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1JOÃO 4,8
Resumo: As relações entre os cristãos, tanto nas chamadas comunidades originárias como
nas atuais, carregam marcas de muitas divergências. Tais circunstâncias divergentes, em
tese, não é um fator negativo. Afinal, os membros de um corpo são diversos e, no entanto,
formam uma unidade perfeitamente viável. O problema surge quando um membro ou
alguns membros se esquecem da necessária unidade ou julgam ser mais importantes do que
outros. Esse estudo tem como propósito demonstrar que a diversidade cristã jamais deveria
se transformar em conflito irracional impulsionado por fanatismos. Para tanto, essa reflexão
será norteada por dois textos bíblicos, Gn 1,26 mais especificamente os termos tselem e
demut e a 1Jo 4,8. O primeiro texto tem como objetivo salientar a origem comum de todos
os seres humanos, enquanto imagem e semelhança do Criador. O segundo texto irá iluminar
o primeiro, pois a similitude humana em relação a Deus não poderia se fundamentar numa
imagem fisiológica; não teria sentido, até porque Deus extrapola qualquer tentativa de
representá-Lo por imagem. Nesse ponto a 1 Jo 4,8 ao afirmar que Deus é amor deixa claro
que a semelhança humana em relação a Deus consiste exatamente na capacidade de amar.
O ser humano na medida que ama e é amado reflete a imagem e semelhança de Deus. Nesse
sentido, Jesus na sua entrega amorosa em favor da humanidade revelou a imagem mais
perfeita de Deus, pois amou plenamente e Deus é amor .
Palavras-chave: Relações; Diversidade; Amor; Imagem; Semelhança.
Introdução
Diante da afirmação de Deus Façamos o homem à nossa imagem, conforme
a nossa semelhança , uma primeira pergunta já se apresenta: Qual é a imagem de
Deus? Se o ser humano foi feito à imagem do Criador, como entender essa imagem?
Começando por uma via de exclusão, pode-se afirmar, que essa imagem não se refere
aos aspectos físicos do ser humano, e isso por duas principais razões: primeiro
porque Deus, na tradição judaica, não pode ser concebido ou representado de forma
adequada por algum tipo de imagem (SAULNIER, 2013, p. 674); segundo porque
cada ser humano tem particularidades no que se refere à sua imagem, cada um é
único, logo não teria sentido pensar essa imagem em termos fisiológicos.
Como entender então a afirmação de Gn 1,26 que o ser humano é imagem e
semelhança do Criador? O presente estudo propõe uma análise dos termos tselem e
1Mestre em Teologia bíblica pela Pontificia Università San Tommaso, Roma (2006). Doutorando em
Ciências da Religião (PUC Goiás). E-mail: josegeraldodegouveia@gmail.com.
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demut (imagem e semelhança), presentes nesse versículo 26 (FRANCISCO, 2015, p.
5) iluminando-os com o texto de 1Jo 4,8. Os termos mencionados, tselem e demut,
são normalmente traduzidos por imagem e semelhança, mas será que essa tradução
esgota a carga literária presente nesses termos? Essa pesquisa aponta que a imagem
e semelhança do ser humano em relação ao Criador encontram sua melhor
expressão à luz de 1Jo 4,8 quando afirma: Deus é amor . Se Deus é amor, e de fato
é, o ser humano se torna Sua imagem e semelhança na medida que ama. E nesse caso,
a diversidade humana se transforma em unidade de amor. Um corpo diverso,
formado por muitos membros, mas unidos no amor.
O uso do vocábulo tselem em Gn 1,26, ao que tudo indica, não foi por acaso. O
termo significa imagem, contudo, existem outras palavras na língua hebraica para
expressar a ideia de uma imagem. Por exemplo, a palavra pesel, usada para indicar
uma imagem esculpida; masekhah, para falar da imagem fundida em ouro ou cobre;
hamanim, que pode ser referência a pequenos objetos de pedra (DOUGLAS, 2007, p.
611). Além do mais, tselem procede de uma raiz que significa também sombra ou
algo indistinto (HOLLADAY, 2010, p. 435). Isso implica uma leitura mais ampla de
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Gn 1,26, pois, como visto, a palavra imagem (tselem) não permite uma vinculação do
ser humano como se fosse uma cópia de Deus.
Aqui é oportuno considerar que os termos tselem e demut são dois
substantivos sinônimos (STENDEBACH, 2007, p. 691). Dizer que esses termos
indicam em Gn 1,26 unicamente uma representação plástica sem o aspecto moral
ou espiritual é introduzir uma distinção estranha ao texto (SAULNIER, 2013, p.
674). De fato, sendo Deus espírito não faria sentido pensar sua imagem em termos
plásticos, nem o homem poderia ser imagem dele como se fosse um reflexo de sua
realidade.
A semelhança do homem e de Deus não vem de uma semelhança
natural e sobrenatural, nem da natureza espiritual do homem,
nem de sua forma física; vem de uma semelhança entre Deus e o
homem integral [...] Essa semelhança supõe, pois, no homem, uma
dignidade que Deus protege e da qual ele encarrega o homem de
defender (SAULNIER, 2013, p. 674-675).
Como na tradição bíblica não faz sentido procurar uma imagem física de
Deus, não se poderia concluir, portanto, que o ser humano fosse uma representação
imagética dele. Antes é preciso ter presente que Gn 1,26 faz uma afirmação teológica
ao expressar a similitude entre Deus e a humanidade.
Dados teologicamente significativos da recorrência de tselem se
encontram na proto-história de Gn 1,26ss. Em primeiro lugar, deve-
se ressaltar que todas as interpretações que querem encontrar a
semelhança do homem com Deus em sua alma espiritual e em suas
energias, como o intelecto e o livre-arbítrio, não esclarecem a
antropologia hebraica bíblica, que não conhece uma alma
espiritual ... O mesmo vale para a ideia de uma semelhança
exclusivamente corporal entre o homem e Deus (Tradução nossa
STENDEBACH, 2007, p. 689).
Pode-se dizer que Essa narrativa nos mostra a dignidade com que o homem
foi criado; ele é imagem e semelhança de Deus e corresponde ao modelo divino. O
relato evidencia a dignidade humana (CARRARA; GAMA, 2014, p. 29). Esse relato
de Gn 1,26 pode ser melhor entendido quando iluminado por outro texto bíblico:
1Jo 4,8.
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no amor, consequentemente ele reflete , de fato, sua similitude com Deus. O
contrário também acontece: quando nas suas relações o ser humano não se baseia
no amor (que é Deus), ele perde sua humanidade, isto é, sua semelhança com o
Criador. Acreditamos que a verdadeira face de Deus seja translúcida de ternura,
amor e compaixão (MAIA, 2011, p. 123). Aqui se encontra a verdadeira dignidade
humana.
É na relação amorosa que o ser humano pode ser entendido como imagem e
semelhança de Deus. Por isso, pensar a questão do ser humano como imagem de
Deus, seu criador, é pensar uma situação relacional, pois essa condição de imagem
pressupõe essa relação (MARCOLINO, 2020, p. 87).
Foi para nos amar que Deus nos criou. Por isso ele consiste em estar
amando: Deus é amor (1Jo 4,8.16). Ele sofre com o nosso
sofrimento e se faz solidário conosco, amando-nos e
impulsionando-nos pelos caminhos da salvação. Deus não sabe e
nem quer fazer outra coisa senão amar a sua criatura (MAIA, 2011,
p. 125).
A essência de Deus é, portanto, segundo a 1Jo 4,8, o amor. De modo que, sua
imagem mais perfeita não pode ser visível, mas pode ser experimentada. Quem ama
faz a experiência de Deus, reflete sua imagem nas relações estabelecidas. Nesse
sentido Jesus é a imagem mais perfeita de Deus, não tanto porque se fez carne, mas
porque na sua humanidade vivenciou de modo pleno o que pode ser mais divino: o
amor.
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ser humano é, na medida que ama, a imagem de Deus. E essa imagem pode ser
contemplada .
Contemplar a face de Deus é perceber o sofrimento do outro, na
compaixão, e deixar-se ser interpelado a fazer algo, buscando
atitudes concretas que transformem a situação do semelhante. Daí
brota a verdadeira ética numa dimensão relacional, para além de
todo individualismo e de todo moralismo (MAIA, 2011, p. 128).
Conclusão
Na medida que se compreende que cada ser humano tem uma origem
comum, e que na perspectiva bíblica é imagem e semelhança do Criador, as
divergências conflituosas perdem a razão de ser e dão lugar a uma salutar
diversidade. Pressupondo que Deus é amor e que é também a origem de todo ser
humano, amar deveria ser a atitude elementar da humanidade, pois afinal, amar é o
que torna possível uma real similitude com o Criador.
Esse estudo se ocupou em demonstrar que os termos tselem e demut
presentes em Gn 1,26 indicam uma realidade que faz do ser humano não uma mera
imagem plástica de Deus, mas um reflexo do Criador enquanto um ser de relações
pautadas no amor, pois Deus é amor.
Referências
CARRARA, Paulo Sérgio; GAMA, Neuzivan Alves. O ser humano imagem de Deus:
Considerações sobre o ser humano à luz da Revelação cristã. Saberes
Interdisciplinares, São João del-Rei, MG, n. 14, p. 23-36, Jul./Dez. 2014.
DOUGLAS, J. D. O Novo Dicionário da Bíblia. 3. ed. São Paulo: Vida Nova, 2007.
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HARTLEY, John E. Tselem. In. HARRIS, R. Laird; ARCHER, Gleason L.; WALTKE, Bruce
K. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova,
1998. p. 1288-1289.
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