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SERVIÇO DE CENSURA DE DIVERSÕES PÚBLICAS / RJ

SERIE: SERVIÇO DE CENSURA (CENSURA

PRÉVIA)

SUBSÉRIE: PEÇAS TEATRAIS

NOTAÇÃO: sk.in . iUq.tN . pre 103

TÍTULO: AMAMUft ... Se nÃq cmo ve.

CERT. N°: 03 ^

ANO:

FOLHAS N°: 31
BR AN.RIO TN.CPR.PTE JO .^
•<hsCDí! / SR/DPF-RJ

29tfi) 1428 R 006719

[recebido POR {^r,

ILMO.SR. CHEFE DO SERVIÇO DE CENSURA DE DIVERSÕÊS^WBLÍCAST^ DFSP/DRAJ

O abaixo assinado, responsável pela

Empresa SOCIEDADE ARTISTAS UNIDOS LTDA., tem a honra de encaminhar a

V.*3. para fins de CENSURA à copias da peça " AMANHS SE NXO CHOVER M

de autoria de Henrique Pongeti, para apresentação da referida empresa

no Teatro do SESC-TIJUCA, na 28 quinzena de Novembro de 1977.

Rio de Janeiro,25 de Agosto de 77

Atenciosamente
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Fundada em 27 de Setembro de 1917 — Reconhecida como de Utilidade Publica Federal pelo Dec. 4.092. de 4-81920
filiada à Confederação Internacional daso Sociedades de Autores e Compositores
Séde . Av. Almirante Barroso. 97 • 3 andar — End. Teleg. SBAT-R10
Rio de Janeiro — Brasil.

Rio , 25 de Agosto de 19 77

limo. Sr.
Diretor do Departamento de Censura Federal
(Departamento de Polícia Federal)
Brasilia DF

Saudações atenciosas:

Com a presente, temos a satisfação de encaminhar a V. Sa


para fins de CENSURA, três cópias da peça
AàíANHX SE NÃO CHOVER

Henrique Pongeti
Original de
Tradução de
Próxima apresentação de SOCIEDADE ATISTAS OHIBOS ITM.-
RIO DE JANEIRC
Teatro SESfl- TIJTJCA Cidade,.
Estado pj
a estréia está prevista para 2.®....q)^nz_ena de.HoyeEbro de 1977

Sem outro assunto, subscrevemo-nos com a devida con-


sideração.

Pela SBAT,

-I
L

\)

40 blocos 50x2
Setembro 76
TN.CPn.PTE Jot p. 4
f--

m
AMANHÃ, SE NÃO CHOVER

PRIMEIRO ATO DE HENRIQUE PONGÍ

CENÁRIO

O grande “living room” de um refúgio alpino, corn lareira e todo


o conforto de uma casa rústica dc montanha. Época: 1908.
V
Quando sobe o pano, BONARD se empenha na fabricação de uma
bomba de dinamite, segundo um formulário idôneo que êle consulta
dc quando em quando.
Kua mesa de trabalho apresenta a originalidade cie incluir vi-
dros e iiítros dc pcríumistas, entre as ferramentas mais vulgares.
Entra BALABANOFF, com uma tesoura de podar flôres e uma
rosa na mão. fem sóbre o lábio um assentador de bigócles, de elástico.

BALABANOFF — Teremos rosas à vontade, amanhã. A estufa pa-


rece um roseiral da “Côte d’Azur”. Sinta o perfume desta!
BONARD — Inebriante.
BALABANOFF — Viu como foi boa a minha idéia de construir
uma estufa para termos rosas o ano todo?
BONARD — Sua idéia foi ótima, Balabanoff. E os lilases?
BALABANOFF — Os lilases estão bonitos, também.
BONARD — É sempre um conforto não ter de depender de ne-
nhuma florista linguaruda para um acontecimento decisivo como o
de amanhã. ..
BALABANOFF — De amanhã,, se não chover. Estou com tanto
mêdo do tempo!...
BONARD — Tranquilize-se, não choverá!... (ouve-se o estrondo
da trovoada)
BALABANOFF — Está ouvindo? Como meteorologista você pode
fazer uma brilhante carreira. Sempre errado!
BONARD — Trovoadas de verão: depressa chegam... depressa
vão. Não se preocupe, (volta-se para BALABANOFF em quem, até êste
momento, não pousara os olhos) Outra vez com êsse assentador de
y*. bigodes na cara?
BALABANOFF — Que é que você tem com isto? Meta-se com a
sua vidal...
BONARD — Realmente, não tenho nada; mas você fica pare-
cendo um mascarado tétrico, um personagem dc Edgard Poe, impres-
MU
siona. E não é só isso: eu ainda não consegui compreender porque,
sendo você tão negligente com a sua pessoa, tem tanto luxo com a
parte mais supérflua do seu corpo: o bigode.
rf' BALABANOFF — (lira o assentador c começa a frisar o bigode
v com um ferro de frisar que já esquentou numa lamparina a álcool

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N-, A * 'L
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v
colocada sôbrc a mesa.) Você teria compreendido, se tosse menos su-
perfical, se fizesse questão de ir além das aparências. Você ainda não
reparou com o bigode de quem se parece o meu, quando eu deixo
de frisá-lo?
BONARD — Com o do Kaiser não é, nem com o de Briand. Não
é também com o de Vittório Emanuele...
BALABANOFF — Viu como você é pouco observador? Você co-
meçou com os três maiores bigodes da Europa atual, três florestas
labiais com as quais meu bigode não tem o menor ponto de contácto-
BONARD — Será o de Max Linder, o cômico de cinema?
BALABANOFF — Que Max Linder nada! Lenine, “seu” idio-
ta!... Lenine!
BONARD — Lenine? (repara) É mesmo, você tem razão, eu nun-
ca tinha reparado.
BALABANOFF — Quando eu estive em Zurick, onde Lenine es-
tava exilado, notei que todos os jovens partidários copiavam fanati-
camente o seu bigode fino e cadente, tipo mongólico, Você acha que
um anarquista puro como eu pode admitir qualquer semelhança fi-
sionômica com o chefe daqueles visionários?
BONARD — Nunca! Seria uma capitulação, (pausa) Engraçado!
Intimamente, eu sempre suspeitei que você frisasse o bigode g>ara
agradar a Francesea!
BALABANOFF — Eu? Você não regula! Eu nunca procurei agra-
dar a mulher alguma na minha vida, e se quizesse agradar, não mo-
dificaria um pêlo da minha cara.
BONARD — Bem, você fala assim porque tem confiança na sua
estrela, (abre o livro).
BALABADOFF — Bonard, êsses assuntos do “garçonnière” não
me interessam. Outro dia li um pensamento de um escritor .decadente
inglês, sôbre as mulheres, que me ficou indelèvelmente gravado na
memória: “As mulheres nos inspiram as grandes obras, mas nos im-
pedem de realizá-las”...
BONARD — Depende das mulheres.
BALABANOFF — Tôdas são iguais quando gostamos delas. Elas só
são diferentes, umas das outras, quando as desprezamos, e elas va-
riam sua personalidade para nos seduzir.
BONARD — Uhh!... Você entende de mulheres mais do que de-
monstra. Experiências pessoais?
BALABANOFF — Eu leio tudo quanto se refere a psicologia fe-
minina. São sempre as mulheres que instigam os maridos, na cama,
a fazerem a revolução, e são quase sempre as mulheres que depois,
fora da cama, a fazem fracassar.
FRANCESCA (entra com um pacote de jornais) — Chegaram os
jornais.
BALABANOFF — Como está o tempo lá fora?
FRANCESCA — Perfeito. Um crepúsculo maravilhoso.
BALABANOFF — Você acha que amanhã não choverá?
FRANCESCA (abrindo os jornais) Tenho absoluta certeza, (tro-
voada mais forte.)

TKir.PR.PTE - 3_P- £

BALABANOFF — Que barômetro, heim? Você e Bonard, juntos,


fariam uma fortuna, avisando particularmente quando se pode sair,
ou não, dc sapatos brancos!... _ „ Q
FRANCESCA — Trovoadas de verão: depressa chegam e PA
sa vão... - , . . ,
BALABANOFF — Ouviu, Bonard? E é também original como vo-
cê, no boletim das previsões.
FRANCESCA — Deixem-me ler em paz. (começa a ler).
BONARD— É o “Fígaro”?
FRANCESCA - É! Uma sobrinha do milionário americano Mor-
gaa, entregou um colar de pérolas a Gaby Deslys para que ela o use
e faca as pérolas readquirirem o seu brilho perdicio.
BONARD — O colo de Gaby Deslys tornou-se uma espécie e
gruta de Lourdes dos joalheiros. Ela ganha muito mais, agora dei-
xando cobrir seu colo de pérolas doentes, do que ganhava antes,
vfmdo cobri-los de beijos... _
BALABANOFF — Essa mulher deve fazer tudo para prolongar
o seu frivolo dom até à velhice. Mas eu duvido que dois seios murches
seiam capazes de dar brilho a alguma coisa. a _
FRANCESCA - Que crueldade, Balabanoff! Voce nao tem um
momento de doçura com as mulheres.
BONARD — Gaby Deslys! Tão simpática! um dia ela deixou cair
um leque de plumas, na “Boite Furcy”, e eu tive o prazer de curvar-
-me e^de entregar-lhe o leque: “Mademoiselle, vôtre éventaü et mes
hommages”... ,a0„tí,
BALABANOFF — Êsse episódio figurara certamente em -o
que no seu livro de memórias amorosas. É muito transcendente.
BONARD — Balabanoff, isto você talvez não saiba, mas ama
coisas mais agradáveis, na vida de um homem é lembrar um somso
ou um olhar, colhido inesperadamente, por simples casuahdade ao lon
go do seu caminho. Neste caso, o “Merci” e o somso da Deslys me de
ram um prazer enorme, porque foram para mim, especialmente para
"u/não contava encontrá-la na "Boite Furor djur ~
imaginava que ela fôsse deixar cair um leque... Ah! Balabanoil....
de quantas pequenas coisas irrealizadas é feita a consciência ue

BALABANOFF — Dispense comigo êsse tom enfático e nostálgico


de galã da “Comédie Française”. Vocês, franceses, não podem ouvir fa-
lar em mulheres, ficam logo fervendo como champanha...
FRANCESCA — Mayol continua fazendo muito sucesso com
nãn “T,pq mains des femmes”... , , , ■, ..
S
BALABANOFF — Será que. êsse número do “Fígaro” e todo dedi-
cado a cabarés? O jornal não tem mais secção política, perdeu a com-
P St
° FRANCESCA (lendo) - Depois você lê a secção política_OhI um
titulo gozadíssimo. “Dentro de meio século o aeroplano substituira o

BAL ABANOFF — Influência daquele charlatão do Júlio Veine.


Hoje, qualquer imbecil julga-se com o direito de misturar a ciência com

6
TN.CPR.PTEiíÜ_ P- >

os contos cio fadas. Eu não dou cinco anos e esses aviadores abandona-
rão os seus arriscados trambolhos e comprarão uma bicicleta.
BONARD — Pois eu penso diferente. Eu penso que daqui a cinco
anos também as bicicletas estarão voando.
FRANCESCA — Mataram uma “midinette” no Bal Tábarinl
BONARD — Quem matou?
FRANCESCA — Um mexicano apaixonado.
BONARD — Estranhos tipos, esses mexicanos! Quando gostarn\
muito, matam a mulher; quando não gostam, são até capazes de cons-
tituir família. Aliás, ao contrário dos franceses, meus patrícios, conhe-
cidos pelo horror à geografia, eu me interesso muito pelos outros paí-
ses. Meu sonho dourado é matar elefantes nas florestas virgens do Rio
de Janeiro, nas vizinhanças de Buenos Aires, a capitai da Bolívia.
(Trovoada. — Chuva grossa.)
BALABANOFF — Maldita chuva! Eu não dizia?
FRANCESCA (correndo para fechar a janela) —Que horror! Pa-
rece uma tromba d’água!
BALABANOFF — Será o cúmulo do azar!
FRANCESCA — Eu duvido que o Rei inaugure a Exposição Inter-
nacional, com um tempo destes!
BONARD — Pois eu acho que o tempo vai melhorar. Ainda não
estamos na época das chuvas. Até amanhã de manhã, à hora da inau-
guração, pode fazer um lindo sol.
BALABANOFF — Sol! O eterno otimista!
BONARD — De qualquer modo, a bomba de dinamite está pronta.
Olhem! (ergue a bomba, triunfalmente.)
BALABANOFF — Eu sei que a bomba de dinamite está pronta.
Mas, para haver um atentado anárquico, a bomba, só, não basta: é
.preciso haver um rei em condições de deixar-se matar.
BONARD — Matar, não, Balabanoff: executar. Eu implico solene-
mente com essa palavra matar .
BALABANOFF -— Com tòda a razão, aliás. Nós não somos crimi-
nosos comuns. É preciso estabelecer bem a diferença que há entre um
assassino vulgar e um ato político de reparação humana.
BONARD — Seja como fôr, a bomba está aqui, prontinha. Agora
vou desenhar em volta da cápsula, o meu “ex-libris”. Eu estimo muito
esta bomba, sabem? É a minha primeira criação terrorista.
BALABANOFF — E dá-lhe com a bomba! Companheiro Bonard, eu
já reparei uma coisa. Todo seu ideal anárquico parece reduzir-se ao
prazer de fabricar uma arma de destruição. Os objetivos dessa arma,
pouco lhe importam. Você seria um bom diretor da Armstrong, da Krupp,
da Skoda, ou de qualquer outra fábrica imperialista de‘cemitérios.
BONARD — È apenas um engano seu, Balabanoff. Enquanto
eu dosava os explosivos, ia fazendo mentalmente o cálculo do raio de
ação da bomba e adiantando, a mim mesmo, os efeitos da explosão.
Eu via os couraceiros e os cocheiros reais, os generais cm primeiro
uniforme, os cavalos emplumados, o ' rei, a rainha, os ministros, as
condecorações, boiando num mar de sangue. Via as criancinhas ino-
centes e deslumbradas, atingidas em pleno sonho pelos estilhaços,

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atrás dos cordões de isolamento. Eu tive, antes de vocês a visão des-
sa tragédia que se dará amanhã de manha... se nao chovei...
BALABANOFF — Da tragédia, não. Diga: do acontecimento his-
tórico. Tragédia cheira mal: cheira a palco de teatro aristocrático
Nós não queremos fazer teatro: queremos fazer um mundo melhor.
BONARD — Está bem, retiro “tragédia” e ponho “acontecimem^
to histórico”. Vocês ainda emprestam uma importância exagera®»
as palavras. Parecem mais escritores do que revolucionários. U &
BALABANOFF — Idéias definidas -exigem .palavras especiuck&\j
A abundância de sinônimos é própria da elasticidade da moral

^"'BONARD - Como você fala bonito, balabanoff! Eu invejo desde


menino os homens bem falantes.
BALABANOFF — Está ouvindo, Francesca? Tudo o que ele acna
de dizer da minha dialética anarquista é que eu falo bonito. Bonito
fala a sua avó-torta, Bonard!
BONARD — Curioso! Mesmo depois dc feita esta bom na, eu nao
vejo nenhum de nós três na pele de um verdadeiro anarquista.
BALABANOFF — Essa é monumental!...
FRANCESCA — Não diga absurdos, por favor!
BONARD - Juro que estou falando sério. Nem mesmo apalpan-
do esta arma, e sabendo que ela pode arr&zar carruagens reais e ma-
tar soberanos, eu acredito na nossa vocação.
BALABANOFF — Na sua, você deve dizer.
BONARD — Na nossa. „
BALABANOFF — Proibo-lhe de falar no plural. E, se voce quei
desertar agora mesmo, na véspera do atentado, eu mesmo lhe abro

BONARD Um momento, Balabanoff. Quando eu digo falta de


vocacão, não quero dizer que nos falte a coragem de matar e morrer
uela'idéia. Absolutamente! O que eu sinto é que caaa um ae nos
três esconde alguma cousa, tem um caso pessoal com a vida, que,
acabar com o Estado para compensar-se de um fracasso intimo qual-
quer.
FRANCESCA — Que bobagem!
BALABANOFF — Viu? E um cretino dêstes conhece os nossos
segredos, participa da nossa conspiração, vive conosco, respira o ar
que respiramos! . ,.
BONARD — Calma Se vocês me permitem, eu como uma his-
tória muito interessante e muito ilustrativa do meu ponto de vista.
BALABANOFF — Alguma coisa de muito estúpido, aposto.
BONARD — Um dia eu ia caminhando a uma bôa distancia go
-emitério judeu de Varsóvia — eu era secretário de embaixada na Po-
lônia -± quando vi um grande enterro, vindo na minha direção. Ma.
pUZ os olhos no enterro, desabou um vasto temporal de verao. A rua
era desabrigada, taxis não havia, nem guarda-chuvas. Que üz eu.
Arrumei uma cara bem triste, quase tão triste como a cara aa mae
do defunto, vi qual dos acompanhantes tinha um guarda-chuva maior,
e meti-me debaixo dêle, soluçando. Sabem o que aconteceu? Na hora
tn.cpr.pTe Jo£ p. ^

do baixar o corpo, cu estava tão compenetrado da minha dor, que


rasguei a gola do meu jaquetão nòvo para mostrar a minha desolação,
parecendo um perfeito judeu, (pausa. Espera o efeito,)
BALABANOFF — E com isso?
BONARD — Nada.
FRANCESCA — E o conceito?
BONARD — O conceito é êste: nós entramos debaixo do
da-chuva do anarquismo para fugir de um temporal, e acabare
rasgando o jaquetão, amanhã, no enterro do Estado.
BALABANOFF — Como imbecilidade, seu apólogo é uma obre-
-prima. Só poderia ter saído da cabeça vazia de um ex-diplomata.
BONARD — Merci. (pausa). Ora bem, a bomba está pronta, vou
fazer agora um pouco de água de lavanda, (vidro, filtro, eíc.) É uma
sensação deliciosa misturar essências logo depois de concluir uma
bomba de dinamite. Quer que eu faça um perfume “chic” para você,
Francesca? “Souvenir de la cour”? “Chypre Imperial”?
FRANCESCA — Eu prefiro o meu cheiro natural de mulher lim-
pa. E mais humano e mais agradável.
BONARD — De fato, você é naturalmente cheirosa. Mas èsse
cheiro de saúde, de carne lavada, é um privilégio biológico, urna dá-
diva da natureza. E você, Balabanoíf, quer uma àguazinha de colônia?
BALABANOFF — Por que? E não sou um privilegiado biológico?
Eu fèdo?
BONARD — Ninguém disse que você fede,
BALABANOFF — E, se fedesse, seria a mesma coisa. Eu acho que
o perfume no homem é uma traição ao sexo.
BONARD — E um ponto de vista, (cantarola o refão de uma velha
canção francesa, enquanto dosa as essências e espia os vidros contra
a luz.) O perfume, para mim, é a paisagem do olfato, (cantarola)
FRANCESCA — Como escureceu depressa! Eu vou ascender o
lampeão. (acende.)
BONARD — Boa idéia, Francesca. Eu estava sentindo que fal-
tava alguma coisa e não tinha reparado que era a luz.
BALABANOFF (aproximando-se da mesa de trabalho de Bonard.)
— Acabe com essas cantigas de bordel; você me enerva! (pausa) Es-
ta bomba é boa mesmo?
BONARD — Boa, como?
BALABANOFF — Funciona? Explode? Mata... quero dizer, exe-
cuta?
BONARD — E perfeita, é uma obra-prima de bomba. Todo o pro-
gresso da ciência destrutiva está nessa máquina infernal.
BALABANOFF — Infernal! Os 'anarquistas de Barcelona tam-
bém pensavam ter feito uma máquina infernal. No dia do atentado,
a bomba bateu na cabeça do rei e rachou-a de alto a baixo, como
uma abóbora, sem explodir.
FRANCESCA — Eu me lembro. Como os semanários de carica-
turas e os teatros de revsitas ridicularizaram o anarquismo!
BALABANOFF — Uma coisa atroz! O “Punch”, de Londres, pu-

9
mr.pw.PTE J&3 P-dcD

blicou uma caricatura mostrando uma plantação de côcos da África,


com esta legenda: “O arsenal dos anarquistas de Barcelona”.
BONARD -— Efi])cmn.. • com isso vocês querem insinuar que Jr* -í
minha bomba é um côco?
FRANCESCA — Queremos apenas alertá-lo contra um perigoi
/ CE-
otimismo. Nossa responsabilidade é enorme. Bonard. Nós formamq
uma ala isolada e autônoma do anarquismo. Somos considerados rcN
mânticos e comprometedores.
BONARD — Eu sei. Mas esta minha bomba c infalível. Confiem
em mim: a História há de registrar as conseqüências terríveis da sua
perfeição. . . (segura a bomba)
BALABANOFF — Mas quem pode garantir essa perfeição?
BONARD — Eu.
BALABANOFF — E por que? Você nunca fabricou bombas, nem
teve mestres.
FRANCESCA — Você é um autodidata. Deve-se desconfiar sem-
pre do autodidatismo.
BONARD (brincando com a bomba) — Esta bomba foi fabrica-
da. com a fórmula 18 do “Manual do Perfeito Regicída”, de autoria
do italiano Piero Buonatesta. Vocês ousam pôr em dúvida a compe-
tência dos anarquistas italianos nêsse assunto?
FRANCESCA — Bomba de formulário, deve ser como comida de
receita: falta sempre alguma coisa para ser bomba... ou para ser
prato.
BONARD (ri) — Felizmente o rei não pensará como vocês, ama-
nhã. (joga a bomba para o ar, e apara-a com as duas mãos espalma-
das.) Côco! Vocês vão ver êste côco!
BALABANOFF (correndo espavorido) — Animal! Pare de brin-
car com isso! Só faltava agora, para• completar o ridículo da bomba
que rachou a cabeça de Armando XIII sem explodir, morrermos to-
dos com a bomba destinada a liquidar Gregório V
FRANCESCA (que correu também) — É, sim, Bonard. Guarde
üi essa bomba no armário. Você parece criança.
BONARD (guardando a bomba) — Vocês vão me achar ridículo,
mas eu sinto uma emoção completamente nova, vendo nascer essa
onda de terror em volta da minha primeira máquina infernal.
BALABANOFF — Onda de terror! Você acha que não ter mêdo
de uma bomba de dinamite é jogar “voley-ball” com ela? (grave)
Agora eu vou proceder a um pequeno ensaio do atentado.
BONARD — Um ensáio? Costuma-se ensaiar um atentado?
BALABANOFF (tirando do armário um grande rôlo de papel)
— Naturalmente! (desenrola) Que ingenuidade! Você queria deixar
tudo ao acaso? Aqui está a parte da cidade que nos interessa. Abran-
ge o Palácio do Rei e todo o trajeto do cortêjo até à Exposição Inter-
nacional, onde iremos agir. (abre a planta sobre a mesa de Bonard)
ri i FRANCESCA — Eu vou ser necessária? Eu queria ver se termi-
I ' ! nava êste “tricot”.
BALABANOFF — Francesca! Veja se deixa de ser tão doméstica.
Você acha que eu disponho de mais alguém para fazer a rainha?

IO

>
TN.CPR.PTE

FRANCESCA — Então vai ser ensaio, como no teatro?


BALABANOFF Quanta- imbecilidade! Como no teatro, não,
como na História; compreenderam? (arruma duas cadeiras no pri-
meiro plano do palco) Guardando as devidas proporções, esta é a
carruagem real.
BONARD — Ah! Isto é a carruagem real? Engraçado.
BALABANOFF — Exatamente. Procure colaborar melhor no en-
saio, fazendo um pequeno esforço de imaginação. Francesca!
FRANCESCA — Hein?
BALABANOFF — Por favor, guarde essas agulhas e essa lã!
sim, é impossível!
FRANCESCA Pronto, (deixa o tricot na poltrona onde est
sentada)
BALABANOFF — Sente-se aqui. Você é a rainha Anastácia.
BONARD — A rainha Anastácia! Quanto daria Sua Majestade, '
para ter um pouquinho do seu “charme”, Francesca!
FRANCESCA (gesto de irritação: senta-se na carruagem)
BALABANOFF — Quer me fazer um favor, Bonard?
BONARD —- Até dois.
BALABANOFF' — Perca de uma vez para sempre êsse vício di-
plomático de galantear. Nós vivemos perigosamente demais para gos-
tarmos dos rapapés de chancelaria.
BONARD Com Francesca eu sou sempre sincero. Agora você
quer me fazer um favor, Balabanoff?
BALABANOFF — Diga.
BONARD — Acabe de me atirar ao rosto, sob qualquer pretexto,
minha antiga prolissão de diplomata. Você insiste na falsa tecla da
minha frivolidade. Eu faço perfumes — é verdade — e não consigo
cumprimentar uma operária casada sem lhe beijar a mão;-mas serei
capaz de atirar uma bomba no rei, serenamente, como atiraria uma
rosa na batalha de flores da Promenade des Anglais, em Nice.
BALABANOFF — Veremos isso na hora... Vamos então ao en-
saio.
BONARD — Vocês já imaginaram a polícia entrando de repente
aqui, e assistindo o ensaio desta página imortal da nossa História?
BALABANOFF — Você nunca perde uma oportunidade de ser
um profeta de mau agouro.
FRANCESCA — Deixa-me tocar na madeira! Que idéia sinistra
Bonard!
BALABANOFF — Deixem de conversas e vamos ao ensaio.
BONARD — Quem faz o rei?
BALABANOFF Eu. (Senta-se ao lado de Francesca.) O rei sou
eu... r
BONARD Ah! então você é o rei... eu sou o anarquista.
BALABANOFF — O anarquista no ensaio, é evidente. Na reali-
dade, será aquêle que fôr sorteado.
BONARD Mas o rei devia ser eu. Eu fui secretário do Chefe
do Protocolo do Ministério do Exterior... conheço o cerimonial.

li
TN.CPn.PTE J^3 p.

BALABANOFF — Mas isso aqui é 'um regicídio, não é um baile


no Palácio Real. Aqui o rei vai morrer, não vai dançar uma valsa.
BONARD — Seja como íór, eu me sinto com mais direito ao pa-
pel!
FRANCESCA — Vocês querem saber de uma coisa? Enquanto
vocês discutem, eu vou acabar o meu “tricot”, (ergue-!
BALABANOFF (empurrando-a, para fazê-la sentar-se) —
te-se, vamos! Você também quer aborrecer-me? (abre a
nha ver aqui, Bonard.
BONARD — Às. suas ordens.
BALABANOFF — O cortejo fará um grande itinerário,
Palácio Real — veja — até a Viia de' Santo Eustáquio, na zona
bana. Mas o ponto estratégico, para um atentado com possibilidade
de sucesso, é aqui, bem defronte do pavilhão central da exposição.
Agiremos aqui, não se discute mais. (Continua com a planta aberta.)
Pegue agora naquele novêlo de lã. Ele vai fingir de bomba.
BONARD — O novêlo de lã?
BALABANOFF — Naturalmente. Precisamos de uma coisa que
permita uma perfeita simulação do lançamento, e que não machu-
que. Você pretendia ensaiar com a bomba?
rRANCESCA — O meu novêlo, não! Vocês vão me embaraçar o
fio todo.
BALABANOFF ■— Francesca!
FRANCESCA — E isso mesmo! (pausa) Depois de embaraçar eu
sei quanto me custa!
BALABANOFF — Eu não disse que você estava se tomando de-
ploràvelmente doméstica? (solene) Bonard, eu exijo o novêlo. Dê-me
o novêlo!
BONARD — Ei-Io. Se embaraçar, eu ajudo, Francesca.
BALABANOFF — Vocês precisam capacitar-se de que o lança-
mento da bomba é tudo para o anarquismo. Cada rei que escapa in-
cólume, ou ligeiramente, ferido, é um mártir, e os mártires reforçam
até os trônos bichados
BONARD — Lindo verde, desta lã. É do tom exato de uma roupa
de montaria de Sybil Philmore, filha do embaixador inglês no Perú.
Há verdes frios, minerais, e verdes quentes, vegetais. Este...
BALABANOFF — Incrível! Agora o cortejo empaca porque o di-
plomata está fazendo um madrigal ao verde de Sybil Philmore!
• BONARD — Pronto, pronto! Podemos começar logo. Aqui está a
bomba. Atiro já?
BALABANOFF — Que insensatez! Então não passa pela sua ca-
beça que o atentado tem técnica, um estilo? Pegue a cestinha de cos-
turas, vamos!
FRANCESCA — A minha cesta de costuras?!
BALABANOFF — A sua cesta de costuras, por que não? Você
acha isso um bicho de sete cabeças?
FRANCESCA — Mas, será possível que êsse atentado só possa
ser feito com o meu material de costura?
BALABANOFF — Francesca! (pausa) Tenha mais espirito po-

12
TN.CPR.PTE__r2L P- ^5

(Solenc B
’ « onard.) Faça de conta que a bomba está es.
de
l4AN?rir°A
I RANCESCA — T “bouquct”rosas
As clássicas
dc rosas
para- a rainha...
“corbeille”.
as ros;
lantes e pérfidas do anarquismo.... ,
iiccnça para uma
P^uena observação. (I
BALABANOFF — Diga. \<

n-nr-, ~ AdeBor
tocondida debaixo
preferida da r£
um “bouquet” de hnha é o lilás: a bomw
lilases...

d° atentado FF
ta doftenitZ° ~~a M
exige ° ^
rosa. t0lÍCeS Bonard A técnica
A rosa ’
oculta ’
melhor a bomba:anarquis-
é urna

máscarr^cionaL Um bi mb
° °’ Se^’a co™ ™a
FRANCESCA — Balabanoff tem razão. O anarquismo está li-
gad0 a esta ao
' 5 das rosas, como as andorinhas à- primavera.
BONARD
. — Queiram me desculpar, mas eu insisto em encher
simboncamente de lüases esta cestinha. Quem vai morrer é a rainha
nao silo vocês — e a rainha prefere os lilases.*

B FF EU me oponho íorrnalm(
“°
*<J.NAivD ~~ se
— Nao -nteA 'atodos
impaciente, Balabanoff. essa os
inovação!
conde-
,a °S a mar e' mesmo aos anarquistas, a lei não concede a satisfação
c uma ultima vontade? Vocês não se lembram do Masério, que só
pe liu uma pizza à, napolitana no momento de subir à fôrea, porque
gostava de pizza, mas não conseguia digeri-la, e, assim, não teria
tempo de sofrer com a digestão?
FRANCESCA — Minha mãe fazia uma “pizza” excelente. Ela
era napolitana.

r . BALAfAN0FF - Um momento! Vocês pretendem transformar


esta pré-estreia de um episódio histórico numa mesa redonda dc culi-
nana í
BONARD Absolutamente, o que está cobrindo a “bomba” por-
tanto, é um lindo “bouquet” de lilases. insisto nos lilases.

. BALABANOFF — p0is vá para o inferno com os seus lilases e


nao me faça perder mais tempo! ’
BONARD — Atiro a “bomba”?

tnãoECf,^BA,NOFP ~ EsSa boraba parece uma batata quente na sua


Zí IZ-Z TSa ™ dKcartar‘sc del!L Sonegua. O atentado *
Gregório l.°. ™.
qU d
Centra fZ
cntial. Estamos na ‘“ ° desccmos
Avenida
do cal
defronte
O povo forma<loduas
Pavilhão
alas
compactas ao longo de todo o trajeto. O povo, com a sua imbecilidade

dC ÍmP St0S
°
as causas
' ° ***Wtt», o favoritismo, os trusts
1W11 “ , do seu sofrimento, e aplaude delirante-
iiicnic o lei. (disco de multidão)
FRANCESCA — Eu continuo sentada?

cos s^levantam1' n ~~ É l0SlCo! Só as rainhas dc pvéstitos carnavales-


olhe Um oestn h°S ^ para c^P^tar a plébe.Faça assim,
tado pes^lmen e “ *** ’ **** qUe ura se sinía
cumprimen-
P 0 panorami
moços velhos miilh ^ T^ co bem fingido, abrangendo
;iereS
“Souní ’ h°mens
Boupiesoe ” ...’ magnetismo... e crianças. Assim... está vendo?
amplitude...

13

t
FRANCESCA — Assim?
BALABANOFF — Não, não! Está muito duro. Parece o sorriso
da b.òca sem lábios daquele personagem de Vitor Hugo. “O homem
que rí”. Olhe só como você está sorrindo: (expressão) Não é horrível?
BONARD —- Francamente, não acho, Balabanoff. O. sorriso de
Francesca está espontâneo e distinto.
BALABANOFF — Você vai interromper o ensaio com outros pal-
pites? Diga logo, porque, nesse caso, eu abdico. . . das minhas funções.
BONARD — Eu intervim julgando cooperar, desculpe.
BALABANOFF — Ali, naquela sacada, estará a cantora Giovanna
Capinera, amante do rei. Seu sorriso se tornará ainda miais radioso
— não somente para não dar o braço a torcer à sua rival — mas
também porque pouco mais adiante, noutra sacada, estará o profes-
sor de equitação, Conde Defontaíne, seu amante, quero dizer, aman-
te da rainha Anastácia. Compreendeu? Um sorriso -assim, síbilino,
maquiavélico... Vê? (expressão).
FRANCESCA — Estou achando esta farsa desagradável e inútil,
(gesto dc levantar-se) Chega!
BALABANOFF — Francesca, sente-se. (empurra-a) Se você es-
tivesse melhor informada sôbre a moderna técnica do atentado, sa-
bería que a formação de uma atmosfera psicológica prévia é uma
exigência elementar. E depois, eu quero e acabou-se!
BONARD — Posso atirar?
BALABANOFF (baixinho, como se não quizesse ser ouvido pelo
rei.) — Sossegue, homem. Ainda estamos na Avenida Independência,
(solene) Ali estão os secretas, misturados com o povo, vigiando os
que se conservam de mãos nos bolsos, os sabotadores de apoteoses.
Para êles, quem não bate palmas está, forçosamente, contra o rei; es-
tá forçosamente apalpando a coronha de um revólver para matar o
rei. Elan! Francesca, elan! Ramiro Hernandes, de Bilbao, levou uma
coronhada porque meteu a mão no bolso quando ia passar o cortejo
real. Verificou-se,em seguida, que êle estava resfriadíssimo e ia pu-
xar um lenço. Mas, no dia em que seu nariz deixou de escorrer, êle
guardou o lenço e comprou dinamite...
BONARD — Ramiro Hernandes... Dom Ramiro Hernandes...
Conheci um embaixador de Cuba com êsse nome.. . Mas escutem
aqui, meus caros monarcas, vocês vão me deixar por muito tempo
com esta cestinha na mão, bancando a violeteira?
BALABANOFF — Estamos chegando, não tumultue. Coloque-se
ali, na primeira fila ,atrás do cordão de isolamento, bem defronte do
Gavilhão Central. Aí mesmo. E agora, Francesca, componha a sua mais
simpática fisionomia. Estamos finalmente chegando. Lá se encontra
à nossa espera, a fina flôr da malandragem governamental — o es-
tado maior dos aproveitadores e dos bajuladores. Todos querem ser
vistos, por nós, para cobrarem depois o seu “jeton” de presença; e
nós devemos dar a cada um a .impressão de havê-lo visto, e gravado
w
■ para sempre seu nome no nosso coração reconhecido. Olhe, olhe aquê-
le algoz do chefe da Repressão, como chocalha as suas condecorações,

14

t
t . rN.cpn.fTE__riS- P ~5

dc tantos salamaleques, Canalha! Se eu fôsse rei, descia dêstc carro


e...
BONARD Você está saindo do seu papel, Balabanoffl Daqui a
pouco, você esquece que é Gregário V, tira da minha mão a bomba,
o joga em cima do seu próprio ministério...
BALABANOFF — Tem razão. Viu, Francesca, como se forma a
atmosfera psicológica prévia? Prepare-se, Bonard. Francesca, eu des-
t ço, dou-lhe a mão para você sair da carruagem... assim... mais
graça, Francesca, mais senso de popularidade... O sorriso! A outra
I mão dando adeus! Assim... Agora é a apoteose, todos estão empol-
4 gados. até a polícia e.. .
BONARD — Atiro?
BALABANOFF — Atire!
BONARD (retira o novêlo de lã e faz o gesto de atirar)
FRANCESCA — (Cambaleando, com um ccmcço de vertigem.)
— Oh! Ajude-me, Bonard!
BONARD — (Dcsfazendo-se da cêsta c amparando-a.) Que foi,
Francesca? Está sentindo alguma coisa? (Senta-a na cadeira da “car-
ruagem”.)
FRANCESCA — Foi uma vertigem. Mas já passou, felizmente.
BALABANOFF (friamente) — Uma vertigem? Engraçado! Você
nunca teve vertigem. Que novidade é essa?
i FRANCESCA — Seja como fòr, Baiabanoff, foi uma vertigem.
Eu não tenho direito de ter uma vertigem?
BONARD — Eu vou preparar uma xícara de café bem forte.
FRANCESCA — Absolutamente, Bonard. Eu já me sinto períei-
tamcnte normal. Obrigada.
BONARD (Codrc-lhe as pernas com a manta de lã que está joga-
da sôbre a outra poltrona.) — Então cubra-se bem. A tarde está cs-
lriando muito.
BALABANOFF — Deve ser outra indisposição gástrica.
FRANCESCA (com certa IltONíA SUAVE) — É o seu diagnós-
tico, Baiabanoff?
BALABANOFF •— Estômago, não há dúvida. Você precisa ter
muito cuidado com a comida. Ontem um vômito, hoje uma vertigem.
Se eu fôsse você, entrava numa dieta rigorosíssima.
FRANCESCA — Uma dieta de leite e de legumes, não é? Uns
mingauzinhos, umas papinhas...
BALABANOFF — Exatamente. Para o estômago, eu' só acredito
em dietas.
FRANCESCA — A sua intuição médica é admirável, Bala-
*
banofí... (ri) Você nunca estudou medicina?
BALABANOFF — Eu? Que idiotice é essa?
BONARD — Francamente, Baiabanoff...
i
BALABANOFF — Francamente. . . o que?
BONARD — Custa muito a compreender?
BALABANOFF — Compreender... o que?
BONARD — Que. . . que...

15

í
'íwiafcfnw ma. »-yvT.

t
TN.CPn.PTE
BALA13AN0FF — Que... que... o que? Você ficou gago e cre-
tino de repente?
FRANCESCA — Não seja tão misterioso, Bonard. Diga logo a
Balabanoff que eu desmaiei com mêdo do novelo de lã... (ri)
BONARD — Essa é boa! (Ri)
BALABANOFF (dando um murro 11a mesa) — Basta! -
FRANCESCA (Subitamente séria.) — Vamos repetir a cena
lançamento da bomba? Se você fôsse um chefe gentil, daria a rainh \
por morta. (ri). j gí j
BALABANOFF — A hora é muito imprópria para gracejos, Franv^N w \J*- j
♦ * l\»
cesca! (imperioso) Bonard! xj^vnÇ^V -
BONARD — Pronto.
BALABANOFF — Enquanto eu rasgo os nossos documentos se-
cretos e lacro 0 meu testamento político, você prepara 0 sorteio. Sa-
beremos dentro de alguns minutos quem matará 0 rei.
FRANCESCA — Executará, aliás...
BALABANOFF — E depois de 0 sabermos, talvez certas pessoas
não sintam mais vontade de rir. . . (sai importante)
FRANCESCA — Cretino! Você já viu?
BONARD — Só faltou a cegonha pousar na cabeça dêle c mor-
dcr-lhe a orelha, dizendo: “Ei, Balabanoff, a encomenda é sua! Não
se lembra?"
FRANCESCA — Sujeito errado! Quer salver o mundo, e não dis-
tingue um desmaio de mãe de um desmaio de dispéptica! Viu que
cara de palerma?
BONARD (com ar confidencial) — E você, está contente?
FRANCESCA — Estou. Se Balabanoff me ouvisse dizer isso, fi-
cava epilético de raiva.
BONARD — É sim. Que homem misterioso! (escrevendo os no-
mes nos pedaços de papel) Francesca... 0 seu em primeiro lugar...
“noblesse cbligue"... Balabanoff... e agora, em último lugar, como
maneia 0 protocolo da modéstia, o meu... (pausa) Você sabe que
nunca pereebi um gesto, uma palavra, uma expressão de Balabanoff
que revelassem a existência de um coração em seu peito?
FRANCESCA — Balabanoff é de gêlo. Ontem eu tive o meu pri-
meiro vômito, e êle me perguntou se eu não andava comendo pre-
sunto demais. Presunto! Eu com um anjinho nas entranhas, e êle
pensando em azias!
BONARD — Eu o conheço! E daqui a alguns mêses, no lugar de
uma parteira, êle será homem de trazer uma caixinha de bicarbona-
to. (pausa) Está se sentindo melhor?
FRANCESCA — Estou muito bem, agora.
BONARD — Você vai me perdoar a indiscreção, Francesca, mas
eu sempre tive uma curiosidade doida de saber corno foi a sua pri-
meira noite de amor com Balabanoff.
FRANCESCA — Não foi uma noite, foi uma tarde. Balabanoff
chegou perto de mim, na varanda, e disse: “Francesca: uma coinci-
dência evidente de interesses fisiológicos, estimulada por uma identi-
dade de ideais políticos, nos aconselha um contacto material mais

16

...... .
TN.CPft.PTE JOA p. J9-

íntimo. Espere-me no seu quarto, onde estarei dentro de vinte minu-


tos, hora de verão”.
BONARD — Exatamente como eu tinha imaginado. E depois? Oh!
desculpe essa bisbilhotice, Francesca, mas você sabe que eu ihe que-
ro bem como a uma irmã, que pergunto sem maldade, corno se per-
gunta em família.
FRANCESCA — Eu sei, Bonard. Como foi, depois? Foi tão engra-
çado! (ri)
BONARD — Eu não sei c que é, mas estou rindo, só de fazer um
idéia. ,
FRANCESCA — Antes de se completarem os vinte minutos, ê
bateu na minha porta c disse, do lado de fora: “Feche as venezian;
c as cortinas de modo que fique tudo imerso na mais completa escuri-
dão. E vende também os olhos com seu lenço grande de sêda. Fran-
cesca, por estranho que isso lhe pareça, accite-o sem fazer objeções.
.Ê preciso!”
BONARD — E você vendou os olhos?
FRANCESCA — Vendei. Mas vendei como as mulheres fazem:
deixando um cantinho do ôlho do lado de fora. Você sabe, naquele
tempo eu achava Balabanoff um homem fabuloso, ia naquela sua fa-
la engomada, sentia orgulho de ser a primeira a recolher nos ouvidos
os seus lugares comuns...
BONARD — E como foi, hein? como foi?
FRANCESCA — Alguns minutos depois êle bateu na poria e dis-
se: “Francesca, você tomou todas as disposições determinadas por
mim?” Eu disse, morrendo de curiosidade: “Tomei, sim, Balabanoff,
entre”. E éle entrou.
BONARD (ri) — Que delicia! Isso é tão Balabanoff!
FRANCESCA — Eu pensei que, no escuro, julgando que eu não
podia enxergar, êle se animasse e me dissesse: “Enfim sós, Frances-
ca! ... ” e me desse um beijo. Mas foi tudo diferente. Êle se sentou
longe do mim, na outra extremidade da cama, e disse, com voz sumi-
da: “agora podemos conversar livremente sôbre nós dois. Vou fazer-
-lhe uma revelação indispensável, Francesca: quando eu era menino,
meu pai, que comandava uni rebocador no Cáspio, e tinha a mania
da tatuagem, tomou um dia uma vergonhosa bebedeira e me tatuou
o corpo todo, do peito até os pés. Mas não é o fato de eu ser tatuado
que me impede de aparecer despido diante dos outros: é o assunto da
tatuagem que meu pai escolheu. Você me aceitará, portanto, com
esta. malha de bailarino, e evitará fazer qualquer pergunta sôbre a
minha tatuagem.”
BONARD — Êle estava com a malha de bailarino?
FRANCESCA — Estava. Parecia um aluno encabulado na pri-
meira sula de “ballet”. Eu já estava habituada à escuridão, e via tu-
do direitinho.
BONARD — Balabanoff, como Nijinski, deve ser uma gracinha.
E amando, como êle é?
FRANCESCA — Nunca me deu um beijo e não admite ser beija-
do. Êle me disse que o amor deve ser restituido à sua candura ori-

17
TN.CPff.PTE âOl p.

ginal, deve ser despojado de tôdas as fantasias criadas pela animali-


dade do homem, file acha beijo fantasia..'.
BONARD — Compreendo. Às vezes vocÔ tem a impressão de es-
tar sendo amada pelo telefone interurbano.
FRANCESCA (rindo) — Mas êle me deu um filho, e o resto dei-
xou de ter importância. (Pausa) Ouça, Bonard, desde que eu déscon-
Bci de que ia ter uma criança, não dormi mais uma noite tranqüila.
BONARD — E por que?
FRANCESCA -- Só penso na polícia. Acordo assustada. Parece
que ouço, a noite tôda, a pancada dos revólveres naquela porta. De-
pois eu vejo a porta cedendo, e êles saltando aqui para me darem
ponta-pés na barriga... Eu estou com mêdo... pela primeira vez
eu sinto mêdo.
BONARD lenha coragem, Francesca, e goze, por um minuto,
sem pensar em mais nada, a revelação inesperada de sua materni-
dade... (pega o cliapcu-côco de Balabanoff e coloca dentro dêle os
ires papelinhos) Eu sinto que você iria adorar êsse filho.. .
BALABANOFF (Entra com um par de sapatinhos dc iã na mão.)
Encontrei êste
~ Par -e sapatinhos de lã em cima da minha secre-
taria. Alguém esqueceu lá?
FRANCESCA — Eu. Me dá aqui.
BALABANOFF --- Algumas das nossas conhecidas vai ter crianca0
FRANCESCA — Eu. (pausa)
BALABANOFF — Pena. Seu filho não podia ter escolhido um
momento mais inoportuno para vir ao mundo. Preparou tuclo, Bo-
nard ?
BONARD — Tudo.
BALABANOFF — Então vamos proceder ao sorteio. Traga a urna.
BONARD Infelizmente a urna não é bem uma urna, é o seu
chapéu-côco... (pega o chapéu-côeo) Serve?
BALABANOFF — Servir, serve. Mas a sua serventia não dimi-
nuiu a sua falta cie senso comum em escolhê-lo. Não havia um vaso,
uma caixa nesta casa? Tinha de ser o meu chapéu-côco?
BONARD. — Eu achei-o tão jeitoso.
BALABANOFF — Jeitoso! Francesca, quer ser a primeira, ou
prefere.,.
FRANCESCA Aiisolulamente1.., Quero aev a primeira,
(me.
to a inao no chapéu. Pancadas na porta da rua)
BONARD — Quem será?
BALABANOFF — É a polícia! Êles nos localizaram!
FRANCESCA (Alarmada, recuando para o primeiro plano da ce-
na, os olhos fitos na porta) — Não! não pode ser! (pancada forte)
BALABANOFF — Tenho a certeza. Conheço bem o seu cartão
ae visita. Conheço essa gente até pelo modo de passar a mão na
cabeça de uma criança! (tira o revólver da cintura) Armem-se! (ba-
tida violenta na porta.) Francesca, pegue osc u revólver!
FRANCESCA Não, Balabanoff! Eu não qüeqo morrer... ou
agora... preciso viver!
BALABANOFF — Precisa! Eu ia achar muita graça se a- primei'

18

i
TN.CPtt.PTE J03 n.

ra bala dêsses bandidos lhe varasse êsse ventre! (batida violenta na


porta)
BONARD — Abro?
BALABANOFF (examinando o tambor do revólver) — Abra!
FRANCESCA (orgue-sc e posta-se rente à parede, do lado da por-
ia de entrada, 11a bôea do cena.)
BALABANOFF (cm atitude defensiva, coloca-se perto da porta)
BONARD (avança Icntamcnte para tirar o fcrrôlho)

DESCE O PANO RÀPI DAM ENTE


■» '
j■
SEGUNDO ATO
.
O mesmo cenário — BALABANOFF e FRANCESCA estão na mesma
atitude do ato anterior

BONARD (pondo u mão no fcrrollio) — Abro mesmo?


BALABANOFF — Abra, sim, cretino! Acovardou-se, também?
BONARD (abre bruscamente a porta — ruido de ventania —
JOSETE surge num espetacular vestido de tarde com um grande chá-
péu dc plumas e uma sombrinha. É jovem e bela — sente-se uma mu-
lher fina, simulando vulgaridade)
JOSETE — Boa noite, (estaca, reparando nos homens armados)
Posso entrar?
BALABANOFF (autoritário) — Entre!
JOSETE (entrando) — Desculpem-me, mas meu tilburi atolou na
lama. De modo algum eu podería continuar a viagem.
BONARD — Faço uma idéia da estrada, com êste temporal! De-
ve estar um sabão.
JOSETE — Que raiva! Era a primeira excursão grande que eu
fazia com o meu tilburi nôvo. Não ouviram os meus gritos?
BALABANOFF (seco) — Ninguém ouviu nada.
JOSETE — É natural... Com essa trovoada e essa ventania...
BALABANOFF (sondando) — Então passeava por esta estrada,
de tilburi?
JOSETE — Passeava, não. Eu viajava... por necessidade.
BALABANOFF — Necessidade... de que?
JOSETE — De atravessar a fronteira por motivos profissionais.
BALABANOFF (examinando-a dos pés à cabeça) — E que pro-
fissão exerce, se não fôr indiscrição perguntar?
JOSETE — Eu sou. . . eu sou...
BALABANOFF — Está um tanto nervosa, mc parece...
JOSETE — Eu sou bailarina... bailarina. Também 0 senhor acha
fácil coordenar idéias com êsses revólveres apontando para mim? Por
que isso, pode me dizer? Me acham com cara de delinqüente?
BALABANOFF — Tem havido coisas muito sérias nesta região.
JOSETE — Ah! Já percebí. Os senhores são da polícia. Estão
controlando a estrada.

19

/
TN CPn.PTE - ' P. -vC»

BONARD — Mais ou menos... Uma espécie de...


BALABANOFF — Bonard!
JOSETE — Polícia secreta! Estão proibidos de dizer que são,
não é assim? Pode íazer o favor de apontar esse cano para ou oro la-
do? Obrigada. Então posso entrar?
BALABANOFF (duro) — Entre! Mesmo porque não está choven-
do aqui dentro. (Guarda o revólver.) Tranque bem a porta, Bonaid:
JOSETE — Tenho verdadeiro pavor de brincadeiras com
de fogo. Uma vez, no meu camarim, uma colega minha foi-me
trar uma pistolazinha de bôlsa, mexi no gatilho, sem querei...
pum! — a^bala foi acertar justamente no meu vidro grande de per
fume cheinho. Onde está um revólver está o demônio... a senhora
não acha?
FRANCESCA —- Está pelo menos a morte.
BALABANOFF — Realmente, foi falta de sorte. A bala bem po-
deria ter atingido uma coisa menos importante: o coração ae sua co-
lega, por exemplo.
JOSETE Oh, não faça ironias com a fatalidade! Quem quer
me aiTanjar um par de pantufas? > Estou com os pés tão molhados!
Aliás, eu tenho uma valise de “week-end” com bastante roupa, na
carruagem.. . mas seria uma desumanidade, reconheço, peclu a ai-
guém para ir buscá-la, debaixo de uma tempestade destas...
BALABANOFF — Nós lhe arranjaremos a roupa. Como se chama?
JOSETE — Josette... Josette Valmore.
BALABANOFF — Tem algum documento de identidade?
JOSETE — Aqui, não. Tenho no tílburi.
BONARD — Josette Valmore... Josette Valmore... Tenho idéia
de ter visto fotografias suas numa revista qualquer... espeie...
JOSETE — Eu digo: foi... foi num semanário de “boites” e tea-
trinhos chamado “Paris em camisa”.
BONARD — Exatamente: o “Paris em camisa”! E se a memória
me ajuda outra vez, mademoiselie dança, completamente nua, uni
“ballet” de Igor Ulitchino chamado “Inocência”.
JOSETE — Nua!? Nua, sim. Isso mesmo: “Inocência”, de Igor
Ulitchino. O senhor tem uma memória formidável.
BONARD — Graças a Deus, uma memória de ferro!
FRANCESCA — Mademoiselie dansa completamente nua, sem “ea-
che-sex”... nem nada?
JOSETE Eu? É!... Sem “cache-sex”, nem nada.
FRANCESCA — Ulm — Uhn...
JOSETE — Meu corpo é bastante bonito para não ser excitante,
nem imoral. Os corpos perfeitos não são do carne, são de máirnore.
BALABANOFF — Esta defesa do nú está na literatura preten-
siosa e decadente desse tal Oscar Wilde, um inglês que está apare-
cendo por aí, mas é um sofisma. O nú se dirige sempre a sexualida-
de da platéia, aos instintos inconfessáveis do homem.
JOSETE — Essa era justamente a opinião do meu professor de
danças.
BALABANOFF — Do seu professor de danças?

- 20.

t
TN.CPK.PTE P.0P4

JOSETE — Logo nas primeiras aulas, meu professor disse: Mo-


scle, você tem uma plástica notável, mas como bailarina nunca pas-
sará dc um rinoceronte ensinado. Você é anti-musical, a música mm
raiva dc você. Quer o conselho dc um amigo sincero e de um guia
experiente? Mostre-se nua. Os homens inventaram o nú artístico pa-
ra poderem apreciar as mulheres despidas, diante de suas esposas,
para serem chamados de estetas, em lugar de ordinários ’. Oh! mas
cu discordo do meu professor. Para mim, até vestido, o feio é pomo
gráfico.
BONARD — Subscrevo inteiramente êsse seu conceito. Certas pe
soas ultrajam 0 pudor com 0 rosto, embora seu corpo esteja escon'
ditio num saco ou numa capa de borracha.
JOSETE — Brrr! Que frio! (aproximando-se da lareira) Posso,
ou não, trocar de sapatos? Ou vocês preferem punir o meu nudismo
matando-me de pneumonia?
BALABANOFF — Francesca, leve-a ao quarto e providencie.
FRANCESCA — Mademoiselle... não espere encontrar aqui os
'‘des habilles” da rue de la Paix. Somos gente modesta e estamos nes-
ta cabana de passagem, esperando 0 sol para... para...
BALABANOFF — Para uma excursão ao Pico da Morte.
JOSETE Oh, não se preocupe, madame.. (pausa) Madame, ou
mademoiselle?
FRANCESCA (indecisa, espia para Balabanoff.) — Madame.
JOSETE — São alpinistas, não é?
BALABANOFF — Sim, somos alpinistas.
FRANCESCA — Tenha a bondade... É por aqui.
.JOSETE — Deve cansar muito o alpinismo. Eu só gosto de es-
calar montanhas de automóvel. Detesto o esforço físico. Meu sonho,
no teatro, é acabar fazendo 0 papel de estátua, em quadros vivos.
BALABANOFF — Esse deve ser um gênero de bailado mais re-
pousante.
FRANCESCA — Por aqui, mademoiselle.
JOSETE — Obrigada. (Francesca e Josete saem)
BALABANOFF — Estamos com a víbora no seio. Essa mulher
foi mandada pela polícia.
BONARD — Discordo de você. Josette Valmore, eu me lembro
bem, é uma estréia muito conhecida nos cabarés da Place Pigalle.
BALABANOFF — Grande argumento! Nossa polícia está farta
de utilizar essas medioeridades estrangeiras no seu serviço secreto.
Lembra-se da Manolita Fuentes? Ela também era uma artista, uma
cantora aparentemente inocente... inofensiva. “Besa-me... besa-me
mucho”... besa-me aqui... besa-rne lá... e no fim da história,-quin-
ze membros da célula 21 foram parar na prisão!
BONARD — Meu instinto nunca me traiu: Josette Valmore en-
trou aqui por acaso, forçada pelo máu tempo.
BALABANOFF — Digo mais: ela nunca foi Josette Valmore, nem
é bailarina.
BONARD — Ah! isso é muito faro seu! *
BALABANOFF — Você acha que a sua vaga lembrança de al-

21
TN.CPft.PTE Jv3 p.

gamas fotografias, vistas num semanário erótico, provam ser eia Jo-
sette Valmore?
\ BONARD — Perdão! Eu tenho uma perfeita memória gráfica.
Lembro-me muito bem da linha ondulante do seu corpo, do seu sor-
riso perturbador, dos seus olhos de abismo. É ela mesmo!
BALABANOFF — Todas as mulheres dc “Paris em camisa” têm
a linha do corpo ondulante, o sorriso perturbador, e os olhos de abis-
mo. Esse é o gênero da revista. Você pode estar sendo traido pela
sua libidinosidadc.
BONARD — Como! Você mc acha libidinoso?
BALABANOFF — Bonard, o momento não comporta discussões'
sôbre o seu temperamento. Estamos com a polícia dentro de casa, e
a casa está cheia de provas da nossa conspiração.
BONARD — Provas?
BALABANOFF — Sim. A bomba, por exemplo. A bomba está
ali, naquela vitrina, exposta como se fôsse um “bibclot”.
BONARD — Ê mesmoI Eu estava achando tão natural a fabri-
cação dc bombas de dinamite!... (Dirigc-sc ao armário.) Tão natu-
ral como os meus perfumes. (Francesca começa a descer a escada.)
BALABANOFF Eu sei. Você seria capaz de registrai: a sua fábrica
de bombas no Registro de Indústria e Profissões da Prefeitura. .
FRANCESCA — Só nos faltava essa! A polícia calçando as mi-
nhas pan tufas!
BALABANOFF — Calma, Francesca, muita calma. Nossa tática
deve ser agora uma filigrana de astúcias. Aliás, êsse é o meu gênero
predileto de luta. Cérebro contra cérebro.
FRANCESCA — Balabanolf, aquôles livros, os papéis... a bom-
ba... (nervosa) Eu tenho mêdo!
BALABANOFF — Francesca, eu preciso de calma, nada mais.
BONARD (abriu o armário e segura a bomba) — Onde vamos
esconder a bomba?
BALABANOFF — Atráz da Enciclopédia Britânica. Para algu-
ma coisa esses monumentos de sabedoria servem.. .
FRANCESCA — Atrás dos livros... O segredo do Polichinelo.
BALABANOFF — Tolice! Ninguém desconfia dos lugares fáceis.
A polícia pensa logo em alçapões, cm cofres embutidos nas paredes.
BONARD — A polícia atribue aos criminosos a sua própria ima-
ginação mórbida.
BALABANOFF — Exato: esconda-a atrás da Enciclopédia Bri-
tânica.
BONARD (obedecendo) — E se ela estivesse nos ouvindo... e
nos vendo?
FRANCESCA — Impossível. Eu tranquei-a no meu quarto.
BALABANOFF — Você trancou-a no seu quarto?!
FRANCESCA — Oh, somente enquanto ela se arruma... en-
quanto tomamos uma resolução. Que fazemos? Diga, Balabanoff!
BALABANOFF — Cérebro contra cérebro. Solte essa espiã de-
pressa, e deixe-a- movimentar-se pela casa. O resto será como Deus
quizer. (limpando a mesa onde estão as ferramentas c os perfumes)
TN.CPK.PTE 403 p.

FRANCESCA — Como Deus quizer, Balabanoff?


BALABANOFF — Deus? Eu disse Deus?
FRANCESCA — Disse, sim. Disse textualmente: “O resto será
como Deus quizer.”
BALABANOFF — Então eu disse isso sem querer... maquinal-
mente... como as crianças dizem... (explodindo) Oh! ao diabo as
explicações! Você bem sabe que eu não me referia ao Deus dos reis,
ao Deus dos amedrontados, ao Deus dos fatalistas!
FRANCESCA — A que Deus, então, você se referia? O anarquií
mo terá por acaso um Deus?
BALABANOFF (saindo do embaraço) — Francesca, acabe com
essa exploração. Eu disse “Deus” como diria acaso, ou futuro, ou d
iaio que nos parta! Vá abrir a porta-do quarto, ande, e não me abor-
reça !
FRANCESCA — Está bem. Mas que você disse: “Será o que Deus
quizer”... disse, (sai)
BALABANOFF (a Bonard) -- Que tem essa doida? Você repa-
rou? Está ficando covarde, confusa e carola!
BONARD — Está ficando mãe, Balabanoff. (pausa) Você não
compreende: mãe!
BALABANOFF — Muito bem. E o que tem isso?
BONARD O que tem isso? (ri) Nada.
BALABANOFF — Como vocês estão ficando sibilinos! Ouça, Bo-
nard: eu não admito que a maternidade possa fazer de um anarquista
um animal deformado pela idéia fixa da sua prole. Francesca está
gostando como uma loba, está ficando feroz e obcecada como uma
loba grávida.
BONARD A natureza não distingue entre mulheres e lobas,
entre mães anarquistas e mães rainhas.
BAI.ABANOFr Não diga tolices! Giovanna Malaspina foi lin-
chada na piaça pública logo depois de acertar o primeiro tiro no pe-
nacho de aigrettes ’ de Sua Magestade. Verificaram, mais tarde, que
ela já estava sofrendo as primeiras dores do parto quando praticou
o atentado.
BONARD — Giovanna Malaspina! Você me cita uma criatura
reconhecidamente doida.
BALABANOFF — Doida, por que? Porque superou todos os pre-
conceitos e colocou sua missão política acima do seu maior sentimen-
to — o da maternidade?
BONARD Uma .mulher sem cultura, movida apenas pelo fa-
natismo cego! Francesca é uma intelectual sensível e consciente. Po-
dc-se comparar uma com a outra?
BALABANOFF — Seja como fôr, eu gostaria que vocês fôssem
menos burguêses, e não fizessem de um futuro filho um teste ridículo
da minha compreenção e do meu sentimentalismo. Para mim, aqui
dentro se 2’epete um banalíssimo fenômeno biológico. Basta de riza-
dinhas irônicas, de ares de suficiência, de expressões veladas de com-
padecimento.
BONA.RD — Você tem o coração duro, Balabanoff.
TN.CPR.PTE - ? p.

BALABANOFF — Duríssimo. É um coração bem diverso elo da-


.quêles imbecis que ficam horas diante do palácio real para sabei se
o filho do tirano é menino, ou menina, se vai usar camisola azul, ou
côr-de-rosa.
(Descem a escada, Francesca e Josete.)
JOSETE Que susto! Sabem que ela me trancou, sem querei,
no quarto?
BALABANOFF — É 0 hábito de trancar. Aqui 0 frio e as cor-
rentes de ar nos fazem viver com as mãos nos ferrôlhos e nos trinco'
JOSETE Vocês vão rir, mas durante alguns segundos, eu pe
sei num seqüestro!
BONARD —Num seqüestro? (ri) Mademoiselle nos achou cor\^^
jeito de bandidos? _ ,
JOSETE 1 — Absolutamente. Tanto que continuei calma quando
ouvi 0 barulho da chave dando a volta. Aquele quarto, onde ea esti-
ve, é 0 do casal? (estuda o ambiente)
FRANCESCA — Não: é o meu quarto.
BALABANOFF — Nós dormimos separados.
JOSETE — Separados?! Pois fazem muito mal. Só os reis e aris-
tocratas dormem em quartos separados.
BALABANOFF — Os reis e os aristocratas?
JOSETE Sim. E sabem por que? Porque não se amam, pro-
que se casam por interesses políticos, calculadamente, sem amor Quem
ama quer sentir o corpo do seu amor juntinho, quentmho afunda-
dinho, nem que a casa tenha vinte quartos e a cama tenha dois me-
tros de largura. ,
BALABANOFF — A intimidade mata 0 amor. Esta pi ovado.
JOSETE — Mata nada. Justamente a intimiaade c qno é o '-,u0i ■
Francesca, junte quanto antes as camas. Balabanoff nao entende
nada de psicologia matrimonial.
FRANCESCA — Balabanoff gosta de ler e de meditar antes de
dormir. É por isso... .
JOSETE — Ah, não, Balabanoff! Cama não é lugai cie ei uia *-
de meditação. Ainda mais quando a gente tem uma mulnerzimia
môça e bonita como Francesca. (examina a mesa onde estão os per-
fumes) Isto aqui é uma fábrica de perfumes?
BONARD — Não, Josete, eu faço perfumes por passatempo. ^
BALABANOFF — E fique logo prevenida, êsses perfumes sao
péssimos, mademoiselle. ,.
BONARD — Agora, com uma pessoa entendiaa, nos vamos ti-
rar isso a limpo! Experimente aqui, Josete. (Pinga no dorso da mao
de Josete.) Esfregue um pouco e aspire.
JOSETE (aspira) Jicky?
BONARD — Jicky é mais acre, menos feminino. Aspire bem.
JOSETE — “Coeur de Jeannette”?
BONARD “Coeur de Jeannette” é mais doce, mais romântico.
BALABANOFF — Não submeta o olfato de mademoiselle a es-
sas torturas. Seu perfume é ruim com qualquer nome,

24
TN.CPH.PTE J£L_

BONARD — Balabanoff, deixe de ser desagradável, ouviu? Es-


tá sentindo?

BONARD —- Exato! “Un air embaumé”!


JOSETE — Que implicância a sua, Balabanoff. O perfume de
Bonard 6 agradabilíssimo, sinceramente.
BONARD — Viu? (a Josetc) Vou fazer um litro para você, Jo-
sete.
JOSETE Obrigada, você é muito gentil. Escutem uma coisa:
vocês não têm, por acaso, um conhaquezinho ou outra bebida qual- /*
quer, forte? Estou com mêdo de ficar resfriada. í^i
FRANCESCA — Temos rhum. Gosta de rhum?
JOSETE — Adoro.
FRANCESCA — Servirei então rhum. (sai) Com licença...
BONARD — Sente-se, por obséquio.
JOSETE — Obrigada, prefiro mexer-me um pouco, para esquen-
tar. (corre os olhos pelo ambiente) Esta cabana é muito agradável,
e não tem nada de um pouso passageiro de alpinistas. Parece o lar
de uma família muito estabilizada, solidamente feliz. Bons livros...
(aproxima-se da estante) A literatura anarquista esta muito bem
representada...
BALABANOFF (nervoso) — Se reparar bem verá que também a
Marxista, a Autocrática e a Democrática estão bem representadas...
Eu me especializei em estudos políticos.
JOSETE Ahn!... Êste aqui deve ser muito interessante: “Do
atentado como bela arte”.
BALABANOFF — Engana-se. “Do atentado como bela arte” é
um livro desinteressante, medíocre.
JOSETE (folheia-o) — Você acha que se pode matar Ura chefe
de Estado com arte?
BALABANOFF — Não compreendo o sentido da sua pergunta.
JOSETE — Êste livro não trata do atentado, como bela arte?
BALABANOFF — Trata.
JOSETE — Pois é. Eu vou explicar melhor: se você resolvesse
matar um rei... Gregório V, por exemplo, o que faria paia consi-
derar artístico o atentado?
BALABANOFF — Eu?
BONARD — Nós somos monarquistas de quatrocentos anos, Jo-
sete.
BALABANOFF — Meu pai chamou o Czar Nicolau de pai-
sinho.. .
JOSETE — Eu sei, mas nós estamos fazendo de conta... Eu
quero ver se consigo entender essas coisas.
BALABANOFF — Francamente, mademoiselle, nem o próprio au-
tor defende objetivamente o sentido do título.
JOSETE — Vai ver que, no fim de tudo, o autor manda dar um
lacinho de fita na bomba. E êste aqui? “A dinamite como alavanca
da igualdade social”! Biblíotequinha bem sortida, hein?

25

J
TN.CPn.PTE

BONARD — Você está escolhendo justamente os livros da pra-


teleira sangrenta, Olhe, nesta aqui temos: “De amor também se mor-
ie , A dama das camélias”, “As tentações de Santo Antão”. Nossas
leituras são ecléticas, muito ecléticas...
JOSETE (tira outro exemplar) “O manual do perfeito regidda",
com cinqüenta receitas para a confecção de engenhos mortíferos
volume segundo”.
BONAR D— E o “pendant” está aqui, na outra estante: “Pa-
raiso e inferno do guloso”, guia gastronômico com mil receitas de
pratos gostosos e notas relativas à sua cligestibilidade.
BALABANOFF — Embora nossa alimentação seja habitualmcn/?'
te muito frugal... franciscana, mesmo.
JOSETE — A “Enciclopédia Britânica...
BALABANOFF (afobado) — Mademoiselle.... olhe aqui, veja estas
X
primeiras edições de Molière e de Manzoni... " ’ '~
JOSETE — A Enciclopédia Britânica, última edição, completa.
BONARD — Josete, êste album de retratos de Renoir é formidá-
vel, olhe!
FRANCESCA (entrou com a garrafa de rhum, c o copo, a tem-
po de perceber o embaraço dos companheiros) — Venha tomar o
seu rhum, mademoiselle. Não facilite com os resfriados.
BALABANOFF — Seu rhum, mademoiselle!
BONARD — Francesca está chamando. O rhum chegou!
JOSETE (Retira o volume da enciclopédia.) — O mal das Enci-
ciopédias é .0 seu nacionalismo, não acham? Eu nunca compreendí
por que Walter Scott e Dickens merecem muito mais linhas na Enci-
clopédia Inglesa do que na francesa, e por que Racine e Corneille va-
lem mais espaço do que Shakespeare, na francesa. (Olha para o vazio
da estante.) Que é isso? (Retira a bomba.) Alguma reminiscência da
guerra?
BALABANOFF — É.. . é isso mesmo. . . Um “souvenir”... uma
lembrancinha.. carinhosa de um amigo nosso que fêz a guerra.
FRANCESCA - Material abandonado pelos turcos .na guerra da
Tripolitânia.
BONARD — Mas tenha cuidado, mademoiselle. A bomba está
intacta, c é de um poder destrutivo tremendo, diabólico.
BALABANOFF (irônico) — Não será nem tremendo, nem dia-
bólico, mademoiselle, mas é bem capaz de explodir, caindo. Deixe-a
no lugar, por favor.
BONARD — Bem capaz, não: eia explode mesmo, caindo.
JOSETE (deixa escapar a bomba das mãos) Meu Deus! Que
desgraça!
(Todos se deitam precipitadanicnte. Longa pausa.)
JOSETE — Por que não explodiu logo? Será uma bomba de tem-
po com ação retardada?
BALABANOFF (levantando-se) — Não, mademoiselle, retardado
é o fabricante dessa joça!

t
TN.CPK.PTE JOg

BONAED — Joça? Joscttc Valmore, diga a verdade: a bomba,


bateu ou não bateu, aqui, em cima do tapete?
BALABANOFF — Lá vem você com o tapete! De acordo com a
sua explicação, os turcos teriam ganho a guerra botando debaixo
dos obuses e das granadas dos italianos os seus maravilhosos tapetes
cie Srnirna.
BONARD — Josette Valmore! diga: bateu ou nao bateu, aqui,
em cima do tapête?
JOSETE Realmente, bateu. Eu observei bem: o choque não
ícz o menor ruído, o amortecimento foi pei feito.
BONARD Ouviram? Convenceram-se agora? Ela é neutra, sua
opinião pesa. .
JOSETE — Deixem-me fazer uma pergunta: Por que voces n-
caram tão indignados com o fracasso da explosão? Vocês tinham
feito uma promessa de voar pelos ares com essa bomba?
FRANCESCA Oh! É muito simples. Trata-se de uma discussão
balística entre nós e Bonard. Êle se diz perito nêsses assuntos, e nos
garantiu que a bomba seria capaz de carregar metade dos Alpes.
BALABANOFF — Entretanto, eu e Francesca negamos qualquer
poder destrutivo a êsse ferro-velho.
BONARD (guardando a bomba) — Ferro-velho? Agradeçam a
êsse tapête, se ainda estamos conversando cordialmente. Ferro-velho?
Se em vez de cair aqui, tivesse caido alí, não teria sobrado uma lasca
de ôsso para justificar o anúncio do nosso entea o.
JOSETE — Que perspectiva macabra! Eu tenho tantos amigos
e admiradores! . ... .
BALABANOFF — Eu mantenho a minha opmiao: com essa ma-
quina infernal podem jogar futebol os meninos do jardim da infância.
FRANCESCA — Seja como fôr, sempre é agradavel descoqnr a
inocuidade de um fantasma. Essa bomba, dentro de casa, nos enchia
de pesadelos.
BONARD — Pois olhem, eu acho muito deselegante, muito sem
“charme”, vocês se aproveitarem da presença de uma pessoa estra-
nha para mc passarem o diploma de imbecil!
FRANCESCA — Bem, bem, vamos acabar com essa discussão.
Madcmoiscllc até sc esqueceu dc tomar o rhum. Viu? (serve-lhe o
vii um) Tenha a bondade.
JOSETE Obrigada. E vocês... não bebem?
FRANCESCA Somos todos abstêmios. Reservamos o rhum pa-
ra os nossos bivaques, nas montanhas cobertas de neve.
JOSETE (bebe um gole, deposita o cálice, e respira profimüamtm-
íc) Como é puro o ar na montanha! (pausa) Balabanou tam-
bém faz alpinismo?
BALABANOFF — É evidente!
JOSETE — Evidente não é, não, Balabanoff, me desculpe. Voce
tem tudo do sedentário, do homem de gabinete.
BONARD (intencional) — Pois veja a coincidência: êle 6 o “ca-
ptam” da nossa equipe de... esquiadores.

27
TN.çpn.PTE (P5 D. Jg

"rho“ir:r“LPode-se *»■ -

BonX“ Pf °,he' OU and0 assiffil nâ0 50


’ nada.
reias. (“ ~ 11 ,U° “ meted
^» é a do baixo, como nas sc-
BALABANOFF (austero) — Bonardí Por favori
JOSETE — Você dança clássico, BalabanoíP

•»»V-
BALABANOFF - Eu? '
JOSETE — Você não é russo?
BALABANOFF — De Odessa.
ê n iista e resol e
deixar o Czar vire* Marin™” “ ' '’

!ixe,EoAna„B” ~ POiS eU nâ
° “ nÜlista
’ -1“™ 9- o Czar se

FRANrpqpâÊle
FRANCESCA . brincando, não
— Absolutamente, é, Francesca?
mademoiselle. Balabanoff nün
dança a mais simples dança de salão. ‘ ‘ na0

dem dançar: n^cemsabeX São"como^s cfga^comT •?“"

XJLo?SÜIOU Vi0lin
° a Cigan0? (pausa)
Você tem uma mama

JOSETü,
JOTEraVnoJ LUm
Voce podia f malha
abnr uma-de
excessão e dançar
teilarino, uma que?
eu? Para besteiri
nha qualquer para a sua colega. ' besteui-

. BALABANOFF — Mademoiselle me desculpe mas eu ar-hn r»m


- - °nsti,n edor, para não dizer indelicado, insistirmos num
a
pedido depois de umag recusa formal.

. J°SETE ~ Está bem, está bem... Não vamos brigar nor uma
coisa tao simples. Eu insisto como artista... (Transição)

‘ Uma
“1$f: iá PenSaram onde eu ™“ d°™ir esta noite? *
BALABANOFF — Ali, naquêle sofá.

boas

a A
^ ^ SZ

seIlefBANCES°A ~ ^ de tramse
™ d
“os ou macios, mademoi- '

müscnI d
rugas“S ~ « “ ° Retardam as
FRANCESCA — Nunca ouví falar Até nnni ^ ,
sagens e os cremes. Não quer comer ateurr, ™ C nheCiã as mas
° "
C01sa antes de se
Temos ovos, presunto bisrofL f deitar?
servas salgadas ' “* adensado, e algumas =on-
JOSETE _ Muito obrigada. Eu ataoeei com o empresário Jean

28
TN.CPR.PTE_L£â_ P-

Renoir. Jean Eenoir é dêsses homens que se consideram insultados se


não comemos tudo aquilo que êles escolhem para nos causai uma ca-
rinhosa indigestão.
FRANCESCA — Se é assim... Não queremos é que faça a menor
cerimônia.
JOSETE — Oh, nem pense nisso! Eu me sinto corno se vocês es-
tivessem presos... (bebe um gole) presos a mim por uma velha ami-
zade.
FRANCESCA — Com licença,.. (sai)
BONARD (enchendo o cachimbo) — Se gosta de ler, antes de dor-
mir, posso passar o “abat-jour” para perto da cama.
JOSETE — Obrigada. Não gosto de ler de noite por causa do meu
subconsciente.
BONARD — Do seu subconsciente?
JOSETE — Eu acabo sonhando com o que li.
BONARD ■— Mas êsse dom é invejável. Escolhendo bem os livros,
poderá sonhar sonhos maravilhoso».
JOSETE — Tem razão, Mus eu adoro os romances policiais, as
aventu ras misteriosas.
BONARD — Ah! então já é diferente.
JOSETE — é horrível. De noite, os enredos que estavam deslinda-
cios nos livros, tornam-se a emaranhar no meu espírito, e se transfor-
mam em pesadelo.
BONARD — Isso não é nada agradável.
JOSETE — Ainda agora, quando retirei o volume da Enciclopédia
Britânica e encontrei aquela bomba, me lembrei de um dêsses pesa-
delos.
BONARD — Sim, sim...
JOSETE — Eu era uma criminosa, e tinha escondido provas de
meu crime atrás de alguns livros, enquanto a polícia investigava nou-
tro lugar da casa. “Ninguém desconfiará de um esconderijo tão pouco
misterioso, tão infantil”, raciocinava eu, em sonho. Mas a policia, que
,* vira os volumes alinhados simetricamente, ao entrar, notou, quando
ia saindo, que um dêles fora mexido, pois avançava um pouco para
fora da estante. Êsse detalhe ridículo só não me fêz balançar na
íôrea porque acordei justamente quando a .corda ia-se apertando no
meu pescoço, êsse pescoço “de cisne”, como diz o cretino do Renoir.
BONARD (simulando fleuma) — Isto é profundamente interes-
sante. Mas, no livro, como acabava essa aventura? Com certeza vo-
cê leu essa aventura num livro, não é mesmo?
1 JOSETE — Naturalmente! No livro a criminosa matava mesmo
o conde e a condessa, e ninguém conseguia descobrir a pista certa.
Um crime perfeito. Aliás, eu não acredito em crime perfeito... Vo-
cê acredita?
BONARD (depois de pausa) — Não, não acredito. O sentimento
de culpa cega os olhos do espírito. A inocência é sempre mais inteli-
gente e mais lúcida.
i
! 29

t
TH.CPK.PTE___ri_ P- 3 O

JOSETE - De pleno acordo, (bebe o último gole) Eu lería com


prazer um livro de crianças -Tem algum?
BONARD — Tenho o “Pinochio”.
JOSETE — B uma leitura da minha infância que esta sempre
na minha memória. Até hoje, quando eu minto, ou alguém me im-
pinge uma mentira, eu vejo o meu nariz, ou o nariz ae ^meo-
versa comigo, crescendo até ficar do tamanho de uma tiomba de

eleía 0)1
BoNARD — Que horror! Eu só imagino quantas trombas de ele-
fante você vê a cada momento, neste nosso mundo *ã° uunugo a
verdade! (encaminha-se para a estante. Tira o livro) Aqui temos Pi- XW
nochio”. (Entrega-o) É urna edição de luxo, com desenhos colorido,

BALABANOFF (entra trazendo uma braçada de lemsu) —


com pena do seu tíiburi, mademoiselle.
JOSETE - Nem me fale! Urn tíiburi novinho, de Ducrot, o me-
lhor segeiro de Paris. i .
BONARD — Mestre Ducrot, o segeiro aos reis.
FRANCESCA (trazendo a roupa de cama) - Preparei uma ce^
modesta, mademoiselle. Vá lá dentro, com Bonard, e coma a.0 -

C ÍSa
° jOSETE - Muito obrigada, mas eu ainda não digeri o almôco
pantagruélico do Renoir.
BALABANOFF — Pois eu estou morrendo de -amo.
BONARD — E eu, idem. _
FRANCESCA — Então tratem de comer, mas nao facum muna
desordem na copa. Quero tudo lavado, depois! tit m
BALABANOFF — Lavar tudo depois: pode-se ter apetite, .01
uma impo ç _ E tudo muito enxuto. Nada de espertezas, pen-

que eu vou examinar, (riem. Saem Balahanoff e Bonard. Francesca


íaZ
josETE — Eu^ não tenlio a menor vocação para 0 casamento,

ÍWaS
^RANCESCA1 —- NósISmos realmente felizes. Bonard é como um
irmão do meu marido, c nos clistrai bastante. , ívv(VmH1
JOSETE - Ele 6 muito simpático. Tem alguma coisa de mlantil,
de imaculado, do bom. Devo ser « romântico querendo e^onder.
seu coracão de manteiga debaixo de falsos espinhos. Eu tive um
j morado assim. Ele será capaz de pôr arame farpado na portaJe™
sa não por mêdo que a invadam para lhe pedn coisas, ma
do de sair á rua para oferecê-las. Gente que arma um conflito, para
esconder a vontade de dar um beijo.
FRANCESCA - O seu retrato é perfeito. Bonard é assim mes-
mo. (arrumando o sofá) Podemos falar com tôda a franqueza.
JOSETE — Naturalmente. .
FRANCESCA — Mademoiselle não é bailarina, e mamo menos
um número nudista de cabaré.
JOSETE — Sou, sim. Por que duvida?

30

• , "7~ s *A-'. " Eh


TN.CPW.PTE JOZ p

FRANCESCA — Vamos pôr as cartas na mêsa com tòda lealdade?


JOSETE — Francamente, não percebí ainda aonde quer chegar.
FRANCESCA — Procure compreender-me. Talvez nem eu, nem
mademoisene, possamos dizer tudo, mas, com lealdade, chegaremos a
entender-nos. E preciso que me entenda! (pausa)
JOSETE —- Fale, então!
FRANCESCA — Eu vou ser mãe. A promessa dêsse filho tornou
sem importância tôdas as queixas que eu pudesse ter da vida e dos
homens.
JOSETE — É a primeira vez que.. .
FRANCESCA — Sim. Eu era considerada completamente estéril.
Tinha perdido tôdas as esperanças, (pausa)
JOSETE — Fale francamente, não tenha receio.
FRANCESCA — Não imagina como eu sofri, vendo tantas mu-
lheres obscuras e ignorantes, às vêzcs revoltadas contra a própria
feeundidade, carregando crianças lindas como se carregasse uma cruz;
(pausa) Esses pormenores talvez a estejam caceteando, não?
JOSETE — Pelo contrário.
FRANCESCA — Eu precisava tanto de me abrir com alguém!...
(observa se ninguém a espia) É verdade. Aquelas mulheres, nem sem-
pre dignas da maternidade, me afrontavam como se a sua gravidez
fôsse uma injúria dirigida pessoalmente a mim, uma alusão impie-
dosa à minha esterilidade ,ao meu destino injusto. Compreende?
JOSETE — Eu compreendo, Francesca.
FRANCESCA — Ninguém imagina a tortura que é termos von-
tade de beijar tôdas as crianças da rua, e fingirmos que não suporta- /
ríamos as nossas, se as tivéssemos. Deixarmos acreditar que evitamos
filhos, ou provocamos abortos, enquanto ocultamente procuramos os
piores charlatães para conceber! (com cautela) Josete, nós somos vi-
• timas de uma grotesca, mas perigosa alucinação, aqui dentro. Você
percebeu?
JOSETE — Percebi, sim.
FRANCESCA — Você exige que eu fale mais claro?
JOSETE — Não é preciso. Você criaria um conflito inútil de
consciência.
FRANCESCA — Obrigada, Josete. Eu aceitaria, neste momento,
qualquer condição, contanto que meu filho pudesse nascer em paz,
fazer do mundo uma idéia diferente da nossa, (pausa) Você já pen-
sou nessas condições?
‘ JOSETE — Eu não tenho razão para impòr condições. Mas pos-
so dar um bom. conselho. Francesca, prometa-me apenas lutar aqui
dentro, desde êste momento, para seu filho encontrar aquêle mundo
diferente, mal abrir os olhos. Só isto, nada mais.
FRANCESCA — Prometo.
JOSETE — Então vamos pensar na côr dos olhos do seu filho.
Como são mesmo os olhos de Balabanoff? (batem violentamente à
porta da rua)
FRANCESCA (aterrorizada) — Agora são êles! Sim, são êles!
JOSETE Êles, quem?
TN.CPK.PTE 0. JoL

FRANCESCA — Êlesl Pelo amor de Deus, lembre-se das minha*


palavras! rrêdo? (batem no-
JOSETE — Acalme-se, vamos. Por que ess^
vamcnte à porto)
FRANCESCA - Quer abrir? Eu estou muito nervosa,
jqSETE - Eu abro. (quando da vai abrir, surgem, no íunuo,

Ba U
' BAiIbANOFE - Conforme eu previa, êles batem pontualmente
à nossa porta, não é assim?
FRANCESCA — Cale-se, Balabanon.
BONARD - Psiu... (.íoscte abre a porta. Cocheiro aparece)
COCHEIRO (reverente) - A polícia rodoviária já chegou,
celència!
a «eia hora pode-

remos partir. muit0 cuidado. Veja que éles não me

que “rodas d“ t“huri. Aquelas rodas são nruito elegantes, mas

íra,
CoSílRO - pode ficar descansada,
mo estou dirigindo o trabalho. Também ja parou do ..

eStâ
,OsÊTE -aQ«e bom! Eu queria tanto que fieesse sol amanhã!
(para os outros) O ceu esta todo usuclado^ depressa vem,
COCHEIRO — Eu nao dizia? Chuvas ae
depressa vão... (reverência)
BALABANOFF - Eonard, um col®ga ^ . # (reVerência.
COCHEIRO - Com sua licença, Excelentíssima... v
Sai. Alívio) . . . de ‘<excelentíssima’’? Tôdas

as viTue
• ta. O álcool afeta ^ratam^te a > * pena!

BONARD - E por que não dorme aqui? Tem algum mmp


misso?
FRANCESCA — Fique, Josete... . Não cons.
BALABANOFF (meió irritado) — Francesca. (de * J tire.

tranjam mademoiselle. Mesmo porque se: o.tempo mel^ ^1 ■ -


m
“STEn"US tem rSo Além disso, estou sendo es-

>>nvci Vooêc têm um. íouógrufo, ncSi/H. cusci.


BONARD — Nem fonógrafo, ném piano, nem bandolim, nem na-
dai Balabanoíf detesta a música.
TOSETE — Será possível, Balabanoíf?
BALABANOFF - A música é o ópio da rasão. Duas mentiras irn-

32

TN.GPH.PfE ^03 p.

litaristas, e o hino nacional, armam qualquer povo culto e musical.


A Alemanha deu Bach, Beethoven e Wagner...
JOSETE — Pois eu precisava justamente de um fonógrafo, e de
um disco de tango, para Bonard ver um ensaio do meu último núme-
ro, e dar uma opinião sincera: Tenho certas dúvidas sôbre êsse nú-
4
mero.
BONARD — Eu?
JOSETE — Você, sim.
BONARD — Obrigado pela distinção. Nêsse caso podemos fazer o
seguinte: eu canto um tango, e você dança.
BALABANOFF — Que horror! Bonard cantarolando um tango!
JOSETE — Ótimo, Bonard! Você é um anjo!
BALABANOFF — Se mademoiselle dá licença, eu e Francesca nos
retiramos. Eu dedico ao tango um ódio todo especial. Um tango me
imbeciliza por vinte e quatro horas.
JOSETE — Vinte e quatro horas? É muito.
FRANCESCA — Eu gostaria de assistir o ensaio.
BALABANOFF —- Você?! Que novidade ó essa? Você sempre de-
testou essas coisas! Com licença! (sai, puxando Francesca pelo braço)
JOSETE — Vocês são complicados! Palavra, tem horas que vocês
todos me parecem doidos.
BONARD -- Parece, não. Somos. Você conhece a definição pari-
siense do tango?
JOSETE — Não.
BONARD — “Le tango est une danse que se danse avec le vi-
sage triste et le derrière alégre”.
JOSETE — Que ótimo! Deixe ver. (fecha o rosto, fica cm posição
de dançar — cantarola alguns compassos, c estremece o “derrière”)
Mas, é isso mesmo! eu só tinha reparado no “visage triste”... Bo-
nard, cantarole agora o tango. Eu andei inventando umas marca-
ções formidáveis. (Começa a marcar a dança sem música)
BONARD — Josete, escute aqui. (observa em redor se está sendo
espionado) Você mora mesmo em Biarritz?
JOSETE — Durante a temporada. Depois eu viro urna judia er-
rante, e começo a correr cidades.
BONARD — Se eu pudesse aproveitaria a “carona” e iria com
você até Biarritz.
JOSETE — E por que não vem você comigo? Venha! É até uma
“chance”. Numa noite estrelada, eu não preciso de mais de sessenta
quilômetros para gostar de um homem com quem simpatizo.
BONARD — E de quantos quilômetros precisa .você, para esque-
cê-lo? De cento e vinte?
JOSETE — Que péssimo juízo você fáz da minha constância,
hein?
BONARD — Eu estou brincando, Josete. Aliás, eu não posso ar-
redar um pé desta casa.
JOSETE — Não pode?
BONARD — Não.
JOSETE E por que?
TN.CPK.PtE J<33_ p< >4

BONAR Por que?... Porque um alpinista não deserta na vés-


pera cíc uma excursão pesada. Na montanha há uni código de lionia.
JOSETE — Que bobagem! Deixar de ir a Biarritz, comigo, por
causa de uma montanha gelada, antipática, cheia de pedras pontu-
das. Quem gosta de montanha é cabrito, Bonard.
BONARD — Eu sei. é cabrito, e o Balabanoff.
JOSETE Vamos? É carona mesmo, sem nenhum compromisso
de pagar de outra forma. Chegando iá, eu solto você, e você se espalha
sozinho, como bem entender.
BONARD — É impossível, Josete. Aquela corda‘que você vê segura
pelas mãos de vários alpinistas, em cima dos abismos, é o símbolo da
nossa solidariedade. Se um solta, todos rolam.

-■'H*
JOSETE — Está bem, Bonard, mas, se eu fôsse você, roia a corda.
BONARD — Roia a corda?
JOSETE i Sim. Deixava esses maníacos. Afinal de contas, vocês
ainda não estão escalando a montanha... ninguém está ^ para rolar.
Vocé pode me conseguir um eafèzinho, antes de eu paitii?
BONARD — Claro, Josete, num instante! (sai)
JOSETE (Localiza a bomba. Atira-a pela janela, c tapa os ouvidos,
esperando a explosão, que não se dá; depois olha para a janela c pa-
ra a porta interna, sacode a cabeça com uma expressão de surpresa
e de piedade) — Pobres diabos!
BONARD (com a xícara de café) — Francesca estava acabando
de fazer o café.. .
»
JOSETE — Obrigada, Bonard. (Fala entre goles.) E agora eu vou,
Bonard. Quer chamar Francesca e Balabanoff para eu me despedir?
BONARD — Não se incomode. Eu apresentarei a êles as suas des-
-pedidas.
JOSETE — Mas. ..
•* BONARD — Deixe. Balabanoff ainda está discutindo porque Fran-
cesca queria ver o ensaio do tango.
JOSETE —'Pobre Francesca! Então agradeça muito aos dois,
e diga a Francesca que ela pode começar aquilo que eu pedi.
BONARD — Já sei, algum casaco de tricot. Quando duas mu-
lheres se juntam, ou sai intriga ou sai “tricot”.
JOSETE — Desta vez vai sair muito tricot... Adeus, Bonard.
Você vai chegar à conclusão de que fêz uma grande tolice não apio-
veitando a carona para Biarritz...
BONARD — impossível. Adeus, Josete. (beija-lhe demoradamen-
te a mão. Balabanoff entra. Vê o beijo. Recua. Bonard acompanha
Josete até fora da porta. Balabanoff aparece e cruza os braços, o olhar
imóvel para a porta por onde saiu Bonard. — Bonard volta.)
BALABANOFF — Traidor! Beijando a mão daquela ignóbil espia!
BONARD — Por favor, Balabanoff, não chateie! (retira-se)
BALABANOFF — Hein? Como disse?
BONARD (da porta interna) — É isso mesmo. Vocé precisa per-
der essa sua mania de anarquizar tudo. Você é o rei dos chatos! (sai)

DESCE O PANO

34

t
mcpn.ptE_i^-_p- &

TERCEIRO ATO

O mesmo rcmivio. O lampcãn está apagmlo, Entro u»n pouco do lur.


dó iiiitnlia pelas frostiiM <i» janela. iioiiani oochsia, ■ «•ensiado no
sofá. Está de colete, sem o paletó.)

BALABANOFF (entra com um apanhado de rosas, escancara a


janela. O sol invade o recinto.) (de longe) — Bonard! (aproximan-
do-se do sofá) Bonard!
BONARD (abrindo os olhos, sem se mexer) —■ Não berre tanto!
Eu estou acordado.
BALABANQFF — Você dormiu aí, vestido?
BONARD — Não. Dormi no meu quarto, mas tive uma insônia
desgraçada. De manhã cedinho, me vesti, e fui dar uma volta.
BALABANQFF — Eu também dormi mal. Nós temos a noção da
responsabilidade.
BONARD — Noção da responsabilidade? (espreguiça-se) Respon-
sabilidade. .. de que?
BALABANOFF- — Essa é boa! Você ficou desmemoriado, de re-
pente?
BONARD — Não grite logo de manhã, Balabanoff. De manhã,
quando eu não acordo com uma bonita pequena falando ao meu auvido,
prefiro ouvir os rouxinóis...
BALABANOFF — Está fazendo sol, compreendeu ? Sol! Olhe aqui
as rosas...
BONARD — Ah! o atentado... (boceja) Eu estava procurando
rne lembrar o que é que tinha anotado no meu carnet para o dia de
hoje.. . E era isso: obrigar a Côrte a vestir luto.. . (entra Francesca)
—■ FRANCESCA — Venham tomar café. (põe sobre a mesa o- serviço
completo que trouxe na bandeja. Alegre) Fiz um pãozinho de minu-
•« to para nós, com um pouquinho de erva doce. Deve .estar uma de-
licia.
BONARD (enfiando o paletó) — Você dormiu bem, Francesca?
(dirigi-se para a mesa)
FRANCESCA — Um sono só!
BALABANOFF (põe as rosas numa grande jarra e segue o diá-
logo, intrigado, dominando a vontade de explodir. Senta-se à mesa.)
BONARD — Pois eu rolei na cama a noite tôda.
FRANCESCA — Efeitos do tango?
BONARD — É quase certo, (todos vão se servindo)
FRANCESCA — Linda pequena, a Josete, não achou?
BALABANOFF — Linda... e da policia. A combinação ideal.
Mas esperem, ela deve estar pensando em vocês:
BONARD — Estamos comentando a beleza ■ da mulher, Balaba-
noff. Se quizer interferir na nossa conversa, recorra apenas a argu-
mentos plásticos.
BALABANOFF — Me passa a geléia!
FRANCESCA — Eu compreendo que um homem conte todos os

35

li

/
TN.CPn.PTE J
>-3á

esposa, dG
aHZtn Esta ú a uma mulhcr assim
e um f r ,
desfalque - depois dc dar arsênico
no Tesouro Nacional

... “°^RD 7 *»*.!■» ”«** Josete é o tipo toque-


UJhcies
do Deuxieme Bureau e do Intelligence Service como
r manCeS dG espi0nagem
naicior salta''d °
do pescoço ' A cabe
para dentro da cesta, ^a guilhotinada
sangrando, do
e os lábios
aincia balbuciam, para a espiã, a última galanteria: “E apesar de
P e
tudo, eu te amo, Josete!”
BALABANOFF (irritado) ■— Passe a geléia!
FRANCESCA — A geléia está na sua frente.
BALABANOFF — Já vi. Obrigado.
BQNAmD Para mim a P lícia só é
r ~ ° inteligente quando recor-
er6S J Sete agente da ]ei comum
é m
LmZ ° - ° al encarado,
sustando
’ , f > alerta os criminosos. O agente da lei comum
Z um letreiro
, luminoso na testa: “Eu sou terrível! Eu venho te í

promessa-C“V
promessa.^
1SO Mt ! J Seíe
Vem, arna-me, °eu” valho
° ’a nã °: Joseteeutem
liberdade,
nos olhos
valho a vida”.uma
FRANCESCA — Ela dança bem tango?

rar
Uma plUmâ
■ Desliza no ar com a
elegância de uma
t. hârmoni& de um filhote de
com ela
ela, ZÍ T que tem entre os’ braços a mulher
voce sente serpente.esperada
Dançando
a

encontrou.UlSaVa ^ enCOntrado em cada mulher da sua vida, e não


FRANCESCA — Você dançou muito com ela?
BONARD — Naturalmente.

dentfnA hABANC?FF Incrivel!


^quanto eu queimava os miolos lâ
ma Saída Para a n SSa situa
S
BONARD — Dançava, °
sim. Que tem isso Ção,
Se a você dançava?
polícia entra na

““La SíiLo nt°,!Ugar.de ° prender> diz: “Balabanoff, vamos dançar


nílso if ’ V°Ce Vai dÍZer: “nã°’ nâ0 dan5°> ««tão aqui os meus
do o cksn f ZVSf a.lgeinas!” E ^Pois, nós estamos ainda debateu-
de COntinuar
mentos pIásticos "* ^ ^-ando-se a argu-

de JoSete aair
pedifconS^ ~ ^ « *-

lUsembran?s para vKfe


“X
BAEABANOPP õZZZZ
(afetado) — ZNão
Oh! muito gentil! ***.
deixou tom

^NOESCA^bT3 T“ U
“ ^ C°m eIa
' “
süêncio

BONARD — Josete mandou agradecer muito a hospitalidade- "


e para voce, Francesca, ela mandou um recado... Diabo! Queri
ine lcmbiar o que foi e não ms lembro..'.

de sa™AK°ESCA ~ VeM
* “ lembra
' Bon
ard. (pausa) Gostaria
BONARD Ah!... é isto: “Diga a Francesca que ela pode cr
4 a pode co
meçar aquilo que eu pedi.” ~
ÍRANCESCA — Eu já comecei.
BONARD — E vai ficar bonita?

>
1o
tn cpw.pte S p. 3^

FRANCESCA — Bonita... o que?


BONARD — A swater? Ela não encomendou a você urna swe-
ter de tricot? Não é tricot, aquilo que ela pediu
FRANCESCA — é. .. é uma swater, mas falta lã, e ela disse para
eu começar com a que eu tenho, que ela mandaria outros novelos
depois...
BONARD — Aliás, seu “tricot” é perfeito, Francesca. Não es-
tou querendo ser lisonjeiro.
FRANCESCA — O “tricot” perfeito, é um indício de solidão. Tô-
das as grandes solitárias usam bem as agulhas. Uma especialidade
um pouco melancólica... infelizmente.
BONARD (respirando fundo e olhando para o sol que entra)
Am êste sol! (pensa) Sabe, Francesca, que eu quase aceitei uma ca-

■'í/ONfcV
rona de Josete para Biarritz?
FRANCESCA — É mesmo? Ela convidou?
BONARD — Insistiu, até.
FRANCESCA — Devia ter sido um prazer, sem dúvida. A noite
estava tão linda! Da janela do meu quarto eu olhava para o céu
estrelado e pensava: “Meu Deus, como há criaturas que numa noite
assim nao correm para a rua, e não cantam, e não beijam, e não re-
zam, e não deixam escorrer do coração toda a sua ternura reprimi-
da, e não se reconciliam com a vida e com Deus?”
BALABANOFF — Mais açúcar!
BONARD — Eu também olhei para as estrelas, quando Josete par-
tj.u, e fiquei triste como se tivesse partido o último trem da estação
da minha vida para o país da felicidade. Depois me veio uma vontade
doida de correr atrás do tílburi, de correr até alcança-la, ou estourar o
coração de cansaço, gritando: “Josete! Josete! Pára! Espera! Volta!”
FRANCESCA — Eu dormi um sono só, como nunca tinha dormi-
do. A gente deve, de vez em quando, abrir a janela e olhar como estão
as estiêlas, como passa a lua, como vai a vida nas alturas, acima dos
homens, acima das dôres, acima dos prazeres. Então, os olhos baixam
purificados, e os telhados não parecem cobrir tantas tristezas.
LALABANOF F (dando um sôco na mesa) — Agora, basta!
FRANCESCA — Basta o que, Balabanofí?
’ BALABANOFF — Basta de se divertirem à minha custa! Esta
farsa vai acabar já!
BONARD Modere o volume de sua voz, Balabanofí. Hoje pro-
curaremos . tratar nossos casos a “mezza voce”, suavemente.
BALABANOFF O Chefe aqui dentro sou eu! Não admito êsse
tom de acanalhamento e de insubordinação!
FRANCESCA — Escolha melhor as suas palavras, Balabanofí!
Estou farta da sua prepotência.
BALABANOFF — Francesca!
FRANCESCA — É isso mesmo. Chega de brutalidades!
BA.LABn.NOFF Miseráveis! É êsse o ambiente moral que vocês
criam no dia do atentado?
BONARD ■ Quem está criando é você. Nós estava-mos falando
calmamente de mulheres bonitas e de casaquinhos de lã.

r
TN

FRANCESCA — Não se esqueça, Bonard: no ensaio esse homem


iè.z de um nove]o de lã uma bomba de dinamite. Êle não suporta a
realidade das coisas mais modestas e inocentes! Tudo tem de ser
transformado, deformado de acordo com a sua crueldade política!
BALABÀNOFF — Não diga burrices!
FRANCESCA — Burro é você!
BALABANOFF (Trágico) — Você me chamou de burro? Você te-
ve a audácia de chamar um Balabanoff de burro? (Vai avançando pa-
ra ela com as mãos cm atitude de estrangulamento)
FRANCESCA (serenamente) — Eu não recuo, vé? Perdi o mêdo.
Estrangule! Olhe: aqui está o pescoço.
BALABANOFF (Desconsertado.) — Víbora! Estou com duas ou-
tras víboras no meu seio! Vergonha!
BONARD — Use a palavra com mais propriedade, Balabanoff.
Quem tinha os seios, e os deu para a víbora morder, foi Cleópatra.
Seja menos presunçoso e diga “peito... “no meu peito”. .
BALABANOFF — Desertores! Poltrões! Já sei que vão recusar o
sorteio! Já sei!
BONARD — Você faz mesmo questão de matar o rei?
FRANCESCA — Será que nem agora, que você vai ser pai, toma
juizo?
BALABANOFF — A urna! Eu quero a urna! Vocês terão que me
acompanhar até o último instante. Se não eu chamo a polícia! eu
chamo a polícia!
BONARD — Cale essa bôea, Balabanoff!
BALABANOFF — Iremos todos para a cadeia, t-odos!
.FRANCESCA — Está dando para ser escandaloso? O que vale é
que não temos vizinhos.
BALABANOFF — Estão muito enganados, se pensam abando-
nar-me no último instante. A urna! Quero a urna!
FRANCESCA — Faça logo a vontade a êssse homem, Bonard.
Estou ficando com dôr de cabeça.
BONARD — Então pare de berrar, ouviu? (procura o chapéu-coco)
Ué! onde está o chapéu-côco com os papelinhos, que eu deixei, ontem,
aqui em cima desta mesa? (Procura.)
FRANCESCA — Eu nem pensei mais nisso, depois da entrada de
Josete!
BONARD — E você, Balabanoff?
BALABANOFF — Eu? Eu tinha mesmo cabeça para- me lembrar
de chapéu-côco! É cada pergunta!
FRANCESCA (noutro tom) — Misterioso. . . não acham? (procura
noutro lado)
BONARD — Já achei, pronto! Estava em cima daquela cadeira,
(examina) Os papelinhos estão aqui dentro. Tudo em ordem, afinal.
FRANCESCA — Me dá, aqui. Desta vez seguro eu. Você quer
ter a honra de extrair o nome, Balabanoff?
BALABANOFF — Faço questão absoluta! (mete a mão no cha-
pér.-côco, lira o púpel, mas fixa as mãos de Francesca, suspeiíoso.)

KiO
OO
TN.cpn.ptE 3—> p. 3^

FRANCESCA (empabna sorrateira mente os f-lois papéis restam


tca) — Que foi? Veja o nome! Por que me olha assim?
BALABANOFF (abre o papel, lê com calma, atento ao efeito) •—
Franoeseu.
b RANCESCA (trai-se escandalosa mente) — Como?!
BALABANOFF — Como, por que? Você estava jogando na certa?
(Avança e prende o pulso de Franeesca, num salto.) Quero ver os
outros papéis que você esconde nas mãos.
FRANCESCA — Você me machuca! Largue o meu braço, Bala-
banoff! Estúpido!
BONARD — Largue-a, Balabanoff! Você ficou doido?
FRANCESCA (lutando) — Bruto!
BALABANOFF — Solta os papéis, ou não solta? (aperta)
aRANCESCA Ai! (abre a mao e deixa cair os papéis) Pron-
to, eu já soltei! (esfregando o pulso que Balabanoff soltou) Covarde!
Animal! E ainda fala da polícia!
BALABANOFF (recolheu os dois papéis) — Ora, muito bem. Aqui
temos três nomes: (lê) Balabanoff... Balabanoff. .. Balabanoff.
A infâmia era justamente como eu suspeitava; um jógc sujo, com
cartas marcadas! (pausa) Você foi parceiro de Franeesca nesta tra-
paça?
BONARD — Não.
FRANCESCA — Bonard ignorava tudo. Eu troquei os nomes,
esta noite, enquanto vocês dormiam..
BONARD — Mas, apesar de ignorar, estou plenamente solidá-
rio com Franeesca.
BALABANOFF — É um belo gesto (irônico) E justo, sobretudo,
(pausa) Em resumo, Franeesca, você queria assassinar-me. Sim, o
que você tramou não passa de uma assassinato comum.
FRANCESCA — Se você acha. . .
BALABANOFF (para sí) — Só eu, exclusivamente eu, mais nin-
guém devia sair daqui para ser cuspido, pisado, mutilado pela polí-
cia e peio populacho em fúria! E por que? Por que você tez isso co-
migo?
FRANCESCA — Você não compreendería, Balabanoff.
BALABANOFF — Eu sou muito obtuso, não é assim?
FRANCESCA — Você não é obtuso.
BALABANOFF — Idiota, então?
r RANCeSCA — Eu acho de péssimo gôsto você exigir que eu
encontre um sinônimo exato da sua incompreensão.
BALABANOFF — Por que devia ser eu, e não você, ou Bonard?
Responda!
FRANCESCA — De nós três, vocé era o mais indiferente à mor-
te e ao processo de morrer.
BALABANOFF — Ao processo de morrer?
FRANCESCA — Todos nós, depois .de conformados com a idéia
da morte violenta, começamos a dar preferência a êsse ou àquele
modo de morrer. Lembra-se de Raquel Guterman? Ela desmaiava com
a Simples idéia de uma agulha espetando a sua carne, tinha horror

39

t
TN.CPK.PTE

à amm branca. No entanto, matou-se bebendo creolína com sóda o


sóda sem gêlo, que é uma coisa ruim de doer. '
BALABANOFF — Continue. Eu quero ver até onde vai es<a sua
cssa SUa
tese monstruosa.

®* Sempre
Lelectuai. (pausa) Outras pessoas
admirei sua
que não toleram• o veneno
curiosidade
acO-

ç^V^BS2rVf
. voce, Balabanoff, eaI
era^
o anarquista
tír impecável.
° n°S mÍÓIOS °U UmaNãocorda
tinhano
peno de
pesco-

?StC, mund0
' nc
“ ttaha
preferências pelo modo deTba^-
tcjado
““ ou moido, reauzido a pílulas ou
outabletes,
apunhal do,entornado ou guilhotinado,
vocé parecia esquar-
rir da

ganeh ^ ^ ^ ™ dG estoicismo e de
audácia. Como me em
BAjLABANOFF — Ah! você achava que na hora de arriscar a
I c.ie nem era preciso sorteio, não é assim? “Bonard, guarde ésse cha

aban ff faz
renuncia' ° ^Uestáo de u
’> êle adora a morte, devemos
êSSe PraZCr
Crn S6U
~Ssc:“
-RANCESCA — Torno " a repetir, 'Balabanoff.
^nefíeiol^Paiha^
De nós três você
eia o naturalmente indicado. Bonard ama; eu vou ter um füh0; vo-

q mat3r Um reL RefIita


sL
em hm conscienciosamente,
hisoensmo a situaçao, e veja se eu não examine
agi com bom senso.

‘ala FstofAdCfFF<~" ReílGtÍr! (C°mcÇa a Pass‘ar Mcrvosamente pela


í a E°nard) Vocè está amando mesmo, Bonard?
po™ — Alucinadamente.
BONARD
BALABANOFF — Mas assim... tão depressa?
BONARD — Foi um verdadeiro “eoup de foudrè”!

“ST ~Um “C0UP <•* too*»”» Q™ vem a ser isso?


possív“ comunTat?. ° ““ * ** üma «*»
BALABANOFF - Ahni... E Josete sabe?
BONARD — Desconfia. Mas, com mais um “tête a tête” eu
resolvo a parada. ’ eu
ALÁB AN FF (coníiniia a
fo,^ r ° Passear, estaca defronte de Fran-
ce Você
cieseía¥a tant0 assIm
fkTncesca — Com
bRANCESCA p” Tl
toda a'minha alma, com todo o «W
meufillrov
san-
gue, desesperadamente.
BALABANOFF (continua a caminhar. Estaca.) - Realmente é

nai ue todos,1*?’
nTdeXot (solene)
f™ Bonard! CaS
° Traga-me° é a° bomba!
— » o mais ha!

banoíf?ANCESCA ~~ V0CÔ
'‘‘ V Cê nã
° ° Vai fa2er ouíro sorteio
> Sala-

“““ * raP°nSabmdade ™ '


BONARD — Já ouvi. Estou procurando, (revistam o lugar onde
devia estar a bomba) Alguém tirou a bomba daqui?
V Cê mexeu na bomüa
BALABANOFF~— Eu?
° Você é fabulosa! > Balabanoff?
. SRANCESCA — Fabulosa, por que? Talvez, por precaução vo-
ce a uvesse escondido no seu quarto.

40
TN.CPK

BALABANOFF — Por precaução! Como se Josete Valmore não


se tivesse fartado de tê-la entre as suas esguias c perfumadas mãos.
(pigavreia inlcncionnlmentc)
BONARD (tira o pano tlc cima de uma fruteira) — Aqui tam-
bém não está.
BALABANOFF — Procurar uma bomba numa fruteira» Isto já
é vontade de sc iludir. Por que não a procura entre as pétalas da-
quela rosa ou na minha lapela?
BONARD — Meus amigos, não resta a menor dúvida: alguém
penetrou nesta casa enquanto dormíamos.
BALABANOFF —- Enquanto dormíamos! Com certeza o próprio
chefe da Repressão Política, disfarçado de fantasma, dentro de um
lençol. Idiotas! Então custa muito vêr que Josete Valmore carregou
a bomba?
BONARD — Não diga sandices, Balabanoff. Uma bomba não se
mete na bolsa, não 6 um baton de lábios, ou um lencinho dc cam-
otáia. Eu me despedi de Josete, e você também a viu sair, embora es-
condido atráz da porta, segundo o seu péssimo costume.
FRANCESCA (Depois de uma expressão que demonstra haver eia
jigado o recado dc Josete à rtesaparição da bomba) — Josete! ora.
uma pequena chie e vaidosa como aquela ia sair com aquele pêso e
aquele volume. Nern-se lhe prometessem a pasta do Ministério da Jus-
tiça.!
BONARD — Lógico! Quando muito, Josete informaria às aujo-
íidades. (pausa) Aqui também não está. É, sumiu mesmo.
BALABANOFF (que ficou imóvel, meditando)
BONARD (voltando-se) — A bomba?
BALABANOFF — fi esta a explicação lógica, insofismável do de-
saparecimento. Josete entregou a bomba ao falso cocheiro.
BONARD E quando? Gostaria de saber quando!
BALABANOFF Quando você foi à cozinha buscar o café, (go-
za a sua descoberta) Bonard, diga a verdade, nada além do que” a
verdade, porque êste detalhe pode ser chave do mistério: Foi Josete
que lhe pediu o café, procurando uma oportunidade de ficar só, ou
íoi você que lhe deu essa. oportunidade, oferecendo-lhe o café? (pau-
sa) A verdade, Bonard!
BONARD (depois de uma lula de consciência) — Josete me pe-
diu o café.
^ BALABANOFF — Pronto! Você saiu desta sala, o cocheiro en-
irou rapidamente, e levou, a sua magnífica máquina infernal, (triun-
a ) Viu? o seu grande amor! a mulher esperada, leve como uma
gaiça, ondulante como uni filhote de serpente! Ah! Ah, Ah
BONARD — Balabanoff, não admito!
BALABANOFF — Você não se sente um palhaço, um imbecil, •
uepois cie ter sido engazopado tão facilmente por aquela mercenária0'
BONARD^— Veja como fala de Josete! Eu lhe arrebento a cara!
FRANCESCA — Seja menos grosseiro, Balabanoff!
BALABANOFF — Chegamos à desmoralização completa! ao pior
aos ridículos! Na véspera do atentado, uma mulher invade a casa de

41
TN.CPW.PtE P3 p. 4^

três anarquistas, rouba a bomba de dinamite, e deixa os pobres dia-


bos soltos, como se nem merecessem a honra de um depoimento na
deiegaciazinha do Distrito! E mais ainda, muito mais: um dêles íica
jazendo madrigais à ladra da bomba, e outra começa a preparar-lhe
um agazalho de inverno! Envergonhem-se!
BONARD — Curioso, quem devia estar profundamente irritado
era eu, c quem fica posscsso é éle!
BALABANOFF — Você?
BONARD — Eu, sim. Se a polícia manda analizar a bomba vão
apoderar-se de uma grande descoberta minha.
BALABANOFF — Que descoberta?
BONARD — Desculpem eu ter escondido a descoberta de vocês:
é um amplificador têrmo-parabólico que aumenta de oitenta e duas
vezes o poder explosivo de qualquer bomba. Isso sim, que é doloroso!
BALABANOFF -- Que indignidade! (continua a passear nervo-
samente) Continuamos aqui, soltos, desarmados como crianças tra-
vessas que estavam brincando com fósforos, a irmã'mais velha veio,
e tirou. Ao menos tivessem a dignidade de nos prenderem, de nos en-
forcarem!
FRANCESCA — Pois eu acho que a desaparição dessa bomba
foi negócio.
BONARD — Um negocião!
BALABANOFF — Negocião para quem? Para você, que ama, e
tem esperança de tornar-se o “beguin” de uma espiã, e talvez um fu-
turo funcionário da Repressão Política?
BONARD — Como você pode ser tão infame?
BALABANOFF — Para Francesca, a estéril, que só queria a gló-
ria de_dar ao mundo mais um desprezado, essa heroina de uma ane-_
dota ginecológica?
FRANCESCA — Miserável! Só sabe babar veneno!
BALABANOFF — E eu? Que faço eu sem a bomba? Espero que
me fabriquem outra? que o rei volte a um local onde seja menos di-
fícil atingí-lo? que os outros dois companheiros, na hora “H”, me
traiam e escarneçam? (dcixa-se cair, desolado, na cadeira. Batem à
porta)
FRANCESCA — A polícia, com certeza. Seu amor próprio vai
ser finalmente satisfeito, Balabanoff. Quer abrir?
BALABANOFF (dominando os nervos) — Abra você. (cocheiro
aparece)
COCHEIRO — A princesa D. Maria Eulália manda entregar es-
ta carta a D. Francesca.
FRANCESCA — Para mim? A princesa D. Maria Eulália?
COCHEIRO — Aquela moça que entrou aqui, ontem...
FRANCESCA — Ahn...
COCHEIRO — Sua Alteza manda também um volume, que. está
no tílburi: é um volume grande. Deixo na varanda, ou trago para
aqui? -
FRANCESCA — Ahn? Um volume grande? É, deixe na varanda.
COCHEIRO — Com licença, Excelentíssimos!... (saí)

42


TN.CPn.PTE p.JfJ

FRANCESCA (segura a carta e olha para Bonard — ambos es-


tão estupefatos.)
BALABANOFF — Viram? A bailarina virou princesa. A polícia
resolveu nos divertir com um número cie transíòrmisroo. í>6 iu.«.u. >
essa! (gargalha)
FRANCESCA — Mas você sabe ser cabeça dura, hein, Balaba-
noíí? Então, sc Josete Tôssc da polícia, teria carregado a bomba, a
prova mais convincente da nossa conspiração?
BALABANOFF — E se cia não era bailarina, era princesa, por
que representou aquela farsa tôda? Argumentos, vamos!
BONARD — Leia depressa a carta, Francesca, estou morrendo
de curiosidade, (a Balabanoff) Pare com essa lenga-lenga, ouviu?
BALABANOFF — Pobres coitados!
FRANCESCA (examina o papel) Tem o brazão dos Morrones y
Garbanzos.. . o papel é do linho finíssimo... o perfume é...
BONARD (cheirando) “Sans adieu”... Não há nenhuma polí-
cia no mundo com êsse cheiro.
FRANCESCA (lê) — “Minha querida Francesca” — ela me cha-
ma de querida.
BALABANOFF — A falsa consideração é a arma dos poderosos.
FRANCESCA — Pretende apartear-me muito? Se pretende, eu e
Bonard vamos ler a carta lá fora. (pausa) “Eu estava percorrendo
em incógnito a região das montanhas, quando o temporal me sur-
preendeu. Perdoe-me a brincadeira de Josete Valmore e a defêsa do
nú artístico. Mas eu fui obrigada a isto, depois das informações do
providencialíssimo Bonard sóbre o nudismo de Josete Valmore.
BALABANOFF — Providencialíssimo, ouviu? A mulher não era
Josete Valmore, não dançava nua, c não morava em Place Pigalle...
BONARD — Eu posso porém provar que há realmente uma cer-
ta semelhança física entre Josete Valmore e D. Maria Eulalia.
BALABANOFF — Se você é um rapaz esperto, não procure pro-
var mais nada nos próximos vinte anos.
’ FRANCESCA — Acabou? (pausa) “Sou uma pobre princesa acu-
sada de excessos democráticos pelos monarquistas ortodoxos; mas, se
ser humana é um privilégio do sangue vermelho, meu sangue nun-
ca foi azul.”
BALABANOFF — Demagogia barata. Exploração política com
as hemoglobinas...
FRANCESCA — Vai continuar? (pausa) “Gostei muito de ter
entrado casualmente na sua casa, quando a presença de uma mulher
de bom senso e de bons sentimentos era indispensável. Não é poi
mero desejo de aborrecer um viajante que Deus às vêzes atóla um
tílburi.”
BALABANOFF — Maria Eulália, — a predestinada! Ouviu tam-
bém vozes, como Joana D'Are: “Entra, um homem espera o amor,
uma mulher espera um filho, se a bomba desaparecer, todos estarão
salvos”. Bobalhões!
FRANCESCA — Ladre menos, sim? (lê) “O meu amigo Balaba-
noff. ..

43

P
TN.CPK.PTE

BALABANOFF — Meu amigo!... Pois sim. ...


FRANCESCA — “O meu amigo Balabanofí é visivelmente um de-
sajustado, querendo acqbar com o mundo apenas por achar que não
cabe nêle.”
BALABANOFF — Desajustado é Sua Alteza, a mãe dela! Comigo,
não!
BONARD — Bonitos modos!
FRANCESCA (lê) — “No fundo, bem no fundo de sua alma, dorme
um pai carinhoso c exemplar. Vou entregar-lhe minha biblioteca dc
cinquenta mil volumes para cie pôr cm ordem. Êlc mc será utüíssi-
mo, c vocês viverão menos complicadamente.”
BALABANOFF — Eu não aceito, vou logo dizendo!
FRANCESCA — Aceita, sim. Você pensa que essa história de
perseguir a monarquia é emprego? Está enganado. Eu quero viver,
gozar, conhecer o mundo. Agora, com êsse fiiho, eu vejo tudo atia-
vez de outro prisma. Ontem de noite eu experimentei o chapéu da
Josete, e me achei formidável!
BALABANOFF — Como?!! Ontem de noite você ainda teve cal-
ma para experimentar um chapéu?!
FRANCESCA — Tive, sim. Eu parecia outra mulher. Pela pri-
meira vez senti que poclia ser bonita e agradar aos homens. Orno,
meu caro, eu descobri, ontem, o milagre dos modelos de Paris. E vou
querer também jóias, enxovais ricos para meu filho... preciso saii
desta furna de animais noturnos, (pausa) Você vai aceitar o em-
prego!
BALABANOFF — Pronto! Está corrompida. E depois dizem que
o contato dessa gente não é nocivo! Pois eu não arrumo os livros da
princesa. Prefiro morrer de fome... de fome, ouviram?
FRANCESCA — Depois nós veremos.
BONARD — Com a sua cultura, e o seu espírito dc sistematiza-
ção. você acabaria bibliotecário do Palácio Real, aposto!
BALABANOFF — Vá para o inferno!
BONA.RD (à Francesca) --- Veja, veja se fala outra vez de mim,
Francesca!
FRANCESCA (lê) — Ah! “Adorei o perfume do Bonard; tomo
a liberdade dc batizá-lo: “Souvenir do Maria Eulália , c de reclamai
o meu frasco de um litro prometido.’-’
BONARD — Viu? Uma das mulheres mais bem perfumadas que
eu encontrei. S a tal coisa: Santo da casa...
BALABANOFF — Fedorentos!
FRANCESCA (Lê) — “Se Bonard achar interessante, poderá pôr
nos rótulos o meu brazão e o aviso: “Fornecedor de Sua Alteza a Prin-
cesa D. Maria Eulália”. Quem sabe ela não gostaria de fazer uma so-
ciedade comigo? Abririamos uma loja de seus perfumes, na rue de La
paix ou na Place Vendôme. Aguardo umà resposta.”
BONARD — Isso é que é mulher de classe!
BALABANOFF — Sempre recorrendo ao suborno, sempre diri-
gindo seus golpes ao estômago dos pobres!
BONARD Sossegue. Se eu decidir você será o meu publicis-
ta... Adiante, Francesca.
r RANCESCA (lê) — “Agora um pequenino aborrecimento pa-
ra o meu fino, inteligentíssimo e simpático amigo Bonard. Sua fama
de autoridade cm explosivos está sèriamente comprometida. Vocês de-
\ cm tei dado pela falta da bomba, nao é? Pois eu atirei-a pela jane-
la, quando Bonaid mi buscar café para mim. Era tão perigosa como
uma bomba de chocolate, o que explica, definitivamente, porque os
turcos perderam a guerra.”
BALABANOFF — Eu não dizia? Bomba de chocola.te...
BONARD — .E daí? Até na Marinha Inglesa tem-se verificado
falhas de fabricação.
FRANCESCA —■ Ninguém é infalível neste mundo. E depois, Bo-
nard eslava fazendo uma estréia. Você devia ser mais humano com
os que começam.
BALABANOFF — Humano? E se eu tivesse partido para a Ex-
posição Internacional com aquela almanjarra inócua dentro de uma
cesta de rosas? Vocês pensaram na campanha de ridículo dos jor-
nais conservadores? “Um louco atira sôbre o rei uma bola de ferro”!
Técnicos analizam. a bola de ferro procurando descobrir a sua íun-
anteiior! O louco afirma que a bola de ferro é uma bomba de
dinamite. “Servia para prender o portão de um velho palácio a bo-
la de ferro do anarquista louco!” Voees pensaram na minha cara
diante cios anarquistas do mundo inteiro? Pensaram?
BONARD Com certeza o amplificador termo-parabólico falhou.
Também, trabalhando com um material tão precário...
i BALAoANOFi* Inacreditável! Uma parenta do rei joga a. bom-
oa pela janela da nossa casa, e ainda nos previne, humoristicamente,
c ue
* ■ ^ escapado ilêso! E vocês não coram, não perdem- essa
0 rei ,er a

sei enidade marmórea, não abaixam a cabeça humilhadoe! ?


BONARD Acabe de uma vez para sempre com êsse realejo,
ouviu? E ouça agora a minha opinião definitiva a seu respeito: Você
não passa de um débil mental e de um cacete.
FRANCESCA E se está ainda com vontade de enrascar-se,
faça como o seu imortal colega Masério. Meta a faca de cozinha na-
quele “bouquet” de rosas e vá estripar o rei. Mas não me aperreie
mais. au estou esgotada, e acabo louca, arre!
BALABANOFF — A ignomínia consumou-se: Toclos contra mim.
(pausa) Doloroso! Nunca houve na História Universal do Anarquismo,
uma aventura mais cômica e uma traição mais negra! Cínicos1 Pulhas*
Vendidos!
BONARD — Vá gritar na rua, já!
BALABANOFF — Como?
FRANCESCA — A isso mesmo: vá gritar no ôiho da rua!
BALABANOFF — Os canalhas me expulsam!
FRANCESCA — Queremos viver.
BONARD — Rua, já disse, rua!
FRANCESCA O pesadelo :.cabou, fique sabendo.
BALABANOFF •— Está bem, mas antes de vocês rne jogarem fora,
TN.CPK.PTE

vão me ouvir: — vocês não passam de dois venais, dc dois perceve-


jos cia Corôa! Eu tenho nojo de vocês! (cospe para o lado) Nojo!
EONARD (avança para ííalabanoff, ogarra-lhe o pescoço) — Pe-
ça desculpas à Francesca. Vamos! (lutam sèriamcnte)
FRANCESCA — (Separando-os) Isso não, Bonard! Não façam
isso!
BONARD — (Atende, c deixa-se cair muna cadeira, sucumbido).
BALABANOFF — (Ofegante, se derrama no sofá.)
FRANCESCA — (Também abatida, senta-se, com a carta na
mão). >
(Longa pausa).
FRANCESCA — (Voltando a ler.) “Aceite êste presente para seu
íillio. É dado de todo coração. Seu filho nascerá cm paz, e crescei á
em paz, se você lutar desde hoje para mudar o seu destino, renha R.
E agora, adeus. Minhas amistosas lembranças a Balabanoíí e a Bo-
nard. Para você, um beijo afetuoso; assinado: Maria Eulália. (íLgue-
se, vai lá fora, c volta empurrando um carrinho luxuoso de bebê).
BALABANOFF — (Olha de esguelha para o carrinho).
FRANCESCA — (Volta a sentar-se, a carta sempre na mão. Olha
dísfarçadamente para Balabanoíí procurando adivinhar-lhe a reação).
BONARD — (Lança também um olhar indagativo a Balabanoíí)
Meus parabéns, o carrinho é lindo e digno de um príncipe.
FRANCESCA — Eu sonhei tanto com um assim!
BONARD — Deve ter molas muito macias. Maria Eulália foi mui-
to gentil.
FRANCESCA — Ela é um amor de mulher!
BALABANOFF — (Que sc erguera e analisara o carrinho, e sur-
preendido por Francesca quando ensaia timidamente empurrá-lo).
FRANCESCA — Vá treinando, vá treinando...
BALABANOFF — (Com uma irritação inconvincentc) Ah! (Sen-
ta-se depressa).
BONARD — Não haverá um “post-scruptum” para mim na carta?
FRANCESCA — Há, sim. (Lê) “P.S. Diga a Bonard o seguinte:
o meu tílburi está esperando na curva da estrada, c tem oídem ca. c.i-
perar ató 61c sentir que podo largar a corda, M.K.” (Vusn pensativa,
os olhos parados, triste.)
BONARD — (Ergue-se e vai em direção à porta da rua.)
FRANCESCA — Você resolveu ir?
BONARD — Volto já. Só vou avisar o cocheiro para não esperar
por mim...
FRANCESCA — Mas... e a princesa Maria Eulália?
BONARD — (Hesita) Uma criatura verdadeiramente admirável,
Francesca. Mas eu gosto de uma bailarina chamada Joseíte Valmore.
(Vai saindo).
(Um estampido tremendo vem do abismo, debaixo da janela po..
onde Josette atirou a bomba.)

4G
TN.CPX.PtE P3 p.

BONARD — (Precipitando-se, para ver ainda o resto da explosão.)


£ a minha bomba! Minha bomba explodiu! Era mesmo* de ação retar-
dada, mas explodiu! Venham, venham ver! Eu não disse que funcio-
nava? Não disse?
(Depois de uns instantes de estupefação, Franeesca e Balabanoff
sc surpreendem examinando o carrinho do bebê. Sorriem com ter-
nura).

BAIXA RAPIDAMENTE O PANO.

“AMANHÃ, SE NÃO CHOVER”, original de Henrique Pongetti, só


poderá ser representada, total ou parcialmente, em teatro, -profissional
ou amador, rádio, televisão, disco, cinema ou por qualquer outra mo-
dalidade, com licença expressa do autor, por intermédio da SOCIEDA-
DE BRASILEIRA DE AUTORES TEATRAIS, Rio de Janeiro, GB —
Brasil.

47

4
TN.CPft.PTE j03 p.

AMANHÃ, SE NÃO CHOVER

PRIMEIRO ATO

CENÁRIO

O grande “living rooin” de um refúgio alpino, com lareira e todo


o conforto de uma casa rústica de montanha. Época: 1908.

Quando sobe o pano, BONARD sc empenha na fabricação de uma


bomba de dinamite, segundo um formulário idôneo que êle consulta
de quando em quando.
Sua mesa de trabalho apresenta a originalidade de incluir vi-
dros e íiltros de perfumistas, entre as ferramentas mais vulgares.
Entra BALABANOFF, com uma tesoura de podar flores e uma
rosa na mão. Tem sôbre o lábio um assentador de bigodes, de elástico.

BALABANOFF — Teremos rosas à vontade, amanhã. A estufa pa-


. rece um roseiral da “Côte d’Azur”. Sinta o perfume desta!
BONARD — Inebriante.
BALABANOFF — Viu como foi boa a minha idéia de construir
uma estufa para termos rosas o ano todo?
BONARD — Sua idéia foi ótima, Balabanoff. E os lilases?
BALABANOFF — Os lilases estão bonitos, também.
BONARD — É sempre um conforto nao ter de dependei' de ne-
nhuma florista linguaruda para um acontecimento decisivo como o
de amanhã...
BALABANOFF — De amanhã, se não chover. Estou eom tanto
mêdo do tempo!...
BONARD — Tranquilize-se, não choverá!... (ouve-se o estrondo
da trovoada)
BALABANOFF — Está ouvindo?' Como meteorologista você pode
fazer uma brilhante carreira. Sempre errado!
BONARD —. Trovoadas de verão: depressa chegam,., depressa
vão. Náo se preocupe, (volta-se para RALAI.ÍANOFF cm quem, até esto
momento, não pousara os olhos) Outra vez com esse assentador de
bigodes na cara?
BALABANOFF — Que é que você tem com isto? Meta-se com a
sua vida!...
BONARD — Realmente, não tenho nada; mas você fica pare-
cendo um mascarado tétrico, um personagem de Edgard Poe, impres-
siona. E não é só isso: eu ainda não consegui compreender porque,
sendo você tão negligente com a sua pessoa, tem tanto luxo com a
parte mais supérflua do seu corpo: o bigode.
BALABANOFF — (tira o assentador c começa a frisar o bigode
com um ferro de frisar que já esquentou numa lamparina a álcool

4
TN.CPW.PTE P %_ p

colocada sôbre a mesa.) Você teria compreendido, se fôsse menos su-


perfical, se fizesse questão de ir além das aparências. Você ainda não
reparou com o bigode do quem sc parece o meu, quando ou deixo
dc frisá-lo?
BONARD — Com o do Kaiser não é, nem com o de Briand. Não
é também com o de Vittório Emanuele...
BALABANOFF — Viu como você é pouco observador? Você co-
meçou com os três maiores bigodes da Europa atuai, três florestas
labiais com as quais meu bigode não tem o menor ponto de contacto.
BONARD — Será o de Max Linder, o cômico de cinema?
BALABANOFF — Que Max Linder nada! Lenine, “seu” idio-
ta!... Lenine!
BONARD — Lenine? (repara) £ mesmo, você tem razão, eu nun-
ca tinha reparado.
BALABANOFF — Quando eu estive em Zurick, onde Lenine es-
tava exilado, notei que todos os jovens partidários copiavam fanati-
camente o seu bigode fino e cadente, tipo mongólico. Você acha que
um anarquista puro como eu pode admitir qualquer semelhança fi-
sionômica com o chefe daqueles visionários?
BONARD — Nunca! Seria uma capitulação, (pausa) Engraçado!
Intimamente, eu sempre suspeitei que você frisasse o bigode para
agradar a Francesca!
BALABANOFF — Eu? Você não regula! Eu nunca procurei agra-
dar a mulher alguma na minha vida, e se quizesse agradar, não mo-
dificaria um pêlo da minha cara.
BONARD — Bem, você fala assim porque tem 'confiança na sua
estréia, (abre o livro).
BALABADOFF — Bonard, êsses assuntos de “garçonnière” não
me interessam. Outro dia li um pensamento de um escritor .decadente
inglês, sôbre as mulheres, que me ficou indelèvelmente gravado na
memória: “As mulheres nos inspiram as grandes obras, mas nos im-
pedem de realizá-las”...
BONARD — Depende das mulheres.
BALABANOFF — Tôdas são iguais quando gostamos delas. Elas só
são diferentes, umas das outras, quando as desprezamos, e elas va-
riam sua personalidade para nos seduzir.
BONARD — Uhn!... Você entende de mulheres mais do que de-
monstra. Experiências pessoais?
BALABANOFF — Eu leio tudo quanto se refere a psicologia fe-
minina. São sempre as mulheres que instigam os maridos, na cama,
a fazerem a revolução, e são quase sempre as mulheres que depois,
fora da cama, a fazem fracassar.
FRANCESCA (entra com um pacote de jornais) — Chegaram os
jornais.
BALABANOFF — Como está o tempo lá fora?
FRANCESCA — Perfeito. Um crepúsculo maravilhoso.
BALABANOFF — Você acha que amanhã não choverá?
FRANCESCA (abrindo os jornais) Tenho absoluta certeza, (tro-
voada mais forte.)

i
TN.CPW.PTE p. ÇQ

BALABANOFF — Que barômetro, heim? Vocè e Bonard, juntos,


fariam uma fortuna, avisando particularmente quando se pode sair,
ou não dc sapatos brancos!...
FRANCESCA — Trovoadas de verão: depressa chegam e depres-
/
VSs
BALABANOFF — Ouviu, Bonard? E é também original como vo-
cê, no boletim das previsões.
FRANCESCA — Deixem-me ler em paz. (começa a ler).
BONARD — É o “Fígaro”? , . . .
FRANCESCA — É! Uma sobrinha do milionário amencano M -
gan, entregou um colar de pérolas a Gaby Deslys .para que ela o use
e faça as pérolas readquirirem o seu brilho peidido.
BONARD — O colo de Gaby Deslys tornou-se uma especie de
gruta de Lourdes dos joalheiros. Ela ganha muito mais agora aei-
xando cobrir seu colo dc pérolas doentes, do que ganhava antes,

Xíin
^BALABANOFF — Essa mulher deve fazer tudo para prolongar
o seu frivolo dom até à velhice. Mas eu duvido que dois seios murchos
seiam capazes de dar brilho a alguma coisa. a _
FRANCESCA — Que crueldade, Balabanoff! Voce nao mm
momento de doçura com as mulheres. .
BONARD — Gaby Deslys! Tão simpática! um dia ela deixou cair
um leque de plumas, na “Boite Furcy”, e eu tive o prazer de curvar-
-me e de entregar-lhe o leque: “Mademoiselle, votre éventaü et mes

BALABANOFF — Êsse episódio figurará certamente em àe^a-


que no seu livro de memórias amorosas. É muito transcendente.
BONARD — Balabanoff, isto você talvez não saiba, mas uma aas
coisas mais agradáveis, na vida de um homem é lembrar um sorriso,
ou um olhar, colhido inesperadamente, por simples casualidade, ao
go do seu caminho. Neste caso, o*“Merci" e o sorriso da Deslys, me> de-
ram um prazer enorme, porque foram para mim, especialmente para
■ "ueP„To contava 'encontrá-ta na "Boite " “f”
imaginava que ela fôsse deixar cair um leque.. . Ah! Balabanoff....
de quantas pequenas coisas irrealizadas e feita a consciência de
mos ^°ABANOFF __ DiSpense comigo êsse tom enfático e nostálgico

de galã da “Comédie Française”. Vocês, franceses, não podem ouvir fa-


lar em mulheres, ficam logo fervendo como champanha...
FRANCESCA — Mayol continua fazendo muito sucesso to
cão “Les mains des femmes”... „ , , .
BALABANOFF — Será que êsse número do “Fígaro é to
cado a cabarés? O jornal não tem mais secção política, perdeu a com-
P St
fti| I I ° FRANCESCA (lendo) — Depois você lê a secção política. Oh! um
título gozadíssimo. “Dentro de meio século o aeroplano substituirá

BALABANOFF — Influência daquele charlatão do Júlio Vevne.


Hoje, qualquer imbecil julga-se com o direito de misturar a ciência com

/
TN.CPR.PTE hQ3

os contos de fadas. Eu não dou cinco anos e esses aviadores abandona-


rão os seus arriscados trambolhos e comprarão uma bicicleta.
BONARD — Pois eu penso diferente. Eu penso que daqui a cinco
anos também as bicicletas estarão voando.
FRANCESCA — Mataram uma “midinette” no Bal Tabarin!
BONARD — Quem matou?
FRANCESCA — Um mexicano apaixonado.
BONARD — Estranhos tipos, êsses mexicanos! Quando gostam
muito, matam a mulher; quando não gostam, são até capazes dc cons-
tituir família. Aliás, ao contrário dos francêses, meus patrícios, conhe-
cidos pelo horror à geografia, eu mc interesso muito pelos outros paí-
ses. Meu sonho dourado é matar elefantes nas florestas virgens do Rio
de Janeiro, nas vizinhanças de Buenos Aires, a capital da Bolívia.
(Trovoada. — Chuva grossa.)
BALABANOPF — Maldita chuva! Eu não dizia?
FRANCESCA (correndo para fechar a janela) — Que horror! Pa-
rece uma tromba dágua!
BALABANOFF — Será o cúmulo do azar!
FRANCESCA — Eu duvido que o Rei inaugure a Exposição Inter-
nacional, com um tempo déstes!
BONARD — Pois eu acho que o tempo vai melhorar. Ainda não
estamos na época das chuvas. Até amanhã de manhã, à hora da inau-
guração, pode fazer um lindo sol.
BALABANOFF — Sol! O eterno otimista!
BONARD — De qualquer modo, a bomba de dinamite está pronta.
Olhem! (ergue a bomba, triunfalmente.)
BALABANOFF — Eu sei que a bomba áe dinamite está pronta.
Mas, para haver um atentado anárquico, a bomba, só, não basta: é
...preciso haver um rei em condições de deixar-se matar.
BONARD — Matar, não, Balabanoff: executar. Eu implico solene-
mente com essa palavra matar .
BALABANOFF — Com tôda a razão, aliás. Nós não somos crimi-
nosos comuns. È preciso estabelecer bem a diferença que há entre um
assassino vulgar e- um ato político de reparação humana.
BONARD — Seja como fôr, a bomba está aqui, prontinha. Agora
vou desenhar em volta da cápsula, o meu “ex-libris”. Eu estimo muito
esta bomba, sabem? É a minha primeira criação terrorista.
BALABANOFF — E dá-lhe com a bomba! Companheiro Bonard, eu
já reparei uma coisa. Todo seu ideal anárquico parece reduzir-se ao
prazer de fabricar uma arma de destruição. Os objetivos dessa arma,
pouco lhe importam. Você seria um bom diretor da Armstrong, da Krupp,
da Skoda, ou de qualquer outra fábrica imperialista de cemitérios.
BONARD — E apenas um engano seu, Balabanoff. Enquanto
eu dosava os explosivos, ia fazendo mentalmente o cálculo do raio de
ação da bomba e adiantando, a mim mesmo, os efeitos da explosão.
Eu via os couraceiros e os cocheiros reais, os generais em primeiro
uniforme, os cavalos emplumados, o rei, a rainha, os ministros, as
condecorações, boiando num mar de sangue. Via as criancinhas' ino-
centes e deslumbradas, atingidas em pleno sonho pelos estilhaços,

7
TN ■cpã.pte 1°3> p. 5&L

atrás dos cordões de isolamento. Eu tive, antes de vocês a visão des-


sa tragédia que se dará amanhã de manha... se nao chovei...
BALABANOFF — Da tragédia, não. Diga: do acontecimento . u-
tórico. Tragédia cheira mal: cheira a palco de teatro aristocrático.
Nós não queremos fazer teatro: queremos fazer um mundo melhor.
BONARD — Está bem, retiro “tragédia” e ponho “acontecimen-
to histórico”. Vocês ainda emprestam uma importância exagera a
as palavras. Parecem mais escritores do que revolucionários.
BALABANOFF — Idéias definidas exigem palavras especificas.
A abundância de sinônimos é própria da elasticidade da moral bu^

BONARD — Como você fala bonito, balabanoff! na invejo dco|


menino os homens bem falantes.
BALABANOFF — Está ouvindo, Francesca? Tudo o que ele acha^
de dizer da minha dialética anarquista é que eu. falo bonito. Bonito
fala a sua avó-torta, Bonard!
BONARD — Curioso! Mesmo depois de feita esta bomba, eu nao
vejo nenhum de nós três na pele de um verdadeiro anarquista.
BALABANOFF — Essa é monumental!...
FRANCESCA — Não diga absurdos, por favor!
BONARD — Juro que estou falando sério. Nem mesmo apalpan-
do esta arma, e sabendo que ela pode arra_zar carruagens reais e ma-
tar soberanos, eu acredito na nossa vocação.
BALABANOFF —- Na sua, você deve dizer.
BONARD — Na nossa.
BALABANOFF — Proibo-lhe de falar no plural. E, se voce quer
desertar agora mesmo, na véspera do atentado, en mesmo lhe abro
a porta.' „ ......
BONARD — Um momento, Balabanoff. Quando eu digo fa ua. e
vocação, não quero dizer que nos falte a coragem de matar e morrer
pela'idéia. Absolutamente! O que eu -sinto c que cada um de nó.,
três esconde alguma cousa, tem um caso pessoal com a vida, quer
acabar com o Estado para compensar-se de um fracasso íntimo qua -
quer.
FRANCESCA — Que bobagem!
BALABANOFF — Viu? E um cretino destes conhece os nossos
segredos, participa da nossa conspiração, vive conosco, respira o ar
que respiramos! .
BONARD Calma Se vocês me permitem, eu conto uma his-
tória muito interessante e muito ilustrativa do meu pontu de vista.
BALABANOFF — Alguma coisa de muito estúpido, aposto.
BONARD Um dia eu ia caminhando a uma bôa distância ao
cemitério judeu de Varsóvia — eu era secretário de embaixada jra Po-
lônia — quando vi um grande enterro, vindò na mmha direção. Mal
puz os olhos no enterro, desabou um vasto temporal de verao. A rua
era desabrigada, taxis não havia, nem guarda-chuvas. Que fiz eu.
Arrumei uma cara bem triste, quase tão triste < como a cara da mae
!J . H do defunto, vi qual dos acompanhantes tinha um guarda-chuva maior,
e meti-me debaixo dêle, soluçando. Sabern o que aconteceu? Na nora

L ■

/
TN.CPR.PTE

de baixar o corpo, eu estava tão compenetrado da minha dor, que


rasguei a gola do meu jaquetão nôvo para mostrar a minha desolação,
parecendo um perfeito judeu, (pausa. Espera o efeito.)
BALABANOFF — E com isso?
BONARD — Nada.
FRANCESCA — E o conceito?
BONARD — O conceito é êste: nós entramos debaixo do guar-
da-chuva do anarquismo para fugir de um temporal, e acabaremos
rasgando o jaquetão, amanhã, no enterro do Estado.
BALABANOFF — Como imbecilidade, sou apólogo 6 uma obre-
•prlnia. Só podería ter saído cia cabeça vazia cie um ex-diplomata.
BONARD — Mcrcl, (pausa) Ora bem, u bomba está pronta, vou
fazer agora um pouco de água de lavanda, (vidro, filtro, etc.) É urna
sensação deliciosa misturar essências logo depois de concluir uma
bomba de dinamite. Quer que eu faça um perfume “chic” para você,
Francesca? “Souvenir de la cour”? “Chypre Imperial”?
FRANCESCA — Eu prefiro o rneu cheiro natural de mulher lim-
pa. É mais humano e mais agradável.
BONARD — De fato, você é naturalmente cheirosa, Mas êsse
cheiro de saúde, de carne lavada, é um privilégio biológico, uma dá-
diva da natureza. E você, Balabanoff, quer uma àguazinha de colônia?
BALABANOFF — Por que? E não sou um privilegiado biológico?
Eu fêdo?
EONARD — Ninguém disse que você fede,
BALABANOFF — E, se fedesse, seria a mesma coisa. Eu acho que
o perfume no homem é uma traição ao sexo.
BONARD — Ê um ponto de vista, (cantarola o refão de uma velha
canção francesa, enquanto dosa as essências e espia os vidros contra
a luz.) O perfume, para mim, é a paisagem do olfato, (cantarola)
FRANCESCA — Como escureceu depressa! Eu vou ascender o
lampeão. (acende.)
BONARD — Boa idéia, Francesca. Eu estava sentindo que fal-
tava alguma coisa e não tinha reparado que era a luz.
BALABANOFF (aproximando-se da mesa dc trabalho de Bonard.)
— Acabe com essas cantigas de bordel; você me enerva! (pausa) Es-
ta bomba é boa mesmo?
BONARD — Boa, como?
BALABANOFF — Funciona? Explode? Mata... quero dizer, exe-
cuta?
BONARD — É perfeita, é uma obra-prima de bomba. Todo o pro-
gresso da ciência destrutiva está nessa máquina infernal.
BALABANOFF — Infernal! Os anarquistas de Barcelona tam-
bém. pensavam ter feito uma máquina infernal. No dia do atentado,
a bomba bateu na cabeça do rei e rachou-a de alto a baixo, como
uma abóbora, sem explodir.
FRANCESCA — Eu me lembro. Como os semanários de carica-
turas e os teatros de revsítas ridicularizaram o anarquismo!
BALABANOFF — Uma coisa atroz! O “Punch”, de Londres, pu-

HIIIBWi
blicou uma caricatura mostrando uma plantação de côcos da África,
com esta legenda: “O arsenal dos anarquistas de Barcelona”.
BONARD — Esperem.. . com isso vocês querem insinuar que
minha bomba é um côco?
FRANCESCA — Queremos apenas alertá-lo contra um perigoso
otimismo. Nossa responsabilidade é enorme. Bonard. Nós formam
uma ala isolada e autônoma do anarquismo. Somos considerados /
mânticos e comprometedores.
BONARD — Eu sei. Mas esta minha bomba é infalível. Confic.\SSi
em mim: a História há de registrar as consequências terriveis da su
perfeição... (segura a bomba)
BALABANOFF — Mas quem pode garantir essa perfeição?
BONARD — Eu.
BALABANOFF — E por que? Você nunca fabricou bombas, nem
teve mestres.
FRANCESCA — Você é um autodidata. Deve-se desconfiar sem-
pre do autodidatismo.
BONARD (brincando com a bomba) — Esta bomba foi fabrica-
da com a fórmula 18 do “Manual do Perfeito Regicida”,. de autoria
do italiano Piero Buonatesta. Vocês ousam pôr em dúvida a compe-
;X tência dos anarquistas italianos nésse assunto?
FRANCESCA — Bomba de formulário, deve ser como comida de
receita: falta sempre alguma coisa para ser bomba... ou para ser
V
M;. prato.
BONARD (ri) — Felizmente o rei não pensará como vocês, ama-
nhã. (joga a bomba para o ar, c apara-a com as duas mãos espalma-
das.) Côco! Vocês vão ver êste côco!
BALABANOFF (correndo espavorido) — Animal! Pare de brin-
car com isso! Só faltava agora, pára completar o ridículo da bomba
que rachou a cabeça de Armando XIII sem explodir, morrermos to-
dos com a bomba destinada a liquidar Gregório V
FRANCESCA (que correu também) — É, sim, Bonard. Guarde
essa bomba no armário. Você parece criança.
BONARD (guardando a bomba) — Vocês vão me achar ridículo,
mas eu sinto uma emoção completamente nova, vendo nascer essa
onda de terror em volta da minha primeira máquina infernal.
BALABANOFF — Onda de terror! Você acha que não ter mêdo
de uma bomba de dinamite é jogar “volcy-ball” com ela? (grave)
Agora eu vou proceder a um pequeno ensaio do atentado.
BONARD — Um ensaio? Costuma-se ensaiar um atentado?
BALABANOFF (tirando do armário um grande rolo de papel)
— Naturalmente! (desenrola) Que ingenuidade! Você queria deixar
tudo ao acaso? Aqui está a parte da cidade que nos interessa. Abran-
ge o Palácio do Rei e todo o trajeto do cortêjo até à Exposição Inter-
nacional, onde iremos agir. (abre a planta sôbve a mesa de Bonard)
FRANCESCA — Eu vou ser necessária? Eu queria ver se termi-
nava êste “tricot”.
BALABANOFF — Francesca! Veja se deixa de ser tão doméstica.
Você acha que eu disponho de mais alguém para fazer rainha?

10

'

;
tn.cpk.pte_h£_ pS5
FRANCESCA — Então vai ser ensaio,, como no teatro?
BALABANOFF — Quanta imbecilidade! Como no teatro, não,
como na História; compreenderam? (arruma duas cadeiras no pri-
meiro plano do palco) Guardando as devidas proporções, esta é a
carruagem real.
BONARD — Ah! Isto é a carruagem real? Engraçado.
BALABANOFF — Exatamente. Procure colaborar melhor no en-
saio, fazendo um pequeno esíorço de imaginação. Francesca!
FRANCESCA — Hem?
BALABANOFF — Por favor, guarde essas agulhas e essa lã! As-
sim, é impossível!
FRANCESCA — Pronto, (deixa o tricot na poltrona onde estava
sentada)
BALABANOFF — Sente-se aqui. Você é a rainha Anastácia.
BONARD — A rainha Anastácia! Quanto daria Sua Majestade,
para ter um pouquinho do seu “charme”, Francesca!
í RANbESCA (gesto de irritação: senta-se na carruagem)
BALABANOFF — Quer me fazer um favor, Bonard?
BONARD — Até dois.
BALABANOFF — Perca de uma vez para sempre êsse vício di-
plomático de galantear. Nós vivemos perigosamente demais para gos-
tarmos dos rapapés de chancelaria.
BONARD — Com Francesca eu sou sempre sincero. Agora você
quer me lazer um favor, Balabanoff?
BALABANOFF — Diga.
BONARD Acabe de me atirar ao rosto, sob qualquer pretexto,
minha antiga profissão de diplomata. Você insiste na falsa tecla da
minha frivolidade. Eu faço perfumes — é verdade — e não consigo
cumprimentar uma operária casada sem lhe beijar a mão; - mas serei
capaz de atirar uma bomba no rei, serenamente, como atiraria uma
rosa na batalha de flores da Promenade des Anglais, em Nice.
BALABANOFF — Veremos isso na hora... Vamos então-ao en-
saio.
BONARD Vocês já imaginaram a policia entrando de repente
aqui, e assistindo o ensaio desta página imortal da nossa História?
BALABANOFF-— Você nunca perde uma oportunidade de ser
um profeta de mau agouro.
FRANCESCA — Deixa-me tocar na madeira! Que idéia sinistra.
Bonard!
BALABANOFF — Deixem de conversas e vamos ao ensaio.
BONARD — Quem faz o rei?
BALABANOFF — Eu. (Senta-se ao lado de Francesca.) O rei sou
eu...
BONARD Ah! então você é o rei... eu sou o anarquista.
BALABANOFF — O anarquista no ensaio, é evidente. Na reali-
dade, será aquêle que fôr sorteado. -
BONARD — Mas o rei devia ser eu. Eu fui secretário do Chefe
do Protocolo do Ministério do Exterior... conheço o cerimonial.

li

taca»
tn.cph.pte p.sè>

BALABANOFF — Mas isso aqui é um regicídio, não é um baile


no Palácio Real, Aqui o rei vai morrer, não vai dançar uma valsa.
BONARD — Seja como fôr, eu me sinto com mais direito ao pa-
pel I
FRANCESCA — Vocês querem saber de uma coisa? Enquanto
vocês discutem, eu vou acabar o meu “tricot”, (ergue-se)
BALABANOFF (cmpurrando-a, para fazê-la sentar-se) — Sen-
te-se, vamos! Você também quer aborrecer-me? (abre a planta) Ve-
nha ver aqui, Bonard.
BONARD — As suas ordens.
BALABANOFF — O cortejo fará urn grande itinerário, indo do
Palácio Real — veja — até a Vila de Santo Eustáquio, na zona subur-
bana. Mas o ponto estratégico, para um atentado com possibilidade
de sucesso, é aqui, bem defronte do pavilhão central da exposição.
Agiremos aqui, não se discute mais. (Continua com a planta aberta.)
Pegue agora naquêle novelo de lã. Êle vai fingir de bomba.
BONARD — O novêlo de lã?
BALABANOFF — Naturalmente. Precisamos de uma coisa qj
permita uma perfeita simulação do lançamento, e que não rnach
que. Você pretendia ensaiar com a bomba? \
FRANCESCA — O meu novêlo, não! Vocês vão me embaraçar o
fio todo.
BALABANOFF — Francesca!
FRANCESCA — Ê isso mesmo! (pausa) Depois de embaraçar eu
sei quanto me custa!
BALABANOFF — Eu não disse que você estava se tornando de-
ploràvelmente doméstica? (solene) Bonard, eu exijo o novêlo. Dê-me
o novêlo!
BONARD — Ei-lo. Se embaraçar, eu ajudo, Francesca.
BALABANOFF — Vocês precisam capacitar-se de que o lança-
mento da bomba é tudo para o anarquismo. Cada rei que escapa in-
cólume, ou ligeiramente ferido, é um mártir, e os mártires reforçam
até os trônos bichados
BONARD — Lindo verde, desta lã. É do tom exato de uma roupa
de montaria de Sybil Philmore, filha do embaixador inglês no Perú.
Há verdes frios, minerais, e verdes quentes, vegetais. Êste...
BALABANOFF — Incrível! Agora o cortêjo empaca porque o di-
plomata está fazendo um madrigal ao verde de Sybil Philmore!
BONARD — Pronto, pronto! Podemos começar logo. Aqui está a
bomba. Atiro já?
BALABANOFF — Que insensatez! Então não passa pela sua ca-
beça que o atentado tem técnica, um estilo? Pegue a cestinha de cos-
turas, vamos!
FRANCESCA — A minha cesta de costuras?!
BALABANOFF — A sua cesta de costuras, por que não? Você
acha isso um bicho de sete cabeças?
FRANCESCA —■ Mas, será possível que êsse atentado só possa
ser feito com o meu material de costura?
BALABANOFF — Francesca! (pausa) Tenha mais espírito po-

12
tn.cpi^.pte JOZ Pi 5^

™“df”,,„<So,C"C' * Fa
«“ *> conta que a bomba está ea-
cond,te deoauo de um ''bouquof do resto, numa “corbcillc”.
, ^RANCESCA — As clássicas rosas para a rainha... as rosas rra-
a.ntcs c per ti das do anarquismo... ° ^

BALAEADNOTFP-0DfBra
BPfAIJD — A flor preferida da rainha é o lilás: a bomba irá
Caconchda debaixo de um “bouquet” de lilasos

F
ta do
dot^fT ~~a Nã
atentado exige ° dÍga
rosa. t0iÍCeS BonarcL A técnica
A rosa oculta
’ melhor a bomba'anarquis-
é uma
-
*LZ Ttun^Tidiscreta como um biombo segura
’ como

““ “•
QUCiram
simbb, , de Idases esta
snnboncamente “ cestinha.
<W'. »«* vai
Quem cu morrer
insisto éem encher
a rainha
na sao voces
° — e a rainha prefere os lilases.

BOKAPnNOFFAT~ Eü me
°POnh° fonnaImente a essa inovação! \*\ fè
nadn, ? “ a° Se ira aciente
P > Balabanoff. A todos os conde-
anarquistas a lei nâo
dee uma Sbm’
ultima vontade? Vocês não se> lembram concede a satisfação
do Masério que\só
pedm uma pizza à napolitana no momento de subir à fôrea’ porque

tempo
STd S racom
de sofrer ’ mas nâ
° C0nsegula <“*“«*. e, assim
a digestão? nkoP S

■ era CST ~ “* “** Uma


“pizz*” “ciente. Ela

Um raomento! Vocês
esta orífJr^r Pretendem transformar
Um epiSOdÍO histórico
návia? ^ma mesa redonda de euli-

tanto c um lmdoAbS
tanto, °IUtamente
bouquet”
0 que está
de ’ lilases. Insisto
abrindo a “bomba”, por-
nos lilases.

nao ^“;F
não me perder ~~
P ÍS Vá para
mais° tempo! ° iníerno cora
os seus lilases, e
BONARD — Atiro a “bomba”?

mãoBVFfrFF. ~ ESSa b°mba Parece uma batata Quente na sua


dará orceis P!ma °m descartar"se dela- Sossegue. O atentado se
desCermos do oarro
Central e2
Central. Estamos na Avenida Gregório l.°. O -povo
defronte
formadoduas
Pavilhão
al-m

ZTc:TaZÍTfetoüo 0 trajet0• °povo’ ™a -«iLt


- « 1T apostos, 0 desemprego, o favoritismo, os trusts
5 3
mcnce
mente o rei.
j í(disco de CaUSaS
! d0 SeU sofrimento e a
multidão) ’ Plaude delirante-
FRAJMCESCA — Eu continuo sentada?

cos sBeAletaBnAtNmFn ~ É 1ÓgÍC°! SÓ aS raÍnhaS de préstitos camavales-


olhe.. . Um 11™°!’ para cumprimentar a plébe.Faça assirn,
am i0
tado
aao pessoalmente,
pessoalrnente e um sorriso
P > paia
panorâmico
que cada bem
um se
fingido
sinta cumprimen-
abnr^dn
moços, velhos, mulheres, homens e crianças
“Sounlessp” lanças. Assim... esiá vendo?
ouupiesse ... magnetismo... amplitude...

13

/
TN.CPR.PTE n. Sl

FRANCESCA — Assim?
BALABANOFF — Não, não! Está muito duro. Parece o sorriso
da bòca sem lábios daquele personagem de Vitor Hugo. “O homem
que rí”. Olhe só como você está sorrindo: (expressão) Não é horrível?
BONARD — Francamente, não acho, Balabanoff. O' sorriso de
Francesca está espontâneo e distinto.
BALABANOFF — Você vai interromper o ensaio com outros pal-
pites? Diga logo, porque, nesse caso, eu abdico.... das minhas funções.
BONARD — Eu intervim julgando cooperar, desculpe.
BALABANOFF — Ali, naquela sacada, estará a cantora Giovanna
Capinera, amante do rei. Seu sorriso se tornará ainda mais radioso
— não somente para não dar o braço a torcer à sua rival — mas
também porque pouco mais adiante, noutra sacada, estará o profes-
sor de equitação, Conde Defontaine, seu amante, quero dizer, aman-
te da rainha Anastácia. Compreendeu? Um sorriso assim, sibilino,
maquiavélico... Vê? (expressão).
FRANCESCA — Estou achando esta farsa desagradável e inútil,
(gesto de levantar-se) Chega!
BALABANOFF — Francesca, sente-se. (empurra-a) Se você es-
tivesse melhor informada sôbre a moderna técnica do atentado, sa-
beria que a formação de uma atmosfera psicológica prévia é uma
exigência elementar. E depois, eu quero e acabou-se!
BONARD — Posso atirar?
BALABANOFF (baixinho, como se não quizesse ser ouvido pelo
rei.) — Sossegue, homem. Ainda estamos na Avenida Independência,
(solene) Ali estão os secretas, misturados com o povo, vigiando os
que se conservam de mãos nos bolsos, os sabotadores de apoteoses.
Para eles, quem não bate palmas está, forçosamente, contra o rei; es-
tá forçosamente apalpando a coronha de um revólver para matar o
rei. Elan! Francesca, elan! Ramiro líernandes, de Bilbao, levou unia
coronhada porque meteu a mão no bolso quando ia passar o cortêjo
ÍI.V ,‘}f real. Verificou-se,em seguida, que êle estava resfriadíssimo e ia pu-
f !:' !:|[
xar um lenço. Mas, no dia em que seu nariz deixou de escorrer, êle
I jt1'
guardou o lenço e comprou dinamite...
BONARD — Ramiro Hernandes... Dom Ramiro Hernandes...
Conheci um embaixador de Cuba com êsse nome... Mas escutem
aqui, meus caros monarcas, vocês vão me deixar por muito tempo
com esta cestinha na mão, bancando a violeteira?
BALABANOFF — Estamos chegando, não tumultue. Coloque-se
ali, na primeira fila ,atrás do cordão de isolamento, bem defronte do
Gavilhão Central. Aí mesmo. E agora, Francesca, componha a sua mais
■ simpática fisionomia. Estamos finalmente chegando. Lá se encontra
à nossa espera, a fina flôr da malandragem governamental — o es-
tado maior dos aproveitadores e dos bajuladores. Todos querem ser
vistos, por nós, para cobrarem depois o seu “jeton” de presença; e
nós devemos dar a cada um a .impressão de havê-lo visto, e gravado
para sempre seu nome no nosso coração reconhecido. Olhe, olhe aquê-
le algoz do chefe da Repressão, como chocalha as suas condecorações,

14
TN.CPn.FtE PS 6.<*f

do tantos salamaleques. Canalha! Se eu fôsse rei, descia dêste carro


e...
BONARD — Você está saindo do seu papel, Balabahoff! Daqui a
pouco, você esquece que é Gregório V, tira da minha mão a bomba,
e joga em cima do seu próprio ministério...
BALABANOFF — Tem razão. Viu, Francesca, como se forma a
atmosfera psicológica prévia? Prepare-se, Bonard. Francesca, eu des-
ço, dou-lhe a mão para você sair da carruagem... assim.'., mais
graça, Francesca, mais senso de popularidade... O sorriso! A outra
mão dando adeus! Assim... Agora é a apoteose, todos estão empoi-
gados. até a polícia e.. .
BONARD — Atiro?
EALABANOFF — Atire!
BONARD (retira o novelo de lã c faz o gesto de atirar)
FRANCESCA — (Cambaleando, com um começo de vertigem.)
— Oh! Ajude-me, Bonard!
BONARD — (Desfazcndo-se da cêsta c amparando-a.) Que foi,
Francesca? Está sentindo alguma coisa? (Senta-a na cadeira da “car
ruagem”.)
FRANCESCA — Foi uma vertigem. Mas já passou, felizmente. ^
BALABANOFF (fríamente) — Uma vertigem? Engraçado! Você
nunca teve vertigem. Que novidade é essa?
FRANCESCA — Seja como fór, Balabanoff, foi uma vertigem.
Eu não tenho direito de ter uma vertigem?
BONARD — Eu vou preparar uma xícara de café bem forte.
FRANCESCA — Absolutamente, Bonard. Eu já me sinto perfei-
tamenle normal. Obrigada.
BONARD (Codre-lhe as pernas com a manta de lã que está joga-
da sôbre a outra poltrona.) —• Então cubra-se bem. A tarde está cs-
lriando muito.
BALABANOFF — Deve ser outra indisposição gástrica.
FRANCESCA (com certa IRONIA SUAVE) — É o seu diagnós-
tico, Balabanoff?
EALABANOFF — Estômago, não há dúvida. Você precisa ter
muito cuidado com a comida. Ontem um vômito, hoje uma vertigem.
Se eu fósse você, entrava numa dreta rigorosíssima.
FRANCESCA — Uma dieta de leite e de legumes, não é? Uns
•mingauzinhos, umas papinhas...
BALABANOFF — Exatamente. Para o estômago, eu' só acredito
em dietas.
FRANCESCA — A sua intuição médica é admirável, Bala-
banofí... (ri) Você nunca estudou medicina?
BALABANOFF — Eu? Que idiotice é essa?
BONARD — Francamente, Balabanoff...
BALABANOFF — Francamente... o que?
BONARD — Custa muito a. compreender?
BALABANOFF — Compreender... o que?
BONARD — Que... que.

15
TN.CPK.PTE Pi p. yo
BALABANOFF — Que... que... o que? Você ficou gago e cre-
tino de repente?
FRANCESCA — Não seja tão misterioso, Bonard. Diga logo a
Balabanoff que eu desmaiei com mêdo do novelo de lã... (ri)
BONARD -- Essa é boa! (Ri)
BALABANOFF (dando um murro na mesa) — Basta!
FRANCESCA (Subitamente séria.) — Vamos repetir a cena do
lançamento da bomba? Se vo'cê fôsse um chefe gentil, daria a rainha
por morta. (ri).
BALABANOFF — A hora é muito imprópria para gracejos, Fran-
cesca! (imperioso) Bonard!
BONARD — Pronto.
BALABANOFF — Enquanto eu rasgo os nossos documentos se-
cretos e lacro o meu testamento político, você prepara o sorteio. Sa-
beremos dentro de alguns minutos quem matará o rei.
FRANCESCA — Executará, aliás...
BALABANOFF — E depois de o sabermos, talvez certas pessoas
não sintam mais vontade de rir... (sai importante)
FRANCESCA —- Cretino! Você já viu? ,
BONARD — Só faltou a cegonha pousar na cabeça dêle e mor! _
der-lhe a orelha, dizendo: “Ei, Balabanoff, a encomenda é sua! NáoV^j
se lembra?”
FRANCESCA — Sujeito errado! Quer salver o mundo, e não dis-
tingue um desmaio de mãe de um desmaio de dispéptica! Viu que
cara de palerma?
BONARD (com ar confidencial) — E você, está contente?
FRANCESCA — Estou. Se Balabanoff mc ouvisse dizer isso, fi-
cava epilético de raiva.
BONARD — Ê sim. Que homem misterioso! (escrevendo os no-
mes nos pedaços de papel) Francesca... o seu em primeiro lugar...
“noblesse cbligue”... Balabanoff... e agora, em último lugar, como
manda o protocolo da modéstia, o meu... (pausa) Você sabe que
nunca percebi um gesto, uma palavra, uma expressão de Balabanoff
que revelassem a existência de um coração em seu peito?
FRANCESCA — Balabanoff é de gêlo. Ontem eu tive o meu pri-
meiro vômito, e êle me perguntou se eu não andava comendo pre-
sunto demais. Presunto! Eu com um anjinho nas entranhas, e êle
pensando em azias!
BONARD — Eu o conheço! E daqui a alguns mêses, no lugar de
uma parteira, êle será homem de trazer uma caixinha de bicarbona-
to. (pausa) Está se sentindo melhor?
FRANCESCA — Estou muito bem, agora.
BONARD — Você vai me perdoar a indiscreção, Francesca, mas
eu sempre tive uma curiosidade doida de saber como foi a sua pri-
meira noite de amor com Balabanoff.
FRANCESCA — Não foi uma noite, foi uma tarde. Balabanoff
chegou perto de mim, na varanda, e disse: “Francesca: uma coinci-
dência evidente de interêsses fisiológicos, estimulada por uma identi- 1
dade de ideais políticos, nos aconselha um contacto material mais í
I
16
TN.CPW.PTE

íntimo. Espere-me no seu quarto, onde estarei dentro de vinte minu-


tos, hora de verão”.
BONARD — Exatamente como eu tinha imaginado. E depois? Oh!
desculpe essa bisbilhotice, Francesca, mas você sabe que eu lhe que-
ro bem como a uma irmã, que pergunto sem maldade, corno se per-
gunta em família.
FRANCESCA — Eu sei, Bonard. Como foi, depois? Foi tão engra-
çado! (ri)
BONARD — Eu não sei o que é, mas estou rindo, só de fazer uma
idéia.
FRANCESCA — Antes de se completarem, os vinte minutos, êle
bateu na minha porta e disse, do lado de fora: “Feche as venezianas
e as cortinas de modo que fique tudo imerso na mais completa escuri-
dão. E vende também os olhos com seu lenço grande de sêda. Fran-
cesca, por estranho que isso lhe pareça, aceite-o sem fazer objeções.
È preciso!”
BONARD — E você vendou os olhos?
FRANCESCA — Vendei. Mas vendei como as mulheres fazem:
deixando um cantinho do ôlho do lado de fora. Você sabe, naquéie/^
tempo eu achava Balabanofi um homem fabuloso, ia naquela sua f
la engomada, sentia orgulho de ser a primeira a recolher nos ouvidos 2
os seus lugares comuns...
BONARD — E como foi, hein? como foi?
FRANCESCA — Alguns minutos depois.êle bateu na porta e dis-
se: “Francesca, você tomou todas as disposições determinadas por-
mim?” Eu disse, morrendo de curiosidade: “Tomei, sim, Balabanofi,
entre". E êle entrou.
BONARD (ri) — Que delícia! Isso é tão Balabanofi!
FRANCESCA — Eu pensei que, no escuro, julgando que eu não
podia enxergar, êle se animasse e me dissesse: “Enfim sós, Frances-
ca í...” e mc desse um beijo. Mas foi tudo diferente. Êle se sentou
longe de mim, na outra extremidade da cama, e disse, com voz sumi-
da: “agora podemos conversar livremente sôbre nós dois. Vou fazer-
-lhe uma revelação indispensável, Francesca: quando eu era menino,
meu pai, que comandava um rebocador no Cáspio, e tinha a mania
da tatuagem, tomou um dia uma vergonhosa bebedeira e me tatuou
o corpo todo, do peito até os pés. Mas não é o fato de eu ser tatuado
que me impede de aparecer despido diante dos outros: é o assunto da
tatuagem que meu pai escolheu. Você me aceitará, portanto, com
esta malha de bailarino, e evitará fazer qualquer pergunta sôbre a
minha tatuagem.”
BONARD — Ele estava com a malha de bailarino?
FRANCESCA. — Estava. Parecia um aluno encabulado na pri-
meira aula de “ballet”. Eu já estava habituada à escuridão, e via tu-
do direitinho.
BONARD — Balabanofi, como Nijinski, deve ser uma gracinha.
E amando, como êle é?
FRANCESCA — Nunca me deu um beijo e não admite ser beija-
do. Ele me disse que o amor deve ser restituido à sua candura ori-

17

t
, fN.CPn.PTE
ginai, deve ser despojado de todas as fantasias criadas pela animali-
uade do homem. Ele acha beijo fantasia...
BONARD Compreendo. Às vêzes você tem a impressão de es-
tar sendo amada pelo telefone interurbano.
FRANCESCA (rindo) — Mas êle me deu um filho, e o resto dei-
xou de ter importância. (Pausa) Ouça, Bonard, desde que eu déscon-
de que ia ter uma criança, não dormi mais uma noite tranqüila.
BONARD — E por que?
FRANCESCA —- Só penso na polícia'. Acordo' assustada. Parece
que ouço, a noite tõda, a pancada dos revólveres naquela porta. De-
pois eu vejo a porta cedendo, e êles saltando aqui para me darem
ponta-pés na barriga... Eu estou com mêdo... pela primeira vez
eu sinto mêdo.
BONARD Tenha coragem, Francesca, e goze, por um minuto,
sem pensar em mais nada, a revelação inesperada de sua materni-
oade... (pega o chapeu-côco de Balabanoff c coloca dentro dêle os
ires papelinhos) Eu sinto que você iria adorar êsse filho.. .
BALABANOFF (Entra com um par dc sapatinhos de lã na mão.)
Encontrei êste par de sapatinhos de lã em cima da minha sccr
'0/ ri
tária. Alguém esqueceu lá?
FRANCESCA — Eu. Me dá aqui.
BALABANOFF — Algumas das nossas conhecidas vai ter criança?
FRANCESCA — Eu. (pausa)
BALABANOFF — Pena. Seu filho não podia ter escolhido um
momento mais inoportuno para vir ao mundo. Preparou tudo Bo-
nard? ’
BONARD — Tudo.
BALABANOFF — Então vamos proceder ao sorteio. Traga a uma.
BONARD — Infelizmente a urna não é bem uma urna, é o seu
chapéu-côco... (pega o chapéu-côco) Serve?
BALABANOFF — Servir, serve. Mas a sua serventia não dimi-
. nmu a sua falta de senso comum em escolhê-lo. Não havia um vaso,
uma caixa nesta casa? Tinha de ser o meu chapéu-côco?
BONARD — Eu achei-o tão jeitoso.
BALABANOFF — Jeitoso! Francesca, quer çer a primeira, ou
prefere...
FRANCESCA — Absolutamente!... Quero ser a primeira, (me-
te a mao no chapéu. Pancadas na porta da rua)
BONARD — Quem será?
BALABANOFF — É a polícia! Eles nos localizaram!
FRANCESCA (Alarmada, recuando para o primeiro plano da ce-
na, os olhos fitos na porta) — Não! 'não pode ser! (pancada forte)
BALABANOFF — Tenho a certeza. Conheço bem o seu cartão
üe visita. Co/iheço essa gente até pelo modo de passar a mão na
cabeça de uma criança! (tira o revólver da cintura) Armem-se! (ba-
tida violenta na porta.) Francesca, pegue ose u revólver!
FRANCESCA — Não, Balabanoff! Eu não quero morrer eu
agora... preciso viver!
BALABANOFF Precisa! Eu ia achar muita graça se a primei-

IS
KéiLUd

1
tN.ÇPn.PTE

ra bala dêsses bandidos lhe varasse êsse ventre! (batida violenta na


porta)
BONARD — Abro?
BALABANOFF (examinando o tambor do revólver) — Abra!
FRANCESCA (ergue-se e posta-se rente à parede, do lado da por-
ia de entrada, na bôea de cena.)
BALABANOFF (cm atitude defensiva, coloca-se perto da porta)
BONARD (avança lentamente para tirar o ferrólho)

DESCE O PANO RAPIDAMENTE

SEGUNDO ATO

O mesmo cenário — BALABANOFF e FRANCESCA estão na mesma


atitude do ato anterior

BONARD (pondo a mao no ferrolho) — Abro mesmo?


BALABANOFF — Abra, sim, cretino! Acovardou-se, também?
BONARD (abre bruscamente a porta — ruido de ventania —
JOSETE surge num espetacular vestido de tarde com um grande chá-
péu de plumas e uma sombrinha. É jovem e bela — sente-se uma mu-
lher íina, simulando vulgaridade)
JOSETE — Boa noite, (estaca, reparando nos homens armados)
Posso entrar?
BALABANOFF (autoritário) — Entre!
JOSETE (entrando) — Desculpem-me, mas meu tilburi atolou na
lama. De modo algum eu poderia continuar a viagem.
BONARD — Faço uma idéia da estrada, com êste temporal! De-
ve estar um sabão.
JOSETE — Que raiva! Era a primeira excursão grande que eu
fazia com o meu tilburi nôvo. Não ouviram os meus gritos?
BALABANOFF (sêco) — Ninguém ouviu nada.
JOSETE — É natural... Com essa trovoada e essa ventania...
BALABANOFF (sondando) — Então passeava por esta estrada,
de tilburi?
JOSETE — Passeava, não. Eu viajava... por necessidade.
BALABANOFF — Necessidade.. . de que?
JOSETE — De atravessar a fronteira por motivos profissionais.
BALABANOFF (examinando-a dos pés à cabeça) — E que pro-
fissão exerce, se não fôr indiscrição perguntar?
JOSETE — Eu sou... eu sou...
BALABANOFF — Está um tanto nervosa, me parece...
JOSETE — Eu sou bailarina... bailarina. Também o senhor acha
fácil coordenar idéias com êsses revólveres apontando' para mim? Por
que isso, pode me dizer? Me acham com cara de delinqüente?
BALABANOFF — Tem havido coisas muito sérias nesta região.
JOSETE — Ah! Já percebi. Os senhores são da polícia. -Estão
controlando a estrada.

19
TN.CPR.PtE jOZ n

BONARD — Mais ou menos... Uma espécie de...


BALABANOFF — Bonardí
JOSETE Polícia secreta! Estão proibidos de dizer qae são,
não c assim? Pode fazer o favor de apontar èsse cano para outro la-
do? Obrigada. Então posso entrar?
BALABANOFF (duro) — Entre! Mesmo porque não está choven-
do aqui dentro. (Guarda o revólver.) Tranque bem a porta, Bonard!
JOSETE Tenho verdadeiro pavor de brincadeiras com armas
de fogo: Uma vez, no meu camarim, uma colega minha íoi-me mos-
trar uma pistolazinha de bolsa, rnexi no gatilho, sem queier... e
Dum! —■ a bala foi acertar justamente no meu vidro grande de per-
fume cheinho. Onde está um revólver está o demônio... a senhora
não acha?
FRANCESCA — Está pelo menos a morte.
BALABANOFF — Realmente, foi falta de sorte. A bala bem po-
dería ter atingido uma coisa menos importante: o coraçao de sua co-
lega, por exemplo.
JOSETE Oh, não faça ironias com a fatalidade! Quem que
me arranjar um par de pantufas? ; Estou com os pes tao moinado
Aliás, eu tenho uma valise de “week-end” com bastante roupa,
carruagem... mas seria uma desumanidade, reconheço, pedir a
guém para ir buscá-la, debaixo de uma tempestade destas... ^ ^
BALABANOFF — Nós lhe arranjaremos a roupa. Como se chama;
JOSETE — Josette... Josette Valmore.
BALABANOFF — Tem algum documento de identidade?
JOSETE — Aqui, não. Tenho no tílburi.
BONARD — Josette Valmore... Josette Valmore... Tenho ideai
de ter visto fotografias suas numa revista qualquer... espexe...
JOSETE Eu digo: foi... foi num semanário^de “boites e tea-
trinhos chamado “Paris em camisa”.
BONARD — Exatamente: o “Paris em camisa”! E se a memória
rne ajuda outra vez, mademoiselle dança, completamente nua, um
“ballet” de Igor Illitchino chamado “Inocência”.
JOSETE Nua!? Nua, sim. Isso mesmo: “Inocência”, de Igor
Illitchino. O senhor tem uma memória formidável.
BONARD — Graças a Deus, uma memória de ferro!
FRANCESCA — Mademoiselle dansa completamente nua, sem ca-
che-sex”... nem nada?
JOSETE Eu? É!... Sem “cache-sex”, nem nada.
FRANCESCA — Uhn — Uhn...
JOSETE — Meu corpo é bastante bonito para não ser excitante,
nem imoral. Os corpos perfeitos não são de carne: são de mármore.
BALABANOFF — Esta defesa do nú está na literatura^ preten-
siosa e decadente dêsse tal Oscar Wilde, um inglês que está apare-
cendo por aí, mas é um sofisma. O nú se dirige sempre a sexualida-
de da platéia, aos instintos inconfessáveis do homem.
JOSETE — Essa era justamente a opinião do meu professor de
danças.
BALABANOFF — Do seu professor de danças?

20
TN.CPn.PTE p. ^5

JOSETE — Logo nas primeiras aulas, meu professor disse: "Jo-


sete, você tem uma plástica notável, mas como bailarina nunca pas-
sará clc um rinoceronte ensinado. Você é anti-musical, a música tem
raiva de você. Quer o conselho de um amigo sinceio e cie um guia
experiente? Mostre-se nua. Os homens inventaram o nú anistie o p a-
ra poderem apreciar as mulheres despidas, diante de suas esposas;
para serem chamados de estetas, em lugar de ordinários . On! mas
eu discordo do meu professor. Para mim, até vestido, o feio é porno-
gráfico.
BONARD — Subscrevo inteiramente êsse seu conceito. Certas pes-
soas ultrajam o pudor com o rosto, embora seu corpo esteja escon-
dido num saco ou numa capa de borracha.
JOSETE — Brrr! Que frio! (aproximando-se da lareira) Posso,
ou não, trocar de sapatos? Ou vocês preferem punir o meu nudismo
matando-me de pneumonia?
BALABANOFF — Francesea, leve-a ao quarto e providencie.
FRANCESCA — Mademoiselle... não espere encontrar aqui os
“des habilles” da rue de la Paix. Somos gente modesta e estamos nes-
ta cabana de passagem, esperando o sol para... para.
BALABANOFF — Para uma excursão ao Pico da Morte. /
JOSETE —■ Oh, não se preocupe, madame. (pausa) Madame, cu
mademoiselle?
FRANCESCA (Indecisa, espia para Balabanoff.) — Madarry
JOSETE — São alpinistas, não é?
BALABANOFF — Sim, somos alpinistas.
FRANCESCA — Tenha a bondade... É por aqui.
JOSETE — Deve cansar muito o alpinismo. Eu só gosto de
calar montanhas de automóvel. Detesto o esforço físico. Meu sonho,
no teatro, é acabar fazendo o papel de estátua, em quadros vivos.
BALABANOFF — Esse deve ser um gênero de bailado mais re-
pousante.
FRANCESCA — Por aqui, mademoiselle.
JOSETE — Obrigada. (Francesea e Josete saem)
BALABANOFF — Estamos com a víbora no seio. Essa mulher
foi mandada pela polícia.
BONARD — Discordo de você. Josette Valmore, eu me lembro
bem, é uma estréia muito conhecida nos cabarés da Place Pigalle.
BALABANOFF — Grande argumento! Nossa polícia está farta
de utilizar essas mediocridades estrangeiras no seu serviço secreto.
Lembra-se da Manolita Fucntcs? Ela taínbem era uma artista, uma
cantora aparentemente inocente... inofensiva. “Besa-me... besa-nie
mucho”... besa-me aqui... besa-me lá... e no fim da história, quin-
ze membros da célula 21 foram parar na prisão!
BONARD — Meu instinto nunca me traiu: Josette Valmore en-
trou aqui por acaso, forçada pelo máu tempo.
BALABANOFF — Digo mais: ela nunca foi Josette Valmore, nem
é bailarina.
BONARD — Ah! isso é muito faro seu!
BALABANOFF — Você acha que a sua vaga lembrança de al-
N
21

-oi I!rrs -.•rWWfíh -■* t-i*

J
TN.CPB.PTE ÔÚÒ p. ££

gamas fotografias, vistas num semanário erótico, provam ser ela Jo-
sette Valmore?
BONARD — Perdão! Eu tenho uma perfeita memória gráfica.
Lembro-me muito bem da linha ondulante do seu corpo, dq seu sor-
riso perturbador, dos seus olhos de abismo. É ela mesmo!
BALABANOFF — Tôdas as mulheres do “Paris cm camisa” têm
a linha do corpo ondulante, o. sorriso perturbador, e os olhos de abis-
mo. Esse é o gênero da revista. Você pode estar sendo traido pela
sua libidinosidade.
BONARD — Como! Você me acha libidinoso?
BALABANOFF — Bonard, o momento não comporta discussões
sôbre o seu temperamento. Estamos com a polícia dentro de casa, e
a casa está cheia de provas da nossa conspiração.
BONARD — Provas?
BALABANOFF — Sim. A bomba, por exemplo. A bomba está
ali, naquela vitrina, exposta como se fosse um “bibelot”.
BONARD — É mesmo! Eu estava achando tão natural a fabri-
cação de bombas de dinamite!... (Dirige-se ao armário.) Tão natu/^'
ral como os meus perfumes. (Franccsca começa a descer a escada.)
BALABANOFF Eu sei. Você seria capaz de registrar a sua fábricaV^
de bombas no Registro de Indústria e Profissões da Prefeitura.
FRANCESCA — Só nos faltava essa! A polícia calçando as mi-
nhas pantufas!
BALABANOFF — Calma, Francesca, muita calma. Nossa tática
deve ser agora uma filigrana de astúcias. Aliás, êsse é o meu gênero
predileto de luta. Cérebro contra cérebro.
FRANCESCA — Balabanoff, aqueles livros, os papéis... a bom-
ba... (nervosa) Eu tenho mêdo!
BALABANOFF — Francesca, em preciso de calma, nada mais.
BONARD (abriu o armário c segura a bomba) Onde vamos
esconder a bomba?
BALABANOFF — Atráz da Enciclopédia Britânica. Para algu-
ma coisa esses monumentos de sabedoria servem...
FRANCESCA — Atrás dos livros... O segredo do Polichinelo.
BALABANOFF — Tolice! Ninguém desconfia dos lugares fáceis.
A polícia pensa logo em alçapões, em cofres embutidos nas paredes.
BONARD — A polícia atribue -aos criminosos a sua própria ima-
ginação mórbida.
BALABANOFF — Exato: esconda-a atrás da Enciclopédia Bri-
. tànica.
BONARD (obedecendo) — E se ela estivesse nos ouvindo... e
nos vendo?
FRANCESCA — Impossível. Eu tranquei-a no meu quarto.
BALABANOFF — Você trancou-a no seu quarto?!
FRANCESCA — Oh, somente enquanto ela se arruma... en-
quanto tomamos uma resolução. Que fazemos? Diga, Balabanoff!
BALABANOFF — Cérebro contra cérebro. Solte essa espiã de-
pressa, e deixe-a movimentar-se pela casa. O resto será como Deus
quizer. (limpando a mesa onde estão as ferramentas c os perfumes)

22
TN.CPR.PTE JV7) p. £7*
FRANCESCA — Como Deus quizer, Balabanoff?
BALABANOFF — Deus? Eu disse Deus?
FRANCESCA — Disse, sim. Disse textual mente: “O resto será
como Deus quizer.”
BALABANOFF — Então eu disse isso sem querer... maquinal-
mente... como as crianças dizem... (explodindo) Oh! ao diabo as
explicações! Você bem sabe que eu não me referia ao Deus dos reis.
ao Deus dos amedrontados, ao Deus dos fatalistas!
FRANCESCA — A que Deus, então, você se referia? O anarquis-
mo terá por acaso um Deus?
BALABANOFF (saindo do embaraço) — Francesca, acabe com
essa exploração. Eu disse “Deus” como diria acaso, ou futuro, ou o
raio que nos parta! Vá abrir a porta do quarto, ande, e não me abor-
reça!
FRANCESCA — Está bem. Mas que você disse: “Será o que Deus
quizer”.. . disse, (sai)
BALABANOFF (a Bonard) — Que tern essa doida? Vocé repa-
rou? Está ficando covarde, confusa e carola!
BONARD Está ficando mãe, Balabanoff. (pausa) Você não
compreende: mãe!
BALABANOFF — Muito bem. E o que tem isso?
BONARD — O que tem isso? (ri) Nada.
BALABANOFF — Como vocês estão ficando sibilinos! Ouça, Bo-
na,.d. eu não admito que a maternidade possa fazer de um anarquista
um animal deformado pela idéia fixa da sua prole. Francesca está
gostando como uma loba, está ficando feroz e obcecada como uma
loba grávida!
BONARD — A natureza não distingue entre mulheres e lobas,
entre mães anarquistas e mães rainhas.
BALABANOFF — Nao diga tolices! Giovanna Malaspina foi lin-
chada na praça pública logo depois de acertar o primeiro tiro no pe-
nacho de “aigrettes” de Sua Magestade. Verificaram, mais tarde, que
ela já estava sofrendo as primeiras dores do parto quando praticou
o atentado.
BONARD — Giovanna Malaspina! Você me cita uma criatura
reconhecidamente doida.
BALABANOFF — Doida, por que? Porque superou todos os pre-
conceitos e colocou sua missão política acima do seu maior sentimen-
to — o da maternidade?
BONARD — Uma mulher sem cultura, movida apenas pelo fa-
natismo cego! Francesca é uma intelectual sensível e consciente. Po-
de-se comparar uma com a outra?
BALABANOFF — Seja como fôr, éu gostaria que vocês fôssem
menos burguêses,' e não fizessem de um futuro filho um teste ridículo
da minha compreenção e do meu sentimentalismo. Para mim, aqui
dentro se repete um banalíssimo fenômeno biológico. Basta de riza-
dinhas irônicas, de ares de suficiência, de expressões veladas de com-
padecimento.
BONARD — Você tem o coração duro, Balabanoff.

2B
* TN.CPn.PtE P3 pM?

BALABANOFF — Duríssimo. É um coração bem diverso do aa-


quêles imbecis que ficam horas diante do palácio real para saber se
o filho do tirano é menino, ou menina, se vai usar camisoia azm, ou
eôr-dc-rosa. >
(Descem a escada, Francesca e Josete.)
JOSETE — Que susto! Sabem que ela me trancou, sem quem,
no quarto?
BALABANOFF1 — É o hábito de trancar. Aqui o fno e as cor-
rentes de ar nos fazem viver com as mãos nos ferrôlhos e nos trincos.
JOSETE Vocês vão rir, mas durante alguns segundos, eu pen-
sei num seqüestro!
BONARD --Num seqüestro? (ri) Mademoiselle nos acnou com
. ieito de bandidos? . ,
JOSETE — Absolutamente. Tanto que continuei calma quanco
ouvi o barulho da chave dando a volta. Aquêle quarto, onde eu es ti-
ve, é o do casal? (estuda o ambiente)
FRANCESCA — Não: é o meu quarto. ■ _
BALABANOFF — Nós dormimos separados.
JOSETE — Separados?! Pois fazem muito mal. Só os reis e aris-
tocratas dormem em quartos separados.
BALABANOFF — Os reis e os aristocratas?
JOSETE Sim. E sabem por que? Porque não se amam, pm-
que se casam por interesses políticos, calculadamente, sem amor Quem
ama quer sentir o corpo do seu amor juntinho, quentmho, anuída-,
dinho,1 nem ;que a casa tenha vinte quartos e a cama tenha dois me
tros de largura. ^
BALABANOFF — A intimidade mata o amor. Esta pi ovado.
JOSETE — Mata nada. Justamente a intimidade é que é o amor.
Francesca, junte quanto antes as camas. Balabanoff nao entende
nada de psicologia matrimonial.
FRANCESCA — Balabanoff gosta de ler e de meditar antes de
dormir. É pof isso... , . . .. „
JOSETE — Ah, não, Balabanoff! Cama não e lugar de leituia c
de meditação. Ainda mais quando a gente tem urna
môça e bonita como Francesca. (examina a mesa onde estão o, \
fumes) Isto aqui é uma fábrica de perfumes?
BONARD — Não, Josete, eu faço perfumes por passatempo.
BALABANOFF — E fique logo prevenida, êsses pei fumes ^ao
péssimos, mademoiselle. . ,.
BONARD Agora, com uma pessoa entendida, nos vamos j -
rar isso a limpo! Experimente aqui, Josete. (Pinga no dorso da mao
dc Josete.) Esfregue um pouco e aspire.
JOSETE (aspira) Jicky?
BONARD — Jicky é mais acre, menos feminino. Aspne bern,
Wv JOSETE — “Coeur de Jeannette”?
BONARD “Coeur de Jeannette” é mais doce, mais romântico.
BALABANOFF — Não submeta o olfato de mademoiselle a es-
b i
sas torturas. Seu perfume é ruim com qualquer nome.

24

M.
BONARD — Balabanoíf, deixe de sér desagradável, ouviu? Es-
tá sentindo?
JOSETE — Já sei: é “un air ernbaumé”!
BONARD — Exato! “Un air embaumé”!
JOSETE — Que implicância a sua, Balabanoíf. O perfume de
Bonard 6 agradabilíssirno, sinceramente.
BONARD — Viu? (« Josde) Vou Cuzer um litro para você, Jó-
sele.
JOSETE — Obrigada, você é muito gentil. Escutem uma coisa:
vocês não têm, por acaso, um conhaquezinho ou outra bebida qual-
quer, forte? Estou com medo de ficar resfriada.
FRANCESCA — Temos rhum. Gosta de rhum?
JOSETE — Adoro.
FRANCESCA — Servirei então rhum. (sai) Com licença...
BONARD — Scnte-se, por obséquio.
JOSETE — Obrigada, prefiro mexer-me um pouco, para esquen-
tar, (corre os olhos pelo ambiente) Esta cabana é muito agradável,
c não tem nada de um pouso passageiro de alpinistas. Parece o lar
de uma família muito estabilizada, solidamente feliz. Bons livros.. .
(aproxima-se da estante) A literatura anarquista está muito ijctxi
representada...
BALABANOFF (nervoso) -- Se reparar bem verá que também a
Marxista, a Autocrática e a Democrática estão bem representadas...
Eu me especializei em estudes políticos.
JOSETE Ahn!... Êste aqui deve ser muito interessante: “Do
atentado como bela arte”.
BALABANOFF -- Engana-se. “Do atentado como bela arte” é
um livro desinteressante, medíocre.
JOSETE (folheia-o) — Vocè acha que se pode matar üm chefe
de Estado com arte?
BALABANOFF — Não compreendo o sentido da sua pergunta.
JOSETE — Êste livro não trata do atentado, como bela arte.-'
BALABANOFF — Trata.
JOSETE — Pois é. Eu vou explicar melhor: se você resolvesse
matar um rei... Gregório V, por exemplo, o que faria para consi-
derar artístico o atentado?
BALABANOFF — Eu?
BONARD — Nós somos monarquistas de quatrocentos anos, Jo-
sete.
BALABANOFF — Meu pai chamou o Czar Nicolau de pai-
sinho...
JOSETE — Eu sei, mas nós estamos fazendo de conta... Eu
quero ver se consigo entender essas coisas.
BALABANOFF — Franeamente, mademoiselle, nein o próprio au-
tor defende objetivamente o sentido do título.
JOSETE — Vai ver que, no fim de tudo, o autor manda dar um
lacinho de fita na bomba. E êste aqui? “A dinamite como alavanca
da igualdade social”! Bibliotequinha bern sortida, hein?
TN.CPR.PTEJQ2 p

^ BONARD — Você está escolhendo justamente os livros da pra-


teleira sangrenta. Olhe, nesta aqui temos: “De amor também sc mor-
re , “A dama das camélias”, “As tentações de Santo An tão”. Nossas
leituras são ecléticas, muito ecléticas...
JOSETE (tira outro exemplar) “O manual do perfeito rcgicida”,
com cinqücnta receitas para a confecção de engenhos mortíferos,
volume segundo”.
BONÀR D— fí o “pendant” está aqui, na outra estante: “Pa-
raiso c inferno do guloso”, guia gastronômico com mil receitas de
pratos gostosos e notas relativas à sua digestibilidade.
BALABANOFF — Embora nossa alimentação seja habitualmen-
te muito frugal... franciscana, mesmo.
JOSETE —- A “Enciclopédia Britânica...
BALABANOFF (afobado) — Mademoiselle... olhe aqui, veja estas
primeiras edições de Molière e de Manzoni...
JOSETE A enciclopédia Britânica, última edição, completa.
BONARD Josem, êste álbum de retratos de Renoir é formidá-
vel, olhe!
FRANCESCA (entrou com a garrafa de rhum, c o copo, a tem-
po de perceber o embaraço dos companheiros) — Venha tomar o
seu rhum, mademoiselle. Não facilite com os resfriados.
BALABANOFF — Seu rhum, mademoiselle!
BONARD — Francesca está chamando. O rhum chegou!
JOSETE (Retira o volume da enciclopédia.) — O mal das Enci-
clopédias é o seu nacionalismo, não acham? Eu nunca compreendí]
por que Walter Scott e Dickens merecem muito mais linhas na Enci-
clopédia Inglesa do que na francesa, e por que Racine e Corneille va-
lem mais espaço do que Shakespeare, na francesa.- (Olha para o vazio
da estante.) Que é isso? (Retira a bomba.) Alguma "reminiscência da
guerra?
BALABANOFF — É... é isso mesmo... Um “souvenir”... urna
lembrancinha carinhosa de um amigo nosso que fêz a guerra.
FRANCESCA — Material abandonado pelos turcos .na guerra da
Tripolitânia.
BONARD — Mas tenha cuidado, mademoiselle. A bomba está
intacta, e é de um poder destrutivo tremendo, diabólico.
BALABANOFF (irônico) — Não será nem tremendo, nem dia-
bólico, mademoiselle, mas é bem capaz de explodir, caindo. Deixe-a
no lugar, por favor.
BONARD — Bem capaz, não: ela explode mesmo, caindo.
JOSETE (deixa escapar a bomba das mãos) — Meu Deus! Que
desgraça!
(Todos se' deitam precipitadamente. Longa pausa.)
JOSETE — Por que não explodiu logo? Será uma bomba de tem-
po com ação retardada?
BALABANOFF (levantando-se) — Não, mademoiselle, retardado
é o fabricante dessa joça!

26
TN.CPn.PTE

BONARD — Joça? Josette Valmorc, diga a verdade: a bomba


bateu ou não bateu, aqui, em cima do tapete?^
BALABANOFF — Lá vem você com o tapete! De acordo com a
sua explicação, os turcos teriam ganho a guerra botando debaixo
dos obuses e das granadas dos italianos os seus maravilhosos tapetes
de Smirna.
BONARD — Josette Valmore! diga: bateu ou não bateu, aqui,
em cima do tapete? ;
JOSETE — Realmente, bateu. Eu observei bem: o choque nao
íêz o menor ruído, o amortecimento foi perfeito.
BONARD — Ouviram? Convenceram-se agora? Ela é neutra, sua
opinião pesa. „ .
JOSETE — Deixem-me fazer uma pergunta: Por que voees fi-
caram tão indignados com o fracasso da explosão? Voces tinham
feito uma promessa de voar pelos ares com essa bomba?
FRANCESCA — Oh! É muito simples. Trata-se de uma discussão
balística entre nós e Bonard. Êle se diz perito nesses assuntos, e nos
o-arantiu que a bomba seria capaz de carregar metade dos Alpes.
BALABANOFF — Entretanto, eu e Francesca negamos qualquer
noder destrutivo a êsse ferro-velho.
' BONARD (guardando a bomba) - Ferro-velho? Agradeçam a
êsse tapête, se ainda estamos conversando cordialmente Ferro-velho
Se em vez de cair aqui, tivesse caido alí, não teria sobrado uma lasca
de ôsso para justificar o anúncio do nosso enterro
JOSETE — Que perspectiva macabra! Eu tenho tantos amigo»
e admiradores! . , -
BALABANOFF — Eu mantenho a minha opinião: com essa m
quina infernal podem jogar futebol os meninos do jardim da infância
franCESCA — Seja como fôr,. sempre é agradavel descobin
inocuidade de um fantasma. Essa bomba, dentro de casa, nos enchia

dt P
BONARD — Pois olhem, eu acho muito deselegante, muito sem
“charme”, vocês se aproveitarem da presença de uma pessoa estra-
nha para me passarem o diploma de imbecil! ^ _ _
FRANCESCA — Bem, bem, vamos acabar com essa discussão.
Mademoisellé até se esqueceu de tomai; o rhum. Viu? (serve-lhe o
rhum) Tenha a bondade.
JOSETE Obrigada. E vocês... não bebem?
FRANCESCA — Somos todos abstêmios. Reservamos o rhum pa-
ra os nossos bivaques, nas montanhas cobertas de neve.
JOSETE (bebe um gole, deposita o cálice, e respira profundamen-
£C) Como é puro o ar na montanha! (pausa) Balabanofí tam-
bém faz alpinismo?
BALABANOFF — É evidente!
JOSETE Evidente não é, não, Balabanofí, me desculpe. Você
tem tudo do sedentário, do homem de gabinete.
BONARD (intencional) — Pois veja a coincidência: êle é o “ca-
ptain” da nossa equipe de... esquiadores.
27
TN.CPW.PTE P*> p

ióbo Co mar Cáspio, . ITZÍSrTSrSí^. T?

s^oTr: z -* - x

EonIThd~ To T “ “*»• nS° « percebe nada.


relas ^ ~ * melade-peiae é a de baixo, como nas se-
BALABANOFF (austero) — Bonard! Por favor;
~~ Você dan5a clássico, Balabanoff?
BALABANOFF — Eu?
JOSETE — Você não é russo?
BALABANOFF — De Odessa.

deixar o Czar viver, é bailarinCiU&nü0 na


° e nuhsta
’ e reso5ve

.xe,?rrçof ~ P0ÍS GU nã° que o Czar se


JOSETE — Êle está brincando, não é, Francesca?
FEANCESCA — Absolutamente, mademoiselle. Balabanoff não
dança a mais simples dança de salão. *v “

dem dançar: nXísaXa São'como^os ÍLXXT F™'

de^bailaríno?nSÍnOU ^ * Cigan ?
° <*ausa> Você tem uma mX

JOSETE VoceP podia


JOSETjs Vof ~rUm abrir
n urna de bailarin
excessão e °>dançar
eu? Para
uma que?
besfpiri
J peí>tein
nha qualquer para a sua colega. '

. BALABANOFF — Mademoiselle rne desculpe, mas eu acho nrn


Iul dam nte
- ^ c constrangedor, para não dizer indelicado, insistirmos num
num
pedido depois de uma recusa formal. .
JOSETE — Está bem, está bem... Não vamos brigar por uma
coisa tao simples. Eu insisto como artista... (Transição) D^am rô*
Uma C01sa: ja g
' Pensaram onde eu vou dormir esta noite?' *"
BALABANOFF — Ali, naauêle sofá

~ssna.sszr -

multo (sT “aiS i6nha


^ 3
estâ^Td3
NCESCA G Sta de traraseiros duros
SelleT ~ ° °“ macios, mademoi-

DU1
rugasTbíàT '°S- Em ÍÍeCem
' °S *> mato. Retardam as

sagensTTrTesTTrTerTTTV,'416 *7 80 ***** « mas-


Temos ovos, presunto, biscoitos, chá, lerte^onde^-do^o T ^ ddtar?
servas salgadas. udensado, e algumas con-
JOSETE - Muit„ obrigada. Eu almocei com o empresário Jean

28

*•

/
TN.CPR.PTE J°2 p.

Rcnoir. Joan Rcnoir ó dêsscs homens que se consideram insultados se


não comemos tudo aquilo que êlcs escolhem para nos causar uma ca-
rinhosa indigestão.
FRANCESCA — Se é assim... Não queremos é que faça a menor
cerimônia.
JOSETE — Oh, nem. pense nisso! Eu me sinto como se vocês es-
tivessem presos... (bebe um gole) presos a mim por uma velha ami-
zade,
FRANCESCA —■ Com licença... (sai)
BONARD (enchendo o cachimbo) — Sc gosta de ler, antes de dor-
mir, posso passar o “abat-jour” para perto da cama.
JOSETE — Obrigada. Não gosto dc ler do noite por causa do meu
subconsciente.
BONARD — Do seu subconsciente?
JOSETE — Eu acabo sonhando com o que li.
BONARD — Mas êsse dom é invejável. Escolhendo bem os livros,
poderá sonhar sonhos maravilhosos.
JOSETE — Tem razão. Mas eu adoro os romances policiais, as
aventuras misteriosas.
BONARD — Ah! então já é diferente.
JOSETE — É horrível. De noite, os enredos que estavam deslinda-
dos nos livros, tornam-se a emaranhar no meu espírito, e se transfor-
mam em pesadelo.
BONARD — Isso não é nada agradável.
JOSETE — Ainda agora, quando retirei o volume da Enciclópédia
Britânica e encontrei aquela bomba, me lembrei de um desses pesa-
delos.
BONARD — Sim, sim...
JOSETE — Eu era uma criminosa, e tinha escondido provas dc
meu crime atrás de alguns livros, enquanto a polícia investigava nouf ^
tro lugar da casa. “Ninguém desconfiará de um esconderijo tão poucA
misterioso, tão infantil”, raciocinava eu, em sonho. Mas a polícia, que\^
vira os volumes alinhados simetricamente, ao entrar, notou, quando
ia saindo, que um dêles fôra mexido, pois avançava um pouco para
íora da estante. Èsse detalhe ridículo só não me fêz balançar na
íôrea porque acordei justamente quando a corda ia-se apertando no
meu pescoço, êsse pescoço “de cisne”, como diz o cretino do Renoir.
BONARD (simulando fleuma) — Isto é profundamente interes-
sante. Mas, no livro, como acabava essa aventura? Com certeza vo-
cê leu essa aventura num livro, não é mesmo?
JOSETE — Naturalmente! No livro a criminosa matava mesmo
o conde e a condessa, e ninguém conseguia descobrir a pista certa.
Um crime perfeito. Aliás, eu não acredito em crime perfeito... Vo-
cê acredita?
BONARD (depois de pausa) — Não, não acredito. O sentimento
de culpa cega os olhos do espírito. A inocência é sempre mais inteli-
gente e mais lúcida.

29
TN.CPtt.PTE J03 n

JOSETE —* De pleno acordo, (bebe o último gole) Eu lo-M


prazer um livro de crianças .Tem algum?
BONARD — Tenho 0 “Pinochio”.
JOSETE — £ uma leitura da minha infância que esta seirq -
na minha memória. Até hoje, quando eu minto, em Z-
pinge uma mentira, eu vejo o meu nariz, ou o nariz cie quem
versa comigo, crescendo até ficar do tamanho de uma tromoa

"‘^BONARD - Que horror! Eu só imagino quantas tomtaside s ele-


(a„tc «C6 vé a cada momento neste -so mundo

;srn c *£>**-> -" "

!st0U
BALABANOFF (entra trazendo uma braçada de lenha)

°°m JOSETE -C» íateTüm^tühuri novinho, de Ducrot, o me-


lhor segeiro de Paris.
BONARD - Mestre Ducrot, o segeiro aos rels• ce5a
FRANCESCA (trazendo a roupa de cama) . *1 ^
modesta, mademoiselle. Vá lá dentro, com Bonavd, e coma aló

C 1Sa
° jOSETE — Muito obrigada, mas eu ainda não digeri o almoço

1>Xn
BALABANOFF — Pois eu estou morrendo de fome.

FRANCESCA -Isntão tratem de comer, mas não façam muita


desordem na copa. Quero tudo lavado, depois!
BALABANOFF - Lavar tudo depois: pode-se ter . apetite, com

Uma
^CEÍcf-SE tudo muito enxuto. Nada de espertezas, por-
que eu ™u cxtminm (riem. Suem Baiabanoff . Bonard. “ca

U
' JOSETE^^não tenho a menor vocação para o casamento,
. mas admiro os lares felizes. j a um
FRANCESCA — Nós somos realmente íelizes. 3

™ ^"aiguma coisa do iniantii,


de i—o, dfbl. Deve £ um romântico qu^ te^tder

- srízsst» ^ *

£ um conflito, para
íifpnndpr a vontade de dar um beijo. .
FRANCESCA — O seu retrato é perfeito. Bonar e assim ^
rno. (arrumando o sofá) Podemos falar com toda a Banque .
TOSETE — Naturalmente. • ^
FRANCESCA - Mademoiselle não é bailarina, e muito menos
um número nudista de cabaré.
JOSETE — Sou, sim. Por que duvida?

30

j
TN.CPK.PTE, Í2Lp. ?S
i
FRANCESCA — Vamos pôr as cartas na mêsa com tóda lealdade?
JOSETE — Francamente, não percebí ainda aonde quer chegar.
FRANCESCA — Procure compreender-me. Talvez nem eu, nem
mademoiselie, possamos dizer tudo, mas, com lealdade, chegaremos a
entender-nos. E preciso que me entenda! (pausa)
JOSETE — Fale, então!
FRANCESCA"— Eu vou ser mãe. A promessa desse filho tornou
sem Importância tôdas as queixas que eu pudesse ter da vida e dos
homens.
JOSETE — É a primeira vez que...
FRANCESCA — Sim. Eu era considerada completamente estéril.
Tinha perdido tôdas as esperanças, (pausa)
JOSETE — Fale francamente, não tenha receio.
FRANCESCA — Não imagina como eu sofri, vendo tantas mu-
lheres obscuras e ignorantes, às vezes revoltadas contra a própria
feeundidade, carregando crianças lindas como se carregasse uma cruz!
(pausa) Esses pormenores talvez a estejam caceteando, não?
JOSETE — Pelo contrário.
FRANCESCA — Eu precisava tanto de me abrir com alguém!...
(observa se ninguém a espia) É vei'dade. Aquelas mulheres, nem. sem-
pre dignas da maternidade, me afrontavam como se a sua gravidez
fôsse uma injúria dirigida pessoalmente a mim, urna alusão impie-
dosa à minha esterilidade ,ao meu destino injusto. Compreende?
JOSETE — Eu compreendo, Francesca.
FRANCESCA — Ninguém imagina a tortura que é termos von-
tade de beijar tôdas as crianças da rua, e fingirmos que não suporta- /
ríamos as nossas, se as tivéssemos. Deixarmos acreditar que. evitamos
filhos, ou provocamos abortos, enquanto ocultamente procuramos os
piores charlatães para conceber! (com cautela) Josete, nós somos ví-
timas de uma grotesca, mas perigosa alucinação, aqui dentro. Você
percebeu?
JOSETE — Percebí, sim.
FRANCESCA — Você exige que eu fale mais claro?
JOSETE — Não é preciso. Você criaria um conflito inútil de
consciência.
FRANCESCA — Obrigada, Josete. Eu aceitaria, neste momento,
qualquer condição, contanto que meu filho pudesse nascer em paz,
fazer do mundo uma idéia diferente da nossa, (pausa) Você já pen-
sou nessas condições?
JOSETE — Eu não tenho razão para impôr condições. Mas pos-
so dar um bom. conselho. Francesca, prometa-me apenas lutar aqui
dentro, desde êste momento, para seu filho encontrar aquêle mundo
diferente,- mal abrir os olhos. Só isto, nada mais.
FRANCESCA — Prometo.
JOSETE — Então vamos pensar na côr dos olhos do seu filho.
Como são rnesmo os olhos de Balabanoff? (baícm violcntamente à
porta da rua)
FRANCESCA (aterrorizada) — Agora são êles! Sim, são êies!
JOSETE — Êles, quem?
TN.CPW.PTE jfl? p. ?É>

FRAKOESCA - files! Pelo amor de Deus, lembre-se das minhas

■“sU - Acalme-se, vamos. Por ,«0 êsse médo, (batem no-

"nCESCA _ Quer abrir, " ”no fundo,


1
JOSETE — Eu abro. (quando cia vai * »
Balabanoff c Bonard) batem pontualrnente
BALABANOFF - Conforme eu previa, eles botem pom
à nossa porta, não é assim?
FRANCESCA - CalW, • rta. Cocheiro aparece)

BONARD - PSIU. (Joscte ab ohegou, ES-


COCHEIRO (reverente) — A policia iouu ,
.
celència! _ 0

c°oc“-Tslm, —Simm Daqui a mela hora pode-

remos partir. „iní,-icirin Veia ciue éles não me

qu “roIasT^. — -
fraquíssimas... Excelentíssima. Eu rnes-
COCHEIRO - Pode ficar descansada, 0 céu

mo estou dirigindo o trabalho. Também )& parou

^JOSETÍ-Que bom! Eu queria tanto que fizesse sol amanhã!


(para os outros) O céu está todo ^mado^ ^ vem,
COCHEIRO - Eu nao dizia? Chuvas de
depressa vão... (reverencia)

SS-õomTaii^a: Excelentíssima... (reverência.

JOSETE - Ouviram aquela -c^


ás vezes que Beppo me chama e forma de tratamento. Normal-
ta. O álcool afeta miediatammh Papa. _. Mas, que pena!
mente, êle sera capaz y 1 ssar com vocês uma noite!

EU
«iSSS^pIr^ dorme aqui, Tem algum compro-
misso?
FRANCESCA - Fique, Josetc... (ddicado> Não cons-
BALABANOFF (mero irritado) - «““sem ( partire-

tranjam mademoiseile. Mesmo porque, * o tempo ^ ^


mos para a nossa excursão, e - estou sendo es-
J0SETE _ Balabanoff menos no primeiro

Mas vamos aproveitar bem esta meia

h0ra
BONARD “ rmtnCC^pTano, nem bandolim, nem na-
da! Balabanoff detesta a rnúsica.
t^qtpt ív fíprá. dossivcI, J&cíI&Jo&TíOjlÍ . .
SMT-i música é o ônio da razão. Duas mentnas mr-

32
J
TMr.pw.PTE ÍQ? p.

litaristas, c o hino nacional, armam qualquer povo culto e musical.


A Alemanha deu Bacli, Beethoven e Wagner...
JOSETE — Pois eu precisava justamente de um fonógrafo, e do
um. disco de tango, para Bonard ver um ensaio do meu último núme-
ro, e dar uma opinião sincera: Tenho certas dúvidas sôbre êsse nú-
mero. '
BONARD — Eu?
JOSETE — Você, sim.
BONARD — Obrigado pela distinção. Nêsse caso podemos fazer o
seguinte: eu canto um tango, e voc.ô dança.
BALABANOFF — Que horror! Bonard cantarolando um tango!
JOSETE — ótimo, Bonard! Você é um anjo!
BALABANOFF — Se mademoisclle dá licença, cu e Francesca nos
retiramos. Eu dedico ao tango um ódio todo especial. Um tango mc
imbeciliza por vinte e quatro horas.
JOSETE — Vinte e quatro horas? É muito.
FRANCESCA — Eu gostaria de assistir o ensaio.
BALABANOFF — Você?! Que novidade é essa? Você sempre de-
testou essas coisas! Com licença! (sai, puxando FraiVecsca pelo luaço)
JOSETE — Vocês são complicados! Palavra, tem horas que vocês
todos me parecem doidos.
BONARD — Parece, não. Somos. Você conhece a definição pari-
siense do tango?
JOSETE — Não.
BONARD — “Le tango est une danse que se danse avee le vi-
sage triste et le derrière alégre”.
JOSETE —r Que ótimo! Deixe ver. (fecha o rosto, fica em posição
de dançar — cantarola alguns compassos, e estremece o “derrière”)
Mas, é isso mesmo! eu só tinha reparado no “visage triste”... Bo-
nard, cantarole agora o tango. Eu andei inventando umas rnai ca-
ções formidáveis. (Começa a marcar a dança sem música)
BONARD — Josete, escute aqui. (observa em redor se está sendo
espionado) Você mora mesmo em Biarritz?
* JOSETE —Durante a temporada. Depois eu viro uma judia er-
rante, e começo a correr cidades.
BONARD — Se eu pudesse aproveitaria a “carona” e iria com
você até Biarritz.
JOSETE — E por que não vem você comigo? Venha! B até uma
“chance”. Numa noite estrelada, eu não preciso de mais de sessenta
quilômetros para gostar de um homern com quem simpatizo.
BONARD — E de quantos quilômetros precisa você, para esque-
cê-lo? De cento e vinte?
JOSETE — Que péssimo juízo você fáz da minha constância,
hein?
BONARD — Eu estou brincando, Josete. Aiiás, eu não posso, ar-
redar um pé desta casa.
JOSETE — Não pode?
BONARD — Não.
JOSETE — E por que?

33

i
I
l
TN.CPft.PTE p.7s?

BONAR — Por que?... Porque um alpinista não deserta na vés-


pera de uma excursão pesada. Na montanha há um código de honra.
JOSETE — Que bobagem! Deixar de ir a Biarritz, comigo, por
causa de uma montanha gelada, antipática, cheia de pedras pontu-
das. Quem gosta de montanha é cabrito, Bonard.
BONARD — Eu sei. é cabrito, e o Balabanoff.
JOSETE — Vamos? É carona mesmo,'sem nenhum compromisso
de pagar de outra forma. Chegando lá, eu solto você, c você se espalha
sozinho, como bcrh entender.
BONARD — É impossível, Josetc. Aquela corda que você vc segura
pelas mãos de vários alpinistas, em cima dos abismos, é o símbolo da
nossa solidariedade. Sc um solta, todos rolam.
JOSETE — Está' bem, Bonard, mas, se eu fôsse você, roia a corda.
BONARD — Roia a corda?
JOSETE — Sim. Deixava êsses maníacos. Afinal de contas, vocês
ainda não estão escalando a montanha... ninguém está para xolai.
Você pode me conseguir um cafèzinho, antes de eu partir?
BONARD — Claro, Josete, num instante! (sai)
JOSETE (Localiza a bomba. Atira-a pela janela, e tapa os ouvidos,
esperando a explosão, que não se dá; depois olha para a janela e pa-
ra a porta interna, sacode a cabeça com uma expressão de surpresa
o de piedade) — Pobres diabos!
BONARD (com a xícara de caíc) — Francesca estava acabando
de fazer o café.. .
JOSETE — Obrigada, Bonard. (Fala entre goles.) E agora eu vou,
Bonard. Quer chamar Francesca e Balabanoff para eu me despedir '
BONARD — Não se incomode. Eu apresentarei a êles as suas des-
-pedidas.
JOSETE — Mas...
BONARD — Deixe. Balabanoff ainda está discutindo porque Fran-
cesca queria ver o ensaio do tango.
JOSETE — Pobre Francesca! Então agradeça muito aos dois,
e diga a Francesca que ela pode começar aquilo que eu pedi.
BONARD — Já sei, algum casaco de tricot. Quando duas mu-
lheres se juntam, ou sai intriga ou sai “tricot”.
JOSETE — Desta vez vai sair muito tricot... Adeus, Bonard.
Você vai chegar à conclusão de que fêz uma grande tolice não apro-
veitando a carona para Biarritz...
BONARD — Impossível. Adeus, Josete. (beija-lhe demoradamen-
j;e a mão. Balabanoff entra. Vê o beijo. Recua. Bonard acompanha
Josete até fora da porta. Balabanoff aparece e cruza os braços, o olhar
imóvel para a porta por onde saiu Bonard. — Bonard volta.)
BALABANOFF — Traidor! Beijando a mão daquela ignóbil espiã:
BONARD — Por favor, Balabanoff, não chateie! (retira-se)
BALABANOFF — Hein? Como disse?
BONARD (da porta interna) — É isso mesmo. Vocé precisa per-
der essa sua mania de anarquizar tudo. Você é o rei dos chatos! (sai)

DESCE O PANO
TN.CPR.PtE !°Z

TERCEIRO ATO

O mesmo cenário. O lampeão está apagado. Entra um pouco de luz


da manhã pelas frestas da janela, Bonard cochila, recostatío no
sofá. Está de colete, sem o paletó.)

BALABANOFF (entra com um apanhado de rosas, escancara a


janela. O sol invade o recinto.) (de longe) — Bonard! (aproximan-
do-se do sofá) Bonard!
BONARD (abrindo os olhos, sem se mexer) — Não berre tanto!
Eu estou acordado.
BALABANOFF — Você dormiu aí, vestido?
BONARD — Não. Dormi no meu quarto, mas tive uma insônia
desgraçada. De manhã ceciinho, mc vesti, e fui dar uma volta.
BALABANOFF — Eu também dormi mal. Nós temos a noção da
responsabilidade.
BONARD — Noção da responsabilidade? (espreguiça-se) Respon-
sabilidade... de que?
BALABANOFF- — Essa é boa! Você ficou desmemoriado, de re-
pente?
BONARD — Não grite logo de manhã, Balabanoff. De manha,
Quando eu não acordo com uma bonita pequena falando ao meu auvído,
prefiro ouvir os rouxinóis...
BALABANOFF — Está fazendo sol, compreendeu ? Sol! Olhe aqui
as rosas...
BONARD — Ah! o atentado. .. (boceja) Eu estava procurando
rne lembrar o que é que tinha anotado no meu carnet para o dia de
hoje... E era isso: obrigar a Côrte a vestir luto... (entra Franeesca)
FRANCESCA — Venham tomar café. (põe sòbre a mesa o- serviço
completo que trouxe na bandeja. Alegre) Fiz um pãozinho de minu-
to para nós, com um pouquinho de erva doce. Deve estar uma de-
licia.
BONARD (enfiando o paletó) — Você dormiu bem, Franeesca?
(dirigi-se para a mesa)
FRANCESCA — Um sono só!
BALABANOFF (põe as rosas numa grande jarra e segue o diá-
logo, intrigado, dominando a vontade de explodir. Senta-se à mesa.)
BONARD — Pois eu rolei na cama a noite tôda.
FRANCESCA — Efeitos do tango?
BONARD — Ê quase certo, (todos vão se servindo)
FRANCESCA — Linda pequena, a Josete, não achou?
BALABANOFF — Linda... e da polícia: A combinação ideal.
Mas esperem, ela deve estar pensando em vocês.
BONARD — Estamos comentando a beleza da mulher, Balaba-
noff. Se quizer interferir na nossa conversa, recorra apenas a argu-
mentos plásticos.
BALABANOFF — Me passa a geléia!
FRANCESCA — Eu compreendo que um homem conte todos os

35
TN.CPK.PTE

segredos de Estado a uma mulher assim... depois de dar arsênim


a esposa, e um desfalque no Tesouro Nacional. *
BONARD — Você tem razão, Prancesca. Joscte é o tipo dacme
Ias mulheres do Deuxièmc Bureau e do Intelligence ServVo r
nos vemos nos romances de espionagem. A
i-iaidoz salta ao pescoço para dentro da cesta, sangrando e os Hbios
amda balbuciam, para a espiã, a última galanteria- “É aoesar do
tudo, eu te amo, Josete!” ^ apesar de
BALABANOPF (irritado) — Passe a geléia!
PRANCESCA — A geléia está na sua frente
BALABANOPF - Já vi. Obrigado.
BONAKD Para mim a polícia só é inteligente auando rpmv
re a multa* como Joscte. o agente da .ei comum é

S?1 * f SU£tand°' alerta os criminosos. O agente da lei comum


1
letreiro luminoso na testa: “Eu sou terrível' Eu venho v

prÕmtÍC“veg0 “táS íri


‘°!" J Sete
° ' "ã0: Josete tem
««' “lhes uma
ama U V a berda<Íe CU Valh v
riíABC^SCA
FMN JsCA — Ela
;r/ dançaT
bem tango?
“ ' ° * icia”.

»arcfToi-Pdul,rc™ h P'Uma' DeSl‘Za 1,0 ar com a elegância de uma


' , Ondula com harmonia de um filhote de serpente Daneardo
• com ela você sente que tem entre os braços a muC esperada

encontrou.111^™ *" eI“° “ aada »**>* da sua


PRANCESCA — Você dançou, muito com ela?
BONARD — Naturalmente.

dentrtf'busindJunT InCJiVel! En<luanto eu queimava cs rniólos lá


BONAr “— Dançava,
BONARD n saídasim.
para a nossa
Que situação,
tem isso Se a você dançava?
polícia entra na
6 n 1Ugar de 0
f° Pender, diz: “Balabanofí vamos dançar

.nentos plítijõ: “ ™* »“ * ““ ^tando-se a argu-

pedi™S,CA ~ EU
* íiquei ma
Soada de Josete sair sem se des-

2wwh{afetado)
iSALABANOFF l' f!a ,df—
°U Oh!
m jitas Ismbr
' muito gentil'
“çasNão
paradei-ou
vocês tdois.
9m

F^NcLcY^Tr ‘“T"05 U“ Chi COm eIa


' »a ***»£
mente“SoA ^ “d° ^

e para“rancra=t e“ oT^LT
Ie D 01 Quero
“• “toai- o que foi e não me lembro ’' “* ” :

de saPhef °ESCA ~ ^ “ se Iembra


- &mard. (pausa) Gostaria

meça^ttoqletu'pedi”18'0' ®“ ela
Pode do-
FRANCESCA — Eu já comecei.
BONARD — E vai ficar bonita?

36
TN.CPR.PTE PL

FRANCESCA — Bonita... o que?


BONARD — A swater? Ela não encomendou a você uma swe-
tcr de tricot? Não é tricot, aquilo que ela pediu
PRANCESCA — É... é uma swater, mas falta lã, e ela disse para
eu começar com a que eu tenho, que ela mandaria outros novêlos
depois...
BONARD — Aliás, seu “tricot” é perfeito, Francesca. Não es-
tou querendo ser lisonjeiro.
FRANCESCA — O “tricot” perfeito, é um indicio de solidão. Tô-
das as grandes solitárias usam bem as agulhas. Uma especialidade
um pouco melancólica... infelizmente.
BONARD (respirando fundo e olhando para o sol que entra)
Ah! êste sol! (pensa) Sabe, Francesca, que eu quase aceitei uma ca-
rona de Josete para Biarritz?
FRANCESCA — É mesmo? Ela convidou?
BONARD — Insistiu, até.
FRANCESCA — Devia ter sido um prazer, sem dúvida. A noite
estava tão linda! Da janela do meu quarto eu olhava para o céu
estrelado e pensava: “Meu Deus, como há criaturas que numa noite
assim não coirem para a rua, e não cantam, e não beijam, e não re-
zam, e não deixam escorrer do coração toda a sua ternura reprimi-
da, e não se reconciliam com a vida e com Deus?”
BALABANOFF — Mais açúcar!
BONARD nu também olhei para as estréias, quando Josete par-
tiu, e fiquei triste como se tivesse partido o último trem da estação
ca minha vida para o país da felicidade. Depois me veio uma vontade
doidci ae coirer acrás do tílburi, de correr até alcança-la, ou estourar o
coração de cansaço, gritando: “Josete! Josete! Pára! Espera! Volta!”
FRANCESCA — Eu dormi um sono só, como nunca tinha dormi-
do. A gente deve, de vez em quando, abrir a janela e olhar como estão
as estréias, como passa a lua, como vai a' vida nas alturas, acima dos
homens, acima das dôres, acima dos prazeres. Então, os olhos baixam
•» purificados, e os telhados não parecem cobrir tantas tristezas.
BALABANOFF (dando um sôco na mesa) — Agora, basta!
FRANCESCA — Basta o que, Balabanoff?
BALABANOFF — Basta de se divertirem à minha custa! Esta
farsa vai acabar já!
BONARD — Modere o volume de sua voz, Balabanoff. Hoje pro-
curaremos tratar nossos casos a “mezza voce”, suavemente.
BALABANOFF — O Chefe aqui dentro sou eu! Não admito êsse
tom de acanaihamento e de insubordinação!
FRANCESCA — Escolha melhor as suas palavras, Balabanoff!
Estou farta da sua prepotência.
BALABANOFF —- Francesca!
FRANCESCA —- é isso mesmo. Chega de brutalidades!
BALABANOFF — Miseráveis! É êsse o ambiente moral que vocês
criam no dia do atentado?
BONARD - Quem está criando é você. Nós estavamos falando
calmamente de mulheres bonitas e de casaquinhos de lã.

37

i
FRANCESCA — Não se esqueça, Bonard: no ensaio ôsse homem
fèz do um novelo de lã uma bomba de dinamite. Êle não suporta a
realidade das coisas mais modestas e inocentes! Tudo tem de ser
transformado, deformado de acôrdo com a sua crueldade política!
BALABANOFF — Não diga burrices!
FRANCESCA — Burro é você!
• BALABANOFF (Trágico) — Você me chamou de burro? Você te-
ve a audácia dc chamar um Balabanoff de burro? (Vai avançando pa-
ra ela com as mãos cm atitude de estrangulamento)
FRANCESCA (serenamente) — Eu não recuo, vê? Perdi o mêdo.
Estrangule! Olhe: aqui está o pescoço.
BALABANOFF (Desconsertado.) — Víbora! Estou com duas ou-
tras víboras no meu seio! Vergonha!
BONARD — Use a palavra com mais propriedade, Balabanoff.
Quem tinha os seios, e os deu para a víbora morder, foi Cleópatra.
Seja menos presunçoso e diga “peito.. . “no meu peito”.
BALABANOFF — Desertores! Poltrões! Já sei que vão recusar o
sorteio! Já sei!
BONARD — Você faz mesmo questão de matar o rei?
FRANCESCA — Será que nem agora, que você vai ser pai, toma
juizo?
BALABANOFF — A urna! Eu quero a urna! Vocês terão que me
acompanhar até o último instante. Se não eu chamo a polícia! eu
chamo a polícia!
BONARD — Cale essa bôea, Balabanoff!
BALABANOFF — Iremos todos para a cadeia, todos!
FRANCESCA — Está dando para ser escandaloso? O que vale é
quê' não temos vizinhos.
BALABANOFF — Estão muito enganados, se pensam abando-
nar-me no último instante. A urna! Quero a urna!
FRANCESCA — Faça logo a vontade a éssse homem, Bonard.
Estou ficando com dôr de cabeça.
BONARD — Então pare de berrar, ouviu? (procura o chapéu-côco)
Ué! onde está o chapéu-côco com os papelinhos, que eu deixei, ontem,
aqui em cima desta mesa? (Procura.)
FRANCESCA — Eu nem pensei mais nisso, depois da entrada de
Josete! ,
BONARD — E você, Balabanoff?
BALABANOFF — Eu? Eu tinha mesmo cabeça para me lembrar
de chapéu-côco! É cada pergunta!
FRANCESCA (noutro tom) — Misterioso. .. não acham? (procura
noutro lado)
BONARD — Já achei, pronto! Estava em cima daqueia cadeira,
(examina) Os papelinhos estão aqui dentro. Tudo em ordem, afinal.
FRANCESCA — Me dá, aqui. Desta vez seguro eu. Você quer
ter a honra de extrair o nome, Balabanoff?
BALABANOFF — Faço questão absoluta! (mete a mão no cha-
péu-côco, tira o papel, mas fixa as mãos de Francesca, suspeitoso.)
mcpR.PTEA°Z p. ^3

rRANCESCA (empalma sorratclramente os dois papéis restan-


tes) ^Quc foi? Veja o nome! Por que me olha assim?
BALABANOFF (abre o papel, lê calma, atento ao efeito) —
Francesca.
FRANCESCA (trai-se escamlalosamcntc) — Como?!
BALABANOFF — Como, por que? Você estava jogando na certa?
(Avança e prende o pulso de Francesca, num salto.) Quero ver os
outros papéis quo você esconde nas mãos.
FRANCESCA — Vocé me machuca! Largue o meu braço, Bala-
banoff! Estúpido!
BONARD Largue-a, Balabanoff! Você ficou doido?
FRANCESCA (lutando) — Bruto!
BALABANOFF — Solta os papéis, ou não seita? (aperta)
PRANCESCA — Ai! (abre a mão e deixa cair os papéis) Pron-
to, cu já soltei! (esfregando o pulso que Balabanoff soltou) Covarde'
Animal! E ainda faia da polícia!
BALABANOFF (recolheu os dois papéis) — Ora, muito bem. Aqui
temos três nomes: (lê) Balabanoff... Balabanoff... Balabanoff...
A infâmia era justamente como eu suspeitava; um jógo sujo, com
cartas marcadas! (pausa) Você foi parceiro de Francesca nesta tra-
paça?
BONARD — Não.
FRANCESCA — Eonard ignorava tudo. Eu troquei os nomes,
esta noite, enquanto vocês dormiam.
BONARD — Mas, apesar de ignorar, estou plenamente solidá-
rio com Francesca.
BALABANOFF — É um belo gesto (irônico) E justo, sobretudo,
(pausa) Em resumo, Francesca, você queria assassinar-me. Sim, o
que você tramou não passa de uma assassinato comum.
FRANCESCA — Se você acha. ..
BALABANOFF (para sí) — Só eu, exclusivamente eu, mais nin-
guém devia sair daqui para ser cuspido, pisado, mutilado pela polí-
cia e.pelo populacho em fúria! E por que? Por que você íêz isso co-
migo?
FRANCESCA — Você não compreendería, Balabanoff.
BALABANOFF — Eu sou muito obtuso, não é assim?
FRANCESCA — Você não é obtuso.
BALABANOFF — Idiota, então?
FRANCESCA — Eu acho de péssimo gósto você exigir que eu
encontro um sinônimo exato da sua incompreensão.
BALABANOFF — Por que devia ser eu, e não você, ou Bonard?
Responda!
FRANCESCA — De nós três, você era o mais indiferente à mor-
te e ao processo de morrer.
BALABANOFF — Ao processo de morrer?
, FRANCESCA Todos nós, depois de conformados com a idéia
na morte violenta, começamos a dar preferência a êsse ou àquele
modo de morrer. Lembra-se de Raquel Guterman? Ela desmaiava com
a simples idéia de uma agulha espetando a sua carne, tinha horror

39
TN.CPK

. “com ^e
C0ntinue Eu ver a
~ - «“» * «* «i sua

tatetetulwnf^ °brig,aíia
udectual. (pausa)~Outras - Eu *o»|w
pessoas que nãoadmirei
tolerama om curiosidade
veneno aceí-
mr, como solução ideal um tiro nos miolos- ou uma corda no ’p»sco-
ç . Voce, Balabanoff, eia o anarquista impecável. Não tinha pena de

ffiUnCl0
' nsm tinha preteênílas **'« «o*. cleTbaS
Wado ™ d° “Vapunhalado,enforcado
cjado ou moido, reduzido a pílulas ou tabletes, você parecia esquar-
ou guilhotinado, rir da

Uma hÇa VWa de estoicismo c de


crmeil’ ^ ° audácia. Como me en-

pele ntmABAN
•o«le nem °FF ~sorteio,
era preciso
Ah! você achava
na hora
nao é assim? “Bonard, dc arriscar
guarde a
êsse cha-
pcu-coco. Ealabanoff faz questão de ir, éle adora k^orte, Tevemos
unuai geneiosamente a esse prazer, em seu benefício!” Palhaça'
.FRANCESCA - Torno a repetir, Balabanoff. De nós três vS
era o naturalmente indicado. Bonard ama; cu vou ter um filho- vo-
ee quer apenas matar um rei. Reflita conscienciosamente, examine'
sem histensmo a situaçao, e veja se eu não agi com bom senso.
E
^ABAi7°FF “ Refletir! (começa a passar nervosamente pela.
C
rnfARD : e a Bonard) Você está amando mesmo, Bonam?
A L — Alucinadamente.

EALABANOFF — Mas assim... tão depressa?


BONARD — Foi um verdadeiro “coup de foudre”!

■PE^-OESCfL~sUm “C0up de íoudre”? Qlle vem » «r isso?


possível... comum até. ° * pnmm Uma
«*» muit°
BALABANOFi —- Ahn!... E Josete sabe?
BONARD — Desconfia. Mas, com mais um “tête a tête” eu
resolvo a parada. '
BALABANOFF (continua a passear, estaca defronte de Fran-
cesca) -- E voce, Francesca? Você desejava tanto assim êsse filho?
i KANCESCA — Com toda a minha alma, com -todo o meu san-
gue, desesperadamente.
BALABANOFF (continua a caminhar. Estaca.) - Realmente é

nal fraf l
de todos, (solene)
nTdJtodoT?’ SCa
’ ° meU
Bonard! CaS0 é 0 mais si
Traga-me a bomba!mples, o mais ba-

banoíf?ANCESCA ~ V Cê
° "> V Cê nã
° ° Vai faZer outro sorteio
> 2ala-

A N FF
atfilaírf
alentado. Aa S 5*°' EU - aSSUm°
] ~~ Bonard!
bomba,
a res
P°nsabilidade exclusiva do

, .E0NAfiD ~ ouvi Estou


- Procurando, (revistam o lugar onde
a
^ bomba) Alguém tirou a bomba daqui?
FFA
f^ffCA “ Você mexeu na bomba, Balabanoff?
BALABANOFF — Eu? Você é fabulosa!
FRANCESCA — Fabulosa, por que? Talvez, por precaução, vo-
ce a tivesse escondido no seu quarto.

40

t
TN.CPK.PTE Jm?

BALABANOPF — Por precaução! Como se Josete Vaímore não


se tivesse fartado de tê-la entre as suas esguias e perfumadas rnãos.
(pigarreia intcncionalmcnte)
BONAHD (tira o pano dc cima de uma fruteira) — Aqui tam-
bém não está.
BALABANOFF — Procurar uma bomba numa fruteira! Isto já
e vontade de se iludir. Por que não a procura entre as pétalas da-
quela rosa ou na minha lapela?
BONARD — Meus amigos, não resta a menor dúvida: alguém
penetrou nesta casa enquanto dormíamos.
BALABANOFF — Enquanto dormíamos! Com certeza o próprio
chefe da Repressão Política, disfarçado de fantasma, dentro de um
lençol. Idiotas! Então custa muito ver que Josete Vaímore carregou
a bomba?
BONARD — Não diga sandices, Balabanoff. Uma bomba não se
mete na bôlsa, não é um baton de lábios, ou um lencinho de cam-
braia. Eu me despedi de Josete, e você também a viu sair, embora es-
condido atráz da porta, segundo o seu péssimo costume.
FRANCESCA (Depois tíc uma expressão que demonstra haver ela
hgado o recado de Josete à rlcsaparição da bomba) — Josete! ora.
uma pequena chie e vaidosa como aquela ia sair com aquêle pêso e
aquele volume. Nem se lhe prometessem a pasta do Ministério da Jus-
tiça.!
BONARD — Lógico! Quando muito, Josete informaria às auto-
ridades. (pausa) Aqui também não está. É, sumiu mesmo.
BALABANOFF (que ficou imóvel, meditando) — Descobri!
BONARD (voltando-se) —- A bomba?
, BALABANOFF — É esta a explicação lógica, insofismável do de-
saparecimento. Josete entregou a bomba ao falso cocheiro.
BONARD — E quando? Gostaria de saber quando!
BALABANOFF — Quando você foi à cozinha buscar o cafó, (go-
za a sua descoberta) Bonard, diga a verdade, nada além do que a
verdade, porque êste detalhe pode ser chave do mistério: Foi Josete
que lhe pediu o café, procurando uma oportunidade de ficar só, ou
foi você que lhe deu essa oportunidade, oferecendo-lhe o café? (pau-
sa) A verdade, Bonard!
BONARD (depois de uma luta de consciência) — Josete me pe-
diu o café.
BALABANOFF — Pronto! Você saiu desta sala, o cocheiro en-
t-r°u rapidamente, e levou a sua magnífica máquina infernal. (íriun-
íal) Viu? o seu grande amor! a mulher esperada, leve como uma
garça, ondulante como um filhote de serpente! Ah! Ah, Ah,...
BONARD — Balabanoff, não admito!
BALABANOFF — Você não se sente um palhaço, um imbecil,
depois de ter sido engazopado tão facilmente por aquela mercenária?
BONARD — Veja como fala de Josete! Eu lhe arrebento a cara!
FRANCESCA — Seja menos grosseiro, Balabanoff!
BALABANOFF — Chegamos à desmoralização completa! ao pior
dos ridículos! Na véspera do atentado, uma mulher invade a casa de

t
TN.CPK.PTE JEs-P- Sío

trSs anarquistas, rouba a bomba de dinamite, e deixa os pobres dia-


bos soltos, como se nem merecessem a honra de um depoimento na
delegaciazinha do Distrito! E mais ainda, muito mais; um dêles fica
fazendo madrigais à ladra da bomba, e outra começa a preparar-lhe
um agazalho de inverno! Envergonhem-se!
BONARD — Curioso, quem devia estar profundam ente irritado
era ou, e quem fica possesso é êle!
BALABANOFF — Você?
BONARD — Eu, sim, Se a polícia manda analizar a bomba vão
apoderar-se de uma grande descoberta minha.
BALABANOFF — Que descoberta?
BONARD — Desculpem cu ter escondido a descoberta de vocês;
é um amplificador têrmo-parabólico que aumenta de oitenta e duas
vêzes o poder explosivo de qualquer bomba. Isso sim, que é doloroso!
BALABANOFF — Que indignidade! (continua a passear nervo-
samente) Continuamos aqui, soltos, desarmados como crianças tra-
vessas que estavam brincando com fósforos, a irmã mais velha veio,
c tirou. Ao menos tivessem a dignidade de nos prenderem, de nos en-
forcarem!
FRANCESCA — Pois eu acho que a desaparição dessa bomba
foi negócio.
BONARD — Um negocião!
BALABANOFF — Negocião para quem? Para você, que ama, e
tem esperança de tornar-se o “beguin” de uma espiã, e talvez um fu-
turo funcionário da Repressão Política?
BONARD — Como você pode ser tão infame?
BALABANOFF — Para Francesca, a estéril, que só queria a gló-
ria de_dar ao mundo mais um desprezado, essa heroina de urna ane-,
dota ginecològica?
FRANCESCA — Miserável! Só sabe babar veneno!.
BALABANOFF — E eu? Que faço eu sem a bomba? Espero que
me fabriquem outra? que o rei voite a um locai onde seja menos di-
fícil atingi-lo? que os outros dois companheiros, na hora “H”, rne
traiam e escarneçam? (deixa-se cair, desolado, na cadeira. Batem á
porta)
FRANCESCA — A policia, com certeza. Seu amor próprio vai.
ser finalmente satisfeito, Balabanofí. Quer abrir?
BALABANOFF (dominando os nervos) — Abra você, (cocheiro
aparece)
COCHEIRO — A princesa D, Maria Eulália manda entregar es-
ta carta a D. Francesca.
FRANCESCA — Para mim? A princesa D. Maria Eulália?
COCHEIRO — Aquela moca que entrou aqui, ontem...
FRANCESCA — Ahn...
COCHEIRO — Sua Alteza manda também um volume, que está
no tílburi: é um volume grande. Deixo 11a varanda, ou trago para
aqui?
FRANCESCA — Ahn? Um volume grande? É, deixe na varanda.
COCHEIRO — Com licença, Excelentíssimos!... (saí)

42

/
TN.CPR.PtE J°3 o. 2?

FRANCESCA (segura a carta e olha para Bonard — ambos es-


tão estupefatos.)
BALABANOFF — Viram? A bailarina virou princesa. A policia
resolveu nos divertir corn um número de transformismo. Só faltava
essa! (gargalha)
FRANCESCA — Mas você sabe ser cabeça dura, hein, Balaba-
noíf? Então, se Joscte fosse da polícia, teria carregado a bomba, a
prova mais convincente da nossa, conspiração?
BALABANOFF — E se ela não era bailarina, era princesa, por
que representou aquela farsa tôda? Argumentos, vamos!
BONARD — Leia depressa a carta, Francesca, estou morrendo
de curiosidade, (a Balabanoff) Pare com essa lenga-lenga, ouviu?
BALABANOFF — Pobres coitados!
FRANCESCA (examina o papel) Tem o brazão dos Morrones y
Garbanzos... o papel é dc linho finíssimo... o perfume é...
BONARD (cheirando) “Sans adieu”... Não há nenhuma polí-
cia no mundo com êsse cheiro.
FRANCESCA (lê) — “Minha querida Francesca” — ela me cha-
ma de querida.
BALABANOFF — A falsa consideração é a arma dos poderosos.
FRANCESCA — Pretende apartear-me muito? Se pretende, eu e
Bonard vamos ler a carta lá fora. (pausa) “Eu estava percorrendo
em incógnito a região das montanhas, quando o temporal me sur-
preendeu. Perdoe-me a brincadeira de Josete Vaimore e. a defesa do
'nú artístico. Mas eu fui obrigada a isto, depois cias informações do
providencialíssimo Bonard sôbre o nudismo de Josete Vaimore.”
BALABANOFF — Providencialíssimo, ouviu? A mulher não’ era
Josete Vaimore, não dançava nua, e não morava em Place Pigaile. . .
BONARD — Eu posso porém provar que há rcalmente uma cer-
ta semelhança física entre Josete Vaimore e D. Maria Eulália.
BALABANOFF — Se você é um rapaz esperto, não procure pro-
var mais nada nos próximos vinte anos.
FRANCESCA — Acabou? (pausa) “Sou uma pobre princesa acu-
sada de excessos democráticos pelos monarquistas ortodoxos; mas, se
ser humana é um privilégio do sangue vermelho, meu sangue nun-
ca foi azul.”
BALABANOFF —- Demagogia barata. Exploração política com
as hemoglobinas...
FRANCESCA — Vai continuar? (pausa) “Gostei muito de ter
entrado casualmente na sua casa, quando a presença de uma mulher
de bom senso e de bons sentimentos era indispensável. Não é por
mero desejo de aborrecer um viajante que Deus às vêzes atóla um
tílburi.”
BALABANOFF — Maria Eulália, — a predestinada! Ouviu tam-
bém vozes, como Joana D’Arc: “Entra, um homem espera o amor,
uma mulher espera um filho, se a homba desaparecer, -todos estarão
salvos”. Bobalhões!
FRANCESCA — Ladre menos, sim? (lê) “O meu amigo Balaba-
noff ...

43
TN.CPrt.PTE_ .fei p. Si

BALABANOFF — Meu amigo!... Pois sim...


FRANCESCA — “O meu amigo Balabanoff é visivelmente um de-
sajustado, querendo acabar com o mundo apenas por achar que nao
cabe nêle.”
BALABANOFF — Desajustado é Sua Alteza, a mãe dela! Comigo,
não!
BONARD — Bonitos modos!
FRANCESCA (lê) — "No fundo, bem no fundo de sua alma, dorme
um pai carinhoso e exemplar. Vou entregar-lhe minha biblioteca de
cinquenta mil volumes para clc pôr em ordem. Êle me será utilíssi-
mo, e vocês viverão menos complicadamente.”
BALABANOFF — Eu não aceito, vou logo dizendo!
FRANCESCA — Aceita, sim. Você pensa que essa história de
perseguir a monarquia é emprego? Está enganado. Eu quero viver,
gozar, conhecer o mundo. Agora, com êsse filho, eu vejo tudo atra-
véz de outro prisma. Ontem de noite eu experimentei o chapéu da
Josete, e me achei formidável!
BALABANOFF — Como?!! Ontem de noite você ainda teve cal-
ma para experimentar um chapéu?!
FRANCESCA — Tive, sim. Eu parecia outra mulher. Pela pri-
meira vez senti que podia ser bonita e agradar aos homens. Olhe,
meu caro, eu descobri, ontem, o milagre dos modelos de Paris. E vou
querer também jóias, enxovais ricos para meu filho... preciso san
desta furna de animais noturnos, (pausa) Você vai aceitar o em-
prego!
BALABANOFF — Pronto! Está corrompida. E depois dizem que
o contato dessa gente não é nocivo! Pois eu não arrumo os livros da
princesa. Prefiro morrer de fome... de fome, ouviram?
FRANCESCA — Depois nós veremos.
BONARD — Com a sua cultura, e o seu espírito de sistematiza-
ção, você acabaria bibliotecário do Palácio Real, aposto!
BALABANOFF — Vá para o inferno!
BONARD (à Francesca) — Veja, veja se fala outra vez de mim,
Francesca!
FRANCESCA (lê) — Ah! "Adorei o perfume do Bonard; tomo
a liberdade dc batizá-lo: “Souvenir de Maria Eulália”, e de reclamar
o meu frasco de um litro prometido.’’
BONARD — Viu? Uma das mulheres mais bem perfumadas que
eu encontrei. É a tal coisa: Santo da casa...
BALABANOFF — Fedorentos!
FRANCESCA (Lê) — “Se Bonard achar interessante, poderá pôr
nos rótulos o meu brazãG e o aviso: “Fornecedor de Sua Aiteza a Prin-
cesa D. Maria Eulália”. Quem sabe ela não gostaria de fazer uma so-
ciedade comigo? Abririamos uma loja de seus perfumes, na rue de La
P'aix ou na Place Vendònie. Aguardo uma resposta.
BONARD — Isso é que é mulher de classe!
BALABANOFF — Sempre recorrendo ao suborno, sempre diri-
gindo seus golpes ao estômago dos pobres!

44

t
TN.CPn.PTE Jg>3 p 2a)

BONARD — Sossegue. Se eu decidir você será o meu publicis-


ta... Adiante, Francesca.
FRANCESCA (ic) — “Agora um pequenino aborrecimento pa-
ra o meu fino, inteligentíssimo e simpático amigo Bonard. Sua fama
de autoridade em explosivos está sèriamente comprometida. Vocês de-
vem ter dado pela falta da bomba, não é? Pois eu atirei-a pela jane-
la, quando Bonard foi buscar café para mim. Era tão perigosa como
uma bomba de chocolate, c que explica, definitivamente, porque os
turcos perderam a guerra.”
BALABANOFF — Eu não dizia? Bomba de chocolate
BONARD — E daí? Até na Marinha Inglesa tem-se verificado
falhas de fabricação.
FRANCESCA — Ninguém é infalível neste mundo. E depois. Bo-
naid estava fazendo uma estréia. Você devia ser mais humano com
os que começam.
BALABANOFF — Humano? E se eu tivesse partido para a Ex-
posição Internacional com aquela almanjarra inócua dentro de uma
cesta de rosas? Vocês pensaram na campanha de ridículo dos jor-
nais conservadores? “Um louco atira sôbre o rei uma bolá de ferro”!
“Técnicos analizam a bola de ferro procurando descobrir a sua fun-
ção anterior! “O louco afirma que a bola de ferro é uma bomba tíe
dinamite. “Servia para prender o portão de um velho palácio a bo-
la de ferro do anarquista louco!” Voces pensaram na minha cara
diante dos anarquistas do mundo inteiro? Pensaram?
BONARD — Com certeza o amplificador termo-parabólico falhou.
Também, trabalhando com um material tão precário.
BALABANOFF — Inacreditável! Uma parenta do rei joga a bom-
ba peia janela da nossa casa, e ainda nos previne, humoristicamente,
que o rei teria escapado ilêso! E vocês não coram, não perdem- essa
serenidade marmórea, não abaixam a cabeça humilhados!?
BONARD Acabe tíe uma vez para sempre com êsse realejo,
ouviu? E ouça agora a minha opinião definitiva a seu respeito: Vocè
nao passa de um débil mental e de um cacete.
FRANCESCA — E se está ainda com vontade de enrascar-se,
^ c^iri0 0 seu imortal colega Masério. Meta a faca de cozinha na-
quele ^bouquet” de rosas e vá estripar o rei. Mas não me aperreie
mais. Eu estou esgotada, e acabo louca, arre!...
BALABANOFF — A ignomínia consumou-se: Todos contra mim.
ípausa) Doloroso! Nunca houve na História Universal do Anarquismo,
uma aventura mais cômica e uma traição mais negra! Cínicos! Pulhas1
Vendidos!
BONARD — Vá gritar na rua, já!
BALABANOFF — Como?
FRANCESCA — É isso mesmo: vá gritar no ôlho da rua!
BALABANOFF — Os canalhas me expulsam!
FRANCESCA — Queremos viver.
BONARD — Rua, já disse, rua!
FRANCESCA — O pesadelo acabou, fique sabendo.
BALABANOFF — Está bem, mas antes de vocês me jogarem fora,

43


TN.CPW.PTE Jg3 p. ^iO

vão 111 c ouvir; — vocês nao passam de dois venais, de dois pciceve-
ios da Coroa! Eu tenho nojo de vocês! (cospe para o lado) Nojo!
BONARD (avança para íbdabanoff, agarra-lhc o pescoço) — Pe-
ça desculpas à Francesca. Vamos! (lutam sèriamcntc)
FRANCESCA — (Separando-os) Isso não, Bonard! Não façam
isso!
BONARD — (Atende, e deixa-se cair numa cadeira, sucumbido).
BALABANOFF — (Ofegante, se derrama.no sofá.)
FRANCESCA — (Também abatida, senta-se, com a carta li-
mão).
(Longa pausa).
FRANCESCA — (Voltando a ler.) “Aceite êste presente para seu
filho. Ê dado dc todo coração. Seu filho‘nascerá em paz, e crescerá
cm paz, se você lutar desde hoje para mudar o seu destino. Tenha íé.
E agora, adeus. Minhas amistosas lembranças a Baiaoanoff e a lio-
nard. Para você, um beijo afetuoso; assinado: Maria Eulália. (Ergue-
se, vai lá fora, c volta empurrando um carrinho luxuoso de bebê).
BALABANOFF — (Olha de esguelha para o carrinho).
FRANCESCA — (Volta a sentar-se, a carta sempre na mão. Olha
disfarçadamente para Balabanofí procurando adivinhar-lhe a reação).
BONARD — (Lança também um olhar indagativo a Balabanofí)
Meus parabéns, o carrinho é lindo e digno de um príncipe.
FRANCESCA — Eu sonhei tanto com um assim!
BONARD — Deve ter molas muito macias. Maria Eulália foi mui-
to gentil.
FRANCESCA — Ela e um amor de mulher!
BALABANOFF — (Que sc erguera e analisara o carrinho, é sur-
preendido por Francesca quando ensaia timidamente empurrá-lo).
FRANCESCA — Vá treinando, vá treinando...
BALABANOFF — (Com uma irritação inconvincente) Ah! (Scn-
fa-se depressa).
BONARD — Não haverá um “post-scruptum” para mim na carta?
FRANCESCA — Há, sim. (Lc) “P.S. Diga a Bonard o seguinte:
o meu tüburi está esperando na curva da estrada, e tem ordem de es-
perar até ele sentir que pode largar a corda. M.E.” ’ (Fica pensativa,
os olhos parados, triste.)
BONARD — (Ergue-se e vai em direção à poria da rua.)
FRANCESCA — Você resolveu ir?
BONARD — Volto já. Só vou avisar o cocheiro para não esperar
por mim...
FRANCESCA — Mas... e a princesa Maria Eulália?
BONARD (Hesita) Uma criatura verdadeiramente admirável,
Francesca. Mas eu gosto de uma bailarina chamada Josette Valmore.
(Vai saindo).
(Um estampido tremendo vem do abismo, debaixo da janela por
i, '■ onde Josette atirou a bomba.)

46
TN.CPW.PtE J Q2 p.
i

BONARD — (Prccipitando-se, para ver ainda o resto da explosão.)


li a. minha bomba! Minha bomba explodiu! Era mesmo de ação retar-
dada, mas explodiu! Venham, venham ver! Eu não disse que iuncio-
nava? Não disse?
(Depois de uns instantes de estupefação, Francesca e Balabanoíf
sc surpreendem' examinando o carrinho do bebê. Sorriem com ter-
nura).

BAIXA RAPIDAMENTE O PANO.

“AMANHÃ, SE NÃO CHOVER”, original de Henrique Pongetii, só


-poderá ser representada, total ou parcialmente, em teatro, -profissional
ou amador, rádio, televisão, disco, cinema ou por qualquer outra -mo-
dalidade, com licença expressa do autor, por intermédio da SOCIEDA-
DE BRASILEIRA DE AUTORES TEATRAIS, Rio de Janeiro, GB —
Brasil.

4
r TN.CPR.PTE J03 p.

SERVi;0 PÚBLICO FEDERAL

limo Sr
Chefe do DCDP/SRAJ
Assunto: Amanhã se não chover (leitura de texto)
Classificação: 14 anos
Parecer N» QlC?'b

Comédia política versando sobre o planejamento de um


atentado ao monarca em 1908 em algum país alpino.
Ires anarquistas arquitetam assassinar o rei, faz en»
do uso de uma bomba de fabricação caseira, confeccionada
por um deles. 0 chefe do grupo é o único que parece ser oo
erente com sua posição de niilista, já que os outros dois,
um ex diplomata, homem fino e sensível, e uma mulher, des»
lumbrada com a reconte gravidez e desejando um mundo de /
paz para seu filho, não se encontram muito entusiasmados
com o projeto. Casualmente entram em contato com uma priii
cesa, parenta do rei que seria alvo do assassínio. Embora
ignorando a condição monárquica da recém conhecida sentem,
através do seu aparecimento e intervenção, o despropósito
do intento terrorista.
A peça parece querer demonstrar que as pessoas que se
engajam politicamente, nesta ou naquela posição, o fazem
para se compensar de algum problema interno. Estão na rea-
lidade se servindo de um móvel político em causa própria.
Considerando nada haver no presente texto que contra
indique sua encenação, sugiro seja liberado oom impropri-
edade a ser fixada em 14 anos.

Rio, 2 de setembro de 1977

abrieln Wagner Gomes


léc. Cens. Mat 2.416.891
mçp*.PTE 3°3> p. 5 3
Kl-
r
SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL

■ ;

parece m t

J-I4JL0: " AMANHÃ,SE NÃO CHOVER"


AUxOR:
CLASSIFICAÇÃO: 14 anos

^eça de cunho político ,conta o atentado a um nobr#


no ano de 1908.
Ae particularidades dos personagens dão à peça um as-
pecto cômico ao atentado.
Ires são os revolucionários que tentam através da der
, rubada do poder conseguir uma aituação melhor. Destes somente um 4 m
almente revulucionário,fiel aos seus idaais.O outro,um ex-diplomata,
gentil como lhe era exigido o antigo gargo ,constr<5i a "bomba,com a
%
qual se pretendia matar o rei,ainda 4 mais um ser huipano a procura
de ampr do que um anrquista. A moça está mais preocupada com sua
maternidade muito desejada durante muitos anos.
Ocasionalmentedüão hospedagem a uma mulher que se faz
passar por uma bailarina e que na verdade era a própria princesa.
Essa visita vem chama-los às suas responsabilidades
de pessoas individuais e mostrar-lhes um mundo mais calmo,onde ha-
via lugar para todos eles.
A peça mostra como as pessoas projetam seus recalques
e como lhes 4 mais cômodo resolve-los através de revoluções.
Uma vez despertados® sentimentos mais profundos assumem
seus recalques e voltam suas lutas para a construção do seu bem-e^
tar e de sua tranquilidade.
Sem ver nada à que se possa fazer restrições opino
para a liberação para maiores de 14 anos.

Eio de Janeiro,12 de setembro de 1977

ÍJtlES JPIxALE DE QUEIROZ


NICA DE CENSURA
■ *

TN.CPR.PTE J°3 p. f ^

SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL


DEPAHTAMFNTO DK POLICIA FEDP AL

O-f^-nfi /7 7-SCDP/SR/DPF-RJ Em jJ / 8/197 7

Do
Chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas-SR/DPF-RJ
Ao
Sr. Diretor da Divisão de Censura de Diversões Publicas-DPP
Assunto . Encaminhamento (faz)

Ref.: Prot. n2 6719 /197 7-SR/DPP-RJ - «CEP

Peça*. . 8/. .CWOVEH»

a„+at
ÜU UU i..a H*nriqu» : on^áti
o*oooo~*ooooo o*"> oooooooooooo o 000*0 0 0 0 * 0 0 *

Tradução:

Adaptação;

Requerente s
I»í«.
• oooeoeooooooooooooooo ooooooooooooooooo*

Senhor Diretor:

Para cumprimento do que dispõe o sub-item 1.1 da


Portaria nS 42/75-DC33P, de 26.11.75, encaminho a Vossa Senhoria
um exemplar do texto da peça acima referenciada.
Renovo-lhe, neste ensejo, os protestos' de minha eon
sideração e distinguido apreço.

/rw /

WILSON DP Çuixaoz OAiíÇlA


Chefe do SCDP/SR/DPF/rJ

L L/.
mçp*.PTE_Mi d. [Íraa/srT^ : fichado"!

3^

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA
hQ/O
W vj
DEPARTAMENTO DE POLÍCIA FEDERAL

or. No. 1419/77 SCTC/SC/DCDP dj\ 19/09/77

s Diretar da Divisão do Censura de Diversões Publicas DPF

: Sr. Superintendente Regional do DPF no Rio de Janeiro

Encaminhamento (FAZ)

Ref. Of. No. 883/77-SCIP/SR/RJ

Senhor Superintendente:

De acordo com a Portaria No. 042/75-DCDP,

de 26.11.75 e em atençao ao ofício em referência, encaminho a

l/.Sa, as anexas 1§ e 2§ vias do certificado de censura da peça

teatral "AMANHÃ, SE NÃO CHOVER" de Henrique Pongetti.

W
Na oportunidade,renovo a ,Sa, protestos

de estima e consideração

Diretor DCDP
TN.CPR.PT

erviço público f edera-

DEPARTAMENTO DE POLICIA FEDERAL

<Sg setembro de 19^


Chefe do Serviço de Cintura de Diversões Públicas

Sr. Diretor da Divisão de Censura de Diversões Públicas

8 Aditamento (faz)

Senhor Diretorj

Qb aditamento ao of. 883/77-SCDP/SR/RJ,


para fins do disposto do sub-item 1.4 da Portaria 42/75 - SCDP
de 26.11.75, encaminho a V.S», os pareceres da peça teatral in
titulada "AMANHl SE NXO CHOVER**, de Henrique Pongeti, liberada
com impropriedade para menores de 14 anos, na dependência do en
saio geral.

de estima e consideração

WILSON DE QUEIROZ GARCIA


Chefe do SCDP/SR/RJ

LSI/.
ft MINISTÉRIO DA JUSTIÇA rN.CPn.PTE JQ3 n
DEPARTAMENTO DE POLICIA FEDERAL
a

CENSURA FEDERAL

Certificado N? 374/77

PECA AMANHÃ... se não chover

HENRIQUE PONG-ETTI
ORIGINAL DE
M.J-D.P.F
CPW.PTE Ò0~. p. 9^ j|
CERTIFICADO DA D.C.D.P

V Certifico constar no arquivo de registro de peças teatrais deste Serviço, o assentamento


AMANHÃ... SE NÃO CHOVER
da peça intitulada

Origina! He HENRIQUE PONGETTI

Tradução de.
Adaptação de
Produção de

Requerida por. SOCIEDADE ARTISTAS UNIDOS LTDA - RJ

Tendo sido censurada em 19 de SETEMBRO de 1 9 77 e recebido

a seguinte classificação: IMPROPRIO PARA MENORES DE 14 (QUATORZE) ANOS. CONDICIO-


NADA AO EXAME DO ENSAIO GERAL. 0 PRESENTE CERTIFICADO SOMENTE TERA VALI
DADE QUANDO ACOMPANHADO DO SCRIPT DEVIDAMENTE CARIMBADO PELA DCDP.

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