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Auto da Barca do Inferno

Cena Inicial
Comentários – O Diabo ordena ao Companheiro que prepare a barca para partir, uma vez que prevê a
chegada de muitos passageiros. Para tal, emprega amiúde termos técnicos de marinharia, mostrando
inquietação e pressa em partir, tal como se poderá verificar em cenas subsequentes. O clima é de festa.

FIDALGO – O Fidalgo socorre-se de uma falsa religiosidade para recuar a entrada na barca infernal.
Sobranceiro e confiante, dirige-se à Barca da Glória e tenta impor-se invocando a sua condição social. O
Anjo mostra-lhe que, em vida, fora tirano e desprezara o povo. De volta à Barca do Inferno quer voltar à
vida para ver, primeiro, a amante, depois a mulher. O Diabo, sarcástico, revela-lhe que ambas o
enganavam.

ONZENEIRO – O Onzeneiro morreu subitamente quando cobrava os dinheiros emprestados com o


respetivo juro de 11%. A usura levou-o à perdição. Não vale de nada dizer ao Diabo que não ficou com o
dinheiro para pagar ao barqueiro, nem ao Anjo, declarou que tem o bolsão vazio. A cobiça leva-o ao
ridículo de querer voltar ao mundo para trazer o dinheiro que lá deixara.

PARVO – Esta cena exprime a candura dos pobres de espírito na sua agressividade instintiva e injuriosa
contra o Diabo e os pecadores orgulhosos.

SAPATEIRO – Nesta cena privilegia-se a crítica à falsa religiosidade do Sapateiro, porque é nas práticas
religiosas que ele procura a salvação. Confessar-se, ouvir a missa, comungar e dar esmolas são atos
religiosos que só fazem alcançar o céu àqueles que levam uma vida honesta. Não era o caso do
Sapateiro.

FRADE – Este pensa que o hábito e a sua ligação a Deus (por ser membro do clero) o livravam do
Inferno. Por isso, apresenta-se com uma namorada a dançar e a cantar (tal como se faz na corte) e até
dá uma lição de esgrima ao Diabo. O silêncio do Anjo é sentença final do Frade que é ainda tripudiado
pelo Parvo. Ele tem como função mostrar a devassidão/depravação do Clero.

ALCOVITEIRA – A linguagem da Alcoviteira é um dos aspetos mais marcantes da personagem.


Diz ao Diabo tudo o que leva consigo (“a casa movediça”) no exercício do lenocínio. Tenta seduzir o
Anjo, utilizando uma linguagem melíflua que o importuna. Faz de si própria uma santa, vítima da
(in)justiça terrena que a mandava açoitar em praça pública como punição para o crime de tráfico de
raparigas. Nem o Clero escapa à crítica nesta cena (“cónegos da Sé”).

JUDEU – O Judeu é “persona non grata”: retratado como uma figura da sociedade economicamente
favorecida e estigmatizada por práticas religiosas diferentes das do cristianismo, merece o repúdio do
próprio Diabo, que não tem outro remédio senão levá-lo “à toa”.

CORREGEDOR e PROCURADOR – Estes são venais e merecem o Inferno. Representantes do Direito,


exerceram indignamente a sua profissão deixando-se corromper (comprar). O Corregedor omitiu ainda
ao confessor que roubara e o Procurador só soube pronunciar o nome de Deus (em vão) quando sentiu
perto a sentença de embarque no batel infernal.

ENFORCADO – Personagem que desconhece a religião cristã e que se deixou enganar pela lei humana
(Garcia Moniz).

QUATRO CAVALEIROS – Os cavaleiros perecem lutando pela expansão da fé cristã. Eles mereceram a
“paz eternal”.

[Gil Vicente consegue tornar o Auto numa peça teatral, dando unidade de ação através de um único
espaço e de duas personagens fixas " diabo e anjo".]

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