi s e m dúvida
responsável p o r p a r t e dos p r o b l e m a s e n f r e n t a d o s pela a t i v i d a d e a ç u c a r e i r a a partir de
m e a d o s d o s é c u l o X I X . N o c o n j u n t o d a P r o v í n c i a , t r a b a l h o livre e e s c r a v o coexistiam
nas zonas rurais. M a s n o R e c ô n c a v o p r e d o m i n a v a m r e l a ç õ e s de t i p o escravista, en-
q u a n t o na e c o n o m i a p o u c o m o n e t i z a d a d o S e r t ã o as r e l a ç õ e s e r a m d i f e r e n t e s , ainda
q u e em g r a n d e p a r t e d i t a d a s p e l o s c h e f e s l o c a i s . S e j a c o m o f o r , a g e n t e das z o n a s rurais
vivia m e l h o r q u e a das c i d a d e s . Q u a s e s e m p r e p o d i a p r o d u z i r s e u p r ó p r i o a l i m e n t o e,
d i a n t e de flagelos o c a s i o n a i s , p o d i a f u g i r . O v e r d a d e i r o S e r t ã o , m u i t o p o u c o p o v o a d o ,
t i n h a terra d i s p o n í v e l e, nas r e g i õ e s m a i s p r ó x i m a s d o l i t o r a l , u m p e d a c i n h o de terra
j á garantia m a n d i o c a e a l g u m a b a n a n a p a r a o s u s t e n t o d a f a m í l i a .

A DUPLA ESTRUTURA DO TRABALHO URBANO:


MÃO-DE-OBRA LIVRE, MAO-DE-OBRA ESCRAVA

E m Salvador, a s i t u a ç ã o p a r e c i a à p r i m e i r a vista d i f e r e n t e d a d o A g r e s t e o u m e s m o do
R e c ô n c a v o . Q u e m e r c a d o de t r a b a l h o a c a p i t a l o f e r e c i a a seus h a b i t a n t e s ? A questão
r a r a m e n t e aparece nas f o n t e s d a é p o c a , pois se tratava de u m m e r c a d o n ã o p r o d u t i v o ,
na m e d i d a em q u e a indústria era i n c i p i e n t e e a e c o n o m i a da região era e m i n e n t e m e n -
te agrícola. M a s , se a p r o d u ç ã o industrial era m í n i m a , a c o n s t r u ç ã o civil pública e
privada — f r e q ü e n t e m e n t e e s q u e c i d a — teve na S a l v a d o r d o s é c u l o X I X considerável
expansão. P o r o u t r o l a d o , sede de i n t e n s a atividade c o m e r c i a l — i m p o r t a ç ã o , expor-
tação e redistribuição regional de m e r c a d o r i a s — e c e n t r o a d m i n i s t r a t i v o da Província,
a cidade tinha m u i t o s c apreciáveis e m p r e g o s a o f e r e c e r .

A estrutura e os m e c a n i s m o s desse m e r c a d o de t r a b a l h o interessam p o r diversas


razões. C o m o na zona rural, mas de m o d o m u i t o mais a c e n t u a d o — e este é um p o n t o
essencial , havia na cidade dois m e r c a d o s de t r a b a l h o : u m para b r a n c o s , m u l a t o s e
LIVRO V I I - O DINHEIRO DOS BAIANOS 531

negros livres, e o u t r o e x c l u s i v o para escravos. Essa c o e x i s t ê n c i a gerava p r o b l e m a s t a n t o


de o f e r t a c o m o de d e m a n d a de m ã o - d e - o b r a .
À p r i m e i r a vista, a o f e r t a de m ã o - d e - o b r a e m Salvador era s e m e l h a n t e à de u m
m e r c a d o e m q u e n ã o h o u v e s s e t r a b a l h o escravo: h o m e n s livres e escravos ofereciam
i g u a l m e n t e sua f o r ç a de t r a b a l h o , individual o u coletiva, negociavam c o n t r a t o s e
eram r e m u n e r a d o s d a m e s m a m a n e i r a . Q u a s e s e m p r e eram c o n t r a t o s verbais, pois,
c o m o v e r e m o s , s ó se e n c o n t r a m a t o s registrados e m c a r t ó r i o s o u o u t r o s órgãos c o m -
p e t e n t e s q u a n d o e s t a v a m e n v o l v i d o s t r a b a l h o s de v u l t o o u c o n t r a t a ç õ e s de serviços
p o r l o n g o s p e r í o d o s . H a v i a , n o e n t a n t o , u m a d i f e r e n ç a f u n d a m e n t a l e n t r e o trabalho
dos h o m e n s livres e o t r a b a l h o dos escravos: estes e r a m o b r i g a d o s a repassar, a seus
d o n o s , p a r t e s u b s t a n c i a l d e seus g a n h o s .

N a r e a l i d a d e , as coisas n ã o e r a m s i m p l e s , c o m o se p o d e visualizar a partir de


a l g u n s c a s o s r e p r e s e n t a t i v o s . E m c a s o d e c o n c o r r ê n c i a e n t r e u m g r u p o de t r a b a l h a d o -
res livres e u m s e n h o r q u e a l u g a v a e s c r a v o s , este n ã o t i n h a dificuldades para se e n t e n -
der d i r e t a m e n t e c o m o e m p r e g a d o r ( c o n v e n t o , h o s p i t a l , a d m i n i s t r a ç ã o p ú b l i c a o u u m
s i m p l e s p a r t i c u l a r ) , c o n s e g u i n d o o t r a b a l h o para seus h o m e n s , e m d e t r i m e n t o de
t r a b a l h a d o r e s livres i s o l a d o s o u r e c é m - a l f o r r i a d o s . T a n t o m a i s q u e , n o caso de traba-
l h o de c e r t a e n v e r g a d u r a , o s e n h o r d e escravos p o d i a a t u a r t a m b é m c o m o m e s t r e - d e -
obras, mestre-pedreiro, mestre-marceneiro etc.

P o r o u t r o l a d o , os e s c r a v o s — e, p o r e x t e n s ã o , os a l f o r r i a d o s — eram p r o i b i d o s de
e x e r c e r a l g u m a s f u n ç õ e s a d m i n i s t r a t i v a s o u p ú b l i c a s , m e s m o as m a i s h u m i l d e s , c o m o
as de s o l d a d o o u p o l i c i a l (essa i n t e r d i ç ã o foi d e s r e s p e i t a d a nas guerras da I n d e p ê n c i a
da B a h i a e d o P a r a g u a i , m a s nesses casos o s e r v i ç o m i l i t a r assegurava a alforria). E m
c e r t o s p e r í o d o s , p o r f o r ç a d a c o n j u n t u r a , o e x e r c í c i o de a l g u n s o f í c i o s era t a m b é m
p r o i b i d o à m ã o - d e - o b r a e s c r a v a . E m 1 8 5 0 , p o r e x e m p l o , escravos e estrangeiros foram
p r o i b i d o s de t r i p u l a r s a v e i r o s , u s a d o s n a n a v e g a ç ã o de c a b o t a g e m . Para inviabilizar sua
c o n t r a t a ç ã o , as a u t o r i d a d e s p r o v i n c i a i s i m p u s e r a m u m a taxa de 1 0 0 . 0 0 0 réis anuais
por escravo e m b a r c a d o , o q u e r e p r e s e n t a v a p a r c e l a s u b s t a n c i a l d o aluguel dos serviços
d o escravo ( c e r c a de 3 6 0 . 0 0 0 réis p o r a n o ) e p e l o m e n o s 1 0 % d o seu p r e ç o . E m 1 8 6 1 ,
os estivadores d o p o r t o de S a l v a d o r p r o t e s t a r a m j u n t o a o p r e s i d e n t e da Província
c o n t r a o ingresso d e u m n ú m e r o c r e s c e n t e d e escravos na atividade, o q u e considera-
vam p r e j u d i c i a l a o s t r a b a l h o s p o r t u á r i o s . D e fato, isso estava p r o i b i d o desde 1 8 5 0 ,
mas as p e r t u r b a ç õ e s o c a s i o n a d a s pelo c ó l e r a - m o r b o t i n h a m p r o v o c a d o u m relaxamen-
to n o c u m p r i m e n t o da n o r m a , " d e tal m o d o q u e os cidadãos pais de família se viam
sem e m p r e g o , q u a n d o os s e n h o r e s p o d e r i a m i g u a l m e n t e utilizar seus escravos — que
aliás n ã o t ê m f a m í l i a — c o m o d o m é s t i c o s o u g a n h a d o r e s ' em terra firme", declara-
vam os r e q u e r e n t e s , q u e foram a t e n d i d o s . 1 0
N o m e s m o espírito, os poderes locais
d e c i d i r a m , e m 1 8 4 8 , n ã o mais utilizar escravos nas c o n s t r u ç õ e s públicas, ficando o
setor, a partir de e n t ã o , i n t e i r a m e n t e reservado aos trabalhadores livres.

Esses e x e m p l o s m o s t r a m a c o m p l e x i d a d e d o p r o b l e m a . R e f l e t e m t a m b é m a luta
surda q u e se travou ao l o n g o de t o d o o século e n t r e os trabalhadores livres e os
BAHIA, S É C U L O XIX
532

p r o p r i e t á r i o s d e e s c r a v o s . A a n á l i s e d o s i n v e n t á r i o s post mortem m o s t r a q u e , até por


volta de 1 8 7 0 , h a v i a p r o p r i e t á r i o s d e escravos e m t o d a s as c a t e g o r i a s da s o c i e d a d e .
M u i t o s h o m e n s livres e a l f o r r i a d o s v i v i a m d o aluguel d e escravos. O r a , o m e r c a d o de
t r a b a l h o era l i m i t a d o . As m o d i f i c a ç õ e s f o r a m l e n t a s . S e r i a n e c e s s á r i o m u l t i p l i c a r as
pesquisas, f a z e n d o c o r t e s c r o n o l ó g i c o s — a n t e s e d e p o i s d e 1 8 5 0 , p o r e x e m p l o — para
t e n t a r a p r e e n d ê - l a s . S e r i a ú t i l s a b e r a p a r t i r de q u a n d o o t r a b a l h o livre se t o r n o u u m
i m p e r a t i v o p a r a a s o c i e d a d e b a i a n a , o u , o q u e d á n o m e s m o , a p a r t i r de q u a n d o o
t r a b a l h o e s c r a v o d e i x o u d e ser r e n t á v e l , p a s s a n d o a ser g r a d a t i v a m e n t e s u b s t i t u í d o , de
tal m o d o q u e , e m 1 8 8 8 , a A b o l i ç ã o v e i o a p e n a s c o n f i r m a r u m m o v i m e n t o iniciado
varias d é c a d a s a n t e s . 1 2

T r a b a l h o livre e trabalho escravo apresentavam traços c o m u n s , mas cada u m tinha


suas c a r a c t e r í s t i c a s p r ó p r i a s . S ã o essas s e m e l h a n ç a s e d i f e r e n ç a s q u e m e p e r m i t i r ã o
m e l h o r e x p l i c a r o q u e e r a o m e r c a d o d e t r a b a l h o n a c i d a d e de S a l v a d o r .

A OFERTA DE EMPREGO

C o n t i n u e m o s a d m i t i n d o q u e o m e r c a d o d e t r a b a l h o de S a l v a d o r f u n c i o n a v a c o m o
q u a l q u e r o u t r o . Q u e e m p r e g o s e r a m n e l e o f e r e c i d o s ? O s e t o r industrial, reduzido a
u m a s p o u c a s m a n u f a t u r a s t ê x t e i s e p e q u e n a s i n d ú s t r i a s de t r a n s f o r m a ç ã o , n ã o podia
a b s o r v e r m u i t o s assalariados. E m 1 8 7 5 - 1 8 7 6 , o s e m p r e g a d o s das m a n u f a t u r a s têxteis
n ã o passavam de 4 7 8 p e s s o a s . 1 3
N ã o t e m o s i n f o r m a ç õ e s s o b r e o n ú m e r o de e m p r e g a -
dos desse setor n o p e r í o d o p o s t e r i o r , a t é 1 8 8 7 , q u a n d o várias m a n u f a t u r a s se fundi-
ram, mas não chegavam a q u i n h e n t o s .
S a l v a d o r t i n h a t a m b é m m a n u f a t u r a s d e f u m o ( q u e p r e p a r a v a m rapé, cigarros e
c h a r u t o s ) e fábricas de c a l ç a d o s , b i s c o i t o s e m ó v e i s . T i n h a a i n d a p e q u e n a s fundições
de ferro e b r o n z e , destilarias de á l c o o l e lugares para a p r o d u ç ã o de ó l e o , serrarias e
o f i c i n a s q u e e s m a l t a v a m f e r r o . A l é m d e p r e g o s , anzóis, velas, fósforos e açúcar, fabri-
cavam-se sabões, c h o c o l a t e s , c e r v e j a , massas e até r o u p a s , inclusive l u v a s . 14
N ã o temos,
p o r é m , i n f o r m a ç ã o s o b r e o n ú m e r o de operários e n g a j a d o s nessas atividades. Prova-
v e l m e n t e esse g ê n e r o de indústria de t r a n s f o r m a ç ã o proliferou e evoluiu c o m o au-
m e n t o da p o p u l a ç ã o da c i d a d e e de suas necessidades, s o b r e t u d o a partir da segunda
metade d o século X I X . O Almanaque de 1 8 6 0 relaciona 9 8 estabelecimentos desse
gênero. A d m i t i n d o q u e cada um empregasse em média vinte operários, chegamos a
um total de 1 . 9 2 0 pessoas e m p r e g a d a s . A esse n ú m e r o é preciso acrescentar alguns
milhares q u e trabalhavam n o preparo d o f u m o . Nesse setor, n ã o há registro do n ú m e -
ro de estabelecimentos ou dc e m p r e g a d o s . 19
Seja c o m o for, é evidente que essas ativi-
dades de tipo industrial ofereciam em seu c o n j u n t o escassas possibilidades de empre-
g o . As alternativas abertas à massa de trabalhadores eram as empresas de construção
civil e naval, além das atividades do setor terciário, e m expansão n u m a cidade que
necessitava de um n ú m e r o crescente de serviços para f u n c i o n a r .
LIVRO V I I - O D I N H E I R O DOS BAIANOS
533

N o s s e t o r e s p u b l i c o e p r i v a d o , a c o n s t r u ç ã o civil oferecia b o m n ú m e r o de e m p r e -
gos aos h a b i t a n t e s de S a l v a d o r , s o b r e t u d o na segunda metade do século X I X , q u a n d o
a m u n i c i p a l i d a d e e m p r e e n d e u m u i t a s o b r a s . O g o v e r n o da P r o v í n c i a era t a m b é m u m
e m p r e g a d o r c o n s i d e r á v e l . " M a s , a j u l g a r pelas r e c l a m a ç õ e s c o n s t a n t e s da p o p u l a ç ã o ,
1

as o f e r t a s d e e m p r e g o na c o n s t r u ç ã o civil n ã o c o r r e s p o n d i a m à d e m a n d a , q u e partia
s o b r e t u d o da p o p u l a ç ã o livre da c i d a d e . E s t a e n f r e n t a v a a c o n c o r r ê n c i a c o n s t a n t e da
m ã o - d e - o b r a e s c r a v a , a m p a r a d a p o r seus p r o p r i e t á r i o s , q u e m u i t a s vezes estavam à
f r e n t e de p e q u e n a s e m p r e s a s ligadas à c o n s t r u ç ã o . S o b a r u b r i c a 'Artes e o f í c i o s ' , o
Almanaque d e 1 8 6 0 d á u m a lista de m e s t r e s artesãos e m atividade e m Salvador: seis
c a r p i n t e i r o s , q u a t r o e n t a l h a d o r e s d e m a d e i r a , sete e n t a l h a d o r e s de pedra, 2 9 m a r c e -
n e i r o s , c i n c o p e d r e i r o s e d e z e s s e t e p i n t o r e s . S o m a r i a m 6 8 mestres artesãos, mas pro-
v a v e l m e n t e só e s t ã o m e n c i o n a d o s os m a i s i m p o r t a n t e s . N ã o há registro do n ú m e r o de
escravos q u e c a d a u m t i n h a a seu s e r v i ç o , m a s , r e c o r r e n d o n o v a m e n t e aos inventários
post mortem, v e j o q u e seria algo e n t r e c i n c o c d e z . A s s i m , n o c o n j u n t o dos ofícios
ligados à c o n s t r u ç ã o , o s m e s t r e s artesãos c i t a d o s n o Almanaque d i s p o r i a m de u m a
m ã o - d e - o b r a c a t i v a d e 3 4 0 a 6 8 0 escravos a r t e s ã o s . Esse n ú m e r o , e m b o r a m o d e s t o , era
s u f i c i e n t e para a f e t a r a d e m a n d a de e m p r e g o s n o s e t o r . Q u a n t o ao Arsenal da M a r i -
n h a , q u e a t é a d é c a d a d e 1 8 3 0 e m p r e g a v a c e r c a de t r e z e n t o s artesãos livres, parece ter
reduzido a o s p o u c o s s u a a t i v i d a d e , pois e m 1 8 6 0 t i n h a apenas o n z e mestres c o n t r a -
t a d o s ; n ã o se s a b e q u a n t o s s i m p l e s artesãos a i n d a e m p r e g a v a . 1 7
A d e c a d ê n c i a dessa
i n d ú s t r i a de c o n s t r u ç ã o n a v a l , o u t r o r a c o n s i d e r á v e l , fez secar u m a b o a f o n t e de e m p r e -
gos, t a n t o m a i s q u e n e l a só t r a b a l h a v a m artesãos livres.

N ã o é possível precisar, p o r t a n t o , q u a n t o s operários trabalhavam na construção civil


c naval n o s é c u l o X I X . M a s o e x a m e das listas eleitorais — d o c u m e n t o s privilegiados,
pois trazem a profissão dos v o t a n t e s — i n d i c a q u e c e r c a de 2/5 dos artesãos da cidade,
distribuídos por todas as p a r ó q u i a s , e x e r c i a m o f í c i o s ligados a essas atividades. T i v e
acesso a listas de n o v e p a r ó q u i a s , e n t r e 1 8 4 8 e 1 8 6 2 , nas quais aparecem 2 . 5 9 7 artesãos
ligados à c o n s t r u ç ã o ( c a r p i n t e i r o s , m a r c e n e i r o s , pintores, operários de terraplenagem,
pedreiros e escultores e m m a d e i r a o u e m p e d r a ) , assim distribuídos: 4 2 , 7 % na S é , 4 6 , 5 %
na C o n c e i ç ã o d a Praia, 6 3 , 1 % na P e n h a , 4 4 , 8 % n o Pilar, 4 1 , 0 % e m S ã o Pedro, 4 1 , 5 %
cm S a n t o A n t ô n i o , 5 0 , 3 % e m V i t ó r i a , 4 9 , 0 % e m S a n t ' A n n a e 3 4 , 5 % em Brotas. C o m o
a aprendizagem desses ofícios n ã o era regulamentada, o operário se formava trabalhando
c o m u m mestre, c o m o aprendiz. E m última análise, o que distinguia o mestre do
operário eram os anos de experiência, o dinheiro que teria podido amealhar para se
estabelecer e, s o b r e t u d o , o consenso popular, q u e não hesitava em c h a m a r de 'mestre o
artesão verdadeiramente c o m p e t e n t e , m e s m o que ainda fosse e s c r a v o . 18

A l é m dos casos n ã o especificados, havia os ofícios artesanais praticados p o r m e -


nos de vinte pessoas: r e l o j o e i r o , serrador de madeira, fabricante de mastros, tornei-
ro, t a m a n q u e i r o , caldeireiro, polidor de madeira ou de metal, fabricante de colchões,
gravador em m e t a l , f e r r a d o r , f a b r i c a n t e de b a ú s , seleiro, c o r d o e i r o , e n c a d e r n a -
d o r , e n f i a d o r , c h a p e l e i r o , lapidario, p i r o t é c n i c o , padeiro, bordador, fabricante de
j |4 BAHIA, SÉCULO X I X

armas, fabricante de passamanaria, cinzelador, tecelão, dourador, santeiro, carvoeiro,


c h o c o l a t e i r a , f a b r i c a n t e de iscas e v i o l e i r o .
Q u a n t o s a r t e s ã o s havia e m S a l v a d o r e m m e a d o s d o s é c u l o X I X ? M a i s u m a vez as
listas e l e i t o r a i s são d e a l g u m a u t i l i d a d e , p o i s r e v e l a m o r d e n s d e g r a n d e z a . Como
v i m o s , e n t r e as 6 . 9 2 9 pessoas r e c e n s e a d a s nas listas q u e c o n s u l t e i , 2 . 5 9 7 e r a m a r t e s ã o s ,
o q u e c o r r e s p o n d e a 3 7 , 4 % d o c o n j u n t o d o s v o t a n t e s das n o v e p a r ó q u i a s acima
c i t a d a s . E m sua m a i o r i a esses a r t e s ã o s e x e r c i a m o s o f í c i o s de a l f a i a t e , carpinteiro,
s a p a t e i r o , p e d r e i r o e m a r c e n e i r o ; os m e n o s r e p r e s e n t a d o s e r a m o s b a u l e i r o s e c o r d o e i r o s .
S e r i a m esses o f í c i o s e x e r c i d o s t a m b é m p o r u m n ú m e r o s i g n i f i c a t i v o d e e s c r a v o s ? O s
i n v e n t á r i o s post mortem a r r o l a m m u i t o s e s c r a v o s a r t e s ã o s , m a s r a r o s e s p e c i f i c a m seus
o f í c i o s . E n t r e o s q u e o f a z e m , os m a i s f r e q ü e n t e m e n t e c i t a d o s s ã o o s m e s m o s que
p a r e c i a m c o n c e n t r a r m a i o r n ú m e r o d e a r t e s ã o s livres. P o r o u t r o l a d o , o s escravos
nunca eram ourives, colchoeiros, fabricantes de mastros ou relojoeiros — ofícios
prestigiosos — , mas e r a m n u m e r o s o s e m a t i v i d a d e s m a i s h u m i l d e s , c o m o as de t o n e l e i r o ,
c a l d e i r e i r o , s e r r a d o r d e m a d e i r a e c a l a f a t e . S e j a c o m o f o r , n o s o f í c i o s m a i s usuais a
c o n c o r r ê n c i a e n t r e livres e c a t i v o s e r a a c i r r a d a .

Resta o setor terciário. N u m a cidade tão i m p o r t a n t e d o p o n t o de vista administra-


t i v o c o m o S a l v a d o r , os e m p r e g o s l i g a d o s à f u n ç ã o p ú b l i c a e a o s c a r g o s a d m i n i s t r a t i v o s
privados m u l t i p l i c a r a m - s e ao l o n g o d o p e r í o d o . S e g u n d o V i l h e n a , p o r v o l t a de 1 8 0 0
a b u r o c r a c i a g o v e r n a m e n t a l n a C a p i t a n i a era c o m p o s t a p o r m e n o s d e q u i n h e n t a s
pessoas, i n c l u i n d o o f i c i a i s m i l i t a r e s ( 1 8 0 ) , f u n c i o n á r i o s d o T r i b u n a l d a R e l a ç ã o ( 8 1 ) ,
f u n c i o n á r i o s de r e p a r t i ç õ e s f a z e n d á r i a s , j u d i c i a i s e a d m i n i s t r a t i v a s ( 1 2 3 ) e eclesiás-
ticos ( 6 6 ) . E m listas e l e i t o r a i s d e s c o n t í n u a s , a p a r e c e m 9 3 9 pessoas q u e r e c e b i a m salá-
rios d o E s t a d o . O Almanaque de 1 8 6 2 a p o n t o u 7 5 3 s e r v i d o r e s d o g o v e r n o , e x c e t u a n -
do desse c á l c u l o os o f i c i a i s ( 1 8 6 ' h o m e n s de l e i ' , 4 9 4 f u n c i o n á r i o s e 6 3 e c l e s i á s t i c o s ) .
N o t e - s e ainda q u e , s e g u n d o J o s é F r a n c i s c o S i l v a L i m a , e m 1841 os funcionários
representavam 1/20 d o n ú m e r o e x i s t e n t e e m 1906. 1 9

Para ingressar na a d m i n i s t r a ç ã o , p o r é m , era p r e c i s o t e r u m m í n i m o de i n s t r u ç ã o e


sobretudo ser livre, o q u e deixava d e l a d o i m p o r t a n t e p a r c e l a da p o p u l a ç ã o . Para esta,
restavam os diversos tipos de c o m é r c i o a m b u l a n t e o u o u t r o s t r a b a l h o s de rua ( t r a n s -
porte, estiva etc.) q u e d e m a n d a v a m s o b r e t u d o força física. M a s essas atividades —
corno t a m b é m os e m p r e g o s p ú b l i c o s — n ã o p o d i a m ser exercidas p o r u m n ú m e r o
indefinido de pessoas. É preciso ter c m m e n t e , aliás, q u e , n u m a s o c i e d a d e escravocrata,
a demanda d c e m p r e g o s tende a ser m a i o r q u e a oferta, s o b r e t u d o q u a n d o é fácil
aumentar o n ú m e r o d c escravos, c o m o o c o r r e u até 1 8 5 0 . (i lícito m e s m o perguntar se
certos produtores agrícolas, diante das dificuldades ligadas à c u l t u r a da cana-de-açúcar,
nao teriam levado alguns dc seus escravos especializados para trabalhar em Salvador.
Seria, para o proprietário, uma f o r m a d c t o r n a r remáveis as capacidades de sua m ã o -
de-obra cativa. N a ausência de um verdadeiro setor secundário capaz de multiplicar as
possibilidades dc emprego c diante d c um setor terciário de d i n a m i s m o bastante
relativo, toda pessoa cm busca d c trabalho via-se n u m a situação difícil.
L I V R O Vil _ o D I N H E I R O DOS BAIANOS
535

O MERCADO DE TRABALHO PARA HOMENS LIVRES

A m a o - d e - o b r a livre c o m p u n h a - s e de b r a n c o s , m u l a t o s e negros. O s primeiros eram


d e s c e n d e n t e s d e p o r t u g u e s e s c h e g a d o s a o Brasil mais o u m e n o s r e c e n t e m e n t e , o u , e m
p e q u e n o n u m e r o , d e e u r o p e u s de o u t r a s n a c i o n a l i d a d e s ( e s p a n h ó i s , italianos, france-
ses, ingleses c a l e m ã e s ) . A l g u n s v i n h a m de o u t r a s p r o v í n c i a s o u do i n t e r i o r da B a h i a
H a v i a t a m b é m os c h a m a d o s ' b r a n c o s da t e r r a ' , m e s t i ç o s de pele mais o u m e n o s clara
q u e , g r a ç a s à s u a d i l i g ê n c i a o u a o p a t r o c í n i o de pessoas i n f l u e n t e s , c o n s e g u i a m trans-
p o r a l i n h a de d e m a r c a ç ã o racial e, p o r c o n s e q ü ê n c i a , t a m b é m a social.

A m e n o s q u e e s t i v e s s e m m e r g u l h a d o s e m c o m p l e t a m i s é r i a física, m o r a l e espiri-
t u a l , o s b r a n c o s se b e n e f i c i a v a m das m e l h o r e s ^ o p o r t u n i d a d e s . E r a m em geral os mais
i n s t r u í d o s , e, d e s d e q u e f o s s e m b r a s i l e i r o s , t i n h a m fácil acesso às f u n ç õ e s públicas.
N ã o e n c o n t r a v a m m a i o r e s p r o b l e m a s p a r a se e m p r e g a r c o m o c o n t a d o r e s , caixeiros
o u v e n d e d o r e s n o s e t o r d o s n e g ó c i o s e d o c o m é r c i o , n o s b a n c o s , nas c o m p a n h i a s o u
nas i n s t i t u i ç õ e s d e c a r i d a d e . M a s o s b r a n c o s q u e t r a b a l h a v a m c o m o artesãos eram
t a m b é m n u m e r o s o s . P e d r e i r o s , c a r p i n t e i r o s , p i n t o r e s , e n t a l h a d o res de pedra, estofa-
dores, funileiros, serralheiros etc. — era e n t r e eles q u e , o m a i s das vezes, se recruta-
v a m c o n t r a m e s t r e s e a d m i n i s t r a d o r e s . E m geral, estava t a m b é m restrito aos b r a n c o s o
e x e r c í c i o d e c e r t o s o f í c i o s r e p u t a d o s ' n o b r e s ' e p r e s t i g i o s o s , c o m o os de j o a l h e i r o e
r e l o j o e i r o . M a s e r a n a s f i l e i r a s d o s p r o p r i e t á r i o s ( t e r m o q u e a b r a n g i a t a n t o grandes
p r o p r i e t á r i o s i m o b i l i á r i o s , m u i t a s vezes e x - c o m e r c i a n t e s a p o s e n t a d o s , c o m o senhores
de e n g e n h o ) , d o s g r a n d e s n e g o c i a n t e s , d o s p r o f i s s i o n a i s l i b e r a i s , dos altos f u n c i o n á -
rios e d o s m i l i t a r e s d e a l t a p a t e n t e q u e se c o n c e n t r a v a a m a i o r i a dos b r a n c o s , ' p u r o s '
o u da 'terra'.
Q u a n t o às m u l h e r e s , as d a b u r g u e s i a e m geral n ã o t r a b a l h a v a m . H a v i a umas
p o u c a s , c o n t u d o , q u e d i v i d i a m r e s p o n s a b i l i d a d e s c o m os m a r i d o s n o setor c o m e r c i a l
o u a s s u m i a m a d i r e ç ã o d e u m a a t i v i d a d e a g r í c o l a , c o m o u m a p l a n t a ç ã o de c a n a - d e -
a ç ú c a r . M a s era e s p e c i a l m e n t e a v i u v e z , s o m a d a à falta o u à p o u c a idade de d e s c e n d e n -
tes m a s c u l i n o s , q u e levava a m u l h e r a t o m a r a f r e n t e d e u m e m p r e e n d i m e n t o c o m e r -
cial o u a g r í c o l a . Q u a n t o a o g r a u de a u t o n o m i a c o m q u e e x e r c i a m essas funções, é
possível e n c o n t r a r t o d a s as g r a d a ç õ e s : d a g e r ê n c i a pessoal à c o n t r a t a ç ã o de gerente,
p a s s a n d o e v i d e n t e m e n t e pela assessoria de u m c o n s e l h e i r o , p a r e n t e ou c o m p a d r e ,
m u i t a s vezes t a m b é m t u t o r dos filhos m e n o r e s . M u l h e r e s b r a n c a s trabalhavam ainda
c o m o professoras primárias - a p a r t i r de 1 8 3 0 c o m o diretoras de asilos o u abrigos
e c o m o e n f e r m e i r a s de h o s p i t a i s o u casas de c a r i d a d e . E r a m p o u c a s , mas seja c o m o for
o e x e r c í c i o dessas atividades e m p u r r o u m u l h e r e s brancas para fora d o d o m í n i o priva-
d o , e x c l u s i v a m e n t e f a m i l i a r , p o n d o - a s e m c o n t a t o c o m o c o n j u n t o da sociedade. A
i m a g e m de u m a m u l h e r reclusa, e x c l u s i v a m e n t e dedicada aos afazeres domésticos,
e m b o r a c o r r e s p o n d e s s e à m a i o r i a , deve p o r t a n t o ser n u a n ç a d a Aliás, antes que o
século X I X chegasse ao fim já havia mulheres formadas em m e d . c m a , fato notável
dadas as características gerais da sociedade b a i a n a .
M a s as m u l h e r e s q u e p e r m a n e c i a m n o lar e r a m s e m d ú v i d a m a i o r i a . N a s classes
médias, q u a n d o era p r e c i s o e q u i l i b r a r o o r ç a m e n t o f a m i l i a r , n ã o e r a m raras as q u e se
d e d i c a v a m a t r a b a l h o s d c b o r d a d o o u c o s t u r a , o u a o p r e p a r o de petiscos — s o b r e t u d o
d o c e s — . v e n d i d o s d e p o i s nas ruas p o r escravas ' g a n h a d e i r a s ' . N e g r a s c m u l a t a s livres,
alem de fazerem t a m b é m esses t r a b a l h o s a r t e s a n a i s , p o d i a m ser lavadeiras, passadeiras
e e n g o m a d e i r a s . M a s , c o m e x c e ç ã o das p r o f e s s o r a s p r i m á r i a s , d i r e t o r a s d e hospitais o u
casas de c a r i d a d e c e n f e r m e i r a s , q u e r e c e b i a m p o r m ê s , n o c a s o dessas m u l h e r e s n ã o se
pode falar de v e r d a d e i r o t r a b a l h o a s s a l a r i a d o .
S a b e - s e p o u c o s o b r e as r e l a ç õ e s e n t r e assalariados c e m p r e g a d o r e s O s e m p r e g a d o s
d o c o m é r c i o g o z a v a m d e u m a s i t u a ç ã o a p a r e n t e m e n t e i n v e j á v e l , p o i s . além de salário,
t i n h a m casa e c o m i d a p o r c o n t a d o p a t r ã o . N a d a p e r m i t e a f i r m a r , c o n t u d o , q u e essa
prática — certamente c o m u m entre comerciantes e comerciários portugueses — se
estendia ao c o n j u n t o d a c a t e g o r i a . E provável q u e só p r e v a l e c e s s e q u a n d o o caixeiro
era e s t r a n g e i r o e s o l t e i r o , c e s s a n d o q u a n d o c o n s t i t u í a f a m í l i a . Aliás, m o r a r c o m o
p a t r ã o , se era e c o n o m i c a m e n t e v a n t a j o s o , t i n h a seus i n c o n v e n i e n t e s , c o m o o de viver
sob sua p e r m a n e n t e v i g i l â n c i a . F o i a tal d e s t i n o q u e n ã o p ô d e e s c a p a r , p o r e x e m p l o ,
o p o b r e B a r t h o l o m e o P o d e s t a , c h a p e i e i r o i t a l i a n o , o b r i g a d o a prestar seus b o n s servi-
ços ao c o m p a t r i o t a A n g e l o P o g g i o , p o r u m p e r í o d o d c c i n c o a n o s , à razão de 4 0 0 . 0 0 0
réis p o r a n o , a fim d e pagar os 2 : 0 0 0 d c réis q u e e s t e ú l t i m o l h e e m p r e s t a r a na E u r o p a
para s o c o r r ê - l o e a j u d á - l o a a l i m e n t a r sua f a m í l i a , q u e a i n d a residia na I t á l i a . 2 0

E n t r e o s t r a b a l h a d o r e s livres c o n t a v a m - s e t a m b é m negros e mulatos, nascidos


livres o u a l f o r r i a d o s . O s p r i m e i r o s t i n h a m os m e s m o s d i r e i t o s q u e o s b r a n c o s , ao passo
q u e os alforriados n ã o gozavam d c p l e n a c i d a d a n i a : n ã o p o d i a m , p o r e x e m p l o , exercer
f u n ç õ e s p ú b l i c a s e n ã o t i n h a m d i r e i t o de v o t o . M a s , livres o u a l f o r r i a d o s , eram eles
q u e e x e r c i a m os o f í c i o s m a i s h u m i l d e s . A l g u n s — e m n ú m e r o m a i o r d o q u e se supõe
— c o n s e g u i a m galgar degraus e se faziam b a r b e i r o s , alfaiates, c o m p o s i t o r e s , professo-
res de m ú s i c a o u d c línguas estrangeiras ( s o b r e t u d o f r a n c ê s ) c professores primários.
O u , q u a n d o nascidos livres, o b t i n h a m e m p r e g o s s u b a l t e r n o s c m a l g u m órgão admi-
nistrativo. Era nesse g r u p o q u e se r e c r u t a v a m , para as o b r a s p ú b l i c a s , os estivadores,
os m a r i n h e i r o s , os pescadores, os lavradores e os o p e r á r i o s , pois o g o v e r n o os preferia
aos escravos. U m d o c u m e n t o r e c o m e n d a v a e x p l i c i t a m e n t e , aos c o n t r a m e s t r e s de obras
públicas, que despedissem u m c a t i v o s e m p r e q u e aparecesse u m operário livre para
tomar seu lugar.*"
E m meados d o século X I X , esses trabalhadores livres representavam, provavel-
m e n t e , mais dc 5 0 % da p o p u l a ç ã o v o t a n t e . A resistência desse g r u p o a exercer ofícios
que os pusessem etn pé dc igualdade c o m os escravos provocava por vezes a indignação
das autoridades. Assim, n o relatório dc um dos m e m b r o s da direção das O b r a s Públi-
cas do governo provincial, escrito cm I H 4 9 , lê-se: " N a Bahia, que possui uma popu-
lação numerosa, é no e n t a n t o difícil e n c o n t r a r operários livres. E m geral nos faltam;
tenho diante dc m i m , S e n h o r e s , mais dc sessenta candidatos para cargos de mestre-de-
obra ou dc apontador, mas trabalhar, ninguém quer. Há uma repugnância ao trabalho
UvRoVli _ o D I N H E I R O DOS B,
53?

e este é um e x e m p l o evidente d i mor. ;^A

I H 1 „ m a n e i r a c o m q u e v i v e m , p r e f e r i n d o a ociosidade ao
t r a b a l h o h o n e s t o q u e l h e s d a r i a o p ã o c o t i d i a n o para suas famílias e os prepa aria ara
se t o r n a r e m m e s t r e s - d e - o b r a s o u a p o n t a d o r e s . Q u a n t o a m i m , prefiro u m ' m e s t r e d e
o b r a s e s c o l h i d o e n t r e o s m e l h o r e s t r a b a l h a d o r e s a u m h o m e m q u e n ã o c o n h e c e seu
o f i c i o e n a o é c a p a z , p o r isso m e s m o , d e c o m a n d a r os o u t r o s operários " 2 2

N a s listas e l e i t o r a i s a p a r e c e m 6 . 9 2 9 p r o f i s s i o n a i s assim d i s c r i m i n a d o s : 2 8 1 p r o -
p r i e t á r i o s , 1 . 2 4 4 c o m e r c i a n t e s , 2 0 1 e m p r e g a d o s n o c o m é r c i o , 2 2 7 profissionais libe-
rais, 1 8 6 p r o f i s s i o n a i s i n d e p e n d e n t e s ' , 4 4 e m p r e g a d o s privados, 7 6 h o m e n s da Igreja
1 8 9 ' h o m e n s d a l e i ' , 5 2 7 f u n c i o n á r i o s , 1 4 3 m i l i t a r e s , 2 . 5 9 7 artesãos, 8 8 1 m a r i n h e i r o s !
1 9 5 agricultores e 1 3 8 profissionais n ã o especificados. É evidente que a população
livre, q u a n d o n ã o c o n s e g u i a o b t e r u m a s i n e c u r a o u u m b o m g a n h o n o exercício de u m
o f í c i o , p r e f e r i a d e d i c a r - s e a o s p e q u e n o s e x p e d i e n t e s d o c o m é r c i o a m b u l a n t e , livrando-
se das p e s a d a s i m p o s i ç õ e s d e h o r á r i o e d e c a r g a de t r a b a l h o dos e m p r e g o s oferecidos
na c o n s t r u ç ã o . A s m u l h e r e s m u l a t a s e negras t a m b é m p r e f e r i a m esse t i p o de trabalho
e v i n h a m e n g r o s s a r o n ú m e r o d o s v e n d e d o r e s a m b u l a n t e s q u e a n i m a v a m c o m seus
g r i t o s as r u a s e s t r e i t a s d a c i d a d e .
M a s e r a j u s t a m e n t e nessas a t i v i d a d e s ligadas a o p e q u e n o c o m é r c i o q u e os traba-
l h a d o r e s livres e n c o n t r a v a m a a c i r r a d a c o n c o r r ê n c i a dos escravos, q u e , g r a d a t i v a m e n t e
e x c l u í d o s d o e x e r c í c i o d e c e r t a s a t i v i d a d e s , p r o c u r a v a m nas ruas u m e s p a ç o de traba-
l h o . A d e m a i s , o s e s c r a v o s , m o v i d o s p e l o d e s e j o d e c o m p r a r a p r ó p r i a liberdade, n ã o
r e c u s a v a m n e n h u m t r a b a l h o , p o r d u r o q u e fosse, q u e lhes p e r m i t i s s e a m e a l h a r algum
d i n h e i r o , t o r n a n d o m a i s p r ó x i m a a r e a l i z a ç ã o d o s o n h o . S e m dúvida, e r a m , p o r é m , os
livres q u e t i n h a m p o s s i b i l i d a d e s d e e m p r e g o s estáveis e l u c r a t i v o s , e n ã o os escravos.

Os ESCRAVOS E O MERCADO DE TRABALHO

P o r v o l t a d e 1 8 7 0 , o s e s c r a v o s , h o m e n s e m u l h e r e s , a i n d a e r a m m u i t o s . O recensea-
m e n t o de 1 8 7 2 m o s t r a q u e 1 1 , 6 % d a p o p u l a ç ã o d e c i d a d e estavam nessa situação, os
d o i s sexos se e q u i v a l e n d o e m n ú m e r o . N a falta de dados p r e c i s o s , supus q u e essa massa
tivesse as m e s m a s c a r a c t e r í s t i c a s presentes e m t o d a a P r o v í n c i a e a d m i t i q u e a idade
ativa se situava e n t r e dezesseis e sessenta a n o s , c h e g a n d o e n t ã o a estimar q u e 2/3 desses
escravos e r a m c o n s t i t u í d o s por g e n t e c m idade de trabalhar nas residências de seus
s e n h o r e s o u , a l u g a d o s , para t e r c e i r o s . E n t r e eles havia negros africanos, negros nasci-
dos n o Brasil e m u l a t o s . Cirande parte devia trabalhar na casa dos senhores, pois a
c o n s i d e r a ç ã o social f u n d a v a - s c n o n ú m e r o de escravos q u e se tinha a seu dispor. Até
h o m e n s e m u l h e r e s c o n s i d e r a d o s pobres pela Assembléia Provincial possuíam alguns,
s e n d o isentos da taxa de 2 . 0 0 0 réis, criada e m 1 8 3 5 , que incidia sobre quaisquer
escravos de doze a sessenta anos q u e morassem n o p e r í m e t r o u r b a n o .
M u i t o s trabalhavam n o m e r c a d o da cidade, nos serviços mais vis e pesados, c o m o ^
de carga o u l i m p e z a . Até 1 8 5 0 , as mulheres escravas eram empregadas c o m o traba-
$38 BAHIA, S É C U L O X I X

lhadoras braçais nos canteiros de obras de c o n s t r u ç õ e s públicas o u privadas. Mas


havia t a m b é m , entre os escravos, n u m e r o s o s artesãos. Deve-se lembrar que as exi-
gências profissionais eram m e n o s rigorosas q u e h o j e , o que permitia múltiplas q u a -
lificações: o barbeiro tocava flauta, o sapateiro era t a m b é m alfaiate, o pedreiro era
p i n t o r etc. A d e m a i s , era o m e r c a d o que ditava o uso d o escravo: se ele exigia u m a
m ã o - d e - o b r a qualificada, os talentos pessoais eram explorados; na situação contrá-
ria, um a r t e s ã o j x ) d i a ser t r a n s f o r m a d o em carregador. O q u e importava era a ren-
tabilidade da m ã o - d e - o b r a cativa. A m a i o r qualificação do escravo representava maior
rentabilidade n ã o só a c u r t o c o m o a l o n g o prazo: a u m e n t a v a seu p r e ç o de venda e
até o de sua alforria, q u e p o d i a superar o p r e ç o pelo qual fora c o m p r a d o , dando
u m lucro s u p l e m e n t a r ao p r o p r i e t á r i o . C a b e observar ainda q u e a distinção entre os
escravos 'de g a n h o ' , que c o m e r c i a v a m o u ofereciam seus serviços nas ruas, e os do-
mésticos era t ê n u e , pois ^ p r o p r i e t á r i o s se serviam deles„ou os alugavam segundo
as necessidades d o m o m e n t o . As m e s m a s pessoas p o d i a m trabalhar tanto na casa do
senhor c o m o na rua.
N o s livros que c o m p õ e m a série Escritura de escravos dos A r q u i v o s M u n i c i p a i s de
Salvador existem vários 'Atos de l o c a ç ã o de serviços', q u e p o d e m ser divididos em dois
grupos. N o p r i m e i r o , o l o c a d o r era u m p r o p r i e t á r i o q u e cedia escravos a u m empre-
gador. N o s e g u n d o , u m escravo r e c é m - a l f o r r i a d o alugava seu trabalho, por tempo
d e t e r m i n a d o , a u m s e n h o r que lhe havia e m p r e s t a d o a s o m a necessária (ou parte dela)
para c o m p r a r a alforria. Nesses casos, e n q u a n t o n ã o pagasse a dívida, o ex-escravo era
tratado c o m o u m 'libertáveF, e n ã o u m l i b e r t o , d e v e n d o estar p r o n t o para executar
qualquer tipo de trabalho " q u e suas forças o t o r n e m c a p a z " , caso n ã o encontrasse
ocupação em sua especialidade, se a t i v e s s e . 23

D e fato, os escravos eram negociados e m Salvador em _dois^tipos__de_ mercado.


Havia o mercado de escravos p r o p r i a m e n t e d i t o , a que recorriam os que queriam
braços a seu serviço por longo t e m p o o u os q u e desejavam especular c o m a compra e
revenda (por exemplo, c o n d u z i n d o - o s até as plantações de café do C e n t r o - S u l do
Brasil); para conter essa prática, os legisladores baianos impuseram taxas sobre a reven-
da de escravos fora da Província. P o r o u t r o lado, havia t o d o um mercado de locação
de serviços para os que desejavam m ã o - d e - o b r a servil por curtos períodos: um dia,
uma semana, um mês e até alguns anos. Q u a n d o o prazo era curto, o contrato de
locação costumava ser verbal, mas, para períodos mais longos, lavravam-se em cartório
atos de que constavam o preço e a duração da locação, a qualidade dos serviços
previstos e as obrigações mútuas das partes. O locador quase sempre se comprometia
a dar ao escravo casa, comida, roupas, e cuidados médicos. O escravo ficava obrigado
a trabalhar um número fixo de dias e a repor aqueles em que estivesse doente. Por
vezes esses documentos previam até compensações pecuniárias precisas para o caso de
uma eventual fuga, prisão ou morte do escravo, enquanto seus serviços estavam aluga-
dos. E m 2/5 dos contratos de locação que pude consultar, tratava-se de mão-de-obra
qualificada. 24
539

Havia t a m b é m c o n t r a t o s firm-id
T r a t a v a - s e de r e c é m - l i b e r t a d o s miflf^f PT6pÚ
° t r a b a l h a d o r e
° empregador,
assim a n t e c i p a d o criava para o JJ, ^ p d
° n
° ° P
V a t r ã o
- ° d i n h e i r o

n u m t r a b a l h a d o r de t i p o m u i t o ZT^ ^
ohti
^^ ^ ° ~ * i m m
pagamento (teórico) d e ^ L ^ ^ UC^ZS" ^ °
de 2 0 . 0 0 0 a 3 0 . 0 0 0 réis nos anos I860T h \ "° ° ' S m 1 8 5

nos anos 1 8 6 0 ) lhe permitia abater sua dívida; por outro


vivia na estrita d e p e n d ê n c i a d o patrão, j á que, enquanto a dívida existisse, Z
o b n g a d o a servir sem p o d e r dispor dos seus ganhos. Ademais, no caso de trabalha-
dores de f a t o q u a l i f i c a d o s , o valor real de seu trabalho no mercado era sempre supe-
rior ao e s t i p u l a d o n o c o n t r a t o . C a b e abrir u m parêntesis para explicar a razão desse
e x p e d i e n t e , E x a m i n e i 1 4 2 desses c o n t r a t o s , datados de 1 8 5 4 a 1 8 8 7 ; deles, quinze
tinham sido firmados e n t r e 1 8 5 4 e 1 8 5 9 e apenas seis entre 1 8 8 0 e 1 8 8 7 . A grande
m a i o r i a , p o r t a n t o , datava das décadas de 1 8 6 0 e 1 8 7 0 , e m u i t o poucos eram dos
anos s u b s e q ü e n t e s à cessação d o tráfico o u dos que precederam a Abolição. É que,
logo a p ó s a i n t e r r u p ç ã o d o tráfico, ainda se podiam comprar escravos a preços relati-
v a m e n t e b a i x o s : o p r e ç o m é d i o era, na época, 8 7 4 . 0 0 0 réis por h o m e m e 6 9 5 . 0 0 0
réis por m u l h e r . E n t r e 1 8 6 0 e 1 8 8 0 os preços médios subiram: 9 2 4 . 0 0 0 réis por
m u l h e r e 1 : 1 6 4 . 0 0 0 de réis p o r h o m e m . M a s , e m 1 8 8 0 , os preços j á haviam caído —
u m a m u l h e r c u s t a v a 5 8 3 . 0 0 0 réis e um h o m e m , 8 0 0 . 0 0 0 réis — e em 1 8 8 8 . eram
m u i t o m e n o r e s , c h e g a n d o a 3 6 5 . 0 0 0 réis e 4 6 8 . 0 0 0 réis, respectivamente. A razão da
baixa era s i m p l e s : os escravos à venda eram velhos e sabia-se que o fim da escravidão
era i m i n e n t e . 2 5

N a d é c a d a de 1 8 5 0 , a diária m é d i a de um pedreiro era 1 . 2 0 0 réis, e a de um


m a r c e n e i r o , 1 . 4 0 0 réis, q u e r fossem livres o u escravos. C o m seis dias de trabalho por
semana, eles g a n h a v a m p o r m ê s cerca de 2 8 . 8 0 0 réis ou 3 3 . 6 0 0 , respectivamente,
salário superior ao q u e se a t r i b u í a ao ex-escravo para abatimento da dívida feita por
ocasião d a alforria. E s s a diferença acentuou-se nas décadas de 1 8 6 0 e 1 8 7 0 , quando
as diárias dessas duas categorias chegaram a 2 . 0 0 0 réis, perfazendo salários mensais
de 4 8 . 0 0 0 réis. P o d e r - s e - i a o b j e t a r q u e o locador do ex-escravo arcava com seu sus-
t e n t o , m a s , c o m o v e r e m o s n o p r ó x i m o capítulo, essa despesa não superava 2 5 0 réis
por dia na década de 1 8 5 0 o u 3 5 0 réis por dia nas décadas de 1 8 6 0 e 1 8 7 0 . Pagar
pela sua alforria e c o n t a r c o m os serviços d o escravo era de todo conveniente numa
época em q u e os incipientes m o v i m e n t o s abolicionistas começavam a questionar esse
tipo de posse. A f ó r m u l a era vantajosa também para o recém-alfornado, pois este
além de ter sua m a n u t e n ç ã o assegurada, podia ao poucos - se
escravos, outros alforriados ou livres o permitisse - comprar sua liberdade efetiva,
ainda que por alto preço. . - ^ 'ganhadores' ou alugados, c o m -
s i m p l c s

D e f a t o escravos dc todas as categorias, simpica g

. " . , r a ,: v r e c entre si. Isto se aplica em especai aos escravos de

hoje n ã o é possivel avaliar porque esses acordos eram sempre v e r b a . ,


MO BAHIA, SÉCULO X I X

Q u a n t o à s i t u a ç ã o e m q u e u m ex-escravo trabalhava para pagar sua alforria, certos


atos de l o c a ç ã o de s e r v i ç o , b e m c o m o a l e g i s l a ç ã o da é p o c a , f o r n e c e m informações
i n d i r e t a s s o b r e as r e l a ç õ e s d o s p a r c e i r o s e n v o l v i d o s . F i c a m o s s a b e n d o p o r e x e m p l o
q u e , e m 1 8 5 7 , o a f r i c a n o C é s a r , ' g a n h a d o r ' , ' p o r q u e n ã o t e m o u t r a p r o f i s s ã o ' , alu-
g o u seus s e r v i ç o s a J o s é M a r i a de S o u z a C a s t r o p o r 4 . 0 0 0 réis — o u m a i s , o que
sugere q u e p o d i a ter g a n h o s m a i o r e s — p o r s e m a n a , até q u i t a r sua dívida de 4 5 0 . 0 0 0
réis. P o r o u t r o l a d o , C é s a r , q u e n ã o r e c e b e r i a n e n h u m b e n e f í c i o m a t e r i a l de seu
c r e d o r , estava o b r i g a d o a p a g a r a o E s t a d o 5 . 0 0 0 réis p a r a p o d e r t r a b a l h a r n o m e r -
cado de S a l v a d o r . 2 6
O t e m p o e m q u e quitaria sua dívida dependia exclusivamente,
p o r t a n t o , d e sua c a p a c i d a d e d e t r a b a l h o . N a p i o r das h i p ó t e s e s , levaria p e l o m e n o s
d o i s a n o s . C o m o t i n h a de se s u s t e n t a r , c e r t a m e n t e d e v i a g a n h a r m a i s q u e o d o b r o
d e sua d í v i d a . E m 1 8 7 0 o c o c h e i r o n e g r o M a u r í c i o d o s S a n t o s , n a s c i d o n o Brasil,
r e c e b e u 1 : 0 0 0 d e réis d a C o m p a n h i a V e í c u l o s E c o n ô m i c o s , c o m p r o m e t e n d o - s e a
saldar a d í v i d a c o m s e u s a l á r i o , fixado e m 3 5 - 0 0 0 réis p o r m ê s . P o r o u t r o lado, a
c o m p a n h i a p r o m e t i a e n t r e g a r - l h e 1 0 . 0 0 0 réis p o r m ê s p a r a s e u s u s t e n t o . N e s t e caso,
a d í v i d a só p o d i a ser p a g a a o c a b o d e t r ê s a n o s e q u a t r o m e s e s d e s e r v i ç o . 2 7
O
c o n t r a t o n ã o d e i x a c l a r o q u e m , n e s s e p e r í o d o , p a g a v a os 4 0 0 . 0 0 0 réis devidos ao
E s t a d o p e l o t r a b a l h o de u m e s c r a v o e s p e c i a l i z a d o . F i n a l m e n t e , e m 1 8 7 9 a negra
E v a , brasileira, de 2 8 a n o s , s e r v i ç o s d o m é s t i c o s , t o m o u e m p r e s t a d o s 5 0 0 . 0 0 0 réis a
M a r i a d a N a t i v i d a d e R e i s , p a r a c o m p r a r s u a l i b e r d a d e , c o m p r o m e t e n d o - s e a servi-
la e a c o m p a n h á - l a a o n d e fosse p o r q u a t r o a n o s e d o i s m e s e s , a t é a q u i t a ç ã o da dívi-
da. 2 8
Estes e x e m p l o s m o s t r a m a d i v e r s i d a d e das c o n d i ç õ e s q u e r e g u l a v a m essas rela-
ções e m p r e g a d o r - e m p r e g a d o , q u e aliás n ã o d i f e r i a m m u i t o das relações e n t r e escravo
e senhor.

A m ã o - d e - o b r a escrava s u p l a n t a v a m u i t a s vezes a m ã o - d e - o b r a livre, s o b r e t u d o


graças à facilidade q u e t i n h a m os s e n h o r e s p a r a p r o t e g ê - l a , c o l o c á - l a e até i m p ô - I a . Por
mais q u e o g o v e r n o d a é p o c a t e n t a s s e f a v o r e c e r os h o m e n s livres, estes p e r m a n e c i a m
trabalhadores isolados, f r e n t e aos p r o p r i e t á r i o s d e e s c r a v o s . E n t r e t a n t o , a tradição oral
— c o n f i r m a d a p o r m u i t o s i n d í c i o s r e c o l h i d o s e m t e s t a m e n t o s , i n v e n t á r i o s p o s t tnortctn
e processos c r i m i n a i s — p r e t e n d e q u e , a d e s p e i t o dessa inegável c o n c o r r ê n c i a , algum
tipo de solidariedade se teria d e s e n v o l v i d o e n t r e os dois g r u p o s . O alforriado nunca
se esquecia d o escravo q u e fora e, q u a n d o possível, auxiliava escravos, seja empregan-
d o - o s , seja d a n d o liberdade (ainda c m vida) aos q u e possuía, seja emprestando-Ihes
dinheiro para a c o m p r a da carta de alforria. E x i s t i a sem dúvida u m a 'consciência da
c o n d i ç ã o d o p o b r e ' , mas seria a b s u r d o falar de u m a c o n s c i ê n c i a de classe n o seio dessas
populações, divididas por suas o r i g e n s étnicas e culturais e ainda tão próximas do
servilismo. O t r a b a l h a d o r , fosse q u e m fosse, abraçava i m e d i a t a m e n t e as atitudes das
categorias superiores e, p o u c o a p o u c o , se tornava capaz de oferecer ajuda aos que
estavam n o seu nível, sem perder de t o d o a solidariedade c o m os inferiores. Porque,
c m última análise, o q u e fundava o prestígio social de u m h o m e m ou de u m a mulher
era sua capacidade de reunir à sua volta o m a i o r n ú m e r o possível de 'devedores , fosse
J^Y!LL 0
D I N H E . R O DOS BAIANOS
541

a j u s a n t e o u a m o n t a n t e d a escala ^ r i o l A i -

t r a b a l h a v a m f o r a d e casa n o d i a m rela
^« e
" t r e os senhores e os escravos que

t r o c a d e u m a d i á r i a fixa o l ^ T ^ ° ^ ^ «""^«

artesãos de todas f ^ Z ^ Z Z ^ A ° P r Í m e Í r
° " " ^ ° d
° S

Neste caso, todo o safáriò « i^bidotl ^ ^ ^ ^ " C O n S t m Ç ã


°-
< •, ' , • í r e c e b i d o p e l o s e n h o r , q u e p o d i a dar ao escravo u m a
gorjeta p e l o s e r v . c o p r e s t a d o . O s e n h o r p o d i a o p t a r e n t r e assegurar o sustento do
e s c r a v o , f a z e - l o p a r c i a l m e n t e o u i s e n t a r - s e d i s t o . N e s t e ú l t i m o caso _ que se t o r n o u
c o m u m no século X I X - , repassava ao escravo u m a p e q u e n a r e m u n e r a ç ã o . Q u e m
a l u g a v a u m e s c r a v o a s s u m i a as o b r i g a ç õ e s d o p r o p r i e t á r i o , q u e , neste caso, podia dar
t e t o e c u i d a d o s m é d i c o s a seus e s c r a v o s , m a s n ã o c o m i d a . O u p o d i a permitir-lhes viver
e m p l e n a i n d e p e n d ê n c i a , n u m e m p r e g o q u e l h e s arranjasse, f ó r m u l a q u e parecia agra-
d a r m u i t o a a m b a s as p a r t e s , e m b o r a o escravo devesse repassar b o a parte do seu g a n h o
a o s e n h o r . N ã o p u d e a p u r a r se a p a r t e q u e c a b i a a o escravo oscilava c o m o nível dos
salários o u o p r e ç o d o a l u g u e l , das r o u p a s e d o s a l i m e n t o s . T a m p o u c o posso i n f o r m a r
c o m o se fixava essa s o m a n o c a s o de escravos q u e t r a b a l h a v a m p o r tarefa (transporte
de m e r c a d o r i a s o u d e c a d e i r i n h a s , p o r e x e m p l o ) , o u dos q u e faziam c o m é r c i o a m b u -
l a n t e . É c e r t o q u e esses ' g a n h a d o r e s ' t a m b é m e r a m o b r i g a d o s a pagar aos senhores uma
s o m a fixa d e d i n h e i r o , m a s n ã o foi possível d e t e r m i n a r e m q u e base essa q u a n t i a era
e s t i p u l a d a . T a m b é m n e s s e c a s o o e s c r a v o p o d i a ser total o u p a r c i a l m e n t e sustentado
pelo senhor.
O t r a b a l h a d o r q u e n ã o t i n h a salário f i x o era e v i d e n t e m e n t e m u i t o vulnerável,
s o b r e t u d o p o r e s t a r e x p o s t o a u m a c o n c o r r ê n c i a a i n d a m a i s feroz que a existente em
s e t o r e s m a i s e s p e c i a l i z a d o s . E r a p o r essa razão, aliás, q u e os escravos 'de g a n h o ' ,
s e m p r e q u e p o d i a m , se a g r u p a v a m p o r e t n i a — c a s o , p o r e x e m p l o , dos carregadores
de c a d e i r i n h a s — , t e n d o c a d a g r u p o u m responsável c u j a a u t o r i d a d e era reconhecida
t a n t o p e l o s seus m e m b r o s c o m o pelas a u t o r i d a d e s m u n i c i p a i s . E r a esse chefe que
d i s t r i b u í a as t a r e f a s e , n o final d o d i a , repartia o s g a n h o s . O u t r o s escravos 'de g a n h o ' ,
p o r é m , t r a b a l h a v a m i s o l a d a m e n t e , e seu sucesso d e p e n d i a apenas de talentos pessoais.
S e j a c o m o f o r , n e s s a c a t e g o r i a se registrava o m a i o r n ú m e r o de alforrias, o que mostra
q u e , apesar das i n c e r t e z a s d o m e r c a d o , o escravo ' g a n h a d o r ' era o que tinha mais
c o n d i ç õ e s d e f o r m a r o p e c ú l i o necessário à c o m p r a da própria liberdade. D e v o ressal-
var, p o r é m , q u e a a l f o r r i a de u m escravo s e m qualificação era mais barata.e que os
p r o p r i e t á r i o s , d i a n t e d a perspectiva de u m a rentabilidade aleatória, resistiam m e n o s a
libertá-los d o q u e aos escravos q u a l i f i c a d o s .
C o n h e c e m o s as m o d a l i d a d e s das relações q u e se estabeleciam entre senhores e
escravos q u e t r a b a l h a v a m nas ruas, mas m u i t a s matizes e, em e s p e c a i sua evolução n o
t e m p o p e r m a n e c e m d e s c o n h e c i d a s . E m que m o m e n t o se teria instituído o costume de
r f n rda a a de seu proprietário, o que lhe dava, senão a Jiber-
c a S

razer o escravo m o r a r tora a a cdòd r r -» X>Í.IA» a~


dade, u m a c o n s i d e r á v e l independência? O s autos do processo da Revolta dos M J e s de
1 8 3 5 , a t e s t a m q u e o c o s t u m e j i estava e n t í o m u n o d.fundrdo. M a s c o m o se c o n c h a v a
ele c o m n o r m a s f o r m a i s e m vigor, c o m o a que proibia a l.vre crrculaçao de escravos na
542 BAHIA, SÉCULO X I X

c i d a d e , s o b r e t u d o à n o i t e ? T e r i a m t o d o s a u t o r i z a ç õ e s escritas de seus senhores? P o r


q u e estes c o r r i a m o risco d e v e r seus escravos f u g i r e m , d a n d o - l h e s u m a m a r g e m de
i n d e p e n d ê n c i a q u e c o r r e s p o n d i a a u m a l i b e r d a d e c o n d i c i o n a l ? H a v e r i a aí u m a estra-
tégia dos s e n h o r e s , q u e t e r i a m i n v e n t a d o u m a válvula de escape eficaz c o n t r a eventuais
revoltas individuais? A h i p ó t e s e é b a s t a n t e plausível q u a n d o se c o n s i d e r a q u e , ao l o n g o
de três s é c u l o s e m e i o de r e g i m e e s c r a v o c r a t a , s ó se registraram duas tentativas de
revolta d e c e r t a m o n t a , a m b a s frustradas: a dos A l f a i a t e s , e m 1 7 9 8 , e a dos M a l e s , em
1 8 3 5 . M e s m o esses dois m o v i m e n t o s i n s u r r e c i o n a i s , p o r é m , n u n c a q u e s t i o n a r a m as
relações s e n h o r - e s c r a v o e, s o b r e t u d o , t i v e r a m p o u c a r e p e r c u s s ã o , p o r envolverem p o u -
cos r e v o l t o s o s . 2 9
A q u a l i d a d e das r e l a ç õ e s i n d i v i d u a i s era tal q u e se t o r n a v a por vezes
difícil d i s t i n g u i r e n t r e d o m i n a d o r e d o m i n a d o : a m b o s o s p a r c e i r o s e r a m c o m f r e q ü ê n -
cia m u i t o d e p e n d e n t e s u m d o o u t r o e e s t a v a m s u b m e t i d o s às m e s m a s i m p o s i ç õ e s de
u m a v i d a c o t i d i a n a c h e i a de p e r c a l ç o s .
N o t o c a n t e aos escravos d o m é s t i c o s — q u e m u i t a s vezes se c o n f u n d i a m c o m os
q u e t r a b a l h a v a m fora — , o m a i s i m p o r t a n t e a d e s t a c a r é q u e sua p r e s e n ç a era regra.
D e s d e o s m a i s ricos aos m a i s h u m i l d e s lares b a i a n o s , era a o escravo q u e c a b i a m certos
t r a b a l h o s c o n s i d e r a d o s d e g r a d a n t e s , c o m o c a r r e g a r o l i x o o u fazer f a x i n a . N a s famílias
m u i t o ricas, tarefas precisas e r a m d i s t r i b u í d a s para u m b a t a l h ã o d e servidores: cozi-
n h e i r o s ( a s ) , l a c a i o s , c a m a r e i r a s , b a b á s e a m a s - d e - l e i t e , c o c h e i r o s , m e n s a g e i r o s , borda-
deiras, c o s t u r e i r a s , lavadeiras, passadeiras. A s n ã o t ã o a b a s t a d a s t i n h a m dois a três
escravos, e m geral m u l h e r e s , e m e s m o as q u e v i v i a m n o l i m i t e da p o b r e z a não raro
t i n h a m u m e s c r a v o . A o q u e p a r e c e , esses servidores n ã o r e c e b i a m r e m u n e r a ç ã o algu-
m a , m a s os q u e c o n q u i s t a v a m a a f e i ç ã o dos seus s e n h o r e s p o d i a m , q u a n d o estes
m o r r i a m , receber u m l e g a d o o u m e s m o a l i b e r d a d e . A l é m d i s t o , m u i t a s vezes lhes era
p e r m i t i d o p r a t i c a r p e q u e n o s n e g ó c i o s pessoais nas h o r a s de f o l g a .

Isto n ã o p e r m i t e i n f e r i r , c o n t u d o , q u e o s escravos d o m é s t i c o s e r a m privilegiados


e m relação aos d e m a i s , pois os a t r i t o s e v e x a ç õ e s d a i n t i m i d a d e p e r m a n e n t e c o m os
senhores n ã o p o d e m ser e s q u e c i d o s . S e e r a m talvez m a i s b e m protegidos m a t e r i a l m e n -
te, careciam por c o m p l e t o d a l i b e r d a d e de m o v i m e n t o . Ó d i o s e resistências explosivas
nasciam e se desenvolviam e n t r e eles. S e r i a i n t e r e s s a n t e estudar a n ú n c i o s de jornais
sobre escravos fugitivos e t e n t a r d e t e r m i n a r a p r o p o r ç ã o de escravos d o m é s t i c o s envol-
vidos nesses e p i s ó d i o s . 30

E m s u m a , considerar q u e os t r a b a l h a d o r e s escravos eram mais protegidos que


os trabalhadores livres é c o m e t e r u m d u p l o erro. A i n d a q u e seus proprietários fos-
sem responsáveis por eles perante o c o n j u n t o da sociedade, n ã o se pode esquecer o
doce gosto da plena liberdade, s o n h o de t o d o cativo. O s laços de solidariedade en-
tre os escravos eram sem dúvida n u m e r o s o s , mas não chegavam a igualar os que
ligavam entre si livres c alforriados, amparados por suas família?, favorecidos pelo
estatuto de h o m e n s livres, interligados por inúmeras cumplicidades, p o r pertence-
rem à mesma paróquia, ao m e s m o batalhão da G u a r d a N a c i o n a l ou ao m e s m o gru-
po de eleitores.
í^oVH - O DINHEIRO DOS BAIANOS 543

D e fato, livre ou servil, o trabalho em Salvador se exercia no seio de um siste-


ma escravista, sem verdadeiro mercado de salários, uma vez que os setores secundá-
rio e terciário só podiam absorver uma parcela insignificante da massa de trabalha-
dores. Nessas condições, o salário, quando existia, acabava desprovido de seu caráter
de dado e c o n ô m i c o e social básico. Afinal, que pode o salário significar numa so-
ciedade fundada na escravidão? Por outro lado, quando havia salário, em que medi-
da ele atendia às necessidades do indivíduo e de sua família em sua vida cotidiana
na cidade?
C A P Í T U L O 29

SALARIOS E P R E Ç O S

O trabalho e m Salvador, assalariado o u n ã o , era e m grande parte artesanal e de comér-


c i o a m b u l a n t e e , c o m o j á m e n c i o n a m o s , n u m a e s t r u t u r a e c o n ô m i c a e s c r a v i s t a , o sa-
lário perde seu caráter d e d a d o social b á s i c o . 1
E m b o r a n ã o d i s p o n h a d e d a d o s estatís-
t i c o s p r e c i s o s , e s t i m o q u e a p e n a s 1 0 % a 1 5 % d a p o p u l a ç ã o a t i v a m a s c u l i n a livre e 5 %
d a c a t i v a e r a m p r o p r i a m e n t e a s s a l a r i a d o s . A s listas e l e i t o r a i s i n d i c a m u m a p r e s e n ç a de
cerca de 1 3 % de assalariados e n t r e os t r a b a l h a d o r e s alistados, e n q u a n t o os inventários
post mortem e as c a r t a s d e a l f o r r i a i n d i c a m p e r c e n t a g e n s d e a s s a l a r i a m e n t o e n t r e escra-
vos q u e v a r i a m d e 3 , 4 % ( e n t r e 1 8 1 9 e 1 8 5 0 ) e 6 , 0 % ( e n t r e 1 8 5 1 e 1 8 8 0 ) . S e os dois
g r u p o s t i v e s s e m o m e s m o p e s o r e l a t i v o n a c a p i t a l e n o c o n j u n t o d a P r o v í n c i a (para o
qual t e n h o os dados d o r e c e n s e a m e n t o d e 1 8 7 2 ) , para u m a p o p u l a ç ã o de 50.519
h o m e n s livres e 6 . 0 8 3 e s c r a v o s , S a l v a d o r c o n t a r i a e n t ã o c o m c e r c a d e 2 7 . 0 0 0 h o m e n s
livres ( 2 . 7 0 0 a 4 . 0 0 0 a s s a l a r i a d o s ) e 3 . 5 0 0 c a t i v o s ( c e r c a d e 1 7 5 assalariados) e n t r e
q u i n z e e s e s s e n t a a n o s . E m b o r a b a s e a d o s e m i n f e r ê n c i a s e n o u s o d e f o n t e s distantes
n o t e m p o , os r e s u l t a d o s m e p a r e c e m c o e r e n t e s . 2

O salário, p o r o u t r o l a d o , e r a m u i t a s vezes a p e n a s p a r t e d a r e m u n e r a ç ã o de um
trabalhador, pois, n u m a peculiaridade d o m e r c a d o de trabalho baiano — até hoje
observável, p o r sinal — , m u i t a s p e s s o a s e x e r c i a m d i v e r s o s o f í c i o s , r e c e b e n d o dois,
três o u até q u a t r o salários, p o r vezes t o d o s i r r i s ó r i o s . A s s i m , p a r a avaliar as r e m u n e r a -
ções globais reais, seria p r e c i s o e x a m i n a r c o m o o s s a l á r i o s se c o m p u n h a m e m c e r t o
n ú m e r o de casos i n d i v i d u a i s , m a s e m geral só h á i n f o r m a ç õ e s s o b r e o salário c o n s i d e -
rado p r i n c i p a l .

A avaliação se c o m p l i c a t a m b é m p o r q u e os salários e m d i n h e i r o e r a m , e m certos


casos, c o m p l e m e n t a d o s p o r um p a g a m e n t o in natura: n ã o era raro, p o r e x e m p l o , q u e
u m pedreiro o u u m p i n t o r fossem a l i m e n t a d o s p e l o p a t r ã o . E n c o n t r ç i esparsas infor-
m a ç õ e s a esse respeito n o s arquivos d o H o s p i t a l da M i s e r i c ó r d i a , q u e dava c o m i d a a
alguns de seus artesãos, sem d i m i n u i r seu salário e m r e l a ç ã o a o u t r o s n ã o beneficiados,
segundo critérios q u e n ã o posso explicar. Esses ' a d i c i o n a i s ' , q u e o b v i a m e n t e alteravam

S44
545

a i m p o r t â n c i a do salário recrhirl** A\c. i


porqíe a d o c u m e n t o é l ^ ^ ^ Z ?
~ "* *
qualquer r e g u l a m e n t a d o . ^ T SmWÇÕeS n ã o obededam

P o r o u t r o lado, as séries de salários que pude estabelecer referem-se a operários da


c o n s t r u ç ã o OU a e m p r e g a d o s de instituições públicas ou privadas, que não são bons
m d i c a d o r e s d o c u s t o da p r o d u ç ã o na e c o n o m i a da Província n o século X I X , que era
e s s e n c i a l m e n t e agrícola, utilizava em larga escala a mão-de-obra escrava e se orientava
para a e x p o r t a ç ã o . Assim, os salários q u e c o n h e c e m o s refletem muito parcialmente a
realidade e c o n ô m i c a de Salvador n u m a época em que só uma pequena parte da popu-
lação t i n h a salário fixo.
M e s m o esses p o u c o s privilegiados não t i n h a m emprego estável. O mercado de
t r a b a l h o era t ã o irregular q u e as ofertas de emprego eram, quase sempre, duramente
d i s p u t a d a s . A c o n c o r r ê n c i a e n t r e h o m e n s livres e escravos, em particular, era acirrada.
A falta de s e t o r e s s e c u n d á r i o e terciário b e m estruturados, o a u m e n t o da população e
o i n c r e m e n t o mais q u e p r o p o r c i o n a l das alforrias (entre 1 8 4 0 e 1 8 8 0 estima-se em
2 2 . 0 0 0 o n ú m e r o de alforriados, na p r o p o r ç ã o de u m h o m e m para duas m u l h e r e s ) 3

tornavam o m e r c a d o relativamente rígido, engendrando u m grave e crônico subemprego,


agravado p e l o g r a n d e n ú m e r o de dias santos o u feriados, em que não se trabalhava.
F i n a l m e n t e , c o m o os assalariados se c o n c e n t r a v a m nas obras públicas e na construção,
o t r a b a l h o era i n t e r r o m p i d o ao sabor das estações: de abril ao final de agosto, meses de
chuvas i n t e n s a s , m u i t a s vezes os canteiros paravam.

D i a n t e d e s t e q u a d r o , p o d e - s e m e s m o falar de m ã o - d e - o b r a assalariada em Salva-


dor? E se f a l a m o s de salário, q u e valor a t r i b u i r , por e x e m p l o , ao pagamento por dia de
serviço, q u e n o s interessa p a r t i c u l a r m e n t e ? D e fato, há grande diferença qualitativa
e n t r e o p a g a m e n t o de u m t r a b a l h a d o r p o r dia ou por mês, ou ainda por a n o , sobre-
t u d o q u a n d o são m u i t o s os dias e m q u e n ã o há trabalho e em que, portanto, o diarista
não g a n h a . A r r i s c o - m e a u m c á l c u l o : s o m a n d o os 5 2 d o m i n g o s , os vinte dias das
maiores festas religiosas e os o i t o dos feriados civis, t e m o s oitenta d i a s ; se a isto 4

a c r e s c e n t a m o s os dias e m q u e a c h u v a i m p u n h a a redução o u a cessação das atividades


— 3 5 , em m é d i a — , c h e g a m o s a 1 1 5 dias; as diárias recebidas n ã o passavam, assim,
de 2 5 0 por a n o . A divisão d o total dessas 2 5 0 diárias por 3 6 5 é que permite avaliar a
q u a n t i a e f e t i v a m e n t e recebida por cada u m . C o n v é m p o r t a n t o ser prudente e atribuir
um valor m u i t o relativo às cifras dos salários na Bahia. M e s m o assim vale a pena
analisá-las, em especial p o r q u e isto dá u m a idéia geral das flutuações que esses paga-
m e n t o s s o f r i a m . A d e m a i s , a c o m p a r a ç ã o dos salários com OS preços dos produtos
alimentares de primeira necessidade é um indicador dos níveis de vida na Salvador do
século X I X , cuja p o p u l a ç ã o era, c m grande parte, pobre ou m e s m o indigente.
C o m o iá e x p u s , a oferta de bens de c o n s u m o em Salvador, controlada por
moeda circulante e o crédito eram escassos.
oligopólios, era deficiente c irregular;
D i a n t e desse q u a d r o , ins.ituiu-.se um sistema oficioso de crédito privado, que assum.a
duas formas principais: venda a prestação pelos varejistas e emprést.mos entre pessoas
BAHIA, SÉCULO X I X

físicas, a taxas q u e d e v i a m ser superiores aos 6 , 1 5 % p r a t i c a d o s pelos e s t a b e l e c i m e n t o s


oficiais, pois eram qualificadas d e usurárias pelos c o n t e m p o r â n e o s . C e r t a m e n t e eram
os mais mal r e m u n e r a d o s q u e se s u b m e t i a m a tais taxas. V o l t a r e i a este p o n t o adiante.
P o r ora, q u e r o destacar q u e , nas c a t e g o r i a s s o c i a i s m e n o s favorecidas, era m u i t o d i f u n -
dida a prática d o e n d i v i d a m e n t o para e n f r e n t a r necessidades p r e m e n t e s d o c o t i d i a n o .
A descrição q u e a p r e s e n t e i a t é o m o m e n t o t e m p o r base d a d o s c o l h i d o s na d o c u -
m e n t a ç ã o q u a l i t a t i v a e n a h i s t o r i o g r a f i a t r a d i c i o n a l . I n t e r e s s a - m e agora verificar até
q u e p o n t o ela e n c o n t r a c o n f i r m a ç ã o e m séries e s t a t í s t i c a s . S ó posso m e a p o i a r em
dois tipos de série: u m a d e salários e o u t r a de p r e ç o s de a l g u n s g ê n e r o s a l i m e n t a r e s .
S o b r e preços dos aluguéis» d e i t e n s d e v e s t u á r i o e o u t r o s b e n s i m p r e s c i n d í v e i s à exis-
tência c o t i d i a n a , v e j o - m e , l a m e n t a v e l m e n t e , s e m q u a l q u e r i n d i c a ç ã o . F a l t a m t a m -
b é m séries s o b r e o v o l u m e de g ê n e r o s de s u b s i s t ê n c i a e o u t r o s b e n s de c o n s u m o que
c i r c u l a v a m n o m e r c a d o de S a l v a d o r , assim c o m o séries d o s p r e ç o s dessas m e r c a d o r i a s
n o a t a c a d o e o v o l u m e d a c i r c u l a ç ã o m o n e t á r i a . Essas c a r ê n c i a s se d e v e m n ã o só à
falta de estatísticas p u b l i c a d a s m a s , s o b r e t u d o , à falta de d o c u m e n t o s p r i m á r i o s . O
h i s t o r i a d o r é f o r ç a d o à m o d é s t i a : p r e ç o s d e a l i m e n t o s e v a l o r de salários — dados
e c o n ô m i c o s p o r c e r t o f u n d a m e n t a i s , p o i s p e r m i t e m e n t r e v e r as c o n d i ç õ e s materiais
da v i d a de u m a p a r t e dos b a i a n o s , p o r r e d u z i d a q u e seja — n ã o p o d e m t u d o expli-
c a r . R e s t a - m e v e r i f i c a r , c o m a p r e c i s ã o possível, o nível dos salários p e r c e b i d o s por
parte dos b a i a n o s , os p r e ç o s d e a l g u n s a l i m e n t o s b á s i c o s e, p o r fim, o c o m p o r t a m e n -
t o dos salários e m f a c e das f l u t u a ç õ e s dos p r e ç o s . I s t o talvez p e r m i t a d e l i n e a r m e l h o r
a c o n j u n t u r a e c o n ô m i c a d a c i d a d e , até o m o m e n t o a b o r d a d a de m a n e i r a p u r a m e n t e
qualitativa. A e s t e r e s p e i t o , p o r é m , t u d o o q u e se p o d e fazer é a v e n t a r hipóteses, e
com extrema prudência.

Os SALÁRIOS

A primeira série de salários, r e f e r e n t e a o t r a b a l h o m a n u a l — especializado e não


especializado — , foi m o n t a d a a p a r t i r de d a d o s c o l h i d o s n o s arquivos d o H o s p i t a l da
M i s e r i c ó r d i a e d o C o l é g i o d o s Ó r f ã o s de S ã o J o a q u i m . E m b o r a essas instituições
empregassem artesãos de m ú l t i p l a s especialidades, s ó p u d e e s t a b e l e c e r séries suficien-
t e m e n t e longas para seis c a t e g o r i a s de operários da c o n s t r u ç ã o : mestres-pedreiros e
pedreiros, m c s t r c s - c a r p i n t c i r o s c c a r p i n t e i r o s e serventes, t a n t o h o m e n s c o m o mulhe-
res. O s salários anuais, calculados na base de 2 5 0 dias de t r a b a l h o efetivo, aparecem
expressos em mil réis. E n c o n t r e i outras profissões d i s c r i m i n a d a s , c o m o p i n t o r , operá-
rio de terraplenagem, e n t a l h a d o r de pedras, m a r c e n e i r o , serralheiro, caldeireiro, col-
choeiro e ferreiro. O s três primeiros recebiam diárias e os demais era pagos p o r tarefa,
sem que os d o c u m e n t o s as e s p e c i f i q u e m s u f i c i e n t e m e n t e . O g a n h o dos pintores estava
na faixa d o dos pedreiros. Q u a n t o aos operários de terraplenagem e entalhadores de
pedras, sua presença era esporádica demais para p e r m i t i r a m o n t a g e m de séries.
LTVROVII _ o D I N H E I R O DOS BAIANOS 547

Os dados d o p e r í o d o 1 0 0 - 1 8 4 0 provêm d o H o s p i t a l da M i s e r i c ó r d i a , que apa-


r e n t e m e n t e d e i x o u de: g u a r d a r esse t i p o de i n f o r m a ç ã o depois desse ú l t i m o a n o . N o
c a s o d o C o l e g . o S a o J o a q u i m , f u n d a d o e m 1 8 2 7 , os registros c o m e ç a r a m em 1 8 3 0 ,

T i t o
ate
ri a r a m
d C P O Í
° ' °
S d C 1 8 4
™ ^ r i e que vai
f r m a n d

1 8 8 . ) . N o t e - s e q u e a c o m p a r a ç ã o dos dados relativos à década de 1 8 3 0 m o s t t a que


o d e s d e e n t â o u

e m geral, a m b a s as i n s t i t u i ç õ e s p a g a v a m os m e s m o s salários. Q u a n d o , n u m m e s m o
a n o , h a v i a d i f e r e n t e s salários p a r a u m a m e s m a profissão — caso dos pedreiros e dos
carpinteiros — , o p t a m o s p o r a p r e s e n t a r a m é d i a ( n ã o p o n d e r a d a ) . Considerar os
salários m a i s b a i x o s , o u os m a i s a l t o s , teria s i d o t a m b é m interessante. N a m a i o t i a dos
c a s o s , p o r é m , esses a r q u i v o s i n f o r m a m u m ú n i c o valor p o r a n o , o q u e limita nosso
c a m p o d e e s c o l h a s e i m p e d e e l a b o r a ç õ e s m a i s finas. A c r e d i t o c o n t u d o que as séries que
m o n t e i m o s t r a m b a s t a n t e b e m a t e n d ê n c i a desses salários n o p e r í o d o estudado.
A s e g u n d a s é r i e de salários refere-se a e m p r e g a d o s n ã o m a n u a i s d o setor privado.
F o r a m c o l h i d o s t a m b é m n o s a r q u i v o s d o C o l é g i o S ã o J o a q u i m e, c o m o os anteriores,
c o r r e s p o n d e m a o p e r í o d o 1 8 4 0 - 1 8 8 9 . C o n s i d e r a m o s três categorias: professor p r i m á -
r i o , p o r t e i r o e e n f e r m e i r o . T o d o s r e c e b i a m salários m e n s a i s , m a s , para facilitar as
comparações, transformei-os em anuais.
A t e r c e i r a s é r i e d e s a l á r i o s v e m d o s e t o r p ú b l i c o : c o m p r e e n d e os salários pagos à
P o l í c i a d e S a l v a d o r a p a r t i r d e 1 8 3 5 e a o s f u n c i o n á r i o s d o g o v e r n o e da instrução
pública entre 1 8 6 0 e 1 8 8 9 . 6
D o s t r i n t a salários q u e estas duas séries e n g l o b a v a m , optei
p o r c o n s i d e r a r d o z e , c o m b a s e n o s s e g u i n t e s c r i t é r i o s : a c o n t i n u i d a d e dos dados, a
h o m o g e n e i d a d e n a c o m p o s i ç ã o dos salários e a representatividade destes n o c o n j u n t o
dos salários p a g o s n o s e t o r . V a m o s p o r partes. O s n ú m e r o s relativos aos diferentes
p e r í o d o s t ê m c o n t i n u i d a d e , e , q u a s e s e m p r e , a falta de dados de u m a n o para o u t r o
i n d i c a q u e o s a l á r i o p e r m a n e c e u estável. M e s m o assim, preferi sublinhar a falta de
q u a l q u e r i n f o r m a ç ã o e aspear as s o m a s m e n c i o n a d a s . N o s gráficos, as curvas são
i n t e r r o m p i d a s e m c a d a p a s s a g e m de u m nível salarial para o u t r o . N o s casos em que
faltavam i n f o r m a ç õ e s p a r a u m l o n g o p e r í o d o , tracei u m a l i n h a c o n t í n u a sempre que
o n ú m e r o e n c o n t r a d o m a i s a d i a n t e fosse o m e s m o . A ausência de oscilações salariais
nesse s e t o r a u t o r i z a essa s o l u ç ã o , d e s a c o n s e l h a d a para os salários referentes às ativida-
des artesanais. O s e g u n d o c r i t é r i o foi o de h o m o g e n e i d a d e na c o m p o s i ç ã o dos salários,
pois havia casos e m q u e estes e r a m c o m p l e m e n t a d o s p o r gratificações e outros ganhos,
t o r n a n d o - s e i m p r ó p r i o s para uso e m nosso t r a b a l h o . Q u a n t o à representatividade
(terceiro c r i t é r i o ) , tentei agrupar os doze salários e m três categorias: altos (funcionários
graduados, fossem civis o u m i l i t a r e s ) , m é d i o s ( f u n c i o n á r i o s e empregados de escalão
i n t e r m e d i á r i o ) e baixos ( f u n c i o n á r i o s subalternos e pequenos empregados do setor
privado). Esses doze salários p e r m i t i r a m - m e m o n t a r os gráficos, nos quais incluímos
t a m b é m os salários d o pessoal d o setor privado referidos n o parágrafo anterior
S ó é possível fazer u m a c o m p a r a ç ã o q u e englobe todas as três séries (trabalho
artesanal n o setor privado e funções n ã o manuais n o setor público e n o setor privado)
nos trinta ú l t i m o s anos d o período ( 1 8 6 0 - 1 8 8 9 ) . C o m e c e m o s pela mais longa, que
BAHIA, SÉCULO XIX

SALÁRIOS ANUAIS ( E M M I L RÉIS)

Mestres-pedreiros
500
/ \
400
_
500
J -
200

100
• —\ ~

1800 1810 1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880 1890

Pedreiros
700

600 n
A
/\
500

/
/
400 w
w
300

200

100 J

1800 1810 1820 1830 1840 1850 1860 1370 ISSO 1890

Mestres-carpinteiros
800

700

600

500

400

300

200
J - - ™•—"

100
-
1800 1810 1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880 1890

Carpinteiros
700

600 A

500 A
400
N
/
300 A

200

100 » v

1800 1810 1820 Í830 1840 1850 1860 1870 1880 1890

Serventes ( homens mulheres)


400 -

300

200 -

100 -

1890
1 8 0 0
"820 1830 1840 1850 1860 1870 1880
549

SAURIOS ANUAIS (EM MIL RÉIS)

1.9001 1 ~—

1 = porteiro da Assembléia da Província; 2 = 3° escrivão; 3 = 1 ° sargento; 4 = enfermeira; 5 = porteiro de orfanato

Empregados médios nos setores público e privado

í o Mcrivâo da tesouraria; 4 - 1 ° escrivão da instr, pública; 5 - copista de orfrnaio


I - 1° ncrívâo do governo; 2 - capitão da Polícia; 3 -
550 BAHIA, S É C U L O X I X

SALÁRIOS ANUAIS (EM MIL RÉIS)

Altos funcionários
5.500

5.000

4.500

4.000
i
3.500
/ 1
1j
7
3.000
1
2.500
A
2.000

1.500

1.000

500

1835 1840 1850 1860 1870 1880 1890


1 = secretário-geral da Assembléia de Província; 2 = chefe de seção (governo); 3 = inspetor do tesouro; 4 = diretor-geral (instr. pública);
5 = comandante-geral da Polícia

Professores
2.100
2.000
1.900
1.800
1.700
1.600
L500
1.400
1.300
1.200
1.100
1.000 l
900
800
1. 7-
700-
600
500
t
400
300
200
1O0

1835 1840 18S0 1880 1890


1860 1870
1 = professor do Liceu; 2 = peoí. dc 3 * ano; 3 - prof, de 2 " ano; 4 = prof, de escola privada; 5 - prof, de 1» ano
v?1

corresponde aos trabalhadores manuais A« ^ j ,


dos m e s t r e s - c a r p i n t e i r o s s ã o l a c u n a n c ° $ d
° S m e s t r e s
-pedreiros e

.« e . m c o m A üéncia :L:x;°« o
r o it o X I Xostrabi,hos impo
"- a

t a m d a s listas d o s t r a b a l h a d o r e s c o m u n r h h°* ° U C O n t r a m e s
" « . q « " 5 o cons-
o a d o s ao.s W caloria ^ ^ Z Z ^ Z Z ^
tat. no entanto q u e as curvas d o s salários d o s mestres apresentam t e n Z c s m D

s e m e l h a n t e s às d a s o u t r a s c a t e g o r i a s d e trabalhadores, livres ou escravos, pois e n t "


o p e r a n o s s o h a v . a d . f e r e n ç a d e e s t a t u t o legal: livre, alforriado o u escravo. C a b e obser-
var n o e n t a n t o q u e o s s e r v e n t e s , h o m e n s o u m u l h e r e s , e r a m e m geral recrutados entre
os e s c r a v o s .
A t e n d ê n c i a s e c u l a r d a s seis curvas d e salários é inegavelmente de alta e, nesse
i n t e r v a l o , é possível d i s c e n i r q u a t r o p e r í o d o s de m é d i a duração: 1 8 0 1 - 1 8 3 0 1832-
1855, 1 8 5 6 - 1 8 6 8 / 7 2 e 1 8 6 9 / 7 2 - 1 8 8 9 . O b s e r v a - s e , a o l o n g o do t e m p o , u m a c o n -
c o r d â n c i a q u a s e p e r f e i t a n o m o v i m e n t o d e elevação desses salários. E m cada período,
eles o s c i l a m d e m a n e i r a b a s t a n t e b r u s c a , para b a i x o o u para c i m a , para se estabiliza-
r e m d e p o i s , m a n t e n d o - s e p o r vezes quase inalterados p o r m u i t o t e m p o . A t é 1855, as
o s c i l a ç õ e s p a r a b a i x o o u p a r a c i m a são m u i t o mais freqüentes para os salários dos
t r a b a l h a d o r e s m a n u a i s e s p e c i a l i z a d o s d o q u e para os dos serventes, que exibem u m a
q u a s e - e s t a b i l i d a d e . I s t o p a r e c e c o e r e n t e , p o r q u e os artesãos representavam u m a m ã o -
d e - o b r a e s p e c i a l i z a d a , m e n o s a b u n d a n t e n o m e r c a d o q u e os simples serventes. N o
e n t a n t o , a t é 1 8 5 5 o s salários d o s pedreiros e d o s carpinteiros oscilaram m e n o s ; de
f a t o , c o n s t a t a - s e q u e b a i x a s e altas e r a m m u i t o regulares e suaves, tendo promovido a
p a s s a g e m d e u m nível d e s a l á r i o , v i g e n t e de 1801 a 1 8 3 1 , a u m o u t r o , de 1832 a
1 8 5 5 ( u m ú n i c o p i c o d e alta, e m 1 8 4 8 , foi s e g u i d o d e estabilidade). As baixas exi-
b e m c o m p o r t a m e n t o s e m e l h a n t e , n u n c a levando a níveis inferiores àquele e m q u é se
i n i c i a r a a t e n d ê n c i a d e e l e v a ç ã o , e x c e t o n o s c i n c o p r i m e i r o s anos d e nosso período,
e m q u e h o u v e u m a t e n d ê n c i a geral à alta.
E m r e s u m o : n a p r i m e i r a m e t a d e d o s é c u l o , os salários se alteraram, mas paulau-
n a m e n t e , e s t a b i l i z a n d o - s e e m dois patamares q u e tiveram duração aproximada: 1 8 0 1 -
1831 e 1 8 3 2 - 1 8 5 5 . U m a análise m a i s detida, p o r é m , revela q u e n o p n m e . r o destes
períodos o salário d o s p e d r e i r o s t e n d e u a baixa e q u e , nesse ú l t i m o a n o , esses artesãos
i • , o m d 6 0 - 0 0 0 de réis); e m contrapartida, o salário dos
r e c e b i a m o m e s m o q u e e m 1HUI (.lou.uuu
m
* '' u c
'
c , a

, ,H
, i r n - n n o de réis e m 1 8 0 1 , chegava a 2 0 0 : 0 0 0 de ré.s em
c a r p i n t e i r o s , t a m b é m d e 16Ü:ÜUU cie reis c m . o v b
i oí 1 j . l « , ^ 5 n d e 25%. N ã o t e n h o c o m o explicar essa diferença,
1831, a p r e s e n t a n d o u m a elevação a e /«• „_,•„!
1
. , , • n f_ n 8 3 2 - 1 8 5 5 ) os salários de pedreiros e carpintei-
t a n t o mais q u e n o p e r í o d o s e g u i n t e \\o D * ^ ' l o
« * »\*Ac,- n t n

. •". i • ,.-,1 Ar tal m o d o q u e a diferença toi anulada, os


ros p r o g r c d . r a m ^ ^ ^ ^ , pedreiros e carpintei- 1 8 5 5

p t m e t r o , sub.ram ^ m B a n t o recebiam esses dois


n S o s e s l b e q U

ros recebiam o s m e s m o s Z5U:uuu u c iw. ^ . . , •j

1 8 3 1 u m a elevação q u e os d o s peareiro» *u : t\ n r n e

i oíii , 1 « i l os salários tenderam a baixa, mas seu nível n o início e


uma outra: entre 1 8 0 1 e l o ^ i » o s s « u * » w a
552 BAHIA, SÉCULO X I X

n o f i m d o p e r í o d o era o m e s m o ; e n t r e 1 8 3 2 e 1 8 5 5 ^ t i v e r a m u m a u m e n t o real, pois


as o s c i l a ç õ e s o c o r r i d a s nesse i n t e r v a l o e r a m t o d a s de a l t a . O f e n ô m e n o talvez se deva,
e m p a r t e , a o a u m e n t o d a c i r c u l a ç ã o m o n e t á r i a d e c o r r e n t e d o d e r r a m e d e m o e d a s falsas
d e c o b r e e das e m i s s õ e s b a n c á r i a s , m a s j u l g o q u e é s o b r e t u d o n a flutuação dos preços
d o s a l i m e n t o s q u e a e x p l i c a ç ã o d e v e ser b u s c a d a . V o l t a r e i a i s t o .
R e s t a m o s p e r í o d o s 1 8 5 6 - 1 8 6 8 / 7 2 e 1 8 6 9 / 7 2 - 1 8 8 9 . N e l e s , o s s a l á r i o s t a m b é m se
elevaram por patamares sucessivos. M a s o q u e os m a r c o u de f o r m a especial foi, por um
lado, u m a forte alta e n t r e 1 8 5 6 e 1 8 6 9 / 7 3 e, p o r o u t r o , u m a notável estabilidade,
s o b r e t u d o a p ó s 1 8 7 5 . E m b o r a as o s c i l a ç õ e s t i v e s s e m e m geral u m s e n t i d o de alta,
registravam-se t a m b é m fortes q u e d a s , a i n d a q u e os salários n u n c a descessem abaixo do
nível e m q u e se i n i c i a r a o m o v i m e n t o a s c e n d e n t e . E n t r e 1 8 5 6 e 1 8 6 9 , o salário dos
p e d r e i r o s d o b r o u , a s s i m c o m o o d o s c a r p i n t e i r o s e n t r e 1 8 5 6 e 1 8 7 3 . E m seguida, os
salários se e s t a b i l i z a r a m e m seus n í v e i s d e 1 8 6 9 e 1 8 7 3 , c o m e x c e ç ã o de a u m e n t o s q u e
n ã o t e n h o c o m o e x p l i c a r : u m d o s p e d r e i r o s , d e 2 5 % , e n t r e 1 8 7 3 e 1 8 7 4 , e o u t r o dos
c a r p i n t e i r o s , d e 2 0 % , e m 1 8 7 4 . C a b e l e m b r a r q u e e m 1 8 6 8 as e x p o r t a ç õ e s d a B a h i a
c o m e ç a r a m a d e c l i n a r . H a v e r i a u m a r e l a ç ã o e n t r e essas d u a s t e n d ê n c i a s ? A análise do
c o m p o r t a m e n t o dos preços dos a l i m e n t o s ajudará a elucidar esta questão.

N o c o n j u n t o d o p e r í o d o 1 8 0 1 - 1 8 8 9 , o s s a l á r i o s d e s s a s d u a s c a t e g o r i a s de artesãos
s u b i r a m 2 1 2 , 5 % , m a s f o i e n t r e 1 8 3 2 e 1 8 7 3 q u e essa a l t a o c o r r e u . O s salários dos
serventes t a m b é m a u m e n t a r a m : o s das m u l h e r e s e m 1 6 6 % (os d a d o s s o b r e m u l h e r e s
n a c o n s t r u ç ã o civil p a r a r a m e m 1 8 4 8 ) e o s d o s h o m e n s e m 5 2 5 % , o q u e representa a
m a i o r e l e v a ç ã o e n t r e t o d o s o s s a l á r i o s d e 1 8 0 1 a 1 8 8 9 . P o d e - s e n o t a r a i n d a q u e , se e m
1 8 0 1 u m s e r v e n t e r e c e b i a 1/4 d o s a l á r i o d e u m p e d r e i r o o u d e u m c a r p i n t e i r o , em
1 8 8 9 r e c e b i a e x a t a m e n t e 3 / 5 . I s t o p o d e ser i n d í c i o d e u m a falta d e m ã o - d e - o b r a n ã o
especializada, i d é i a q u e é c o r r o b o r a d a p e l o f a t o d e q u e só esses t r a b a l h a d o r e s tiveram
a u m e n t o salarial a p ó s 1 8 7 3 .
O s q u i n z e salários p a g o s p e l o s s e t o r e s p ú b l i c o e p r i v a d o para a força de t r a b a l h o
n ã o m a n u a l e v o l u í r a m d o m e s m o m o d o q u e o s d o s artesãos e serventes: l o n g o s p e r í o -
dos de estabilidade f o r a m s e g u i d o s p o r altas b a s t a n t e expressivas, q u e p r e c e d e m novos
períodos de e s t a b i l i d a d e . A o c o n t r á r i o , p o r é m , d o q u e o c o r r e u c o m os trabalhadores
m a n u a i s , n ã o se p r o d u z i r a m q u e d a s , o q u e é n o r m a l n o c a s o das categorias envolvidas.
N o s períodos em q u e o s d a d o s são c o m p a r á v e i s o s salários a u m e n t a m nas m e s m a s fases
q u e o s dos artesãos, c o m d i f e r e n ç a s de q u a t r o a seis a n o s .
F o r a dessas fases, p o r é m , dois g r u p o s de salários tiveram u m comportamento
diferente: o dos oficiais e s u b o f i c í a i s d e P o l í c i a c o dos e m p r e g a d o s n ã o manuais do
setor privado. Aliás, para esses dois tipos de assalariados, as séries c r o n o l ó g i c a s são mais
longas: c o m e ç a m e m 1 8 3 5 para o pessoal da P o l í c i a e em 1 8 4 0 para os empregados do
orfanato S ã o J o a q u i m .
Após l o n g o p e r í o d o de estabilidade ( 1 8 3 5 - 1 8 5 0 ) , os salários d o pessoal da P o -
lícia tiveram sucessivas elevações. E n t r e 1 8 5 0 e 1 8 6 1 , o d o c o m a n d a n t e geral subiu
1 2 0 % , o dos capitães 8 5 % , o dos primeiros-sargentos 6 6 % e o d o restante do pes-
LrvRoVII — O DINHEIRO DOS BAIANOS 553

soai da p o l í c i a t a m b é m a u m e n t o u . Seguiu-se u m a fase de estabilidade até 1 8 8 9 , q u a n -


do o salário d o c o m a n d a n t e s u b i u 2 5 % , o dos capitães 3 8 % e o dos sargentos 20«/«.
Esses a u m e n t o s , m u i t o s u p e r i o r e s aos q u e os artesãos tiveram n o m e s m o p e r í o d o ,
e x p l i c a m - s e pela d i f i c u l d a d e q u e t i n h a o g o v e r n o para recrutar policiais, f u n ç ã o q u e
afugentava o s j o v e n s , s o b r e t u d o p o r i m p o r f r e q ü e n t e s e p e n o s o s d e s l o c a m e n t o s para
o interior d a P r o v í n c i a . A c r e s c e q u e o c ó l e r a - m o r b o d i m i n u í r a o n ú m e r o dos q u e
teriam c o n d i ç õ e s d e servir. O f e r e c e r salários e r a , assim, o ú n i c o m e i o de atrair re-
crutas, t a n t o p a r a o c o r p o d o s o f i c i a i s c o m o para o d o s s u b o f i c i a i s . A estabilização
desses salários a p ó s 1 8 6 1 sugere q u e o p r o b l e m a d o r e c r u t a m e n t o fora resolvido,
pelo m e n o s a t é 1 8 8 9 , q u a n d o o c o r r e u n o v a alta. É preciso observar, n o e n t a n t o ,
que, se e m 1 8 6 1 o s p o l i c i a i s g a n h a v a m m a i s q u e f u n c i o n á r i o s civis de nível equiva-
lente, n o p e r í o d o s e g u i n t e v i r a m - s e e m d e s v a n t a g e m , o q u e t a m b é m j u s t i f i c a o a u -
mento recebido e m 1 8 8 9 .

T A B E L A 93

SALÁRIOS D E POLICIAIS E FUNCIONÁRIOS CIVIS D E NÍVEL


E Q U I V A L E N T E E M S A L V A D O R ( E M C O N T O S D E RÉIS)

1861 1871 1889

Comandante 3:168 3:360 3:960

Direror Geral da Instrução Pública 3:000 4:000 4:000

Capitão 1:560 1:560 2:160

Primeiro-escrevente (Governo) 2:100 2:100 2:600

Sargento :500 :600 :600

Tcrceiro-escrevente (Governo) :730 :800 1:200

C a d a m i l réis a m a i s c o n t a v a m u i t o , pois u m salário alto e n o b r e c i a a f u n ç ã o e


conferia p r e s t í g i o s o c i a l , t o r n a n d o - a m a i s a t r a e n t e , s o b r e t u d o nas fileiras dos q u e
exerciam f u n ç õ e s s u b a l t e r n a s .
O s e g u n d o g r u p o d e salários é o d o O r f a n a t o d e S ã o J o a q u i m . O b s e r v a - s e q u e os
salários d o s e m p r e g a d o s d e nível i n f e r i o r dessa i n s t i t u i ç ã o — os d e porteiro e de
enfermeira — a u m e n t a r a m j u n t o c o m os dos policiais: d o b r a r a m d e valor e n t r e 1 8 5 5
e 1 8 5 8 , passando o p o r t e i r o d e 6 0 : 0 0 0 a 1 2 0 : 0 0 0 d e réis anuais e a enfermeira de
1 2 0 : 0 0 0 a 2 4 0 : 0 0 0 d e réis. E s t e ú l t i m o , p o r é m , parece ter a t i n g i d o e n t ã o seu p o n t o
m á x i m o , pois ficou i n a l t e r a d o até 1 8 9 9 , a o passo q u e o d o porteiro a u m e n t o u mais
3 3 , 3 % c m 1 8 6 8 , t a m b é m se i m o b i l i z a n d o d e p o i s . O salário d o escrevente, e m p r e g a d o
dc nível m é d i o , a u m e n t o u 1 2 2 , 2 % (de 4 5 0 : 0 0 0 de réis para 1 . 0 0 0 : 0 0 0 de réis) entre
1 8 5 4 c 1 8 5 8 , ficando i n a l t e r a d o até 1 8 8 9 . Essas elevações de até mais de 1 0 0 % se
explicam p r o v a v e l m e n t e pelo c ó l e r a - m o r b o , q u e deve ter atingido t a m b é m o pessoal
do orfanato; mais u m a vez, p o r é m , penso q u e u m a outra explicação deve ser buscada
i o m o v i m e n t o d o s preços d o s a l i m e n t o s d e primeira necessidade.
BAHIA, S É C U L O XIX
554

Esse g r u p o d e salários d o s e t o r p r i v a d o era n o t o r i a m e n t e b a i x o , se c o m p a r a d o ao


d o pessoal d o setor p ú b l i c o . O salário d o e s c r e v e n t e , c u j a f u n ç ã o devia ser m u i t o
semelhante à do primeiro-secretário do governo, ou m e s m o de u m primeiro-secretário
da I n s t r u ç ã o P ú b l i c a , era 1 1 0 % e 2 0 % i n f e r i o r a o deles, r e s p e c t i v a m e n t e . N ã o se
p o d e , c o n t u d o , generalizar esta c o n s t a t a ç ã o a o c o n j u n t o dos salários d o s e t o r privado:
estes e r a m d e fato, n o c o n j u n t o , i n f e r i o r e s aos d o setor p ú b l i c o , m a s e m p r o p o r ç õ e s
mais m o d e s t a s . Q u a n t o aos salários de p o r t e i r o e e n f e r m e i r a , m u i t o baixos m e s m o
c o m p a r a d o s a o s d o s artesãos, c a b e l e m b r a r q u e e r a m c o m p e n s a d o s pelas v a n t a g e n s d o
a l o j a m e n t o e da a l i m e n t a ç ã o , p r ó p r i a s desses t i p o s de f u n ç õ e s .

A t é o m o m e n t o , a n a l i s a m o s os m o v i m e n t o s desses s a l á r i o s , p r o c u r a n d o seguir o
r i t m o de suas v a r i a ç õ e s n o t e m p o . A i n d a q u e tal r i t m o fosse i d ê n t i c o , as séries de que
disponho t ê m durações diferentes, o q u e i m p e d e c o m p a r a ç õ e s mais finas. Podemos,
c o n t u d o , c o m p a r a r o m o v i m e n t o de três desses d e z o i t o s a l á r i o s e n t r e 1 8 5 9 / 6 1 e 1 8 8 9 .
M e u interesse é v e r i f i c a r t a n t o a p r o p o r ç ã o e m q u e a u m e n t a r a m c o m o o grau de
variação q u e e x i b i a m ,

A p r o g r e s s ã o m a i s a c e n t u a d a é a d o s salários d o s f u n c i o n á r i o s d a F a z e n d a . S e t o r
importante do governo — p o i s dele d e p e n d i a a g e s t ã o das finanças da Província — ,
seus f u n c i o n á r i o s e s t a v a m e n t r e os m a i s b e m r e m u n e r a d o s e m t o d o o serviço p ú b l i c o .
O inspetor da Fazenda, por e x e m p l o , t o r n o u - s e e m 1 8 7 6 o mais b e m pago funcionário
d o g o v e r n o (até e n t ã o , g a n h a v a o m e s m o q u e o d i r e t o r geral d a I n s t r u ç ã o P ú b l i c a ) . P o r
o u t r o l a d o , os a l t o s f u n c i o n á r i o s d a a d m i n i s t r a ç ã o p r o v i n c i a l t i n h a m e m geral c a m i -
n h o a b e r t o para a c o n q u i s t a de c a r g o s p o l í t i c o s de p r i m e i r o p l a n o , seja n o P a r l a m e n t o ,
seja n a p r ó p r i a p r e s i d ê n c i a o u v i c e - p r e s i d ê n c i a d a P r o v í n c i a , m u i t a s vezes ocupadas
por m a g i s t r a d o s de a l t o n í v e l , j u í z e s d o T r i b u n a l de J u s t i ç a .

C o n s t a t a - s e t a m b é m q u e , n o setor p ú b l i c o , f o r a m os salários dos oficiais e suboficiais


da P o l í c i a q u e m e n o s a u m e n t a r a m . A d e m a i s , a o c o n t r á r i o d o q u e se p o d e r i a prever, os
salários dos oficiais d e g r a u m é d i o f o r a m m a i s f a v o r e c i d o s q u e os d o s s u b o f i c i a i s .
Q u a n t o às d e m a i s c a t e g o r i a s d e s e r v i d o r e s d o E s t a d o , o s salários a v a n ç a r a m em
percentuais p r a t i c a m e n t e d a m e s m a o r d e m .
N o t o c a n t e aos e m p r e g a d o s d o C o l é g i o d o s Ó r f ã o s de S ã o J o a q u i m , v i m o s q u e os
salários dos escreventes e das e n f e r m e i r a s ficaram paralisados. O s p o r t e i r o s tiveram um
a u m e n t o de 5 0 % , mas seu salário e m 1 8 6 1 era m u i t o b a i x o ( 1 2 0 : 0 0 0 de réis anuais,
c o n t r a 2 8 0 : 0 0 0 de réis p a g o s a o c o z i n h e i r o e ao e n c a r r e g a d o das b e b i d a s ) . P o r fim, os
artesãos e serventes tiveram a u m e n t o s salariais da m e s m a o r d e m q u e os servidores
públicos. T a n t o c m 1 8 6 1 c o m o e m 1 8 8 9 , n e n h u m f u n c i o n á r i o p ú b l i c o , p o r m o d e s t o
que fosse, ganhava m e n o s q u e u m artesão, e x c e t o , talvez, o s o l d a d o da Polícia, que
trabalhava todos os dias ( c o n t r a 2 5 0 dias, e m m é d i a , dos artesãos), mas n ã o tinha
despesas de vestuário, c o m i d a e a l o j a m e n t o .
S e classificamos os salários em três faixas o u níveis — altos, médios e baixos — ,
e n c o n t r a m o s grandes variações, inclusive d e n t r o de cada u m deles. E m 1 8 6 3 o salário
do diretor da Instrução P ú b l i c a era trinta vezes m a i o r q u e o salário mais baixo entre
555

TABELA 94

PROGRESSÃO DOS SAUR,OS NO SETOR PÜBUCO

SETOR PÚBLICO
ANOS %
Altos funcionários
Comandante de Polícia
1861-1889 25,0
Secretário Geral da Assembléia Provincial
1863-1889 38,0
Chefe de Seção
1861-1889 35,0
Inspetor do Tesouro
1863-1889 78,6
Diretor Geral de Instrução Pública
1860-1889 33,0.
Funcionários médios
Primeiro-escrevente (Governo)
1861-1889 23,0
Primeiro-escrevente (Tesouraria)
1863-1889 28,0
Primeiro-escrevente (Instrução Pública)
1861-1889 33,3
Capitão de Polícia
1861-1889 38,0
Funcionários subalternos
Terceiro-escrevente (Fazenda) 1863-1889 64,4
Porteiro (Assembléia Provincial) 1863-1889 50,0
Primeiro-sargento de Polícia 1861-1889 20,0

SETOR PRIVADO

Orfanato São Joaquim


Escrevente 1860-1889 0,0
Porteiro 1860-1889 50,0
Enfermeira 1860-1889 0,0

Artesãos
Pedreiro 1860-1889 25,0
Carpinteiro 1859-1889 39,0
Serventes 1861-1889 33,0

todos os q u e r e g i s t r a m o s , o d e p o r t e i r o d o C o l é g i o S ã o J o a q u i m , m a s só 3 , 5 vezes
m a i o r q u e o d o e s c r e v e n t e d a m e s m a i n s t i t u i ç ã o , q u e r e c e b i a o salário m é d i o mais
b a i x o ; e m 1 8 6 9 , o p o r t e i r o c o n t i n u a v a t e n d o o salário m a i s b a i x o , e sua relação c o m
o mais a l t o n a o c a s i ã o ( o d o i n s p e t o r d o T e s o u r o ) era d e 2 7 , 7 ; o escrevente ganhava
agora u m s a l á r i o c i n c o vezes m e n o r q u e o m a i s a l t o d o p e r í o d o . P o r o u t r o lado, em
1 8 6 1 , o salário d o e s c r e v e n t e era 8 , 3 vezes m a i o r q u e o d o p o r t e i r o e, e m 1 8 8 9 , apenas
6 , 5 vezes, e m b o r a a m b o s f o s s e m e m p r e g a d o s d a m e s m a i n s t i t u i ç ã o . A tabela 9 5 m o s -
tra a média dos salários para o s três níveis e m 1 8 6 3 e 1 8 8 9 . C o n s i d e r e i altos os salários
c o m p r e e n d i d o s e n t r e 2 : 0 0 0 e 5 : 0 0 0 de réis, m é d i o s os c o m p r e e n d i d o s e n t r e 1 : 0 0 0 e
2 : 0 0 0 de réis e b a i x o s os i n f e r i o r e s a esse p a t a m a r . F o r a m e x c l u í d o s os sa a n o s - como
o de capitão de Polícia - q u e , c m 1 8 8 9 , estavam n u m nível diferente d o original
Em 1 8 6 3 , as d i f e r e n ç a s e n t r e esses três níveis eram as seguintes: a media dos
salários altos era 2 , 2 vezes m a i o r q u e a m é d i a dos salários m é d i o s e 6 , 2 vezes mais alta
que a m é d i a d o s salários b a i x o s . A m é d i a dos salários médios era 2 , 8 vezes superior à
média dos salários b a i x o s . E m 1 8 8 9 , o fim d o p e r í o d o , as relações e n t r e essas três
grandes faixas salariais eram p r a t i c a m e n t e as m e s m a s , apesar da diferença nas p r o p o r -
m BAHIA. S*CVÏ o XIX

TABELA §3
Média Salarial, 1 8 6 3 i 1 8 8 ) 1
(m comos m rfis)

FAOUS N* 1863

Toi *i Mfï»u TOTAI

SjkÜrkH aim 7 I8;580 2.6S4 24 9 2 0 3:^60

? 8:400 1:200 10:900 1:500

11 5J56 :428 6:314 :526

ç õ c s c m q u e a l g u n s d o s salários t i n h a m a u m e n t a d o . N ã o o b s t a n t e , a d i f e r e n ç a e n t r e o
salário m a i s b a i x o e o m a i s a l t o era e n o r m e , c o m o n ã o p o d i a d e i x a r d e ser, dada a
e s t r u t u r a e c o n ô m i c a e social d a é p o c a . É p r e c i s o t e r e m m e n t e , a i n d a , q u e os salários
b a i x o s r e p r e s e n t a v a m m u i t a s vezes a t o t a l i d a d e d o g a n h o de u m a s s a l a r i a d o , e n q u a n t o
os m a i s a l t o s e m geral n ã o p a s s a v a m d e c o m p l e m e n t o s d e r e n d a s b e m m a i s elevadas,
o r i u n d a s de a ç õ e s , i m ó v e i s , o b r i g a ç õ e s b a n c á r i a s o u d o E s t a d o , p r o p r i e d a d e s rurais ou
do comércio.

E m b o r a insuficiente — à falta d e m a i o r n ú m e r o e v a r i e d a d e d e séries — , esta


análise d o s salários p r a t i c a d o s n o m e r c a d o de S a l v a d o r t e m o m é r i t o de oferecer
a l g u m a s o r d e n s de grande/a. Estas d e m o n s t r a m q u e o s salários s u b i a m p o r patamares
sucessivos, q u e d u r a v a m p o r vezes vários a n o s , e n t r e c o r t a d o s p o r e l e v a ç õ e s rápidas e de
g r a n d e a m p l i t u d e . O s a u m e n t o s d e s t i n a v a r n - s c , a o q u e p a r e c e , a r e c u p e r a r defasagens
dos salários e m r e l a ç ã o a o s p r e ç o s . íi v e r d a d e t a m b é m q u e a m a i o r i a dos salários aqui
analisados v ê m d o setor p ú b l i c o c d e u m a i n s t i t u i ç ã o de c a r i d a d e . T a l v e z sua evolução
n o setor s e c u n d á r i o fosse d i f e r e n t e , c o m o o s u g e r e m os salários dos artesãos, c m que
s c registram baixas c altas e m fases c m q u e os dos e m p r e g a d o s dos setores públicos e
privados p e r m a n e c i a m estáveis. S e j a c o m o f o r , se h a v i a atrasos a recuperar, impõe-se
t e n t a r verificar q u e m o s r e c u p e r a v a , c c o m o . D e f a t o , a a n á l i s e m o s t r o u q u e alguns
salários s u b i a m mais q u e o u t r o s , a d e s p e i t o d a c o n c o r d â n c i a geral d o c o n j u n t o dos
m o v i m e n t o s a o l o n g o d o t e m p o . F i n a l m e n t e , as d i f e r e n ç a s e n t r e os vários níveis
salariais não se a l t e r a r a m , p e r m a n e c e n d o e n o r m e s . Estas três c o n s t a t a ç õ e s oferecem
p a r â m e t r o s suficientes para u m e x a m e das relações e n t r e o s m o v i m e n t o s dos preços e
dos salários.

PREÇOS E NECESSIDADES ALIMENTARES

N o s estudos sobre o s m o v i m e n t o s dos preços, os historiadores parecem ter seguido


duas tendencias q u a n t o às fontes dos dados a serem p o s t e r i o r m e n t e submetidos a um
t r a t a m e n t o p r o p r i a m e n t e estatístico. A primeira foi sugerida p o r Earl J . H a m i l t o n ,
que deu preferência às contabilidades de instituições hospitalares, c o n v e n t o s e grandes
casas senhoriais, obrigadas a fazer c o m p r a s regulares para a l i m e n t a r seu pessoal.
J-rvRo VII - O D I N H E I R O DOS BAIANOS 557

S e g u n d o H a m i l t o n , o s p r e ç o s d o s g ê n e r o s registrados nesses livros c o n t á b e i s seriam


i n t e r m e d i á r i o s e n t r e o s d o a t a c a d o e os d o v a r e j o , e p o r t a n t o de difícil c l a s s i f i c a ç ã o . 7

A o u t r a t e n d ê n c i a , q u e t e v e s e u e x p o e n t e c m E r n e s t L a b r o u s s e , privilegia as tabelas
oficiais, e m geral m o n t a d a s e p u b l i c a d a s pelas a u t o r i d a d e s m u n i c i p a i s , q u e i n f o r m a m
os preços p r a t i c a d o s n o m e r c a d o . As c o t a ç õ e s dessas t a b e l a s , q u e p o d e m ser s e m a n a i s ,
8

bimensais o u m e n s a i s , r e s u l t a m d o a j u s t e e n t r e a o f e r t a e a d e m a n d a , pressupondo
portanto u m m e r c a d o livre.

Estes d o i s p r e c u r s o r e s d o e s t u d o d o s m o v i m e n t o s d o s preços c r i t i c a r a m - s e m u t u a -
m e n t e . H a m i l t o n r e s s a l t o u q u e as séries a p r e s e n t a d a s p o r L a b r o u s s e c o n t i n h a m dados
já e l a b o r a d o s , c u j a s b a s e s p e r m a n e c i a m d e s c o n h e c i d a s . L a b r o u s s e , p o r sua vez, alegou
que as séries q u e H a m i l t o n usava n ã o r e p r e s e n t a v a m t o d a a g a m a dos preços d o
m e r c a d o , c o m p o n d o - s e a d e m a i s d e v a l o r e s i n f e r i o r e s aos q u e nele se praticavam, u m a
vez q u e as i n s t i t u i ç õ e s g o z a v a m d e c e r t o s p r i v i l é g i o s e m r e l a ç ã o aos c o m p r a d o r e s
c o m u n s . V i t o r i n o M a g a l h ã e s G o d i n h o t e n t o u c o n c i l i a r os d o i s c a m i n h o s , p r o p o n d o o
uso s i m u l t â n e o d o s d o i s t i p o s d e d o c u m e n t o , d e tal m o d o q u e u m a série controlasse a
outra. 9
N a p r á t i c a , o h i s t o r i a d o r s ó p o d e se d a r a o l u x o de e s c o l h e r e n t r e esses três
c a m i n h o s se d i s p u s e r d e t o d a s essas f o n t e s e se as m e s m a s c o n t i v e r e m dados c o n t í n u o s
e h o m o g ê n e o s o b a s t a n t e p a r a o e s t a b e l e c i m e n t o d e séries úteis.

N o B r a s i l , s ó f o r a m f e i t o s e s t u d o s d e p r e ç o s de g ê n e r o s d e p r i m e i r a necessidade
c o m r e l a ç ã o a R e c i f e , S a l v a d o r e R i o de J a n e i r o . P o r c a u s a d o s p e r í o d o s estudados, só
os referentes às d u a s ú l t i m a s c i d a d e s p o d e m s e r úteis a q u i . 1 0
A i n d a assim, as c o m p a -
rações são d i f í c e i s , p o r c a u s a das d i f e r e n ç a s e n t r e as f o n t e s utilizadas na e l a b o r a ç ã o das
estatísticas, e n t r e os p r o d u t o s c o n s i d e r a d o s e as a b o r d a g e n s teóricas adotadas.

O s m o v i m e n t o s dos preços n o R i o de J a n e i r o foram estudados por Harold B .


Johnson J r . , Eulália M a r i a Lahmeyer, historiadores, e Mircea Buescu, economista.
O n o r t e - a m e r i c a n o J o h n s o n e s t u d o u a m o e d a e os preços n o R i o de J a n e i r o entre
1 7 6 0 e 1 8 2 0 . M o n t o u suas séries c o m d a d o s c o l h i d o s e m q u a t r o instituições: um
leprosário, a S a n t a C a s a d e M i s e r i c ó r d i a e as i r m a n d a d e s d a O r d e m T e r c e i r a de S ã o
F r a n c i s c o da P e n i t ê n c i a e S ã o F r a n c i s c o de P a u l a . S e g u n d o ele, havia h o m o g e n e i d a d e
entre os preços c o n s i d e r a d o s , p o i s c o r r e s p o n d i a m aos praticados n o m e r c a d o e as
instituições envolvidas e r a m s i m i l a r e s ( q u a n d o havia c o n t r a t o e n t r e a instituição e o
fornecedor, isso era m e n c i o n a d o n o s d o c u m e n t o s ) . 1 1
A s fontes deste estudo apresen-
tam p o r t a n t o as m e s m a s v a n t a g e n s ( e l a b o r a ç ã o a partir de dados brutos) e os m e s m o s
inconvenientes ( p r e ç o s m u i t a s vezes resultantes de c o n t r a t o ) q u e as utilizadas p o r
H a m i l t o n n o seu e s t u d o s o b r e a E s p a n h a n o s é c u l o X V I .
J o h n s o n c o n s i d e r o u d e z o i t o p r o d u t o s divididos e m q u a t r o grupos: aguardente de
cana, farinha de m a n d i o c a , sal, t i j o l o s , ó l e o de baleia, m i l h o e feijão, gêneros p r o d u -
zidos e c o n s u m i d o s l o c a l m e n t e ( g r u p o I ) ; arroz e açúcar, gêneros produzidos e consu-
midos l o c a l m e n t e mas t a m b é m e x p o r t a d o s , s e n d o seu preço determinado pelos m e r -
cados externos ( g r u p o I I ) ; farinha de trigo, carne-seca e t o u c i n h o , gêneros produzidos
e c o n s u m i d o s l o c a l m e n t e , mas e m quantidades insuficientes, sendo t a m b é m i m p o r t a -
558 BAHIA, S É C U L O X I X

dos de o u t r a s p a r t e s d o país o u m e s m o d a A m é r i c a E s p a n h o l a ( g r u p o I I I ) ; e, p o r fim,


v i n h o s , v i n h o d o P o r t o , v i n a g r e , azeite de o l i v a , m a n t e i g a e c e r a , p r o d u t o s i m p o r t a d o s
da Europa (grupo I V ) . A p l i c a n d o , para a análise da flutuação d o s p r e ç o s , a f ó r m u l a de
I. F i s h e r — q u e m e p a r e c e p o u c o i n d i c a d a n o c a s o — , o a u t o r m o s t r a q u e a e c o n o m i a
brasileira dos s é c u l o s X V I I I e X I X n ã o era f e c h a d a , o q u e a d i s t i n g u i a das e c o n o m i a s
do C h i l e e da A r g e n t i n a , estudadas por R u g g i e r o R o m a n o . 1 2

O e s t u d o de E u l á l i a M a r i a L a h m e y e r L o b o , q u e a b a r c a o p e r í o d o de 1 8 2 0 a 1 9 3 0 ,
t e m q u a t r o o b j e t i v o s : a n a l i s a r os e v e n t u a i s a s p e c t o s c í c l i c o s de u m a e c o n o m i a de
t r a n s i ç ã o p a r a u m a s o c i e d a d e c a p i t a l i s t a ; u t i l i z a r o s p r e ç o s c o m o i n d i c a d o r e s para o
e s t a b e l e c i m e n t o d e u m a p e r i o d i z a ç ã o m a i s o b j e t i v a ; p r e c i s a r a i n f l u ê n c i a dos m o d e l o s
de e x p o r t a ç ã o s o b r e o s p r e ç o s d o m e r c a d o i n t e r n o ; v e r i f i c a r as r e l a ç õ e s e n t r e o s preços
d o m e r c a d o i n t e r n o e o p r o c e s s o de i n d u s t r i a l i z a ç ã o .

E s c o l h e n d o treze p r o d u t o s , a a u t o r a d e c l a r a " t e r t e n t a d o o b t e r p r e ç o s de p r o d u t o s
h o m o g ê n e o s e da m e s m a f o n t e g e o g r á f i c a " . 1 3
Não fica c l a r o , c o n t u d o , o q u e ela
e n t e n d e p o r p r o d u t o s h o m o g ê n e o s : h o m o g ê n e o s c o m r e l a ç ã o a q u ê ? E m relação a
séries c r o n o l ó g i c a s de igual d u r a ç ã o o u à q u a l i d a d e d o p r o d u t o , q u e p o d e variar
m u i t o ? As f o n t e s u t i l i z a d a s são d e d o i s t i p o s : p o r u m l a d o , h o s p i t a i s e i r m a n d a d e s
( S a n t a C a s a de M i s e r i c ó r d i a e O r d e m T e r c e i r a d e S ã o F r a n c i s c o d a P e n i t ê n c i a ) e, por
o u t r o , o Jornal do Commercio, q u e p o d e ser c o n s i d e r a d o u m a f o n t e o f i c i a l d a época,
c o m d a d o s q u e t ê m as c a r a c t e r í s t i c a s das t a b e l a s d i v u l g a d a s pelas a u t o r i d a d e s . D e fato,
a n a l i s a n d o estas f o n t e s , a a u t o r a d i z : " O s p r e ç o s das i n s t i t u i ç õ e s religiosas são mais
b a i x o s q u e o s d o m e r c a d o , p o r c a u s a das r e d u ç õ e s o f e r e c i d a s p e l o s f o r n e c e d o r e s nas
c o m p r a s e m grandes q u a n t i d a d e s . O s p r e ç o s o f i c i a i s p u b l i c a d o s n o Jornal do Commercio
de 1 8 4 0 a 1 8 7 0 , s o b a r u b r i c a ' P r e ç o s c o r r e n t e s d a P r a ç a ' , e d e 1 8 7 0 a 1 9 0 0 na Revista
do Mercada e e m Gêneros de Consumo, são m a i s b a i x o s q u e o s d a v e n d a n o v a r e j o e mais
altos q u e os da v e n d a n o a t a c a d o . C o i n c i d e m c o m o s das i n s t i t u i ç õ e s . H á u m p e r í o d o
de s u p e r p o s i ç ã o das diversas f o n t e s , q u e p e r m i t i u a c o m p a r a ç ã o d e suas c o n t a b i l i d a -
des; foi necessário t a m b é m fazer u m a p e s q u i s a s o b r e a c o r r e s p o n d ê n c i a e n t r e o s diver-
sos pesos e m e d i d a s utilizados n o c u r s o d e s s e l o n g o p e r í o d o . " 1 4
D e i x a n d o de lado,
nesta longa c i t a ç ã o , a r e f e r ê n c i a aos p e s o s e m e d i d a s , passo a t e n t a r e n t e n d e r o resto.

S e b e m c o m p r e e n d i , L a h m e y e r L o b o u t i l i z o u , para o p e r í o d o 1 8 2 0 - 1 8 4 0 , os
preços c o n s i g n a d o s nos livros d o q u e d e n o m i n a i n s t i t u i ç õ e s religiosas*. O r a , J o h n s o n ,
q u e trabalhou e x a t a m e n t e c o m as m e s m a s f o n t e s e n t r e 1 7 2 0 e 1 8 2 0 , a f i r m a textual-
m e n t e que esses preços " e r a m p r e ç o s d e m e r c a d o , livres, e x c e t o q u a n d o a instituição
fazia um c o n t r a t o e x t r a o r d i n á r i o , q u a s e s e m p r e m e n c i o n a d o " . 1 5
O que Lahmeyer
L o b o sustenta é j u s t a m e n t e o c o n t r á r i o . Ela fala de " r e d u ç õ e s oferecidas pelos f o r n e c e -
d o r e s " , sugerindo q u e , nesse p e r í o d o , essas i n s t i t u i ç õ e s t i n h a m m u d a d o de tática e j á
n ã o sc abasteciam n o m e r c a d o varejista. A a u t o r a , n o e n t a n t o , n ã o d á explicação
alguma sobre o fato e parece ignorar a análise desse t i p o de f o n t e feita p o r J o h n s o n .
F i c a m o s p o r t a n t o na incerteza n o t o c a n t e ac)s o i t e n t a anos ( 1 7 6 0 - 1 8 4 0 ) abrangidos
pela c o m b i n a ç ã o dos estudos de J o h n s o n e dc L a h m e y e r L o b o .
^oVl^o DINHEIRO DOS BAIAN. 559

C o m r e l a ç ã o a o p e r í o d o de 1 8 4 0 a 1 8 9 0 , L a h m e y e r L o b o usou c o m o fontes o
Jornal do Commerao e zRevtsta do Mercado. S e g u n d o ela, os p t e ç o s p u b l i c a d o s nesses
dois j o r n a i s e t a m m a i s b a i x o s q u e os d a v e n d a n o v a t e j o e mais altos q u e os da v e n d a
no a t a c a d o ' . M a i s u m a vez e s t a m o s n o t e i n o da incerteza. Q u e p a r â m e t r o s e m b a s a m
essa a f i r m a ç ã o ? E l a s ó p o d e r i a ser v á l i d a se h o u v e s s e séries de preços n o atacado e n o
varejo, caso e m q u e d e v e r i a m t e r s i d o utilizadas pela a u t o r a . Q u e s i g n i f i c a m , aliás, as
expressões mais baixos e mais altos} C o n t u d o , é c o m base nessa n e b u l o s a apreciação
que a a u t o r a d e c l a r a q u e o s p r e ç o s " o f e r e c i d o s às i n s t i t u i ç õ e s " e r a m . . . ' m é d i o s ' (expres-
são m i n h a ) . P r e o c u p a d a t a l v e z c o m a v e r o s s i m i l h a n ç a , apressa-se e m dizer q u e houve
um p e r í o d o d e s u p e r p o s i ç ã o das diversas f o n t e s q u e p e r m i t i u a c o m p a r a ç ã o de suas
c o n t a b i l i d a d e s . S e isso d e f a t o o c o r r e u , p o r q u e a a u t o r a n ã o e s p e c i f i c o u tal p e r í o d o ,
para f u n d a m e n t a r a a n á l i s e d e suas f o n t e s ? E m s u m a , q u e valor p o d e m o s atribuir a
análises feitas a p a r t i r d e d a d o s t ã o c o n t e s t á v e i s e a p r e s e n t a d a s n u m a História do Rio
de Janeiro: do capital comercial ao capital industrial e financeiro^ 6

N ã o o b s t a n t e , h á e c o n o m i s t a s q u e u s a m tais d a d o s s e m dar m o s t r a s de i n q u i e t a ç ã o
com suas i m p r e c i s õ e s . F o i o c a s o d e M i r c e a B u e s c u , q u e u t i l i z o u séries elaboradas p o r
ele, por J o h n s o n , p o r L a h m e y e r L o b o e p o r m i m m e s m a , e x p l i c a n d o certas i n c o e r ê n -
cias nas v a r i a ç õ e s d o s p r e ç o s a p a r t i r d a i n c o n s i s t ê n c i a d o m e r c a d o , das diferenças n o
n ú m e r o e n a n a t u r e z a d o s p r o d u t o s q u e c o m p õ e m o s í n d i c e s d e c a d a a u t o r (por
exemplo, o p e s o m u i t o a l t o d o s p r o d u t o s n a c i o n a i s de c o n s u m o i n t e r n o e m certos
períodos), s e m j a m a i s q u e s t i o n a r , p o r u m l a d o , a fidedignidade dos dados q u e integra-
vam as séries e, p o r o u t r o , a h o m o g e n e i d a d e dos p r o d u t o s c u j a s variações de preços se
comparavam. 1 7
J á i n d i q u e i o q u a n t o as séries e m q u e s t ã o d e i x a m a desejar n o t o c a n t e
à fidedignidade; q u e r o d e s t a c a r a p e n a s q u e , s e g u n d o M i r c e a B u e s c u , os preços dos
géneros p u b l i c a d o s n o s j o r n a i s s e r i a m os d o a t a c a d o .
N o t o c a n t e à h o m o g e n e i d a d e d o s p r o d u t o s , o p r o b l e m a q u e se c o l o c a é da m e s m a
ordem: além d o p e s o , h á a q u e s t ã o da q u a l i d a d e . N ã o retornarei ao p r o b l e m a dos pesos
c medidas e suas c o n v e r s õ e s , 1 8
m a s g o s t a r i a de frisar mais u m a vez c o m o é i m p o r t a n t e
ter certeza s o b r e a h o m o g e n e i d a d e d o s g ê n e r o s c u j o s preços se c o m p a r a m e da clara
definição destes q u a n d o d a c o m p o s i ç ã o d o s í n d i c e s . D e f a t o , n o caso de quase todos
0 $ alimentos, os preços variam s e g u n d o a qualidade, e u m m e s m o p r o d u t o pode apresen-
tar qualidades diversas. É p r e c i s o , p o r t a n t o , q u e a q u a l i d a d e seja c l a r a m e n t e definida
Para se saber e x a t a m e n t e o q u e se está c o m p a r a n d o . E m sua série sobre os preços do
açúcar, L a h m e y e r L o b o , p o r e x e m p l o , t o m a c o m o ' q u a l i d a d e ' o açúcar mascavo. O r a ,
Buescu considera q u a t r o q u a l i d a d e s de a ç ú c a r , e n t r e b r a n c o s e mascavos, e entre elas
há consideráveis d i f e r e n ç a s de p r e ç o : o açúcar mascavo de tipo S a n t o s era 1 2 , 2 % mais
barato q u c o de t i p o C a m p o s . I n d o mais longe, L a h m e y e r L o b o n ã o hesita em subs-
tituir seu açúcar m a s c a v o de C a m p o s pelos provenientes de P e r n a m b u c o e de M a c e i ó
eada vez que há u m a l a c u n a c m sua série original. O preço do açúcar mascavo que
vinha do N o r d e s t e era m a i s c a r o , mais barato o u igual ao do fluminense? A autora não
*e pronuncia a respeito. E x e m p l o s assim poderiam ser multiplicados, mas s e n a enfa-
360 BAHIA, SÉCULO XIX

d o n h o . D i g o a p e n a s , para c o n c l u i r , q u e n o e s t a d o e m q u e se e n c o n t r a m o s e s t u d o s
s o b r e o s m o v i m e n t o s d o s p r e ç o s e m S a l v a d o r e n o R i o d e J a n e i r o , as c o m p a r a ç õ e s
p o d e m sugerir certas ordens de grandeza, mas de m o d o algum definir m o v i m e n t o s
c í c l i c o s e c o n j u n t u r a i s . S e as f o n t e s p r i m á r i a s s ã o escassas, as séries d i s p o n í v e i s , d a d o
o m o d o c o m o f o r a m p r e p a r a d a s , d e v e m ser u s a d a s c o m a m a i s e x t r e m a p r u d ê n c i a .
P a r a m e u e s t u d o d o s m o v i m e n t o s d o s p r e ç o s na B a h i a , utilizei a ú n i c a f o n t e — a
Santa Casa de Misericórdia — q u e o f e r e c i a as c o n d i ç õ e s n e c e s s á r i a s à e l a b o r a ç ã o
e s t a t í s t i c a . D e i x e i d e usar p e s q u i s a s f e i t a s n o s c o n v e n t o s d o C a r m o , d e S ã o B e n t o , de
S ã o F r a n c i s c o (a c u j o s d a d o s n ã o t i v e a c e s s o d i r e t o ) e d o D e s t e r r o ( q u e n ã o p e r m i t i u
d a d o s h o m o g ê n e o s , n e m c o n t í n u o s ) , b e m c o m o d o s A r q u i v o s M u n i c i p a i s de Salvador
( e m c u j o s registros a p a r e c e m a p e n a s as q u a n t i d a d e s , s e m p r e ç o s ) . T e n h o p l e n a c o n s -
c i ê n c i a das l i m i t a ç õ e s i n e r e n t e s a o u s o d e u m a f o n t e ú n i c a , m a s n ã o h a v i a e s c o l h a , e
a c r e d i t o q u e ela p o d e f o r n e c e r u m a b a s e r e l a t i v a m e n t e c o r r e t a p a r a o a c o m p a n h a m e n -
to dos preços e m Salvador ao l o n g o d o século X I X .

O s livros d e d e s p e s a s d a S a n t a C a s a , a n e x a d o s a o s r e g i s t r o s das r e c e i t a s e despesas,


c o m p õ e m - s e d e d o c u m e n t o s r e f e r e n t e s a t o d o t i p o d e g a s t o e f e t u a d o pela i n s t i t u i ç ã o
e m c a d a a n o c o n t á b i l , s e j a p a r a o h o s p i t a l , s e j a p a r a o r e c o l h i m e n t o d e m u l h e r e s que
f u n c i o n a v a e m a n e x o . E s s e s r e g i s t r o s c o m e ç a r a m a ser f e i t o s n o i n í c i o d o s é c u l o X V I I I ,
m a s a p r e s e n t a m m u i t a s l a c u n a s a t é 1 7 4 0 . A p a r t i r d e e n t ã o t o r n a m - s e regulares e
a s s i m q u a s e s e m p r e se m a n t ê m a t é n o s s o s d i a s . E s t ã o m u i t o b e m c o n s e r v a d o s , e x c e t o
no tocante a alguns anos do século X V I I I , danificados por consultas.

A t é 1 8 2 7 , as despesas d o h o s p i t a l a b r a n g i a m u m a g a m a de p r o d u t o s m u i t o mais
v a r i a d a q u e as d o r e c o l h i m e n t o , c o n t a b i l i z a d a s s e p a r a d a m e n t e . A s s i m , só recorri aos
d a d o s r e f e r e n t e s a e s t e s e t o r d a i n s t i t u i ç ã o p a r a o s a n o s e m q u e m e f a l t a v a m dados
r e f e r e n t e s ao h o s p i t a l . N o t o c a n t e a o s é c u l o X I X , aliás, essa s u b s t i t u i ç ã o só foi neces-
sária n o s a n o s 1 8 1 8 / 1 9 e 1 8 2 4 / 2 5 . L a m e n t a v e l m e n t e , h á u m a l a c u n a n a d o c u m e n t a -
ç ã o e n t r e 1 8 3 3 e 1 8 4 2 , o q u e n o s i m p e d e d e a c o m p a n h a r o m o v i m e n t o dos preços
nesse p e r í o d o c o n t u r b a d o n a h i s t ó r i a d a c i d a d e . 1 9

U m a d u p l a p r e o c u p a ç ã o n o r t e o u m e u e s t u d o : t r a b a l h a r c o m u m l o n g o intervalo
de t e m p o e e s c o l h e r p r o d u t o s s i g n i f i c a t i v o s , c u j o s p r e ç o s p u d e s s e m ser a c o m p a n h a d o s
por l o n g o s p e r í o d o s , s e m d e s c o n t i n u i d a d e s .
Para a b r a n g e r o i n t e r v a l o m a i s l o n g o possível, d e f i n i c o m o p o n t o de partida o a n o
de 1 7 5 0 c c o m o l i m i t e final o de 1 9 3 0 , s i t u a d o s b e m a q u é m e b e m além d o período
de 8 9 anos q u e n o s interessa ( 1 8 0 1 - 1 8 8 9 ) . Q u a t r o razões d e t e r m i n a r a m essa escolha:
a existência de d o c u m e n t a ç ã o b a s t a n t e regular a p a r t i r d e m e a d o s d o século X V I I I ; o
desejo de oferecer a h i s t o r i a d o r e s c e c o n o m i s t a s u m a série t ã o longa q u a n t o possível;
a i n t e n ç ã o de possibilitar c o m p a r a ç õ e s c o m e s t u d o s a n á l o g o s existentes n o Brasil e
s o b r e t u d o n o exterior, a i n d a q u e p a u t a d o s p o r o u t r o s c r i t é r i o s ; p o r fim, a razão prin-
cipal: q u a n t o mais longa for, mais b e m u m a série i n d i c a os r i t m o s observáveis n u m a
c o n j u n t u r a , c u j o s m o v i m e n t o s n ã o c o i n c i d e m n e c e s s a r i a m e n t e c o m os cortes c r o n o l ó -
gicos tradicionais.
LIVRO V H - O D I N H E I R O DOS BAIANOS 561

A e s c o l h a d o s p r o d u t o s a c o n s i d e r a r foi o r i e n t a d a p o r três c r i t é r i o s . E m p r i m e i r o
lugar, já q u e se t r a t a v a d e e s t a b e l e c e r u m a série c r o n o l ó g i c a , era p r e c i s o d i s p o r de séries
anuais de d a d o s , c o m p r e ç o s expressos na m o e d a c o r r e n t e da é p o c a , c o m h o m o g e n e i d a d e
de pesos e m e d i d a s e d e p r o c e d ê n c i a g e o g r á f i c a . E m s e g u n d o l u g a r , o q u e m e i n t e r e s -
sava eram p r e ç o s d e g ê n e r o s b á s i c o s d a a l i m e n t a ç ã o c o t i d i a n a d a p o p u l a ç ã o de S a l v a -
dor. E m t e r c e i r o , e r a d e s e j á v e l d i s t i n g u i r , e n t r e tais g ê n e r o s , p r o d u t o s de i m p o r t a ç ã o
e de e x p o r t a ç ã o , i n d i c a n d o q u a i s e r a m o s d e c o n s u m o geral. A e s c o l h a recaiu e m
dezoito p r o d u t o s — q u e c o n s i d e r e i r e p r e s e n t a t i v o s d a p r o d u ç ã o a g r í c o l a d a B a h i a , p o r
u m lado, e d o c o n s u m o b a i a n o , p o r o u t r o — , d i v i d i d o s e m três c a t e g o r i a s : p r o d u t o s
de e x p o r t a ç ã o ( a ç ú c a r , 1 7 5 0 - 1 9 3 0 ; e c a f é , 1 8 1 0 - 1 9 3 , 1 ) , p r o d u t o s d e i m p o r t a ç ã o (fa-
rinha de t r i g o , a z e i t e d e o l i v a , b a c a l h a u , v i n a g r e , m a n t e i g a e c h á ) e p r o d u t o s de o r i g e m
e c o n s u m o l o c a i s ( f a r i n h a d e m a n d i o c a , c a r n e f r e s c a , f e i j ã o , arroz, c a r n e - s e c a , t o u c i n h o ,
galinha, ó l e o d e b a l e i a e ó l e o d e r í c i n o ) . A l o n g a e x p l i c a ç ã o n e c e s s á r i a s o b r e as dificul-
dades de m o n t a g e m d e n o s s a s é r i e e a m e t o d o l o g i a u t i l i z a d a e m c a d a c a s o está nas
notas d e s t e c a p í t u l o . 2 0

Entre os p r o d u t o s de e x p o r t a ç ã o , não incluí o cacau, o algodão e o f u m o , expor-


tados e m g r a n d e s q u a n t i d a d e s , p o r q u e tais i t e n s , p o u c o , c o n s u m i d o s n a S a n t a C a s a ,
mal a p a r e c e m n o s d o c u m e n t o s . N o m á x i m o , e n c o n t r a m - s e a q u i e ali vagas alusões,
c o m o " 6 0 réis p o r f u m o " o u " 2 8 0 réis p o r c h o c o l a t e " , s e m n e n h u m a m e n ç ã o da
quantidade c o m p r a d a .

A divisão dos p r o d u t o s a l i m e n t a r e s e m t r ê s g r u p o s t ã o r i g i d a m e n t e fixados pode


parecer u m t a n t o a r b i t r á r i a , s o b r e t u d o n o t o c a n t e à d i s t i n ç ã o e n t r e p r o d u t o s i m p o r -
tados e os d e o r i g e m e c o n s u m o l o c a i s . A f i n a l , S a l v a d o r n ã o era o b r i g a d a a i m p o r t a r
quase t o d o o a l i m e n t o q u e c o n s u m i a ? A s r e g i õ e s a g r í c o l a s p r ó x i m a s n ã o se d e d i c a -
vam q u a s e e x c l u s i v a m e n t e à c u l t u r a d a c a n a - d e - a ç ú c a r ? É v e r d a d e q u e o s j o r n a i s da
época estão r e p l e t o s d e r e f e r ê n c i a s a i m p o r t a ç õ e s d e f e i j ã o , a r r o z , t o u c i n h o e t c . M a s ,
por arbitrária q u e p a r e ç a , essa d i s t i n ç ã o p o d e a j u d a r a d i s c e r n i r até q u e p o n t o os
produtos de c a d a g r u p o e r a m i n f l u e n c i a d o s p o r f a t o r e s e s p e c í f i c o s , afora os que de-
t e r m i n a m o c u r s o geral d o s p r e ç o s . D e f a t o , o s d a d o s i n d i c a m q u e isso n ã o o c o r r e u .
A l i m e n t o s p r o d u z i d o s c c o n s u m i d o s l o c a l m e n t e , p r o d u t o s de e x p o r t a ç ã o o u de i m -
portação c t o d o s os d e m a i s p a r e c e m o b e d e c e r a o m e s m o r i t m o de variações.
Essa c o e r ê n c i a resulta c e r t a m e n t e d o foto de e s t a r e m e m j o g o os preços de m e r c a -
do de artigos de c o n s u m o d i á r i o , q u e se i n f l u e n c i a v a m c se disciplinavam uns aos
outros. D e f a t o , n ã o se deve e s q u e c e r q u e , n u m m e r c a d o especulativo c o m o o de
Salvador, o interesse e m o b t e r o m a i o r g a n h o pos:sível suplantava o de fornecer p r o d u -
tos alternativos a preços m a i s e m c o n t a , o q u e poderia p r o v o c a r u m a baixa dos gêneros
mais requisitados. N ã o havia, por e x e m p l o , m u i t o interesse e m p r o p o r o arroz c o m o
substituto da farinha de m a n d i o c a , o u c a r n e - s e c a (ou m e s m o carne de p o r c o de ou
carneiro) e m vez da c a r n e de boi fresca.
A maioria dos p r o d u t o s classificados c o m o de p r o d u ç ã o e c o n s u m o locais
farinha de m a n d i o c a , c a r n e de boi fresca, feijão, arroz, frango, sal, óleo de baleia —
562 BAHIA, SÉCULO X I X

eram produzidos na Bahia; alguns, porém, não chegavam à capital, em razão dos
problemas de transporte. Assim, grande parte da carne-seca e do toucinho comer-
cializados em Salvador vinha sobretudo da região do Prata, do Rio Grande do Sul e,
no caso do segundo, até de Lisboa, porque a produção local era insuficiente e de má
qualidade e porque os negociantes que detinham o oligopólio do abastecimento do
mercado tinham todo interesse em manter o statu quo.
Portanto, a lista dos produtos "de importação" poderia incluir a carne-seca e o
toucinho. Mas eles eram produzidos também localmente, e a parcela importada vinha
principalmente de outras províncias brasileiras. Consideramos, por isso, que integra-
vam um comércio nacional, e não internacional, caso em que outros fatores intervi-
riam na fixação de preços. Nossa lista reúne produtos que não eram produzidos no
país ou o eram em quantidades ínfimas. E o caso da manteiga, do vinagre e do chá,
cuja produção local só foi suficiente para substituir as importações do estrangeiro após
o fim do nosso período. Com exceção do chá — cujo consumo na Santa Casa era
muito pequeno, embora fosse provavelmente maior que o consumo geral — , os de-
mais itens, como farinha de trigo, azeite de oliva, bacalhau e vinagre, eram amplamen-
te consumidos pelo conjunto da população.
Quanto aos produtos de exportação — açúcar e café — , seus preços no mercado
interno dependiam inteiramente das cotações que tinham no mercado externo, que
absorvia a maior parte da produção.
Esses gêneros não tinham todos igual peso no consumo geral em Salvador. A
farinha de mandioca, a carne de boi e o feijão não podiam faltar na mesa do baiano, fosse
qual fosse sua classe social, mas os demais não eram de consumo tão geral, ficando fora
do alcance dos menos favorecidos. As flutuações de preços desses itens afetavam ape-
nas as categorias de maior poder aquisitivo, que podiam consumir uma gama mais
ampla de produtos e diversificar sua alimentação. Por outro lado, faltam à nossa lista
produtos amplamente consumidos como as frutas e os legumes, cultivados em hortas e
pomares. A contabilidade da Santa Casa registra alguns preços, mas como não há
menção de quantidades, não podem ser considerados. Os livros não esclarecem
tampouco até que ponto a batata-doce, o aipim ou o inhame eram usados para substi-
tuir a farinha de mandioca quando esta faltava ou tinha preços muito altos.
Sobre os hábitos alimentares dos baianos no século XIX, se o feijão, a carne fresca
e a farinha de mandioca eram onipresentes, não se deve concluir daí que o cardápio
local fosse pouco variado. Até os menos afortunados podiam diversificar sua alimen-
tação diária, seja pela maneira de preparar os pratos, seja pelo consumo de certos
gêneros que hoje já não são apreciados, como a carne de baleia ou do rascasso (um tipo
de peixe). Quando se comprava uma peça de carne de boi, começava-se por comê-la
na forma de rosbife: era o prato do domingo. Com as sobras, preparavam-se dois ou-
tros pratos para os dias seguintes: o cozido, feito com legumes, e o escaldado, em que
a carne era preparada com quiabo, abóbora e couve. A farinha de mandioca, em di-
versas apresentações — pirão, farofa ou ao natural —, era o acompanhamento
563

indefectível; a f i n a l , s e g u n d o u m d i t o c o r r e n t e , " s ó a farinha M . , •


t o " , O feijão t a m b é m se prestava a o p r e p a r o d J " n a T

f e i j da era s o b e r a n a . O b a c a l h a u ^ era o p r a t o ^ S ^ Z Z ! :
m i o l o s de b o . ( e m b o r a e m geral d e p r e c i a d o s ) e r a m bastante c o n s u m i d o s . Hábito
c o m u m era c o m e r f r u t a s - b a n a n a , m a n g a , m e l a n c i a , abacaxi e t c . 2 1
- 'molhadas'
isto é, p o l v i l h a d a s c o m f a r i n h a d e m a n d i o c a , s e m esquecer as guloseimas e d o c i n h o s
de origem a f r i c a n a , s e m p r e à v e n d a nas ruas p o r alguns t o s t õ e s .

N a m e s a d o s r i c o s , o b v i a m e n t e m a i s farta e variada, estavam presentes, além do


pão, q u e i j o , a z e i t o n a s , m a n t e i g a , l e i t e , f r a n g o , p e r u , p o r c o , c a r n e i r o e u m s e m - n ú m e r o
de bolos e geléias e m geral f e i t o s n o s c o n v e n t o s , pelas freiras. N e l a figuravam ainda
vinhos e cervejas i m p o r t a d o s de o u t r o s países, m u i t o r a r a m e n t e acessíveis ao c o m u m
dos m o r t a i s . 2 2

M a i s grave a i n d a q u e a f a l t a de i n f o r m a ç ã o s o b r e os preços das frutas e dos


legumes, q u e m e i m p e d e de c o n s i d e r a r esses g ê n e r o s , é a c o m p l e t a ignorância em que
me e n c o n t r o s o b r e p r e ç o s d e v e s t u á r i o , a l u g u é i s e s e r v i ç o s , q u e seriam indispensáveis
para a avaliação d o c u s t o d e v i d a p a r a o h a b i t a n t e de S a l v a d o r . F a l t a m - m e ademais,
c o m o já m e n c i o n e i , d a d o s s o b r e as q u a n t i d a d e s t o t a i s dos vários p r o d u t o s que passa-
vam pelo m e r c a d o d e S a l v a d o r . I s t o l i m i t a os resultados das análises q u e se seguem,
e m b o r a eu a c r e d i t e q u e s e r á possível c h e g a r a u m a idéia geral d o m e r c a d o dos preços
em Salvador n o s é c u l o X I X .

As cifras c o l h i d a s p e r m i t i r a m c o n s t i t u i r séries m e n s a i s de preços para d e t e r m i n a -


dos p r o d u t o s , a p a r t i r d e m é d i a s a r i t m é t i c a s dos d i f e r e n t e s preços e n c o n t r a d o s para a
mesma q u a l i d a d e d o s m e s m o s . A s v a r i a ç õ e s a n u a i s dos p r e ç o s dos p r o d u t o s foram
estabelecidas c o m b a s e n o s p r e ç o s m é d i o s anuais — a m é d i a a r i t m é t i c a dos preços
mensais — de c a d a u m . A p a r t i r desses d a d o s b r u t o s de variações anuais, foram tra-
çadas outras c u r v a s : u s a n d o o m é t o d o das m é d i a s m ó v e i s q ü i n q ü e n a i s (duração apro-
ximada dos c i c l o s c u r t o s , q u e v a r i a v a m d e três a sete a n o s ) , elaborei índices para cada
produto e s t u d a d o d e 1 7 5 0 a 1 9 3 0 . 2 3
P o r fim, m o s t r o o m o v i m e n t o geral dos alimen-
tos na B a h i a r e u n i n d o , n u m m e s m o g r á f i c o , q u a t r o índices gerais: índice geral dos preços
nominais de 1 7 5 0 a 1 9 3 0 para o n z e p r o d u t o s ( 1 7 5 0 = 1 0 0 ) ; índice geral dos pre-
ços n o m i n a i s de 1 8 1 1 a 1 9 3 0 para q u i n z e p r o d u t o s ( 1 8 1 1 = 1 0 0 ) ; índice d o c â m b . o
™edio em L o n d r e s de 1 8 1 1 a 1 9 3 0 ( 1 8 1 1 = 1 0 0 ) ; índice deflacionado dos preços,
tomando-se a libra inglesa c o m o m o e d a de referência.
C o m o o p e r í o d o q u e n o s interessa vai de 1 8 0 1 a 1 8 8 9 , procurei uma data expres-
siva no r i t m o da e v o l u ç ã o dos preços t ã o p r ó x i m a q u a n t o possível do início do século.
Optei assim por 1 7 8 7 , a n o e m q u e c l a r a m e n t e se iniciou o período de alta de um ciclo
' ° n g o . C o m o já disse, o s c i c l o s c u r t o s duravam entre três e sete anos. A o longo do
^ c u l o , os preços dos d e z o i t o p r o d u t o s flutuaram de maneira bastante semelhante,
sobretudo nos p e r í o d o s de baixas e altas acentuadas. M a s certos produtos ex.bem um
c o m p o r t a m e n t o d i f e r e n c i a d o , c o m o se observa na tabela 9 6 , que mostra os períodos
de alta e de b a i x a para os preços dos vários itens.
BAHIA, SÉCULO X I X

TABELA 96

PERÍODOS DE ALTA E DE BAIXA


NOS PREÇOS DE ALIMENTOS, 1 7 8 6 - 1 8 9 0
PRODUTOS INTERNOS AITA BAIXA

Farinha de mandioca 1790-17% 1796-1804


1804-1817 1817-1820
1820-1825
1845-1858 1858-1863
1863-1869 1869-1873
1873-1879 1877-1882

Carne fresca dc boi 1792-1798 1798-1810


1810-1823 1823-1825
1845-1859 1859-1864
1864-1881 1881-1889

Feijão 1790-1801 1801-1814


1814-1823 1823-1827
1845-1847 1847-1852
1852-1861 1861-1867
1867-1878 1878-1887

Arroz 1795-1799 1799-1808


1808-1822 1822-1826
1845-1866 1866-1871
1871-1879 1879-1887

Carne-seca 1805-1819 1819-1824


1845-1858 1858-1865
1865-1881 1881-1888

Toucinho 1790-1799 1799-1806


1806-1815 1815-1820
1820-1825
1845-1859 1859-1866
1866-1871 1871-1878 (patamar)
1878-1886

Aves 1789-1799 1799-1811


1811-1823 1823-1829
1845-1859 1860-1890

Sal 1801-1810 1810-1816


1816-1823 1823-1827
1845-1859 1859-1866
1866-1880 1880-1885

Óleo dc baleia 1801-1801 1805-1814


1814-1822 1822-1824
1824-1830

Óleo de rícino 1845-1859 1859-1865

PRODUTOS IMPORTADOS

Farinha de trigo 1790-1797 1797-1804


1804-1813 1813-1822
1822-1825 1825-1827
1845-1856 1856-1862
1862-1867 1867-1889
Óleo de oliva
1791-1799 1799-1803
1803-1808 1808-1817 (paumar)
1817-1827
1845-1869 1869-1875
1875-1880 1880-1888
Bacalhau 1790-1800 1800-1808
1808-1814 1814-1820
1820-1825 1825-1829
1845-1868 1868-1873
1873-1877 1877-1886
Vinagre 1788-1802 1802-1805
1805-1813 1813-1830
1845-1858 1858-1888
Manteiga 1805-1871 1871-1889
Chá 1845-1875 1875-1889
PRODUTOS DE EXPORTAÇÃO

Açúcar 1786-1794 1794-1810


1810-1816 1816-1821
1821-1829
1845-1859 1859-1864
1864-1870 1870-1876
1876-1882 1882-1889

Café 1811-1821 1821-1826


1826-1830
1845-1865 1865-1868
1868-1876 1878-1884

A análise desta tabela c o n f i r m a o s i n c r o n i s m o geral entre as variações dos preços


dos 18 produtos considerados, sobretudo nos períodos de alta acentuada, c o m o 1 7 9 0 ,
1798, 1 8 1 1 - 1 8 2 2 , 1 8 4 5 - 1 8 5 9 . M a s revela t a m b é m exceções: de 1811 a 1 8 2 2 , os
preços da farinha de trigo, d o azeite de oliva, do t o u c i n h o , d o bacalhau, d o vinagre e
da manteiga - todos i m p o r t a d o s - c a í r a m . P o d e ter havido u m simples acúmulo de
« t o q u e s , que era preciso liquidar; mas há u m a segunda hipótese, que aliás não exclui a
primeira: o estabelecimento, e m Salvador, de negociantes estrangeiros nao portugueses
Pode ter acarretado, além d e u m a u m e n t o dos estoques, u m a espécie de disputa entre
<" portugueses c os r e c é m - c h e g a d o s . Essa batalha teria desestabilizado um mercado ate
então habituado as práticas d o oligopólio, dando lugar a u m a especie de « M O l r t i i C H .
que teria baixado os p r e ç o s / O u t r a discrepancia pode ser observada no período 1 8 4 5 -
4

1 8 5 9 , mas nesse caso só o feijão baixou ( 1 8 4 7 - 1 8 5 2 ) , o que não tenho c o m o exp .car.

No entanto, apesar da elevação considerável ocorrida ao longo de todo o período,


» altas bruscas não se estenderam por mais que uma dezena de anos. período em que
« " á m e n t e os comerciantes acumularam lucros. A esses anos de vacas gordas segiu-
'am-se. contudo, baixas de preço igualmente bruscas. O s lucros acumulados no per o-
<*° de alta foram grandes o bastante para sustentar e compensar os esforços das empre-
Wl baianas? O u , ao contrário, foram medíocres, alimentando a especulação.
966 BAHIA, SÉCULO X I X

Seja c o m o for, essas variações p o d e m ser explicadas a partir da própria estrutura


do m e r c a d o de Salvador, caracterizado pelo mau a b a s t e c i m e n t o , a i n s u f i c i ê n c i a da
circulação m o n e t á r i a e do c r e d i t o e por práticas o l i g o p o l í s t i c a s dos agentes c o m e r c i a i s .
A esses vícios de o r d e m estrutural, em q u e a ação e as a t i t u d e s dos h o m e n s d e s e m p e -
n h a m papel i m p o r t a n t e , e preciso a c r e s c e n t a r mais duas variáveis q u e t a m b é m atuam
sobre os preços.
Antes de mais nada, as c o n d i ç õ e s c l i m á t i c a s t i n h a m uma i n f l u ê n c i a considerável
sobre os preços. Se t o d o b o m b a i a n o sabia dizer, pelo v e n t o , as c h u v a s q u e estavam a
c a m i n h o , c q u e t a n t o as chuvas excessivas q u a n t o as g r a n d e s secas e r a m catastróficas
numa região q u e vivia na mais estreita d e p e n d ê n c i a d a p r o d u ç ã o agrícola para a
exportação e até, em certa m e d i d a , das c o l h e i t a s n o p r ó p r i o q u i n t a l . O r a , c o m o já foi
m e n c i o n a d o , o c l i m a b a i a n o s e m p r e foi m a r c a d o pela sucessão de p e r í o d o s de chuvas
violentas e de secas rigorosas. As altas de preços de 1 8 5 8 e 1 8 7 8 , p o r e x e m p l o , decor-
reram c e r r a m e n t e de secas. P a r e c e - m e , c o n t u d o , q u e o papel das c o n d i ç õ e s climáticas
tem sido em geral s u p e r e s t i m a d o . D e f a t o , m u i t o p o u c o s dos p r o d u t o s a l i m e n t a r e s de
primeira necessidade eram cultivados nas p r o x i m i d a d e s de S a l v a d o r , e os q u e provi-
nham do interior t i n h a m acesso s e m p r e difícil à c a p i t a l , fosse qual fosse o clima.
Ademais, os períodos de alta dos preços n e m s e m p r e c o r r e s p o n d e r a m às fases de maior
irregularidade c l i m á t i c a (que c o r r e s p o n d e r a m , c o m o v i m o s , a 36 a n o s n o século X I X ) .
N a verdade, as variações d e p r e ç o n u n c a são d e t e r m i n a d a s p o r u m ú n i c o fator; tentar
explicá-las u n i c a m e n t e pelas c o n d i ç õ e s c l i m á t i c a s é u m recurso fácil, q u e escamoteia
variáveis de maior peso.
O u t r o e l e m e n t o q u e influi s o b r e os preços é o fator p o p u l a ç ã o . D e f a t o , u m súbito
a u m e n t o da p o p u l a ç ã o f l u t u a n t e da c i d a d e p o d i a alterar a relação e n t r e a oferta e a
demanda, e m p u r r a n d o os preços para c i m a , e s p e c i a l m e n t e e m S a l v a d o r , em q u e essa
população flutuante, c o m p o s t a s o b r e t u d o de m a r i n h e i r o s , t i n h a u m poder aquisitivo
m u i t o maior que o da m a i o r i a dos b a i a n o s .
Por o u t r o lado, sabe-se q u e a p o p u l a ç ã o de S a l v a d o r quase triplicou e n t r e 1 8 0 0 e
1 8 8 9 , apesar das guerras e e p i d e m i a s . 2 5
T e r i a a oferta de g ê n e r o s de primeira necessi-
dade triplicado t a m b é m ? Para s a b ê - l o , seria preciso c o n h e c e r as q u a n t i d a d e s disponí-
veis n o mercado da cidade. É certo que as i m p o r t a ç õ e s a u m e n t a r a m c o n t i n u a m e n t e ao
longo de todo o século, mas n ã o sei q u e p r o d u t o s elas de fato asseguravam. Ademais,
além de ser um mercado c o n s u m i d o r , Salvador era um c e n t r o distribuidor, inclusive
para outras províncias. Seria difícil apurar que parcela das importações ficava na
capital, a menos que se dispusesse de dados c o m p l e t o s sobre a circulação provincial e
intcrprovincial dessas mercadorias, o que está m u i t o longe de ser o caso.
Pode-se objetar também que houve fases ele declínio da população. C o m o ter
certeza de que nesses períodos de guerras c epidemias a demanda de alimentos também
caía? A febre amarela, que grassou de 1 8 4 9 ft 1851» * O c ó l e r a - m o r b o , que teve seu
c fmax cm 1 8 5 5 e 1 8 5 6 , corresponderam a um período de elevação bastante acentuada
dos preços, iniciado em 1 8 4 5 . Até que p o n t o parte importante da população deixou
ÜVRO V I I - o DINHEIRO DOS BAIANOS
" ~ )W

de r e c o r r e r ao m e r c a d o d e S a l v a d o r p o r falta d e p o d e r de c o m p r a ? S u b a l i m e n t a d a essa
p o p u l a ç ã o talvez t e n h a r e s i s t i d o m a l aos a t a q u e s e p i d ê m i c o s . C o m o era provavelmente
nessas c a m a d a s s u b a h m e n t a d a s q u e as e p i d e m i a s faziam m a i o r n ú m e r o de vítimas a
m a i o r m o r t a l i d a d e talvez n ã o a l t e r a s s e m u i t o o nível da d e m a n d a . P o r o u t r o lado 'as
e p i d e m i a s , a l e m d e m a t a r , d e s o r g a n i z a m a p r o d u ç ã o e o a b a s t e c i m e n t o , o que é fator
de e l e v a ç ã o d o s p r e ç o s . V i m o s , p o r e x e m p l o , q u e n a v i o s evitavam e n t r a r na baía ou
a t r a c a r n o p o r t o . A s s i m , m e s m o q u e a m o r t a l i d a d e p r o v o c a s s e r e d u ç ã o da d e m a n d a
a o f e r t a t a m b é m d . m i n u í a . O s p e r í o d o s d e b a i x a e r a m tão n u m e r o s o s q u a n t o os dê
alta, m a s , c o m o v e r e m o s , s u a a m p l i t u d e era m u i t o m e n o r .

P a r a v e r i f i c a r a t é q u e p o n t o e s t a a n á l i s e , b a s e a d a n o s m o v i m e n t o s dos p r e ç o s de 18
p r o d u t o s c o n s i d e r a d o s e m s e p a r a d o , r e f l e t e o m o v i m e n t o geral d o s preços em Salva-
d o r , c o n s t r u í m o s d o i s í n d i c e s g e r a i s : o p r i m e i r o leva e m c o n t a p r e ç o s de 11 produtos
(arroz, f a r i n h a d e t r i g o , f a r i n h a d e m a n d i o c a , f e i j ã o , c a r n e b o v i n a fresca, galinha,
t o u c i n h o , ó l e o d e o l i v a , a ç ú c a r , sal e v i n a g r e ) e o a n o b a s e é 1 7 5 1 ( = 1 0 0 ) ; o segundo
c o r r e s p o n d e a 1 5 p r o d u t o s ( o s a n t e r i o r e s m a i s c a f é , b a c a l h a u , m a n t e i g a e carne-seca)
e o a n o b a s e é 1 8 0 0 ( = 1 0 0 ) . C o m o as t e n d ê n c i a s de l o n g o p r a z o destas duas curvas
são p r a t i c a m e n t e i d ê n t i c a s , e s c o l h e m o s p a r a n o s s a a n á l i s e a s e g u n d a , que abarca o
período mais l o n g o ( 1 7 5 1 - 1 9 3 0 ) . A l é m d i s t o , u t i l i z e i o s d a d o s d o í n d i c e geral de
p r e ç o s ( p r e ç o s n o m i n a i s ) c o m o b a s e d o s p e r í o d o s e c i c l o s q u e a p r e s e n t o na tabela 9 7 .

TABELA 97

ÍNDICE GERAL NÃO PONDERADO ( 1 7 5 1 = 1 0 0 )


DESVIO EM %•*
DURAÇÃO A N O S DE Pico 1
P E R Í O D O S DE A L T A DESVIO EM % 2
PERÍODOS DE BAIXA

18 1758 1750-1759 3,9 1758-1768 9,3

15 1768-1778 22,7 1783-1788 6,7


1783
(10) 4
(1768-1778) (8,2)
(5) (1778-1783)
1799-1804 16,1
16 1799 1788-1799 68,5

23 1804-1822 33,4 1822-1827


1822
1859-1864 10,6
19 1859 1845-1859 100,0
1870-1874 2,5
10 1870 1864-1870 13,8
1879-1885 18,9
12 1879 1874-1879 10,9
1899-1905 32,1
19 1899 1886-1899 105,4

23 1928 1905-1928 248,5 ——

(1) Para precisar os ano* dc pico, usamos como referência os períodos para os quais o características de do.s subc.clos do
zado. (2) c (3) Prccijâo dc cerca dc 0,2%. (4) Os dados enire parêntesis definem as

C o m o se o b s e r v a , e n t r e 1 7 5 1 c 1 9 3 0 d i s t i n g u e m - s e c l a r a m e n t e o i t o g ^ c i d o s
q u e d u r a r a m d e dez a 2 3 a n o s , o u s e j a , 1 6 , 5 a n o s e m m é d i a . Esses ciclos, p >
se i n s c r e v e m e m c i n c o p e r í o d o s o u fases q u e - c o m e x c e ç ã o da primeira,
BAHIA, SÉCULO X I X

ÍNDICES ECONÔMICOS (MÉDIAS MÓVEIS QÜINQÜENAIS)

A = índice geral de preços — 11 produtos (não ponderados). 1751 a


100; B = índice geral de preços - 15 produtos (não ponderados). 1811 »
100; C • índice de preços (deflacionado). M (média) = 139; D = caxa de câmbio (libras esterlinas, segundo cotação cm mil réis). 1811 = 100.

e 1 7 8 7 — a p r e s e n t a m r i t m o s m a i s o u m e n o s s e m e l h a n t e s , isto é, são m a r c a d o s pela


sucessão de altas e baixas b r u s c a s . S ã o eles: 1 7 5 0 - 1 7 8 7 ( 3 7 a n o s ) ; 1 7 8 7 - 1 8 2 1 (33
anos); 1 8 4 5 - 1 8 8 7 ( 4 2 anos); 1 8 8 7 - 1 9 0 5 ( 1 8 anos); 1 9 0 5 - 1 9 2 8 ( 2 4 anos).
P o r que essa d i f e r e n ç a de d u r a ç ã o e n t r e as três p r i m e i r a s fases e as seguintes? A
p r i m e i r a c o n s t a t a ç ã o a q u e o e x a m e d a t a b e l a c o n d u z é q u e foi nessas duas últimas
fases q u e se p r o d u z i r a m as altas e baixas mais a b r u p t a s e m t o d o o intervalo de 1751
a 1930.
T e r i a isso sido p r o v o c a d o p e l o E n c i l h a m e n t o ( p o l í t i c a financeira c o m que o g o -
v e r n o r e p u b l i c a n o t e n t o u e n f r e n t a r a crise v i g e n t e ) ? P o r u m d e c r e t o de 1 7 de janeiro
de 1 8 9 0 , o g o v e r n o p e r m i t i u a c r i a ç ã o de n o v o s b a n c o s , c u j a s emissões deveriam
financiar o d e s e n v o l v i m e n t o agrícola, industrial e c o m e r c i a l d o país. O resultado foi
bem diferente: a a b u n d â n c i a de n u m e r á r i o e as facilidades de crédito propiciaram o
s u r g i m e n t o de toda sorte de c o m p a n h i a s c u j o o b j e t i v o p r i n c i p a l era especular sobre as
flutuações dos valores de suas respectivas ações, cuja emissão o Estado garantia, sem
exigir dos fundadores a devida c o n t r a p a r t i d a . A febre especulativa, o j o g o nas bolsas,
t o m o u c o n t a d c todas as províncias, e a Bahia n ã o escapou. A inflação a u m e n t o u em
ritmo galopante c a taxa dc c â m b i o não ficou atrás: o mil réis, que c m 1 8 8 9 correspondia
a 2 6 , 4 pence, cm 1 8 9 2 já não valia mais que dez.
Essa inflação tornou-se c m seguida e n d ê m i c a e jamais foi jugulada, malgrado
todos os esforços do governo federal. D c 1 8 9 0 a 1 9 3 0 , as emissões monetárias passa-
ram de 2 9 8 . 9 0 0 : 0 0 0 a 2 . 8 4 2 . 0 0 0 : 0 0 0 dc réis, ao passo q u e em sessenta anos, de 1 8 3 0
L W R O V I I - O DINHEIRO DOS BAIANOS
569

a 1 8 9 0 , t i n h a m c r e s c i d o d e 2 0 . 5 0 0 : 0 0 0 a 2 9 8 . 9 0 0 : 0 0 0 de réis. E n t r e 1 8 8 9 e 1 8 9 8
emissão de p a p e l - m o e d a a u m e n t o u 2 6 9 , 7 % , e n q u a n t o os preços aumentavam 2 0 9 6 %
Entre 1 8 9 8 e 1 9 0 7 , p r e o c u p a d o e m reduzir o d é f i c i t , o g o v e r n o reduziu suas despesas'
investiu na formação de c a p i t a l fixo e n e g o c i o u n o estrangeiro u m funding loan que
aliviou a dívida e x t e r n a . A c i r c u l a ç ã o m o n e t á r i a d i m i n u i u , h a v e n d o u m período de
deflação e n t r e 1 8 9 8 e 1 9 0 5 , s e g u i d o p o r n o v o p e r í o d o de inflação, c o m a u m e n t o na
circulação m o n e t á r i a . M a s o s p r e ç o s se m a n t i v e r a m estáveis, segundo M . Buescu,
graças ao c r e s c i m e n t o d o p r o d u t o real. A P r i m e i r a G u e r r a M u n d i a l afetou profunda-
mente as finanças f e d e r a i s , p o r causa d a d i m i n u i ç ã o das i m p o r t a ç õ e s e o crescimento
das despesas g o v e r n a m e n t a i s . I m p o s s i b i l i t a d o de recorrer a e m p r é s t i m o s externos, o
governo a u m e n t o u a e m i s s ã o d e p a p e l - m o e d a em 8 9 , 5 % e n t r e 1 9 1 3 e 1 9 1 8 . O s preços
a c o m p a n h a r a m esse m o v i m e n t o , a u m e n t a n d o 1 0 4 % . O fim d a guerra n ã o trouxe
melhorias: e n t r e 1 9 1 9 e 1 9 2 4 a c i r c u l a ç ã o m o n e t á r i a a u m e n t o u 6 9 , 6 % e os meios de
pagamento 11,6%. 2 6

A c u r v a d o í n d i c e d e m a i o r d u r a ç ã o para o s é c u l o X I X , n o gráfico, b e m c o m o os
dados d a t a b e l a 9 7 , m o s t r a m a r a p i d e z c o m q u e p e r í o d o s de fortes elevações de preço
(mais de 2 0 % ) — 1 8 0 4 - 1 8 2 2 , 1 8 4 5 - 1 8 5 9 — f o r a m seguidos p o r períodos de baixas
relativamente c o n s i d e r á v e i s ( 1 8 5 9 — 1 8 6 4 , 1 8 7 9 — 1 8 8 9 ) . A o q u e parece, após as altas, os
preços n o m i n a i s se e s t a b i l i z a v a m e m níveis r e l a t i v a m e n t e baixos em relação aos do
início d o p e r í o d o d e a l t a . P o r o u t r o l a d o , e n t r e 1 7 9 9 e 1 8 9 9 registraram-se c i n c o
períodos de a l t a e igual n ú m e r o d e p e r í o d o s de b a i x a . M a s , n o total, houve cinqüenta
anos de alta e a p e n a s 2 6 d e b a i x a . É i m p o r t a n t e n o t a r q u e esses anos de elevação dos
preços a b s o l u t a m e n t e n ã o c o r r e s p o n d e m a p e r í o d o s de prosperidade e c o n ô m i c a .

Antes de a p r o f u n d a r esta q u e s t ã o , p o r é m , c o n v é m c o m p a r a r a curva do índice


geral dos p r e ç o s n o m i n a i s c o m a das v a r i a ç õ e s d a taxa de c â m b i o . U m a foi o inverso
da o u t r a : q u a n d o o p o d e r d e c o m p r a d a m o e d a brasileira se deteriorava c o m relação
ao das d e m a i s m o e d a s , o í n d i c e n o m i n a l dos p r e ç o s s u b i a . Essa relação inversa só não
se verificou e n t r e 1 8 4 5 e 1 8 6 0 , q u a n d o o s p r e ç o s s u b i r a m mas a paridade libra ester-
lina/mil réis m a n t e v e - s e q u a s e i n a l t e r a d a . A f i r m a r q u e esse foi u m período positivo —
o único — da e c o n o m i a b a i a n a é t e m e r á r i o , u m a vez q u e essa elevação dos preços (no
período e m q u e s u r g i r a m os b a n c o s privados e m i s s o r e s ) 2 7
foi impulsionada, por um
lado, pela i n f l a ç ã o e, p o r o u t r o , pelas e p i d e m i a s e secas da década de 1 8 5 0 . N a o
obstante, a h i s t o r i o g r a f i a oficial classifica esse p e r í o d o c o m o um dos mais dinâmicos
desde a I n d e p e n d ê n c i a . 2 8

A curva de variação d o c â m b i o m o s t r a t a m b é m q u e nos intervalos de 1 8 1 1 a 1 * 5


e de 1 8 8 9 a 1 9 3 0 , a d e p r e c i a ç ã o d o m i l réis foi igualmente rápida, ao passo que entre
1 8 3 1 e 1 8 8 8 o s c i l o u mais s u a v e m e n t e . N o e n t a n t o , nesse período, a economia baiana
conheceu apenas u m a fase de relativa reativação e c o n ó m i c a ( 1 8 4 5 - 1 8 6 0 ) , a qu je
inscreveu, aliás, n u m q u a d r o geral de declínio progressivo. D e fato, as exportações -
a única variável d e q u e d i s p o n h o para avaliar a vitalidade da economia baiana
diminuíram a partir de 1 8 6 7 . 2 9
BAHIA. S Ê C U L O X I X

É a c u r v a d o í n d i c e d e f l a c i o n a d o d o s p r e ç o s , p o r é m , q u e p o d e p r o p i c i a r a visão
m a i s c o r r e t a das t e n d ê n c i a s d e l o n g o p r a z o da c o n j u n t u r a b a i a n a (curva C n o g r á f i c o ) .
A o q u e p a r e c e , h o u v e q u a t r o p e r í o d o s d e relativa p r o s p e r i d a d e e n t r e 1 8 1 1 e 1 9 2 9 .
S u a s d u r a ç õ e s v a r i a r a m ( 9 , 1 0 , 11 e 2 1 a n o s ) , m a s , c o m o se n o t a n a t a b e l a 9 8 , as q u e
c o r r e s p o n d e m a o s é c u l o X I X , isto é, a o i n t e r v a l o 1 8 1 1 - 1 8 8 1 , t i v e r a m p r a t i c a m e n t e a
m e s m a d u r a ç ã o , o q u e a b s o l u t a m e n t e n ã o o c o r r e u c o m os p e r í o d o s d e d e p r e s s ã o , entre
o s q u a i s s e registra u m d e 3 6 a n o s ( 1 8 2 0 - 1 8 5 5 ) e o u t r o d e a p e n a s três ( 1 8 6 7 - 1 8 6 9 ) .
Aliás, a s o m a d o s p e r í o d o s s u p e r i o r e s a [l (+|i) e i n f e r i o r e s a [l ( - U . ) m o s t r a q u e , entre
1811 e 1 8 8 9 , h o u v e m a i s d e z e s s e t e a n o s d e b a i x a q u e d e p r o s p e r i d a d e . A longa
d e p r e s s ã o q u e se e s t e n d e u d e 1 8 2 0 a 1 8 5 5 — c e r t a m e n t e c o m i m p a c t o m u i t o negativo
s o b r e a e c o n o m i a b a i a n a — , m e s m o e n t r e m e a d a d e c u r t o s p e r í o d o s d e prosperidade,
n ã o p e r m i t i u a a c u m u l a ç ã o d e c a p i t a i s , q u e teria p o d i d o e s t i m u l a r a iniciativa e a
i m a g i n a ç ã o d o s d e t e n t o r e s d e v e r d a d e i r a s f o r t u n a s , p r o p i c i a n d o o d e s e n v o l v i m e n t o de
atividades p r o d u t i v a s .

F i n a l m e n t e , c o m p a r a n d o o s m o v i m e n t o s d e l o n g a d u r a ç ã o dessa c u r v a deflacionada
dos p r e ç o s c o m o s m o v i m e n t o s d e l o n g a d u r a ç ã o d e s c r i t o s p o r K o n d r a t i e v , 3 0
verifica-
se q u e as fases e m q u e se i n s c r e v e m são as m e s m a s .
Essa c o i n c i d ê n c i a m o s t r a o q u a n t o o s p t e ç o s n a B a h i a e r a m c o n d i c i o n a d o s por
fatores e x t e r n o s . D e f a t o , a m a i o r i a d o s p r o d u t o s q u e c o m p õ e m m e u í n d i c e de pte-
ç o s e r a m e x p o r t a d o s o u i m p o r t a d o s , h a v e n d o p o r t a n t o i n t e r a ç ã o e n t r e a formação
dos p r e ç o s e m S a l v a d o r e a q u e l e s p r a t i c a d o s n o s m e r c a d o s e x t e r n o s . P o r o u t r o lado,

TABELA 9 8
DIFERENÇA MÁXIMA/MÍNIMA EM RELAÇÃO À MEDIANA (139,0)

ANOS DE Pico VALOR DIFERENÇA MAXIMA


E DE VALE MÁXIMOS ABSOLUTA RELATIVA ( % )

1812 180,0 +41,0 +29,5

1829 70,9 -68,1 -49,0

1862 162,1 +23,1 + 16,7

1868 133,8 -5,2 -3,7

1875 172,9 +33,9 +23,4

1884 116,2 -12, -9.2

1889 136,6 -2,4 -1.7

1897 98,1 -40,9 -29.4

1912 156,-1 17.4 + 12.5

1919 235,4 +96,4 +69.3

1923 155,0 + 16,0 + 11.5

1927 173.7 +34,7 +24,9

1929(>) 127,8 -11,2 -8,1


LIVRO VII - O DINHEIRO DOS BAIANOS
571

TABELA 99

PERÍODOS DE REFERÊNCIA
+H DURAÇAO
-M- DURAÇÃO

1811-1819 9
1820(?)-1855 36

1856-1866 10
1867-1869 3

1870-1881 11 1882-1906 25

1907-1928 21 1929-(?) 1
Total 51
65

TABELA 10 0

COMPARAÇÃO ENTRE CICLOS LONGOS

CICLOS DE K O N D R A T I E V BAHIA

1° Ciclo: 1787/89 a 1849/51 1° Ciclo: 1 7 8 7 / 9 0 a 1 8 4 2 / 4 5


Máximo: 1810/17 Máximo: 1 8 2 1 - 2 4

2° Ciclo: 1849/51 a 1895/96 2° Ciclo: 1 8 4 2 / 4 5 a 1 8 9 5 / 9 7


Máximo: 1 8 7 2 / 7 3 * Máximo: 1875

3 ° Ciclo: 1 8 9 5 / 9 6 a 1932/34 3 Ciclo: 1 8 9 5 / 9 7 a 1 9 2 6


o

Máximo: 1 9 2 0 - 2 6 Máximo: 1 9 1 9

(*) C o m exceção dos Estados Unidos, onde o máximo foi em 1865.

não é i m p r o v á v e l q u e o s p r e ç o s f i x a d o s d o s p r o d u t o s d e i m p o r t a ç ã o influenciassem
os dos g ê n e r o s p r o d u z i d o s l o c a l m e n t e , e m b o r a n ã o se d e v a s u b e s t i m a r o papel de-
s e m p e n h a d o p o r f a t o r e s i n t e r n o s . S ó u m a c o m p a r a ç ã o e n t r e p r e ç o s de i m p o r t a ç ã o ,
no atacado e n o varejo, revelaria a i n f l u ê n c i a d o m e r c a d o internacional sobre o m o -
v i m e n t o d o s p r e ç o s n a B a h i a . T a l c o m p a r a ç ã o p e r m i t i r i a a i n d a verificar q u e grupo
de c o m e r c i a n t e s o b t i n h a m a i o r e s m a r g e n s d e l u c r o , o q u e n o s daria u m q u a d r o mais
c o m p l e t o d o s e l e m e n t o s e m j o g o n u m m e r c a d o l o c a l m a r c a d o pelo o l i g o p ó l i o e o
oligopsônio.
Resta explicar — c o m m u i t a p r e c a u ç ã o , d a d o o n ú m e r o l i m i t a d o das estatísticas
disponíveis — c a d a u m d o s m o v i m e n t o s d e l o n g a d u r a ç ã o verificados na c o n j u n t u r a
baiana, c o m suas p a r t i c u l a r i d a d e s . T o m a r e i fase p o r fase.

FASE A ( 1 7 8 7 - 1 8 2 1 )

A p r o d u ç ã o de a ç ú c a r , m o t o r d a e c o n o m i a b a i a n a , f o i b e n e f i c i a d a por fatores «nternos


e e x t e r n o s . E n t r e o s p r i m e i r o s , d e s t a c a - s e o papel e x e r c i d o a parrir da década de /
pela M e s a d a I n s p e ç ã o d o A ç ú c a r e d o T a b a c o d o g o v e r n o português cuja p n n c i p
função e r a s u p e r v i s i o n a r a q u a l i d a d e d o s vários t i p o s de a ç ú c a r exportados e a om
geneidade d o p e s o nas caixas e m q u e e r a m r e m e t i d o s . P o r o u t r o lado, c o m a s u p r e s »
do m o n o p ó l i o c o l o n i a l e a a b e r t u r a d o s p o r t o s ao c o m é r c i o i n t e r n a c i o n a l , certas tax
que i n c i d i a m s o b r e a p r o d u ç ã o e a e x p o r t a ç ã o d o açúcar f o r a m s e n s l v e
J ! ^; ;
m n e
o
U
;'"
das. N a d é c a d a d e 1 8 1 0 , p r o c u r o u - s e m e l h o r a r a p r o d u ç ã o pela m t r o d u ç a o de novas
572 BAHIA, SÉCULO X I X

variedades de c a n a - d e - a ç ú c a r . Essa fase foi d e t e r m i n a d a t a m b é m p o r u m a c o n j u n t u r a


i n t e r n a c i o n a l favorável, c o m as guerras da R e v o l u ç ã o F r a n c e s a e as n a p o l e ó n i c a s , e a
desorganização da p r o d u ç ã o a ç u c a r e i r a nas A n t i l h a s , e m especial n o H a i t i e na J a m a i c a ,
o q u e favoreceu as e x p o r t a ç õ e s b a i a n a s . A p r o s p e r i d a d e nas atividades açucareiras
repercutiu s o b r e o u t r o s setores da e c o n o m i a , i n c e n t i v a n d o a p r o d u ç ã o e o c o m é r c i o de
fumo e intensificando o tráfico negreiro.

FASE B (1821-1842/45)

F o i u m l o n g o p e r í o d o d e d e p r e s s ã o a c a r r e t a d o pelas guerras d a I n d e p e n d ê n c i a ( 1 8 2 1 —
1 8 2 3 ) e p o r c o n t u r b a ç õ e s s o c i a i s , q u e d e s o r g a n i z a r a m a p r o d u ç ã o . A situação foi
agravada pela i m p l a n t a ç ã o de u m n ú m e r o d e s m e s u r a d o de e n g e n h o s n u m m o m e n t o
e m q u e o c r é d i t o era escasso e a m o e d a falsa de c o b r e c i r c u l a v a e m g r a n d e s q u a n t i d a -
des. T a m b é m a i m p o r t a ç ã o d e escravos c o m p l i c o u - s e , p o i s t r a t a d o s assinados a partir
de 1 8 3 0 d i f i c u l t a v a m o t r á f i c o (aliás, t i n h a m p o r o b j e t i v o final a c o m p l e t a abolição
desse t r á f i c o ) . O r a , e r a c o m o t r á f i c o n e g r e i r o q u e os c o m e r c i a n t e s b a i a n o s — os
f i n a n c i a d o r e s das atividades p r o d u t i v a s , s o b r e t u d o n o s e t o r a ç u c a r e i r o — auferiam
grande parte de seus l u c r o s . P o r o u t r o l a d o , a r e p o s i ç ã o d a m ã o - d e - o b r a t o r n o u - s e
difícil a p a r t i r d e 1 8 3 5 , s o b r e t u d o e m d e c o r r ê n c i a d a v e n d a de g r a n d e n ú m e r o de
escravos b a i a n o s para s e n h o r e s d e o u t r a s p r o v í n c i a s , o n d e a c u l t u r a d o c a f é se amplia-
va. A c o n j u n t u r a i n t e r n a c i o n a l r e f o r ç o u a crise, m o s t r a n d o - s e p o u c o receptiva à pro-
d u ç ã o agrícola b a i a n a : o a ç ú c a r , p o r e x e m p l o , p a s s o u a ser s u b s t i t u í d o p e l o produzido
e m outras c o l ô n i a s , o u p e l o de b e t e r r a b a .

FASE DE RECUPERAÇÃO (1842/45-1860)

M a r c a d a p o r u m a r e a n i m a ç ã o relativa d a e c o n o m i a , esta fase n ã o p o d e , a rigor, ser


qualificada de próspera, t e n d o - s e i n s c r i t o , aliás, n u m l o n g o p e r í o d o de depressão
(1820-1855). A i n t r o d u ç ã o de n o v o s p r o d u t o s — d i a m a n t e s , c a f é , c a c a u — na pauta
de e x p o r t a ç õ e s , e m q u e f o r a m g a n h a n d o m a i o r p e s o , e a c r i a ç ã o de instituições de
crédito deram algum a l e n t o à e c o n o m i a e g e r a r a m m u i t a s esperanças n o s meios c o -
merciais b a i a n o s , mas estas l o g o se f r u s t r a r a m . A s e p i d e m i a s q u e grassaram na década
de 1 8 5 0 c os p r o b l e m a s da e c o n o m i a a ç u c a r e i r a i m p e d i r a m q u e essas c o n d i ç õ e s rela-
tivamente favoráveis dessem lugar a u m a r e t o m a d a d o c r e s c i m e n t o e c o n ô m i c o de mais
l o n g o fôlego.

NOVA FASE B (1860-1887)

Este ú l t i m o m o m e n t o da c o n j u n t u r a e c o n ô m i c a da B a h i a n o período imperial foi


marcado por u m a profunda depressão q u e deu i n í c i o a u m d e c l í n i o sem retorno. As
causas foram muitas, internas e externas. As exportações de diamantes entraram em
crise, por força da c o n c o r r ê n c i a dos diamantes d o C a b o ; os c a r b o n a t o s não podiam
compensar a perda, porque as deficiências do transporte encareciam o produto, que,
e m b o r a tivesse demanda regular nos mercados internacionais, tinha baixa cotação. As
LIVRO V I I - O DINHEIRO DOS B.<
5-3

e x p o r t a ç õ e s de a l g o d ã o , q u e t i n h a m c r e s c i d o s e n s i v e l m e n t e d u r a n t e a G u e r r a de Seces
são, c a í r a m a níveis m u i t o b a i x o s . P o r f i m , a p r o d u ç ã o a ç u c a r e i r a , a despeito de um
esforço c o n s t a n t e p a r a a u m e n t a r a p r o d u ç ã o , viu-se p r e j u d i c a d a pela deterioração dos
preços do p r o d u t o n o m e r c a d o e x t e t n o . N a d é c a d a de 1 8 7 0 , a c a n a - d e - a ç ú c a r foi
afetada p o r d o e n ç a s e p a r t e d a p r o d u ç ã o foi p e r d i d a . P o r o u t r o lado, os p r o d u t o r e s de
açúcar, s e m m e i o s d e c r é d i t o d i s p o n í v e i s , m o s t r a v a m - s e d e s a n i m a d o s , avessos a inova-
ções, e p e r m i t i a m q u e c o n t i n u a s s e o ê x o d o d e e s c r a v o s para o u t r o s c e n t r o s produtores
de açúcar, e m o u t r a s p r o v í n c i a s . A d e p r e s s ã o e c o n ô m i c a q u e sc instalou na E u r o p a a
partir de 1 8 7 3 v e i o t o r n a r d r a m á t i c o u m q u a d r o j á s o m b r i o .

Em suma, Salvador — e c o m ela toda a Província — só c o n h e c e u , em t o d o o


século X I X , u m m o m e n t o d e v e r d a d e i r a p r o s p e r i d a d e : os a n o s de 1 8 0 0 a 1 8 2 1 , ins-
critos n u m p e r í o d o f a v o r á v e l m a i s l o n g o , q u e c h a m a m o s de fase A (1787-1821).
A velha c a p i t a l c o l o n i a l a f i r m o u - s e e n t ã o — m a s p o r q u a n t o t e m p o ? — c o m o a pri-
meira P r o v í n c i a , a p e d r a a n g u l a r d o I m p é r i o q u e surgia. A l o n g o prazo, a antiga e
sempre e s t r e i t a d e p e n d ê n c i a d a B a h i a e m r e l a ç ã o aos m e r c a d o s e x t e r n o s m o s t r o u - s e
e x t r e m a m e n t e d e s f a v o r á v e l p a r a a e c o n o m i a d a r e g i ã o , c a d a vez mais restrita ao papel
de i m p o r t a d o r a d e p r o d u t o s a l i m e n t a r e s e i n d u s t r i a i s e e x p o r t a d o r a de produtos pri-
mários. A c o n t í n u a d e p r e c i a ç ã o d a m o e d a b r a s i l e i r a a g r a v o u essa d e p e n d ê n c i a e exer-
ceu forte i m p a c t o s o b r e o s p r e ç o s d o m e r c a d o l o c a l . As variações nos preços das
i m p o r t a ç õ e s , n u m a b a l a n ç a c o m e r c i a l s e m p r e d e f i c i t á r i a , n ã o p o d i a m ser previstas
nem c o n t r o l a d a s . E s t a talvez t e n h a s i d o u m a das razões da a u s ê n c i a de capitalização e
de f o r m a ç ã o de reservas e n t r e o s b a i a n o s , s e m o q u e n ã o havia c o m o investir em novos
e m p r e e n d i m e n t o s , c r i a r as p r e c o n d i ç õ e s d o d e s e n v o l v i m e n t o d o setor industrial, m e -
lhorar os t r a n s p o r t e s e m e s m o e x p a n d i r e d i v e r s i f i c a r a p r o d u ç ã o agrícola, sobretudo
no cultivo de p r o d u t o s a l i m e n t a r e s , o q u e teria p e r m i t i d o m i n o r a r o déficit da balança
c o m e r c i a l . D e f a t o , a l é m d o i n v e s t i m e n t o p r i v a d o , s e m e l h a n t e e m p r e i t a d a teria exigi-
do u m a m u d a n ç a d e m e n t a l i d a d e e a p o i o d o E s t a d o . O r a , tal m u d a n ç a de rota era
difícil q u a n d o os g o v e r n o s p r o v i n c i a l e n a c i o n a l t i n h a m sua principal fonte de receiras
nas taxas q u e i n c i d i a m s o b r e o s p r o d u t o s de i m p o r t a ç ã o .

Mais tarde, a i n d u s t r i a l i z a ç ã o d o S u l d o Brasil veio selar definitivamente a sorte


da B a h i a : o m e r c a d o das i m p o r t a ç õ e s e e x p o r t a ç õ e s foi s i m p l e s m e n t e deslocado, sem
benefício algum para a e c o n o m i a b a i a n a , q u e se t r a n s f o r m o u em fornecedora de
m ã o - d e - o b r a para os estados d o S u l , e s p e c i a l m e n t e R i o de J a n e i r o , São Paulo c M i -
nas Gerais, dos q u a i s c o m p r a v a a l i m e n t o s , tecidos e produtos manufaturados. Assim,
a Bahia, a p r i m e i r a província da C o l ô n i a , parece ter-se especializado em ceder tanto
suas elites c o m o sua m ã o - d e - o b r a às províncias d o C e n t r o c d o Sul, parecendo esme-
rar-se em viver a c i m a de suas possibilidades, c o m base em práticas agrícolas cada vez

mais obsoletas. ,
À p o p u l a ç ã o , em c o n s t a n t e a u m e n t o , não restava m u i t o mais que tentar sobrev,-
ver, encapsulada n u m a e c o n o m i a que não soubera imaginar, prever ou se adaptar. Era
uma sociedade tão desprovida de h o m e n s de iniciativa, verdadeiros empresános, que
B\H:\. Srci ;o XIX

ao m e s m o t e m p o t i n h a t a m b é m p o u c o s verdadeiros assalariados, u m a vez que as


relações e r a m m a r c a d a s pelo e s c r a v i s m o . A análise dessa d u p l a c a r ê n c i a e u m a m e l h o r
c o m p r e e n s ã o de u m i m p o r t a n t e a s p e c t o da m e n t a l i d a d e b a i a n a — o significado das
hierarquias sociais — exige u m a c o m p a r a ç ã o e n t r e p r e ç o s e salários.

Os SALÁRIOS E O PREÇO DA FARINHA NOSSA DL CADA DIA

S e os assalariados e r a m p o u c o s nessa s o c i e d a d e , c o n v é m l e m b r a r q u e alguns escravos


c o n s e g u i a m d i n h e i r o para c o m p r a r sua a l f o r r i a e m p e n h a n d o a l g u n s a n o s de trabalho
(e de salário), e q u e parte d a p o p u l a ç ã o m a s c u l i n a ativa livre o b t i n h a , graças ao salário,
a c o n d i ç ã o de e l e i t o r . E m s u m a , o t r a b a l h o assalariado era u m privilégio q u e situava
u m a p e q u e n a parcela da p o p u l a ç ã o (livre e escrava) a c i m a da g r a n d e massa q u e se via
obrigada a lutar de o u t r a f o r m a p e l o p ã o de c a d a dia.
P o r o u t r o l a d o , v i m o s q u e o salário m u i t a s vezes r e p r e s e n t a v a apenas p a n e da
r e m u n e r a ç ã o global de u m t r a b a l h a d o r , s e n d o c o m u m o e x e r c í c i o s i m u l t â n e o de
outras f u n ç õ e s c o m o m e i o de r e f o r ç a r o o r ç a m e n t o . A d e m a i s , certas categorias de
assalariados r e c e b i a m o u t r o s tipos de r e m u n e r a ç ã o , q u e c o m p l e t a v a m o salário em
d i n h e i r o e lhe c o n f e r i a m o u t r a s i g n i f i c a ç ã o . E r a o c a s o d o s e m p r e g a d o s d o c o m é r c i o ,
dos soldados e de alguns e m p r e g a d o s de i n s t i t u i ç õ e s d e c a r i d a d e , q u e t i n h a m direito
a casa e c o m i d a . É impossível, aliás, avaliar a t é q u e p o n t o essas v a n t a g e n s se estendiam
a outras categorias de t r a b a l h a d o r e s , c o m o os a r t e s ã o s , q u a n d o t r a b a l h a v a m para par-
ticulares o u para i n s t i t u i ç õ e s s e m i p ú b l i c a s . S e j a c o m o for, as f a m í l i a s desses assalaria-
dos não d e s f r u t a v a m das m e s m a s v a n t a g e n s : salvo e m casos e x c e p c i o n a i s , t i n h a m que
ser m a n t i d a s c o m o salário e m d i n h e i r o .

A despeito destas reservas e d a falta de m u i t a s variáveis i m p o r t a n t e s , creio ser


possível c o m p a r a r preços e salários, n ã o c o m a p r e t e n s ã o d e se c h e g a r a u m a análise do
custo de vida em S a l v a d o r , m a s apenas de f o r n e c e r a l g u m a s o r d e n s d e grandeza sobre
a evolução d o poder de c o m p r a dos b a i a n o s . Esse e s t u d o será l i m i t a d o t a m b é m no
t e m p o , a b r a n g e n d o apenas a segunda m e t a d e d o s é c u l o X I X , p e r í o d o a q u e correspon-
dem as séries de salários q u e p u d e levantar.
E n t r e estas, a d o c o r p o de Polícia c a dos e m p r e g a d o s d o setor privado c o m e ç a m ,
respectivamente, c m 1 8 3 5 c 1 8 4 0 ; t o m a r e i p o r base aqui o a n o de 1 8 4 5 . E n t r e esse
ano c 1 8 6 3 , a freqüência dos a u m e n t o s salariais foi igual para todos os assalariados
considerados.
O primeiro o b j e t i v o será saber quais assalariados não tiveram reajustes correspon-
dentes ao a u m e n t o dos preços dos gêneros de primeira necessidade, ao m e n o s entre
1 8 4 5 c 1 8 5 4 , fase marcada pela elevação t a n t o dos preços c o m o dos salários. Acredito
que a escolha deste período — q u e foi, aliás, uma fase de recuperação da economia
baiana — permitirá alcançar um segundo o b j e t i v o : verificar qual foi o c o m p o r t a m e n t o
específico dos salários nos anos de elevação m u i t o brusca dos preços.
LIVRO V I I - O DINHEIRO DOS BAIANOS 5 7 5

E n t r e o s p r e ç o s , t o m a r e i u m t r i o de p r o d u t o s a l i m e n t a r e s - farinha de m a n d i o c a
carne de b o i f r e s c a e f e i j ã o - q u e , c o m o v i m o s , e r a m indefectíveis n a mesa de ricos ê
pobres e a p r e s e n t a m a v a n t a g e m a d i c i o n a l de s e r e m p r o d u z i d o s l o c a l m e n t e O s salários
considerados s e r ã o o s d e a l g u n s m e m b r o s d o c o r p o de P o l í c i a , e m p r e g a d o s do C o l é g i o
dos Ó r f ã o s d e S ã o J o a q u i m , a r t e s ã o s ( p e d r e i r o , c a r p i n t e i r o ) e serventes h o m e n s
O s p r e ç o s d a f a r i n h a d e m a n d i o c a e d o f e i j ã o tiveram a u m e n t o s consideráveis de
1 8 5 4 a 1 8 6 3 ( 1 3 9 , 6 % e 1 4 3 , 9 % ) ; j á a c a r n e b o v i n a , n o m e s m o p e r í o d o , baixou 3 , 7 %
após ter s u b i d o 5 % e n t r e 1 8 4 5 e 1 8 5 4 . O s salários t a m b é m a u m e n t a r a m , especial-
m e n t e e n t r e 1 8 4 5 e 1 8 5 4 , m a s s ó o c o m a n d a n t e d a P o l í c i a p a r e c e t e r tido u m a u m e n -
to q u e c o m p e n s a v a p l e n a m e n t e a a l t a d o p r e ç o desses g ê n e r o s . A l g u n s salários ficaram
estáveis ( e s c r e v e n t e , p e d r e i r o ) , o u t r o s a t é d i m i n u í r a m ( c a r p i n t e i r o , servente); j á os
capitães e p r i m e i r o s - s a r g e n t o s d a P o l í c i a e o s p r o f e s s o r e s p r i m á r i o s d o C o l é g i o S ã o
J o a q u i m , seus s a l á r i o s s ó r e c u p e r a r a m p a r c i a l m e n t e o p o d e r a q u i s i t i v o

TABELA 1 0 1
VARIAÇÕES DE PREÇOS, 1 8 4 5 - 1 8 6 3 (EM RÉIS)

1845 1854 1854/1845 (%) 1863 1863/1845 (%)


Farinha de mandioca (litro) 37,4 60,2 61,0 89,6 139,6

Carne fresca (quilo) 217,1 227,9 5,0 209,0 -3,7

Feijão (quilo) 134,2 152,1 13,3 327,3 143,9

TABELA 10 2

VARIAÇÕES DE SALÁRIOS, 1 8 4 5 - 1 8 6 3 (EM CONTOS DE RÉIS)

1845 1854 1854/1845 (%) 1863 1863/1845 (%)

Comandante geral da Polícia 1:440 2:265 57>3 3:360 133,3

Capitão da Polícia :840 1:080 28,5 1:560 85,7

:292 25,0 :500 71,2


Prirncíro-sargcnto da Polícia :365
:400 25,0 :800 100,0
Professor primário (S. Joaquim) :500
Escrevente (S. Joaquim) :450 :450 0,0 1:000 122,0

Pedreiro :250 :250 O.O •360 44.0

Carpinteiro :280 :250 -7,1 :400 42,8

:100 -16,6 :250 108,3


Servente :120

D e 1 8 5 4 a 1 8 6 3 , t o d o s os salários s u b i r a m , m a s só o c o m a n d a n t e de polícia, os
serventes recrutados e n t r e os escravos, os professores primários e os escreventes tive-
ram a u m e n t o s c o r r e s p o n d e n t e s à elevação dos preços. O s outros ficaram perto disso,
exceto os artesãos, q u e parecem ter atravessado u m período crítico. Para todas essas
categorias, os a u m e n t o s de salário ocorridos e n t r e 1 8 5 4 e 1 8 6 3 parecem ter sido
provocados p e l o a u m e n t o dos preços ocorrido antes de 1 8 5 3 .
576 BAHIA, SÉCULO X I X

Para u m a análise d o p o d e r de c o m p r a desses salários, t o m a r e i c o m o base o dos


p e d r e i r o s , q u e c o n s i d e r o r e p r e s e n t a t i v o s dos t r a b a l h a d o r e s m a n u a i s especializados.
Esses artesãos, a o c o n t r á r i o dos s u b o f i c i a i s de P o l í c i a , d o s s o l d a d o s o u dos e m p r e g a d o s
d o o r f a n a t o , n ã o r e c e b i a m b e n e f í c i o s a d i c i o n a i s ao s a l á r i o , c o m o a l i m e n t a ç ã o . E r a m
pagos na f o r m a de diárias, q u e f o r a m a q u i c o n v e r t i d a s e m a n u a l i d a d e s c o m base no
p r e s s u p o s t o , j á d i s c u t i d o , de q u e u m o p e r á r i o d a c o n s t r u ç ã o , n o s e t o r privado ou
p ú b l i c o , trabalhava 2 5 0 dias p o r a n o .
Para avaliar o c o n s u m o , t o m e i p o r base u m a f a m í l i a c o m c i n c o m e m b r o s . N a
é p o c a , as famílias talvez f o s s e m u m p o u c o m a i s n u m e r o s a s , m a s o s j o v e n s d e mais de
doze a n o s e as m ã e s p o d i a m g a n h a r a l g u m d i n h e i r o , a u m e n t a n d o assim a renda
f a m i l i a r ; o m e s m o o c o r r i a c o m a c o n t r i b u i ç ã o d e u m e v e n t u a l e s c r a v o . H o r t a s e frutas
de p e q u e n o s q u i n t a i s e m o d e s t a s c r i a ç õ e s d e g a l i n h a s , p o r c o s o u c a r n e i r o s — q u e eram
bastante c o m u n s , m e s m o no c o n t e x t o m u i t o urbanizado da Salvador da época — não
foram consideradas. A t r i b u í m o s aos c i n c o m e m b r o s da família-padrão u m consumo
s e m a n a l de 2 5 litros de f a r i n h a d e m a n d i o c a , três q u i l o s d e c a r n e b o v i n a fresca e três
quilos de f e i j ã o .

P a r a u m c o n s u m o f a m i l i a r a n u a l de 1 . 3 0 0 l i t r o s d e f a r i n h a , 1 5 6 q u i l o s de feijão
e 1 5 6 q u i l o s d e c a r n e fresca, u m p e d r e i r o gastava 3 7 , 6 % de seu salário e m 1845,
4 7 , 0 % e m 1 8 5 4 e 5 8 , 6 % e m 1 8 5 8 . R e s t a v a - l h e a l g u m a m a r g e m p a r a a c o m p r a de
o u t r o s p r o d u t o s b á s i c o s , c o m o sal, b a n h a , a ç ú c a r , p e i x e e t c . , e a i n d a p a r a o vestuário
e a m o r a d i a . E n f r e n t a r i a u m g r a n d e a p e r t o , c o n t u d o , se a d o e c e s s e o u n ã o pudesse
trabalhar 2 5 0 dias p o r a n o p o r a l g u m a o u t r a r a z ã o . T a n t o m a i s q u e , e n t r e 1 8 4 5 e
1 8 5 8 , os p r e ç o s t i v e r a m fortes altas: 2 3 5 % p a r a a f a r i n h a d e m a n d i o c a , 4 2 % para o
feijão, 1 1 , 6 % para a c a r n e fresca, n u m a e l e v a ç ã o g l o b a l q u e seu a u m e n t o de salário
( 6 0 % ) a b s o l u t a m e n t e n ã o a c o m p a n h o u . O s p r e ç o s desses três p r o d u t o s s u b i r a m a tais
níveis q u e , m e s m o a p ó s os a u m e n t o s de salário o b t i d o s e n t r e 1 8 5 4 e 1 8 5 8 (de 2 5 0 . 0 0 0
para 4 0 0 . 0 0 0 réis), sua c o m p r a d e m a n d a v a , c o m o v i m o s , u m a p o r c e n t a g e m m a i o r do
seu salário.

Esta c o n s t a t a ç ã o dá lugar u m a q u e s t ã o i m p o r t a n t e : n o c o n j u n t o das despesas


anuais do pedreiro ( m o r a d i a , v e s t u á r i o , serviços e a l i m e n t a ç ã o ) , qual seria a parcela
mais elástica? E m outras palavras, q u a n d o o s p r e ç o s desses três p r o d u t o s de base
aumentavam m u i t o , passava-se a c o n s u m i - l o s e m m e n o r q u a n t i d a d e , buscava-se subs-
tituí-los por o u t r o s , reduzia-se o c o n s u m o de o u t r o s g ê n e r o s a l i m e n t a r e s o u se faziam
e c o n o m i a s c m o u t r o s itens, c o m o vestuário? E m b o r a n ã o tenha dados que permitam
responder a esta questão f u n d a m e n t a l , posso sugerir q u e o c o n s u m o desses três gêne-
ros d i m i n u í a , mas q u a n d o descia a q u é m de d e t e r m i n a d o l i m i a r ( m e n o s 5 0 % ? ) a
situação se tornava intolerável.

U m a outra indicação seria interessante: o a u m e n t o d a despesa anual c o m esses três


produtos indica a m e s m a deterioração d o poder de c o m p r a nos períodos 1 8 4 5 - 1 8 6 3 e
1 8 6 3 - 1 8 8 8 ? A questão se coloca porque esse s e g u n d o p e r í o d o é considerado de estabi-
lidade relativa entre preços e salários. Nossas c o n t a s mostraram q u e o m e s m o consumo
LIVRO V I I - O DINHEIRO DOS BAIANOS
577

a c i m a i n d i c a d o d e f a r i n h a , f e i j ã o e c a r n e e q u i v a l i a a 4 4 , 9 % d o salário de 1 8 6 6 ( 4 0 0 0 0 0
réis), a 3 5 , 9 % d o d e 1 8 7 3 ( 6 2 5 . 0 0 0 réis) e a 4 1 , 0 % d o de 1 8 8 5 ( 5 0 0 . 0 0 0 réis)
E m b o r a a d e s p e s a c o m esses três p r o d u t o s c o n t i n u a s s e a pesar m u i t o n o o r ç a m e n t o
do nosso p e d r e . r o . é p r e c i s o a d m i t i r q u e a p e q u e n a e l e v a ç ã o de seus preços ( 7 , 5 % p a r a
a f a r i n h a de m a n d i o c a . 4 , 2 % p a r a o f e i j ã o e 3 3 , 5 % para a c a r n e b o v i n a fresca) n ã o
d e t e r i o r o u d e m a s i a d a m e n t e o s e u p o d e r d e c o m p r a , u m a vez q u e ele teve n o p e r í o d o
um a u m e n t o salarial d e 2 5 % . O b s e r v a - s e m e s m o q u e , e m 1 8 7 3 , a n o e m que os preços
desses três g ê n e r o s m a i s s u b i r a m , o s p e d r e i r o s t i v e r a m u m a u m e n t o salarial b a s t a n t e
apreciável ( 5 6 , 2 % ) , a i n d a q u e p o s t e r i o r m e n t e seus g a n h o s t e n h a m b a i x a d o . O período
1 8 6 3 - 1 8 8 8 r e v e l a - s e p o r t a n t o m a i s p r o p í c i o , c o m p a r a d o ao de 1 8 4 5 - 1 8 6 3 . Seria esta
esta
a razão d a q u a s e t o t a l a u s ê n c i a d e m o v i m e n t o s p o p u l a r e s nessa época? D e f a t o ,
os
únicos q u e se v e r i f i c a r a m d a t a m d e 1 8 7 8 , a n o e m q u e o s p r e ç o s s u b i r a m e o salário d
os
pedreiros b a i x o u . N e s s e a n o , 5 8 , 8 % d o s a l á r i o d e 4 5 0 . 0 0 0 réis s e r i a m c o n s u m i d
os
naquelas q u a n t i d a d e s d e f a r i n h a , f e i j ã o e c a r n e c o m q u e e s t a m o s t r a b a l h a n d o .

S e t o m a m o s 1 8 6 6 c o m o a n o - b a s e , v e m o s q u e a f a r i n h a de m a n d i o c a a u m e n t o u
4 3 , 8 % , o f e i j ã o 6 3 , 6 % e a c a r n e b o v i n a f r e s c a 4 3 , 1 % , e n q u a n t o o salário d o s pedreiros
subiu a p e n a s 1 2 , 5 % . P o r o u t r o l a d o , o p e r c e n t u a l d e s e u o r ç a m e n t o necessário para
adquirir esses t r ê s p r o d u t o s e m 1 8 7 8 e r a d e 5 8 , 8 % , o m e s m o q u e em 1 8 5 8 , que foi
t a m b é m u m a n o d e a g i t a ç ã o s o c i a l . E r a esse o p a t a m a r a b a i x o d o qual n ã o se podia
descer? A l i á s , a o q u e t u d o i n d i c a , a m a n i f e s t a ç ã o d a c ó l e r a p o p u l a r teve a l g u m ê x i t o ,
e, p r e s s i o n a n d o o s p o d e r e s p ú b l i c o s e o s q u e m o n o p o l i z a v a m o a b a s t e c i m e n t o da
cidade, c o n t r i b u i u p a r a r e s t a b e l e c e r u m e q u i l í b r i o — aliás b a s t a n t e relativo — entre
os p r e ç o s e o s s a l á r i o s .

E m r e s u m o , n a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o X I X , m a s s o b r e t u d o a partir de 1 8 6 3 ,
o poder de c o m p r a d e u m t r a b a l h a d o r a s s a l a r i a d o dessa c a t e g o r i a era suficiente, ao q u e
parece, p a r a d e s p e s a s e s s e n c i a i s c o m a m o r a d i a , a a l i m e n t a ç ã o e o vestuário. Isto e
c o n f i r m a d o p e l o f a t o de q u e e n t r e o s a s s a l a r i a d o s estava a m a i o r p o r c e n t a g e m dos que
tinham casa própria, c o m o v e r e m o s adiante.
Esses d a d o s s u g e r e m q u e n ã o d e v e m o s d e s c r e r p o r c o m p l e t o das crônicas da
época, q u a n d o f a l a m d e a b u n d â n c i a e d e v i d a fácil, d e s d e q u e n ã o e s q u e ç a m o s que
essa s i t u a ç ã o e r a p r i v i l é g i o d e u m a p e q u e n a p o r c e n t a g e m da p o p u l a ç ã o de Salvador.
V e j a m o s , p o r e x e m p l o , c o m o J o s é F r a n c i s c o S i l v a L i m a descreve a Salvador da déca-
da de 1 8 4 0 : " A a l i m e n t a ç ã o era frugal c b a r a t a . S e n ã o havia grandes fortunas c o m o
há h o j e , t a m b é m as despesas e r a m m o d e r a d a s . Q u e m possuísse c e m c o n t o s de réis
« a já u m r i c a ç o . As f o r t u n a s e r a m mais sólidas, n ã o sujeitas a rápidas oscilações de
c â m b i o , d o s t í t u l o s de c o m p a n h i a s e de b a n c o s , e a aventuras d o j o g o da bolsa. O s
mais c a u t e l o s o s g u a r d a v a m o o u r o nas burras, t e m e n d o c o n f i á - l o à administração
alheia. U m a f a m í l i a de até dez pessoas n ã o gastava n o passadio diário mais de dois
mil réis, o u sete p a t a c a s . A c a r n e fresca n ã o custava mais de u m a pataca a libra no
m á x i m o , e o m e s m o a libra d a m a n t e i g a inglesa de barril; u m q u e i j o flamengo, duas
patacas, e t u d o m a i s a p r o p o r ç ã o . "
5"S BAHIA, SÉCULO X I X

O quadro é demasiado lisonjeiro e idílico para que se lhe confira um valor abso-
luto, tanto mais que são reminiscências de um ancião, que evocava o tempo de sua
juventude, 6 0 anos antes. Ele atesta, não obstante, que a tradição oral guardou uma
imagem otimista das condições de vida no século X I X , apesar de todas as catástrofes.
Um crença muito enraizada pretende que, naqueles bons tempos, a vida era mais fácil,
mais barata.
C o m o chegar hoje a uma avaliação justa desse tempo, quando há tão poucos
testemunhos disponíveis? Alguns alegariam, aliás com razão, que os pedreiros da épo-
ca, já privilegiados por serem assalariados, eram ademais trabalhadores qualificados.
Mas como estimar a renda da grande massa dos baianos que exerciam trabalho não
qualificado, marinheiros, pescadores, milhares de vendedores ambulantes, carregado-
res, desempregados mais ou menos crônicos, biscateiros que alugavam seus braços para
qualquer serviço? Ademais, essa gente, que muitas vezes ocultava sua miséria sob trajes
de luxo, sempre podia contar com a solidariedade dos que possuíam um pouco mais.
Muitos viviam na dependência de outros que, por sua vez, tinham apenas um pouco
mais que o estritamente necessário para não morrer de fome. Todas as estruturas —
a família, o Estado ou a Igreja — contribuíam para manter esse tipo de relação,
reforçando a idéia de que os ricos deviam socorrer os pobres. Não havia família sem
seus protegidos, seus agregados mais ou menos próximos. A população era assim
mantida, a despeito da precariedade de suas condições de vida, longe de qualquer
tentação de caráter reivindicatório. A harmonia social era preservada ao preço de
submissões e servilismos (que, aliás, ainda hoje persistem). O preço do sucesso social
era, muitas vezes, curvar-se diante das regras de um jogo estabelecido havia muito, e
que nem a modernização do Estado, nem a romanização da Igreja puderam modificar.
Em meio a tudo isso, quem ascendia socialmente? Qual era a fortuna real dos baianos
no século XIX? É o que passo a considerar.
C A P I T U L O JO

HIERARQUIAS SOCIAIS

Toda organização econômica gera suas próprias hierarquias sociais. Em Salvador e no


Recôncavo, reinou desde meados do século X V I um sistema agroindustrial mercantil
cujo eixo era a produção quase exclusiva da cana-de-açúcar. A essa cultura acrescenta-
ram-se, pouco a pouco, as do fumo c dos gêneros alimentícios indispensáveis à subsis-
tência de uma população sempre crescente.
A empreitada açucareira exigia mão-de-obra abundante. A população indíqena,
além de pouco numerosa, revelou-se pouco apta à fixação na terra, exigida pelo traba-
lho agrícola, apesar dos esforços feitos pelos jesuítas c por colonizadores leigos para
torná-la sedentária. C o m cerca dc 1 , 5 5 milhão de habitantes, a pequena nação por-
1

tuguesa, lançada à conquista do mundo, não tinha muitos braços para exportar. Ade-
mais, o português que se dispunha a emigrar, por miserável que fosse, não admitia
alugar sua força dc trabalho para cultivar uma terra que não lhe pertencia. Era preciso
buscar alhures a mão-dc-obra indispensável. O tráfico dc africanos, com os lucros que
propiciou, completou e aumentou o fluxo comercial que se estabeleceu cm tomo do
açúcar c, mais tarde, do fumo c dc outros produtos, como algodão c café.
A disponibilidade quase inesgotável dc mão-dc-obra escrava imprimiu a essa socie-
dade em formação, desde seus primórdios, um caráter muito particular, pois favoreceu
A
idéia de que nela a estratificação fundava-se exclusivamente na cor da pele c no
estatuto legal dos membros da comunidade. Segundo tal visão, havia no Brasil dois
segmentos: dc um lado os brancos, os senhores, que comandavam; do outro a massa
escrava, que produzia.
Estava criada, de maneira peremptória c definitiva, a mais pobre das visões, a
mais imprecisa das descrições dc uma sociedade. Pobre porque desconsidera toda
mobilidade, toda evolução havida nas hierarquias sociais no Brasil entre o início da
colonização c a industrialização moderna, no século XIX. Imprecisa porque não leva
cm conta a imensidão das terras brasileiras, a diversidade das realidades regionais e
suas respectivas evoluções.

579
BAHIA. SÉCULO X I X

S e r i a a b s u r d o , p o r e x e m p l o , t e n t a r fazer u m a m e s m a d e s c r i ç ã o d a o r g a n i z a ç ã o
social das p o p u l a ç õ e s da c i d a d e d e S a l v a d o r , d o R e c ô n c a v o a ç u c a r e i r o e d o Sertão
p e c u á r i o , e m t u d o e p o r t u d o d i f e r e n t e s : p o r sua o r i g e m , p e l o m o d o c o m o se estabele-
c e r a m e e n r a i z a r a m , p o r força das c a r a c t e r í s t i c a s d o m e i o f í s i c o e m q u e viveram e
e v o l u í r a m ; d i f e r e n t e s e n f i m pela m e n t a l i d a d e , i n c l u s i v e p o r q u e parte dessa g e n t e vivia
e m m u n d o s f e c h a d o s , s e m c o n t a t o c o m o e x t e r i o r , e m q u e era p r e c i s o a p r e n d e r a
c o n s t r u i r e p r o d u z i r e m c o n j u n t o para s o b r e v i v e r .
C a d a região d a P r o v í n c i a da B a h i a e v o l u i u n u m r i t m o p r ó p r i o . A e v o l u ç ã o da
c i d a d e de S a l v a d o r e d o R e c ô n c a v o é m a i s b e m c o n h e c i d a , m a s isso se deve a que a
riqueza desse i n d i s s o c i á v e l c o n j u n t o c i d a d e - c a m p o s e m p r e a t r a i u m a i s a curiosidade
dos h i s t o r i a d o r e s q u e as terras d i s t a n t e s , p o b r e s e q u a s e i n a c e s s í v e i s . M e s m o o c o n h e -
c i m e n t o s o b r e S a l v a d o r e o R e c ô n c a v o , aliás l i m i t a d o e p o u c o s a t i s f a t ó r i o , apóia-se o
mais das vezes e m e s c r i t o s de s o c i ó l o g o s q u e p e n e t r a r a m n o c a m p o na h i s t ó r i a , sem
c o n t u d o c o n h e c e r e m as i m p o s i ç õ e s d a h i s t ó r i a s o c i a l . G e r a r a m - s e assim generalizações
apressadas, e s p e c i a l m e n t e p e r i g o s a s q u a n d o se t r a t a v a d e d e s c r e v e r o q u a d r o social não
só das velhas r e g i õ e s a ç u c a r e i r a s c o m o das diversas s o c i e d a d e s d e t o d o o Brasil. D o i s
desses a u t o r e s c o n t i n u a m s e n d o t o m a d o s c o m o r e f e r ê n c i a .

U m deles, o m a r x i s t a C a i o P r a d o J ú n i o r , j u l g a s ó ser possível classificar c o m


precisão d o i s g r u p o s s o c i a i s : o s s e n h o r e s e os e s c r a v o s . " E n t r e essas d u a s categorias
nitidamente definidas e entrosadas na o b r a da c o l o n i z a ç ã o c o m p r i m e - s e o número,
q u e vai a v u l t a n d o c o m o t e m p o , d o s d e s c l a s s i f i c a d o s , d o s i n ú t e i s e i n a d a p t a d o s ; in-
divíduos de o c u p a ç õ e s m a i s o u m e n o s i n c e r t a s e a l e a t ó r i a s o u s e m o c u p a ç ã o algu-
m a . " N o nível m a i s b a i x o dessa ' s u b c a t e g o r i a ' c o l o n i a l , C a i o P r a d o s i t u o u o s vaga-
b u n d o s s e m e m p r e g o q u e se t o r n a v a m c r i m i n o s o s , a q u e m r e s p o n s a b i l i z a p o r todas
as c o n t u r b a ç õ e s s o c i a i s d a é p o c a d a I n d e p e n d ê n c i a . E s s a c a m a d a i n t e r m e d i á r i a c o m -
p u n h a - s e p r i n c i p a l m e n t e , diz ele, de " í n d i o s , n e g r o s e p a r d o s " , q u e , n ã o sendo es-
cravos e n ã o p o d e n d o se t o r n a r s e n h o r e s , v i a m - s e e x c l u í d o s d e q u a l q u e r situação
estável. 2

A despeito de u m e s f o r ç o de p r e c i s ã o , u m a vez q u e l i m i t a o universo descrito ao


N o r d e s t e , o p o n t o de vista de F e r n a n d o d e A z e v e d o p o u c o difere d o p r e c e d e n t e : " S e
q u i s e r m o s ter u m a i m a g e m da diversidade d a e s t r u t u r a social e e c o n ô m i c a da socieda-
de c o l o n i a l , n o N o r d e s t e e n o R e c ô n c a v o , t e m o s de figurar toda u m a hierarquia
lançada sobre a base da e s c r a v i d ã o , e m q u e se s u c e d e m de alto para b a i x o , c o m o
camadas superpostas, a a r i s t o c r a c i a d a terra, a b u r g u e s i a u r b a n a de caráter mercantil,
aristocratizada sob as i n f l u e n c i a s d o p a t r i a r c a l i s m o , a p e q u e n a burguesia mal definida,
a massa i n f o r m e d o p o v o c a plebe, i n d i s c i p l i n a d a c t u r b u l e n t a , s e m p r e disposta a se
acender à reação o u a abalar, pela revolta, o edifício s o c i a l . " 3

E m b o r a estas análises das hierarquias e estratificações sociais n ã o se a c o m p a n h e m


de n e n h u m a i n d i c a ç ã o dos critérios utilizados, infere-se q u e a m b o s os autores consi-
deraram u n i c a m e n t e a o r d e m i n s t i t u c i o n a l , q u e separava a p o p u l a ç ã o e m livres e
escravos. Por o u t r o lado, essas descrições foram c e r t a m e n t e feitas a partir de dados
LIVRO V I I - o DINHEIRO nos BAIANOS
581

colhidos c m d o c u m e n t o s o f i c i a i s e relatos de v i a j a n t e s . D e f a t o . o discurso oficial no


século X I X . e m b o r a fizesse f r e q ü e n t e s referências às diferentes classes de cidadãos
o p u n h a q u a s e s e m p r e a e l i t e agrária e c o m e r c i a l ao povo - q u a n d o não o p u n h a
s i m p l e s m e n t e o s livres a o s e s c r a v o s - , s e m j a m a i s definir o q u e se e n t e n d i a por povo
Era c o n s t i t u í d o s o m e n t e p o r h o m e n s livres? P o r t o d o s eles ou só pelos que faziam
parte da G u a r d a N a c i o n a l e d o c o r p o e l e i t o r a l ? Q u e lugar t i n h a entre esse povo livre
o c o n j u n t o d o s a l f o r r i a d o s , essa g e n t e q u e pagava taxas e i m p o s t o s mas não tinha
cidadania p l e n a ? E o s e s c r a v o s , g e n t e s e m e x i s t ê n c i a p o r q u e sem personalidade jurídica
própria, f a z i a m o u n ã o p a r t e d e s s e c o r p o s o c i a l c h a m a d o ' p o v o ' ? S e havia oposição
entre elites e p o v o , q u e c a r a c t e r í s t i c a s f u n d a v a m a i n c l u s ã o n u m a o u noutra dessas
categorias sociais?

P o r o u t r o l a d o , h i s t o r i a d o r e s e s o c i ó l o g o s u t i l i z a m a m p l a m e n t e , para descrever
a
s o c i e d a d e d o p a s s a d o , r e l a t o s de v i a j a n t e s e s t r a n g e i r o s . S e m q u e r e r reduzir em demasia
a i m p o r t â n c i a dessa f o n t e , d e q u e e u m e s m a m e servi, l e m b r o q u e m u i t o s desses relat
os
foram e s c r i t o s p o r pessoas q u e p a s s a r a m a l g u n s dias, q u a n d o n ã o algumas horas,
no
porto de S a l v a d o r . M e s m o q u a n d o s e u s a u t o r e s r e s i d i r a m anos n o Brasil, essas fontes
devem s e r u t i l i z a d a s c o m a l g u m a d e s c o n f i a n ç a . O s q u e passaram rapidamente, por
mais a r g u t o s o b s e r v a d o r e s q u e f o s s e m , e v i d e n t e m e n t e n ã o p o d i a m captar mais que a
a p a r ê n c i a : v i n d o s d a E u r o p a , v i a m c i r c u l a r pelas ruas n e g r o s e mestiços, que não
p o d i a m d i s t i n g u i r d o s e s c r a v o s . N o s c o n t a t o s q u e t i n h a m c o m a elite — quando
t i n h a m — , e r a s o b r e t u d o c o m b r a n c o s q u e se e n c o n t r a v a m , a i n d a que fossem 'brancos
da terra'.' E r a q u a s e i n e v i t á v e l q u e levassem c o n s i g o u m a visão simplificada e dicotômica
( b r a n c o s - l i v r e s / n e g r o s - c a t i v o s ) dessa s o c i e d a d e . P o r o u t r o l a d o , os estrangeiros que
residiram m a i s t e m p o e m S a l v a d o r , c o m o L i n d l e y o u W e t h e r e l l , estavam mais interes-
sados em c o m p r e e n d e r o f u n c i o n a m e n t o das r e l a ç õ e s sociais d o que em descrever
hierarquias. S u a s o b s e r v a ç õ e s f o r a m feitas e m t e r m o s de raça e de cor, pois sua visão
c o n f o r m a v a - s e e m ú l t i m a a n á l i s e à q u e l a q u e a e l i t e b a i a n a queria rer de si mesma:
b r a n c a , e m o p o s i ç ã o a n e g r o s e m e s t i ç o s . É e s p e c i a l m e n t e l a m e n t á v e l que essas descri-
ções se t e n h a m t o r n a d o f o n t e s ú n i c a s , o q u e lhes c o n f e r e u m peso excessivo. T a m b é m
nelas, n e n h u m c r i t é r i o o b j e t i v o p e r m i t e c o m p r e e n d e r o q u e de f a t o distinguia essas
diferentes c a m a d a s d a p o p u l a ç ã o .

U m a análise social c o r r e t a deve b u s c a r c a p t a r o c o t i d i a n o de cada grupo — seja ele


restrito o u n u m e r o s o — , suas c o n d i ç õ e s e c o n ô m i c a s , suas maneiras de agir e pensar.
Para c o n h e c e r as n u m e r o s a s faceras de u m a s o c i e d a d e , é preciso buscar relações e
ligações lógicas q u e m o s t r e m o j o g o das ações e reações de todos os fatores e c o n ô m i -
cos, sociais, p s i c o l ó g i c o s . As m u d a n ç a s q u e todas essas relações sofrem ao longo do
t e m p o d e m o r a m a se fazer perceptíveis. Para n ã o f o r m a r delas u m quadro estático, é
necessário m u l t i p l i c a r os critérios de referência.
E m defesa d o s analistas da sociedade brasileira q u e citamos há p o u c o , devo c o n -
fessar q u e , à é p o c a e m q u e fizeram seus estudos, faltavam dados e m p í n c o s . O que
espanta é a insistência c o m q u e são utilizados e reutilizados - p n n c p a l m e n t e em
Ki: BAHIA. SÉCULO X I X

m a n u a i s escolares — para descrever as realidades sociais brasileiras, pois nos últimos


v i n t e a n o s , graças aos e s f o r ç o s c o n j u g a d o s de h i s t o r i a d o r e s brasileiros c estrangeiros, o
c o n h e c i m e n t o nesse c a m p o foi m u i t o a p r o f u n d a d o . Isto c e s p e c i a l m e n t e verdadeiro
n o c a s o da B a h i a n o s s é c u l o s X V I 1 c X V I I I . 1 l o j e , m u i t o s e s t u d o s p e r m i t e m repensar
os p r o b l e m a s das h i e r a r q u i a s sociais na P r o v í n c i a , c s o b r e t u d o na c i d a d e de Salvador
e n o Recôncavo no século X I X .
T e n d o relido a h i s t o r i o g r a f i a t r a d i c i o n a l b a i a n a c o m u m n o v o o l h a r e recorrido a
pesquisas r e c e n t e s , t e n t a r e i p r o p o r a l g u m a s h i p ó t e s e s de t r a b a l h o . A n t e s de mais nada.
n ã o se deve a p r e s e n t a r u m q u a d r o s i m p l e s d a s o c i e d a d e b a i a n a , p o s t u l a n d o uma
o p o s i ç ã o d e m a s i a d o rígida e a b s o l u t a e n t r e as e s t r u t u r a s sociais agrária e u r b a n a . Não
t e n d o e n f r e n t a d o a n e c e s s i d a d e de se s u p e r p o r a n e n h u m a e s t r u t u r a social preexistente:
— c o m o ocorreu e m n u m e r o s a s regiões da c o l o n i z a ç ã o espanhola — a sociedade
c o l o n i a l b a i a n a c a r a c t e r i z o u - s e d e s d e o p r i m e i r o s é c u l o de sua f o r m a ç ã o por uma
e n o r m e c a p a c i d a d e de a s s i m i l a ç ã o e u m a g r a n d e m o b i l i d a d e s o c i a l , aliás ascendente e
d e s c e n d e n t e ( n ã o s u r g i u d o n a d a o d i t a d o " p a i r i c o , f i l h o n o b r e , n e t o p o b r e " , que se
refere a o d e s a p a r e c i m e n t o de f o r t u n a s e m a p e n a s três g e r a ç õ e s ) .

C o m o passar d o t e m p o — e a m e s t i ç a g e m foi u m f a t o r d e c i s i v o nesse m o v i m e n t o


— , parte n ã o n e g l i g e n c i á v e l da m a s s a servil, de posse d e u m a c a r t a de alforria, mos-
trava-se i n t e i r a m e n t e c a p a z de i n t e g r a r - s e a c e r t a s c a t e g o r i a s q u e t i n h a m poder de
m a n d o . O p r o c e s s o dessas a s c e n s õ e s a i n d a n ã o foi b e m e l u c i d a d o , m a s houve fatores
capazes de a t e n u a r o s a n t a g o n i s m o s c as t e n s õ e s e n t r e s e n h o r e s e escravos. As mudan-
ças se davam p o r reajustes c o n t í n u o s , p o r força d e u m a d i n â m i c a f u n d a d a n o talento
individual e na c a p a c i d a d e de e n r i q u e c e r . G r u p o s de h o m e n s de c o r , tornados social-
m e n t e ' b r a n c o s ' , c o n s e g u i r a m ' s u b i r ' na s o c i e d a d e , m u i t o e m b o r a a legislação ditada
pela M e t r ó p o l e — c o m o a q u e i m p e d i a o a c e s s o d e h o m e n s de c o r o u cristãos-novos
a c e r t o s cargos a d m i n i s t r a t i v o s e m i l i t a r e s — p r e t e n d e s s e i m p e d i r essa mobilidade.
A s o c i e d a d e b a i a n a c o n f i g u r o u - s e assim c o m o u m a s o c i e d a d e a b e r t a , em que os
p r e c o n c e i t o s raciais eram a t e n u a d o s : t e s t a m e n t o s , i n v e n t á r i o s post mortem e atos de
filiação m o s t r a m c l a r a m e n t e q u e , n o s s é c u l o s X V I I e X V I I I , havia u m a sociedade
tolerante, d o t a d a de g r a n d e c a p a c i d a d e de a s s i m i l a ç ã o : esses d o c u m e n t o s raramente
m e n c i o n a m <1 origem social — leia-se racial o u até c o n f e s s i o n a l — d o indivíduo.
Passadas as duas primeiras gerações — isto é, a g e r a ç ã o vinda da África e a de seus
filhos brasileiros — , a c o r f r e q ü e n t e m e n t e deixava de servir de critério para discrimi-
nação, s o b r e t u d o se, nesse m e i o t e m p o , a l g u m b r a n q u e a m e n t o já houvesse ocorrido.
O s únicos d o c u m e n t o s q u e m e n c i o n a m a c o r são os recenseamentos e os atos registrados
nos livros paroquiais, mas seu efeito social cm n u l o .
T r a t a v a - s c , e v i d e n t e m e n t e , dc u m a tolerância limitada, pois estava sempre à mercê
das circunstâncias: o juízo social usava dois pesos e duas medidas. Basta remontar no
t e m p o e analisar, por e x e m p l o , c o m o sc processava a admissão na m u i t o ilustre c
fechadíssima — confraria da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Pelo regulamento,
os postulantes tinham de provar não só sua honestidade e capacidade de ganhar a vida,
Li\-Ro VII - O DINHEIRO nos BAIANOS
583

c o m o a p u r e z a ' de s e u s a n g u e . T e r s a n g u e p u r o era n ã o ser ' c r i s t ã o - n o v o ' (isto é, n ã o


ter o r i g e m j u d a i c a ) , m a s era t a m b é m n ã o ter h o m e m o u m u l h e r de cor c o m o ascen-
dente o u c o m o c ô n j u g e . M a s esse r e g u l a m e n t o e r a a p l i c a d o a o s a b o r das c o n v e n i ê n -
cias. Se o i m p e t r a n t e fosse u m p e r s o n a g e m de d e s t a q u e , a c o n f r a r i a 'esquecia' suas
origens, o q u e n ã o i m p e d i a q u e m a i s t a r d e elas v i e s s e m a ser l e m b r a d a s , se por alguma
razão o m e m b r o se t o r n a s s e i n d e s e j á v e l . E m 1 6 7 9 , o c o n f e i t e i r o p o r t u g u ê s D o m i n g o s
Roiz p l e i t e o u seu i n g r e s s o n a c o n f r a r i a . S u a a d m i s s ã o foi r e c u s a d a p o r u m duplo
' p e c a d o ' : era c a s a d o c o m T e o d o r a B a r b o s a , m u l a t a , filha de n e g r a , e n ã o sabia ler n e m
escrever. E m 1 7 0 9 , o p r o v e d o r e os m e m b r o s d o diretório da Santa Casa vetatam
t a m b é m o i n g r e s s o n a c o n f r a r i a de J o s e p h d o s R e i s de O l i v e i r a e seu c u n h a d o , o
ourives J o s e p h d e A l m e i d a P a c h e c o , p o r i m p u r e z a de s a n g u e . O r a , a ausência desses
dois n o m e s nas listas — s e m p r e e x a u s t i v a s — e m q u e , n a é p o c a , a I n q u i s i ç ã o arrolou
os n o v o s c r i s t ã o s b a i a n o s s u g e r e q u e a i m p u r e z a e m q u e s t ã o era a presença de um
a s c e n d e n t e n e g r o e m suas o r i g e n s . N ã o o b s t a n t e , e m 1 7 1 4 , o d i r e t ó r i o decidiu a d m i t i r
o m e s m o o u r i v e s J o s e p h d e A l m e i d a P a c h e c o , " p o r t e r c o n s t a t a d o a pureza d o sangue
de sua m u l h e r p e l o c o n t r a t o d e d o t e d a m e s m a " . A s s i m , c i n c o a n o s após ter sido
recusado (e d e f o r m a q u e s u g e r i a q u e o e m p e c i l h o e r a s u a a s c e n d ê n c i a ) , o requerente
se viu a c e i t o m e d i a n t e a s ú b i t a o b t e n ç ã o d e u m c e r t i f i c a d o d a ' b r a n c u r a ' da esposa.
Por s u p o s t o , seus a n c e s t r a i s e o s d a m u l h e r c o n t i n u a v a m os m e s m o s , m a s ele encontrara
apoios q u e p e r m i t i a m tais t r a n s g r e s s õ e s . S e u c u n h a d o , p o r é m , n ã o r e n o v o u o pleito.
6

Q u a n d o as classes c o m p o d e r d e m a n d o se v i a m e m d i f i c u l d a d e e c o n ô m i c a , os
efeitos da t o l e r â n c i a p o d i a m a r r e f e c e r - s e o u a t é e s t a n c a r . U m e x e m p l o é o q u e se
passou n o m e r c a d o d e t r a b a l h o de S a l v a d o r e m m e a d o s d o s é c u l o X I X : a recusa de dar
t t a b a l h o aos e s c r a v o s n ã o e r a falta d e t o l e r â n c i a ? S e r á q u e s ó e n t ã o a sociedade baiana
se t o r n a r a i n t o l e r a n t e ? O u o m e s m o t e r i a o c o r r i d o e m o u t r o s p e r í o d o s de crise?

S e j a c o m o f o r , esse m o m e n t o m a r c o u d e f a t o u m a m u d a n ç a n a a t i t u d e da socie-
dade b a i a n a . A p a r t i r d e e n t ã o ela se f e c h o u , e n r i j e c e n d o - s e n u m e s q u e m a de estrati-
ficação racial c u j o c r i t é r i o d e d e m a r c a ç ã o — d e i n í c i o o e s t a t u t o civil (livre/escravo)
— passou a ser, a p ó s a A b o l i ç ã o , a c o r d a p e l e . I s t o era f a c i l i t a d o p o r dois fatos: a
imigração d e b r a n c o s p o b r e s d i m i n u í r a c o n s i d e r a v e l m e n t e e as o c u p a ç õ e s e ofícios
menos p r e s t i g i o s o s e r a m , c a d a vez m a i s , e x e r c i d o s p o r u m a p o p u l a ç ã o i n r e i r a m e n t e de
cor, mas livre. Essa l i n h a de d e m a r c a ç ã o o p ô s ' b r a n c o s ' , s e n h o r e s , de u m lado, a
negros, p o b r e s , de o u t r o . O e m i n e n t e s o c i ó l o g o T h a l e s A z e v e d o , n u m a análise m u i t o
correta d a s o c i e d a d e b a i a n a p o r v o l t a da d é c a d a de 1 9 5 0 , d i s t i n g u i u três categorias.
A elite se c o m p u n h a de três g r u p o s : as famílias t r a d i c i o n a i s , as famílias ricas e as
famílias s e m t r a d i ç ã o . T r a d i c i o n a i s seriam todas as q u e d e s c e n d i a m d o a n t i g o grupo
de p r o p r i e t á r i o s rurais, e s p e c i a l m e n t e o s s e n h o r e s de e n g e n h o ; ricas eram as dos g r a n -
des c o m e r c i a n t e s ; as s e m t r a d i ç ã o t i n h a m se e s t a b e l e c i d o e m Salvador após terem
e n r i q u e c i d o e m o u t r a s regiões d o E s t a d o . A s e g u n d a categoria era a classe m é d i a ,
c o m p o s t a de g r a n d e s e p e q u e n o s c o m e r c i a n t e s , proprietários, f u n c i o n á r i o s , profissio-
nais liberais, t é c n i c o s e e m p r e g a d o s d o c o m é r c i o , todos g o z a n d o de certa i n d e p e n d e n -
584 BAHIA, SÉCULO X I X

cia e c o n ô m i c a . A classe p o b r e e n g l o b a v a t o d o s o s q u e viviam d o t r a b a l h o m a n u a l . 7

A m a i o r i a dos b r a n c o s e n c o n t r a v a - s e nas duas primeiras c a t e g o r i a s , ao passo q u e os


m e m b r o s da classe p o b r e e r a m t o d o s n e g r o s e m e s t i ç o s . N e s s a análise, T h a l e s de
A z e v e d o c o m b i n o u três c r i t é r i o s : p r e s t í g i o e c o n ô m i c o , p r e s t í g i o social e c o r da pele.
N a realidade, trata-se de e s t u d a r u m a e s t r u t u r a social d e t e r m i n a d a , n u m período
t a m b é m d e t e r m i n a d o ( e m n o s s o c a s o , o s é c u l o X I X ) . C o n v é m a i n d a captar, m e s m o
i m p e r f e i t a m e n t e , as m u d a n ç a s q u e essa e s t r u t u r a sofreu nesse lapso de t e m p o . Malgrado
a t e n d ê n c i a das estruturas e c o n ô m i c a s — e, até c e r t o p o n t o , das p o l í t i c a s — a p e r m a n e -
cer, toda sociedade p r o d u z e l e m e n t o s q u e v ã o p o u c o a p o u c o t r a n s f o r m a n d o o arcabouço
p r i m i t i v o , s e m n o e n t a n t o d e m o l i - l o . P o r o u t r o l a d o , se, c o m o a c r e d i t o , certas hierar-
quias se e x p r e s s a m de m o d o d i f e r e n t e n a s c o m u n i d a d e s rurais e u r b a n a s , é preciso
l e m b r a r q u e , n o c a s o de S a l v a d o r — de i n í c i o c a p i t a l d a C o l ô n i a , d e p o i s m e t r ó p o l e
r e g i o n a l — , h o u v e s e m p r e u m a í n t i m a r e l a ç ã o e n t r e a c i d a d e e o R e c ô n c a v o rural.

P o r f i m , a o r g a n i z a ç ã o s o c i a l q u e se e s t a b e l e c e u a p a r t i r de m e a d o s d o século X V I
n ã o n a s c e u ex nihilo: o s p o r t u g u e s e s , seus a r t í f i c e s , t r o u x e r a m c o n s i g o u m m o d e l o de
sociedade. N ã o h á c o m o penetrar a essência da sociedade baiana sem conhecê-lo e
analisar o m o d o c o m o se a d a p t o u à r e a l i d a d e d o N o v o M u n d o . É o q u e e m p r e e n d o
a seguir, para d e p o i s i n v e s t i g a r c o m o se o r g a n i z a r a m o s g r u p o s s o c i a i s e m Salvador e
n o R e c ô n c a v o n o i n í c i o d o s é c u l o X I X . F i n a l m e n t e , p r o c u r a r e i destacar as especificidades
d o m o d e l o b a i a n o de s o c i e d a d e .

O M O D E L O PORTUGUÊS DE SOCIEDADE

O s h i s t o r i a d o r e s p o r t u g u e s e s s e m p r e a t r i b u í r a m c a r á t e r c o r p o r a t i v o à sua sociedade.
S e u s p o n t o s de p a r t i d a t ê m s i d o d o c u m e n t o s legais e a d m i n i s t r a t i v o s , s o b r e t u d o as
O r d e n a ç õ e s d o R e i n o , leis f u n d a m e n t a i s d o E s t a d o p o r t u g u ê s , c o n s t a n t e m e n t e reno-
vadas pelos m o n a r c a s . A s m a i s r e c e n t e s e m a i s i n t e r e s s a n t e s p a r a m i m são as de Fili-
pe II ( O r d e n a ç õ e s F i l i p i n a s , de 1 6 0 3 ) , p o r q u e p e r m a n e c e r a m e m v i g o r n o Brasil até
depois d o período c o l o n i a l . A s o c i e d a d e p o r t u g u e s a teria t i d o u m a organização tripartite
clássica, d i v i d i n d o - s e e m três e s t a d o s : n o b r e z a , c l e r o e p o v o . N o i n t e r i o r de cada u m , a
organização social seria de caráter c o r p o r a t i v o , c a d a g r u p o social g o z a n d o de certos privi-
légios e de u m e s t a t u t o j u r í d i c o e p o l í t i c o p a r t i c u l a r . N o m o m e n t o de sua grande expan-
são a l é m - m a r , a s o c i e d a d e p o r t u g u e s a estaria pois h i e r a r q u i z a d a da s e g u i n t e maneira.

E m p r i m e i r o lugar, os fidalgos, o s n o b r e s . N o s é c u l o X V , d i s t i n g u i a m - s e entre eles


três categorias: o s Vassalos d o r e i , q u e f o r m a v a m a alta n o b r e z a titulada, os 'cavaleiros
1

e os ' e s c u d e i r o s ' . D e f a t o , foi nesse s é c u l o q u e c o m e ç a r a m a ser usadas as palavras


'fidalgo' e ' l i n h a g e m * , esta ú l t i m a t e n d o se t o r n a d o o signo de u m a autêntica nobreza.
T e o r i c a m e n t e , a n o b r e z a representava a classe dos guerreiros, t e n d o p o r t a n t o o encar-
go de proteger o país e d e v e n d o estar à d i s p o s i ç ã o d o rei para todas as suas empreitadas
de c o n q u i s t a . E m troca desses serviços, gozava de isenções fiscais, de u m a posição
LIVRO V I I - O DINHEIRO DOS BAIANOS
585

privilegiada d i a n t e d a lei e o c u p a v a p o s i ç õ e s de a u t o r i d a d e e c o m a n d o n o g o v e r n o .
Esse c o n j u n t o d e a t r i b u t o s c o n f e r i a a essa c a t e g o r i a o mais alto prestígio social. E m seu
Tratado prático de morgados, de 1 8 1 4 , o j u r i s t a p o r t u g u ê s M a n u e l de A l m e i d a e S o u z a
de L o b ã o e n u m e r o u as d i f e r e n t e s c a t e g o r i a s da n o b r e z a p o r t u g u e s a de seu t e m p o :
fidalgos t i t u l a d o s ( d u q u e s , m a r q u e s e s , c o n d e s ) , fidalgos de solar (isto é, possuidores de
um solar, u m a s e n h o r i a , u m a l i n h a g e m ) , fidalgos de solar c o n h e c i d o ( n o b r e s de linha-
gem c o n h e c i d a ) , fidalgos de c o t a d e a r m a s , fidalgos cavaleiros, fidalgos escudeiros,
cavaleiros fidalgos e cavaleiros escudeiros. 8

E m s e g u i d a v i n h a o c l e r o , q u e t i n h a sua p r ó p r i a o r g a n i z a ç ã o hierárquica e não


c o n s t i t u í a u m a classe h o m o g ê n e a . O a l t o c l e r o e r a r e c r u t a d o e n t r e os m e m b r o s da
nobreza, ao passo q u e o b a i x o c l e r o t i n h a e m suas fileiras as diferentes categorias que
c o m p u n h a m o t e r c e i r o e s t a d o , o p o v o . O s e c l e s i á s t i c o s se d i v i d i a m ainda entre os que
pertenciam a o r d e n s r e l i g i o s a s e os s e c u l a r e s , q u e g o z a v a m de m u i t o s privilégios,
embora sem j a m a i s igualar os n o b r e s .

O t e r c e i r o e s t a d o e r a o ' p o v o ' , c u j o s m e m b r o s f o r a m d e f i n i d o s pelo Alvará de


1 5 7 0 e o C ó d i g o F i l i p i n o c o m o os q u e v i v i a m c o m o s e n h o r o u p a t r ã o ; t i n h a m um
ofício pelo q u a l g a n h a v a m a v i d a ; o u c o m e r c i a v a m , para si m e s m o s o u para t e r c e i r o s . 9

P o r t a n t o , a l e g i s l a ç ã o p o r t u g u e s a r e c o n h e c i a c o m o p e r t e n c e n t e s ao ' p o v o ' todas as


pessoas q u e t i n h a m p o s i ç ã o e f u n ç ã o b e m d e f i n i d a s n o c o r p o s o c i a l . A categoria dos
senhores o u p a t r õ e s e n g l o b a v a de f a t o t o d o s os q u e v i v i a m de rendas e lucros: proprie-
tários rurais, n e g o c i a n t e s o u p r o f i s s i o n a i s a p o s e n t a d o s . C i d a d ã o s e m certo sentido
passivos, sua p r ó p r i a i n a t i v i d a d e o s g u i n d a v a à c a t e g o r i a de s e n h o r e patrão, pois,
c o m o os n o b r e s , j á n ã o t r a b a l h a v a m c o m as m ã o s . N ã o se t o r n a v a m nobres, mas seu
estilo de vida fazia deles a s p i r a n t e s à n o b r e z a , o u p e l o m e n o s ao t í t u l o de fidalgo.
Ademais, p e r t e n c i a m t a m b é m a o c o r p o s o c i a l t o d o s os q u e e r a m capazes de ganhar a
vida, fosse p e l a p r á t i c a de u m o f í c i o , fosse p e l o c o m é r c i o .

N o t o p o dessa h i e r a r q u i a estava o b u r g u ê s : a q u e l e q u e vivia de rendas, mas s o -


bretudo o g r a n d e n e g o c i a n t e . B u s c a v a e s c a p a r à c o n d i ç ã o d e plebeu, pela o b t e n ç ã o
de um t í t u l o de fidalgo o u f a z e n d o valer sua riqueza e seu papel e c o n ô m i c o . C o m o
Magalhães G o d i n h o assinala c o m m u i t a p e r t i n ê n c i a , tornava-se difícil distinguir o
grande n e g o c i a n t e , q u e s e m p r e acabava p o r o b t e r a 'fidalguia', tão grande era seu
desejo de integrar-se à n o b r e z a , d o n o b r e q u e se t o r n a v a ' c o m e r c i a n t e , pois cm Portu-
gal a prática d o c o m é r c i o n ã o era d e s a b o n a d o r a para a nobreza. Aliás, segundo esse
autor, t a m a n h a aspiração à nobreza foi o principal o b s t á c u l o a q u e a burguesia se
constituísse em g r u p o a u t ô n o m o c desenvolvesse seus próprios valores.
A o lado dos grandes burgueses estavam os l e t r a d o s ' . O s m e m b r o s desse grupo —
doutores c licenciados egressos da universidade, formados em teologia, direito canónico,
direito civil e m e d i c i n a — serviam nas fileiras da Igreja, exerciam os ofícios de advo-
gado c m é d i c o , mas, s o b r e t u d o , eram servidores d o Estado, nas administrações civil e
judiciária. M a g a l h ã e s G o d i n h o não separa esse grupo e a nobreza, a que estava forte-
mente ligado, e assinala que as carreiras na magistratura e na administração publica
S86 BAHIA, SÉCULO X I X

c o n d u z i a m c o m f r e q ü ê n c i a à o b t e n ç ã o de t í t u l o s de e s c u d e i r o , c a v a l e i r o o u m e s m o de

fidalgo-cavaleiro. 11

E m s u m a , essas duas c a t e g o r i a s — negociantes e letrados — s ó p e r t e n c i a m ao


p o v o , ao t e r c e i r o e s t a d o , p o r d e f i n i ç ã o e s t a t u t á r i a , p o i s s u a h a b i l i d a d e pessoal, seus
c o n h e c i m e n t o s , suas p r o f i s s õ e s e suas f o r t u n a s o s s i t u a v a m a c i m a d o s c o m e r c i a n t e s ,
d o s p r o p r i e t á r i o s rurais e d o s a r t e s ã o s , a p o n t o d e l h e s p e r m i t i r o i n g r e s s o n a n o b r e z a .
A b a i x o dos b u r g u e s e s e d o s l e t r a d o s v i n h a m os ' c i d a d ã o s ' , o u ' h o m e n s bons',
g r u p o i n t e g r a d o e m geral p o r p r o p r i e t á r i o s d e i m ó v e i s o u d e t e r r a s , c o m e r c i a n t e s e
m e s t r e s - a r t e s ã o s . E s s e g r u p o , q u e c o m p u n h a o s c o n s e l h o s m u n i c i p a i s , fazia p a r t e da
' g e n t e l i m p a ' , isto é, d e ' s a n g u e p u r o ' , s e m m i s t u r a d e s a n g u e m o u r o , j u d a i c o o u
n e g r o . As várias c a t e g o r i a s d e c i d a d ã o s t i n h a m r e p r e s e n t a n t e s n a s C o r t e s ( P a r l a m e n t o
português), ao lado da nobreza e d o c l e r o , m a s é e v i d e n t e q u e só os mais preeminentes
c o n s e g u i a m m a n d a t o s n o s c o n s e l h o s m u n i c i p a i s o u n o P a r l a m e n t o . A essas c a t e g o r i a s
cabe acrescentar o n ú m e r o considerável d e h o m e n s d e d i c a d o s aos ofícios artesanais e
o s t r a b a l h a d o r e s a g r í c o l a s , c o m o c a m p o n e s e s s e m t e r r a e p a s t o r e s , s e m e s q u e c e r os
pescadores e marinheiros, pois a pesca e outras o c u p a ç õ e s ligadas ao m a r desempe-
n h a m i m p o r t a n t e p a p e l e m P o r t u g a l . P o r h u m i l d e s q u e f o s s e m essas a t i v i d a d e s garan-
r

t i a m o ingresso n o â m b i t o d o s q u e t i n h a m u m o f í c i o p a r a g a n h a r a v i d a .

N o nível m a i s b a i x o d a e s c a l a s o c i a l e s t a v a m o s e m p r e g a d o s d o m é s t i c o s — na
m a i o r i a escravos, m o u r o s o u n e g r o s v i n d o s d a Á f r i c a 1 2
— e os desocupados e vagabun-
dos de t o d a s o r t e . E r a m o s r e l e g a d o s d e s s a o r g a n i z a ç ã o s o c i a l , o u p e l a c o n d i ç ã o de
escravos, o u p o r q u e s e u e s t i l o d e v i d a n ã o se e n q u a d r a v a e m n e n h u m d o s três estilos
que garantiam cidadania plena.

A n t e s de e n c e r r a r esta d e s c r i ç ã o d a s o c i e d a d e p o r t u g u e s a , d e v o s u b l i n h a r o u t r o s
princípios que influenciavam sua organização. E m 1497, a numerosa comunidade
j u d a i c a de P o r t u g a l foi o b r i g a d a a e s c o l h e r : c o n v e r t i a - s e à fé c a t ó l i c a o u a b a n d o n a v a
o país. F o r a m assim c r i a d a s , n o i n í c i o d o s é c u l o X V I , as c a t e g o r i a s ' c r i s t ã o s v e l h o s ' e
'cristãos n o v o s ' , q u e se m a n t i v e r a m a t é m e a d o s d o s é c u l o X V I I I . O s c r i s t ã o s - n o v o s e
seus d e s c e n d e n t e s c o n t i n u a r a m a s o f r e r m u i t a s l i m i t a ç õ e s , a i n d a q u e s u a conversão
tivesse sido p r o f u n d a e v e r d a d e i r a . T a m b é m um nascimento ilegítimo, sobretudo
q u a n d o a c o m p a n h a d o d e u m a tez m a i s e s c u r a , p o d i a a c a r r e t a r sérias d i f i c u l d a d e s para
o r e c e b i m e n t o de u m a h e r a n ç a o u o i n g r e s s o n o s e r v i ç o d o rei. D e f a t o , a idéia de
pureza de sangue a b a r c a v a t a n t o a i l e g i t i m i d a d e c o m o a r e l i g i ã o professada pela f a m í -
lia. T u d o o q u e se afastava de m a n e i r a p e r c e p t í v e l d o p a r a d i g m a — o s a n g u e sem
m i s c i g e n a ç ã o , a fé c a t ó l i c a secular — era o b j e t o d a r e j e i ç ã o p o r p a r t e de u m a socie-
dade e m q u e , n o e n t a n t o , a m i s t u r a racial r e m o n t a v a à c o n q u i s t a d o país pelos m o u r o s ,
e e m q u e o c r i s t i a n i s m o sofrera f o r t e c o n c o r r ê n c i a dos c r e d o s h e t e r o d o x o s m u ç u l m a n o
c h e b r a i c o . Analisar c o m o essa r e p u g n â n c i a foi vivida e v e n c i d a e m P o r t u g a l escapa ao
nosso p r o p ó s i t o , mas é c e r t o q u e , n a B a h i a , o s n a s c i m e n t o s ilegítimos eram bem
tolerados, e n q u a n t o as c r e n ç a s h e t e r o d o x a s s u s c i t a r a m c o m f r e q ü ê n c i a atitudes de
r e p u g n â n c i a e rejeição por parte d o c o r p o social. J á e m 1 5 9 2 , doze dos 4 1 engenhos
LIVRO V I I _ 0 DINHEIRO DOS BAIANOS
" — !>o.

existentes n o R e c ô n c a v o pertenciam a 'cristãos novos'- em 1 6 1 8


I n q u i s i ç ã o m e n c i o n a m 3 4 e n g e n h o s , d o s q u a i s v i n t e nas' m ã o s desses L^ZZ
que, g r a ç a s a o c a s a m e n t o , t i n h a m se m i s t u r a d o às f a m í l i a s d e 'cristãos v e l h o s ' « P
o u t r o l a d o , as m i s t u r a s e n t r e b r a n c o s e pessoas d e c o r e r a m n u m e r o s a s , m a s difíceis de
d e t e c t a r , p o i s n a o h a v i a p e r s e g u i ç ã o legal a essa p r á t i c a .

V o l t e m o s a o n o s s o t e m a . A b r e v e d e s c r i ç ã o da o r g a n i z a ç ã o social portuguesa
m o s t r a , e m p r i m e i r o l u g a r , q u e a d i v i s ã o j u r í d i c a d a p o p u l a ç ã o e m três estados era
p u r a m e n t e t e ó r i c a . A m o b i l i d a d e s o c i a l e r a g r a n d e , p e r m i t i n d o a passagem d e u m a
o r d e m a o u t r a . A n o b r e z a c o n f i g u r a v a u m ideal d e vida, a q u e aspiravam todos os
m e m b r o s d a s o c i e d a d e , d e s d e o g r a n d e n e g o c i a n t e a o m e s t r e a r t e s ã o p r ó s p e r o , incluin-
d o o l e t r a d o . A p a s s a g e m e r a u m a q u e s t ã o d e o p o r t u n i d a d e e d e t e m p o . O desenvol-
v i m e n t o d o c o m é r c i o e a f o r m a ç ã o d o E s t a d o p o r t u g u ê s , e m fins do século X I V ,
f a v o r e c e r a m m e r c a d o r e s , f u n c i o n á r i o s d o rei e o u t r o s l e t r a d o s q u e desejavam ingressar
na n o b r e z a . A p o s s e d e u m a b o a f o r t u n a e a c o n s i d e r a ç ã o social e r a m os atributos q u e
lhes p e r m i t i a m a s p i r a r a r e c e b e r d o r e i , d e q u e m e r a m p r e c i o s o s auxiliares, a fidalguia,
o u m e s m o o i n g r e s s o i m e d i a t o n o r o l d o s n o b r e s t i t u l a d o s . S e r n o b r e era ser servidor
do rei, m a s e r a t a m b é m s e r o s e n h o r d e u m a g r a n d e casa — c o m p o s t a de vasta
parentela, servidores, m u i t o s f r e q ü e n t a d o r e s — , ter i n d e p e n d ê n c i a e c o n ô m i c a e domí-
nio s e n h o r i a l , m a n t e r u m a t r a d i ç ã o f a m i l i a r e a c a l e n t a r e s p e r a n ç a d e q u e a própria
d e s c e n d ê n c i a se t r a n s f o r m a r i a , c o m o t e m p o , n u m a l i n h a g e m . N a d a i m p e d i a , aliás,
que os n o b r e s d e p r i m e i r o g r a u c h e g a s s e m às fileiras d a mais alta nobreza, caso aprouvesse
ao rei a s s i m r e c o m p e n s a r b o n s s e r v i ç o s a e l e p r e s t a d o s . P o r o u t r o l a d o , m e s m o q u e não
obtivesse a ' f i d a l g u i a ' , u m g r a n d e n e g o c i a n t e o u u m l e t r a d o p o d i a e m nada distinguir-
se d o s n o b r e s , tal a s u a f o r t u n a , e s t i l o d e v i d a e f u n ç ã o .

N ã o se s a b e q u a n t a s g e r a ç õ e s e r a m n e c e s s á r i a s p a r a se ter acesso à nobreza, mas a


rapidez c o m q u e se f a z i a m f o r t u n a s n o s s é c u l o s X V , X V I e X V I I sugere q u e a nobilitação
p o d i a o c o r r e r n a p r ó p r i a g e r a ç ã o d o r e c é m - e n r i q u e c i d o . J á a ascensão dos m e m b r o s de
categorias m e n o s p r e s t i g i o s a s d o t e r c e i r o e s t a d o ( p r o p r i e t á r i o s d e imóveis e de terras,
artesãos r i c o s ) e r a m a i s l e n t a . O c a n d i d a t o à fidalguia, o u m e s m o a u m a função
nobilitante — n a a d m i n i s t r a ç ã o real, p o r e x e m p l o — devia provar q u e seus pais
t i n h a m v i v i d o d e m a n e i r a n o b r e , s e m e x e r c e r o f í c i o m a n u a l , p e r t e n c e n d o pois à cate-
goria d e pessoas q u e viviam ' c o m o s e n h o r e s o u p a t r õ e s ' . 1 4
Assim, se um negociante ou
um l e t r a d o p o d i a m a s c e n d e r d i r e t a m e n t e à n o b r e z a , as d e m a i s categorias do terceiro
estado d e v i a m p r i m e i r o g u i n d a r - s e — pelo prestígio e c o n ô m i c o , político ou social
ao t o p o d e seu g r u p o o u c o r p o r a ç ã o . O s o n h o da ascensão à fidalguia só se realizava,
nesse c a s o , n a g e r a ç ã o d o s filhos o u n a d o s n e t o s . •
Esse e s q u e m a d e m o b i l i d a d e social - e m q u e , a d e s p e i t o de t o d o um
categorias sociais n o - i n t e r i o r d e c a d a o r d e m , eram possíveis passagens freqden^.«
c o n t í n u a s d e u m a o r d e m para o u t r a - acabava p o r reduzir
i . , , . . „IMI«MISos p r i m e ros se d i s t i n g u i n d o pelo estilo de vma,
do,s g r u p o s b i s . c o s : n o b r e s plebeus o . p ^ d e

os privilégios c a estima social d e q u e aesrrui


BAHÍA, SÉCULO X I X

c a d a u m desses g r u p o s b á s i c o s q u e se o r d e n a v a m as categorias sociais. Assim, na


prática, a s o c i e d a d e p o r t u g u e s a repousava n u m a o r g a n i z a ç ã o social d i c o t ô m i c a , o que
aliás se refletia na o p o s i ç ã o q u e essa s o c i e d a d e t e n t a v a e s t a b e l e c e r , quase inconscien-
t e m e n t e , e n t r e c a t ó l i c o e h e r e g e , s a n g u e p u r o e s a n g u e i m p u r o , c o m o se p o r aí passas-
sem as verdadeiras linhas de d e m a r c a ç ã o .
H i e r á r q u i c a , a s o c i e d a d e p o r t u g u e s a o r d e n a v a - s e p o r t a n t o e m dois grandes
g r u p a m e n t o s q u e p o s s u í a m as p r ó p r i a s regras de c o n d u t a e de m o b i l i d a d e social. O
m o d o c o m o este m o d e l o foi a d a p t a d o as realidades d o n o v o m u n d o b a i a n o é o que
passo a e x a m i n a r .

O M O D E L O BAIANO DE SOCIEDADE

A o r g a n i z a ç ã o social b a i a n a e n g e n d r o u u m m o d e l o de s o c i e d a d e q u e , e m b o r a inspira-
d o n o m o d e l o p o r t u g u ê s , foi a d a p t a d o às c o n d i ç õ e s p r ó p r i a s d a C o l ô n i a . A estrutura
social c o n t i n u o u h i e r a r q u i z a d a , m a s s o b o u t r a b a s e j u r í d i c a . A s e g m e n t a ç ã o nobres-
plebeus foi s u b s t i t u í d a p o r o u t r a , de m o d o q u e a d i c o t o m i a social d o m o d e l o portu-
guês, e m b o r a m a n t i d a , m u d o u de n a t u r e z a .
N o n o v o m o d e l o , os n o b r e s f o r a m s u b s t i t u í d o s p e l o s b r a n c o s livres e os escravos
t o m a r a m o lugar dos p l e b e u s . N o n o v o c o n t e x t o c r i a d o p e l o r e g i m e escravocrata, o
b r a n c o , fosse q u a l fosse sua o r i g e m s o c i a l , f u n ç ã o o u r i q u e z a , t i n h a u m a posição
p r e e m i n e n t e p e l o m e r o f a t o d e ser livre p a r a d i s p o r de sua p e s s o a e de seu d e s t i n o . Q u e
u m s i m p l e s a r t e s ã o , f e i t o r o u p e q u e n o c o m e r c i a n t e assumisse ares de n o b r e z a e afetas-
se s u p e r i o r i d a d e n ã o causava q u a l q u e r e s p a n t o . M e s m o os q u e se situavam em níveis
mais altos da escala s o c i a l e v i t a v a m c e n s u r a r tal a t i t u d e , n u m m e i o e m q u e os brancos
eram u m a m i n o r i a a m e a ç a d a p o r t o d o s o s l a d o s .
C o m o passar d o t e m p o e a m u d a n ç a das c o n d i ç õ e s , esse e s q u e m a se alterou.
Antes de mais nada, alguns b r a n c o s f i z e r a m f o r t u n a , até g r a n d e f o r t u n a ; depois, a
m e s t i ç a g e m e a prática d a alforria c r i a r a m u m a n o v a e c a d a vez m a i s n u m e r o s a cate-
goria de h o m e n s livres e n ã o b r a n c o s , a o s q u a i s era preciso a t r i b u i r um lugar na escala
social. P o r f i m , na m e d i d a e m q u e a p o p u l a ç ã o livre de c o r a u m e n t a v a , certos ofícios
(cuja técnica antes só os b r a n c o s d o m i n a v a m ) passaram a ser exercidos peia população
de c o r . C o m isto, b r a n c o s q u e a n t e s v i n h a m à B a h i a para exercer um ofício manual
passaram a só a d m i t i r fazê-lo c o m a c o n d i ç ã o de p o d e r guindar-se imediatamente ao
t o p o da profissão, de m o d o a p o d e r exercer algum p o d e r de c o m a n d o . Garantiam
assim certa p r e e m i n ê n c i a e m relação aos demais m e m b r o s de sua categoria profissional
e certa proximidade dos b r a n c o s q u e , t e n d o e n r i q u e c i d o na agricultura ou n o comér-
cio, se consideravam a nata da sociedade.
O r a , u m a vez que a sociedade se estruturava em bases jurídicas que separavam a
população e m livres e escravos, não seria demasiado pretensioso para os brancos que
t i n h a m feito fortuna excluir de seu meio outros brancos, cujas origens sociais eram
LIVRO V I I - o DINHEIRO DOS BAIANOS
589

m u i t a S v e , e s s e m e l h a n t e s às suas? N a v e r d a d e , os q u e c h e g a r a m ^
ram regras d e c o n d u t a c u e d e v a m s e r o b s e r v a d a s p o r q u e n , „ e s s e vencer socialmen-
q 1 S

te. Essas regras n a o i m p e d i a m o p r o c e s s o d c a s c e n s ã o social — se a m i , I j


guesa era a b e r r a , a b a i a n a o era a i n d a m a i s , u m a vez q u e , t a n t o de direito q u a n t o de
fato, o p o r t u g u ê s n a o o c u p a v a n e l a u m a o r d e m d e t e r m i n a d a D e fato a nob
p o r t u g u e s a i g n o r o u o B r a s i l , c o s ' f i d a l g o s ' e n v i a d o s a serviço d o rei, q u e aqui ficaram
para e n n q u e c e r , n ã o e r a m n u m e r o s o s o b a s t a n t e p a r a c o n s t i t u i r u m a classe nobiliária
O s p o r t u g u e s e s q u e se h a v i a m t o r n a d o s e n h o r e s d e e n g e n h o f o r m a v a m s e m dúvida
um g r u p o s o c i a l q u e , p e l a r i q u e z a , o p o d e r e o e s t i l o d e vida, a s s e m e l h a v a - s e à nobreza
p o r t u g u e s a . M a s essa ' n o b r e z a d a t e r r a ' — d e s i g n a ç ã o q u e ela m e s m a se o u t o r g o u e
conseguiu i m p o r — n ã o era mais q u e u m a aristocracia, no sentido antigo do termo.
F a l t a v a m - l h e o s t í t u l o s ; f a l t a v a m - l h e s o b r e t u d o as t r a d i ç õ e s familiares q u e ao l o n g o do
t e m p o c o n s t i t u e m a l i n h a g e m . A s f a c i l i d a d e s o f e r e c i d a s n o B r a s i l a t o d o s os r e c é m -
c h e g a d o s d e a l é m - m a r p e r m i t i a m - l h e s e n r i q u e c e r pela p r á t i c a de u m o f í c i o o u n o
c o m é r c i o , c o m p r a r t e r r a s o u c a s a r c o m a filha d e u m s e n h o r de e n g e n h o , até finalmen-
te e n c o n t r a r u m l u g a r n o s e i o d a ' n o b r e z a d a t e r r a ' . S e , e m 1 7 2 5 , 7 0 % dos senhores
de e n g e n h o e r a m n a s c i d o s n o B r a s i l e 3 0 . % e r a m filhos de i m i g r a n t e s portugueses, em
1 8 1 8 a p r o p o r ç ã o d e s e n h o r e s d e e n g e n h o de i m i g r a ç ã o r e c e n t e era ainda m a i o r : em
3 1 6 e n g e n h o s , 9 2 p e r t e n c i a m às v i n t e f a m í l i a s m a i s i m p o r t a n t e s , q u e haviam chegado
à Bahia nos séculos X V I e X V I I . 1 5

O b r a n c o e r a s e m p r e , e m s u m a , u m a r i s t o c r a t a e m p o t e n c i a l , assim c o m o eram
n o b r e s e m p o t e n c i a l o s g r a n d e s n e g o c i a n t e s e os l e t r a d o s de P o r t u g a l . A diferença é
q u e , d e s t e l a d o d o A t l â n t i c o , p r a t i c a m e n t e n i n g u é m p a r e c i a interessado em investigar
m u i t o a o r i g e m s o c i a l d o s c a n d i d a t o s . S ó q u a n d o n ã o l h e interessava a d m i t i r alguém
em seu seio o g r u p o d o m i n a n t e t r a z i a à t o n a a q u e s t ã o d a i m p u r e z a da o r i g e m . 1

Esse g r u p o d o m i n a n t e , a r i s t o c r á t i c o e m sua essência m a s n ã o n o b r e e m u i t o


m e n o s p o r t a d o r de l i n h a g e m , t o m a v a p o r m o d e l o a n o b r e z a portuguesa, mais particu-
l a r m e n t e , a alta n o b r e z a . I m i t a v a seu e s t i l o d e v i d a e tentava atribuir-se poderes
equivalentes a o s d e l a , o q u e aliás n ã o c o n s e g u i a p o r q u e a a d m i n i s t r a ç ã o real, que lhe
deu c e r t a m a r g e m d e a ç ã o n o s p r i m e i r o s c e m a n o s da c o l o n i z a ç ã o , retomou seus
direitos assim q u e as c o n d i ç õ e s o p e r m i t i r a m . P o l i t i c a m e n t e forte nos séculos X V I e
X V I I , t e n d o m e s m o a s s e g u r a d o a p r o t e ç ã o da C o l ô n i a pelas armas nos primeiros
séculos da c o l o n i z a ç ã o , essa classe d o m i n a n t e p e r d e u nos fins d o século X V I I seus ou
atributos essenciais — c o m a n d o m i l i t a r e p o d e r p o l í t i c o — , q u e lhe teriam permitido
uma p r o m o ç ã o m a c i ç a às fileiras d a n o b r e z a . M e s m o o título d c 'fidalgo', de tao ci
o b t e n ç ã o na M e t r ó p o l e , aqui era c o n c e d i d o c o m certa e c o n o m i a , e só para fami ias
que t i n h a m , de u m a m a n e i r a o u d c o u t r a , servido d i r e t a m e n t e ao Estado.
Essa p a r c i m ô n i a d o rei resultaria da resistência a nobilitar pessoas que tinham
ascendido s o c i a l m e n t e c o m excessiva rapidez ou da p r e o c u p a ç ã o de n ã o estancar uma
apreciável f o n t e de recursos pela concessão de isenções fiscais? C a b e considerar ainda
uma terceira razão: na B a h i a , era o s e n h o r de e n g e n h o que reunia em sua pessoa
S90 BAHIA, SÉCULO X I X

riqueza e p o d e r , e essa c o n d i ç ã o n ã o era s e m p r e p e r m a n e n t e . L o n g e d i s t o : as fortunas


se faziam e se perdiam c o m igual rapidez e as p l a n t a ç õ e s a ç u c a r e i r a s passavam de u m a
m ã o a outra f a c i l m e n t e ; o t o d o - p o d e r o s o s e n h o r d e e n g e n h o p o d i a s u b i t a m e n t e trans-
formar-se em branco pobre, e um fidalgo e m p o b r e c i d o j á n ã o p o d i a m a n t e r sua
p o s i ç ã o . S t u a r t S c h w a r t z c o m p a r t i l h a dessa o p i n i ã o : " A c o n s i d e r a ç ã o p r i n c i p a l a ser
ressaltada aqui é q u e , apesar d a a s p i r a ç ã o a o status de n o b r e z a , o s s e n h o r e s de e n g e n h o
constituiam-se essencialmente e m u m a aristocracia de riqueza e poder, que desempe-
n h o u e assumiu m u i t o s dos papéis t r a d i c i o n a i s d a n o b r e z a p o r t u g u e s a , m a s n u n c a se
t o r n o u u m estado c o m bases h e r e d i t á r i a s . " 1 7

D e f a t o , os h i s t o r i a d o r e s da B a h i a p u d e r a m c e l e b r a r c e r t a s a s c e n s õ e s sociais fulgu-
rantes, mas os m u i t o s d e c l í n i o s q u e as a c o m p a n h a r a m p e r m a n e c e m desconhecidos.
P o r pudor? T a l v e z , m a s s o b r e t u d o p o r f a l t a d e i n f o r m a ç õ e s : o d e c l í n i o social geral-
m e n t e acarreta o e s q u e c i m e n t o . N o m e s q u e u m d i a f o r a m ilustres r e t o r n a m ao a n o -
n i m a t o , de o n d e e m e r g i r a m p o r u m t e m p o d e m a s i a d a m e n t e c u r t o .

N o o u t r o e x t r e m o d a escala s o c i a l e s t a v a m os e s c r a v o s . D e i n í c i o , n o s é c u l o X V I ,
foram os í n d i o s , d e p o i s os a f r i c a n o s . E s s a d u p l a e x p e r i ê n c i a de e s c r a v i s m o e m p r e e n d i -
da pelos portugueses na B a h i a foi a d m i r a v e l m e n t e e s t u d a d a p o r S t u a r t S c h w a r t z . 1 8
O
que i m p o r t a s u b l i n h a r a q u i é q u e , e m b o r a f o s s e m d a d a s a o s e s c r a v o s o p o r t u n i d a d e s
e x t r e m a m e n t e variadas de se l i b e r t a r e as alforrias f o s s e m f r e q ü e n t e s , elas n ã o benefi-
ciaram a m a i o r i a , e m u i t o m e n o s p e r m i t i r a m à m a i o r i a d o s b e n e f i c i a d o s u m a ascensão
fácil na escala social.

E m p r i m e i r o lugar, p o r q u e o e s c r a v o m u i t a s vezes era l i b e r t a d o q u a n d o j á n ã o


t i n h a capacidade n e m de p r o d u z i r , n e m de s e r e p r o d u z i r . D e p o i s p o r q u e , p o r maiores
que fossem seu m é r i t o e t a l e n t o , o a l f o r r i a d o n ã o p o d i a t r a n s p o r d e t e r m i n a d o limiar,
a m e n o s que contasse c o m u m b o m n ú m e r o d e c u m p l i c i d a d e s , n ã o apenas entre
outros ex-escravos, mas t a m b é m — e s o b r e t u d o — n o m u n d o dos b r a n c o s , o u n o dos
que assim se c o n s i d e r a v a m . F i n a l m e n t e , o a l f o r r i a d o n e m s e m p r e se d i s p u n h a a se
curvar às regras d o j o g o d o m u n d o b r a n c o : h a v i a o s q u e p r e f e r i a m viver à parte, sem
fazer demasiado esforço e s e m a c a l e n t a r g r a n d e s a m b i ç õ e s , s a b e n d o q u e n ã o poderiam
conseguir m u i t o mais q u e fazer a c e i t a r a c o r de sua pele e sua c o n d i ç ã o d e ex-escravo.
P o r outro lado, faltavam e m geral aos e x - e s c r a v o s — i n c l u s i v e e m razão d o alto preço
que muitos pagavam pela alfor ria — as c o n d i ç õ e s m a t e r i a i s q u e lhes permitiriam
deslocar-se de u m a c a t e g o r i a a o u t r a . A i n d a assim, a c o n q u i s t a da l i b e r d a d e significava
e n o r m e progresso: era passar de coisa a pessoa, fazer-se livre para t o m a r u m lugar num
corpo social de que até e n t ã o se vira e x c l u í d o .

E n t r e os extremos representados por b r a n c o s livres e negros escravos — diferentes


pelo estatuto j u r í d i c o , a c o r da pele, as origens religiosas e culturais e as atitudes
mentais — alocava-se u m a massa h e t e r o g ê n e a , c o m p o s t a de b r a n c o s , m u l a t o s e negros
de todas as tonalidades. Essa c a m a d a em c o n s t a n t e c r e s c i m e n t o formava o m e i o em
que se geravam as próprias c o n d i ç õ e s para a asqensão social. M a s , se permitia p r o m o -
ções espantosas, acolhia t a m b é m — m u i t a s vezes para ocultá-las — os socialmente
LIVRO V I I - O DINHEIRO DOS BAIANOS
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decaídos e t o d o s o s m a r g i n a i s q u e a s o c i e d a d e s e c r e t a v a . Estava l o n g e de ser, c o n t u d o ,


c o m o já se a f i r m o u , u m a m a s s a d e " g e n t e i n ú t i l , i n a d a p t a d a e desclassificada 11
Ao
c o n t r á r i o . E r a u m g r u p a m e n t o e m q u e o s i n d i v í d u o s se o r d e n a v a m e m categorias
fundadas na c o r — as c o n f r a r i a s religiosas s ã o u m b o m e x e m p l o disso — , m a s t a m b é m
no ofício e x e r c i d o e n o p r e s t í g i o s o c i a l . O m o d e l o de s o c i e d a d e ideal cultivado nesse
grupo tão h e t e r ó c l i t o d o p o n t o d e v i s t a das o r i g e n s e d o s g r a u s de a c u l t u r a ç ã o de seus
m e m b r o s era, c o m o n ã o p o d i a d e i x a r d e ser, o p r o p o s t o pelos b r a n c o s .
A assimilação por aculturação — tal c o m o foi f o r m u l a d a na d é c a d a de 1 9 3 0 por
R. R e d f i e l d , R . L i n t o n e M J . H e r s k o v i t s ( " c o n j u n t o d e f e n ô m e n o s resultantes do fato
de que g r u p o s d e i n d i v í d u o s d e c u l t u r a s d i f e r e n t e s e n t r a m e m c o n t a t o s c o n t í n u o s e
diretos c o m as m u d a n ç a s q u e s u r g e m n o s m o d e l o s c u l t u r a i s o r i g i n a i s " ) 1 9
apresenta-
va-se de f a t o c o m o a ú n i c a s o l u ç ã o p o s s í v e l . M a s , a i n d a q u e p r a t i c a m e n t e inevitável e
vista c o m o i m p o s i ç ã o d o m u n d o d o s b r a n c o s , a a s s i m i l a ç ã o n u n c a foi forçada, c o m o
acredito t e r m o s t r a d o a o l o n g o de t o d o este e s t u d o . O q u e o c o r r e u foi u m a t r o c a
c o n t í n u a , s e m p r e e n r i q u e c e d o r a , de p r i n c í p i o s , v a l o r e s e a t i t u d e s , q u e c u l m i n o u na
criação de u m a n o v a i d e n t i d a d e e d e u m a o r d e m s o c i a l o r i g i n a l .
O caráter e s p o n t â n e o d a a c u l t u r a ç ã o foi b e m d e m o n s t r a d o p o r R o g e r Bastide, que
estabeleceu u m a d u p l a c a u s a l i d a d e p a r a e x p l i c á - l a : u m a e x t e r n a (a pressão o u influência
exercida pelo g r u p o d o a d o r ) , o u t r a i n t e r n a (de iniciativa d o g r u p o t o m a d o r , que favore-
cia ou vetava d e t e r m i n a d a m u t a ç ã o o u e m p r é s t i m o ) . A partir dessa distinção, Bastide
definiu u m a série d e c o n c e i t o s — s e l e ç ã o , r e c u s a , a c e i t a ç ã o , adaptação, sincretismo,
contra-aculturação, r e i n t e r p r e t a ç ã o 2 0
— q u e v i m o s traduzidos e m fatos e atitudes, ações
e interações, ao falar d a f a m í l i a , d o E s t a d o e d a Igreja. O q u e i m p o r t a sublinhar aqui é
que as c a m a d a s d o m i n a n t e s s e m p r e se r e c u s a r a m a a d m i t i r q u e a nova identidade fosse
resultado desse p r o c e s s o , p o i s s e u p r ó p r i o ideal d e sociedade — c o m o seus demais
conceitos e l i n g u a g e m — p e r m a n e c i a d e s e s p e r a d a m e n t e c o l a d o ao m o d e l o europeu.
Retornarei a este p o n t o , m a s q u e r o frisar q u e , n a o r g a n i z a ç ã o social baiana, não se pode
distinguir e n t r e g r u p o s d o a d o r e s e t o m a d o r e s : h o u v e u m i n t e r c â m b i o c o n t í n u o .

Esse e s b o ç o da e s t r u t u r a ç ã o geral d a o r g a n i z a ç ã o social baiana exige especificações.


As diversas c o m u n i d a d e s rurais e s t a b e l e c e m regras p r ó p r i a s de m o b i l i d a d e , que c o n f i -
guram ordens h i e r á r q u i c a s q u e as d i s t i n g u e m e n t r e si e das c o m u n i d a d e s urbanas.
Impõe-se, p o r t a n t o , e x a m i n a r as q u a l i d a d e s e o s l i m i t e s das diferentes relações sociais
que se f o r m a r a m e se d e s e n v o l v e r a m nesses diferentes c o n t e x t o s .
N o q u a d r o d a C a p i t a n i a da B a h i a , n o final d o século X V I I I , as comunidades
rurais se d i s t i n g u i a m e n t r e si por suas atividades e c o n ô m i c a s (áreas de pecuária, de
agricultura de s u b s i s t ê n c i a , de agricultura de e x p o r t a ç ã o ) , pelas formas q u e assumia o
p o v o a m e n t o (disperso, c o n c e n t r a d o ) e pela m a i o r ou m e n o r distância da capital. O s
traços das sociedades c a m p o n e s a s d o interior mais r e m o t o j á foram apresentados, mas
as hierarquias e as relações sociais características das c o m u n i d a d e s rurais do R e c ô n c a v o
merecem a t e n ç ã o especial, s o b r e t u d o em decorrência da í n t i m a relação que manti-
nham c o m a c a p i t a l , de q u e estavam tão próximas.
so: BAHIA, SÉCULO XIX

As ESTRUTURAS SOCIAIS RURAIS

P o r v o l t a de 1 8 0 0 , a atividade a g r í c o l a n o R e c ô n c a v o diversificava-se. À sociedade


rural f o r m a d a e m t o r n o da atividade a ç u c a r e i r a v i n h a m a c r e s c e n t a r - s e as q u e se esta-
b e l e c i a m em t o r n o das c u l t u r a s d o f u m o e de g ê n e r o s de s u b s i s t ê n c i a . V i v e n d o em
unidades de p r o d u ç ã o de t a m a n h o b e m mais m o d e s t o , essas s o c i e d a d e s diferiam muito
da dos e n g e n h o s , t a n t o p o r seus c o m p o n e n t e s s o c i a i s c o m o pelas relações que estes
m a n t i n h a m e n t r e si.
N o Recôncavo açucareiro o habitat e r a c o n c e n t r a d o : c a d a e n g e n h o abrigava uma
c o m u n i d a d e rural c i r c u n s c r i t a aos seus l i m i t e s t e r r i t o r i a i s . N a s d e m a i s áreas, ao con-
trário, o habitat era d i s p e r s o , e o s raros l u g a r e j o s e r a m p o u c o m a i s q u e locais a que a
p o p u l a ç ã o a c o r r i a para c u m p r i r suas o b r i g a ç õ e s religiosas. T o m a r e i c o m o primeira
u n i d a d e de estudos a c o m u n i d a d e rural d o e n g e n h o .
O s h a b i t a n t e s d o s e n g e n h o s n o final d o s é c u l o X V I I I p o d e m ser classificados em
diversas categorias sociais,^ o r d e n a d a s e m p i r â m i d e : n o t o p o , o s e n h o r de engenho,
seguido dos ' l a v r a d o r e s ' ; d e p o i s , d i v e r s o s g r u p o s d e assalariados, e m q u e os serventes
o c u p a v a m o nível m a i s b a i x o . E s t e s g e r a l m e n t e e r a m r e c r u t a d o s e n t r e os 'moradores',
c a m p o n e s e s livres, m u i t a s vezes e x - e s c r a v o s o u d e s c e n d e n t e s d e escravos, gente sem
terra c u j a e x i s t ê n c i a e p e r m a n ê n c i a n o d o m í n i o d e p e n d i a d a b o a v o n t a d e do senhor.
S u a f u n ç ã o era p r o d u z i r g ê n e r o s de s u b s i s t ê n c i a e a l u g a r sua f o r ç a de trabalho para
tarefas b e m precisas; p o r fim, n a base d a p i r â m i d e , os e s c r a v o s .
O s e n h o r de e n g e n h o residia p e r m a n e n t e m e n t e e m suas terras, c e r c a d o pela mu-
lher e os filhos, g r u p o f r e q ü e n t e m e n t e a m p l i a d o p e l a p r e s e n ç a n ã o só de parentes mais
o u m e n o s p r ó x i m o s — pai, m ã e , i r m ã o s , p r i m o s — c o m o de a f i l h a d o s e até de filhos
bastardos. S e t i n h a prestígio e u m e n g e n h o de c e r t o v u l t o , o s e n h o r contava com os
serviços exclusivos de u m c a p e l ã o , p o r vezes s e u p r ó p r i o filho, s o b r i n h o ou afilhado.
O s lavradores, b r a n c o s o u m u l a t o s b e m c l a r o s , e r a m c o m f r e q ü ê n c i a parentes do
senhor. C o m suas famílias e seus escravos, v i v i a m e m terras separadas, que podiam
lhes pertencer o u ser a r r e n d a d a s d o s e n h o r , p o r c o n t r a t o , t r a n s f o r m a n d o - s e com fre-
qüência em verdadeiras e n f i t e u s e s . 21
P l a n t a v a m c a n a , p a r t i l h a n d o c o m o senhor de
e n g e n h o as responsabilidades e os riscos da p r o d u ç ã o . E r a m ditos 'livres' quando
podiam m o e r , n o e n g e n h o de sua p r e f e r ê n c i a , a c a n a q u e c o l h i a m ; e obrigados
q u a n d o t i n h a m q u e se restringir ao e n g e n h o d o s e n h o r . Q u a n d o arrendavam as ter-
ras, eram meeiros d o s e n h o r de e n g e n h o ; q u a n d o e r a m proprietários, geralmente
pagavam em gêneros pela m o a g e m de sua c a n a ; se p o d i a m escolher o n d e fazê-la, esse
ganho podia ir para algum s e n h o r v i z i n h o . P o r volta de 1 7 0 0 , uma plantação de
c e r t o vulto contava até quinze desses fazendeiros, mas n o final d o século eles já não
passavam de três o u q u a t r o . 2 2

O s engenhos reuniam ainda q u a t r o grupos de assalariados, cada um dos quais


englobava diferentes categorias. O primeiro ¿ra c o m p o s t o por aqueles empregados
cujos c o n h e c i m e n t o s e habilidades c o n t r i b u í a m para a boa administração do domínio.
L R V R O
- ° DINHEIRO DOS BAIANOS 5 9 }

Antes de m a . s n a d a o s a d v o g a d o s , q u e a t u a v a m m u i t a s vezes c o m o p r o c u r a d o r e s do
s e n h o r , r e p r e s e n t a n d o - o j u n t o a n e g o c i a n t e s d e S a l v a d o r o u d e f e n d e n d o - o na o c o r r ê n
cia de a l g u m l i t í g i o . E m geral r e s i d i a m na c a p i t a l o u e m S a n t o A m a r o e r e c e b i a m
salários a n u a i s . C o m o p o d i a m ser p r o c u r a d o r e s d e d i v e r s o s s e n h o r e s , f r e q ü e n t e m e n t e
a c u m u l a v a m m u i t o s s a l á r i o s . O u t r a c a t e g o r i a de a s s a l a r i a d o s q u e t a m b é m n ã o residia
nos e n g e n h o s era a d o s c h a m a d o s ' c a i x e i r o s d a c i d a d e ' . T i n h a m p o r f u n ç ã o c u i d a r do
registro das c a i x a s d e a ç ú c a r n o s a r m a z é n s d a p r o p r i e d a d e , de seu t r a n s p o r t e até o
p o r t o , d o p a g a m e n t o d a s t a x a s q u e i n c i d i a m s o b r e o p r o d u t o e d a remessa, ao e n g e -
n h o , das m e r c a d o r i a s , i n s t r u m e n t o s e f e r r a m e n t a s n e c e s s á r i o s .

J á os c a p e l ã e s e os m é d i c o s , t a m b é m p a r t e d e s s e p r i m e i r o g r u p o , e m geral m o r a v a m
n o e n g e n h o e r e c e b i a m s a l á r i o s a n u a i s . N ã o r a r o t o r n a v a m - s e p l a n t a d o r e s de c a n a , na
c o n d i ç ã o de l a v r a d o r e s d o s e n h o r q u e a l u g a v a seus s e r v i ç o s . N o final d o s é c u l o X V I I I ,
porém, os p a d r e s r e s i d e n t e s e s c a s s e a v a m , e o s v e r d a d e i r o s m é d i c o s eram ainda mais raros.
A saúde d a p o p u l a ç ã o d o s e n g e n h o s ficou e n t ã o a c a r g o d o s p e r s o n a g e n s m a i s varia-
dos: c i r u r g i õ e s ( q u e d e f a t o n ã o i a m a l é m d a s a n g r i a ) , e n f e r m e i r o s e e n f e r m e i r a s ,
parteiras, c u r a n d e i r o s e h e r b o r i s t a s r e c r u t a d o s e n t r e a p o p u l a ç ã o livre e escrava local.

N o s e g u n d o g r u p o e s t a v a m t r a b a l h a d o r e s a s s a l a r i a d o s m e d i a n t e c o n t r a t o anual,
entre os q u a i s se d e s t a c a v a m o s e s p e c i a l i s t a s n a f a b r i c a ç ã o d o a ç ú c a r e os feitores:
mestres a ç u c a r e i r o s , p u r g a d o r e s , r e s p o n s á v e i s p e l a m a d e i r a o u p e l o m o s t o , pelas caixas
de e m b a l a g e m , t i m o n e i r o s d a s b a r c a s q u e t r a n s p o r t a v a m o a ç ú c a r , feitores q u e super-
visionavam o t r a b a l h o n a p l a n t a ç ã o e n o e n g e n h o , e a d m i n i s t r a d o r e s em geral. R e c e -
b i a m seu s a l á r i o e m d i n h e i r o , m a s h a v i a l u g a r p a r a a j u s t e s q u a n d o t i n h a m direito a
casa e c o m i d a .
Esses d o i s g r u p o s p a r e c e m t e r s i d o o s m a i s f a v o r e c i d o s n o c o n j u n t o dos trabalha-
dores assalariados: s e n d o e s p e c i a l i z a d o s e r e l a t i v a m e n t e p o u c o n u m e r o s o s , tinham
relações p r i v i l e g i a d a s c o m o s e m p r e g a d o r e s , q u e n ã o p o d i a m prescindir de seus servi-
ços n e m s u b s t i t u í - l o s c o m f a c i l i d a d e .
R e s t a m d o i s o u t r o s g r u p o s , c o m p o s t o s p o r t r a b a l h a d o r e s q u e recebiam por dia ou
por serviço: os a r t e s ã o s e os s e r v e n t e s . A r t í f i c e s ( c o m o ferreiros, ferradores, carpintei-
ros, p e d r e i r o s , c a l a f a t e s , c o n s t r u t o r e s de e m b a r c a ç õ e s e caldeireiros) trabalhavam para
os e n g e n h o s de m a n e i r a c o n s t a n t e o u e s p o r á d i c a , m a s pelo m e n o s u m a vez por a n o
seus serviços eram s o l i c i t a d o s . Q u a n d o havia m u i t o s t r a b a l h o s de m o n t a a fazer,
podiam até g a n h a r m a i s q u e os q u e r e c e b i a m salários anuais. Aos ferreiros e caldeireiros,
em especial, n u n c a faltava s e r v i ç o . 2 3
E n t r e esses trabalhadores — q u e formavam uma
elite, u m g r u p o t ã o privilegiado n o m u n d o d o trabalho q u a n t o o dos especialistas do
açúcar — havia d i f e r e n ç a s hierárquicas acentuadas. As distinções e n t r e mestre, c o m -
panheiro e a p r e n d i z eram c u i d a d o s a m e n t e conservadas, ainda q u e , c o m o j á tivemos
ocasião de observar, n ã o tivessem um significado rígido.
O q u a r t o e ú l t i m o g r u p o , e n t r e os assalariados, era o dos que não u n h a m espe-
cialidade o u o f í c i o (os serventes), c u j o s serviços eram d e m a n d a d o s o c a s i o n a l m e n t e
e por p o u c o t e m p o . A « s e s h o m e n s livres eram confiadas tarefas c o m o as de per-
BAHIA, SÉCULO X I X
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seguir e c a p t u r a r n e g r o s e m f u g a , a b r i r t r i n c h e i r a s , c o r t a r á r v o r e s na m a t a p a r a

alimentar os f o r n o s e levar m e n s a g e n s a p r o p r i e d a d e s v i z i n h a s , tarefa q u e , por razões


ó b v i a s , c o n s i d e r a v a - s e i m p o s s í v e l c o n f i a r a e s c r a v o s . R e c r u t a d o s e n t r e os ' m o r a d o -
res' d o e n g e n h o , e r a m os t r a b a l h a d o r e s q u e m e n o s r e c e b i a m , f o r m a n d o a classe
rural p o b r e . 2 4

Artesãos, especialistas d o a ç ú c a r , s e r v e n t e s , e n f e r m e i r o s e e n f e r m e i r a s , cirurgiões


e herboristas eram e m geral r e c r u t a d o s e n t r e a p o p u l a ç ã o livre de c o r , mas havia
n í t i d a p r e f e r ê n c i a pelos m u l a t o s , c o n s i d e r a d o s m a i s i n t e l i g e n t e s , capazes de apren-
der mais depressa. N ã o era r a r o , c o n t u d o , o e m p r e g o de escravos c o m o artesãos ou
especialistas d o a ç ú c a r , c o m o o p r o v a m n u m e r o s a s c a r t a s de a l f o r r i a . Isso podia pôr
o escravo e m pé de i g u a l d a d e c o m u m t r a b a l h a d o r livre, m a s a p e n a s n o tocante ao
trabalho.
F i n a l m e n t e , na base d a p i r â m i d e , o s e s c r a v o s a f r i c a n o s o u n a s c i d o s n o Brasil,
de diversas e t n i a s , d i v i d i a m - s e e m três g r u p o s c o m f u n ç õ e s m u i t o diferenciadas: os
escravos d o m é s t i c o s , e s c o l h i d o s de p r e f e r ê n c i a e n t r e m u l a t o s e b r a s i l e i r o s ; os escra-
vos q u a l i f i c a d o s , q u e d o m i n a v a m a l g u m o f í c i o , e os q u e t r a b a l h a v a m n a plantação
ou no e n g e n h o . 2 5

A c o m u n i d a d e rural n o s e n g e n h o s d o R e c ô n c a v o a p r e s e n t a v a - s e p o r t a n t o , por
volta de 1 8 0 0 , c o m o u m a s o c i e d a d e de e s t r u t u r a c e r t a m e n t e p i r a m i d a l , m a s de com-
posição diversificada: u m a p o p u l a ç ã o d e t r a b a l h a d o r e s livres m a i o r q u e n o primeiro
século da c o l o n i z a ç ã o , e a g o r a de c o r , e x e r c i a o f í c i o s q u e t i n h a m s i d o o u t r o r a apanágio
dos b r a n c o s . Essa p o p u l a ç ã o se o r d e n a v a e m c a t e g o r i a s q u e s e g u i a m critérios ligados
ao estatuto legal, à c o r , aos o f í c i o s e x e r c i d o s e à r e m u n e r a ç ã o p e r c e b i d a , sem esquecer
a c o n s i d e r a ç ã o social de q u e gozava o i n d i v í d u o , s e m p r e d e s u m a i m p o r t â n c i a . Cabe
lembrar, aliás, q u e essa c o n s i d e r a ç ã o p o d i a ser d i f e r e n t e , s e g u n d o e m a n a s s e do senhor
e de seu c í r c u l o mais p r ó x i m o o u d a c o m u n i d a d e .
As relações sociais, e m seu c o n j u n t o , g a n h a r a m e m q u a l i d a d e ? Seria tentador
afirmar que sim, c o m base n o f a t o de q u e , e n t r e o s s e n h o r e s b r a n c o s e os escravos
negros, viera inserir-se u m a p o p u l a ç ã o livre d e c o r , q u e , f a z e n d o u m a m e d i a ç ã o entre
os primeiros e os segundos, evitaria c h o q u e s v i o l e n t o s . M a s as provas indicam o
c o n t r á r i o : eram muitos os escravos q u e recusavam q u a l q u e r relação c o m os brancos, c
isso era feito pelo i s o l a m e n t o , pela fuga o u pela resistência. P o r m a i o r q u e pudesse ser
o poder mediador da gente livre de c o r , esse g r u p o , q u e conseguira elevar-se social-
m e n t e , era cm seu c o n j u n t o solidário c o m os q u e representavam o poder branco, dos
quais dependia sua sobrevivência. T a l v e z j a m a i s v e n h a m o s a saber o que essa solidarie-
dade custou cm sacrifícios e concessões, mas u m a coisa é clara: essa população repre-
sentava, para os escravos, de c u j o m e i o emergira, uma prova de q u e a liberdade não era
um sonho impossível, desde que se aceitassem as n o r m a s de c o n d u t a impostas pela
sociedade branca.

Q u a n t o ao senhor de e n g e n h o , é possível que tenha perdido parte da soberba que


exibia nos primórdios da colonização. Afinal, via seus poderes políticos minguarem
pouco a pouco, ao mesmo tempo cm que se tornava mais dependente dam, -1
instalados na capital, financiavam seu empreendimento, ^indaa t L "
i L i j i , . » continuava a «i»r u a a s s i m

senhor a t e n t o de „ dom „,„ „ , w ,,„,,., , „ . , . , „ . , « «

H como for, no final do sículo XV.II a imagem do senho, d, engenho £££¡1


tone. E ass.m permaneceu por mu.to tempo, enquanto ., atividade açucareira e o
prestígio que ela conferia o conservar.,,,, no topo da escala social. Pelo menos „„
Recôncavo, porque na cidade tinha de partilhat esse prestígio com , a s ourras m u i

categorias.
Como já m e n c i o n e i , o e n g e n h o n ã o era o ú n i c o m o d e l o de organização rural da
Bahia do s é c u l o X I X . D e s d e a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o X V I I , a diversificação da
p r o d u ç ã o a g r í c o l a d e u o r i g e m a n o v o s a g e n c i a m e n t o s d o espaço e c o n ô m i c o . A o c o m -
plexo a g r o i n d ú s t r i a ! d a c a n a - d e - a ç ú c a r , f u n d a d o n a g r a n d e propriedade — ainda que.
c o m o t e m p o , esta t e n h a se s u b d i v i d i d o e m u n i d a d e s m e n o r e s para o plantio da cana
— , vieram se a c r e s c e n t a r p e q u e n o s e m é d i o s e m p r e e n d i m e n t o s agrícolas. Nestes, o
senhor — p o r q u e s e m p r e o s h a v i a , s o b r e t u d o o n d e havia escravos — reinava sobre
uma p e q u e n a g l e b a c u m a m ã o - d e - o b r a r e d u z i d a . D e fato, o p e q u e n o produtor de
f u m o o u d e m a n d i o c a , q u e m u i t a s vezes c u l t i v a v a sua terra c o m a ajuda de dois ou
três e s c r a v o s , e m n a d a se a s s e m e l h a v a ao s e n h o r de e n g e n h o . N o m á x i m o , q u a n d o
sua p l a n t a ç ã o e x i g i a m a i o r n ú m e r o d e b r a ç o s , podia ser c o m p a r a d o ao lavrador de
cana-de-açúcar. O f u m o c os g é n e r o s a l i m e n t í c i o s eram produzidos em unidades
t i p i c a m e n t e f a m i l i a r e s . N ã o fosse pela p r e s e n ç a d c alguns escravos e n t r e a m ã o - d e -
obra, elas s e r i a m c o m p a r á v e i s às u n i d a d e s agrícolas familiares d o N o r t e de Portugal
na m e s m a é p o c a . 2 6

T i n h a - s e n e s t e c a s o , p o r t a n t o , u m a o r g a n i z a ç ã o social simples. O s dois ou três


escravos q u e v i v i a m n a p l a n t a ç ã o g o z a v a m m e s m o d c u m a a p a r e n t e liberdade: estando
na i n t i m i d a d e d o s s e n h o r e s , p a r t i l h a v a m suas i n q u i e t a ç õ e s e alegrias e acabavam por
SC integrar à f a m í l i a , u m p o u c o c o m o o s rapazes e m o ç a s q u e trabalhavam nas granjas
no N o r t e d c P o r t u g a l , nessa é p o c a , c o m a d i f e r e n ç a de q u e estes em gerai eram
parentes d o p a t r ã o . N o s d o i s c a s o s , p e r m a n e c i a m c e l i b a t á r i o s . 27

E í s e t i p o d e u n i d a d e p r o d u t i v a a g r í c o l a n ã o gerava q u a l q u e r estrutura hierar-


quizada: n ã o d e m a n d a v a m ã o - d e - o b r a especializada c o t r a b a l h o de artesãos (ou dos
industriais, c h a m a d o s ' t r a f i c a n t e s ' , q u e fabricavam rolos de f u m o ) SÓ era contratado
o c a s i o n a l m e n t e , para fins e s p e c í f i c o s . A linha d e d e m a r c a ç ã o social passava nesse
caso e n t r e os q u e t i n h a m a posse d a terra e os q u e eram meros arrendatários, ou
ainda e n t r e o s livres e os escravos, c o n d i ç ã o n o e n t a n t o amenizada pela vida em
comum. 2 8

O c e r t o é q u e , e n t r e p a t r õ e s , b r a n c o s e dc cor, só o senhor de engenho reunia os


dois principais a t r i b u t o s da riqueza) prestígio e d o m i n a ç ã o . Ê t a m b é m fora de duvida
que, n o i n t e r i o r r e m o t o e p r ó x i m o , o m o d e l o de organização social mais diversificado
c mais r i c o e m categorias c o n t i n u a v a a ser o da região açucareira. S e n a possível encon-
trar traços desse m o d e l o na organização social da cidade?
V X > BAHIA. SÉCULO X I X

ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL EM SALVADOR

A tentativa de c o l o n i z a ç ã o da atual B a h i a , e m p r e e n d i d a n o s a n o s 1 5 3 0 p e l o sistema dc


capitanias hereditárias, p e r m i t i r a o e s t a b e l e c i m e n t o de u n s c i n q ü e n t a h o m e n s de ori-
gem e u r o p é i a n o local o n d e S a l v a d o r veio a e x i s t i r . M a s foi c o m a implantação do
governo geral q u e a c i d a d e n a s c e u . O s 1 . 5 0 0 h o m e n s q u e T o m é de Sousa trouxe
c o n s i g o e m 1 5 4 9 já f o r m a v a m u m a m i c r o s s o c i e d a d e h i e r a r q u i z a d a , q u e abrigava de
oficiais c o m t í t u l o de n o b r e z a a s o l d a d o s , p a s s a n d o p o r r e l i g i o s o s seculares e regulares,
responsáveis pela c a t e q u e s e dos g e n t i o s , e p o r t o d o s o s t i p o s d e artesãos e técnicos
necessários à e d i f i c a ç ã o de u m a c i d a d e . C o m o c o n q u i s t a d o r v i e r a m t a m b é m homens
q u e , p o s s u i n d o recursos financeiros o u s ó l i d o a p o i o n a M e t r ó p o l e , m o s t r a r a m - s e ca-
pazes de c o n s t r u i r u m s i s t e m a de p r o d u ç ã o q u e a t r a v e s s o u vários s é c u l o s .

Esse e s b o ç o de s o c i e d a d e foi g a n h a n d o m a i o r n i t i d e z e c o m p l e x i d a d e à medida


que Salvador crescia e m t a m a n h o e i m p o r t â n c i a . N o final d o s é c u l o X V I I I , era uma
verdadeira c i d a d e , cujas h i e r a r q u i a s sociais f o r a m r e t r a t a d a s , d e f o r m a precisa e suges-
tiva, por Luiz dos S a n t o s V i l h e n a .
N a s c i d o e m P o r t u g a l , V i l h e n a foi p a r a S a l v a d o r e m 1 7 8 7 c o m o professor de
grego, f u n ç ã o q u e e x e r c e u a t é 1 7 9 9 , q u a n d o , p o r falta d e a l u n o s , foi j u b i l a d o . Entre
1 7 9 8 e 1 7 9 9 , escreveu a Recopilação de notícias soteropolitanas e brasílicas, na forma de
vinte cartas e n d e r e ç a d a s ao a m i g o F i l i p o n o , q u e n ã o seria o u t r o s e n ã o o rei de Portu-
gal. R i c a e m i n f o r m a ç õ e s de t o d a s as o r d e n s , a Recopilação é u m a perspicaz análise da
sociedade b a i a n a . N e l a , V i l h e n a p r o p u n h a ao g o v e r n o real e a o s s e n h o r e s de engenho
a m e l h o r i a dos m é t o d o s d e e x p l o r a ç ã o d a C o l ô n i a . A o q u e p a r e c e , p o r é m , não teve
êxito. M o r r e u p o b r e , n a B a h i a , e m 1814. 2 9

V i l h e n a d i s t i n g u i u sete g r u p o s s o c i a i s : m a g i s t r a d o s e f u n c i o n á r i o s das finanças,


c o r p o r a ç ã o eclesiástica, c o r p o r a ç ã o m i l i t a r , c o r p o d o s c o m e r c i a n t e s , ' p o v o nobre',
povo dos artesãos 5
e escravos. 30
É i n t e r e s s a n t e n o t a r q u e ele c o l o c o u o corpo dos
c o m e r c i a n t e s antes d o ' p o v o n o b r e ' , f o r m a d o e m sua m a i o r i a p o r s e n h o r e s de engenho
e seus descendentes q u e e x e r c i a m profissões liberais. P o r o u t r o lado, c o m o b o m reinol,
deu prioridade, em sua classificação, àqueles cujas atividades estavam ligadas direta-
m e n t e ao poder q u e e m a n a v a da M e t r ó p o l e , m e s m o q u e se tratasse de pequenos
funcionários o u de soldados, cujas rendas eram equivalentes o u m e s m o inferiores às
dos artesãos c dos p e q u e n o s c o m e r c i a n t e s . T r a t a v a - s e d c u m olhar d o colonizador
sobre os brasileiros c o l o n i z a d o s .

Utilizando dados que V i l h e n a a p r e s e n t o u sobre os recursos anuais desses sete


grupos, c acrescentando a esse critério e c o n ô m i c o os dc prestígio social e poder,
propus a distinção de q u a t r o grupos sociais c m S a l v a d o r . 31

O primeiro reúne todos aqueles cujos r e n d i m e n t o s líquidos ultrapassavam um


c o n t o de réis: altos funcionários graduados da administração real (governador geral,
chanceler e desembargadores d o T r i b u n a l da Relação, ouvidor geral d o crime, ouvidor
geral do cível, tesoureiro geral da Real J u n t a de Arrecadação da Real Fazenda, juízes
LIVRO V I I - O DINHEIRO nos B.'
557

de alçada, d e p u t a d o d a R e a l J u n t a de A r r e c a d a ç ã o da Real Fazenda,


secretário de

->)> os grandes n e g o -
ciantes e, p o r h m , o s g r a n d e s p r o p r i e t á r i o s de terras, s e n h o r e s de e n g e n h o ou
pecuaristas. E r a a c h a m a d a ' e l i t e ' d a s o c i e d a d e b a i a n a , g e n t e ávida de honrarias or-
gulhosa da ' n o b r e z a ' d e s u a s o r i g e n s , s e m p r e d e m a n d a n d o títulos q u e , aliás, depois
da I n d e p e n d ê n c i a , o g o v e r n o i m p e r i a l c o n c e d e u c o m p r o d i g a l i d a d e aos' grandes pro-
prietários r u r a i s . E x c l u í m o s d e s s a lista o s l a v r a d o r e s d a c a n a e os p r o d u t o r e s de taba-
co e d e p r o d u t o s d e s u b s i s t ê n c i a , p o i s , a p e s a r de a u f e r i r e m mais de u m c o n t o de réis,
c o m a n d a v a m e x p l o r a ç õ e s d e p o r t e p e q u e n o o u m é d i o , s e n d o p o r isso proprietários
de s e g u n d o e s c a l ã o , e m u i t a s vezes s e q u e r e r a m d o n o s das terras q u e cultivavam; seu
prestígio s o c i a l e s u a p a r t i c i p a ç ã o n o p o d e r e r a m n i t i d a m e n t e i n f e r i o r e s .

O s e g u n d o g r u p o é o d o s q u e a u f e r i a m e n t r e 5 0 0 . 0 0 0 réis e u m c o n t o de réis por


ano. E r a m f u n c i o n á r i o s d e n í v e l m é d i o ( j u i z e p r o c u r a d o r d a C o r o a e Fazenda, escrivães
de a g r a v o s e a p e l a ç õ e s , c o n t a d o r e s d a R e a l J u n t a de A r r e c a d a ç ã o da Real Fazenda,
escrivães d a C â m a r a M u n i c i p a l , j u í z e s d e p r i m e i r a i n s t â n c i a , tabeliães, almoxarifes do
Arsenal, d i r e t o r e s d a C a s a d a M o e d a e t c . ) , 3 6
o f i c i a i s d e nível m é d i o (capitães, tenentes
e suboficiais), m e m b r o s d o b a i x o c l e r o ( p á r o c o s , v i g á r i o s e capelães de confrarias
religiosas), l o j i s t a s ( r e p r e s e n t a n t e s de casas p o r t u g u e s a s , d i s t r i b u i d o r e s de mercadorias
i m p o r t a d a s p o r n e g o c i a n t e s b a i a n o s e o s q u e i n t e r m e d i a v a m o envio de produtos para
o i n t e r i o r ) , a l g u n s p r o p r i e t á r i o s r u r a i s ( p r o d u t o r e s d e c a n a , de t a b a c o e de a l i m e n t o s ) ,
profissionais l i b e r a i s ( a d v o g a d o s e m é d i c o s d i p l o m a d o s , p o r é m n ã o oriundos dos es-
tratos m a i s e l e v a d o s ) , p e s s o a s q u e v i v i a m d e r e n d a s , e mestres-artesãos em ofícios
considerados n o b r e s . As duas últimas categorias exigem m e l h o r definição.
E n t r e o s q u e ' v i v i a m d e r e n d a s ' a r r o l a v a m - s e t a m b é m os aposentados (do servi-
ç o p ú b l i c o o u d a a t i v i d a d e c o m e r c i a l ) e o s q u e a u f e r i a m aluguéis de imóveis ou de
serviços d e e s c r a v o s . 3 7
N e s t a ú l t i m a c a t e g o r i a i n c l u í a m - s e m u i t a s viúvas e mulheres
solteiras, b e m c o m o h o m e n s de p r o f i s s ã o m a l d e f i n i d a , livres o u recém-alfornados.
q u e t i n h a m m u i t o m a i s e s c r a v o s q u e o n e c e s s á r i o para o serviço d o m é s t i c o . O s 3 9 5
inventários post mortem d o p e r í o d o 1 8 0 0 - 1 8 5 9 q u e e x a m i n e i evidenciam que 2 1 , 3 %
dos i n v e n t a r i a d o s v i v i a m e x c l u s i v a m e n t e d o t r a b a l h o de seus e s c r a v o s . 38
A partir de
1 8 5 0 , a e n o r m e e l e v a ç ã o d o p r e ç o d a m ã o - d e - o b r a cativa, causada pela abolição do
tráfico, s o m a d a a o a p a r e c i m e n t o de novas o p o r t u n i d a d e s de investimento (ações ban-
cárias, a p ó l i c e s d o g o v e r n o , b e n s i m o b i l i á r i o s ) , p r o v o c o u nos invesridores uma m u -
dança de a t i t u d e q u e se reflete c l a r a m e n t e nos inventários post mortem: uma maior
p r e o c u p a ç ã o e m p o u p a r se m a n i f e s t a em todas as categorias sociais, e até os pobres
passam a ter suas apólices o u ações da C a i x a F x o n ô m i c a . Ademais, em Salvador
todo dinheiro líquido - renda ou salário, aluguel de imóveis o u de trabalho_ es-
cravo, l u c r o e m i n v e s t i m e n t o s b a n c á r i o s ou imobiliários ou j u r o s sobre « » p r t a n o
de e u r t o prazo - fazia d o possuidor u m agiota em porencial: fosse qual fosse a
BAHIA, SÉCLTO X J X

q u a n t i d a d e d e d i n h e i r o e n v o l v i d a , e m p r e s t a v a - s e e t o m a v a - s e e m p r e s t a d o c m todas
as classes da s o c i e d a d e .
Q u a n t o aos ' m e s t r e s a r t e s ã o s ' , t a m b é m e n g l o b a d o s nesse g r u p o , j á m e n c i o n e i a
a m b i g ü i d a d e da d e s i g n a ç ã o . N e s t e c a s o , t r a t a v a - s e d a q u e l e s q u e e r a m de fato peque-
nos e m p r e i t e i r o s e m seus r e s p e c t i v o s o f í c i o s , o u m e s t r e s e m o f í c i o s c o n s i d e r a d o s no-
bres por suas e x i g ê n c i a s t é c n i c a s o u a r t í s t i c a s , c o m o o s o u r i v e s , p i n t o r e s , entalhadores
de pedra, m a r m o r i s t a s , t o r n e a d o r e s e e s c u l t o r e s d e m a d e i r a , f r e q ü e n t e m e n t e qualifica-
dos de ' a r t i s t a s ' na d o c u m e n t a ç ã o d a é p o c a . E s p e c i a l i z a d o s e p o u c o n u m e r o s o s , esses
artesãos g o z a v a m de u m a e s t i m a s o c i a l m u i t a s vezes igual à d o s o f i c i a i s d o E x é r c i t o . 39

O t e r c e i r o g r u p o , o d a q u e l e s c u j o s r e n d i m e n t o s n ã o p a s s a v a m de 5 0 0 . 0 0 0 réis
anuais, c o m p r e e n d i a f u n c i o n á r i o s p ú b l i c o s e m i l i t a r e s de b a i x o e s c a l ã o , integrantes de
profissões liberais s e c u n d á r i a s ( s a n g r a d o r e s , b a r b e i r o s , p i l o t o s de b a r c o s , músicos,
práticos de m e d i c i n a ) , a r t e s ã o s e o s q u e c o m e r c i a v a m f r u t a s , l e g u m e s e d o c e s nas ruas.
M u i t a s vezes e r a m a m b u l a n t e s , e e n t r e e s t e s p r e d o m i n a v a m o s a l f o r r i a d o s . Incluíam-se
ainda neste g r u p o os p e s c a d o r e s e m a r i n h e i r o s d o R e c ô n c a v o e t o d o s os q u e ganhavam
seu pão e m t o r n o d o m a r e d o p o r t o .

O q u a r t o e ú l t i m o g r u p o e r a o d o s e s c r a v o s , d o s m e n d i g o s e d o s vagabundos.
L e g a l m e n t e m a r g i n a l i z a d o , u m a vez q u e n ã o t i n h a q u a l q u e r d i r e i t o civil, o escravo de
fato d e s e m p e n h a v a u m p a p e l c a p i t a l n a d i n â m i c a e c o n ô m i c a d a c i d a d e , o q u e , inclu-
sive, m u i t a s vezes l h e valia c e r t a i n d e p e n d ê n c i a m a t e r i a l . P o r v o l t a d e 1 8 0 0 já era
possível d i s t i n g u i r d o i s t i p o s de e s c r a v o s u r b a n o s : os d e u s o d o m é s t i c o e os destinados
a t r a b a l h a r f o r a , para g a n h a r d i n h e i r o p a r a o s e n h o r . N o t o c a n t e a essa categoria, as
f o r m a s de t r a b a l h o e as r e l a ç õ e s s o c i a i s n ã o se a l t e r a r a m a o l o n g o d o s é c u l o X I X .

N o d e g r a u m a i s b a i x o desse g r u p o e d a escala social u r b a n a , s i t u a v a m - s e os vaga-


b u n d o s , m e n d i g o s e p r o s t i t u t a s . A a c r e d i t a r nas d e s c r i ç õ e s d o s c o n t e m p o r â n e o s , via-
jantes estrangeiros o u m e m b r o s d o g o v e r n o m u n i c i p a l , o n ú m e r o desses deserdados
era considerável. M a s a h i s t ó r i a d o s m a r g i n a i s b a i a n o s a i n d a n ã o foi c o n t a d a , e, dada
a ausência de i n s t i t u i ç õ e s de p r o t e ç ã o e r e i n t e g r a ç ã o de i n d i g e n t e s , n ã o há informa-
ções sobre os verdadeiros p o b r e s d o i n í c i o d o s é c u l o X I X . É verdade q u e , a partir de
meados d o s é c u l o X V I I I , f u n d a r a m - s e diversos ' r e c o l h i m e n t o s ' para 'mulheres peca-
doras*. É u m sinal d a p r e o c u p a ç ã o d o s p o d e r e s p ú b l i c o s c o m a prostituição que
grassava naquela c i d a d e - p o r t o . M a s só e r a m r e c o l h i d a s a essas instituições algumas
dezenas dc m u l h e r e s , c e r t a m e n t e u m a parcela í n f i m a das q u e praticavam o mais ve-
l h o ofício do m u n d o .

Entre os m e n d i g o s e os v a g a b u n d o s sem lugar na sociedade, encontravam-se


deserdados dc toda sorte — soldados, m a r i n h e i r o s , escravos — , doentes e loucos
abandonados pelas famílias o u pelos senhores, frutos d o s u b e m p r e g o c r ô n i c o ou oca-
sional. N o fim d o século X V I I I c ainda por m u i t o t e m p o , o ú n i c o hospital da cidade
era o da Santa Casa, f u n d a d o c m 1 5 5 3 . A m o n t o a v a m - s e nele doentes de estatuto livre
ou escravo, portadores de t o d o t i p o dc enfermidades, contagiosas o u não, c o m exceção
dos leprosos, q u e t i n h a m dispensário afastado d o C e n t r o da cidade. Crianças abando-
LIVRO \ 1 I - O DINHEIRO DOS BAIANOS

nadas e loucos s o m a v a m - s e a eles. n u m a terrível p r o m i s c u i d a d e , f r e q ü e n t e m e n t e de-


nunciada pelos m e m b r o s da c o n f r a r i a da M i s e r i c ó r d i a .
Seriam estes o s c o m p o n e n t e s d a q u e l a " p l e b e i n d i s c i p l i n a d a c t u r b u l e n t a , sempre
pronta a d e r r u b a r a o r d e m e s t a b e l e c i d a " , d c q u e falam a l g u n s autores? A b a n d o n a d o s
pelos poderes p ú b l i c o s , viviam da c a r i d a d e dos passantes ou de a l g u m a família q u e os
acolhia. S i m , p o r q u e t o d a f a m í l i a q u e escapava d a p e n ú r i a t i n h a seus p o b r e s , aos quais
não só a l i m e n t a v a c o m o c o n t e m p l a v a e m t e s t a m e n t o , q u a n d o t i n h a o q u e legar. Seja
c o m o for, essa massa i n d i g e n t e pesava s o b r e a e c o n o m i a da c i d a d e . P o d e m o s avaliar
melhor esse p e s o se p e n s a r m o s c m t o d a s as misérias e s c o n d i d a s p o r u m a gente altiva
e orgulhosa. Essa c a t e g o r i a f o r m a v a a m a i o j i a dos b a i a n o s , m u l t i d ã o de relegados q u e
viviam ao d e u s - d a r á , o u a o s a b o r d o s c a p r i c h o s dos m a i s a q u i n h o a d o s .

COMPARAÇÕES

Apesar de suas m u i t a s l a c u n a s , essa d e s c r i ç ã o da h i e r a r q u i a social u r b a n a p e r m i t e fixar


os c o n t o r n o s de c a d a g r u p o , das c a t e g o r i a s q u e o s c o m p õ e m , e c o m p a r á - l o s às c o m u -
nidades rurais. A i m a g e m q u e se g u a r d a é a de u m a estrutura social diversificada, em
que a p o p u l a ç ã o livre p a r e c i a ser c o n s i d e r á v e l . As categorias profissionais urbanas eram
muitas, e o s b a i a n o s d a é p o c a — a i n d a q u e n ã o m u i t o s — p o d i a m e n c o n t r a r trabalho
tanto nos setores m i l i t a r e s e a d m i n i s t r a t i v o s da b u r o c r a c i a real c o m o nas atividades
marítimas e c o m e r c i a i s . A s c a m a d a s i n t e r m e d i á r i a s j á f o r m a v a m u m a classe média que
englobava t o d o s os q u e c o n s e g u i a m g a n h a r a vida p e l o exercício de um ofício ou do
comércio.

A diversidade n o s o f í c i o s e nas o p o r t u n i d a d e s abria vias de mobilidade social,


possibilitadas t a m b é m p o r u m a e s t r u t u r a social m u i t o mais aberra que a exisrente nas
comunidades rurais d o R e c ô n c a v o . A b e r t a , e m p r i m e i r o lugar, p o r q u e a riqueza — e
com ela o prestígio o u a p r e e m i n ê n c i a social — estava dividida e n t r e vários parceiros.
O senhor d c e n g e n h o , p e r s o n a g e m ú n i c o , era aqui substituído por u m a elire múltipla,
u
m grupo de pessoas c o m a u t o r i d a d e análoga à sua.
Apesar d c t o d o s os c o m p r o m i s s o s firmemente estabelecidos por laços de família
OU c o m p a d r i o , pelo e x e r c í c i o d c um m e s m o ofício o u profissão, o baiano, cidadão de
São Salvador, t i n h a o p ç ã o . Podia escolher suas alianças m u i t o mais facilmente que o
membro dc u m a c o m u n i d a d e p o u c o numerosa e relativamente fechada. U m carpintei-
ro naval, por e x e m p l o , se conseguisse um emprego no Arsenal da Marinha, tornava-se
funcionário p ú b l i c o , alçando-sc a uma categoria social mais prestigiosa. Um mulato
com alguma escolaridade podia conseguir um emprego n o serviço do rei. N ã o há
« e m p l o s análogos n o interior. Ali, por mais que conseguisse se impor por seu trabalho
c
crescer na estima d o seu senhor c da comunidade, um artesão jamais transporia os
emites de sua classe. D i f i c i l m e n t e podia converter-se em plantador de cana, muito
menos em senhor de e n g e n h o , pois esse domínio era dos brancos. U m mulato na zona
BAHIA. SÉCULO X I X
600

rural, m e s m o l e t r a d o , n u n c a p a s s a r i a d e m e s t r c - e s c o l a . A ú n i c a s a í d a era ir para a


c i d a d e , o n d e o a r t e s ã o , o p e q u e n o c o m e r c i a n t e , o t i m o n e i r o d e u m b a r c o podiam
a c a l e n t a r a m b i ç õ e s , passíveis d e c o n c r e t i z a ç ã o p o r m e i o d o t r a b a l h o e das relações
mantidas c o m os mais b e m a q u i n h o a d o s . Era possível fazer-se e m p r e i t e i r o importante,
c o m e r c i a n t e d e p e s o , p r o p r i e t á r i o d e e m b a r c a ç ã o . D e f a t o , a m o b i l i d a d e social era
m a i o r na c i d a d e q u e n o c a m p o p o r q u e ali o s h o m e n s e r a m m e n o s d e p e n d e n t e s . Essa
m a i o r a u t o n o m i a era d e s f r u t a d a até p e l o s e s c r a v o s , q u e a l c a n ç a v a m a alforria em
número muito maior.

S e m d ú v i d a m a i s a b e r t a , a e s t r u t u r a s o c i a l d a c i d a d e p e r m i t i a a v i o l a ç ã o de limites
s u p o s t a m e n t e r í g i d o s e o f e r e c i a u m l e q u e d e o p o r t u n i d a d e s m u i t o m a i s a m p l o : este
e r a s e u p r i m e i r o t r a ç o c a r a c t e r í s t i c o . O s e g u n d o , j á m e n c i o n a d o , e r a o c a r á t e r plural
d o g r u p o d o m i n a n t e , d a e l i t e u r b a n a . E r a m m u i t o s o s h o m e n s r i c o s e p r e s t i g i o s o s que,
de u m a m a n e i r a o u d e o u t r a , e x e r c i a m p o d e r s o b r e o c o n j u n t o d o c o r p o social. Por
c e r t o n e m t o d o s e r a m c l a r o s , e m b o r a s e j a i m p o s s í v e l e s t a b e l e c e r c o m e x a t i d ã o a pro-
p o r ç ã o d a s p e s s o a s d e c o r q u e i n t e g r a v a m essa e l i t e , j á q u e o s d o c u m e n t o s n ã o men-
c i o n a m a c o r d a p e l e n e m f a z e m r e f e r ê n c i a a r a ç a . I s t o p o d e r i a ser e x p l i c a d o pelo
p u d o r , m a s i n c l i n o - m e a n t e s a p e n s a r q u e a q u e s t ã o e r a e v i t a d a s o b r e t u d o p o r causa
da a m p l i d ã o d a m e s t i ç a g e m , q u e p e n e t r a r a e m t o d a s as c a m a d a s s o c i a i s , m e s m o na-
q u e l a s q u e o n e g a v a m , a p o n t o d e a t é h o j e se r e c u s a r e m a a d m i t i - l o . Essas pessoas de
cor que figuravam na elite n ã o eram ' b r a n c o s da terra' — esses j á e r a m efetivamente
b r a n c o s , n ã o s ó p e l a c o m p l e t a a s s i m i l a ç ã o , c o m o p e l a p e l e . S e r i a m a n t e s pessoas que,
t o t a l m e n t e a c u l t u r a d a s — p o r t a n t o , n a t u r a l m e n t e v i s t a s c o m o b r a n c a s — , guardavam
sinais n o t ó r i o s d a m e s t i ç a g e m . E r a o c a s o d o V i s c o n d e d e J e q u i t i n h o n h a o u d o médi-
c o J o s é L i n o C o u t i n h o , q u e f o r a m c h a m a d o s a d e s e m p e n h a r u m p a p e l p o l í t i c o impor-
t a n t e p o r o c a s i ã o d a I n d e p e n d ê n c i a . E se a ' n e g r i t u d e ' desses p e r s o n a g e n s foi mais
o b s e r v a d a q u e a d e m u i t o s o u t r o s , é p o r q u e s u a s p o s i ç õ e s e c o m p o r t a m e n t o s políticos
— c o n t r á r i o s às d o g r u p o a q u e p e r t e n c i a m — os puseram e m destaque.

A l i á s , essa c a r a c t e r í s t i c a plural d a e l i t e se r e p e t i a e m t o d o s os o u t r o s grupos c


categorias da escala s o c i a l , q u e s e c r e t a v a m , c a d a u m , suas p r ó p r i a s elites. Elites de que
p o u c o s a b e m o s , m a s q u e s e m p r e t i n h a m pressa e m a s c e n d e r a o e s c a l ã o s u p e r i o r ou em
fazer crer q u e nele já e s t a v a m , z e l a n d o p e l a q u a l i d a d e de suas relações sociais, tanto a
m o n t a n t e q u a n t o a j u s a n t e d a p o s i ç ã o e m q u e e s t a v a m . Para pleitear u m nível social
mais a l t o , era p r e c i s o a p r e s e n t a r p r o v a s : p r i m e i r o , d e q u e se estava d i s p o s t o a aceitar
n o r m a s c regras i m p o s t a s d c c i m a ; d e p o i s , de q u e se gozava d e a m p l o prestígio n o nível
c m q u e sc estava; finalmente, de q u e se exercia p o d e r s o b r e os q u e estavam abaixo.
S o b essas c o n d i ç õ e s se f o r m a v a m os laços q u e p r e s i d i a m as relações sociais. Eram
relações que e v i d e n c i a v a m as solidariedades n o i n t e r i o r d o g r u p o , mas superavam
seus limites, f o r m a n d o u m a cadeia dc a p a d r i n h a m e n t o s de natureza hierárquica, ca-
paz de atravessar o c o n j u n t o d o c o r p o social. Esses a p a d r i n h a m e n t o s p e r m i t i a m , p ° r

sua vez, a f o r m a ç ã o d c clientelas c u j a fidelidade se apoiava n u m p a c t o sempre rene-


gociado e adaptado às c i r c u n s t â n c i a s d o m o m e n t o . Nesse j o g o c o n t í n u o , feito de
o W p ç t o c compromissos que renovavam incessantemente o pacto social, e s t a r ,
* m d ú n d a o s e g r e d o d a e s t a b . l . d a d c d e s s e c o r p o h e t e r o g ê n e o , S c havia c m Salvador
m a i o r m o b i l i d a d e q u e n a . c o m u n i d a d e s a g r í c o l a s d o R e c ô n c a v o , os m e s m o s p r i n d
pios de a u t o r i d a d e , d c s o l i d a r i e d a d e e d c c l i e n t e l a t e c i a m nos d o i s casos i s r e l a ç õ e i
iodais e faliam desse c o n j u n t o c i d a d e / c a m p o u m m o d e l o ú n i c o dc- s o c i e d a d e , c m
que a< d i f e r e n ç a s nas r e l a ç õ e s s o c i a i s e r a m m a i s d c g r a u que- d c q u a l i d a d e .

Vssirn SC a p r e s e n t a v a a s o c i e d a d e b a i a n a n o final d o s é c u l o X V I I I : o r i g i n a l , d i n â -
mica, e f i c a z . E n t r e s e u s p ó l o s — a e s t a b i l i d a d e c a permeabilidade — todos tentavam
navegar. A p r e o c u p a ç ã o m a i o r d o s q u e t i n h a m l o g r a d o a a s c e n s ã o social é b e m c o -
o h e c t d a : r r a t a v a - s c , p a r a e l e s . d c p r o v a r s u a n o b r e z a , o q u e . para a m a i o r i a , era esfor-
ço s ã o . V i l h e n a , c o m seu s e n s o d e o b s e r v a ç ã o c seu d e s d é m s u p e r i o r de e u r o p e u ,
descreveu m u i t o b e m e s s e c a p r i c h o c n ã o se d e i x o u e n g a n a r p o r n e n h u m a bastardia,
n e n h u m a f a l s i f i c a ç ã o d c á r v o r e g e n e a l ó g i c a . A o c o n t r á r i o , z o m b o u d c t o d o s aqueles
d e s c e n d e n t e s d c c a m p o n e s e s o u c a i x e i r o s p o r t u g u e s e s i m i g r a d o s para fazer f o r t u n a
— que, ademais, não tinham escapado a mestiçagem — e q u e , n ã o o b s t a n t e , se
a p r o p r i a v a m d c n o m e s i l u s t r e s c p o s a v a m c o m o d e s c e n d e n t e s de a l g u m g o v e r n a d o r
geral d e s a n g u e a z u l , q u a n d o não buscavam s i m p l e s m e n t e c o m p r a r na C o r t e u m a
nobreza nova e m f o l h a , q u e o s fazia t ã o s u p e r i o r e s q u e " o i m p e r a d o r da C h i n a é
i n d i g n o d c ser s e u c r i a d o " . ' " '

A sociedade baiana era a b e r t a a t o d o s . Essa abertura, herança da pátria-mãe,


a m p l i a r a - s e c m r a z ã o d a e s p e c i f i c i d a d e das c o n d i ç õ e s l o c a i s . I m p ô s - s e a flexibilização
dc i n t e r d i ç õ e s f u n d a d a s c m c o n c e i t o s c o m o o d c p u r e z a d o s a n g u e o u d c legitimidade
de n a s c i m e n t o , i n c a p a z e s d c p e r m i t i r , n o B r a s i l , o t r a ç a d o d e l i n h a s de d e m a r c a ç ã o
nítidas c fixas e n t r e b r a n c o s c p e s s o a s d c c o r . E r a t a m b é m u m a s o c i e d a d e hierarquizada,
mas o s c o n t o r n o s dos grupos sociais que a c o m p u n h a m n ã o e r a m rígidos nem
i n t r a n s p o n í v e i s a o s h o m e n s d c t a l e n t o d i s p o s t o s a a c e i t a r suas n o r m a s . P o r o u t r o lado,
era u m a s o c i e d a d e e m q u e o f o s s o e n t r e r i c o s e p o b r e s se alargava cada vez mais,
fazendo d o s p r i m e i r o s u m a m i n o r i a , c m c o n t r a s t e c o m a g r a n d e massa indigente,
f i n a l m e n t e , era urna s o c i e d a d e a m b i v a l e n t e , d i v i d i d a e n t r e o m o d e l o b r a n c o o da
p á t r i a - m ã e , o d a d i s t a n t e e p r e s t i g i o s a E u r o p a , q u e realizava d e m a n e i r a imperfeita
(à m í n g u a d c n o b r e s c d c s a n g u e p u r o ) — c u m a realidade a u t ó c t o n e cuja dinâmica
original era t ã o f o r t e q u e a c a b a v a p o r se i m p o r , m e s m o q u e isso fosse o c u l t a d o e
negado. A o l o n g o d o s é c u l o X I X , essa a m b i v a l ê n c i a g e r o u a t i t u d e s q u e transformaram
0 diálogo social' n u m v e r d a d e i r o d i á l o g o d c s u r d o s , s u s c i t a n d o o b s t á c u l o s revelados
por c e r t o s c o m p o r t a m e n t o s q u e e x p u s a o falar da f a m í l i a , d o E s t a d o c da Igreja. Esses
o b s t á c u l o s c r e s c e r a m q u a n d o , à q u e l e s s u s c i t a d o s pelas hierarquias sociais — q u e pare-
ciam resistir a se t r a n s f o r m a r c o m o t e m p o — , a c r c s c c n t a r a m - s c os decorrentes da
d i s t r i b u i ç ã o d a riqueza m a t e r i a l . Q u e b a i a n o s t i n h a m a l g u m a coisa de seu? E n t r e 1 8 0 0
e 1 8 8 9 , c m q u e c o n s i s t i a m as f o r t u n a s na B a h i a ?
CAPÍTULO 31

A FORTUNA DOS BAIANOS

Numa cidade em que o mercado de trabalho só absorvia de maneira permanente


pequena parcela da população ativa e onde uma proporção ainda menor dos que
trabalhavam era favorecida pela fortuna, pouca gente tinha bens para legar. Encon-
trei apenas 3 . 4 6 8 testamentos do período 1 8 0 5 - 1 8 9 0 , entre os quais 5 0 5 de alforria-
dos. Esta série inclui apenas testamentos ditos 'místicos' ou 'secretos', redigidos pelo
próprio testador ou por terceiros e registrados por escrivão público na presença de
cinco testemunhas. Dos outros dois tipos também classificados por lei como 'ordiná-
rios' — o testamento público (ou aberto) e o privado — só ficaram traços em alguns
inventários post mortem. E m sua maioria, os testamentos feitos pelos baianos eram
'místicos', ou de 'mão comum', isto é, redigidos conjuntamente pelo casal, e as for-
mas extraordinárias previstas em lei — os testamentos marítimos, militares e nun-
cupativos (feitos de viva voz) — ao que parece eram raramente praticadas. Não pude
averiguar se os testamentos que localizei correspondiam aos arquivos de apenas um
tabelião ou de vários, pois os livros em que estão registrados não fornecem indicações
a respeito.
Ainda que a série que utilizo represente apenas parte dos testamentos baianos, é
preciso considerar que o costume de testar não era generalizado: testava quem era
solteiro, sem herdeiros automáticos; testavam também os que previam a ocorrência de
litígios entre os herdeiros, ou queriam reconhecer a paternidade de filhos naturais;
testavam, por fim, os que queriam proclamar a própria fé cristã ou instruir sobre o
funeral desejado.
Os poucos que faziam testamento pertenciam a diversas camadas sociais. Embora
apenas cerca de 1 6 % dos testamentos masculinos mencionem a profissão dos testado-
res, aí encontramos gente dc todas as situações sócio-profissionais: do rico proprietá-
rio, ou senhor de engenho, a o humilde remador de saveiro, passando por grandes e
pequenos comerciantes, profissionais liberais, funcionários civis e militares, religiosos
e artesãos. O a t o de testar não era portanto prática exclusiva da elite, embora nao

602
603

deixasse de estar reservado a u m a restrita camada do corno • i


fazia quem tinha alguma coisa de s e u . P
' U m a v e z
<l ue s
° o
E s p e l h o s da história muitas vezes comovente de seus autores d
c o m o passado c temores em relação ao futuro, os tcstamentoTsão c
P r e O C
" P a Ç Õ e S

insuficiente para um estudo sólido das fortunas: na maioria dos c T o s ^ h ^


mal ou incompletamente descritos. As cifras, que seriam i n d i s p e n r f w i s ^ s ó T ^
cem quando se trata de evocar somas referentes a legados, dívidas em ativo
sivo, ou ainda doações feitas em vida a fdhos e que entravam em colaçãT uJ7oi
sobretudo o n ú m e r o incalculável dc vezes em que neles aparecem frases como "o
resto de meus bens é do c o n h e c i m e n t o de minha mulher" ou "os bens que possuo
são de d o m í n i o p ú b l i c o " (sic) que m e impediu de levar em conta esta série, tanto
mais que só pude e n c o n t r a r poucos inventários post mortem correspondentes a esses
testamentos.

E s s a falta de correspondência se explica, e m primeiro lugar, pelo fato de que nem


todo testamento dava lugar a inventário. E s t e só era obrigatório em três casos: quando
o testador tinha, entre os herdeiros, crianças menores, cujos bens deviam ser resguar-
dados; quando morria ab intestato e quando, não tendo herdeiros, sua fortuna passava
às mãos do E s t a d o . A l i á s , u m a lei de 1 7 5 4 , ainda em vigor, no século X I X , prescrevia
que os herdeiros diretos entravam de imediato na posse de sua herança, de modo a
evitar pretensões de herdeiros não necessários. A d e m a i s , até 1 8 8 0 , os herdeiros dire-
1

tos (ascendentes e descendentes) não pagavam qualquer taxa pelo direito de sucessão.
Já os herdeiros não necessários pagavam taxas quando eram designados em testamento
ou quando se beneficiavam da terça para favorecer parentes distantes ou outras pessoas.
Nestes dois casos, era o testamento que servia c o m o documento probatório para
estabelecer o m o n t a n t e das taxas que i n c i d i a m sobre a herança de cada categoria de
herdeiros não necessários.
A l g u n s m o m e n t o s da história das taxaçóes aplicadas pelo E s t a d o as sucessões
merecem ser evocados. E m 1 8 0 9 , o 'selo de herança' — c o m o era chamado o imposto
sobre a sucessão — era pago à razão de 1 0 % do valor da herança por parentes próxi-
mos do falecido (segundo grau canónico) e de 2 0 % por outros herdeiros, parentes
distantes ou não-parentes. A partir de 1 8 3 8 , os filhos naturais foram também obriga-
dos a pagar uma taxa dc 1 0 % , sendo assim equiparados aos parentes próximos. E m
1 8 6 1 , os mesmos filhos naturais tornaram-se isentos, recebendo desde então o mesmo
tratamento de descendentes e ascendentes legítimos; mas os filhos de um primeiro
casamento passaram a ter que pagar o selo quando herdavam de tios e tias. Essa nova
lei reafirmava ainda u m dispositivo anterior, pelo qual as apólices emitidas pelo Estado
eram isentas de qualquer taxação, fosse qual fosse a categoria do herdeiro. A situação
dos filhos naturais voltou a ser alterada em 1 8 7 7 : já não eram considerados herdeiros
necessários, mesmo quando reconhecidos pelos pais por ato cartonai ou testamento e
deviam pagar uma taxa de 2 0 % pelo direito à sucessão parental, igual à que pagavam
os parentes distantes do testador o u os não-parentes.
604 BAHIA, SÉCULO X I X

N ã o p u d e a p u r a r se essa d i s c r i m i n a ç ã o d o s f i l h o s n a t u r a i s , m e s m o reconhecidos
s u s c i t o u r e a ç õ e s . O fato é q u e p o u c o s a n o s d e p o i s , e m 1 8 8 0 , n o v a lei das sucessões
novamente equiparou filhos l e g í t i m o s e n a t u r a i s , a l é m d e r e d e f i n i r os direitos das
d e m a i s c a t e g o r i a s de h e r d e i r o s . E s t i p u l o u q u e filhos l e g í t i m o s e l e g i t i m a d o s pagariam
taxas de s u c e s s ã o de 1 % e filhos n a t u r a i s d e 2 % , i g u a i s às q u e d e v i a m pagar irmãos,
tios e s o b r i n h o s . T i o s - a v ó s d e v i a m p a g a r 5 % . A g r a n d e n o v i d a d e dessa lei foi impor
aos esposos, a t é e n t ã o i s e n t o s , u m a t a x a de 5 % q u a n d o h a v i a t e s t a m e n t o e d e 1 0 % em
c a s o de s u c e s s ã o ab intestato. N e s t e ú l t i m o c a s o , a t a x a a s e r p a g a p e l o c ô n j u g e sobre-
v i v e n t e era igual à c o b r a d a d e p a r e n t e s a t é o d é c i m o g r a u e de religiosos professos
secularizados. P a r a o s n ã o - p a r e n t e s a t a x a era d e 2 0 % . E s t a lei v i g o r o u , inalterada, até
o a d v e n t o da R e p ú b l i c a . 2

O e x a m e desses t e x t o s legais s u g e r e q u e a i n t e n ç ã o d o s l e g i s l a d o r e s era suprimir as


m i l f o r m a s de a b u s o a q u e as h e r a n ç a s d a v a m l u g a r , e m p r e j u í z o d o T e s o u r o público.
B o m e x e m p l o d i s t o é a d u p l i c a ç ã o d a t a x a c o b r a d a d o c ô n j u g e e m sucessões não
t e s t a m e n t á r i a s , b e m c o m o a o b r i g a ç ã o i m p o s t a d e s d e 1 8 6 1 aos v i g á r i o s de fornecer, a
c a d a m ê s , a lista d e seus p a r o q u i a n o s livres q u e f a l e c i a m , s o b p e n a de s e r e m privados
d a c ô n g r u a ( p e n s ã o d o E s t a d o ) e d o a u x í l i o e x t r a o r d i n á r i o q u e r e c e b i a m para a com-
pra do g u i s a m e n t o ( p a r a m e n t o s e u t e n s í l i o s n e c e s s á r i o s a o c u l t o ) .

S e o t e s t a m e n t o n e m s e m p r e d a v a l u g a r a u m i n v e n t á r i o post mortem, mais de


m e t a d e dos i n v e n t á r i o s d i z i a m r e s p e i t o a o s b e n s d e p e s s o a s q u e f a l e c i a m ab intestato,
e m p e c i l h o a d i c i o n a l a o c o t e j o d o c o n t e ú d o desses d o i s t i p o s de d o c u m e n t o . C o m o
t a m b é m n ã o h a v i a c o n t r a t o s d e c a s a m e n t o , o s i n v e n t á r i o s post mortem se tornaram a
ú n i c a f o n t e d i s p o n í v e l p a r a o e s t u d o das f o r t u n a s b a i a n a s .
C o m o os t e s t a m e n t o s , o s i n v e n t á r i o s n o s f a l a m e m e s p e c i a l d a 'elite a f o r t u n a d a ' da
B a h i a , estrato e m q u e c l a s s i f i c a m o s t o d o s o s q u e t i n h a m b e n s , a d q u i r i d o s p o r seu
t r a b a l h o pessoal o u h e r d a d o s . O A r q u i v o P ú b l i c o de S a l v a d o r c o n s e r v a u m a série de
inventários c u j a o r i g e m n ã o p o d e ser p r e c i s a m e n t e d e t e r m i n a d a . O s q u a t r o tabeliães
q u e havia na c i d a d e n o s é c u l o X I X n ã o e s t a v a m o b r i g a d o s a r e c o l h e r seu arquivo morto
ao arquivo do E s t a d o , q u e aliás só foi c r i a d o e m 1 8 8 0 . T e r i a m t o d o s , nesse a n o , enviado
seus arquivos m o r t o s à n o v a i n s t i t u i ç ã o ? T u d o i n d i c a q u e s i m , pois e n c o n t r e i livros
c a r t o n a i s c o r r e s p o n d e n t e s de 1 6 8 4 a 1 9 1 2 . É provável q u e esses inventários post mortem
— q u e f o r m a v a m m a ç o s separados, assinados p o r 'escrivães p ú b l i c o s ' — tenham feito
parte dessa remessa, p r o v i n d o dos q u a t r o c a r t ó r i o s da c i d a d e , m a s n ã o posso afirmá-lo.
C r o n o l o g i c a m e n t e , essa série ficou mais o u m e n o s regular nas duas últimas déca-
das do século X V I I I . E n t r e 1 7 8 0 c 1 8 3 0 , p o r é m , os inventários foram poucos: em média
q u a t r o por a n o , n o final d o século X V I I I , e o i t o por a n o , nas três primeiras décadas do
século X I X . A partir de e n t ã o o n ú m e r o cresceu, mas m o d e s t a m e n t e . E n t r e 1 8 5 3 e
1 8 5 7 registrou-se a m a i o r m é d i a anual: 4 4 inventários. E n t r e 1 8 8 1 e 1 8 8 5 — anos sub-
seqüentes à i m p o s i ç ã o de novas medidas legais destinadas a eliminar fraudes comuns
n o p a g a m e n t o dos direitos de sucessão — caíram a 3 8 por a n o . S e considerarmos uma
média anual de oito inventários e n t r e 1 8 0 1 e 1 8 3 0 e de quarenta entre 1 8 3 1 e 1 8 8 9 ,
Esse P r o b l c m pode ser p a r c i a l m e n t e e s c l a r e c i d o pela s.ric f o r m a d a pelo vrotde
« g j m o das taxa q u e l e g a t á r i o s ou h e r d e i r o s n ã o necessários pagavam peio r e c e b i m e n -
rode heranças. I n i c i a n d o - s e e m 1 8 3 9 e i n d o a t é a q u e d a do I M P L, em , 8 0
abrange nuns d e m e t a d e d o p e r í o d o q u e nos i n t e r e s s a . C o m p r e e n d e 2 . 0 6 8 inventários'
Jos qua.s 1 7 4 6 e s t ã o d e v i d a m e n t e d a t a d o s , . n a s a p r e s e n t a lacunas e n ã o obedece
c r i t é r i o s u n i f o r m e s : o r a o s d o c u m e n t o s d ã o a s o m a total da h e r a n ç a e as taxas q u e
sobre ela i n c i d e m , o r a , n o c a s o d e l e g a d o s , r e g i s t r a m a p e n a s a s o m a a eles correspon-
d e n t e e as t a x a s p a g a s , s e m m e n c i o n a r o t o t a l d a h e r a n ç a . M a s , se n ã o p o d e ser útil
para u m e s t u d o s o b r e as f o r t u n a s , essa f o n t e d á u m a b o a pista q u a n t o a o n ú m e r o total
dos i n v e n t á r i o s post mortem.

S o m e n t e c o m relação a dois anos — 1 8 5 5 e 1 8 8 1 — p u d e reunir dados c o m os


r e q u i s i t o s n e c e s s á r i o s p a r a u m a i n v e s t i g a ç ã o : os registros n ã o e x i b i a m lacunas, e pude
fazer p e s s o a l m e n t e o e x a m e d o s d o c u m e n t o s . O b t i v e assim, e m relação a 1 8 5 5 , um
total d e 1 1 9 i n v e n t á r i o s , 5 3 d o s q u a i s p e r t e n c e n t e s à série q u e englobava arquivos de
t o d o s os c a r t ó r i o s e 6 6 à d o s livros d e r e g i s t r o das s u c e s s õ e s ; e m relação a 1 8 8 1 , obtive
1 1 0 i n v e n t á r i o s , 4 6 p r o v e n i e n t e s d o s a r q u i v o s d o s c a r t ó r i o s e 6 4 dos livros d e registro.
A p ó s e l i m i n a r d u p l i c a t a s , c o n s e r v e i 1 0 5 i n v e n t á r i o s de 1 8 5 5 e 9 7 d e 1 8 8 1 .

Que percentagem d o c o n j u n t o d a p o p u l a ç ã o a d u l t a livre falecida e m Salvador


nesse p e r í o d o t e r i a b e n s a i n v e n t a r i a r ? C o m o j á o b s e r v e i , é impossível responder essa
4

p e r g u n t a d e m a n e i r a c l a r a e d i r e t a . É p r e c i s o p r o c e d e r p o r hipóteses.
J o h i l d o L o p e s d e A t h a y d e c a l c u l o u e m 2 . 7 5 5 o n ú m e r o de ó b i t o s d e 1 8 5 5 e e m
2 . 6 6 4 o d e 1 8 8 1 , s e m p r e e m S a l v a d o r . S e a d m i t i r m o s q u e 3 0 % deles correspondiam
a e s c r a v o s , c r i a n ç a s e j o v e n s , t e r e m o s 1 . 9 2 0 a d u l t o s livres m o r t o s e m 1 8 8 5 e 1 . 8 6 5 em
1 8 8 1 . É u m a h i p ó t e s e , m a s b o a p a r t e d e l e s , c o m o s a b e m o s , n ã o tinha bens a legar.
F i c o p o r a q u i n e s s e t e r r e n o d o s ardis e p a s s o a t e n t a r verificar q u e resultados é possível
o b t e r c o m p a r a n d o o n ú m e r o d e i n v e n t á r i o s q u e e n c o n t r e i c o m o n ú m e r o estimado e
ó b i t o s e n t r e a p o p u l a ç ã o a d u l t a livre:

TABELA 103

I N V E N T Á R I O S E Ó B I T O S ENTRE A POPULAÇÃO ADULTA L , V R


^_

ANOS INVENTÁRIOS ÓBITOS INVEJÁMOS/ÓBITOS

1855 105 I -920 3,5%

1881 W_ }**

Esse r e s u l t a d o parece b a s t a n t e c o e r e n t e . S u p o n h o q u e n ã o se ^ m u t e <ja


realidade da é p o c a , e m b o r a eu n ã o queira afirmar q u e só 5 % da
c i - 1 . « « « a Ae seu O e r u p o pode ter sido maior, mas n a o menor
Salvador tivessem a l g u m a coisa d e seu. U gr p F ^ j ^
m considerável dos inventários envolve heranças
do q u e isto. D e um lado, percentage
606 BAHIA, SÉCULO X I X

m o d e s t a s ; de o u t r o , m u i t o s d e i x a v a m b e n s q u e n u n c a f o r a m i n v e n t a r i a d o s . Seja como
for, d o total de 4 . 6 1 8 i n v e n t á r i o s q u e e n c o n t r a m o s , s ó c o n s i d e r a m o s em nossos estu-
dos os i n v e n t á r i o s post mortem p r o v e n i e n t e s de a r q u i v o s de t a b e l i ã e s . D o s 2 . 5 5 0 inven-
tários referentes a o n o s s o p e r í o d o , f o r a m e x a m i n a d o s 1 . 1 1 5 , isto é, 4 3 , 7 % desse
c o n j u n t o e 2 4 , 1 % d o t o t a l e n c o n t r a d o . E s s a a m o s t r a m e p a r e c e u estatisticamente
correta e — na i m p o s s i b i l i d a d e , à falta de f o n t e s m a i s ricas, d e avaliar e m cifras a
riqueza e a p o b r e z a d o s b a i a n o s — s u f i c i e n t e para u m a avaliação das ordens de gran-
deza e m q u e se s i t u a v a m as f o r t u n a s e dos b e n s q u e as c o m p u n h a m .

E s t a b e l e c i a a m o s t r a t o m a n d o o i t o i n v e n t á r i o s p o r a n o e n t r e 1 8 0 1 e 1 8 8 9 , já que
para o s a n o s das três p r i m e i r a s d é c a d a s d o s é c u l o n ã o d i s p u n h a de n ú m e r o maior.
Escolhi e m seguida dois períodos — 1 8 5 3 - 1 8 5 7 e 1 8 8 1 - 1 8 8 5 , c o m o j á referi — para
os q u a i s e x a m i n e i a t o t a l i d a d e dos i n v e n t á r i o s , d e m o d o a ter, p a r a alguns anos, uma
q u a n t i d a d e razoável de d o c u m e n t o s , q u e p e r m i t i s s e c o m p a r a ç õ e s m a i s sólidas. Para os
a n o s e m q u e e x a m i n a m o s a p e n a s o i t o i n v e n t á r i o s , q u a n d o seu n ú m e r o total se apro-
x i m a v a dos q u a r e n t a , c o n s i d e r a m o s s i s t e m a t i c a m e n t e , n a m e d i d a d o possível, o último
de c a d a série de c i n c o .

O s dados f o r a m classificados e m n o v e r u b r i c a s e, e m s e g u i d a , q u a n d o possível —


pois os i n v e n t á r i o s n ã o a c o m p a n h a d o s de t e s t a m e n t o r a r a m e n t e m e n c i o n a m a ocupa-
ç ã o d o falecido — , os i n v e n t á r i o s f o r a m a g r u p a d o s e m q u i n z e c a t e g o r i a s sócio-econô-
m i c a s q u e n o s p a r e c e r a m r e p r e s e n t a t i v a s das ' o c u p a ç õ e s ' dos b a i a n o s .
O p r o c e s s a m e n t o desses d a d o s e m c o m p u t a d o r teve d o i s o b j e t i v o s : classificar a
f o r t u n a dos b a i a n o s i n v e n t a r i a d o s , d e m o d o a d i s t i n g u i r níveis o u limiares, e verificar
c o m o essas f o r t u n a s se d i s t r i b u í a m e n t r e as c a t e g o r i a s s ó c i o - e c o n ô m i c a s q u e havíamos
d i s t i n g u i d o . I m p o r t a v a a i n d a s a b e r de q u e se c o m p u n h a m essas f o r t u n a s e c o m o ti-
n h a m evoluído n o t e m p o , u m a vez q u e , ao l o n g o d o século, alguns c o m p o n e n t e s tinham
sido s u b s t i t u í d o s p o r o u t r o s . Interessava t a m b é m , finalmente, c o n h e c e r o peso de cada
c o m p o n e n t e na f o r t u n a de c a d a c a t e g o r i a s ó c i o - e c o n ô m i c a . C o m o a avaliação era feita
em c o n t o s de réis, m e n o s n o c a s o das f o r t u n a s m a i s m o d e s t a s , utilizamos a grafia das
cifras c o r r e n t e n o século X I X p a r a facilitar a leitura dos dados e t o r n a r os comentários
mais claros. Assim, o c o n t o d e réis ( u m m i l h ã o de réis) é separado dos mil réis restantes
por dois p o n t o s ( 1 : 0 0 0 ) . Para evitar cifras d e m a s i a d o longas, e l i m i n a m o s quantias
inferiores a esse p a t a m a r , s u p r i m i n d o as m e n o r e s q u e q u i n h e n t o s réis e arredondando
as maiores.

CLASSIFICAÇÃO DAS FORTUNAS

O que sabemos sobre a estratificação s ó c i o - e c o n ô m i c a de Salvador sugere que o leque


das fortunas era bastante extenso, tornando-se indispensável verificar se nossa amostra
é representativa de todos os níveis de riqueza ali existentes e, em seguida, em que
classes ou categorias de fortuna se concentravam os inventários.
J j v R o V n - o DINHEIRO DOS BAIANOS
607

As fortunas foram inicialmente distribuídas em catorze classes M „


indo de alguns mil réis a 1 : 0 0 0 de réis e as seguintes di I T b u T n T T f ^
de réis a 1 . 0 0 0 : 0 0 0 ou mais g
a t r i b u i n d o - s e na faixa dos 1 : 1 0 0

TABELA 104

C l ^ S S I H C A Ç Ã O DAS FORTUNAS EM SALVADOR,

CIASSE
FREQÜÊNCIA FREQÜÊNCIA FREQÜÊNCIA
ABSOLUTA RELATIVA ACUMULADA
1. até : 1 0 0 6 0,5 0,5
2. :101 a :200 8 0,7 1,2
3. :201 a :500 55 4,9 6,1
4. :501 a 1:000 97 8,7 14,8
5. 1:100 a 2:000 128 11,5 26,3
6. 2:100 a 5:000 233 20,9 47,2

7. 5:100 a 10:000 181 16,2 63,4

8. 10:100 a 2 0 : 0 0 0 139 12,5 75,9

9. 2 0 : 1 0 0 a 50:000 145 13,0 88,9

10. 5 0 : 1 0 0 a 100:000 67 6,0 94,9

11. 100:100 a 200:000 31 2,8 97,7

12. 2 0 0 : 1 0 0 a 500:000 22 2,0 99,7

13. 5 0 0 : 1 0 0 a 1.000:000 2 0,2 99,9

14. + de 1.000:000 1 0,1 100,0

Total 1.115 100,0 100,0

A o q u e t u d o i n d i c a , n o s s a a m o s t r a é r e p r e s e n t a t i v a : as fortunas das c i n c o primei-


ras classes ( a t é 2 : 0 0 0 d e réis) c o r r e s p o n d e m a 2 6 , 3 % d o s inventários, a o passo q u e
e n c o n t r a m o s para t o d o o p e r í o d o a p e n a s u m inventário d e f o r t u n a superiot a 1 . 0 0 0 : 0 0 0
dc r é i s ) . A s f o r t u n a s q u e p o d e m s e t c o n s i d e r a d a s m é d i a s (de 2 : 1 0 0 a 1 0 : 0 0 0 de rés),
classificadas n a s e x t a e s é t i m a classes, c o t r e s p o n d e m a 3 7 , 1 % d o total d e mventános.
D o i s i n c o n v e n i e n t e s desta classificação - o n ú m e r o excessivo d c classes e a exten-
são d o i n t e r v a l o c t o n „ 1 6 g i c o - d i f i c u l t a m , p o r é m , a anáhsc
f o r t u n a , . I s t o m e l e v o u a reclassificar os d a d o s e m o n o novas categonas e a estabelecer

~;ar:'et :;i,rios encontra;tanque


J ^ ^ S f e
n C
q u e utilizei (aliás, foi diflcil

f o s s e m v á l i d o s d e , BOO a t é a U e ^ c a ) .
P

tenham m a n t i d o inal.ctadas a o £ n g o d o ^ ^ ^ ^
q u e r e p e r c u t i r a m nas f o r t u n a s de seus m i m m ^ oportunidades de
do m e r c a d o de t r a b a l h o , p o r e x e m p l o , mostra q
608 BAHIA, SÉCULO X I X

e m p r e g o n o s e t o r d e serviços, e o t r a b a l h o e s c r a v o foi p r o g r e s s i v a m e n t e substituído


pelo t r a b a l h o livre.
A o c o r r ê n c i a de passagens de u m nível de f o r t u n a a o u t r o , s o b r e t u d o na segunda
m e t a d e d o s é c u l o , p a r e c e m a i s q u e p r o v á v e l . A l i á s , v e r i f i c a - s e q u e , c o m o passar dos
a n o s , a p r o p o r ç ã o das p e q u e n a s f o r t u n a s se r e d u z i u . F o r t u n a s d e 1 0 : 0 0 0 de réis eram
m a i s significativas n o i n í c i o d o s é c u l o q u e n o final, seja p o r q u e o n ú m e r o de grandes
f o r t u n a s era m e n o r e o t e t o m a i s b a i x o , seja p o r q u e t i n h a m m a i o r valor real, pois a
i n f l a ç ã o o c o r r i d a n o p e r í o d o n ã o p o d e ser e s q u e c i d a .

É v e r d a d e q u e , n o e s p í r i t o d o p o v o , o d e v i d o d e s c o n t o n ã o era f e i t o . Q u e m tinha
u m a f o r t u n a desse v a l o r c o n t i n u a v a a ser c o n s i d e r a d o r e m e d i a d o . T e r u m a casa térrea
q u a n d o talvez se s o n h a s s e c o m u m s o b r a d o — , a l g u n s m ó v e i s t o s c o s e u m dinhei-
r i n h o n o b o l s o j á c o n f e r i a p r e s t í g i o e i n t r o d u z i a a p e s s o a n o rol dos a b o n a d o s . Aliás,
n u m a c i d a d e o n d e a m a i o r i a vivia n a p e n ú r i a , a l g u m a s c e n t e n a s d e m i l réis n o bolso
j á era riqueza.
V o l t a r e i aos c o n c e i t o s d e r i q u e z a e p o b r e z a , m a s d e s d e j á q u e r o deixar claro que
n ã o p r e t e n d o ir m u i t o l o n g e n a b u s c a d e c r i t é r i o s p a r a essa d e f i n i ç ã o : na B a h i a , aposse
d e q u a l q u e r b e m c o n f i g u r a v a f o r t u n a , e e s t e s e r á u m p r e s s u p o s t o de t o d a a minha
análise.

TABELA 1 05
CLASSIFICAÇÃO DAS FORTUNAS EM SALVADOR,
1 8 0 1 - 1 8 8 9 (EM CONTOS DE RÉIS)

I. Muito pequenas acé :200

2. Pequenas :201 a 1:000

3. Médias baixas 1:100 a 2:000

4. Médias 2:100 a 10:000

5. Médias altas 10:100 a 50:000

6. Grandes baixas 50:100 a 200:000

7. Grandes médias 200:100 a 500:000

8. Grandes 500:100 a 1.000:000

até 2 0 0 . 0 0 0 réis — q u e c p n m e , r a s
« t e g o r i a s d a classificação anterior. As fortunas
bens de u s o pessoal c o m o * p r
" n c i r a c l a s s c
~ ü m i t a v a m - s e em geral a

« é 1 8 5 0 encontra-se por v c ^ ^ ' ^ " " V " * P


° r é m : n O S i n v c n t á r i o s d e

faixa. Q u a s e s e m p r e era IA ' " J ttCWVO a r r o , a


d o e n t r e os possuidores de bens nessa
alforriado, devendo apenas p a n 7 P
° U C
° ^ ° U
' C O a r t a d o
'' é
> P r e s r e s a s e r

dono, ia a leilão, e o valor A P r C Ç


° 3
° s c n h o r
' N e s s e c a s o
' P a ós a m o r t e d o

t a m b é m de crédito por e ' C a b


' a a o s h
" ™os.
d
Os bens podiam compor-se
d o n d e aliás a n e c e ^ L ^ ^ ^ < - ° > dívida a ser c o b r a d a na Justiça,
3 U m t c r c c í

d C d
° " e t á r i o . O s inventários da segunda metade d o século
*JV«oVH - O DINHEIRO DOS BAIANO.
609

a i n d a r e g i s t r a v a m esses e m p r é s t i m o s , m a s a p a r e c i a m t a m b é m ações bancárias, c o m o as


da C a t x a E c o n ô m i c a . N e s s e s c a s o s , e m geral só esse c r é d i t o era levado em conTo
bens — moveis, roupas — r a r a m e n t e eram avaliados

A s e g u n d a c l a s s e , a das ' p e q u e n a s f o r t u n a s ' , a b r a n g e a íaixa de 2 0 1 . 0 0 0 réis a


1 : 0 0 0 de réis. O s q u e e s t a v a m p r ó x i m o s d o p i s o dessa faixa p o u c o se diferençavam dos
da c a t e g o r i a a n t e r i o r , c o m a l g u n s m i l réis a m a i s . T e r i a m u m g u a r d a - r o u p a m e n o s
e x í g u o , u m m o b i l i á r i o m a i s c o m p l e t o , a l g u m a j ó i a m o d e s t a , u m o u duas imagens de
s a n t o s . C o m 3 0 0 . 0 0 0 réis já se p o d i a a t é c o m p r a r u m c a s e b r e e, d e p e n d e n d o da época
p o s s u . r u m o u d o i s e s c r a v o s q u e , m e s m o s e m g r a n d e q u a l i f i c a ç ã o , s o m a v a m alguma
coisa ao o r ç a m e n t o f a m i l i a r . E r a t a m b é m f r e q ü e n t e a p r á t i c a de e m p r é s t i m o s e a
c o m p r a de u m a o u d u a s a ç õ e s , o q u e , n e s t a classe c o m o na a n t e r i o r , era u m a maneira
de se a l ç a r a u m a c a t e g o r i a m a i s a b a s t a d a . A t é este n í v e l de f o r t u n a , n u n c a se estava ao
a b r i g o d e u m r e v é s . U m a d o e n ç a p r o l o n g a d a , u m a falta de t r a b a l h o , e a herança podia
reduzir-se a dívidas.

A s f o r t u n a s m é d i a s — t e r c e i r a classe — se d i s t i n g u i a m das duas primeiras porque,


em g e r a l , seus d e t e n t o r e s p o d i a m d i v e r s i f i c a r u m p o u c o m a i s os seus bens, acrescen-
t a n d o a o p r i m e i r o c a s e b r e u m s e g u n d o , para a l u g u e l , o u c o m p r a n d o melhores móveis.
N o s i n v e n t á r i o s , a p a r e c e m c a d e i r a s , b a ú s , m a i s e m e l h o r e s r o u p a s , utensílios de cozi-
n h a m a i s v a r i a d o s , a l g u n s t a l h e r e s . O p r i n c i p a l é q u e , desse nível em diante, já era
possível t e r u m a c a s a d e v e r d a d e — t é r r e a , c o m j a n e l a e p o r t a d a n d o para rua, dois
quartos, corredor e u m q u i n t a l z i n h o nos fundos — , isto é, adquirir prestígio de
v e r d a d e i r o p r o p r i e t á r i o . A l i á s , as casas t é r r e a s , c o n s i d e r a d a s casas de pobre, eram
isentas d o i m p o s t o d c l o c a ç ã o q u e i n c i d i a s o b r e os imóveis mais valorizados, o que
explica seu g r a n d e n ú m e r o , p o r t o d a a c i d a d e .
S c a casa t é r r e a estava a o a l c a n c e dessas pessoas, ainda pobres em relação aos
v e r d a d e i r o s r i c o s , o s o b r a d o figurava q u a s e s e m p r e e n t r e os bens dos que tinham entre
2 : 1 0 0 c 1 0 : 0 0 0 de réis — a q u a r t a classe. A f a m í l i a alojava-se cm geral no segundo
p a v i m e n t o e o p r o p r i e t á r i o usava o t é r r e o para seu t r a b a l h o de artesão ou comerciante.
P o i vezes o t é r r e o era a l u g a d o a escravos, p e q u e n o s c o m e r c i a n t e s ou artesãos. Alguns
inventários dessa faixa a r r o l a m u m s e g u n d o s o b r a d o o u uma casa térrea, e, ata
A b o l i ç ã o , q u a s e s e m p r e m e n c i o n a m escravos, agregados, móveis e jóias. Mas tam jn
nessa classe os h e r d e i r o s n e m s e m p r e estavam e c o n o m i c a m e n t e garantidos. U o
dependia da gestão dessas p e q u e n a s f o r t u n a s , e a abertura d o inventário não raro trazia
amargas revelações: excesso dc dívidas ou e m p r é s t i m o s concedidos sem as devi
p r e c a u ç õ e s p o d i a m represe m a r a ruína. As primeiras eram c o m u n s , pois u m P ^
tário t i n h a c r é d i t o fácil; q u a n t o aos e m p r é s t i m o s , concede-los era quase obrigatório,

rico, especialmente na

século, c o m o v e r e m o s . Nesta
610 BAHIA, SÉCULO X I X

da riqueza. E m quase todos os inventários figuram bens imóveis, depósitos bancários,


a ç õ e s e a p ó l i c e s d o T e s o u r o e, s a l v o e x c e ç õ e s , as d í v i d a s e m a t i v o c o r r e s p o n d e m mais
o u m e n o s às q u e a p a r e c i a m e m p a s s i v o . I n v e s t i m e n t o s n o c o m é r c i o e r a m também
freqüentes; d e f a t o , n e s s a f a i x a se c o n c e n t r a v a m o s l o j i s t a s b e m - e s t a b e l e c i d o s , q u e
c o n t r o l a v a m o v a r e j o , a l é m d e f u n c i o n á r i o s e m a g i s t r a d o s , a l g u n s p r o f i s s i o n a i s liberais
e m e m b r o s d o a l t o c l e r o . E r a m f o r t u n a s s ó l i d a s , c o r r e s p o n d e n t e s à e l i t e d a classe
m é d i a d e S a l v a d o r , c u j o s h e r d e i r o s j a m a i s se v i a m c o n t e m p l a d o s c o m u m s a l d o nega-
tivo, c o m o ocorria nas q u a t r o categorias anteriores.
A s três classes s u b s e q ü e n t e s r e p r e s e n t a m as g r a n d e s f o r t u n a s b a i a n a s . P a r a d i s t i n -
g u i - l a s , usei sua f r e q ü ê n c i a . P o r e x e m p l o , f o r t u n a s d e 5 0 : 1 0 0 a 2 0 0 : 0 0 0 d e réis, a sexta
c l a s s e , r e p r e s e n t a v a m 8 , 8 % d o t o t a l d o s i n v e n t á r i o s ; j á as d a s é t i m a c l a s s e , na faixa dos
2 0 0 : 1 0 0 a 5 0 0 : 0 0 0 d e réis, e r a m a p e n a s 2 % d o t o t a l . C a b e o b s e r v a r a i n d a q u e 9 0 %
dessas grandes riquezas p e r t e n c i a m a negociantes que tinham atividades muito
diversificadas, c o m investimentos que abrangiam também b a n c o s , c o m p a n h i a s de
seguros e de transportes e e m p r e s a s industriais. E m c e r t o s d o c u m e n t o s são chamados
d e ' c a p i t a l i s t a s ' , m a s a d e s i g n a ç ã o é a m b í g u a ; a m e s m a p e s s o a a p a r e c e e m diferentes
papéis, ora c o m o n e g o c i a n t e , o r a c o m o c o m e r c i a n t e , o r a c o m o capitalista. O s 10%
r e s t a n t e s dessa c l a s s e d e f o r t u n a e r a m p r o f i s s i o n a i s l i b e r a i s e s e n h o r e s d e e n g e n h o .
V e r e m o s q u e estes p e r d e r a m s u a p o s i ç ã o p o r v o l t a d e m e a d o s d o s é c u l o , d e s c e n d o à
q u i n t a c a t e g o r i a , a das ' b o a s f o r t u n a s ' . 6

Fiz recortes c r o n o l ó g i c o s e m três planos. N o p r i m e i r o , dividi e m dois o período


1 8 0 1 - 1 8 8 9 , c o m u m c o r t e e m 1 8 5 0 , u m a v e z q u e as a n á l i s e s m o s t r a m q u e esse a n o
m a r c o u n í t i d a r e v i r a v o l t a n a e v o l u ç ã o d o s p r e ç o s , d o s s a l á r i o s e d a s c o n d i ç õ e s do
mercado em Salvador. N o segundo, o m e s m o p e r í o d o foi recortado e m quatro
s u b p e r í o d o s , s e g u n d o o s m o v i m e n t o s d a c o n j u n t u r a b a i a n a , tal c o m o sugeridos pelo
estudo de preços: 1 8 0 1 - 1 8 2 1 , 1 8 2 2 - 1 8 4 5 , 1 8 4 6 - 1 8 6 0 e 1 8 6 1 - 1 8 8 9 .
O t e r c e i r o r e c o r t e , p o r fim, n ã o e s t a b e l e c e u m a p e r i o d i z a ç ã o : s i m p l e s m e n t e des-
taca dois m o m e n t o s para u m e x a m e c o m p l e t o dos inventários: 1 8 5 3 - 1 8 5 7 e 1881 —
1 8 8 5 . 0 p r i m e i r o foi e s c o l h i d o p o r q u e n e l e a t a x a d e m o r t a l i d a d e a t i n g i u seu m á x i m o ,
o q u e p r o m e t i a u m m a i o r n ú m e r o d e i n v e n t á r i o s . A e x p e c t a t i v a se c o n f i r m o u : nesse
i n t e r v a l o , há u m a m é d i a d e 4 4 i n v e n t á r i o s p o r a n o , a o p a s s o q u e levantamentos
referentes a o s a n o s 1 8 6 3 - 1 8 6 5 , 1 8 6 8 - 1 8 6 9 , 1 8 7 3 - 1 8 7 5 e 1 8 7 8 - 1 8 7 9 indicam mé-
dias anuais n u n c a s u p e r i o r e s a q u a r e n t a . E u s u p u n h a , aliás, q u e as leis d e 1 8 6 1 e 1 8 7 0
c , s o b r e t u d o , a d e 1 8 8 0 , q u e i m p u n h a m n o r m a s m a i s estritas à s u c e s s ã o , p o d i a m ter
f e i t o crescer o n ú m e r o d c i n v e n t á r i o s . M a s c o n s t a t e i o c o n t r á r i o : e n t r e 1 8 8 1 e 1 8 8 5 ,
por exemplo, baixaram a 3 8 por a n o . C o n v é m lembrar, entretanto, que os documen-
tos e n c o n t r a d o s n o A r q u i v o P ú b l i c o da B a h i a s ã o a p e n a s u m a a m o s t r a : m e s m o n o
acervo dessa i n s t i t u i ç ã o p o d e haver o u t r o s i n v e n t á r i o s n ã o c a t a l o g a d o s .
O s dados das tabelas 1 0 6 c 1 0 7 , o r d e n a d o s s e g u n d o a divisão d o p e r í o d o 1 8 0 1 -
1 8 8 9 n o a n o d c 1 8 5 0 , são b a s t a n t e elucidativos, m o d i f i c a n d o a i m a g e m sugerida pelas
duas tabelas a n t e r i o r e s , q u e a b r a n g i a m t o d o o s é c u l o .
611

C a b e l e m b r a r , p o r e m , a n t e s d e m a i s n a d a , q u e t e m o s u m n ú m e r o reduzido de
^ ^ 0 5 feitos n o i n t e r v a l o 1 8 0 1 - 1 8 5 0 . É v e r d a d e q u e c o n c e n t r e i m i n h a s investi-
gações na s e g u n d a m e t a d e d e s s e p e r í o d o , m a s 2 1 5 , d e u m total de 3 9 5 , representam
a v a l i d a d e d o s i n v e n t á r i o s d o s a n o s 1 8 0 1 - 1 8 3 0 . F a z i a m - s e m e n o s inventários post
mortem n a p r i m e i r a m e t a d e d o s é c u l o d o q u e n a s e g u n d a ? É provável, pois para as duas
ultimas d é c a d a s d o s é c u l o X V I I I a p u r a m o s u m a m é d i a a i n d a m e n o r , de apenas quatro
por a n o . D o s i n v e n t á r i o s f e i t o s a t é 1 8 5 0 , 3 5 , 4 % p e r f a z i a m u m m o n t a n t e m e d í o c r e ,
equivalente a a p e n a s 1 6 , 4 % d a s o m a d a s f o r t u n a s d o c o n j u n t o desse p e r í o d o .

TABELA 106
CLASSIFICAÇÃO DAS FORTUNAS EM SALVADOR,
1 8 0 1 - 1 8 5 0 (EM CONTOS DE RÉIS)

CLASSE N 1
% TOTAL 2
MÉDIA
%v
1 9 2,3 :130 0,0

2 81 20,5 :601 1.0

3 65 16,4 1:426 2,0

4 147 37,2 4:950 16,0

5 75 19,0 20:567 34,0

6 17 4,3 102:945 38,6

7. 1 0,2 371:325 8,2

(1) N = n° de inventários; (2) Total de inventários • 395; (3) S - soma d:is fortunas =
4.534:258 de réis.

TABELA 1 0 7
CLASSIFICAÇÃO DAS FORTUNAS EM SALVADOR,
1 8 5 1 - 1 8 8 9 (EM CONTOS DE RÉIS)

CLASSE N 1
% TOTAL 2 MÉDIA

.098
%v
0,0
1 5 0,7

2 72 10,0 :639 0.2

8,6 1:480 0,4


3 62

37.0 5:063 5.8


4 267

29,0 23:857 21.5


5 209

81 11.2 90:526 31.6


6

21 2.9 325:679 29.5


7
0.4 841:900 10,9
8 3
(1) N - n'• dc inventário»; (2) Total dc inventário» - 720; (3) I - «orna dasfortunas=
23.179:974 de réi».

Tanto antes c o m o depois de 1 8 5 0 , encontramos as mesmas categorias socio-


económicas. Mas a distribuição desigual das grandes fortunas influenciava o total. Dos
inventários da primeira metade do século, só 6 , 8 % correspondiam a grandes comer-
612 BAHIA, SÉCULO X I X

d a n t e s , q u a n d o e n t r e 1 8 5 1 e 1 8 8 9 esse p e r c e n t u a l c h e g o u a 1 1 , 2 % . T o r n a d o s isola-
d a m e n t e , t i n h a m as m a i o r e s f o r t u n a s d a c i d a d e e m a m b o s o s p e r í o d o s , m a s n o p r i m e i -
ro d e t i n h a m 2 3 , 5 % d a f o r t u n a total e n o s e g u n d o essa p a r t i c i p a ç ã o e l e v o u - s e a 3 5 , 4 % .
S e j a c o m o for, os d a d o s das t a b e l a s 1 0 6 e 1 0 7 r e v e l a m inegável e n r i q u e c i m e n t o
dos b a i a n o s n a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o , o q u e é t a m b é m i n d i c a d o pela d i m i n u i ç ã o
n o n ú m e r o de p e q u e n a s f o r t u n a s e pela r e d u ç ã o de s u a p a r t i c i p a ç ã o n o c o n j u n t o . Esse
e n r i q u e c i m e n t o se t o r n a a i n d a m a i s e v i d e n t e q u a n d o se c o n s i d e r a q u e até 1 8 5 0 i n e -
xistiam f o r t u n a s superiores a 5 0 0 : 1 0 0 d e réis. P o r o u t r o l a d o , a u m e n t o u a p e r c e n t a -
g e m dos d e t e n t o r e s de f o r t u n a s c o n s i d e r á v e i s .
F i n a l m e n t e , c a b e assinalar q u e , n a p r i m e i r a m e t a d e d o s é c u l o , os m a i s r i c o s ( f o r -
tunas superiores a 1 0 : 1 0 0 de réis) d e t i n h a m 8 0 , 8 % d a f o r t u n a g l o b a l e e r a m apenas
2 3 , 5 % dos i n v e n t a r i a d o s , e n q u a n t o n a s e g u n d a m e t a d e d e t i n h a m 9 3 , 5 % d a f o r t u n a
e c o r r e s p o n d i a m a 4 3 , 6 % dos i n v e n t a r i a d o s . O n ú m e r o d o s m e n o s r i c o s (até 2 : 0 0 0 de
réis) d i m i n u i u d e 3 9 , 4 % n o p r i m e i r o p e r í o d o p a r a 1 9 , 3 % n o s e g u n d o , e a d i s t â n c i a
entre ricos e p o b r e s t o r n o u - s e m a i o r : a o p a s s o q u e e n t r e 1 8 0 1 e 1 8 5 0 essas f o r t u n a s
c o r r e s p o n d i a m a q u a s e 2/3 d o s i n v e n t á r i o s e a 3 % d a f o r t u n a g l o b a l , d e 1 8 5 1 a 1 8 8 9
representavam m e n o s d e 1/5 dos i n v e n t á r i o s e 0 , 6 % d a f o r t u n a g l o b a l .

O nível das f o r t u n a s b a i a n a s p a r e c e p o r t a n t o t e r a u m e n t a d o n a s e g u n d a m e t a d e
d o século, m e s m o l e v a n d o - s e e m c o n t a a i n f l a ç ã o , c a l c u l a d a e m 1 1 8 , 7 % p o r M i r c e a
B u e s c u , t o m a n d o c o m o base o s p r e ç o s d e 1 8 2 6 . O l i v e r O n o d y , p o r sua vez, e s t i m o u
em 9 1 % o a u m e n t o d o c u s t o d e v i d a e n t r e 1 8 5 0 e 1 8 8 9 . 7
E m q u a l q u e r c a s o , au-
m e n t o u o n ú m e r o das b o a s f o r t u n a s ( m a i s d e 1 0 : 1 0 0 d e réis) e das g r a n d e s f o r t u n a s
(mais de 5 0 : 1 0 0 de r é i s ) . A s f o r t u n a s m é d i a s ( 2 : 1 0 0 a 1 0 : 0 0 0 d e réis) a p r e s e n t a r a m
notável estabilidade e m t e r m o s d e p a r t i c i p a ç ã o p e r c e n t u a l n o n ú m e r o d e casos ( 3 7 , 2 %
até 1 8 5 0 e 3 7 % d e p o i s ) , m a s s e u p e s o n o c o n j u n t o d a r i q u e z a m e n s u r a d a d i m i n u i u
a c e n t u a d a m e n t e , p a s s a n d o de 1 8 % a 5 , 8 % . E s t a c o n s t a t a ç ã o é c o r r o b o r a d a pela aná-
lise dos m e s m o s d a d o s , s e g u n d o o s d o i s o u t r o s r e c o r t e s c r o n o l ó g i c o s q u e p r o p u s : u m
de quatro p e r í o d o s , q u e a c o m p a n h a o s m o v i m e n t o s d a c o n j u n t u r a , e o u t r o e m q u e
destaco dois m o m e n t o s para u m e x a m e e x a u s t i v o dos i n v e n t á r i o s .

R e a g r u p a n d o d a d o s , p u d e m o n t a r a t a b e l a 1 0 8 , q u e c o m p r e e n d e os dados referen-
tes às fortunas na faixa d e até 1 0 : 0 0 0 de réis. P o d e - s e c o n s i d e r a r q u e f o r m a m um
c o n j u n t o c o e r e n t e , em q u e A c o r r e s p o n d e às f o r t u n a s de a t é 2 : 0 0 0 de réis e B às
camadas superiores a essa faixa. A t a b e l a 1 0 9 reagrupa as f o r t u n a s q u e p o d e m ser c o n -
sideradas sólidas, isto é, de valor s u p e r i o r a 1 0 : 1 0 0 de réis. As f o r t u n a s de 1 0 : 1 0 0 a
5 0 : 0 0 0 de réis c o n s t i t u í a m o p r i m e i r o s i g n o d e verdadeira riqueza.
Esta nova classificação, estudada s e g u n d o recortes c r o n o l ó g i c o s diferentes, p e r m i t e
comparações esclarecedoras. A redução d o n ú m e r o e d o percentual de participação das
pequenas fortunas n o c o n j u n t o se c o n f i r m a de f o r m a nítida: e n t r e 1 8 0 1 e 1 8 2 2 elas
representavam mais de metade dos inventários e c o r r e s p o n d i a m a 4 , 4 % da fortuna
total; n o fim do período c o r r e s p o n d i a m a 1 8 , 7 % dos inventários e a apenas 0 , 4 % da
riqueza arrolada.
613

T A B E L A 108

CLASSIFICAÇÃO DAS FORTUNAR I 0 : 0 00 D E RE IS ( % )

PERIODOS

%N %I o
A+B
NT
/ o N

1. 1801-1850 39,2 3,0 3 7 > 2


%IT
1851-1889 19,3 37J ^"J 76,4 1 9 > 0

56,3 6,4
2. 1801-1821 52,7 4,4 322
1822-1845 32,0 2,5 4L3 170 8 4 , 9
-
1 9 4

1846-1860 21,4 1,1 '


4 1 8
7 3
' 3
19,5
1881-1889 1S\7 0,4 33^8 ¿4 J*" . 2 1 2 , 4

3. 1853-1857 22,3 1,1 ¡1,8 ~^~ 3 ^ ~ ~


1 8 8 1
- 1 8 8 5
0.3 34,4 • 4,5 5oj_
A - até 2:000 de réis; B = 2:100 a 10:000 de réis; % N = percentagem sobre o
sobre a soma dos valores inventariados no período.
^^^^J~^Z
^ percentagem

TABELA 109
CLASSIFICAÇÃO DAS FORTUNAS DE 1 0 : 1 0 0 A 1 . 0 0 0 : 0 0 0 DE RÉIS (%)
PERÍODOS C D E F C D+ E + F +

%N %I %N %I %N %I %N %I %NT %IT
1. 1801-1850 19,0 34,0 4,3 38,6 0,2 8,2 _ _ 23,5 80,8
1851-1889 29,0 21,5 11,2 31,6 2,9 29,5 0,4 10,9 43,5 93,5
2. 1801-1821 10,9 19,2 3,4 37,0 0,7 24,2 _ 15,0 80,4
1822-1845 22,3 41,3 4,4 39,2 — — — — 26,7 80,5
1846-1860 28,3 32,0 6,9 29,5 1,6 26,0 —
- 36,8
47,4
87,5
1861-1889 29,6 18,8 13,7 32,6 3,5 29,7 0,6 14,0 95,1

3- 1853-1857 25,9 28,3 8,2 32,4 1,8 27,9 _ _ 35,9 88,6


1881-1885 32,8 19,7 13,5 30,7 2,6 19,0 1,0 25,6 50,0 95,2
C« 10:100 a 50:000 de réis; D = 50:100 a 200:000 de réis; E = 200:100 a 500:000 de réis; F = 500:100 a 1.000:000 de réi
• percentagem sobre o número de inventários; %S • percentagem sobre os valores inventariados no período.

Por que o numero dessas fortunas teria decrescido tanto no conjunto dos inven-
tários? Há duas explicações possíveis: o enriquecimento geral teria provocado um
aumento do número dos inventários em outras faixas; ou fortunas dessa faixa teriam
Passado a ser mais raramente inventariadas. A legislação referente às heranças não
sustenta, contudo, a segunda hipótese: herdeiros não necessários ou legatários estavam
sujeitos a taxas, por pequena que fosse a fortuna (em 139 testamentos datados de 1865
1868, encontrei seis com menos de 1 0 0 . 0 0 0 réis, outros sete inferiores a 500.000 e
a

mais dez inferiores a 1:000 de réis). É bem provável, pois, que o número dessas
Pequenas fortunas tenha de fato decrescido, mas convém ser prudente e nao tomar o
Plausível por certo. De fato, ao longo de todo o período, esses pequenos patrimónios
corresponderam a 1 8 , 7 % das fortunas inventariadas. Por outro lado, a redução da sua
Participação no conjunto da fortuna, de 4 , 4 % ( 1 8 0 1 - 1 8 2 1 ) para 0,4%, mostra que
esses pés-de-meia se compunham de bens cada vez mais parcos.
614 BAHIA, SÉCULO X I X

O e n r i q u e c i m e n t o traduziu antes o a u m e n t o do fosso e n t r e pobres e ricos do quç


uma superação da pobreza. Levando adiante esta reflexão, p o d e m o s supor que a redu-
ção do n ú m e r o de inventários post mortem referentes a pequenas fortunas refletiu o
e m p o b r e c i m e n t o de pessoas antes capazes de amealhar alguns mil reis, lançadas pelas
novas c o n d i ç õ e s da c o n j u n t u r a n o rol dos que n ã o t i n h a m nada, ou quase nada.
O s dados sobre as fortunas de 2 : 1 0 0 a 1 0 : 0 0 0 de réis parecem corroborar esta
hipótese. D e fato, seja qual for o recorte c r o n o l ó g i c o a d o t a d o , quer se considerem os
inventários de um período de c i n c o anos o u u m a a m o s t r a de u m intervalo mais amplo,
observa-se que essa classe de f o r t u n a c o n s t i t u i a m a i o r parte dos inventários (nunca
m e n o s de 1/3). P o r o u t r o lado, sua p a r t i c i p a ç ã o na f o r t u n a global declinou, com
exceção do período 1 8 2 1 - 1 8 4 5 , q u a n d o c h e g o u a 1 7 % (é preciso considerar, contu-
d o , que nesse intervalo os inventários dessa classe e r a m 4 1 , 3 % d o t o t a l ) .

O r a , essa categoria representava a c a m a d a mais alta d o que p o d e m o s qualificar dc


pequenas fortunas, em geral formadas por h o m e n s e m u l h e r e s situados nas camadas
médias da população da cidade, o n d e se e n c o n t r a v a de t u d o u m p o u c o : gente que vivia
de renda, artesãos, m e m b r o s d o b a i x o clero, p e q u e n o s c o m e r c i a n t e s , funcionários
públicos e do setor privado e h o m e n s e m u l h e r e s de o c u p a ç ã o indefinida. Aliás,
q u a n t o m e n o r era a fortuna, m e n o s os d o c u m e n t o s i n f o r m a m sobre o inventariado.
D e fato, essa classe se c o m p u n h a de g e n t e ligada a t o d o t i p o de atividade econômica
— e de ociosos, t a m b é m — , de a p o s e n t a d o s a locadores de escravos, passando por
usurários, n u m a mistura sem c o r r e s p o n d e n t e nas classes mais elevadas.
A o c o n t r á r i o , p o r é m , dos q u e t i n h a m bens de valor inferior a 2 : 0 0 0 de réis, o
n ú m e r o dos inventariados dessa c a m a d a superior da classe das pequenas fortunas
a u m e n t o u entre 1 8 2 1 e 1 8 6 0 , ainda q u e sua p a r t i c i p a ç ã o na fortuna global tenha
caído de 1 5 % entre 1 8 0 1 e 1 8 2 1 para 4 , 4 % e n t r e 1 8 6 1 e 1 8 8 9 . C o m o ocorreu com
as fortunas menores, não h o u v e verdadeiro e n r i q u e c i m e n t o nesse nível. A comparação
das médias das fortunas nessas duas classes f o r n e c e u m a prova suplementar disto:

TABELA 1 1 0

MÉDIA DAS FORTUNAS (EM CONTOS DE RÉIS)


PERÍODOS A B

1801-1821 :889 4:897

1822-1845 :928 4:900

1846-1860 :984 5:086

1861-1889 1:013 5:077


A - aié 2:000 de rlta; \\- dc 2:100 a 10:000 de réis.

A insignificante progressão dessas médias explica a clara tendência a baixa na


participação dessas categorias na fortuna global. C o m p o n d o 8 4 , 9 % dos inventários,
ambas correspondiam a quase 2 0 % da fortuna inventariada entre 1801 e 1 8 2 1 ; de
Lr. ü V I i - O DÍN-HFJRO DOS BAIANOS 615

1 S 6 1 a I S S O e r a m a i n d a m a i s da m e t a d e ( 5 2 , 5 % ) , mas sua p a r t i c i p a ç ã o na f o r t u n a
total caiu a 4 , 8 % . N o c o n j u n t o d o p e r í o d o 1 8 0 1 - 1 8 8 9 , essas duas classes perfaziam
6 6 , 3 % d o s i n v e n t a r i o s c c o r r e s p o n d i a m a 1 2 . 7 % da f o r t u n a .

N o e s c a l ã o m a i s b a i x o das v e r d a d e i r a s f o r t u n a s - verdadeiras p o r q u e estáveis


dada a d i v e r s i d a d e d e sua c o m p o s i ç ã o — e s t ã o as q u c q u a l i f i c a m o s •boas'. Q u e m tinha
mais de 1 0 : 1 0 0 d e reis e m b e n s d e t o d o s o s t i p o s era, t a n t o n o i n í c i o c o m o n o final
d o s é c u l o , - r i c o ' . E fácil c o m p r e e n d e r , c o n t u d o , q u e essa q u a n t i a era m u i t o mais
s i g n i f i c a t i v a na p r i m e i r a q u e na s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o , fosse por seu maior valor
real. fosse p o r q u e , a t é 1 8 5 0 . o l e q u e das f o r t u n a s era m a i s e s t r e i t o : n ã o havia n e n h u m a
superior a 5 0 0 : 1 0 0 d e réis; a l i á s , registrei u m a ú n i c a de mais de 2 0 0 : 1 0 0 de réis. Pode-
se c o n c l u i r , p o r t a n t o , q u e , n a s p r i m e i r a s d é c a d a s d o s é c u l o , as f o r t u n a s de 1 0 : 1 0 0 a
5 0 : 0 0 0 d e réis t i n h a m p e s o e p a p e l e q u i v a l e n t e s aos das superiores a 5 0 : 1 0 0 de réis na
segunda m e t a d e d o s é c u l o : boas riquezas, n e m m u i t o grandes, nem excepcionais.
As f o r t u n a s d e 1 0 : 1 0 0 a 5 0 : 0 0 0 d e réis d o p e r í o d o q u e vai até 1 8 5 0 eram equipa-
radas às d a faixa d e 5 0 : 1 0 0 a 2 0 0 : 0 0 0 de réis d e 1 8 5 1 a 1 8 8 9 , o q u e implicava uma
e q u i v a l ê n c i a e n t r e as classes de 5 0 : 1 0 0 a 2 0 0 : 0 0 0 de réis e de 2 0 0 : 1 0 0 a 5 0 0 : 0 0 0 de
réis desse p r i m e i r o p e r í o d o à q u e l a s s i t u a d a s d e 2 0 0 : 1 0 0 a 5 0 0 : 0 0 0 de réis e de 5 0 0 : 1 0 0
a 1 . 0 0 0 : 0 0 0 d e réis, r e s p e c t i v a m e n t e , d o s e g u n d o p e r í o d o . Q u e papel se deve então
a t r i b u i r às f o r t u n a s s i t u a d a s e n t r e 1 0 : 1 0 0 e 5 0 : 0 0 0 de réis n o s e g u n d o período?
A n t e s de m a i s n a d a , a p o s s e desse m o n t a n t e assegurava, a partir de a p r o x i m a d a -
mente 1 8 6 0 , a i n c l u s ã o n u m a e l i t e e c o n ó m i c a q u e , se p o r u m lado se destacava
n i t i d a m e n t e das p e q u e n a s f o r t u n a s , n ã o se c o n f u n d i a c o m as verdadeiras fortunas,
superiores a 5 0 : 1 0 0 de réis. E s t e era de f a t o o l i m i a r q u e g a r a n t i a a inclusão — fosse
qual fosse o v a l o r d a f o r t u n a — n o rol dos m u i t o r i c o s , d o qual se sobressaíam apenas
as riquezas de f a t o e x c e p c i o n a i s , d e m a i s de 5 0 0 : 0 0 0 de réis.
N a c a t e g o r i a de 5 0 : 1 0 0 a 2 0 0 : 0 0 0 de réis, e m q u e m u i t o s eram comerciantes
varejistas, as forças e c o n ó m i c a s — vale dizer, c o m e r c i a i s — da Bahia encontravam
seus i n t e r l o c u t o r e s p o t e n c i a i s p a r a o e s t a b e l e c i m e n t o de relações c o m e r c i a i s . Era a eles
q u e r e c o r r i a m e m b u s c a d e c a p i t a l para a c r i a ç ã o de empresas industriais e de serviços.
O n ú m e r o de i n v e n t a r i a d o s dessa classe d u p l i c o u e n t r e 1 8 2 1 c 1 8 4 5 . Posterior-
m e n t e , a p r e s e n t o u u m c r e s c i m e n t o c o n s t a n t e , mas sua p r o p o r ç ã o n o total de inventá-
rios d e c l i n o u m u i t o ate 1 8 8 9 . J á sua p a r t i c i p a ç ã o na f o r t u n a global d o período, após
atingir 4 1 , 3 % a n t e s de 1 8 5 0 — o q u e dá m a i o r i m p o r t â n c i a a seu papel de grandes
fortunas nas primeiras décadas d o s é c u l o — , caiu b r u s c a m e n t e , passando a 1 8 , 8 %
entre 1861 c \ HH ). Assim, essas fortunas cresceram a c e n t u a d a m e n t e cm número e em
(

participação na rique/a total em I 8 2 2 e I 8 4 5 , mas cm seguida foram suplantadas pelas


fortunas de m a i o r m o n t a , cujo n ú m e r o cresceu l e n t a m e n t e até 1 8 6 0 mas duplicou
entre 1881 e 1 8 8 9 . M a i s urna vez, a e x c e ç ã o foram as fortunas maiores, que aluís só
surgiram a partir de 1 8 6 1 . _
N o c o n j u n t o , o n ú m e r o das verdadeiras fortunas a u m e n t o u , podendo-sc até afir-
mar que a classe dos ricos cresceu: de 1801 a 1821 eles eram 1 5 % dos inventariados e
616 BAHIA, SÉCULO X I X

p a r t i l h a v a m 8 0 , 4 % d a f o r t u n a g l o b a l ; d e 1 8 6 1 a 1 8 8 9 , e r a m 4 7 % , p a r t i l h a n d o 95,lo/ 0

da f o r t u n a .
A q u e d a d o v a l o r m é d i o dessas f o r t u n a s é c o r r e l a t o a o a u m e n t o d o n ú m e r o de pro-
p r i e t á r i o s e i n d i c a m e l h o r d i s t r i b u i ç ã o d a r i q u e z a e n t r e r i c o s e a b a s t a d o s . N o interior
dessas classes q u e t i n h a m a l g u n s b e n s , seria e n t ã o p o s s í v e l , n u m a p r i m e i r a conclusão
o p o r o s m e n o s a b a s t a d o s aos m a i s r i c o s , s e m n o e n t a n t o e s q u e c e r q u e , n o s dois casos
estava e m j o g o a p e n a s u m a f r a ç ã o p r i v i l e g i a d a d o s b a i a n o s ? E n t r e 1 8 0 1 e 1 8 5 0 , esses
m e n o s a b a s t a d o s , q u e f o r m a v a m 7 6 , 4 % d o s i n v e n t a r i a d o s , p a r t i l h a v a m 1 9 % da fortu-
n a r e g i s t r a d a n o s i n v e n t á r i o s ; n o r e s t a n t e d o p e r í o d o , p o r é m , e m b o r a correspondessem
a 5 6 , 3 % d o s i n v e n t a r i a d o s , sua p a r t i c i p a ç ã o n a r i q u e z a g l o b a l c a i u a 6 , 4 % . S e houve
e n r i q u e c i m e n t o n a B a h i a n a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o , ele n ã o a u m e n t o u o número
dos q u e t i n h a m p o u c a s p o s s e s , n e m i n c r e m e n t o u o n í v e l d e suas f o r t u n a s .

TABELA 1 1 1
MÉDIAS DAS FORTUNAS (EM CONTOS DE RÉIS)
PERÍODOS C D E F

1801-1821 18:452 113:807 371:324


-
1822-1845 22:014 106:788
- -
1846-1860 21:221 80:038 296:129 -
1861-1889 24:970 93:293 334:913 841:900

C = 10:100 a 50:000 de réis; D = 50:100 a 200:000 de réis; E = 200:100 a 500:000 de réis; F = 500:100 a 1.000:000 de réis.

Q U E M POSSUÍA?

N a a u s ê n c i a q u a s e t o t a l d e i n f o r m a ç õ e s p r e c i s a s s o b r e as o c u p a ç õ e s , profissionais
o u n ã o , dos i n v e n t a r i a d o s e d i a n t e d e u m a p e r c e n t a g e m r e l a t i v a m e n t e elevada de
inventários referentes a m u l h e r e s ( 3 5 , 2 % ) , n ã o é possível d i s t r i b u i r as fortunas em
categorias e c o n ô m i c a s m u i t o variadas. P r o p o n h o a g r u p a m e n t o s q u e refletem as de-
ficiências dos p r ó p r i o s d o c u m e n t o s . A q u a l i f i c a ç ã o de 1/3 dos inventariados c o m o
'sem o c u p a ç ã o ' e x e m p l i f i c a i s t o . P u d e e s t a b e l e c e r q u i n z e c a t e g o r i a s : negociantes, in-
dustriais, c o m e r c i a n t e s , s e n h o r e s de e n g e n h o , p r o p r i e t á r i o s agrícolas, profissionais
liberais, c l e r o , f u n c i o n á r i o s p ú b l i c o s , oficiais g r a d u a d o s , oficiais subalternos, artesãos,
d o n o s de b a r c o s , pescadores e m a r í t i m o s , pessoas q u e viviam de rendas e os ditos
'sem o c u p a ç ã o ' .
As fortunas avaliadas e n t r e 1 8 0 1 c 1 8 8 9 s o m a m 2 7 . 7 1 3 : 9 8 9 de réis. A média das
fortunas das várias categorias s ó c i o - c c o n ô m i c a s serve t ã o - s o m e n t e para definir sua
posição relativa. T r a t a - s e de u m q u a d r o m u i t o geral, q u e aparentemente não traz
surpresas: n o t o p o estavam os negociantes, n o degrau mais bairto os marítimos e pes-
cadores, gente c u j o o f í c i o não exigia grande qualificação e cujos rendimentos anuais
eram por certo inferiores aos dos artesãos.
i^TLlOD,N„ E I R O D O S B A , A S . O S

" " 6 1/

C o m m e n o s de 1 0 % dos invernar.™ ^-
cotai, o o u e c o n f i r m a r u d o o q u " l * * " ™ }» * * ~
s e n h o r d e e n g e n h o , a d e s p e i t o d e seu p o d e r ¡ Z ^ ^ T ^ ?
provinha a m a i o r parte dos políticos eles figuram

^ ^ S S S Z Z 5 0 : 0 0 0 d e r é i s
' m a s b e m í n L o
< à ¿
- :

C a b e o b s e r v a i q u e o q u a l i f i c a t i v o ' i n d u s t r i a l ' é a m b í g u o , sobretudo consideran-


do-se a i n c i p i e n c i a d a s a t i v i d a d e s i n d u s t r i a i s na B a h i a da é p o c a . D e fato eram as
sim q u a l i f i c a d o s o s p r o p r i e t á r i o s de p e q u e n a s e m p r e s a s de t o d o tipo: n u m único
caso era u m a f á b r i c a d e t e c i d o s , e m dois tratava-se de m a n u f a t u r a s de charutos e
c i g a r r o s ; o m a i s e r a m o l a r i a s , s a b o a r i a s e destilarias. A t é o n d e p u d e averiguar, todos
esses e m p r e s á r i o s , e x c e t o o s d a s o l a r i a s , e r a m t a m b é m c o m e r c i a n t e s cuja atividade
'industrial' suplantara a comercial, sem c o n t u d o suprimi-la.

TABELA 112

HIERARQUIA SÓCIO-ECONÔMICA, 1 8 0 1 - 1 8 8 9 (EM CONTOS DE RÉIS)


CATEGORIAS N % N I %I X
Negociantes 108 9.7 9.218:725 33.3 85:359

Industriais 13 1.2 888:076 3,2 68:314

Profissionais liberais 19 1,7 1.192:636 4,3 62:770

Senhores de engenho 17 1.5 988:085 3,6 58:123

Rentistas 310 27,8 9.841:822 35,5 31:748

Donos de barcos 6 0.5 126:246 0,4 21:041

Comerciantes 1.479:986 5,3 20:274


73 6,5

1.486:712 5,4 19:060


Proprietários agrícolas 78 7,0
306:843 1.1 13:340
Padres 23 2,0

Funcionários 14 1,2 180:362 0,6 12:882

150:487 0,5 10:749


Oficiais subalternos 14 1.2
185:664 0,7 10:315
Oficiais superiores 18 1.6
295:984 1.0 9:249
AftCtSofl 32 2.9
4.8 3:530
Sem ocupadlo :uh 33,9 1.334:475
37:H88 0.1 3:157
Marítimos 12 1.0
27.713:989 100,0 24:856
'lota! 1.115 100,0
• soma dos
N número de invcniáriCM ; % N - percentagem sobre o número de inventario!; 2 nventários. valore, inventariados;
% X • percentagem «obre a «orna do, valore, inventariado.,; X - mddia do, valore, do, 1

O s profissionais liberais - categoria c o m p o s t a sobretudo de advogados e médic


- eram, c m geral, filhos o u netos de senhores de engenho, de ¿¡2
c o m e r c i a n t e s ricos, de magistrados e de altos funcionários. Muitos n a c hesitavam
618 BAHIA, SÉCULO X I X

arriscar, ern aventuras c o m e r c i a i s o u bancárias o u e m a l g u m o u t r o n e g ó c i o da moda


o d i n h e i r o de q u e d i s p u n h a m , h e r d a d o da família e a n g a r i a d o n o exercício de sua
profissão. Eles n ã o viviam de fato de sua atividade p r o f i s s i o n a l : quase todos exerciam
f u n ç ã o p ú b l i c a , r e m u n e r a d a c o m salário o u e m o l u m e n t o s ; eram d e p u t a d o s , professo-
res (da F a c u l d a d e de M e d i c i n a , da E s c o l a N o r m a l e d o L i c e u P r o v i n c i a l ) , m e m b r o s ou
fiscais d o C o n s e l h o de E d u c a ç ã o , fiscais de s a ú d e . E s t a lista n ã o é exaustiva. Encontra-
m o s e n t r e eles até u m d i r e t o r d o Passeio P ú b l i c o . Esse a c ú m u l o de u m a variedade de
ocupações — q u e m e p a r e c e ter c o m e ç a d o d u r a n t e o I m p é r i o e m decorrência do
elevado prestígio associado ao s a b e r — n ã o c h o c a v a n i n g u é m . D o t o p o à base da escala
das f o r t u n a s , a s o c i e d a d e estava h a b i t u a d a a o e x e r c í c i o de f u n ç õ e s e o f í c i o s múltiplos,
prática q u e p e r m i t i a a alguns s o b r e v i v e r e a o u t r o s e n r i q u e c e r para m a n t e r sua posição;
e q u e se t r a n s m i t i u , c o m o u m a h e r a n ç a n e g a t i v a , p o r m u i t a s gerações de baianos,
dispersando suas c a p a c i d a d e s , i m p e d i n d o - o s de d a r sua p l e n a m e d i d a n u m a só função,
n u m só o f í c i o .

M a i s de 2 5 % dos i n v e n t á r i o s c o r r e s p o n d e m à c a t e g o r i a dos q u e viviam de rendas.


C a b e assinalar desde j á , p o r é m , q u e , salvo n o c a s o das apólices d a dívida pública
(emitidas pelo g o v e r n o c e n t r a l o u p r o v i n c i a l ) , n ã o se tratava de rendas constituídas
pelo E s t a d o o u vitalícias ( q u e aliás p a r e c e m n ã o t e r s i d o l e g a l m e n t e praticadas na
B a h i a ) . D e fato, e r a m s o b r e t u d o r e n d i m e n t o s a n u a i s variáveis, provenientes fosse do
aluguel de i m ó v e i s e escravos o u dos j u r o s s o b r e e m p r é s t i m o s feitos a terceiros, fosse
de ações, apólices e d e p ó s i t o s b a n c á r i o s .

B o a parte dos q u e v i v i a m de rendas era f o r m a d a p o r e x - n e g o c i a n t e s e comercian-


tes. D e f a t o , n ã o é possível ir m u i t o a l é m d i s t o n a i d e n t i f i c a ç ã o dos c o m p o n e n t e s desta
categoria, à falta de i n f o r m a ç õ e s s o b r e suas idades e profissões. E m 1 . 1 1 5 inventários,
apenas dois a p o s e n t a d o s — u m m a j o r d o E x é r c i t o e u m professor p r i m á r i o — tiveram
sua atividade p r i n c i p a l referida. É possível p o r t a n t o q u e houvesse nesse grupo pessoas
q u e , t e n d o h e r d a d o f o r t u n a s , v i v i a m de suas r e n d a s . C o m o era de esperar, as mulheres
eram m u i t a s nessa c a t e g o r i a ( 4 4 , 5 % ) , e b o m n ú m e r o delas geria bens de valor superior
a várias dezenas de c o n t o s , c h e g a n d o à c e n t e n a . 8

Além de mulheres e h o m e n s d e t e n t o r e s de f o r t u n a s consideráveis — a maioria dos


que viviam de rendas t i n h a m f o r t u n a s de mais de 1 0 : 0 0 0 de réis, donde a média
elevada de 3 0 : 0 0 0 dc réis — , figuravam t a m b é m nessa categoria fortunas menores e
até algumas na faixa dos 1 : 0 0 0 a 2 : 0 0 0 de réis. É que o g r u p o abrangia os que viviam
apenas do trabalho dc seus escravos o u da agiotagem, isto é, h o m e n s e mulheres que
faziam dessas duas atividades verdadeiras profissões. É interessante, aliás, mostrar
c o m o essas práticas evoluíram no t e m p o , a c o m p a n h a n d o os cortes cronológicos.
C o m o se vê, 1 3 8 mulheres ( 2 1 % ) c 1 7 2 h o m e n s ( 2 8 % ) declararam explicitamente
viver do j u r o sobre e m p r é s t i m o s ou do trabalho de seus escravos, percentuais que
c o n f i r m a m o que já foi dito sobre a estrutura do mercado de Salvador. Homens e
mulheres que alugavam escravos situavam-se n u m a faixa de fortuna que em geral não
ultrapassava os 1 0 : 0 0 0 dc réis. M a s havia mais mulheres que homens entre os que
619

v^UMUROS ABSOLUTOS)
PERÍODOS
HOMENS
MULHERES
. AGIOTAGEM ALUGUEI. 71, n

1. 1801-1889 7 7 ~ W A O E M ALUGUEL
37 1 2
13 16
2. 1801-1850 j 4 ~
1851-1889 23 4 '3
3
3. 1801-1821 6

1822-1845 77 3 1
2
1846-1860 15 4 4
3
1861-1889 9
3
3
4. 1853-1857 10
7 4
1881-1885 3
1

v i v i a m d o t r a b a l h o d e s e u s e s c r a v o s . P r o v a v e l m e n t e seu n ú m e r o real era ainda maior,


a j u l g a r p e l a s m u i t a s d e c l a r a ç õ e s c o n t i d a s nas cartas de alforria. Nelas, os senhores
e v o c a v a m , p o r v e z e s c o m o r e c o n h e c i m e n t o , os a n o s q u e o escravo g a n h a d o r ' passara
a c o r r e r as r u a s d a c i d a d e e m b u s c a d e u m a paga p o r u m trabalho mais ou menos
especializado o u v e n d e n d o alguma coisa.
P o r o u t r o l a d o , as m u l h e r e s p u n h a m m e n o r n ú m e r o de escravos para trabalhar
q u e os h o m e n s : q u a s e n u n c a m a i s de u m o u d o i s , e m geral do sexo f e m i n i n o , que
v e n d i a m d o c e s , q u i t u t e s v a r i a d o s , b e b i d a s e b o r d a d o s de p o r t a em porta. A mercadoria
era p r e p a r a d a p e l a p r o p r i e t á r i a e m p e s s o a , q u e , t e n d o u m a posição social a manter,
n ã o p o d i a ser e x p o r , v e n d e n d o - a nas ruas para assegurar seu sustento. O s homens, ao
c o n t r á r i o , t e n d i a m a a l u g a r o s s e r v i ç o s d e escravos d o sexo m a s c u l i n o , em geral qua-
l i f i c a d o s , e m n ú m e r o q u a s e n u n c a i n f e r i o r a dois e j a m a i s superior a quatro. Um
m e s m o s e n h o r p o d i a a l u g a r e s c r a v o s c o m diferentes ofícios, de barbeiro a pintor, mas
t o d o s a p t o s a t r a b a l h a r a t é c o m o c a r r e g a d o r , se as circunstâncias o exigissem. Por
o u t r o l a d o , os d a d o s d a t a b e l a 1 1 3 i n d i c a m q u e os escravos serviam c o m o meio de
s u b s i s t ê n c i a ' s o b r e t u d o n a p r i m e i r a m e t a d e d o s é c u l o , q u a n d o essa mão-de-obra ainda
era a b u n d a n t e , seu p r e ç o b a i x o e o m e r c a d o n ã o c o m e ç a r a a se mostrar reticente em
relação ao t r a b a l h o e s c r a v o . A partir de m e a d o s d o século essa fonte de renda parece
ir s e c a n d o , para p r o v a v e l m e n t e se esgotar p o r c o m p l e t o após 1 8 7 0 .
E m p r é s t i m o s , t a m b é m e n c o n t r a d o s c o m o fontes exclusivas de renda, gpanaama
subsistência de 1 0 % das m u l h e r e s e de 2 1 % dos h o m e n s ^ u e
' v m a m
^ ^ ^ s
ú l t i m o s se m o s t r a v a m , pois, mais dispostos a correr riscos, pois o rece i _ ^ ^
créditos — p o r vezes s o m a s ridículas, de um ou dois mil réis — nao " ^ ^ ' ^
despeito da h o n e s t i d a d e d o b a i a n o , q u e considerava p o n t o de honra o paga ^
dívidas, m e s m o q u a n d o sabia q u e estava sendo esfolado vivo por um agiota, p
não ter i n f o r m a ç õ e s regulares sobre as taxas consideradas usurárias, e m o que
ultrapassavam 2 0 % ao a n o .
620 BAHIA, SÉCULO X I X

C o n t r a í a m - s e e m p r é s t i m o s m u i t a s vezes para e n f r e n t a r u m a necessidade premen-


te, s e m p r e de b o a fé, a c r e d i t a n d o - s e q u e p o d e r i a m ser c o b e r t o s pelos b e n s disponíveis,
o u s u p o n d o q u e se p o d e r i a pagar q u a n d o as c o n d i ç õ e s m e l h o r a s s e m . M a s q u a n d o os
b e n s e r a m m e d í o c r e s ( a b a i x o de 1 : 0 0 0 de r é i s ) , isso resultava e m h e r a n ç a negativa (nos
p e r í o d o s a n a l i s a d o s , e n c o n t r e i d e z e n o v e casos d e s s e s ) . P o r fim, c a b e observar que, a
partir de 1 8 5 0 , a u m e n t o u o n ú m e r o de h o m e n s q u e v i v i a m dos j u r o s de empréstimos,
ao passo q u e o de m u l h e r e s b a i x o u . E s s a d i f e r e n ç a d e c o m p o r t a m e n t o traduz prova-
v e l m e n t e o f a t o de q u e , de m e a d o s d o s é c u l o e m d i a n t e , os riscos a u m e n t a r a m , sen-
t i n d o - s e os h o m e n s m a i s a p t o s a e n f r e n t á - l o s , m a s n ã o h á d a d o s q u e p e r m i t a m afirmá-
lo c a t e g o r i c a m e n t e .

A despeito d o a m p l o l e q u e das f o r t u n a s dessa c a t e g o r i a (de c e n t e n a s de milhares de


réis a várias dezenas de c o n t o s de réis) e das d i f e r e n ç a s n a o r i g e m dos recursos em jogo,
sua participação n a f o r t u n a g l o b a l b r u t a era de 3 5 , 5 % , o q u e l h e conferia indiscutível
primeiro lugar e n t r e as d e m a i s . N e g o c i a n t e s e pessoas q u e viviam d e rendas respondiam
pois, em c o n j u n t o , p o r 6 8 , 8 % d a f o r t u n a g l o b a l dos i n v e n t á r i o s pesquisados.

O fato de m u i t o s n e g o c i a n t e s a p o s e n t a d o s , c o m g r a n d e s f o r t u n a s ( m a i s de 5 0 : 0 0 0
de réis), o u suas viúvas, se i n c l u í r e m e n t r e os q u e v i v i a m de r e n d a s explica o peso da
f o r t u n a dessa c a t e g o r i a :

TABELA 114
NEGOCIANTES E EX-NEGOCIANTES, 1801-1889

N %N X . X %IR'

Negociantes 108 9,7 2


9.218:725 85:359

Ex-negociantes 49 15.8 3
6.250:721 127:565 63.5

(1) Percentagem sobre o somatório das fortunas dos rentistas; (2) percentagem sobre o total dos inventários; (3) percentagei
sobre os inventários dos rentistas.

Assim, 6 3 , 5 % d a f o r t u n a dos q u e v i v i a m d e r e n d a s c o r r e s p o n d i a m às fortunas de


negociantes a p o s e n t a d o s o u de suas viúvas, c o m b o m e q u i l í b r i o e n t r e os sexos: regis-
trei 2 5 h o m e n s ( c o m 3 . 2 3 9 : 1 1 3 d e réis) p a r a 2 4 m u l h e r e s ( c o m 3 . 0 1 1 : 6 0 8 de réis).
E m c o n t r a p a r t i d a , o q u e os d o i s sexos d e i x a v a m a seus herdeiros era sensivelmente
diferente, se s u b t r a í m o s do total as dívidas e m passivo q u e i n c i d i a m sobre as heranças:
em 2 4 inventários referentes a m u l h e r e s , seis c o n t i n h a m dívidas c u j a média se situava
em t o r n o dos 1 0 % dos haveres. R e g i s t r e i u m a ú n i c a e x c e ç ã o : em 1884 faleceu
H e r m c l i n d a da C o s t a F e r r a r o , d e i x a n d o u m a h e r a n ç a de 1 5 9 : 1 5 7 de réis e dívidas —
aliás, herdadas do m a r i d o , Luiz F e r r a r o , falecido em 1 8 8 1 — n o valor de 7 5 : 9 1 0 de
réis, o que significa q u e quase 4 8 % da h e r a n ç a se destinavam ao p a g a m e n t o de dívi-
das. 1 0
J á M a r i a Lopes Ariani, outra rica herdeira, falecida t a m b é m em 1 8 8 4 , deixou
u m a fortuna de 2 1 9 : 9 3 6 de réis c dívidas de 5 : 1 1 8 de réis. M a s seu marido, Justo
Ariani, m o r t o c m 1 8 8 3 , lhe deixara 3 3 7 : 2 8 1 de réis líquidos, após o pagamento de
5 3 : 6 9 7 de réis de d í v i d a s . 11
621

E m passivo o u e m a t i v o , a p a r e c i a m dívidas e m quase todos os inventários de mer-


cadores e c o m e r c i a n t e s . V o l t a r e m o s a i s t o . D í v i d a s a pagar eram ainda mais freqüentes
nos . n v e n t á r i o s d o s n e g o c i a n t e s , a p a r e c e n d o e m cerca de 2 3 % deles. C o e l h o Messeder
falecido e m 1 8 6 9 , d e i x o u b e n s n o v a l o r de 7 7 : 1 8 6 de réis e dívidas de 4 9 3 6 4 de réis
( 6 3 . 9 % d o s h a v e r e s ) . C o u b e a s s i m , à f a m í l i a , u m saldo de 2 7 : 8 2 2 de réis, o q u e fazia
dessa viúva d e u m n e g o c i a n t e p o r t u g u ê s , s e n ã o u m a p o b r e t o n a , alguém que devia
resignar-se a p a d r õ e s d e v i d a b e m m a i s m o d e s t o s q u e os até e n t ã o desfrutados, c o m o
ela m e s m a a d m i t i u , c o m t r i s t e z a . 1 2
O s altos p e r c e n t u a i s de dívida significam, aliás,
que esses h o m e n s n ã o se t i n h a m d e s l i g a d o p o r c o m p l e t o dos n e g ó c i o s .

O s p r o p r i e t á r i o s d e e m b a r c a ç õ e s e r a m e x a t a m e n t e o q u e seu n o m e indica: pos-


suíam b a r c o s d e p o r t e m é d i o — l a n c h a s , s u m a c a s e saveiros q u e singravam, transpor-
t a n d o m e r c a d o r i a s , as águas d o R e c ô n c a v o , o u m e s m o águas mais distantes. A surpresa
neste c a s o é s e u p e q u e n o n ú m e r o , u m a vez q u e a c i d a d e vivia de seu p o r t o . Auxiliares
do c o m é r c i o , esses d o n o s de b a r c o s f o r m a v a m e n t r e t a n t o u m a categoria à parte, a dos
t r a n s p o r t a d o r e s , q u e o C ó d i g o C o m e r c i a l d i s t i n g u i a das demais classes c o m e r c i a i s . 13

O n ú m e r o d o s c o m e r c i a n t e s p a r e c e p e q u e n o e m relação ao dos negociantes por-


que só p u d e i n c l u i r n e s t a c a t e g o r i a i n v e n t á r i o s a c o m p a n h a d o s de testamentos, ou
de q u e c o n s t a v a m i n f o r m a ç õ e s precisas — p o r e x e m p l o , sobre a existência de um
estoque d e m e r c a d o r i a s — q u e p e r m i t i s s e m classificá-los c o m o referentes a comer-
ciantes. S u s p e i t o , aliás, q u e a c a t e g o r i a dos 'sem o c u p a ç ã o ' i n c l u í a m u i t o s pequenos
c o m e r c i a n t e s n ã o i d e n t i f i c a d o s . O s q u e p u d e registrar e r a m de todos os calibres, de
lojistas b e m i n s t a l a d o s e m e s t a b e l e c i m e n t o s sortidos a taberneiros e até ambulantes.
C o m 6 , 5 % d o s i n v e n t á r i o s e 5 , 3 % d a f o r t u n a g l o b a l , esse m u n d i n h o de lojistas e
a m b u l a n t e s fazia b o a figura: sua f o r t u n a m é d i a superava a dos proprietários agríco-
las, q u e c u l t i v a v a m c a n a - d e - a ç ú c a r , f u m o o u g ê n e r o s de subsistência.

As q u a t r o c a t e g o r i a s s e g u i n t e s (padres, f u n c i o n á r i o s , oficiais subalternos e supe-


riores) e r a m i n t e g r a d a s p o r assalariados d o E s t a d o . É preciso lembrar, porém, que um
f u n c i o n á r i o p o d i a h e r d a r , o u fazer f o r t u n a p o r o u t r o s m e i o s . As médias das fortunas
dessas categorias e r a m a p a r e n t e m e n t e m u i t o p r ó x i m a s . E n t r e a fortuna média de um
funcionário e a de u m padre a d i f e r e n ç a era d e apenas 3 , 5 % , embora algumas diferen-
ças alcançassem p e r c e n t u a i s n ã o i n s i g n i f i c a n t e s , s o b r e t u d o n o tocante aos militares
( 2 4 , 1 % para os oficiais s u b a l t e r n o s e 2 9 , 3 % para os de alta patente).
Esses n ú m e r o s n ã o refletem a realidade. T o m a r e i em primeiro lugar o g r u p o J
c o n h e c i d o dos padres. E l i m i n a n d o as seis fortunas de padres que superavam os 2 0 :
de réis — todas de m e m b r o s de famílias importantes — , c t a m b é m as quatro inferiores
a 2 : 0 0 0 de réis, t a m b é m excepcionais por sua exiguidade, o b t e m o s , para o clero, uma
média de 8 : 1 0 2 de réis, m u i t o inferior à das categorias dos funcionários e dos oriciais.
D e v o explicar, p o r é m , de que funcionários estou falando. Entre os inventários
referentes a essa categoria q u e examinei, apenas dois eram de altos funcionários; os
demais eram de escriturários, professores primários, guardas alfandegários ou gente
qualificada simplesmente c o m o 'funcionário público', ou 'funcionário da alfândega,
622

sem m a i o r e s e s p e c i f i c a ç õ e s . A l i á s , a c a t e g o r i a ' f u n c i o n á r i o * s ó a p a r e c e nessa d o c u m e n -


tação a partir de 1 8 2 1 , e não c o m m u i t a freqüência.
N e s s a c a t e g o r i a e n c o n t r e i t r ê s f o r t u n a s de m a i s 3 0 : 0 0 0 de réis: a de B e r n a r d o
R o d r i g u e s F e r r e i r a , e x - m o n g e e e x - p r i o r d o C o n v e n t o d o C a r m o , q u e foi auxiliar de
c a r t ó r i o e c a p i t ã o das m i l í c i a s , m o r t o e m 1 8 3 1 ; a d o d e s e m b a r g a d o r e deputado
p r o v i n c i a l e m várias l e g i s l a t u r a s J o ã o L a d i s l a u J a p i a s s u F i g u e i r e d o e M e l l o , falecido
em 1 8 8 5 ; e a do funcionário alfandegário — a que título? — L u i z M a r t i n s Alves,
morto em 1886. 1 4

T o d a s as d e m a i s f o r t u n a s v a r i a v a m e n t r e 4 0 0 . 0 0 0 réis e 1 9 : 2 8 9 de réis. As mais


m i n g u a d a s e r a m as d o s p r o f e s s o r e s ; u m d e l e s , pai d e f a m í l i a n u m e r o s a , d e i x o u dívidas.
Aliás, pai d e f a m í l i a n u m e r o s a e r a t a m b é m o fiscal a l f a n d e g á r i o e c a p i t ã o da Guarda
N a c i o n a l , J o s é E g í d i o N a b u c o , c o m s e u s d o z e filhos e d u a s filhas, a m a i s n o v a c o m dez
meses e a m a i s v e l h a c o m d e z e n o v e a n o s ! A v i ú v a e a seus c a t o r z e filhos — q u a t r o dos
q u a i s f r u t o s d e u m p r i m e i r o c a s a m e n t o — J o s é E g í d i o d e i x o u b e n s n o v a l o r de 1 9 : 2 9 0
de réis: u m b o m s o b r a d o , a v a l i a d o e m 1 2 : 0 0 0 d e réis, u m r i c o m o b i l i á r i o , de que
c o n s t a v a u m p i a n o P l e y e l a v a l i a d o e m 4 2 0 . 0 0 0 réis, f a q u e i r o s e b a i x e l a s de prata no
v a l o r de 3 : 6 0 5 d e réis, s e m c o n t a r 1 : 3 8 5 d e réis e m d i n h e i r o e t r ê s escravos homens
avaliados e m 2 : 3 0 0 d e r é i s . M a s as d í v i d a s s o m a v a m 4 : 8 0 8 d e réis. C a s a d o em regime
de c o m u n h ã o de b e n s , d e i x o u à m u l h e r b e n s n o v a l o r d e 7 : 0 5 3 d e réis, a m e t a d e do
total l í q u i d o . O q u e r e s t o u p a r a c a d a filho n ã o p a s s o u , p o r t a n t o , de 5 0 0 . 0 0 0 r é i s . 15

N ã o sei c o m o essa f a m í l i a v i v e u a p ó s a m o r t e d e s e u c h e f e . T e r á s i d o a j u d a d a pelas


famílias J u n q u e i r a , C a v a l c a n t i e N a b u c o , q u e t i n h a m b o a p o s i ç ã o n a cidade?

E x p u r g a n d o as f o r t u n a s e x c e p c i o n a l m e n t e altas o u b a i x a s d a c a t e g o r i a dos funcio-


nários p ú b l i c o s , c o m o foi f e i t o n o c a s o d o s c l é r i g o s , c h e g a - s e a u m a m é d i a de 8 : 1 2 9 de
réis, q u a s e i d ê n t i c a à q u e o b t i v e m o s n a q u e l e c a s o .
R e s t a a ú l t i m a c a t e g o r i a desse c o n j u n t o de f u n c i o n á r i o s : a d o s oficiais. N a d a mais
difícil d o q u e d i s t i n g u i r os t í t u l o s m i l i t a r e s c o n f e r i d o s pela G u a r d a N a c i o n a l , o Exército
e a M a r i n h a , razão pela q u a l só c o n s i d e r e i a q u e l e s h o m e n s c u j a v i n c u l a ç ã o c o m as for-
ças a r m a d a s n ã o dava m a r g e m a d ú v i d a . P o d e s u r p r e e n d e r q u e os oficiais subalternos
t e n h a m sido classificados a c i m a dos s u p e r i o r e s , q u a n d o as m é d i a s d e suas fortunas eram
p r a t i c a m e n t e iguais: 1 0 : 7 1 9 de réis p a r a os s u b a l t e r n o s e 1 0 : 3 1 5 para os de alta pa-
t e n t e . M a s a e x p l i c a ç ã o é s i m p l e s : a n a l i s a n d o os i n v e n t á r i o s referentes às duas categorias
de oficiais s e g u n d o o s c o r t e s c r o n o l ó g i c o s e s t a b e l e c i d o s c o m base na c o n j u n t u r a obser-
va-se q u e , c m p r i m e i r o lugar, s e g u n d o o p e r í o d o c o n s i d e r a d o eles se c o l o c a m diferen-
t e m e n t e na escala h i e r á r q u i c a baseada na f o r t u n a m é d i a de cada u m a ; em segundo
lugar, nos diversos períodos os oficiais subalternos eram recrutados em meios diferentes.

N o s dois primeiros períodos ( 1 8 0 1 - 1 8 2 1 c 1 8 2 2 - 1 8 4 5 ) , os oficiais de alta patente


situavam-se n ã o só a b a i x o dos s u b a l t e r n o s , c o m o t a m b é m na base dessa escala eco-
n ô m i c a . E r a m todos portugueses, c o m a exceção do m a j o r M a n o e l G o m e s de Figueiredo.
N a s c i d o e m Salvador, mas t a m b é m filho de português, ele m o r r e u em 1 8 2 8 , deixando
u m a fortuna avaliada em 5 : 6 2 0 de réis, dos q u l i s 3 : 1 3 7 estavam c o m p r o m e t i d o s por
LIVRO VIIDÍNHE.RO DOS BMANOS 623

d.v.das. A s s i m , rio m i c o d o s é c u l o , os a l t o s p o s t o s m i l i t a r e s eram o c u p a d o s p o r


portugueses q u e u n h a m v . n d o s e r v i r n o s e x é r c i t o s reais e a q u i ficaram depois da
I n d e p e n d ê n c i a . S u a f o r t u n a e r a m e d í o c r e , c o m o d e m o n s t r a r e i c o m p a r a n d o d o i s casos
de o f i c i a i s d e a l t a p a t e n t e c o m d o i s d e o f i c i a i s s u b a l t e r n o s n a s c i d o s n o Brasil
O t e n e n t e - c o r o n e l F r a n c i s c o J o s é d a S i l v a , n a s c i d o e m L i s b o a , veio para a B a h i a
c o m a m u l h e r p a r a s e r v i r n o E x é r c i t o real e m d a t a q u e i g n o r o . M o r r e u e m Salvador,
em 1 8 1 5 , d e i x a n d o u m t e s t a m e n t o e s c r i t o d i a s a n t e s . A f ó r m u l a In Nomine Domine
não é a c o m p a n h a d a d e i n v o c a ç õ e s e s p e c i a i s a o s s a n t o s d a c o r t e celeste o u a M a r i a
c o m u n s n o s t e s t a m e n t o s d a é p o c a — , e m b o r a n ã o se p o s s a acusar o oficial de falta de
piedade: r e c o m e n d o u q u e m a n d a s s e m r e z a r 2 5 m i s s a s p e l o r e p o u s o de sua a l m a , dez
pela a l m a d e seus p a i s e p e l a d a q u e l e q u e o e d u c a r a , m a i s d e z p o r sua finada esposa.
Seu c o r p o d e v e r i a s e r c o n d u z i d o p o r q u a t r o p o b r e s a t é a s e p u l t u r a , n a igreja de Nossa
S e n h o r a de P a l m a . M a s a h e r a n ç a q u e o t e n e n t e - c o r o n e l F r a n c i s c o J o s é d e i x o u aos
quatro a f i l h a d o s , v i s t o q u e n ã o t i n h a filhos, r e s u m i a - s e a b e m p o u c a coisa: u m a casa
térrea s i t u a d a a t r á s d a i g r e j a d e S a n t o A n t ô n i o d a M o u r a r i a , n a p a r ó q u i a de S a n t A n n a ,
valendo 3 0 0 . 0 0 0 réis, u m e s c r a v o h o m e m a v a l i a d o e m 1 5 0 . 0 0 0 réis, 2 7 . 0 0 0 em m ó -
veis, 2 2 . 0 0 0 e m j ó i a s , 2 4 . 0 0 0 e m o b j e t o s d e p r a t a e 2 . 0 0 0 e m r o u p a s , n u m total de
5 2 5 . 0 0 0 réis, d o s q u a i s d e v e r i a m ser d e d u z i d o s 1 9 8 . 0 0 0 réis referentes a dívidas. E r a ,
sem d ú v i d a , u m a f o r t u n a b e m m o d e s t a p a r a u m o f i c i a l de alta p a t e n t e . 1 7
T e r i a ele u m a
pensão? F a r i a s e u e s c r a v o t r a b a l h a r f o r a de casa? N ã o s a b e m o s .
Já o capitão M a n o e l Carlos G o m e s , falecido em 1 8 0 3 , d e i x o u à sua m u l h e r ,
Leonor M a g d a l e n a dos Reis, e aos c i n c o filhos, 1 3 : 8 3 0 de réis, u m a p e q u e n a , mas
não desprezível, f o r t u n a n a q u e l e i n í c i o de s é c u l o . N a s c i d o na B a h i a , casado c o m uma
baiana, era p r o p r i e t á r i o d e u m a f a z e n d a n o vale d o J a g u a r i b e o n d e , c o m a ajuda de
2 4 escravos, avaliados e m 2 : 8 7 5 d e réis, c r i a v a b o v i n o s e, s o b r e t u d o , cuidava de uma
plantação de três m i l c o q u e i r o s , a v a l i a d a e m 6 : 1 1 8 d e réis. U m a vez na reserva,
passara a m o r a r na f a z e n d a , o n d e d e i x o u , c o m o sucessor, o t e n e n t e J o a q u i m Carlos
G o m e s , seu ú n i c o filho v a r ã o . T r ê s d e suas q u a t r o filhas estavam casadas. Suas terras
tinham sido avaliadas e m 2 : 5 0 0 de réis, a casa e m q u e m o r a v a em 6 0 0 . 0 0 0 réis, uma
canoa e u m a l a n c h a e m 2 2 . 0 0 0 e 7 0 0 . 0 0 0 réis, respectivamente, e seu gado em 3 2 9 . 0 0 0
réis. A fazenda t i n h a a i n d a sete senzalas avaliadas e m 1 2 . 0 0 0 réis e uma casa de
farinha avaliada em 3 2 . 0 0 0 réis. O m o b i l i á r i o , sem ser rico, era confortável: camas,
cadeiras, mesas e b a n c o s de j a c a r a n d á , dois baús para guardar roupas e o indispensá-
vel o r a t ó r i o , c o m as i m a g e n s dos santos padroeiros da família. Esse mobiliário era
completado por utensílios de c o b r e para c o z i n h a , faqueiro e baixela de prata e oas
louças, avaliados e m c o n j u n t o e m 2 0 3 . 0 0 0 réis. E n t r e esses bens, são dignos de nota
2 3 6 . 0 0 0 réis e m jóias e roupas e 2 9 3 . 0 0 0 réis de dívidas em ativo, o q u e j ^ v a a
abastança em q u e vivia esse c a p i t ã o da reserva transformado em fazendeiro ou ja
seria antes de entrar para o E x é r c i t o ? 18
„ • i t a

Estes dois casos são típicos da diferença existente entre o oficial portugue*,de
Patente, que p e r m a n e c i a p o b r e , e o oficial baiano subalterno, que, graças âs s
624 BAHIA, SÉCULO X I X

locais, s e m p r e d e t i n h a b e n s s e m relação c o m os p o s t o s q u e o c u p a v a nas forças arma-


das. É p r e c i s o dizer, a d e m a i s , q u e u m a p a t e n t e m i l i t a r , p o r m o d e s t a q u e fosse, conferia
prestígio social s u p l e m e n t a r , a j u d a n d o a p r o m o ç ã o da f a m í l i a e p e r m i t i n d o à segunda
g e r a ç ã o ingresso fácil n o serviço real.
E m 2 6 de agosto de 1 8 4 0 , m o r r e u o t e n e n t e - c o r o n e l F r a n c i s c o S i m õ e s O n o v o
n a s c i d o e c r i a d o e m P o r t u g a l . S e u t e s t a m e n t o revela q u e se c a s o u duas vezes, ambas no
país n a t a l , e das s e g u n d a s n ú p c i a s teve duas f i l h a s . A p r i m e i r a , q u e falecera antes do
pai, d e i x a r a - l h e u m n e t o e h e r d e i r o , B r á u l i o ; a s e g u n d a , s o l t e i r a , vivia c o m os pais.
M o r a v a m n u m s o b r a d o avaliado e m 1 : 6 0 0 de réis, c o m m ó v e i s n o valor de 4 9 . 6 6 0
réis. T i n h a m 1 6 1 . 0 0 0 réis e m j ó i a s e 1 : 1 0 0 d e réis e m escravos. Estes eram adultos,
dois h o m e n s e duas m u l h e r e s ; u m deles f o i a l f o r r i a d o p o r c l á u s u l a t e s t a m e n t á r i a , mas
p o r 2 0 0 . 0 0 0 réis. N o t o t a l , os b e n s s o m a v a m 2 : 9 1 0 de réis. O t e n e n t e - c o r o n e l morreu
sem deixar dívidas, m a s a v i ú v a e a filha f i c a r a m s e m r e n d a a l g u m a , e x c e t o a pensão,
c u j o m o n t a n t e se i g n o r a , p o i s n ã o f o i m e n c i o n a d o , c o n f o r m e o c o s t u m e da é p o c a . 19

O alferes A n t ô n i o G i l G a r c i a P a c h e c o n a s c e u n a B a h i a , filho de A n t ô n i o Gil


G a r c i a B a r r e t o e Isabel F l o r i n d a de S á Q u e i r o z A z e v e d o , t a m b é m b a i a n o s . Casándo-
se c o m R o s a B r a s i d a M e n d e s B a r r e t o P a c h e c o , t o m o u o s o b r e n o m e d a m u l h e r . Isto
lhe p e r m i t i a d i s t i n g u i r - s e d o p a i , c u j o n o m e d e b a t i s m o h e r d a r a ; é provável que, por
u m a q u e s t ã o de p r e s t í g i o , t e n h a e s c o l h i d o o s o b r e n o m e da e s p o s a e m vez de um dos
d a própria m ã e . A o m o r r e r , d e i x o u à m u l h e r e aos filhos — duas m e n i n a s e um
m e n i n o , mais u m A n t ô n i o G i l G a r c i a ! — u m a f o r t u n a i m o b i l i á r i a considerável: três
sobrados — u m deles, a r e s i d ê n c i a d a f a m í l i a , c o m três p a v i m e n t o s — avaliados em
1 6 : 2 0 0 de réis; q u a t r o casas térreas n o v a l o r de 4 : 0 0 0 de réis, u m sítio nas cercanias da
cidade, p l a n t a d o c o m árvores f r u t í f e r a s , v a l e n d o 1 : 8 5 6 de réis. N o c o n j u n t o , um
p a t r i m ô n i o i m o b i l i á r i o de 2 2 : 0 5 6 d e réis. A n t ô n i o G i l t i n h a a i n d a 2 : 9 9 0 de réis em
escravos e 1 8 2 : 7 6 5 de réis e m e s p é c i e , 2 6 5 . 6 4 0 réis e m m ó v e i s e 7 9 . 3 8 8 réis em jóias.
U m a confortável h e r a n ç a de 2 5 : 5 7 4 de réis, t a n t o m a i s q u e os imóveis urbanos e o
sítio davam r e n d i m e n t o s , a q u e se s o m a v a o s o l d o a q u e o alferes t i n h a direito, na sua
c o n d i ç ã o de militar r e f o r m a d o . 2 0

É desnecessário c o t e j a r os p a r c o s b e n s d o t e n e n t e - c o r o n e l português c o m os do
alferes b a i a n o ; i m p o r t a a q u i ressaltar q u e n ã o se trata de casos excepcionais: tanto
entre 1 8 0 1 e 1 8 2 1 c o m o entre 1 8 2 2 e 1 8 4 5 , os oficiais s u b a l t e r n o s de origem baiana
tinham fortuna m é d i a m a i o r q u e a d o s oficiais de alta p a t e n t e , ainda que os últimos
pudessem gozar de m a i o r prestígio. A q u e s t ã o é saber q u e critérios a sociedade privile-
giava ao posicionar as categorias s ó c i o - e c o n ô m i c a s na hierarquia social.
A partir de 1 8 4 5 o p a n o r a m a m u d o u . C o m a I n d e p e n d ê n c i a e a partida do
Exército português, oficiais nascidos n o Brasil foram promovidos aos postos mais
elevados do c o m a n d o militar. N a Bahia, o n d e h o u v e luta armada contra o coloniza-
d o r , m u i t o s filhos de senhores de e n g e n h o que haviam feito serviço militar no Exército
real c o m o cadetes passaram rapidamente para o lado brasileiro e logo se tornaram
oficiais graduados do Exército nacional. E r a m das famílias Balthazar da Silveira, Sodre
LIVRO V I I - O D.N-HEIRO DOS BAI>
625

Pereira, F a l c ã o B r a n d ã o , V i l a s B o a s Pires de Carvalho e Albuquerque, Caldeira Brant


e Argolo Ferrão. A i n d a q u e n e m r o d a s f o s s e m m u i r o ricas, seus filhos s e m p r e possu m
alguns b e n s , p o r h e r a n ç a o u g r a ç a s a o c a s a m e n t o .

C a s o t í p i c o é o d o B a r ã o d e C a j a í b a , A l e x a n d r e G o m e s de A r g o l o F e r r ã o , filho de
Jose J o a q u i m d e T e . v e e A r g o l o e de M a r i a J o a q u i n a G o m e s Ferrão Castelo Branco
a m b o s d e s c e n d e n t e s d e f a m í l i a s i m p o r t a n t e s d o R e c ô n c a v o . N a s c i d o em 1 8 0 0 nó
e n g e n h o p a t e r n o d e M a t a r i p e , c o m s e t e a n o s A r g o l o F e r r ã o já era cadete d o E x é r c i t o
real. T e n e n t e e m 1 8 2 0 , foi p r o m o v i d o a m a j o r e m 1 8 2 4 e a t e n e n t e - c o r o n e l em 1 8 2 6
Em 1 8 5 2 reformou-se, c o m a patente de marechal. E m 1 8 5 9 , assim o descrevia a
C o n d e s s a d e B a r r a l : " F a m í l i a A r g o l o . B a r ã o d e C a j a í b a , d i s t i n t o cavalheiro, n i n g u é m
t e m m e l h o r e s m a n e i r a s , b o m m i l i t a r , p r e s t o u r e l e v a n t e s serviços d u r a n t e a Sabinada,
mas h o m e m m a u , a q u e m se a t r i b u i t e r a s s a s s i n a d o a sua m u l h e r e muitas outras
pessoas. N ã o q u e r o g r a ç a s c o m e l e . T e m u m b e l o e n g e n h o d e f r o n t e da vila de S. F r a n -
cisco." 2 1
O n d e a C o n d e s s a o u v i r a esses m e x e r i c o s q u e faziam de C a j a í b a o assassino de
sua esposa? A v e r d a d e é q u e , a o m o r r e r , ele d e i x o u u m filho l e g i t i m a d o , q u e tinha
n o m e igual a o s e u , e q u e , g r a ç a s a seus f e i t o s m i l i t a r e s , r e c e b e u o t í t u l o de V i s c o n d e de
I t a p a r i c a . E s t e p e r m a n e c e u s o l t e i r o e m o r r e u n o m e s m o a n o q u e o p a i , em 1 8 7 0 . 2 2

E s t e c a s o t e m u m a p e c u l i a r i d a d e : o B a r ã o d e C a j a í b a foi o ú n i c o s e n h o r de
e n g e n h o q u e c o n t i n u o u n a c a r r e i r a m i l i t a r a p ó s a I n d e p e n d ê n c i a e fez de seu filho
t a m b é m u m m i l i t a r . D e f a t o , o p o u c o p r e s t í g i o d e q u e gozava a c o r p o r a ç ã o militar
entre a d é c a d a de 1 8 3 0 e a G u e r r a d o P a r a g u a i fazia c o m q u e as elites da Bahia
preferissem o r i e n t a r o s filhos p a r a o e s t u d o de d i r e i t o o u d e m e d i c i n a . O s candidatos
às a c a d e m i a s m i l i t a r e s p a s s a r a m a ser r e c r u t a d o s nas classes m é d i a s altas, nas catego-
rias dos lojistas e n o s f u n c i o n á r i o s d e e s c a l ã o m é d i o . O s oficiais subalternos — geral-
m e n t e f o r m a d o s n a t r o p a , s e m p a s s a g e m pelas a c a d e m i a s militares — vinham das
classes m é d i a s . N ã o se e n c o n t r a e n t r e eles n e n h u m dos s o b r e n o m e s prestigiosos das
famílias i m p o r t a n t e s . S e esta a n á l i s e é c o r r e t a , h o u v e u m a reviravolta que explica por
q u e , após 1 8 4 5 , a c a t e g o r i a dos o f i c i a i s s u p e r i o r e s se s o b r e p ô s e c o n o m i c a m e n t e à dos
oficiais s u b a l t e r n o s .
F i n a l m e n t e , e x p u r g a n d o - s e das f o r t u n a s dos oficiais superiores e subalternos as
maiores de 2 0 : 0 0 0 de réis e as m e n o r e s de 2 : 0 0 0 de réis, o b t ê m - s e para essas quatro
categorias de f u n c i o n á r i o s as s e g u i n t e s f o r t u n a s m é d i a s : funcionários, 8 : 1 2 9 de réis,
padres, 8 : 1 0 2 ; o f i c i a i s s u b a l t e r n o s , 6 : 6 8 6 ; oficiais superiores, 6 : 6 1 6 .
A ligeira i n f e r i o r i d a d e da f o r t u n a m é d i a dos oficiais superiores em r
*' a ç a
°
subalternos, refletida neste q u a d r o , se deve ao fato de que, de 1801 a 1 8 4 5 , nao se
registrava entre os p r i m e i r o s n e n h u m a fortuna superior a 6 : 0 0 0 de réis. or outr
lado, f u n c i o n á r i o s e padres estavam e c o n o m i c a m e n t e mais bem-situados que os mi -
tares, o que talvez explique a pouca atração que esta carreira exercia.
E n t r e as três últimas categorias que distingui, duas envolvem pessoas que _
ciam ofício qualificado: os artesãos e o pessoal ligado ao mar. A seu respeito, q
fazer duas observações importantes. A primeira delas diz respeito aos artesãos, ,
626 BAHIA, SÉCULO XIX

f o r t u n a m é d i a ( 9 : 2 4 9 de réis) p o d e p a r e c e r alta. D e f a t o , n o p e r í o d o 1 8 6 1 - 1 8 8 9 , os
artesãos estavam à f r e n t e n ã o só dos m a r í t i m o s c o m o d o s s e n h o r e s de e n g e n h o , dos
oficiais superiores, dos padres e dos f u n c i o n á r i o s . O r a , m e s m o q u a n d o eram emprei-
teiros, eles d e i x a v a m f o r t u n a s d e n o m á x i m o 2 0 : 0 0 0 de réis; e s t a m o s d i a n t e de um
a b s u r d o e s t a t í s t i c o , d e c o r r e n t e d e u m a e x c e ç ã o : e m 1 8 8 3 , o ourives p o r t u g u ê s A n t ô -
n i o M a r t i n s de O l i v e i r a N e v e s d e i x o u à sua m u l h e r u m a h e r a n ç a de 1 2 1 : 1 5 6 de réis.
As j ó i a s de sua o f i c i n a , c o n t u d o , r e p r e s e n t a v a m a p e n a s 6 : 7 5 0 d e réis, 5 , 6 % desse
m o n t a n t e . O s o u t r o s h a v e r e s e r a m b e n s i m o b i l i á r i o s ( 4 0 : 5 0 0 de r é i s ) , e n t r e os quais
u m s o b r a d o na rua dos O u r i v e s , n a C i d a d e B a i x a , e s o b r e t u d o u m d e p ó s i t o de 6 0 : 0 0 0
de réis n o B a n c o M e r c a n t i l . H a v i a a i n d a 5 4 8 . 0 0 0 réis e m e s p é c i e , 6 5 8 . 0 0 0 réis em
m ó v e i s , u m escravo n o v a l o r d e 6 0 0 . 0 0 0 réis e u m c r é d i t o de 1 2 : 1 0 0 de réis. T r a t a -
va-se pois d e u m a r t e s ã o - c o m e r c i a n t e q u e a c u m u l a r a g r a n d e f o r t u n a . E u teria podido
classificá-lo e n t r e o s c o m e r c i a n t e s e a t é e n t r e os n e g o c i a n t e s , d a d o o valor de seus
b e n s , m a s o p t e i p o r m a n t ê - l o e n t r e os a r t e s ã o s p a r a s u b l i n h a r q u e os q u e exerciam
u m a 'arte n o b r e ' t i n h a m a p o s s i b i l i d a d e de a c u m u l a r f o r t u n a s de v u l t o . Aliás, em seu
testamento, nosso h o m e m q u a l i f i c a a si p r ó p r i o de o u r i v e s , n ã o de c o m e r c i a n t e ,
e m b o r a de fato t a m b é m o f o s s e . 2 3
E l i m i n a n d o essa f o r t u n a e x c e p c i o n a l d o rol dos 3 2
inventários r e f e r e n t e s a a r t e s ã o s , c h e g a - s e a u m a m é d i a d e 5 : 6 4 0 de réis, q u e j á não
t r a n s t o r n a a h i e r a r q u i a s ó c i o - e c o n ô m i c a e s i t u a os a r t e s ã o s n o d e v i d o lugar n a estru-
tura e c o n ô m i c a d a c i d a d e .

A s e g u n d a o b s e r v a ç ã o diz r e s p e i t o às pessoas s i t u a d a s n o nível m a i s baixo dessa


h i e r a r q u i a s ó c i o - e c o n ô m i c a . S ã o p e s c a d o r e s , m a r i n h e i r o s , 'saveiristas' e 'contramestres
de n a v i o ' , q u e c o m a n d a v a m t r i p u l a ç õ e s o u e q u i p e s de p e s c a d o r e s . Q u e r o deixar claro
q u e , até 1 8 6 0 , essa ' g e n t e d o m a r ' t i n h a p o s i ç ã o m a i s elevada nessa hierarquia.

Alguns e x e m p l o s e x p l i c a m i s t o . P a r a o p e r í o d o d e 1 8 0 1 a 1 8 2 1 , t e n h o dois re-


presentantes dessa c a t e g o r i a : o a l f o r r i a d o J o ã o N u n e s e J o s é D o r m e n t e A n t u n e s , am-
bos de Salvador. O p r i m e i r o t r a b a l h a v a c o m o m a r i n h e i r o e m veleiros que faziam
tráfico de escravos a p a r t i r dos p o r t o s de L u a n d a e A n g o l a . E s c r e v e u seu testamento
e m 1 8 0 8 , às vésperas de u m a v i a g e m de q u e n ã o v o l t o u . V i ú v o , tinha uma filha
natural de doze a n o s , cega, e u m a n e t a , de o u t r a filha n a t u r a l , j á m o r t a . 2 4
Deixou
u m a herança de 1 : 0 9 6 de réis, p r o d u t o d o leilão de seus b e n s , c o m p o s t o s por duas
casas térreas ( 9 0 0 . 0 0 0 réis), d o i s escravos ( 1 3 8 . 0 0 0 réis), móveis ( 3 9 . 0 0 0 réis), jóias
( 1 1 . 0 0 0 réis) c roupas ( 8 . 0 0 0 réis).
J o s é D o r m e n t e A n t u n e s , falecido e m 1 8 0 5 , era mestre de pesca n u m a empresa de
caça a baleias. A o m o r r e r , sem t e s t a m e n t o , d e i x o u à viúva e aos c i n c o filhos um
sobrado ( 1 : 0 0 0 de réis) — c m c u j o s e g u n d o andar residia, alugando o térreo —» cinco
casas térreas ( 1 : 4 5 2 de réis), q u a t r o escravos cujos serviços de pescador alugava e que,
valendo 5 2 0 . 0 0 0 réis, lhe t i n h a m dado 2 4 9 . 0 0 0 réis n o ú l t i m o a n o . T i n h a ainda uma
' r o c i n h a n o valor de 4 0 0 . 0 0 0 réis, 5 1 1 . 0 0 0 réis de dívidas em ativo, 2 9 . 0 0 0 réis em
9

móveis e 1 : 0 8 0 de réis c m d i n h e i r o . Dívidas n o valor de 3 : 0 9 0 de réis reduziram a


herança ( 5 : 2 4 1 de réis) a m e n o s da m e t a d e . 2 5
J j V R O V n - O D.NHE.RO DOS BAIANOS
" " • 627

O s tres r e p r e s e n t a n t e s d a g e n t e d o m a r ' d o p e r í o d o seguinte ( 1 8 2 2 1 8 4 ^


u m c o n t r a m e s t r e e d o i s p e s c a d o r e s . F r a n c i s c o D i a s da Silva, falecido em 18 oTa 3

e
/f ,XOU d 0 1 S
, fi,hOS; C m t e S t
— ' c o n h e c e u u m terceiro. Era um p e s t d
'abastado . p o i s u n h a u m a c a n o a e q u a t r o escravos, u m d o s quais m o r r e u durante o
i n v e n t a n o . A c a n o a n a o valia g r a n d e c o i s a ( 2 4 . 0 0 0 réis), c o m o t a m p o u c o os ins l -
mentos de pesca ( 3 . 7 2 0 réis); m a s o s escravos v a l i a m 1 : 2 0 0 d e réis e ele tinh 1
d
quatro casas térreas ( 1 : 7 6 3 d e réis), 4 7 7 . 0 0 0 réis d e dívidas e m ativo, além demoveis*
avaliados e m 2 3 . 0 0 0 réis. D u z e n t o s m i l réis d e dívidas fizeram c o m q u e a herança aos
três filhos c a í s s e p a r a 3 : 9 2 0 d e r é i s . 2 6

T a m b é m p e s c a d o r , M a n o e l da P a i x ã o F a v i l l a d e i x o u à m u l h e r e aos c i n c o filhos
menores 2 : 1 7 4 d e réis, d e d u z i d a s as dívidas d e 2 9 5 . 0 0 0 réis. Seus bens eram quase os
mesmos q u e os d e F r a n c i s c o D i a s d a S i l v a : três escravos ( 1 : 1 0 0 de réis), u m a casa
'assobradada' ( 8 0 0 . 0 0 0 r é i s ) , u m a c a s a térrea ( 4 0 0 . 0 0 0 réis) e duas cabanas de madeira
( 8 5 . 0 0 0 réis) e m q u e g u a r d a v a s u a c a n o a ( 8 0 . 0 0 0 réis) e seus instrumentos de pesca
( 1 0 . 0 0 0 réis). T i n h a a i n d a 3 6 . 0 0 0 reis d e m ó v e i s e 8 . 0 0 0 réis de dívidas em ativo.
C o m o devia 2 9 5 . 0 0 0 réis, a m u l h e r e o s filhos r e c e b e r a m apenas 2 : 2 2 4 de r é i s . 27

O q u a r t o e x e m p l o é o d o m e s t r e d e t r i p u l a ç ã o M i g u e l A f f o n s o Rodrigues, portu-
guês de L a m e g o , s o l t e i r o . S e u s b e n s v a l i a m 1 : 1 7 8 d e réis, i n c l u i n d o dois escravos
( 7 6 0 . 0 0 0 réis), d i n h e i r o e m e s p é c i e ( 3 5 0 . 0 0 0 réis) e o b j e t o s pessoais: roupas no valor
de 3 5 . 0 0 0 réis, r e l ó g i o d e 3 0 . 0 0 0 réis e u m b a ú avaliado e m 3 . 0 0 0 réis. H o m e m c o m
passagem n o p o r t o , seus b e n s n ã o r e p r e s e n t a m u m a f o r t u n a baiana, mas eu quis
destacá-lo p o r ser o ú n i c o c a s o desse t i p o q u e e n c o n t r e i n o c o n j u n t o do período.
O ú l t i m o e x e m p l o é o p e s c a d o r M a n o e l T i m ó t e o Pereira, da comunidade de
pescadores da praia d e I t a p o ã . A o m o r r e r , e m 1 8 5 7 , deixou para a m u l h e r e os quatro
filhos, dois deles m e n o r e s , u m a h e r a n ç a l í q u i d a d e 3 : 1 0 9 de réis: três escravos ( 2 : 8 0 0
de réis), u m a l a n c h a ( 1 5 0 . 0 0 0 r é i s ) , duas casinhas térreas sobre pilotis ( 2 0 0 . 0 0 0 e
1 5 0 . 0 0 0 réis) e 4 5 . 0 0 0 réis d a v e n d a d e dois c a r n e i r o s . 29

Estes c i n c o e x e m p l o s f a l a m p o r si m e s m o s . As pessoas do mar cujos inventários


examinei, s o b r e t u d o os pescadores, eram d e f a t o pequenos empreiteiros, que tinham
sua própria m ã o - d e - o b r a escrava e os m e i o s para a pesca. N ã o eram, portanto, repre-
sentativos desta c a t e g o r i a d e trabalhadores, c o m p o s t a por muitos homens que aluga-
vam seu t r a b a l h o e q u e por certo n ã o deixaram bens. Por fim, cabe dizer que esjes
pequenos empreiteiros c o n t i n u a r a m utilizando escravos na pesca mesmo após
Entre os bens deixados pelo pescador M a n o e l da Purificação, falecido em 1 8 8 2 , por
exemplo, figuram o i t o escravos, n o valor d e 3 : 4 0 0 de réis, o q u e representava 77/o a
sua f o r t u n a . 30
, f á

A última categoria tratada é a da gente sem profissão ou ocupação defini ajia


expressei meus t e m o r e s : só deveriam estar incluídos aqui os que viviam de rendas, ma
suponho que a lista abrange, na verdade, indevidamente, muitas pessoas que exerciai.i
tério
atividades comerciais ou artesanais. Para distinguir estes últimos, usei o único criK ^
que me pareceu viável: a presença, no inventário, de informações sobre a iocaç
628 BAHIA, SÉCULO X I X

escravos para serviços e x t e r n o s , o r e c e b i m e n t o de j u r o s s o b r e e m p t é s t i m o s feitos a


particulares o u i n d i c a ç õ e s referentes a r e n d i m e n t o s superiores a 1 0 0 . 0 0 0 réis na forma
de aluguéis o u j u r o s s o b r e a ç õ e s e a p ó l i c e s .
N e s t a c a t e g o r i a , as m u l h e r e s , c o m 1 9 8 i n v e n t á r i o s , e r a m mais numerosas que os
h o m e n s . A p a r e c e a q u i mais de m e t a d e da f o r t u n a f e m i n i n a q u e a p u r a m o s n o período
1 8 0 1 - 1 8 8 1 . S e é difícil atribuir u m o f í c i o o u p r o f i s s ã o a u m h o m e m que vivia muitas
vezes e m c o n d i ç õ e s de t r a b a l h o precárias, m a i o r p r o b l e m a a i n d a suscitavam as mulhe-
res. A e s p e c i f i c a ç ã o ' p r e n d a s d o m é s t i c a s ' , m u i t o f r e q ü e n t e , n ã o elucida grande coisa,
a m e n o s q u e se tratasse de u m a escrava. P o r o u t r o l a d o , certas atividades, c o m o a
p r o s t i t u i ç ã o , n ã o e r a m a b e r t a m e n t e d e c l a r a d a s ; t a m b é m n ã o se declaravam as mulhe-
res c h a m a d a s ' c a p o n a s ' , alcoviteiras n o t ó r i a s , para a m o r e s lícitos o u ilícitos, assim
c h a m a d a s p o r q u e c i r c u l a v a m p r o t e g i d a s p o r c a p a s n e g r a s . A q u i m e d e t e n h o , sabendo
que esta categoria guarda segredos. P o s s o s e q u e r ter s u s p e i t a d o m u i t o s deles, mas
talvez a análise d a c o m p o s i ç ã o dessas f o r t u n a s a j u d e a d e s v e n d á - l o s .

QUEM POSSUÍA O QUÊ?

O s inventários post mortem analisados revelaram alguns dos c o m p o n e n t e s da fortuna


dos baianos, q u e passo a precisar, c l a s s i f i c a n d o - o s e m dez r u b r i c a s .

TABELA 115

ELEMENTOS CONSTITUINTES DAS FORTUNAS, 1801-1889

ELEMENTOS VALOR (EM CONTOS DE RÉIS)

1. Imóveis 8.082:245

2. Terras 1.797:392

3. Escravos 2.008:644

4. Dinheiro líquido 457:525

5. Depósitos bancários 4.620:129

6. Ações e apólices 3.447:045

7. Dívidas em ativo 4.454:443

8. Móveis 596:961

9. Fundos de comércio 1.888:401

10. Rendas 361:063

Total 27.713:848

A rubrica 'imóveis' c o m p r e e n d e apenas os situados na cidade, pois no campo o


valor dos imóveis foi contabilizado j u n t o c o m as terras que c o m p u n h a m cada proprie-
dade. N a rubrica "terras' incluem-se aquelas destinadas à agricultura e os terrenos
LrvRo VII - O DINHEIRO DOS BAIANOS 6 2 9

u r b a n o s , m a s f o r a m t o m a d a s p r e c a u ç õ e s p a r a d i s t i n g u i r os dois casos, q u a n d o isso


fosse r e l e v a n t e . D i n h e i r o l i q u i d o era a q u e l e e n c o n t r a d o n o d o m i c í l i o do inventariado
por o c a s i ã o de seu f a l e c i m e n t o , e n q u a n t o os ' f u n d o s d e c o m é r c i o ' são as raras avalia
ções q u e e n c o n t r e i s o b r e o s b e n s c o m e r c i a i s . A r u b r i c a ' a ç õ e s e a p ó l i c e s ' c o m p r e e n d e
t a m b é m os c e r t i f i c a d o s d e e m p r é s t i m o s d o E s t a d o .

C o m o se o b s e r v a , i m ó v e i s , d e p ó s i t o s b a n c á r i o s , dívidas e m ativo, ações e apólices


eram os e l e m e n t o s m a i s i m p o r t a n t e s dessas f o r t u n a s . M a s n ã o estavam igualmente
presentes n o s i n v e n t á r i o s ; com freqüência estavam inteiramente ausentes, ou
c o r r e s p o n d i a m a p e n a s a u m a p e q u e n a p e r c e n t a g e m d a h e r a n ç a , de a c o r d o c o m a
categoria s ó c i o - e c o n ô m i c a d o i n v e n t a r i a d o e o i n t e r v a l o — p r i m e i r a o u segunda m e -
tade d o s é c u l o — considerado.

M i n h a p r i m e i r a análise,' de caráter geral, abrangerá todo o período 1801-1889. A


tabela a b a i x o a p r e s e n t a o s p e r c e n t u a i s d e c a d a u m dos dez c o m p o n e n t e s que distingui-
mos na f o r t u n a d e c a d a c a t e g o r i a , r e p r e s e n t a d o s pelos n ú m e r o s de 1 a 1 0 , seguindo a
ordem estabelecida n a tabela 1 1 5 .

TABELA 116
COMPOSIÇÃO DAS FORTUNAS POR CATEGORIAS SÓCIO-ECONÔMICAS, 1801-1889 (%)

CATEGORIAS 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Negociantes 26,9 4,5 2,5 0,8 21,1 10,1 17,4 1,7 13,6 1,2

Industriais 26,0 1,1 8,7 2,1 2,0 15,4 7,4 2,8 32,5 1,8

Profissionais liberais 20,4 1,3 3,6 1,6 19,4 44,4 7,0 2,0 - 0,2

Senhores de engenho 4,0 50,8 19,1 0,6 3,7 1,9 17,1 1,0 - 0,9

Rentistas 37,9 2,6 5,9 2,0 15,8 15,8 15,6 2,3 1,8

Donos de barcos 4,4 2,8 5,1 0,1 4,0 1,2 5,5 3,3 73,4
-
Comerciantes 4,4 2,6 44,6 2,0 16,2 0,4
16,1 2,6 9,6 1,2

Proprietários agrícolas 9,5 32,0 23,5 3,5 10,4 9,5 8,8 1,6 - 1,2

Padre» 35,0 6,8 14,3 3,9 4,6 18,5 9,0 2,7 - 5,1

Funcionários 25.6 1.4 6.4 1.0 38,1 14,0 7,2 5.8 - -


Oficiais subalternos 35,5 6,4 12,0 0.1 15,6 - 26.6 3.7 - -
Oficiais superiores 40,7 4,9 14,2 0,2 11,7 11,8 13,6 2.8
- 0.02

7.7 2.0 5.3 0.4


Artesãos 32,2 4,4 11.5 4.9 23,6 H,<>

Sem ocupação 42.7 1.4 17,4 2,6 17,0 10.0 4.5 4.0
- 0,3

Marítimos 26,3 10,8 40,3 0.5 8.9 - 2.4 4.2 1.4 5.2

Estes dados m o s t r a m o peso dos bens imobiliários na fortuna dos baianos que
exerciam ofícios o u profissões q u e poderiam ser qualificados c o m o tipicamente ur a-
nos. R e p r e s e n t a m mais de 1/4 da fortuna dos negociantes, industriais, funcionários e
pessoal ligado ao m a r , mais de 1/3 da fortuna daqueles que viviam de rendas, dos
630 BAHIA, SÉCULO X I X

p a d r e s , d o s o f i c i a i s s u b a l t e r n o s e d o s a r t e s ã o s e m a i s d e 2/5 d a d o s oficiais graduad


os
e d o s c h a m a d o s ' s e m o c u p a ç ã o ' . P o r o u t r o l a d o , esse t i p o d e b e m c o n s t i t u í a apenas
1/5 d a f o r t u n a d o s p r o f i s s i o n a i s l i b e r a i s , p o u c o m a i s q u e 1/6 d a dos comerciantes
e caía a m e n o s d e 1/10 d a f o r t u n a d o s s e n h o r e s d e e n g e n h o , p r o p r i e t á r i o s agrícolas e
d o n o s de e m b a r c a ç õ e s . P a r a o s b a i a n o s das c a t e g o r i a s s o c i a i s m e n o s abastadas, a pro-
p r i e d a d e d e casas, m e s m o d e u m a s i m p l e s c a s a ' t é r r e a ' , era u m sinal e x t e r i o r e notório
d e r i q u e z a , p e r m i t i n d o a f i r m a r d e m o d o i n c o n t e s t á v e l c e r t a p o s i ç ã o s o c i a l , além de dar
a o p r o p r i e t á r i o e à s u a f a m í l i a a l g u m a s e g u r a n ç a e m r e l a ç ã o a o f u t u r o . A análise de
a l g u n s i n v e n t á r i o s de o f i c i a i s o u d e p e s s o a l d o m a r m o s t r o u , a d e m a i s , q u e a proprie-
d a d e i m o b i l i á r i a , q u a n d o c o n s t i t u í d a d e m a i s d e u m a c a s a , p r o p o r c i o n a v a rendimen-
tos b a s t a n t e s e g u r o s , o q u e e x p l i c a a p r e f e r ê n c i a d e q u e esse t i p o d e investimento
gozava e n t r e os q u e v i v i a m d e r e n d a s , o s a s s a l a r i a d o s d o s e r v i ç o p ú b l i c o e os muitos
c u j a p r o f i s s ã o n ã o p ô d e s e r d e t e r m i n a d a . E n t r e o s n e g o c i a n t e s e o s industriais, ao
c o n t r á r i o , a p r o p r i e d a d e i m o b i l i á r i a i n t e r e s s a v a , p o r u m l a d o , c o m o m e i o seguro para
diversificar o s h a v e r e s e , p o r o u t r o , p e l a p o s s i b i l i d a d e q u e o f e r e c i a de l e v a n t a r dinhei-
r o , m e d i a n t e h i p o t e c a , se n e c e s s á r i o .

E n t r e os c o m e r c i a n t e s , q u e s ó t i n h a m 1 0 % d e seus b e n s e m p r o p r i e d a d e s imobi-
liárias, o b s e r v a - s e q u e , n a q u e l e s q u e o p e r a v a m n o v a r e j o e n o c o m é r c i o ambulante,
as dívidas e m a t i v o e r a m d e l o n g e o p r i n c i p a l c o m p o n e n t e d a f o r t u n a , c o m 4 4 , 6 %
d o t o t a l . I s t o revela q u e o p e q u e n o c o m é r c i o e n v o l v i a g r a n d e s r i s c o s , p o i s essas dívi-
das e r a m c r é d i t o s n e m s e m p r e d e fácil c o b r a n ç a a p ó s a m o r t e d o c r e d o r .

I s t o é c o n f i r m a d o p e l o f a t o d e q u e , e m d i n h e i r o l í q u i d o , d e p ó s i t o s bancários e
ações o u a p ó l i c e s , os h a v e r e s d e s s a c a t e g o r i a s o m a v a m a p e n a s 8 , 2 % d o total da fortu-
na, ao passo q u e , e n t r e o s n e g o c i a n t e s e o s i n d u s t r i a i s , essas três r u b r i c a s representa-
v a m , r e s p e c t i v a m e n t e , 3 2 % e 1 9 , 4 % desse t o t a l . M a s era e n t r e o s profissionais liberais
q u e elas a s s u m i a m m a i s i m p o r t â n c i a , c o r r e s p o n d e n d o a 6 5 , 4 % d a f o r t u n a total, dos
quais 4 4 , 4 % e m c a r t e i r a de a ç õ e s , a p ó l i c e s e e m p r é s t i m o s d o E s t a d o . C o m os funcio-
nários p ú b l i c o s — q u e t i n h a m 4 0 , 5 % d e seus haveres nessas r u b r i c a s — , esta era a
categoria q u e mais se arriscava nesse t i p o d e i n v e s t i m e n t o .
V i m o s q u e a p r o p r i e d a d e i m o b i l i á r i a t i n h a papel m u i t o r e d u z i d o na composição
da f o r t u n a dos s e n h o r e s de e n g e n h o , p r o p r i e t á r i o s agrícolas e proprietários de embar-
c a ç õ e s . As terras cultivadas e os escravos f o r m a v a m 6 9 , 9 % d a f o r t u n a dos senhores de
e n g e n h o e 5 5 , 5 % da dos p r o p r i e t á r i o s agrícolas, fossem pecuaristas o u cultivadores de
c a n a - d e - a ç ú c a r , f u m o e a l i m e n t o s . M a s a f o r t u n a desses p r o p r i e t á r i o s era mais equili-
brada q u e a dos senhores de e n g e n h o : t i n h a m 3 , 5 % e m d i n h e i r o líquido (rubrica 4)
c o n t r a 0 , 6 % dos p r i m e i r o s ; seus d e p ó s i t o s b a n c á r i o s (rubrica 5 ) eram mais consisten-
tes, s o m a n d o 1 0 , 4 % , c o n t r a 3 , 7 % para os p r i m e i r o s ; seus investimentos em ações e
apólices (rubrica 6 ) eram de 9 , 5 % , para 1 , 9 % dos senhores de e n g e n h o .
A reduzida p e r c e n t a g e m representada pela f o r t u n a imobiliária dessas duas catego-
rias é facilmente explicável: seus imóveis eram casas rurais, sem valor próprio; mesmo
que fossem portentosas, n ã o p o d i a m ser vendidas separadamente das terras e do enge-
nho. O p e r c e n t u a l a l c a n ç a d o pela fortuna imobiliária rln,
cuias casas e r a m m a i s r ú s t i c a s q u e as d o s s e n h o r e s d e ZJ2 ' T** ~
mais a l t o p o r q u e , c o m o o s i n v e n t á r i o s r e v e l a m eles no i rel
«ivamente
mais f r e q ü ê n c i a q u e o s s e n h o r e s d e e n g e n h o Quanto T ' ™
m 6 S U r b a n
° S C O m

ç õ e s , 7 3 , 4 % d e s u a f o r t u n a c o r r e s p o n d i a m a s e u s bens 7 • °° * e m W

Iho: e n t r e seis deles, a p e n a s d e s tinham u^Z^^T""^ <«


E s t a p n m e . r a a n á l i s e d e i x a c l a r o o p a p e l essencial d a f o r t u n a imobiliária urbana na
r.queza d m a t o n a d a s c a t e g o r . a s s ó c o - e c o n ó m i c a s , a i n d a q u e em algumas fos e b s

a t u í d a p e l a p r o p n e d a d e a g n e o l a e a m ã o - d e - o b r a escrava nela empregada ou airl


pelo i n s t r u m e n t a l d e t r a b a l h o . E s t e , a l i á s , n ã o é o c a s o apenas dos proprietários de
e m b a r c a ç õ e s : e n t r e o s m d u s t r i a i s , a e m p r e s a ( i m ó v e l e m a q u i n a r i a ) representava 32,5»/„
dos b e n s .

I m p r e s s i o n o u - m e , p o r é m , a b a i x a p e r c e n t a g e m r e f e r e n t e ao bens móveis dos ne-


g o c i a n t e s e c o m e r c i a n t e s : a p e n a s 1 3 , 6 % p a r a o s p r i m e i r o s e 1 6 , 2 % para os segundos.
M a s o s i n v e n t á r i o s r e f e r e n t e s a essas c a t e g o r i a s c o n t i n h a m indícios claros de uma
t e n d ê n c i a a e s c a m o t e a r t o d a i n f o r m a ç ã o p r e c i s a s o b r e os estoques de mercadorias e
seus v a l o r e s . I s t o s ó n ã o o c o r r i a q u a n d o h a v i a u m s ó c i o , s e n d o necessário proceder à
p a r t i l h a d o s b e n s , o u q u a n d o u m h e r d e i r o , j u l g a n d o - s e lesado, contestava o inventá-
r i o . E m t o d o s o s d e m a i s c a s o s , q u e r e p r e s e n t a m 6 5 , 3 % , os estoques foram avaliados
g l o b a l m e n t e , h a v e n d o r a z õ e s p a r a se s u s p e i t a r d e s u b a v a l i a ç ã o .
O s p e r c e n t u a i s r e f e r e n t e s a d i n h e i r o l í q u i d o — i s t o é, o n u m e r á r i o em ouro ou em
p r a t a e n c o n t r a d o n a c a s a d o i n v e n t a r i a d o p o r o c a s i ã o de sua m o r t e — eram também
b a i x o s , c o n t r a d i z e n d o a t r a d i ç ã o , q u e r e z a q u e os b a i a n o s n ã o c o n f i a v a m a ninguém
seus p é s - d e - m e i a . M a s t a m b é m esse i t e m d e v e estar s u b e s t i m a d o , pois parentes ou
í n t i m o s d o f a l e c i d o p r o v a v e l m e n t e se a p r e s s a v a m e m e s c o n d e r esses valores. J á os fun-
c i o n á r i o s p ú b l i c o s r e g i s t r a v a m c o m m a i o r m i n ú c i a suas dívidas em ativo e em passivo,
os d e p ó s i t o s b a n c á r i o s e a ç õ e s , a p ó l i c e s e c e r t i f i c a d o s de e m p r é s t i m o do Estado.
N o c o n j u n t o , a f o r t u n a d o s b a i a n o s — e i s t o se aplica às q u i n z e categorias socio-
e c o n ó m i c a s — e r a b a s t a n t e d i v e r s i f i c a d a , a i n d a q u e os diversos c o m p o n e n t e s tivessem
d i f e r e n t e s p e s o s e m c a d a u m a , c o m o m o s t r a m c l a r a m e n t e os dados da tabela 117. ara
m o n t a r esta t a b e l a , c o n s i d e r e i : ( 1 ) b e n s i m o b i l i á r i o s , ( 2 ) escravos, ( 3 ) d e
P Ó S I t
° ^" ' S
o

cários c a ç õ e s / a p ó l i c e s e ( 4 ) d í v i d a s e m a t i v o . S ã o ainda referidos: o numero a so


de i n v e n t á r i o s d c c a d a c a t e g o r i a ( N ) , a p e r c e n t a g e m de inventários que c o n ^ ^
destas q u a t r o n o v a s r u b r i c a s , o p e r c e n t u a l total dessas q u a t r o ™ b r i c d
*' c

p e r c e n t u a l d o q u a l f o r a m d e d u z i d a s as dívidas em ativo c u j o recebimen

temente problemático. ^rr^nnndentes a


O s r e s u l t a d o s f o r n e c i d o s pela tabela são c l a r o s . O s e l e m e n t o s « ^ f ^
essas q u a t r o r u b r i c a s f o r m a v a m , e m c o n j u n t o , pelo m e n o s z o ; i de
™JJ
e t á r o s

b a i a n o s p r i v i l e g i a d o s , c o m e x c e ç ã o dos senhores de e n g e n h o e vinham


e m b a r c a ç õ e s . E n t r e o s n e g o c i a n t e s , os depósitos bancários e as aço P
e m p r i m e i r o lugar ( 3 1 , 2 % ) . P o s s u i n d o ativos f a c i l m e n t e negociáveis,
532 BAHIA, SÉCULO X I X

t i n h a fácil acesso ao d i n h e i r o l í q u i d o . U m a c o n f o r t á v e l f o r t u n a i m o b i l i á r i a ( 2 6 % ) lhes


assegurava r e n d i m e n t o s e era h i p o t e c á v e l , p e r m i t i n d o l e v a n t a r d i n h e i r o e m caso de
necessidade. A s dívidas arroladas e m seus ativos (17,4% d o t o t a l ) n ã o chegavam a
c o m p r o m e t ê - l o s , salvo e m u m c a s o i s o l a d o , a q u e r e t o r n a r e i .
N o caso dos i n d u s t r i a i s , o i m p o r t a n t e era a f o r t u n a i m o b i l i á r i a ( 2 6 % ) ; seus have-
res e m b a n c o e e m c a r t e i r a d e a ç õ e s e r a m r e l a t i v a m e n t e m o d e s t o s (17,4%), como
t a m b é m suas dívidas e m ativo ( 7 % ) . A m a r g e m e n t r e seus p r e ç o s d e p r o d u ç ã o e de
v e n d a era c o n f o r t á v e l , e sua r i q u e z a era a p a r e n t e m e n t e s ó l i d a .

TABELA 1 1 7
COMPOSIÇÃO DAS FORTUNAS POR CATEGORIAS SÓCIO-ECONÔMICAS, 1801-1889 (%)

CATEGORIAS* 1 % N 2 % N 3 % N 4 % N % TOTAL % TOTAL - 4

Negociantes ( 1 0 8 ) 26,9 63,0 2,5 70,0 31,2 77,7 17,4 59,2 78,0 60,6

Industriais ( 1 3 ) 26,0 69,2 8,7 76,9 17,4 69,2 7,4 69,2 59,5 52,1

Profissionais liberais ( 1 9 ) 20,4 57,9 3,6 63,1 63,8 89,4 7,0 36,8 94,8 87,8

Senhores de engenho ( 1 7 ) 4,8 41,1 19,1 100,0 5,6 52,9 17,1 47,0 46,6 29,5

Rentistas ( 3 1 0 ) 37,9 72,6 5,9 67,4 31,6 66,7 15,6 53,5 91,0 75,4

Donos de barcos ( 6 ) 4,4 33,3 5,1 83,3 5,2 50,0 5,5 33,3 20,2 14,7

Comerciantes ( 7 3 ) 16,1 57,5 9,6 75,3 7,0 37,0 44,6 55,0 77,3 32,7

Proprietários agrícolas ( 7 8 ) 9,5 59,0 23,5 82,0 19,9 21,8 8,8 39,7 61,7 ' 52,9

Padres ( 2 3 ) 35,0 60,9 14,3 65,2 23,1 43,5 9,0 47,8 81,4 72,4

Funcionários ( 1 4 ) 25,6 57,1 6,4 57,1 52,1 71,4 7,2 35,7 91,3 84,1

Oficiais subalternos ( 1 4 ) 35,5 64,3 12,0 85,7 15,6 50,0 26,6 35,7 89,7 63,1

Oficiais superiores ( 1 8 ) 40,7 61,0 14,2 72,2 23,5 55,5 13,6 44,4 92,0 78,4

Artesãos ( 3 2 ) 32,2 46,8 11,5 75,0 31,6 21,8 7,7 25,0 83,0 75.3

Sem ocupação ( 3 7 8 ) 42,7 62,4 17,4 54,2 27,0 27,0 4,5 15,6 91,6 87,1

Marítimos ( 1 2 ) 26,3 66,6 40,3 75,0 2,4 16,6 77.9 75.5


8,9 33,3

( ) Entre parêntesis, número dc inventários; 1 = imóveis (percentagem sobre o rotal das fortunas, c m valor); 2 = escravos
(idem); 3 - deoÓMtos bancirios c ações/apólices ( i d e m ) ; 4 = dívidas em ativo ( i d e m ) ; N • n ° dc inventários; % N =
percentagem sobre o n» de inventários; % T o t a l = percentagem das quatro rubricas sobre o n« de inventários; % Total - 4 =
o mesmo que o anterior, exeluindo-sc as dívidas c m ativo.

O s profissionais liberais t i n h a m 6 3 , 8 % de sua f o r t u n a investidos em ações/apóli-


ces, e m p r é s t i m o s do Estado c cm depósitos b a n c á r i o s ; suas dívidas em ativo eram
insignificantes ( 7 % ) e as propriedades imobiliárias c o r r e s p o n d i a m a 2 0 % de seus bens.
F o r t u n a sólida, desde que os b a n c o s h o n r a s s e m seus c o m p r o m i s s o s e que as ações/
apólices proporcionassem u m g a n h o real (os j u r o s giravam em t o r n o de 7 % ) .
O s senhores de e n g e n h o t i n h a m nos escravos o principal c o m p o n e n t e de sua
fortuna ( 1 9 , 1 % ) . N e s t e caso, p o r é m , os dados são distorcidos, porque faltam à tabela
os valores referentes aos próprios e n g e n h o s . O alto percentual referente às dívidas que
633

. p a r e c e m e m a t i v o ( 1 7 . 1 % ) n ã o u-,n s i g n i f i c a ç ã o real. u m a vez q U c estas não foram


comparadas as d o p a s s i v o . "

A fortuna d o s q u e viviam de rendas c o r r e s p o n d e ao q u e se poderia e s p e r a r os


principais b e n s e r a m os . m ó v e i s ( 3 7 . 9 % ) . o s d e p ó s i t o s b a n c á r i o s e as ações/apólices
( 3 1 . 6 % ) . E m b o r a c o n s i d e r á v e i s , e m geral as dívidas em ativo ( 1 5 . 6 % ) não chegavam
a ser c o m p r o m e t e d o r a s . N o c o n j u n t o dos i n v e n t á r i o s q u e deixaram herança negativa
não registrei n e n h u m p e r t e n c e n t e a esta c a t e g o r i a .

N o c a s o dos d o n o s d e b a r c o s , os e l e m e n t o s d i s c r i m i n a d o s na tabela 117 — i m ó -


veis, escravos, d e p ó s i t o s bancários/ações/apólices e dívidas em ativo — desempenham
papel i n s i g n i f i c a n t e . J á e n t r e o s c o m e r c i a n t e s , n a d a m e n o s que 4 4 , 6 % da riqueza
eram c o n s t i t u í d o s p o r dívidas e m a t i v o . O s b e n s q u e c o m p u n h a m os restantes 5 5 , 4 %
nem s e m p r e c o m p e n s a v a m i s t o , p o r q u e p o d i a m estar c o m p r o m e t i d o s por dívidas
em passivo.

N ã o e s p a n t a q u e o s e s c r a v o s r e p r e s e n t a s s e m 2 3 , 5 % da riqueza dos proprietários


agrícolas e t a m p o u c o q u e a p e n a s 8 3 , 3 % deles possuíssem escravos: já m e n c i o n a m o s as
empresas a g r í c o l a s d e c a r á t e r Familiar. A c a t e g o r i a t i n h a poucas dívidas em seus ativos
( 8 , 8 % ) e m a i s h a v e r e s e m b a n c o s e c m a ç õ e s o u a p ó l i c e s q u e os senhores de e n g e n h o .
N a f o r t u n a d o s q u e c h a m a m o s de assalariados d o E s t a d o (padres, funcionários e
oficiais), os b e n s i m o b i l i á r i o s e os h a v e r e s e m b a n c o s e e m ações/apólices eram consi-
deráveis: os e l e m e n t o s r e u n i d o s nessas r u b r i c a s f o r m a v a m mais de 4/5 delas: 8 1 , 4 % da
fortuna dos p a d r e s , 9 1 , 3 % d a d o s f u n c i o n á r i o s , 8 9 , 7 % da dos oficiais subalternos e
9 2 % da dos o f i c i a i s g r a d u a d o s . O s f u n c i o n á r i o s , c o n t u d o , pareciam preferir pôr seu
dinheiro n o b a n c o o u i n v e s t i r e m a ç õ e s o u a p ó l i c e s a ter dívidas em ativo, diferente-
mente dos o f i c i a i s s u b a l t e r n o s : m a i s de 1/3 deles t i n h a m dívidas em ativo, correspon-
dentes a 2 6 , 5 % de sua f o r t u n a .
O s b e n s i m o b i l i á r i o s d e s e m p e n h a v a m t a m b é m papel i m p o r t a n t e na fortuna dos
artesãos ( 3 2 , 2 % ) , d o s sem o c u p a ç ã o o u profissão d e f i n i d a ( 4 7 , 2 % ) e do pessoal do
mar ( 2 6 , 3 % ) . Nessas três c a t e g o r i a s , m a i s de m e t a d e dos inventariados tinham ao
menos u m a casa c , se o s escravos e r a m r e l a t i v a m e n t e n u m e r o s o s na fortuna do pessoal
do mar — por razões já m e n c i o n a d a s — , e n t r e os artesãos c os sem profissão eram os
depósitos cm b a n c o , e m p r é s t i m o s de E s t a d o c ações/apólices q u e desempenhavam um
papel de relevo, c o m 3 1 , 6 % para os p r i m e i r o s c 2 7 % para os segundos. N o tocante aos
artesãos, c o n t u d o , essa p e r c e n t a g e m n ã o reflete a realidade, tendo sido elevada em
decorrência dos 6 0 : 0 0 0 de réis depositados c m b a n c o por nosso artcsão-ourivcs-co-
merciante A n t ô n i o M a r t i n s de Oliveira Neves. E l i m i n a n d o essa fortuna excepciona ,
obtém-se o resultado m o s t r a d o na tabela 1 I H .
Estes novos dados n ã o m o d i f i c a m radicalmente os resultados anteriores, mas, no
tocante aos haveres em depósitos bancários c ações/apólices — com a passagem
3l,6o/o a 1 9 , 2 % — , provavelmente se aproximam mais da composição da ortuna
média cm b a n c o dessa categoria de trabalhadores especializados. Por outro l a d o , ^
participação dos escravos — presentes nos inventários de 3/4 dos artesãos cresce
634 BAHIA, SÉCULO X I X

TABELA 118

C O M P O S I Ç Ã O DAS F O R T U N A S D E A R T E S Ã O S E L I M I N A N D O - S E A M A I O R DELAS

I % N 2 % N 3 % N 4 % N % TOTAL % TOTAL - 4

19,2 74,2 19,2 19.3 6.9 22,6 76,6


Artesãos ( 3 1 ) 31,3 45,2 69,7

de 1 1 , 5 % para 1 9 , 2 % . S e j a c o m o for, nessa c a t e g o r i a a p e r c e n t a g e m referente a bens


i m o b i l i á r i o s era alta, a i n d a q u e m e n o s de 5 0 % d o s artesãos tivessem u m a casa.
Para todas as c a t e g o r i a s s ó c i o - e c o n ô m i c a s q u e e x e r c i a m ( o u t i n h a m exercido) ati-
vidades e c o n ô m i c a s u r b a n a s , as casas e o s h a v e r e s e m b a n c o o u e m ações/apólices
c o n s t i t u í a m , p o i s , o essencial da f o r t u n a . O u t r o s b e n s , c o m o escravos, eram secundá-
rios, a n ã o ser q u a n d o i n d i s p e n s á v e i s c o m o m ã o - d e - o b r a , c o m o n a a g r i c u l t u r a ou no
artesanato. A p r e s e n ç a de escravos n o s i n v e n t á r i o s d e 5 4 , 2 % dos ' s e m profissão* (com-
p o n d o 1 7 , 4 % de sua f o r t u n a ) r e f o r ç a a i d é i a de q u e essa c a t e g o r i a a b r a n g i a pessoas que
se faziam ajudar e m seus o f í c i o s p o r m ã o - d e - o b r a e s c r a v a o u a a l u g a v a m .
U m a das q u e s t õ e s q u e f o r m u l a m o s n o i n í c i o desta a n á l i s e dizia respeito à evolu-
ç ã o , ao l o n g o d o s é c u l o , da p a r t i c i p a ç ã o d o s v á r i o s c o m p o n e n t e s n a f o r t u n a global de
c a d a categoria s ó c i o - e c o n ô m i c a . P a r a r e s p o n d ê - l a , d i s t i n g u i d o i s p e r í o d o s : 1 8 0 1 - 1 8 5 0
e 1 8 5 1 - 1 8 8 9 , a p r e s e n t a d o s nas t a b e l a s 1 1 9 e 1 2 0 .

TABELA 119

C O M P O S I Ç Ã O DAS F O R T U N A S P O R C A T E G O R I A S S Ó C I O - E C O N Ô M I C A S , 1801-1850 (%)

CATEGORIAS* 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Negociantes ( 2 7 ) 22,4 6,2 5,8 0.1 9.4 - 35,8 2,8 17,4 -


Industriais ( 1 ) 12,9 17,6 42,1
- 8,6
- 8,1 0,4 10,1 -
Profissionais liberais ( 4 ) 42,8 4.2 10,9 - 22,7 - 10,5 7,5 - 1.4

Senhores de engenho ( 7 ) 5,0 57,6 13,1 0,8 1,9 - 20,5 0,8


- 0,2

Rentistas ( 8 6 ) 40,8 3,7 12,2 0,7 15.9 0,9 21,8 3,6 - 0,3

Donos de barcos ( 5 ) 12,1 5,0 13,9 0.4 10,9 3,2 15,0 5,6 33,8
-
Comerciantes ( 3 4 ) 23,1 0,2 8,7 1,6 2,8
- 37,7 3.4 22.4
-
Proprietários agrícolas ( 3 7 ) 9,9 38,1 18,4 0,9 9,0 4.1 15,3 2,6 - 1.5

Padres ( 8 ) 47,1 2,6 10,8 17,2 - - 14,9 7.3 - -


Funcionários ( 5 ) 30,8 4.6 8,9 0,4 24,8 - 22,8 7,7
- -
Oficiais subalternos ( 9 ) 48.5 9.7 11,4 0.2 6,8
- 21,0 2.1 - -
Oficiais superiores ( 1 1 ) 34.4 7.2 11.9 0,6 14.0 •— • 25,5 6,2
- -
Artesãos ( 1 4 ) 18.0 - 6r,,3 0,5 0.7 - 7.6 2,7 3.4 0.7

Sem ocupação ( 1 4 2 ) 50.5 0.8 24,8 4.2 7.3


- 6.3 5,8
-
Marítimos ( 5 ) 39.6 2.9 27.5 0,7 4.1 - 6.7 3,8 14,6

(*) Entre parêntesis, número de inventários consultados.


«.po^^^^ ¡T* '
A l e i t u r a c o m p a r a t i v a d o s d a d o s destas t a b e l a m « >
p r o p r i e d a d e i m o b i l i á r i a foi u m

P ^ ^ t ^ ^ S
dois p e r í o d o s . No e n t a n t o , na p r i m e i r a m e t a d e d o s é c u l o „ ! tl ^
g r a n d e p e s o , s o b r e t u d o nas f o r t u n a s d o s

^ o t ^ l S ^ ' fUnC
— *" ternos, £
N a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o esse p e s o a u m e n t o u - e m b o r a e m percentuais n ã o
muito elevados - n a f o r t u n a d o s n e g o c i a n t e s , d o s industriais, dos oficiais graduados
e dos a r t e s ã o s . E m c o n t r a p a r t i d a , r e d u z i u - s e - e m p e r c e n t u a i s expressivos - na
f o r t u n a d o s p r o f i s s i o n a i s l i b e r a i s ( p a s s o u d e 4 2 , 8 % a 1 8 , 9 % ) , dos padres (de 4 7 1 %
a 3 2 , 5 % ) e d o s o f i c i a i s s u b a l t e r n o s ( 4 8 , 5 % a 1 0 , 5 % ) . I s t o se deveu s o b r e t u d o ao
s u r g i m e n t o d e n o v a s o p o r t u n i d a d e s d e i n v e s t i m e n t o a p a r t i r de 1 8 4 0 , c o m a criação
de b a n c o s e s o c i e d a d e s a n ô n i m a s e as p o s s i b i l i d a d e s de e m p r e s t a r ao E s t a d o . D e fato,
as r u b r i c a s r e l a t i v a s a esses d o i s c o m p o n e n t e s p e r m i t e m n o t a r , n o c o n j u n t o , u m nítido
a u m e n t o d o s d e p ó s i t o s b a n c á r i o s e s o b r e t u d o d o s i n v e s t i m e n t o s n a c o m p r a de valores,
ao p a s s o q u e , n a p r i m e i r a m e t a d e d o s é c u l o , s ó o s q u e v i v i a m de rendas, os proprie-
tários d e e m b a r c a ç õ e s e o s p r o p r i e t á r i o s a g r í c o l a s p o s s u í a m u m a parte de seus bens —
aliás í n f i m a — n a s r a r a s s o c i e d a d e s a b e r t a s e x i s t e n t e s . A s s i m , p o r e x e m p l o , na catego-

TABELA 120

C O M P O S I Ç Ã O DAS F O R T U N A S P O R C A T E G O R I A S S Ó C I O - E C O N Ô M I C A S , 1851-1889 (%)

CATF.CORIAS* 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Negociantes (81) 27,5 •4,3 2.0 0,9 22,7 11,4 15,0 1.6 13.0 1,3

Industriais (12) 7,8 2.2 1,9 15,8 7,4 2,9 33.0 1,9
26,3 0,7

Profissionais liberais (15) 18,9 ' - 3,2 1.7 19,2 47,4 6,8 1,6
- 0,1

Senhores de engenho (10) 4.2 30,2 37,2 - 9,3 7,6 6,9 1,6
- 2.8

Rentistas (224) 37.4 2,4 5,0 2.3 17,8 16,1 14,7 2.1 - 2,0

Donos de barcos (I) — 1,5 - - - - - 2,0 96.5 —

3,4 46,6 1.6 14.4 0,5


Comerciante! (39) 14,1 3.3 9.9 1.0 4,9

10,8 11,0 6,8 1.2 — 1,1


Proprietários agrícolas (41) 9,4 30,1 25,0 4.3
22.3 7,7 1.7 — 6,1
Padres (15) 32.5 7.6 15,0 1,2 5,5
5.0 0,6
Funcionários (9) 23,5 - 5,3 1,2 43.8 19,8 0,7

Oficiais subalternos (5) 10.5 - 13,2 - 34.9


- 34.7 6.7

10,0 1,7
Oficiais superiores (7) 42,6 4,2 14,9 - 11.0 15,4

15.4 5.9 3.0 5,3 0.6


Artesãos (17)** 33.2 8,6 12.4 9,0 6.3

19,7 12,7 4.0 3.5 0.3


Sem ocupação (236) 40.6 1.6 15.4 2.2
2,2
Marítimos (7) 18,9 15.2 47.4 0.3 11,6 - 4,4
..f- ri.f 1 111) te.
KW,

C) Rime p a r e n t a , número de inventário» consultados. ( " ) Com exceção da maior


636 BAHIA, SÉCULO X I X

ria d o s q u e v i v i a m de r e n d a s , as dívidas e m a t i v o , q u e r e p r e s e n t a v a m 2 1 , 8 % da fortuna


e n t r e 1 8 0 1 e 1 8 5 0 , b a i x a r a m a u m p e r c e n t u a l d e 1 4 , 7 % n a s e g u n d a m e t a d e d o século.
O r a , n o p r i m e i r o i n t e r v a l o , 2 2 % dessa c a t e g o r i a v i v i a m de e m p r é s t i m o s feitos a ter-
ceiros, ao passo q u e n o s e g u n d o se r e d u z i r a m a 1 4 , 7 % . P a r a l e l a m e n t e , a participação
d o s valores na f o r t u n a dessa c a t e g o r i a s u b i u d e 0 , 9 % a 1 6 , 1 % . S e r i a fácil multiplicar
o s e x e m p l o s , c i t a n d o t a m b é m os p a d r e s , os f u n c i o n á r i o s e os o f i c i a i s graduados. A
ú n i c a e x c e ç ã o f o r a m o s o f i c i a i s s u b a l t e r n o s , c u j a s dívidas e m ativo a u m e n t a r a m de
2 1 % para 3 4 , 7 % , p e l o m e n o s n a a m o s t r a e s t u d a d a , o q u e se e x p l i c a p o r seu recruta-
m e n t o e m c a t e g o r i a s sociais m a i s h u m i l d e s .

A o l o n g o de t o d o o s é c u l o X I X , o v a l o r das terras foi u m f a t o r i m p o r t a n t e da


f o r t u n a d o s p r o d u t o r e s a g r í c o l a s , i n c l u s i v e o s s e n h o r e s d e e n g e n h o . N o e n t a n t o , na
s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o as terras r e p r e s e n t a v a m a p e n a s 3 0 % d a f o r t u n a dessas duas
categorias de p r o d u t o r e s , a o p a s s o q u e e n t r e 1 8 0 1 e 1 8 5 0 t i n h a m u m p e s o de 5 7 , 6 %
na f o r t u n a de s e n h o r e s d e e n g e n h o c d e 3 8 % n a d o s p r o p r i e t á r i o s agrícolas. E m
c o n t r a p a r t i d a , a p a r t i c i p a ç ã o d o v a l o r d o s e s c r a v o s n a f o r t u n a dessas categorias au-
m e n t o u s i g n i f i c a t i v a m e n t e a o l o n g o d o p e r í o d o : p a s s o u d e 1 3 , 1 % a 3 7 , 2 % n o caso
dos senhores d e e n g e n h o e d e 1 8 , 4 % a 2 5 % n o d o s p r o p r i e t á r i o s a g r í c o l a s . Para todas
as d e m a i s c a t e g o r i a s — salvo o s c o m e r c i a n t e s e o pessoal d o m a r , cujas atividades
geralmente exigiam mais m ã o - d e - o b r a — o p e r c e n t u a l r e l a t i v o a esse i t e m baixou,
prova de q u e , c o m a c e s s a ç ã o d o t r á f i c o e a d e c o r r e n t e e l e v a ç ã o d o p r e ç o dos escravos,
estes j á n ã o e r a m u m b o m i n v e s t i m e n t o .

E s i g n i f i c a t i v o q u e os escravos r e p r e s e n t a s s e m 6 6 , 3 % d a f o r t u n a dos artesãos na


p r i m e i r a m e t a d e d o s é c u l o e n ã o m a i s q u e 1 2 , 4 % na s e g u n d a . A i n d a a s s i m , n o segun-
d o intervalo, e m 2/3 dos i n v e n t á r i o s dessa c a t e g o r i a e s t a v a m a r r o l a d o s escravos (contra
6/7 n o p r i m e i r o ) ; o q u e b a i x o u foi s o b r e t u d o o n ú m e r o q u e c a d a u m possuía: a média
de escravos p o r p r o p r i e t á r i o c a i u d e 4 p a r a 1 , 3 , e as e s p e c i f i c a ç õ e s apresentadas nos
inventários i n d i c a m q u e os escravos e r a m i d o s o s , c o m m a i s d e c i n q ü e n t a a n o s .
A cessação d o t r á f i c o , a e l e v a ç ã o dos p r e ç o s d o s e s c r a v o s , a a m e a ç a de abolição da
escravatura e as vendas p a r a as regiões c a f e e i r a s n o C e n t r o - S u l d o país certamente
afastaram os b a i a n o s dessa f o r m a t r a d i c i o n a l d e i n v e s t i m e n t o . D e f a t o , retornando
ainda u m a vez à c a t e g o r i a dos q u e viviam de r e n d a s , o b s e r v a - s e q u e a maioria dos que
alugavam escravos viveu e m o r r e u n a p r i m e i r a m e t a d e d o s é c u l o : correspondem a
dezoito inventários anteriores a 1 8 5 0 e a dez p o s t e r i o r e s , s e n d o q u e , destes, sete são da
década de 1 8 5 0 e só três posteriores a 1 8 6 0 .
O s preços da m ã o - d e - o b r a escrava, c o m o j á evoquei muitas vezes, sofreram eleva-
ção constante a partir de 1 8 1 9 . A t i n g i r a m seu p i c o c m 1 8 5 9 - 1 8 6 0 e, e m b o r a tenham
declinado até a A b o l i ç ã o , eram mais altos n o final d o período escravista do que no
início do século, prova de q u e essa m ã o - d e - o b r a c o n t i n u a v a a ser d e m a n d a d a . 32

C o m o se observa, o preço das escravas adultas era cerca de 7 5 % do preço dos h o -


mens. Isto p o u c o se alterou c o m o t e m p o : o p r e ç o das escravas oscilou entre 7 1 % c

8 5 % do preço dos escravos. C o m o estamos tratando de escravos urbanos, o m e n o r va-


637

T A B E L A 121

PREÇOS DE
ESCRAVOS LIBERTADOS (EM MIL REIS)
HOMENS
MUI HERES
IWU5
MF.N INAS
Nü.MFRO PREÇO NÚMERO PREÇO NUMERO PREÇO N0MF.RO PRFÍT»
1S19-1820 59 214 104 151 11 33 12 36
1825-1826 77 207 153 170 18 63 12 50
1829-1830 70 266 102 197 4 34 10 100
1835-1836 102 292 179 249 27 52 17 47
1839-1840 158 483 194 368 15 108 18 109
1845-1846 156 558 210 417 8 114 15 80
1S49-1850 161 543 210 407 26 134 19 150
1855-1856 199 874 214 695 16 233 25 222
1859-1860 184 1.261 217 1.004 29 294 56 346
1865-1866 170 1.165 280 887 29 267 35 212

1869-1870 172 1.067 325 882 45 242 77 237

1875-1876 188 784 332 616 10 370 20 323

1879-1880 134 800 218 583 1 300 3 233

1885-1886 71 482 104 382 - - - -


1887-1888 11 468 32 365 — —
- _

lor da m ã o - d e - o b r a f e m i n i n a d e v i a - s e a o f a t o d e q u e eram os h o m e n s — sobretudo os


* 33
que t i n h a m q u a l i f i c a ç ã o o u o f í c i o — q u e p o d i a m ser vendidos para outras províncias.
Isto e x p l i c a o g r a n d e n ú m e r o - d e m u l h e r e s alforriadas, benefício de q u e gozavam
t a m b é m as c r i a n ç a s : d e 1 8 1 9 - 1 8 2 0 a 1 8 6 9 - 1 8 7 0 , u m a m e n i n a escrava custava 3 1 %
do p r e ç o d e u m a escrava a d u l t a , e u m m e n i n o escravo 2 5 % d o preço de um adulto.
Assim, e n t r e os mais j o v e n s , os p r e ç o s dos dois sexos eram mais aproximados do que
entre os a d u l t o s , o q u e é c o n f i r m a d o pela m a i o r i a das séries de preços de escravos
O p r e ç o das escravas s u b i u m a i s r a p i d a m e n t e q u e o dos escravos, e a média dos
preços das m e n i n a s escravas era igual e às vezes superior à média do preço dos meni-
nos. Seria p o r q u e as m e n i n a s a m a d u r e c i a m mais rapidamente? N ã o há c o m o respon-
der, pois as cartas de alforria r a r a m e n t e precisam a idade dos « ^ ^ ^ ^
emprega formas vagas, c o m o m e n i n o , m e n i n a , c r i o u l i n h o e criou m * ^ ^ ^ n o

crianças), e rapaz, rapariga, m o ç o , m o ç a , 'ainda m o ç o ' , 'ainda moça , v o e ve


caso dos a d u l t o s ) . á os dados da
Ainda q u e estas i n f o r m a ç õ e s não permitam discernir faixas etánas, u ^
tabela deixam clara a acentuada elevação dos preços dos escravos que s e ^ ^ ^
fim dos anos 1830 e, c o m o v i m o s , atingiu seu m á x i m o em 1 5 _ ^
subseqüente, não m u i t o grande, prova q u e a demanda pers.st.a. M a s
638 BAHIA, SÉCULO X I X

TABELA 1 2 2
INVENTÁRIOS POSTMORTEMS ESCRAVOS, 1801-1889

N.E. N.I. N.I.S.E. % I.S.E.

1801-1810 543 65 6 9,2


1811-1820 1.087 '71 10 13,1
1821-1830 947 85 8 9,4
1831-1840 426 88 11 12,5
1841-1850 545 86 17 19,2

SUBTOTAL 3.548 395 52 13,2

1851-1860 1.155 240 55 22,9


1861-1870 501 83 27 32,5
1871-1880 385 159 82 51,6
1881-1889 311 238 171 71,8

SUBTOTAL 2.352 720 335 46,5

N.E. = número de escravos; N.I. = número de inventários; N.I.S.E. = número de inventários


sem escravos; "A escravos no total.
b I.S.E. = percentagem de inventários sem

tes d e S a l v a d o r ela c e r t a m e n t e d e c r e s c e u : o s i n v e n t á r i o s m o s t r a m q u e m e n o r n ú m e r o
de baianos passou a possuir m e n o r n ú m e r o de escravos.
A partir d a d é c a d a d e 1 8 7 0 o s e s c r a v o s figuram e m m e n o s d e m e t a d e dos inven-
tários. P r o f i s s i o n a i s l i b e r a i s , p a d r e s e a l t o s f u n c i o n á r i o s j á n ã o o s t i n h a m p a r a o serviço
d o m é s t i c o . O q u e restava c o m o e s c r a v o s d o m é s t i c o s e r a m m u l h e r e s i d o s a s , conserva-
das e m casa p o r c o m i s e r a ç ã o o u c o s t u m e . S ó p r o p r i e t á r i o s a g r í c o l a s , s e n h o r e s de
e n g e n h o , a l g u n s n e g o c i a n t e s e c o m e r c i a n t e s c o n t i n u a v a m a ter g r a n d e n ú m e r o de
escravos, p o r vezes m a i s d e v i n t e , e m geral t r a b a l h a n d o e m p l a n t a ç õ e s o u c o m o auxi-
liares d e c o m é r c i o . O p r e s t í g i o a n t e s a s s o c i a d o à p o s s e d e e s c r a v o s e s f u m a v a - s e : passa-
va a t é a ser de b o m t o m n ã o o s p o s s u i r , r e c o r r e n d o a e m p r e g a d o s d o m é s t i c o s assala-
riados o u s i m p l e s m e n t e a o s a g r e g a d o s e a g r e g a d a s q u e p o v o a v a m as casas abastadas.

Q u a n t o aos o u t r o s c o m p o n e n t e s das f o r t u n a s b a i a n a s , d e v e - s e n o t a r u m a q u e d a
das dívidas e m a t i v o . N a v e r d a d e , n o s i n v e n t á r i o s d o s c o m e r c i a n t e s , esse e l e m e n t o ,
q u e j á era f o r t e a n t e s d e 1 8 5 0 ( 3 7 > 7 % ) , t o r n o u - s e a i n d a m a i o r a p a r t i r d e m e a d o s do
s é c u l o , c h e g a n d o a 4 6 , 6 % . E n t r e o s n e g o c i a n t e s , e n t r e t a n t o , o c o r r e u u m a n í t i d a redu-
ç ã o , passando esse t i p o d e ' h a v e r p r o b l e m á t i c o ' d e 3 5 , 8 % a 1 5 % d a f o r t u n a total.
I n t e r r o m p o aqui estas análises fundadas e m dados b r u t o s . S e r i a p o r c e r t o interessan-
te t e n t a r c o m p r e e n d e r o q u e r e p r e s e n t a v a m as dívidas e m passivo para c a d a categoria
s ó c i o - e c o n ô m i c a . As tabelas 1 2 3 e 1 2 4 , q u e o b e d e c e m ao c o r t e d o p e r í o d o e m 1 8 5 0 ,
d ã o o n u m e r o de i n v e n t á r i o s ( N ) , o p e r c e n t u a l d o s q u e t ê m dívidas e m passivo ( % N ) ,
o percentual d o passivo de c a d a c a t e g o r i a s o b r e o m o n t a n t e d o passivo n o período, o
percentual d o passivo s o b r e o m o n t a n t e da f o r t u n a d e c a d a c a t e g o r i a s ó c i o - e c o n ô m i c a
e o p e r c e n t u a l das dívidas e m ativo s o b r e o total d a f o r t u n a de c a d a categoria.
N e n h u m a categoria s ó c i o - e c o n ô m i c a escapava a o e n d i v i d a m e n t o , q u e era m a i o r
o u m e n o r s e g u n d o o p e r í o d o d o século e a c a t e g o r i a c o n s i d e r a d o s . G l o b a l m e n t e ,
p o r é m , o e n d i v i d a m e n t o quase d o b r o u na segunda m e t a d e d o s é c u l o : 1 4 , 5 % c o n t r a
Í f W ^ - O D i N H O R o D O S BAIANOS
639

TABELA 123

-, W U . - i o
CATECOMAS N % N % PASSIVO
% PASsr/o/ToT.íx % ATTVO^TfTTl*
- " 1 'J i A I ,
Negociantes 27 48,1
-
15,6 5,2 35,8

-
Industriais 1 100,0
1,7 8,1
Profissionais liberais 4 73,5 1,0 4,7 10,5
Senhores de engenho 7 42,8 18,4 8,8 20,5
Renóftas 86 39,5 17,7 4,7 21,8
Donos de barcos 5 80,0 5,5 42,1 35,8
Comerciantes 34 54,0 5,9 5,0 37,7
Proprietários agrícolas 37 62,1 11,7 12,3 15,3
Padres 8 12,5
- 0,6 14,9
Fucdonirk» 5 100,0 1,6 10,9 22,8
Ofkiais subalternos 4 100,0 10,2 36,8 21,0
Ofkiais superiores 11 72,7 1,0 8,6 25,5
Artesãos 14 50,0 2,3 36,8 7,6
Sem ocupação 142 31,7 10,0 12,4 6,3
Marítimos 5 60,0 0,2 4,5 6,7

(*) Total da* dividas cm passivo = 3 5 6 : 9 3 1 de réis; total das dívidas em ativo = 1 . 0 9 1 : 8 3 3 de réis,

TAB ELA 1 2 4

DÍVIDAS EM PASSIVO E EM ATIVO NOS INVENTÁRIOS, 1851-1889*

CATEGORÍAS N %N % PASSIVO % PASSIVO/TOTAL % ATTVO/TOTAX.

Negociantes 8 1 7 4 , 0 3 5 . 4 1 4 * 6 1 5
' °

Industriais 1 2 6 6 , 7 3 , 4 1 3 , 2 7 , 4

Profissionais liberais 1 5 7 3 , 3 6 , 8 2 0 , 4 6 , 8

Senhores de engenho 1 0 1 0 0 , 0 3 , 0 J * J 6 , 9

Rentistas 2 2 4 5 1 , 3 2 3 , 7 Í F ¿

Dono* de barcos 1 1 0 0 , 0 2 , 5
0,0
4 6 , 6
^merciantet 3 9 7 4 , 3 1 3 , 3 3 9 . 0

Propriedades agrícolas 4 1

Padres 1 5

Funcionário*
OFICIAI* SUBALTERNO*

OFICIAIS SUPERIORES

ARTESÃOS 1 8 5 5 , 5 "

SEM OCUPAÇÃO 2 3 6

MARÍTIMOS ^J7 1 4 , 2 __ excedo DA

ti TOTAL DAS DIVIDAS E M P A S S I V E - 3 . 3 7 1 K M 3 D E R E A ; TOTAL D A S D I V I D A S C M ATIVO - 3 . 3 6 2 : 9 7 4 DE RE*. (

RNAIOF F O R T U N A , REFERIDA O O T E X T O .
MO BAHIA, SÉCULO X I X

7 , 9 % na p r i m e i r a . As d i f i c u l d a d e s e n f r e n t a d a s pela e c o n o m i a b a i a n a tiveram por certo


a l g u m a r e s p o n s a b i l i d a d e n i s t o . A e s t r u t u r a d o m e r c a d o de c o n s u m o era tal que, não
raro, se c o n t r a í a m dívidas para c o m p r a r a l i m e n t o s o u roupas; os p e q u e n o s comercian-
tes t o m a v a m e m p r e s t a d o para r e n o v a r o e s t o q u e ; os artesãos, para c o m p r a r instrumen-
tos de t r a b a l h o e escravos. F a z i a m - s e e m p r é s t i m o s t a m b é m para c o m p r a r jóias ou
roupas i m p o r t a d a s da E u r o p a . C o m o a b a l o da s o c i e d a d e a p ó s a I n d e p e n d ê n c i a , o
c r e s c i m e n t o das c a m a d a s m é d i a s e o a u m e n t o d o n ú m e r o dos alforriados, generalizou-
se o c o s t u m e de viver e m p a d r õ e s s u p e r i o r e s aos p e r m i t i d o s pelos recursos existentes.
M u i t o s i n v e n t á r i o s r e g i s t r a m o p a s m o de h e r d e i r o s a n t e h e r a n ç a s q u e supunham
m u i t o m a i o r e s , o q u e aliás a c a r r e t a v a f r e q ü e n t e s c o n t e s t a ç õ e s , q u e faziam o processo
se arrastar d u r a n t e a n o s .
N a p r i m e i r a m e t a d e d o s é c u l o , m a i s de 1/3 dos i n v e n t a r i a d o s de todas as catego-
rias t i n h a m dívidas, e x c e t o os padres ( e m o i t o c a s o s , s ó u m as registrava, e bastante
modestas). N o outro extremo — c o m dívidas q u e seus c r é d i t o s n ã o c o b r i a m —
estavam os p r o p r i e t á r i o s d e e m b a r c a ç õ e s , os o f i c i a i s s u b a l t e r n o s , os artesãos e os 'sem
p r o f i s s ã o ' . N a s d e m a i s c a t e g o r i a s , p o r é m , o e n d i v i d a m e n t o era i n s i g n i f i c a n t e , corres-
p o n d e n d o a m e n o s de 1 0 % d a f o r t u n a t o t a l e, e m geral, a m p l a m e n t e c o b e r t o pelas
dívidas e m a t i v o .
N a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o , a s i t u a ç ã o m u d o u de figura. O percentual de
inventários q u e registravam dívidas a u m e n t o u . A ú n i c a c a t e g o r i a e m q u e apenas 1/3
dos i n v e n t a r i a d o s a p r e s e n t o u dívidas foi a dos ' s e m p r o f i s s ã o ' ; e m c o n t r a p a r t i d a , elas
superavam os c r é d i t o s , q u e é afinal o q u e i m p o r t a . N o s i n v e n t á r i o s de todas as demais
categorias, apenas u m — de u m p r o p r i e t á r i o d e e m b a r c a ç ã o — registrava dívidas
superiores a o v a l o r d a t o t a l i d a d e dos b e n s , r e s u l t a n d o n u m a h e r a n ç a negativa. C o m o
a situação dos p r o p r i e t á r i o s de e m b a r c a ç õ e s j á n ã o era m u i t o favorável na primeira
metade d o século, p o d e - s e s u p o r q u e a c a t e g o r i a estava e m grandes dificuldades. Os
bergantins, lanchas e alvarengas arrolados n o s i n v e n t á r i o s e r a m c o m freqüência descri-
tos c o m o velhos, o q u e faz s u p o r q u e essas e m b a r c a ç õ e s j á n ã o navegavam, consti-
t u i n d o mais um peso q u e u m a f o n t e de rendas para seus p r o p r i e t á r i o s .
N ã o se deve, p o r é m , generalizar, c o m o o prova a h e r a n ç a negativa de Eufrosina
C o u t o da Silva. C a s a d a , m ã e de o n z e filhos, m o r t a e m 1 8 8 2 , d e i x o u aos herdeiros uma
verdadeira frota de p e q u e n a s e m b a r c a ç õ e s , sem dúvida e m e x c e l e n t e estado: nove alva-
rengas e seis lanchas, n o valor de 7 5 : 0 0 0 de réis. A isto se acrescentavam um terreno
de 1 : 2 0 0 de réis c m I t a p a j i p c , 1 : 6 3 5 de réis em móveis e 2 : 0 0 0 de réis em diversos
tipos de madeira para reparo das e m b a r c a ç õ e s . M a s este belo p a t r i m ô n i o estava crivado
de dívidas a diversos grandes negociantes, n o valor de 8 4 : 5 1 3 de réis. Somadas à
despesa de 8 5 2 . 0 0 0 réis referente ao inventário, estas resultaram numa herança negativa
de 5 : 5 6 0 de réis. O m a r i d o , c u j o s bens e profissão não foram declarados, mas que era
o tutor legal dos filhos de E u f r o s i n a , viu-se o b r i g a d o a rejeitar a herança.
As dívidas superavam os créditos n o caso dos industriais, dos profissionais liberais,
dos senhores de e n g e n h o , dos proprietários agrícolas, dos funcionários e do pessoal do
641

mar. A f o r t u n a d o s profissionais liberais cst »v , r n m „ , • J

<» * * - p t o p t i c i i ñ o s . ; n L : ~ x ^ r 20
- 4v

média, a l c a n ç a v a m 1 8 , 3 % d o toral. E m s i t u a d o « n . P
* q u c
' c m

« a u n a m o s t m h a m g r a n d e s dív.das ( 4 1 , . % de suas fortunas) c c r é d i t o s I n s i g n e °


( 6 , 9 % ) . Isto n a o s u r p r e e n d e . pots são c o n h e c i d a s as dificuldades dessa classe de pró
d u . o r e s . p a m l h a d a s t a m b é m pelos d e m a i s proprietários agrícolas, mas cm níveis mais
moderados ( 1 8 > 3 % d e dívidas para 6 , 8 % de c r é d i t o s ) .
N a s o u t r a s c a t e g o r i a s s o c i o e c o n ó m i c a s , c o m o negociantes e padres, as dívidas em
passivo e q u i l i b r a v a m - s e c o m as registradas e m ativo, o u estas superavam as primeiras.
N ã o o b s t a n t e a elevada p e r c e n t a g e m de inventários que registram dívidas, as
heranças negativas f o r a m p o u c a s e m t o d o o s é c u l o : corresponderam a 2 , 5 % do total
dos i n v e n t á r i o s d e 1 8 0 1 a 1 8 5 0 e a 5 % daqueles d e 1 8 5 1 - 1 8 8 9 . Tipicamente, per-
t e n c i a m a a r t e s ã o s , a p e q u e n o s f u n c i o n á r i o s , aos q u e viviam de rendas ou aos 'sem
profissão*, b e m c o m o a p e q u e n o s agricultores e c o m e r c i a n t e s . Entre as fortunas de
maior v u l t o , s ó e m d o i s i n v e n t á r i o s h o u v e saldo negativo: a de Eufrosina Couto da
Silva e a d o n e g o c i a n t e p o r t u g u ê s R a i m u n d o F r a n c i s c o de M a c e d o Magaráo, que
m o r r e u s o l t e i r o cm 1 8 7 2 . N e s t e c a s o , o inventariado superestimara seus haveres:
avaliando-os e m 1 9 4 : 2 6 9 d e réis, d e i x o u legados n o valor de 5 2 : 2 0 0 de réis, mas
suas dívidas f o r a m avaliadas e m 1 8 1 : 1 5 8 de r é i s . 34
A tabela que se segue mostra a
d i s t r i b u i ç ã o , p e l a s diversas c a t e g o r i a s , desses inventários q u e apresentaram saldo
negativo:

TABELA 125

1801-1850- 1851-1889"
TAMANHO DAS FORTUNAS*

7 12
até 1:000

1:100 a 2:000 1 * *
9
2:100 a ) 0:000

2 1 0

10:100 a 50:000
2
50:100 a 200:000

(*) Rm contos de rêU. (**) Número aí .soluto de inventários.


V / 1,111 ivin \ / - 1

Na segunda metade do século, U pequenas heranças ^ ^ ^ J ^ ^ ^


representando 1/3 do conjunto dos inventários (o valor médio ^ ^ e r A
fortuna

igualmente numerosas foram as heranças negativas detxadas por _p , d i ç õ c s

,
K a~ . n.nnn , 5 0 : 0 0 0 de réi.s. Entre dez mventános n e s s a v
se situava na faixa dos 1 0 : 0 0 0 a 5 0 : 0 0 0 cie reis. ciure
:
» • ^ ^ ^ comerciantes
sete fornecem informações precisas: três pertenciam a agr.cu to , ^
(dois quitandeiros e uma padeira) e o sétimo a um farmacêutico-
desses inventários era 1 7 : 0 0 0 de réis.
642 BAHIA, SÉCULO X I X

I g u a l m e n t e n u m e r o s o s foram os inventários c o m saldo negativo correspon-


d e n t e s a f o r t u n a s n a faixa d e 2 : 0 0 0 e 1 0 : 0 0 0 d e réis. E x a m i n e i n o v e deles, mas só um
trazia i n f o r m a ç õ e s precisas: o d o p o r t u g u ê s E m i l i a n o M o r e i r a de C a r v a l h o e Silva,
q u e , a t é 1 8 7 4 , s u s t e n t a r a m u l h e r e filhos c o m a l o c a ç ã o de seus o i t o escravos, aliás seus
ú n i c o s b e n s . D e i x o u 7 : 4 0 0 d e réis e m e s c r a v o s , m a s t a m b é m dívidas n o valor de 9 : 4 6 8
d e réis, dos quais 6 : 8 6 8 de réis e r a m d e v i d o s a o r i c o e i n f l u e n t e c ó n e g o e político
H e n r i q u e de S o u z a B r a n d ã o , q u e l h e e m p r e s t a r a a j u r o s . D o e n t e , E m i l i a n o foi se
tratar e m P o r t u g a l e lá m o r r e u , d e i x a n d o d e s a m p a r a d a sua f a m í l i a b r a s i l e i r a . 35

P o u c o n u m e r o s o s n o c o n j u n t o , o s i n v e n t á r i o s c o m s a l d o n e g a t i v o t ê m uma
f r e q ü ê n c i a q u e d e i x a c l a r o q u e o s b a i a n o s p o u c o o u m e d i a n a m e n t e abastados — cujas
h e r a n ç a s variavam e n t r e a l g u m a s c e n t e n a s d e m i l réis e 1 0 : 0 0 0 d e réis — estavam mais
expostos a esse revés. E n ã o se p o d e a t r i b u i r tal d e s f e c h o a m á g e s t ã o : q u a n d o a fortuna
era m o d e s t a , o s b e n s e r a m n e c e s s a r i a m e n t e p o u c o d i v e r s i f i c a d o s e m u i t a s vezes insu-
ficientes p a r a assegurar o s u s t e n t o de u m a f a m í l i a o u m e s m o de u m a pessoa.
A raiz d o p r o b l e m a está, a n t e s , n u m e s t i l o d e v i d a . O s b a i a n o s dessas faixas de
f o r t u n a viviam s e m se p r e o c u p a r m u i t o c o m o a m a n h ã , c o n t r a i n d o dívidas freqüentes
e e m p r e s t a n d o d i n h e i r o c o m p r o d i g a l i d a d e . P o r m o d e s t o s q u e fossem os bens, eles
situavam o p r o p r i e t á r i o a c i m a dos q u e n a d a t i n h a m . B a s t a v a e n t ã o u m a doença para
q u e as dívidas se m u l t i p l i c a s s e m , c o m as despesas d e m é d i c o e f a r m á c i a . Aliás, dívidas
de ú l t i m a h o r a c o n s t a m d e 6 6 % desses i n v e n t á r i o s , a o passo q u e n o s d e faixas de maior
f o r t u n a , s e m registro de o u t r a s dívidas, n ã o p e s a m t a n t o .

A d e s p r e o c u p a ç ã o c o m o f u t u r o n ã o era, aliás, e x c l u s i v i d a d e dos m e n o s afortuna-


dos o u dos q u e d e i x a v a m h e r a n ç a s n e g a t i v a s . E r a u m a a t i t u d e d i a n t e da vida que
m a r c a v a t o d o s os b a i a n o s , fosse q u a l fosse s u a c a t e g o r i a social o u nível de fortuna. Os
inventários negativos só f a z e m revelá-la, v e r d a d e i r a e p i f a n i a q u e traz à t o n a um traço
arraigado q u e , aliás, a f ó r m u l a D e u s d a r á ' — d i t a n u m t o m e n t r e a o r d e m e a prece,
£

j a m a i s c o m o i n t e r r o g a ç ã o — expressa l a p i d a r m e n t e . Esse D e u s d a r á ' estava nas bocas


c

de todos os b a i a n o s . D e u s ' d a r i a ' ao r i c o para fazê-lo m a i s r i c o ; daria t a m b é m ao pobre


o seu q u i n h ã o , mas n ã o d i r e t a m e n t e : ele precisava de u m p a t r o n o , u m mediador. As
riquezas q u e D e u s daria n ã o e r a m n e c e s s a r i a m e n t e materiais: q u a l q u e r novo laço de
parentesco, relação social o u de t r a b a l h o e s t a b e l e c i d o era visto c o m o d o m precioso,
suscitando a esperança de g a n h o s materiais. É preciso ter c o n v i v i d o c o m esse traço
saliente da mentalidade b a i a n a para c o m p r e e n d e r o papel relativo da riqueza material
c o m o critério de classificação social.

RIQUEZAS E POBREZAS

E n t r e os inventários que estudamos, vários eram sem dúvida de baianos m u i t o ricos,


mas apenas 1 1 % dos inventariados pareciam a salvo de u m revés. Por outro lado,
temos b o n s indícios de q u e , se não todas, a grande maioria das pessoas muito abasta-
da monas n o s é c u l o XIX estava e n t r e nossos i n v e n t a r i o
, , c , ,s.,, , , , , „ , „ „ . . . , , -
( h n e g o c i a n t e s , c o m o ¡i foi v i s l o , d e t i n h a m 3 3 % da r i a u e « Kr
m.ores forana, era a d e M i g u e l P e t e . D i a s dos S a n c o , , fe^^ * ¡

" ™ é S
' ^ * — - t a m e n c o . Kr, membro
da A s s o c i a ç ã o ( o m e r e u l d a B a h í a e a c o n i s t a d o , p r i n c i p a i s b a n c o , da cidade. T i n h a
também .polices do [«ouro da P r o v í n c i a e d o g o v e r n o centra!. Q u a n d o de sua
morte, ,i encerrara set, p r ó p n o n e g ó c i o , p o i s n ã o c o n s t a d o inventário n e n h u m a
avaliação d c seus b e n s m o v e s , E r a p o i s u m m e r o capitalista", designação c o m u m e n t e
conferida a esses « - c o m e r c i a n t e s q u e p e r m a n e c i a m ligados aos n e g ó c i o s , fosse pela
p a n k i p a ç i o c m o u t r a s s o c i e d a d e s c o m e r c i a i s , fosse investindo seu dinheiro em empreen-
d i m e n t o s b a n c á r i o s o u i n d u s t r i a i s . A f o r t u n a d c M i g u e l Ferreira Dias dos Santos —
uma grande fortuna baiana típica — t i n h a a s e g u i n t e c o m p o s i ç ã o : imóveis ( 1 6 7 : 3 3 8
d c râs), a ç õ e s b a n c á r i a s ( 1 7 4 : 7 1 0 d e r é i s ) , a ç õ e s de c o m p a n h i a s de seguro ( 1 : 1 6 0 de
réis), a ç õ e s d e c o m p a n h i a s c o m e r c i a i s ( 6 2 : 1 2 0 d c r é i s ) , apólices d o g o v e r n o provincia]
( 1 0 : 3 0 0 de r é i s ) , a p ó l i c e s d o g o v e r n o c e n t r a l ( 1 0 1 : 6 0 0 de réis), d i n h e i r o em conta
c o r r e n t e em b a n c o (30:679 de r é i s ) , d i n h e i r o d c u m a h i p o t e c a ( 5 3 : 5 5 3 de réis),
d i n h e i r o l í q u i d o e n c o n t r a d o n a casa ( 1 3 : 4 0 0 d c r é i s ) , d i n h e i r o entregue aos herdeiros
( 1 0 0 : 0 0 0 d e r é i s ) , m ó v e i s ( 3 3 3 . 0 0 0 r é i s ) , b a i x e l a ( 6 0 3 . 0 0 0 réis), talheres em prata
( 1 3 5 . 0 0 0 r é i s ) , u m par d c c a s t i ç a i s ( 5 5 . 0 0 0 réis) e jóias cm o u r o ( 2 6 1 . 0 0 0 réis).
U m a s ó l i d a f o r t u n a , p o r c e r t o , q u e perfazia o total de 7 1 6 : 2 4 7 de réis. M a s o
n e g o c i a n t e d e i x o u d í v i d a s . A l g u m a s , c o n t r a í d a s j u n t o a c o m e r c i a n t e s c o m que o
i n v e n t a r i a d o fizera n e g ó c i o s , e r a m p o n d e r á v e i s , s o m a n d o 8 8 : 8 8 9 dc réis; as outras,
c o n t r a í d a s j u n t o a m e m b r o s d a f a m í l i a — c u n h a d o s , c u n h a d a s e prima — , montavam
a 4 7 : 2 4 5 d c réis. Esses 1 3 6 : 1 3 4 de réis d c dívidas p o d i a m ser f a c i l m e n t e cobertos por
um a t i v o 5 , 5 vezes m a i o r , c seus dez filhos, dos q u a i s apenas um m e n o r , herdaram
5 8 : 0 0 0 d c réis c a d a um. 3 6

N o m e s m o a n o , m o r r e u c teve seus b e n s i n v e n t a r i a d o s o capitão M a n o e l Agosti-


n h o da C r u z c M e l l o , q u e d e i x o u à m u l h e r e ao filho 4 5 3 . 0 0 0 réis, móveis e um
terreno v a g o . ' ' 7
Ainda em 1 8 8 1 , faleceu M a n o e l A n t ô n i o Vaz C r u z , que tinha por
ú n i c o b e m u m a escrava, n o valor d c 4 5 0 . 0 0 0 réis, libertada por cláusula testamentária
"pelos b o n s serviços p r e s t a d o s " . Isto para grande prejuízo dc sua mulher, que, alem
dos 2 3 8 . 0 0 0 réis d o e n t e r r o , teve q u e gastar 1 9 3 . 0 0 0 réis para fazer o inventário desse
ú n i c o b e m , já q u e tinha urna filha m e n o r . 3 8

Por f i m , foi t a m b é m nesse a n o q u e m o r r e u J o a q u i n a Ana — assim, sem so


me - , alforriada nascida na Africa e solteira. Seus ' b e n s ' eram 8 3 2 . 0 0 0 réis, m ó v a s
( 2 0 . 0 0 0 réis,, jóias ( 1 5 7 . 0 0 0 réis), roupas ( 5 5 . 0 0 0 réis) e 4 1 8 . 0 0 0 réis de dois crédi-
tos q u c tinha j u n t o aos africanos D e l f i n a e G a l d i n o . Aliás, foram encontrados e m ^
casa 1 8 2 . 0 0 0 réis pagos pela m e s m a D e l f i n a , o que sugere que a dív. a e¡ ^
J o a q u i n a Ana deixou todos os seus bens para quatro mulheres tamb m a
alforriadas.
644 BAHIA, SÉCULO X I X

N ã o tentarei c o m p a r a r os magros b e n s deixados p o r esses três b a i a n o s c o m os de


M i g u e l Ferreira. Q u e r o é s u b l i n h a r a e n o r m e d i s p o n i b i l i d a d e q u e existia entre esses
m e n o s favorecidos, q u a n d o se tratava de ajudar aos mais p o b r e s . Solidariedades tecidas
n a miséria e q u e , se e r a m i n s u f i c i e n t e s para tirar a l g u é m da sua c o n d i ç ã o de penúria,
muitas vezes a j u d a v a m a dar u m p r i m e i r o passo.
Esse gosto pela ajuda m ú t u a , pela s o l i d a r i e d a d e , n ã o p o d e ser d e t e c t a d o apenas
entre os p o b r e s : estava presente e m todas as c a m a d a s s o c i a i s , e os mais abastados
sabiam ser tão generosos q u a n t o os m u i t o p o b r e s .
M a r i a da C o n c e i ç ã o , a f r i c a n a a l f o r r i a d a , m o r r e u e m 1 8 5 4 c o m " m a i s ou menos
7 0 a n o s " . M o r a v a na rua da C o n c e i ç ã o d o B o q u e i r ã o , n u m a casa de sua propriedade,
que foi avaliada e m 9 0 0 . 0 0 0 réis. P o s s u í a a i n d a u m escravo ( 8 1 1 . 0 0 0 réis), móveis
( 1 0 . 0 0 0 réis), jóias ( 5 8 . 0 0 0 réis) e 6 8 0 . 0 0 0 réis e m d i n h e i r o , n u m total de 2 : 4 5 9 de
réis. Solteira e s e m filhos, M a r i a d a C o n c e i ç ã o e x p r i m i u sua solidariedade através de
legados à Igreja — p o r q u e era p i e d o s a e p e r t e n c i a a três i r m a n d a d e s religiosas — e a
algumas pessoas. G e r v á s i o de S o u z a V i e i r a — filho de s u a e x - p a t r o a , M a r i a Luísa da
C o n c e i ç ã o — , n o m e a d o seu h e r d e i r o , r e c e b e u a m a i o r p a r t e . A i r m ã de Gervásio
recebeu u m legado de 2 5 . 0 0 0 réis. F o r a m a i n d a c o n t e m p l a d a s duas afilhadas, Maria
J o s é e M a r i a dos Passos, q u e r e c e b e r a m c a d a u m a 3 0 . 0 0 0 réis e dois africanos ainda
escravos, à guisa de auxílio para a c o m p r a de sua l i b e r d a d e . A s s i m , ao lado dos legados
à Igreja, havia outros a particulares de diversas p o s i ç õ e s na escala social, uns também
alforriados, outros livres antes dela, pois q u e e r a m filhos de sua ex-patroa, outros ainda
escravos. Esses legados expressam r e c o n h e c i m e n t o , p o r u m l a d o , e generosidade, por
o u t r o . N o e n t a n t o , M a r i a da C o n c e i ç ã o n ã o a l f o r r i o u seu p r ó p r i o escravo, que passou
à propriedade de G e r v á s i o . 4 0

C i p r i a n o das C h a g a s , t a m b é m a l f o r r i a d o , era a f r i c a n o da n a ç ã o J e j e . Casado com


A n a Luísa de B i t h e n c o u r t , n ã o t i n h a filhos. E r a cego e m o r r e u em 1 8 5 6 , tendo
e n c o m e n d a d o sua a l m a a N o s s a S e n h o r a das P o r t a s Celestes e p e d i d o que seu corpo
fosse carregado por seis p o b r e s , a q u e m se daria a e s m o l a de 1 . 0 0 0 réis. O inventário
dos bens de C i p r i a n o n ã o arrola m ó v e i s , n e m j ó i a s , n e m roupas. E m contrapartida,
são inventariados dez escravos, dos quais três m u l h e r e s e q u a t r o crianças. O s tres
escravos h o m e n s , t a m b é m da n a ç ã o J e j e , foram libertados por cláusula tesramentária,
mas não gratuitamente: cada u m devia pagar 6 5 0 . 0 0 0 réis à mulher e herdeira de
C i p r i a n o . Por o u t r o lado, este lhes dava o usufruto, até a m o r t e , de uma casa cérrea.
Cipriano tinha três casas, n o valor de 1 : 9 0 0 de réis, e os sete escravos não alforriados
valiam 4 : 0 0 0 de réis. A alforria dos três escravos — e m b o r a a um preço declarado
inferior a seu valor — foi a herança que deixou à esposa. M a s Cipriano rogou aos ex-
escravos que velassem por ela e a auxiliassem em caso de necessidade. Para garantir
esse apoio, ofereceu-lhes moradia gratuita. Sua atitude é prova de generosidade, mas
uma generosidade limitada pela necessidade de manter laços de dependência que
fariam dos recém-alforriados os 'clientes' de sua m u l h e r . 41

C o m os inventários de J o ã o Francisco de Almeida e de Bento J o s é de Almeida,


LIVRO VII - o DINHEIRO DOS BAIANOS
64S

m u d a m o s d e m e i o s o c i a l e de faixa de f o r t u n a O

Salvador e m 1 7 9 6 , era filho de J o ã o de O l i v d r a e Almeida HZ \ ™


Ribeiro. S o . r e i r o , e m seu , « „ , „ , c s c r i t o Z ^ t ^ t l ^ ^
5
* antes de sua m o r t e , em 1RSS
n o m e o u s e , t e s t a m e n t e i r o s : s u a p r i m a e c o m a d r e I n ê s de C a s t r o e A b r e u C o e l h o (que
aceitou o e n c a r g o ) as d u a s i r m ã s s o l t e i r a s , U m b e l i n a e  n g e l a do B o n f i m , o pá o c o
V i c e n t e F e r r e i r a O l i v e i r a , e d o i s a m i g o s , J o s é P e d r o d e S o u z a Paraízo e Constantin
L u c a s P e s s o a d a S i l v a . E r a m e m b r o d a i r m a n d a d e d o S a n t í s s i m o S a c r a m e n t o da R u a
do Passo e t a m b é m d a S a n t a C a s a , o q u e i n d i c a p o s i ç ã o social elevada. E n c a r r e g o u a
p r i m a I n ê s d e C a s t r o d e e n t e r r á - l o c o m o b e m l h e parecesse e n ã o pediu missas para o
r e p o u s o d e s u a a l m a . T a m p o u c o i n v o c o u s a n t o s m e d i a n e i r o s n o início de seu testa-
m e n t o : s ó a S a n t í s s i m a T r i n d a d e . J o ã o F r a n c i s c o , q u e era d i r e t o r da E s c o l a de M e d i -
c i n a , d e i x o u a s e g u i n t e f o r t u n a : u m s o b r a d o ( 1 4 : 0 0 0 de réis), ações da C a i x a E c o n ô -
m i c a ( 3 9 : 7 0 0 de r é i s ) , d i n h e i r o l í q u i d o ( 1 : 2 4 0 de r é i s ) , salário c o m o diretor da faculdade
( 1 : 2 0 0 de r é i s ) , d i v i d e n d o s d a C a i x a E c o n ô m i c a ( 8 0 1 . 0 0 0 réis), aluguel da loja que
f u n c i o n a v a n o s o b r a d o ( 1 4 0 . 0 0 0 r é i s ) , e s c r a v o s ( 4 : 4 5 0 de réis), móveis ( 4 4 8 . 0 0 0 réis),
jóias ( 1 7 0 . 0 0 0 r é i s ) e o b j e t o s ( 5 4 . 0 0 0 r é i s ) . N o t o t a l , 6 2 : 2 0 3 de réis.
N ã o h a v i a d í v i d a s a s u b t r a i r . D e s p e s a s r e f e r e n t e s a gastos c o m a hospitalização de
dois e s c r a v o s ( 1 0 6 . 5 6 0 r é i s ) , o e n t e r r o de u m deles ( 4 . 8 0 0 réis), o enterro do próprio
J o ã o F r a n c i s c o ( 7 9 2 . 6 2 0 r é i s ) e o i n v e n t á r i o ( 4 7 3 . 0 0 0 réis) s o m a r a m 1 : 3 7 7 de réis.
R e s t a r a m , p a r a h e r d e i r o s e l e g a t á r i o s , 6 0 : 8 2 6 de réis. C o m o f o r a m distribuídos?
J o ã o F r a n c i s c o t i n h a o n z e e s c r a v o s (três h o m e n s e o i t o m u l h e r e s ) . Libertou três
(duas m u l h e r e s e u m h o m e m ) , n ã o só g r a t u i t a m e n t e , c o m o d e i x a n d o 4 0 0 . 0 0 0 réis a
cada u m . D u a s i r m ã s c a s a d a s r e c e b e r a m l e g a d o s de 8 : 0 0 0 de réis e o restante da he-
rança foi p a r t i l h a d o e n t r e as i r m ã s s o l t e i r a s , q u e m o r a v a m c o m ele, e a prima Inês de
C a s t r o , v i ú v a e m ã e d e três filhos. A s i r m ã s solteiras r e c e b e r a m 2 0 : 0 0 0 de réis e a
m e t a d e d o s e s c r a v o s , e a p r i m a h e r d o u a c a s a , c o m t o d o s os móveis, jóias e objetos de
prata, assim c o m o a m e t a d e d o s e s c r a v o s , 3 : 7 0 0 d e réis e m ações e 2 : 0 0 0 de réis em
d i n h e i r o l í q u i d o . F i c a v a , p o r é m , c o m o e n c a r g o d e abrigar s o b seu teto as duas irmãs,
até q u e m o r r e s s e m . 4 2

C o m B e n t o J o s é de A l m e i d a r e e n c o n t r a m o s u m g r a n d e negociante. Português de
n a s c i m e n t o , da região d o P o r t o , t i n h a 7 2 a n o s e m 1 8 5 6 , q u a n d o escreveu seu testa-
m e n t o , p o u c o a n t e s de m o r r e r . E r a s ó c i o d o i r m ã o , J o s é P i n t o Rodrigues da Costa
era este o n o m e de f a m í l i a d o pai, e n ã o se sabe p o r que B e n t o J o s é se tra
™ ™2 or

num A l m e i d a — n u m n e g ó c i o de ferragens. M a s a sociedade possuía tamb m j r e s


barcos e escravos, c n e n h u m desses itens foi i n v e n t a r i a d o : já vimos que nao raro ^
parte da f o r t u n a entrava n o i n v e n t á r i o . S o l t e i r o , B e n t o J o s é tinha três (.lhos na
- Luís G o n z a g a de A l m e i d a , B e n t o J o s é de A l m e i d a e Amália Leopoldina da C o
ção — , q e d e c l a r o u seus herdeiros universais. O negociante era umal ngura
U p ^^
m e m b r o da prestigiosa c o n f r a r i a da S a n t a C a s a de Misericórdia, da ° r d e m

S ã o F r a n c i s c o e de pelo m e n o s dez outras irmandades religiosas. M u i t o p.ea^ ^


em seu t e s t a m e n t o — escrito aliás em estilo um tanto comercial que
646 BAHIA, SÉCULO X I X

M a r i a e t o d o s o s S a n t o s e S a n t a s d a C o r t e C e l e s t e " se d i g n a s s e m a " g e r i r e d e f e n d e r "


seus " i n t e r e s s e s p e r a n t e o T r i b u n a l D i v i n o " e q u e s e u " A n j o d a G u a r d a " se dignasse
a assisti-lo e a c o m p a n h á - l o " n a h o r a final d e s e u t r e s p a s s e " . A s m i s s a s a rezar eram
m u i t a s : q u i n h e n t a s , c e m das q u a i s p e l a a l m a d e seus i r m ã o s e i r m ã s , as d e m a i s pelo re-
p o u s o d a sua p r ó p r i a . D e v i a s e r e n t e r r a d o n a i g r e j a d e S ã o D o m i n g o s , c o m o traje da
O r d e m T e r c e i r a d o m e s m o n o m e . S e u s b e n s c o m p r e e n d i a m : i m ó v e i s ( 3 7 : 4 0 0 de réis),
a ç õ e s b a n c á r i a s ( 1 1 1 : 3 0 5 d e r é i s ) , d í v i d a s e m a t i v o ( 1 3 4 : 2 9 5 d e r é i s ) , escravos ( 9 : 7 0 0
d e r é i s ) , m ó v e i s ( 4 4 2 . 0 0 0 r é i s ) , j ó i a s ( 1 5 0 . 0 0 0 réis) e o b j e t o s ( 1 8 7 . 0 0 0 r é i s ) . T o t a l ,
2 9 3 : 4 7 0 d e réis.
P r o p r i e t á r i o d e q u i n z e e s c r a v o s , e l e l i b e r t o u q u a t r o g r a t u i t a m e n t e e u t i l i z o u os
recursos d i s p o n í v e i s p a r a f a z e r n u m e r o s a s d o a ç õ e s : 1 : 2 0 0 d e réis p a r a d u a s moças
alforriadas, 9 0 0 . 0 0 0 réis ( v a l o r d e d u a s c a s a s ) p a r a d o i s e s c r a v o s n a m e s m a situação,
8 0 0 . 0 0 0 réis p a r a dois g ê m e o s , 1 0 0 . 0 0 0 réis p a r a o filho d o c o m p a d r e B a r b o s a funileiro,
1 : 0 0 0 de réis a u m a a f i l h a d a q u e v i v i a c o m e l e , 1 : 2 0 0 d e réis a c a d a a f i l h a d o , 5 0 0 . 0 0 0
réis a seu c a i x e i r o A n t ô n i o A l v e s , 4 0 0 . 0 0 0 réis a s e u s o b r i n h o J o s é de S á P i n t o , 1 : 2 0 0
de réis a t o d o s o s q u e t r a b a l h a v a m h á m a i s d e d o i s a n o s e m s u a l o j a , 3 : 0 0 0 de réis a
seu i r m ã o e s ó c i o , 1 : 2 0 0 d e réis a s e u o u t r o i r m ã o e 5 0 0 . 0 0 0 réis a s e u p r i m o A n t ô n i o
Rodrigues, n u m total de 1 4 : 4 0 0 de réis.

A estes l e g a d o s p r o f a n o s a c r e s c e n t a v a m - s e o s p i e d o s o s : 1 : 0 0 0 d e réis a o C o l é g i o
dos Ó r f ã o s d e S ã o J o a q u i m , 5 0 0 . 0 0 0 réis a o C o l é g i o d o s Ó r f ã o s d o S a g r a d o C o r a ç ã o
de J e s u s , 1 : 0 0 0 d e réis à S a n t a C a s a d e M i s e r i c ó r d i a , 1 : 0 0 0 d e réis à I r m a n d a d e do
S a n t o S a c r a m e n t o d a I g r e j a d a C o n c e i ç ã o d a P r a i a , 1 : 0 0 0 d e réis à V e n e r á v e l O r d e m
T e r c e i r a de S ã o D o m i n g o s , 5 0 0 . 0 0 0 réis à I g r e j a M a t r i z d e N . S r a . d e B r o t a s , 1 : 6 0 0
de réis para o d o t e de q u a t r o m o ç a s p o b r e s e h o n e s t a s e , finalmente, 1 2 0 . 0 0 0 réis para
o s p o b r e s d o C o n v e n t o d e S ã o F r a n c i s c o , p e r f a z e n d o u m t o t a l de 6 : 7 2 0 de réis.
O restante d a t e r ç a de q u e p o d i a d i s p o r — 7 6 : 7 0 6 de réis — d e v i a ser distri-
b u í d o a seus i r m ã o s q u e v i v i a m e m P o r t u g a l . 4 3
T o d o m u n d o r e c e b e r i a a sua parte,
portanto, da fortuna que D e u s permitira J o s é B e n t o a c u m u l a r : filhos naturais, em
p r i m e i r o lugar, d e p o i s i r m ã o s , p r i m o s e s o b r i n h o s , n ã o p o r q u e estes estivessem em
dificuldades, mas p o r q u e assim g u a r d a r i a m viva a l e m b r a n ç a d o f a l e c i d o e os laços de
família se e s t r e i t a r i a m . N ã o f o r a m e s q u e c i d o s o s q u e t i n h a m t r a b a l h a d o o u ainda
trabalhavam para o sucesso d o s n e g ó c i o s d o finado: g e s t o d e r e c o n h e c i m e n t o e, ao
m e s m o t e m p o , f o r m a de r e f o r ç a r o s laços d e fidelidade q u e d e v i a m u n i r patrões e
e m p r e g a d o s . E m seguida v i n h a m o s a f i l h a d o s , n u m e r o s o s , p o r q u e J o s é B e n t o já não
se lembrava d o n o m e de b o m n ú m e r o deles ( t o d o b a i a n o , rico o u p o b r e , tinha afi-
lhados, m a n e i r a de a m p l i a r as relações sociais e a c l i e n t e l a p r o n t a a servir e a ser útil.
mas que i m p u n h a t a m b é m deveres). P o r fim, expressou sua gratidão aos escravos que
o t i n h a m servido, c o n t e m p l a n d o inclusive os filhos deles. Pediu às ex-escravas que
permanecessem fiéis a seus filhos naturais e os V i s i t a s s e m ' s e m p r e , pois sabia que tal
pedido teria ressonância e q u e tais visitas seriam ocasiões sempre renovadas de trocas
dc serviços.
Í^ i L-iL
C Vq D
« » BAIANOS 647

Esta e v o c a ç ã o c o n t í n u a d o s laços q u e u n e m pessoas de c o n d i ç õ e s tão difere,,


ntcs
esta p r e s e n t e e mm u i t o s t e s t a m e n t o s , pois nessa s o c i e d a d e na qual os h o m e n s vin
am
de t o d a p a r t e e d e l u g a r n e n h u m , na qual a riqueza era muitas vezes efémera e o
a m a n h a i m p r e v i s í v e l , o q u e c o n t a v a , afinal de c o n t a s , eram j u s t a m e n t e os laços que se
t e c i a m e m t o d a s as o c a s i õ e s e q u e se desejava fossem imperecíveis
N a escala d e v a l o r e s , a riqueza d e s e m p e n h a v a u m papel i m p o r t a n t e , mas não
essencial. E n t r e u m n e g o a a n t e q u e deixava várias c e n t e n a s de c o n t o s de réis e alguém
q u e n ã o p o d i a legar m a i s q u e a l g u m a s d e z e n a s de m i l h a r e s de réis havia u m a imensa
d i s t â n c i a . M a s u m m é d i c o , u m f u n c i o n á r i o , u m p a d r e , u m s e n h o r de e n g e n h o , que
m o r r i a m d e i x a n d o a l g u m a s d e z e n a s de c o n t o s de réis, gozavam de um prestígio social
superior a o d o r i c o n e g o c i a n t e . P o r q u e ser m e m b r o d e u m a profissão liberal, servir ao
Estado o u à I g r e j a , p e r t e n c e r à classe d o s s e n h o r e s de e n g e n h o aureolados por prestígio
a n t i g o e d u r a d o u r o era, a o s o l h o s de t o d o s , sinal de grandeza e de elevação. Era preciso
' s a b e r ' p a r a s e r m é d i c o , f u n c i o n á r i o o u p a d r e , e era preciso ter certa tradição para ser
s e n h o r de e n g e n h o . A l i á s , a o c o n f e r i r t í t u l o s de n o b r e z a e recrutar políticos nessas
categorias, o m o n a r c a m a r c a v a b e m a p r e f e r ê n c i a q u e lhes c o n c e d i a , a h o n r a que lhes
era d e v i d a .

S e m d ú v i d a o d i n h e i r o p e r m i t i a ' i n t r o d u z i r - s e ' n a s o c i e d a d e , adquirir u m a posi-


ção, m a s a p o b r e z a n ã o era u m o b s t á c u l o i n t r a n s p o n í v e l , desde q u e se fosse humilde,
h o n e s t o , fiel e s e r v i ç a l . E s t e s q u a t r o p r e d i c a d o s p o d i a m g u i n d a r , a u m a posição eleva-
da na e s t i m a s o c i a l , g e n t e p o b r e e m e n o s p o b r e , b r a n c o s , negros ou mulatos, livres ou
alforriados. E s t a p o s i ç ã o c o n f e r i a p r e s t í g i o , e tal p r e s t í g i o , p o r sua vez, era instrumento
para a a q u i s i ç ã o d a r i q u e z a q u e p e r m i t e c o n s o l i d a r a p o s i ç ã o social. F o i este o segredo
d o ê x i t o — à p r i m e i r a vista, i n c o m p r e e n s í v e l — de certas carreiras. U m desses casos
é o d e u m a f r i c a n o , r e c é m - a l f o r r i a d o , q u e c o n s e g u i u f o r m a r u m a pequena fortuna de
mais de 1 0 : 0 0 0 de réis. Q u e m s a b e d e q u e rede de relações, de q u e laços de parentesco,
de eleição o u de c o n s i d e r a ç ã o , de q u e serviços prestados e t a m b é m de q u e coragem no
trabalho c o t i d i a n o essas a s c e n s õ e s sociais eram fruto?
Essa s o c i e d a d e b a i a n a , e m q u e riquezas e pobrezas não significavam apenas di-
nheiro c falta dé d i n h e i r o , o n d e os c a m i n h o s q u e levavam da indigência à abastança —
ou vice-versa — divagavam p o r mil curvas admiráveis, era tão barroca quanto as
igrejas de S a l v a d o r , revestidas de o u r o p o r g e n t e p o b r e . S e r rico na Bahia do século
X I X era, e v i d e n t e m e n t e , nascer b r a n c o e d e s c e n d e n t e de português que, chegado ao
Brasil em t e m p o s l o n g í n q u o s c gloriosos, ocupara uma terra fértil e se dedicara a
produzir e exportar a ç ú c a r . M u i t o mais n u m e r o s o s , p o r é m , eram os portugueses que
tinham imigrado r e c e n t e m e n t e , sem tostão, para trabalhar numa loja ate que um
seus descendentes ( c o m e r c i a n t e ou negociante) conseguisse comprar uma terra ou
casar c o m a filha de um s e n h o r de e n g e n h o . M a s , dado este passo, até dinheiro J
podia faltar: todo s e n h o r de e n g e n h o era considerado rico, mesmo se estivesse eira
da ruína. Era visto c o m o rico e c o m o tal devia agir, protegendo ou até * u s t

toda uma clientela, cuja existência era prova de sua riqueza e dela dependia. rc
64$ BAHIA, SÉCULO X I X

v i c i o s o p a r a q u e m n ã o c o n s e g u i a m a n t e r u m a f o r t u n a , p o r q u e na B a h i a ninguém
gostava de n e g a r u m p e d i d o , d e i x a r de s o c o r r e r a u m p o b r e , r e n u n c i a r a seus hábitos
C o m o p e r m a n e c e r r i c o o u c o m o e s c a p a r d a p o b r e z a : e r a m estes o s problemas
c r u c i a i s q u e se c o l o c a v a m p a r a o s b a i a n o s , c o m m u i t o p o u c a s e x c e ç õ e s , a julgar pela
análise das f o r t u n a s . E r a m instáveis e frágeis o s b e n s a d q u i r i d o s , e h a v i a dificuldades
para a d q u i r i - l o s . V e n c e r e m a n t e r a p o s i ç ã o e x i g i a m iguais e s f o r ç o s de fidelidade aos
c o m p r o m i s s o s , à c l i e n t e l a , à f a m í l i a . O E s t a d o j á n ã o s a b i a r e c r u t a r seus servidores sem
u m a r e c o m e n d a ç ã o , o c l i e n t e n ã o t i n h a c o r a g e m d e m u d a r seus h á b i t o s c o m e r c i a i s . A
i m a g i n a ç ã o se refugiava e m u n s p o u c o s h o m e n s e m u l h e r e s q u e , e m b o r a preservando
o s l a ç o s t e c i d o s p e l a v i d a a s s o c i a t i v a o u d e f a m í l i a , o u s a v a m n o v a s a v e n t u r a s . Estes
passavam d a p o b r e z a à a b a s t a n ç a , e r a m r e c o n h e c i d o s c o m o r i c o s e c o m e ç a v a m a
d a n ç a r n a c o r d a b a m b a q u e e r a s e m p r e , p a r a os b a i a n o s , a p o s s e de u m a f o r t u n a : por
real e s u b s t a n c i o s a q u e f o s s e , n u n c a e r a s e g u r a .
N a B a h i a , r i q u e z a s e p o b r e z a s se p e r d i a m e se g a n h a v a m , m e s m o q u e o declínio de
q u e m e m p o b r e c e s s e p o r f o r ç a d e d í v i d a s , d e m á g e s t ã o d o p a t r i m ô n i o o u excesso de
filhos p a r a c r i a r p u d e s s e se m a n t e r n ã o s ó i n c o m p r e e n s í v e l c o m o invisível para o meio
social. Passar p o r r i c o n ã o e r a ser r i c o : e r a m u i t a s vezes t e r s i d o , o u ser parente de
q u e m j á t i n h a s i d o . U m a f a m í l i a e m p o b r e c i d a p o d i a c o r t a r n a c a r n e para ajudar seus
p o b r e s , n ã o p o r o s t e n t a ç ã o , m a s p o r o b r i g a ç ã o m o r a l , p o r h á b i t o , p o r verdadeira
p i e d a d e . E , m e s m o e m p o b r e c i d a , o b t i n h a f a c i l m e n t e p a t e n t e s n o E x é r c i t o o u postos
n o serviço p ú b l i c o q u e l h e p e r m i t i a m , m a l o u b e m , s o b r e v i v e r . C o n t i n u a v a a passar
p o r rica, c o m a c u m p l i c i d a d e d e t o d o o m e i o s o c i a l .
Esta d i f i c u l d a d e q u e h a v i a e m c o n s e r v a r u m a f o r t u n a n a B a h i a devia-se sem
dúvida ao c r e s c e n t e e s m o r e c i m e n t o d a c o m b a t i v i d a d e , presa nas m a l h a s das redes e
dos laços q u e a j u d a v a m t a n t o s p o b r e s a s o b r e v i v e r . P o r q u e t a n t o s alforriados conse-
g u i a m fazer fortuna? P o r c e r t o p o r q u e e r a m c o r a j o s o s , o b s t i n a d o s , h u m i l d e s e eficazes.
T i n h a m s a b i d o lutar p o r sua l i b e r d a d e , c o n t i n u a v a m l u t a n d o e m suas vidinhas modes-
tas. Alguns c o n s e g u i a m v e n c e r o u p r o m o v e r o s filhos. A s o c i e d a d e baiana era a um só
t e m p o a b e r t a e fechada, a riqueza e a a s c e n s ã o social e r a m i n t e i r a m e n t e possíveis n o
século X I X . M a s era t a m b é m u m a s o c i e d a d e q u e p o d i a f a c i l m e n t e embalar seus filhos
n o c o n f o r t o das redes de ajuda m ú t u a . F i n a l m e n t e , t u d o o q u e o estudo qualitativo das
hierarquias sociais baianas revelara e n c o n t r o u c o n f i r m a ç ã o em m i n h a s tentativas de
estudo q u a n t i t a t i v o das f o r t u n a s q u e , ao m o r r e r , os baianos deixavam; gente que, para
além da m o r t e , tentava d o l o r o s a m e n t e c o n t i n u a r h u m i l d e perante D e u s e os homens,
honesta, pagando todas as suas dívidas, fiel para c o m todos os q u e souberam amá-la e
dar-lhe uma segurança e u m r e c o n h e c i m e n t o social, q u e consideravam o bem supremo.
N a medida em q u e f u n c i o n o u b e m , o sistema a c a b o u p o r se esclerosar, se cris-
talizar. S u a flexibilidade se converteu c m rigidez, seus equilíbrios se transformaram
em falta de a m b i ç ã o , c o m o b e m o d e m o n s t r a a comparação entre o desenvolvimen-
to de outras províncias brasileiras e o marasmo em q u e , lentamente, mergulhou, no
século X I X , a opulenta B a h i a do século X V I I I .
CONCLUSÃO

A letargia que se apossava da Bahia no final do século X I X seria então, em grande


parte, conseqüência da esclerose de sua economia e das resistencias obstinadas de
relações sociais já demasiado gastas? Qual seria, nesse caso, a relação de causa e efeito
entre o e c o n ô m i c o e o social? Seria possível discernir os anos em que a passagem se
deu, em que o gosto pelo desenvolvimento e a criação cedeu o passo à preocupação de
preservar e de garantir?
São três perguntas que eu desejaria poder responder.
D o ponto de vista e c o n ô m i c o , é certo que os termos de troca se degradaram no
final da década de 1 8 6 0 , quando a balança comercial passou a apresentar déficits quase
constantes. A isto se s o m a r a m : a crescente insuficiência dos meios de comunicação,
tanto c o m o interior c o m o c o m o exterior; o malogro das tentativas de diversificação
na mineração, no setor rural e na cidade; a obstinada fidelidade à 'sua majestade' o
açúcar, que passava a sofrer forte concorrência no mercado internacional, ou ao fumo,
que, cessado o tráfico — em que era usado c o m o moeda de troca — , dependia quase
unicamente do mercado alemão; e, por fim, a persistência de uns tantos mitos, forte-
mente enraizados nas mentalidades. 4 .
O mito da democracia racial que, ignorando a escravidão e suas .conseqüências,
persuadia os baianos do século X I X de que todo homem livre tinha iguais oportuni-
dades de se realizar no lugar que lhe era conferido, mas os fazia agir como se todo
fosse b r a n c o c t o d o n c e r o , p o b r e . . . ~ m

O mito da falta de mão-de-obra, que se espraiou na segunda


permanente contradição com as vendas de escravos feitas ao Centro e .
e com o aumento constante das alforrias. . i m i e r a dubo,
O mito das terras férteis inesgotáveis, do massapé que d « p e ^ a m q u q ^
dos 'salões' mais arenosos que podiam ser plantados da mesma manem q
a r g Í l o S O S l
•j i l„ Recôncavo — das quais, no
O mito da riqueza representada pelas propriedades do ice d o

entanto, 2/3 deviam ficar sem cultivo - era mais uma ilusão, que

649
6M> BAHIA, SÉCLTO X I X

o s p r o p r i e t á r i o s , c o m o t e m p o , c p o r e f e i t o das p a r t i l h a s , se v i a m d e s t i t u í d o s de
e x t e n s õ e s d e terra s u f i c i e n t e s pa?a a u m e n t a r sua p r o d u t i v i d a d e .
A glória de q u e t o d o s e n h o r d e e n g e n h o se via i n c o n d i c i o n a l m e n t e aureolado
o c u l t a v a seu e m p o b r e c i m e n t o . A p r o d u ç ã o d o a ç ú c a r era de f a t o gerida pelos nego-
c i a n t e s , q u e a f i n a n c i a v a m , e m f a c e d a i n c i p i é n e i a e i n o p e r â n c i a das i n s t i t u i ç õ e s de
crédito.
N ã o o b s t a n t e , a t é o final d o s é c u l o a B a h i a o c u p o u u m l u g a r d e d e s t a q u e e n t r e as
p r o v í n c i a s b r a s i l e i r a s , t a n t o p o r seus p o l í t i c o s e r e l i g i o s o s c o m o pela i m p o r t â n c i a de
suas o p e r a ç õ e s c o m e r c i a i s o u pela i n i c i a t i v a de a l g u n s e s p í r i t o s e m p r e e n d e d o r e s , deci-
didos a c o n s t r u i r p o r t o s e vias d e c o m u n i c a ç ã o , a i m p l a n t a r f á b r i c a s o u i n s t i t u i ç õ e s de
crédito. É verdade q u e p o u c o s c o n s e g u i r a m e n c o n t r a r o a p o i o necessário, tanto no Rio
de J a n e i r o c o m o , p r i n c i p a l m e n t e , n a p r ó p r i a B a h i a , o n d e o m e r c a d o o l i g o p ó l i c o e
o l i g o p s ô n i c o s u f o c a v a os e m p r e e n d i m e n t o s i n d i v i d u a i s .
D e f a t o , à i m a g e m d e seus h a b i t a n t e s , o m e r c a d o d e S a l v a d o r era escravo de sua
o r g a n i z a ç ã o h i e r á r q u i c a d e t i p o a s s o c i a t i v o , e m q u e o s n e g o c i a n t e s estrangeiros —
s o b r e t u d o ingleses — d o m i n a v a m as i m p o r t a ç õ e s e as e x p o r t a ç õ e s e e m q u e os c o m e r -
c i a n t e s b r a s i l e i r o s e p o r t u g u e s e s d i s t r i b u í a m as m e r c a d o r i a s e financiavam as ativida-
des agrícolas. F o r m a v a m u m a elite d e r i c o s m u i t o p r u d e n t e s , q u e i n v e s t i a m quase
u n i c a m e n t e e m i m ó v e i s e v a l o r e s s e g u r o s , s e m c o g i t a r d e a t i v i d a d e s n o v a s e arriscadas.
O g o s t o pela a s s o c i a ç ã o , a n e c e s s i d a d e d e se i n s e r i r n u m a o r g a n i z a ç ã o tutelar
m a r c a v a t o d o s os b a i a n o s . E r a o s e g r e d o das e s t r a t é g i a s m a t r i m o n i a i s e d a vida cotidia-
n a , e m f a m í l i a o u n o t r a b a l h o . N e s s e q u a d r o , a I g r e j a d e s e m p e n h o u , desde o século
X V I , papel n ã o n e g l i g e n c i á v e l , a u x i l i a n d o o p o d e r p o l í t i c o a e n q u a d r a r seu pessoal em
confrarias e p a r ó q u i a s e e m p e n h a n d o t o d o o s e u p r e s t í g i o n a p r e s e r v a ç ã o da paz social.
N ã o p o d i a , aliás, t e r s i d o d i f e r e n t e , n u m a é p o c a e m q u e , n o m u n d o t o d o , a própria
Igreja C a t ó l i c a associava o p o d e r a o a l t a r .
E n r e d a d o , c o m o os fiéis, n a t r a m a d e u m t e c i d o s o c i a l i m p r e g n a d o de heranças
religiosas portuguesas, a f r i c a n a s e i n d í g e n a s , o c l e r o b r a s i l e i r o teve o g r a n d e mérito
de não abafar a religiosidade de suas o v e l h a s . M a s as a s s o c i a ç õ e s e f o r m a s de organi-
zação q u e propôs n e m s e m p r e e r a m p r o p í c i a s a o e n s i n a m e n t o d a d o u t r i n a . A fé dava
livre curso a práticas m u i t a s vezes i m p r e g n a d a s de s u p e r s t i ç õ e s : práticas individuais e
coletivas q u e c o a d u n a v a m m u i t o b e m c o m o c l i m a associativo tão característico da
sociedade baiana. A tal p o n t o q u e , q u a n d o a Igreja quis g a n h a r qualidade, romani-
z á n d o l e , c o n s t a t o u q u e criara u m n o v o padre, a l h e i o a seu p o v o , distante dele, não
mais depositário de sua c o n f i a n ç a . M a s o padre c o n t i n u o u a servir fielmente à Igreja
c o m o o f u n c i o n á r i o p ú b l i c o servia ao E s t a d o ; c o m o este, era u m a mera peça dessa
engrenagem q u e enquadrava os cidadãos.
E r a o Estado, sem dúvida, q u e auferia g a n h o s imediatos de toda essa rede de
supervisão e c o n t r o l e : o c o b i ç a d o ingresso na G u a r d a N a c i o n a l , a almejada inscrição
nas listas eleitorais, a corrida aos títulos e c o n d e c o r a ç õ e s balizavam o percurso das
ascensões individuas. Elas eram b e m - v i n d a s . O ingresso na carreira pública — que
651

nunca e n n q u e c e u um batano - d e h o m e n s q u e relegavam a gestão de seus engenhos


p o n d o e m r i s c o s e u s n e g ó c . o s , r e p r e s e n t a v a a v i t ó r i a de u m poder central forte E
c a m b e m isso t i n h a u m e f e i t o n e u t r a l i z a d o * f u n c i o n a r i o s e políticos de alto b o r d o
u m a vez n o R i o d e j a n e . r o , c e r c a d o s d e h o n r a r i a s , t e n d i a m a esquecer que eram
b a i a n o s . Q u a n t o à o u t r a p o n t a d a c a d e i a , a b a s e d a escala social, o sistema de vigilância
e c o n t r o l e p a r e c i a i g u a l m e n t e e f i c a z , c o m o o p r o v a o fracasso de todas as tentativas de
sublevação.

A h i s t ó r i a d e s s a P r o v í n c i a d o n o v o I m p é r i o b r a s i l e i r o é, n o século X I X , u m a
h i s t ó r i a d e r i c o s . N a B a h i a , o s p o b r e s e r a m a f o r t u n a d o s . N ã o p o r q u e tivessem no
b o l s o c o m q u e c o m p r a r s u p é r f l u o s ; à m a i o r i a , f a l t a v a m m e s m o os ' c o b r e s ' para o
necessário. Eram r i c o s , p o r é m , d a s e g u r a n ç a q u e l h e s c o n f e r i a m relações sociais
a r c a i z a n t e s , o r i u n d a s d o s i s t e m a e s c r a v i s t a e c o n s e r v a d a s p o r t o d a u m a sociedade presa
de suas p r ó p r i a s a r m a d i l h a s .
P o r t o d a s essas r a z õ e s , e s t e e s t u d o d a B a h i a é, a n t e s de t u d o , u m a história social,
a h i s t ó r i a d e u m t e m p o q u e p r e c e d e e e x p l i c a u m a d e c a d ê n c i a só efetivamente cons-
t a t a d a n o s a n o s 1 9 2 0 . O s é c u l o X I X b a i a n o , j u s t a m e n t e p o r q u e nele se preservaram
c e r t o s e q u i l í b r i o s , f o i a i n d a u m s é c u l o d e g l ó r i a . M u i t o l e n t a m e n t e , e sem maiores
choques, a partir dos anos 1860 n o s s a P r o v í n c i a foi d e s a p r e n d e n d o as necessárias
adaptações e c o n ô m i c a s i m p o s t a s pelo m u n d o que a cercava.

F o i u m m o v i m e n t o l e n t o , m u i t o l e n t o . U m m o v i m e n t o a o m e s m o t e m p o freado
e a c o m p a n h a d o , s u s t e n t a d o e e x p l i c a d o , pelas e x p e c t a t i v a s e os c o m p o r t a m e n t o s de
t o d o u m p o v o q u e se c o m p r a z i a , e a i n d a se c o m p r a z , e m p e r p e t u a r certas atitudes.
N ã o s e n t e o p e s o d e c e r t o s j u g o s , o c u p a d o q u e e s t á e m m a q u i n a r estratégias em suas
r e l a ç õ e s s o c i a i s , q u e s ã o a v i a real p a r a o b t e r e s t i m a e a p o i o sociais.
T e n t e i d e s c r e v e r essas e s t r a t é g i a s , m a s c a b e - m e r e c o n h e c e r , c o m h u m i l d a d e , que
a p e n a s c o m e ç o a c o m p r e e n d e r essa s o c i e d a d e , o n d e os h u m i l d e s e os pobres de
e s p í r i t o ' s ã o t a n t o s q u e suas v o z e s d e v e r i a m a b a f a r a d o s gloriosos e dos eloquentes.
NOTAS

NOTAS DA I N T R O D U Ç Ã O

1. C a i o P r a d o J r . , Formação do Brasil contemporâneo, p. 5 .

2. Idem, i b i d e m , p . 6 .

3. Idem, ibidem, p. 7-8.

4. Idem, ibidem, p. 3 8 1 - 3 9 0 .

5. I d e m , i b i d e m , p . 2 7 0 - 2 7 1 .

6 . C o m o l e m b r a n ç a , c i t o a i n d a d e C a i o P r a d o J r . : Evolução política do Bras:l e outros estudos


Historia económica do Brasil e A revolução brasileira.

7. N e l s o n W c r n e c k S o d r é é u m b o m e x e m p l o dessa c o r r e n t e : Formação histórica do Brasil,


História da burguesia brasileira; Ás razões da Independência etc.

8 . G i l b e r t o F r e y r e , Casa-grande & senzala. D o m e s m o a u t o r : Nordeste, Sobrados e mocambos


- Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano; Vida social no Brasil nos
meados do século XIX etc.

9 . C h a r l e s W a g l e y , A revolução brasileira; Introduction to Brazil; Races et classes dam le Brésil


rural. M e l v i l l c J . H e r s k o v i t s , " T h e s o c i a l o r g a n i z a t i o n o f the c a n d o m b l é " ; Pesquisas etno-
lógicas na Bahia. R o g c r B a s t i d c , As religiões africanas no Brasil; O candomblé da Bahia -
Rito Nagô.

10. Alice Pjffcr C a n a b r a v a , O algodão em São Paulo, 1861-¡875; O comércio português no


Pio da Prata: 1580-1640 e t c . C e l s o F u r t a d o , A formação econômica do Brasil etc. Mircca
Huescu, História econômica do Brasil- Pesquisas e análises; Evolução económica do Brasil etc.
1 1
• A i n s t i t u i ç ã o u n i v e r s i t á r i a é r e c e n t e n o B r a s i l . F a c u l d a d e s c escolas superiores tinham sido
f u n d a d a s na B a h i a , n o R i o d e J a n e i r o , c m P e r n a m b u c o e c m S ã o Paulo desde o princípio
d o s é c u l o X I X , m a s só foram r e u n i d a s para f o r m a r universidades n o século X X . A primeira
foi a d o R i o d e J a n e i r o , f u n d a d a c m 1 9 2 8 , c a segunda foi a de S ã o Paulo, que f c s (
V o u s c u

c i n q ü e n t e n á r i o c m 1 9 8 3 . C o m a f u n d a ç ã o das universidades, nasceram as faculdades de


Filosofia, C i ê n c i a s c l e t r a s , c u j o p r i n c i p a l o b j e t i v o era f o r m a r professores para o ensino
secundário.
1 2 . T h c o d o r o S a m p a i o , História da fundação da cidade do Salvador. Pedro C a l m o n , História
da fundação da Bahia. VAson C a r n e i r o , A cidade do Salvador. T h a l c s dc Azevedo, 1 ovoa-
mento da cidade do Salvador. A f o n s o R u y d c Souza, História politica e administrativa aa

653
BAHIA, SÉCULO XIX

cidade do Salvador. Arnold Wildbcrger, Os presidentes da Província da Bahia. Edgard de


Cerqueira Falcão, A fundação da cidade do Salvador em 1549. Carlos B. Ott, Formação e

evolução étnica da cidade do Salvador.


13. José Wanderley de Araújo Pinho, História de um engenho do Recôncavo. Este estudo foi
complementado pelo excelente trabalho do historiador norte-americano, professor da
Universidade de Minnesota, Stuart B. Schwartz, Segredos internos. Engenhos e escravos na
sociedade colonial Bahia, 1550-1835-
14. Francisco Marques de Goes Calmon, Vida econômico financeira da Bahia (elementos para
a história) de 1808 a 1899.
15. A expressão é de um outro economista baiano, Pinto de Aguiar, que oferece também uma
tentativa de interpretação em seu livro Notas sobre o enigma baiano.
16. Rómulo de Almeida, Traços da história econômica da Bahia no último século e meio.
17. Cf. Katia M. de Queirós Mattoso e István Jancso, "Como estudar a história quantitativa
da Bahia no século XIX".
18. Francisco Marques de Goes Calmon, Fala à Assembléia Legislativa, 1924, p. 30.
19. Rómulo de Almeida, Traços da história econômica da Bahia..., p. 15.
20. Registros eclesiásticos de terras (1852-1860).

21. Johildo Lopes de Athayde, La ville de Salvador au XIX siècle. Aspects démographiques (daprès
e

les registres paroissiaux).

22. Essa documentação estatística, essencialmente composta de dados relativos aos intercâm-
bios comerciais e à navegação nos anos de 1 8 5 0 - 1 8 8 9 , está incrementada por numerosas
variáveis para o período dito republicano ( 1 8 9 0 - 1 9 7 8 ) .
23- Catherine Lugar, The Merchant Community of Salvador, Bahia y 1780-1830.
24. Os métodos utilizados para a elaboração dessas séries estão indicados no decorrer deste
trabalho, no próprio texto ou em notas.
25. Destaco especialmente os livros Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIXe
Ser escravo no Brasil.

NOTAS DO CAPÍTULO 1

1. Sobre os problemas dos limites administrativos, cf. Livro II, capítulo 7. As fronteiras da
cidade correspondem àquelas do antigo 'termo da cidade'. Cf. Katia M. de Queirós
Mattoso, Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX p. 5 - 8 8 . Aí estão mais
amplamente desenvolvidos alguns dados geográficos mencionados neste capítulo.
2. Eram capitanias gerais: Grão-Pará, Maranhão, Pernambuco, Bahia, Rio, Minas, São Pau-
lo, Rio Grande de São Pedro, Goiás e Mato Grosso. Além delas, tornaram-se províncias
do Império as antigas capitanias subalternas: Rio Negro. Piauí, Ceará, Rio Grande do
Norte, Paraíba, Alagoas, Sergipe dei Rey, Espírito Santo e Santa Catarina. Com a Repu-
blica, transformaram-se cm estados federados as províncias imperiais e o Paraná.
3. Luís Henrique Dias Tavares, História da Bahia, p. 51.
4. Luiz dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, v. 2, carta XVI, p. 551-575-
5. Luís Henrique Dias Tavares, História da Bahia, p. 5 1 - 5 8 e 9 5 - 9 6 . F.W.O. Morton, Tfo
Conservative Revolution of Independence: Economy, Society and Politics in Bahia, 1790
1840, mapa p. 412.
655

XOTAS DO CAPÍTULO 2

1. Thales de Azevedo. Povoamento da cidade do Salvador, » ^


7' ^ " aVCnta ahi
3 7 7 n

potese de que a estatura relativamente alta dos habit™ es l


ricas em sais minerais. E m Sergipe, por exemplo, ôndc\,Vpn ^ ^ ^
pessoas são em média mais baixas. g U a s c a r e
« m de potássio, as

2. José W a n d e r l e y de Araújo P i n h o , "A abertura dos portos- Cairu" AC


Cipe-regente d o m J o ã o , abrindo os portos brasileiros em 7R A* ! ' 7 ? r C g , a d
° P r í n
'
da na Bahia, q u a n d o a família real chegou de Portugal 1 8
° '8 f o Í

3 . T e n e n t e M a u r y , Explanations and sailing directions to accompany the wind and


charts... W a s h i n g t o n , 1 8 5 1 . C f . Frederic M a u r o , L ^ n s ^ Z ^ ^
4 . Frederic M a u r o , L expansion européenne, p. 1 1 1 - 1 1 2 .

5. As entradas de vasos de guerra e de navios ligados ao grande comércio internacional são


estudadas n o Livro V I .

6. Sobre a participação das tripulações no reabastecimento da cidade, cf. Livro II, capítulo 8.
7. Amade E . B . M o u c h e z , Les cotes du Brésil, p. 4 0 s s .

8. Robert Avé-Lallement, Viagem pelo norte do Brasil no ano de 1859, v. 1, p. 1 7 - 1 8 .

9. Cf. J o s é R o b e r t o Amaral Lapa, A Bahia e a carreira da índia, p. 1 4 3 - 1 4 4 . Amade E.B.


M o u c h e z , Les cotes du Brésil. C f . Instruções náuticas sobre a baía de Salvador(p. 3 0 - 6 0 ) e,
mais adiante, a descrição geográfica do Recôncavo.
10. C i t e m o s , entre outros, T h o m a s Lindley e William Scully. O primeiro escreveu em 1802:
" H á espaço suficiente n o porto para que ali possam ser reunidas, sem confusão, todas as
esquadras do m u n d o " {Narrativa de uma viagem ao Brasil, p. 160). William Scully diz, em
1 8 6 6 : "As frotas podem entrar [na baía] c o m toda a segurança e fundear num golfo que
parece ter sido criado pela natureza para se tornar o empório do mundo e receber suas
frotas" {Brazil, its Provinces and Chief Cities, the Manners and Customs of the People,
Agricultural, Commercial and other Statistics taken from the Latest Official Documents with
a Variety of Useful and Entertaining Knowledge, both for the Merchant and the Emigrant,
p. 3 4 8 - 3 4 9 ) .
11 • Katia M . de Q u e i r ó s M a t t o s o , Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX
p. 7 7 - 7 8 .
12. É o número estimado por grande número de viajantes e confirmado por Amade E. .
Mouche/., Les cotes du BrésiU p. 5 2 .
13. Para o desenvolvimento da navegação a vapor, cf. Livro V I , capítulo 2 6 .

NOTAS DO CAPÍTULO 3

1. Cf. Livro II, capítulo 5 . . r<n 75 r n

2. "Lê l a b o u r e r c , * n f a „ " in j c a n dc La Fon.aine. Fatie, choirs


K S K (U«r<, l-IVh ?• •

3. Maurice Le Lannou, Le Brésil, p. 4 4 - 4 7 . ^ q n ^ y o l u .


4 . Estudos básicos para o projeto agropecuário do Recôncavo, especialmente o
me 1: "Recursos naturais .
5. Cf. Livro II, capítulo 6 .
6. Estudos básicos para o projeto agropecuário do Recôncavo, p. 2 5 - •
656 BAHIA, SÉCULO XIX

7. André João Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas minas e drogas, p. 150.
8. Estudos básicos para o projeto agropecuário do Recôncavo, p. 2 6 - 3 5 . Sobre os solos, foram
realizados cinco levantamentos pela Seplantec entre 1945 e 1970. O primeiro em Cruz das
Almas (grande altitude); o segundo em Itaparica (região marítima); o terceiro em Santo
Antônio de Jesus (no limite do Recôncavo); o quarto em Salvador; o quinto em São
Francisco do Conde, sobre o qual nos detivemos porque o município é exemplar, dada a
sua situação geográfica.
9. Certas reflexões deste parágrafo me foram sugeridas oralmente pelo Sr. Perraud, pedólogo
do Office de Recherches Scientifiques et Techniques d'Outre-Mer, hoje Institut Français
de Recherches Scientifiques pour le Développement en Coopération.
10. Luiz dos Santos Vilhena dá uma descrição magnífica do massapé em A Bahia no século
XVIII, v. l , p . 175.
11. Cf. o exemplo de Iguapé, no Livro VT, capítulo 25, consagrado às estruturas econômicas.

NOTAS DO CAPÍTULO 4

1. Sobre as estradas de ferro e seu desenvolvimento na Província da Bahia, cf. Joaquim


Wanderley de Araújo Pinho, "A viação na Bahia".
2. Cf. Rómulo de Almeida, Traços da história econômica da Bahia...
3. Cf. Joaquim Wanderley de Araújo Pinho, "A viação na Bahia", p. 132-143.
4. Arquivo do Estado da Bahia, Seção Histórica/Avulsos, Livro de matrícula dos engenhos da
Bahia, 1807-1874.
5. Katia M. de Queirós Mattoso e Angelina Nobre Rolim Garcez, "Fontes para o estudo da
propriedade rural: o Recôncavo baiano, 1 7 6 4 - 1 8 8 9 " .
6. Cf. João Capistrano de Abreu, Caminhos e povoamento do Brasil, p. 88.
7. Cf. Jean Tricard e Teresa Cardoso da Silva, Estudos de geomorfologia da Bahia e Sergipe,
. 75.
P

8. Cf. Euclides da Cunha, Os sertões, p. 54.


9. Cf. Katia M. de Queirós Mattoso, Bahia: a cidade de Salvador e seu mercado no século XIX
p. 2 0 - 2 8 ; Euclides da Cunha, Os sertões-, Conselho Nacional de Geografia, Atlas do Brasil,
sobretudo os artigos de Nelson Moreira da Silva e de P. von Luetzelburg.
10. João Capistrano de Abreu, Caminhos epovoamento do Brasil, p. 8 8 - 1 0 2 .
11. Cf. Livro VI, capítulo 25.
12. Manuel Jcsuíno Ferreira escreveu em 1875: "Por causa da falta de comunicações rápidas
com os centros povoados e ricos do interior, perdem-se muitos produtos de valor que
poderiam ser utilizados com proveito, em benefício de toda a Província." (A Província da
Bahia: apontamentos, p. 7 7 - 8 2 )
13. Cf. Livro VI, capítulo 25, quanto aos esforços efetuados em favor da unificação das
diferentes regiões da Província da Bahia.
14. Euclides da Cunha, Os sertões, p. 46.
15. F.W.O. Morton, The Conservative Revotution..., p. 168.
16. Sylvestre Honório, "O sul da Bahia", p. 25j-29.
17. F.W.O. Morton, The Conservative Revolution..., p. 70.
657

18. Cf- Smart B . Schwartz, Burocrata « *~ j ,

, n, B r M i l m l m U A S u f m m 0 i r u J a H i I m

,9. João Capistrano d . A h r o , <:„„„„,,,„ , „ „ (<j ^ / w ^ ^

NOTAS DO CAPI ruLO 5


1. Jose Wanderley de Araújo Pinho, História social da cidade d„ K„i /
Entre os estudos mais ou menos polémicos a respehe diCaÍmu ' " " í f" " 4 9 8 3
-
ÃT "'""J g°
u

d a d o a Dio
Alvares por seus amigos índios - citemos Artur Neiva "Dkiel
franceses"; Serafim Leite, ^ C ^ ^ ? ° ° f A vares Caramuru c os
tiJ!ZZ^?££ * ^ '*
o w / W

p. 312; Frederico Edelweiss, "Diogo

2
' p 88-Tl7a d C Q U C Í f Ó S M a t t O S
°' * adade d
° Salmd0r
' SeU mercad
° » W

3. Theodoro Sampaio, //wtón* da fundação da cidade do Salvador, p. 138; Pedro Calmon


História da fundação da Bahia, p. 9 1 .

4. Edson Carneiro, A cidade do Salvador, p. 59; Theodoro Sampaio, J/fafe» da fundação da


cidade do Salvador, p. 185 c 2 5 6 (planos da cidade).
5- Theodoro Sampaio, História da fundação da cidade do Salvador, p. 255.
6. Idem, ibidem, p. 2 6 1 .
7. Segundo Gandavo {Tratado da Província do Brasil..), h avia dezoito engenhos em 1572;
doze anos depois, Gabriel Soares de Souza contou mais de trinta; nos anos de 1620, frei
Vicente do Salvador indicou o número de cinqüenta; em 1663, de acordo com o padre
Simão de Vasconcellos, havia 69. Cem anos depois (1759), segundo o engenheiro José
António Caldas, existiam 126 engenhos. No fim do século XVIII, Vilhena incluiu 260 no
recenseamento.
8. José Wanderley de Araújo Pinho, História social da cidade do Salvador, p. 7 - 6 9 . Para o
engenho jesuíta de Sergipe do Conde, cf. Frédéric Mauro, Le Portugal et l'Atlantique.
p. 2 1 3 - 2 2 5 , mas sobretudo o estudo magistral de Stuart B. Schwartz, Segredos internos...
9. Sobre as diferenças entre lavradores livres e 'obrigados', cf. Livro VII, capítulo 30.
10. João Capistrano de Abreu, Caminhos epovoamento do Brasil, p. 193. Sobre a população
indígena da Bahia, cf. Luís H.D. Tavares, História da Bahia, p. 2 5 - 3 1 .
11. Luís H.D. Tavares, História da Bahia, p. 9 4 - 9 5 .
12. Fernand Braudcl, Vida material e capitalismo (séculos XV-XVIII), p. 4 0 - 4 1 .
13. Milton Santos, "O papel metropolitano da cidade de Salvador", p. 183.
14. Cf. verbete metrópole, da Grande Enciclopédia Delta-Larousse.
15. Milton Santos, "O papel metropolitano da cidade de Salvador", p. 185.
16. Idem, ibidem.
17. Frédéric Mauro, Le Brésil du XV au XVIII' siècle, p. 29-36; 11.B. '«^¿¿^£32
captaincy in perspective: portuguc.se backgrounds to seulement m ra. .
Marchant, "Feudal and capitalistic déments in the ponuguese seulement o •
18. Sônia A. Siqueira. A inquisição portuguesa e a sociedade colonial; Nestor Goulart£e«it o.
Evolução urbana do BrLl, 1500-1720, p. 6 3 - 7 1 ; Afonso Ruy de S^J^££
e administrativa da cidade do Salvador, História da Câmara Mun.apal da adade
vador.
BAHIA, SÉCULO X L X

19. Smart B. Schwartz, Burocracia e sociedade no Brasil colonial, David G. Smith, The Mercantile
Class of Portugal and Brazil in the Seventecnth Century: A Socio-Economie Study of the
Merchants ofLisbon and Bahia; Anita Novinsky, Cristãos-novos na Bahia.

20. A.J.R. Russel-Wood, Fidalgos and Philanthropists. The Santa Casa de Misericórdia of Bahia,
1550-1755; R.J.D. Flory, Bahian Society in the Mid-Colonial Period; buzan A. Soeiro,
A Barroque Nunncry.
21. Nestor Goulart Reis Filho, Evolução urbana do Brasil, J500-1720, p. 7 3 .
22. J.R. Amaral Lapa, A Bahia e a carreira da índia, p. 5 - 9 3 ; Frédéric Mauro, Le Brésil du XV e

au XVIII siècle, p. 8 7 - 9 0 ; Fernando A. Novais, Portugal e Brasil na crise do antigo sistema


e

colonial 1777-1808, p. 5 7 - 9 2 .

23. Katia M. de Queirós Mattoso, "Des Bahianais comme les autres? 20 Nouveaux Chrétiens
du début du X V I I I siècle", p. 3 1 3 - 3 3 2 .
e

24. Katia M. de Queirós Mattoso, "Pará uma metodologia em história social: a história social
de Salvador no século XIX".
25. Milton Santos, O centro da cidade do Salvador.

26. Frédéric Mauro, Le Brésil du XV e


au XVIIIe
siècle, p. 1 5 1 - 1 5 7 .
27. Katia M. de Queirós Mattoso, "Conjoncture et société au Brésil à la fin du XVIII siècle. e

Prix et salaires à la veille de la Révolution des Alfaiates - Bahia 1798".


28. Milton Santos, O centro da cidade do Salvador, p. 3 0 - 4 0 .
29. Cf. Livro VI.
30. Na década de 1950, 4 5 % da atividade industrial da cidade giravam em torno de produtos
alimentares, correspondendo o setor têxtil a apenas 15% dessa atividade. Milton Santos,
"O papel metropolitano da cidade de Salvador", p. 188.
31. A história dos transportes da Província (mais tarde Estado) da Bahia está por fazer-se,
sobretudo no que diz respeito às ferrovias. Esse desenvolvimento relativamente precoce
nunca se traduziu em uma política constante (cf. Livro VI). Faltam também estudos sobre
a política rodoviária. A Bahia, que no século XIX ocupava um bom lugar em matéria de
transportes marítimos, possuía no século XIX uma frota insignificante. Cf. Milton Santos,
"O papel metropolitano...", p. 190.
32. Idem, ibidem, p. 188.
33. Idem, O centro da cidade do Salvador, p. 42. Veremos nos capítulos 25 e 26 do Livro VI
como o esforço de modernização concretizado pela criação de engenhos centrais não
conseguiu tirar a Bahia de sua letargia.
34. Idem, ibidem, p. 4 3 .
35. Idem, "O papel metropolitano...", p. 189.

NOTAS DO CAPÍTULO 6

1. É interessante notar que existe uma documentação ampla c variada — constituída por
listas nominais, recenseamentos c registros paroquiais — relativa às capitanias de São
Paulo c Minas Gerais. Há cerca de quinze anos cia vem servindo a estudos que têm
ajudado a esclarecer os comportamentos c a dinAmica da população brasileira nos séculos
XVIII e XIX. Citarei os excelentes trabalhos de Maria Luíza Marcílio. La ville de São Paulo,
peuplement et population, 1750-1850 (ed. brasileira: A cidade de São Paulo, povoamento e
população, 1750-1850); Iraci dei Nero da Costa Vila Ri
pulações mineiras. Sobre a estrutura populacional d, I Vf (
"° ( I 7 l 9
~ ^ 2 6 ) e Po-
século XIX; Francisco Vida. Luna, Í/L^ Ä ^ " ^ - - ^ *
populacional e econômica de alguns centros mineratórios (1718 7*Z?v •' f
e Iraci dei Nero da C o s . , Minas colonial: economia e a d ^ ^ T T ^ ^na
tese de doutorado (inédita) de Robert W. Slcncs The Demoli ° SéCU,
° ^ a
notável
S W y , 1850-1888. Demography and Economia ofBrazili,
'ian
2. Johildo Lopes de Athaydc, La ville de Salvador au XIX e
siècle.
3. Cf. Livro I, capítulo 1.

4. Ignacio de Cerqueira e Silva Accioli, Memórias históricas epolíticas da Província da Bahia


v. 5, nota 56, p. 3 4 3 .
5. Thaies de Azevedo, Povoamento da cidade do Salvador, p. 191.

6. Ignacio de Cerqueira e Silva Accioli, Memórias históricas epolíticas..., v. 5, p. 343.


7. Cf. Thaies de Azevedo, Povoamento da cidade do Salvador, p. 196 e F.W.O. Morton, The
Conservative Revolution..., p. 3 8 1 . Na verdade, o recenseamento data de 1779, conforme
se lê no cabeçalho do mapa o resumo, publicado por Braz Amaral (cf. Ignacio de Cerqueira
e Silva Accioli, Memórias históricas epolíticas..., v. 3, nota 12, p. 83).
8. F.W.O. Morton, The Conservative Revolution..., p. 381. É interessante notar que Morton
propõe o número de 2 8 0 . 4 0 7 habitantes, enquanto o meu total, para o mesmo censo, dá
2 7 7 . O 2 5 . Um terceiro total (287.850 habitantes) é apresentado por Thaies de Azevedo,
Povoamento da cidade do Salvador, p. 196.
9. José da Silva Lisboa, "Carta para Domingos Vandelli em que se dá notícia desenvolvida
sobre a Bahia (18 de outubro de 1781)", p. 503.
10. Luiz dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, v. 2, p. 460.
11. Dauril Alden, "The population of Brazil in the late eighteenth Century. A preliminary
study", p. 191.
12. Segundo esse recenseamento, a população do Brasil era de 3,1 milhões de habitantes, dis-
tribuídos geograficamente da seguinte maneira: Minas Gerais, 611 mil (19,7% ; Bahia,
530 mil ( 1 7 , 0 % ) ; Pernambuco, 4 8 0 mil (15,5%); Rio de Janeiro, 380 mil (12,2/o); todas
as demais, juntas, um milhão ( 3 2 , 2 % ) .
13. Arquivo Municipal de Cachoeira, Maço de documentos para embrulhar (século X h
Cadastro da população da Província da Bahia, 1808.
14. F.W.O. Morton, The Conservative Revolution..., 1790-1840, p. 381; Daur.1 Alden, e
population of Brazil...", p. 191.
15. Thaies de Azevedo, Povoamento da cidade do Salvador, p. 232.
16. J . j . Reis, Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos males, f 8 3 5
' . ^
17. Katia M. de Queirós Mattoso, "Conjoncture et société au Brésd... , P- " • ^
18. Katia M. dc Queirós Mattoso, Bahia: a cidade de Salvador e seu mercado
P- "
1 4 4
-
1 4 7
, ..... . , 4 no (ed. brasileira: Ser escravo
19. Katia M. de Queirós Mattoso, Etre esclave au Brésil, p. U «
no Brasil). ™ , _ 2 - Thaïes de Azevedo, Povoa-
3 8

20. F.W.O. M o r t o n , The Conservative Revolution..., p. 0*1 0°*>


mento da cidade do Salvador, p. 2 0 1 - 2 1 0 .
2 1 . Giorgio M o r t a x a , Aspectos gerais da população do Brasil, p. 4 .
660 BAHIA, SÉCULO XIX

22. J.B. Sá Oliveira, Evolução psíquica do povo baiano, p. 8.

23. Características demográficas do Estado da Bahia, p. 3 1 5 .


24. J. Wethereil, Brasil. Apontamentos sobre a Bahia..., p. 2 2 4 .

25. Para tornar possível a comparação em um período longo, escolhi como quadro dessa
análise a antiga divisão administrativa da Bahia, tal qual se apresentava no século XVIII,
isto é, repartida em quatro comarcas. Para os anos de 1779 e de 1808, foram excluídas as
capitanias de Sergipe dei Rey e do Espírito Santo, que se tornaram independentes depois
de 1820. Em compensação, não houve meio de incluir, para 1779 e 1808, os dados
relativos ao território pertencente à antiga Capitania de Pernambuco, anexado pela Bahia
na época da Independência. Todavia, a falta de dados sobre esse território, situado na área
' do São Francisco, não deve alterar muito o quadro geral referente à população da Bahia,
pois tratava-se de terras com povoamento escasso. A comarca da Bahia, nos anos de 1872
e de 1890, abrangia os municípios de Salvador e do Recôncavo, de povoamento antigo, e
as comunidades situadas ao norte da cidade (na maioria, antigos aldeamentos indígenas,
anexados a partir de meados do século XVIII pela administração laica). A comarca de
Jacobina compreendia todo o território situado no centro-oeste, no norte, no extremo
norte e no extremo oeste, que correspondia às terras do interior da Capitania, tornada
província em 1822 e estado em 1890. A comarca de Ilhéus compreendia os municípios da
região chamada de Recôncavo Sul e de uma parte do Litoral Sul: Marau, Barra do Rio das
Contas, Barcelos, Ilhéus, Olivença, Una, Canavieiras, Belmonte, Santa Cruz (1872 e
1890). A Comarca de Porto Seguro compreendia os municípios restantes do Litoral Sul:
Porto Seguro, Vila Verde, Trancoso, Caravelas, Prado, Alcobaça, Viçosa, Porto Alegre
(1872 e 1890). Registre-se ainda que o estudo dos fenômenos demográficos contemporâ-
neos se faz, em grande medida, graças à combinação de dados extraídos do registro civil e
daqueles fornecidos pelos recenseamentos: natalidade, nupcialidade, fecundidade, morta-
lidade. Os recenseamentos com que aqui lidamos não fornecem esses dados. Fica difícil
calcular as taxas de crescimento natural da população baiana, pois não é possível obter as
taxas de natalidade e de mortalidade dessa população. Por outro lado, não se conhecem as
migrações líquidas da Bahia nesse mesmo período, o que confere à análise aqui proposta
um cunho precário.

26. Foram de seca os anos de 1809, 1810, 1816, 1817, 1824, 1825, 1830, 1831, 1832, 1844,
1845, 1857, 1858, 1859, 1860, 1868, 1869, 1870, 1877, 1878, 1882, 1884, 1885, 1888
c 1889. De pluviosidade anormal, foram 1813, 1833, 1843, 1852, 1861, 1862, 1865,
1872, 1873, 1879 e 1880. Séries estabelecidas a partir de informações colhidas nas seguin-
tes obras: Braz do Amaral, Resenha histórica da Bahia, p. 55 e 67; monsenhor Manoel de
Aquino Barbosa, Efemérides da freguesia de N.S. da Conceição da Praia, v. I, p. 164; Afonso
Ruy de Souza, História política e administrativa da cidade do Salvador, p. 591; Souza Co-
lombo, A seca, sua incidência e medidas para minorar seus efeitos".
M

27. Para 1800, Luiz dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII v. 2, tabela inserida entre as
páginas 460 e 461. Para 1872, dados do recenseamento de 1872. Para 1890, dados do
recenseamento de 1890.
28. Luiz dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, v. 2, p. 4 6 0 - 4 6 1 .
29. Para maiores detalhes, cf. Livro V.
30. Cf. Luiz dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, v. 2, p. 4 6 0 - 4 6 1 . Em 1893, Fran-
cisco Vicente Viana escreveu: "A Carta Régia de 8 de maio de 1758 mandava recolher
66!

jesuítas q u e paroquiassem missões e aldeias de ínH"


Foi em c o n s e q ü ê n c i a desta régia determinação an^™ ™'' ™""™"™^- 6 1

vdas de T r a n c o s o . Vila V e r d e , O l i v e n ç a , B a r c e l ^ W , T " * h


°' e
^ « ^ n t e s
ca, M i r a n d e l a . A b r a n t e s , e t c " (Memoria sobre oIsZZ, 1°™' P
° m W
' P c d
" » Bran-
3 1 . O s dados publicados pelo his.oHador n „ ^ ^ ^ 7
~ ^
1817-1818 a população livre brasilé " r l ^
aos m e u s : em ^ a n á l
°S o s

18-74 , 84,2%; e em 1888, 95%. Os últimos ano dZ ?


* ^ % d
° total
= e m

p. 346 (tabela I V ) . * «"www» n o tíraúl. m o _ m ^

32. Katia M . de Q u e i r ó s M a t t o s o , M M : * ,/„

p. 239-376. " """^ *»


reíe
AYA",
33. Idem, i b i d e m .
34. Luiz dos S a n t o s V i l h e n a , v4 Bo^iVi «o século XVIII, . 2, p. 497-498 Aires d C I r
108-109.
v
inajSff brasílica, t o m o I I , p . • res e asai, Loro-

35. W a l d i r Freitas de O l i v e i r a , "As fábricas de tecidos em Valença no século X I X "

36. F r a n c i s c o V i c e n t e V i a n a , Memória sobre o Estado da Bahia, p. 284; Rómulo de Almeida,


Traços da história econômica da Bahia..., p. 9; Henrique Jorge Buckingham Lyra, Colonos
e colónias, p . 25-29.
37. F r a n c i s c o V i c e n t e V i a n a , Memória sobre o Estado da Bahia, p. 284-285; Luiz Amaral,
História geral da agricultura brasileira, v. I I , p. 376-409; Rómulo de Almeida, Traços da
história econômica da Bahia..., p. 9-10; M i l t o n Santos, Zona do cacau. Introdução ao estudo
geográfico, p . 107; A n g e l i n a N o b r e R o l i m Garcez & Antonio Fernando Guerreiro de
Freitas, História econômica e social da região cacaueira.

38. Francisco V i c e n t e V i a n a , Memória sobre o Estado da Bahia, p. 419-472; Joaquim Wanderley


de A r a ú j o P i n h o , " A viação na B a h i a " , p . 132-143.
39. Rollie P o p p i n o , Feira de Santana, p. 197.

40. I d e m , i b i d e m , p. 198.

41. C f . Livro V I , c a p í t u l o 25.

42. Ibidem.

43. Francisco V i c e n t e V i a n a , Memória sobre o Estado da Bahia, p. 419-472.


44. Esses dados regionais são coerentes com os apresentados para todo o país por Robert
C o n r a d em Os últimos anos da escravatura no Brasil, p. Este 344-346. ^ ^ d c
i - u i • A x 8 1 7 nnn nessoas em
popu ação brasileira era de 3.81/-UUU pessoas cm i » "
sendo 1817-1818, 49,n^«nas
5% livres,
em
at
9.761.499 pessoas em 1 874,
sendo 84,2%> , , / n
livres; e, finalmente, de 14.334.000 pessoas em
n n

1888, sendo 95,0% livres. YlY Imi-

45. C f . T â n i a P c n i d o M o n t e i r o , Portugueses na Bahia na segunda metade ao século


gração e comércio, p. 68. .

46. Cf. Livro I I I , capítulo 1 1, onde se fala das práticas ' ^ ^ ^ ^ p r o v í n c i a

47. N ã o existe nenhum cadastro de terras pertencentes aos "°V^' s


dlve C
d o os dados
u n

no século X I X . O s dados disponíveis sc referem todos ao se e n o r m exem-


e s : p o r

relativos ao ano de 1949, as diferenças de mumcíp.o a mum p t i n h a 3 46 k m e uma 2

pio, o município de São Felipe de Maragojipe, s.tuado no Kec ^ ^ 2


população de 3 0 mil habitantes; o município ^ 15 mil habitantes
e 22 mil habitantes, enquanto o municíp.o de Sento Sé (no
662 BAHIA, SÉCULO X I X

distribuídos por um território de 14.479 km . A densidade populacional, nessas regiões,


2

era muito variável: 88 habitantes por km em São Felipe, dois habitantes por km em
2 2

Jeremoabo e um habitante por km no município de Sento Sé. Mesmo em 1949 a popu-


2

lação diminuía à medida que a costa ficava mais longe. Cf. "Quatro séculos de história da
Bahia".
48. Cf. Livro VI. Para o conjunto de dados acima cf. A inserção da Bahia na evolução nacional
v. 4, p. 1 3 - 1 4 .

NOTAS DO CAPITULO 7

1. Carlos Dias Malheiro, História da colonização portuguesa do Brasil p. 3 4 5 - 3 4 6 .


2. Arquivo do Estado da Bahia, Seção Judiciária, Série Testamentos ( 1 8 0 5 - 1 8 9 1 , 64 volu-
mes manuscritos) e Série Inventários ( 1 8 0 1 - 1 8 8 9 ) .
3. Nestor Goulart Reis Filho, Evolução urbana do Brasil 1500-1720, p. 112.
4. Katia M. de Queirós Mattoso, Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX,
p. 8 8 - 1 0 5 .
5. Ignacio de Cerqueira e Silva Accioli, Memórias históricas e políticas..., v. 5, p. 371.
6. Luiz dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, v. 2, p. 4 6 0 - 4 6 1 .
7. Arquivo Municipal de Salvador, Livro de Posturas Municipais, 1 8 2 9 - 1 8 5 9 (n° 119.5),
fl. 19 e 35 (manuscrito).
8. Afonso Ruy de Souza, História da Câmara Municipal da cidade de Salvador, p. 309 e 310.
9. Idem, ibidem, p. 310.
10. Alguns resultados do estudo demográfico consagrado à cidade de Salvador no século XIX
por Johildo Lopes de Athayde serão utilizados nesse capítulo e nos livros III e VII deste
trabalho. Ver La ville de Salvador au XIX e
siècle.
11. Thales de Azevedo, Povoamento da cidade do Salvador, p. 182.
12. Afonso Ruy de Souza, História política e administrativa da cidade do Salvador, p. 315;
Sebastião da Rocha Pita, História da América Portuguesa, 1500-1724, p. 5 1 - 6 1 . Os re-
censeamentos já analisados fornecem as seguintes médias de habitantes por fogo: 1706 -
5,0; 1755 - 5,6; 1757 - 7,1; 1759 - 5,9; 1775 - 5,7; 1779 - 5,9.
13. Thales de Azevedo, Povoamento da cidade do Salvador, p. 188.
14. Ignacio de Cerqueira e Silva Accioli, Memórias históricas epolíticas..., v. 5, p. 343.
15- Thales de Azevedo, Povoamento da cidade do Salvador, p. 191-194.
16. A.J.R. Russcl-Wood, "Colonial Brazil", p. 97.
17. Luiz dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, v. 2, p. 1 5 9 - 4 6 0 .
18. Thales de Azevedo, Povoamento da cidade do Salvador, p. 193-194 c 195 e tabela IV.
19. Idem, ibidem, p. 193-194.
20. Katia M . de Queirós Mattoso, "Os preços na Bahia de 1750 a 1930", p. 178.
21. Fernão Cardim (S.J.), Tratado da terra e gente do Brasil p. 288.
22. Gabriel Soares faleceu em 1591, sendo governador da Conquista e de Minas. Cronista
fino, etnólogo antes do tempo, ele descreveu minuciosamente os usos e costumes das
tribos indígenas, que chamou de "povoadores e possuidores desta terra da Bahia . Em
c o m p e n s e . , o autor ni» fa „ minime csforco Dan I
de n u m é r o s paginas consagradas aos e n e n h , d • "
R 0 ^ ° ^ $
negros. apesar
Tratsdo descrititv do Brasil cm ¡587, p. 1 3 3 ! M < ^ ^J * 1 0 , G a b r i d
W s de Souza,
Frei Vicente do Salvador. //..,;„.,.. ^ B r a s i , . ' ~ C l 4 6
~ l 6
2.
do Brasil" substituiu o dc " Iraiado descritivo" Mudan ' J 0
" " * ^ ° t í t U ,
° " H i s t
°rw
por um lado, pelo melhor conhecimento do novo território*— " ,
J ectíva S U C
* ' ustiflca
-
respeito ao seu litoral — c. por outro, pelo at0 dc n,«. f
i- T '"""^ "° 1 , 1 1 0 d i ? i a

história' a ser contada. ' ; C O , 0 n , a


começav, ter uma a

24. François Pyrard de 1 aval. Voyage de François Pyrardd, I ,,-,/

11 tbe ycar 1099, p. S S - S 2 . 1


**HoUandetc.

25. Cf. mais adiante o Livro IV, consagrado às estruturas do Estado.

26. Dados coletados por J.I de Athayde e utilizados em Katia M. de Queirós Mattoso &
Johildo Lopes dc Athayde, Ep.dem.as e flutuações de preços na Bahia no século XIX".
p. IS3 —198.

27. Katia M. dc Queirós Mattoso, "Sociedade e conjuntura na Bahia nos anos de luta pela
Independência".

28. Katia M. dc Queirós Mattoso & Johildo Lopes de Athayde, "Epidemias eflutuaçõesde
preços...", p. 1 8 5 - 1 8 6 .

NOTAS do CAPÍTULO 8

1. No meio rural, os agricultores pobres, também conhecidos como 'moradores', trabalha-


vam como rendeiros nas terras do senhor sem nenhuma garantia, podendo ser expulsos a
qualquer momento. Chamavam-se lavradores livres' quando tinham a possibilidade dc
moer sua cana-de-açúcar cm moinho que não pertencesse ao senhor dc engenho de quem
arrendavam as terras. Eram 'lavradores obrigados* quando seu contrato os forçava a moer
sua cana no moinho do proprietário das terras. Essa distinção entre lavrador livre e
'obrigado' já não existia no século XIX. Os lavradores de antanho haviam sido substituídos
por cultivadores (que eram proprietários ou alugavam suas terras) e por moradores.
Curioso contraste: no campo, mesmo quando não eram proprietários da terra, os lavrado-
res, suas famílias e seus escravos eram contabilizados cm fogos separados. Como acabamos
dc ver, o mesmo não ocorria nas cidades com os agregados. Cf. Stuart B. Schwartz, rec
labor in a slavc economy: The 'lavradores dc cana of colonial Bahia . 1

2. Katia M. dc Queirós Mattoso, Ser escravo no Brasil p. 6 5 - 6 7 .


3. Henrique Jorge Buckíngham Lyra, Colonos e colônias, p, 12-13.
4. Thomas Líncllcy, Narrativa de uma viagem ao Brasil p. 171.
5. Amadc K.B. Moudicz, Lei votes du IMsil p. 52.
6. A inserção da Bahia na evolução nacional p. 207.
7. Amadc K.B. Mouchcz, Lei cèiei du Hrésil p. 50.
8. Sobre as mentalidades religiosas, cf. adiante, no Livro V deste trabalho.
9. Cf., por exemplo, Fala do presidente da Província (Francisco Gonçalves Martins), -
p. 1 1 - 1 2 , na época da epidemia dc febre amarela. y J

10. Sobre o desenvolvimento das estradas dc ferro que modificaram esse quadro, c .
664 BAHIA, SÉCULO X I X

1 1 . Por exemplo, "Relatório do Presidente da Província, o Visconde de São Lourenço, à


Assembléia Provincial de 1 8 7 1 " . H o u v e , nessa época, três anos consecutivos de grande
seca.

12. C f . Katia M . de Queirós M a t t o s o , Ser escravo no Brasil p. 6 5 - 6 7 .

1 3 . Idem, ibidem, p. 5 3 - 6 5 .

14. Maurício Goulart, A escravidão africana do Brasil Pierre Verger, Flux et reflux de la traite
des nègres entre le golfe du Bénin et de Bahia de Todos os Santos du XVII e
au XIXe
siècle,
p. 1 1 4 (ed. brasileira: Fluxo e refluxo do tráfego de escravos entre o golfo de Benin e a Bahia
de todos- os Santos: dos séculos XVII a XIX); Luís V i a n a F i l h o , O negro na Bahia-, Nina
Rodrigues, Os africanos no Brasil

15. Maurício Goulart, A escravidão africana do Brasil p. 2 6 6 .

16. Luís Viana F i l h o , O negro na Bahia, p. 9 8 .


*
17. Pierre Verger, Flux et reflux de la traite des nègres..., p. 6 6 5 - 6 6 6 (ed. brasileira: Fluxo e refluxo
do tráfego de escravos...).

1 8 . Para maiores detalhes: Katia M . de Q u e i r ó s M a t t o s o , Ser escravo no Brasil p. 6 9 - 7 7 .

19. A. Costa, "Descendentes de D i o g o Álvares", e Frei J a b o a t ã o , "Catálogo genealógico".

2 0 . C f . A. Costa, "As órfãs da rainha (base da formação da família brasileira)".

2 1 . Thaïes de Azevedo, Povoamento da cidade do Salvador, p. 2 2 4 .

2 2 . Idem, Les élites de couleur dans une ville brésilienne, p. 2 1 .

2 3 . Arquivo Municipal de Salvador, Livro de Posturas M u n i c i p a i s , 1 8 2 9 - 1 8 5 9 , fl. 2 1 .

2 4 . Thaïes de Azevedo, Povoamento da cidade do Salvador, p. 2 4 .

2 5 . Henrique Jorge B u c k i n g h a m Lyra, Colonos e colônias, p. 1 2 - 1 3 e 1 1 1 .

2 6 . Donald Pierson, Brancos epretos na Bahia, p. 3 3 , inclusive nota 5 5 .

2 7 . Lembremos que, segundo o historiador C a i o Prado J r . , " a contribuição do escravo preto


ou índio para a formação brasileira é além daquela energia motriz, quase nula" {Formação
do Brasil contemporâneo, p. 2 7 0 ) .

NOTAS DO CAPÍTULO 9

1. Vitorino Magalhães G o d i n h o , A estrutura da antiga sociedade portuguesa, p. 6 5 .


2. Cf. Katia M . de Queirós Mattoso, " A família e o direito no Brasil no século X I X . Subsí-
dios jurídicos para os estudos cm história social".
3 . António Teixeira de Freitas (eminente jurista do século XIX>, Código Civil- Esboço, Li-
vro 2. A afirmação do autor é corroborada pela evidência encontrada nos livros dos
tabeliães baianos, nos quais figuram poucos contratos de casamento.
4 . Outrora, esses contratos podiam ser redigidos por ato privado (Ordenações Filipinas,
Livro III, Título 5 9 , § 11 c 2 1 ) . Esse dispositivo foi suprimido pela lei de 6 de outubro de
1784 , reforçada pela lei n " 1.237, dc 24 de setembro de 1 8 6 4 , art. 3» § 9.
5. Cf. Antônio Teixeira dc Freitas, Código Civil Livro 2, p. 4 8 6 .
6. Idem, ibidem, p. 4 9 1 - 4 9 2 .
7. Idem, ibidem, p. 4 9 9 - 5 0 2 .
5. Dom Sebastião Monteiro de Vide i-W t

A
™ " * * * * * * «*»1. ,
9. Idem. ibidem, título 7 2 , p. 3 0 4 - 3 1 7

10. Escrevia-se, por e x e m p l o : " O pai reconhec


Grillo, nascida de Alexandrina Edwiges Vianna/Tuîhcr
ïï? ' ^ H c r s i l i a
Sou
d c
M

pudesse se opor ao casamento...". Arquivo do Estado da l i r " ? " ' m p c d i m c n t o


9"«
livros de Notas c Escrituras, Livro 769 (1885), fl. 44 ' ° J Ç a u d i c i
* n a . Série
1 1 . Idem. ibidem. Livro 4 0 3 ( 1 8 7 0 ) . fl 741 h w M I M , ví -
Espírito Santo. ' ' M 0 U r â 0
Maria Senhorinha do

12. Clóvis Beviláqua, Direito das sucessões, p. 3 0 .

.3. K W . M . d c Q u e i r ó s M . K O S O " P a » u m . história social seriada da c.dade do Salvador no

menulidides" " ' ' C


° m
° f
° n t C d c
™ u d
° d
* «"«ura sociale.de

14. Cf. Livro VII.

15. Este foi o caso, por exemplo, da família Sodré Pereira, cujo morgadio tinha sido instituído
com bens prediais situados cm Portugal c no Brasil. Um representante do ramo brasileiro,
Jerónimo Sodré Pereira, foi seu último administrador. Mario Torres, "Os Morgados do
Sodré".

16. Clóvis Beviláqua, Direito das sucessões, p. 30.


17. Katia M. de Queirós Mattoso, "Para uma história social seriada da cidade do Salvador no
século XIX...", p. 1 4 7 - 1 5 0 .
18. Adeline Daumard, Les bourgeois de Paris au XIX siècle, Les fortunes françaises au XJX* siècle
e

"I-cs fondements de la société bourgeoise". F. Furet & A. Daumard, Structures et relations


sociales à Paris au XVIII e
siècle. Jean Sentou, Fortunes et groupes sociaux à Toulouse sous la
Révolution, ¡789-1799. lissai d'histoire statistique.

19. Autorização que deu, por exemplo, Manuel Frederico Chiappe a sua mulher, Dona Caro-
lina Octavia Ferreira Adães Chiappe, Livro de Notas e Escrituras 343 (1858-1859), fl. 80.
Ou Francisco Gomes Magarão a sua mulher, Maria Francisca Magario, Livro de Notas e
Escrituras 343 ( 1 8 5 8 - 1 8 5 9 ) , fl. 128.
20. Katia M. de Queirós Mattoso, "Párocos e vigários em Salvador no século XIX: as múltiplas
riquezas do clero secular da capital baiana .
21. Daí a facilidade com que foi rejeitada a petição dos filhos naturais de J ^ " " ° e n
p o m | .
Pereira, que exigiam sua inclusão na herança dos bens prediais que, no Brasi c:
gal, tinham constituído o morgadio da família Sodré Pereira. Mano I orres.
dos dos Sodré", p. 3 2 - 3 4 .

NOTAS IX> C A P Í T U L O 10

1 • Katia M. de Queirós MaMoso. Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX
p. 151-169. O mesmo tema é retomado n o capítulo 30 do LIMO v .
2. Lub Aguiar da Costa Pinto, Lutas de famílias no Brasil, p, 25. / / w l 6 . Pa ra
3. Maria Isaura Pereira dc Queiroz, O mandomsmo ^ ^ . ^ ^ ' " ^ u s ^ f i í h o s legítimos) c
« , a autora, a família patriarcal tinha um centro (o casal branco
BAHIA, SÉCULO XIX

uma periferia mal definida (escravos, agregados, afilhados, concubinas e filhos ilegítimos)
Os ascendentes, irmãos, irmãs e colaterais não são mencionados.

4. A demografia histórica no Brasil deve muito a Maria Luiza Marcílio, verdadeira pioneira
nesse campo de estudos, fundadora e diretora do Cedal da Universidade de São Paulo
Cf. La ville de São Paulo... (ed. brasileira: A cidade de São Paulo...). Como definiu Louis
Henri, "em estatística, a família é formada pelo casal ou o cônjuge sobrevivente e, even
tualmente, os filhos sobreviventes".

5. Entre 1741 e 1845, a freqüência dos batismos de crianças ilegítimas variou entre 10,24%
e 3 1 , 4 9 % , em constante progressão. No mesmo período, em média, 14,8% dos batismos
foram feitos em crianças enjeitadas. Maria Luiza Marcílio, La ville de São Paulo..., p. 183~
184 (ed. brasileira: A cidade de São Paulo...).

6. Adolphe Landry, Traité de démographie.

7. A autora chama a atenção para o fato de que, nesse trabalho, foi usada uma lista nominativa
de 1765 que não incluía os escravos, nem levava em conta a composição racial das famílias.
Nos lares com apenas um chefe, habitavam um casal com ou sem filhos, viúvo ou viúva
com filhos, esposa com marido ausente, mãe ou pai solteiro, chefe de domicílio e seus
filhos morando com os pais. Nos domicílios com apenas um chefe de família habitavam:
um casal legal com ou sem filhos, viúvo ou viúva com filhos, esposa com marido ausente,
mãe ou pai solteiro, viúvo ou viúva vivendo sozinhos, chefe de domicílio e seus filhos
vivendo com seus irmãos ou irmãs solteiros, chefe de domicílio e seus filhos morando com
os pais, chefe de domicílio e seus filhos morando com dependentes (agregados) solteiros.
Nos domicílios com vários chefes de família habitavam: um ou vários filhos casados
morando com pai ou mãe, um chefe de domicílio morando com a família de seu empre-
gado (feitor), um núcleo principal e outro aparentado, núcleos não aparentados. Nos
domicílios sem chefe, todos eram solteiros sem filhos. Esta última categoria não é precisa,
pois alude a casos muito diferentes, como, entre outros, irmãos e irmãs vivendo sob o
mesmo teto ou escravos alforriados unidos por uma mesma origem étnica. Como se verá
adiante, essa associação sob um mesmo teto era muito freqüente na Bahia do século XIX.
Maria Luiza Marcílio, La ville de São Paulo..., p. 148 (ed. brasileira: A cidade de São
Paulo...).

8. Largamente inspirada nos trabalhos de Peter Laslett ("La famille et le ménage: approches
historiques") e de Jean-Claude Peyronnet ("Famille élargie ou famille nucléaire. L'exemple
limousin du début du X I X siècle"), Iraci dei Nero da Costa, em Vila Rica:população
e
(1719-
1826), distingue quatro categorias de famílias: independentes (família do chefe da casa,
famílias dos filhos do chefe da casa e famílias de parentes do chefe da casa), dependentes
(as dos agregados), escravas c pseudo-famílias (viúvos ou viúvas solitários, viúvos ou viuvas
que vivem com filhos que constituíram família, viúvos ou viúvas dependentes ou escravos
que não constituíram família).
9. A noção de família simples pode ser assimilada à de casal, pois se refere, essencialmente,
ao laço conjugal. Corresponde h expressão atual 'jovem casal*. Cf. Martine Segalen, Soaolope
de la famille, p. 15.
10. Idem, ibidem, p. 15.
11. Circunscrições n° 21 e 22 da Sé, n° 16 de Santo Antônio, n° 1 de São Pedro e n° 10 do Pi-
lar. Existem dados para duas outras circunscrições (a 13 de Santo Antônio e a 20
a

Pilar), mas os documentos são ilegíveis.


12. Johildo L o p c d e A t J u y d e . U vilL / c ,

13. Idem. ibidem, p 325 ' "''-" inr


•>» W ,„j , . f p 2 S 2

14. Idem. ibidem, p. 325 p.i c

15. Maria I u i u Marcflio, / . , „;//, i , ,


Pauto...) »*U*4eS*o Paula,.,, . p I 4 8 . .
1 I N
IW. brasileira: /l <-,,/,,/, . c .

d c a n q ü e n u anos. c w
'«".minos, lemprcdc M U H »
com rnau
Katia M. de Queirós Mattoso, "A carta ,1, u

estudo da rentabilidade da m a o - d e - o b r ^ r a f e ^ J ^ - •

19. a l i v r o VII. capítulo 3 1 . P


' 5
'

20. Johildo Lopes d e Athayde, "Filhos Hegítimos e criança, expostas", p. , . 0

21. Cf. I.ivro V II. capitulo 3 1 . e capítulo 1 1 deste Livro.

2 2 . Johildo Lopes de Athayde. "Filhos ilegítimos e crianças expostas".

2 3 . Thalcs de Azevedo, Povoamento da cidade do Salvador, p. 2 0 5 - 2 0 7 .

2 4 . Johildo Lopes de Athayde, "Filhos ilegítimos e crianças expostas", p. ] . 5

2 5 . Idem, ibidem.

26. I hales de Azevedo, Povoamento da cidade do Salvador, p. ] 5 7 - 1 8 0 .

2 7 . Luiz dos Santos Vilhena, A Hahia no século XVIII, v. 1, p. 126.

2 8 . Vera L. Alves, The Santa Casa da Misericórdia of Bahia, 1870-1900, p. 48.

2 9 . Johildo I.opcs de Athayde, "Filhos ilegítimos c crianças expostas", p. 22.


3 0 . Sobre as crianças devoradas pelos animais errantes, ver Antonio Joaquim Damazio, Tomba-
mento das hens móveis da Santa Casa da Misericórdia da Hahia em 1862, p. 59. Um rela-
tório da comissão médica da Misericórdia, datado de 1873, declarou que havia mães tão
• desnaturadas que chegavam ao ponto de abandonar crianças que nasciam franzinas, para
evitar despesas médicas c funerárias. Citado por Johildo Lopes de Athayde. "Filhos ilegítimos
c crianças expostas", p. 2 3 .
3 1 . Arquivo do Fstado da Bahia, Seção Judiciária, Série Testamentos, Livro 4 (8/1/1813-
7 / 7 / 1 8 1 4 ) . Testamento de Clara Jose Maurícia, fl. 227/230.

32. Johildo Lopei de Athayde, "Filhos ilegítimos c crianças expostas", p. 21.


3 3 . Idem, ibidem, p. 2 2 .
3 4 . Em 1 8 5 9 , o casal imperial, dom Fedro II e dona Tcrcza-Cristina Maria, fez uma viagem
>s províncias ,1a costa leste e nordeste do Brasil. Para esclarecer a, impera « ^
sociedade local, a baían/wíma Luiw Margarida Portugal dc Barros, s
< ,
) ( j r c ; i a r i s t o c r a c i < 1

preceptora das princesas Isabel c Leopoldina, redigiu um «cx.o lecre ^ m v ü i e n t .


da Bahia, com urna ferocidade que às vezes surpreende, sol.rc.uuo ^ V J S C o n d c

Por exemplo: " D . Ana Bandeira, irmã da Te.é dizem coisas DÇ a c ^ ^ ^


dos Fiais, homem imoral etn fingimentos dc Santo | An " . - . Maria
C o u t j n h o D

I ) . Emília Bulcão, casado com a viúva de um célebre " „ Clementina Vaz de


Adelaide Sodré. cx-bcleza que usa de óculos az.u.s, tem 16WMI • ^ VAZ
Carvalho, outra Sodré. casada com um excelente homem C rico p
660 BAHIA, SÉCULO XIX

Carvalho — ambas tiveram mocidade alegre"; "Leopoldina de Sá Barreto, cunhada d


Barão de Cajaíba, tem péssimo comportamento c escandaloso com a única causa atenua
te de ser casada com um marido doido que anda nu cm casa que não se lava e que viv
como um animal. Desse desgraçado teve duas filhas crétin que não falam etc., é uma i
feliz"; "A Baronesa de São Francisco (Ana Rita Marinho Cavalcanti) tanto tem de ca az
como sua mãe (Mariana Rita Menezes Brandão) de desprezível — é uma célebre do
Mariana, que teve filhos do Sodré, do Pita Lima e t c , e t c " ; "D. Luiza Pires, senhora do
Engenho Pantalcão, tem a mesma conduta que a D. Mariana"; "Brasília Nabuco, que foi
muito bonita (filha do Desembargador Junqueira), é a mesma coisa que as duas outras'"
Condessa de Barral (Luiza Margarida Portugal de Barros), Cartas a Suas Majestades, 1859-
1890, p. 3 5 2 - 3 5 4 .

35. Lembremos que o filho ilegítimo permanecia nesta condição se não fosse reconhecido pelo
pai. O bastardo era reconhecido pelo pai (casado ou viúvo) ou a mãe (casada ou viúva)
Segundo os inventários post mortem, cinco das 103 mulheres casadas tiveram filhos natu-
rais antes de casar. Entre 298 homens, dezessete tiveram filhos nas mesmas condições;
cinco viúvas (num total de 65) e quinze viúvos (entre 94) tiveram filhos naturais após a
morte do cônjuge. Lembremos, para constar, que na Europa do século XIX o maior índice
de filhos naturais era o da Baviera (27,3%) e os menores eram os da Bulgária e da Sérvia
(0,2%). Infelizmente, não tenho dados sobre Portugal. A Espanha tinha um índice de
5,9%, mas as estruturas familiais espanholas eram muito diferentes das portuguesas. Cf.
Emmanuel Todd, La troisiémeplanete. Structures familiales et systémes idéologiques, p. 101.

36. Cf. Livro V, capítulo 20.


37. Cf. Katia M. de Queirós Mattoso, "A carta de alforria...", p. 1 5 0 - 1 6 3 ; "A propósito de
cartas de alforria"; Testamentos de escravos libertos na Bahia no século XIX: uma fonte para
estudo de mentalidade, Ser escravo no Brasil, Stuart B. Schwartz, "The manumission of slaves
in colonial Brazil: Bahia, 1 6 8 4 - 1 7 4 5 " ; M.I. Cortes Oliveira, O liberto: o seu mundo c os
outros. Salvador, 1790-1890, J.J. Reis, Rebelião escrava no Brasil
38. Cf. Katia M. de Queirós Mattoso, Ser escravo no Brasil p. 1 7 6 - 1 9 8 .
39. J.J. Reis, Slave Rebellion in Brazil.., p. 8 (ed. brasileira: Rebelião escrava no Brasil..).
40. Idem, ibidem, p. 265.
41. Cf. George P. Murdock, Africa: itspeople andtheir culturalhistory, p. 143, 2 4 6 - 2 4 8 e 255-
256; Katia M. de Queirós Mattoso, Ser escravo no Brasil, p. 122-134; J.J. Reis, Slave Rebellion
in Brazil..., p. 2 5 1 - 2 5 2 c 3 2 5 - 3 9 7 (ed. brasileira: Rebelião escrava no Brasil...).
42. Cf. Livro V, capítulo 22.
43. J.J. Reis, Slave Rebellion in Brazil..., p. 2 4 6 - 2 4 7 (ed. brasileira: Rebelião escrava no Bra-
sil...).
44. Katia M. de Queirós Mattoso, Ser escravo no Brasil p. 144-172; J.J. Reis, Slave Rebellion
in Brazil..., p. 3 3 5 - 3 4 7 (ed. brasileira: Rebelião escrava no Brasil...).
45. Mary Karash, Slave Ufe in Rio de Janeiro, I808-186O, Robcrt W. Sienes, The Demography
and Economics of Brazilian Slavery, 1850-1888.
46. Cf. Livro VII, capítulo 28.
47. Adeline Daumard, Les bourgeois de Paris au XIX' siècle, p. 69-76; Pierre Güira! & Guy
Thuillier, La vie quotidiene des domestiques en Trance au XIX' sticle.
48. Katia M. de Queirós Mattoso, Ser escravo no Brasil, p. 186-198.
49. Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira J W . J- •
50. Era comum que as m u l h e r , c o n s e r ^ * »
solteira. Esse sobrenome podia, aliás, ser transmitió a'sTs
fiU,^' l ° S b r e n o m e d e

mulheres — . que teriam assim um nome de família dif A ~ ° S b r e t u d o à s f l l h a s

irmãs. Sugeri que as duas mulheres citadas fossem bnSTÜi r t í í í ^ ° Í r m 5 S C

Antônio José também poderia ser afilhada, ou mesmo filha dos to, A \ " """^ d e

um dos fdhos homens dos Souza Mattos chamava-se Ge mano M^ndesl M ^


passo que seus irmãos eram todos Souza Mattos! ' B a r r e t o N e t 0 a o

51. O apadrinhamento espiritual é um desses numerosos laços que tecem a trama Ha l -


sociais no Brasil. O padrinho pode ser 'de batismo' ou l
« ¿ J S ^
podem ser madrinhas quando consagram a criança a Nossa Senhora, cerimônia que tem
lugar apos o batismo e e x e uma madrinha diferente da de batismo. Não era raro que pais
lg

muito abastados escolhessem entre seus alforriados a 'madrinha de apresentação a Nossa


Senhora', que desempenhava o papel de Simeão, personagem que, outrora, levou Cristo ao
Templo de Jerusalém.

52. É significativo que o recenseador tenha anotado o nome de Maria Joaquina dos Passos,
chefe do grupo familiar, sem qualificá-la de 'dona'. Mas a agregada, porque é branca e
Cerqueira (família muito conhecida), foi assim qualificada, apesar de ser mãe solteira. O
tratamento de 'dona' ou de 'senhor' não podia ser dado aos alforriados.
53. Considerei casos particulares três grupos de 'estrutura indeterminada'. Seus membros
tinham laços de parentesco, mas é difícil inseri-los nas categorias que eu quis distinguir. O
primeiro era o grupo de dona Maria dos Prazeres, mulata de 70 anos, mãe solteira de três
filhos: Henriqueta Joana de Nepomuceno (50 anos, mulata, solteira), Maria Constança da
Silva (mulata, mãe solteira de quatro filhos) e Epifânio Francisco Ramos (35 anos, mulato,
escrevente público). Note-se que cada um tinha um sobrenome diferente. No sobrado,
não havia agregados ou escravos, mas vivia em concubinato José Alberto Ramos, 40 anos,
branco, solteiro, escrivão do Tribunal. Impossível saber se havia laço de parentesco entre
os dois grupos, mas o nome Ramos (que não era comum na Salvador de então) pode ser
considerado um indício neste sentido.
Outro grupo complexo era o do italiano Rafael Gastet, 44 anos, solteiro, tintureiro que
vivia com três agregados: Camilla Rafaella (14 anos, solteira, mulata), Manuel Katael
anos, mulato) e dona Maria Joaquina do Sacramento (20 anos, branca, solteira). Morava
com eles o escravo André (12 anos, crioulo). Tratava-se de um pai solteiro
filhos com uma mulher de cor e lhes dera seu próprio preñóme? Eram filhos na
eidos? Qual o lugar de dona Maria Joaquina junto ao nosso italiano. ^
O terceiro c último grupo nessa situação era o de dona Mariana da Silva ( 6 0 J f " ° * £ ^ c

branca) e de suas duas filhas: Umbelina Adelaide de Souza (30 anos so * >
Maria Marques de Souza (26 anos, solteira, branca). Umbelma «nhatrêsfilhos
com menos de 13 anos. O grupo não possuía nem agregados, nem es

NOTAS DO CAPITULO 11

1. Martine ScgaJen, Sociobgic de la famille, p. 4 0 - 4 2 . k-jlL A cultural


2. Idem, ibidem, p. 4 2 - 4 3 . Também cf. David M. * ^ £ £ S E * & A -8*
account, p. 2 2 - 2 9 , que distingue os pais biológjcos os pais record,
os pais 'de sangue', que são ao mesmo tempo biológicos e lega...
6*0 BAHIA, SÉCULO X I X

3 . E m m a n u e l T o d d , La troisième planète, p. 35-


4 . N i n a Rodrigues, Os africanos no Brasil p. 1 0 1 ; Katia M . de Queirós Mattoso, Ser escravo
no Brasil p. 1 4 5 .
5 . N i n a Rodrigues, Os africanos no Brasil p. 1 0 7 - 1 1 8 .
6 . Idem, ibidem, p. 1 1 7 .
7. Juana Elbein dos Santos, Os Nagô e a morte-, Vivaldo C o s t a L i m a , A família-de-santo nos
candomblés Jeje-Nagôs da Bahia: um estudo de relações intergrupais.
8 . Martine Scgalcn, Sociologie de la famille, p. 5 1 .

9- Sobretudo ao tratar-se de u m casamento c o m u m cônjuge cuja cor da pele era mais escura.
Eis c o m o Luiza Margarida Portugal de Barros, Condessa de Barrai, apresentava sua família
paterna: " M i n h a família se c o m p õ e , h o j e , de duas tias, religiosas n o convento do Desterro,
soror Maria e soror Rosa Borges, e de u m tio, Francisco Borges (tenente reformado, de
sessenta anos), m u i t o extravagante que acabou se casando c o m uma mulata, com quem
teve doze fdhos. Ele é p o b r e . " Condessa de Barral, Cartas a Suas Majestades, 1859-1890,
p. 3 5 5 . Apesar dessa mésalliance, a sobrinha continuava a colocar o tio entre as famílias
aristocráticas da Bahia, mas excluindo a mulher e os filhos deste.

1 0 . E m m a n u e l T o d d , La troisième planète, p. 3 7 . O sentido dado à palavra 'livre' não é defi-


nido. Aliás, na frase seguinte, ele se contradiz, ao escrever: "a sociedade ocidental, do
ponto de vista sexual, é m u i t o rigorosamente regulada".
1 1 . Martine Segalen, Sociologie de la famille, p. 5 2 .
12. Emmanuel T o d d , La troisième planète, p. 3 0 .
13- N o s arquivos da C ú r i a M e t r o p o l i t a n a de Salvador existe uma excelente série de dispensas
de casamento, que vem sendo estudada há vários anos por J o h i l d o Lopes de Athayde.
N e n h u m resultado foi publicado até agora.
14. Hélio V i a n n a , Vultos do Império, p. 2 0 7 - 2 2 9 ; R u y Vieira da C u n h a , O Parlamento e a
nobreza brasileira. Esses autores notaram q u e raramente os comerciantes foram enobreci-
dos. Cita-se o caso excepcional de José Francisco de Mesquita, de Minas Gerais, feito
sucessivamente Visconde, C o n d e e M a r q u ê s de B o n f i m . N a Bahia, só um comerciante,
Joaquim Elísio Pereira M a r i n h o , recebeu o título de visconde (de G u a i ) . Na época, 1889,
ele era titular do Ministério da Marinha.
15. Duas mulheres receberam títulos de nobreza, outorgados a 1 1 3 personalidades baianas:
Ana Romana Aragão C a l m o n , feita Condessa de Itapajipe em 1 8 2 6 , e Luiza Margarida
Portugal de Barros (Condessa de Barral por seu casamento francês com Jean Horace
Joseph Eugène), feita Condessa da Pedra Branca cm 1 8 6 4 . As duas eram damas da Corte
Imperial. Não as incluí nessa análise.
16. A.A.A. Bulcão Sobrinho, Titulares baianos.
17. Essa afirmação se baseia na tradição historiográfica, c não no estudo das empresas canavieiras.
As reclamações dos senhores de engenho não surgem no século X I X . Mesmo nos períodos
de prosperidade (século X V I I , fim do X V I I I c princípio do X I X ) ela imperava nos meios
canaviciros, que não hesitavam cm culpar a organização comercial c os poderes públicos
t

por suas dificuldades. Cf. Pinto de Aguiar, A economia baiana no alvorecer do século XIX.
18. A informação é de frei Antônio de Santa Maria do Jaboatão, que no século X V I I I fez um
catálogo genealógico das mais poderosas famílias de senhores de engenho do Recôncavo»
conseguindo dotar todas cias de antepassados ilustres. Gaspar de Araújo seria membro a
N o t jAS
671

nobre linhagem dos Araújo de Ponte Lima do Alenrei r


descendente da não menos nobre linhagem dos "Góis d, L U T T l h c r
' S
" i a

Um famoso guerreiro. Martinho Vasques de Góis se l T^fT***


meados do século XIV! Na r e a l i d a d e , ^ « L k t í d T o E T " e m

mulher chegaram como simo.es .migrantes e, no ffi££r£^-


mcncone. como. neste pa.s dc mugrantes, a memória genealógica se manifesta com oça
na mesma proporção da sede de nobreza. Os filhos de Gaspar de Araúio e He C a r

Góis foram: Antônio de Pádua ( 1 5 6 1 - 1 6 4 3 ) , Simeão de Araúfo ( ¿ 1 6 6 ) p^n 2

Maria Ana (que morreu celibatária), Clara e Jorge (?-1657). ^ancisca,

19. O genealogista da família foi Bulcão Sobrinho, "Famílias baianas: Araújo Góis".
20. Limitarei meu estudo aos casamentos celebrados ainda no século XIX. Escolhi esta família
simplesmente porque desejava conhecer o peso das práticas endogâmicas nos primórdios
da coloni zação, quando as oportunidades de casamentos exógamos eram mais escassas ue
no século X I X . Se houve evolução, para que lado foi? As datas-limites para cada genealogia
foram fixadas a partir dos nascimentos do fundador do ramo e do último descendente. Nas
genealogias do século X I X , a última data correspondia ao nascimento de um descendente,
que eventualmente poderia ter se casado no século XIX. Os barões de Araújo Góis e de
Camaçari descendiam de Simeão de Araújo Góis.
21. Das 124 pessoas que se casaram sem que o genealogista fornecesse a descendência, 41
contraíram matrimônios estéreis, ou supostamente estéreis. Mas, por causa da endogamia,
na realidade somente 193 casamentos foram celebrados. Encontrei citadas duas vezes 24
das 217 pessoas que se casaram, por causa do jogo dos casamentos endógenos.
22. Eul-Soo Pang, O Engenho Central de Bom Jardim na economia baiana.
23. "Lá onde filhos de dois SIBLINGS podem casar-se e onde impera um IDEAL NUCLEAR da fa-
mília, observa-se geralmente uma contradição flagrante entre teoria e prática: as famílias
observadas na época dos recenseamentos, em geral não são simplesmente compostas de
pais e de filhos celibatários. Cada grupo doméstico agrega indivíduos adultos suplementa-
res e, freqüentemente, vários casais. A coabitação entre pais e filhos casados é freqüente e
se estabelece a maior parte do tempo através das mulheres. Mas essa forma nunca é tida
como ideal, mesmo quando domina do ponto de vista estatístico... Trata-se de um sistema
nuclear que não consegue separar os membros da família quando osfilhosatingem a idade
adulta". Emmanuel Todd, La troisièmeplanète, p. 3 3 - 3 4 .
24. Os fatores que permitiram o estabelecimento de comerciantes portugueses como senhores
de engenho no fim do século XVII e no primeiro quarto do século XVIII foram estudados
por Flory. Cf. R.J.D. Flory, Bahian Society..., p. 217-280.
25. Katia M. de Queirós Mattoso, "Conjoncture et société au Brésil..."; "Sociedade e conjun-
tura na Bahia...".
26. A.A.A. Bulcão Sobrinho, "Famílias baianas: Bulcão", p. 2 - 3 . Também as
família Bulcão foram descritas de forma pouco convincente. Ela teria um an P
flamengo, o burguês (iro.. Bulscam ou Bulscamp, que teria integrado o conunge
flamengo de Jobs, van H c u . c n , colonizador da ilha do Faial, a ped.do do re. Afonso V,
Portugual.
27. Mario Torres, "Os Sodres". .
28. Os Bittencourt afirmam ser descendentes da família normanda dos ^Áencourt.da
alguns membros teriam emigrado para Madeira no início do século X V , onde
672 BAHIA, SÉCULO X I X

teria sido alterado para B c t c n c o u r t ou B i t t e n c o u r t . O genealogista não fornece prova


alguma de tal afirmação. N a realidade, houve um Jean de B c t h e n c o u r t , navegador nor-
mando, nascido em Granvillc-la-Teinturièrc, c m C a u x , por volta de 1 3 6 0 , que morreu em
1 4 2 5 . M a s este Jean de B e t h e n c o u r t , cuja família tinha sido arruinada pela Guerra dc Cem
Anos, foi à cata dc fortuna para as ilhas Canárias, onde se fez reconhecer senhor do
arquipélago por H e n r i q u e II de Castilha; c o n q u i s t o u depois as ilhas do Ferro c de Palma
Q u a n t o aos Bcrenguer, sua única pretensão é dc descender de u m a família originária dos
velhos reinos de Valência e C a t a l u n h a que se estabeleceu c m Funchal (ilha da Madeira)

2 9 . A.A.A. Bulcão S o b r i n h o , "Famílias baianas: B e t h e n c o u r t " , p. 2 9 - 3 0 .

3 0 . A.A.A. Bulcão S o b r i n h o , "Famílias baianas: Berenguer", p. 5 7 - 5 8 .

3 1 . Este resultado se aproxima daquele e n c o n t r a d o por J o h i l d o Lopes de Athayde para a


cidade de Salvador (cerca de 8 % e m torno de meados do século X I X , conforme informa-
ção c o m u n i c a d a v e r b a l m e n t e ) .

3 2 . E u l - S o o Pang, O E n g e n h o Central de B o m J a r d i m . . . , p. 1 8 5 - 2 2 2 .

33- C f . T â n i a Penido M o n t e i r o , Portugueses na Bahia... C f . t a m b é m n o Livro V I , capítulo 27.

3 4 . Entre 1 8 5 1 e 1 8 8 9 , 5 7 , 0 % do capital das empresas comerciais estavam nas mãos dos


portugueses e 3 2 , 0 % nas dos brasileiros; 1 1 , 0 % ' permaneciam nas mãos de estrangeiros.
N a realidade, esse recenseamento ignorou c o m p l e t a m e n t e as numerosas casas de comércio
inglesas e alemãs, sobre as quais não possuo n e n h u m estudo. C f . T â n i a Penido Monteiro,
Portugueses na Bahia.., p. 1 0 5 .

3 5 . Cf. Livro V I , capítulo 2 7 .

3 6 . T â n i a Penido M o n t e i r o , Portugueses na Bahia..., p. 7 5 - 9 5 ; Mário Augusto da Silva San-


tos, O comércio português na Bahia, 1870-1970.

3 7 . Citado por J J . Reis, Rebelião escrava no Brasil, p. 1 . 0 2 4 .

3 8 . Arquivo do Estado da Bahia, Seção Judiciária, Série T e s t a m e n t o s , Livro 5 (3/6/1815-


2 4 / 1 1 / 1 8 1 5 ) , fl. 2 0 6 v - 2 1 0 .
3 9 . Ibidem, Livro 9 ( 2 / 7 / 1 8 1 7 - 1 8 / 5 / 1 8 1 8 ) , fl. 5 9 - 6 2 v .
4 0 . Ibidem, Livro 2 3 ( 1 2 / 1 1 / 1 8 3 4 - 2 5 / 1 / 1 8 3 6 ) , fl. 7 v - 1 0 .
4 1 . Ibidem, Livro 2 3 ( 1 2 / 1 1 / 1 8 3 4 - 2 5 / 1 / 1 8 3 6 ) , fl. 2 0 - 3 0 .
4 2 . Ibidem, Livro 8 ( 2 5 / 6 / 1 8 1 6 - 5 / 1 0 / 1 8 1 6 ) , fl. 2 0 0 v - 2 0 3 .
4 3 . Ibidem, Livro 13 ( 2 / 5 / 1 8 2 6 - 2 5 / 9 / 1 8 2 6 ) , fl. 2 5 - 3 0 . Infelizmente não encontrei o inven-
tário correspondente, que teria tornado possível avaliar as casas citadas.
4 4 . Ibidem, Livro 3 ( 9 / 1 / 1 8 1 1 - 6 / 3 / 1 8 1 1 ) , fl. 3 1 v - 3 4 .
4 5 . Ibidem, Livro 16 ( 6 / 3 / 1 8 2 8 - 2 8 / 6 / 1 8 2 8 ) , fl. 1 0 0 - 1 0 4 .
4 6 . D o m Sebastião Monteiro dc Vide (Arcebispo da Bahia), Constituições primeiras do Arce-
bispado da Bahia, Livro I, título 6 7 , artigo 2 8 5 , p. 1 2 4 - 1 2 6 .
4 7 . Thales de Azevedo, Namoro à antiga. Tradição e mudança.
4 8 . A.J.R. Russel-Wood, Fidalgos and Philanthropists, p. 3 2 0 - 3 3 6 .
4 9 . Falado presidente da Província (Herculano Ferreira Penna), 1860, p. 4 5 - 4 8 .
5 0 . Fala do presidente da Província (Antônio Coelho de Sá e Albuquerque), 1863, p. 30.
51- Agradeço a Johildo Lopes dc Athayde, que me forneceu essa amostra.
NOTAS DO CAPÍTULO 1 2

1. Para tudo o que diz respeito à educação religiosa, ver I ivro V

2. Luís Henrique Dias Tavares, «Evolução educacional na Bahia (sumula até 1930)"
3. Cl. Tan.a Penido Monte.ro, Portugueses na Bahia..., p . 59,75. '
4. Para ç> ano de 1872, tenho informações sobre o número de alunos Ar .1
privadas e publicas: Escola Norma, (moços), 36 a.unos; b £ ^ & £ S £
nas. das quais 13 internas, oriundas do interior da Província- Licen Pm • • ? ,
2 9 9 alunos. Para o ano de 1873, tenho informações ^ ^ T ^ T ^
colégios internos administrados pela Igreja e dedicados à educação de pobres e értos-
Nossa Senhora da Salette (meninas), 51 internas e 70 externas; Casa da Providência
(meninas), 160 internas e 188 externas; Colégio do S. Coração de Jesus (meninas) 88
internas e 7 0 externas; Recolhimento dos Humildes (meninas), 47 internas; Seminário
Diocesano, 11 internos no curso preparatório e 41 alunos no de Teologia; Órfãos de São
Joaquim (meninos), 7 6 internos.

5. De todas as instituições baianas de educação superior só a Escola Superior de Agricultura


foi estudada. Fundada em 1877, ela foi suprimida em 1902 por falta de verba e... de
estudantes. Entre 1880 e 1895, ela concedeu diplomas a 148 engenheiros agrônomos. Cf.
Maria Antonieta Campos Tourinho, O Imperial Instituto Baiano de Agricultura. A instru-
ção agrícola e a crise da economia açucareira na segunda metade do século XIX, p. 127-150.
6. Pierre Verger, Notícias da Bahia - 1850, p. 195.
7. Robert Avé-Lallemant, Viagem pelo norte do Brasil..., p. 47.
8. J. Wetherell, Brasil. Apontamentos sobre a Bahia, 1842-1857, p. 79.

9. Pierre Verger, Notícias da Bahia - 1850, p. 1 9 5 - 2 1 2 .


10. José Wanderley de Araújo Pinho, Salões e damas do Segundo Reinado, p. 2 5 - 2 6 .
11. Cf. Livro V, capítulo 22.
12. José Wanderley de Araújo Pinho, "A Bahia - 1 8 0 8 - 1 8 5 6 " , p. 243.
13. James Prior, Voyage along the eastern coast of Africa to Mozambique, Joanna and Quiloa to
St. Helena, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco in the Nisus Frigate, p. 103.
14. Jacob von Tschudi, Reisen durch Sud-Amerika. Apud: Moema Parente Augel, Visitantes
estrangeiros na Bahia oitocentista, p. 239.
15. Antonio Ferrão Moniz, "Relatório do bibliotecário da Livraria Pública".
16. L F . de Tollcnare, Notas dominicais tomadas durante uma viagem em Portugale no Bros, em
1816, 1817 e 1818, p. 320. %

17. Joaquim dc Mattos Telles dc Menezes, "Relatório da Biblioteca Pública .


18. David Salles, Primeiras manifestações da ficção na Bahia, p. 129. I n v c n t á r j o s (Ma-
19. Ver, por exemplo, Arquivo do Estado da Bahia, S e ç ã o ' J ^ i r i a , S T ^ g j g * N o _
90.); no 3/728 (1824)! 5/786 (1833), 7/809 (1834), 4/823 ( 840) e 8/924 (185
temos que esse género dc situação não acontece ma.s depois de l w •
20. J.J. R CÍS , Slave Rebelüon in Brazil..., p. 2 4 0 - 2 4 , e 246 (ed. brasileira: Rebela escrava

21. £ a g r a f o sobre as e s t r a t o s matrimoniais dos alforriados, no Livro III, capítulo 11


da presente obra.
S74 BAHIA, SÉCULO X I X

2 2 . J . J . Reis chega à mesma conclusão em Slave Rebellion in Brazil..., p. 2 4 6 (ed. brasileira-


Rebelião escrava no Brasil...).

2 3 . História da Igreja no Brasil t. 1172, p. 5 6 - 6 , 1 5 7 - 1 6 4 , 1 7 1 - 1 7 3 , 1 7 8 - 1 7 9 .

2 4 . J . J . Reis, Slave Rebellion in Brazil..., p. 2 4 3 - 2 4 9 (ed. brasileira: Rebelião escrava no Bra


siL.). '

25- A . H . de Oliveira M a r q u e s , A sociedade medieval portuguesa, p. 1 1 5 e 1 2 5 ; Paul Descamps


Histoire sociale du Portugal p. 2 4 4 - 2 5 0 e 2 7 3 - 3 0 3 .

2 6 . Hildergardes V i a n a , I. " M a n u a l dos n a m o r a d o s " e I I . "Linguagem muda do namoro".

2 7 . T h a l e s de Azevedo, Namoro, religião e poder, p. 1 2 6 .

2 8 . Idem, ibidem, p. 1 2 6 .

2 9 . T h a l e s de Azevedo, Namoro ã antiga, p. 3 8 - 4 1 .

3 0 . Idem, ibidem, p. 3 1 .

3 1 . G i l b e r t o Freyre, Sobrados e mocambos, 4 a


ed., p. 1 2 9 .

3 2 . A n t o n i o C â n d i d o , " T h e Brazilian F a m i l y " , p. 3 0 9 .

3 3 . Thales de Azevedo, Namoro à antiga, p. 3 8 .

3 4 . Katia M . de Q u e i r ó s M a t t o s o , Ser escravo no Brasil p. 1 3 1 - 1 3 4 .

3 5 . Arquivo d o Estado da Bahia, Seção Judiciária, Série T e s t a m e n t o s , 1 8 0 5 - 1 8 9 1 .

3 6 . Ibidem, Livro 2 ( 9 / 9 / 1 8 0 5 - 2 2 / 2 / 1 8 0 6 ) , fl. 1 5 4 v - Í 5 7 .

3 7 . Ibidem, Livro 2 8 ( 3 / 7 / 1 8 4 0 - 1 1 / 5 / 1 8 4 1 ) , fl. 2 9 v - 3 2 .

3 8 . T h o m a s Ewbank, Life in Brazil p. 6 7 .

3 9 . Maximiliano de Habsburgo, Bahia, 1860. Esboços de viagem, p. 149.

4 0 . Xavier Marques, O feiticeiro, p. 1 7 1 .


4 1 . Essas páginas sobre o nascimento, vida e morte dos baianos inspiram-se, em parte, no livro
de Carlos B . O t t , Formação e evolução étnica da cidade do Salvador, v. 1, p. 1 7 7 - 1 9 1 .
4 2 . Katia M . de Queirós M a t t o s o , " A propósito de cartas de alforria".

4 3 . Idem, Ser escravo no Brasil p. 1 9 9 - 2 0 7 .


4 4 . T h o m a s Lindley, Narrativa de uma viagem ao Brasil p. 7 1 .
4 5 . Johann P. von Spix e Karl Friedrich Phillip von Martius, Através da Bahia, p. 76.
4 6 . J . Wethercll, Brasil. Apontamentos sobre a Bahia..., p. 8 0 - 8 1 .
4 7 . Cf. M o c m a Parente Augcl, Visitantes estrangeiros..., p. 1 8 1 .

NOTAS DO CAPITULO 1 3

1. Citado por J . F . de Almeida Prado, Dom João e o inicio da classe dirigente do Brasil
2. Luiz dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIIL v. 2. p. 2 9 7 - 3 2 9 .
3. Stuart B. Schwartz, Burocracia e sociedade no Brasil colonial
4 . Luiz dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIIL v. 2, p. 3 4 5 .
5 . Idem, ibidem, p. 3 3 5 .
6 . F . W . O . M o r t o n , The Conservative Revolution..., p. 6 1 - 6 2 .
Fernando Uricoechea, O Minotauro Imperial Ah,
século XIX (especialmente o capítulo 2, p. £ _ g 0 ) ^ ^ p a t H m
° n Í a l

8. Luiz dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, v. 1, . p 2 4 -250
8

9. Idem, ibidem, p. 2 4 7 - 2 4 8 .

10. F.W.O. Morton. The Conservative Revolution..., p. 7 3 , 7 4


11. Idem. ibidem, p. 7 8 - 7 9 .
12. Idem. ibidem, p. 8 0 - 8 2 .

14. Luiz dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, v. 1, p. 252.


15. Idem, ibidem, p. 257.

16. F.W.O. Morton, The Conservative Revolution..., p. 85.


17. Luiz dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, v. 1, p. 253.
18. F.W.O. Morton, The Conservative Revolution..., p. 6 8 - 6 9 .

19. Heloísa Rodrigues Fernandes, Política e segurança. Força pública do Estado de São Paulo.
Fundamentos histórico-sociais, p. 3 6 - 6 1 .

20. Eis a lista dos membros e dos funcionários do Senado da Câmara de Salvador em 1800:
juiz de fora (presidente), vereador mais velho, segundo vereador, terceiro vereador (prove-
dor da saúde), procurador do Senado, escrivão do Senado, síndico do Senado, tesoureiro,
escrivão da Almotaçaria, escrivão das Execuções, primeiro oficial da Secretaria, segundo
oficial da Secretaria, solicitador das causas, superintendente da feira, aferidor das medidas
redondas, aferidor das medidas quadradas, contraste da prata e aferidor de pesos, medidor
das obras de pedra, medidor das obras de madeira, médico da Câmara, cirurgião da
Câmara, carcereiro das cadeias, alcaide da Câmara, escrivão da Vara do alcaide, meirinho
do campo, escrivão do meirinho, meirinho da freguesia de Santo Antônio Além do Carmo,
.escrivão da Vara do mesmo, segundo escrivão da Vara do dito meirinho, escrivão da
freguesia de Santo Antônio, meirinho da freguesia de Sant'Anna, escrivão da Vara do
mesmo, meirinho da freguesia de Santo Amaro de Ipitanga, escrivão da Vara do meirinho
da Vitória, primeiro porteiro do Conselho e segundo porteiro do Conselho. Luiz dos
Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, v. 2, p. 339.

21. Luís Henrique Dias Tavares, História da Bahia, p. 6 2 - 6 3 ; Max Fleiuss, História admi-
nistrativa do Brasil; Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto.
22. Katia M. dc Queirós Mattoso, "Bahia opulenta. Uma capital portuguesa no Novo Mundo
0 549-1763)".
23. Vitor Nunes Leal, Coronelismo. enxada e voto, p. 6 5 - 7 6 , 137. 139, 230-231.
24. Idem, ibidem, p. 139.
25. Nestor Duarte. Ordem privada e organizttção politica nacional especialmente p. * ~ J n
. q

c 167; Raymundo Faoro, Os donos do poder. Formação do patronato político ^ / s t U t r

Prado Jr., Formação do Brasil contemporâneo; Maria Isaura Pereira de Queiroz, < u m

local...; Fernando Uricoechea, O Minotauro Imperial; Simon Schwartzman, bzo


Estado Nacional.
26. Richard Morse, "The Heritagc of Latin America", p. 157.
676 BAHIA, SÉCULO X I X

27. Nestor Duarte, Ordem privada..., p. 1 1 8 - 1 1 9 .


28. Raymundo Faoro, Os donos do poder, p. 5 2 - 5 5 .
29. Fernando Uricoechea, O Minotauro Imperial, p. 30.
30. Idem, ibidem, p. 40.

NOTAS DO CAPÍTULO 1 4

1. Kenneth Maxwell, A devassa da devassa; Katia M. de Queirós Mattoso, Presença francesa no


movimento democrático baiano de 1798; István Jancso, Contradições, tensões, conflitos: a
inconfidência baiana de 1798; Luís Henrique Dias Tavares, História da sedição intentada
na Bahia em 1798 (A Conspiração dos Alfaiates).

2. A melhor análise geral desse período é a obra de Túlio Halperin Donghi, Histoire contem-
poraine de VAmérique Latine [tradução brasileira, Paz e Terra, 1975].
3. Francisco Mariz Tavares, História da Revolução de Pernambuco em 1817; Amaro Quintas,
A gênese do espírito republicano em Pernambuco e a Revolução de 1817; Carlos Guilherme
Mota, Nordeste 1817. Estruturas e argumentos.
4. Cf. Luís Henrique Dias Tavares, A Independência do Brasil na Bahia.
5. Celso Furtado, La formation économique du Brésil, p. 8 4 - 8 5 (ed. brasileira: A formação
econômica do Brasil); Mircea Buescu, Evolução econômica do Brasil, p. 1 1 2 - 1 1 3 .
6. As tarifas alfandegárias, conhecidas como tarifas Alves Branco, nome do ministro das
Finanças (Visconde de Caravelas), taxaram 2 . 9 1 9 artigos de importação, com alíquotas
que variavam entre 3 0 % e 6 0 % sobre o valor. Alguns acham que essa medida, muito
combatida pelos importadores estrangeiros, não teve influência significativa sobre o pro-
gresso industrial do país, mas de qualquer forma melhorou as rendas do Estado. Celso
Furtado, La formation économique du Brésil, p. 85 (ed. brasileira: A formação econômica do
Brasil); Virgilio Noya Pinto, "Balanço das transformações econômicas no século XIX",
p. 136; Nícia Vilela Luz, A luta pela industrialização do Brasil, p. 24; Mircea Buescu,
Evolução econômica do Brasil, p. 1 3 8 - 1 4 1 ; Guilherme Deveza, "Política tributária no
período imperial", p. 6 0 - 8 4 .

7. Hélio Vianna, História do Brasil, v. II, p. 1 6 0 - 1 7 2 . Odilon Nogueira de Matos, "Vias de


comunicação", p. 4 2 - 4 9 .
8. Mircea Buescu, Evolução econômica do Brasil, p. 149; Celso Furtado, La formation éco-
nomique du Brésil, p. 1 2 1 - 1 2 2 (ed. brasileira: A formação econômica do Brasil).
9. M ircea Buescu, Evolução econômica do Brasil, p. 149. Aliás, o autor estima que os percentuais
apresentados no texto devem ser inferiores aos percentuais reais.
10. Idem, ibidem, p. 49. Buescu admite que esse indicador deve ser utilizado com precaução,
pois o escravo podia ser subutilizado.
11. Cf. Celso Furtado, La formation économique du Brésil, p. 121-128 (ed. brasileira: A for-
mação econômica do Brasil).
12. Hélio Vianna, vol. II, História do Brasil, p. 76.
13. Idem, ibidem, p. 79.
14. Tobias Monteiro, História do Império. O Primeiro Reinado, tomo I, p. 2 0 - 2 1 .
15. Hélio Vianna, v. II, História do Brasil, p. 83.
16. Idem, ibidem, p. 1 1 1 .
NOTAS
677

17. M a n o e l Rodrigues Ferreira, História dos sistemas eleitoral, b •/ •


18. Idem, ibidem, p. 6 8 - 7 1 . P' 6 6
"

19. A lei de 1 8 5 5 proibiu que fossem eleitos às assembléias orov • •


militares, os presidentes c secretários de província n< r j °, ° s civis e
ZT^ t^ '
S f u n c , o n á r i

CÍt0
tores de finanças, os chefes de Polícia e os juízes E m ° S Í n s
P " e

náo eram elegíveis à Assembléia Legislativa: bispos, v i g í b , p ^ 1


^ * » ^
rios e magistrados. A partir de então, para que pudessem concn 1 $
' Í U a d m
^
suas f u n d e s s ^ m e s e s antes das eleges eU OS

2 0 . Idem, ibidem, p. 1 0 4 .

2 1 . Idem, ibidem, p. 1 1 7 - 1 1 8 .

22. Paulo Ferreira C a s t r o , " A experiência republicana ( 1 8 3 1 - 1 8 4 0 ) " , p. 27

2 3 . Brasil Bandecchi, " O m u n i c í p i o n o Brasil e sua função política", Revista de História, n° 93,
p. 1 3 6 - 1 3 8 ; Paulo Ferreira C a s t r o , " A experiência republicana...", p. 38 57; Heloísa e
1

Rodrigues Fernandes, Política e segurança..., p. 6 5 .

2 4 . S. H u n t i n g t o n , The Soldier and the State, p. 1 5 5 - 1 5 7 .

2 5 . C f . E . C a m p o s C o e l h o , Em busca da identidade: o exército e a política na sociedade brasi-


leira, p. 3 8 - 3 9 .

2 6 . Idem, ibidem, p. 4 3 - 4 4 . C f . t a m b é m Marechal Estêvão Leitão de Carvalho, Dever militar


e política partidária, p. 2 3 .

2 7 . Marechal J o ã o Batista Mascarenhas de Morais, Memórias.

2 8 . Cf. E . C a m p o s C o e l h o , Em busca da identidade, p. 4 7 .


2 9 . Sobre o papel da doutrina positivista n o exército, cf. Ivan Lins, História do positivismo no
Brasil, p. 2 8 9 - 2 9 8 e 3 1 5 - 3 3 4 .
3 0 . Sobre a Guarda Nacional, cf. J e a n n e Berrance de Castro, A milícia cidadã: a Guarda Nacional
de 1831 a 1850, Fernando Uricoechea, O Minotauro Imperial, Heloísa Rodrigues Fernandes,
Política e segurança...; Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, Oliveira Lima, O Império
brasileiro, 1822-1889.
3 1 . Fernando Uricoechea, O Minotauro Imperial, p. 1 3 3 - 1 3 4 .
32. Fernando Uricoechea cita o caso de um peixeiro que, após ter conseguido &'*°F*% che

dc tenente, foi degradado sob o pretexto de que vendia peixe. O Minotauro tmp
p. 169.
3 3 . Alberto Salles Paraíso Borges (org.), 150 anos da Policia Militar da Bahia, p. 5 6 - •
3 4 . Para 1 8 3 5 : Lei n« 2 9 , de 2 3 de junho; para 1 8 3 8 - 1 8 4 9 : Lei Provincial de 7 de ju
1846.
3 5 . Eul-Soo Pang, Coronelismo e oligarquias (¡889-1940).

NOTAS DO CAPÍTULO 1 5 A M U

1. Quando, por exemplo, o presidente José Egídio Gordilho Barbuda Visconde^ ^


foi assassinado cm 1830, Pedro Rodrigues Bande.ra ^ ^ ^ s o S C
G Cezimbra
Província, que foi confiado sucessivamente aos conselhe.ros João Oo
678 BAHIA, SÉCULO X I X

( 1 8 3 0 - 1 8 3 1 ) e Luiz dos Santos Lima (1831). Cf. Renato Berbert de Castro, Os vice-
presidentes da Província da Bahia, p. 20.
2. Idem, ibidem, p. 1 3 - 2 6 .
3. Heloísa Rodrigues Fernandes, Política e segurança..., p. 65 e 66; Brasil Bandecchi, "O
município no Brasil c sua função política", Revista de História, n° 93, p. 129. A leitura das
obras dos homens políticos c juristas contemporâneos é proveitosa: Cortines Laxe, Regi-
mento das Câmaras Municipais ou Lei de 10 de Outubro de 1828; Tavares Bastos, A Pro-
víncia; Carneiro Maia, O Município.
4. Carneiro Maia, O Município, p. 9 6 - 9 7 .
5. Cf. Brasil Bandecchi, "O município no Brasil e sua função política", Revista de História,
n° 9 3 .
6. Heloísa Rodrigues Fernandes, Política e segurança..., p. 6 5 - 6 6 .
7. Brasil Bandecchi, "O município no Brasil e sua função política", Revista de História, n° 93.
8. Tavares Bastos, A Província-, Visconde de Uruguai, Ensaio sobre o Direito Administrativo.
9. R. Magalhães Jr., Três panfletários do Segundo Reinado, p. 1 8 6 - 1 8 9 ; Elmano Cardim, Justi-
niano José da Rocha.

NOTAS DO CAPÍTULO 1 6

1. Cf. Katia M. de Queirós Mattoso, Ser escravo no Brasil, p. 2 1 9 - 2 3 7 ; J . J . Reis, Slave Rebellion
in Brazil..., p. 2 7 1 - 2 8 7 (ed. brasileira: Rebelião escrava no Brasil...).

2. Essa integração nacional é contestada por numerosos autores, que a consideram aparente.
Ela nunca teria ultrapassado o estágio de uma fraca superestrutura que escondia um
sistema de poder familiar dissimulado. Cf. A.O.Cintra, "Integração do processo político
no Brasil: algumas hipóteses inspiradas na literatura", p. 2, e as obras já citadas de Maria
Isaura Pereira de Queiroz e de Nestor Duarte.
3. Simon Schwartzman, São Paulo e o Estado Nacional, p. 1 0 8 - 1 0 9 .
4. Por exemplo, a biografia que o historiador José Wanderley de Araújo Pinho consagra a seu
avô, o Barão de Cotejipe. Cf. Cotejipe e seu tempo. Primeira fase, 1815-1867.
5. Antonio Loureiro de Souza, "Os nobres do Rio Vermelho", p. 2 2 3 .
6. Arquivo do Estado da Bahia, Presidência da Província, Série Qualificação de Votantes,
Paróquia da Sé (1862); Almanaque, ano 1862; Afonso Ruy de Souza, História da Câmara
Municipal da cidade de Salvador, p. 3 7 0 .
7. Arquivo do Estado da Bahia, Presidência da Província, Série Qualificação de Votantes, Pa-
róquia da Sé (1862); Almanaque, ano de 1862; Afonso Ruy de Souza, História da Câmara
Municipal da cidade de Salvador, p. 70.
8. Arquivo do Estado da Bahia, Presidência da Província, Série Qualificação de Votantes, Pa-
róquia de N.S. da Vitória (1851); Almanaque, anos 1845 e 1862; Afonso Ruy de Souza,
História da Câmara Municipal da cidade de Salvador, p. 369.
9. Simon Schwartzman, São Paulo e o Estado Nacional, p. 106-107.
10. Francisco Iglesias, Politica econômica do governo provincial (1835—1889), p. 47-
11. Citado por Maria Isaura Pereira de Queiroz, O mandonismo local..., p. 40.
12. Manuel Inácio da Cunha Menezes, futuro Barão de Rio Vermelho, de 7 de julho de 1826
' : ^ ^ ^ « - o , de »6 dc novcmbrodc miTZl•«*
« ç * > , Augusto Álvares Guimarães só ficou cinen lí , u n h o d e , 8 ?
* Emcompen-
Cf. Arnold W d d b c ^ , , c , , 6 ^ 2 ' « * * S -
13. ( a n a do Marques dc Abrantes datada dc 25 dr t .

B o b o . d< C a , , ™ „ Oi ^rtLt^V^' R O a t t

M . ^ B o M o S o b r i n h o . Titulares balanot — Francisco Vicente víana'(Bar5o de Rio das

Jose"
Cachoeira. noZnt^ ^ *
15. Ignoro a> origens sociais de seus pais, Peixoto ri,. I -, i ,
O r n a r a . Nascido e falecido em
mais chegado (talvez até meio-irmao) do Barão de Lacerda VÀn^m^T?"
efeno, o par de Honorato Araújo também era José Peixoto de Lacerda, mas
chamava-se Mana Josefa do Amor Divino de Carvalho. C f A.A.A. Bulcão Sobrinho
titulares baianos - Honorato Antonio de Lacerda Paim (Barão de Lacerda Paim).
16. Arnold Wildberger, Os presidentes da Província da Bahia, p. 46.

17. Cf. José Wanderley de Araújo Pinho, Cotejtpe e seu tempo; A.A.A. Bulcão Sobrinho, Ti-
tulares baianos - J o ã o Maurício Wanderley (Barão de Cotcjipe). J.M. Wanderley, Barão de
Cotejipe, e Miguel Calmon du Pin e Almeida, Marquês de Abrantes, foram certamente as
duas personalidades mais ilustres do Império. Não admira, pois, que tenham tido excelen-
tes biógrafos. Mas não foram os únicos baianos que desempenharam um papel político de
primeiro plano. O mesmo ocorreu, por exemplo, com os irmãos Carneiro de Campos,
José Maria da Silva Paranhos, Manoel Vieira Costa, José Carlos de Almeida Torres c
outros.
18. A mãe dc Antónia Tereza pertencia a outra poderosa família de senhores de engenho, os
Moniz Fiúza Barreto. Casada cm 1857 com um homem sem dúvida brilhante, mas que era
dezessete anos mais velho que ela, Antónia Tereza morreu aos trinta anos (1834-1864),
deixando duas filhas: Maria Luiza e Antónia Tereza, que tinha o nome de sua mãe.
Quando morreu o avó materno, o Conde de Passé, as duas meninas herdaram o engenho
Freguesia, que veio acrescentar-se ao engenho Jacaracanga, herdado quando morreu sua
mãe. Uma partilha amigável permitiu que as herdeiras escapassem da indivisão, Antónia
Tereza tornando-se proprietária de Jacaracanga e Maria Luiza de Freguesia. Absorvida por
suas ocupações políticas, o Barão dc Cotejipe geriu muito mal essas duas propriedades. Cf.
José Wanderley dc Araújo Pinho, História de um engenho do Recôncavo, p. 330-331-

19. Jose Wanderley dc Araújo Pinho, Salões e damas do Segundo Reinado, p. 173.
2 0 . Cf, Livro V.
21. A.A.A. Bulcão Sobrinho, Titulares baianos - J o s é Maria da Silva Paranhos (Barão do Ru,
Branco), .
22. Por exemplo, o influente homem dc negócios Luiz Paulo de Araújo
Fiais, foi vicc-presídcmc entre 1841 c 1859. O mesmo cargo o, f^g^tobzi
• Cajaíba, hapoa. São Tiago c Pojuca, o Visconde dc Ferrera " "
etc. Cf, Renato Bcrbe, dc Castro, Os vice-presidentes da Província da Bahia, p.
23. Renato Bcrbcrt de Castro, Os vice-praidenies da Província da Bahia, p. 76-78,
24. "Manoel Messias dc Leão tinha sido nomeado cm quinto lugar na I.sta ™ £ £ ™ V
, ;

, c , Sua recusa da vice-presidência talvez tenha sido motrvada por essa má f


BAHIA, SÉCULO X I X

já que a tradição dizia q u e os magistrados deviam sempre estar colocados entre os primei-
ros da lista, ele argumentava " n ã o ter título de q u i n t o vice-presidente c nunca ter recebido
c o m u n i c a ç ã o alguma a semelhante r e s p e i t o . . . " O governo central teve que refazer a lista
dos vice-presidentes, c o l o c a n d o - o c o m o primeiro vice-presidente para que ele aceitasse o
cargo. C f . R e n a t o Berbert de C a s t r o , Os vice-presidentes da Provinda da Bahia, p. 7 8 - 7 9

2 5 . A representação na Assembléia Provincial era de quarenta deputados. M a s , no documento


utilizado para este estudo (Lista dos deputados da Assembléia Provincial. In: "Quatro
séculos de história da B a h i a " , p. 2 1 6 - 2 4 6 ) , c o n s t a m n o m e s dc todos os eleitos, titulares ou
suplentes, isto é, de todos os que efetivamente o c u p a r a m u m a cadeira parlamentar. Daí o
elevado número de deputados em certas legislaturas. Foi o caso, por exemplo, das legislaturas
de 1 8 3 5 - 1 8 3 7 ( 6 2 d e p u t a d o s ) , 1 8 4 2 - 1 8 4 3 ( 6 2 d e p u t a d o s ) , 1 8 5 6 - 1 8 5 7 ( 5 2 deputados),
1 8 5 8 - 1 8 5 9 (51 deputados) e 1 8 6 0 - 1 8 6 1 ( 6 8 d e p u t a d o s ) . P o r isso o n ú m e r o de deputados
foi contabilizado em 1 . 2 3 2 q u a n d o o n ú m e r o de cadeiras era de 1 . 0 8 0 .

2 6 . O n ú m e r o de cadeiras que deveriam estar disponíveis era m a i o r que as 1 . 0 8 0 cadeiras


titulares. Até 1 8 6 0 , é necessário acrescentar 5 2 0 cadeiras de suplentes, o que dá um total
de 1 . 6 0 0 . Infelizmente, não t e n h o c o m o saber se houve mais pessoas nessa condição e não
incorporadas na lista de 5 0 9 n o m e s (utilizada até aqui) p o r não terem tomado parte nas
sessões.
2 7 . Esse qualificativo escondia tanto proprietários de terras q u a n t o proprietários de pequenas
empresas, c o m o J o ã o G o n ç a l v e s T o u r i n h o , d o n o da tipografia que editava o Almanaque
Informativo da Bahia nos anos 1 8 7 0 - 1 8 8 0 e tinha sido presidente da poderosa Associa-
ção C o m e r c i a l da Bahia, ou e n t ã o J o s é J o a q u i m Landulfo da R o c h a Medrado, advogado
e proprietário do j o r n a l Diário da Bahia. Este ú l t i m o t a m b é m representou a província
na Assembléia G e r a l . Katia M a r i a de Carvalho Silva, O Diário da Bahia e o século XIX,
p. 2 6 - 3 0 .

2 8 . Arquivo do Estado da Bahia, Presidência da Província, Série Qualificação de Votantes,


Paróquia de Santo A n t ô n i o Além do C a r m o ( 1 8 5 3 ) ; Revista do Instituto Genealógico da
Bahia, ano de 1 9 4 9 ; Arquivo do Estado da Bahia, Seção Judiciária, Série Inventários,
Inventário 1/1066; " Q u a t r o séculos de história da B a h i a " (lista dos deputados baianos).
2 9 . Arquivo do Estado da Bahia, Presidência da Província, Série Qualificação de Votantes,
Paróquia de São Pedro ( 1 8 5 7 ) ; Almanaque, ano 1 8 5 7 ; para o Barão de Jeremoabo, Revista
do Instituto Genealógico da Bahia, ano V ( 6 ) , p. 8 2 - 8 3 , 1 9 4 9 ; A.A.A. Bulcão Sobrinho,
Titulares baianos - Cícero Martins D a n t a s (Barão de J e r e m o a b o ) ; "Quatro séculos de
história da Bahia" (lista dos deputados baianos).

3 0 . Eul-Soo Pang, O Engenho Central de Bom Jardim..., p. 2 0 0 .


3 1 . Arquivo do Estado da Bahia, Presidência da Província, Série Qualificação de Votantes,
Paróquia da Sé ( 1 8 6 2 ) ; Revista do Instituto Genealógico da Bahia, ano X V I ( 1 6 ) , p- 60,
1 9 6 8 ; Arquivo do Estado da Bahia, Seção Judiciária, Recenseamento de 1 8 5 5 ; Almanaque,
anos 1 8 4 5 c 1 8 6 2 ; " Q u a t r o séculos dc história da Bahia" (lista dos deputados baianos).
3 2 . Almanaque, ano 1 8 6 2 ; " Q u a t r o séculos dc história da Bahia" (lista dos deputados baianos);
D o m Pedro II, Diário da viagem ao Norte do Brasil, 1859.
3 3 . Arquivo do Estado da Bahia, Presidência da Província, Série Qualificação de Votantes,
Paróquia de São Pedro ( 1 8 5 7 ) ; Almanaque, ano 1 8 6 2 ; "Quatro séculos de história da Bahia
(lista dos deputados baianos); D o m Pedro II, Diário da viagem ao Norte do Brasil, 183Á
p. 6 6 .
H Arquivo do Estado da Bahia Presidi
Paróquia der Vitória ( 1 8 5 1 V f " d
* P r o v í n
^ Série C W . f i - .
baiano,), w ' M Q
" ™ * hi, t ó r i a d a ^ t ^ f c

35- Arquivo do Estado da Bahia Pr ,rU„ -


M , .
P a ^ o u i a da S i (, 862); AlZ„ll ' r Q o a B f i c a ^ dc V o ^
do, deputado, baiano,). * ^ Q u a
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36. " Q u a t r o século, dc história da Bahia" disra do-, d n , „ ^ l.


rt t" T^' °
t

Buk5
nho. TUulan, baianos - ] o U 1 Jantas faifa» P c
Dantas ( « g u n d o Barão de R i o R e ^ f MS Í S . ^ ' *
Senado Federal (Braaflia), Senadores do Império Sa/dld, t T
ral (Braaflia), Depurados baianos a Assembleia ^ , 8 ^ ^ ^ ^ ^

3". A.A.A. Bulcão S o b r i n h o , "Famílias baianas: Araújo Góis"- "Oiiatr,. ^ . 1 a t- - - ,

845, I . m a eleitoral, Vitória 0 8 » ) e Lista dos Deputados na Assembléia P ^ i a l


Ignacio de C e r q u e i r a e S.Iva Accioli, Memórias históricas epoliticas..., v. 4, p 206- Lista
eleitoral, Sé ( 1 8 6 2 ) ; Almanaque, ano 1 8 6 2 , Lista dos Deputados na Assembléia Província].

NOTAS DO CAPÍTULO 1 7

1. Ignacio de C e r q u e i r a e Silva Accioli, Memórias históricas epolíticas..., v. 4, p. 2 4 1 .

2. A m i g o pessoal de d o m Pedro I, o Barão de Vila da Barra foi professor da Faculdade de


M e d i c i n a do R i o e, por ocasião da Guerra do Paraguai, prestou relevantes serviços como.
m é d i c o do C o r p o de Saúde do Exército. Foi presidente das províncias do Pará (1872) e de
aMinas Gerais ( 1 8 7 6 - 1 8 7 7 ) . A. A.A. Bulcão Sobrinho, Titulares baianos-Francisco Bonifacio
de Abreu (Barão da Vila da Barra).

3. Hélio V i a n n a , Va/fw Império, p. 7 4 - 1 1 4 ; Américo Jacobina Lacombe, " O Visconde de


J e q u i t i n h o n h a " ; Senado Federal (Brasília), Senadores do Império (Bahia), dados biográfi-
cos; A.A.A. B u l c ã o S o b r i n h o , Titulares baianos - Francisco Gé Acaiaba de Montezuma
(aliás, Francisco G o m e s Brandão, Visconde de Jequitinhonha).
4. A.A.A. Bulcão S o b r i n h o , Titulares baianos - Augelo Muniz da Sirva Ferraz (Barão dc
Uruguaiana); Senado Federal (Brasília), Senadores do Império (Bahia), dados biográficos.
5. C f . Katía M . de Queirós Mattoso, "Párocos e vigários em Salvador no século X D C . c
Livro V , capítulo 2 0 . .
6. O quinto filho, Fccílio, morreu ainda criança. Nada sei sobre a ^ « " ^ g
meninos: Juvenal Franklin e Benjamim, que devem ter cresc.do apos o falec.mento do pai.
C f . Mario T o r r e s , " O s Torres". lf>cm-/940
7. Angus Lindsay Wríght, Market, ^ ^ J ^ ^ ^ ^ ^ ^ L ^
Angelina Nobre Rolirn Garcez & Antonio Fernando Cuerre.ro dc Fre.us.
nômica e social da região cacaueira.
8. C f / L i v r o V, capítulo 19. .
9. Paulo Ferreira Castro. "Política e administração dc 1840 a — ^ £ ^ ^

10. Braz do Amaral, * / - ^ H ^ / , ^ ; ^ * ^ ^


«* Manoel C o r r e a
Henrique Dias Tavares. / ! IruUpendénaa da Brasa na Bahus.
BAHIA, SÉCL-LO XIX

11. Os quinze senadores formados em Coimbra eram: Clemente Ferreira França ( 1 7 7 5 -


1827), Marquês de Nazaré (1826), conservador; José Joaquim Carneiro de Campos ( 1 7 6 8 -
1836), Marquês de Caravelas (1826), liberal; Francisco Carneiro de Campos ( 1 7 7 6 -
1842), conservador; Luiz Joaquim Duque Estrada Furtado de Mendonça (?-1834),
conservador; Manoel Inácio da Cunha Menezes ( 1 7 7 9 - 1 8 5 0 ) , Visconde do Rio Vermelho
(1830), conservador; Domingos Borges de Barros ( 1 7 7 9 - 1 8 5 5 ) , Visconde da Pedra Bran-
ca (1829), conservador; Manuel dos Santos Martins Vallasques ( 1 7 9 2 - 1 8 6 2 ) , conserva-
dor; Cassiano Espiridião de Melo e Matos ( 1 7 9 7 - 1 8 5 7 ) , conservador; Francisco de Souza
Paraíso ( 1 7 9 3 - 1 8 4 3 ) , conservador; Manoel Antonio Galvão ( 1 7 9 1 - 1 8 5 0 ) , liberal; Fran-
cisco Gonçalves Martins ( 1 8 0 7 - 1 8 7 2 ) , Visconde de São Lourenço (1860), conservador;
Manoel Vieira Tosta ( 1 8 0 7 - 1 8 9 6 ) , Marquês de Muritiba (1888), conservador; Francisco
Gê Acaiaba de Montezuma ( 1 7 9 4 - 1 8 7 0 ) , Visconde de Jequitinhonha (1854), liberal.

12. O primeiro foi José Thomas Nabuco de Araújo ( 1 8 1 3 - 1 8 7 8 ) , cujo pai e homônimo era
militar profissional. Quando morou em Recife, casou-se com Ana Benigna de Sá Barreto,
de uma eminente família local. Jornalista, advogado e magistrado, Nabuco de Araújo foi
presidente da Província de São Paulo ( 1 8 5 1 - 1 8 5 2 ) e ministro da Justiça nos gabinetes de
1853-1857, 1 8 5 8 - 1 8 5 9 e 1 8 6 5 - 1 8 6 6 . Nomeado senador em 1858, aderiu à Liga Pro-
gressista em 1862 e integrou o Gabinete de Conciliação em 1869, como filiado do Partido
Liberal. O segundo foi Zacarias Góis e Vasconcelos ( 1 8 1 8 - 1 8 7 7 ) , conhecido como Con-
selheiro Zacarias. Professor na Faculdade de Direito de Recife ( 1 8 4 0 - 1 8 4 5 ) , deputado
provincial da Bahia ( 1 8 4 4 - 1 8 4 5 , 1 8 4 6 - 1 8 4 7 e 1 8 5 2 - 1 8 5 3 ) , deputado geral da Bahia
(1850-1852, 1 8 5 3 - 1 8 5 6 ) , também foi presidente das províncias do Piauí (1845-1847) e
de Sergipe ( 1 8 4 7 - 1 8 4 9 ) , antes de se tornar ministro da Marinha (1852) e presidente do
Conselho dos Ministros (1862, 1864, 1866). Foi nomeado senador em 1864. O terceiro
foi Carlos Pereira de Almeida Torres ( 1 7 9 9 - 1 8 5 0 ) , Visconde de Macaé. Seu pai, o
desembargador José Carlos Pereira, casara com uma Almeida Torres, família de senhores
de engenho do Recôncavo. Após estudar direito em Coimbra, o jovem Almeida Torres
entrou na magistratura, onde fez carreira, antes de ser eleito deputado geral pela Província
de Minas Gerais ( 1 8 2 6 - 1 8 2 9 ) , da Bahia ( 1 8 3 0 - 1 8 3 3 ) e de São Paulo (1843). Ocupou as
funções de presidente das províncias de São Paulo (1829 e 1842) e do Rio Grande do Sul
(1831), antes de ser nomeado conselheiro do Estado (1842) e ministro do Império (1844,
1845 e 1848). Nesta última função, foi responsável, em 1844, pela anistia aos rebeldes
liberais, a cujo partido aderiu. Como liberal, presidiu o Conselho dos Ministros em 1848.

13. São raros os estudos sobre os partidos políticos durante o Império, mas programas desses
partidos são uma leitura proveitosa. Foram publicados por A. Brasiliense, Os programas dos
partidos e o Segundo Império.

14. As formações mais importantes desse partido ficavam no Rio de Janeiro e em São Paulo.
No Rio, os membros do Partido Republicano pregavam a descentralização, maior repre-
sentação popular e respeito aos direitos c liberdades individuais. O Partido Republicano
Paulista tinha como preocupação principal a federação das províncias, isto é, a autonomia
dos governos provinciais. Em outras palavras, interessava aos republicanos paulistas, antes
de mais nada, assumir o controle total de sua Província, o que era impossível com a
centralização imperial. Cf. José Murilo de Carvalho, A construção da ordem. A elite política
imperial, p. 161-162.
15. Caio Prado Jr. admite um certo conflito entre o que ele chamou de burguesia reacionária,
representada pelos proprietários de terras escravocratas, e a burguesia dita progressista,
r c r c enrada pelo c o m e r ã o , pela finança. Mas. segundo ele, as duas correntes se fundiam
P

nos do.s part.dos, apesar de unta certa preferência dos reacionários pelo Partido C o r T
vador. M a n a Isaura Pçretra de Q u e r o , c Nestor Duarte consideram os dois partido" 1
Conservador e Ltbcral - c o m o os representantes dos intetesses agtátios , „ « , segundo
esses dois autores, d o m i n a r a m a política imperial.

16. Caio Prado J r " E v o l u ç ã o política do Brasil", p. 8 2 ; Maria Isaura Pereira de Queiroz
O mandomsmo local.., p. 5 1 - 5 4 ; Nestor Duarte, Ordem privada..., p. 183.
17. R a y n u m d o F a o r o , Os donos do poder, p. 2 3 1 - 2 3 5 .

I S . Azevedo Amaral, O Estado autoritário e a realidade nacional p. 33ss.

Afonso A. de M e l l o F r a n c o , História e teoria dos partido políticos no Brasil, p. 35ss.

20. Fernando de Azevedo, Canaviais e engenhos na vida política do Brasil p. 1 2 7 - 1 3 4 ; João


C a m i l l o de O l i v e i r a T o r r e s , Os construtores do Império, p. 1 3 1 - 1 3 4 .

2 1 . As biografias estabelecidas pelo serviço de documentação do Senado Federal omitem


informações referentes à fortuna das famílias de três senadores: Manuel dos Santos Martins
Vellasques ( 1 7 9 2 - 1 8 6 2 ) , Cassiano Espiridião de Mello Mattos ( 1 7 9 7 - 1 8 5 7 ) e Manoel
Antonio Galvão ( 1 7 9 1 - 1 8 5 0 ) .

2 2 . Senado Federal (Brasília), Senadores do Império (Bahia), José Joaquim Carneiro de Cam-
pos ( M a r q u ê s de Caravelas) e Francisco Carneiro de C a m p o s , dados biográficos.

2 3 . Senado Federal (Brasília), Senadores do Império (Bahia), Francisco Carneiro de Campos,


dados biográficos.
2 4 . A.A.A. B u l c ã o S o b r i n h o , Titulares baianos - D o m i n g o s Borges de Barros (Visconde da-
Pedra B r a n c a ) ; S e n a d o Federal (Brasília), Senadores do Império (Bahia), dados biográfi-
cos.
2 5 . Senado Federal (Brasília), Senadores do Império (Bahia), Manoel Pinto de Souza Dantas,
dados biográficos.
2 6 . A.A.A. Bulcão S o b r i n h o , Titulares baianos - Luiz Antonio Pereira Franco (Barão de Pe-
reira F r a n c o ) ; S e n a d o Federal (Brasília), Senadores do Império (Bahia), dados biográficos.
27. José da Silva Lisboa, V i s c o n d e de Cairu, nomeado em 1 8 2 6 ; Luiz Joaquim Duque Estrada
Furtado de M e n d o n ç a , n o m e a d o em 1 8 2 9 ; Manoel Inácio da Cunha Menezes, Visconde
de Rio V e r m e l h o , nomeado em 1 8 2 9 ; Domingos Borges de Barros, Visconde da Pedra
Branca, nomeado em 1 8 3 1 ; M a n o e l dos Santos Martins Vellasques, nomeado em 1 8 3 6 ,
Cassiano Espiridião de Mello Mattos, nomeado em 1 8 3 7 ; F r a n c s c o de Souza Paraíso,
nomeado cm 1 8 3 8 .
" ' ' l l l í . l M W Valli HJiSKtt , J

2H.l A.A.A. Bulcão Sobrinho, Titulares baianos - Carlos Carneiro de Campos (Visconde de
Caravelas).

NOTAS DO CAPÍTULO 1 8

1 História da Igreja no Brasil, , 2 , p. 1 6 2 - 1 7 2 ; R o b e r t o ^ ^ G G ^ G ® como


(Critica ao populismo católico), p. 8 1 ; Thales d e Azevedo Arehguao
f^ftf^
B u a r q u c

instrumento político, p. 8 1 - 8 7 ; Albert B o u r d o n , Histoire Jnial).


de H o l a n d a ( d i r . ) , História geral da civilização brasileira, t o m o I (A?p ^ _ ^
2 . C a i o P r a d o Jr.. Formação do Brasil contemporâneo, p. 3 3 0 ; ThaJes
civil brasileira como instrumento político, p. 8 0 .
BAHIA, SÉCULO XIX

3. Cf. História da Igreja no Brasil* t. 2, p. 164. Capítulo XVI, artigo 3 do regulamento que
regia a Mesa da Consciência c Ordens.
4. A História da Igreja no Brasil, obra coletiva recente ( 1 9 7 7 - 1 9 8 0 ) , redigida por membros
do clero brasileiro, é o melhor exemplo de uma atitude que se pretende revisionista, como
prova, aliás, o subtítulo da obra: Uma interpretação a partir do povo. Seus autores sofrem
grande influencia da Teologia da Libertação.
5. Thales de Azevedo, A religião civil brasileira como instrumento político, p. 43.
6. Cf. Katia M. de Queirós Mattoso, Ser escravo no Brasil, p. 5 3 - 6 5 .
7. Oscar de Figueiredo Lustosa (O.P.), Política e Igreja. O partido católico no Brasil: mito ou
realidade, p. 2 5 .
8. Essa periodização é proposta na História da Igreja no Brasil, t. II/2. Podemos situá-la pa-
ralelamente à cronologia adotada pela maior parte dos manuais sobre História do Brasil no
século XIX.

NOTAS DO CAPÍTULO 1 9

1. Roberto Romano, Brasil: Igreja contra Estado, p. 8 1 ; Thales de Azevedo, A religião civil
brasileira como instrumento político, p. 8.

2. Cf. "Apêndice para demonstrar que a constituição do Arcebispado da Bahia se acha


alterada, revogada pelas Leis do Império e modificada finalmente pelos usos e costumes",
publicado pelo Dr. Ildefonso Xavier Ferreira, cónego prebendado e lente de teologia
dogmática, in Constituições primeiras (Apêndice).

3. História da Igreja no Brasil, t. II/2, p. 13.

4. Cf. Monsenhor Eugênio de Andrade Veiga, Os párocos no Brasil no período colonial, 1500-
1822, p. 49.

5. História da Igreja no Brasil, t. II/2, p. 13.


6. Cf. Luís Henrique Dias Tavares, História da Bahia, p. 65; Thales de Azevedo, Igreja eEstado
em tensão e crise, p. 179; Ignacio de Cerqueira e Silva Accioli, Memórias históricas epolí-
ticas..., v. 5, p. 117.
7. Adriano Campanhole & Hilton Lobo Campanhole, Todas as constituições do Brasil p. 581.
8. Roque Spencer Maciel de Barros, "Vida religiosa", p. 320.
9. Cf. História da Igreja no Brasil, t. II/2, p. 80.
10. Ana Maria Moog Rodrigues (org.), A Igreja na República, p. 3.
11. Oscar de Figueiredo Lustosa (O.P.), "Reformistas na Igreja do Brasil Império", p. 20-22.
12. Diogo Antônio Feijó (1784-1843) nasceu na cidade de São Paulo, de pais desconhecidos.
Após estudos de latim, retórica, filosofia e iniciação teológica, ordenou-se padre em 18 j
Em paralelo às atividades sacerdotais, foi professor de português c de latim na atua
Campinas (SP) entre 1804 c 1808 c fazendeiro nas vizinhanças de São Paulo entre 1
e 1818. Vigário em Itu (SP) entre 1818 e 1821, no ano seguinte foi eleito deputado
Cortes de Lisboa c , depois da Independência, cm 1826, deputado à Assembléia Geral, o
membro do Conselho da Província de São Paulo ( 1 8 2 8 - 1 8 3 2 ) , senador peloRio
Janeiro ( 1 8 3 5 ) e regente do Império entre 1 8 3 5 e 1 8 3 7 . Indicado para bispo « * " * f
d M

( M G ) , recusou o posto. Em 1 8 4 2 , em Sorocoba, aderiu à Revolução Liberal de Sao aui ,


sendo preso e exilado cm Vitória (ES) I ibertad /
morreu. Suas obras principais são: Cadernos A, fíU. V
° l l O U 3
° - onde
S â o P a u I

Reale «São Paulo: Grijalbo, 1 9 6 7 ) 7 ^ C O m l n


^ u ç ã o e notasdcMiguel

— * J - e i r o . TipograHa l^Lít

1 8 2 0 Ensinou exegese c bisaria e s t i c a , antes


p Í^TiZ^t^
ao Paulo, cm 1 8 2 8 , onde recebeu o grau de doutor cinco anos depois. ProC
d u e t o natura e das gentes na mesma Faculdade desde 1834, foi membro do Conselho
Cerai da I rovmcia de São Paulo e deputado provincial. Decano da Faculdade de Direito
em 185/ • Foi leito vice-presidente de São Paulo, tendo ocupado interinamente várias vezes
a Presidência entre 1857 e 1864. Seus escritos mais conhecidos são: Análise da resposta do
Exrno. Arcebispo da Bahia sobre a questão do celibato clerical pedida pelo Conselho Geral de
São Paulo (Rio de Janeiro: Typographia America, 1834) e Reflexão sobre a análise da refu-
tação do Exmo. Arcebispo da Bahia feita a respeito da questão da dispensa do celibato pedida
pelo Conselho Geral de São Paulo (Rio de Janeiro: Typographia America, 1837). Foi autor
de numerosos discursos, artigos e sermões, publicados em diversos jornais. Cf. Oscar de
Figueiredo Lustosa (O.P.), "Reformistas na Igreja...", p. 149-152.

13- Cf. Oscar de Figueiredo Lustosa (O.P.), "Reformistas na Igreja...", p. 38.

14. Dom Romualdo António de Seixas ( 1 7 8 8 - 1 8 6 0 ) nasceu em Camitá (PA), sendo o mais
velho de oito irmãos. Sua educação foi confiada a um tio materno, o padre Romualdo de
Souza Coelho, secretário do bispo do Pará, dom Manuel de Almeida Carvalho. Aos oito
anos entrou para o seminário episcopal de Santa Maria de Belém. Terminou sua educação
no convento de Santo Antônio de Belém e, em seguida, foi aluno dos oratorianos do Real
Hospício das Necessidades de Lisboa. De volta ao Brasil em 1805, foi professor de latim,
francês, retórica e fdosofia no seminário episcopal da diocese do Pará. Ainda como simples
diácono, foi nomeado cónego e ordenado padre em 1810, galgou rapidamente os degraus
da hierarquia eclesiástica e tornou-se arcipreste e vigário-geral da diocese do Pará, antes de
assumir o governo dessa diocese como vigário capitular, por ocasião da morte do prelado
local. Eleito, pela Capitania do Pará, deputado às Cortes de Lisboa, iniciou uma vida
política oue só abandonaria em 1841, para consagrar-se a suas atividades pastorais. Nomeado
arcebispo da Bahia em 1827, foi deputado à Assembléia Geral (1826-1829 pelo Pará,
1834-1 837 pela Bahia) e à Assembléia da Bahia (1835-1841). Ultramontano e conserva-
dor, mostrou-se um dos ardentes defensores do celibato do clero e f ^ T ^ ^ f
Igreja. Respeitado por seus confrades e pelo governo, recebeu o título de Conde de & « a
Cru, em 1858 e foi elevado à categoria de marquês pouco antes dc.sua mo « , em 1860.
Cândido da Costa Silva, "Notícia sobre o primeiro brasile.ro na Sé da Barua p.
1 5. Cândido Mendes de Almeida, Direito ei.il eclesiástico an*o ^ ™ ^ t o T
o direito canónico, tomo I, primeira parte, p. C.LXXIII. Apud. Uscar &
(O.P.), "Reformistas na Igreja...", p. 59.

16. Idem, ibidem, p. 6 0 - 6 4 .


17. Eduardo Frieiro, O diabo na livraria do cónego, . 9-72.
P

18. Roque Spencer Maciel dc Barros, "Vida religiosa", p. 321-322.

19. História da Igreja no Brasil p. 86.


BAHIA, SÉCULO X I X

2 0 . R i o l a n d o Azzi, " D . Romualde* A n t ô n i o de Seixas, arcebispo da Bahia ( 1 8 2 7 - 1 8 6 0 ) e o


m o v i m e n t o da reforma católica no Brasil", p. 1 7 - 3 8 .

2 1 . Idem, ibidem, p. 2 3 .

2 2 . D i o g o A n t ô n i o Feijó, " D e m o n s t r a ç ã o de necessidade da abolição do celibato clerical"


A p u d : E. Egas, Diogo Feijó: um estudo, v. 2, p. 1 5 6 .

2 3 . O s c a r de Figueiredo Lustosa ( O . P . ) , " R e f o r m i s t a s na Igreja...", p. 9 1 .

2 4 . H é l i o V i a n n a , História do Brasil, v. I I , p. 9 8 - 1 0 0 .

2 5 . O s c a r de Figueiredo Lustosa ( O . P . ) , " R e f o r m i s t a s na Igreja...", p. 9 2 .

2 6 . Idem, ibidem, p. 9 6 - 9 8 .

2 7 . C f . Riolando Azzi, " D . R o m u a l d o A n t ô n i o de Seixas, arcebispo da Bahia...", p. 2 3 - 2 4


2 8 . O s c a r de Figueiredo Lustosa ( O . P . ) , " R e f o r m i s t a s na Igreja...", p. 9 5 .

2 9 . C f . História da Igreja no Brasil, t. I I , p. 1 7 7 ; T h a i e s de Azevedo, Igreja e Estado em tensão


e crise, p. 1 7 9 .

3 0 . O s c a r de Figueiredo Lustosa ( O . P . ) , " R e f o r m i s t a s na Igreja...", p. 5 0 - 5 1 .

3 1 . Riolando Azzi, " D . R o m u a l d o A n t ô n i o de Seixas, arcebispo da Bahia...", p. 2 4 .

3 2 . R o q u e Spencer M a c i e l de Barros, " V i d a religiosa", p. 3 2 2 .

3 3 . O s c a r de Figueiredo Lustosa ( O . P . ) , " R e f o r m i s t a s na Igreja...", p. 1 2 8 .

3 4 . I d e m , ibidem, p. 1 2 7 .

3 5 . História da Igreja no Brasil, t. U/2, p. 1 4 3 e 1 4 5 .

3 6 . Idem, ibidem, p. 1 8 2 .

3 7 . Idem, ibidem, p. 1 8 3 .

3 8 . O s c a r de Figueiredo Lustosa ( O . P . ) , Política e Igreja, p. 2 4 .

3 9 . História da Igreja no Brasil, t. II/2, p. 1 8 5 .

4 0 . Idem, ibidem, p. 5 8 .

4 1 . Idem, ibidem, p. 1 8 .

4 2 . Idem, ibidem, p. 1 3 1 ; R o q u e Spencer Maciel de Barros, " V i d a religiosa", p. 3 2 3 .

4 3 . J o ã o Cruz Costa, " O pensamento brasileiro sob o Império", p. 3 2 9 .


4 4 . Idem, ibidem.
4 5 . Mostrando que falta um estudo adequado sobre a evolução dos ideais ultramontanos,
Roque Spencer de Barros afirma que esses ideais já estavam presentes em certas c a m a
<^ s

do laicato católico muito antes da chamada Questão dos Bispos, que explodiu em 187*.-
Roque Spencer Maciel de Barros, " A questão religiosa", p. 3 2 7 .
4 6 . As idéias da corrente leiga ultramontana foram expressas, pela primeira vez, no livro de
José Soriano dc Souza, A religião do Estado e a liberdade dos cultos. Apud: Roque Spencer
Maciel de Barros, "A questão religiosa", p. 3 2 8 .
4 7 . Roberto Romano. Brasil: Igreja contra Estado, p. 1 2 0 - 1 3 4 ; Ivan Lins, História do positivismo
no Brasil, p. 2 4 3 - 2 6 2 c 3 5 5 - 3 7 0 .
4 8 . Oscar de Figueiredo Lustosa ( O . P . ) , Política e Igreja, p. 2 5 .
4 9 . João Cruz C o s t a , " O pensamento brasileiro sob o Império", p. 3 3 4 - 3 4 1 .
50. Richard Graham, Grã-Bretanha e o início do v n * J - , .
p. 3 1 - 5 8 e 2 8 7 - 3 0 8 . modernização no Brasil (1850-1914),

51. Oscar de Figueiredo Lustosa (O.P.), Política e Igreja, p. 28.

Roque Spencer Maciel de Barros, "A questão religiosa", p. 328.

Idem ibidem, p. 3 2 9 - 3 3 4 ; Oscar de Figueiredo Lustosa (O.P ) P o U t i c a , , .


Historia da Igreja no Brasil, t. H/2, p. 1 8 6 - 1 8 7 . P- 2 9
'

)4. Oscar de Figueiredo Lustosa (O.P.), /W/tea tf p . 3 0

Apud: Oscar de Figueiredo Lustosa (O.P.), Politica e Igreja, p. 31.


)6. Roque Spencer Maciel de Barros, "A questão religiosa", p. 336.

57. Oscar de Figueiredo Lustosa (O.P.), Politica e Igreja, p. 33.

58. Roque Spencer Maciel de Barros, "A questão religiosa", p. 334.

59. Ana Maria Moog Rodrigues (org.), A Igreja na República, p. 24.

60. É a posição de autores como Basílio de Magalhães, "Pedro II e a Igreja católica" e Estudos
da História do Brasil; Jonatas Serrano, História do Brasil, Fernando de Azevedo, A cultura
brasileira. Estes autores falam de questão "epíscopo-maçônica".

61. Antônio Carlos Villaça, História da questão religiosa no Brasil. Esta obra apresenta a análise
mais completa sobre a questão. Aconselhamos, também, a leitura de: Roberto Romano,
Brasil: Igreja contra Estado; José Honório Rodrigues (dir. e introd.), "Terceiro Conselho de
Estado, 1 8 7 5 - 1 8 8 0 " ; Roque Spencer Maciel de Barros, "A questão religiosa", p. 330-336.

62. Thales de Azevedo, A religião civil brasileira como instrumento político, p. 53.

63. António Carlos Villaça, História da questão religiosa no Brasil, p. 6.

64. O paraibano dom Vital Maria ( 1 8 4 4 - 1 8 9 1 ) nasceu na família Gonçalves de Oliveira, de


senhores d e engenho. Iniciou seus estudos na escola pública de Itaubé e, em seguida, foi
aluno d o colégio Benfica, do professor Xavier da Cunha. Em 16 d e dezembro de 1860
recebeu a primeira tonsura, e, após freqüentar o seminário de Olinda no ano seguinte,
partiu para Paris, onde continuou seus estudos n o seminário d e Saint Sulpicc (1862). Em
junho de 1863, foi para o convento dos capuchinhos de Versalhes, onde tomou o hábito
de São Francisco c recebeu o nome de Vital, em memória d o mártir d o Marrocos. Em
1867, fez votos solenes e completou os estudos no convento dos capuchinhos de Toulouse,
onde recebeu as ordens menores c foi ordenado padre (1868). De volta ao Brasil, foi
nomeado bispo de Olinda aos 28 anos.
65. Dom António de Macedo Costa (1 830-1 890) nasceu na Bahia, de uma família de senho-
res de engenho d o distrito d e Maragojipc. Inicialmente aluno d o seminário da Bani
(1848 -1 852), completou seus estudos na França, inicialmente no sem.n.íno de Bourgese,
em seguida, n o seminário de Saint Sulpicc. em Paris, onde foi um estudante <*>*P™*f
mente brilhante. Recebeu a primeira tonsura na catedral d c Notre-I ame ( 1 8 5 5 ) c J o
ordenado padre cm , 8 6 7 Z
27 anos. pelo c ^ d M a r l o t j ^ g g ^
onde obteve seu doutorado cm direto Canômcq (1859J- 1 * v Macaúbas.
do célebre Ginásio Baiano, do educador Abílio César Borges (1859 , Barão de
Foi sagrado bispo na Capela Imperial dc Petrópolis ( . 8 6 ! e, cm seguida, partiu p
Pará, onde assumiu a direção da diocese, aos 31 anos de idade.
66. Entre os direitos outorgados a o imperador pelo Padroado estava a aprovação dos esta
BAHIA, SÉCULO X I X

que regiam as confrarias c ordens terceiras. R o q u e Spencer Maciel de Barros, "A questão
religiosa**.
6 7 . Idem, ibidem, p. 3 4 3 - 3 4 8 .
6 8 . Idem, ibidem, p. 3 4 8 - 3 5 1 ; História da Igreja no Brasil, t. II/2, p. 1 8 7 - 1 8 8 .

6 9 . Roque Spencer Maciel de Barros, " A questão religiosa", p. 351—353 e 3 5 9 - 3 6 4 .


7 0 . Idem, ibidem, p. 3 5 3 .

7 1 . Idem, ibidem, p. 3 5 6 .
7 2 . Idem, ibidem, p. 3 5 6 - 3 5 9 .

7 3 . J e a n - M a r i e Mayeur, Des partis catholiques à la démocratie chrétienne, XIX —XX? siècles


e

p. 1 7 - 8 1 .
7 4 . Ramos de Oliveira, O conflito maçônico-religioso de 1872, p. 1 4 .

7 5 . História da Igreja no Brasil, t. II/2, p. 1 8 9 - 1 9 0 .

7 6 . Oscar de Figueiredo Lustosa ( O . P . ) , Política e Igreja, p. 1 0 2 .

7 7 . Basílio de Magalhães, Estudos da História do Brasil, p. 1 3 3 .

7 8 . E. V i l h e n a de M o r a i s , O Gabinete Caxias e a anistia dos bispos da questão religiosa.


A atitude pessoal do Imperador.

7 9 . Oscar de Figueiredo Lustosa ( O . P . ) , Política e Igreja, p. 115—116.

8 0 . J e a n - M a r i e Mayeur, Des partis catholiques..., p. 4 9 .

8 1 . Esmeraldo R o b e r t o de Faria, Reflexos da questão religiosa na Bahia.

8 2 . Oscar de Figueiredo Lustosa ( O . P . ) , Política e Igreja, p. 1 2 3 - 1 5 5 .

83- Katia M . de Queirós M a t t o s o , Etre esclave au Brésil, p. 1 2 8 - 1 3 4 (ed. brasileira: Ser escravo
no Brasil); História da Igreja no Brasil, t. II/2, p. 5 7 - 5 9 , 1 2 0 - 1 2 2 , 2 5 9 - 2 6 2 e 3 6 5 - 3 6 7 .

8 4 . Cf. Silveiro G o m e s Pimenta, Vida de D. Antônio Ferreira Viçoso, p. 4 7 - 4 9 .

85- Chronica Religiosa, ano I I , n° 2 2 , p. 1 7 4 - 1 7 5 .


8 6 . História da Igreja no Brasil, t. II/2, p. 1 5 9 - 1 6 0 ; Perdigão Malheiro, A escravidão no Brasil.
Ensaio histórico, jurídico, social, v. 2, p. 7 7 .
8 7 . História da Igreja no Brasil, t. II/2, p. 1 6 1 ; Emilia Viotti da Costa, Da senzala à colônia,
p. 2 4 9 - 2 5 3 .
8 8 . História da Igreja no Brasil, t. II/2, p. 1 6 1 .
8 9 . Perdigão Malheiro, A escravidão no Brasil..., v. 2, p. 9 2 ; Emilia Viotti da Costa, Da senzala
à colônia, p. 3 8 1 - 3 8 5 .
9 0 . Emilia Viotti da Costa, Da senzala à colônia, p. 3 8 5 - 4 2 7 .
9 1 . História da Igreja no Brasil, t. 11/2, p. 162.
9 2 . Ch ronica Religiosa, ano II, n° 4 7 , p. 3 7 0 .
9 3 . Esmeraldo Roberto de Faria, Reflexos da questão religiosa na Bahia, p. 2 4 .
9 4 . Chronica Religiosa, ano II, n° 4 7 , p. 3 7 3 - 3 7 6 .
9 5 . Idem, ibidem, ano II, n° 5 1 , p. 4 0 2 - 4 0 3 .
9 6 . Idem, ibidem, ano III, n° 2, p. 9 - 1 1 .
9 7 . Idem, ibidem, ano II, n° 4 7 , p. 3 7 3 - 3 7 6 .
9 8 . História da Igreja no Brasil, t. II/2, p. 277.
99. Chronica Religiosa, ano II, n° 4 7 , p. 3 7 1 .
100. Idem, ibidem, ano III, n° 3 , p. 22.

101. Emilia Viotti da Costa, Da senzala à colônia, p. 4 2 8 - 4 5 5 - Thnmoe d -a


branco. Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro, p. 3 0 - 4 3 ' "°
102. História da Igreja no Brasil, t. II/2, p. 2 7 8 .

103
- ttr^T SR D LUIZ A
"' ° * *«*
MI

104. História da Igreja no Brasil, t. U/2, p. 2 8 0 .

NOTAS DO CAPÍTULO 2 0
1. Almanach para a cidade da Bahia - Anno 1812, p. 9 2 - 9 6 .

2. Luiz dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, v. 2, p. 4 4 0 - 4 4 1 e 453. Cândido da


Costa e Silva está redigindo (1991) um estudo sobre o capítulo-catedral da Bahia no
século XIX.

3. Monsenhor Eugênio de Andrade Veiga, Os párocos no Brasil..., p. 3 5 - 4 9 ; História da


Igreja no Brasil, t. 2, p. 2 8 3 .

4. Julita Scarano, Devoção e escravidão: a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
no Distrito Diamantino no século XVIII; Eduardo Hoornaert, Formação do catolicismo
brasileiro (1500-1800), p. 8 8 - 9 7 .

5. História da Igreja no Brasil, p. 2 8 2 .

6. André João Antonil, Cultura e opulência do Brasil..., p. 105.


7. Idem, ibidem.
8. Idem, ibidem.
9. História da Igreja no Brasil t. II/2, p. 2 8 3 ; Eduardo Hoornaert, Formação do catolicismo
brasileiro (1500-1800), p. 7 6 - 7 8 .
10. História da Igreja no Brasil, t. II/2, p. 84.
11. José Honório Rodrigues, "O clero e a Independência".
12. Bibliotecas do cónego Manuel José de Freitas Batista Mascarenhas, aliás Manuel Dendê
Bus, c do padre Manuel Pereira Lopes de Macedo. Arquivo do Estado da Bahia, Seção
Judiciária, Série Inventários, 1836: 7/795 e 1825: 1/748.
13. História da Igreja no Brasil t. II/2, p. 85.
14. Idem, ibidem, p. 86.
15. Idem, ibidem, p. 8 6 - 8 7 .
16. Idem, ibidem, p. 192.
17. Este estudo poderia ser feito nos arquivos da Cúria Metropolitana de Salvador, que na
época de minha pesquisa estavam fechados ao público, por motivo de reorganização^
pesquisa feita no Arquivo Nacional não permitiu descobrir esses dados. O recenseam
to de 1872 atribuiu à diocese da Bahia 288 padres seculares (cf. capitulo Hl).
18. Fala do presidente da Província (João José de Moura Magalhães), 1849, p. 7.
19. Fala do presidente da Província (J°ão Maurício Wanderley), 1853, p. 36.
BAHIA, SÉCULO X I X

2 0 . Fala do presidente da Província (Álvaro T i b é r i o de M o n c o r v o ) , 1 8 5 7 , p. 3 6 .

2 1 - Falado presidente da Província (João Lins Vieira Cansanção de S i n i m b u ) , 1 8 5 7 , p. \\


2 2 . Riolando Azzi, " D . R o m u a l d o Antônio de Seixas, arcebispo da Bahia...", p. 2 4 .

2 3 . Cf. História da Igreja no Brasil t. II/2, p. 1 9 2 - 1 9 3 .

2 4 . Fala do presidente da Província (Ambrozio Leitão da C u n h a ) , 1 8 6 8 , p. 1 8 - 1 9 .

25. Coleção de obras de D . R o m u a l d o A n t ô n i o de Seixas, v. I, p. 5 3 - 5 5 .

2 6 . Idem, ibidem, p. 3 1 1 .

2 7 . Arquivo do Estado da Bahia, Seção Judiciária, Série T e s t a m e n t o s , Livro 2 0 (29/1/1831-


9/12/1831), fl. 6 - 1 2 v .
2 8 . Ibidem, Livro 2 5 ( 1 5 / 6 / 1 8 3 6 - 9 / 8 / 1 8 3 6 ) , fl. l l v - 1 6 .

2 9 . Legislação brasileira ou Coleção cronológica das leis, decretos, resoluções de consulta, provisões
etc..., t. 7, p. 3 8 8 .

3 0 . Francisco M a n o e l Raposo de Almeida, Biographia do Arcebispo Marquez de Santa Cruz,


p. 3 1 - 3 2 .

31. Coleção de obras de D . R o m u a l d o A n t ô n i o de Seixas, v. I, p . 1 2 1 .

3 2 . Ibidem, p. 1 2 1 - 1 2 2 .

3 3 . C f . Riolando Azzi, " D . R o m u a l d o A n t ô n i o de Seixas, arcebispo da Bahia...", p. 2 6 .

3 4 . História da Igreja no Brasil t. 2, p . 1 9 3 - 1 9 8 ; J e a n Q u é n i a r t , Les hommes, VEglise et Dieu


dans la France du XVIIF siecle, p. 5 4 ; Ignacio de Cerqueira e Silva Accioli, Memórias his-
tóricas epolíticas..., v. 5, p . 1 0 8 - 1 0 9 .

35. Coleção de obras de D . R o m u a l d o A n t ô n i o de Seixas, v. I V , p. 2 5 3 .

3 6 . Riolando Azzi, " D . R o m u a l d o A n t ô n i o de Seixas, arcebispo da Bahia...", p. 2 9 .

3 7 . Esmeraldo Roberto de Faria, Reflexos da questão religiosa na Bahia, p. 16.

3 8 . Semana Religiosa, ano I, n° 1 3 , p. 9 8 .

3 9 . Segundo E . R . de Faria, os livros de matrícula de alunos nos seminários diocesanos, bem


c o m o os dossiês de ordenação dos candidatos ao sacerdócio, carecem de informações sobre
a origem social desses estudantes. Constatamos pessoalmente este fato, ao examinarmos no
Arquivo Nacional alguns dossiês de nomeação para as diversas funções eclesiásticas.

4 0 . Riolando Azzi, " D . Romualdo A n t ô n i o de Seixas, arcebispo da Bahia...", p. 2 8 .

4 1 . Coleção de obras de D . R o m u a l d o Antônio de Seixas, v. I, p. 2 1 8 .


4 2 . Falado presidente da Província (Herculano Ferreira Penna), 1 8 6 0 , p. 2 9 - 3 0 .
4 3 . Chronica Religiosa, ano I V , n° 2 2 , p. 1 9 0 , e n ° 4 7 , p. 3 7 1 .
4 4 . História da Igreja no Brasil t. II/2, p. 1 9 8 . -
4 5 . Chronica Religiosa, ano I V , n° 2 5 , p. 2 1 6 .
4 6 . História da Igreja no Brasil t. 11/2, p. 197.
4 7 . Fala do presidente da Província (Barão de São Lourenço), 1870, p. 8.
4 8 . Esmeraldo Roberto de Faria, Reflexos dti questão religiosa na Bahia, p. 16.
4 9 . Riolando Azzi (org.), A vida religiosa no Brasil, p. 9 4 .
5 0 . A legislação portuguesa dos séculos X V I e X V I I continha as famosas leis sobre a pureza do
sangue, ditadas, inicialmente, contra cristãos-novos. Muitos foram levados a emigrar no
NOTAS
691

século X V I , inclusive para o Brasil, e em 1 6 1 2 a Sarna 1* u-


judeus convertidos fossem nomeados c u r í í ^ ^ ^ ^ ^ ^

í
bula confirmara os estatutos sobre a "pureza do s a n g u ^ d Í a ^ o f e ^ ^ í?
do que judeus entrassem nas misericórdias, colégios e corpZl
isso, Anita Novinsky, Cristãos-novos na Bahia, p 33,35"

5 1 . E m / . j r à f t * e cristãos novos, p. 9 8 , o historiador português Antônio José Saraiva escreve-


r a sociedade portuguesa dessa época, a noção de pureza de sangue é utópica, mas nem
por isso deixa de ser u m valor instrumental." Era esse o caso da Bahia.

52. Fala do presidente da Província (João Capistrano Bandeira de Mello), 1867, p 54


5 3 . Fala do presidente da Província (João Lustosa da C u n h a Paranaguá), 1 8 8 1 , p. 82
54. Luiz dos Santos V i l h e n a , A Bahia no século XVIII, v. 2, p. 4 6 2 .

55. Katia M . de Q u e i r ó s M a t t o s o , Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX


p. 3 5 4 - 3 5 5 .
5 6 . Luiz dos Santos V i l h e n a , A Bahia no século XVIII, v. 2, p. 4 6 2 - 4 6 3 .

57. M o n s e n h o r E u g ê n i o de Andrade V e i g a , Os párocos no Brasil..., p. 9 6 .


5 8 . Idem, ibidem, p. 9 4 .

59. Idem, ibidem, p. 1 1 4 .


6 0 . André J o ã o A n t o n i l , Cultura e opulência do Brasil..., p. 1 5 0 .

6 1 . Idem, ibidem, p. 1 4 8 .
6 2 . M o n s e n h o r Eugênio de Andrade Veiga, Os párocos no Brasil..., p. 103.
6 3 . Cf. Katia M . de Q u e i r ó s M a t t o s o , Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX,
p. 3 4 4 - 3 5 1 .
6 4 . Fala do presidente da Província (Conselheiro Pedro Luiz Pereira de Souza), 1883, p. 14.
6 5 . Fala do presidente da Província (Barão de São Lourenço), 1 8 7 1 : Relatório do Arcebispo,
C o n d e de São Salvador, de 8 de dezembro de 1 8 7 1 , p. 4 (relatório anexado ao discurso do
presidente da Província).
6 6 . "Província da Bahia: O r ç a m e n t o e despesas, 1 8 3 5 - 1 8 3 6 " . In Leis e resoluções da Assembléia
Provincial da Bahia, v. 1 ( 1 8 3 5 - 1 8 3 7 ) .
6 7 . Constituições Primeiras, livro I V , título X X X V I I I , § 7 7 4 - 7 7 8 , p. 2 9 4 - 2 9 5 .
6 8 . Arquivo do Estado da Bahia, Seção Judiciária, Livro de Notas e Escrituras n° 197 (1816),
fl. 2 1 7 , e n° 3 8 9 ( 1 8 6 6 ) , fl. 3 5 .
6 9 . Katia M . de Queirós Mattoso, Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século X ,
p. 3 6 7 - 3 7 3 . C f . também Livro V I , capítulo 2 5 .
7 0 . Arquivo do Estado da Bahia, Seção Judiciária, Livro de Notas e Escrituras n° 222 (1827;.
fl. 1 3 7 - 1 3 7 v , n° 2 3 0 ( 1 8 3 0 ) , fl. 8 4 v - 8 5 e n° 196 ( 1 8 1 1 ) , fl. 4 2 .
7 1 . Esses dados foram extraídos de séries anuais compostas por n o ^ n ^ | ^ ^ S
aleatoriamente. Para o período de 1 8 2 1 - 1 8 5 0 , temos 2 5 3 mventános, dos qua.s 151
por homens livres, 8 2 por mulheres livres e oito por alforriados.

t ^ m ^ ^ ^ i ^ 5 0 M
"- líis 1:000
* 1
extraídos d e 6 3 inventários.
BAHIA, SÉCULO X I X

7 3 . Inventários n ° 1/748 ( 8 : 0 2 3 de réis), 8/763 ( 2 : 0 9 4 ) , 4/789 ( - 1 4 3 ) , 6/797 ( 1 2 : 0 8 2 ) , 7/795


( 2 : 8 3 3 ) , 6/828 ( 7 : 3 8 5 ) , 2/844 ( 9 : 2 5 0 ) , 2/855 ( 5 : 1 4 6 ) .
7 4 . Para o período 1 8 5 1 - 1 8 8 7 , temos 3 0 4 inventários: 1 8 6 de homens livres, 9 4 de mulheres
livres, 15 de alforriados e nove de alforriadas. E m alguns anos foram encontrados menos
de nove inventários, mas o número nunca foi inferior a sete. O número de inventários aqui
apresentado é diferente do que figura no estudo das fortunas dos baianos. Cf. Livro III
capítulo 12.

7 5 . Cf. Livro V I I , capítulo 4 .

7 6 . N o Nordeste, pode-se mencionar a ação filantrópica desenvolvida pelo capuchinho Cae-


tano de Messina no interior de P e r n a m b u c o , assim c o m o a ação do padre José Antônio
Maria Pereira, conhecido c o m o padre Maria Ibiapina, que fundou colégios e hospitais nas
províncias do Ceará e da Paraíba, na segunda metade do século X I X . Chronica Religiosa,
ano I V , n° 2, p. 1 6 1 ; Celso Mariz, Ibiapina. Um apóstolo do Nordeste.

NOTAS DO CAPÍTULO 2 1

1. Cf. Susan A. Soeiro, A Barroque Nunnery. Igualmente desta historiadora americana: "The
feminine orders in colonial Brazil", p. 1 7 3 - 1 9 7 e " T h e social and economic role o f the
Convent: W o m e n and Nuns in Colonial Bahia. 1 6 7 7 - 1 8 0 0 " ; História da Igreja no Brasil
t. 2, p. 2 2 3 - 2 3 3 ; Riolando Azzi & M a r i a Valéria V . Resende, " A vida religiosa feminina
no Brasil colonial".

2 . Cf. História da Igreja no Brasil c. 2, p. 2 3 1 - 2 3 2 ; Riolando Azzi & Maria Valéria V.


Resende, "A vida religiosa feminina no Brasil colonial", p. 5 6 - 6 0 .

3 . C f . História da Igreja no Brasil t. 2, p. 2 4 0 - 2 4 1 ; Riolando Azzi, "Eremitas e irmãos: uma


forma de vida religiosa n o Brasil a n t i g o " .

4 . O papel econômico das ordens religiosas não está suficientemente estudado, salvo no que
tange ao Convento do Desterro. C f . estudos da historiadora Susan Soeiro, citados na no-
ta 1 acima.

5. Kenneth Maxwell, A devassa da devassa* p. 4 2 - 4 3 .

6. Luiz dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, p. 4 4 3 ^ 4 5 9 ; História da Igreja no Brasil
tomo 2, p. 2 2 1 - 2 2 2 .

7. História da Igreja no Brasil t. II/2, p. 9 1 .


8. Idem, ibidem, p. 9 4 .

9. Oscar de Figueiredo Lustosa ( O . P . ) , Política e Igreja, p. 2 4 .


10. T h o m a s Lindlcy, Narrativa de uma viagem ao Brasil p. 1 6 9 - 1 7 0 .
11. Francisco Pinheiro L i m a J r . c Dinorah d'Araújo Bcrbcrt de Castro, Padre Mestre Cons. Dr.
António Joaquim das Mercês (1786-1854), Mestre de Filosofia. O cónego das Mercês não
foi, aliás, o único a pedir sceularização. Entre os padres cujos inventários consultamos,
dois haviam sido religiosos da ordem de São Bento.
12. História da Igreja no Brasil, t. II/2, p. 9 1 .
13. Cf. Valcntin Calderon, Biografia de um monumento: o antigo convento de Santa Teresa da
Bahia, p. 93.
14. Susan A. Soeiro, A Barroque Nunnery, p. 1 1 5 - 1 2 1 , 1 2 3 - 1 3 6 .
693

, S. Roberto S i m o n s « , , História econômica do Brasil p /.,()• pj ,


Colonial * » * P- » » 0, P m t 0 d c A g u i a r > ^ ^ ^
16. Susan A. Soeiro, A Barroque Nunnery, p. 1 9 6 - 1 9 8 .
17. Idem, ibidem, p. 1 5 5 .

18. Susan A. Soeiro compara a propriedade imobiliária do Desrerro com


conventos das franciscanas c das ursulinas: cm 1 7 6 4 o H, I u ? p r o
P r , c d a d
« dos
de 1 : 3 4 2 . 6 5 0 de réis; o das Mercês, em 1 7 6 4 , tinha c m a r e n n ^ * ^ C
° m r e n d a

de réis. Susan A. Soeiro, A Barroaue Nunne^? 1% ' C O m


' C n d a d c
^61.720
Idem. ibidem, p. 1 5 7 - 1 6 3 .

20. Idem, ibidem, p. 1 6 4 - 1 6 5 .

2 1 . Idem, ibidem, p. 1 6 4 .

22. História da Igreja no Brasil, t. II/2, p. 2 0 1 .

23. E m 1 8 2 0 , havia 1 . 1 5 6 religiosos e 1 9 0 religiosas cm Minas Gerais, 80 religiosos e 3 re-


ligiosas e m G o i á s e 7 2 religiosos e 2 2 religiosas cm Mato Grosso. Entre eles, a porcenta-
gem de estrangeiros era de 3 5 , 7 % para Minas Gerais, 5 6 , 7 % para Goiás e 7 7 , 7 % para
M a t o G r o s s o . N a mesma época, na Bahia, R i o de Janeiro e Pernambuco essa porcentagem
era de 3 0 , 8 % , 3 2 , 3 % e 4 6 , 2 % , respectivamente. Riolando Azzi (org.) , A vida religiosa no
Brasil, p. 1 0 5 .

2 4 . História da Igreja no Brasil, t. II/2, p. 2 0 1 .

2 5 . José O s c a r Beozzo, " D e c a d ê n c i a e morte, restauração e multiplicação das ordens e congre-


gações religiosas n o Brasil, 1 8 7 0 - 1 9 3 0 " , p. 9 8 - 9 9 .

2 6 . J . J o n g m a n s , "A reforma da O r d e m Beneditina no Brasil, 1 8 9 0 - 1 9 1 0 " , p. 1 3 0 - 1 5 0 .

2 7 . História da Igreja no Brasil t. II/2, p. 2 0 4 .

2 8 . Riolando Azzi (org.), A vida religiosa no Brasil, p. 8 9 - 9 0 .


2 9 . Luiz dos Santos V i l h e n a , A Bahia no século XVIII, v. 2, p. 446-447.

3 0 . Coleção de obras de D . R o m u a l d o Antônio de Seixas, v. II, p. 4 6 1 - 4 6 2 .

3 1 . Fala do presidente da Província (Alvaro Tibério de Lima), 1 8 5 6 , p. 4 8 .

3 2 . Ibidem, p. 4 8 - 4 9 .
3 3 . Riolando Azzi, " D . Romualdo Antônio de Seixas, arcebispo da Bahia...", p. 32.

34. Idem, ibidem.


35. Fala do presidente da Província (Barão de São Lourenço), 1 8 7 1 , p. 2 6 .
36. Fala do presidente da Província (Herculano Ferreira Penna), 1860, p. 39 3.

37. Riolando Azzi, "Padres da Missão e movimento brasileiro de reforma católica no sécu.o

XIX".
3 8 . José Oscar Beozzo, "Decadência c morte...", p. 8 9 .
3 9 . D o m Romualdo Antônio de Seixas. Memórias do Marauts de Santa Cruz, p.

40. Idem, ibidem, p. 166.


41. Almanaque, ano 1857, p. 1 2 3 - 1 2 5 .
42. Idem, ibidem, p. 123-127. r !67.
43. Don, Rcnualdo An.cnio dc Sci«a, Memoriai + M*** * * - C
™ '
4 BAHIA, SÉCULO XIX

44. Chronica Religiosa, ano IV, n° 22. p. 90 c n° 47. p. 371.


-*5. Riolando Azzí, " D . Romualdo Antônio dc Seixas, arcebispo da Bahia...", p. 35,

NOTAS DO CAPUTI O 2 2

1. Riolando Azzi, "Formação histórica do catolicismo popular brasileiro".


2. A expressão religiosidade popular', de conotação pejorativa, preterimos 'religião do povo'
sugerida por Pedro A. Ribeiro de Oliveira, que representa melhor a realidade religiosa
brasileira e engloba todas as classes sociais. Ao pesquisar o culto dos santos, sua expansão
e sua função nos países latinos cristãos nos séculos IV c V, Peter Brown observa com razão
que nos estudos que tratam o sentimento religioso como "religião popular" (destaque do
autor) aparece quase sempre um modelo "em dois níveis", que opõe concepções e práticas
de uma suposta elite esclarecida às do vulgo, o povo, limitado em suas capacidades inte-
lectuais e culturais. Esse enfoque considera o culto dos santos como uma capitulação da
hierarquia da Igreja aos modos de pensamento até então limitados ao "vulgo". As conver-
sões teriam forçado as autoridades eclesiásticas a aceitarem práticas pagãs, sobretudo no
que diz respeito ao culto dos santos. A debilidade fundamental do modelo em dois níveis
— acrescenta Brown — "é de não poder, a não ser raramente ou talvez nunca, recuperar
as transformações religiosas ocorridas fora das elites (...). As crenças populares (...) cons-
tituiriam um resíduo, desprovido de elaboração e de elevação, de crenças difundidas nas
classes ignorantes c sem instrução, isto é, toda a humanidade, com raras exceções." Brown
mostra como, ao contrário, o poder dos santos foi originalmente monopolizado pelos
bispos ou pelas grandes famílias, que delimitaram seu culto em santuários, transforman-
do-o em verdadeira instituição. A preocupação de fundo, conhecida por todos — elite e
vuIgo" — , seria com a segurança e a justiça. Peter Brown, Le culte des saints, son essor et
u

sa fonction dans la chrétienté latine, p. 3 0 - 3 2 .

3. Pedro A. Ribeiro de Oliveira, "O catolicismo do povo", p. 77.


4. Idem, ibidem, p. 7 7 - 8 0 .
5. Arquivo do Estado da Bahia, Seção Judiciária, Série Testamentos ( 1 8 0 5 - 1 8 9 0 ) .
6. Seguimos aqui a exposição dc Pedro A. Ribeiro de Oliveira. As análises de Peter Brown
sobre o cristianismo no século IV são freqüentemente aplicáveis ao Brasil. Cf. Le culte des
saints..., p. 7 1 - 9 3 , capítulo "O companheiro invisível". O nome cristão refletia a necessi-
dade dc ligar a identidade do indivíduo a um santo. Um novo nascimento se ligava, pelo
batismo, a uma nova identidade. Homens que, por seu martírio ou pela santidade de sua
vida, mostraram ser verdadeiros servidores de Deus podiam ligar Deus a outros homens,
tornar-se guardiães dc sua identidade, amigos protetores cm um piundo em que qualquer
proteção é bem-vinda c desejada. O mesmo acontecia com o anjo da guarda, tratado como
parente ou amigo, "companheiro invisível" do indivíduo, que lhe era confiado por toda a
sua vida terrestre, pois a "identidade eterna do ego" estava sob a guarda desse anjo.

7. Pedro A. Ribeiro de Oliveira, "O catolicismo do povo", p. 7 4 - 7 9 .


8. História da Igreja no Brasil t. II/2, p. 117.
9. Gilberto Freyre, Maîtres el esclaves, p. 395 (ed. brasileira: Casagrande & senzala).
10. Gilberto Freyre, Sobrados e mocambos, p, 247.
11. Luís da Câmara Cascudo, Dicionário do folclore brasileiro, p. 191-192.
12. Gilberto Freyre, Maîtres et esclaves, p. 215 (cd. brasileira: Casa-grande & senzala).
13. Idem. ibidem, p. 2 1 6 .

!4. Idem. ibidem.


1 5. Idem. ibidem.

16. Idem. ibidem, p. 2 1 8 .


1 " . Idem. ibidem, p. 3 9 4 .

18. História da Igreja no Brasil t. II/2, p. 1 0 0 - 1 0 2 .

19. Cf. M e l o M o r a i s Filho, Festas e tradições populares no Brasil, p 82ss e 167 178 M .
Q u e r i n o . Costumes africanos no Brasil p 2 6 6 - L u í s da Camar* C A rv ' a n
° d

brasileiro, p. 3 8 4 - 3 ^ 6 , 6 8 2 - 6 8 4 , 1 9 W 9 7 . 3 2 5 - ^3 2 ' * Z W

2 0 . Pierre Verger, Notícias da Bahia - 7 5 5 0 , p . . 7 3 - 9 3 .

: 1. História da Igreja no Brasil, t. II/2, p. 1 1 7 . A história das relações entre esses chefes locais
o clero e os fiéis ainda está por escrever, sobretudo no tocante ao período de introdução
das reformas romanizantes.

22. A . J . R . R u s s e l - W o o d , Fidalgos and Philanthropisp; Luiz Castanho de Almeida, São Paulo,


filho da Igreja, p. 3 1 s s ; Julita Scarano, Devoção e escravidão; João Camillo de Oliveira Torres,
História das idéias religiosas n o Brasil, p. 7 4 .

2 3 . C f . M a r i a do S o c o r r o T a r g i n o Martinez, Ordens Terceiras, ideologia e arquitetura; Marie-


ra Alves, História da venerável Ordem 3a
da Penitência do Seráfico Pe. São Francisco
da Congregação da Bahia; Francisco Borges de Barros, À margem da história da Bahia,
p. 1 2 9 - 1 3 0 .
2 4 . A . J . R . R u s s e l - W o o d , "Aspectos da vida social das irmandades leigas da Bahia no século
XVIH".
2 5 . Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfego de escravos..., p. 5 2 4 - 5 2 5 .
2 6 . A . J . R . R u s s e l - W o o d , "Aspectos da vida social...", p. 1 5 1 ; R J . D . Flory, Bahian Sociery...,
p. 2 9 3 .
2 7 . Katia M . de Q u e i r ó s M a t t o s o , Ser escravo no Brasil p. 1 4 5 - 1 5 2 .
2 8 . Afonso R u y de Souza, História política e administrativa da cidade do Salvador, p. 5 5 9 - 5 9 4 ;
História da Câmara Municipal da cidade de Salvador, p. 3 0 6 - 3 0 7 .
2 9 . Katia M . de Queirós M a t t o s o , Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX,
p. 2 2 4 - 2 2 8 .
3 0 . José da Silva C a m p o s , Procissões tradicionais da Bahia, p. 7 8 - 8 2 .

3 1 . Idem, ibidem, p. 8 9 - 9 0 . „
3 2 . Katia M . de Queirós Mattoso, "Párocos e vigários em Salvador no século AIA... , -P

14, 4 1 - 4 2 .
3 3 . Maximilian« de Habsburgo, Bahia, 1860. Esboços de viagem, p. 128 •
3 4 . História da Igreja no Brasil t. II/2, p. 2 1 7 .
3 5 . Idem, ibidem, p. 2 1 8 .
3 6 . Chronica Religiosa, n° 4 4 , p. 3 4 8 - 3 5 1 .
3 7 . Idem, ibidem, ano II, n° 14, p. 107.
3 8 . História da Igreja no Brasil II/2, p. 104.
3 9 . Idem, ibidem, p. 1 0 2 .
696 BAHIA, SÉCULO XIX

40. Idem, ibidem, p. 103.


41. Chronica Religiosa, ano I. n° 13, p. 1 0 2 - 1 0 3 .
42. Na França, no século XVIII, essas missões duravam de três a quatro semanas. Jean Quéniart
Les hommes, VEglise et Dieu..., p. 1 0 6 - 1 1 1 .
43- Candido da Costa Silva, Roteiro da vida e da morte Um estudo do catolicismo no Sertão da
Bahia. p. 3 9 - 4 0 .
- 4 4 . Chronica Religiosa, ano I, n° 15* p. 119.
4 5 . Cândido da Costa Silva, Roteiro da vida e da morte, p. 41. Lembremos, também, o belo
filme O pagador de promessas, que conquistou a Palma de Ouro no Festival de Cannes em
1963.
46. Pierre Verger, Notícias da Bahia - 1850, p. 1 7 1 - 1 7 2 .
47. Riolando Azzi, "A participação da mulher na vida da Igreja no Brasil", p. 101.
48. História da Igreja no Brasil t. 11/2, p. 221.
49. Trecho do Resumo do que há de fazer um cristão para se santificar e salvar de dom Antônio
de Macedo Costa (1875). Apud: Riolando Azzi, "A participação da mulher...", p. 101-
102.
50. Esmeraldo Roberto de Faria, Reflexos da questão religiosa na Bahia, p. 19.
51. Chronica Religiosa, ano II, n° 2, p. 9 0 - 9 1 .
52. História da Igreja no Brasil, t. 11/2, p. 222.

NOTAS DO CAPÍTULO 2 3

1. Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil p. 3 5 3 - 3 7 3 .


2. Nas religiões afro-brasileiras, a iniciação só é exigida para os chefes e os celebrantes do
culto. O rito nagô, por exemplo, apresenta uma hierarquia religiosa comandada pelo
babalorixá (pai-de-santo, ministro supremo do candomblé) ou a ialorixá (mãe-de-santo,
ministra suprema dos candomblés dirigidos por mulheres). Vêm, em seguida, o babalaô,
que desempenha funções adivinhatórias, e a iya kêkêrê, auxiliar do ministro principal. As
filhas-dc-santo dividem-se em duas categorias: as iaô e as ebomim (ou vodunci), que são
servidas por mulheres, as ékéde. Finalmente, as abia são jovens que postulam a iniciação
e que constituem a reserva do candomblé. Do lado masculino, há os ogãs, alguns dos quais
honorários c protetores do culto, e outros que, ao contrário, exercem funções importantes,
como cuidar do altar (pepigâ) c dos sacrifícios rituais (axogum); e os músicos, cujo chefe
é o alabé. Todos participam ativamente das celebrações, oferecidas a uma assistência nao
submetida a nenhuma iniciação específica (a menos que alguém seja 'tocado' pelo santo).
No Brasil, as seitas tradicionais nagôs são sempre dirigidas por uma ialorixá. Cf. Rogcr
Bastido, As religiões africanas no Brasil, p. 2 7 2 - 2 7 3 ; Edson Carneiro, Candomblés da Bahia,
p. 137-145.
3. Cf. Xavier Marques, O feiticeiro.
4. António Gouvêa Mendonça, O celeste porvir. A inserção do protestantismo no Brasil p. 1 '2.
5. Cf. Maria Isaura Pereira de Queiroz, O campesinato brasileiro. Da mesma autora: Bairros
rurais paulistar, Antonio Cândido, Os parceiros de Rio Bonito.
6. Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens livres na ordem escravocrata; Maria Isaura Pe-
reira de Queiroz, O messianismo no Brasil e no mundo, p. 176-177.
NOTAS
697

7. História da Igreja no Brasil t. II/2, p. 2 3 8 .

S. Emile Leonard, O protestantismo brasileiro, p. 2 7 - 2 9 .


9 . Antônio G o u v ê a M e n d o n ç a , O celeste porvir, p. 1 7 - 2 7 .
1 0 . Idem, ibidem, p. 1 4 1 .

1 1 . Boanerges Ribeiro, O padre protestante

12. Antônio Gouvêa M e n d o n ç a , O celeste porvir, p. 9 6 - 1 0 1 .


13. Idem, ibidem, p. 1 4 5 .

14. " O crente é deste m u n d o e nele deve viver à espera da chegada de um mundo novo; deve
tazè-lo e m h a r m o n i a c o m certas regras, que tendem a caracterizá-lo como alguém qiie não
se resigna c o m o estado atual das coisas, de maneira que seus atos não são atos de resigna-
ção. Este é um dos estranhos paradoxos do protestantismo: sua maneira de viver na
sociedade não é u m a maneira resignada, mas nada faz para mudá-la; ao contrário, ele a
despreza e procura dela se afastar. Nisto se resume sua não-resignação. Na verdade, o
crente tem, s i m u l t a n e a m e n t e , u m a grande resignação e uma não-resignação particular
interior. Se luta do lado de D e u s , deve agir segundo seus mandamentos: observar o
repouso dominical, não matar, não roubar, não cometer adultério, não mentir, não beber,
afastar-se dos prazeres e da ociosidade. Esforçando-se por viver em conformidade com
essas regras q u e , na prática, c h o c a m - s e contra a sociedade glo.bal, é, no entanto, um não
resignado; mas, c o m o se interessa pelo m u n d o que está por vir, desinteressa-se do presente
e nada faz para m o d i f i c á - l o . Neste sentido, é um resignado. É , pois, ao mesmo tempo, um
resignado e um não resignado". A n t ô n i o Gouvêa Mendonça, O celeste porvir, p. 1 4 5 - 1 4 6 .

15. Idem, ibidem, p. 2 7 .

16. Idem, ibidem, p. 1 5 5 .


17. Fala do presidente da Província (Barão de São Lourenço) 1 8 7 1 . Relatório do Arcebispo,
C o n d e de São Salvador, de 8 de dezembro de 1 8 7 1 , p. 4 (relatório anexado ao discurso do
presidente da Província).
18. A . R . Crabtree, História dos Batistas no Brasil - até o ano 1906, p. 7 5 .
19. Maria Geralda de Jesus Teixeira, Os Batistas da Bahia: 1882-1925.

2 0 . Constituições Primeiras, Livro I I I , T í t u l o X X X I I I , § 532.


21. Julius Naehrer, Terra e gente da Província da Bahia, incursões de... Temos desta obra, não
publicada em língua portuguesa (uma edição em língua alemã foi publicada em 1881, em
Leipzig, sob o título de Land und Leute in den brasilianischen provinz Bahta), uma côpta
datilografada da tradução feita pelo Arquivo Nacional, colocada à nossa disposição por s
vice-diretor, Jose Gabriel da Costa Pinto, em 1980. Cf. da obra citada p. 76.

22. Julius Naehrer, Terra egente da Província da Bahia..., p. 81.

23. Idem, ibidem, p. 83.


24. C f . Katia M . de Queirós Mattoso, Ser escravo no Brasil, p. 112-117.
25. Julius Naehrer, Terra egente da Província da Bahia..., p. 77.

26. Idem, ibidem, p. 1 0 3 - 1 2 5 .


27. Idem, ibidem, p. 85.
28. Idem, ibidem, p. 77.
29. Idem, ibidem, p. 9 9 .
698 BAHIA, SÉCULO X I X

3 0 . História da Igreja no Brasil t. II/2, p. 2 6 5 .

3 1 . Constituições Primeiras, Livro I I I , T í t u l o X X X I I I , § 5 7 7 .


3 2 . Ibidem, § 5 7 9 .

3 3 . Era o costume na Bahia. C f . Consuelo Ponde de Sena, Introdução ao estudo de uma co


munidade do agreste baiano (1830-1982), p. 1 5 7 ; S. G u d e m a n & S. Schwartz, "Cleansin
original Sin: Godparenthood and the Baptism o f Slaves in Eighteenth Century in Bahia"
p. 3 5 - 5 8 . E m contrapartida, na Província do Espírito Santo, Nossa Senhora da Conceição
aparece sempre c o m o madrinha e São Benedito e São J o s é c o m o padrinhos. Cf. História
da Igreja no Brasil, t. II/2, p. 2 7 3 .

3 4 . Katia M. de Queirós M a t t o s o , Ser escravo no Brasil, p. 1 1 2 - 1 1 7 .

3 5 . J . J . Reis, Rebelião escrava no Brasil..., p. 1 1 0 - 1 1 5 .

3 6 . E m seu livro As religiões africanas no Brasil{v. 1, p. 2 0 3 s s ) , Roger Bastide deu informações


bastante completas sobre as interpretações dadas por diferentes autores brasileiros e estran-
geiros sobre as origens desse t e r m o , segundo ele " u m a corruptela (da palavra) Malé, nome
de um dos reinos m u ç u l m a n o s do Níger, habitado pelos M a l i n k ê , n o século X I I da nossa
era. Esse povo é t a m b é m conhecido pelo n o m e de M a n d i n g u e " (p. 2 0 3 - 2 0 4 ) . Mas,
segundo J . J . Reis (Slave Rebellion in Brazil..., p. 1 4 5 e nota 3 1 ; ed. brasileira: Rebelião escrava
no Brasil...), Bastide c o n f u n d i u males c o m malinkês, no Brasil chamados mandangues,
porque t o m o u c o m o grupo étnico o que, na verdade, era designação religiosa.

3 7 . Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfego de escravos..., p. 3 3 9 - 3 5 9 . K e n t pensa que esse


qualificativo veio da palavra mâlam, de origem haussa, corruptela da palavra árabe muallim,
que significa mestre. J . J . Reis, Rebelião escrava no Brasil..., p. 115-

3 8 . J . J . Reis, Rebelião escrava no Brasil...-, Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfego de escravos...,
p. 3 3 9 - 3 5 9 .

3 9 . J . J . Reis, Rebelião escrava no Brasil..., p. 1 3 6 - 1 5 5 .

4 0 . Idem, ibidem, p. 1 3 6 - 1 5 5 .

4 1 . N i n a Rodrigues, Os africanos no Brasil, p. 6 0 .

4 2 . Idem, ibidem, p. 1 5 0 - 1 5 1 .

4 3 . J . J . Reis, Rebelião escrava no Brasil..., p. 110—135.


4 4 . N i n a Rodrigues, Os africanos no Brasil, p. 1 5 1 - 1 5 2 .
4 5 . Katia M . de Queirós M a t t o s o , Etre esclave au Brésil, p. 2 6 7 (ed. brasileira: Ser escravo no
Brasil).

4 6 . Roger Bastide, As religiões africanas no Brasil, v. 1, p. 2 0 8 . O autor se baseou em Nina


Rodrigues, Etienne Brazil e Manoel Q u e r i n o para "reconstituir a vida da antiga comuni-
dade islâmica negra no Brasil". As narrativas desses autores baianos, por sua vez, basearam-
se cm observações que datam do fim do século X I X e do início do século X X . Deles, Nina
Rodrigues foi o único que se aproximou de um imã, um certo Luiz, de origem nagô. Suas
descrições são pobres, porque não procurou, c o m o fez Manoel Querino, considerar como
específicas dos adeptos do islamismo certas práticas comuns a todos os africanos. Por
exemplo, a afirmação — retomada sem comentários por Bastide (p. 2 0 9 ) — de que os
muçulmanos do Brasil permitiam c praticavam a poligamia é absurda, pois todos os
homens brasileiros daquela época eram polígamos. Além disso, segundo Nina Rodrigues»
o imã da Bahia tinha uma única esposa e não possuía harém (Os africanos no Brasil p.
NOTAI
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49. Idem. Ibidem, ,,. 157. ^ M e l 1


^ n c Bra.iL).
50 li!» m. iludem, p. I 4 7 ,

> 1 Idem, iludem, |>, 1 63.


\1 Pierre Verger, /•/«*• „//,„ ,/r /„ /„„•„. ^
á /M/O.'" ^ escravos.,.), * ' 3
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5t Idem, ibidem, p, 336-

A I I . Reis, SUv, MM.» in lira,,!..., p. 8 9 ( « , . b r a . í k í „ : ftfefi*, «, 4 B , „„

rio tráfego de euravoi...). r r

56. Rogci Bastide, /I» religiões africanas no Brasil v. I, p. 2 1 7 - 2 1 8 .


5 7 . Nina Rodrigues, Oi africanos no Brasil p. 6 0 6 1 .

38. Kacía M. de Q u e i r ó s M a t t o s o , iitre esclave au Bréül p. 1 6 6 - 1 6 7 ícd. brasileira: & r í W n « *


no Brasil).

59. A dcs< rição resumida dos elementos fundamentais do culto íoruba 6 tomuó-A da obra dc
j nana hlhcín dos Santos, Oi Nagò e a morte. (', evidente que este estudo se baseia ern uma
observação atual desse culto, não levando cm conta as adaptações que sofreu desde sua
introdução na Bahia. M a s , sendo um culto pr;itit;jdo cm um dos terreiros mais antigos c
tradicionais da Bailia, cujos ministros vieram especialmente da África para irnplantá-lo,
por volta da década dc 1 8 3 0 , acha/nos provável que mantenha boje os elementos funda-
mentais que tinha então.

6 0 . Juana Elbcín dos Santos recusa-sc a discutir o problema da origem dos orixás: para certos
autores, diz cia, os orixás são ancestrais divinizados, chefes dc linhagens ou dc clãs, que,
por causa dc atos excepcionais praticados durante a vida, transcenderam os limites dc sua
família C SC transformaram cm entidades do culto nacional. A autora constata apenas que
os seres sobrenaturais sc dividem cm duas categorias bem definidas: de um lado os or.xis,
entidades divinas, e dc outro os ancestrais, espíritos humanos. Cf. 0$ Nago e a morte,
p. 102 103.
6 1 . Idem, ibidem, p. 3 0 , 5 3 , 7 3 e 103.
6 2 . Ide/í), ibidem, p. 3 3 - 3 4 .
63- Idem, ibidem, p. 3 9 . , . c
64. K.,i. M . ,U- < ; „ c i , 6 . M a „ „ s „ , Em«*»«>HM ?• i$*7l C«A
no Brasil). c 1905
65. N i n a RodrígUCl i r a n s c r e v e u m a (juin/ena d c n o i k i a s de jornais entre 2y)_ 46.
2

„ , b r c os cullo,
a f r o - b r a s i l d r o » c e l e b r a d o , em Salvador. Os afneanos no fírasd ? .

NOTAS DO C A P Í T U L O 24

1. L F , d c T o l l c n a r c , Notas dominicais..., p. 2 8 1 - 2 8 2 .
2. Thomas ü n d l c y . Narrativa de uma viagem ao Brasil, p. 1 2 8 .
BAHIA, SÉCULO X I X

3 . Apud: M o e m a Parente Augel, Visitantes estrangeiros..., p. 2 1 1 . Esses mercados de mão-de-


obra escrava desapareceram após 1 8 5 0 , mas os galpões ainda serviam para abrigar os
escravos em trânsito, vendidos no Sul do país.
4 . Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfego de escravos..., p. 5 2 1 - 5 2 4 .
5. Maria Graham, Diário de unta viagem ao Brasil e de uma estada nesse pais durante parte dos
anos 1S21, 1822 e ¡823* p. 1 4 5 .
6. Cf. M o e m a Parente Augel, Visitantes estrangeiros..., p. 129 c 1 4 6 .
7. Arquivo Municipal de Salvador, Livro de Posturas Municipais, fl. 9 1 / 9 3 .
8. Maria G r a h a m , nascida em 1 7 8 5 , era filha do almirante inglês George Dundas. E m 1808,
acompanhou o pai às índias, onde escreveu sua primeira narrativa de viagem. Casada com
T h o m a s G r a h a m , capitão da M a r i n h a , visitou depois a Itália e veio ao Brasil com o navio-
escola Dóris, comandado por seu marido, c o m o professora dos aprendizes de marinheiro.
Apud: M o e m a Parente Augel, Visitantes estrangeiros..., p. 6 2 - 6 4 .

9 . J . Wetherell, Brasil. Apontamentos sobre a Bahia..., p. 9 9 - 1 0 0 . Nascido em 1 8 2 2 , o inglês


Wetherell veio para a Bahia c o m o comerciante. Graças à amizade com o cônsul inglês da
época, foi nomeado vice-cônsul honorário. E m 1 8 5 7 , de volta à Inglaterra, entrou para o
corpo diplomático, mas por pouco t e m p o . N o m e a d o vice-cônsul na Província da Paraíba,
morreu no ano seguinte. A p u d : M o e m a Parente Augel, Visitantes estrangeiros..., p. 8 2 ; Léon
Bourdon, Lettres familières et fragments du journal intime. Mes sottises quotidiennes, de
Ferdinand Denis à Bahia (1816-1819), p. 17; Daniel P. Kidder, Reminiscências de viagens
e permanência no Brasil compreendendo notícias históricas e geográficas do Império e das
diversas províncias, v. I I , p. 7.

10. Arquivo Municipal de Salvador, Livro de Posturas Municipais, posturas 3 1 , 4 6 e 4 8 , fl. 22


e seguintes.
11. D r . Latteaux, A travers le Brésil. Au pays de For et des diamants, p. 8 2 .
12. Afonso Ruy de Souza, " A importância do bairro da C o n c e i ç ã o da Praia no século X V I I I " .
13. Cf. M o e m a Parente Augel, Visitantes estrangeiros..., p. 1 4 7 .
14. Manoel Q u e r i n o , " A cadeirinha de arruar", p. 1 0 2 - 1 0 4 ; Frederico G . Edelweiss, "A ser-
pentina e a cadeirinha de arruar".
1 5 . Xavier Marques, O feiticeiro, p. 6 1 .
16. Idem, ibidem, p. 7 0 . C f . também Waldir Freitas de Oliveira, Antônio de Lacerda, p. 47.
17. Diógenes Rebouças & Godofredo Filho, Salvador da Bahia de Todos os Santos no século
XIX.
18. Katia M . de Queirós Mattoso, Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX,
p. 1 6 9 - 1 7 9 .
19. Robert Avé-Lallcmant, Viagem pelo Norte do Brasil..., v. 1, p. 2 0 .
20. Arquivo do Estado da Bahia, Presidência da Província, Série Recenseamentos, Quadro de
população do 2 1 ° quarteirão do Curato da Sé, 1 8 5 5 . Inspetor Eduardo Firmino Sdva.
2 1 . Arquivo do Estado da Bahia, Presidência da Província, Série Qualificação de Votantes,
maço 2 . 8 0 8 (Curato da Sé, 1 8 6 2 ) .
2 2 . E m 1 8 6 2 , a paróquia da Sé estava dividida cm 25 circunscrições e abrigava 1.329 cida-
dãos com direito a voto. Deixando-se de lado os 2 1 7 negociantes, os 2 5 que viviam de
rendas c os 71 "proprietários", restavam 3 4 6 pessoas ( 2 6 % ) , ligadas às profissões liberais,
ao funcionalismo e aos empregos públicos. O s artesãos r
t C S a O S r e
P ^ntava
r
m 50,4o/ dos cidadãos
o

2 3 . A r r i v e M u n i c i p a l de Salvador, Livro de Posturas Municipais.


2 4 . J . W ctherell. BraszL Apontamentos sobre a Bahia..., p. i _ 9 2 0

2 5 . Afonso R u y do Souza, ^ària política e administrativa da cidade do W J


2 6 . I. W e t h e r e l l , Brasil Apontamentos sobre a Bahia..., p. 2 0 ' " P
< ^

27. Afonso R u v de Souza, História política e administrativa da cidade do Salvador p 5 6 3

2 8 . ^ « v o M u n l a p d de Salvador, Livro de Posturas Municipais, postura 3 9 , fl. B e postura

2 9 . J . W e t h e r e l l , Brasil. Apontamentos sobre a Bahia..., p. 5 9 .

3 0 . José Álvares do Amaral, Resumo cronológico e noticioso da Província da Bahia desde o seu
descobrimento em 1500.

5 1 . Afonso R u y de Souza, História política e administrativa da cidade do Salvador, p. 582.


3 2 . C f . Livro I V , capítulo 1 4 .

3 3 . Arquivo M u n i c i p a l de Salvador, Livro de Posturas Municipais, postura 134 de 6 de julho


de 1 8 5 0 , fl. 1 0 2 v - 1 0 3 .

3 4 . Ibidem, fl. 8 1 - 9 3 .

3 5 . Gustav Beyer, "Ligeiras notas de viagem do Rio de Janeiro à capitania de São Paullo, no
Brasil, no verão de 1 8 1 3 . . . " , p . 2 7 5 .

3 6 . Maurício Lamberg, O Brasil. A terra e a gente, p. 177.

3 7 . Léon B o u r d o n , Lettres familières..., p. 18.

3 8 . L . F . de T o l l e n a r e , Notas dominicais..., p. 2 9 7 .

3 9 . Marieta Alves, Pequeno guia das igrejas da Bahia - Igreja do Bonfim.

4 0 . João Maurício Rugendas, Viagem pitoresca através do Brasil, p. 52.

4 1 . Oscar Canstatt, Brasil. A terra e a gente, 187U p. 2 5 1 - 2 5 2 .


4 2 . J . Wetherell, Brasil. Apontamentos sobre a Bahia..., p. 3 2 - 3 3 .
4 3 . C f . croquis executados pelo Serviço de Arquitetura do Património Artístico e Cultural da
Bahia. ^ „
4 4 . A. Ronzi, " C e n a s da vida baiana. As minhas amáveis vizinhas quando eu morava
p. 1 0 3 .
4 5 . Oscar Canstatt, Brasil. A terra e a gente, 1871, p. 2 4 8 - 2 4 9 .
4 6 . Hildcrgardcs Viana, A Bahia jã foi assim, p. 1 3 - 1 6 , 2 1 - 2 4 e 1 - 6 . ^
4 7 . Arquivo do Estado da Bahia, Seção Judiciária, Série Inventários (maços), ano -
tário 9/7179. j p raguaçu
c a

4 8 . inventário post mortem de D. Teresa Clara do N » ^ » ^ bisneta Adalgisa


(falecida em 1 8 8 2 ) . Documento consultado graças a gent
Moniz de Aragão. M a t t o s o > « U m estudo
4 9 . Cf. Livro III. consagrado à famíh-, e t a m M « J ^ J ^ d e Todos os Santos no século
quantitativo de estrutura socai: a c.dade do balvaflor,
XIX. Primeiras abordagens, primeiros resultados .
BAHIA, SÉCULO X I X

5 0 . C f . Charles Expilly, Les femmes et les mœurs du Brésil p. 1 4 8 .


5 1 . Maria G r a h a m , Diário de uma viagem ao Brasil..., p. 1 4 8 .

5 2 . Thaïes de Azevedo, Namoro, religião e poder, p. 1 2 3 .

5 3 . A. Dugrivel, Des bords de la Saône à la baie de San Salvador ou promenade sentimentale


France et au Brésil p. 3 5 8 .
5 4 . O s c a r Canstatt, Brasil. A terra e a gente, 1871, p. 2 7 2 .
5 5 . Apud: M o e m a Parente Augel, Visitantes estrangeiros..., p. 2 3 9 .
5 6 . Katia M . de Queirós M a t t o s o , Bahia: cronologia, 1750-1930.

5 7 . Maria de Azevedo Brandão, Propriedade e uso do solo em Salvador. Ainda em 1 9 5 0 , 4 4 %


das casas e imóveis de Salvador estavam construídos em terrenos foreiros, geralmente
pertencentes a instituições religiosas. A ordem dos Beneditinos é proprietária de grande
parte dos terrenos da cidade, recebendo até hoje o foro pela sua utilização

5 8 . Luís V i a n a F i l h o , A sabinada; F . W . O . M o r t o n , The Conservative Révolution..., p. 3 4 3 - 3 7 5 .

5 9 . Pierre Verger, Flux et reflux de la traite des nègres..., p. 3 2 8 - 3 5 0 (ed. brasileira: Fluxo e refluxo
do tráfego de escravos...); J o s é Carlos Ferreira, "As insurreições dos africanos na Bahia";
Eduardo Caldas de B r i t o , "Levantes de pretos na B a h i a " ; J J . Reis, "A elite baiana face aos
movimentos sociais. Bahia, 1 8 2 4 — 1 8 4 0 " .

6 0 . Etienne Ignacio Brazil, " O s males"; J J . Reis, Slave Rébellion in Brazil... (ed. brasileira:
Rebelião escrava no Brasil...). C f . Livro V , capítulo 2 3 .

6 1 . Pierre Verger, Flux et reflux de la traite des nègres..., p. 329—330 (ed. brasileira: Fluxo e refluxo
do tráfego de escravos...). V e r t a m b é m Arquivo Municipal de Salvador, Livro de Posturas
Municipais, postura 7 0 , fl. 3 8 - 3 9 .

6 2 . Arquivo Municipal de Salvador, Livro de Posturas Municipais, postura 6 9 , fl. 3 7 .


6 3 . Katia M . de Queirós M a t t o s o , " O consulado francês na Bahia em 1 8 2 4 " , p. 2 1 3 .
6 4 . Louis Chevalier, Classes laborieuses et classes dangereuses, p. 5 6 6 .
6 5 . Luís Henrique Dias Tavares, A Independência do Brasil na Bahia.
6 6 . Katia M . de Queirós M a t t o s o , "Sociedade e conjuntura na Bahia...".
6 7 . J . J . Reis, "A elite baiana face aos movimentos sociais...", p. 3 4 3 - 3 7 0 .
6 8 . Arquivo do Estado da Bahia, Presidência da Província, Correspondência dos Presidentes
da província com o Ministério do Império, anos 1 8 2 7 - 1 8 3 5 .
6 9 . Fala do presidente da Província (Álvaro T i b é r i o de Moncorvo Lima), 1856, p. 8 5 .
7 0 . Cf. Livro V I I , capítulo 2 1 .
7 1 . Afonso Ruy de Souza, História da Câmara Municipal da cidade de Salvador, p. 314.
7 2 . Idem, ibidem. Ver Falado presidente da Província (Barão H o m e m de Mello), 1878.

NOTAS DO CAPÍTULO 2 5

1. Cf. Livro IV, capítulos 16 c 17.


2. Pinto de Aguiar, Notas sobre o enigma baiano.
3 . Peter Eisemberg, Modernização sem mudança. A indústria açucareira em Pernambuco, I84(h
1910, p. 51 (tabela 9 ) .
4 . Francisco Marques de Goes Calmon, Vida econômico-financeira da Bahia. Nascido em
Salvador em 1 8 7 4 o antnr

s o b n n h o - n e t o d o marquês de Abrantes, foi educado r,™ ^ G


° e s C a l m
<>n,
ques de Araújo G o e s , j o sobrenome adotou Estudou
c u ,4 ^ m a t e r n
°' I n
° c ê n c i o

voltou à Bahia, onde foi professor no ginásio do EsJZ ^ **** ( I 8 9


°-1894) e
o escritório d c advocacia de seu tio. E m r e a s fl " s ! 2f * ^
as de c o n t r o l a d o r do B a n c o da Bahia e do Banco Agrícola Em Eîo"""'
E c o n ô m i c o da B a h i a , d o qual foi presidente E m 1 9 1 2 foi n a ° ^ ° "co
ZT ^
l e m z o u B a

para presidir o C o n s e l h o Fiscal da Caixa E c o n ô m i c a A J Í


era presidente da O r d e m dos Advogados da Bahia foi e ei o f A î' ^
Faleceu e m 1 9 3 2 . ' °' ° S d e i t o v e r
n ^ o r do Estado.

5. R ó m u l o de A l m e i d a , Traços da história econômica da Bahia...


6 . C f . Livro I I , c a p í t u l o 6 .

7. Fala d o presidente da Província (Herculano Ferreira Penna), 1 8 6 0 , p. 6 3 .


8 . M a n u e l J e s u í n o Ferreira, A Província da Bahia, p. 7 7 - 8 2 .

9 . C f . Livro I I , capítulo 6 .

10. V . A . Argollo Ferrão, " A B a h i a agrícola: zonas climatéricas", p. 9 1 - 9 8 .

1 1 . Francisco V i c e n t e V i a n a , Memória sobre o Estado da Bahia, p. 4 1 9 - 5 6 0 .

1 2 . R ó m u l o de A l m e i d a , Traços da história econômica da Bahia..., p. 9 - 1 0 . Observe-se, no


e n t a n t o , q u e e m 1 8 5 1 e 1 8 5 2 foram exportadas 1 9 . 4 9 9 arrobas de cacau, e que em 1887
e 1 8 8 8 essa exportação subira para 2 3 3 . 8 9 6 arrobas. Entre essas datas, o cacau passou de
0 , 4 % para 9 , 4 % das exportações da Bahia. Eduardo Paes Machado & Eliene Simone S.
Oliveira, " C a c a u na B a h i a " , p. 1 0 .

13. R ó m u l o de Almeida, Traços da história econômica da Bahia..., p. 7 - 8 ; Eul-Soo Pang, O En-


genho Central de Bom Jardim..., p. 2 5 - 2 7 ; Ubiratan Castro de Araújo, "A Bahia no século
X I X " , p. 6 7 - 6 9 .
14. Estudos básicos para o projeto agropecuário do Recôncavo, p. 4 7 0 ; Katia M. de Queirós
M a t t o s o , Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX, p. 4 7 .

15. Idem, ibidem. C f . igualmente o Livro I I , capítulo 6.


16. Segundo M . Perraud, engenheiro agrônomo que trabalhou na África com solos
tes, haveria três etapas de desgaste: a partir do segundo ano de plantação o
j j • A~ xc\ -, anos há empobrecimento
cm 5 0 % ; n o 1 2 ano ocorre nova queda e depois de 3 0 a òl anos na
o
, , b

total. Katia M . de Queirós Mattoso, Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado


XIX p 3 9
17. Johann B. von Spix & Karl Friedrich Phillip von M a r t h « . >4través da M * £
Wanderley de Araújo Pinho, História de um engenho do Recôncavo, p£3*.£
O Maraués deAbranter, Pala do presidente da Província (João Mauríc.o Wanderl y>,
p. 7 5 ; Manuel Jesuíno Ferreira, A província da Bahia,^ p. 6 / -
18. Stuart B. Schwartz, "Free labor in a slave economy...".
19. Katia M . de Queirós Mattoso, Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado

2 0 . José Wanderley de Araújo Pinho, História de um engenho do Recôncavo, p. 3 1 0 - 3 1 1 .

2 1 . Eul-Soo Paxtg. O Engenho Central de Bom Jardim..., p. 57.


704 BAHIA, SÉCULO XIX

2 2 . Idem, ibidem, p. 5 1 .
2 3 . R J . D . Flory, Bahian Society..., p. 1 7 4 - 1 7 5 .
2 4 . Idem, ibidem, p. 1 7 2 .
2 5 . Idem, ibidem, p. 1 8 1 .
2 6 . André João Antonil, Cultura e opulência do Brasil.., p. 1 8 2 - 1 8 5 .
2 7 . R J . D . Flor>', Bahian Society..., p. 1 7 5 - 1 7 6 e 1 9 1 - 1 9 2 .

2 8 . Silza Fraga Costa Borba, Industrialização e exportação do fumo na Bahia 1870-1910


p. 1 2 - 1 6 . ' ***

2 9 . Arquivo do Estado da Bahia, Presidência da Província, Agricultura, Indústria e Comércio


Fábricas: 1 8 3 9 - 1 8 8 9 (Documentos manuscritos, relatórios). Apud: Silza Fraga Costa Borba'
Industrialização e exportação..., p. 3 8 .

3 0 . Silza Fraga Costa Borba, Industrialização e exportação..., p. 3 8 .

3 1 . Rómulo dc Almeida, Traços da história econômica da Bahia..., p. 13.

3 2 . Euclides da Cunha, Os sertões, p. 7 - 8 .


3 3 . Cf. Livro I, capítulo 4 .
3 4 . Thaies de Azevedo, Povoamento da cidade do Salvador, p. 2 7 8 - 2 8 0 .

35- Estudos básicos para o projeto agropecuário do Recôncavo, p. 4 9 6 .

3 6 . Luiz dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, v. 1, p. 1 2 7 - 1 6 0 .

3 7 . Francisco Vicente Viana, Memória sobre o Estado da Bahia, p. 4 1 9 - 4 6 0 .

3 8 . Ubiratan Castro dc Araújo, "A Bahia no século X I X " , p. 6 6 , tabela 5 . 1 .


3 9 . Rómulo de Almeida, Traços da história econômica da Bahia..., p. 1 1 .
4 0 . Idem, ibidem, p. 1 1 ; Francisco Vicente Viana, Memória sobre o Estado da Bahia, p. 4 1 9 -
460.
4 1 . Rómulo de Almeida, Traços da história econômica da Bahia..., p. 10.
4 2 . Francisco Vicente Viana, Memória sobre o Estado da Bahia, p. 4 1 9 - 5 6 0 .

4 3 . Idem, ibidem.

NOTAS DO CAPÍTULO 2 6

1. Essa descrição se baseia em João Capistrano de Abreu, Caminhos e povoamento do Brasik


Felisberto Firmo de Oliveira Freyre, História territorial do Brasil v. 1 : Bahia, Sergipe e Espírito
Santo.
2. Liberale, de Castro Carreira, História financeira e orçamentária do Imperiodo B r a s
' 1
^
a sua fundação-, Joaquim Wanderley de Araújo Pinho, "A viação na Bahia", p. 132-4 .
Lindinalva Simões, As estradas de ferro do Recôncavo.
3. Eul-Soo Pang, O Engenho Central de Bom Jardim..., p. 3 9 - 4 0 .
4. Cf. Livros IV e V.
5. Pierre Verger. Flux et reflux de la traite des nègres..., p. 61-218 (ed. brasileira: °' F l w c

refluxo do tráfego d, escravos...); Mariera Alves, "O comércio marítimo e alguns «J » 1

do século XVIII na Bahia"; Catherine Lugar, The Merchant Community of balvaao ....
p. 6 6 - 1 3 2 .
6. C a t h e r i n e Lugar, The Merchant Community ofSalv^
Bretanha e o inicio da modernização no Brasif,£ P
" ^ Graham, Grã-

7. T â n i a Penido M o n t e i r o , Portugueses na Bahia..., p. i 0 8 e 112-117

8. Francisco V i c e n t e Viana, Memória sobre o Estado da Bahia, p. , 6 7 - 1 7 0


9 . 1 h o m a s L.ndiey, Narrativa de uma viagem ao Brasil, p. 1 1 . 7

10. Amado E . B . M o u c h e z , Les côtes du Brésil, p. 5 2 .

1 1 . Pedro Agostinho, Embarcações do Recôncavo: um estudo de origens.

12. A primeira concessão para a abertura de uma linha de navegação regular foi obtida em
1 8 3 6 por J o ã o D i o g o Sturtz, que a transmitiu a Diogo Asthley et Cie. Em 1847, Z
bandada a C o m p a n h i a do B o n f i m , encarregada da navegação do interior da baía até o forte
de V a l e n ç a . E m 1 8 5 2 , por iniciativa do negociante Antônio Pedroso de Albuquerque, foi
tundada a C o m p a n h i a Santa Cruz, destinada a fazer a navegação costeira de Maceió', ao
norte, até Caravelas, n o sul. E m 1 8 6 2 , as duas companhias se fundiram sob o nome de
C o m p a n h i a Baiana de Navegação a Vapor. Cf. Katia M . de Queirós Mattoso, Bahia: a cidade
do Salvador e seu mercado no século XIX, p. 7 3 .

1 3 . Idem, ibidem, p. 7 3 - 7 4 .

1 4 . Idem, ibidem, p. 2 5 3 - 2 6 1 .

15. T h o m a s Lindley, Narrativa de uma viagem ao Brasil p. 160.

1 6 . Celso Spinola, " P o r t o s d o Estado da Bahia", p. 1 6 5 - 1 7 0 .


17. A n t o n i o Alves C â m a r a , A Bahia de Todos os Santos com relação aos melhoramentos de seu
porto, p. 4 2 .
18. Rita de Cássia S a n t a n a de Carvalho Rosado, Oporto de Salvador, 1854-1891, p. 48.

19. Idem, ibidem, p. 4 9 - 5 3 .

2 0 . C f . Livro I V , capítulos 16 e 17-


2 1 . Rita de Cássia Santana de Carvalho Rosado, O porto de Salvador, p. 116.

2 2 . Idem, ibidem, p. 115- .


2 3 . Código comercial do Império do Brasil ( 1 8 5 0 ) , Título III, " P ^ ° ^
Francisco Marques de Goes C a l m o n , Vida econômico-financeira da Baby-

2 4 . Rita de Cássia Santana de Carvalho Rosado, Oporto de Salvador, p. 41

2 5 . Idem, ibidem, p. 6 5 .

Na IAS DO CAPÍTULO 27 ^ trialização

, . José Luís Sampaio Pamponet, Evolução de f ^ f ^ ^ S T '" "


brasileira. A Companhia Empório Industrial do Norte, 18J ^ , i n f 1 a ç ão
2. M i r c c a B u e s c u , 300 anos de inflação. Este autor d i z q u e n o C f . jgU almente o
se agravou, mas o problema foi sanado nos últimos anos P
Livro III, capítulo 1 0 . «cravos, enquanto ferra-
3 . Mais de 2 5 % do t o , , das importações eram „
mentas e matérias-primas representavam, " J ™ ^ 3 5
E s s e s bens de produto e P

Almeida, Traços da história econômica da Bahu 1» g 6 % 4-l875,


e m l 8 7

sentaram 1 1 , 7 % do valor dos bens importados em


Bahia, S e c t i o XDC

8 , 2 % cm 1 8 7 5 - 1 8 7 6 e 8 , 3 % cm 1 8 7 6 - 1 8 7 7 . Pode-se perceber que. nesse aspecto „ -


houve progresso significativo no decorrer do século. 1

4 . R ó m u l o de Almeida, Traços da história econômica da Bahia..., p, 16.


5. Kat;a M . dc Queirós Mattoso, Testamentos de escravos..., p. 33—38.
6 . Falado presidente da Província (Francisco Gonçalves Marlins), 1 8 5 0 , p 55
7. R ó m u l o dc Almeida. Traços da história económica da Bahia..., p, 15.

8. A m o i d Wildbergcr, Notícia histórica da Wildberger e Cia., 1829-1842. Nenhum liv


contábil dessas casas dc comercio e de seus caixeiros-viajantes foi encontrado, impossibi
litando o esclarecimento dessas práticas comerciais.
9. Cf. Livro V I I , capítulo 2 9 .

10. Código Comercial do Império do Brasil ( 1 8 5 0 ) . In: Francisco Marques de Goes Calmon
Vida econômico-financcira da Bahia, p. 2 5 3 .
11. Luiz dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, v. 1, p. 5 6 .
12. Catherine Lugar, The Merchant Community of Salvador, p. 1 3 4 .
13. Luiz dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, v. 1, p. 5 6 .
14. Catherine Lugar, The Merchant Community of Salvador, p. 1 7 4 - 1 7 5 .
15. Idem, ibidem, p. 177.
16. Idem, ibidem, p. 1 7 8 - 1 7 9 .
17. Mário Augusto da Silva Santos, O comércio português na Bahia, 1870-1970.
18. Hildcrgardcs Viana, A Bahia já foi assim, p. 7 4 - 8 3 .
19. Catherine Lugar, 'The Merchant Community of Salvador, p. 1 3 7 - 1 4 1 .
2 0 . Cf. Livro V I I , capítulo 3 1 .

2 1 . As primeiras sociedades de seguros datam de 1 8 0 8 , quando foram fundadas, na Bahia, três


companhias: C o m e r c i o M a r í t i m o , B o a F é e C o n c e i t o Público. Em 1 8 4 0 foi fundada a
Associação Comercial da Bahia, reunindo banqueiros, comerciantes nacionais e estrangei-
ros, corretores, leiloeiros e outros, c o m o objetivo de promover o comércio e a agricultura.
Essa associação foi um grupo de pressão contra princípios demasiadamente conservadores,
c o m o se depreende dos estudos de E . W . Riddings J r . , The Bahian CommercialAssociation,
1840-1891: A Pressure Group in an Underdeveloped Area e de Mário Augusto da Silva
Santos, A Associação Comercial da Bahia na Primeira República: um grupo depressão. Em
1 8 6 0 , duas companhias de seguros prestavam serviços aos comerciantes baianos: a Bom
Conceito (seguros marítimos) c a Interesse Público, ambas fundadas depois dc 1850.
Finalmente, cm 1 8 6 8 , foi fundada a Companhia Comercial dc Seguros Marítimos e
I errestres, com 3 9 % dc seu capital nas mãos dc comerciantes portugueses. Apud: M no
Augusto da Silva Santos, O comércio português na Bahia, 1870-1970, p. 8 6 - 8 7 .

2 2 . Lester G . Telser, " C o n c u r r e n c e " , p. 1 4 3 .


2 3 . Mário Augusto da Silva Santos, O comércio português na Bahia, 1870-1970, Arno«.
Wildbcrger. Noticia histórica da Wildbcrger e Cia., 1829-1842-, Wcsiphalcn, Bach oi w< .
Centenário 1828-1 <J28.
2 4 . Código Comercial do Império do Brasil ( 1 8 5 0 ) . Título V I I I . art. 1 9 1 - 2 2 0 . T í t u l o _ «£•
2 2 1 - 2 2 5 e T í t u l o V, art. 1 2 1 - 1 3 9 . In: Francisco Marques de Goes Calmon, Vi
nòmico-ftnanceira da Bahia.
NOTAS

26. Lu,z dos Santos V i l h e n a . A Bahia no século XVIII, v. 1 p 1 2 9

: . Hlldergardes V i a n a . A Bahia já foi assim.

28. Katia M . de Q u e i r ó s M a t t o s o " O s preços na Bahia de 1 7 5 0 a 1 9 3 0 " D 170 R k


S i m o n s e n . Historia econômica do Brasil, p. 4 4 2 - 4 6 3 ' Roberto

29. H a m i l t o n de M a t t o s M o n t e i r o , A W „ * insurgente (1850-1890), p 4 .


5 7 2

30. O livro de P i n t o de Aguiar, Bancos no Brasil Colonial é uma excelente análi A „•


de organização dos estabelecimentos oficiais de crédito. ^ P
° l í ü C a

31. I d e m , ibidem, p. 20—27.

32. Idem, i b i d e m , p. 9 - 3 8 .

3 3 . D o r i v a l T e i x e i r a Vieira, O problema monetário brasileiro, p. 1 1 - 1 3 .

34. O p r i m e i r o B a n c o d o Brasil foi fundado c o m o banco particular, com capital de 1.200


c o n t o s de réis e c o m o privilégio de emitir moeda por um prazo de vinte anos. A subscrição
do capital, n o e n t a n t o , foi difícil e só se c o m p l e t o u em 1 8 1 7 . Quatro anos depois, o capital
havia atingido 2 . 2 3 5 c o n t o s , mas a m a i o r parte dos recursos havia sido fornecida pelo
governo, principal acionista. E m 1 8 2 9 o banco foi liquidado, quando as atividades do
governo c o r r e s p o n d i a m a 9 5 , 4 % das emissões, destinadas a cobrir, sobretudo, as despesas
do E s t a d o . C o m o os dados disponíveis são de âmbito nacional, não é possível discriminar
a situação da B a h i a . M i r c e a B u e s c u , Evolução econômica do Brasil p. 1 1 0 - 1 1 1 .

35. Dorival T e i x e i r a V i e i r a , O problema monetário brasileiro, p. 1 1 - 1 3 .


3 6 . T h a i e s de Azevedo & E . Q . Vieira Lins, História do Banco da Bahia, 1858-1958, p. 57.
3 7 . Francisco M a r q u e s de G o e s C a l m o n , Vida econômico-financeira da Bahia, p. 6 3 .

3 8 . T h a i e s de Azevedo & E . Q . Vieira Lins, História do Banco da Bahia, p. 6 1 - 6 2 .


39. Francisco M a r q u e s de G o e s C a l m o n , Vida econômico-financeira da Bahia, p. 7 1 - 7 2 .

4 0 . T h a i e s de Azevedo & E . Q . Vieira Lins, História do Banco da Bahia, p. 6 4 .


4 1 . Francisco M a r q u e s de G o e s C a l m o n , Vida econômico-financeira da Bahia, p. 7 2 .
42. C ó d i g o C o m e r c i a l do I m p é r i o do Brasil ( 1 8 5 0 ) . Título X V I , cap. I e II. In: Francisco
Marques de G o e s C a l m o n , Vida econômico-financeira da Bahia.

43. Ibidem, T í t u l o X I e T í t u l o X I I .
44. Ibidem, T í t u l o X I I I e T í t u l o X I V .
45. Mircea Buescu, Evolução econômica do Brasil p. 1 4 5 - 1 4 7 .
j o ï l \%á | « (ed brasileira: A formação
4 6 . Celso Furtado, La formation économique du Brésil p. 1 3 4 - U ? iea. »
econômica do Brasil).
4 7 . Dorival Teixeira Vieira, O problema monetário brasileiro, p. 3 0 - 3 1 -
4 8 . Mircea Buescu, 300 anos de inflação, p. 2 1 3 - 2 2 6 ; Katia M. de Queirós Mattoso,
ços na Bahia dc 1 7 5 0 a 1 9 3 0 " , p. 1 8 1 - 1 8 2 .
4 9 . Dorival Teixeira Vieira, O problema monetário brasileiro, p. 5 6 - 5 7 .

5 0 . Idem, ibidem, p. 5 7 .
5 1 . Mircea Buescu, Evolução econômica do Brasil p. 146.
5 2 . Dorival Teixeira Vieira, O problema monetário brasileiro, p. 6 1 - 7 .
708 BAHIA, SÉCULO X I X

5 3 . Arquivo Nacional, Ministério do Império (depois do Interior), Graças Honoríficas- R e

querimentos e Propostas; D o c u m e n t o s Biográficos, 1 8 0 8 - 1 8 9 1 , Dossiê Antonio Pedroso


de Albuquerque.

5 4 . Luiz Affonso d'Escragnole, " O V i s c o n d e de C a m a m u e o derrame de moedas falsas de


c o b r e na B a h i a " , v. 4 , p. 1 4 3 - 1 6 9 .
5 5 . Dorival Teixeira Vieira, O problema monetário brasileiro* p. 6 4 .

5 6 . Katia M . de Queirós M a t t o s o , Bahia: cronologia, 1759-1960, p. 8 3 v .

5 7 . Luiz Affonso d'Escragnole, " O V i s c o n d e de C a m a m u . . . " , p. 1 4 7 .

5 8 . Arquivo M u n i c i p a l de Salvador, Livro de Posturas Municipais, postura n° 1 0 3 , fl. 62

5 9 . Katia M . de Queirós M a t t o s o , " O s preços na Bahia de 1 7 5 0 a 1 9 3 0 " , p. 1 8 1 - 1 8 2 . É claro


que o estudo da evolução dos preços dos produtos alimentares não deveria ser o único
p o n t o de apoio para uma análise da c o n j u n t u r a e c o n ô m i c a . M a s foi a única série que pude
montar, graças à d o c u m e n t a ç ã o encontrada n o Hospital da Misericórdia. C f . Livro VII
capítulo 2 9 .

6 0 . Série baseada em dados que constam dos " P r o p o s t o s e relativos apresentados à Assembléia
Geral Legislativa pelos M i n i s t r o s e Secretários de Estado dos Negócios da Fazenda, Rio de
Janeiro, anos 1 8 5 2 a 1 8 8 8 " , do Ministério das Finanças. C f . Ubiratan Castro de Araújo,
"A Bahia n o século X I X " , p. 4 8 , nota 6 1 .

6 1 . O s autores observam que, se os registros dissessem respeito a todo o interior da Província,


mercadorias c o m o o algodão e os couros poderiam dar uma pista para que se estimasse o
valor total da produção dessas regiões. C h a m a m a atenção t a m b é m para o fato de que os
valores relativos às importações são igualmente incompletos, pois, na maior parte das
vezes, não m e n c i o n a m os dados concernentes ao c o m é r c i o interprovincial de exportação
e de importação, b e m c o m o o c o m é r c i o feito por navegação de cabotagem nos diferentes
portos do litoral baiano. Ubiratan Castro de A r a ú j o , " A Bahia no século X I X " , p. 49-

6 2 . Katia M . de Queirós M a t t o s o , " O s preços na Bahia de 1 7 5 0 a 1 9 3 0 " , p. 1 7 7 .


6 3 . Maria Antonieta C a m p o s T o u r i n h o , O Imperial Instituto Baiano de Agricultura.

NOTAS DO CAPÍTULO 2 8

1. Celso Furtado, La formation é c o n o m i q u e du Brésil, p. 1 0 1 - 1 0 6 (ed. brasileira: A formação


econômica do Brasil).
2. Henrique Jorge Buckingham Lyra, Colonos e colônias, p. 1 4 3 - 1 5 1 .
3 . Katia M . de Queirós M a t t o s o e Angelina N o b r e Rolim Garcez, "Introdução ao estudo dos
mecanismos de formação da propriedade n o eixo Ilhéus-Itabuna ( 1 8 9 0 - 1 9 3 0 ) .
4 . Bahia Província. Leis e Decretos. Lei n° 6 0 1 de 1 8 5 0 , artigo 2.
5 . Cf. Livro II, capítulo 8.
6. Eul-Soo Pang, O Engenho Central de Bom Jardim..., p. 5 2 .
7. Fala do presidente da Província (João Lins Cansação de Sinimbu), 1857, p. 8 8 .
8. Fala do presidente da Província (Barão de São Lourenço), 1 8 7 0 , p. 5 4 .
9 . Eul-Soo Pang, O Engenho Central de Bom Jardim..., p. 5 4 - 5 5 -
10. Arquivo do Estado da Bahia, Presidência da Província, Juízes (capital, maço 1 8 5 5 - 1
Escravos (maço 2 8 8 6 ) .
709

12. C f . Livro V I I , capítulo 3 1 .

13. C f . Livro V I , capítulo 2 4 .

14. Francisco M a r q u e s de G o e s C a i m o n , Vida econôm o.f . . , lC lnanceira

1 5. C f . Livro V I , capítulo 2 4 . Pnanceira da Bahia, p. 1 1 5 - 1 1 6 .

16. Katia M . de Queirós M a t t o s o , Bahia- a rid*d» A c i ,


p. 2 7 6 - 2 8 2 . C t d a d e d o S a l v a d
° ' < « • mercado no século XIX,

1 " . Almanaque, 1 8 6 0 , p. 3 4 6 - 3 4 7 .

18. Maria H e l e n a Flexor, Oficiais mecânicos da cidade do Salvador.


19. Luiz dos Santos V i l h e n a , A Bahia no século XVIII v 1 n ?4o osi -, . ,
4 6 1 - 4 6 4 . J o s é Francisco da Silva Lima, A Bahia de hà 66anos * '

2 0 . Arquivo M u n i c i p a l de Salvador, Série Escritura de Escravos, Livro 6 6 . 1 8 (1870), fl. 204.

2 1
1849 ° Í V d
° E S t a d
° d a B a h Í a
' P r e S Í d ê n d a d a P r o v í n c i a
- V i a
9 ã o e Obras Públicas, 1 8 4 7 -

22. I b i d e m , Relatório da J u n t a Administrativa de Obras Públicas ( 1 8 4 9 ) .


2 3 . Arquivo M u n i c i p a l de Salvador, Escritura de Escravos, Livros 7 4 . 2 (1854), fl 123 e 78 5
( 1 8 7 0 ) , fl. 6 2 v - 6 3 .

24. Ibidem Livros 6 6 . 1 5 , 6 6 . 1 6 , 6 6 . 2 1 , 7 4 . 4 , 8 2 . 1 5 , 8 2 . 1 7 e 8 2 . 1 8 .


25. C f . Livro V I I , capítulo 3 1 .

2 6 . Arquivo M u n i c i p a l de Salvador, Escritura de Escravos, Livro 7 5 . 9 (1857), fl. 9.


2 7 . I b i d e m , Livro 8 2 . 1 8 ( 1 8 7 2 ) , fl. 9 .

28. Ibidem, Livro 7 4 . 4 , fl. 1 0 2 .


29. Para a Revolução dos Alfaiates, deve-se 1er Afonso Ruy de Souza, A primeira revolução social
brasileiras Katia M . de Queirós Mattoso, "Conjoncture et société au Brésil..."; Luís Henrique
Dias Tavares, História da sedição intentada na Bahia em 1798 (A Conspiração dos Alfaia-
tes). Para a Revolta dos Males, recomendo as obras de Pierre Verger {Flux et reflux de la
traite des nègres...) e de J o ã o José Reis {Rebelião escrava no Brasil).
30. Para o c o n j u n t o de relações entre livres e escravos, ver Katia M . de Queirós Mattoso, Ser
escravo no Brasil p. 2 1 9 - 2 3 7 .

NOTAS DO CAPÍTULO 2 9
1. Pierre Vilar, "Remarques sur l'histoire des prix", p. 1 1 0 - 1 1 1 .
2. Num estudo anterior, sugeri que os assalariados correspondessem a IU
urrJ£^ ^?"
5 % e 150/, do mercado de trabalho de Salvador. Katia M . de Q ^ ^ J J « .
cidade do Salvador e seu mercado no século XIX, p. 2 9 0 . Trata-se, agora, de nova abo oag

3 . Katia M . de Queirós Mattoso. "A carta de alforria...", p. 152 e 157 1

4 . Carlos B. Ott. Formação e evolução étnica da cidade do ^ £ ^


5. Segui, neste caso. as recomendações feitas por Jean Marczevvs ,- H i s t o i r e quantitative
quantitativa do Brasil, realizado cm Paris cm outubro de U/i.
du Brésil de 1800 à 1930, p. 2 0 1 - 2 0 2 .
710 BAHIA, SÉCULO X I X

6. Colhi cm duas fontes os dados referentes aos salários dos oficiais, suboficiais e soldados d
Polícia: para o período 1 8 3 5 - 1 8 5 0 , usei os orçamentos de despesas da Província public *
dos nas Leis e resoluções da Assembléia Provincial da Bahia; para o período 1 8 5 1 - 1 8 8 9
os anexos estatísticos das Falas dos presidentes da Província. Estas últimas também '
ram de fonte para os salários dos funcionários civis.

7. Earl J . H a m i l t o n , Money, priées and wages in Valencia, Aragon and Navarre, 1351-1^nn
War and Priées in Spahi, 1651-1800. ' C

8. Ernest Labrousse, Esquisse du mouvement des prix et des revenus en France au XVIII siècle e

e La crise de l'économie française à la fin de l'Ancien Régime et au début de la Révolution


9. V i t o r i n o Magalhães G o d i n h o , Prix et monnaies au Portugal: 1750-1850.

10. O trabalho de Gadiel Perruci, "Les prix à Recife ( 1 7 9 0 - 1 8 5 0 ) " , p. 2 1 9 - 2 2 9 , se refere a


um período distinto do que estamos estudando.

11. Harold B . J o h n s o n J r . , " M o n e y and prices in R i o de J a n e i r o ( 1 7 6 0 - 1 8 2 0 ) " , p. 3 9 - 5 3 .

12. M i n h a crítica sobre a utilização da fórmula de Fisher pode ser lida no volume publicado
pelo C N R S sobre L'Histoire quantitative du Brésil. O trabalho de R. R o m a n o , ao qual se
refere J o h n s o n Jr., se chama Cuestiones de historia económica latinoamericana, Caracas, 1966.
13- Eulália Maria Lahmeyer L o b o , " E v o l u t i o n des prix et du coût de la vie à Rio de Janeiro
(1820-1930)".
14. Idem, ibidem, p. 2 0 3 - 2 0 4 .

15. Harold B . J o h n s o n J r . , " M o n e y and prices in R i o de Janeiro ( 1 7 6 0 - 1 8 2 0 ) " , p. 4 0 .


16. C o m esse título, o I B M E C p u b l i c o u , em 1 9 7 8 , u m trabalho em dois volumes, que preten-
de ser uma história demográfica e e c o n ô m i c a completa do R i o de Janeiro entre 1820 e
1 9 4 0 . A autora, Lahmeyer L o b o , reapresentou então análises apresentadas em 1971 — e
recebidas c o m reservas — n o c o l ó q u i o franco-brasileiro sobre L'Histoire quantitative du
Brésil. Tratava-se, talvez, de uma primeira abordagem, mas ela foi mantida na publicação
de 1 9 7 8 . N o que diz respeito à credibilidade de suas fontes, problema não levantado em
1 9 7 1 , a autora, n u m estilo vago, declara que entre as opiniões de Hamilton e de Labrousse
"não adotamos posição rígida, inclinando-nos simplesmente diante dos dados existentes
(v. I, p. 7 ) . Especifica ter utilizado os arquivos da Misericórdia até 1 8 4 6 , os da Ordem
Terceira de São Francisco da Penitência de 1 8 2 7 a 1 9 3 0 (para os casos da carne fresca,
toucinho, algodão e óleo de baleia), os do Jornal do Commercio entre 1 8 4 0 e 1870 eos a
Revista do Mercado entre 1 8 7 0 e 1 8 9 0 . A "superposição de fontes" (leia-se comparação) s
pôde ser feita, por conseguinte, entre 1 8 4 0 e 1 8 4 6 , mesmo assim para apenas duasdeltó
os arquivos da Misericórdia e os do Jornal do Commercio. Não me parece que o pro
tenha sido solucionado.
17. Mircea Bucscu, 300 anos de inflação, p. 1 2 4 , 1 4 4 e 175. Para formar suas p r ó p r i a s ^ ?
de preços referentes ao Rio de Janeiro ( 1 8 2 6 - 1 8 8 0 ) , este autor utilizou os j o r n a i s M . ^
do Rio de Janeiro c Jornal do Commercio ( 1 8 2 6 - 1 8 5 0 ) ejomaldo Commercio ( 1 8 5 0 - ^
e 1 8 7 0 - 1 8 8 0 ) — cm suma, as mesmas fontes utilizadas por Lahmeyer Lobo para a s e g ^
da metade do século X I X . Bucscu considera ter escolhido preços de atacado (op. est., p.

18. Cf. Livro V I , capítulo 2 6 .


19. Cf. Livro V I , capítulo 2 4 . . alizado)
2 0 . Montamos nossa série utilizando a média de preços do açúcar branco (nao cnst ^
comprado mensalmente pela Santa Casa de Misericórdia. Note-se, no entanto, q
1 50 e 1870 encontramos duas qualidades d, açúcar br»n
c.ahzados por preços que traziam diferença de a,é í % A5 ' T " ^ * ' « «>™«-
v e

des de açúcar branco passaram a ser consignada, n o " ^ r ^ !. '


8 7 0

segunda), cristalizado (de primeira, segundai e t i ) Sa • l"^ * " " ^ «


os upos extremos, a diferença de preços g e r a l m e n t e t i n g i a l ^ °" " « E

ou C a r g a s (litoral sul da P ^ S ^ ^

A farinha de trigo passou a ser consumida regularmente em 17S1 ™,


nenhum registro sobre sua qualidade. Em , ^ 0 0 começou^
menção naconal . Nao levamos seu preço em conta, pois a Santa Casa continuou
comprar farmha que nao traz.a essa especificação. Transformei arrobas, tonéis e sacos em
quilos.
Desde 1751 consumia-se regularmente óleo e azeite, não só na preparação de alimentos,
mas também nas lâmpadas que iluminavam a bela igreja da Misericórdia. Até 1879 o
azeite era comprado em canastras e depois desse ano em litros (transformamos as canastras
em litros). Não levamos em conta as vendas realizadas por 'vasilhas', pois não temos a
correspondência dessa medida. A qualidade do óleo nunca aparece, mas entre 1919 e 1930
a origem passou a ser mencionada: Espanha e Portugal.

O consumo de bacalhau, prato preferido dos portugueses, era muito irregular até 1790, o
que se explica pelo consumo de garoupa, fornecida até essa data pelos entrepostos de Porto
Seguro e de Santa Cruz (litoral sul da Capitania). Como aparecem apenas os preços de
compra desse peixe salgado, sem menção de qualidade, não podemos saber por que ele foi
substituído por bacalhau importado de Portugal, comprado em arrobas até 1818 e em
barricas (cada um com 4,5 arrobas) depois dessa data. A partir de 1871 o quilo substituiu
as arrobas, mas a venda em barricas continuou até 1927. Transformei tudo em quilos,
bascando-me em informações de Frederico Edelweiss e Luiz Henrique Dias Tavares. O
primeiro foi, entre 1915 e 1940, um importante comerciante de Salvador. O segundo e
filho de um comerciante atacadista de Nazaré das Farinhas, no Recôncavo.
Utilizado na conservação de alimentos, o vinagre era consumido em larga escala. Impor-
tado de Portugal até os primeiros anos do século XIX (apesar da concurrencia do produto
fabricado no Rio de janeiro), era vendido em canadas até maio de 1874, em barrí i
4 8 0 litros) de 1875 a 1881 e de 1915 a 1921, e em litros nos outros anos. Nao há menção
sobre a qualidade do produto, mas apenas referência a 'vinagre tinto , ra
boa', mas sempre depois de 1 875. Desse ano em diante, foram comprados vinagredc I t a »
gal c do Rio dc Janeiro, mas com os mesmos preços. Construí, por isso, p
até então o consumo desse produ

Diante da dificuldade dc construir séries longas nesse ^ ^ ¿ ^ ¿ ¿ # 0 disponível,


levando em conca todos os tipos de manteiga que constarn^a doa » ^
O chi (chinês) era consumido de forma muito ' ^ ' ^ ^ ^ em libras; depois,
de 1843 e entre 1920 e 1930. Até 1873, o peso desse produto p
BAHIA, SÉCULO XIX

em quilos. Tinha, sem dúvida, origem estrangeira. Mas talvez viesse também do Sul do
Brasil, onde ele era cultivado na segunda metade do século XIX.
Desde a época colonial a farinha de mandioca tinha diversas qualidades, o que evidente-
mente determinava diferentes preços. Tudo indica, no entanto, que a Santa Casa consu-
mia apenas dois tipos de farinha, a fina e a grossa (também chamada 'de guerra', por ser
mais resistente ao tempo). Ricos e pobres geralmente consumiam os dois tipos, acompa-
nhando outros pratos ou na forma de pirão. Como a documentação muitas vezes não
registra a qualidade da farinha comprada, calculamos uma média que leva em conta todas
as compras feitas pela Santa Casa. Comercializada em alqueires (até 1874), em litros e em
sacos (cada um com 80 litros), foi o único produto cujo peso conservamos em litros, por
falta de informação precisa sobre a conversão em quilos. Em alguns mercados de Salvador
essa medida continua a ser usada, correspondendo ao consumo de um adulto em cada
período de dois dias.
Até 1796, a carne fresca tinha seu preço fixado pelas autoridades, mas isso não impediu
grandes oscilações. Não havia critério para definir a qualidade, pois se considerava carne
boa aquela que não tinha osso. Ignoramos como ela era vendida ao público, mas a Santa
Casa comprava peças inteiras, cotadas em arrobas até 1875 e, depois, em quilos.

Existem diversas qualidades de feijão, mas o mulatinho era (e é) o mais consumido. A


documentação da Santa Casa raramente fornecia a qualidade do feijão comprado (essa
informação não apareceu nenhuma vez antes de 1873). Decidi, por isso, tirar uma média
dos preços dessa mercadoria. Até 1879, o peso do feijão era expresso em alqueire; depois
passou para litro (cerca de 800 gramas) e quilo. Converti tudo para quilo.
Nenhuma referência existe sobre a qualidade do arroz antes de 1862. Desde então, e até
1868, há o 'arroz do Maranhão', comprado pela Santa Casa, em média, 3 5 % mais barato
que os demais. Entre 1870 e 1890, encontram-se duas outras qualidades, o arroz pilado e
o arroz com casca. Como o preço do primeiro estava mais próximo dos demais preços, não
levamos em conta, em nossa média, o arroz com casca. Os pesos eram expressos em
alqueire até junho de 1874 e, desde então, em sacos (60 quilos) ou em quilos.

A carne-seca (ou carne do Sertão) era muito pouco consumida no hospital da Misericórdia
antes de 1801. Entretanto, a partir de 1802 o consumo dessa mercadoria se tornou
regular, sem que encontrássemos a razão. O peso era expresso em arrobas até 1874 e em
quilos depois. Somente em 1919, 1920 e 1921 aparece uma carne-seca 'de primeira,
mesmo assim de forma muito esporádica. De grande consumo popular, ela era oriunda da
região do rio da Prata c do Rio Grande do Sul.
O toucinho, que substituía muitas vezes a manteiga na confecção de numerosos pratos, era
regularmente consumido na Santa Casa desde 1750. Até 1862 não apareceu nenhuma
referencia sobre as diferentes qualidades do produto, mas depois surgiu o 'toucinho da
terra', 10% mais barato que os demais. Não o levamos cm consideração em nossos cálcu-
los. Os pesos eram expressos cm arrobas até 1874 e depois em quilos.
O hospital da Santa Casa era grande consumidor de galinhas, alimento de todos os
doentes, inclusive os escravos. Era o produto que apresentava a maior variedade de preços
num mesmo mês. Na época (1750-1930), as galinhas eram vendidas por unidade, como
acontecia com as frutas c legumes.
O preço do sal era fixado pelas autoridades. Mesmo assim, não escapava a oscilações,
embora menores do que as que atingiam os demais produtos. Até 1874, o sal era comer-
cializado por alqueire, depois por litro (191 m , C .
tudo para quilo, na base de um quilo por lit ; ConTí^"°" *° ° - — ' 8 Htr S C o

úmca qualidade constante entre 1 7 5 0 e 1 9 3 0 a


P e n a s
° P^ço do sal grosso,

"7T ^
Ó l e o de baleia e óleo de rícino nrnr.,„™ - .•

n o t u r n a . O primeiro ligura ^ ^ n ^ ^ T ^ 3

foi substituído pelo segundo, cujo consumo d«2 £ S ^ í 1 7 5 0 3


^ ^ d o

Casa a d o t o u então a iluminação a gás, e r T o n conti^ ' ^ * 1 8 7 0


' A W

outros usos, ate 1 9 2 8 . N o s l i s c L ^ ^ Z Z ^ Z t * "»


2 1 . Hddegardes V i a n a , >4 S « > & ^ , ^ r e c e i t ã S j p n _ 2 3

::. Pierre Verger, Noticias da Bahia - 1850, p. 1 6 0 - 1 6 4 .

2 3 . C f . Katia M a t t o s o , Bahia, Salvador e seu mercado no século XIX, p. 3 2 1 - 3 3 8 .


2 4 . C f . Livro V I , capítulo 2 7 .

2 5 . C f . Livro I I , capítulo 7.

2 6 . M i r c e a B u e s c u , Evolução econômica do Brasil, p. 1 6 9 - 1 7 1 .


2 7 . C f . Livro V I , capítulo 2 7 .

2 8 . Francisco Marques de G o e s C a l m o n , Vida econômico-financeira da Bahia, p. 6 0 - 7 3 ; Rómulo


de A l m e i d a , Traços da história econômica da Bahia..., p. 17.

2 9 . C f . Livro V I , capítulo 2 7 .

3 0 . G a s t o n I m b e r t , Des mouvements de longue durée Kondratieff, p. 5 4 - 6 1 .

3 1 . J o s é Francisco da Silva L i m a , A Bahia de há 66 anos, p. 1 0 3 .

NOTAS DO CAPITULO 3 0

1. C a i o Prado J r . , História econômica do Brasil, p. 3 4 - 3 7 ; Formação do Brasil contemporâneo,


p. 8 4 - 1 0 2 ; R o b e r t o S i m o n s e n , História econômica do Brasil, p. 132, 3 1 4 - 3 1 5 , 3 2 0 ; Stuart
B . Schwartz, Segredos internos..., p. 40—47.
2 . C a i o Prado J r . , Formação do Brasil contemporâneo, p. 2 7 9 - 2 8 3 .

3 . Fernando de Azevedo, Canaviais e engenhos..., p. 8 6 - 8 7 .


4 . Roland M o u s n i e r , Les hiérarchies sociales de 1450 à nos jours, p. 1 1 - 1 4 .
5 . R a y m u n d o Faoro está entre os autores que só distinguem duas classes na população livre,
a dos produtores agrícolas e a dos comerciantes: "Entre os dois setores das f ^ ? ™ '
vãmente privilegiadas - a classe lucrativa e a classe proprietária - havia | » h < P j W
mais ou menos dependente, segundo o momento econômico, nao redu ^
um tipo único c imóvel de sociedade." (Os donos do poder, v. 1, p. /• r d a n t e s e

a existência de outras categorias sociais (lavradores no campo, pcquen > _ ^ d i n â m i c a

artesãos na cidade), Faoro sustenta que essas camadas eram flutuantes, prop ^
colonial (p. 2 2 0 ) . E m compensação, é preciso íVisar que, ma.s recentenun ^ ^
Fernando Urícochea descartam esses estereótipos fazendo ^
presente na sociedade brasileira e o pluralismo de suas f j W J J ^ ^ ^ u d o b r e t

Imperial, p. 5 7 - 8 0 ) . N o caso da Bahia. R J . D . Flory,


a pesquisadores norte-americano» (como D . G . Smith. »mar ( A j R

Susan Soeiro, Patricia Aufderbeide, K W . editos, utilizei ampla-


Russel W o o d e F.W.C). M o r t o n ) , CUJOS estudos, Irequentement
mente.
BAHIA, SÉCULO XIX

6. Katia M. de Queirós Mattoso, Ser escravo no Brasil, p. 2 2 2 - 2 2 3 .


7. Thaïes de Azevedo, "Classes sociais e grupos de prestígio", p. 1 0 5 - 1 2 0 .
8. Citado por Vitorino Magalhães Godinho, A estrutura da antiga sociedade portuguesa, p. 185.
9. A.H. de Oliveira Marques, A sociedade medieval portuguesa, p. 3 - 4 .
10. Vitorino Magalhães Godinho, A estrutura da antiga sociedade portuguesa, p. 84.
11. Idem, ibidem, p. 8 2 - 8 3 .
12. Jacques Heers, Esclaves et domestiques au moyen-age dans le monde méditerannéen, p. 92.
13. Para o papel desempenhado por 'cristãos-novos', deve-se 1er os trabalhos de Anita Novinsky,
citados na bibliografia, e Stuart B. Schwartz, Segredos internos..., p. 2 0 9 - 2 4 6 .
14. Andrée Mansuy Diniz Silva, "Une voie de conaissance pour l'histoire de la Société portugaise
au VIII siècle: les micro biographies (Sources-Méthode-Etude de cas)".
e

15. R J . D . Floty, Bahian Society..., p. 102; Stuart B. Schwartz, Sugar Plantations..., p. 271 (ed.
bras.: Segredos internos..., p. 2 2 8 ) .
16. Ver a esse respeito o belíssimo livro de Evaldo Cabral de Melo, O nome e o sangue. Uma
fraude genealógica no Pernambuco colonial.
17- Stuart B. Schwartz, Segredos internos..., p. 230.
18. Idem, ibidem, p. 5 7 - 7 3 .
19- Redfield, R. Linton & M.J. Herskovits, "Outline for the study of acculturation".
20. Roger Bastide, "La causalité externe et la causalité interne dans l'explication sociologique".
21. Stuart B. Schwartz, Segredos internos..., p. 2 5 3 - 2 5 7 .
22. R J . D . Flory, Bahian Society..., p. 4 0 - 4 1 . Schwartz acredita que esta historiadora norte-
americana se enganou ao atribuir quinze fazendeiros para cada engenho. Propõe baixar
este número para oito. Stuart B. Schwartz, Segredos internos..., nota 4 1 , cap. 11, p. 435-
23- Stuart B. Schwartz, Segredos internos..., p. 2 6 9 - 2 7 4 .
24. Idem, ibidem, p. 2 6 1 - 2 6 4 .
25. Idem, ibidem, p. 1 2 2 - 1 4 3 .
26. Paul Descamps, Histoire sociale du Portugal, p. 2 3 3 - 2 4 0 .
27. Idem, ibidem, p. 227.
28. Essa descrição está baseada em R J . D . Flory, Bahian Society..., p. 158-216, capítulo con-
sagrado aos agricultores de tabaco e de produtos de subsistência, e em Jean-Baptiste Nardi,
O fumo no Brasil Colónia.
29. Luiz dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, v. 1, p. I—III.
30. Idem, ibidem, p. 5 5 - 5 6 .
31. Katia M. de Queirós Mattoso, "Para uma metodologia cm história social..."ï Katia M. de
Queirós Mattoso, Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX, p. 161-167; István
Jancso, Contradições, tensões, conflito..., p. 4 3 - 4 9 , utilizou a minha classificação.
32. Luiz dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, v. 2, p. 333-354.
33. Idem, ibidem, v. 1, p. 2 4 8 - 2 6 1 .
34. Do ponto de vista salarial, apenas o arcebispo deveria ser colocado aqui, mas critérios de
prestígio social e de poder possibilitam incluir também membros do alto clero secu ar,
como, por exemplo, os cónegos.
3 5 . T r a b a l h a n d o c o m capital próprio ou não, no século X V I I I os « a n d e s n , ™ !
sobretudo representantes de casas portuguesas. Mas tudo i n Z ^ e Z cXleT
mou uma classe local de grandes comerciantes independentes da Metrópole. Ao on r do
dos demais grupos, as operações destes ultrapassavam o comércio local, integrando- à
esfera do grande c o m e r ã o m t c r n a a o n a l . Eles desempenhavam também o papel de ra-
cistas, c o m a n d a n d o auvidades de importação-exportação (eram também proprietários de
navios), o transporte de mercadorias e a produção de açúcar. Cf. Luiz dos Santos Vilhena
A Bahia no século XVIII, v. 1, p. 5 6 ; Francisco Marques de Goes Calmon, Vida econòmicò-
financetra da Bahia, p. 4 0 - 4 1 . C f . t a m b é m Livro V I I , capítulo 3 1 .

3 6 . Luiz dos S a n t o s V i l h e n a , A Bahia no século XVIII, v. 2, p. 3 3 3 - 3 5 4 .

3 7 . Katia M . de Q u e i r ó s M a t t o s o , " A carta de alforria...", p. 1 4 9 - 1 6 3 e Etre esclave au Brésil


p. 2 0 8 - 2 2 7 (ed. brasileira: Ser escravo no Brasil). Cf. também Livro V I I , capítulo 3 1 .

3 8 . J . J . Reis, Slave Rebellion in Brazil..., p. 2 1 e 2 5 (ed. brasileira: Rebelião escrava no Brasil...).

3 9 . M a r i a H e l e n a Flexor, Oficiais mecânicos da cidade do Salvador, p. 3 1 .

4 0 . Luiz dos S a n t o s V i l h e n a , A Bahia no século XVIII, v. 1, p. 3 3 4 - 3 4 4 .

NOTAS DO CAPITULO 3 1

1. A n t ô n i o D . da Silva, Coleção de legislação portuguesa, 1750-1762 (alvará de 9 de novem-


bro de 1 7 5 4 , p. 3 4 2 - 3 4 3 ) .

2. A n t ô n i o D . da Silva, Coleção de legislação portuguesa, 1802-1810 (alvará de 17 de junho de


1 8 0 9 , p. 7 5 4 - 7 5 8 ) ; Leis e resoluções da Assembléia Provincial da Bahia, 1835-1841 (Lei
n° 8 6 , de 4 de agosto de 1 8 3 8 , p. 2 8 9 ) ; Província da Bahia - Regulamentos (regulamen-
to sobre selo de heranças e legados de 2 0 de agosto de 1 8 6 1 , v. 1, p. 1 3 0 - 1 4 3 ) ; .b.dem
(regulamento de 6 de agosto de 1 8 7 7 para a arrecadação de taxas de heranças e legados,
p. 3 - 1 9 ) .
3. Arquivo do Estado da Bahia, Secretaria da Fazenda, Contadoria da Caixa Provmaal,
R e l i s t r o de T e s t a m e n t o s , v. 1 ( 1 8 3 7 - 1 8 4 0 ) , v. I A ( 1 8 4 1 - 1 8 4 2 , ^ 2 (1842-1843)^3
( 1 8 4 3 - 1 8 4 4 ) , v. 4 ( 1 8 4 4 - 1 8 4 5 ) , v. 5 ( 1 8 4 5 - 1 8 4 6 ) v 6 ( 1 8 4 7 - 1 8 8 , v. 7
g
8 -
v. 12 ( 1 8 5 6 ) , v. 13 ( 1 8 6 4 - 1 8 6 5 ) , v. 13A ( 1 8 6 2 - 1 8 6 6 ) , v 14 ( 1 8 6 5 - 8 6 8 ) , v. 15 (1877),
v. 16 ( 1 8 7 7 - 1 8 8 0 ) , v. 17 ( 1 8 8 0 - 1 8 8 3 ) , v. 18 ( 1 8 8 4 - 1 8 8 7 ) , v. 2 0 ( 1 8 8 7 - 1 8 9 0 ) .

4 . Cf. Livro I I I , capítulo 1 0 .


5. Cf. Livro V , capítulo 2 0 , sobre a fortuna do clero na cidade de Salvado, ^

6 . Arquivo do Estado da Bahia, Seção judiciária, ^^ggj ~ e o n o r Go-

™ ]± ^^^S^^TLd
M a r i a L

T
(46:206);' 1864 (4/985), Ana
mes ( 1 0 : 1 7 5 ) ; 1861 (2/975), Leopoldina Chaves Monte.ro 4 6 : ^ — ( 3 /

Vi as-Boas tíittencoun v/^-'-"> —- •

Barreto ( 1 4 : 0 4 3 ) . . 2 5
7. M i r c e a B u e s c u , 300 anos de inflação, p . 2 2 3 . Oliver O n o d v , A inflação brasileira, . ? •
— 1 ^ 8 " l 4 3 de reis ( l o u y .
8 . C i t e m o s , c o m o e x e m p l o , A n a d e Souza Queirós e C a s t r o , c o m . , R o c h a >

5 / 6 7 6 ) ; Eulália M a r i a d e A n d r a d e Reis, c o m 1 2 6 : 0 9 8 ( 1 8 3 0 : 4 / 7 6 5 ) , Helena C


"16 BAHIA, SÉCULO X I X

com 1 2 6 : 3 5 8 ( 1 8 5 5 : 1/892); Carolina Luísa Monteiro Carteado com 7 3 7 5 3 ( I R f S


4 / 7 1 5 0 ) ; Catharina T u v o , com 9 9 : 7 7 8 ( 1 8 7 4 : 4 / 1 0 1 9 ) ; Elisa Pinto'da Silva Gomes com
1 3 7 : 4 6 8 ( 1 8 8 2 : 6 / 4 7 2 2 ) ; Josefa Maria Leite, com 3 0 3 : 8 9 7 ( 1 8 8 5 : 11/7221)
9. Katia M . de Queirós Mattoso, Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX
p. 2 8 6 . '

10. Arquivo do Estado da Bahia, Seção Judiciária, Série Inventários (maços), Luiz Ferrar
( 1 8 8 1 : 1/1096) e Hermelina da Costa Ferraro ( 1 8 8 4 : 7 / 2 1 4 5 ) .
11. Ibidem, Justo Ariani ( 1 8 8 3 : 3 / 4 7 3 5 ) e Maria Lopes Ariani ( 1 8 8 4 : 7 / 2 1 4 5 ) .
12. Ibidem, C o e l h o Messeder ( 1 8 6 9 : 4 / 4 6 1 5 ) .

13. Código Comercial do Império do Brasil ( 1 8 5 0 ) , cap. V I , art. 9 9 a 1 1 8 , p. 2 5 1 - 2 5 3

14. Arquivo do Estado da Bahia, Seção Judiciária, Série Inventários (maços), Bernardo Rodrigues
Ferreira ( 1 8 3 1 : 3 / 7 7 1 ) , J o ã o Ladislau Japiassu Figueiredo e Mello ( 1 8 8 5 : 1/4745) Luiz e

Martins Alves ( 1 8 8 6 : 1 / 1 0 9 2 ) .

15. Ibidem, José Egídio N a b u c o ( 1 8 7 6 : 5 / 1 0 3 3 ) .


16. Ibidem, M a n o e l G o m e s de Figueiredo ( 1 8 2 8 : 1/761).
17. Ibidem, Francisco J o s é da Silva ( 1 8 1 5 : 6 / 6 9 4 ) .
18. Ibidem, M a n o e l Carlos G o m e s ( 1 8 0 3 : 8 / 6 6 4 ) .
19. Ibidem, Francisco Simões O n o v o ( 1 8 4 0 : 7 / 8 1 2 ) .
2 0 . Ibidem, A n t ô n i o Gil Garcia Pacheco ( 1 8 4 5 : 1 1 / 8 3 1 ) .
2 1 . Condessa de Barral (Luiza Maria Portugal de Barros), Cartas a Suas Majestades, 1859-
1890, p. 3 5 3 .
2 2 . A.A.A. Bulcão Sobrinho, Titulares baianos- Barão de Cajaíba (Alexandre Gomes de Argolo
Ferrão, 1 8 0 0 - 1 8 7 0 ) e Visconde de Itaparica (Alexandre G o m e s de Argolo Ferrão, 1821—
1870).

2 3 . Arquivo do Estado da Bahia, Seção Judiciária, Série Inventários (maços), Antônio Martins
de Oliveira Neves ( 1 8 8 3 : 2 / 7 2 1 6 ) .
2 4 . Ibidem, J o ã o Nunes ( 1 8 0 8 : 5 / 6 7 3 ) .
2 5 . Ibidem, João D o r m e n t e Antunes ( 1 8 0 5 : 4 / 6 6 8 ) .
2 6 . Ibidem, Francisco Dias da Silva ( 1 8 3 0 : 6 / 7 6 7 ) .
2 7 . Ibidem, Manoel da Paixão Favilla ( 1 8 4 1 : 6 / 8 1 8 ) .
2 8 . Ibidem, Miguel Affonso Rodrigues ( 1 8 4 5 , 10/919).
2 9 . Ibidem, Manoel T i m ó t e o Pereira ( 1 8 5 7 : 2/896).
3 0 . Ibidem, Inocêncio Manoel da Purificação ( 1 8 8 2 : 3/3820).
3 1 . Ibidem, José Pereira de Almeida ( 1 8 1 1 : 1/684) e José Fernandes Grillo (1817: 8/699).
3 2 . O s dados e comentários que se seguem são extraídos de Katia M . de Queirós Mattoso.
Herbert S. Klein e Stanley L. Engcrman, "Trends and patterns in the priées o f manumitte
slaves: Bahia, 1 8 1 9 - 1 8 8 8 " .
3 3 . Herbert S. Klein, " T h e internai slave trade in X I X t h
Century Brazil: a study o f slave
importations into Rio de Janeiro in 1 8 5 2 " .
3 4 . Arquivo do Estado da Bahia, Seção Judiciária, Série Inventários (maços), ^ " . i ° m n

cisco de Macedo Ma g a r ã o ( 1 8 7 2 : 6/3679) e Eufrosina do Couto e Silva ( 1 8 8 :


NOTAS

35. I b i d e m . E m i l i a n o M o r e i r a d e C a r v a l h o c Silva ( 1 8 7 4 : 1 / 1 0 2 0 ) .

36. I b i d e m , Miguel Ferreira Dias dos Santos ( 1 8 8 1 : 10/4720).

37. I b i d e m , M i g u e l A g o s t i n h o da C r u z ( 1 8 8 1 : 2 / 1 0 6 6 ) .

38. I b i d e m , M a n o e l A n t o n i o V a z da Cruz ( 1 8 8 1 : 1/2144).

39. Ibidem, J o a q u i n a Ana ( 1 8 8 1 : 1 0 / 4 8 3 3 ) .

40. Ibidem, Maria da Conceição ( 1 8 5 4 : 4/887).

41. I b i d e m , C y p r i a n o das C h a g a s ( 1 8 5 6 : 2 / 8 9 9 ) .

4 2 . I b i d e m , J o ã o F r a n c i s c o de A l m e i d a ( 1 8 8 5 : 4 / 8 9 2 ) .

43. Ibidem, B e n t o J o s é de Almeida ( 1 8 5 6 : 6/898).


BIBLIOGRAFIA

DOCUMENTOS MANUSCRITOS

I. Arquivo do Estado da Bahia


Seção histórica:

Fundo Presidência da Província

• Correspondência do Governo Provincial ( 1 8 2 3 - 1 8 2 6 ) , v. 6 7 5 e 6 7 6


Agricultura, indústria e comércio
• Géneros alimentícios ( 1 8 2 3 - 1 8 8 9 ) , maço 4 . 6 3 1
• Matadouro público ( 1 8 3 7 - 1 8 8 9 ) , maços 4 . 6 2 8 e 4 . 6 2 9
• Secas ( 1 8 2 3 - 1 8 8 9 ) , maços 1 . 6 0 7 e 1 . 6 0 8
• Celeiro público ( 1 8 0 6 - 1 8 8 7 ) , maços 1 . 6 0 9 , 1 . 6 1 0 e 1 . 6 1 1
• Mercado ( 1 8 5 3 - 1 8 8 9 ) , s/n -
• Feiras públicas ( 1 8 3 5 - 1 8 8 8 ) , s/n
• Epidemias ( 1 8 5 5 - 1 8 8 9 ) , s/n
Recenseamentos
• Correspondência, diretor do censo, comissão censitária, agente recenseador, maços 1 . 5 9 8
a 1.606 ( 1 8 5 1 - 1 8 7 6 ) .
• Censo ( 1 8 5 5 ) , maços 2 . 8 0 8 e 2 . 8 1 5
• Religião-vigários ( 1 8 2 4 ) , maço 5 . 2 1 3
• Escravos ( 1 8 2 3 - 1 8 8 6 ) , maços 2 . 8 8 3 a 2 . 8 9 5
Polícia
• Qualificação de votantes ( 1 8 4 8 - 1 8 7 4 ) , maços 2 . 8 0 7 , 2 . 8 0 8 , 2 . 8 1 0 , 2 . 8 1 4 , 2.815, 2.821,

2.822, 2.830
Viação e obras públicas
• O b r a * p ú b l i c a s ( 1 8 4 7 - 1 8 8 9 ) , d o c u m e n t o s avulsos
• R e g i s t r o s eclesiásticos de terras, 5 5 v. (Sant.ago do Iguapé, v. 4 . 7 1 2 )
• Secretaria da F a z e n d a , c o n t a d o r i a da Caixa P r o v . n c a l , Reg.stro de testamentos ( 1 8 3 7 -

1 8 9 1 ) , 2 1 v.
Seção judiciária: ( 1 8 0 5 - 1 8 9 0 ) , 6 4 v.
m s

• Livros de registro de testamen \ perfilhação, contratos de casamento ( 1 6 6 4 -


• Livros de notas c escrituras: cartas de airo v
1 9 1 4 ) , 1 . 1 0 0 v. _ , 8 9 ) , 1 T 1 5 inventários
n f t 0 8 8

• Inventários post morten ( 1 8 0 8 - 1 * * J ) .

719
720 BAHIA, SÉCULO X I X

2. Arquivo Municipal da Cidade do Salvador


Livro de posturas municipais ( 1 8 2 9 - 1 8 5 9 ) , livro n ° 1 1 9 . 5
Escritura de escravos ( 1 8 3 7 - 1 8 8 7 )
Celeiro público ( 1 7 9 3 - 1 7 9 5 . 1 8 0 5 - 1 8 0 6 e 1 8 1 3 )

3 . Arquivo da Santa Casa de Misericórdia


M a ç o s de despesa
• Tesoureiro da Casa ( 1 7 4 9 - 1 8 2 6 ) , 5 8 maços
• Tesoureiro do Cofre ( 1 7 4 9 - 1 8 2 6 ) , 17 maços
• Tesoureiro da Santa Casa ( 1 8 2 7 - 1 9 3 1 ) , 1 0 4 maços

4 . Arquivo do Colégio de Órfãos de São J o a q u i m .

M a ç o s de despesa ( 1 8 4 0 - 1 8 8 9 ) , 5 0 maços

5 . Arquivo Nacional do R i o de Janeiro

Correspondência do presidente da Província c o m o ministro do Império (depois do Inte-


rior) ( 1 8 2 4 - 1 8 8 9 ) , I J J 9 - 3 1 7 a I J J 9 - 3 5 5
Ministério do Império (depois do I n t e r i o r ) : graças honoríficas, requerimentos e propostas,
documentos biográficos ( 1 8 0 8 - 1 8 9 1 )
Guarda N a c i o n a l ( 1 8 6 9 - 1 9 1 0 ) , I G 13
Eleições ( 1 8 2 3 - 1 8 3 7 ) , I J J 5

JORNAIS
Idade douro do Brasil, ano 1 8 2 1
Gozem da Bahia, anos 1 8 3 0 , 1 8 3 2 , 1 8 8 0 - 1 8 8 9
O Baiano, ano 1 8 3 0
O Diário da Bahia, anos 1 8 3 5 , 1 8 7 1 - 1 9 0 0 (faltando anos 1 8 7 2 - 1 8 7 5 > 1 8 7 7 , 1878, 1882,
1883, 1886)
Jornal de Notícias, anos 1 8 8 3 - 1 8 8 9
Monitor, anos 1 8 7 6 - 1 8 8 1
Chronica Religiosa, 1 8 6 9 - 1 8 7 3
Semana Religiosa, ano I

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BIBLIOGRAFIA 747

WILDBERGER, Arnold. Noticia histórica da Wildberger e Cia., 1829-1842. Salvador: Tipo-


grafia Beneditina, 1942.
. Os presidentes da Província da Bahia. Salvador: Tipografia Beneditina, 1949
WILLEKE, V. Missões franciscanas no Brasil (1500-1975). Petrópolis: Vozes, 1974
WISNITZER, Arnold. Os judeus no Brasil colonial. São Paulo: Pioneira/USP, 1966
WRIGHT, Angus Lindsay. Market, Land and Class: Southern Bahia, Brazil, 1890-1940 The
University of Michigan, 1976 (tese de doutorado não publicada).

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Este livro foi impresso na cidade de Petrópolis,
em março de 1992, pela Editora Vozes Ltda.
* para a Editora Nova Fronteira do Rio de Janeiro.
O tipo usado no texto foi Garamond no corpo 11/14.
Os-fotolitos do miolo foram feitos pela Scritta Oficina Editorial,
e os da capa, pela Grafcolor Reproduções Gráficas.
O papel do miolo é pólen 70g,
c o da capa, cartão supremo 240g.

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giõcs c a Igreja, 6 cotidiano dos homens
que produziam e trocavam, preços e sa-
linos, o sistema de transporto, o merca-
do de trabalho numa sociedade-escravo-
crata, as hierarquias sociais, a organi-
zação dos poderes.
Por que Salvador, capital da Colô-
nia, c sua g-ande Província experimen-
taram uma situação de letargia, dc raízes
antigas, mas ainda palpável na segunda
metade do século XX? Desde quando a
opulência, testemunhada por igrejas
barrocas c palacetes, se tornou coisa do
passado? Desvendar isso que Rómulo de
Almeida chamou dc "enigma baiano" é a
idéia central que percorre todo o traba-
lho, cm desafio à notável erudição histo-
riográfica e à meticulosidade da autora.

Katia dc Queirós Mattoso è professora


titular dc História do Brasil na Universi-
dade dc Paris IV - Sorbonnc. Foi pro-
fessora/ias universidades Católica e Fe-
deral S? Bahia e professora mirante nas
universidades de Minnesota c Colunv
bial nos Es\los Unidos. Além de nu-
merosos artigos, i autora de vinos li-
vros, cure os.qüais Presença fim**m
mûVt mèk% democrJrico baiano de 1789
( 1969). Bahia: a cidade do Salvador e seu
mercado no século XIX (1978) « Ser es-
cravo no Brasil (publicado originalmente
c n francês cm 1979, em terceira ed.c»o
no Brasil e cm segunda edição cm língua

inglesa).
O r i g i n a r i a m e n t e t e s e de D o u t o r a d o de E s t a d o ,
a p r e s e n t a d a em 1 9 8 6 à Universidade de
Paris I V — S o r b o n n e , este texto teve a oportunidade
de s e r a n a l i s a d o p o r u m a b a n c a n a q u a l c o n s t a v a m
alguns dos mais ilustres h i s t o r i a d o r e s da F r a n ç a ,
como P i e r r e C h a u n u , E m m a n u e l Le Roy L a d u r i e ,
J^an-Marie Mayeur e François Crouzet. (...)
C o u b e - m e , e m b o r a m o d e s t a m e n t e , a h o n r a de
p a r t i c i p a r dessa c o m i s s ã o . (...) E aqui presto o meu
d e p o i m e n t o : a t e s e d e K a t i a M a t t o s o foi
minuciosamente examinada, durante cinco horas, e
a c l a m a d a , p o r unanimidade, como um trabalho
magistral, d a d o o seu r a r o nível de e x c e l ê n c i a .
Como c o r o l á r i o , e n u m a d e m o n s t r a ç ã o de que
cabe à U n i v e r s i d a d e a b s o r v e r os v a l o r e s e x p o n e n c i a i s
q u e a e l a se r e v e l a m , foi c r i a d a a c á t e d r a d e
História do B r a s i l em P a r i s I V — S o r b o n n e ,
cabendo a K a t i a de Queirós Mattoso o c u p a r
a sua p r i m e i r a regência como titular.

Maria Yedda Linhares


i V n í r s a o r a Catedrática * \ r H i s t ó r i a M o d e r n a e Contemporânea
i ' r . f , . « o r a Kmrrilu i l n U n i v r r s i < i n « l < - K n l t - r a l i i o R i o f l r J a n e i r o
(

E0IT0RA
NOVA"
FRONTEIRA

SEMPRE
UM BOM
LIVRÇ)

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