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https://doi.org/10.48195/sepe2023.

27135
NEUROCIÊNCIA E PSICANÁLISE: APROXIMAÇÃO PERTINENTE?

Gustavo H.F Schmidt1; André Luis Volmer2

RESUMO
INTRODUÇÃO: O presente trabalho visa a propor algumas aproximações entre a
neurociência e a psicanálise, de formar a articular comparativamente e
complementarmente conceitos de ambas as disciplinas. METODOLOGIA: Trata-se
de um estudo narativo, tecido a partir de uma revisão bibliográfica de material
acadêmico a partir de pesquisas nas bases de dado “Scielo” e “Pepsic” e da
ferramenta de busca google scholar.RESULTADOS E DISCUSSÃO: Se constatou
que significativa parte do conteúdo encontrado nos veículos de pesquisa consultados
data de mais de 10 anos atrás, o que pode comprometer a fidedignidade dos dados
obtidos. Contudo, alguns resultados e aproximações entre a psicanaálise e a
neurociência puderam ser desenvolvidos, como, por exemplo, a comporação do
cérebro trino com a 2ª tópica freudiana. CONCLUSÕES: Pode-se constatar que o
tema buscado possui um fértil campo para pesquisas, desde que com fundamentado
ceticismo, liberdade para se debater e atitudade aberta para inovações.

Palavras-chave: Psicanálise; Neurociência, Interdisciplinaridade, Neuropsicanálise,


Epistemologia.

ABSTRACT
INTRODUCTION: The present work aims to propose some approximations between
neuroscience and psychoanalysis, to form a comparatively and complementary
articulating concept of both disciplines. METHODOLOGY: This is a narrative study,
woven from a bibliographic review of academic material based on searches in the
“Scielo” and “Pepsic” databases and the Google academic search tool. RESULTS
AND DISCUSSION: It was found that A significant part of the content found in research
vehicles consulted with data from more than 10 years ago, which may compromise the
reliability of the data obtained. However, some results and approximations between
psychoanalysis and neuroscience could be developed, such as, for example, the
composition of the triune brain with the 2nd Freudian topic. CONCLUSIONS: It can be
seen that the topic sought has a fertile field for research, as long as it is based on
skepticism, freedom to debate and an open attitude towards innovations.

1 Discente do curso de Psicologia da Faculdade integrada de Santa Maria-


gustavo.schmidt23@gmail.com
2 Docente do curso de Psicologia da Faculdade Integrada de Santa Maria-

andre.volmer@fisma.edu.br

1
Keywords: Psychoanalysis; Neuroscience, Interdisciplinarity, Neuropsychoanalysis,

Epistemology.

Eixo Temático: Tecnologia, Inovação e Desenvolvimento Sustentável.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho se propõe a buscar e a expor pontos em comum entre as


disciplinas psicanálise e neurociência, de maneira a articular ambos os saberes em
uma trama comum no que toca a conceitos e/ou teorias que podem ser vistos como
sinonímicos ou similares enquanto pertencentes a esses (saberes). Dessa maneira, é
fato sabido que S. Freud se interessava pela ciência que gravitava ao redor do
encéfalo humano em seu tempo, inclusive de forma a tentar articular a psicanálise
embrionária com as neurociências da época, no seu póstumo texto “Projeto para uma
psicologia cintífica”, de 1895. Contudo abandonou profissionalmente a pesquisa em
tais campo concernentes ao sistema nervoso humano (mas nunca a convicção de que
a psicologia e a metapsicologia tinham uma base biológica) e, por necessidades
financeiras, buscou uma alternativa profissional pragmática: a clínica, campo no qual
ele desenvolveu, com a ajuda de terceiros, a psicanálise. Disciplina essa que tem por
mote a perscruta das profundezas da psique humana, e é apontada pelos teóricos da
“neuropsicanálise” (disciplina que receberá uma mais detida atenção no decorrer
desse trabalho) como um possível instrumento para acesso a “camadas da psique”
que o ferramental da área neurocientífica ainda não possui (CAUS; BATISTA, 2021).

Nesse caminho, se pretende retomar aquilo que, por assim dizer, se recalcou
no início da história da psicanálise, isto é, a sua relação com o sistema nervoso
humano. Assim, há a possibilidade de se traçar, ao menos em parte, um envoltório
biológico (através da neurociência) que de suporte para a psicologia freudiana. Em
outras palavras, o problema de pesquisa a ser desenvolvido neste texto é acerca da
possibilidade de “desenhar” uma estrutura biológica para a superestrutura psicológica
montada por Freud. O que vai ao encontro da convicção que o próprio psicanalista
tinha (LYRA; CHENIAUX0, 2014).

2
2. METODOLOGIA
A presente pesquisa trata-se de uma revisão qualitativa e exploratória de
bibliografia de cunho narrativo, que se caracteriza por uma abordagem, por assim
dizer, “mais livre” e “menos sistemática” de escrita (GIL, 2019), de forma a possibilitar,
nota-se, maior criatividade para o trabalho, o que se percebe necessário dada a
temática escolhida para esse, pois devido à constatação de que é escasso o conteúdo
produzido dentro do escopo sobre o qual se almeja escrever, torna-se, vê-se,
improdutivo uma revisão de cunho sistemático ou integrativo. Dessa forma, a coleta
de dados se deu por meio de consulta a livros físicos e digitais e busca através da
ferramenta de pesquisa google scholar e de plataformas de pesquisa especializadas:
a base de dados PepSic e a Scielo, acerca dos marcadores “Neurociência” e
“psicanálise”, aplicados ao operador booleano “and”. Ademais, também se buscou por
“neuropsicanálise” no google scholar.

3. RESULTADOS E DISCUSSÕES
Ressalta-se, como já anteriormente assinalado, que o conteúdo encontrado
sobre a temática de pesquisa aqui desenvolvida foi relativamente escasso, sobretudo
ao se considerar os últimos 10 anos, período usualmente tido como critério de inclusão
por pesquisadores, pela razão de se primar pela maior atualidade possível do
conteúdo revisado em pesquisas, devido ao caráter evolutivo da ciência. Isto é, nesse
tipo de conhecimento, dada a refutabilidade de seu conteúdo, o que é verdadeiro hoje
pode ser falseado e não mais ser verdadeiro amanhã. Portanto, faz-se mister priorizar
as publicações mais recentes, que são menos passíveis a já terem sido sobrepujadas.

A despeito de tal possível defasagem das pesquisas analisadas pode-se


apontar que por alguns pesquisadores, os campos do saber que abrangem a
psicanálise e a neurociência são vistas como antagônicos, epistemologicamente
distintos e sem possibilidades de diálogo, como é o caso de Sonia Alberti e Amélia
Imbriano. Já por outros autores, tal diálogo é visto como possível, e, quiçá, profícuo,
como por exemplo, Benilton Ferreira Júnior, Monah Winograd, Flávia Sollero-de-

3
Campos e Victor Manoel Andrade (CAUS; BATISTA, 2021). O trabalho aqui redigido,
notadamente, se classifica como pertencente ao segundo grupo acima descrito.

Ao se partir desse paradigma, algumas aproximações interdisciplinares podem


ser travadas: existe na neurociência um processo denominado de self neural ou
protoself, que não inclui a linguagem, a percepção e a consciência, mas sim uma
representação do corpo através de seu mapeamento, que serve de base para a
constituição do self. Tal dado parece se coadunar com a noção freudiana de que o
ego é constituído em cima das noções corporais do sujeito, como as fases do
desenvolvimento psicossexual, as carícias maternais no corpo da criança, etc.
Ademais, sabe-se, através de pesquisas neurocientíficas, que o ego cria e mantém
sua identidade a partir de suas lembranças, processo esse que Freud destacava como
importante para a passagem do processo primário para o secundário, ou seja, para a
constituição e o fortalecimento egoico. Por conseguinte, o self autobiográfico, noção
de Damásio, renomado neurocientista, se caracteriza pelo registro de experiências
passadas, planejamento de futuro e guia de ação, o que é próximo ao conceito
psicanalítico de ego: constituído por representações psíquicas relativamente estáveis,
medeia as relações consigo, com os outros e com o mundo (SOLLERO-DE-CAMPOS;
WINOGRAD, 2010).

Nessa esteira, é possível pensar na divisão anímica que empreendia Platão


(2002), que concebia a alma como composta por uma parte racional, uma parte
emocional e outra instintual e apontar para a similaridade (não por acaso, haja vista
que Freud foi influenciado por Platão) com a metapsicologia dinâmica elaborada pelo
pai da psicanálise. Nesse raciocínio, poder-se-ia se compreender a parte instintual
(pulsões, que nada mais são que instintos socialmente mediados) como ligada ao
tronco encefálico (ou complexo “R”, em uma terminologia arcaica), que está ligado a
funções essenciais a vida, como sexualidade, sobrevivência, etc. A parte emocional
como ligada sistema límbico (composto por estruturas como amigdala e hipotálamo,
dentre outras), e a parte racional como ligada ao neocortex (ou simplesmente, córtex),
sobretudo ao córtex pré-frontal, que é responsável pela inibição de impulsos e pelo
comportamento ordeiro em sociedade, dentre outras funções . (SOUSSUMI, 2006).

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Nessa linha, é interessante citar uma pesquisa que compara grupos de pacientes com
depressão submetidos somente ao tratamento psicanalítico com grupos submetidos
apenas ao tratamento farmacológico. Os primeiros tiveram maior ativação subcortical,
enquanto os últimos tiveram maior ativação cortical, o que opera como um indício de
que o inconsciente atua, em grande medida, na região subcortical (MONTAGNA;
SOUSSUMI, 2009).

Nessa chave, também é possível comparar o tronco encefálico e, quiçá, o


sistema límbico ao id, enquanto o córtex pode ser identificado como uma das
principais bases neurológicas para o ego e o superego. Outra evidência que reforça
tal hipótese é a de que o córtex pré-frontal (responsável por quase toda a diferença
genética entre humanos e chipanzés, que é irrisória) pode ser maturado através de
experiências de vida que podem acostumar o sujeito à frustração (inclusive a partir da
tenra relação mãe-bebê), necessária para a vida em sociedade, conforme aponta
Freud. Ou seja, a tese freudiana de que o superego (e, em razoável proporção, o ego)
é formado pelos pais e pela cultura vigente na qual está inserido o sujeito parece se
sustentar à luz da neurociência. Por conseguinte, o hipotálamo, glândula central do
sistema endócrino, é do ponto de vista da neuropsicanálise, a região central do
cérebro no que tange à nuance quantitativa do aparato pulsional, dado o papel que
desempenham os hormônios nas chamadas pulsões e a posição privilegiada dessa
glândula. (SOUSSUMI, 2006).

Em continuidade ao escrito, a noção de memória implícita foi apontada como


uma das primeiras evidências de uma sede biológica para a existência do
inconsciente, mesmo que ela venha acoplada à noções do inconsciente cognitivo,
distinto do psicodinâmico. Tal noção de memória foi associada com o sentimento de
constância do self, alguns aprendizados sociais, o reconhecimento das sensações
corporais, das vozes dos familiares, dentre outros. De fato, alguns aspectos
mnmônicos tornam-se aparentemente inextricáveis do inconsciente cognitivo.
Todavia, o ics (abreviatura para inconsciente) cognitivo pode ser detectado já na obra
freudiana: em “A interpretação dos sonhos” (1900), o autor apresenta a primeira
tópica: ics, cs (consciência) e pré-consciência, com o primeiro englobando conteúdos

5
recalcados que já estiveram na cs e conteúdos que nunca foram cs, a consciência,
por seu turno, abarca a noção de eu, em certa medida a percepção, etc. e o pré-cs,
por fim, é constituído por aspectos não imediatamente na cs mas facilmente
acessíveis a ela, como lembranças, por exemplo. É possível remontar nesse ponto, à
concepção de Freud de que o ics não é composto apenas de conteúdos recalcados,
mas é mais amplo do que isso. Nesse aspecto, essa noção é central para se observar
que tal amplitude pode encerrar em si os processos descritos como componentes do
ics cognitivo. Assim, o ics não ligado ao recalque poderia estar implicado nos
processos de memória implícita. Tal assunção pode ser ilustrada a partir do caso de
Henry Molaison, famoso na literatura científica sobre memória, e dotado de uma grave
amnésia anterógrada, não sendo capaz de recordar um novo fato por mais de 15
minutos após aprende-lo desde que perdeu seu hipocampo para uma imprudente
cirurgia neurológica em sua juventude, contudo, com a capacidade de reconhecer seu
próprio rosto no espelho, evocar afetividade quando ouvia o nome de sua cuidadora,
lembrar do rosto de algumas pessoas famosas,etc. Com isso, pode-se apontar para a
importância das memórias emocionais do paciente no tocante a essas lembranças.
Assim, é possível presumir que o ics cognitivo não conflita com o psicodinâmico, mas
o complementa. Ademais, observa-se que alguns dos processos descritos como
pertencentes ao ics cognitivo poderiam se situar na instância pré-cs em uma acepção
freudiana (BOCCHI; VIANA, 2012).

4. CONCLUSÃO
Em suma, alguns conceitos e processos descritos tanto nas neurociências
quanto na psicanálise podem ser enfocados como idênticos ou assaz semelhantes,
assim como, complementares. Nesse sentido, observa-se que apesar da aparência
promissora de tais aproximações deve-se manter uma postura cética ao se analisa-
las, isto é, não enxerga-las como demonstrações cabais da concretude dos
postulados psicanalíticos nem como esforços inúteis de um saber moribundo para se
fazer ciência.
Desse modo, percebe-se que para que se avance em tal empreendimento
interdisciplinar é necessário que se faça mais pesquisas sobre a temática, assim
como, que neurocientistas e psicanalistas dotados de abertura para o novo e o diverso

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possam debater, discordar e concordar. Pois, em última análise, é possível assumir
que ciência de qualidade se faz com liberdade.

REFERÊNCIAS

BOCCHI, Josiane Cristina; VIANA, Milena de Barros. Freud, as neurociências


e uma teoria da memória. Psicologia USP, v. 23, p. 481-502, 2012.

CAUS, Joana D.’arc Santana; BATISTA, Eraldo Carlos. Interface entre


psicanálise e neurociência: uma revisão sistemática da literatura brasileira. Revista
NUPEM, v. 13, n. 28, p. 213-227, 2021.

CHENIAUX, Elie; LYRA, Carlos Eduardo de Sousa. O diálogo entre a


psicanálise e a neurociência: o que diz a filosofia da mente?. Trends in Psychiatry
and Psychotherapy, v. 36, p. 186-192, 2014.

DE-CAMPOS, Flávia Sollero; WINOGRAD, Monah. Eu sou meu corpo: o


conceito de eu em Freud e de self em Damásio. Natureza humana, v. 12, n. 1, p. 1-
30, 2010.

GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas,
2010. 184 p. Como elaborar projetos de pesquisa, v. 4, 2019.

MONTAGNA, Plinio; SOUSSUMI, Yusaku. Em que nos toca a neurociência?


Comentário à entrevista de Fúlvio Scorza [ign][title language= es] Comentário a la
entrevista de Fúlvio Alexandre Scorza. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 43, n. 3,
p. 33-36, 2009.

PLATÃO. República. Rio de Janeiro: Editora Best Seller, 2002. Tradução de


Enrico Corvisieri.

SOUSSUMI, Yusaku. Tentativa de integração entre algumas concepções


básicas da psicanálise e da neurociência. Psicologia clínica, v. 18, p. 63-82, 2006.

7
WINOGRAD, Monah; SOLLERO-DE-CAMPOS, Flávia; LANDEIRA-
FERNANDEZ, Jesus. Resenha: um diálogo entre a psicanálise e a
neurociência. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 21, p. 121-122, 2005.

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