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N.Cham. 331.3(41 )(091) T469f 3.ed.
Autor: Thompson, E. P. (E
Título: A formação da classe operaria in
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V. 3 Ex.4 UFSC BC S1RIUS

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Copyright by
E. P. Thompson, 1963, 1968
Título do original em inglês:
The Making of the English Working Class
Capa
Dap Design
Revisão técnica
Edgar de Decca
0 2 SET. 2009 Robert Slenes
Revisão
PREÇO, tir] Flávia Ribeiro
reqistr0 22223^ Franz Keppler
ohadorW M J M S cíLU- Márcia Courtouké Menin
Oscar Faria Menin
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros. RJ.

Thompson, E. P.
T39Í A form ação da classe operária inglesa / E. P.
v.III Thompson: tradução Denise Bottm ann — Rio de “ A Nivelução começou,
Janeiro: Paz e Terra. 1987.
Vou em casa pegar minha espingarda
„ i u ir (Coleção Oficinas da História, v. 81
E atirar no Duque de Wellington.”
Tradução de: The Making of the English Work­
ing Class.
Conteúdo: v. 1. A árvore da liberdade. — v. 2. Canção de rua de Belper
A m aldição de Adão. — v. 3. A força dos trabalha­
dores.
1. Trabalho e trabalhadores — Inglaterra —
O História. 2. Profissões — Inglaterra — História.
"O povo não se dispõe . . . a aprontar uma rebelião pelo brilho
I. Titulo. II Série.
CDD - 331 .0942
teatral da coisa.”
«7-0801 CDU - 331 <6301
William Hazlitt

EDITORA PAZ E TERRA S/A


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2002
Impresso no BnsMPrintetl in Bruzil
S UMÁRI O

A Formação da Classe Operária Inglesa

A FORÇA DOS TRABALHADORES


Vol. III

1. A Westminster radical 9

2. Um exército de justiceiros 33

3. Demagogos e mártires 181

4. Consciência de Classe 303

índice Remissivo 441


A ÁRVORE DA LIBERDADE
Vol. I

Prefácio 9
1. Número ilimitado de membros 15
1
2. O cristão e o demônio 25
3. As fortalezas de Satanás 57 A WESTMINSTER RADICAL
4. O inglês livre de nascimento 83
5. Plantando a árvore da liberdade 111

O radicalismo popular não se extinguiu quando foram dis­


A MALDIÇÃO DE ADÃO solvidas as sociedades de correspondência, suspenso o habeas cor-
Vol. II pus e proscritas todas as manifestações “jacobinas” . Ele simples­
mente perdeu coesão. Foi emudecido por anos de censura e inti­
midação. Perdeu sua imprensa, perdeu sua expressão organizada,
1. Exploração 11
perdeu seu próprio senso de direção. Mas lá persiste, como uma
2. Os trabalhadores rurais 39 presença palpável, durante toda a Guerra. É quase impossível
3. Artesãos e outros 71 apresentar um relato histórico coeso sobre uma presença não-
4. Os tecelões 117 coesa, mas é preciso tentá-lo.
5. Padrões e experiências 179 Em 1797, quando instalou-se no país a repressão de Pitt,
pela última vez Grey e Fox apresentaram uma moção na Câmara
6. O poder transformador da cruz 225 dos Comuns a favor do voto domiciliar. A partir daí, Fox e seu
7. Comunidade 291 aristocrático grupo restante de republicanos Whig abandonaram
a Câmara, em protesto contra a suspensão do habeas corpus e em
oposição à guerra. Retiraram-se para suas mansões campestres,
seus divertimentos e estudos, suas discussões na Holland House
e no Brook’s Club. Ricos e influentes, não poderiam ser totalmente
excluídos da vida política, visto estarem seguros do controle sobre
os burgos podres* denunciados pelos seus próprios princípios.1
Depois de 1800, voltaram atrás e reassumiram seus lugares
na Câmara. Embora as convicções democráticas da maioria do
grupo fossem em larga medida especulativas, alguns membros —
Sir Samuel Romilly, Samuel Whitbread, H. G. Bennet — levan-

* "Rotten boroughM: aqui referido simplesmente como “burgo podre”, é uma


expressão que designa qualquer burgo inglês (antes da Lei da Reforma de
1832) com um número de representantes no Parlamento maior do que, pro­
porcionalmente, caberia ao eleitorado respectivo. (N . do T.)
1. Uma das ironias mais estranhas da época foi a volta de Home Tooke
em 1800 como Membro para o burgo mais podre de todos, Old Sarum.
Tooke não foi empossado por um detalhe técnico: o de ser um antigo pastor
da Igreja.

9
8
taram-se várias vezes na Câmara para defender liberdades políticas A paz trouxe uma Eleição Geral onde, em meia dúzia de
ou direitos sociais. Entre 1792 e 1802, Fox mostrou-se o único distritos eleitorais, candidatos progressistas com apoio jacobino
refúgio para a reforma. Aqui e ali, reuniam-se grupos para brindar alcançaram um êxito surpreendente. Em Kent, onde outrora as
a Fox e Grey, exigir a restauração das liberdades políticas ou sociedades de correspondência tiveram tanta força nas vilas de
fazer petições pela paz. Assim se reuniram antigos jacobinos em Medway, o candidato foxista derrotou o Membro ocupante. Em
Norwich, e iniciaram em 1799 “ uma Reunião Mensal aberta dos
Coventry, depois de grandes tumultos, um radical deixou de ganhar
Amigos da Liberdade” .2
a eleição por apenas oito votos. Em Norwich, o Ministro da
Mas o mínimo indício da existência de tais grupos atraía ime­
Guerra, Windham, foi destituído da sua cadeira, e dois candidatos
diatamente a atenção dos magistrados e o poder de fogo de alguns
propagandistas antijacobinos — um dos não menos cáusticos era foxistas se elegeram com um ativíssimo apoio jacobino. Em Notting-
um novo jornalista, William Cobbett, que retornara recentemente ham, ocorreram cenas extraordinárias de empolgação quando um
dos Estados Unidos, onde tinha prestado serviços como polemista reformador foi eleito com o apoio da corporação foxista e da
antijacobino e fora recompensado pelo seu patriotismo com uma multidão exultante. Numa procissão triunfal, a banda tocou Ça Ira
ajuda do Ministro da Guerra, Windham, à fundação do seu e a Marseillaise, foi hasteada a bandeira tricolor e (segundo um
Political Register (1802). Mas, se os reformadores declarados se panfletista antijacobino) “ uma mulher, representando a Deusa da
dispersaram ou foram levados à clandestinidade, por outro lado Razão, em estado de NUDEZ TOTAL era uma figura de desta­
cresceu uma insatisfação geral entre 1799 e 1802. O bloqueio que!!!” A multidão de Nottingham (criticava Cobbett) era “ segun­
continental de Napoleão trouxe à Inglaterra a estagnação indus­ do todas as aparências ( ...) uma turba republicana e revolucioná­
trial, o desemprego e a alta dos preços dos alimentos. Os manu- ria”. O vencedor foi destituído pela Câmara dos Comuns, em
fatureiros faziam petições pela paz, apoiados por um aumento da 1803, sob a alegação de que os amotinados tinham intimidado os
indignação contra as Obrigações Tributárias. Houve motins por eleitores; o fato deu ocasião para se introduzir uma legislação
alimentos em todo o país. E existem evidências que sugerem uma que fortalecia o poder dos magistrados locais na cidade industrial.4
clandestinidade organizada de tipo insurrecional.3
A breve Paz de Amiens (abril de 1802 a maio de 1803) inau­ Mas a eleição mais sensacional ocorreu em Middlesex, velho
gurou um novo período. Pitt, temporariamente, cedeu lugar a reduto eleitoral de Wilkes. Tinham vindo à luz, três anos antes,
Addington (o futuro Lorde Sidmouth), que mostrou-se um Primei­ escândalos sobre o tratamento dado aos “ prisioneiros do Habeas
ro-Ministro mais fraco, embora se inscrevesse solidamente na Corpus” da SLC e dos Ingleses Unidos, mantidos sem julgamen­
mesma tradição antijacobina e repressora. A guerra se arrastara to na prisão de Coldbath Fields, sob o regime do Governador Aris.
por quase dez anos, e a paz foi recebida com luzes festivas e Sir Francis Burdett, Membro do Parlamento e amigo de Horne
comemorações públicas. O emissário de Napoleão foi carregado Tooke, recebeu um apelo das vítimas, escrito — segundo um relato
em triunfo pelas ruas. O escritório de Cobbett foi destroçado, posterior de Cobbett — na guarda de um livro com uma lasca
pois o Register defendia a continuação da guerra. Whigs e refor­ de madeira molhada em sangue. Descobriu que vários dos prisio­
madores curiosos, incluindo o próprio Fox, afluíram a Paris para neiros estavam descarnados, “ simples esqueletos humanos”, e en-
ver a nova república. (O Coronel Thornton, que em 1795 lançara
seus regimentos contra a “ ralé” de York, levou a Paris uma ma­
4. J. Bowles, Thoughts on the late General Election, as demonstrative
tilha de cães de caça, cavalos e um estojo de pistolas como pre­ of the Progress of Jacobinism (1802), pp. 3-4; e Salutary Effects of Vigour
sente para o Primeiro Cônsul.) (1804), p. 141. Os reformadores irados desmentiram Bowles quanto à alega­
ção de uma mulher nua: ver Ten Letters on the Late Contested Election at
2. Alguém do Povo, The Thirty-Sixth of a Letter to the Society which Nottingham (Nottingham, 1803), pp. 24-5; Sutton, Date-Book of Nottingham,
met at the Angel t . ..) to Celebrate the Birth-Day of C. J. Fox (Norwich, p. 244. A chave do mistério talvez se encontre numa referência a uma
1799). mulher presente na procissão “vestida com uma roupa de cor de carne ou
3. Ver adiante, pp. 33-46. salmão": Letter to John Bowles (Nottingham. 1803), p. 9.

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carregou-se dos seus processos - em particular o do Coronel
Despard — , dentro e fora da Câmara dos Comuns. Tornou-se, acusação de alta traição; em janeiro, foi executado.7 No inverno
da noite para o dia, o herói da multidão londrina, e ergueu-se o de 1802-3, as relações entre a Inglaterra e a França tornaram-se
grito: NÃO À BASTILHA! Em 1802, ele disputou Middlesex ásperas. Em maio de 1803, mais uma vez os dois países estavam
contra o Membro ocupante, um defensor do governo chamado em guerra.
Mainwaring, que era também um magistrado ligado ao Governa­ Mas, para muitos reformadores, revelou-se como um outro
tipo de guerra. Em 1802, Napoleão tornara-se Primeiro Cônsul
dor Aris. A campanha atraiu a atenção do país; John Frost, que
vitalício; em 1804, aceitou a coroa como Imperador hereditário.
em 1794 fora exposto no pelourinho, era um dos agentes de
Nenhum verdadeiro seguidor de Paine teria estômago para tanto.
Burdett, e essa campanha contou com a colaboração de outros
O jacobino convicto sentiu-se tão profundamente atingido quanto,
antigos jacobinos e prisioneiros. Cobbett, ainda Tory, deplorava
antes, os reformadores mais moderados tinham se apavorado com
que:
Robespierre. Por mais que procurassem manter um distanciamento
A estrada de Piccadilly ao palanque em Brentford é um cenário crítico, a disposição moral dos reformadores ingleses estava inti­
de desordem e sedição, como nunca existiu, exceto nas cercanias mamente envolvida com os destinos da França. O Primeiro Impé­
de Paris, durante os períodos mais tenebrosos da revolução. (. ..) rio desferiu um golpe no republicanismo inglês do qual nunca se
A estrada (. . .) está forrada de miseráveis esfarrapados de St Giles recuperou totalmente. Os Direitos do Homem tinham sido veemen­
vociferando “Sir Francis Burdett e Não à Bastilha”, e no palan­ temente apaixonados em sua denúncia contra tronos, instituições
que sobem diariamente meia dúzia de condenados que cumpriram góticas, privilégios hereditários; conforme prosseguia a guerra,
sua pena no reformatório, ocupados em divertir a ralé com exe­ Napoleão, acomodando-se com o Vaticano, convertendo-se em rei
crações à pessoa do Sr. Mainwaring. e criando uma nova nobreza hereditária, despojou a França do
seu último magnetismo revolucionário. Ça Ira apagou-se na memó­
A vitória de Burdett foi o sinal para iluminações festivas ria até da multidão de Nottingham. Se a Árvore da Liberdade
numa escala quase igual à das comemorações pela paz. “ Isso terá devia crescer, tinha de ser enxertada em tronco inglês.
um efeito extremamente tenebroso”, lamentava Cobbett. “ Fortale­ A França, agora, aparecia a muitos somente como uma rival
cerá e aumentará a parcela desordeira e desonesta dessa metrópole comercial e imperial, a opressora dos povos espanhol e italiano.
monstruosamente inchada e devassa.”5 Entre 1803 e 1806, o Grande Exército se dispusera ao longo do
Mesmo Lancaster presenciou uma disputa onde uma lady Canal, esperando apenas obter o domínio sobre os mares. “ O jaco-
discursou para uma “ turba jacobínica”, declarando que “ a dispu­ binismo está morto e enterrado”, declarou Sheridan, o qual viera
ta se dava entre sapatos e tamancões, entre camisas finas e gros­ a se somar, em dezembro de 1802, ao Ministério de Addington:
seiras, entre os opulentos e os pobres, e que o» povo podia ser “ E por quem? Por aquele que não pode mais ser chamado de
tudo se decidisse exigir seus direitos” .6 Parecia estar amadurecen­ filho e paladino do jacobinismo: por Buonaparté”. E Windham,
do um movimento mais forte que o de 1792-5. O curso da histó­ recém-saído de sua derrota em Norwich, lançou um apelo extraor­
ria inglesa poderia ter sido outro, se a paz se prolongasse por dinário à Câmara pela unidade nacional frente à retomada da
guerra:
cinco anos. Mas ocorreram fatos que lançaram todos à confusão.
Em novembro de 1802. o Coronel Despard foi apreendido sob
Eu apelaria aos jacobinos, não enquanto amantes da ordem social,
do bom governo, da monarquia, mas enquanto homens de espí­
5. Eleitos: Byng (Whig), 3.843 votos, Burdett (radical), 3.207. Não-eleito: rito, enquanto amantes do que chamam de liberdade, enquanto
Mainwaring (Tory), 2.936. Ver Political Register, de Cobbett, 10, 17 e 24 de homens de sangue quente e brioso — eu lhes perguntaria se estão
julho de 1802; J. G. Alger. Napoleon's British Visitors and Captives (1904): contentes em ser subjugados e esmagados pela França.8
J. Dechamps, Les lies Britanniques et Ia Revolution Française (Bruxelas.
1949), cap. 5; M. W. Patterson, Sir Francis Burdett (1931), caps. 4 e 7. 7. Ver adiante, pp. 3946.
6. J. Bowles, Thoughts on the late General Eleciion, p. 63. 8. Cobbett's Parliamentary Debates, II, Suplemento. 1667, 1752.

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Com o reinicio da guerra, os Voluntários treinavam todos os mente houve uma revivescência do sentimento patriótico popular.
domingos. Talvez não fossem tão populares como sugerem os pro- “ Boney”, se era admirado, era-o como “ combate” e não como
pagandistas contemporâneos e as lendas patrióticas. “Voluntários” , uma encarnação dos direitos populares. A Inglaterra foi inundada
em todo caso, não é um bom nome. Os oficiais se apresentavam de livros de baladas, panfletos e estampas patrióticas. Se as mu­
com uma disposição muitíssimo maior do que a soldadesca hete­ lheres de Norwich resistiram e os aldeões de Northumberland fize­
rogênea, mal disciplinada e irremediavelmente antimilitarista, a ram ouvidos moucos, já em Lancashire milhares de tecelãos se
qual estava perdendo seu único dia de descanso. Também tomou- uniram aos Voluntários. Nelson era o herói de guerra mais popular
se o cuidado de manter as armas à distância dos insatisfeitos. “ Nas que a Inglaterra conhecera desde Drake; era tido como alguém
que simpatizava com os direitos populares, e lembrava-se a sua
grandes cidades”, declarou Sheridan em nome do Governo, “ como
intercessão a favor do Coronel Despard; a vitória agridoce de
Birmingham, Sheffield e Nottingham, daria preferência às associa­
Trafalgar (1805) foi o tema de centenas de baladas e o assunto
ções das classes superiores, e no campo e aldeias, às das classes de conversas em todos os lares e tavernas. Em 1806, Fox (em seu
inferiores”. Em Norwich, The Times noticiou em 1804: último ano de vida) aderiu pessoalmente à coalizão nacional —
o “Ministério-dos-Mil-Instrumentos” — e resignou-se com a con­
o povo comum da cidade (...) e vizinhanças tomou aversão tinuação da guerra.10
ao sistema de alistamento voluntário. Na segunda-feira, eles ten­
taram, principalmente as mulheres, impedir que os voluntários O radicalismo, mais uma vez, não se extinguiu. Mas a sua
do regimento de Norwich obedecessem ao toque de reunir. Insul­ argumentação tornou-se irreconhecível. Antigos jacobinos viraram
taram e ofenderam os oficiais, e acusaram os voluntários de patriotas, tão sôfregos em denunciar Napoleão pela sua apostasia
serem a causa do pequeno tamanho do pão e da alta no preço da causa republicana quanto os legitimistas em denunciá-lo pela
do trigo. sua usurpação da Casa de Bourbon. (Em 1808, um ex-secretário da
SLC, lohn Bone, fez uma tentativa significativa de redespertar
Os filhos do squire, do advogado e do industrial gostavam a velha causa, publicando o Reasoner, periódico que defendia
de ir a cavalo, todos enfeitados, aos bailes dos Voluntários. Cres­ simultaneamente a guerra e muitas antigas reivindicações “jaco-
ceu um entendimento comum entre a aristocracia e a classe média, binas” .11) Outros, como Yorke “ Ruivo” de Sheffield, sofriam as
formando aquele esprit de corps que posteriormente ganharia o compulsões clássicas de culpa e vontade de autojustificativa, tão
dia em Peterloo; ào passo que, nos bailes, suas irmãs escolhiam familiares aos românticos desencantados de épocas mais recentes;
maridos que facilitavam aquela fecundação mútua entre a riqueza Yorke, em 1804, tinha se transformado num propagandista “anti-
agrária e mercantil que caracterizou a Revolução Industrial ingle­ jacobino” tão virulento que levou Cobbett, por pura aversão, para
o lado dos reformadores.
sa. A soldadesca teve poucas dessas recompensas: numa aldeia de
Northumberland, com alta porcentagem de “voluntários”, “ 13 ofe­ Foi nesse ponto altamente inesperado que soou pela primeira
receram-se para servir na infantaria, 25 na cavalaria, 130 como vez a nova voz do radicalismo. Pois as mesmas influências que
guias, 260 como carroceiros e 300 como boiadeiros”.9 tinham dissolvido a velha espécie de jacobinismo também fizeram
com que a velha espécie de arct/jacobinismo perdesse um tanto de
Mas, apesar dessa tendência latente, Sheridan estava certo, sua força. Se Napoleão era inimigo por ser um déspota que concen-
e o jacobinismo, enquanto movimento que extraía sua inspiração
da França, estava praticamente morto. Entre 1802 e 1806, certa­
10. Sobre a literatura do patriotismo popular, ver F. Klingberg e S.
Hustvedt, The Warning Drum (...) Broadsides of 1803 (Univ. Califórnia,
9. Cobbeíí's Parliamentary Debates, IV, 1191, 1362; The Times, 5 de 1944). Até John Thelwall contribuiu com um Poem and Oration on the
novembro de 1804. Para um registro contemporâneo da reconciliação entre Death of Lord Nelson (1805).
o setor agrário e o mercantil a nível dos Voluntários, ver o diário de 11. Esse periódico de nome respeitável faliu por falta de apoio. Ver
Sheffield de T. A. Ward. Peeps into the Past, passim. E também lane Austen. Reasoner, 16 de abril de 1808.

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trara todo o poder em suas mãos, o que dizer de Pitt, que (de contentamento e deslealdade, acovardar o braço guerreiro e fa­
volta ao poder em 1804 até sua morte no início de 1806) des­ zer-nos prostrar aos pés do inimigo.12
truira as liberdades britânicas, encarcerara indivíduos sem julga­
mento, subornara a imprensa e empregara todas as formas de As palavras de Cobbett eram tão notáveis como o momento.
influência governamental para sustentar seu poder? Cobbett, o Mainwaring tinha invalidado o resultado de 1802 com uma peti­
combativo jornalista Tory que, por nenhum esforço de imaginação, ção à Câmara. Em 1804, houve uma eleição suplementar em
poderia ser acusado de jacobinismo, deu uma virada em 1804 e Middlesex, onde foram empregados todos os recursos governa­
começou a investir polemicamente contra o Ministério: mentais para expulsar Burdett e substituí-lo pelo filho de Main­
waring. Burdett dificilmente seria um reformador com calibre sufi­
A maré mudou: do entusiasmo popular recuou para o despo­ ciente para constituir uma liderança nacional. Era um radical aris­
tismo; a ascensão dc Buonaparté ao cargo de Cônsul vitalício tocrata que conscientemente moldava sua tática por Wilkes,13 e
iniciou a grande alteração na mente dos homens, que se com­ adquirira grande fortuna casando-se com Miss Sophia Coutts.
pletou com sua pretensão mais recente [i.é., como Imperador], Teatral no palanque, mostrou-se um líder reformador fraco na
e que não só afasta o perigo, antes que seja percebido, derivado Câmara, ao longo dos dez ou quinze anos seguintes. Mas era um
do predomínio de idéias a favor da liberdade, como tende a dos únicos porta-vozes nacionais da reforma capazes de se fazerem
suscitar outras percepções, a nos fazer temer que, através da
imensa influência ainda crescente agora deposta nas mãos do ouvir. Não tentou rechaçar a mancha de jacobinismo que lhe
ministro pelo sistema de cédulas bancárias e fundos públicos, trazia sua amizade com Horne Tooke e Arthur 0 ’Connor. Em
podemos efetivamente, ainda que não nominalmente, nos con­ 1804, manteve sua posição, e enquanto o populacho gritava NÃO
verter em pouco mais que escravos e, ainda, escravos não do À BASTILHA, ele derramava seu desprezo tanto por Tories como
rei, mas do ministro do dia. . . por Whigs. Por quinze dias, as votações oscilaram entre Main­
waring e Burdett. Diariamente, ao término da votação, Burdett
A lógica que vinculava o despotismo de Napoleão ao de Pitt discursava para enormes multidões empolgadas, apelando aos pro­
não é de forma alguma clara: Cobbett, tão convincente em argu­ prietários livres de Middlesex, sob o lema da “ INDEPENDÊN­
mentos detalhados, muitas vezes se confundia nos esquemas mais CIA”, instando-os incessantemente a “ serem ativos e angariarem
gerais. Mas o teor do que dizia, com força e freqüência cada vez votos” . Conseguiríam os eleitores de Middlesex ter “uma voz livre
maiores, era claro. O despotismo devia ser combatido tanto a nível e independente”, ou a cadeira teria de ser perpetuamente negocia­
interno como externo. A imprensa era vendida. O Ministério era da sob o controle de “ uma associação de destiladores, taverneiros
inepto e corrupto, sustentando uma malta de “ bajuladores da corte, e cervejeiros, de magistrados e empreiteiros com seus interesses
parasitas, pensionistas, membros de conselhos subornados, direto­ próprios”? Diariamente, ao término da votação, Mainwaring
res, empreiteiros, corretores, lordes mercenários e ministros de adiantava-se no palanque para discursar à multidão, recebido com
Estado” . A Lista Civil era uma forma de suborno partidário, sus­ gritos de protesto. Os adeptos de Mainwaring afixaram cartazes
tentada pelo dinheiro obtido com uma tributação excessiva. O em Londres, com calúnias contra Burdett e suas ligações “ jaco-
nouveau riche adventício, cevado pela guerra, ameaçava os direitos binas” , desafiavam seu eleitores e recolhiam os votos de qualquer
do Rei e as liberdades do povo. Apenas uma Inglaterra livre con- eleitor influenciável — “os escriturários, salmodiadores e sineiros
seguiria resistir à invasão estrangeira. Numa bizarra miscelânea de de Westminster”, “ policiais, intermediários e caçadores de ladrões”.
torysmo e radicalismo, ele acusava, não os reformadores, e sim No décimo quinto e último dia, mostrou-se que Burdett obtivera
o Ministério por:
12. Political Register, l.° de setembro de 1804.
esforçar-se em espalhar as sementes da discórdia entre [o povo], 13. “Vou ( . . . ) empregar meu máximo empenho", disse ele no palanque
dividi-lo novamente entre jacobinos e antijacobinos, criar um em 1804, “para que 45 e a Liberdade sejam transmitidos junto à lembrança
pretexto para medidas excepcionalmente coercitivas, gerar des­ da mais avançada posteridade".

16 17


a maioria por um voto: Rurdett. 2.833, e Mainwaring, 2.832.
Uma multidão exultante carregou-o em triunfo por Londres, “em o processo eleitoral de Westminster. Enquanto Middlesex contava
meio a cavalgada que parecia um bosque vivo — as carruagens com um direito de voto restrito aos proprietários livres e alodiais,
e cavaleiros cobertos de ramos verdes”, enquanto as bandas toca­ Westminster era um dos poucos distritos eleitorais “ abertos” do
vam Rule Britannia e flutuava sobre a carruagem de Burdett uma sul da Inglaterra, com um direito de voto por chefe de família
que habilitava muitos mestres artesãos e alguns oficiais. Desde
bandeira onde Hércules esmagava a Hidra. Na manhã seguinte,
1780, uma de suas duas cadeiras fora ocupada por Fox. Horne
o Xerife inverteu a decisão, alegando uma questão técnica quanto
Tooke disputara a outra cadeira, e obíivera uma votação conside­
ao horário de encerramento da votação. Mas o triunfo moral foi
rável em 1790 e 1796, mas a cadeira, num acordo tácito, coubera
completo.14
a um candidato lançado pelo governo. “ O partido de Pitt colo­
Cobbett tinha razão ao falar da mudança da maré. O próprio cou um Membro, e o partido de Fox colocou outro; ambos os
fato de dar seu apoio a Burdett — inconcebível dois anos antes partidos detestariam pensar em qualquer coisa que se parecesse
— era um sinal dessa virada. As declarações de tantos proprie­ com uma verdadeira eleição. O caso foi definido numa reunião
tários livres a favor de Burdett indicavam uma agitação incomum conjunta das duas facções, como ladrões a dividirem o botim. . .”15
entre os comerciantes, profissionais liberais, pequenos fidalgos e
mestres artesãos. Tinham uma série de motivos de queixa, alguns Com a morte de Fox, vagou a cadeira para a facção Whig,
desinteressados — o apelo que ressoava nos velhos brados por e o Duque de Northumberland arrogou-se o direito de lançar seu
“ liberdade” e “ independência” — , outros mais interessados: por filho, Lorde Percy, que foi “ eleito” sem disputa. Francis Place
exemplo, os contratos governamentais para a construção de coches, observou enojado os criados em libré do Duque a lançarem pedaços
apetrechos e uniformes militares geralmente eram feitos com umas de pão e queijo e distribuírem cerveja à turba servil e engalfinhada.
poucas grandes empresas ou intermediários, passando por cima Com a aproximação de uma Eleição Geral, Cobbett dirigiu quatro
de uma imensidade de mestres e artesãos menores. Cobbett, em cartas abertas aos eleitores de Westminster. Os temas eram simples:
1804-6, não estava iniciando, e sim acompanhando uma nova maré
reformadora. Nos poucos anos seguintes, seu Register expressou Ao ouvir algumas pessoas a falar de uma eleição por West­
um gradual radicalismo combativo, tanto mais temível na medida minster, alguém que fosse estranho ao estado de coisas julgaria
que os eleitores são os escravos ou, na melhor das hipóteses,
em que se noticiava e se discutia detalhadamente cada abuso em
meros criados domésticos de umas poucas grandes famílias. A
particular. Cobbett expôs a má administração civil e militar, as questão (...) parece ser, não qual o homem que os eleitores
concussões, a venda de comissões pela amante do Duque de York. gostariam de escolher, mas qual o preferido por uns poucos
o açoitamento brutal no Exército, com uma força tal que atraía a nobres...
atenção de homens de diversas convicções políticas, muitos dos
quais não viam mais nenhum sentido nos velhos alinhamentos Os eleitores deviam garantir sua independência e livrar-se da
dos anos 1790. Porque Cobbett ainda tinha algo de Tory, remon­ servilidade e do medo do poder:
tando a um ideal sentimental sobre um povo firme, independente,
franco, que desprezava riqueza e posição, mas leal à sua Consti­ Vocês são quase vinte mil. Seus ofícios e profissões são (...)
tuição, é que escapou aos preconceitos antijacobinos e possibilitou tão absolutamente necessários aos patrões quanto o emprego é
um reagrupamento dos reformadores. necessário a vocês. Se forem demitidos de um estabelecimento,
Mas o triunfo de Burdett foi possível devido à presença da sempre haverá outro disposto a recebê-los; se perderem um
cliente, ganharão outro. . .16
multidão londrina muito mais radical. Em 1806, o sentimento
popular encontrou uma outra válvula de escape, e se escoou para
15. Ver relato partidário de Cobbett sobre a disputa de 1806, escrito
doze anos depois, Political Register, 17 de janeiro de 1818.
14. Poliíical Register. de Cobbett, 25 de agosto de 1804. 16. Ver A Formação da Classe Operária Inglesa. vol. I. p. 83.

18 19
Particularmente “os o fic ia is que compõem uma parcela nada
insignificante dos eleitores de Westminster parecem-me estar total­ os eleitores de Westminster, Paull infundia respeito enquanto um
mente fora do alcance dessa tentação”. Os patrões que tentavam indivíduo que Whigs e Tories gostariam de silenciar. “ O que
forçar os votos dos seus empregados deviam ser expostos ao “ des­ nosso homem carecia em termos de talento e conhecimento”, escre­
prezo público” : “os artesãos de uma oficina, levados ao comício veu Cobbett posteriormente:
sob o comando do mestre, são rebaixados ao nível de gado”. A
compensou amplamente com ânimo e dedicação. Era um homem
não ser que se apresentasse algum candidato independente à Elei­
miúdo, mas o que nele havia era bom. Ele era coragem, em
ção Geral, “Westminster iria (. ..) se pôr no nível de Old Sarum cada centímetro seu: um autêntico galo de briga.
ou Gatton”.17
Os T o rie s apresentaram o Almirante Hood. Os W h ig s apre­ Pouco sabia da política inglesa, não tinha grande eloqüência
sentaram Sheridan, o velho colega de Fox, que agora era o Minis­ como orador nem força convincente como escritor, mas tampouco
tro da Marinha no Governo de Coalizão, com uma receita de tinha inibições ou ambições políticas. Em três semanas de uma
6.000 libras anuais. Cobbett e os reformadores nada teriam com campanha agitada, formou-se uma nova aliança de reformadores:
ele. Na última hora, apresentou-se um candidato que personificava Sir Francis Burdett, o reformador aristocrata, que lançara Paull
o estado de confusão do arraial radical. James Paull, filho de um no palanque, Cobbett, o reformador pragmático que conduziu a
alfaiate de Perth, era um rico mercador nas índias que se fizera campanha, e Major Cartwright, o defensor veterano do sufrágio
sozinho, tendo voltado à Inglaterra em 1804 com a intenção de masculino, que obteve de Paull a garantia de ser um reformador
participar da impugnação do Governador-Geral Wellesley. Fora parlamentar.
admitido ao círculo de Fox, que então contava com o apoio do “Tivemos de lutar contra toda a força da facção do Burgo,
Príncipe de Gales; e, como homem capaz de estorvar o governo que se unira contra nós numa hostilidade aberta, ativa e desespe­
de Pitt, recebeu (em 1805) uma cadeira pelo burgo podre de rada” , lembrava Cobbett. Os primeiros quatro dias de votação
Newtown, Ilha de Wight. A investida contra Wellesley foi devi­ deram vantagem a Paull, com o que Hood e Sheridan, que não
damente encaminhada. Mas quando os foxistas entraram na Coa­ tinham levado a sério suas possibilidades, formaram uma coali­
lizão, Paull foi confidencialmente aconselhado a deixar de lado zão contra ele. Livrinhos de baladas, pasquins e canções corre­
a questão ou, pelo menos, a “ seguir a corrente” . Quando Paull ram Londres:
negou-se, indignado, viu-se em risco de destruição, expulso de sua
cadeira em Newtown e repelido pelos homens que julgara ingenua­ Ei! A Corrupção avança altiva com aparência de Liberdade,
mente partilhar de sua causa. Sua resposta foi lançar-se aos palan­ Homens livres! Reúnam suas legiões e protejam seu precioso bem.
Ondulem ao alto seus estandartes, ao apelo da justa Liberdade —
ques de Westminster. Lancem cm alta voz a senha: Independência e Paull!
Paull passou rapidamente pela história radical, e ninguém se Que a quadrilha caçadora de cargos arengue contra nossa política
deu ao trabalho de investigar muito sobre ele. É usual descartá-lo Chamem-nos Jacobinos, Traidores e vãs gírias que tais;
como um homenzinho briguento com um motivo de queixa pessoal. Com nosso Rei estamos decididos a resistir ou cair —
Sua queixa, porém, era mais que pessoal. A arrogância, a brutali­ Assim, êxito à nossa causa — Independência e Paull!
Ele é o amigo do pobre e da liberdade do homem.
dade e a má-fé de Wellesley no trato com a região de Oudh são
E, logo que puder, aliviará nossos impostos. . .
incontestáveis. Não há razão para supor que Paull não se sentisse
profundamente chocado com esses “ atos de agressão e tirania desu­
Os adversários de Paull ridicularizavam suas origens humil­
manas” na índia, que comparava aos que “estamos censurando
des e sua aparência física:
diariamente” na França. Se os problemas estavam distantes para
. . .quem é aquele sujeitinho esquisito ao lado,
17. Ibid., 9 de agosto, 20 e 27 de setembro de 1806. Que parece um batedor de carteiras lançado n'água?

20 21
De um lado, afirmava Cobbett, estavam os “parentes de
formaram um Comitê, ele o renegou publicamente e premiu-os a
ocupantes de cargos e pensionistas”, os “coletores de impostos, confiar no “ princípio público desajudado” . Essa confiança redu­
magistrados, policiais e o clero dependente”, e o séquito particular ziu sua votação à metade.
de Sheridan de “atores, contra-regras, espevitadeiros e pessoas Em 1807, uma outra Eleição Geral deu aos reformadores sua
com ( ...) tendências imorais” . Do outro lado, há provas sobre oportunidade. Semana após semana, Cobbett, no Political Register,
as primeiras tentativas sérias de uma organização eleitoral demo­ dirigia cartas aos eleitores de Westminster, dando um sinal de
crática entre os artesãos e oficiais, comitês paroquiais de anga- alerta. Os adeptos de Paull se aprestaram, e formou-se um comitê
riamento de votos e apoio organizado entre os grêmios profissio­ que convocou Burdett para disputar a outra cadeira. Mas Burdett
nais de oficiais sapateiros, impressores e alfaiates. Noite após tinha desistido:
noite, a multidão carregava Paull em triunfo pelas ruas.
[ames Paull não conseguiu ganhar a cadeira, mas ficou atrás Com os meios onipotentes de corrupção em poder dos nossos
de Sheridan por apenas 300 votos,18 e a campanha rompeu com espoliadores, qualquer luta é inútil. Temos que esperar pela nos­
a garra das duas facções sobre Westminster. “ Foi esta a verdadeira sa recuperação e regeneração até que a corrupção tenha esgotado
lula”, declarou Cobbett: “ foi este o verdadeiro triunfo da liber­ os meios de corrupção (...) Até esse tempo chegar, peço licença
dade em Westminster”. Quando, no ano seguinte, chegou a vitó­ para me retirar de qualquer serviço parlamentar. . .
ria efetiva, Paull não participou dela. Burdett não conseguira ven­
cer em Middlesex em 1806; alguns dos proprietários livres assus­ Uma delegação visitou-o e perguntou-lhe se, caso fosse eleito
taram-se com seu extremismo, embora ainda contasse com as acla­ sem sua permissão ou intervenção, estaria disposto a aceitar a
mações nos comícios e, em sua derrota, “a maioria das casas em cadeira. A isso, Burdett anuiu cansado: “ Se eu for eleito por
Kensington e Knightsbridge foram iluminadas, e o conjunto tinha Westminster (. . .) devo obedecer ao chamado (. . .) mas não gas­
tarei um guinéu, nem vou fazer nada para contribuir com essa
mais a aparência de triunfo.. .”. Mas ele falhou também por uma
eleição” . Mas o pior estava por vir. Com essa anuência passiva,
outra razão, tipicamente quixotesca. Em disputas anteriores, empre­
o Comitê de Westminster preparou a apresentação de Burdett e
gara prodigamente sua grande fortuna à maneira tradicional das
Paull como companheiros para as duas cadeiras. Mas Burdett, ao
eleições, oferecendo refeições em larga escala aos seus eleitores e
que parece, quis se desvencilhar do seu colega plebeu, com o que
provavelmente azeitando-os com bebida e dinheiro de forma tão
o “galo de briga” ficou furioso e desafiou Burdett a um duelo,
generalizada como seus adversários. Estava agora exasperado com
do qual ambos saíram feridos — Paull tão gravemente que seus
acusações de suborno, embora Cobbett, então seu aliado, tivesse adeptos retiraram sua candidatura. Às vésperas da votação de
passado o ano de 1806 a apregoar reivindicações de austeridade quinze dias, a causa reformadora parecia ter saído de campo,
eleitoral. Numa celebrada eleição suplementar em Honiton, naque­ com suas ridicularizações e altercações internas.19 A candidatura,
le mesmo ano, Cobbett tinha exigido a proibição absoluta de su­ no último minuto, de um marinheiro radical pouco conhecido,
bornos e oferecimentos de refeições, sendo que os candidatos deve­ Lorde Cochrane, reacendeu ligeiramente as esperanças. Mas, na
ríam fazer um voto solene de que, eleitos, não aceitariam cargos manhã em que se iniciou a votação, os membros do Comitê de
nem dinheiro público. Burdett, portanto, adotou os modos austeros; Burdett “estavam extremamente deprimidos” :
mas, não satisfeito com isso, negou-se a qualquer outra coisa além
de comparecer diariamente ao palanque e convocar os “eleitores Não tínhamos nenhum dinheiro, nenhum meio para fazer alguma
independentes” a se apresentarem espontaneamente. Não devia apresentação, ninguém se unira a nós, os Tories nos desprezavam
haver nenhum angariamento de votos, nenhum oferecimento de e os Whigs se riam de nós. O pior de tudo era sermos motivo de
refeições, nenhum meio de transporte para os eleitores idosos,
nenhuma organização qualquer que fosse. Quando seus adeptos 19. Sobre esse incidente, ver Annual Register, 1807, pp. 425-8. 632-9;
M. D. George, Catalogue of Political and Personal Satires (1947), VIII. pp.
18. Hood, 5.478; Sheridan. 4.758; Paull. 4.481. 528-9.

22 23
riso (...) os que bem podiam ter suportado violências não podiam
suportar as risadas. para organizar um plano eficaz de angariamento. Era este plano
que agora apresentava aos olhos de Cobbett. “ Palavra de honra,
Mas, apenas quinze dias depois, os artesãos e lojistas de Sr. Lemaitre, esta é a única coisa realmente útil que já vi nesse
Westminstet* carregavam Burdett e Cochrane num tumultuado comitê!”, exclamou Cobbett. Vieram os pedidos de desculpa, e
Lemaitre ficou.
triunfo. Burdett deixara os outros muito atrás, ao passo que
Cochrane conseguira a segunda cadeira com uma vantagem de A vitória de 1807 foi obra completa do Comitê de Westmins­
1.000 votos sobre Sheridan. (Cochrane ficou tão sentido por ter. Vários dos seus principais membros eram antigos participantes
Sheridan, no último dia da apuração, que retirou seus fiscais e de comitês da SLC. Lemaitre tinha o seu plano de angariamento
permitiu-lhe que computasse várias vezes os mesmos votos, para de votos de rua por rua, pátio por pátio, já preparado com boa
alcançar uma derrota mais honrosa.) A partir de então, West- antecipação. No terceiro andar de uma “ Casa de Gim chamada
minster (exceto num curioso episódio em 1819) nunca mais se Café Britânia”, Francis Place trabalhou por três semanas sem re­
perdeu para o radicalismo. O único distrito eleitoral popular de muneração, da aurora à meia-noite, prestando cuidadosas contas,
Londres, onde se situavam as Câmaras do Parlamento, tinha sido conferindo contagem de votos angariados e preparando relatórios
tomado por indivíduos chamados por quase toda a imprensa de para o Comitê Geral. Richter, um outro ex-prisioneiro, era seu
ajudante. “Todos nós éramos pessoas obscuras”, escreveu Place:
“jacobinos” .20
Não era uma acusação tão feroz quanto parece. Em 1806
. . . nenhum indivíduo de posição entre nós, nenhum indivíduo de
ocorrera um incidente interessante. Paull foi informado de que alguma forma conhecido entre os eleitores de modo geral, o grupo
um membro dirigente do seu comitê era um famoso jacobino de de pessoas mais insignificante que se poderia formar para assumir
origem francesa, o Sr. Lemaitre. Horrorizado, exigiu que Lemaitre uma questão tão importante como uma eleição de Westminster
abandonasse as salas do seu Comitê e pediu a Cobbett que entre­ contra a riqueza, posição, nome e influência. . .
gasse a mensagem. Cobbett tentou apresentar a ordem de demissão
da forma mais educada que pôde, mas deparou-se com um indi­ Foram ridicularizados pelos adversários como “ zé-ninguéns,
víduo de força de vontade maior do que esperara. Lemaitre real­ alfaiates ordinários e Barbeiros. ( ...) Riram-se de nós pela nossa
mente era um antigo jacobino; membro ativo da SLC e confec- loucura, e nos condenàram por nosso atrevimento” . Tanto seus
cionador de caixas de relógio, fora apreendido durante o pânico princípios como a falta de fundos exigiam austeridade eleitoral:
do “ Complô das Espingardas de Ar Comprimido”, de 1794-5,
novamente preso em 1796 sem julgamento, e fora detido mais uma . . . não devia haver nenhum consultor, advogado, fiscal ou anga­
vez entre 1798 e 1801, ficando “ confinado grande parte do perío­ riador de votos pago, nenhum suborno, nenhum pagamento de
do entre dezoito e vinte e cinco anos de idade” . Ao ser libertado, taxas, nenhuma refeição oferecida, nenhum distintivo, nenhum
tinha ajudado Burdett em suas eleições por Middlesex, e ganhara segurança pago, exceto dois para guardar as portas da sala do
Comitê.
uma experiência considerável. Ao entrar na sala do comitê de
Paull, no terceiro dia da votação, descobriu que o Comitê “ não
Não se gastou nada sem o voto do comitê. De longe o maior
tinha plano nem sistema para regular a questão de angariamento
item de despesas (até que viessem as bandeiras, faixas e fitas da
de votos” . Por vários dias, trabalhou desde cedo até à meia-noite,
vitória) foi a impressão de panfletos e cartazes. Em Place, que
só saiu uma vez das salas do Comitê para angariar votos, o Comitê
20. Cochrane ocupou sua cadeira até 1818, quando renunciou para se­ encontrou um organizador de talento.21
guir em auxílio das repúblicas sul-americanas. Burdett continuou como
Membro por Westminster até 1837, quando, com um floreio quixotesco
final, cruzou a porta da Câmara, renunciou à cadeira e disputou-a novamente 21. Essa versão sobre as eleições de 1806 e 1807 baseia-se largamente
como conservador, conseguindo se eleger por pouco. Paull teve menos sorte: no Political Register, de Cobbett, 1806 e 1807, passim-, ibid., 17 de ja­
sobreviveu ao duelo por pouco mais de um ano. suicidando-se em 1808. neiro de 1818; Political Review, maio de 1807; reminiscências de Place.

24 25
Agora devemos tentar um levantamento da posição do radi­ que seguissem o exemplo de Westminster. Na própria cidade, cons­
calismo inglês em 1807. Em primeiro lugar, o termo “ radicalismo” truíra-se um novo tipo de organização eleitoral; o Comitê de
sugere uma amplitude e, ao mesmo tempo, uma imprecisão do Westminster não se dissolveu, mas por muitos anos conservou-se
movimento. Os jacobinos dos anos 1790 eram claramente identifi­ como protótipo das organizações reformadoras do pós-guerra. Esses
cáveis pela sua fidelidade aos Direitos do Homem e a certas for­ nomes — Burdett, Cartwright, Cobbett, Hunt, Place — destacam-
mas de organização aberta. O “ radicalismo”, à medida que se na história do radicalismo articulado pelos quinze anos seguin­
avançava o século 19, viria a abranger diversas tendências. Em tes. Burdett, por alguns anos, continuou a ser o favorito da multi­
1807, ele sugere o tom e a coragem do movimento aplicável dão londrina. Cartwright, cuja estabilidade resistia a todas as
a qualquer outra doutrina. Indicava uma oposição inflexível ao voltas dos acontecimentos, iria promover os primeiros Clubes
Governo; desprezo pela fraqueza dos Whigs; oposição a restrições Hampden. Cobbett avançaria, passo a passo, da “ independência”
das liberdades políticas; exposição aberta da corrupção e do “ sis­ até a denúncia, de cabo a rabo, da “ Velha Corrupção” — e, na
tema Pitt” , e apoio geral à reforma parlamentar. Havia pouco verdade, de radicais água-com-açúcar como Burdett e Place. Hunt,
consenso sobre questões sociais e econômicas e, embora o radica­ ora como aliado, ora como rival, viria a atuar lançando sua magis­
lismo mais coerente fosse o do populacho londrino, era sufiente- tral oratória de massas contra a magistral polêmica de Cobbett.
mente amplo para incluir, ocasionalmente, a insatisfação dos indus­ Place desenvolvería a política do permeamento reformista e da
triais ou pequenos fidalgos. aliança entre artesãos e classe média, e viria a atuar como o elo
Não obstante o seu caráter confuso, as disputas de 1806 e entre os reformadores e sindicatos benthamistas e os grupos plebeus
1807 tiveram uma importância real. Mais uma vez a causa da re­ de discussão.
forma adquiria uma voz articulada. Havia na Câmara dois radi­ A vitória de 1807 foi como uma parada a meio caminho entre
cais extremados, eleitos por um público plebeu. Havia um sema­ as técnicas aristocráticas de Wilkes e formas mais avançadas de
nário, redigido com talento, o qual o governo dificilmente conse­ organização democrática. Os ganhos foram significativos. A noção
guiría proibir, e que se tinha declarado fora da esfera de influên­ de “ independência” recebera um novo significado. Até então, o
cia Tory ou Whig. Mesmo o “ pai da reforma” , Major Cartwright, termo tinha sido sinônimo de opulência e interesse fundiários: os
candidatos Whig e Tory eram freqüentemente recomendados nos
conseguira uma nova publicidade e popularidade.22 Ouve-se pela
palanques pela sua fortuna, a qual, supunha-se, torná-los-ia “ inde­
primeira vez um novo nome — um agricultor-fidalgo, Henry Hunt,
pendentes” da necessidade de bajular Ministros ou Rei para con­
que lançou um apelo aos proprietários livres de Wiltshire para
seguir favores ou cargos. A noção de independência de Cobbett
insistia no dever dos eleitores, fossem proprietários alodiais, co­
merciantes ou artesãos, em se libertarem com seus próprios esfor­
em Wallas, op. cit., pp. 41-7, e Cole e Filson, British Working Class ços do patronato, do suborno e da submissão. O Comitê de West­
Movements, pp. 79-81; Anôn., History of Westminster and Middlesex Elec-
minster fora ainda além; na medida em que tinham organizado a
tions (1807), pp. 15, 36-7, 145, 157. 345, 379. 437; Comitê de Westminster.
An Exposition of the Circumstances which gave rise to the Election of Sir vitória independentemente dos seus próprios candidatos, o menu
F. Burdett, Bart ( ...) (1807). Ver também M. W. Patterson, Sir F. Burdett peuple de Westminster surgira como uma força por direito seu.
(1931), 1, cap. 10; G. D. H. Cole, Life of Cobbett, cap. 9 e 10; C. Lloyd. Além disso, tinham oferecido um exemplo impressionante da efi­
Lord Cochrane (1947), Parte II, cap. 1; S. Maccoby, English Radicalism, cácia de um novo tipo de organização eleitoral, que dependia, não
1786-1832, pp. 207-8. A versão de Cobbett, embora não plenamente confiá­ da riqueza ou influência do candidato, mas dos empenhos volun­
vel, serve como corretivo das versões oferecidas por Place (aceitas de modo tários dos eleitores. Nesse sentido, o povo de Westminster sentiu
excessivamente acrílico), que negligenciam a importância das eleições de
Middlesex em 1802, ridicularizam Paull e atribuem o êxito de 1807 somente a vitória como sua.
ao próprio talento organizador de Place. Seria errôneo, porém, sugerir que o Comitê de Westminster
22. Além do apoio que deu a Paull c Burdett, Cartwright apresentou-se conduziu um movimento independente “ populista”, e menos ainda
pessoalmente pela sua vila de Boston, obtendo 59 votos contra 237 do operário. O eleitorado (compreendendo cerca de 18.000 chefes de
candidato vitorioso.
27
26
família em 1818)23 incluía muitos artífices independentes e alguns democrática. Em 1807, formou-se no centro de um novo ímpeto
artesãos. Mas o tom, cada vez mais, era dado pelos pequenos democrático. Depois, converteu-se basicamente numa entidade auto-
mestres e comerciantes. O grau de radicalismo desses grupos foi indicada — ou, como deplorava Cobbett, numa “ panelinha” — ,
um fator importante na vida política do pós-guerra, e teve uma em parte sob o controle de Burdett, em parte representante de
influência sobre uma parcela das liberdades inglesas que se reve­ comerciante e mestres artesãos como Place. No final das Guerras,
lou um estorvo contínuo para as autoridades. A maioria dos julga­ Place tinha se tornado amigo íntimo de Bentham e James Mill.
mentos políticos e da imprensa importantes ocorreu em Londres, Ficou cada vez mais hostil a Hunt e Cobbett e a métodos de agi­
e era desse meio social que saíam os jurados. Donos de oficinas e tação entre “ número ilimitado de membros” . O Comitê de West­
comerciantes tinham composto, nos anos 1790, júris indomáveis. minster era um local útil de onde podiam se mexer os pauzinhos
Existem entre os documentos do Procurador do Tesouro listas de em favor dos interesses do artesão sóbrio e estudioso. Quando
vagou a cadeira de Cochrane, em 1818, ao candidato de Cobbett,
possíveis jurados, para os casos de Despard e 0 ’Coigly, que mos­
Major Cartwright, foi preferido o radical benthamista Hobhouse.
tram o cuidado com que os oficiais de justiça da Coroa procura­
O Comitê afastava-se sempre mais dos trabalhadores de Londres,
vam eliminar dos júris simpatizantes jacobinos.24 Apesar de suas
na mesma proporção em que aumentava o senso de “ auto-aprova-
precauções, as autoridades foram mais uma vez humilhadas às
ção” de Place e sua aversão pelas manifestações e comícios.26
mãos de jurados londrinos entre 1817 e 1819.25 A partir de então,
os júris tornaram-se mais dóceis, em parte porque as autoridades Isso, em parte, foi conseqüência inevitável da situação em
que estavam os radicais de 1807. O antijacobinismo não estava
desenvolveram novos requintes do sistema de júri especial e outras
morto de jeito nenhum. Cobbett atravessou a censura quase que
formas de “ compressão” , em parte porque o radicalismo de Lon­
por acaso, e praticamente não existia nenhum outro órgão radical
dres (e seus representantes, como Aldermen Waithman e Wood)
regular. (Em 1810, o próprio Cobbett ficou preso por dois anos,
vinha se distanciando cada vez mais do movimento plebeu.
pelo seu ataque aos excessos de açoitamento no Exército.) O Co­
Assim, a vitória em Westminster provavelmente não terá per­ mitê de Westminster sobreviveu como organização eleitoral, mas
tencido aos artesãos, por mais que tenham contribuído para ela. as autoridades não tinham a menor intenção de permitir um novo
E a vitória, ainda, foi parcialmente ilusória. Além do fato de que crescimento de clubes populares. Quando John Gale Jones, o
a indispensável habilitação por propriedade restringia a escolha velho líder da SLC, ultrapassou os limites de prudência em
de candidatos a homens de posses, ninguém no Comitê Geral de debates que organizava em “ O Foro Britânico”, perto de Covent
Place (e muito menos Place) teria pensado em lançar um mem­ Garden, a Câmara dos Comuns enviou-o a Newgate (1810). E
bro do grupo como candidato. A cadeira era de Burdett, e a quando Burdett denunciou a ilegalidade dessa atitude, a Câmara
função do Comitê era a de lhe dar apoio. Ademais, o Comitê, enviou Burdett à Torre. É verdade que quase toda a população
posteriormente, mostrou sérias limitações enquanto organização de Londres parecia estar do lado de Burdett. De início, ele se
recusou a ceder à Câmara, adotando a política de desafio de
23. Gorgon, 4 de julho de 1818. Wilkes, aquartelando-se em sua casa de Picadilly. Lorde Cochra­
24. Numa dessas listas, os nomes com que se comporia o júri vinham ne alugou um coche, foi até lá, fez rolar um barril de pólvora pela
marcados com as letras G (good: bom), B (bad: mau) e D (doubtful: duvi­ porta e preparou-se para minar todas as entradas e defender
doso). Os muitos Bs incluíam profissionais como um fabricante de balanças, Burdett a tiros. O povo se prensava nas ruas, e pareciam inevi­
um vendedor de vidros, merceeiros, um fabricante de velas e cervejeiros táveis motins à escala dos de 1780. Place pessoalmente achava que
(um cervejeiro de Southwark estava assinalado com “muito B'), T. S. 11.333.
25. O júri que absolveu o dr. Watson pela sua participação nos motins o Exército andava tão insatisfeito que seria possível alguma insur­
de Spa Fields (1817) tinha como primeiro jurado um Encarregado de Casa reição espasmódica. Mas a própria natureza do incidente, com
Lotérica. e como membros um Botoeiro, um Forjador de Âncoras, um Fan-
queiro de Lãs, um Peruqueiro, um Ferragista, um Ourives em Prata, um
Negociante de Tecidos, um Sapateiro, um Carregador e um Farmacêutico: 26. Para uma visão do trabalho do comitê, ver A. Aspinall, “The West­
minster Election of 1814", Eng. Hist. Rev. XL (1925).
People, 21 de junho de 1817.

28 29
suas ressonâncias wilkistas teatrais e sua confusão entre os líderes
radicais, ressalta a fragilidade dos reformadores. Mesmo quando Quantas vezes eu soube de mães e esposas pobres que empenha­
seguiam uma onda insurrecional, não tinham organização e tam­ ram as roupas de que precisavam para resgatar seus filhos ou
pouco uma política coerente. As leis de proibição às sociedades maridos das garras de um vil recrutador implacável ! Ó céus! a
que misérias estão condenados os pobres. . .
de correspondência e as reuniões políticas abertas tinham atomiza-
do o movimento, de forma que a conduta individualista e briguen-
“Ó pobreza! és tu o imperdoável crime! ( ...) Tu não tens direi­
ta dos seus líderes era função de seu papel como “vozes” e não
tos, privilégios, imunidades ou liberdades!”
como organizadores.
O radicalismo se manteve como um movimento defensivo, Vem, velho SATANÁS, velho Assassino, e farei a ti o que fizeste
um movimento de protesto oralmente articulado, apoiado por um a um melhor do que eu: levar-te-ei, por tua vez, a “uma montanha
amplo descontentamento popular. Não era ainda uma força de extremamente grande e elevada, e mostrar-te-ei todos os reinos
ataque. Se queremos entender o extremismo de Burdett e Cochra- deste mundo cristão e a sua glória” (...) Agora, SATANÁS, olha
ne em 1810, basta ler Byron. Esses indivíduos desprezaram a luta a cristandade e contempla o variegado grupo: Bíblias, Espadas —
desordenada pelo poder e riquezas, a hipocrisia de sua classe e as Igrejas, Quartéis — Capelas, Fortalezas — Ministros da paz em
preto, e homens da guerra em azul e vermelho — uns poucos que
pretensões dos novos-ricos. Em sua frustração, talvez sonhassem
agem como Salvadores , milhões cuja única ocupação é sistemati­
por vezes com algum espasmo revolucionário que derrubaria toda zar e pôr em prática a destruição dos homens. (.. .) Os verdadeiros
a estrutura da “Velha Corrupção”. Se queremos entender a cólera Filhos da Paz pouco estimados, obscuros, negligenciados e desde­
de Cobbett, basta pensar nas coisas que o encolerizavam: os gor­ nhados. — Os Heróis da Matança e do Saque, exaltados, enalte­
dos contratos, os miseráveis escândalos dos Duques Reais, a alta cidos, honrados, recompensados e imortalizados. . 21
dos arrendamentos e impostos e o empobrecimento dos trabalha­
dores rurais, os subsídios governamentais à imprensa, a destruição Ê uma voz que brota da velha Inglaterra de Winstanley e
de divertimentos populares pelos informantes da Sociedade contra Bunyan, mas uma velha Inglaterra que começara a ler Cobbett. E
o Vício. A insatisfação cresceu por mil razões: hostilidade aos isso nos lembra quão remotas eram as eleições de Westminster
destacamentos recrutadores, os motivos de queixa de soldados para Sheffield, Newcastle ou Loughborough. Nas tavernas e cafés
estropiados e de artesãos esmagados pelas empreiteiras de guerra de Londres, os radicais podiam se reunir para discutir e sentir sua
que aumentavam como cogumelos, e, depois de Trafalgar, a con- força numérica. Entre os centros provinciais onde a propaganda
tracorrente de oposição crescente a uma guerra aparentemente jacobina penetrara mais a fundo, apenas Norwich e Nottingham
interminável e sem sentido. tinham um direito de voto suficientemente amplo para permitir
“ É muito provável” , escreveu um pastor dissidente de Shef- que os radicais recorressem a processos eleitorais. Birmingham,
field em 1808: Manchester, Leeds e a maioria dos centros industriais em cresci­
mento não tinham nenhuma representação na Câmara não-refor-
que sempre que a humanidade formar sociedades para a fundação
daquele reino onde as espadas serão transformadas em lâminas de mada. Aqui, e nas cidades e vilas industriais menores, a Igreja e
arado (...) os grandes serão os principais adversários da gloriosa os magistrados velavam por qualquer sinal de “ sedição” ; até um
obra; é de se esperar oposição principalmente de Generais, A lm i­ assinante do Register de Cobbett podia descobrir que estava mar­
rantes, Empreiteiros, Corretores e semelhantes, e muitos dos defen­ cado. O reformador sentia que estava isolado — “ obscuro, negli-
sores do reino pacífico de Cristo podem receber um tratamento
severo de suas mãos cruéis.
27. G. Beaumonl, Ministro do Evangelho da Paz, The Warriors Look-
ing-Class (Sheffield, 1808). O autor, provavelmente, era um pastor batista.
O “ reino de Cristo” só conseguiría ser introduzido no mundo após Para uma nota semelhante de protesto cristão radical contra a guerra, ver
“muita oposição e sangue”, pois o “ Demônio e seus agentes” não Cambridge Intelligencer e cartas em Tyne Mercury, p. ex. 5 de janeiro
permitiríam que chegasse de outra forma: de 1808.

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02.^
Biblioteca Universitária
genciado e desdenhado”. O triunfo de Westminster lançou a UFSC
repressão nas províncias em trevas ainda mais densas.
Assim foi que o movimento radical assumiu uma forma niti­
damente diferente nas Midlands e no norte industrial — diferença
que iria influenciar por meio século o rumo dos acontecimentos. 2
Em Londres, continuaram abertos os canais entre os reformadores
de classe média e operários; a forma típica de organização era o UM EXÉRCITO DE JUSTICEIROS
Comitê, onde uns poucos profissionais liberais trabalhavam junto
com artesãos autodidatas que tendiam a desprezar o atraso polí­ I. A Lâmpada Negra
tico dos diaristas e dos pobres criminosos e desmoralizados. Con­
forme afrouxava a repressão, reviviam o fórum, a sociedade de
debates e o grupo de discussões. As eleições periódicas de West­
minster pelo menos forneciam uma válvula de escape e uma “ Eis a cabeça de um traidor!” Em fevereiro de 1803, o car­
sanção para os tumultos. Nas Midlands e no norte, o radicalismo rasco levantou para a multidão londrina a cabeça de Edward
foi levado à clandestinidade, para o mundo do sindicato ilegal; Marcus Despard. Ele e seus seis companheiros executados tinham
veio a se associar com as queixas industriais, reuniões secretas e sido declarados culpados de alta traição (inclusive de planejarem
juramentos. Até 1815, nem Burdett nem Cobbett tinham muito a morte do Rei), e todos morreram com bravura. Despard susten­
significado para os centros da Revolução Industrial. O Comitê de tou que estava inocente da acusação, mas morrería por ser “ um
Westminster não tinha nenhuma mensagem para os luddistas. Ao amigo dos pobres e oprimidos”. A multidão exprimia fúria e
norte de Trent, encontramos a tradição clandestina. compaixão. A imprensa londrina receava que, se as vítimas ti­
vessem sido levadas pelas ruas e executadas em Tyburn ou
Kennington Common, em vez de Southwark, poderiam ocorrer
motins e tentativas de resgate dos condenados. Entre os que pre­
senciaram a execução, estava um jovem aprendiz chamado Jere-
miah Brandreth. Catorze anos depois, sua própria cabeça é que
seria erguida perante a multidão em frente ao Castelo de Derby:
“Eis a cabeça de um traidor!”
Entre Despard e Brandreth estende-se a tradição clandestina.
É uma tradição que nunca sairá de sua obscuridade. Mas podemos
abordá-la a partir de três lados: em primeiro lugar, com a avalia­
ção de algumas evidências preservadas sobre a “ clandestinidade”
entre 1800 e 1802; em segundo lugar, com algumas críticas das
fontes históricas; e, em terceiro lugar, com um exame da tradição
sindical semilegal. Somente com essas preliminares é que conse­
guiremos entender o movimento luddista e os anos pós-guerra do
Levante de Pentridge, de Oliver, o Espião, e da Conspiração
da Cato Street.
Vimos as origens da tradição ilegal nas obscuras sociedades
dos “ Ingleses Unidos” no final dos anos 1790.1 Em 1800 e 1801,

1. Ver A Formação da Classe Operária Inglesa, vol. I, p. 185-193,

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estourou em toda a Inglaterra uma irrupção de motins. A maioria
canção como Deus salve o Rei”. Aí estava uma alteração impor­
eram motins por alimentos, provocados pela escassez e alta dos
tante nas atitudes populares, nas reações subpolíticas da “ turba” .2
preços durante o bloqueio continental de Napoleão. Mas também
existem indicações de uma certa organização incipiente. Vários Enquanto isso, vinham chegando ao Ministério do Interior
relatórios alarmantes. Os centros mais problemáticos revelavam-se
motins e “ greves” de consumidores foram anunciados antecipada­
ser Nottingham, a Lancashire industrial (onde considerava-se que
mente através de panfletos, numa escala que demonstra uma orga­
os irlandeses e Ingleses Unidos ainda continuavam ativos) e o
nização de comitês com acesso a meios gráficos. De Londres, em West Riding. Podemos reunir o que se conhece sobre essa última
setembro de 1800: região. A organização difundiu-se a partir da Sheffield jacobina.
Em setembro de 1800, encontrou-se um panfleto inflamado aber­
tamente pregado numa oficina: “ R . . . F. .. e os proprietários
Colegas conterrâneos Rurais estão ocupados em entulhar os estômagos vazios dos pobres
com Baionetas” . Em dezembro, os magistrados de Sheffield julga­
Por quanto tempo vocês vão suportar quieta e covardemente a ram necessário lançar um edital contra as reuniões “com grande
opressão e a fome impostas por um grupo de escravos mercená­ número de comparecimentos” que se realizavam à noite nos cam­
rios e vendidos ao Governo? Vocês ainda conseguem tolerar que pos. Vários relatórios foram enviados ao Conde Fitzwilliam, o
eles continuem com seus grandes monopólios, enquanto seus filhos Lorde Encarregado do Condado. Numa dessas reuniões, realizada
choram por pão? Não! não deixem que eles persistam por nem para avaliar o melhor meio para se reduzir o preço dos alimentos,
mais um dia. Nós somos a soberania, despertem pois de sua letar­ um espião ouvir falar em lanças e armas; quando foi reconhecido,
gia. Estejam no Mercado de Cereais na Segunda-feira. expulsaram-no. As pessoas vinham se alistando em sociedades se­
cretas e prestando juramentos solenes de aliança: “existe um sis­
tema de organização em andamento — comitês secretos — e a
Por seis dias prolongaram-se os tumultos no Mercado de Ce­ preparação de armas ofensivas” . Perto de Sheffield, ocorriam reu­
reais. Em novembro, panfletos convocaram “ Artífices, Artesãos, niões freqüentes:
Oficiais, Diaristas &c., para se reunirem em Kennington Common”
— reunião esta que só foi impedida por uma demonstração de às 10 horas da Noite — um orador com Máscara discursa para o
força militar. Em Portsmouth, os “ mecânicos” do estaleiro decidi­ povo — lê cartas de sociedades distantes à luz de uma vela &
queima-as imediatamente.
ram “ se abster totalmente do uso de manteiga, creme, leite e
batatas” até baixarem os preços. Em Nottingham, oficiais do
Ninguém era admitido ao campo sem apresentar uma senha
Exército foram apedrejados e postos para fora de um teatro onde a um círculo de sentinelas.3
tentaram fazer com que o público cantasse “ Deus Salve o Rei” .
Em março de 1801, o pânico se espraiara até Leeds e Hudders-
Também em Nottingham, onde na virada do século a Árvore da
ficld, onde os magistrados temiam que “ uma Insurreição estava
Liberdade ainda era plantada em cerimônias anuais, as autorida­
sendo considerada entre as ordens inferiores”. Havia “ pessoas cir­
des interceptaram uma carta que relatava um motim por alimentos culando empenhadas em persuadir o Povo a prestar um juramento,
bem-sucedido, mostrando entusiasmo pela “conduta do povo na a ajudarem-se mutuamente a regular e baixar o Preço de todos
terça-feira, o qual Resistiu ao fogo da Milícia Voluntária com os artigos necessários à Vida”. Uma carta de dois magistrados de
uma Coragem tão Destemida que assombrou os Fidalgos.. Mas
o missivista acrescentava um comentário significativo. A multidão 2. H. O. 65.1; J. Ashton, Dawn of the Nineteenth Century in Etigland
não estava mais dividida entre uma facção “ jacobina” e outra pela (1906), p. 19; D. V. Erdman, Blake, Prophet against Empire, pp. 317-9:
“ Igreja e Rei” : “ O que mais assustou os Fidalgos foi ver a União Hammonds, The Towtt Labourer, p. 291.
3. Fitzwilliam Papers, F. 44(d), (e).
das partes não havendo ( . . . ) painistas nem ouvindo-se nenhuma
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Lancashire afirmava que, nas proximidades de Ashton-under-Lyne,
As reuniões continuaram, principalmente à noite, por todo o verão
realizara-se em janeiro uma espécie de reunião de representantes
de 1801; Batley, Ossett e Saddleworth somaram-se à lista dos
de ‘"agentes” de Yorkshire, Birmingham, Bristol e Londres. Ao
centros perturbados. Em Halifax, em julho de 1801, parece ter se
mesmo tempo, expirava o prazo das Duas Leis de Pitt (aprovadas
reunido uma espécie de comissão de delegados, com representan­
no final de 1795), que proibiam reuniões sediciosas, e ainda o da
tes das vilas têxteis e um orador de Sheffield. Falou-se em pres­
suspensão do habeas corpus. Embora continuasse ilegal qualquer tação de juramentos e uma “ virada” para os Britões ou Ingleses
forma de correspondência organizada entre grupos individuais, a Unidos, cujo principal centro de atividades possivelmente se situa­
convocação de reuniões públicas mais uma vez tornou-se tecnica­ va em Bolton, através da Cadeia Penina. Todos os que se filiavam
mente legal. Em questão de semanas, passaram a ser convocadas, tinham de responder afirmativamente a três perguntas: (1) Que­
muitas vezes através de panfletos manuscritos, reuniões de protes­ riam uma mudança total do sistema? (2) Estavam dispostos a se
to numa série de lugares muito distantes entre si. Em Yorkshire, arriscar numa luta que libertaria sua posteridade? (3) “Você está
as reuniões foram convocadas em Sheffield, Wakefield, Dewsbury, disposto a fazer tudo ao seu alcance para criar o Espírito de
Bingley. Em Bingley, no início de abril, por baixo das portas e nos Amor, Fraternidade & Afeto entre os amigos da liberdade & não
balcões do mercado foram sigilosamente distribuídos panfletos que omitir nenhuma oportunidade de obter todas as informações polí­
convocavam o povo a comparecer a uma manifestação da “ associa­ ticas que puder. . .” Em agosto, foi anunciada de Leeds uma
ção dos Amigos da Liberdade”. A finalidade da reunião era mani­ outra reunião de delegados; foi adiada, segundo um magistrado,
festar-se contra o preço exorbitante dos alimentos, “ desmascarar devido a uma resolução de que não haveria “nenhuma ocasião
a fraude e todas as espécies de Governo Hereditário, diminuir a para quaisquer outras Reuniões até o desembarque dos France­
opressão dos Impostos, propor projetos para a educação da infân­ ses” . Um magistrado de Wakefield concordava: “ . . . s e u objetivo
cia desamparada e a assistência dos idosos e aflitos ( . . . ) extirpar é uma Revolução e a sublevação dos insatisfeitos depende total­
a prática medonha da guerra” : mente da invasão inimiga no país”.5
As reuniões agora tinham se generalizado tanto que foram noti­
Vocês vão suportar ser assim oprimidos por uma Maioria de ciadas no Leeds Mercury, cujo redator, Edward Baines, fora outro-
mercenários vendidos, proxenetas do Governo — traficantes de ra secretário de um clube “jacobino” em Preston, mas agora
cereais — ocupantes de cargos — pensionistas — parasitas etc. e ansioso em se desvincular completamente de “ todas as associações
vocês Morrendo de fome sem Pão? Não deixem que eles existam secretas para finalidades políticas” . A prática de reuniões políti­
por nem mais um dia, nós somos a Soberania (...) Arranquem a cas a altas horas da noite, observava o editorial, tinha virado
Constituição do seu esconderijo — e deixem-na aberta à inspeção “muito frequente”. Havia fortes razões para se supor que eram
pública — Abalem a Terra até o seu centro.. .4 motivadas por “ más intenções”, com alguma suspeita de corres­
pondência secreta com a França. Ele acusava os reformadores de
“ Mostra-se estar em cogitação” , informou uma Comissão Con­ se refugiarem em “covis furtivos como bandidos fora-da-lei”. As
fidencial da Câmara dos Comuns, “ uma convocação súbita de notas de Baines suscitaram uma réplica implacável de Benjamin
numerosas reuniões em diferentes partes do país, no mesmo dia Flower, cujo Cambridge Intelligencer foi (juntamente com Sheffield
e hora, numa extensão que, se não for impedida, vai ameaçar Iris, de Montgomery) o último jornal dos reformadores provinciais
materialmente a paz pública” . No final de abril, foi redecretada que continuou a lutar no século 19. Em novembro de 1800, Flower
a Lei contra Reuniões Sediciosas, e o habeas corpus ficou sus­ lançara um apelo geral a manifestações públicas pela paz: o povo
penso por mais um ano. (dizia ele) “percebe e sente que o efeito da guerra e impostos [é]
aumentar o preço de todas as mercadorias de consumo” . Agora
A agitação, mais uma vez, rapidamente tornou-se clandestina.
Flower acusava Baines de ser um “ oportunista” , ajudar os propa-
Novamente, podemos tentar seguir sua história no West Riding.

5. Ibid., F. 45(a). (d).


4. Ibid., F. 45(a).

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36
gandistas “Tgreja-e-Rei” , macular deliberadamente os reformado­
res (que não tinham outra alternativa senão a de se reunirem um assobio, e ouviu expressões e tons de voz que o dissuadiram
secretamente) com a calúnia sobre uma “ correspondência france­ totalmente de seu propósito. Do que ouvira por acaso no caminho,
podia lembrar facilmente que algumas determinadas pessoas que
sa” e prestar auxílio a:
chamavam de fidalgos estavam sendo esperados e ainda não ti­
nham chegado...
esse sistema corrupto e devasso que arrasou uma grande parte da De outra fonte em que posso confiar, soube que o comitê que
Europa, assassinou milhões de criaturas irmãs, roubou o povo constitui a “Lâmpada Negra”, e que na noite de sexta-feira podia
deste país dos seus mais preciosos direitos e levou o reino à beira se compor de 200 homens, consiste daquele que discorreram sobre
da ruína. A relevância dessa ruptura, entre o velho radicalismo o tema com outros nove e tomaram seus juramentos, e cada um
painista de homens como Flower (que não temiam perseguições deles novamente, ad infinitum, se torna um membro do Comitê
nem agitações entre as massas descontentes) e o cauteloso radica­ pelas mesmas razões. “A abolição de todos os impostos e o gozo
lismo whiguista “constitucional” de Baines, iria aumentar à me­ pleno dos seus direitos” são os temas sobre os quais discursam
dida que avançava o século 19.6 os líderes, e o cimento que os une. “No Natal, devem estar pre­
parados para impor seus pontos de vista, e em uma noite ocor­
Fica evidente que houve uma bonança, pontuada por come­ rería o levante em todas as partes.”7
morações públicas pela ratificação das Preliminares da Paz em
outubro. A seguir, no inverno de 1801-2, renovaram-se os relató­ Qualquer que fosse a organização, ela tinha acesso a meios
rios sobre reuniões “ noturnas” em West Riding e protestos contra gráficos. Em junho de 1802, um magistrado de West Riding
o Imposto sobre a Cerveja, o Imposto sobre a Janela e restri­ enviou ao Ministério do Interior um pequeno “ Discurso aos Bri-
ções à liberdade. Embora a paz viesse em março de 1802, as tões Unidos”, com oito páginas. Declarava unir “ numa corrente
reuniões noturnas prosseguiram e, apesar de todos os esforços, de afeto” todos os que procuravam derrubar os opressores da
os magistrados não conseguiríam identificar nenhum dos líderes. nação:
O relato mais completo sobre uma dessas reuniões encontra-se
A LIBERDADE independente de um povo ciente, eles julgam
numa carta do Prefeito de Leeds ao Conde Fitzwilliam, em agosto
TRAIÇÃO, porque temem que a justiça possa recair sobre suas
de 1802: cabeças culpadas. . .8

Quanto às reuniões noturnas, elas continuam, embora o local No outono, dois homens de Sheffield, William Lee e William
nunca seja do conhecimento de terceiros até sua realização. Na Ronkesley, foram levados a julgamento por ministrarem juramen­
noite de sexta-feira, por volta da meia-noite, realizou-se uma reu­ tos secretos. Alegou-se que, entre outubro de 1801 e agosto de
nião num caminho côncavo ou num vale estreito a cerca de 9,5
1802, tinham sido membros de uma associação secreta, com 1.000
quilômetros de Leeds e 3 de Birstall, a certa distância dc qualquer
estrada pública. Um homem plenamente fidedigno garante-me que membros em Sheffield, que confeccionara lanças e contava com
tentou participar do grupo, mas descobriu que havia batedores depósitos secretos de armas enterradas. A organização era coman­
dispostos por todos os lados a uma certa distância, e o que estava dada por “ Dirigentes Sc Condutores” que treinavam seus membros
mais à frente abordou-o e pretendeu afastá-lo para uma outra di­ à noite. Seus objetivos eram vagos, mas (escreveu o Prefeito de
reção. Ao prosseguir, descobriu uma outra linha móvel e irregular Leeds a Fitzwilliam) “ entre os pobres tem lugar uma Idéia — a
de batedores, que lhe perguntaram o que queria, e conforme ele de que não deveríam pagar nenhum Imposto. ( . . . ) Milhares
continuou a avançar para a “ Lâmpada Negra” de homens, soou trazem em si uma Convicção Secreta Sc Entrega a uma Esperança

6. Leeds Mercury, l.° de agosto de 1801; E. Baines, Life of Edward Baines 7. H. O. 42.66, editado na íntegra em Aspinall, Early English Trade
(1851), p. 51; Cambridge Intelligencer, 15 de novembro de 1800, 8 de Vnions, pp. 52-3. Original em Fitzwilliam Papers. F. 45(d).
agosto de 1801. 8. R. Walker a H. O. em 28 de julho de 1802 (anexo), H. O. 42.64.

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de que as Coisas estão ficando Maduras” .9 Lee e Ronkcsley foram
condenados a sete anos de desterro.10 muitas noites juntos vestidos sobre o chão; medimos juntos a altura
da muralha dos inimigos. Naquela época (. . .) ninguém poderia
Em novembro, Despard e seus companheiros foram captura­
mostrar um apego mais ardente ao seu Soberano e País do que o
dos em Londres. Em dezembro, seguiram-se outros relatórios sobre
Coronel Despard”.12 Nelson tinha uma idéia tão elevada do seu
a preparação de armas em Sheffield. Ainda em agosto de 1803, companheiro de armas que esperara que viesse a alcançar uma das
um informante fez saber a Fitzwilliam que prosseguiam com a posições de maior destaque no Exército. Mas isso fora há muitos
prestação de juramentos e a confecção de lanças. Uma organização anos: os dois não se encontravam desde 1780. Desde 1772, Despard
secreta “ se infiltrara no grande conjunto do Povo no distrito ma- servira continuamente nas índias Ocidentais e Honduras Britânicas,
nufatureiro desta Região”, escreveu ao Ministro do Estado, apesar até ser reformado a meio soldo, em 1790. Mostra-se um exemplar
do seu habitual ceticismo. “ Grandes números no Exército & Milí­ típico de numerosos oficiais da época, os quais, não tendo dinheiro
cia foram jurados” com o mesmo juramento prestado no caso de nem influência suficiente para obter reconhecimento, não recebiam
Despard. Circulavam enviados especiais entre os distritos: “ Pouco promoções, passados para trás por paspalhões de interesse para a
se põe no papel, mas seja o que for, é destruído logo que trans­ corte, sujeitos a acusações de mau comportamento por parte dos
mitido”. “ Os Dirigentes nunca se reúnem em suas cidades: quando rivais, esperando sentados durante anos nos corredores do poder.13
têm ocasião de deliberar, vão a uma distância de suas casas.” 11 Podemos ver em Despard algo daquela mesma mescla de queixas
A partir de então, a “ Lâmpada Negra” parece se apagar. pessoais de um oficial da ativa e aversão geral à corrupção e hipo­
Durante o mesmo período, chegaram relatórios semelhantes crisias da vida política que transformou Lorde Cochrane num
do sul de Lancashire e partes das Midlands. Havia nitidamente radical.
alguma organização clandestina em andamento, procurando levar Mas Despard também era irlandês, e em 1796 ou 1797 enga­
jou-se tão profundamente na causa da independência irlandesa que
a um canal revolucionário os descontentes com a alta dos preços
vinha trabalhando, ao mesmo tempo, no comitê da Sociedade Lon­
e a escassez de alimentos. Disso há provas em demasia, e de de­
drina de Correspondência e nos círculos mais obscuros dos Irlan­
masiadas fontes independentes, para que se possa sustentar a ficção
deses Unidos e Ingleses Unidos em Londres. Fazia parte do grupo
histórica aceita de que a “ sedição” só existiu na imaginação de
que 0 ’Coigly contatara na Adega da Estalagem de Furnival.14 No
ministros, magistrados e espiões. Mas, nesse ponto, as fontes só início de 1798, o Conselho Privado recebeu vários relatórios sobre
levam à obscuridade. Terão os “ Britões Unidos” contado com suas atividades, que sugeriam que estavam montando uma organi­
alguma existência nacional efetiva? Estaria o Coronel Despard em zação clandestina militar, onde se mesclavam curiosamente o estilo
ligação com eles e com a clandestinidade em Lancashire e West do soldado aventureiro elisabetano e o do revolucionário do século
Riding? Existiríam vínculos com a França e Robert Emmet em 19. Embora os objetivos da organização fossem jacobínicos, os que
Dublin? Terá a clandestinidade continuado depois de 1802? se alistavam a serviço de Despard recebiam a promessa de altos
O julgamento de Despard pouco revelou, embora tenha suge­ postos e recompensas em caso de vitória. Preso sob a suspensão
rido muito. O Coronel Despard (1751-1803) provinha de uma fa­ do habeas corpus entre 1798 e 1800, o caso de Despard destacou-
mília irlandesa de proprietários rurais, e tinha uma folha militar se entre os que figuraram na agitação “ Não à Bastilha” de Sir
brilhante. “Fomos juntos para a Região do Caribe” , declarou Francis Burdett e da multidão londrina. Com sua libertação em
Nelson, que foi chamado ao julgamento pela Defesa: “Dormimos
12. Cf. London Gazette, 18 de julho de 1780; "Praticamente não houve
nenhum disparo, mas a espingarda estava apontada pelo Capitão Nelson,
9. f. Dixon, 17 de julho de 1802; W. Cookson, 27 de julho de 1802; de Hinchinbroke, ou pelo Tenente Despard, engenheiro-chefe. . ."
|. Lowe, 3 de dezembro de 1802: todos em Fitzwilliam Papers, F. 45(d). 13. Sobre a carreira inicial de Despard, ver Sir Charles Oman, The
10. L. T. Rede, York Castle iti the Nineteenth Century, pp. 198-201. Unfortunate Colonel Despard (1922); J. Bannatine, Memoirs of E. M. Despard
11. Fitzwilliam Papers, F. 45(e). O informante, acrescenta Fitzwilliam, (1799).
é "um homem firme, diligente, não jovem, vejo pouca razão para supor 14. Ver A Formação da Classe Operária Inglesa, vol. I, pp. 186-87.
que seja conversa fiada dc um tagarela leviano..."
41
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1800, parece que Despard pôs-se novamente a trabalhar na forma­
ção do seu exército revolucionário. grupo de cinco companhias formava uma “ divisão auxiliar” co­
mandada por um “ coronel”. Por outro lado, se era este o modelo
Foi preso na última semana de novembro de 1802, em “ As
aprovado, não parece ter sido largamente aplicado. Segundo uma
Armas de Oakley”, Lambe th, junto com cerca de quarenta traba­
testemunha, Despard disse que:
lhadores e soldados. Em seu julgamento, certos fatos ficaram irre­
futavelmente demonstrados. Nos meses anteriores, Despard e alguns uma organização regular em Londres é perigosa para nós, está
associados tinham passado de um ponto de encontro a outro, nas sob os olhos do Governo; mas uma organização regular no inte­
tavernas da Londres operária: “ O Cavalo Voador” em Newington, rior é necessária e, creio eu, generalizada...
“ Os Dois Sinos” e “ Coche e Cavalos” em Whitechapel, “ O Jarrete
e Cata-vento” no Haymarket, “ O Urso Pardo” e “ O Cavalo Negro” Uma tal organização em Londres seria “ uma impossibilidade
em St Giles’s, “ O Coração Sangrento” em Hatton Garden. Em moral”. Mas ele mencionou Leeds, Sheffield, Birmingham, Man-
todos esses lugares, o grupo incluía diaristas e soldados, com alta chester e Chatham como centros “ do interior” onde ela existia e
porcentagem de irlandeses, e certamente discutia-se algum tipo de com os quais, declarou ele, mantinha contato.
conspiração jacobina. O julgamento trouxe outras alegações. O Coronel Despard e
seu exército revolucionário foram acusados de preparar um coup
Foram apresentados outros fatos, no julgamento ou na im­
d’étal iminente. A Torre e o Banco seriam tomados de assalto, os
prensa, que devem ser avaliados com uma visão mais crítica. Assim,
quartéis capturados por dentro, as prisões abertas, e o Rei seria
alegou-se que sentinelas jacobinas nos quartéis de Chatham e Lon­ assassinado ou aprisionado. “ Pesei tudo muito bem comigo mesmo”,
dres tinham alistado um número considerável de adeptos, ligados teria dito Despard, “ e Deus sabe que meu coração é duro”. O
à conspiração por juramentos secretos. Alguns papéis encontrados Gabinete era conhecido pelos conspiradores como “os Devoradores
com os prisioneiros mostravam a “ constituição” da sociedade: do Homem”. A captura da Torre ou da pessoa do Rei seria o
sinal para a sublevação da multidão londrina; as postas (todas
A independência da Grã-Bretanha e Irlanda — Uma igualização saíam de Londres a partir de um ponto central, em Piccadilly) iam
dos direitos civis, políticos e religiosos — Uma ampla assistência
“ser detidas, como sinal para o povo no campo de que tinham se
às famílias dos heróis que caírem em combate.
Uma recompensa pródiga por distinção de mérito — São estes revoltado na cidade” .
os objetivos pelos quais lutamos, e para obter tais objetivos jura­ Não existe nenhuma prova efetiva que indique que o processo
mos ficar unidos.15 contra Despard fora uma “ maquinação”, embora na época muitos
acreditassem em sua inocência,16 e essa insinuação foi transmitida
Os soldados tinham sido convidados a se unir a essa “ Sociedade à tradição histórica Whig. É verdade que as testemunhas de acusa­
pela Constituição” a fim de “ lutar, romper os grilhões da servidão ção não eram confiáveis — principalmente John Emblin, relojoeiro
e escravidão”. A organização (alegou-se) contava com nada menos ex-jacobino, e uma das sentinelas, que jurou contra a vida do
próprio irmão, os quais se tornaram delatores e passaram a depor
que sete divisões e oito subdivisões apenas em Southwark, com
contra seus cúmplices. É verdade também que boa parte das provas
outras mais no Distrito, Marylebone, Spitalfields e Blackwall, prin­
sobre a conspiração no Exército implicava Despard apenas de
cipalmente entre “ diaristas, oficiais e soldados rasos”, marinheiros
forma indireta, e ela pode ter se dado independentemente dele ou
licenciados e estivadores irlandeses. Era uma organização para-
até contra seus conselhos; ao passo que os detalhes mais vivos
militar, com “ dez homens por companhia, e quando chegavam a
onze, o décimo primeiro assumia o comando” de uma nova com­
panhia. Cada companhia era comandada por um “capitão”, cada 16. Ver, p. ex., C. F. Mortimer, A Christian Effort to Exalt the Goodness
of the Divine Majesty, even in a Memento, on Edward Marcus Despard,
Esq, and Six Other Citizens, undoubtelly now with God in Glory (1803),
15. Encontraram papéis idênticos em Yorkshire, em 1802; Fitzwilliam que cita Mateus, cap. 28. vers. 12: “Deram grandes Somas de Dinheiro
Papers. F. 45(d). aos Soldados. &c.".

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sobre o assassinato pretendido do Rei e a captura da Torre podem
ter sido forjados para a ocasião. Por outro lado, nem Despard nem que existia alguma vaga ligação entre eles e organizações como a
seu advogado apresentaram a menor explicação sobre a finalidade “Lâmpada Negra” em Yorkshire,19 a conspiração, então, era um
daquelas reuniões assíduas em obscuras tavernas londrinas, que assunto sério. Além disso, os amotinamentos navais lembram-nos
um fidalgo do nível de Despard dificilmente freqüentaria. Despard que uma organização revolucionária no Exército não era de forma
só rompeu o silêncio que manteve durante todo o processo seu e alguma inconcebível. Assim como a Marinha, o Exército fervilhava
dos colegas conspiradores depois de aprovada a condenação à de queixas — sobre o soldo, a ração, o alojamento, as tarefas dos
morte. E foi para objetar: subordinados, a disciplina, os açoitamentos. Os soldados, que in
cluíam muitos irlandeses, podiam andar à paisana à noite e mistu­
Vossa Senhoria atribuiu-me o papel de ser o sedutor desses ho­ rar-se aos diaristas e artesãos nas tavernas londrinas. Poucas eram
mens; não penso que tenha aparecido qualquer coisa no julga­ as medidas de segurança, e os enviados jacobinos podiam chegar
mento ou nas provas apresentadas contra mim que demonstrem facilmente aos alojamentos dos soldados nos quartéis — como
que sou o sedutor desses homens. viríam a fazer Bamford e Mitchell em 1817. Hoje pode parecer
improvável que um soldado do Corpo de Guarda dos Granadeiros
Naquelas circunstâncias, isso só pode ser tomado como um reco­ fosse batizar seu filho de “Bonaparte” , mas é o que se deu com
nhecimento de que existira uma conspiração, mas que Despard, um dos associados de Despard. A alegação da Promotoria, afir­
longe de iniciá-la, fora levado a ela por terceiros, cuja identidade mando que estavam envolvidos na conspiração nada menos que
manteve em leal silêncio. 300 soldados no 3.° Batalhão de Guarda e de 30 a 40 no l.° Ba­
talhão, pode se mostrar exagerada; mas as seis vítimas escolhidas
“ O Coronel Despard” , escreveu Francis Place (que trabalhara
para o processo e a execução, junto com Despard, eram soldados
com ele no Comitê da SLC) num manuscrito mais de trinta anos
do Corpo de Guarda, e o exemplo sugere que o Governo estava
depois: . .era uma pessoa cavalheiresca excepcionalmente afável seriamente preocupado com a amplitude da conspiração.
— um homem excepcionalmente bom” . O “ Orador” Hunt, cujo
primeiro contato com as idéias jacobinas se dera quando (preso Com uma visão completa das evidências, o caso Despard deve
no cárcere do Supremo Tribunal) encontrou Despard, escreveu ser tomado como um incidente realmente significativo na história
com uma disposição parecida: “ um homem cavalheiresco e afável” . política britânica. Reuniu as lutas dos nacionalistas irlandeses
Teremos de aceitar as versões costumeiras — o número dos seus (Despard teve alguns contatos com Robert Emmet) às queixas dos
seguidores era “ microscópico” ou “é difícil explicar o desatino do trabalhadores londrinos, e dos cortadores de pano e tecelãos do
seu complô a não ser supondo que sua mente estava perturbada”?17 norte da Inglaterra. Foi um último clarão do velho jacobinismo
A situação da Irlanda em 1798 bastaria para perturbar a mente dos anos 1790 que, com Despard, sofreu uma derrota profunda­
de qualquer patriota irlandês. E se supusermos (como seria razoá­ mente séria. O caso serviu para justificar a política oficial de
vel supor) que Despard e seu círculo tinham acesso aos contatos “alarma” e suspensão das liberdades populares. Também deu
anteriores da SLC e dos “ irlandeses Unidos” na Inglaterra,18 e início, entre um pequeno círculo de ultrajacobinos, à estratégia
(ou talvez fantasia) do coup d’état. Este continuaria a ser o obje­
tivo de pequenos grupos londrinos até a época da Conspiração da
17. Ver Cole e Postgate, The Commoti People, p. 163; H. W. C. Davis, Cato Street (1820), ao passo que a idéia de dar o sinal de uma
The Age of Grey and Peel, p. 95.
sublevação geral detendo-se as postas ressurgiría no período cartista.
18. Pelo menos um outro conspirador, Charles Pendrill, fora anterior-
mente membro dirigente da SLC. Confinado em 1798-1800 no cárcere
de Gloucester, juntamente com Binns, era um oficial de sapateiro (ex- 19. Em 1801, vários “Ingleses Unidos" foram presos em Bolton, e um
mestre) da Tooley Street. Embora mencionado nos julgamentos, como deles, Callant, foi executado posteriormente, sob a acusação de aliciar
líder conspirador, foi liberado com perdão geral depois da execução de soldados, fazendo-os abandonar sua lealdade; W. Brimelaw, Political
Despard e associados, para reaparecer num papel conspirativo semelhante History of Bolton (1882), I, p. 14; G. C. Miller, op. cit., p. 404.
em 1817. Ver adiante, pp. 236-37.
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Despard levou consigo a maioria dos seus segredos. Se, con­
forme declarou, era inocente da acusação de planejar o assassinato II. A Sociedade Opaca
do Rei e do Gabinete Ministerial, não apresentou nenhuma outra
Por alguns anos, o alarma demonstrado pelo Morning Post
explicação sobre os objetivos de sua associação. Segundo um relato,
parecería excessivo. Foi somente em 1811 que a clandestinidade
disse no patíbulo:
novamente se revelou, e desta vez sob a forma de um violento
conflito industrial — o movimento luddista. As investidas luddistas
Sei que, por ter sido hostil às medidas sangrentas, cruéis, coerci­ se restringiram a alvos industriais determinados: a destruição de
tivas e inconstitucionais dos Ministros, eles decidiram me sacrifi­
teares mecânicos (Lancashire), cisalhadeiras (Yorkshire) e a resis­
car sob o que lhes agrada chamar de pretexto legal. (...) Desejo
tência à suspensão de encomendas sob medida na indústria de
a vocês, meus companheiros cidadãos, saúde, felicidade e prospe­
ridade; embora eu não esteja vivo para provar das bênçãos da malharia de bastidor nas Midlands. Para explicar suas ações, pre­
divina mudança, estejam certos, Cidadãos, que chegará o momen­ cisaremos ir além das injustiças econômicas e industriais imediata­
to, e rapidamente, em que a causa gloriosa da Liberdade efetiva­ mente dadas?
mente triunfará... Proporemos uma resposta diferente. Mas, para tentar qualquer
resposta, o historiador se depara com dificuldades na interpretação
Se Despard era inocente do complô que existiu entre os sol­ das fontes que devem ser explicadas. Dos anos 1790 até 1820,
dados da Guarda, talvez fosse impossível uma defesa honrosa, pois essas fontes estão tingidas de um partidarismo incomum.
implicaria terceiros. Mas a acusação também não foi muito adiante, Em primeiro lugar, há o partidarismo consciente das autori­
limitando o processo à prova de certos atos abertos e declarando dades. De Pitt a Sidmouth, o Governo seguiu uma única política.
estar em posse de outras informações, graças a indivíduos que não A insatisfação tem de ser cercada e isolada; isso seria possível
foram revelados no julgamento, visto que “ vão se manter fora de levantando sobre ela a suspeita de uma conspiração pró-bonapar-
suspeita ( . . . ) para a segurança futura do Estado”. Na época do tista ou (depois de 1815) atribuindo-lhe intenções insurrecionais e
julgamento, a Inglaterra ainda estava em paz com a França, e violentas. Sucessivas Comissões Confidenciais da Câmara (1801,
1812, 1817) apresentaram declarações sensacionalistas e não-com-
correram rumores de que as evidências sobre a cumplicidade fran­
provadas sobre redes insurrecionais. Num certo sentido, o Governo
cesa tinham sido retidas. Despard “estava influenciado pela idéia” , precisava de conspiradores para justificar a manutenção de uma
declarou o Morning Post, legislação repressiva, que impedia a organização popular de alcance
nacional.
de que uma revolução não se efetuaria com grandes associações
(...) mas por um pequeno grupo de desesperados que, desferindo Mas o mito de que todos os reformadores eram agentes ou
um único grande golpe, como o assassinato do Rei, e consternan­ conspiradores franceses acionou uma lógica curiosa. Não signifi­
do a cidade, obteria o apoio de milhares de pessoas. cava apenas que os reformadores tinham de recorrer obrigatoria­
mente a formas obscuras e dissimuladas de ação. Significava ainda
“Os pobres ( . . . ) julgam-no um mártir.” “ Será que o cadáver
decapitado de Despard vai entrar em cada boteco, para centuplicar
p. 78. Quinze anos depois, Oliver, o Espião, fez um relatório sobre uma
o número dc prosélitos.. .?” 20 conversa com um dos principais conspiradores. Charles Pandrill: “Ele
admitiu que os Soldados estavam muito profundamente implicados, e muito
leais". Certa vez, cerca de 200 soldados se reuniram em armas em casas
20. Esse relato sobre a conspiração de Despard baseia-se em: J. H. perto da Torre, prontos para tentar o coup, e Pendrill “parecia confiante
Gurney. The Trial of Edward Marcus Despard (1803), em esp. pp. 33, 36, que a Torre teria sido tomada com grande facilidade naquela época, e
44-5, 72-3, 79, 115, 127, 137, 174, 269; T. S. 11.332; "Narrative of )ohn rendida pelos soldados, se tivessem reunido algo parecido com que fora a
Oxlade" (anotada por Place) em Add. MSS. 27809; Leeds Mercury, 27 de Intenção, mas os números que se apresentaram eram muito desprezíveis".
novembro de 1802; Morning Post, 22 de fevereiro de 1803; State Trials at Narrativa de Oliver, em H. O. 40.9.
Large, The Whole Proceedings at the Trials of Colonel Despard (1803),
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que, para penetrarem essas formas, as autoridades foram induzidas
a empregar espiões e informantes a uma escala desconhecida em radicais que desfiguram todo o período de 1806 a 1832, e irrita­
qualquer outra época. A linha entre o espião e o agent provocateur diço contra seus adversários — via Cobbett apenas como “ um
era indistinta. O informante era pago por tarefa; quanto mais fanfarrão covarde e sem princípios”, o Orador Hunt como “ desca­
alarmista sua informação, mais lucrativo era o ofício. As informa­ rado, agitado, vulgar”. Coletor oficial de fatos sobre os problemas
ções forjadas podiam ser avidamente aceitas pelas autoridades que operários para os utilitaristas, preocupou-se ansiosamente, quando
difundiam o mito. A partir de certa altura, é impossível saber até veio a escrever suas memórias, em ressaltar a contribuição dos
que ponto elas mesmas eram enganadas por conspirações engen­ moderados e diminuir a importância dos “ agitadores da turba”.
Além disso, era profundamente suspeito entre os reformadores
dradas pelos seus próprios informantes. Para isolar e aterrorizar
avançados. Em 1810, foi o primeiro jurado de um júri encarregado
revolucionários em potencial, era possível adotar uma política de
de se pronunciar sobre um caso de morte suspeita, que absolvera
provocação deliberada. Nesse sentido, foram as políticas de Pitt,
o impopular Duque de Cumberland da suspeita bem fundada de
para a repressão das sociedades de correspondência, que aciona­
ter assassinado seu criado; associava-se sabidamente a pessoas tidas
ram a lógica que levou tanto a Oliver, o Espião, como ao Levante como indesejáveis pelos radicais; foi publicamente acusado por
de Pentridge de 1817. Esses anos revelam um conjunto tão abomi­ Burdett e Hunt de ser um “espião” . A acusação é ridícula: os
nável de provas falsificadas, intimidações e agentes duplos que é espiões eram de uma classe de gente absolutamente mais sórdida.
de se deplorar que esse mecanismo não tenha funcionado até sua Por outro lado, Place ficou tão convencido — a partir de 1810 —
conclusão lógica. Se os conspiradores da Cato Street tivessem rea­ da necessidade de uma reforma constitucionalista que, se tivesse
lizado seu plano de assassinato do Gabinete de Ministros, estes provas sobre uma conspiração insurrecional, bem que as teria
teriam sido chacinados por conspiradores criados pelas suas pró­ entregue às autoridades. Portanto, quando nos referimos aos arqui­
prias políticas repressivas e armados pelos seus próprios espiões. vos de Place, temos de lembrar que, embora estivesse numa boa
Assim, as provas apresentadas pelas autoridades a respeito de posição para reunir informações sobre os movimentos reformadores
uma clandestinidade conspirativa entre 1798 e 1820 são duvidosas da metrópole e sobre os sindicatos e grêmios profissionais mais
e por vezes sem valor. Foi esta, de fato, a principal linha de contra- “respeitáveis”, havia áreas em que suas informações eram tão in­
ataque de reformadores da época, inclusive Burdett e Samuel completas como as das autoridades; pouco sabia sobre as Midlands
Whitbread. Num gesto dramático em 1817, H. G. Bennet, o Mem­ e o norte, pouco conhecia da organização sindical ilegal, e, caso
bro por Shrewsbury, jogou o Relatório da Comissão Confidencial existisse alguma clandestinidade política séria, seus organizadores
ao chão da Câmara, afirmando que era uma calúnia contra “ todo certamente não teriam admitido Place em seus segredos.21
o povo (. . . ) lixo que julgo que só merece ser esmagado aos meus E aqui estamos perto do centro do problema. Pois a terceira
pés”. Sucessivos historiadores assumiram, em boa parte, essa mesma grande razão para o caráter velado das fontes é que os trabalha­
posição, induzidos seja por uma preocupação escrupulosa pelas leis dores assim o faziam intencionalmente. E “ intenção” é ainda um
das evidências, por simpatia pelos reformadores ou, mais recente­ termo racional demais. Na verdade, existiam duas culturas na
mente, pelo fleumático pressuposto de que qualquer atividade revo­ Inglaterra. Nas áreas centrais da Revolução Industrial, vinham
lucionária definida pode ser descartada, sem nenhuma investigação, surgindo novas instituições, novas atitudes, novos moldes comuni­
como não-inglesa. Em reação aos mitos de uma conspiração jaco- tários que, consciente e inconscientemente, pretendiam resistir à
bina ou spenceana, difundiram um contramito do “ constituciona- intrusão do magistrado, do patrão, do pároco ou do espião. A nova
lismo” inglês, e depositaram grande confiança na principal fonte solidariedade não era apenas uma solidariedade com; era também
alternativa de informações: os arquivos (manuscritos, memórias, uma solidariedade contra. Do ponto de vista das autoridades, dois
terços do seu problema consistiam em obter qualquer informação
panfletos, recortes etc.) reunidos por Francis Place.
Esses arquivos são inestimáveis. Mas Place estava longe de
ser aquela criatura mítica, o chamado “ observador objetivo”. Tam­ 21. Add. MSS.27809, ff. 16, 17. Ver também W. E. S. Thomas, "Francis
Place and Working Class History", Hist. Journal (1962), p. 61.
bém era profundamente partidário, altamente envolvido nas disputas
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confiável que fosse. Os magistrados percorriam arredores apinhados
a poucas centenas de metros de suas sedes, e viam-se recebidos apanhado em suas armadilhas, e a espionagem e contra-espionagem
como estranhos hostis. Eram mais impotentes para descobrir os contra os Católicos, a República e os jacobitas pegam-nos bem
locais dos sindicatos do que os flibusteiros de Pizarro para encon­ dentro do século 18. Foi mantida na prática penal (e tornou-se
trar cálices de ouro nas aldeias peruanas. mais difundida nos cinqüenta anos entre 1780 e 1830) por uma
razão totalmente diferente. A própria insuficiência dos efetivos
Assim, os registros do Ministério do interior (nossas princi­
policiais regulares tinha levado ao sistema de “ pagamento pelos
pais fontes de primeira mão) muitas vezes oferecem uma interpre­
resultados”, isto é, recompensas escalonadas (ou talões de Tyburn)
tação desconcertante. Tal como viajantes que não entendem a
conforme os diversos graus da condenação. E isso, por sua vez,
língua local, os magistrados e comandantes estavam à mercê dos alimentou um gênero nauseante de intermediários, que lucravam
seus informantes. Uma sociedade de assistência podia aparecer com a descoberta de crimes que tinham interesse em aumentar ou,
como uma máquina de sedição para alguém que nunca tivesse até, em fabricar. O início do século 19 presenciou inúmeras des­
pensado no preço do enterro para os pobres. Um exaltado pregador cobertas estarrecedoras desse tipo de provocação em processos
itinerante podia soar como um agente de Despard. Os patrões po­ simplesmente penais, e muitos outros, sem dúvida, passaram desa­
diam querer gelar o sangue dos magistrados com estórias de jaco- percebidos. Os luddistas foram perseguidos, como um grupo qual­
binos, a fim de conseguir um tratamento severo contra os sindi­ quer de delinqüentes penais, por grandes recompensas oferecidas
calistas. Os juizes de paz regateavam migalhas de notícias de infor­ a informações que redundassem em condenações. Joseph Nadin, o
mantes (pagos ou anônimos) e diversos intermediários como taver- famoso Subcomissário da Polícia de Manchester, caiu sob suspeitas
neiros, caixeiros-viajantes e soldados. Aqui encontramos alguém a de lucrar com a venda de talões de Tyburn, obtidos por malversa­
transmitir solenemente ao Lorde Encarregado de West Riding o ções. Em 1817, o Banco da Inglaterra processou 124 pessoas por
mexerico que seu barbeiro lhe contara de manhã. Ali encontramos falsificar ou pôr em circulação cédulas falsificadas, e a imprensa
um outro que escrevia de Barnsley, em 1802, para dizer que “ todas radical apresentou casos em que os informantes caça-prêmios
as mulheres andam falando misteriosamente. Há uma expectativa “passavam” notas falsas para vítimas inocentes, e assim conse­
geral de não se sabe o quê”. E lá encontramos um pastor meto­ guiam a recompensa pela condenação.23
dista, em 1801, a escrever ao Duque de Portland sobre uma Grande Assim, o uso de espiões vinha endossado por uma tradição
Associação de revolucionários, com base em Bolton — sendo que tanto política como penal, e, principalmente depois de 1798, ele
a estória tinha vindo de um “ amigo de confiança” que a ouvira se reforçou grandemente com a experiência obtida na “ pacifica­
do “ líder dos Cantores Metodistas” numa capela de Sheffield, o ção” da Irlanda. Mas a qualidade dos espiões assim empregados
qual, por sua vez, soubera por um terceiro.22 variava muito. Nuns poucos casos, em se tratando de movimentos
políticos radicais, foi possível às autoridades selecionar e enviar
Esse tipo de mexerico, evidentemente, não tem nenhum valor.
ao movimento homens com certa educação e habilidade: o “ Cida­
Mas aqui temos de observar com mais cuidado o papel dos infor­ dão Groves”, que conseguiu ser admitido às discussões internas da
mantes. Extremosa era a crença do povo inglês de que o emprego SLC, em 1794, era um deles. A grande maioria dos informantes,
de espiões em assuntos internos era não-britânico e pertencia a porém, pertence muito mais à tradição dos mercenários “ caça-
“ o sistema continental de espionagem” . Na realidade, era algo tão prêmios”. São imerecidas as recentes tentativas de minorar parte
velho na Estadística Britânica quanto a prática policial. Remonta
a muito tempo antes da época em que Christopher Marlowe foi
23. Sobre todo o sistema de informação criminal e seus excessos, ver
L. Radzinowicz, op. cit., pp. 333 ss.; Southey, Latters from England (1808,
22. Fitzwilliam Papers, F. 44(a), 45(d); R. F. Wearmouth, Methodism 2.1 ed.), I, p. 173; Hazlitt, "On the Spy System", Works, VII, pp. 208 ss.
and the Working Class Movernents of England 1800-1850, p. 60. Compare-se Sobre Nadin, ver D. Read, Peterloo (Manchester. 1957), p. 65. Sobre as
T. A. Abby ao Duque de Portland. 20 de dezembro de 1795, passando falsificações dc notas bancárias, ver Black Dwarf, 1816-18, passim;
informações sobre “meu Guarda-Caça, que da sua posição tem condições Duckett’s Dispaich, 9 de fevereiro de 1818: H. Hunt, Memoirs (1822).
de saber mais do que eu posso como M agistrado...’: H. O. 42.37. III, p. 483.

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do ódio tradicionalmente votado a indivíduos como Oliver, apre-
sentando-os como “ detetives'’ encarregados de um papel perigoso Noções de honra ou dever profissional praticamente não têm ne­
mas, ao seu ver, honrado.24 Talvez seja possívèl adotar tal idéia nhuma relevância para ambos os grupos.27 Por outro lado, é errôneo
supor que seus relatórios, portanto, não têm nenhum valor. Gente
sobre a espionagem em época de guerra, e mesmo numa guerra
ruim pode ser útil para uma causa ruim.28 Se se pudesse fazer
civil, mas não naquela guerra que Pitt ou Sidmouth travaram
alguma generalização a partir do conjunto extraordinariamente he­
contra os reformadores, com uma disposição tão desigual dos seus
terogêneo de documentos (cartas e relatórios escritos, transcrições
efetivos. Além disso, esses informantes entram em dois grupos.
de depoimentos orais, confissões de condenados etc.) que se encon­
Eram, em primeiro lugar, pessoas que tinham se enredado de algu­ tram entre os papéis do Ministério do Interior, da Procuradoria
ma forma com as autoridades e assumiam as tarefas para comprar da Fazenda e do Conselho Privado, poderia assumir essa forma:
sua impunidade (ou conseguir sair da prisão). Os terrenos mais
férteis para recrutar esses espiões eram os cárceres por insolvência. 1. O informante certamente tinha (como notaram os Ham-
Na virada do século, um exemplo particularmente asqueroso desse monds e outros) uma tendência profissional a sensacionalizar seus
tipo de recruta, um indivíduo chamado Barlow, vinha se entre- relatórios. Quanto mais mercenária a sua motivação, tanto mais se
tendo em estalagens em Manchester e Sheffield (e tentando impli­ esforçava em fornecer o tipo de informação que seus patrões que­
riam comprar.
car reformadores de classe média) e escrevia assiduamente ao
Ministério do Interior, queixando-se para receber o dinheiro para 2. Os patrões, no entanto, não eram totalmente bobos — fato
pagar não só suas atuais despesas, mas outras dívidas anteriores, que muitas vezes é negligenciado. Tinham consciência daquela
coisa que lhe fora prometida (alegava ele) ao aceitar o emprego. tendência. Era do interesse dos magistrados obter informações pre­
Ele ultrapassou os limites da discrição, e uma de suas cartas supli­ cisas. Não gostavam de ser enviados em missões idiotas atrás de
cantes traz uma anotação mal-humorada (talvez do Duque de depósitos inexistentes de armas, nem de perder tempo atrás de
Portland): “ Se era necessário algum outro argumento para afastar demagogos de bar. Frequentemente tomavam o cuidado de empre­
Barlow, é certamente oferecido por esta Carta. Inclino-me a lhe gar mais de um informante (um desconhecido do outro), como
meio de confirmar as informações. Prática generalizada entre os
dar 20 libras & despedi-lo sem demora” .25 A ligação entre o Go­
juizes de paz que encaminhavam informações ao Ministério do
verno e Castle, entre Oliver e Edwards (escreveu um escocês que
Interior era acrescentar algum tipo de apreciação sobre a credibi­
virou pessoalmente um informante, por razões menos desonrosas,
lidade da informação.
e veio a se envergonhar do seu ofício) “ originaram-se todas na
Prisão de Fleet” .26 3. Essas informações, contudo, são uma espécie de espelho
deformador para se ver a história, não só porque a maioria dos
O segundo grupo de informantes abrange vira-casacas que, espiões tendia a dar uma interpretação criminosa de atividades até
tendo sido reformadores ativos, viraram espiões para salvar a pele “inocentes” , mas por causa da informação que eles não enviaram.
ou ganhar dinheiro, ou ainda, mais simplesmente, voluntários mer­ Isso abrange, evidentemente, as preocupações e interesses da maio­
cenários eventuais que tentavam vender informações por “ peça” . ria menos política e mais apática. Mas também abrange regiões

24. Ver, por exemplo, A. F. Fremantle, “The Truth abouth Oliver the 27. Sobre o sistema de espionagem política de modo geral, ver F. O.
Spy", Eng. Hist. Rev.y XLVII (1932), p. 601; R. U. White, From Waterloo Darvall, Popular Disturbances and Public Order in Regency England (1934),
to Peterloo, cap. 13. cap. 12 e 14; Hammonds, The Skilld Labourer, cap. 12; F. W. Chandler,
Political Spies and Provocative Agents (Sheffield. 1933); W. J. Fitzpatrick,
25. Barlow. 16 de novembro de 1799, P.C. A.164. Barlow, na realidade, The Secret Service urtder Pitt (1892).
não foi despedido nessa época, visto (talvez por ter sentido como vinha 28. Fitzwilliam escreveu a Pelham sobre um espião: “...um Malandro to­
soprando o vento) que começou a enviar longos relatos pormenorizados talmente consumado, um sujeito de pior caráter que se possa encontrar...
sobre associações ilegais. Indigno como possa ser, talvez não seja o pior Agente para a finalidade
26. A. B. Richmond, Narrative of lhe Condition of the Manufacturing de entrar nos segredos dos Insatisfeitos"; 25 de setembro de 1802, Fitzwilliam
Population (1825), p. 159. Ver também (sobre Oliver) o depoimento de Papers. F. 45(d).
Charles Pendrill em Political Register, de Cobbett, 16 de maio de 1818.
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inteiras da Inglaterra. Temos de pensar nos motivos, não só dos Assim, temos de levar em conta que os documentos do Minis­
espiões, mas também dos juizes de paz que os empregavam. Pelo tério do Interior dão uma visão distorcida, não neste ou naquele
Arquivo Público, Bolton revela-se como o centro mais insurrecional particular, mas em seu próprio conjunto. Temos de ler, não só as
da Inglaterra desde o final dos anos 1790 até 1820. Mas não fica entrelinhas das cartas recebidas, mas também as cartas que nunca
absolutamente nada claro se era porque os boltonianos de fato foram enviadas.
tinham uma disposição excepcionalmente revolucionária ou se por­ 4. Pode-se dizer, de modo geral, que as autoridades consegui­
que Bolton padecia de dois magistrados extraordinariamente zelo­ ram, a nível local e nacional, penetrar em organizações clandesti­
sos — o reverendo Thomas Bancroft e o Coronel Fletcher — , que nas políticas com muito mais êxito do que nas organizações indus­
empregavam espiões (ou “ missionários”) numa escala única. triais, e com maior sucesso nas entidades regionais do que nas
A questão é importante. Pois, durante a maioria desses anos, locais. As razões disso são evidentes. Para um informante, era
a Inglaterra foi governada por Tories. Um magistrado que escrevia mais fácil se fazer passar por jacobino ou radical do que por
diligentemente ao Ministério do Interior era capaz de ser um fer­ aparador de tecidos ou malharista de bastidor. As sociedades polí­
voroso Tory antijacobino ou de estar interessado em chamar a ticas formavam-se a partir de diferentes grupos sociais de uma
atenção do Governo por razões mais particulares. No mesmo pe­ vasta região; as uniões ou entidades luddistas ilegais surgiam a
ríodo, muitos relatórios de Yorkshire se mostravam mais lacônicos partir de oficinas e comunidades onde todos eram conhecidos.
que os de Lancashire, embora não haja razões para crer que Para o espião, sempre era mais fácil infiltrar-se quando uma vila
Sheffield ou Barnwley tivessem uma disposição menos revolucio­ ou região se ligava a outra.
nária que Manchcster ou Bolton. Yorkshire tinha uma magistratura 5. Quando temos em mente todos esses pontos, sobram-nos
apenas duas reflexões. A primeira é o truísmo de que cada rela­
whiguista com um Lorde Encarregado Whig (Fitzwilliam), que não
tório em separado deve ser esquadrinhado cuidadosamente, segundo
tinha nenhum gosto por intervenções Tories em seus assuntos. E o
as regras normais das provas. É preciso dizê-lo, visto que virou
mesmo argumento se aplica a muitos juizes de paz da “ velha moda descartar todos esses relatórios, como inconfiáveis, ou pelo
escola”, fossem de convicções Whigs ou Tories. A manutenção da menos todos os que não se adequam a uma interpretação previa­
ordem era um assunto paroquial, de responsabilidade da aristo­ mente escolhida. Mas poucos são os relatórios que não se oferecem
cracia local, e escrever longas cartas ao Ministério do Interior era à crítica, isto é, corroboração ou contradição com outras fontes,
algo desnecessário, incômodo e um tanto humilhante. evidências internas, plausibilidade intrínseca e coisas do gênero.
Essa rivalidade com a autoridade central de fato levou a uma Podemos pegar dois exemplos, ambos de 1817. O primeiro é o
série de extraordinárias complicações. Sucessivos Ministérios do relatório de um informante sobre as declarações de um reformador
interior vieram a contar com certos magistrados, de comprovado de Manchester:
zelo, cuja autoridade se estendia para além de suas fronteiras.
Ele então apresentou a situação do pobre e seus filhos. O Filho
Magistrados e militares de alta patente faziam relatórios sobre a
diz ao Pai: me dá um pouco de pão; o Pai responde: não tenho;
apatia ou atividade de uns e outros. Na crise luddista, o Sr. Lloyd, o Filho diz: não tem nada?; o Pai diz: ter, tem muito, mas Tira­
um ativo advogado de Stockport, foi incentivado a estender sua nos ou Ladrões tiram de nós. Cabe a vocês (querendo dizer o
autoridade até Yorkshire, a ponto de chegar a trazer testemunhas povo) estender as mãos e pegá-lo de volta.29
da acusação do outro lado dos Peninos. Nos anos pós-guerra, o
Coronel Fletcher de Bolton muitas vezes tinha fontes de informa­ O segundo é uma carta a um advogado da Coroa:
ções sobre os reformadores de Manchester mais completas do que
o Tribunal local. Quando Oliver foi enviado diretamente por Sid- Sr. Litchfield, tem uma coisa que não tenho certeza sc mencio­
mouth até as Midlands e o norte, em 1817, mais de uma vez correu nei mas achei que seria mais adequado comunicar ao senhor
o risco de ser preso por juizes de paz locais que julgavam-no um
revolucionário bona fide. 29. Relato do discurso de Bagguley em H. O. 40.4.

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que era ter pequenos Destacamentos colocados em Diferentes
Entradas dentro e fora de Londres para impedir que o Governo ria no Levante de Pentridge, ao passo que Thistlewood foi seguido
enviasse despachos para qualquer parte do País já que era só um de perto desde 1816 até sua morte na forca em 1820. Em Man-
soldado a cavalo enviado com eles (...) proposto por watson chester, “ a Pessoa que designamos pela letra B” foi indicada como
filho e thisilwood e aceito por todos.30 Tesoureiro para coletar contribuições para a defesa do Coronel
Despard; e o mesmo, ou um outro “ B”, foi indicado em 1812
Será preciso continuar com a comparação? O primeiro se como Tesoureiro de um “ comitê secreto” semiluddista, ao passo
mostra tão plausível quanto qualquer informe de um relator sem que ele e outros informantes estavam plenamente familiarizados
prática. Ê claro que o informante ficou impressionado, à sua re­ com cada manifestação de Lancashire entre 1816 e 1820.31 No
velia, por aquela passagem do discurso, e ele registrou, em tons contato com os documentos do Ministério do Interior, dissolvem-
mais vividos do que as versões “ literárias” usualmente publicadas se as idéias sobre a tradicional burrice da classe dirigente britânica.
na imprensa radical, os modos do orador democrático. O autor Na verdade, seria possível escrever uma história convincente
do segundo informe é o famoso provocateur John Castle — o sobre o jacobinismo e o radicalismo popular inglês apenas em
“protetor” de uma dona de bordel cujo depoimento no julgamento termos do impacto da espionagem no movimento. A SLC, desde
de Watson em 1817 foi feito em pedacinhos. Mas mesmo que não seus primeiros anos, aprendeu a conhecer as atitudes excessiva­
soubéssemos disso, seu estilo o trai desde a primeira linha. Debru­ mente entusiásticas e provocadoras afetadas pelo espião típico. Em
ça-se sobre sua pena iletrada num esforço de se insinuar ainda 1794, um certo Jones, de Tottenham, foi acusado (equivocadamen­
mais junto às autoridades. Isso não significa que todas as palavras te) de ser espião, devido às suas resoluções violentas que, con­
do seu informe fossem falsas. Significa é que todas elas devem forme se alegou, tinham o “propósito de armar uma cilada para a
Sociedade”. Jones (relatou o verdadeiro informante, Groves, com
ser desinfetadas criticamente antes de serem admitidas ao inter-
um prazer perverso) queixou-se:
curso histórico.
A outra reflexão é a seguinte. Longe de entrar numa roda- Se um Cidadão fizesse uma Moção que de alguma forma parecia
viva com essa série de impostores, é impressionante a extraordi­ exaltada, era censurado como Espião enviado a eles pelo Governo
nária habilidade com que o Governo, entre 1792 e 1820, conseguiu Se um Cidadão ficasse sentado num Canto & não dissesse nada.
sustar evoluções revolucionárias sérias e manter um fluxo constante c porque estava observando seus trabalhos para relatá-los melhor.
(. . .) Os Cidadãos dificilmente sabiam como agir.32
de informações confiáveis sobre conspirações insurrecionais. Con­
seguiu pôr com sucesso espiões dentro da SLC (ainda que apenas
Tentando reforçar a segurança, a SLC introduziu em 1795
esporadicamente no centro dela). Descobriram um bocado sobre os
uma nova Constituição que incluía a seguinte Regra de Ordem:
Irlandeses e Ingleses Unidos. Penetraram na conspiração de Des-
pard e a dissolveram. Finalmente infiltraram-se (mas apenas de Deve-se suspeitar de pessoas que tentarem violar a ordem, sob
modo parcial e com grandes dificuldades) em certos distritos pretexto de mostrar entusiasmo, coragem ou qualquer motivo. Um
luddistas. Nos anos pós-guerra, como veremos, o Governo sabia comportamento ruidoso raramente é sinal de coragem, e o entu­
antecipadamente de todos os detalhes da conspiração que culmina­ siasmo excessivo muitas vezes é uma capa de traição.33

30. John Castle, 6 de março de 1817, T. S/ 11.351. [Como Thompson Mas essas regras, uma vez feitas, podiam ser contornadas por
vai se referir adiante à “sua pena iletrada". segue o original: “Mr Litchfield um ator que modificaria seu estilo. E o radicalismo político, após
sir thear is one thing that 1 am not serten weather I menshened but I have a guerra, mal começara a reviver e logo sofreu os choques de
thought it most properest to cumenecate to you thear wos to have been
small Detachements plased at Diferent Entereneses in and out of London
to prevení Government for scnding despatches to haney part of the Cuntrey 31. T. S. 11.333 e adiante, p. 171.
as thear was oneley one hors soulger sent with them (...) proposed by 32. Groves, 21 de julho de 1794, T. S. 11.3510 A(3).
young watson and thisilwood and a greed to by all".] 33. Add. MSS. 27813.

56 57
Castle e Oliver. Se procuramos uma explicação para a fragmenta­
ção do radicalismo pós-guerra e a confiança depositada em jorna­ mo adepto da força física em 1848, era quase tão opaca para o
listas, de preferência a organizações, podemos encontrá-la aí.34 investigador refinado quanto a dos anos de guerra. Sobre aqueles
luddistas “ cujas vidas foram poupadas e que permaneceram no
É por isso que a tradição política secreta se revela como uma
país” , escreveu Frank Peel:
série de catástrofes (Despard, Pentridge, Cato Street) ou ainda
como um filete de propaganda tão minúsculo e dissimulado, e tão é curioso observar que muitos deles parecem ter passado o resto
tolhido pela desconfiança, que dificilmente teria qualquer efeito, de suas vidas misturados com todos os movimentos sociais e polí­
exceto onde se ligava à tradição industrial secreta. Essa ligação ticos que se seguiram, e que em alguma medida eram proibidos
ocorreu no movimento luddista, e em Nottingham e Yorkshire os por lei.
luddistas resistiram à infiltração de espiões com um êxito extraor­
dinário. Aqui, as autoridades se depararam com uma cultura ope­ Em sua maioria tornaram-se seguidores de Cobbett, Hunt e
rária tão opaca que (a menos que um prisioneiro luddista cedesse Feargus 0 ’Connor. Um velho luddista (Peel narra minuciosamente)
no interrogatório, de medo à forca) resistia a qualquer penetração. que nunca revelaria nada sobre os segredos do luddismo, no entan­
Quando dois magistrados da polícia londrina foram enviados a to cantava, em sua senilidade, canções luddistas para os netos;
Nottingham, informaram ao Ministério do Interior: “quase todas outro passou rapidamente de Yorkshire para Lancashire, e foi
as pessoas da classe baixa tanto na cidade como no campo estão preso, mais de vinte e cinco anos depois, por participar do movi­
do lado deles” .35 mento cartista; outro ainda permaneceu “ triste e silencioso” sobre
o luddismo até sua morte.36 Nas aldeias de malharia em bastidor,
E aqui podemos levantar vários pontos óbvios sobre o estudo
nas Midlands e West Riding, as reuniões noturnas, os treinamentos
do luddismo em particular. Se existiu uma clandestinidade naque­
e a retórica insurrecional continuaram por quarenta anos. Existem
les anos, pela sua própria natureza não teria deixado provas escritas.
lendas sobre armas luddistas enterradas em 1812, desencavadas
Não teria contato com periódicos, Livros de Atas e, como as auto­
em crises posteriores. As lembranças que restavam eram transmi­
ridades vigiavam o correio, a correspondência seria mínima. Talvez
tidas como uma tradição secreta.
se pudesse esperar que alguns membros tivessem deixado memórias
Na verdade, foi somente a partir dos anos 1860 e 1870 que
pessoais; no entanto, até hoje, não veio à luz nenhuma autêntica
as estórias dos sobreviventes começaram a vir à tona em textos
versão luddista de primeira mão. Mas muitos luddistas ativos,
impressos; um homem que tivesse vinte e um anos de idade em
embora letrados, não liam nem escreviam. Além disso, temos que
1811 estaria com oitenta em 1870. Existiam vários desses sobrevi­
olhar à frente de 1813. O luddismo terminou no patíbulo, e, em ventes em West Riding, e suas estórias foram coletadas por histo­
qualquer momento dos quarenta anos seguintes, se alguém decla­ riadores locais com simpatia e (até onde se pode julgar) certa pre­
rasse ter sido um instigador luddista, iria atrair a atenção indese­ cisão. Como essas obras são a última forma de uma tradição oral
jável das autoridades e até mesmo, talvez, recriminações por parte secreta, devem ser consideradas como fontes sérias.37
da comunidade onde ainda viviam os parentes dos executados.
Em Nottingham, encontramos um detalhe intrigante e cons-
Os luddistas que tinham deixado seu passado para trás teriam
ternador. Pelo menos um dos líderes dos malharistas de bastidor
tanta vontade de que lhes lembrassem sua juventude quanto um
era um indivíduo de capacidade política e literária inusitada. Gra-
indivíduo com antecedentes criminais. Quanto aos que não o aban­
donaram, lembremos que a corrente revolucionária e conspirativa
prossegue por 1816-20, 1830-32 e vai até os últimos anos cartistas. 36. Frank Peel, The Rising of the Luddites (Heckmondwike, ed. 1895),
pp. 269-70.
A cultura operária das Midlands e do norte, que alimentou o cartis-54 37. Existe um pouco em Shirley de Charlottc Bronté — praticamente
toda a favor do "outro" lado —, em A. L., Sad Times (Huddersfield. 1870).
54. Ver adiante, em esp. pp. 207-8. em D. F. E. Sykes e G. Walker, Ben o' Bill's, The Luddite (Huddersfield,
35. Relatórios de Conante e Baker, 26 de janeiro de 1812, em H. O. s/d), e Frank Peel, The Risings of the Luddites (l.“ ed., 1880). Ver minha
42.119. (Cópia também na Biblioteca de Referências de Nottingham.) introdução à reedição de Peel, de 1968.

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vener Henson (1785-1852) foi um homem comparável, em certo
sentido, a Francis Place e, cm outro, a John Doherty. Não existiu III. As Leis contra a Associação
(escreveu um contemporâneo) “nenhuma associação profissional
Uma das “ mãos ocultas” por detrás da desordem, o mais sus­
nos três condados das Midlands durante os primeiros quarenta
peito para as autoridades, era Thomas Spence. Acreditava-se que
anos deste século com que ( . . . ) Henson não estivesse familiari­
os spenceanos tinham instigado motins por pão em 1800 e 1801,
zado”. Em 1812, foi ele a alma que animou a Comissão dos Ma-
embora Spence tenha sido julgado e condenado neste último ano
iharistas de Bastidor, certamente prima do movimento luddista.
por causa de suas publicações sediciosas. Em 1817, mais uma vez
Nos anos seguintes, foi preso (1817) durante a suspensão do habeas uma Comissão Escolhida da Câmara detetou uma conspiração por
corpus, e mais tarde participou com destaque na campanha para parte da “ Sociedade dos Filantropos Spenceanos” . Place, por outro
anular as Leis de Associação. Era um autodidata, gordo, “ com lado, declarou que os spenceanos eram “ quase nada nem ninguém”,
pescoço curto, olhinhos penetrantes e uma cabeça muito larga na “inofensivos e simplórios”.
base, que subia angulosa a uma altura incomum” . Vivia muitís­ Teremos de voltar aos acontecimentos de 1816-17. Mas é pro­
simo bem informado sobre as leis referentes ao trabalho e ao sindi­ vável que, até a morte de Spence em 1814, a versão de Place seja
calismo, publicou a primeira parte de uma História das Associa­ a mais próxima da verdade. Spence não tinha a discrição, e nem
ções de Tecelãos de Malhas e Tecidos Rendados (1831) e colabo­ a dedicação prática, de um conspirador sério. Por outro lado, seu
rava com a imprensa radical e local. No distrito de Nottinghám, grupo manteve vivo um certo descontentamento subterrâneo em
coube-lhe a fama de ter sido um luddista e até o próprio “ General Londres, com pixações e panfletos grosseiros. O mais importante,
Ludd”. Isso, muito provavelmente, não é verdade; mas Henson no contexto da repressão, é que Spence não acreditava numa clan­
conhecia indubitavelmente a maior parte da estória luddista. E, destinidade centralizada e disciplinada. Sua política era a difusão da
embora fosse um escritor tão fluente, até o final da vida mostrou agitação. Em março de 1801, os spenceanos concordaram em se
uma “ aversão decidida” a entrar em detalhes sobre o assunto. Na organizar o mais frouxamente possível, com “pregadores ambu­
verdade, diz-se que ele deixou manuscritos valiosos que revelavam lantes” . Os adeptos deviam formar sociedades, que se reuniriam
os segredos do luddismo a um “ membro influente” da Corporação em botequins “ de maneira livre e aberta, sem se estorvarem com
de Nottinghám, “com o acordo de que serão entregues a público regras” — sua função era a de falar e fazer circular os folhetos
quando a morte de certas partes interessadas tiver removido a do Cidadão Spence. (Uma sociedade chamada “ Livre e Aberta”,
única dificuldade” . Esses manuscritos nunca apareceram — talvez em 1807, reunia-se todas as terças-feiras em “ O Velocino”, na
Little Windmill Street.) Sua intenção parece ter sido a de tornar
o “ membro influente” tenha preferido levá-los consigo para o
o descontentamento tão amorfo que as autoridades não consegui­
túmulo.38
ríam encontrar nenhum centro nem forças organizadoras.39
Em vez de desacreditar a estória sobre alguma real clandes­ Não era o método da “ Lâmpada Negra” nem do luddismo.
tinidade luddista, a “ aversão” de Henson em revelar os fatos dá- Mas fornece uma pista, com sua própria política de difusão. Pois
lhe ainda mais peso. E aqui temos de passar da crítica das fontes a tradição ilegal, de 1800 a 1820, nunca teve um centro. Não
à especulação interpretativa. De Despard a Thistlewood, e mais existiu nenhuma Conspiração babeufiana de Igausi, nenhum Buo-
além, existe uma região de história secreta, como a Grande Pla­ narroti a enviar emissários para lá e para cá, e, se procurarmos
nície de Gwaelod enterrada no fundo dos mares. Temos de recons­ algo parecido, cometeremos o mesmo erro das autoridades. O jaco-
truir o que for possível. binismo tornara-se inerente às comunidades operárias exatamente
no mesmo momento em que perdera qualquer centro nacional e a
38. W. Felkin, History of the Machitie-Wrought Hosiery and Lace Ma- maior parte do seu apoio de classe média. Era em antigos centros
nufactures (1867), pp. xvii, 240-1; Nottinghám Review, 19 de novembro
de 1852; W. H. Wylie, Old and New Nottinghám (1853), p. 234. O membro 39. O. D. Rudkin, Thomas Spence and his Connections, pp. 122-3 ,146-7;
influente, segundo uma versão, era Alderman John Bradlcy. A descoberta Add. MSS. 27808.
desses manuscritos seria do maior interesse.
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de propaganda jacobina — Sheffield, Nottingham, sul de Lanca-
shire, Leeds — que agora se mostrava endêmico o “ espírito so- moldada por problemas e experiências locais. Apenas em épocas
crático” de Thelwall nas oficinas e fábricas. Era, em parte, uma de grande insatisfação é que, com extremo cuidado, viriam a pro­
tradição consciente. Grupos de painistas, que se conheciam e ti­ curar contatos, inicialmente regionais e depois nacionais. Mas,
nham uma confiança mútua, reuniam-se em segredo; os Direitos assim como se recolheram, da mesma forma suas idéias se mode­
do Homem passavam de mão em mão; em Merthyr, segundo um laram, por sua vez. pelas particularidades de cada comunidade.
vivido relato: Os focos de insatisfação se tornariam econômicos e industriais;
em Bolton ou Leeds, era mais fácil organizar uma greve ou uma
uns poucos que tinham em alta conta seus Direitos do Homem e manifestação contra o preço do pão do que uma discussão política,
Idade da Razão iam se encontrar em locais secretos nas monta­ uma petição ou uma insurreição. Jacobinos e painistas desaparece­
nhas e, tirando os livros de esconderijos sob uma pedra solta ou ram, mas a reivindicação de direitos humanos difundiu-se mais
algo parecido, liam-nos com grande fervor.40 largamente do que nunca. A repressão não destruiu o sonho de uma
república inglesa igualitária; ela dissolveu os últimos laços de leal­
Mayhew anotou o relato de um velho livreiro londrino que costu­ dade entre os trabalhadores e seus patrões, de forma que o descon­
mava vender “Tom Paine às escondidas” : tentamento estendeu-se por um mundo onde as autoridades não
conseguiríam entrar. Um enfurecido magistrado eclesiástico, o reve­
Se alguém comprasse um livro e pagasse (...) o triplo do que
rendo I. T. Becher, deu sua versão pessoal sobre a origem do
estava marcado, ele ganharia junto a “Idade da Razão”. (...) Sua
banca era uma banca absolutamente devota, e raramente deixaria luddismo:
de ter um ou dois exemplares da “Revista Antijacobina” (. . .)
embora tivesse “Tom Paine” na gaveta.41 Atribuo os (...) desmandos àqueles princípios jacobinos com que
as ordens inferiores foram assiduamente inoculadas por nossos
Em Sheffield, “ velhos Jacks” ainda se reuniam para brindar Reformadores de Nottingham, os quais, em muitos casos, torna­
à saúde de Paine e cantar “ Deus Salve o Grande Thomas Paine” : ram-se os objetivos daquela organização secreta e associação mal-
intencionada que alimentaram com seus exemplos perniciosos,
seus discursos licenciosos e sua Imprensa sediciosa para a conse­
Os acontecimentos são sediciosos cução dos seus projetos facciosos. Assim os males (. ..) foram
Quando afetam cortes e Reis. introduzidos e acalentados até que ficaram intimamente incorpo­
Levantam-se Exércitos. rados ao estado da sociedade neste e em outros distritos manufa-
Erguidos quartéis e prisões. tureiros.43
Acusada de culpa a inocência,
Sangue tão injustamente derramado, Por trás desse acesso encontram-se animosidades complexas.
Os Deuses se assombram. . 42 Becher, enquanto Tory (em sua pessoa, Representante da Igreja e
do Rei), achava que os negociantes de malhas de Nottingham ti­
Depois da execução de Despard, esses grupos painistas nas nham sido apanhados em sua própria armadilha. Alguns foram
comunidades manufatureiras perderíam qualquer elo nacional. Re­ reformadores nos anos 1790, eram dissidentes, tinham feito peti­
colheram-se para suas próprias comunidades, e sua influência seria ções pela paz em 1801, ajudaram a destituir um Membro Tory em
1802, ao som de motins e Ça Ira. (Ironicamente, esse mesmo
40. C. Wilkins. History oi Merthyr Tydfil (1867). Pela mesma versão, Membro. Daniel Parker Coke, retomando sua cadeira em 1803,
"religiosos traziam os pregos de suas botas arranjados de modo a formar mostrou-se mais atencioso para com o caso dos malharistas de
T. P., para de modo figurado esmagarem Tom Paine sob seus pés”. bastidor do que seus patrões Whig.) Agora os dentes do mítico
41. Mayhew, op. cit., I, p. 318.
42. John Wilson, The Songs of Joseph Mather (Sheffield, 1862), pp 56-7.
Cf. B. Brierley, Failsworth. My Native Village, pp. 14-6. 43. Aspinall, op. cit., pp. 170, 174. Grifo meu.

62 63
dragão que tinham semeado na praça do mercado de Nottingham, Em Sheffield, o mesmo informante encontrou um “ espírito
dez anos antes, estavam brotando em torno deles como um exército geral de insatisfação criado em todas as categorias de artesãos &
armado. Mas Becher estava certo ao ver que o que outrora fora artífices pelo último Projeto de Lei ( . . . ) que temo que já tenha
uma propaganda de minorias agora tinha ficado “ intimamente in­ contribuído para que se associem mais do que teria imaginado
corporado ao estado da sociedade”. E o tronco em que se enxertou sobre uma tal medida se não fossem as Leis” . Os sindicalistas
o jacobinismo foi o sindicato ilegal. (informou ele) estavam avaliando o número de trabalhadores pas­
Existem poucas provas sobre qualquer decisão deliberada por síveis de ser negativamente afetados pela Lei de Associação, e
parte dos painistas em “ se infiltrar” em sindicatos e sociedades de calcularam 60.000 em Lancashire, 50.000 em Yorkshire e 30.000
assistência.44 Mas é um erro separarmos mentalmente, para qual­ em Derbyshire. Os comitês secretos da nova organização estavam
quer período antes de 1840, insatisfação política e organização in­ “sob a Direção de Republicanos”. É interessante notar que, a partir
dustrial. Em sociedades de assistência que, embora legais, estavam de então, os clubes políticos que sobreviviam no norte e nas
impedidas de formar ligações regionais ou nacionais, freqüente- Midlands abandonaram nomes como Sociedades “ Patrióticas” ou
“Constitucionais” e passaram a se chamar “ Sociedades de União”
mente observava-se a regra de “ nada de política” . Alguns dos grê­
— termo cuja ambivalência permitia-lhes abarcar tanto os objetivos
mios profissionais há muito estabelecidos tinham uma tradição políticos como os industriais. O termo (se não os grêmios) sobre­
semelhante. Mas, na maioria das comunidades manufatureiras, a viveu nas Sociedades de União e nas Uniões Políticas do pós-
iniciativa de qualquer movimento organizado decerto recaiu sobre guerra.45
uma minoria de espírito ativo; os homens que tiveram a coragem
Em Lancashire, a resistência às Leis de Associação foi organi­
de organizar uma associação clandestina, a capacidade de dirigir
zada por um comitê de sindicalistas qualificados, compreendendo
sua correspondência e finanças, e o conhecimento suficiente para
cortadores de fustão, fiandeiros de algodão, sapateiros, construtores
encaminhar petições ao Parlamento ou fazer consultas a advogados,
de máquinas e estampadores de morim.46 Em Yorkshire, contínuos
também decerto não foram alheios aos Direitos do Homem. Con­
relatórios atribuíam aos cortadores ou aparadores de tecido a inicia­
forme surgiam novos líderes sindicais, foram rapidamente levados
tiva de organizações secretas com propósitos industriais e outros
a um radicalismo extremado pelas próprias condições do seu con­ dissimulados. Um Memorando, apresentado ao Conselho Privado
flito com patrões, magistrados e uma Câmara dos Comuns indife­ na época da aprovação da Lei de Associação de 1799, escolheu os
rente ou punitiva. aparadores de tecido como alvo de uma acusação excepcional: “o
Foi Pitt quem, ao aprovar as Leis de Associação, involunta­ poder Despótico que realmente possuem e Exercem é quase ina­
riamente fez com que a tradição jacobina se aliasse às uniões creditável” .47 Em 1802, o Conde Fitzwilliam, o moderado Lorde
ilegais. Foi este o caso particularmente em Lancashire e Yorkshire, Encarregado de West Riding, enviou vários relatórios seguidos ao
onde a Lei de 1799 impeliu jacobinos e sindicalistas a uma ampla Ministério do Interior, onde a organização dos aparadores de tecido
associação secreta, de caráter semipolítico e semi-industrial. “ Ori­ e uma associação clandestina mais geral mostram-se inextricavel-
ginou-se em Sheffield” , relatou um informante (Barlow): mente entrelaçadas. Fitzwilliam inicialmente inclínava-se a tomar
com restrições os relatórios sobre uma conspiração insurrecional a
. . . na associação republicana de lá — está ligada às principais sério. “ A verdadeira espécie jacobina de conspiração” , escreveu em
vilas industriais de Yorkshire — & tem comunicação com esta
Cidade [ Manchester], Stockport & particularmente Bury. 45. P. C. A.161, 164, Por volta dessa época, o Major Cartwright foi
“muito consultado na formação de várias sociedades incipientes", chamadas
Sociedades de União, F. D. Cartwright, op. cit., I, p. 243.
44. W. H. Reid, The Rise and Dissolution of the Infidel Societies, p. 20, 46. T. Bayley a H. O., 6 de novembro de 1799, em P. C. A. A.164.
afirma que “os Clubistas" achavam que “seu interesse era se insinuarem 47. “Observations on Combinations among Workmen", em P. C. A. 152.
dentro de sociedades de convívio dc todos os tipos", particularmente socie­ Ver adiante, p. 92.
dades beneficentes.
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julho, “ temo que de fato exista, em maior ou menor grau. (. . .)
Creio que o autêntico segredo está em pouquíssimas mãos e que os tosas, envolvendo uma série de ofícios. No início de setembro, o
outros são ingênuos. . A maioria das reuniões noturnas, achava Prefeito de Leeds escreveu-lhe desalentado com “ a forma impe­
ele, destinava-se apenas “ à finalidade de aumentar seus salários, e tuosa que o espírito de associação entre trabalhadores de quase
das quais não se apreenderia nada” . Quanto à conveniência de todas as categorias (particularmente entre aparadores de tecido)
aceder à solicitação de alguns grandes industriais para que as reu­ agora assumiu” :
niões fossem decididamente debeladas, mostrava-se cauteloso. A
necessidade de eliminar reuniões sediciosas não devia ser transfor­ Prerrogativas, privilégios, tempo, modo de trabalho, preço, quem
mada em pretexto para “ conseguir leis mais restritivas contra as deve ser empregado &c. &c. — tudo agora depende inapelavel-
associações de oficiais por aumentos salariais”. Esses homens ti­ mente dos decretos dos nossos trabalhadores; e todos os ramos
estão lutando pela sua parcela desses novos poderes. Agora já é
nham direito ao seu quinhão na “época de colher os frutos” , quando algo confirmado que um assentador de tijolos, um pedreiro, um
o ofício ia bem. Punir suas associações seria injusto: carpinteiro, um fabricante de rodas &c. receberá em Leeds ou em
Manchester salários semanais com 3 xelins a mais do que em
Não estou certo se assim não lhes daríamos razões de queixa Wakefield, York, Hull, Rochdale. . .
contra a Constituição, não os levaríamos para o lado dos verda­
deiros jacobinos, e, pelos nossos próprios atos, forneceriamos uma
No final dc setembro de 1802, todos os aparadores contratados
justificativa para os deles. . .48
por Gott, o maior manufatureiro de lã de Leeds, entraram em greve
contra a admissão de dois rapazes com idade acima da reconhecida
Em dois meses, sua opinião mudou. Havia três razões. Em para a aprendizagem (catorze anos). (O problema serviu como
primeiro lugar, recebeu relatórios mais circunstanciados sobre a pretexto para se pôr em pratos limpos a questão geral dos apren­
“ Lâmpada Negra” e a organização sindical secreta, onde os pro­ dizes entre Gott e os aparadores, e portanto entre toda a categoria
pósitos sindicais vinham inseparavelmente entrelaçados com rumo­ em West Riding.) O Conde Fitzwilliam agora escrevia a Lorde
res sobre objetivos revolucionários ocultos. Foi informado de que: Pelham, solicitando “ maiores restrições contra a associação de
oficiais” :
existiam três casas em Leeds e três em Wakefield onde se reu­
niam os comitês — que há algum tempo esperava-se que uma Não posso deixar de alimentar a firme opinião de que todas as
delas ia ser revistada, e os documentos foram escondidos num reuniões, e a suspeita sobre as reuniões, derivam da associação
alçapão no assoalho da casa e entre os carvões; que cada membro dos mesmos homens de que agora falo, os aparadores de tecido.
pagava 1 pêni por semana para os fundos; que existiam muitos São os tiranos da região; seu poder e influência cresceram a partir
membros de comitês, e que cada membro de comitê contava com dos seus altos salários, que lhes permitem fazer depósitos que os
dez outros mais (...) que levam seus penies semanais a Leeds; afastam de qualquer temor a incômodos resultantes de mau com­
que haveria uma sublevação por todo o país na mesma noite, e portamento. Constituem, porém, uma categoria dc indivíduos des­
tudo seria derrubado na manhã seguinte. necessária à manufatura, e se os negociantes tivessem firmeza
para agir sem eles, perderíam sua importância, seus bancos enfra­
Em segundo lugar, ele recebeu do Ministério do Interior pro­ queceríam, suas associações se desfariam, e não ouviriamos falar
vas convincentes sobre a íntima conexão entre a organização dos em mais nenhum tipo de reunião. . .49
aparadores ou cortadores de tecido de Yorkshire e os do oeste da
Inglaterra, onde recentemente tinham sido destruídas cardadeiras Não sabemos se algum dos espíritos que animavam a união
mecânicas. Em terceiro lugar, ficou cada vez mais alarmado com dos aparadores foi antigo membro daquela sociedade de “ Artífices
relatórios a respeito de uma onda crescente de sindicalizações exi-
49. Ibid., pp. 53-64. Ver também os Hammonds, The Skilled Labourer,
48. Aspinall, op. cit., pp. 41. 45-6. PP. 174-8.

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Trabalhadores” que tinha escrito à SLC cinco anos antes.50 Sa­
bemos. porém, que pequenos produtores, na virada do século, ti­ Isso é tão pouco verdadeiro quanto a idéia, às vezes presente
nham fundado em Léeds um novo salão para o livre comércio de em versões populares, de que as Leis de Associação tornaram
tecidos, assim evitando os grandes negociantes, conhecido por todos ilegais sindicatos que antes seriam legais. De fato, antes dos anos
como “ Salão Tom Paine” . Sabemos também que o principal inter­ 1790, existia uma legislação suficiente para tornar passíveis de
mediário para a comunicação postal entre os aparadores de York- perseguição quase todas as atividades sindicais imagináveis —
shire e os cortadores do West Country era um sapateiro de Leeds, como conspirações pelo direito comum, por quebra de contrato,
George Palmer, em quem podemos detetar com segurança o pro­
por não-conclusão do trabalho ou pelo direito estatutário que
verbial remendão radical. É razoável supor que alguns desses ho­
abrangia os ramos profissionais específicos. As Leis de Associação
mens letrados, qualificados e muito competentes eram painistas.
foram aprovadas por um Parlamento de antijacobinos e proprietá­
Além disso, as Leis de Associação de 1799 e 1800 tinham
rios de terras cuja principal preocupação era a de somar à legis­
forçosamente conduzido os sindicatos a um mundo ilegal, onde o
lação existente a intimidação contra reformadores políticos. Tam­
sigilo e a hostilidade frente às autoridades eram intrínsecos à sua
bém foram planejadas de modo a codificar a lei anti-sindical exis­
própria existência. A situação das uniões profissionais entre 1799
e a revogação das Leis de Associação (1824-5) era complexa. Temos tente, simplificando os procedimentos e permitindo que dois magis­
primeiramente de enfrentar o paradoxo de que os grandes avanços trados aplicassem justiça sumária. Sua novidade consistia nisso, na
do sindicalismo se registraram nos mesmos anos de vigência das natureza abrangente de sua proibição de toda associação e no fato
Leis. A questão não se restringe ao fato de que as uniões que de que, ao contrário da legislação conforme à antiga tradição pa­
remontavam ao século 18 — penteadores de lã, chapeleiros, cordo- ternalistas, não incluíam nenhuma cláusula protetora compensatória.
vaneiros e sapateiros, operários de estaleiros, alfaiates — conti­ Embora tecnicamente proibissem da mesma forma as associações
nuam mais ou menos imperturbadas durante muitos dos anos de entre mestres, eram, como mostrou o professor Aspinall, “ uma
vigência das Leis de Associação; também existem provas sobre a peça odiosa de legislação classista” .53
expansão da organização em muitos outros ofícios e as primeiras Como tais, pairaram sobre todos os sindicalistas por vinte e
tentativas de sindicatos gerais. Os Webbs julgaram que diversos cinco anos, e foram freqüentemente aplicadas. “ Dois ou mais Juizes
ofícios artesanais londrinos “ nunca estiveram tão completamente se encontram diariamente em uma ou outra Cidade Manufatureira” ,
organizados ( ...) como entre 1800 e 1820” .51 Muitos oficiais arte­ escreveu do oeste da Inglaterra um emissário do Ministério do
sãos, como os alfaiates, tinham sua rede de grêmios ou lojas pro­ Interior, em 1802, “e como a Lei de Associação fornece um pre­
fissionais, locais de convocação, cédulas, auxílio a membros em texto muito conveniente para convocar e interrogar sob Juramento
trânsito, controle sobre o aprendizado (que significava um paga­ qualquer Pessoa suspeita, continuamente tenho algumas perante
mento considerável para os fundos sindicais), benefícios, depósitos eles” .54 Foi esse caráter geral das Leis que se demonstrou tão
bancários e até, ocasionalmente, listas de preço elaboradas em “conveniente”. Não existe nenhum computo do número de pro­
acordo com os mestres. Tais provas deram a impressão de que as cessos realizados sob elas (pois isso exigiria uma longa pesquisa
Leis de Associação eram quase “ letra morta” e que seria muito na imprensa provincial), mas ninguém que tenha alguma familia­
exagerado pensar que, naqueles anos, existira alguma “ campanha ridade com esse período pode duvidar de que sua influência proi­
contra a liberdade” .52 bitiva geral estava sempre presente. Por outro lado, existiu uma
série de razões interessantes para que não tenham sido tão larga­
mente aplicadas como se poderia esperar. Em primeiro lugar, apesar
50. Ver A Formação da Classe Operária Inglesa, vol. I, p. 195. do peso da legislação, existia uma área nebulosa onde, na prática,
51. S. e B. Webb, History of Trade Unionism, p. 83. Ver também A
Formação da Classe Operária Inglesa, vol. II, pp. 94-101.
52. Ver M. D. George, “The Combination Acts", Economic History Review,
1936, VI, pp. 172 ss. Um resumo útil sobre a situação legal antes e duran­ 53. Loc. cit., p. xvii.
te as Leis encontra-se em Aspinall, op. cit., p. x-xxx. 54. Hammonds, The Skilled Labourer, p. 176.

68 69
ainda era aceito um certo tipo de atividade sindical. De um lado,
Fora dos ofícios artesanais — na verdade, na maioria dos dis­
os grêmios profissionais — como os dos ofícios londrinos — , que
tritos manufatureiros do norte, centro e oeste — , vigoravam outras
ressaltavam sua função de sociedades beneficentes e silenciavam
condições. Sempre onde encontramos serviço por encomenda, fá­
quanto à sua correspondência nacional e funções de negociação,
bricas ou grandes indústrias intensivas, a repressão do sindicalismo
podiam passar anos sem serem molestados, até que algum conflito
foi muito mais rigorosa. Quanto maior a unidade industrial ou a
ou greve desagradasse a patrões ou autoridades. Por outro lado.
especialização profissional envolvida, mais agudas eram as animo-
surgiam ocasiões em que era legalmente permitido que os oficiais
sidades entre capital e trabalho e maior a probabilidade de um
de uma certa profissão — pelo menos em diversas cidades e dis­ entendimento comum entre os patrões. Encontramos alguns dos
tritos — apresentassem seus interesses em petições ao Parlamento conflitos mais agudos envolvendo indivíduos com especializações
ou comparecendo em Comissões da Câmara. Além disso, as Leis definidas que tentavam alcançar ou manter uma posição privile­
não removeram totalmente a legislação obsolescente mais antiga, giada — fiandeiros de algodão, estampadores de morim, confeccio-
que atribuía aos magistrados poder para arbitrar em disputas sala­ nadores de padrões, encarregados da manutenção das máquinas,
riais. Para que os oficiais requeressem proteção, fosse a um magis­ operários de estaleiros, aparadores de tecido, penteadores de lã,
trado ou ao Parlamento (e as autoridades relutavam em bloquear alguns níveis de trabalhadores cm construção civil. Encontramos
por completo as saídas constitucionais para as reclamações), teria outros que envolviam grande número dc trabalhadores por enco­
de lhes ser permitida uma certa organização, para escolher seus menda — principalmente tecelãos e malharistas de bastidor — ,
porta-vozes e levantar os fundos necessários. tentando resistir aos cortes salariais e à deterioração de seu síaíus.
Eis aí, pois, uma área disputada no limite da legalidade, que Mas mesmo aí nem sempre as Leis de Associação foram apli­
se demonstrou importante na história que leva ao luddismo. Mas. cadas. Acima de tudo, elas faziam recair o ônus dos processos
a seguir, foram várias as razões por que os patrões tantas vezes sobre os patrões. Mas, apesar de uma série de associações ante­
relutaram em empregar as Leis além do nível de simples ameaça. riores entre os mestres de diferentes setores, todos os patrões sen­
Nos setores artesanais, como a alfaiataria ou sapataria, existiam tiam-se cercados pela rivalidade dos seus concorrentes. Quanto
muitos pequenos mestres pouco organizados entre si. Em Londres maior sua empresa, maior a rivalidade e maior a probabilidade de
ou Birmingham, boa parte eram, eles mesmos, radicais que despre­ que seus rivais se aproveitassem dos seus problemas financeiros.
zavam a legislação repressiva, da qual faziam parte as Leis de (Assim, a tentativa de Gott em derrotar os aparadores, em 1802,
Associação, e tinham escrúpulos em usá-la. As relações com seus foi malograda pela capitulação de outros manufatureiros de Leeds
oficiais eram freqüentemente informais e pessoais; os grêmios pro­ às reivindicações do sindicato.) E mais, sempre que o sindicato era
fissionais há muito tempo tinham sido aceitos como integrantes do forte, a perseguição judicial envolvia muitas dificuldades. Era noto­
cenário; o patrão muito pequeno ainda achava conveniente a apren­ riamente difícil conseguir duas testemunhas entre os empregados
dizagem. Pensava em seu negócio antes em termos de um ganha-pão que jurassem a existência do sindicato. O patrão sabia que era
razoável do que em termos expansionistas, e portanto era tão capaz de perder muitos dos seus melhores artífices. Se não fossem
adverso quanto seus empregados aos poucos grandes patrões que, presos ou não entrassem em greve, simplesmente cairiam fora, um
passando por cima do costume e da aprendizagem, ficavam com a a um, e “manchariam” sua oficina ou fábrica. Além disso, os
melhor parte do mercado e empregavam mão-de-obra barata. Desse resultados de um processo nem sempre justificavam as perdas que
modo, em tais ofícios, as uniões artesãs existiam dentro de uma podia acarretar. Para uma primeira condenação, a sentença era de
área indefinida de tolerância. Se ultrapassassem esses limites com apenas três meses de reclusão, e ainda que a condenação geral­
greves ou exigências “ irrazoáveis”, podiam atrair sobre si a perse­ mente fosse garantida, não era automática. Os patrões sentiam-se
guição ou contra-organização dos mestres. Não estavam livres dos ainda mais dissuadidos “com o poder de apelar às Sessões Trimes­
efeitos das Leis de Associação, mas tinham aprendido a conviver trais ( ...) o que podia mantê-los em suspenso por três meses antes
com elas. de se ter uma decisão, e durante todo esse tempo o denunciante

70 71
não teria levado nenhum negócio avante, pois suas oficinas de nadores de Roupas de Yorkshire (1806), os tecelãos de algodão de
aparamento estariam interditadas”.55 Lancashire (1808 e 1818), os tipógrafos do The Times (1810), os
Assim foi que os processos muitas vezes se deram, não sob as tecelãos de Glasgow (1813), os cuteleiros de Sheffield (1814), os
Leis de 1799-1800, mas sob uma legislação anterior — no direito malharistas de bastidor (1814), os estampadores de morim (1818)
comum contra as conspirações ou sob o Estatuto dos Artífices eli- e os tecelãos de linho de Barnsler (1822). Tais processos geralmente
sabetano (5 Eliz. c. 4), com penalidades para os trabalhadores por surgiam em épocas de organização ampla e bem-sucedida, ou em
serviço não-concluído. A vantagem do primeiro é que podia ser momentos em que o próprio Governo se alarmava com a desordem
usado contra os “ líderes do bando” ou diretores de um sindicato e agitação “sediciosa” que o circundavam. A correspondência do
Ministério do Interior revela que tais considerações gerais freqüen-
(juntamente com a apreensão de papéis e fundos), podiam-se impor
temente tinham prioridade sobre as questões industriais específicas;
penas mais severas e, não menos importante, o ônus do processo
e mais, que ocorria uma disputa constante entre as autoridades
recaía sobre as autoridades, de preferência aos patrões individual­
(o Ministério do Interior ou os magistrados), que queriam que os
mente tomados. A vantagem do segundo é que, em caso de greve, patrões processassem, e os mestres, que queriam passar o ônus para
facultava ao patrão proceder a justiça sumária, com as provas for­
o Governo.57 Mesmo os grandes patrões muitas vezes agiam com
necidas pela própria greve, sem precisar de testemunhas que juras­ uma apreensão considerável. “A lei é dura” , admitiu um patrão de
sem a existência de uma organização sindical formal. “ Pouquíssi­ Sheffield, em 1814, para sua noiva em protestos, “pois é difícil
mos foram os processos efetivados sob as Leis de Associação” , que os salários aumentem sem associações, e numa época menos
escreveu Gravener Henson, o líder dos malharistas de bastidor: insubordinada eu não teria tentado fazer valer uma lei dessas”.58
Mais uma vez, podemos detetar aquela área indefinida de tolerância
mas centenas se realizarão sob essa lei, e o trabalhador jamais que só era abandonada quando os sindicalistas se mostravam inco
poderá ser livre enquanto ela não se modificar; a associação não modamente bem-sucedidos ou “ insubordinados” .
é nada; é a lei em relação à conclusão do serviço que os mestres
empregam para molestar e manter baixos os salários dos seus Assim, nos ofícios artesãos, especialmente em Londres, existia
trabalhadores.56 um mundo crepuscular de semilegalidade, onde se alcançava um
altíssimo grau de organização e se formavam fundos consideráveis.
Esses esclarecimentos são importantes, mas não devem nos (Já vimos Thomas Large a sugerir que os carpinteiros dispunham
levar a conclusões sobre alguma disposição moderada das autori­ de 20.000 libras em 1812, e Davenport a prestar contas sobre os
dades em relação ao sindicalismo. Do ponto de vista dos sindica­ sapateiros, nos mesmos anos.59) Foi dos ofícios londrinos que sur­
listas, pouca diferença fazia se eram processados sob as Leis, sob giu em 1818 o primeiro periódico dedicado a assuntos sindicais
— o Gorgon, editado por John Wade, um classificador de lã. Mas
o direito comum ou pelo 5 Eliz. c. 4, exceto pelo fato de que o
nos distritos manufatureiros do norte e das Midlands, em condições
segundo era mais rigoroso e o terceiro mais rápido. Para o público
onde a associação tinha de ser geral e militante ou seria até ine­
em geral, de qualquer forma, toda essa legislação se agrupava sob
ficaz, uma ou outra das leis contra associações foi freqüentemente
o termo genérico “as leis contra associações” . Não se deve julgar empregada, como meio auxiliar de cortar salários ou discriminar
a eficácia da legislação pelo número de processos, mas pela sua
influência bloqueadora geral. Sob uma lei ou outra, os golpes eram
57. Para um exemplo excelente, ver a opinião de Spencer Perceval. então
desfechados contra os sindicalistas em momentos críticos, ou em Ministro da Justiça, em 5 de outubro de 1804: “Se o Governo atender
pontos críticos de desenvolvimento: por exemplo, os trabalhadores a essa solicitação da parte dos fabricantes de botas e sapatos, devem-se
em lã do oeste da Inglaterra (1802), o “ Instituto” dos Confeccio- esperar solicitações de todos os outros ofícios, e isso logo levará à opinião
de que os processos não são tarefa dos mestres de ofício que sofrem a
agressão, mas sim tarefa do Governo". Aspinall, op. cit., pp. 90-2.
55. Beckett a Fitzwilliam, 28 de janeiro de 1803, Fitzwilliam Papers, 58. T. A. Ward, op. cit., pp. 216-9.
F. 45(e). 59. Ver A Formação da Classe Operária Inglesa, vol. II. p. 76 e p. 97.
56. Citado por M. D. George, op. cit., p. 175.
73
72
trabalhadores, acabando com os sindicatos incipientes e conduzindo
outros a formas clandestinas. Nos ofícios têxteis, Gravener Henson preensivo. A forma de organização dificultava a penetração de
via as Leis como: espiões. Em alguns casos, baseava-se em “ classes” (forma empres­
tada dos metodistas)64 ou em refinamentos que talvez devessem
uma terrível mó em torno do pescoço do artesão local, que o algo à experiência jacobina e irlandesa. Assim, através de um ela­
achatou e rebaixou até o chão: todas as atitudes que tentou, todas borado sistema de representação desde a oficina até o comitê da
as medidas que planejou para manter ou aumentar seu salário, cidade, e deste até o comitê regional, foi possível ocultar os nomes
foi-lhe dito que eram ilegais; toda a força do poder e influência dos dirigentes e membros dos comitês até mesmo dos outros mem­
civil do distrito foi aplicada contra ele por estar agindo ilegal­ bros do sindicato. (Em certos casos, os dirigentes eram indicados
mente; os magistrados, atuando, conforme acreditavam, em unís­ por voto secreto dentro do comitê, e seus nomes só eram do conhe­
sono com as idéias do legislativo, para controlar e reduzir os sa­ cimento do Secretário ou Tesoureiro.)65 Portanto, se parte da orga­
lários e as associações, consideravam (...) todas as tentativas por nização vinha a ser conhecida pelas autoridades, outras partes po­
parte do artesão de melhorar sua situação (...) como uma espécie diam permanecer intatas.
de sedição e resistência ao Governo; todos os comitês ou indiví­
Provavelmente, eram muito difundidos juramentos imponentes
duos ativos entre eles eram vistos como um instigador turbulento
e perigoso, que era necessário vigiar e se possível esmagar.60 e cerimônias de iniciação. Não há por que duvidar da autenticidade
do conhecido ritual dos penteadores de la (ou dos construtores?),
com seus porteiros do lado de dentro e de fora, o vendamento dos
Foi a associação de malharistas de bastidor de Henson que,
olhos, o juramento solene de segredo prestado perante a imagem
em 1813, adotou cédulas com um brasão com um tear, um punho
da morte:
segurando uma marreta e o lema “Taisez vous” (Calem-se). Os
homens do condado de Notts (disse ele em 1824) acham as leis de Invoco a Deus para testemunhar esta minha declaração profunda­
associação “ tão opressoras que seu lema foi ‘Se vocês entrarem mente solene de que nem esperanças, temores, recompensas, cas­
com as prisões, nós entramos com os corpos” ’.61 Os Webbs, cujo tigos, nem mesmo a própria morte jamais vão me levar, direta ou
material para A História do Sindicalismo foi reunido no final do indiretamente, a dar qualquer informação referente a qualquer
século 19, notaram que todo velho sindicato tinha sua “ lenda ro­ coisa contida nesta Loja, ou em qualquer Loja semelhante ligada
à Sociedade; e não escreverei, nem farei com que seja escrito em
mântica sobre seus primeiros anos” : “ a reunião a altas horas de
papel, madeira, areia, pedra ou qualquer outra coisa, algo pelo
patriotas num local distante no campo, a caixa enterrada de regis­ qual ela possa ser conhecida..
tros, o juramento secreto, os períodos de reclusão. . .” .62 Assim, a
Sociedade de Fundidores de Ferro, formada em 1810, teria se reu­ Tais juramentos tinham uma longa linhagem, que devia algo
nido “ em noites escuras nos picos, charnecas e regiões ermas das à maçonaria, algo às velhas tradições da guilda e algo às cerimô­
terras altas dos Condados das Midlands”.63 Onde ocorriam esses nias cívicas correntes, como o juramento dos representantes dos
encontros noturnos (que inquestionavelmente existiram), toda a burgos. Assim, um juramento dos “ Homens Livres da Sociedade
atmosfera era tal que estimularia conversas revolucionárias, mesmo de Cesteiros” , usado em meados do século 18, obrigava os membros
quando o objetivo imediato era profissional. Mais comumente, as a “guardar bem e lealmente” os segredos do ofício, que não po­
uniões se reuniam numa sala privada de um estalajadeiro com­ diam ser ensinados “ a nenhum Homem a não ser aqueles a serem
Livres na mesma Ciência” , e a cumprir “ todos os tipos de Obri­
gações, quando se tornar um Irmão e um Homem Livre para
60. [G. White e Gravener Henson], A Few Remarks on the State of
lhe Laws at present in Existence for rcgulating Masters and Workpeople
(1823), p. 86. 64. Ver R. F. Wearmouth, op. cit. Parte III. cap. 2.
61. Fourth Report ( ...) Artizans and Machinery (1824), p. 281. 65. Ver A. B. Richmond, op. cit., p. 17.
62. Loc. cit., p. 64. 66. [E. L. Tuffncll], Character, Objects and Effects of Trades Unions
63. R. W. Postgate, The Builders History, p. 17. (1834; ed. 1933), p. 67.

74 75
i

fazê-lo” .67 Um dos “ missionários” do Coronel Fletcher de Bolton


desenterrou um juramento mais assustador, supostamente trazido trabalhadores na construção civil a entrar em estalagens onde
pelos “ ribbon-men”* irlandeses: “ fazem barulho como se estivessem em treino militar, e é comum
que se disparem numa única noite quarenta ou cinqüenta tiros de
Juro perante vocês meus irmãos e nossa abençoada senhora Maria pistola. Dispara-se uma pistola sobre a cabeça de cada homem logo
que sustentarei e defenderei nossa Religião sagrada destruindo depois de ter prestado seu juramento. . .” .71 Simeon Pollard, o líder
Heréticos até onde for possível à minha pessoa e domínio, sem da União, negou que ocorressem esses juramentos; mas John Tester,
nenhuma exceção.68 um líder da greve dos penteadores de lã em 1825 (e agora um
encarniçado adversário do sindicalismo), escreveu causticamente
Os juramentos do início do século 19 compuseram-se a partir sobre os gastos com a parafernália sindical: “espadas, cenas fúne­
dessas fontes díspares, sendo que os luddistas extraíram mais da bres, togas, estandartes, achas-d'armas e grandes caixas vazias como
tradição irlandesa e os sindicalistas mais das tradições dos ofícios arcas militares” . Num inquérito sobre um rapaz irlandês fura-greve,
e da maçonaria.69 Os juramentos de associação provavelmente logo que morreu em conseqüência de agressões de assaltantes não-iden-
caíram em desuso entre os ofícios londrinos e os artesãos das gran­ tificados em Farsley, perto de Leeds (dezembro de 1832), surgiram
des cidades. Mas, nas Midlands e no norte (e outros lugares mais), detalhes que parecem dignos de crédito. Um ramo do sindicato
as cerimônias de iniciação e a prestação de juramento continuaram tinha se reunido semanalmente na “ Égua Baia” , pagando 3 penies
por muitos anos após a revogação das Leis de Associação, não só por semana pelo uso de uma sala privada no segundo andar:
como uma medida de segurança contra os patrões, mas também
porque tinham se convertido em parte integrante da cultura moral Tomavam-se precauções extraordinárias para impedir que se ou­
visse o que se passava na sala, o lado de baixo das vigas era
— solidariedade, dedicação e intimidação — , fundamental para a
coberto com tábuas de 2,5 centímetros e os interstícios preenchi­
existência da associação. O ramo de Huddersfield dos Velhos Artí­ dos com lascas de madeira, e durante as reuniões um guarda fi­
fices, ao se formar em 1831, comprou uma pistola, uma Bíblia e cava de plantão do lado de fora da porta, e toda a cerveja e
dez metros de tecido de cortina; os acessórios da cerimônia de ini­ outras bebidas eram levadas à sala por um dos homens da União.
ciação constituíam claramente um primeiro ônus sobre os fundos
dos membros.70 Durante a grande onda do sindicalismo geral entre O pai do rapaz morto depôs que tinha ingressado na União, a pe­
1832 e 1834, veio a ocorrer um reflorescimento da prestação de dido do seu patrão, para descobrir seus planos. Mas seu relato
juramentos, principalmente na obscura “ União dos Ofícios” de parece autêntico:
Yorkshire. Paradoxalmente, a tradição do taisez vous parece ter se
incendiado numa última fase de cerimônias bombásticas nada silen­ Quando um membro é admitido, há duas salas, numa das quais
ciosas. A fidalguia ficou alarmada com boatos sobre “juramentos está reunida a Loja. A primeira operação era vendá-lo; a seguir,
solenes e pavorosos” que obrigavam os indivíduos a matar os trai­ era conduzido à Loja por dois membros; então exigiam-lhe que
dores ou os maus patrões. Podiam-se ver mineiros de carvão e apresentasse a senha, que naquela ocasião era Alfa e Ômega:
então andava em torno da sala, e durante esse tempo soava um
grande estrondo feito por uma chapa de ferro — então se cantava
67. Regulamentos em Brit. Mus., marca L. R. 404.a.4. (52). Ver também
um hino — e ele ainda continuava a andar pela sala por duas
a grande variedade de formas em The Book of Daths (1649).
* Ribbon-man: membro dc uma sociedade secreta católica apostólica, ou três vezes, e perguntavam-lhe se seus motivos eram puros —
fundada na Irlanda em 1808, contra os proprietários de terra. (N. do T.) a seguir tiravam a venda dos seus olhos, e a primeira coisa que
68. H. O. 42.119. ele via era um quadro da morte do tamanho dc um homem, tendo
69. Sobre a tradição maçônica e o papel de cerimônias rituais e iniciá- por cima a inscrição “ Lembra Teu Fim ”. Sobre esse quadro havia
ticas de modo geral, ver E. J. Hobsbawm, Rebeldes Primitivos, Rio de
Janeiro, Zahar, 1978, cap. IX.
70. Ver fac-símile em I. B. Jeffreys, The Story of the Engineers, cober­ 71. Diário Manuscrito de Anne Lister (Bankfield Museum. Halifax), 31
tura da p. 20. de agosto e 9 de setembro de 1832.

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uma espada suspensa — seus olhos então eram novamente ven­ Mas o Senhor é minha proteção: e meu Deus é o rochedo do
dados, e era conduzido pela sala, quando, a um sinal dado, todos
meu refúgio.
os membros faziam um grande barulho batendo os pés — então E ele lhes trará a própria injustiça deles, e os destruirá em sua
lhe ordenavam que se ajoelhasse ao lado de uma mesa. e a venda
própria crueldade; sim, o Senhor nosso Deus os destruirá.7*
era novamente retirada dos seus olhos, quando via uma grande
Bíblia à sua frente, com sua mão posta sobre ela. (...) Então era
lido o 94.° Salmo, quando se ministrava o juramento, que era Esse juramento e esse salmo, perante o quadro da morte na
para o seguinte efeito: que ele devia obedecer a todas as ordens sala do fundo de uma estalagem, eram coisas sérias para uma
do Comitê da União, e guardar todos os segredos em todos os gente onde ainda se agitavam profundas superstições — alguns,
detalhes — o fim do juramento continha uma imprecação, pela talvez, tinham acreditado em loanna Southcott ou se sentiram
qual cada pessoa jurada tem que prestar o voto de que, se violar empolgados pelo revivalismo wesleyano. Além disso, bastava erguer
o juramento, sua alma arderá por toda a eternidade no mais fundo os olhos no trabalho, ou talvez na capela ou no bar, para se de­
do inferno. . ,72 parar com os olhos de outros que partilhavam dos mesmos votos
de segredo. Foi por um desses juramentos que os trabalhadores de
Numa época que esqueceu o Deus das Batalhas, podemos citar Dorchester (ou “ Mártires de Tolpuddle”) foram deportados em
alguns versículos do salmo escolhido por aqueles sindicalistas para 1834, depois do que a prestação de juramentos caiu rapidamente
ler aos iniciados: em desuso. E foi numa reunião de massas em Hunslet Moor, Leeds,
em protesto contra a sentença de desterro em Dorchester, que um
Ó Senhor Deus, a quem pertence a vingança; Ó Deus, a quem reformador muito conhecido declarou publicamente:
pertence a vingança, mostra-te. . .
Senhor, por quanto tempo os maus, por quanto tempo os maus Conheci homens do caráter moral mais estrito, nas sendas mais
humildes da vida, que prestaram o mesmo juramento. Tantos (. ..)
triunfarão?
que separá-los e deportá-los praticamente despovoaria West
Por quanto tempo pronunciarão e dirão coisas duras? e sc van­ Riding.74
gloriarão todos os causadores de injustiças?
Eles fazem teu povo em pedaços, ó Senhor, e atormentam tua Mas não devemos pintar um quadro muito colorido sobre os
herança. dias heróicos da ilegalidade. Muito do trabalho feito nas salas dos
Matam a viúva e o forasteiro, e assassinam os órfãos. (. ..) fundos de estalagens era enfadonho. Muito dele consistia na obra
Pois o Senhor não abandonará seu povo, nem desistirá de sua sólida e calma da sociedade beneficente e de enterros. Muitos dos
herança. piores problemas, em anos tranqüilos, não se deviam aos mestres,
Mas o juízo dará sua sentença sobre a virtude: e todos os vir­ mas provinham da inexperiência ou ignorância dos dirigentes. Fun­
tuosos de coração segui-lo-ão. dos penosamente adquiridos podiam sumir com um diretor que
Quem se levantará por mim contra os malfeitores? ou quem re­ fugisse, sem nenhuma possibilidade de recorrer à lei, como no caso
sistirá por mim contra os causadores de injustiças. ..? do ramo de Tewkesbury dos Malharistas de Bastidor, que tinham
O trono da injustiça, que ordena o mal por uma lei, encontrará confiado imprudentemente num Secretário que era “ aparentemente
solidariedade em ti?
Eles se unem contra a alma dos virtuosos, e condenam o sangue
73. Outros juramentos se baseavam cm Ezequiel XXI (ver A Formação da
inocente. Classe Operária Inglesa, vol. II, pp. 278-79). Números XXX, vers. 2, e
Deuteronômio XXIII, vers. 21-3. Ver E. J. Jones, “Scotch Lattle and Early
Trade Unionism in Wales", Econ. Journal (Suplemento), 1926-9, I, pp.
72. Leeds Mercury, 15 de dezembro de 1832. Ver também ibid., 4 de agosto,
389-91.
8 de dezembro. 22 de dezembro de 1832, e (sobre Tester) Leeds Times,
74. Leeds Times, 19 de abril de 1834. O Presidente da Mesa, Thomas
7 e 14 de junho de 1832. Citei extensamente essas passagens, pois modificam Barlow. acrescentou: “Fico contente em saber que, há algum tempo, vocês
a versão, sob outros aspectos admirável, em Cole, Attempts ai General deixaram dc prestar juramentos".
Union, cap. 7 e 16.
79
78
um Homem de Capacidade e feitio religioso’'.75 Se os diretores
tornou conhecido, espera-se que esses homens orientem o que deve
geralmente trabalhavam sem remuneração, já as reuniões de comitê ser feito, e eles realmente orientam — simplesmente com uma
eram bem azeitadas com cerveja paga pelos fundos da associação. insinuação. Com isso, os homens agem; e cada um e todos sus
As funções sociais dos sindicatos eram importantes, mas há provas tentam os que podem ser mandados embora do trabalho. (...)
suficientes em antigos livros de contas que sugerem que não era Os que orientam não são conhecidos pelo conjunto, e nem um
infundada uma das reclamações de |ohn Tester: em vinte talvez conheça a identidade de quem orienta. É regra
entre eles não fazerem nenhuma pergunta, e outra regra entre os
Vi montes de membros de comitê que pareciam não ter nenhuma que sabem mais é, sc interrogados, não responder a nenhuma
(...) qualificação, além de uma extraordinária capacidade de pergunta ou dar uma resposta que seja enganadora.78
engolir. Seu poder de deglutição era altamente prodigioso.76
Além disso, foi em condições de ilegalidade que os sindica­
Não há razão para que a tradição secreta não pudesse perten­ listas recorreram à ação direta com uma extrema freqüência, a fim
cer ao botequim, da mesma forma que pertencia à reunião nas de impor exigências que não poderíam ser levantadas em termos
charnecas a altas horas da noite. Não se encontrariam fidalgos em legais nem em negociação aberta. Isso se deu de inúmeras maneiras.
nenhum desses lugares, e um estranho seria notado logo que en­ Em suas formas mais brandas, foi pouco além de uma forte pressão
trasse no bar. Deve-se ver o sigilo como algo mais que juramentos moral. O artífice que trabalhasse abaixo do preço estabelecido pelo
e cerimônias: ele incluía, durante os anos de guerra e imediato sindicato seria boicotado, o empregado “ ilegal” descobriría que
pós-guerra, todo um código de conduta, quase que uma modali­ suas ferramentas tinham se “ perdido” ou se veria “multado” pelos
dade de consciência. No trabalho, nenhum líder ou representante seus colegas de oficina. Em Spitalfields, cortariam a seda no tear;
precisaria chegar ao patrão com as reivindicações dos empregados: nos distritos laníferos, fariam talhos nas peças; no setor de malha­
far-se-ia uma insinuação, algo seria assoprado aos ouvidos de um ria de bastidores, desapareceríam os anéis de madeira, peças essen­
ciais do tear de malha. Os fura-greves ou maus patrões saberíam que
supervisor, um bilhete não-assinado seria deixado para que o mes­
estavam sendo vigiados: um tijolo podia atravessar a janela ou
tre o lesse. Se as reivindicações não fossem atendidas, não haveria
talvez fossem atacados numa viela à noite. Em Gloucestershire,
necessidade — na oficina pequena — de uma greve formal; os
tecelãos fura-greves foram levados escarranchados na viga dos seus
empregados simplesmente cairiam fora ou, um a um, pediríam as próprios teares e jogados dentro de uma lagoa. Às vezes, empre­
contas. Embora se pudesse saber quem eram os líderes, também gavam-se formas ainda mais violentas de intimidação: há uma infi­
podia ser impossível conseguir provas sobre suas atividades. “ Eles nidade de casos, registrados em Glasgow, Dublin, Manchester e
agora se tornaram tão cautelosos”, escreveu um magistrado de Sheffield, de assassinatos, agressões com vitríolo ou cargas de pól­
Wakefield em 1804, “ que não é necessária nenhuma greve geral vora lançadas dentro de oficinas. Os casos mais sensacionais eram
ou contato com os mestres: as coisas se fazem de modo perfeita- amplamente divulgados, e geravam na mente de pessoas de classe
mente compreensível para os mestres, mas também igualmente média até simpatizantes um profundo medo ao caráter violento dos
impossível de se apresentar como prova de uma associação” .77 sindicatos secretos.79
‘‘Existem uns poucos”, escreveu Place vinte anos depois:
No mais das vezes, essa ação direta era cuidadosamente man­
tida dentro dc limites impostos pela cultura moral da comunidade
que têm a confiança dos seus companheiros, e quando se dis­
trabalhadora. O fura-greve era visto como um intruso que amea­
cutiu sobre qualquer assunto relativo ao ofício, seja no grêmio
ou numa sala isolada, numa oficina ou num pátio, e o assunto se çava tirar o pão da boca dos inocentes e dos que trabalhavam

78. Webbs, op. cit., pp. 86-7.


75. Nottingham City Archives, 3984 1, 22 de junho de 1812. 79. Um exemplo excelente desse medo profundamente arraigado pode se
76. Leeds Times. 7 de junho de 1834. Para exemplos, ver Postgate, op. cit., encontrar no tratamento dispensado pela Sra. Gaskell aos sindicatos em
pp. 21-2. sua compassiva Mary Barton (1848).
77. Aspinall, op. cit., p. 93.
81
80
duro; mas, ainda que ninguém desperdiçasse lágrimas lamentando-o Finalmente, ele encontrou em Joseph Hume um Membro sufi­
por ter sido atacado e ter ‘‘recebido uma lição” , o assassinato ou cientemente capaz, perseverante e da confiança dos Ministros, para
a mutilação não recebería nenhuma aprovação moral. O luddismo conduzir a questão da revogação na Câmara. Formou-se uma Co­
foi um prolongamento desse tipo de ação direta, mas também foi missão Selecionada, abarrotada de defensores. Fora da Câmara,
cuidadosamente mantido dentro do mesmo código tácito. Mesmo Place instalou um QG permanente para o movimento sindical,
no código mais rude das vilas mineiras e portos como Sunderland preparando as melhores testemunhas e enviando quantidades de
e North Shields, onde a manifestação desordeira e o motim tinham provas a Hume; em 1824, foi apresentado um Projeto de Lei, se­
precedência sobre formas mais assentadas de organização, a vio­ guindo a estratégia do taisez vous, tão silenciosamente que mesmo
lência ainda se continha dentro de limites mais intuídos do que seus defensores mais firmes foram aconselhados a ficar quietos.
definidos. Esse Projeto não só revogava as detestáveis Leis, como também
Paradoxalmente, a persistência do sigilo e ocasional violência excluía explicitamente os sindicalistas de processos por conspiração
reforçou os argumentos favoráveis à revogação das Leis de Asso­ sob o direito comum. Seguiu-se uma onda de greves e sindicaliza-
ciação. O argumento de Francis Place é conhecido: ção aberta, e em 1825 os patrões e o Governo contra-atacaram,
indicando uma nova Comissão que, esperava-se, recomendaria a
As leis contra associações (...) levavam [o povo trabalhador] a
reinvestidura da legislação punitiva. Mas, uma vez mais, Place e
quebrar e desrespeitar as leis. Faziam-nos suspeitar de qualquer
uni que oferecesse seus serviços. Faziam-nos odiar seus patrões Hume empenharam-se incessantemente em resistir ou modificar tal
com um rancor que só elas conseguiríam provocar. E faziam-nos legislação; choveram petições de todo o país: as ante-salas da Câ­
odiar os membros de sua própria classe que se recusassem a se mara ficaram apinhadas de delegações que pediam para prestar
unir a eles, a ponto de tentarem sinceramente fazer-lhes mal.80 depoimentos. No caso, a Emenda de 1825 endureceu a legislação
a ponto de transformar em delito quase todas as formas de per­
E a versão pessoal de Place sobre a agitação vitoriosa pela suasão ou intimidação dos não-sindicalizados, mas conservou as
sua revogação foi repetida tantas vezes (e de modo tão acrítico) principais conquistas: o sindicalismo e as greves, enquanto tais,
que agora se tornou lendária. Segundo ela, logo depois do fim das não mais constituíam crime.82
Guerras, ele começou, quase que unilateralmente, a agitar a opinião Essa versão não é falsa. A realização de Place foi uma proeza
dentro e fora da Câmara. Encontrou pouco apoio e certa resistência notável de manipulação inteligente e pressão imensamente dedicada
por parte dos próprios sindicalistas: e bem informada. Não se deixou de lado nenhum ponto de van­
tagem ou risco. Ele explorou totalmente o fato de estar tratando
Os trabalhadores têm sido excessivamente enganados para se dis- com uma Câmara cheia de fidalgos que achavam entediantes as
porem a confiar em alguém que não seja bem conhecido por eles. questões sindicais, sendo que alguns desprezavam os interesses ma-
Normalmente astutos e desconfiados de todos os que estão acima nufatureiros, outros tinham convertido o laissez-faire em dogma
do seu nível de vida, e não tendo nenhuma expectativa de qual­ inquestionável e a maioria era indiferente ou confusa quanto aos
quer alívio, e muito menos dc qualquer possibilidade de revoga­
problemas. Mas a estória há muito espera um reexame. E esses
ção das leis, não conseguiam se convencer de que minhas men­
sagens tivessem algum valor para eles, e portanto não se impor­ pontos têm de ser levados em consideração.
tariam minimamente com elas, muito menos para prestar infor­ Em primeiro lugar, os sindicalistas tinham razões para sus­
mações que poderíam, achavam eles, ser usadas algum dia contra peitar de Place. Seu rancor fora suscitado, não só pelas Leis de
eles. Eu os entendia plenamente, e não me afastei do meu propó­ Associação, mas também (e talvez ainda mais) pela revogação ou
sito e nem me ofendi com eles. Estava decidido a servi-los o substituição simultânea de toda a legislação que protegia os seus
máximo que pudesse.81
82. A íntegra do relato de Place está em Wallas, op. cit., cap. 8; Webbs.
80. Wallas, op. cit., p. 239. op. cit., cap. 2; Postgate, op. cit, cap. 2.
81. lbid., p. 204.
83
82
interesses próprios.83 Mas tanto Place como Hume eram adeptos Os Webbs, mais cautelosos, observaram que o Projeto de Lei era
devotos da “ economia política” ortodoxa, e ajudaram ativamente “elaborado” , revogando as Leis de Associação, mas “ substituindo-
a desmantelar ioda a legislação que restringia a “ liberdade” do as por um complexo mecanismo para regular o trabalho por tarefa
capital ou do trabalho. Assim, em julho de 1812, Gravener Henson, e resolver disputas trabalhistas” . “ Algumas dessas propostas eram
que vinha fazendo pressões, frente a uma sólida oposição, pela meritórias antecipações da futura legislação fabril”, prosseguiam
aprovação segura de um Projeto de Lei de proteção aos malharistas eles, “ mas a época não estava madura para tais medidas”. A seguir,
de bastidor, respondeu desoladamente ao comitê de Nottingham: elogiavam Place pela sua “grande sagacidade política” em empregar
“O Sr. Hume opôs-se ao nosso Projeto de Lei com base nos argu­ técnicas fabianas particularmente tortuosas para conseguir que
mentos do Dr. A. Smith de não interferir no Comércio. . A Henson e Moore fossem afastados do caminho.85
anulação das cláusulas sobre o aprendizado em 5 Eliz. c. 4 foi Realmente, a “ sagacidade política” de Place era tanta que
ativamente maquinada por Place. O comitê dos mestres manufatu- estava convencido de que as Leis de Associação eram a causa, não
reiros que organizaram a campanha para a revogação (1813-14) só de clandestinidade e desmandos, como também das greves e do
tinha como presidente Alexander Galloway, o ex-Secretário Adjunto próprio sindicalismo. Influenciado pela sua experiência pessoal em
da SLC, cuja fábrica de Smithfield era agora o principal centro pequenas alfaiatarias, ele imaginava que, se os mestres e os empre­
de manobra de Londres. Seu secretário, John Richter, foi por anos gados tivessem condições de liberdade total, cada mestre resolvería
um dos mais íntimos associados de Place. A questão fora dura­ os problemas de modo mais ou menos amigável com seus traba­
mente contestada pelos sindicatos, e foram encaminhadas centenas lhadores, as leis da oferta e demanda regulariam o preço da mão-
de petições a favor da manutenção ou ampliação da regulamenta­ de-obra e, nuns poucos casos, a arbitragem dos magistrados deci­
ção da aprendizagem, com um total de 300.000 assinaturas. A diría as dificuldades. “ O assunto é realmente muito simples” ,
oposição dos trabalhadores (e de muitos pequenos mestres nos avisou a Hume, quando lhe sugeria a forma de contornar Moore:
ofícios londrinos), Place descartou-a como “ fanatismo” — “ uma Revogue todos os decretos problemáticos e vexatórios, e em seu
prova da ignorância dos oficiais a respeito de seus interesses reais” . lugar decrete pouquíssimo. Deixe os trabalhadores e seus patrões
Portanto, não surpreende que, em 1824, os sindicalistas ainda com o máximo possível de liberdade para fazer suas negociações
“ suspeitassem das intenções” de Place e Hume.84 à sua própria maneira. Esta é a forma de evitar disputas. . .
Em segundo lugar, não é absolutamente verdade que Place
E, em 1825, escreveu a Burdett:
vinha conduzindo uma campanha “unilateral” . De fato, Gravener
Henson (que dispunha de autoridade muito maior entre os sindi­ As associações logo deixarão de existir. Os homens só se man­
calistas, principalmente a norte do Trent) fora tão além de Place tiveram unidos por tanto tempo devido à opressão das leis: sendo
que elaborou um Projeto de Lei e obteve o apoio de Peter Moore,
o Membro radical do Parlamento por Coventry, que apresentou o 85. Wallas, op. cit., pp. 207-10; op. cit., p. 100, n. 1. O Projeto dc Lei
Projeto em 1823. Place e Hume agiram rapidamente, tanto para de Moore (e Henson) certamente era massudo e taticamente mal avaliado.
sabotar o Projeto de Henson como para promover seu próprio Propunha revogar cerca dc 400 Leis e seções de Leis (incluindo a odiosa
Projeto. Place descartou genericamente as idéias de Henson, qua­ legislação sobre o Mestre e Serventes, empregada por muitos anos após
lificando-as de “ complicadas e absurdas” , um “ monte de absurdos” . a revogação das Leis de Associação), e decretar medidas: 1) obrigando os
patrões a entregarem aos empregados uma cédula formal onde vinham
especificados os salários e condições de trabalho, 2) limitando horas extraor­
83. Ver A Formação da Classe Operária Inglesa, vol. II, p. 95, e (sobre os dinárias, 3) abolindo o pagamento em gêneros, 4) facilitando ações judiciais
aparadores de tecido e malharistas) adiante, pp. 115*16. dos empregados contra seus patrões para a recuperação salarial, 5) estabele­
84. Records of the Borough of Nottingham, VIII, p. 156; Webbs, Histo- cendo mecanismos de arbitragem. Havia uma série de cláusulas menores
ry of Trade Unionism, pp. 61-2; T. K. Dcrry, “Rcpeal of the Apprenti- referentes a contratos anuais, malversação de materiais, instrumentos etc.
Ver Parliamentary Papers (1823), II, pp. 253 et seq.; Hansard, nova série.
ceship Clauses of the Statute of Apprentices”, Econ. Hisi. Rev., III (1931-2).
VIII, 366.
pp. 77. 85.

85
84
elas revogadas, as associações perderão a substância que as ci­
menta enquanto conjuntos, e se despedaçarão. Tudo ficará tão nada. Quando as Leis foram revogadas, fizeram grande uso de sua
em ordem como até mesmo um quacre desejaria. Nada conhece nova liberdade. Quando pareceu que poderiam voltar a ter vigên­
dos trabalhadores quem supõe que, deixados em liberdade para cia, em 1825, até o Governo ficou abalado com a tempestade de
agir por conta própria, sem serem levados a associações perma­
protestos, petições, reuniões e delegações de todos os ofícios.
nentes pela opressão das leis, vão continuar a contribuir com
“Homens vigilantes e inteligentes” de Lancashire, Glasgow, York-
dinheiro para experiências distantes e duvidosas, benefícios incer­
tos e precários.86 shire, Tyneside vieram acompanhar os trabalhos parlamentares.
Qualquer tentativa de redecretar as Leis de Associação, escreveu
a Place o líder dos fiandeiros de algodão de Lancashire, John
“ Esta é a forma de evitar disputas.. Era esta a chave de
Doherty, resultaria num movimento revolucionário generalizado.87
toda a força de pressão de Place, e foi um artigo de M’Culloch,
o doycn da “ economia política” , na Edinburgh Review, apresen­ Place foi o principal artífice da revogação, e com isso se imor­
tando argumentos parecidos, que levou muitos Membros do Parla­ talizou na história do sindicalismo. Isso ele merece. Mas nem por
mento a apoiar a revogação. Henson, evidentemente, não tinha isso devemos censurar os sindicatos por “ apatia” (como fizeram
tais ilusões. Mas, ele mesmo um trabalhador por encomenda, sabia os Webbs)88, nem subestimar a confusão quase hilariante da época.
por experiência própria que, para os tecelãos, malharistas de bas­ Place era um doutrinário, que queria a revogação das Leis por
tidor e outros, não bastava o sindicalismo; portanto, seu Projeto ofenderem a boa economia política (e também por se indignar com
de Lei procurava fornecer um mecanismo protetor explícito para o qualquer repressão aos trabalhadores). Não lhe passava pela cabeça
qual a Câmara dos Comuns talvez não estivesse “ madura”, mas “servir” ao movimento sindical através da consulta e do comum
do qual os trabalhadores por encomenda tinham uma necessidade acordo. Queria conduzir seus representantes da mesma forma como
gritante. manipulava os Membros do Parlamento: “ Eu sabia muito bem que,
se era para servi-los ( ...) devia ser sem a sua concordância, à
A reação dos sindicalistas aos acontecimentos de 1824 e 1825 revelia deles”.89 Os sindicalistas, por sua vez, fizeram uma avalia­
agora parece mais inteligível. Viram o Projeto de Lei de Henson ção sobre ele: viram que tinha boa fé e era influente, e deram-lhe
deixado de lado por manobras de indivíduos que, sabidamente, um apoio limitado, embora não fosse o Projeto de Lei que preten­
tinham se oposto antes às reivindicações sindicais e mostravam ter diam. d quase certo que Place tivesse razão, e que o Projeto de Lei
algum entendimento com o Governo. Daí a decidida relutância em de Henson jamais conseguiría tramitar na Câmara, da mesma forma
apoiá-los nas primeiras etapas, e quando eles se apresentaram para como ocorreu dez anos depois, com o Projeto de Lei de Maxwell
prestar declarações perante a Comissão de Hume, Place se deparou e Fielden para a regulamentação dos salários dos tecelãos. Por
com inúmeras reservas: outro lado, Place estava redondamente enganado quanto às pro­
váveis conseqüências da revogação; em parte, foi devido à própria
Os trabalhadores não foram facilmente conduzidos. Foi preciso
grande cuidado, cautela e paciência para não haver um choque
com seus preconceitos. (...) Estavam cheios de falsas idéias, todos 87. Wallas, op. cit., pp. 213-4, 228; Webbs, op. cit., pp. 106-7; Reports
atribuindo suas desgraças a causas erradas. (...) Todos espera­ o/ Select Committee on Artizans and Machinery (1824). passim.
vam um aumento grande e súbito dos salários com a revogação 88. Já em janeiro de 1824, o Black Dwarf lançou um apelo geral a
petições em apoio à revogação; jorraram inúmeras petições dessas, vindas
das Leis de Associação; nem um deles fazia a mínima idéia da de grêmios profissionais de todo o país durante os primeiros meses de 1824.
relação entre salários e população... Seria interessante especular até que ponto membros do Governo, como
Huskisson, toleraram o Projeto de Hume, como forma de se livrar do de
Quando viram o que Place pretendia, deram-lhe apoio, não Peter Moore. Ver Black Dwarf, 17 de janeiro de 1823; Mechanics' Magazine.
24 de janeiro, 7 de fevereiro de 1824; Journals of the House of Contmons,
entusiasticamente, mas seguindo o princípio do antes-pouco-do-que-
LXXIX, 1824; Huskisson no debate de 27 de maio de 1823, Hansard. nova
série, VIII (1823).
86. Wallas, op. cit., pp. 210, 217. 89. Wallas, op. cit., p. 204.

86 87
força desse engano (o de que a revogação evitaria disputas) que
Hume conseguiu obter apoio numa Câmara hostil ou indiferente. mo propriamente dito, entre 1811 e 1817, esteve restrito a três
Uma vez aprovada a revogação, ocuparam o espaço da nova áreas e profissões: o West Riding (e os aparadores de tecido), o
liberdade não as “leis” de M’Culloch, mas sim as organizações de sul de Lancashire (e os tecelãos de algodão) e o distrito de malharia
pessoas como John Gast e Doherty. Os sindicalistas foram buscar em bastidor centrado em Nottingham, incluindo partes de Leicester-
sua teoria, não em Place, mas em Thomas Hodgskin. Por um breve shire e Derbyshire.
período, vários sindicatos avaliaram favoravelmente o evangelho Entre esses três grupos, os aparadores ou cortadores93 eram
de Place sobre os interesses comuns de trabalhadores e patrões.90 trabalhadores qualificados e privilegiados, da aristocracia dos traba­
Mas, mal surgira a teoria da colaboração entre as classes, logo lhadores em lã, ao passo que os tecelãos e malharistas de bastidor
sofreu o ataque inicialmente do Trades Newspaper e, a seguir, dos eram trabalhadores por encomenda, com longas tradições artesa-
socialistas owenistas.91 Exceto em certos sindicatos artesãos, ela nais, passando por uma deterioração no seu síatus. Os aparadores
teve um recuo tão grande que praticamente não influiu no desen­ são os que mais se aproximam da imagem popular dos luddistas.
volvimento sindical por quinze ou vinte anos. É de se perguntar Estavam em conflito direto contra as máquinas que tanto eles como
seus patrões sabiam perfeitamente bem que iriam substituí-los.
se Francis Place, que tanto mexia seus pauzinhos, não foi ao final
O trabalho do aparador foi descrito em 1806 para a Comissão
ele mesmo um pauzinho mexido pelos sindicatos.
sobre o Ofício em Lã:

A tarefa de um acabador de tecido é pegar uma peça de tecido


IV. Malharistas e Aparadores de Tecido em seu estado bruto tal como vem do mercado ou tal como vem
da fábrica de pisoamento; em primeiro lugar, ele arrepia o tecido;
Isso é antecipar nossa narrativa. Pois os argumentos mais con­ depois, se é uma peça boa, molha-se e as pontas são aparadas; a
vincentes para a revogação das Leis de Associação tinham sido, em seguir, pega-se a peça e ela é felpada e alinhada; felpar é recobrir
primeiro lugar, a sua constante ineficácia para impedir o cresci­ a parte de baixo da lã depois de ter sido cortada úmida com
cisalhas, e isso se faz com cardas com cabo, uma em cada mão;
mento do sindicalismo e, em segundo lugar, o predomínio da ação depois disso, a peça é alinhada e estendida nas escapulas da ar­
sindical violenta, agudizada com o luddismo. Tentamos nos apro­ mação ( .. . ) e posta a secar; se é muito boa, vai receber três
ximar do luddismo a partir de três direções: a tradição obscura cortes depois de estendida na arm ação...
de certa “ clandestinidade” política, a opacidade das fontes histó­
ricas e as vigorosas tradições do sindicalismo ilegal. Agora devemos A seguir, aparava-se a parte de trás e examinava-se o tecido
analisar mais detalhadamente o contexto industrial em que se deu para verificar as falhas; ele era então consertado, escovado, lim­
o luddismo. pado, passado e, conforme o caso, aparado pela última vez.94 O
Essa análise já existe,92 mas pode ser corrigida e complemen­
tada com evidência que surgiram em anos mais recentes. O luddis-
e cap. 9 e 10 sobre o luddismo de Nottingham e Yorshire. The Rising
of the Luddites, de Frank Peel, é o estudo regional (para Yorkshire) mais
90. Os cuteleiros de Sheffield enviaram a Place um belo presente, en­ vivido. Popular Disturbances and Public Order in Regency England, de
quanto que os fiandeiros de algodão de Lancashire realizaram um jantar F. O. Darvall, baseia-se amplamente, mas pouco imaginativamente, sobre
onde levantaram brindes a Hobhouse, Hume e Place, e também se ergueu os documentos do Ministério do Interior.
um brinde a "Os Manufatureiros de Algodão de Manchester, e possam a 93. Os dois termos eram intercambiáveis, embora "aparadores" (“croppers”)
paz e a harmonia reinar por muito tempo entre eles e seus trabalhadores". fosse mais corrente em Yorkshire, e “cortadores" (“shearmen") na Região
Ver Trades Newspaper. 24 de julho de 1825. Ocidental. Às vezes também se usavam os termos genéricos "trabalhadores
91. Ver adiante, cap. 4. em tecidos" (*cloth-workers") ou "acabadores de tecidos" (“cloth-dressers”).
92. The Skilled Labourer, dos Hammonds, continua a ser a melhor apre­ 94. Loc. cit., p. 296. Uma elucidação clara desses processos encontra-se
sentação de base para o luddismo, cap. 4, "The Cotton Workers", cap. 6, em W. B. Crump, The Leeds Woollen Industry, 1780-1820 (Leeds. 1931),
seção 4, “The Shearmen of Croppers", cap. 8, "The Framework Knitters", pp. 38-51.

88 89
aparador de tecido ou acabador de tecido fazia todos esses proces­
pára por mais ou menos tempo (...) conforme tenha a oportuni­
sos. Afora limpar, estender (ou esticar) e passar, a habilidade do dade de encontrar trabalho.97
aparador consistia no processo central, quando soerguia a superfície
ou “ felpa” do tecido penteando-o com cardas, e no aparamento Segundo outro relato, gastavam “o dobro ou o triplo de di­
feito com cisalhas manuais pesadíssimas (1,2 m de comprimento, nheiro na cervejaria do que o tecelão, o confeccionista ou o tintu-
com 18 kg). Ambas as operações exigiam experiência e habilidade. reiro” e eram “notoriamente os menos controláveis entre todos os
Além disso, embora os salários dos aparadores fossem regulamen­ empregados neste importante setor manufatureiro”.98
tados pelo costume a cerca de 5% do valor da peça final, “ podem Mas, ao mesmo tempo, tinham clara consciência de que seu
deixar uma peça 20 p. Cento melhor ou pior tendo o devido cuida­ status se tornara instável frente às máquinas que poderíam trans­
do e trabalho ou não”. Assim, encontravam-se numa posição de formá-los, quase que da noite para o dia, de uma elite em “ uma
negociação excepcionalmente forte.95 categoria de homens desnecessária à manufatura” . A carda mecâ­
No final do século 18, o acabamento do tecido se tornara um nica era uma invenção antiga; na verdade, boa parte do conflito
processo altamente especializado. Alguns grandes manufatureiros que levou ao luddismo girava em torno de um Estatuto de Eduardo
realizavam todo ele numa única “fábrica” , e Gott chegava a em­ VI. que proibia o seu uso. Era, essencialmente, um mecanismo
pregar oitenta aparadores em seu estabelecimento. Mas a maioria simples, com o qual, em vez de se soerguer manualmente a felpa,
dos negociantes compravam as peças inacabadas dos pequenos fa­ o tecido era passado por entre cilindros providos de cardas. Os
bricantes de tecidos, e encomendavam o acabamento a oficinas que aparadores (e alguns mestres de acabamento) sustentavam que a
empregavam “ quarenta, cinqüenta ou sessenta” oficiais especiali­ carda mecânica só se prestava aos tecidos mais grosseiros, rasgando
e forçando demais os tecidos de melhor qualidade; mas forçados
zados e aprendizes em Leeds, mas apenas cinco ou seis nas oficinas
demais eram os seus argumentos, ao tentar demonstrar que a espe­
menores de acabamento nas aldeias de West Riding. As estimativas
cialização manual era indispensável. A carda mecânica, no entanto,
para 1806 variam entre 3.000 e 5.000 aparadores de tecido em
ameaçava substituir o aparador em apenas uma parte do processo
West Riding (o segundo cálculo inclui os aprendizes), com 500
de acabamento. Mais recente, e cm suas implicações igualmente
mestres de acabamento. No oeste da Inglaterra, havia talvez um sérias, era a invenção da cisalhadeira — um aparelho com duas ou
terço desses números.96 mais cisalhas, montadas numa única armação, que podia ser apli­
Os aparadores, portanto, controlavam os processos de acaba­ cado à superfície do tecido, com uma facilidade que dispensava a
mento; como os penteadores de lã, estavam numa posição forte necessidade de artífices qualificados.
para se organizar e manter afastada a mão-de-obra não-qualificada. A luta contra a carda mecânica remonta ao século 18. Há
Constituíam a aristocracia dos acabadores de tecido de West muito empregada em algumas partes do oeste da Inglaterra, os
Riding e, em épocas de pleno emprego, podiam ganhar, nos pri­ acabadores de tecido não tinham se conformado com ela e, embora
meiros anos do século 19, até 30 xelins por semana. Tinham a no final do século 18 existissem umas poucas cardas mecânicas
fama de possuírem modos “ independentes” ou “ insubordinados” , em funcionamento em certas partes de West Riding, os aparadores
consciência política e gosto por divertimentos. “ O Aparador, estri­ tinham se organizado para impedir sua penetração em Leeds. Por
tamente falando, não é um empregado”, escreveu um correspon­ muitos anos, os aparadores tinham circulado entre Yorkshire e a
dente no Leeds Mercury: Região Ocidental, visto que sua qualificação permitia-lhes o des­
locamento, e nos anos 1790 a resistência à carda mecânica atingiu
Ele não se sente nem se chama como tal, mas sim como um aca­ um ponto crítico. Em 1791, os comerciantes de tecidos de Leeds
bador de tecido, e partilha muito mais da natureza de um sapa­ lançaram um manifesto público, anunciando sua intenção de intro-
teiro. marceneiro, alfaiate &c. (...) Como eles, ele vem e vai.
97. Leeds Mercury, 15 de janeiro de 1803.
98. Manchester Exchange Herald, 21 de abril de 1812, citado em Darvall,
95. "Observations on Combinations", 1799, P.C. A.152. or cit.. pp. 60-1, 106.
96. Committee on the Woollen Trade (1806), pp. 239, 289, 297.
91
90
duzir a nova maquinaria, e nos dez anos seguintes os aparadores
Pela plena certeza de que aqui suas ameaças seriam postas em
destruíram várias máquinas em Leeds. Em 1799, o Conselho Pri­
prática, caso qualquer negociante infringisse as prescrições dos
vado foi informado de que os aparadores tinham uma “ bolsa trabalhadores em tecidos, eu, nestes últimos nove meses, com
comum” com mais de 1.000 libras. Tinham força suficiente para minha influência pessoal, convencí a nível privado um ou dois
fechar uma oficina e: estabelecimentos, que tinham pensado em acrescentar às suas fá­
Um Trabalhador que, por Gratidão, se atrever a ficar com o bricas uma carda mecânica ou uma cisalhadeira, a desistirem pelo
Mestre na hora da necessidade vira um Isolé proscrito. Onde momento, pois do contrário estou firmemente convencido de que
houver um Homem com Cédula, aquele nunca conseguirá arranjar teríamos a deplorar aqui desmandos tão medonhos como os que
trabalho até renunciar à sua neutralidade e pagar a penalidade foram praticados no Oeste.101
que quiserem lhe impor.
Esses “ desmandos medonhos” tinham atingido seu clímax na
Se qualquer mestre tentasse eliminar qualquer um dos processos
Região Ocidental nos últimos anos do século 18. Grupos de 1.000
de acabamento, os aparadores insistiríam em uma multa a ser paga
a 2.000 amotinados tinham atacado as odiadas máquinas, e em
para seus fundos. Se os mestres devolvessem um trabalho por
dezembro de 1797, em Somersetshire:
estar malfeito, o caso seria decidido por uma comissão de traba­
lhadores. Uma carda mecânica em Leeds foi destruída na presença
de “centenas” de testemunhas, mas, apesar das grandes recom­ Duzentos ou trezentos homens com os rostos pintados de preto
& armados com Cassetetes invadiram os Estabelecimentos de um
pensas oferecidas, não se encontrou ninguém que apresentasse um
Afiador de Cisalhas ( ...) a cerca de 4,8 quilômetros de Froome,
depoimento contra os empregados:
e demoliram Cisalhas no valor de trinta libras.102
O sistema existe mais por concordância geral com as poucas re­
gras simples do seu sindicato do que por qualquer forma escrita, Em Wiltshire, porém, há alguns indícios de que os aparadores
c para escapar a qualquer possibilidade de Condenação, agora se
já estavam enfraquecidos pela posição declinante do seu próprio
constituíram num Clube Geral dos Descontentes."
setor em comparação com West Riding. Com a dispensa militar
Esse Clube Geral dos Descontentes foi provavelmente a primei­ de cisalhadores durante o breve período de paz, o problema do
ra forma que assumiu “a Instituição” ou “ Comunidade dos Fabri­ desemprego se tornou mais agudo. “ Um Soldado que Voltou à sua
cantes de Tecidos” (1802). Seu quartel-general ficava em Leeds. Esposa e Órfãos em prantos” escreveu de Bradford (Wilts), em
mas foi Wiltshire que, em 1802, virou o centro onde se deram incên­ 1802, a um Membro do Parlamento:
dios de máquinas e amotinamentos. Foi, talvez, um sinal mais de
desespero do que de força. Em Leeds, os aparadores estavam tão Sabemos que os que têm Fábricas informaram aos nossos grandes
organizados que nem se punha em questão o emprego de cardas homens e Ministros no Parlamento o número de pobres que em­
mecânicas.99100 Em agosto de 1802, o Prefeito de Leeds escrevera pregam, esquecendo ao mesmo tempo quantos mais empregariam
ao Conde Fitzwilliam: se usassem o trabalho manual como costumavam fazer. Vemos o
asilo dos Pobres cheio de Meninos crescidos furtivos. ( .. . ) Estou
99. “Observations on Combinations", P.C. A.152. Ver também Committee informado por muitos de que haverá uma Revolução e que exis­
on the Woollen Tracle (1806), em esp. pp. 235, 264, 369; W. B. Crump. tem em Yorkshirc ccrca de 30 mil pessoas numa Sociedade de
op. cit., pp. 46, 317-8, 327; Hammonds, The Skilled Labourer, pp. 171-80; Correspondentes. ( ...) O incêndio de Fábricas ou o ateamento de
Aspinall, op. cit., pp. 40 ss. fogo à propriedade das Pessoas sabemos que não estão certos.
100. Existiram, porém, por vinte anos, cardas mecânicas nas vizinhanças
de Huddersfield, “de uso totalmente paralisado" por “um arrcete dos
trabalhadores" em 1802: Cookson a Fitzwilliam. 30 de agosto de 1803. 101. Aspinall, op. cit., p. 52; Fitzwilliam Papers, F. 45(d).
Fitzwilliam Papers, F. 45(d). 102. Bowen ao Duque de Portland, 20 de dezembro de 1797, H. O. 42.41.

92 93
mas a Fome obriga a Natureza a fazer aquilo que o indivíduo não Foi aqui que a flagrante opressão classista das Leis de Asso­
faria. . .103104 ciação abateu-se sobre eles em todos os aspectos. Numa época em
que o direito comum sobre a conspiração ou o 5 Elizabeth c. 4
Um fabricante de tecidos de Gloucestershire foi o destinatário vinha sendo empregado para esmagar a ação sindical, todas as
de uma carta mais alarmante: tentativas de aplicar uma lei estatutária favorável aos interesses
dos trabalhadores redundaram em fracasso ou prejuízos financeiros.
Estamos Informados que você trouxe Máquinas de Cisalhamento Os trabalhadores em lã do oeste da Inglaterra coletaram assinatu­
se se não as Puser Abaixo em Quinze Dias Nós as poremos ras autorizando procuradores a instaurar processos contra cardas
Abaixo para você Nós o Danaremos Cachorro infernal. E Perante
mecânicas e empregados sem aprendizagem, mas nenhum conseguiu
Deus Todo-Poderoso nós poremos abaixo ,-jtodas as Fábricas que
tiverem Qualquer Máquina de Cisalhamento dentro Nós vamos ganhar a causa.106 Os mestres, porém, sentiram-se perturbados o
arrancar à faca Todos os Malditos Corações daqueles que tem suficiente para fazer petições pela revogação de toda a legislação
[essas máquinas] e faremos com que os outros os comam, pois protetora referente à indústria lanífera. Os trabalhadores em lã de
se não, receberão o mesmo tratamento. Yorkshire entraram na mesma luta judicial. Foram grandes os
gastos para empregar advogados que compareceriam à Câmara em
Por mais obsoleto que pudesse ser o estatuto de Eduardo VI seu nome, em 1802-3, e enviar testemunhas que prestariam depoi­
proibindo as cardas mecânicas, é significativo que os aparadores mentos a favor dos oficiais. O projeto de Lei dos mestres foi sus­
fossem cientes dele e sustentassem que a proteção contra substitui­ tado em 1803, e se perdeu num Parlamento preocupado com a
ções por máquinas era não só seu “direito”, mas também seu retomada da guerra com a França. Por anos seguidos, um Projeto
direito constitucional. Também conheciam a cláusula do Estatuto de Lei de sustação anual tramitava pela Câmara praticamente sem
dos Artífices elisabetano que impunha um aprendizado de sete anos discussões, suspendendo toda a legislação protetora a favor dos
e um Estatuto de Felipe e Maria que limitava o número de teares trabalhadores, enquanto que a Instituição semilegal incorria em
que podiam ser empregados por cada mestre. Não só as conheciam: intermináveis despesas, tentando resistir ao avanço dos mestres.
tentavam fazê-las valer. Em 1802, solicitaram o apoio da opinião Uma das testemunhas dos aparadores declarou, em 1806, que só
pública em West Riding e ganharam grandes simpatias em sua os aparadores e tecelãos de Yorkshire tinham levantado de 10.000
disputa com Gott. Sua oposição às novas máquinas não se mostra a 12.000 libras para custas judiciais e comparecimentos ao Parla­
impensada nem absoluta; existiam propostas no ar para a intro­ mento nos últimos três anos.
dução gradativa da maquinaria, com outro emprego para os ho­ Enquanto isso, os ânimos se levantavam e o apoio aos apara­
mens substituídos ou uma taxa de 6 penies por jarda (0,914 m) dores crescia. Em Yorkshire, o Instituto se transformara numa
de tecido acabado a máquina, a ser utilizada como fundos para os enorme organização. Não só os aparadores declaravam contar com
desempregados à procura de serviço. Os aparadores parecem ter a participação de quase 100% da categoria (“ Imagino” , afirmou
alimentado uma certa esperança de uma negociação geral dentro uma testemunha, “ que não haja nem vinte trabalhadores em Teci­
do ofício, e ficaram sobretudo indignados com a atitude de uns dos no condado de York que não estejam na instituição”), como
poucos mestres, motivados por “ Vingança e Avareza”, que pro­ ainda muitíssimos pequenos mestres e tecelãos vinham contribuindo
curavam impor sua superioridade com a “ consciência da ( ...) para seus fundos. Quando seus livros foram apreendidos em 1806.
facilidade com que a lei favorece a condenação de associações evidenciou-sc que muitos outros grupos de trabalhadores ou per­
ilegais”.105 tenciam à Instituição ou tinham recebido subsídios dos seus fundos:

103. Hammonds, op. cit., pp. 172-3. 106. Ver E. A. L. Moir, op. cit., pp. 254 e 258-9; W. E. Minchinton.
104. D. M. Hunter, op. cit., p. 21. "The Beginnings of Trade Unionism in the Gloucestershire Woolen Indus-
105. Ver as interessantes cartas de “Um Observador" e “Um Comer­ try", Trans. Bristol and Glos. Archaeol. Soc., LXX, 1951, pp. 126 et seqr,
ciante" em Leeds Mercury, 15, 22, 29 de janeiro de 1803. Rules & Articles of the Woollen-Cloth Weavers Society (Gloucester, 1802).

94 95
carvoeiros, pedreiros, classificadores de lã, fabricantes de tecidos, ordem. Ás petições foram vistas como provas de uma conspiração.
carpinteiros, serradores, trabalhadores em linho, sapateiros, párocos, As testemunhas enviadas a Londres pelos aparadores de tecido e
marceneiros, confeccionadores de padrões e fabricantes de papel, ao mantidas com tantas despesas foram interrogadas como se fossem
passo que os fiandeiros de algodão de Manchester fizeram e recebe­ criminosos (“ Eu pretendo dizer a verdade até onde sei”, reclamou
ram pagamentos. Na verdade, em 1806, o caso dos aparadores quase um aparador, “ meu caráter é meu pão”). Crime escandaloso foi
que se diluira dentro das reclamações e reivindicações generalizadas considerado o fato de terem coletado dinheiro fora de suas próprias
da comunidade trabalhadora. Para os aparadores, a queixa era fileiras e terem tido contato com os trabalhadores em lã do oeste.
específica: “ agora é provável que as cardas mecânicas e as cisa- Foram obrigados a revelar os nomes dos seus colegas dirigentes.
lhadeiras se generalizem; se se deixar que continuem, muitas cen­ Seus livros foram apreendidos. Suas contas foram esquadrinhadas.
tenas de nós ficaremos sem pão”. Para os tecelãos, o problema era A Comissão abandonou toda e qualquer aparência de imparciali­
mais amplo: seria possível tornar a aplicar as obsolescentes cláu­ dade jurídica, e se converteu num tribunal de inquérito. “ A Sua
sulas de aprendizagem do 5 Elizabeth c. 4, de modo a conter o Comissão nem precisa fazer notar” , informou ela à Câmara dos
influxo do trabalho não-qualificado? Todos os artesãos viam-no Comuns:
como um caso de argüição sobre a constitucionalidade da lei, que
indicaria a restauração ou anulação total do velho código traba­ que tais Instituições são, em suas tendências ultimas, ainda mais
lhista de proteção ou arbitragem, o qual, por si só, concedia uma alarmantes de um ponto de vista político do que de um ponto de
certa esperança de defesa legal contra o impacto frontal dos cortes vista comercial...
salariais ou o enfraquecimento da força de trabalho. Para muitos
pequenos mestres — milhares deles estavam entre as 39.000 assi­ A Comissão viu na organização dos aparadores “a existência de
naturas das petições, em 1805, a favor de um Projeto de Lei para um Plano sistemático e organizado, ao mesmo tempo tão eficiente
limitar o numero de teares, eliminar cardas mecânicas e impor o e tão perigoso, tanto pelo grau de sua força como pela facilidade
aprendizado — , o que se mostrava era que o próprio sistema do­ e sigilo com que (. . .) essa força pode ser chamada à ação. . .”
méstico estava em questão. Em 1806, quando foi indicada uma Era isso que exigia “ as considerações mais sérias e deliberadas do
nova Comissão para investigar sobre o Ofício em lã, apareceram Parlamento” .108
delegações impressionantes, para prestar depoimentos, vindas da A Instituição, evidentemente, passou para a clandestinidade.
maioria das seções de trabalhadores e pequenos mestres em lã Por mais dois anos, foram aprovados Projetos de Lei de suspensão.
tanto de Yorkshire como do oeste. Todas as testemunhas concor­ Em 1808, os aparadores fizeram novas petições, declarando que
davam na aversão geral ao sistema fabril; “ admitem francamente” , “a grande questão referente ao uso daquela Máquina ( .. .) tendo
anotou a Comissão, “ que querem manter esta Lei [isto é, a do sido levada a tantas Sessões do Parlamento, as Despesas os afli­
aprendizado] por tender a obstruir o avanço do sistema Fabril, e giram muito” . Finalmente, em 1809, foi revogada toda a legislação
assim impedir seu crescimento” . A ameaça da carda mecânica era protetora na indústria lanífera — abrangendo o aprendizado, a
apenas um elemento dentro de uma reviravolta generalizada contra carda mecânica e o número de teares. Agora estava aberto o ca­
os grandes patrões, que vinham rompendo com os costumes dos minho para a fábrica, a carda mecânica, a cisalhadeira, o emprego
trabalhadores e destruindo um modo de vida estabelecido.107 de mão-de-obra juvenil e não-qualificada. Finalmente estava blo­
Seria uma deplorável atenuação afirmar que as testemunhas queado o caminho para qualquer reparação constitucional. Se, entre
dos trabalhadores perante a Comissão de 1806 receberam uma as fileiras dos aparadores. existisse uma facção “ constitucional” e
acolhida gelada. Elas e seus advogados foram intimidados e amea­ uma “ luddista”, esta teria levado a palma. Já em 1805, o Depar­
tamento de Seguros Cambiais Reais tinha recebido uma carta
çados pelos defensores do laissez-faire e tribunos antijacobinos da
anônima:

107. Committee on the Woollen Trade (1806), pp. 232, 239, 277, 347.
108. Committee on the Woollen Trade (1806), p. 244, Apêndice, pp. 17-8.
355, Apêndice 13: Hammonds, op. cit.. pp. 180-6; Aspinall, op. cit., pp. 66-7.

96 97
Srs. Diretores:
excludente, mas como táticas empregadas simultaneamente. É o fio
Numa reunião geral, mtis secreta, dos Presidentes de todos os constitucional que temos de desemaranhar em primeiro lugar.
Comitês dos trabalhadores em tecidos deste condado [i.é., Y ork],
decidiu-se fazer votos de que os senhores (para seu próprio bem) O processo geral com que a pobreza se abateu sobre os ma­
não segurem nenhuma fábrica onde exista qualquer maquinaria lharistas de bastidor durante as Guerras segue linhas muito seme­
que diga respeito aos trabalhadores em tecidos. Pois decidiu-se lhantes às que rebaixaram os tecelãos. O tear de malha, porém,
novamente fazer petições ao parlamento pelos nossos direitos, e. era uma máquina mais cara do que a maioria dos teares manuais.
se não nos forem concedidos, detendo a maquinaria referente a O setor era controlado pelos comerciantes de malhas; a manufatura
nós. estamos determinados a nos concedê-los por nós mesmos, era feita por malharistas que trabalhavam em casa ou em pequenas
mas sem desejar que os senhores percam com isso. oficinas de mestres de malharia. Embora alguns malharistas111
Por ordem dos tivessem seus próprios teares ou bastidores, estes, depois de 1800,
Trabalhadores em Tecidos.109 passaram cada vez mais para as mãos dos negociantes ou especula­
dores independentes que investiam pouco ou muito em teares, que
Depois de 1806 e 1809, foram abolidos todos os vestígios da arrendavam de forma muito semelhante aos proprietários de bens
legislação que sugerissem que o oficial em lã pudesse recorrer ao rurais. Assim, às reclamações gerais relativas aos cofres salariais
Parlamento, para defender seu status. Quando, nos anos estagnan- e costumes trabalhistas somava-se a reclamação contínua contra
tes e aflitos do Conselho das Ordens, alguns grandes patrões os aluguéis das armações. Os negociantes tinham, de fato, duas
apressaram-se em instalar a nova maquinaria, na esperança de alternativas para reduzir os salários: baixar o preço pelo trabalho
açambarcar, com mão-de-obra barata, o pequeno comércio que res­ ou aumentar os aluguéis dos bastidores. E, como na tecelagem em
tara, o luddismo apareceu com uma lógica quase inevitável. Para teares manuais, os mestres menos escrupulosos desestabilizavam as
os aparadores, Ned Ludd era o defensor do antigo direito, o pala­ condições em todo o setor.
dino de uma constituição perdida: Em 1811, existiam talvez 29.000 teares de malha no país, e
500.000 trabalhadores empregados dentro e em torno do setor de
Nunca deporemos as Armas [até que] A Câmara dos Comuns malharia.112 Embora subsistisse um pequeno bolsão do ramo em
aprove uma Lei para eliminar toda a Maquinaria prejudicial à Londres, seu lar do século 17, a indústria agora se concentrava
Comunidade, e revogue a que enforca Destruidores de Armações. largamente no triângulo Nottingham-Leicester-Derby. Como no se­
Mas Nós. Nós não pedimos mais nada — assim não dá — temos
de lutar. tor lanífero de Yorkshire, vinham crescendo umas poucas grandes
oficinas ou “ fábricas”, mas a grande maioria dos malharistas tra­
Assinado pelo General do Exército de Justiceiros
balhava em pequenas vilas industriais, em oficinas com três ou
Ned Ludd Escrivão
quatro bastidores. Ao contrário dos aparadores especializados, os
lusticeiros para sempre Amém.110 malharistas de bastidor eram trabalhadores por encomenda em
posição excepcionalmente vulnerável à exploração — como os tece­
No entanto, o sinal para o luddismo veio inicialmente dos lãos, olhavam para trás, para tempos melhores. Os relatos da
malharistas de bastidor, e não dos aparadores de tecido. Sua estó­ segunda metade do século 18 divergem, mas, de 1785 a 1805,
ria tem um complicador, que é o fato de que não existia nenhuma parece que havia um nível bastante alto de emprego, com salários
máquina odiosa em particular, como a carda mecânica, contra a semanais de 14 ou 15 xelins, por 12 horas de trabalho por dia.
qual pudessem se revoltar, e também porque, com eles, as estra­
tégias constitucionais e as luddistas não se apresentam de forma
111. Malharista Cstockinger") e malharista de bastidor (“framewarkknitern)
são termos intercambiáveis.
109. Ibid.. p. 312. Essa carta é inquestionavelmente autêntica, mas não 112. Relatos detalhados em Nottingham Archives, 3984 II, f. 29, sugerem
existem provas de que tenha sido autorizada pela Instituição. 29.355 empregados no ofício. W. Felkin, op. cit., pp. 239, 437, sugere 29.580
110. W. B. Crump. op. cit.. p. 230 armações em 1812. e 50.000 malharistas de bastidor.

99
Mas, na virada do século, o setor vinha enfrentando readaptações
seus salários inadequados o pagamento da costura, das agulhas,
difíceis. O tom sombrio da sociedade antijacobina levou a uma
do querosene, do transporte do serviço etc. Intermediários ines-
demanda decrescente pelas vistosas meias dos anos pré-revolucio-
crupulosos ou comerciantes não-autorizados, chamados “ vendedo­
nários, embora isso fosse, em certa medida, compensado pela de­
res ambulantes de malhas” , percorriam as aldeias convencendo os
manda crescente de malhas lisas e pela introdução gradual dos malharistas desempregados, ou os dispostos a poupar o tempo que
tecidos rendados a máquina. Os malharistas provaram uma dete­ levaria a entrega do seu serviço aos armazéns dos grandes comer­
rioração crescente em suas condições, e reagiram energicamente. ciantes, a trabalhar abaixo dos preços correntes. Mas as queixas
Como no caso dos tecelãos, encontrar-se-iam magistrados e mestres mais sérias eram contra os “ recortes” e os “ inexperientes” .
que atribuíam a insubordinação dos empregados ao “ luxo e licen-
ciosidade” estimulados pela sua antiga prosperidade: “ Entre os “Não existe uma maquinaria nova em Nottingham, nem em
homens, a discussão sobre política, a perseguição à caça ou a suas vizinhanças, contra a qual os trabalhadores possam dirigir
dissipação nas cervejarias substituía os deveres de sua profissão sua vingança”, escreveu o periódico radical de classe média, o
Nottingham Review:
durante a primeira metade da semana, e nos três ou quatro dias
restantes ganhava-se o suficiente para cobrir as despesas correntes”
As máquinas ou armações ( ...) são quebradas não por serem
— “ as ordens inferiores foram quase totalmente corrompidas por invenções novas (...) mas devido a artigos tecidos nelas que são
extravagância e depravaçâo dificilmente acreditáveis. . .” 113 de baixa qualidade, enganosos aos olhos, desonrosos para o ofício
As queixas dos malharistas eram complexas, e para enten­ e, portanto, prenhes das sementes de sua destruição.115
dê-las plenamente é preciso uma atenção minuciosa aos detalhes
do ofício.114 Nas Midlands fabricavam-se não só meias simples As meias (e outros artigos) recortadas eram feitas a partir de
grandes peças de malha, tecidas num tear largo, que então eram
ou de luxo, mas ainda luvas, suspensórios, mitenes, blusas finís­
recortadas na forma desejada e os artigos, a seguir, costurados
simas, calças compridas, cachecóis e diversos outros artigos; e
em ponto reverso.116 Eles eram baratos e — em comparação com
Leicester, onde se fazia um trabalho excelente, não foi tão dura­
o tradicional bastidor de malha — podiam ser produzidos em
mente afetada nos anos luddistas como Nottingham. Mas todas as série. Mas no ofício havia, por várias razões, um profundo despre­
queixas giravam em torno das várias formas como os negociantes zo por eles. Os oficiais, e também muitos mestres, alegavam que
de malhas menos escrupulosos vinham tentando economizar em o produto era muito inferior e que as costuras se desfaziam. Aos
mão-de-obra e baratear a produção. Em algumas aldeias, o “ paga­ olhos não-conhecedores, pareciam-se com o artigo verdadeiro, e
mento em gcncro” era tão generalizado que tinha substituído portanto podiam sair mais baratos do que as meias feitas “ de
quase que totalmente o pagamento em salários. O pagamento do maneira artesanal” — e isso numa época em que o colapso do
trabalho dependia de um complicado preço por peça que, nos mercado sul-americano e a estagnação geral provocada pelo Con­
tecidos rendados, baseava-se na precisão do número de batidas selho de Ordens tinham levado a uma queda da demanda. Além
entre urdidura e trama da renda; os trabalhadores queixavam-se disso, a baixa qualidade dos “ recortes” feria o orgulho do artífice
de que eram sistematicamente remunerados abaixo do preço, como pelo seu serviço e fazia com que os produtos do setor caíssem em
se fosse trabalho de qualidade mais grosseira, e que os mestres descrédito. E, ainda, essa queixa conduzia diretamente à queixa
contra os “ inexperientes”, isto é, o emprego de mão-de-obra
não utilizavam um aparelho chamado “grade”, que media a relação
não-qualificada ou de um número excessivo de aprendizes. As
entre trama e urdidura. Os malharistas tinham de descontar dos técnicas produtivas baratas estimulavam o influxo de mão-de-obra

113. Ver Hammonds, op. cit., pp. 222-6; Darvall, op. cit., pp. 28-34. 115. Nottingham Review, 6 dc dezembro de 1811.
114. Os resumos mais claros encontram-se em Darvall, op. cit., cap. 2, 116. Contra teares largos como esses, ver cartas em Leicester Journal.
e A. Temple Patterson, Radical Leicester, cap. 3. Ver também F. A. Wells. 13 de dezembro de 1811, Derby Mercury, 19 de dezembro de 1811.
History of the Midland Hosiery Trade (1935).

101
100
barata e nãoqualificada. A malharia de bastidor estava se degra­
mês, e dissipou-se a boa vontade que antes existira entre esses
dando em ofício ‘desonroso” . patrões, que eram reformadores políticos, e seus oficiais. No entan­
Os malharistas. tal como os aparadores de tecido, tinham to, há boas razões para supor que, em 1811-12, alguns dos nego­
uma longa história de defesa tanto constitucional como violenta ciantes que pagavam os preços costumeiros e não fabricavam
das suas condições. Carlos II outorgara uma Carta-Patente à Com­ “recortes” simpatizavam ativamente com os objetivos dos luddistas.
panhia dos Malharistas de Bastidor, embora no século 18 o setor se não com seus métodos. Pois o luddismo em Nottingham, assim
das Midlands tivesse efetivamente escapado às suas regulamen­ como em Yorkshire, era altamente seletivo. Só eram quebradas
tações e ela tivesse caído no esquecimento. Entre 1778 e 1779, as armações usadas para fabricar serviços de “ recorte” ou abaixo
houvera uma tentativa decidida de se conseguir um salário mínimo dos preços; quando as mercadorias eram lanhadas ainda no tear
legal. Quando o Projeto de Lei foi derrotado, seguiram-se motins ou ao serem apreendidas na carreta de transporte, o que se destruía
e destruição de bastidores. Em 1787, negociou-se uma lista de crain os “recortes”, ao passo que as que tinham as ourelas conve­
preços entre os negociantes e os oficiais, a qual se manteve em nientes não sofriam nenhum dano. Fez-se claramente a diferença na
certa vigência por vinte anos. De 1807 em diante, os salários bai­ canção Triunfo do General Ludd:
xaram. e os malharistas, uma vez mais, recorreram à agitação
constitucional. A velha Companhia de Malharistas de Bastidor foi O culpado pode temer, mas nenhuma vingança ele tenta
reativada, sendo que os oficiais pagavam a pesada taxa de admis­ Contra a vida ou Bens do honesto,
são. 13 xelins e 6 penies, e foram instaurados vários processos, Sua cólera se restringe inteiramente às armações largas
llm processo que argüia da constitucionalidade do “emprego de E aos que abaixam os velhos preços.
inexperientes” ganhou a causa, mas a pena de l xelim por danos, Esses Engenhos do mal estão condenados a morrer.
imposta pelo júri, foi insuficiente para conter outros infratores. Por voto unânime do Ofício
Os salários baixaram em um terço do seu nível de 1807. Em 1811. E Ludd que todas as oposições pode desafiar
Gravener Henson. que surgia agora como o líder destacado dos Foi feito o Grande executor.
trabalhadores, tentou uma das únicas ações judiciais registradas
contra os mestres sob as Leis de Associação. Ele apresentou provas Pode censurar o desrespeito do grande Ludd às Leis
de que alguns dos negociantes de malhas tinham se a’ssociado Quem nunca por um momento reflete
para reduzir os salários e tinham publicado suas resoluções na Que somente a vil Imposição foi a causa
imprensa de Nottingham. Os magistrados recusaram-se a ouvir o Que produziu esses infelizes efeitos.
querelante e o Escrivão da Cidade negou-se a emitir uma ordem Que o poderoso não mais oprima o humilde
de intimação.117 E Ludd embainhará sua espada conquistadora,
Assim como no caso dos aparadores, os malharistas de basti­ Suas queixas imediatamente serão reparadas
dor sentiam que toda a legislação que podia lhes dar uma certa E a paz rapidamente será restaurada.
proteção fora anulada ou ignorada, ao passo que todas as tenta­ Que os sensatos e os grandes prestem seu auxílio e conselho
tivas de fazer valer seus direitos através da ação sindical eram E nunca retirem sua assistência
ilegais. Embora alguns negociantes de malhas também quisessem, Até que o serviço bem executado ao preço tradicional
antes de 1811. a supressão dos “ recortes” e do “ emprego de Seja estabelecido pelo Costume e Lei.
inexperientes” , os alinhamentos de classe se endureciam mês a Então o Ofício, quando se encerrar esta árdua contenda,
Erguerá a cabeça em pleno esplendor,
E os inexperientes e os recortes e os subornos não mais
117. Hammonds, Town Labourer. p. 66; Skilled Labourer, p. 227; Dar- Privarão os trabalhadores honestos de pão.118
vall, op. cit., p. 43; Committee on Framework-Knitters' Petitions (1812);
|. D. Chambers. “The Framework-Knitters' Company", Economica, novem­
bro de 1929. 118. Cópia em H. Q. 42.119 (a melodia é a de “Poor lack").

102 103
Na verdade, os malharistas de bastidor reivindicavam uma
mento da aprovação do abusivo Projeto, a fim de que seus repre­
sanção constitucional até para a destruição de armações. Na Pa­
sentantes pudessem ser ouvidos pela Câmara. As respostas dos
tente concedida por Carlos II, havia uma cláusula que autorizava seus correspondentes revelam as enormes dificuldades para a for­
a Companhia dos Malharistas de Bastidor a indicar representantes mação de qualquer associação legal. De Leicester (20 de fevereiro
para examinar mercadorias e fazer em pedaços as malfeitas ou de 1812):
as fabricadas de modo enganador. Esses poderes os luddistas
agora assumiam como direitos. Em resposta a editais categóricos fulgou-se necessário pormo-nos sob a ampla Proteção da Lei e
contra suas atividades, lançaram uma CONTRADECLARAÇÃO, solicitar a Concordância dos Magistrados do Burgo (. . .) para
salpicada de “ Considerandos” e “ Sempre-ques”, sustentando como realizar uma reunião conjunta do Ofício...
intenção e direito seu “ quebrar e destruir todo e qualquer tipo
de armação que fabrique os seguintes artigos espúrios e qualquer De Derby (13 de março de 1812): “ Os Magistrados deste
armação que não pague o preço regular daqui por diante esta­ Burgo Podre não tolerarão que façamos uma Reunião do Ofício”.
belecido em acordo com Mestres e trabalhadores” . Seguia-se abai­ Em Londres, onde apenas cerca de 100 malharistas ainda conti
xo uma lista das armações e práticas abusivas.119 nuavam a trabalhar, os magistrados de Hatton Garden foram mais
prestimosos, mas (4 de março de 1812) “ dois policiais assistiram
A principal fase do luddismo de Nottinghamshire foi entre à nossa reunião para prestar satisfações ao magistrado de que
março de 1811 e fevereiro de 1812; neste período, ocorreram dois nossos procedimentos eram legais”. De Tewkesbury, um corres­
pontos altos, março-abril e novembro-janeiro, quando a destruição pondente respondeu (2 de março) que o magistrado tinha vetado
de armações espalhou-se para Leicestershire e Derbyshire. Nessa uma reunião e as cartas eram abertas. Thomas Latham (que, com
fase, foram destruídas, talvez, 1.000 armações, num valor de 6.000 Henson, encarregava-se da maior parte da correspondência) escre­
a 10.000 libras, e vários artigos foram danificados. Voltaremos a veu uma carta mordaz ao Prefeito de “ Tukesbury” :
esses acontecimentos. Mas em Nottingham, há uma interessante
oscilação entre o protesto luddista e o constitucional, e é possível Não sabe o Senhor que a Lei comumente chamada “A Lei de
que ambos fossem dirigidos — pelo menos até 1814 — pela Amordaçamento” morreu há muito tempo de morte natural?
mesma organização sindical, onde talvez luddistas e constitucio-
nalistas (provavelmente conduzidos por Gravener Henson) diver­ Ele devia tomar cuidado, pois o povo “ pode ser levado a
gissem em suas deliberações. A fase principal do luddismo encer­ cometer crimes, com o propósito de exercer sua vingança, quando
rou-se com a aprovação do Projeto de Lei que convertia a destrui­ não pode exercer seus direitos”. Apesar dessas dificuldades, for­
ção de armações em crime capital, caracterizada como “ nula” pela maram-se comitês em todos esses centros, e também mantinha-se
DECLARAÇÃO “de Ned Ludd”, visto ter sido obtida da “ ma­ correspondência com malharistas em Sheffield, Sutton-in-Ashfield,
Belper, Heanor, Castle Domington e Godalming.120
neira mais fraudulenta, interesseira e eleitoreira” . Contudo, a apro­
A intenção do Comitê de Nottingham era a de incentivar um
vação do Projeto em fevereiro de 1812 alarmou tanto os malha­
Projeto de Lei que desse assistência parlamentar aos malharistas.
ristas de bastidor que decidiram em caráter de urgência organi­
De alguns comitês veio a sugestão de uma petição por um Pro­
zarem-se numa associação semilegal, o “ Comitê Unificado dos
jeto de Lei sobre o salário mínimo. O Comitê de Nottingham resis­
Malharistas de Bastidor” , cujos documentos (apreendidos em 1814)
tiu a essas propostas:
em sua maioria ainda sobrevivem.
ü primeiro passo do Comitê de Nottingham foi iniciar uma É sabido que os governos não vão intervir na regulamentação do
correspondência com Londres, Leicester, Derby, e até Dublin, quantum de salários que deverão ser pagos por um certo quantum
Tewkesbury e Glasgow, e tentar (sem êxito) conseguir um adia­ de trabalho, porque a própria coisa em si levaria à prática odiosa

119. Lonant e Baker ao H. O. 42.119, parcialmente reproduzido em Dar- 120. Nottingham Archives and Records, VíII, p. 139.
vall. op. cit., p. 170.
105
104
de fixar um maximum e minimum sobre um artigo que flutua Derby 239
como nossa prosperidade e adversidade nacional. (...) £ verdade Condado--------------------- 1.809
que o Governo interveio na regulamentação dos salários há muito Tewkesbury 281
tempo, mas os textos do Dr. Adam Smith modificaram a opinião Godalming 114
da parte polida da sociedade sobre esse assunto. Portanto, tentar Londres 92
aumentar os salários através da influência parlamentar seria tão
absurdo como tentai regulamentar os ventos.
As listas de contribuições mostram que o apoio ultrapassa
as fileiras dos malharistas — doações de taverneiros, merceeiros,
Henson e seus companheiros tinham, evidentemente, avaliado padeiros, açougueiros, moleiros, agricultores, impressores, alguns
a oposição. Para obter o aumento salarial que queriam (afirmava mestres de malharia e muitos artesãos. Os clubes dos desgostosos
o Comitê de Nottingham), era necessária uma legislação mais deta­ lançaram um apelo a doações. Em junho, quando o Projeto chegava
lhada, impedindo abatimentos indiretos: ao Parlamento, um soldado escreveu oferecendo-se para fazer uma
coleta no regimento militar em Great Yarmouth, enquanto que o
E o Comitê é da opinião (...) que os últimos abusos nesta cidade Comitê agradecia a “ generosa contribuição do Meu Lorde Biron”.
e vizinhanças tiveram sua origem com cis imposições multifaceta-
das praticadas pelos negociantes sobre os trabalhadores, por falta De finais dc abril a finais de junho, Henson, Large, Latham
de regulamentações parlamentares. e outros representantes estiveram assiduamente em Londres, tra­
tando do Projeto. Seus relatórios sobre a City não eram propria­
Portanto, pretendia-se elaborar um Projeto de Lei que incluísse mente lisonjeiros. Não só acharam arrogantes os sindicalistas dos
uma série de cláusulas detalhadas: (1) regulamentar o tamanho da ofícios especializados, como também tiveram que esticar ao má­
ximo a pensão que o sindicato lhes dera para as despesas. Em
meia pelo número de jacks, isto é, arames na armação para a
22 de abril, relataram que tinham dormido sua primeira noite
malha, (2) tornar obrigatória a marcação de todas as meias, de
em “ O Cisne de Dois Pescoços” , na Lad Lane:
forma a distinguir entre boa e má qualidade, (3) tornar obrigató­
rio o uso da “grade” para se estabelecer o preço do tecido renda­ Onde pela Refeição Fria de Carne, Alojamento, Garçom e Cama­
do a máquina, (4) proibir imitações inferiores de mercadorias de reira deram um jeito de nos aliviar em vinte e cinco xelins, o
boa qualidade, (5) tornar obrigatória a afixação das listas de preço que fez Tommy Small (i.é.. Large) exclamar, coçando a Cabeça.
em todas as oficinas, (6) dar aos juizes de paz o poder de regula­ Londres é o Diabo!!!!!!
mentar os aluguéis das armações.
(Henson, de volta a Nottingham em maio, escreveu para per­
Consoante com isso, foi elaborado um Projeto de Lei, “ Para guntar aos colegas se “ Londres melhorou de Cheiro”.) As despesas
Impedir Fraudes e Abusos na Manufatura de Malharia de Basti­ do caso foram pesadas. Os custos judiciais e parlamentares devo­
dor” . contendo várias dessas cláusulas, além da proibição do paga­ raram a maior parte dos recursos, mas havia ainda as passagens
mento em “ gênero*'. Em março de 1812, circularam ativamente e despesas dos delegados (Henson, em meados de junho, fez uma
listas de contribuições e uma petição a favor do Projeto. No final rápida visita a Dublin), uma pensão (14 xelins semanais) para as
de abril, mais de 10.000 assinaturas tinham sido coletadas entre esposas, uma outra pensão (3 xelins por dia) para os membros
os malharistas de bastidor (“ N.B. Todos os Homens do Ofício do Comitê dedicados em tempo integral à coleta de contribuições.
podem assinar mas nenhuma Mulher.”): A reação dos próprios malharistas variava. Leicester, cuja manu­
fatura de meias deteriorada ainda não fora tão afetada quanto os
Nottingham 2.629 tecidos de algodão de Nottingham, carecia de entusiasmo: “ Não
Condado--------------------- 2.078 há nem meia dúzia de bons companheiros na Cidade”, escrevera
Leicester 1.100 Large em abril, “ e estes são compostos principalmente de Rapazes
Condado--------------------- 2.057
107
106
de Sherwood”.121 Em maio. um membro do Comitê escreveu deses­ Há um elemento patético na progressão dos acontecimentos
perado sobre a falta de apoio nas aldeias de Nottinghamshire dedi­ em Londres. Os representantes dos malharistas — e em particular
cadas ao ofício em malha simples (com duas agulhas), onde os Henson — fizeram uma exposição profundamente impressionante
malharistas desconfiavam que o Projeto iria beneficiar principal­ do seu caso perante a Comissão Parlamentar que examinava o
mente os trabalhadores da manufatura de sedas e tecidos rendados: Projeto de Lei.122 Os delegados também exerceram uma diligente
“ Andei por dois dias e não consegui nenhum Pêni, eles olham pressão, apresentando aos Membros do Parlamento amostras de
para mim divertidos como se eu fosse um criador de Vacas'*. “recortes” e serviços malfeitos e distribuindo presentes do seu
Conforme passavam os meses, começava-se a se questionar sobre mais fino lavor (pagos com os fundos do Comitê) a pessoas de
o custo de manter representantes em Londres e as mulheres em influência. O Príncipe Regente ganhou meias, um véu de seda,
casa. (Essas rivalidades surgiram inevitavelmente em todos os uma estamparia de seda e lenços. Sidmouth recebeu afavelmente
contextos sindicais iniciais.) Além disso, embora o Comitê tentasse a delegação, encomendando meias e um xale para suas filhas, e os
firmemente parar com a destruição de máquinas, que prejudicaria delegados pareciam à beira do sucesso. Na véspera da Terceira
sua causa no Parlamento, os sentimentos se exasperaram em Not- Leitura do Projeto de Lei, Henson escreveu a Nottingham em tom
tingham. quando em março sete luddistas foram condenados ao de vitória (30 de junho de 1812):
desterro por sete ou catorze anos. O Comitê sabia, sem dúvida,
quem eram os líderes luddistas do ano anterior, se é que não Temos Certa Razão em [pensar] que o Príncipe Regente também
incluía de fato alguns deles entre seus membros. Em abril, deu-se é favorável, temos de enfrentar apenas os Discípulos do Dr. A
a única tentativa de assassinato dos distúrbios das Midlands — Smith cujos princípios são execrados por todo o Reino.
um negociante de malhas chamado William Trentham foi ferido
quando estava do lado de fora de casa. O ataque fora precedido Dois dias depois, escreveu desesperançado. Hume tinha se
por uma carta anônima d ’ “o Capitão”, denunciando Trentham oposto ao Projeto, e a seguir a sessão foi adiada, “ Não havendo
por pagar às mulheres abaixo do devido: Quarenta Membros presentes deixaram a Câmara quando o nosso
assunto veio à baila como fogo selvagem”. Fim de meses de peti­
O Senhor deve ser sensível ao fato que essas infelizes Moças ções e coletas, de perseguições e tentativas de organização legal.
estão sob tentações muito fortes de virar prostitutas, pela sua Em Comissão, a Câmara recebeu representações e petições de
extrema pobreza. O Capitão me autoriza a dizer que eomo essa última hora da parte de grandes estabelecimentos comerciais
Gente está indefesa ele as considera sob sua proteção mais ime­ de malhas de Leicester e Nottingham. Com isso, ela decidiu anular
diata pois acredita que seus Salários são os mais baixos da todas as cláusulas do Projeto relativas ao fabrico e comercializa­
Inglaterra. ção de meias de malha, deixando apenas pálidas cláusulas sobre
o pagamento em gêneros e os tecidos trabalhados. Henson enviou
De Leicester. o secretário do comitê local escreveu desalen­ essas notícias a Nottingham numa carta com um adendo feroz:
tado aos representantes londrinos:
P.S. Eles agora podem Deduzir, Recortar, Subornar, Fazer Algo­
Fui informado de que o Sr. Trantham Negociante de Malhas de dão Simples, e Trapacear, Roubar. Surrupiar e Oprimir o quanto
Nottn foi atingido na segunda-feira à noite à porta de sua própria quiserem.
casa. a notícia diz que no último sábado ele deduziu dos seus
trabalhadores 2 penies por par e disse-lhes que fossem contar Na esperança de conseguir a reinclusão de algumas cláusulas, os
para Ned Ludd. Não sei o quanto isso é verdade, o certo é que delegados procuraram o líder radical:
este não é um momento adequado para irritar a mente pública
com Insultos grosseiros.
122. Ver Committee on Framework-Knitters' Petitions (1812), em esp. pp.
38-46. Uma das testemunhas dos trabalhadores foi John Blackner, o histo­
121. í.é., luddistas. riador de Nottingham, que tinha sido malharista de bastidor desde 1780.

108 109
Sir Francis Burdett nos disse que o Parlamento nunca intervinha
“Comitê Secreto” dos negociantes e da Corporação, que há muito
em Disputas entre Mestres e Trabalhadores. (. . .) Sir Francis não
esperou para nos apoiar, mas deixou a Câmara (...) é o Lado tempo vinha empregando espiões para pôr às claras os procedi­
ministerial da Câmara que são os defensores do nosso Projeto. mentos do sindicato. Dois dirigentes sindicais foram apreendidos
e aprisionados e os documentos do sindicato foram embargados.
A destruição de armações continuou de forma esporádica até 1817;
O Projeto mutilado realmente passou pela sua Terceira Lei­
mas é claro que, durante esses anos, a associação manteve uma
tura, apesar de um outro longo discurso contrário de Hume, em
existência clandestina vigorosa. O sigilo, ano a ano, vinha cedendo
21 de julho: “ Os Ministros foram favoráveis ao Projeto de Lei.
lugar a manifestações públicas maciças e disciplinadas, bem como
apenas 12 na Câmara quando foi Aprovado, todos os Patriotas
a negociações abertas.125
foram embora como sempre”. Mas é difícil entender o papel que
o “ lado ministerial” vinha desempenhando, pois três dias mais Grande parte dessa história pertence aos resultados posterio­
tarde o Projeto foi finalmente rejeitado pelos Lordes. O discurso res do luddismo. Mas a história do Projeto de Lei malogrado, que
mais enérgico contra ele (não houve nenhum a favor) veio de regulamentaria a malharia de bastidor, põe em relevo a difícil
Lorde Sidmouth: ele “confiava em Deus que não se tentaria intro­ situação dos sindicalistas durante os anos luddistas. Embora não
duzir novamente nenhum princípio daqueles em nenhum Projeto contemos com documentos que nos permitam ler com tanta clareza
de Lei levado até aquela Câmara’’.123 os pensamentos dos líderes dos tecelãos e aparadores de tecido,
Não é este, em absoluto, o fim da estória da organização dos devem ter se deparado com experiências muito parecidas em seu
infrutífero e oneroso recurso ao Parlamento entre 1800 e 1812.
malharistas de bastidor. Em termos sucintos, com a derrota do
lá seguimos com alguns detalhes a história dos tecelãos de algodão
Projeto, o Comitê tomou medidas para fortalecer o sindicato. Fize­
de Lancashire. Mas é de se notar que o luddismo em Lancashire
ram-se inquéritos sobre “como os Carpinteiros, Alfaiates, Sapatei­
surgiu de uma crise entre o paternalismo e o laissez-faire exata­
ros e Cuteleiros dirigem sua União” ; foi redigida uma nova cons­
mente idêntica à que se deu nos setores de malharia e lã. Ainda
tituição (talvez com os conselhos de Sir Samuel Romilly), e o
em 1800 e 1803, os tecelãos, depois de intensa agitação, tinham
sindicato recebeu o título de “ A Sociedade para Obter Assistência
conseguido obter uma medida pelo menos formal de proteção nas
Parlamentar, e para o Incentivo dos Artífices para o Aperfeiçoa­
Leis de Arbitragem para o Ofício em Lã. Os tecelãos já manti­
mento da Técnica”.124 Enquanto tal, existiu eficazmente por dois
nham correspondência com os tecelãos de algodão de Glasgow, e
anos; prestou benefícios e pagou pensões de desemprego e greve;
(na visão do Coronel Fletcher de Bolton) sua agitação “ se origina
o sindicato conseguiu empregar diretamente alguns dos seus mem­
das Sociedades facobinas e pretende ser um meio de manter as
bros na manufatura, e suas atividades tiveram força suficiente
mentes dos Tecelãos em contínua F erm entação...”126 A vitória
para desestimular um recrudescimento do luddismo. Entretanto,
das Leis de Arbitragem revelou-se ilusória. Embora tivessem rece­
em 1814, voltaram a eclodir destruições de armações, contra, se­ bido novos poderes para mediar e impor um salário mínimo:
gundo uma versão, os desejos de Henson e da ala “constitucional” ,
e segundo outra, como forma complementar das resoluções sindi­
125. Ver os Hammonds, op. cit., pp. 229-54; W. Felkin, op. cit., p. 238;
cais, pelas quais pequenos grupos luddistas foram realmente pagos A. Temple Patterson, op. cit., cap. 6, 7; Darvall, op. cit., pp. 139-50. 155-9;
com os fundos da associação. Uma greve num dos grandes estabe­ Aspinall, op. cit., pp. 169-83, 230, 234-42, 320-8. Por curto tempo, Henson
lecimentos de malharia de Nottingham suscitou a ação de um foi empregado pela união em tempo integral. Em 1816, levantou e ganhou
dois processos contra negociantes de malhas, por infração das Leis de
Pagamento em Gênero. Em 1817, foi preso em Londres, quando fazia
123. Nottingham Archives, 3984 I e II, passim; Records VIII, pp. 139-62; petições pelas vidas de luddistas condenados, e ficou recluso sem julga­
Hammonds, op. cit., pp. 229, 270. mento por dezoito meses, durante a suspensão do habeas corpus.
124. Cópia de Articles and General Regulations (Nottingham, 1813) em 126. Hammonds, op. cit.. p. 67. e (sobre as Leis de Arbitragem) pp. 62-9,
Nottingham Archives. 3984 II, f. 126. 72 ss.

111
Os Magistrados, sendo aliados mais próximos dos Mestres por
posição e fortuna, e também mais amigos deles por encontros Dois anos depois, quando foram revogadas as cláusulas sobre a
sociais, só trataram do assunto de modo negligente.127 aprendizagem do 5 Eliz. c. 4, uma outra petição (desta vez, dos
tecelãos de Lancashire) declarou que “o presente Projeto de Lei
A agitação por um projeto pelo salário mínimo atingiu seu para revogar a sobredita Lei fez sucumbir os ânimos dos Peticio-
primeiro ponto crítico em 1807-8, com as petições, manifestações nários a um grau indescritível, não tendo restado nenhuma espe­
e greves que resultaram na prisão do Coronel Hanson.128 Segundo rança. . .” 130
uma testemunha escocesa, que declarava ter participado da orga­ O tratamento dado aos líderes dos tecelãos de Glasgow foi
nização em papel de destaque, de 1809 até o final de 1812 existira o exemplo mais chocante no transe geral em que se encontravam
uma impressionante união dos tecelãos em escala nacional, com os sindicalistas naquela época. E é neste ponto que podemos
seu centro em Glasgow e bastiões na Escócia, Lancashire, Carlisle reunir nossas análises das causas que precipitaram o luddismo.
e Irlanda do Norte.129 Em 1811, os tecelãos fizeram novos esfor­ Evidentemente, é fácil recair numa ociosa explicação “economi-
ços para conseguir um Projeto de Lei pelo salário mínimo, com cista”, que atribui o luddismo à simples relação entre causa e
petições que apelavam à proteção contra empregadores inescrupu- efeito do Conselho das Ordens, é verdade que o Sistema Conti­
losos, assinadas por 40.000 tecelãos de Manchester, 30.000 da nental de Napoleão e as Ordens retaliatórias tinham estraçalhado
Escócia e 7.000 de Bolton. Em 1812, ocorreu claramente uma a tal ponto o mercado para os produtos têxteis ingleses que as
certa divergência entre as deliberações dos tecelãos, sendo que os indústrias de Lancashire, Yorkshire e Midlands tinham estagnado.
de Lancashire abandonaram qualquer esperança de proteção e volta­ Tanto a guerra como a seqüência de safras ruins tinham contri­
ram-se para o luddismo, enquanto que os de Glasgow e Carlisle buído para aumentar o preço dos alimentos a níveis de “ fome”.
instauraram longos e demorados processos judiciais argüindo da Mas isso não basta como explicação do luddismo; pode ajudar a
constitucionalidade sobre questões de regulamentação salarial e explicar sua ocorrência, mas não a sua natureza. Esses anos de
aprendizado. Os homens de Glasgow, de fato, ganharam a causa, miséria, 1811 e 1812, somaram às queixas já existentes a queixa
depois de travar a luta judicial, com grandes despesas, nos tribu­ suprema de fome contínua. Isso fez que cada expediente empre­
nais superiores. Mas os manufatureiros se negaram prontamente gado pelos mestres menos escrupulosos para tentar economizar
a pagar o salário mínimo que os magistrados tinham estabelecido mão-de-obra e baratear seu valor (teares movidos a energia, cisa-
nas Sessões Trimestrais, do que resultou (novembro e dezembro lhadeiras ou “ recortes”) parecesse mais abusivo. Mas o caráter do
de 1812) uma greve de tecelãos notavelmente disciplinada, e com luddismo não foi o de um protesto cego ou de um motim por
grande apoio, de Aberdeen e Carlisle. Os trabalhadores (disse alimentos (como ocorreu em muitos outros subdistritos). Tam­
Richmond) estavam decididos a fazer vigorar, através de “ um só pouco basta descrever o luddismo como uma forma de sindicalis­
esforço moral simultâneo”, os salários concedidos por lei, e deci­ mo “ primitivo”. Como vimos, os homens que organizaram, prote­
didos também ‘‘à última resistência pela sua posição na socieda­ geram ou fecharam os olhos ao luddismo estavam longe de ser
primitivos. Eram espertos e jocosos; ao lado dos artesãos londri­
de”. Os líderes de Glasgow (“ pessoas de maravilhosa calma e
nos, alguns deles estavam entre os elementos com maior clareza
habilidade”), que tinham se empenhado em consultar advogados
de idéias e expressão das “ classes industriosas” . Uns poucos tinham
e agir dentro da lei sob todos os aspectos, foram presos e recebe­ lido Adam Smith, outros mais tinham um certo conhecimento da
ram sentenças que variavam de quatro a dezoito meses de reclusão. legislação sindical. Aparadores de tecido, malharistas e tecelãos
eram capazes de dirigir uma organização complexa, assumir suas
127. Alguém que se Compadece dos Oprimidos, The Beggars Complaint
against Rack-Rent Landlords, Lorn Factors, Great Farmers, Monopolizers, 130. Ver ibid., pp. 29 40, e o depoimento de Richmond, Second Report (.. .)
Paper Money Makers, and War (Sheffield, 1812), pp. 100 ss. Artizans and Machinery (1824), pp. 59 ss; Hammonds, op. cit., pp. 85-8;
128. Ver A Formação da Classe Operária Inglesa, vol. II. p. 128. Aspinall, op. cit., pp. 137-50, em esp. 1. 1. Dillon a Sidmouth, pp. 143 ss.
129. A. B. Richmond, op. cit., pp. 14-28.
113
1 12
finanças e correspondência, enviar delegados a locais tão distantes Filhos de Crispino ser calçados por Todo o Mundo” ; todas as
como a Irlanda e manter contatos regulares com a Região Ociden­ associações com suas proclamações e manifestos, assinados “ POR
tal. Todos tinham relações com o Parlamento, através dos seus ORDEM DO OFÍCIO”. Como muitas vezes acontece, quando a
representantes, enquanto que os malharistas de Nottingham com tradição chega aos seus últimos anos, da mesma forma a deles
o devido aprendizado concluído eram cidadãos e eleitores. tingiu-sc de uma luz nostálgica.
Deve-se ver o aparecimento do luddismo em seu ponto crítico Além disso, às vezes se esquece quão rápida foi a anulação
na anulação da legislação paternalista e na imposição da econo­ da legislação paternalista. Somente em 1773 é que foi introduzida
mia política do laissez-jaire sobre os trabalhadores, contra sua a importante Lei dc Spitalfields, que permaneceu em vigência por
vontade e consciência. É o último capítulo de uma estória que se cinqüenta anos, com alterações, pela qual os tecelãos de seda
inicia nos séculos 14 e 15, contada em sua maior parte por Taw- tinham assegurado — coisa que outros tecelãos e malharistas luta­
ney, em Religião e o Surgimento do Capitalismo. É bastante certo ram inutilmente para conseguir — um salário mínimo legal.131
que boa parte dessa legislação paternalista fora, nas suas origens, As ineficientes Leis de Arbitragem para o setor cotonífero (1800-
não só restritiva, mas também, para os trabalhadores, punitiva. 1803), pelo menos serviram para manter viva a noção de prote­
Contudo, existia nela a vaga imagem de um estado corporativo ção legal. A partir daí, num prazo de dez anos, quase todo o
benévolo, onde havia medidas legislativas e morais contra o fabri­ código paternalista foi eliminado. Entre 1803 e 1808, foram sus­
cante inescrupuloso ou o patrão injusto e onde os oficiais forma­ pensas as regulamentações referentes ao setor lanífero. Em 1809,
vam um “ estamento” reconhecido, ainda que o inferior, do reino. foram revogadas. Em 1813, as cláusulas sobre a aprendizagem
Em último caso, seria possível recorrer, pelo menos em princípio, do 5 Eliz. c. 4 foram anuladas. Em 1814, seguiram-se as cláusulas
ao juiz de paz para arbitragem ou proteção, e mesmo que a prá­ que autorizavam os magistrados a impor um salário mínimo.
tica tivesse ensinado os trabalhadores a esperar uma resposta som­ (Permaneceu, porém, a cláusula que convertia o serviço incon-
bria, ainda era por esse princípio que se julgavam os magistrados. cluso em delito.) Em 1814, as restrições ao aprendizado no setor
A função da indústria era fornecer um meio de subsistência aos cuteleiro foram postas de lado pelo Projeto de Lei dos Cuteleiros
empregados nela, e as práticas ou invenções manifestamente preju­ de Sheffield. Durante esses mesmos dez anos, os trabalhadores,
diciais ao bem d’ “o Ofício” eram condenáveis. O oficial tinha sujeitos a penas sob as Leis de Associação por qualquer ação sin­
orgulho do seu ofício, não só porque aumentava seu valor no dical direta, passaram a recorrer cada vez mais aos tribunais, na
mercado dc trabalho, mas também porque era um artífice espe­ tentativa de fazer valer a legislação obsolescente. Assim, os traba­
cializado. lhadores em lã abriram processos contra cardas mecânicas e ques­
tões referentes ao aprendizado, os malharistas contra “emprego
Esses ideais podem nunca ter ido muito além de ideais; no
de inexperientes” e “ pagamento em gênero” , os tecelãos de algo­
final do século 18, podiam estar desgastados. Mas tinham uma
dão contra questões de aprendizado e pela aplicação do salário
realidade poderosa, não a menos importante, para a noção do que
mínimo, e mais uma dúzia de ações instauradas pelos ofícios
deveria ser, à qual apelavam artesãos, oficiais e muitos pequenos
londrinos (fabricantes de coches, de fechaduras, de máquinas,
mestres. Mais que isso, os ideais estavam vivos nas sanções e cos­
e outros), entre 1809 e 1813, sobre questões semelhantes.132 A
tumes das comunidades manufatureiras mais tradicionais. Os ofi­ grande maioria desses processos não ganhou a causa. Os poucos
ciais comemoravam-nos quando aguardavam, com pompa e entusias­ que ganharam esgotaram os fundos dos sindicatos e receberam
mo, o dia de festa de São Crispino, padroeiro dos sapateiros, o
jubileu das “ Guildas” de Preston ou a festa do Bispo Blaise dos
131. Sobre o funcionamento das Leis dc Spitalfields, ver M. D. George.
penteadores de lã. Os primeiros sindicatos semilegais simboliza­
London Life in the Eighteenth Century, cap. 4; Hammonds, op. cit.. pp. 209
vam essa tradição com ornamentos em suas cédulas ou carteiras ss.; J. H. Clapham, “The Spitalfields Acts“, Economic Journal, dezembro
de membros: os cortadores de tecidos com o brasão, encimado de 1916.
pelas lâminas cruzadas, entre a imagem da justiça e a imagem da 132. Ver T. K. Derry, “Repeal of the Apprenticeship Clauses", loc. cit..
liberdade: os sapateiros com seu lema “ Possam os Produtos dos PP. 71-2.

115
indenizações irrisórias. Finalhiente, esses anos também presenciam por parte dos Ministros, tampouco receberam consolo de radicais
a dissolução dos últimos controles costumeiros ou legais sobre a como Hume e mesmo Burdett. De um lado, encontravam a oposi­
fixação de preços no mercado livre e o malogro das tentativas de ção dos valores da ordem, e de outro lado a oposição dos valores
se reativar o direito costumeiro referente ao açambarcamento e da liberdade econômica. No meio, um monte de membros parla­
revenda com lucro. mentares confundidos, alguns deles, talvez, com um obscuro sen­
Temos de imaginar multiplicadas por cem as experiências timento de culpa pela injustiça praticada, optou pelo caminho mais
amargas de Henson e Large, em seu dispendioso comparecimento fácil: “ deixaram a Câmara quando nosso assunto veio à baila
ao Parlamento. Os trabalhadores entendiam muitíssimo bem o que como fogo selvagem” .
estava acontecendo. Estavam totalmente presos entre dois fogos. Byron, em seu famoso discurso na Câmara dos Lordes, opon­
De um lado, enfrentavam o fogo da ordem estabelecida. Nem do-se ao Projeto de Lei que convertia a destruição de armações em
todos os magistrados regionais, e nem mesmo todos os Lordes crime capital, não estava simplesmente se deleitando com hipér-
Encarregados dos condados eram, em absoluto, defensores doutri­ boles: “ Quando se faz uma proposta de se emancipar ou desobri­
nários do laissez-faire. Por vezes realmente hesitavam em intervir gar, os senhores hesitam, deliberam por anos, contemporizam e
contra os oficiais, e até sentiam uma forte aversão pelos métodos falseiam as mentes das pessoas; mas uma sentença de morte deve
dos grandes mestres. Mas, na medida em que as reclamações dos ser aprovada a toda, sem uma única reflexão sobre as conseqüên-
trabalhadores eram expressas de modo claro e eficaz, ao mesmo
cias” . Os trabalhadores sentiam que os laços, ainda que ideais,
tempo passavam a ameaçar os valores da ordem. O squire à antiga
que os ligavam ao resto da comunidade, com obrigações e deveres
podia simpatizar com um malharista faminto que aparecia à sua
recíprocos, vinham se rompendo um após o outro. Estavam sendo
porta como um queixoso passivo. Não tinha absolutamente nenhu­ empurrados para fora do âmbito constitucional. Sentiam mais
ma simpatia por comitês secretos, manifestações nas ruas, greves
amargamente a injustiça os que, como os tecelãos e malharistas,
ou destruição de propriedades.
percebiam que seu estatuto de artesão vinha sendo destruído. Em
Por outro lado, os trabalhadores enfrentavam o fogo dos seus
1811, os Trabalhadores em Seda Lisa de Dcrby apelaram aos
patrões, que todos os dias recebiam novos reforços dos discípulos
mestres-negoci antes:
do laissez-faire. As Leis do Trigo de 1815 iriam revelar até que
ponto a aristocracia e a fidalguia realmente sc distanciavam dessas
Como uma entidade de artesãos hábeis empregados cm materiais
doutrinas. Mas o Ministério do período de guerra, por puro opor­ de grande valor (...) consideramo-nos com direito a uma posição
tunismo contra-revolucionário, achou conveniente aceitar os argu­ mais elevada na sociedade: e que, em questão de remuneração,
mentos da “ livre concorrência” , na medida em que combatiam os devemos nos equiparar aos artífices de mais alto nível. (...) To­
interesses operários, e não agrários. Na verdade, Sidmouth ao lhidos por uma lei de associação, não podemos lhes dizer enquanto
apresentai a revogação da arbitragem salarial em 1813, mal consi­ entidade pública que exigimos um aumento dos salários, mas po­
derou o assunto digno de discussão: demos dizer que A JUSTIÇA EXIGE que recebamos uma remu­
neração por trabalho extraordinário.134
Não é preciso uma mente tão esclarecida como as de suas Senho­
rias para perceber quão pernicioso tal estado de coisas seria para “ Quando consideramos”, declarou em 1811 um comitê dos
o empregador e o servidor, e mais especialmente para este último. tecelãos de Lancashire, “ que o Legislativo já interveio em assun­
Portanto, devem estar totalmente convencidos de que foi conve­ tos de menor monta — decretou leis para a regulamentação do
niente revogar esses estatutos perniciosos.133
preço do trigo, para a fixação do tamanho do pão, ( ...) para o
aumento dos salários de Juizes e Clérigos ( ...) este Comitê fica
Se pessoas como os representantes dos aparadores de tecido e profundamente perplexo em tentar imaginar qual a boa razão para
malharistas de bastidor se deparavam com uma abrupta negativa

133. Ver Hammonds, op. cit., p. 87. 134. Nottingham Review, 20 dc dezembro de 1811.

116 I 17
que a interferência do Legislativo possa ser inconveniente em fícios muito grandes que são chamados de Fábricas, onde preten­
circunstâncias tão prementes” : dem empregar
Se vocês tivessem 70.000 votos para eleger Membros que se sen­ Confeccionistas de Tecidos como seus Serventes, de modo que as
tariam nessa Câmara, seu requerimento teria sido tratado com tal pessoas que. com suas Famílias, viviam afastadas como antes
indiferença, para não dizer desatenção? Cremos que não.135 mencionado vão se associar dentro ou perto daqueles Edifícios
num Estado de dependência.
Em primeiro lugar, pois, temos de ver o luddismo neste
contexto. Os oficiais e artesãos sentiam-se roubados em seus direi­ O Projeto de Lei (que procurava impedir que os manufaturei-
tos constitucionais, e era uma certeza profundamente vivida. Ned ros-comerciantes completassem suas encomendas comprando teci­
Ludd era o “ Justiceiro” ou ‘‘Grande Executor” , defendendo (“por dos nos salões públicos) tinha “ a intenção de preservar um Siste­
voto unânime do Ofício”) direitos para eles tão arraigadamente ma de Ofício que gerou mais Independência, Prosperidade e Mora­
estabelecidos ‘‘pelo Costume e Lei” que não poderiam ser deixados lidade, e conseqüentemente mais Felicidade, do que qualquer outro
de lado por uns poucos mestres, e nem mesmo pelo Parlamento: Ramo da Manufatura do Reino” .137
O fosso entre o status de um “ servente” , um trabalhador
Não cantem mais seus velhos versos sobre Robin Hood, assalariado sujeito às ordens e disciplina do patrão, e o de um
Suas façanhas pouco admiro. artesão, que podia “ ir e vir” à vontade, era grande o suficiente
Vou cantar as Realizações do General Ludd. para que os trabalhadores preferissem derramar sangue a permitir
Agora o Herói de Nottinghamshire. . .136 serem empurrados de um lado para outro. E, no sistema de valo­
res da comunidade, os que resistiam à degradação é que estavam
Mas, em segundo lugar, não devemos superestimar o isola­ certos. Em 1797, foi construída em Bradford a primeira fábrica
mento a que foram forçados os malharistas e aparadores de tecido. movida a vapor, ao som das vaias de multidões ameaçadoras. Os
Durante todos os “abusos” luddistas, os quebradores de máquinas “ pequenos fazedores” dc West Riding viram na prole de muitas
contaram com o respaldo da opinião pública das Midlands e West chaminés de Arkwright, além dos Peninos, a sentença de morte
Riding. Os grandes patrões e o sistema fabril de modo geral, sus­ de seu trabalho doméstico. Os pequenos mestres que apoiaram a
citavam uma profunda hostilidade entre milhares de pequenos “ Instituição” ou “ Comunidade dos Fabricantes dc Tecidos” , entre
mestres. Ein 1795, os pequenos mestres de acabamento de tecidos 1802 e 1806, tinham por detrás uma teoria geral de economia
de West Riding vinham ativamente angariando apoio para um moral.
Projeto de Lei “ para a restauração e presetvação integral do últi­
É fácil esquecer como era má a fama que tinham adquirido
mo sistema de se conduzir a manufatura de Tecidos. .
os novos cotonifícios. Eram centros de exploração, prisões mons­
Até ultimamente, esse Sistema tinha sido o de que o tecido era truosas onde se confinavam crianças, centros de imoralidade e
m anufaturado por Pessoas que moravam em diversas aldeias do conflitos trabalhistas;138 e, acima de tudo, reduziam o artesão
Condado, e vendido nos Salões públicos em Leeds a comerciantes industrioso a “ um Estado de dependência”. Para a comunidade,
que não acompanhavam o processo de m anufatura do Tecido.
137. MS. “Heads of Proposcd Bill.. . Halifax Reference Library.
Ultimamente, vários comerciantes viraram manufatureiros de 138. Comparem-se o Cobbett Tory no Political Register, 23 de julho de
Tecidos e, para conduzir melhor tal manufatura, construíram Edi­ 1803: "Aos domingos, as crianças, ficando liberadas ( . . . ) daquelas prisões
pestilentas denominadas fábricas, podem esticar seus pequenos membros
com cãibras. . . e o liberal Leeds Mercury (6 de março de 1802); “as
135. H. O. 42.117. Ver os Hammonds, op. cit., pp. 84-5, para excertos mais grandes fábricas nesta e em outras cidades constituem seminários nara
completos desse documento notável. todos os tipos de profanidade e obscenidade. ( . . . ) Não se pode questionar a
136. General Ludd's Triurtph, em H. O. 42.119. verdade dessa observação".

1 18 119
estava em jogo um modo de vida, e portanto temos de encarar a
de que foi inevitável, e também “ progressista", a libertação dos
oposição dos aparadores de tecido a máquinas específicas como
ofícios e comércio de “ práticas restritivas", no início do século
algo muito além de um grupo particular de trabalhadores especia-
19, que é necessário um esforço de imaginação para entender
lizados a defender sua subsistência. Essas máquinas simbolizavam
que o dono de fábrica, o grande negociante de malhas ou o
a invasão do sistema fabril. Os pressupostos morais de alguns
manufatureiro de algodão que fazia fortuna por esses meios, era
confeccionistas de tecidos eram tão solidamente engastados que
visto não só com olhos invejosos, mas como um indivíduo enga­
sabemos de casos em que deliberadamente eliminaram invenções
jado em práticas imorais e ilegais. A tradição do preço justo e do
que poupariam mão-de-obra, enquanto que o pai de Richard Oast-
bom salário existiu entre “as ordens inferiores” por mais tempo
ler, em 1800, vendeu um próspero negócio, em vez de empregar
do que por vezes se supõe. Elas viam o laissez-faire não como
máquinas que considerava como “ um meio de opressão por parte
“ liberdade", mas como “ vil Imposição". Não conseguiam enxergar
dos ricos e respectiva degradação e miséria dos pobres’’.139 Foi
nenhuma lei natural pela qual um único homem, ou uns poucos
esse sentimento entre confeccionistas de tecidos, mestres de acaba­
deles, pudesse se engajar em práticas que traziam um dano eviden­
mento, artesãos e diaristas de todos os tipos, e mesmo alguns pro­
te aos seus semelhantes.
fissionais liberais, que sancionou os luddistas e lhes deu proteção.
Uma “Declaração Extraordinária", dirigida ao “nosso amado
O General Grey, ao comandar as tropas em West Riding em 1812.
Irmão e Capitão-em-chefe, Edward Ludd", encarna todas essas
comentou desanimado:
idéias da economia do “ Ofício":
o quanto a opinião e vontade até mesmo da parcela mais respei­ Considerando que foi informado a nós, os Agitadores Gerais para
tável dos Habitantes estão em uníssono com o populacho iludido
os Condados do Norte, reunidos para reparar as Injustiças contra
e mal-intencionado no que se refere ao atual objeto de sua indig­ os Artífices Trabalhadores, Que Charles Lacy, da Cidade dc
nação Cardas Mecânicas e Cisalhadeiras e isso se estende também Nottingham, Manufatureiro Inglês de Tecido Rendado, foi culpado
a pessoas que têm máquinas de diversos tipos empregadas no de diversos Atos fraudulentos e opressores — pelos quais reduziu
ramo Manufatureiro.. ,140 à pobreza e Miséria Setecentos de nossos amados Irmãos (...)
fazendo Rede de Algodão a Agulha fraudulenta, com Pano de
Esses sentimentos existiam também nas Midlands. onde não Um Fio Só. obteve a Soma dc Quinze Mil Libras, com o que
estava em questão nenhum importante aperfeiçoamento em ma­ arruinou o Ofício de Tecido Rendado de Algodão, e consequen­
quinarias. Os mestres de malharia, artífices, artesãos e até alguns temente nossos dignos e amados Irmãos, cujo sustento e bem-
dos negociantes de malhas estavam totalmente do lado dos malha estar dependiam da continuidade daquela manufatura.
ristas de bastidor, e ainda mais durante seu recurso ao Parlamen Ficou evidente para nós que o dito Charles Lacy foi movido
pelos motivos mais diabólicos, portanto (...) realmente decreta­
to em 1812. O Projeto de Lei que convertia a destruição de arm a­
mos que as ditas Quinze Mil Libras sejam confiscadas, e por meio
ções em crime capital era desaprovado até por aqueles negociantes desta (...) ordenamos que Charles Lacy desembolse a dita soma.
de malhas cujos interesses supostamente seriam defendidos por ele. em parcelas iguais entre os Trabalhadores, que fizeram Renda de
E, a essa luz, o quadro convencional do luddismo daqueles anos. Algodão no ano de 1807. . .141
como uma oposição cega à máquina enquanto tal, torna-se cada
vez menos sustentável. O que estava em questão era a “ liberdade' Sob este aspecto, então, o luddismo pode ser visto como uma
do capitalista em destruir os costumes do ofício, fosse por novas violenta eclosão de sentimentos contra o capitalismo industrial
máquinas, pelo sistema fabril ou pela concorrência irrestrita, redu­ desenfreado, voltando a um obsolescente código paternalista, res-
zindo os salários, golpeando por baixo os rivais e solapando os
padrões de qualidade artesanal. Estamos tão habituados à idéia 141. A "Declaração”, em fina chapa de cobre, traz a data de novembro
de 1811, e autoriza Edward Ludd a “infligir a Punição de Morte” em
139. Driver, op. cit., pp. 17-8. caso de omissão e a distribuir 50 libras entre os executores: J. Russell,
140. Darvall, op. cit., p. 62. “The Luddites". Trans. Thoroton Society. X. 1906. pp. 53-62.

120 121
paldado pelas tradições da comunidade trabalhadora. Mas, a essas
alturas, o termo ' ‘reacionário” vem à tona com excessiva facili­ reduzidos para 4 a 7 xelins semanais, por 16 ou 18 horas de tra­
dade. Pois. apesar de todos os sermões dirigidos aos luddistas (na balho por dia; só a emigração para o Cabo da Boa Esperança
época e depois) sobre as conseqüências benéficas das novas máqui­ servi ria como escapatória. Houve uma certa recuperação no início
nas ou do “ livre” empreendimento — argumentos que. de qualquer dos anos 1820, com a introdução dc máquinas para tecidos tra­
forma, os luddistas tinham suficiente inteligência para pesarem balhados (a “ febre” do filo em trança e da renda de bilros), que
mentalmente por conta própria — . foram os quebradores de má­ trouxe um novo influxo ao ofício, a que se seguiu uma deteriora­
quinas. e não os autores de ensaios, que fizeram a avaliação mais ção constante. “Temos um pouco de impulso de vez em quando”,
realista dos efeitos a curto prazo. Os aparadores de tecido forne­ disse um deles a Thomas Cooper em 1840: “ Mas logo voltamos
cem o exemplo mais claro de uma especialidade que simplesmente de novo à fome” . (Quando empregados, o salário “médio” então
se extinguiu: mencionado era de 4 xelins e 6 penies.) Entre o aluguel da arma­
ção de um lado, e de outro uma imensidade dc formas mesquinhas
Entre 1806 e 1817, o número de cardas mecânicas em Yorkshire de exploração — o corte dos salários, os “ descontos” ou multas,
teria aumentado de 5 para 72; o número de cisalhas operadas a o pagamento em gênero — , “o pobre malharista de bastidor foi
máquina de 100 para 1.462; e dos 3.378 cortadores nada menos vencido, até poder ser identificado pelo seu ar peculiar de miséria
que 170 estavam sem serviço, ao passo que 1.445 tinham um e depressão, visto a 160 quilômetros de Leicester” . E isso fora
emprego apenas parcial.142143 realizado pela “ livre concorrência”, sem a introdução de nenhuma
máquina movida a vapor ou água.144
Seu trabalho tinha sido substituído por rapazes e homens Mesmo que dermos os descontos pelo barateamento do pro­
não-qualificados. Segundo um relato de 1841: duto, é impossível chamar de “ progressistas”, em qualquer acep­
ção que tenha sentido, processos que causaram a degradação, por
Em 1814, existiam 1.733 aparadores de tecido em Leeds, todos com
vinte ou trinta anos mais, dos trabalhadores empregados na indús­
emprego integral; e agora, desde a introdução de máquinas, todo
o tecido (...) é acabado por um número relativamente pequeno, tria. E, sob este aspecto, podemos ver o luddismo como momento
principalmente meninos, de 5 a 8 xelins (...) e uns poucos ho­ de um conflito de transição. De um lado, olhava para trás, para
mens de 10 a 14 xelins por semana. Os antigos aparadores pas­ costumes antigos e uma legislação paternalista que nunca pode­
saram a pegar qualquer coisa que conseguem para fazer, alguns ríam ressuscitar; de outro lado, tentava reviver antigos direitos a
trabalhando como meirinhos, carregadores de água, varredores dc fim de abrir novos precedentes. Por várias vezes, suas reivindica­
rua, ou vendendo laranjas, bolos, rendas e fitas, pão de gengibre, ções incluíram um salário mínimo legal, o controle do “suor” das
graxa. &c. &c.,4í
mulheres e meninos, a arbitragem, o compromisso dos mestres
em encontrar trabalho para trabalhadores qualificados tornados
Era um triste fim para um ofício respeitável. A história
supérfluos pela introdução de máquinas, a proibição de trabalhos
posterior dos malharistas e tecelãos de algodão praticamente não
ordinários de imitação, o direito à livre associação sindical. Todas
apresenta nenhuma outra prova a favor da visão “ progressista”
sobre as vantagens do colapso dos costumes e “ práticas restriti­ essas reivindicações olhavam para a frente, tanto quanto para
vas” . lá examinamos com vagar suficiente a destruição dos meios trás, e traziam em si uma imagem vaga de uma comunidade não
de vida do tecelão. Se existe algum episódio da Revolução indus­ tanto paternalista, mas sim democrática, onde o crescimento indus­
trial seria regulado segundo prioridades éticas e a busca do lucro
trial mais pungente que o do tecelão manual, é o do malharista.
se subordinaria às necessidades humanas.
Em 1819. segundo Felkin, muitos deles tinham tido seus salários

142. E. Lipson. The History of the Woollen and Worsted Industries (1921). 144. Felkin, op. cit., pp. 441 ss; T. Cooper, Life, pp. 137-42. Ver também
p. 181. 1. F. C. Harrison. “Chartism in Leicester". em A. Briggs. Chartist Studies.
143. W, Dodd. The Fctctory System lllustrated, p. 15 pp. 121-9.

122 125
Assim, devemos considerar os anos 1811-13 como um divi­
Embora relacionado com esta tradição, o movimento luddista
sor de águas, cuja corrente numa direção remonta aos tempos
deve ser diferenciado dela, em primeiro lugar pelo seu alto grau
tudorianos, e em outra flui avante para a legislação fabril dos
de organização, e em segundo pelo contexto político em que flo­
cem anos seguintes. Os luddistas estiveram entre os últimos mem­
resceu. Essas diferenças podem se resumir numa única característi­
bros de guilda e. ao mesmo tempo, entre os primeiros a deslanchar
ca: embora tendo sua origem em queixas trabalhistas específicas, o
as agitações que levam ao Movimento pelas Dez Horas. Nas duas
luddismo foi um movimento de feição insurrecional, que oscilou
direções havia uma moralidade e uma economia política em alter­
continuamente à beira de objetivos revolucionários ulteriores. Isso
nativa às do laissez-faire. Durante as décadas críticas da Revolu­ não quer dizer que fosse um movimento revolucionário totalmente
ção Industrial, os trabalhadores ficaram totalmente expostos a um consciente: por outro lado, tinha uma tendência a se transformar
dos dogmas mais humanamente degradantes da história — o da num movimento desses, e é esta tendência que é subestimada com
concorrência irresponsável c desenfreada — , e gerações de traba­ excessiva freqüência.
lhadores por encomenda morreram dessa exposição. Foi Marx
O luddismo de Lancashire revelou o mais alto conteúdo polí­
quem viu. na aprovação do Projeto das Dez Horas (1847), provas
tico e a maior espontaneidade e conturbação. O luddismo de
de que pela “ primeira vez (. . .) em plena luz do dia a economia
Nottinghamshire foi o mais altamente organizado e disciplinado,
política sucumbiu à economia política da classe operária”.145 Os
e o mais estritamente limitado a objetivos industriais. O luddismo
indivíduos que atacaram a fábrica de Cartwright em Rawfolds
de Yorkshire passou de objetivos industriais para outros mais
estavam anunciando essa economia política alternativa, ainda que além. Antes de analisar essas diferenças, apresentemos uma rá­
num conturbado embate noturno.
pida exposição.
Os principais distúrbios começaram em Nottingham. em mar­
V. Os Rapazes de Sherwood ço de 1811. Uma grande manifestação dc malharistas, “gritando
por trabalho e um preço mais liberal” , foi dissolvida pelo Exército.
O luddismo subsiste na mentalidade popular como um caso Naquela noite, sessenta armações de malha foram destruídas na
estranho e espontâneo de trabalhadores manuais analfabetos, resis­ grande vila de Arnold por amotinados que não tomaram nenhuma
tindo cegamente às máquinas. Mas a destruição de máquinas tem precaução em se disfarçar e foram aplaudidos pela multidão. Por
uma história muito mais comprida. A destruição de materiais, várias semanas, os distúrbios continuaram, principalmente à noite,
teares, debulhadoras, o inundamento de minas ou estragos na por todas as vilas de malharias do noroeste de Nottinghamshire.
boca de minas, o saque ou ateamento de fogo a casas ou bens Embora polícias especiais e tropas patrulhassem as vilas, não se
de patrões impopulares — estas e outras formas de ação direta conseguiu fazer nenhuma prisão.
violenta foram empregadas no século 18 e na primeira metade Embora a destruição de armações tenha se espraiado por
do século 19, enquanto que a “ destruição de máquinas” ainda era uma extensão que não teve igual talvez durante trinta anos, essa
endêmica em algumas parcelas da indústria cuteleira de Shcffield primeira revolta de março e abril não fez sensação. Um ou outro
nos anos 1860. Esses métodos às vezes se dirigiam contra as má­ tipo de motins era endêmico nos distritos manufatureiros, e
quinas tidas por odiosas enquanto tais. Na maioria das vezes, eram poucos comentários suscitavam. Mas, no início de novembro de
uma forma de fazer valer condições consagradas pelo costume, de 1811, o luddismo mostrou-se sob uma forma muito mais discipli­
intimidar os fura-greves, os trabalhadores “ilegais” ou patrões, ou nada. A destruição de armações não era mais obra de “ tumultua-
ainda meios auxiliares (freqüentemente eficazes) de greves ou dores” , mas de grupos menores e disciplinados, que passavam
outras ações “ sindicais” .146 rapidamente à noite de aldeia em aldeia. De Nottinghamshire. ele
se estendeu para partes de Leicestershire c Derbyshire, e conti­
nuou ininterruptamente até fevereiro de 1812. Em 10 de novem­
145. K. Marx, Selected Works (1942), 11, p. 439. bro, houve um sério conflito em Bulwell, onde um negociante de
146. Ver E. H. Hobsbawm, "The Machine Breakers", Past & Present, 1,
fevereiro de 1952. pp. 57 ss. malhas chamado Hollingsworth defendeu suas propriedades. Tro-

124 125
caram-se tiros, e um dos luddistas (um malharista de Arnold, Vieram a este local dois homens que se diziam inspetores do
chamado John Westley) foi morto; mas, depois de se retirarem comitê; foram às casas de todos os malharistas e dispensaram-nos
com o cadáver, os luddistas voltaram, derrubaram as portas e que­ de trabalhar a preços que estivessem abaixo dos de uma lista
braram as armações. Três dias depois, um enorme contingente de que lhes deram. (. . .) Convocaram todos os malharistas, cerca de
luddistas. armados com mosquetes, pistolas, machados e marretas, 12 ou 14 que eram mestres, para uma estalagem com tanta impor­
destruíram setenta armações na oficina de um grande fabricante tância como se tivessem um mandado do Príncipe Regente. Quan­
do os reuniram ali. até onde posso saber atualmente, foi para o
de malhas em Sutton-in-Ashfield. Noite após noite, por mais de
propósito de coletar dinheiro deles para o sustento daquelas fa­
três meses, os ataques se sucederam, às vezes em duas ou três mílias que foram privadas de conseguir seu pão por terem seus
aldeias muito distantes durante a mesma noite. bastidores quebrados. Quando encontravam um bastidor operado
No final de dezembro, o correspondente de Notthingham do por alguém que não tivesse prestado o aprendizado regular, ou
Leeds Mercury declarou: “ o estado Insurrecional a que esta região por uma mulher, dispensavam-nos do trabalho e. se prometiam
foi reduzida neste último mês não tem paralelo na história, desde parar, fincavam um bilhete na armação com essas palavras escri­
os dias conturbados de Carlos, o Primeiro”. Nenhuma medida dos tas: “Deixem ficar essa armação, removidos os inexperientes'’.148
magistrados ou grandes reforços militares deteve os luddistas. Cada
ataque revelava planejamento e método: Na vila de Pentridge (que ficaria famosa cinco anos depois,
em outro contexto), “ depois de passar pela aldeia, e examinar as
Só quebraram as armações dos que tinham reduzido o valor dos armações e seus ocupantes, quanto ao serviço que faziam e os
salários dos empregados: os que não tinham abaixado o valor, preços que recebiam, retiravam-se sem fazer nenhum e s tr a g o ...”
ficaram com suas armações intactas; num estabelecimento, na Por simpatia ou em autodefesa os fabricantes de malhas que esta­
noite passada, quebraram quatro entre seis armações; as outras vam conformes às condições exigidas pelos malharistas afixavam
duas, que pertenciam a mestres que não tinham abaixado seus uma nota em suas armações: “ ESTA ARMAÇÃO ESTÁ FAZEN­
salários, não mexeram nelas. DO SERVIÇO BEM ATUSTADO, AO PREÇO COMPLETO”. 149
O êxito extraordinário dos luddistas ergueu seu ânimo:
Os luddistas iam mascarados ou disfarçados, tinham sentine­
las e mensageiros: “comunicavam-se entre eles através de uma Agora pela força indomado, e por ameaças inabalado
senha, e o disparo de uma pistola, ou espingarda, geralmente é A própria morte não consegue seu ardor refrear
sinal de perigo ou retirada” :
A presença de Exércitos não consegue amedrontá-lo
Nem impede sua carreira de sucesso
Os amotinados aparecem de repente, em grupos armados, com
comandantes regulares; o chefe deles, seja quem for, é denomi­ Enquanto a notícia de suas conquistas estende-se
nado General Ludd, e suas ordens são tão tacitamente obedecidas [por toda a parte
como se tivesse recebido sua autoridade das mãos de um Monarca. Como seus Inimigos se alarmam
Sua coragem, sua força assustam-nos
Acreditava-se. de modo geral, que os luddistas agiam sob Pois temem seu Braço Onipotente. ( ...)
juramento solene, e que a desobediência às ordens do General
seria punida com a morte.147 E quando empenhado na obra de destruição
Ao mesmo tempo, generalizaram-se as batidas atrás de armas Pessoalmente a método nenhum se restringe,
e coletas amplas de dinheiro para os fundos luddistas. Uma carta A fogo e água os destrói
de Ashover descrevia a autoridade com que agiam os luddistas: Pois os Elementos ajudam seus desígnios.

147. Darvall, op. cit., pp. 67-70; Hammonds, op. cit., pp. 261-5; Leeds 148. Aspinall. op. cit., p. 118.
Mercury. 7. 14. 21 de dezembro de 1811 14^. Alfred, 9 de dezembro de 1811.

126 127
Guardado por Soldados na Estrada por semana. Segundo, agora havia milhares de soldados na área,
Ou em cuidadosa segurança na sala, além de polícias especiais e grupos de guardas locais. Terceiro,
Faz com que estremeçam dia e noite, o Projeto que convertia a destruição de armações em crime capital
E nada pode atenuar sua ruína.15015 agora estava no Parlamento, e (como vimos) o luddismo subi­
tamente cedeu espaço à agitação constitucional — tão subitamen­
Não só se ofereceu abertamente uma ‘'recompensa” a quem
te que é impossível deixar de acreditar que o novo Comitê
quer que desse informações sobre pessoas que tinham revelado
não estivesse pelo menos parcialmente sob direção anteriormente
seus segredos, como também lançaram-se ameaças pseudoluddistas luddista.152 Mas, no exato momento em que o luddismo de Not­
que coletavam fundos ou saqueavam chácaras isoladas sob outros tingham entrou em inatividade, o seu exemplo acionou o luddismo
pretextos. À disciplina ‘‘do General” é bem ilustrada por uma em Lancashire e Yorkshire.
carta a um “ Estranho Desconhecido” , que acompanhava alguns Em Yorkshire, as notícias de Nottingham tinham sido sofre-
artigos que tinham sido roubados durante um ataque em Clifton gamente acompanhadas pelos aparadores de tecido e, segundo a
(Notts.), com a solicitação de que os artigos fossem “ Devolvidos tradição, os informes do Leeds Mercury tinham sido lidos em voz
aos seus respectivos donos” : alta nas oficinas. A primeira insinuação de uma atividade luddis­
. . . é com extremo Pesar que lhe informo como Chegaram às mi­ ta veio em meados de janeiro, quando um grupo de homens com
nhas mãos quando saí com meus homens havia alguns junto co­ rostos pintados de preto foi surpreendido na Leeds Bridge. A par­
nosco que eu Nunca tive antes comigo e foram esses Vilões que tir daí, o luddismo surgiu, já plenamente formado, seguindo os
pilharam mas quando íamos saindo de Clifton um dos meus Ho­ moldes da disciplina e tática de Nottingham, mas acompanhado
mens veio e me disse que ele Achava que aqueles Homens tinham de um maior número de enfáticas cartas de ameaça que podem,
pegado algumas coisas que não tinham Nada a ver com eles eu ou não, ter derivado de uma fonte central. Em janeiro, uma
portanto dei ordens de que fossem revistados. . . das únicas cardas mecânicas de Leeds foi incendiada; em fevereiro,
ocorreram ataques noturnos nos distritos de Huddersfield e Spen
A carta terminava de modo mais severo: Valley, onde se encontraria o maior número de cardas mecânicas
. . . estávamos justamente indo pendurar um dos Vilões quando e cisalhadeiras. Depois de um ataque bem-sucedido:
fomos informados de que os Soldados estavam perto achamos
Melhor nos Retirar. N.B. Os Homens que tinham as coisas eram Tão logo se completou a obra de destruição, o Líder reuniu seus
totalmente estranhos às minhas ordens ou Nunca teriam tocado homens, fez a chamada, e cada homem respondeu a um número
numa única coisa, mas eles foram punidos pela sua vilania pois específico, em vez do seu nome; então dispararam suas pistolas
um deles foi pendurado por 3 Minutos e a seguir novamente (...) deram um grito c se retiraram cm marcha em ordem militar
normal.
Baixado sou um amigo dos pobres e Aflitos e um inimigo do
trono dos opressores.
GENERAL LUDDisi Nada foi destruído além da maqiiinaria odiada:
.. . um do grupo tendo perguntado ao Líder o que deviam fazer
Na primeira semana de fevereiro de 1812, esta — a fase princi­
com um dos Proprietários, ele respondeu que não tocassem em
pal do luddismo das Midlands — desapareceu. Havia três razões. um fio de cabelo seu; mas, que, se tivessem a necessidade de vi­
Primeiro, os luddistas tiveram um certo êxito: a maioria dos nego­ sitá-lo novamente, não mostrariam nenhuma clemência por ele.153
ciantes de malhas tinha concordado em pagar preços melhores,
e os salários de modo geral tiveram um aumento de até 2 xelins 152. Henson declarou que aconselhava a formação de grêmios profissionais
como uma alternativa ao ludding; Forth Report ( . . . ) Artizans and Machi-
nery (1824), p. 282.
150. General Ludd's Triunph, H. O. 42.119. 153. Leeds Mercury, 18 de janeiro, 29 de fevereiro de 1812; Frank Peel,
151. Leeds Mercury, 15 de fevereiro de 1812; Nottingham Review, 7 de op. cit. (ed. 1880), p. 17.
fevereiro dc 1812.

129
128
Parece ter existido diferentes “comandos’' luddistas em eles têm ordens de matá-lo & incendiar todos os seus Alojamen­
West Riding, situados em Leeds, Halifax, Huddersfield e as pe­ tos; tenha a Bondade de informar aos seus Vizinhos que o mesmo
quenas vilas de manufatura de tecido de Spen Valley, cujos dele­ destino os espera se suas Armações não forem rapidamente reti­
gados (de Cleckheaton, Heckmondwikem, Gomersal, Birstall, Mir- radas. . .
field, Brighouse, Elland e “ locais mais distantes") supostamente
teriam se encontrado em fevereiro e enviado delegados para uma O Sr. Smith e seus “ Irmãos em Pecado" foram então infor­
outra reunião, uma ou duas semanas depois, em Halifax.154 Em mados de que “ havia 2.782 Heróis Jurados unidos num Laço de
Leeds, foi distribuído um panfleto com termos muitíssimo mais Necessidade só no Exército de Huddersfield. e quase o dobro de
insurrecionais do que qualquer outra coisa atribuída aos luddistas Homens Jurados em Leeds":
de Nottingham: Pelas últimas cartas dos nossos Correspondentes, soubemos que
os Manufatureiros nos seguintes Locais vão se levantar e se unir
A todos os Aparadores, Tecelãos &c. & ao Público em geral. a nós para reparar seus Erros A Saber Manchester, Wakefield,
Magnânimos Conterrâneos: Halifax. Bradford, Sheffield. Oldham, Rochdale e toda a Região
Vocês estão convocados a se apresentar em Armas e a auxi­ Cotonífera onde o bravo Sr. Hanson vai conduzi-los à Vitória, os
liar os Justiceiros para reparar os Erros deles e livrar-se do odioso Tecelãos em Glasgow e muitas partes da Escócia vão se unir a
lugo de um Velho Tolo, e seu Filho ainda mais tolo e seus Mi­ nós os Papistas na Irlanda estão se mostrando à altura de Ho­
nistros Velhacos, todos os Nobres e Tiranos devem ser derruba­ mens, de modo que é capaz que eles dêem aos Soldados mais
dos. Venham, sigamos o Nobre Exemplo dos bravos Cidadãos de coisas para fazer além de ficarem Ociosos em Huddersfield e
Paris que à Vista de 30.000 Soldados Tiranos puseram Abaixo então que seja a Desgraça para os locais agora guardados por
um Tirano. Fazendo isso, vocês estarão visando ao seu próprio eles.. .156
Interesse da melhor forma. Mais de 40.000 Heróis estão prontos
para levantar, para esmagar o velho Governo & estabelecer um Dez dias depois (20 de março de 1812), o próprio magistrado,
novo. o mais ativo no distrito de Huddersfield, foi o destinatário de uma
carta de ameaça, declarando vir do “ Procurador do General Ludd"
Dirijam-se ao General Ludd Comandante do Exército de Jus­ na Floresta de Sherwood, Nottingham, transmitindo o julgamento
ticeiros.155 do “Tribunal de Ludd em Nottingham".157 As vitórias em York-
Um Sr. Smith, manufatureiro de Huddersfield, recebeu uma shire, seguindo-se às nas Midlands, a impotência do exército e a
carta ainda mais assustadora: hostilidade da opinião pública iam além do que podiam suportar
os manufatureiros menores — principalmente quando eram os
Acabou de ser dada a informação de que você é dono daquelas destinatários de uma correspondência de arrepiar os cabelos. Muitos
abomináveis Cisalhadeiras, e fui solicitado pelos meus Homens deles simplesmente capitularam, destruindo ou guardando suas
para lhe escrever e fazer-lhe uma Advertência clara para demoli- cisalhadeiras. Segundo a tradição, os luddistas treinavam assidua­
las. (...) Fique Avisado que, se não forem retiradas até o final mente à noite: “ mosqueteiros", em filas décuplas, ficavam em
da próxima semana, destacarei um dos meus Tenentes com pelo posição à frente, a seguir os armados com pistolas (. . .) lanças e
menos 300 Homens para destruí-las e fique ainda Avisado que. machadinhas em terceiro lugar, e um bando desarmado dispunha-
se você nos der o Trabalho de irmos tão longe, aumentaremos
se na retaguarda".158 Mas o lugar de honra, na lenda popular,
a sua desgraça incendiando seus Edifícios até as Cinzas e se você
tiver o Atrevimento de disparar em algum dos neus Homens, ficava para os homens dos malhos, que empunhavam enormes

156. Ibid., pp. 229-30. O Sr. Hanson, possivelmente, é o Coronel Hanson,


154. Peel, op. cit. (ed. 1895), pp. 44 ss. Ê de se notar que, sempre que o preso por apoiar os tecelãos em 1808.
relato de Peel pode ser verificado, revela-se de modo geral preciso, mesmo 157. Asa Briggs, Private and Social Themes in Shirley (Bronté Society,
nos detalhes. 1958), p. 9.
155. W. B. Crump, op. cit., p. 229. 158. A. L., Sad Times, p. 112.

130 131
(
marretas cie ferro chamadas “ Enochs” , para arrombar as portas
tinha um canhão armado em sua fábrica, com bombardas para
e esmagar as armações. Essas armações (assim como os malhos)
cobrir a linha de ataque; tinha se gabado que queria “ cavalgar
eram feitos por Enoch Taylor, de Marsden, um ferreiro que virara
até a altura da barrigueira de sua sela” sobre sangue luddista, e
produtor de máquinas, e o grito luddista era: “ Enoch as fez,
seu ódio era tão obsessivo que até as crianças escarneciam dele
Enoch as quebrará”. Os ataques eram celebrados na canção dos
nas ruas, aos gritos de “ Eu sou o General Ludd!” William
aparadores, a ser cantada no “ autêntico estilo do recitador de
Cartwright, de Rawfolds, no Spen Valley, era mais calmo, mas não
baladas” : menos determinado; todas as noites, punha soldados e trabalhado­
E noite por noite quando tudo está calmo, res armados em seu estabelecimento (onde ele próprio dormia),
E a lua se esconde atrás dos montes. sentinelas e (se suas defesas exteriores fossem atravessadas) barri­
Avançamos para cumprir nossa vontade, cadas de rolos cravejados de pontas nas escadarias e um barril de
Com machadinha, lança e espingarda! vitríolo no alto. Segundo a tradição, tiraram a sorte para decidir
Oh, como são danados os rapazes aparadores qual a fábrica que seria seu primeiro alvo. A escolha recaiu em
Que com forte golpe Rawfolds.
As cisalhadeiras quebraram, O ataque a Rawfolds se tornou lendário. Participaram talvez
Como são danados os rapazes aparadores! 150 luddistas (disse-se que aguardavam mais e que os contingentes
O grande Enoch ainda comandará a vanguarda de Leeds ou Halifax não conseguiram chegar em tempo). Condu­
Detenha-o quem ousar! Detenha-o quem puder! zidos por George Mellor, um jovem aparador de tecido de uma
Avancem todos os corajosos pequena oficina de acabamento na Longroyd Bridge, perto de
Com machadinha, lança e espingarda! Huddersfield, os luddistas trocaram um vivo tiroteio, por vinte
Oh, como são danados os rapazes aparadores.. . 159 minutos, com as defesas fortificadas. Sob a proteção desse fogo,
um pequeno grupo de malhadores e homens com machadinhas
tentaram repetidamente derrubar as pesadas portas da fábrica.
A fase principal do luddismo de Yorkshire atingiu um ponto
Esse grupo sofreu grandes baixas, sendo que pelo menos cinco
crítico em meados de abril, depois de apenas seis ou sete semanas
foram feridos, dois dos quais — mortalmente atingidos — ficaram
de existência efetiva. À medida que diminuía o número "de peque­
para trás quando os luddistas se retiraram abruptamente. Disse-se
nos manufatureiros que ainda empregavam as máquinas odiadas,
que seu comandante, Mellor, foi o último a ser deixado em campo,
ficava patente que os luddistas deviam ou sossegar com essas vitó­
e que não conseguiu ajudar os feridos, visto que estava ajudando
rias ou tentar a destruição das poucas fábricas consideráveis que a pôr a salvo um outro (seu primo). Pelo terreno em torno da
ainda resistiam. Optaram pela segunda alternativa. Na última se­ fábrica, espalhavam-se desordenadamente mosquetes, machados,
mana de março, atacaram com êxito duas fábricas perto de Leeds; lanças e ferramentas de metal.
em 9 de abril, a “ grande” manufatura de tecidos de Joseph Foster,
Inúmeros detalhes desse ataque e do que se seguiu a ele
em Horbury, perto de Wakefield, foi saqueada e incendiada, de­ entraram para o folclore tanto dos mestres como do populacho.
pois de um assalto de um contingente de até 300 luddistas, prova­ E, a este ponto, devíamos parar e perguntar o porquê disso, ava­
velmente reunidos a partir de comandos diversos.160 Agora a expec­ liando os recursos das autoridades, o contexto político de abril e
tativa geral era a de que viria um ataque a um dos dois estabele­ maio de 1812 e os acontecimentos simultâneos em Lancashire.
cimentos consideráveis, cujos proprietários se tinham feito famosos
Parte do pano de fundo nos é fielmente apresentada em Shirley
pela sua determinação de enfrentar os luddistas. William Horsfall, de Charlotte Bronte. O dono da fábrica, Gérard Moore (baseado
de Ottiwells, perto de Huddersfield, estava colérico e impaciente cm Cartwright), é corretamente mostrado como elemento perten­
para enfrentar um ataque; seus empregados estavam armados e ele cente à classe média semi-W/ng, semi-radical, cujo órgão era o
Leeds Mercury — indiferente ou contrário à guerra, ansioso pela
159. Frank Peel, Spen Valley: Past and Present, p. 242. remoção de todas as restrições ao comércio, agudamente crítico
160. Leeds Mercury, 11 de abril de 1812; Parvall, op. cit., p. 114.

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Biblioteca Universitária
UFSC _ _____
contra as políticas ministeriais e, principalmente, do Conselho dc cabeceira de um deles, John Booth, rapaz de 19 anos, filho de um
Ordens. O capelão do Exército, Helstone (intimamente baseado no pastor angjicano, à espera de uma confissão de morte. No momento
Reverendo Hammond Roberson), é um fanático Tory “ Igreja-e-Rei” , final, o jovem Booth fez um sinal a Roberson: “Você é capaz de
que considerava o Leeds Mercury nocivo e os donos de fábricas
guardar um segredo?” “Sim, sim”, respondeu o sôfrego Roberson,
como descontentes que tinham criado seus próprios dissabores.
“ sou capaz”. “ Pois eu também”, respondeu Booth, e logo depois
Tudo isso é genuíno. O Sr. Yorke, o squire jacobino-WA/g de morreu.
Charlotte Bronte, dividido entre sua lealdade de classe e sua sim­
patia pelas queixas populares, também pode ser a reprodução de A carta de um trabalhador de Nottingham que morava em
mais de um juiz de paz, que se mantiveram estranhamente inativos Yorkshire (e talvez fosse um refugiado luddista) para sua família
durante as revoltas luddistas. em casa, interceptada pelas autoridades, mostra-nos a reação ime­
diata:
As limitações de Shirley, evidentemente, residem no trata­
mento dispensado aos luddistas e seus simpatizantes. Mas a novela
Houve um combate entre os Luds & o Exército onde os Luds
continua a ser uma expressão autêntica do mito da classe média. foram derrotados o que se deveu aos Luds de Halifax que não
Em 1812, antigos antagonismos de classe foram lançados ao ca­ chegaram como tinham combinado tinham 16 homens ido de
dinho do luddismo; donos de fábricas e squires começaram o ano assalto no Local onde tiveram dois dos seus mortos os feridos
com áspera hostilidade mútua; à medida que os luddistas conse­ foram retirados e nenhum deles foi apanhado desde que os dois
guiam intimidar um manufatureiro atrás do outro, aumentava a homens foram enterrados na quinta-feira passada em Othersfield
contumácia dos Robersons. Assim, Cartwright, com sua atitude dc [Huddersfield] onde os Cadáveres foram colocados num quarto
desafio em Rawfolds, granjeou a admiração e gratidão dos oficiais Escuro com seis Velas de barro e os amigos dos Luds os acom­
militares e da hierarquia Tory dos squires. No norte, por algumas panharam todos os homens de Manhã com uma faixa de seda
debruada de Preto e os Padres se recusaram a Enterrá-los mas
semanas, foi um herói cujo nome era mencionado ao lado do de os Luds insistiram para que fossem Enterrados na Igreja e devem
Wellington. O tiroteio em Rawfolds foi o sinal de uma profunda ter uma grande Lápide ele viveu antes e vinte horas depois foi
reconciliação emocional entre os donos de grandes fábricas e as levado era o filho de um cura da Igreja que muito o perturbou
autoridades. O interesse econômico triunfara, e a lealdade última mas Ele se negou a revelar qualquer coisa.161
dos manufatureiros, quando defrontados com o jacobinismo operá­
rio, mostrou-se claramente num único incidente dramático. Nos dias que se seguiram ao ataque, não faltaram incipientes
Mas o que trouxe a reconciliação emocional às classes pro­ para excitar a imaginação popular: correram muitas estórias de
prietárias trouxe, por outro lado, um antagonismo mais profundo gente que escapou por um triz do Exército, de feridos escondidos
entre elas e as classes trabalhadoras. As tradições populares sobre em celeiros. Do pequeno destacamento de soldados na fábrica de
o ataque a Rawfolds ressaltavam o heroísmo dos luddistas e a Cartwright, mais de um tinha mostrado uma acentuada falta de
dureza dos defensores da fábrica. No folclore, proliferam os inci­ entusiasmo em cumprir com sua obrigação, e um deles se negou
dentes, os acasos particulares, a ação recíproca dos carátcres. De­ a disparar seu mosquete durante todos os vinte minutos do tiroteio,
pois da retirada, Cartwright teria supostamente recusado água ou “porque eu podia atingir algum dos meus irmãos”. O infeliz sol­
ajuda aos dois homens mortalmente feridos, a menos que reve­ dado (da Milícia de Cumberland) sofreu julgamento em corte
lassem segredos luddistas. Hammond Roberson teria supostamente marcial e foi condenado a 300 chicotadas — uma provável pena
se comportado com eles mais como um inquisidor do que padre.
Centenas de pessoas se comprimiram na rua, do lado de fora da
161. Radcliffe MSS., 126/32. O autor da carta de fato confundiu os deta­
estalagem onde os homens estavam à beira da morte. Encontraram- lhes do funeral de |ohn Booth, que foi enterrado às pressas em Hudders­
se manchas de aqua fortis (usada talvez para a cauterização) nas field, antecipando-se para evitar a reunião de grandes multidões que lhe
roupas de cama, e acreditava-se que tinham sido torturados para prestariam homenagem, com o funeral de Hartley em Halifax, para o qual
fornecer informações. Roberson supostamente teria se postado à ver adiante, p. 162.

134 135
de morte. O castigo foi ministrado em Rawfolds, e Cartwright deria esperar. A mesma crise que unira os homens da “ Igreja-e-Rei”
conseguiu recuperar parte da opinião pública a seu favor, ao obter e Leeds Mercury, Roberson e Cartwright, também cimentara o
a comutação da maior parte da sentença. sentimento popular contra os magistrados e, igualmente, os grandes
O que conseguiu foi pouco. Para o mito da classe média, patrões.163
Cartwright e Roberson foram os heróis do dia e, ademais, os
incansáveis perseguidores de “ homens mal-intencionados”, de emis­ Além disso, em abril e maio de 1812, o luddismo foi o centro
sários e agitadores misteriosos de regiões distantes, os quais eram de uma tensão insurrecional mais difusa (e confusa). Parte dela
os instigadores de desordens. “ Os líderes ele não conhecia”, escre­ derivava da crise econômica geral de 1811-12, da crescente impo­
pularidade da guerra e da agitação contra o Conselho de Ordens.
veu Charlotte Bronte sobre Gérard Moore:
Os bloqueios mútuos da Inglaterra e França e a interrupção do
Eram forasteiros: emissários das cidades grandes. A maioria de­ comércio americano tinham gerado dificuldades enormes em muitos
les não eram membros da classe trabalhadora: eram principal­ setores da indústria manufatureira — em Birmingham, Sheffield,
mente “fugidos ao recrutamento”, falidos, homens sempre endivi­ Liverpool, distritos têxteis — entre 1807 e 1812. Safras pobres
dados e muitas vezes embriagados — homens que não tinham trouxeram sua contribuição de escassez alimentar e alta de preços.
nada a perder, e muito — quanto a caráter, dinheiro e asseio — Os manufatureiros atribuíam todas as queixas à continuação da
a ganhar. Essas pessoas, Moore caçava como um sabujo, e bem guerra e, especificamente, ao Conselho de Ordens que punha boa
gostava do ofício (...) gostava mais do que de fazer tecidos. parte da Europa em estado de bloqueio. É significativo que o
luddismo tenha irrompido naqueles setores onde os grandes patrões
No folclore popular, porém, Cartwright e Roberson eram sim­ tinham se malquistado com o apoio público, aproveitando-se desse
plesmente os “ cães de caça” . A comunidade fechou-se contra eles período de extrema dificuldade econômica para adotar novas prá­
de forma extraordinária. Até o ataque a Rawfolds, os luddistas de ticas ou máquinas, ao passo que naqueles centros — Sheffield,
Yorkshire (como os das Midlands) tinham se limitado estritamente Birmingham e, até certo ponto, Manchester — onde toda a indús­
à destruição de armações. Não foram eles, mas sim Cartwright tria estava parcialmente paralisada, e os próprios patrões tinham
quem derramou o primeiro sangue. Por meses, apesar da presença começado com manifestações e petições contra o Conselho de
de 4.000 soldados em West Riding e do emprego generalizado de Ordens (sob a liderança de Brougham e, em Birmingham, do jovem
espiões, não se identificou claramente nem um dos atacantes de Thomas Attwood), a insatisfação operária se manteve, em larga
Rawfolds. Milhares deviam conhecer um ou outro participante. medida, dentro de formas “ constitucionais” .164
As tradições falam de pastores e cirurgiões dissidentes que se De fato, em 1812, a velha ordem dos squires dificilmente
recusavam a prestar informações, pequenos fabricantes de tecidos conseguiría controlar os distritos manufatureiros, a menos que con­
que protegiam seus trabalhadores luddistas, soldados que fechavam tasse com o apoio dos grandes patrões. Mas, paradoxalmente, onde
os olhos a provas. A Lei “ Guarda e Vigia” deixou de funcionar os patrões eram contrários ao governo, eram menores os problemas
cm paróquias inteiras. Corriam baladas luddistas: de ordem. O luddismo ilustra todo esse problema da ordem. No

Heróis da Inglaterra que querem ter um ofício


163. O “folclore" do luddismo se encontra em A. L., Sad Times; F. Peel,
Sejam leais entre si e não tenham medo Risings of the Luddites, e Spen Valley: Past and Present; Sykes e Walker,
Apesar da Baioneta calada não farão nada que preste Ben o' Bill's. Sempre que possível, essas versões foram confrontadas com
Enquanto mantivermos as Regras do General Ludd.162 as do Leeds Mercury e julgamentos posteriores. As cartas de Cartwright,
descrevendo o ataque e a “traição" dos seus soldados, encontram se nos
Mesmo o assassinato (27 de abril) de William Horsfall de Hammonds, op. cit., pp. 305-6, e em H. A. Cadman, Gomersal: Past and
Present (Leeds, 1930), pp. 114-6.
Ottiwell não provocou a reviravolta dos sentimentos que se po-
164. Ver A. Briggs, The Age of Improvement, pp. 164-6; A. Prentice, Histo-
rical Sketches of Manchester, pp. 41-7; Chester New, Life of Henry Brou­
162. Súmula, Rex v. MUnes and Blakeborough, T. S. 11.2673. gham (Oxford, 1961), cap. 4 e 6.

136 137
verão de 1812, havia nada menos de 12.000 soldados nos conda­ Ordens em junho de 1812.166 O luddismo talvez tenha acelerado
dos perturbados, contingente maior do que o que Wellington tinha esse acontecimento tanto quanto a agitação constitucional de
sob seu comando na Península. Durante meses, essas forças con­ Attwood e Brougham. Mas a revogação ocorreu contra um pano
sideráveis foram curiosamente ineficazes. Isso, em parte, podia se de fundo ainda mais ameaçador, pois agora tinham se acrescentado
dever ao fato de que muitos dos soldados rasos simpatizavam com ao luddismo de Yorkshire e das Midlands sérios distúrbios em
a população, de modo que as autoridades enfrentavam a necessi­ Lancashire.
dade de deslocá-los constantemente de um distrito a outro, por É difícil saber até que ponto a agitação em Lancashire pode
receio de que a “ insatisfação” se espalhasse entre suas fileiras. ser considerada como autenticamente luddista. Era composta em
Também se devia à magnífica segurança e comunicação dos luddis- parte por amotinamentos espontâneos, em parte por uma agitação
tas, que se moviam silenciosamente por terrenos conhecidos, en­ ilegal, mas “ constitucional”, pela reforma política, em parte por
quanto que a cavalaria trotava ruidosamente de aldeia em aldeia. incidentes criados por provocateurs e em parte por preparativos
Em West Riding, cujas colinas eram cortadas e recortadas por insurrecionais autênticos. Entre fevereiro e abril de 1812, pelo
trilhas de cavalos e velhos caminhos de animais de carga, os menos dois tipos de “ comitês secretos” estavam se formando numa
luddistas moviam-se imunes. Os movimentos da cavalaria eram série de vilas de Lancashire. Primeiramente, havia os comitês dos
“ bem conhecidos, e o som de suas espadas, a marcha das patas tecelãos, cuja organização secreta por vários anos viera promo­
dos seus cavalos à noite se faziam ouvir a longa distância; era vendo agitações e petições por um salário mínimo. Há notícias da
fácil para os luddistas escapar furtivamente por trás de sebes, aga­ formação desses comitês no início de abril em Manchester, Stock-
char-se nos campos cultivados, ou tomar estradas secundárias. . .” 165 port, Bolton, Failsworth, Saddleworth, Ashton-under-Lyne, Oldham,
Os objetivos dos luddistas encontravam-se numa infinidade de Stalybridge, Droylesden, Preston, Lancaster, Hendle, Newton,
Drilsdale, Hollinwood, Willington e Eccles.167 Em segundo lugar,
aldeias e fábricas dispersas. Essas aldeias não tinham prati­
no distrito de Manchester-Stockport e talvez em outros locais,
camente nenhum policiamento, e o exército relutava em aquar­
existia um incipiente conselho secreto de ofícios (ou “ Comitê de
telar grupos de cinco ou seis soldados num perigoso isolamento. Ofícios”), abrangendo “os Fiandeiros, Alfaiates, Sapateiros, Pe­
O magistrado montado, que pouco entendia da indústria e do povo, dreiros, Cortadores de Fustão, Marceneiros e muitos outros Ofí­
estava quase desamparado. Só o manufatureiro ou o dono de fá­ cios” . Já existira um comitê desse tipo em 1799, quando a Lei de
brica, cujos estabelecimentos e salários dominavam a aldeia, podia Associação foi aprovada pela primeira vez, e é inquestionável que,
exercer o controle. Assim, onde os patrões tinham perdido a leal­ em Manchester, os sindicalistas se consultavam formal ou infor­
dade dos seus trabalhadores, toda a estrutura da ordem estava sob malmente, sempre que surgia a ocasião.
ameaça, e só poderia ser restaurada com um acréscimo de sua Em 20 de março, o armazém de William Ratcliffe, um dos
autoridade, como ocorrera em Rawfolds, onde quem estava no primeiros manufatureiros a empregar o tear mecânico, foi atacado
comando era Cartwright. e não Roberson. Mas naqueles distritos, em Stockport. Em abril, os acontecimentos se precipitaram um
como Sheffield e Birmingham, onde os manufatureiros e trabalha­ atrás do outro. Em 8 de abril, deu-se um motim um tanto exube­
dores ainda se encontravam mutuamente ligados por um sentimento rante na Casa de Câmbio de Manchester. O pretexto fora, ao
comum de queixa contra a autoridade, o perigo de uma efetiva
desordem era mantido sob o controle dos mestres. 166. E também a revogação de 5 Eliz. c. 4 em 1815 e 1814.
Assim, o luddismo não só uniu magistrados e donos de fá­ 167. Essas vilas e aldeias são mencionadas como tendo enviado delegados
a várias reuniões secretas, nas declarações de Yarwood e relatórios de “B"
bricas, como também tornou inevitáveis algumas concessões por (Bent) para abril de 1812, em H. O. 40.1. Ver também depoimento de
parte do Governo aos interesses manufatureiros. E essas concessões Thomas Whittaker em H. O. 42.121, sobre uma reunião em 25 de março,
foram recebidas triunfalmente, com a revogação do Conselho das em “O Bom Samaritano", em Salford, onde estavam presentes delegados de
quase todas as vilas num raio de 22 a 30 quilômetros. Sobre a autenticidade
desses relatos, ver adiante, pp. 170 ss.
165. D. F. E. Sykes, History of the Colne Valley (Slaithwaite, 1906), p. 309.
139
138
menos indiretamente, político. Por anos, supusera-se que o Príncipe batata e do pão. Ao mesmo tempo, havia notícias confusas sobre
Regente era um adepto dos Whigs e até da reforma política, e ele a instigação ativa e organização dos amotinadores por “luddistas”
incentivara, para seus próprios objetivos partidários, a oposição ou agitadores “jacobinos” . Em Stockport, dois homens vestidos
foxista no decorrer dos primeiros anos de guerra. Quando termi­ de mulher, autodenominando-se “ esposas do General Ludd”, enca­
naram as restrições aos seus poderes, no início de 1812. aumen­ beçaram os insurretos. Chegaram cartas de ameaça não só aos
tara a expectativa de que se formasse um Ministério de “ Paz e donos de teares mecânicos, mas também aos donos de máquinas
Reforma” , onde os Lordes Grey e Grenville assumiríam um papel aperfeiçoadas de acabamento de tecidos:
de liderança. Contudo, o Príncipe Regente se limitara a oferecer
postos numa Coalizão a “ algumas daquelas pessoas com quem se Em justiça para com a humanidade Nós pensamos que é nosso
formaram os primeiros hábitos da minha vida pública” , em termos Dever Obrigatório dar-lhe esta Notícia que é se você Não Fizer
que sabia de antemão serem inaceitáveis. Na redistribuição que se com que aquelas Máquinas de Acabamento sejam Removidas
seguiu, foi empossada uma administração ainda mais impopular, Dentro do Limite de Sete Dias (...) sua fábrica e tudo o que ela
sob Perceval, com Castlereagh como Ministro do Exterior e Sid- Contém Vão e Deverão Certamente Ser Incendiados (...) Não é
mouth (pela primeira vez) como Ministro do Interior. As esperan­ nosso Desejo lhe Fazer o Mínimo Dano Mas Nós estamos plena-
mente Determinados a Destruir Tanto Máquinas de Acabamento
ças populares se frustraram de maneira mais ampla do que se como Teares a Vapor Que os Donos sejam Quem F or.. .170
supõe. Existem até mesmo indicações de que essa decepção foi
o motivo direto para o início do luddismo de Yorkshire.168 Em (Esta carta, porém, vinha assinada não por Ludd, mas pelo
Manchester, o grupo pela Igreja-e-Rei avaliou de forma seriamente “ General Justiça” .) Em 20 de abril, ocorreu em Middleton um
equivocada o sentimento público, e convocou uma reunião aberta grande tumulto, onde a fábrica com teares mecânicos de Daniel
na Casa de Câmbio para a apresentação de um discurso de con­ Burton foi atacada por vários milhares de pessoas. A fábrica foi
gratulações ao Regente, por ter mantido os Ministros do seu pai. Os assaltada por saraivadas e saraivadas de pedras, e os que a defen­
reformadores afixaram cartazes por Manchester, fazendo um apelo
diam responderam com tiros dc mosquete, matando três e ferindo
para que o público comparecesse à reunião e fizesse malograr o
outros mais. Na manhã seguinte, as multidões ameaçadoras reu­
discurso. Os Tories recuaram e tentaram cancelar a reunião. Mas
niram-se em números cada vez maiores, e a elas se juntou ao
grandes multidões se apinharam em torno da Casa de Câmbio e
meio-dia:
muitos dos presentes, principalmente tecelãos, em seguida foram
até St Anne’s Square. onde realizaram sua própria reunião. Enquan­
um conjunto de homens, consistindo de cem a duzentos indivíduos,
to isso, alguns jovens irromperam na sala de redação; quebraram alguns deles armados com mosquetes de baionetas caladas, e
janelas e tombaram móveis, e finalmente se seguiu um tumulto outros com picaretas de mineiro, [que] andaram em procissão
generalizado. Não foi um acontecimento importante, mas “ indicava até a aldeia, e se reuniram aos amotinadores. À frente desses
uma mudança na corrente da opinião popular. Antes daquela bandidos armados vinha carregado um Homem de Palha, repre­
época, o grito favorito era ‘lgreja-e-Rei’, e caçar ‘Jacobinos’ era sentando o renomado General Ludd, cujo porta-estandarte ondu­
um esporte seguro. . Um velho reformador lembrava mais tarde: lava uma espécie de bandeira vermelha.. ,171
“ Mas desde aquilo não tivemos mais turbas dc Igreja-e-Rei!” 169
Na quinzena seguinte, ocorreram motins muito mais sérios em Como a fábrica se mostrou inexpugnável, os amotinadores
Manchester, Oldham, Ashton, Rochdale, Stockport e Macclesfield. incendiaram a casa do dono da fábrica. Enfrentaram então o Exér­
Na maioria, foram motins por alimentos, de excepcional violência cito, a cujas mãos foram mortos pelo menos sete homens, e muitos
e extensão, com o propósito de forçar a diminuição do preço da mais saíram feridos.

168. Ver adiante, p. 165. 170. Carta anônima, 19 de abril de 1812, em H. O. 40.1.
169. Prentice, op. cit., pp. 48-52; Darvall. op. cit., pp. 93-5. 171. Leeds Mercury, matéria de Middleton. 25 de abril de 1812.

140 141
Este foi o clímax do luddismo de Lancashire, no que se refere
a ataques diretos contra máquinas. Foi, evidentemente, muito mais ria) os tecelãos que duvidavam da eficácia de se resistir às novas
do que um movimento de tecelãos — entre os mortos, havia um máquinas enquanto tal, e isso é confirmado por relatórios sobre
padeiro, dois tecelãos. um vidraceiro e um marceneiro, enquanto sérias divergências dentro dos próprios “ comitês secretos” dos te­
que no ataque do segundo dia destacaram-se mineiros de Holm- celãos. Assim, o luddismo de Lancashire passou por sua fase de
field. Foi também, em termos de baixas, o tumulto luddista mais destruição de máquinas em questão de três ou quatro semanas.
sério em todo o país. Em 24 de abril, porém, houve um prolonga­ Mas foi exatamente no momento em que se encerraram os ataques
mento um tanto misterioso — o incêndio da fábrica de Wray e a fábricas que se difundiram largamente as notícias de prestação
Duncroff, em Westhoughton. O mistério neste caso não é o ataque de juramentos, aprestamento de armas e treinos. Em maio e
à fábrica — ela era um alvo óbvio de destruição. Ela não só fora junho, os ataques aos teares mecânicos cederam lugar a prepara­
objeto de sucessivas ameaças, como também se registraram algumas tivos insurrecionais mais sérios. A despeito de ferozes sentenças
tentativas de ataque a ela, por instigação de um “comitê secreto” em contra os amotinadores de abril nas Sessões Judiciais de Lanca­
Bolton, largamente dirigido por agentes provocateurs empregados shire e Cheshire, no final de maio de 1812,173 os distúrbios con­
diretamente pelo Coronel Fletcher. O traço surpreendente é que, tinuaram até o outono. Em meados de junho, um dos delatores
depois de pouco terem logrado tais provocações, procedeu-se a um mais bem informados escreveu que “ grupos de 100 e mais luddistas
ataque bem-sucedido, independente (ao que parece) da atuação de têm invadido casas noite após noite apreendendo armas” . As ba­
espiões.172 tidas eram acompanhadas por disparos de espingarda, projéteis e
Esse episódio do luddismo vem tão carregado de duplicidade “luzes azuis” que demonstravam (aos olhos de um oficial) “ um
que mal se consegue acompanhar seus tortuosos emaranhamentos. grau altamente extraordinário de acerto e organização” . Durante
Mar a afirmação (derivada dos acontecimentos de Bolton) de que semanas, distritos inteiros na fronteira entre Lancashire e York-
o luddismo de Lancashire foi pouco mais que uma provocação shire ficaram praticamente sob lei marcial. E um comando militar
acrescentada pelo Coronel Fletcher e )oseph Nadin à fome dos em particular estabeleceu um reinado de terror, com prisões arbi­
tecelãos não consegue se sustentar. É verdade que os atos abertos trárias, buscas, interrogatórios brutais e ameaças, que para encon­
dos homens de Lancashire pouco mostram daquela organização e trarmos alguma comparação teríamos que recorrer à história
disciplina que marcaram os acontecimentos em Nottingham e West irlandesa.174
Riding. Por outro lado, a destruição de teares mecânicos levantava
Foi no início do verão que o luddismo atingiu seu ponto
problemas de ordem diversa dos das cisalhadeiras ou armações de
crítico. Na semana dos casos de Middleton e Westhoughton, ocor­
malharia. O tear mecânico era uma máquina cara. apenas recente­
reram também sinais alarmantes em várias partes do país. Deram-
mente introduzida, empregada somente em pouquíssimas fábricas se sérios motins por alimento em Bristol, Carlisle, Leeds, Sheffield,
movidas a vapor, e que não se encontraria disseminada em pe­ Barnsley; em Cornwall, os mineiros entraram em greve e marcha­
quenas oficinas pelo interior. Assim, a tática da guerrilha noturna ram até as cidades-mercados, exigindo reduções no preço dos ali­
era de pequena valia em Lancashire: cada investida devia ter as mentos; houve distúrbios em Plymouth e Falmouth. Em vários
dimensões do caso de Rawfolds ou Burton, com a probabilidade desses lugares, os motins por alimentos demonstraram um caráter
de confronto direto com o Exército, isso dificilmente seria razoá­ mais premeditado do que o usual, enquanto atitude política ou
vel, mesmo em termos táticos limitados. Ao mesmo tempo, o povo cívica, para impor um preço máximo popular, e em Sheffield, onde
de Lancashire tinha convivido, por várias décadas, ao lado da
fiação a vapor. Deviam ser muitíssimos (e provavelmente a maio­
173. Em Lancaster, entre 58 prisioneiros, 28 foram condenados — 8 à morte
e 13 ao desterro. Em Chester, entre 47 prisioneiros, 29 foram condenados
172. A estória tortuosa do "S pai * e “S filho” vem contada nos Hammonds, — 15 à morte (embora apenas dois tenham sido enforcados) e 8 ao desterro.
op. cit., cap. 10; Darvall. op. cit., cap. 5, 14; Pretince. op. cit., pp. 52-8: 174. Lloyd ao H. O., 17 dc junho de 1812, H. O. 40.1; F. Raynes. An
Anôn., The fílackfaces of 1812 (Bolton, 1839). Appeal to the Public (1817), pp. 20-1, passim.

142 143
se invadiu uma loja de armas militares, afirmava-se que os dois Maldito Canalha Insensível.. ” m Mas, no que dizia respeito aos
principais líderes eram não desempregados famintos, que cons­ habitantes de Yorkshire, o Príncipe Regente estava muito longe,
tituíram o grosso dos manifestantes, mas “os dois artífices mais ao passo que os magistrados e donos de fábricas estavam à mão.
peritos da cidade” , com salários de 4,5 guinéus por semana.175 Depois da derrota em Rawfolds, o luddismo de West Riding in­
Em 27 de abril, em West Riding, William Horsfall foi assassinado. gressou numa fase mais desesperada. Ele sempre tinha tido uma
Em 11 de maio, o Primeiro-Ministro Perceval foi assassinado na disciplina mais militar do que a do luddismo de Nottinghamshire,
Câmara dos Comuns. Por um dia, o país ficou em alvoroço. O e se cercara muitíssimo mais com segredos e juramentos, visto que
júbilo popular era indisfarçado. Em Bolton (queixou-se o Coronel surgira no mesmo momento em que a destruição de armações se
Fletcher), “a Turba exprimiu Alegria” com a notícia. Nas Potteries, convertera em crime passível de pena de morte. A decisão de
uma testemunha ouviu a notícia quando: assassinar Horsfall foi provavelmente tomada pelo próprio George
Mellor, o comandante do distrito local, e não por alguma reunião
Um homem desceu correndo a rua, dando pulos no ar, girando de delegados de Yorkshire. Segundo a tradição, o jovem Booth.
o chapéu em torno da cabeça, e gritando com alegria frenética: filho do cura, era seu amigo e protégé particular, e ficou desvai
“Atiraram em Perceval, hurra! Atiraram em Perceval. hurra!” rado com sua morte. Benjamin Walker, o cúmplice que passou a
depor contra seus companheiros, declarou que Mellor e seus co­
A multidão em Nottingham comemorou e “ desfilou pela ci­
legas aparadores de tecido na oficina de John Wood, na Longroyd
dade com tambores soando e bandeiras flutuando em triunfo” .
Bridge, “ conversaram sobre ( ...) os homens mortos na fábrica de
Mesmo em Londres, quando transpirou a notícia, reuniram-se mul­
Cartwright” :
tidões do lado de fora da Câmara dos Comuns, e quando o assas­
sino, John Bellingham, foi levado embora, repetiram-se gritos de Disseram que era uma questão difícil. Mellor disse que se devia
aplausos por parte “da parcela ignorante ou depravada da multi­ renunciar ao método dc quebrar as cisalhas, e em vez disso de­
dão”. A notícia de que Bellingham provavelmente seria um desar- viam atirar nos mestres. Isso foi o máximo que ouvi dizer; disse­
ranjado mental e tinha agido por motivos de queixa pessoal foi ram que tinham perdido dois homens, e deviam matar os mestres.
recebida quase que com desapontamento; esperava-se que tivesse
surgido um outro Despard, mais bem-sucedido. Quando Bellingham Regozijar-se com a morte de um distante Primeiro-Ministro
subiu ao cadafalso, o povo gritava “ Deus o abençoe”, e Coleridge era uma coisa. Outra era o assassinato a sangue-frio, por detrás
ouviu-os acrescentar: “ Este é só o começo”. Julgou-se inoportuno de um muro, de um homem que regularmente ali passava por
fazer um funeral público para Perceval.176 perto e que — no que pese toda a sua impopularidade — “ per­
A pura fúria insurrecional raramente foi mais generalizada na tencia” à comunidade. Seria excessivo sugerir que houve uma re-
história inglesa. Por algumas semanas, avisos escritos a giz nas vulsão violenta dos sentimentos. Centenas de pessoas deviam des­
portas e muros de West Riding ofereciam 100 guinéus pela cabeça confiar de quem eram os assassinos, e ainda assim, por meses,
do Príncipe Regente.177 Em meados de maio, o Regente e seu não se fez nenhuma revelação. Seria mais correto dizer que houve
secretário particular receberam montes de cartas de ameaças, uma uma revulsão dos sentimentos entre os que antes tinham sido
das quais, assinada “ Vox Populi” , iniciativa: “ Alimentos mais espectadores ou simpatizantes passivos, ao passo que, no mesmo
Baratos — Pào ou Sangue — Diga ao seu Senhor que ele é um tempo, deu-se um endurecimento dos sentimentos em ambos os
extremos. “ Que eu saiba, não há um habitante nessas Vizinhanças”,
175. Leeds Mercury, 2 de maio de 1812; T. S. 11.5480. o reverendo Hammond Roberson escreveu a Cartwright três dias
176. H. O. 40.1; Prentice, op. cit., p. 46; Leeds Mercury, 16 de maio de depois da morte de Horsfall:
1812; Peel, Rising of the Luddites, pp. 156-7; A. Briggs, Age of Improve-
rnent, p. 157.
177. Radcliff MSS.. 17 de março de 1812, 126/26. 178. Ij)ndon Gazette, 19 de maio de 1812; H. O. 42.123.

144 145
que esteja totalmente alerta à situação da região, ou melhor, talvez, gham e tenho pronta a bala que será enviada ao Sangue do seu
que seja capaz e que ouse tomar qualquer participação decisiva Coração se eu tiver de fazê-lo na casa de Deus” .181 Em novembro,
para dirigir as operações do Exército além de mim mesmo. Se me
a rede se fechara. Na Comissão Especial de York, em janeiro de
fosse possível dedicar meu tempo inteiro ao Exército, daria o
melhor de mim.179 1813, Mellor e dois companheiros foram declarados culpados do
assassinato de Horsfall e foram imediatamente executados, en­
quanto os outros julgamentos ainda estavam em andamento. Outros
Por seu lado, os luddistas começaram a perder membros c
quinze receberam sentenças de morte, e apenas uma foi comutada
recorreram a ameaças para recompor sua disciplina afrouxada.
em desterro perpétuo, pelas suas participações no ataque de Raw­
Terminaram os ataques a cisalhadeiras (embora umas poucas em­
folds ou em batidas em busca de armas. Outros seis, inclusive o
presas ainda resistissem) e cederam lugar a batidas generalizadas
velho democrata de Halifax, Baines, foram condenados a sete anos
atrás de armas e dinheiro. Essas batidas, como as de Lancashire,
de desterro, por ministrarem juramentos ilegais. Se seu delito ti­
atravessaram maio, junho, julho, agosto e setembro, embora um
vesse sido cometido no final, ao invés do início de julho de 1812,
ou dois grupos de arrombadores de casas disfarçados de luddistas
teria acarretado a pena de morte.
confundissem o quadro. Os relatos dessas batidas fazem-nos com­
pará-las a uma operação guerrilheira em território ocupado pelo Nesse ínterim, Nottingham e os distritos de fabricação de
inimigo. Um magistrado, em julho de 1812, descreveu uma batida malhas tinham se mantido calmos durante toda a primavera e
na vila de Clifton (Yorks) e comentou: verão de 1812, quando o Comitê dos Malharistas de Bastidor
vinha tentando obter a aprovação do seu Projeto de Lei no Parla­
... a precisão, intrepidez & presteza com que um grupo de ban­ mento. Nenhum dos líderes do movimento de 1811-12, com toda
didos armados revistou de forma regular uma vila populosa — certeza, jamais foi condenado. Apesar da aparente paz de 1812-13,
1,6 km de raio, em busca de armas, e levaram seis ou sete sem mantinha-se a pressão sobre os mestres para ceder aos termos dos
tentar tocar cm nenhum outro bem, disparando repetidamente malharistas através de cartas anônimas e ameaças de novas ações:
contra casas & indivíduos que esboçassem a menor resistência,
com uma prontidão & disciplina evidentes que nenhuma tropa George Rowbottom esta é para informá-lo [dizia uma delas, de
regular conseguiría superar.. .18° abril de 1812] que não existe ninguém na cidade de Arnold
Bullwell Hucknall nem Basford que pegue serviço a menos que
O luddismo de Yorkshire sumiu aos poucos, entre prisões, seja ao preço total e ajuste completo e preço e tamanho adequado
traições, ameaças e decepções. Mais uma vez, a estória passou para e esta é para lhe dar o Aviso que se vocc trouxer ou der qualquer
o folclore e se revelou nos julgamentos em York, em janeiro de outro serviço sem ser de ajuste completo preço total e tamanho
adequado você fai fazer funcionar esta armação182 com uma corda
1813. Espiões trazidos de outros distritos fizeram várias descober­
em torno do pescoço...
tas. Um grupo de painistas, incluindo um chapeleiro, John Baines,
foi preso em Halifax sob a acusação de ministrar juramentos luddis­ Seguiu-se então uma pequena recrudescência do luddismo em
tas. A seguir, Benjamin Walker, colega de trabalho e cúmplice de novembro e dezembro de 1812, mas, por dois anos, os trabalha­
Mellor, traiu os segredos do assassinato de Horsfall. Outros luddis­ dores em malha demonstram ter depositado sua confiança na ação
tas viraram delatores, para salvar suas vidas. Alguns dos participan­ do seu sindicato. Então ressurgiram uns poucos ataques dispersos
tes no caso de Rawfolds foram rastreados; ocorreram novas prisões
em Barnsley e Holmfirth. Em outubro, Joseph Radcliffe, o magis­
181. Radcliffe MSS., 126-91. Radcliffe foi perseguido com ameaças por
trado mais ativo no rastreamento dos luddistas, recebeu uma última vários anos. “O ludding vai começar aqui de novo”, advertiu-o em março
ameaça: “ Eu muito certamente vou me converter em outro Bellin- de 1815 um missivista anônimo. Os aparadores “juram que o primeiro
em quem vão atirar é você, o velho Bellsybub, como o chamam”: 126/36.
182. Aqui vem um desenho tosco de uma forca, com a sinistra observação:
179. Ver A. Briggs, Private and Social Themes in Shirley, p. 12. “essa armação opera com ajuste completo e preço total”. H. O. 42.122.
180. Fitzwilliam Papers, F. 46(g).
147
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(em 1814), e parece que alguns dos estabelecimentos de malharia membros de sua quadrilha, e em abril de 1817 foram executados
realmente tentaram provocar destruições de armações, de modo a seis indivíduos em Leicester, e outros dois foram condenados ao
conseguir um pretexto para agir contra o sindicato.183 Quando o desterro. Um dos condenados, Thomas Savage, em depoimentos
sindicato foi dissolvido, e presos dois dos seus diretores, os ataques durante a quinzena que antecedeu a execução, declarou que, nessas
últimas fases, “o Ludcling e a Política estavam intimamente liga­
aumentaram. Em setembro de 1814, um malharista de Basford,
lames Towle, foi preso por sua participação num dos ataques, dos”. Afirmou que existia uma colônia de luddistas refugiados em
Calais.184 Ele tentou implicar Gravener Henson (a quem acusou
mas foi absolvido nas Sessões da Primavera (1815). Houve uma
de ser “capaz de perpetrar qualquer coisa que Robespierre já co­
última fase do luddismo das Midlands entre o verão de 1816 até
metera”) como o “ Líder do conjunto” . Mas seu relato um tanto
os primeiros meses de 1817, a qual atingiu uma intensidade que
colorido e suspeito de fato não vinculou, em ponto algum, o pró­
não se via desde 1811. O ataque mais espetacular foi o da fábrica
prio Henson à destruição de máquinas; as acusações eram que
de dimensões consideráveis de Heathcote e Boden, Loughborough,
cujos guardas foram dominados por indivíduos mascarados e arma­ Henson fora o iniciador da agitação ultra-radical entre os malha­
dos com bacamartes, e cujas caras máquinas de tecido rendado ristas, que culminou no movimento do Clube Hampden no inverno
foram destruídas aos gritos de: “ Ludds, cumpram bem com seu de 1816-17, e que visava a uma revolução republicana e “falou de
dever. É um caso Waterloo, por Deus*’. Neste único ataque, os atacar os quartéis em Nottingham” . Fosse verdade ou não, Henson
prejuízos causados ultrapassaram 6.000 libras. James Towle foi não estava em liberdade, para poder revelar suas simpatias, quando
novamente preso; desta vez, foi condenado e, em meados de no­ se deu o “ levante” de Pentridge em junho. Pois, na mesma semana
vembro, executado. Os ataques continuaram por um ou dois meses. em que Savage fez suas acusações, Sidmouth tinha sido informado
Segundo um relato, o irmão de Towle liderou uma quadrilha an­ por um correspondente de Nottingham que Henson (“um sujeito
siosa em mostrar a “ Jem que podiam fazer alguma coisa sem ele” . sensato e muito amigo de conversas”) tomara a posta para Londres,
Segundo outros relatos, esta fase final do luddismo foi obra de com a intenção de apresentar uma petição para poupar a vida dos
uma ou duas quadrilhas quase “ profissionais” , convidadas e pagas condenados. Em Londres, foi detido e, sob a suspensão do habeas
por seções do sindicato agora clandestino. Numa confissão que fez corpus. ficou preso por alguns meses. Mas, muito antes disso, o
na manhã de sua execução, Jem Towle declarou que nunca tinha movimento luddista, como o definimos aqui, já chegara ao fim.185
feito nenhum juramento secreto, e nem ouvira falar de ninguém
que o fizesse:
VI. Por Ordem do Ofício
Eles não têm nenhum fundo privado de dinheiro, mas quando se
pretende alguma coisa, ou se precisa de dinheiro para alguma “ Essas marchas e contramarchas!”, exclamou Byron na Câ­
finalidade, faz-se uma coleta entre os malharistas ou rendeiros mara dos Lordes:
que calham ter serviço naquele momento. (. . .) Não têm nenhum
depósito de armas. Muitos da quadrilha têm uma ou duas pistolas De Nottingham a Bullwell, de Bullwell a Banford, de Banford a
escondidas em casa. (...) Quando se pretende alguma coisa, três Mansfield! e quando os destacamentos finalmente alcançaram seu
ou quatro dos principais saem para reunir gente para tal, entre destino, com todo “o orgulho, pompa e cerimonial de gloriosa
os que eles sabem que têm uma boa disposição para o Ludcling.

Mas a confissão de Towle podia ser planejada para despistar 184. Não é impossível. Existia uma colônia de malharistas dc bastidor
ingleses em Calais. Ver provas de Henson em Fourth Reporí ( . . . ) Artizans
seus inquiridores. No início de 1817, foram encontrados outros and Machinery (1824), p. 274, e H. O. 79-3 f. 31.
185. Confissões de W. Burton em H. O. 40.4; depoimento de Thomas
183. Ver C. Gray, Nottingham Through 500 Years (Nottingham, 1960). Savage em H. O. 42.163; H. W. C. Davis, Age of Grey and Peel. p. 172:
p. 165. Darvall, op. cit., pp. 144-9, 155-9; Hammonds, op. cit., pp. 238-42.

148 149
guerra”, chegaram bem no momento de presenciar o dano que
fora feito (...) e voltar aos quartéis entre os risos de velhas e de qualquer motivo político por parte dos luddistas. Não existe
as vaias de crianças. um único exemplo onde possa se demonstrar que um ataque
luddista tenha se dirigido a algo mais profundo além de disputas
entre mestres e empregados, entre trabalhadores e patrões. Não
Sem dúvida, alguns dos líderes locais do luddismo estavam existiu um único luddista (.. .) contra quem se levantasse ou pu­
entre os que foram levados ao patíbulo; as evidências e a tradição desse caber uma acusação de traição. Não há nenhum indício,
popular mostram seguramente que George Mellor e (cm Towle apesar dos grandes esforços dos espiões em demonstrar tais moti­
eram “capitães" luddisias. Mas até hoje o luddismo se nega a vações, de que os luddistas, ou na verdade senão uns poucos
revelar todos os seus segredos. Quem foram os “reais” instigadores? agitadores irrelevantes, não-representativos, irresponsáveis, tives­
Existiu algum? Ou terá o movimento se inflamado espontanea­ sem qualquer desígnio amplo ou político.
mente, seguindo os exemplos, de um distrito a outro? Que tipo de
comitê existia nos diversos distritos? Havia alguma comunicação “Apesar da busca mais cuidadosa, não se encontrou nenhum
regular entre eles? Até que ponto eram realmente ministrados jura­ grande depósito de armas de que falavam os espiões. Não se po­
mentos secretos? Quais os objetivos políticos ou revolucionários dería traçar nenhuma conexão entre os insatisfeitos de um distrito
ocultos sustentados entre os luddistas? e os de outros. . .” Os comitês secretos nas vilas de Lancashire
Para todas essas perguntas, só cabe a resposta mais estrita­ eram um “ crescimento de fungos”, controlados por espiões ou
mente aproximativa. Deve-se dizer, porém, que as respostas geral­ indivíduos que faziam da “ sedição trivial sua fonte de renda” .
mente aceitas não estão em consonância com algumas das provas. E sobre os ataques luddistas maiores, “ não se demonstra que hou­
Os dois estudos mais importantes sobre o luddismo são os dos vesse nessas grandes turbas qualquer organização a mais do que
Hammonds e de Darvall. O Trabalhador Qualificado é um ótimo se encontra no monte de gente que acompanha uma ‘calourada’
livro, mas os capítulos sobre o luddismo às vezes se lêem como estudantil espontânea”. Não existe “o que quer que seja além do
um resumo preparado em nome da oposição Whig, destinado a testemunho não-corroborado de espiões para provar que os luddistas
desacreditar as declarações exageradas das autoridades sobre os jamais prestaram qualquer juramento secreto ou ilegal que fosse”.187
aspectos conspirativos e revolucionários do movimento. O papel Presos nas minúcias de relatórios do dia-a-dia — fleumáticos
dos espiões e agents provocateurs é enfatizado a tal ponto que funcionários aqui, magistrados cm pânico ali, estórias incrivelmente
sugere não ter existido nenhuma clandestinidade insurrecional au­ tortuosas de espionagem acolá — , é possível duvidarmos da reali­
têntica e nenhuma prova sobre o trânsito dos delegados entre os dade do luddismo como um todo. Mas se nos afastarmos por um
condados. Sobre a prestação de juramentos, os Hammonds decla­ momento das minúcias, veremos que as conclusões dessas autori­
ram que, “ pela interpretação mais generosa, não existe nenhuma dades são tão improváveis quanto a teoria sensacionalista sobre
prova para mostrar que o juramento era corrente, ou que jamais o caráter conspirativo do luddismo. Qualquer um que tenha mon­
foi ministrado exceto nos distritos onde os espiões trabalhavam tado uma rifa ou organizado um torneio estudantil de arremesso
ativamente” .186 O luddismo autêntico (é o que está implícito) não sabe que não se consegue reunir à noite montes de pessoas de
tinha nenhuma meta ulterior, e era ou uma questão de amotina- diversos distritos, num local determinado, disfarçados e armados
mento espontâneo (Lancashire) ou uma ação com objetivos indus­ com mosquetes, malhos e machadinhas, enfileirados, respondendo
triais estritamente limitados (Nottingham e Yorkshire). à chamada pelo número, marchando por vários quilômetros para
F. O. Darvall, em seu Distúrbios Populares e Ordem Pública proceder a um ataque bem-sucedido, com o acompanhamento de
na Inglaterra do Período da Regência, segue a maioria dos juízos projéteis e sinais de luzes — e tudo isso com a organização de
dos Hammonds. “ Não existe qualquer prova que seja” , declara uma “calourada” estudantil espontânea. Qualquer um que conheça
ele categoricamente: a geografia das Midlands e do norte vai achar difícil acreditar que

186. Loc. cit., p. 339. Grifo meu. 187. Loc. cit., pp. 174-96.

150 151
os luddistas de três condados vizinhos não tivessem nenhum con­ espiões profissionais, de notório mau caráter, trazidos especial­
tato entre si. \i preciso fazermos uma ginástica mental para conse­ mente de Manchester para tal finalidade, e há boas razões para se
guir separar o luddismo como um movimento puramente “ indus­ crer que o processo foi uma “ montagem”. Tanto os Hammonds
trial” , totalmente desligado da “ política”, numa época em que como Darvall insinuam que o outro processo — de um tecelão em
irlandeses descontentes vinham chegando às centenas em Lanca- Barnsley — foi igualmente suspeito, obra de um “espião” profis­
shire, e quando o povo comemorava o assassinato do Primeiro- sional.188 Mas não é absolutamente o caso. O informante, Thomas
Ministro em triunfo pelas ruas. Em suma, essas concepções acerca Broughton, era um tecelão e maçom de Barnsley, que prestou infor­
do luddismo só podem se sustentar por um arrazoado unilateral mações voluntariamente, por razões obscuras, e jurou seu depoi­
que exagera até o absurdo a estupidez, o rancor e o papel provo- mento perante dois magistrados de Sheffield, em agosto de 1812.
cador das autoridades, ou por uma falta acadêmica da imaginação De acordo com ele, tinha se juntado a um “comitê secreto” de
que compartimentaliza e desconsidera todo o peso da tradição cinco tecelãos de Barnsley no início do ano. Tinham “entrelaçado”
popular. 200 homens em Barnsley, principalmente tecelãos, mas incluíam-se
O fato é que não existe nenhuma fonte de evidência sobre a dois taverneiros, um chapeleiro e um jardineiro. (Não se admitiu
organização do luddismo que não venha “ tingida” em alguma me­ nenhum irlandês.) As obrigações dele eram a de comparecer às
dida. Como destacam os Hammonds e Darvall, só sabemos de reuniões, coletar dinheiro e se corresponder com outros comitês.
delegados ou juramentos através de boatos ou estórias de “espiões” , Barnsley (onde não se deu nenhuma atividade luddista) era tida
de magistrados ou militares, de confissões de pessoas condenadas como um centro novo e débil, sendo que as principais forças se
à morte ou com medo dela, ansiosas em salvar suas vidas. O mesmo concentravam em Sheffield e Leeds. Nos círculos luddistas, muito
vale para as metas ulteriores do luddismo. Mas que outro tipo de se vangloriavam de 8.000 “ entrelaçados” em Sheffield, 7.000 em
evidência poderia haver? Todo prisioneiro automaticamente se torna Leeds, 450 em Holmfirth. Enviaram delegados para reuniões em
sujeito a coerções, todo informante imediatamente vira “espião” . Manchester, Stockport e Ashton. Em Halifax, os luddistas reu-
Podemos pegar como exemplo os juramentos. Se existem pou­ niam-se “como dissidentes sob a capa da Religião” . Muitos dos
cas provas sobre a prestação de juramentos feitos por luddistas luddistas eram também membros das forças armadas. “ Os luddistas
das Midlands, pode existir uma razão para isso. A principal fase têm como alvo último derrubar o Sistema de Governo, Revolucio­
da destruição de armações nos condados centrais se encerrou em nando o País” . O próprio Broughton tinha assistido a uma reunião
fevereiro de 1812. Foi só nesse mês que a destruição de armações dc delegados em Ashton, onde um outro delegado lhe disse que o
se converteu em crime passível de morte. O luddismo de Yorkshire primeiro sinal seria um ataque às Câmaras do Parlamento. Se a
e Lancashire se iniciou sabendo que a descoberta significava a revolução desse certo, esperava-se que o Major Cartwright e Bur-
morte: portanto, é provável que tenha se feito algum tipo de jura­ dett se unissem a ela. Ele tinha recebido 10 xelins e 10 penies,
mento de sigilo (como insistem tanto os espiões como a tradição para as despesas de representação.189
popular). Era julho de 1812, a prestação de juramentos, para fina­
lidades criminosas, também se converteu em delito capital. Boatos Como muitos outros depoimentos desse tipo, é quase impos­
existem de que os juramentos continuaram a ser ministrados em sível separar o verdadeiro do falso. Mas podem-se fazer duas obser­
vações. A primeira é que Broughton aparece como um informante
Yorkshire até o fim da guerra. Mas quando o luddismo recomeçou
hona fide, isto é, um homem que tinha sido um autêntico luddista
nas Midlands, entre 1814 e 1816, novamente é provável que os
e virara traidor. A segunda é que, no processo instaurado em York
pequenos grupos envolvidos não quisessem acrescentar o risco extra
a partir das provas de Broughton — contra John Eadon, do Co­
de pena de morte embutido em mais um crime adicional.
mitê de Barnsley — , não foi citada uma única palavra do seu
Duas das levas de prisioneiros julgados nas Sessões Judiciais
de York, em janeiro de 1813, foram condenados por ministrarem
juramento. Um processo — o de Baines e os democratas de Halifax 188. Ver Hammonds, op. cit., pp. 314, 325.
189. Depoimento em Fitzwilliam Papers, F. 46(g).
— é altamente suspeito. Foram condenados sob provas de dois
153
152
depoimento. A promotoria só procurou apresentar provas quanto Naqueles anos, além disso, o Governo era odiado pelos traba­
à ministração de um juramento ilegal: lhadores e francamente desprezado por muitos membros da classe
média. Mesmo que, com base em depoimentos como o de Brough-
Eu por minha livre vontade e Acordo declaro e juro solenemente ton, os oficiais de justiça tivessem aconselhado a instauração de
que nunca revelarei a nenhuma (...) Pessoa ou Pessoas nada que um processo, tal procedimento não seria do interesse das autori­
possa levar à descoberta do mesmo seja por palavras ou ações dades. A suspeita de que estivessem agindo principalmente por
que possam levar a qualquer Descoberta sob a Pena de ser envia­
motivos políticos teria inflamado a opinião pública. Seu interesse
do para fora deste Mundo pelo primeiro Irmão que Possa me
Encontrar além disso juro que Punirei com a morte qualquer era o de restringir o processo a atos criminosos abertos: destruição
traidor ou traidores se surgir qualquer um entre nós perseguirei de armações e ataques noturnos, furto de armas, prestação de jura­
com vingança incessante, se escapar ao limite do Estatuto. Serei mentos. Depoimentos como o de Broughton, de qualquer forma,
justo sincero sóbrio e leal em todos os meus tratos com todos os pouco material representavam perante os tribunais de lei, especial­
meus Irmãos Assim DEUS me ajude a manter esse meu lura- mente quando a Defesa podia contar com os serviços de um advo­
mento Inviolado Amém.190 gado como Brougham. Eles se baseavam em relatórios não-confir-
mados de retórica revolucionária, reuniões com delegados de outros
Considerando-o, o juramento tem uma ressonância autêntica.191 distritos geralmente anônimos ou com pseudônimos, exageros óbvios
Mas a questão aqui é examinar um pouco mais os motivos das e insinuações altamente improváveis — como as afirmações de que
autoridades. Os dirigentes da Inglaterra eram insensíveis e indife­ Cartwright, Whitbread ou Burdett liderariam a revolução.
rentes aos trabalhadores, mas a Inglaterra não era um “estado De fato, ocorreu uma disputa extremamente curiosa entre as
policial”. Havia magistrados e oficiais — o Rev. Hammond Ro- autoridades locais e o Ministério do Interior, notadamente em
berson ou o Coronel Fletcher de Bolton — cujo ódio ao luddismo Yorkshire durante o verão e outono de 1812. “ Sr. Lloyd, um
era obsessivo e que, como Nadin, o famoso Subcomissário de advogado muito ativo de Stockport, empregado pelo Governo para
Manchester, não se deteriam frente a qualquer violência ou ardil obter informações enviando espiões pelo interior” (como observou
para conseguir uma condenação. Mas existia ainda um outro tipo um juiz de paz de Yorkshire, numa carta a Fitzwilliam),193 estava
de opinião pública a ser enfrentada. O Conde Fitzwilliam, o Lorde agindo sob a proteção direta do Ministro do Interior, procurando
Whig Encarregado de West Riding, era um indivíduo de disposição juntar casos estanques entre si, com métodos que certos juizes de
moderada, que mais tarde perdería seu cargo em conseqüência do paz do interior poderíam deplorar, realmente raptando suas teste-
seu protesto público contra Peterloo, e é improvável que tivesse munhas-chaves e levando-as para o outro lado dos Peninos, para
autorizado provocações efetivas. O juiz de diversos processos mantê-las num refúgio secreto.194
luddistas nas Midlands, o Sr. Juiz Bayley, foi fortemente censurado Pode-se sugerir uma certa divergência de abordagem. De um
por sua brandura. Num processo mais importante em Manchester, lado, o Ministério do Interior (agora com Sidmouth) já vinha se­
no verão de 1812, o júri negou-se a condenar 38 reformadores guindo políticas que levaram às provocações pós-guerra de Oliver
radicais que Nadin tentara “ incriminar” por ministração de jura­ Edwards e Castle. Sidmouth, Lloyd, Nadin queriam muitas prisões,
processos e execuções sensacionalistas, para lançar o terror no ínti­
mentos luddistas. Os oficiais de justiça estavam bem cientes de
mo de luddistas e reformadores, e não tinham muitos escrúpulos
que a condenação não era automática.192
se suas vítimas eram “ genuínos” luddistas ou não, nem quanto
aos meios empregados para se fabricarem as provas. De outro lado.
190. Rex v. Eadon, Howell, State Trials, XXXI, 1070. homens como Fitzwilliam e Radcliffe não estavam menos ansiosos
191. Os juramentos forjados por agents provocateurs geralmente eram muito
mais medonhos — um incluía a promessa de cortar fora a cabeça e mãos
de qualquer traidor e toda sua família. 193. Fitzwilliam Papers, 9 de julho de 1812, F. 46(g).
192. Foi por isso que os principais julgamentos luddistas se realizaram em 194. Sobre esse emaranhamento curioso, ver Hammonds. op. cit., pp. 315 ss.
Comissão Especial. e Darvall. op. cit., pp. 125-33.

154 155
em destruir o luddismo, mas eram mais escrupulosos quanto aos interpretar mal a natureza do poder. Em York. as “ leis feridas”
meios e decididos a apreender os verdadeiros criminosos — por e os valores de ordem foram apaziguados tão logo ficou certo que
exemplo, os assassinos de Horsfall e os indivíduos que atacaram os assassinos de Horsfall seriam condenados, que vários homens
a fábrica de Cartwright. No caso, os principais processos levados a seriam deportados por prestação de juramentos e que outros ca­
julgamento (à exceção dos 38 reformadores de Manchester) torze iriam para a forca por furto de armas e ataques noturnos.
eram pleitos que ofereciam seguros “exemplos de descoberta, con­ Ir alcm seria atormentar a opinião pública para além dos limites
denação e punição” para delitos particulares, onde acusações mais de resistência, e todos os juizes de paz e donos dc fábricas do
amplas de sedição política eram mantidas a boa distância. Mesmo norte passariam o resto de suas vidas entre execrações. Nessas
no processo dos democratas de Haüfax, embora seja certo que alturas, fechou-se o livro e veio uma proclamação de anistia. De­
existiam motivos políticos por detrás,195 a promotoria esforçou-se certo, a vingança já fora suficiente?
em acusar os prisioneiros pelas suas opiniões apenas de modo
Assim, não podemos discutir a organização luddista a partir
indireto e em fundar o processo na prova de ato aberto de jura­
dos processos levados a julgamento e nem das provas apresentadas
mento ministrado a determinada pessoa numa certa ocasião. Assim, pela promotoria. Na verdade, as autoridades geralmente agiam com
se se perguntar por que não se levantou nenhuma acusação de base em provas ou fortes suspeitas que nunca apareciam nos julga­
traição, a resposta será que tal acusação teria sido impopular, mentos.197* De fato tinham em seu poder montes de provas sobre
duvidosa em termos legais e poderia (como no processo de Man­ reuniões secretas, treinamentos, juramentos e trânsito de delegados,
chester) ter resultado em absolvição. algumas vagas, algumas desacreditadas, a maioria de pouco valor
As autoridades tampouco queriam realmente instaurar pro­ num tribunal de lei. Nelas se incluíam inúmeras cartas anônimas,
cessos massivos por prestação de juramentos. Desejavam simples­ além de cartas e depoimentos de informantes, algumas altamente
mente terminar com eles.196 E para tanto, queriam dar um exemplo, pormenorizadas, como a que descrevia o sistema luddista de senhas:
com julgamento e desterro, a partir dos processos mais favoráveis.
Por razões diversas, serviram de exemplo os homens de Halifax e Você tem que levantar a Mão direita até o Olho direito — se
houver um outro Luddista no Grupo ele vai levantar a Mão
Barnsley. Supor que as autoridades estavam motivadas por um esquerda até o Olho esquerdo — então você tem que levantar
desejo ardente de processar até o fim todos os casos possíveis é o indicador da Mão direita até o Lado direito da Boca — o
outro vai levantar o mindinho da Mão esquerda até o Lado
195. A súmula do caso Rex v. Baines, entre os documentos do Procurador esquerdo da Boca & vai dizer: O que você é? A resposta: Deter­
do Tesouro, começa: "o velho Baines é um Chapeleiro, homem notoria­ minado. Ele vai dizer: Pelo quê? Sua resposta: Liberdade Plena.98
mente descontente com o Governo": T. S. 11.2673.
196. As evidências de F. Rayncs, An Appeal to the Public (1817), a esse É certo dizer que essas declarações não têm valor de prova
respeito são esmagadoras. O Capitão Raynes comandou uma unidade com
num tribunal de lei. Mas, se seguirmos os Hammonds e Darvall,
responsabilidade específica para se infiltrar e descobrir os instigadores lud-
distas, cm Lancashire (junho-setembro de 1812) e West Riding (setembro-
dezembro de 1812). Por motivos de queixas particulares, ele publicou 197. Detivemo-nos sobre esse ponto por ajudar a explicar parte da confu­
posteriormente um relato sobre seus serviços, juntamente com sua corres­ são que rodeia os processos de Dcspard e Brandrcth. Súmulas conservadas
pondência com oficiais superiores. Em vários distritos de Lancashire, como entre os documentos do Procurador do Tesouro revelam o grande cuidado
Newton, o juramento era "quase universal entre as classes manufatureiras com que os oficiais de justiça da Coroa selecionaram minuciosamente as
e inferiores". Mais de uma vez, seus agentes conseguiram se infiltrar na provas para os atos aberto que poderiam ser apresentados mais facilmente
conspiração, mas os luddistas (percebendo que tinham sido descobertos) em tribunal. Mesmo no processo de 0 ’Coigly (ver A Formação da Classe
imediatamente correram para o magistrado mais próximo e se “desentre- Operária Inglesa, vol. I, p. 188), a súmula da Coroa traz a anotação: "Deve-
laçaram", prestando o juramento de lealdade — para enorme irritação do se mencionar a invasão da Irlanda?" (T. S. 11.333). Sobre o processo de
Capitão Raynes. O ceticismo quanto à existência maciça de prestação de Thomas Bacon, ver adiante, p. 251.
juramentos não sobrevive a uma leitura cuidadosa desse folheto (exemplar 198. Fitzwilliam Papers, F. 46(g).
em Manchester City Reference Library).
157
156
descartando todas essas provas,199 acabaremos numa situação ridí­ libras que lhe era devido; continuou com uma vida vagabunda
cula. Teremos que supor que as autoridades, através dos seus
miserável e, no final, ficou reduzido à mendicância. Dois luddistas
agentes, efetivamente criaram organizações conspirativas e a seguir de Nottingham que viraram informantes passaram a temer pelas
instituíram novos delitos capitais (como o da prestação de jura­ suas vidas, e rogaram à Coroa passagens para o Canadá. Outros
mentos) que só existiam na imaginação ou em conseqüência das suspeitos de delação foram simplesmente postos no ostracismo; um
provocações dos seus próprios espiões. Além disso, toda essa linha habitante de Yorkshire negou-se a continuar a viver com sua mu­
de argumentação trai uma incapacidade de imaginar o luddismo lher, a qual, por tolas indiscrições, fornecera provas que levaram
no contexto da comunidade local. Particularmente em Nottingham à execução de um membro do grupo de ataque de Rawfolds. Em
e West Riding, a força dos luddistas se concentrava em pequenas circunstâncias semelhantes, vários anos depois, dois informantes
vilas industriais, onde todos se conheciam entre si e estavam liga­ de Yorkshire ficaram isolados pela comunidade até o fim de suas
dos pela mesma íntima rede de parentesco. A sanção de um jura­ vidas: se entrassem numa sala ou taverna, o grupo reunido ime­
mento seria suficientemente terrível para um povo de mentalidade diatamente parava de conversar ou se levantava para ir embora.201
supersticiosa, mas a sanção da comunidade era ainda mais forte. Temos de imaginar a solidariedade da comunidade, o extremo
Os líderes luddistas eram populares em suas aldeias, como George isolamento das autoridades. Foi o que alçou Cartwright e Rober-
Howarth, um tecelão, que provavelmente fazia parte de um comi­ son à altura de heróis, aos olhos de Charlotte Bronte, a qual vive­
tê secreto de Yorkshire — de “ temperamento confiante, deste­ ra pessoalmente o mesmo isolamento no curato de Haworth duran­
mido, bom cantor em grupo, conversa comum, como homem do te as agitações cartistas. Quando houve o ataque a Rawfolds,
campo. . .” 200 As autoridades tinham enormes dificuldades em apesar do tiroteio, ninguém da localidade se mexeu em defesa da
convencer alguma testemunha a se apresentar e citar um vizinho. fábrica. Só depois que os luddistas se retiraram é que apareceram
Isso, em parte, devia-se ao temor de represálias luddistas. Mas, os três ou quatro homens da região dispostos a se declarar do lado
ainda mais, agir como informante era uma quebra da economia dos sitiados: o Rev. Hammond Roberson, o Sr. Cockhill (um gran­
moral, acarretando uma sentença de proscrição por parte da comu­ de mestre tintureiro), o Sr. Dixon (diretor de uma fábrica química)
nidade. Mesmo os magistrados locais não podiam encarar Benjamin e um bon vivant local chamado Clough. Foram rapidamente cerca­
Walker, o cúmplice que passou a depor contra Mellor, a uma luz dos por uma multidão murmurante, cujas simpatias estavam muito
que não fosse a de um Judas. Na véspera de sua execução, Mellor nitidamente do lado dos luddistas feridos.202 Além disso, tanto os
declarou: “ Que ele preferia estar na posição em que então estava, julgamentos como os funerais se converteram em ocasião de de­
medonha como era, do que ter de responder pelo crime do seu monstração de simpatia pública, que por vezes assumiram forma
acusador, e que não trocaria de posição com ele, nem que rece­ de intimidação, por vezes forma de fervor religioso. Os julgamen­
besse sua liberdade e duas mil libras”. A situação dos luddistas tos dos luddistas acusados em Nottingham se realizaram em meio
que salvaram suas vidas fornecendo provas às autoridades era a ameaças, manifestações e, numa vez, dentro de um tribunal
quase que mais dolorosa do que a dos condenados. Walker, que abarrotado de gente onde, supostamente, haveria indivíduos arma
foi visitado por um quacre depois das execuções em York, estava
com uma “ fisionomia (. . .) pálida e cadavcrica, e suas juntas, por 201. An Historical Account of the Luddites (Huddersfield, 1862).. p. 79;
Peel, Risings of the Luddites (ed. 1895), p. 278; Peel, Spen Valley: Past
assim dizer, tão frouxas como se mal conseguissem sustentar seu and Present, pp. 261, 264; Hammonds, op. cit., pp. 241-2; Sykes e Walker.
corpo” . De fato, ele nunca recebeu o prêmio mercenário de 2.000 fíen o' BilVs, p. 335. Nos anos pós-guerra, as autoridades adotaram a
prática de prometer aos informantes operários passagens para uma das
colônias. Ver também Hammonds, The Town Labourer, pp. 259-61.
199. Existe uma quantidade considerável de testemunhas desse gênero so­ 202. Peel, Spen Valley, pp. 255-6. Cf. Leeds Mercury (9 de maio de 1812):
bre treinamentos, delegados, pretensões revolucionárias, entre os documentos “ ...N ó s acreditamos que existe uma disposição muito generalizada entre
do Ministério do Interior. Darvall facilita sua argumentação deixando de as classes inferiores cm encarar as ações das pessoas envolvidas nessa
citar qualquer um deles, e descartando todos os exemplos em desdenhosas associação com complacência, para não dizer aprovação. Esta é a força e o
notas de rodapé, como obra de informantes fantasiosos ou interesseiros. sangue vital da Associação".
200. F. Raynes, op. cit., pp. 114-5.
159
dos.203 O primeiro jurado de um júri que condenou diversos réus Eis o Salvador da Humanidade,
por cumplicidade nos ataques luddistas, em Nottingham, em março Cravado ao vergonhoso lenho;
de 1812, foi perseguido até WorkSop: Quão imenso o amor que o inclinou
A sangrar e morrer por mim.
Senhor,
Ouça: como ele geme! enquanto a natureza treme,
por Ordens Expressas Expressas do general Ludd vim até
Worksop para indagar da sua Disposição em relação à tíossa E os firmes pilares da terra se curvam;
causa e lamento dizer que descobri que ela corresponde à sua O véu do templo se desfaz em pedaços,
conduta que o senhor recentemenie demonstrou em relação a nós. Os sólidos mármores fendem-se.
Lembre-se, está se aproximando rapidamente o tempo Em que Pronto! está paga a preciosa redenção.
homens da sua espécie Vão ser levados ao Arrependimento, logo “ Recebe minha alma” , grita ele;
poderão ser chamados. Lembre-se — o senhor é um homem Veja como inclina sua fronte sagrada,
marcado. inclina sua fronte e morre.206
Seu pelo General Ludd,
um verdadeiro Homem.20* Nos três condados, temos a impressão de uma ativa sanção
moral dada pela comunidade a todas as atividades luddistas, exceto
Apesar do fato de que os julgamentos de Yorkshire se realiza­ o homicídio efetivo. As próprias autoridades lamentavam que:
ram em York, a mais de 45 quilômetros dos centros perturbados, as
autoridades trouxeram reforços militares e temiam uma tentativa Deu-se um estímulo com as dúvidas lançadas sobre a torpeza
moral desses crimes, e o mal foi alçado às suas alturas pelo fana­
de resgate. Mesmo seus adversários admiraram a firmeza dos con­
tismo religioso que infelizmente existe em excessiva medida na­
denados. Mellor e seus dois companheiros recusaram-se a fazer queles distritos populosos.207
qualquer confissão. O mesmo com os catorze que morreram
poucos dias depois. “Se algum desses infelizes possuía algum se­ Assim como o mito popular pintava todos os informantes
gredo” , escreveu o Leeds Mercury, “ suportou morrer com ele. como Judas, da mesma forma Charlotte Bronte seguia o mito de
Suas revelações foram extremamente escassas” .205 (Segundo a tra­ classe média ao caricaturar em Moses Barraclough um pregador
dição, o juiz presidente tinha se permitido uma pequena levian­ “bombástico” e “metodista participante”, um hipócrita instigador
dade na ocasião. Quando lhe perguntaram se os catorze condena­ luddista, e ao atribuir ao indivíduo que tentara assassinar Gérard
dos iam ser enforcados na mesma viga, ele respondeu, depois de Moore uma linguagem ao estilo Antigo Testamento: “ Quando pe­
pensar um pouco: “Bem, senhor, não. Creio que ficariam mais rece o homem mau, há gritos; tal como passa o furacão, assim
cômodos em duas” .) Os primeiros sete levados à execução, na deixa de existir o malvado”.208 As provas sobre isso são tão deslei­
presença de grandes multidões, chegaram ao cadafalso cantando xadas como sempre. Dois ou três dos executados em York eram
o hino metodista: certamente metodistas. Mas, ainda que muitos tivessem se criado
numa cultura metodista (ou em suas franjas ranting ou south-
cottianas), mesmo na cela dos condenados seus pastores — exces­
203. T. Bailey, Annals oj Nottinghamshire (1855), IV, p. 280. sivamente ansiosos em afastar o metodismo das suspeitas de cum­
204. H. O. 42.122.
205. Um oficial que presenciara a execução escreveu a Radcliffe: “Consi­ plicidade — não tinham nenhum poder sobre eles. O fervor do
dero que eram oito Luds verdadeiros ( . . . ) e nove Depredadores que se
aproveitaram dos Tempos" (i.é., arrombadores de casas). Ele foi informado 206. Proceeding under lhe Special Commission at York (Leeds, 1813),
pelo Capelão que os "Luds verdadeiros" recusaram-se a fazer qualquer pp. 67-9; Hammonds, op. cit., p. 332; H. Clarkson, Mentories of Merry
confissão: “Realmente acredito que eles não achavam que isso fosse um Wakefield (Wakefield, 1887), p. 40.
grande delito, se é que achavam que era algum delito". Ele acrescenta: 207. Introdução autorizada aos julgamentos de York em Howell, State
“Creio que eram todos metodistas". Coronel Norton a Radcliffe, janeiro Triais, XXXI, 964.
de 1813, Radcliffe MSS., 126/114. 208. Shirley, cap. 8. 30.

161
Antigo Testamento fora assimilado a uma solidariedade de classe
Naquela época, talvez mais do que nunca, a infidelidade grassava
que nem Jabez Bunting conseguiría penetrar. entre as classes baixas (...) eu exclamei: “Infiéis, morram firmes!
Os funerais luddistas o ilustram bastante bem. O enterro de nunca arriem a bandeira negra quando a Morte se lhes confron­
[ohn Westley, o luddista morto num tumulto em novembro de tar!”. Pareceu ter grande efeito. . .
1811, tornou-se a ocasião para uma demonstração de simpatia
popular em Nottingham. “ O cadáver vinha precedido por uma O efeito, porém, provavelmente não foi o que pretendera
série de antigos colegas de grupo do falecido, portando bastões Saville, e foi apedrejado ao sair da capela. “Vingança pelo Sangue
negros, enfeitados com laços de crepe.” dos Inocentes”, vinha rabiscado a giz em portas e muros. Durante
semanas depois disso, a Bunting (que também recebeu cartas de
A cena era verdadeiramente impressionante. O Alto Xerife, o ameaça) foi concedida a proteção de um guarda armado, para
Subxerife e cerca de meia dúzia de Magistrados estavam no acompanhá-lo em seus compromissos pelo interior. Um problema
local, assistidos por um corpo de Guardas e cerca de trinta dra­ parecido em Holmfirth e Greetland (perto de Halifax), quando o
gões montados (. ..) antes de ser removido o corpo, a Lei do ministro metodista negou enterro a homens executados em York.210
Motim foi lida em diversas partes da cidade.209 E as mesmas manifestações públicas acompanharam o funeral de
James Towle em Nottingham, em novembro de 1816, quando um
Os dois homens que morreram dos ferimentos sofridos em magistrado eclesiástico, dr. Wylde, proibiu a leitura do Ofício
Rawfolds foram acompanhados pela mesma simpatia. Só se evitou Fúnebre. Apesar disso, 3.000 pessoas compareceram à cerimônia
um massivo funeral público em Huddersfield porque as autorida­ e, segundo o relatório de um espião:
des enterraram Booth silenciosamente, antes da hora esperada. Hart-
ley foi enterrado em Halifax, seguido por centenas de acompa­ Um Mestre-Escola, disseram-me, distribuiu os Hinos que foram
cantados dc sua Casa para c ao pé do Túmulo por Seis moças.
nhantes com um fumo de crepe branco no braço. Seus amigos
(. . .) Havia uma Estrela ou Cruz sobre o tampo do Caixão, que
exigiram para ele um funeral metodista, e quando Bunting se despertou muitas conjeturas sobre o que seria. Alguns disseram
negou a ler o ofício divino, ocorreram cenas ríspidas. No domingo que era porque ele tinha morrido perseguido, outros porque tinha
seguinte, grandes multidões se reuniram para uma missa em me­ sido enforcado, e alguns maldisseram o dr. Wylde por não per­
mória ao defunto. Jonathan Saville, um pregador local aleijado, mitir que fosse lido o Ofício Fúnebre. Badder disse que (...)
isso não tinha importância para Jem, pois ele não queria Padres
lembrou que aquela era “a maior congregação de gente que jamais em volta.211
se reunira na Capela de Halifax” :
Não é satisfatória nenhuma explicação do luddismo que se
. . . o povo veio de todas as partes para mostrar seu pesar pelo
restrinja a uma interpretação trabalhista limitada ou que descarte
falecido. Lotaram a Capela até transbordar, centenas ficaram do
seus laivos insurrecionais como falatórios de uns poucos “ esquen­
lado de fora, sem conseguir entrar, e os guardas andavam pela
tados”. Mesmo em Nottingham, onde o luddismo mostrou a maior
frente das portas para manter a paz. O pregador que estava pro­
disciplina ao visar a objetivos industriais, por todos os lados admi­
gramado para aquela tarde tinha ido a Huddersfield, provavel­
tia-se a conexão entre destruição de armações e sedição política,
mente para escapar...
visto que não só os malharistas de bastidor como também as
“ordens inferiores” de modo geral assumiam uma cumplicidade
Bunting tinha se recusado a pregar o ofício, e mandou que
Saville o substituísse. O aleijado pregou sobre o contraste entre
um crente e um infiel na morte: 210. J. O. Walker, History of Wesleyan Methodism in Halifax (Halifax,
1836), p. 255; E. V. Chapman, John Wesley & Co (Halifax) (Halifax, 1952),
p. 35; F. A. West, Memoirs of Jonathan Saville (1844), pp. 24-5.
209. Leeds Mercury. 23 de novembro de 1811; Bailey, op. cit., IV, p. 247. 211. Hammonds, op. cit., p. 239.

162 163
com os luddistas, em sua luta contra negociantes de malhas, forças
tunidade revolucionária mais geral. Os dois impulsos podem se
armadas e magistrados. Em Lancashire — embora a espinha dorsal
encontrar em passagens de duas cartas luddistas, ambas enviadas
da organização consistisse de tecelãos — , mineiros, fiandeiros de
em março de 1812. A primeira, provavelmente vinda de Hudders-
algodão e todos os tipos de artífices participaram dos distúrbios.
field, expressa as queixas específicas dos aparadores de tecido:
Em West Riding, embora os alvos de ataque fossem cardas mecâ­
nicas e cisalhadeiras, estavam associados aos luddistas não só apa-
N.B. ( ...) o General ( .. . ) ordena-me informá-lo como os Acaba-
radores de tecido, mas ainda “séries de tecelãos, alfaiates, sapa­ dores de Tecido no Distrito de Huddersfield gastaram Sete Mil
teiros e representantes de quase todas as especialidades artesãs”. Libras cm petição ao Governo para pôr em vigência as Leis para
John Booth, o filho do pároco morto no ataque em Rawfolds, fora deter as Cisalhadeiras e Cardas Mecânicas sem nenhum resultado
aprendiz de arreeiro.212 Os prisioneiros levados a julgamento pe­ assim eles agora estão tentando este método, e ele foi informado
rante a Comissão Especial em York incluíam 28 aparadores de de que o senhor teme que ele será levado adiante para outros pro­
tecido, 8 diaristas, 4 tecelãos, 3 sapateiros, 3 mineiros de carvão, pósitos mas o senhor não precisa ficar apreensivo quanto a isso,
3 fiandeiros de algodão, 2 alfaiates, 2 confeccionistas de tecidos pois tão logo a Odiosa m aquinaria for Detida ou Destruída o
General e seu Bravo Exército serão dissolvidos, e Voltarão aos
e 1 açougueiro, 1 ajustador de cardas, 1 carpinteiro, 1 tapeceiro,
seus Empregos, como outros Súditos Vassalos.215
1 chapeleiro, 1 vendedor ambulante, 1 atendente de loja, 1 pedrei­
ro, 1 aguadeiro e 1 fiandeiro de lã.213
A outra carta, postada mais ou menos uma semana antes, é
Podemos agora arriscar uma explicação sobre o curso do a mais improvável entre as cartas de um “ Súdito Vassalo” . Ela
luddismo. Ele se iniciou (1811) em Nottingham, como forma de sugere que o desapontamento com o malogro do Príncipe Regente
imposição “ sindical” direta, respaldada pela comunidade traba­ em formar um Ministério pela paz e reforma (ocasião do motim
lhadora. Como tal, imediatamente incorreu em ilegalidade, e sua posterior na Casa de Câmbio de Manchester) foi o detonador do
própria situação o levou a uma direção mais insurrecional. No luddismo de Yorkshire:
inverno de 1811-12, c provável que seus “delegados” , oficia.s ou
não, tenham realmente viajado até outras regiões do n o rte /14 O A Causa imediata de termos começado quando começamos foi
luddismo de Yorkshire (fevereiro de 1812) se iniciou com um aquela carta Infame do Príncipe Regente aos Lordes Grey &
caráter mais insurrecional. De um lado, as queixas dos aparadores Grenville, que não nos deixou nenhuma esperança de qualquer
de tecido, que há muito vinham se inflamando, estouraram em Mudança para melhor, & pela sua concordância com aquele grupo
chamas com o exemplo de Nottingham. Por outro lado, pequenos Maldito de Patifes, Perceval & Cia. a quem atribuímos todas as
grupos de democratas ou pianistas viam no luddismo uma opor­ Misérias do nosso País. Mas esperamos auxílio do Imperador
Francês para lançar fora o Jugo do Governo mais Podre, mais
Cruel e mais Tirânico que jamais existiu, e então abaixo virão
212. Peel, op. cit., pp. 6, 18. os Tiranos de H ano ver, e todos os nossos Tiranos dos maiores
213. Report of Proceedings under Commissions of Oyer & Terminer ( ...) aos menores, e seremos governados por uma República justa, e
for the Country of York (Hansard, 1813), pp. xiv-xix. É de se dizer, porém, possa o Todo-Poderoso antecipar esses Tempos felizes é o desejo
que uns poucos eram pseudoluddistas, acusados de destruição de casas, ao e Prece de Milhões nessa Terra. . 216
passo que o chapeleiro, os sapateiros e o fazedor de cardas eram os
democratas de Halifax. Praticamente todos os indiciados pela sua parti­
cipação no caso de Rawfolds eram aparadores de tecido. Ver também T. S. Se aceitarmos ambas as cartas como autênticas, isso sugeri­
11.2669. da que o luddismo de Yorkshire se iniciou com conselhos dividi­
214. Ver, p. ex., uma carta interceptada de missivistas de Yorkshire a dos. Se assim for, o caráter insurrecional passou a predominar à
um confrade em Nottingham. referente a um indivíduo de Nottingham que
se encontrava entre eles: “Nós ( . . . ) o recebemos como um amigo seu
medida que os eventos se sucederam. Deve-se dar algum peso à
conforme acreditamos que é, & temos nos divertido com um ou dois
canecos de Cerveja. & ele recita a Canção do Sr. Ludd"; 19 de abril de 215. Radcliffe MSS., 126-7.
1812, Radcliffe MSS.. 126/32. 216. W. B. Crump, op. cit., p. 230-

164 165

l
tradição oral, reunida por Frank Peel, segundo a qual Baines, o Mann, da mesma cidade, relatando os êxitos luddistas.219 Walsh
velho chapeleiro de Halifax, estava de fato no centro de um lhe dissera que, no comitê secreto de Leeds, “ nenhum dos velhos
grupo de “Tom Painers” , que formaram “ um clube democrático lacks ri.é., jacobinos] está autorizado a agir, pois suspeitou-se
ou republicano” de reuniões na Estalagem de São Crispino, em deles em anos recentes” :
Halifax. Aqui se realizou em março uma importante reunião de
delegados luddistas, e Baines apresentou as boas-vindas ao movi­ Alguns dos velhos Jacks queriam agir, mas o antigo Comitê
mento, como Presidente da mesa: tinha atuado de modo tão violento que não se obteve prudência
nem sucesso, de modo que nenhum está autorizado a participar
Por trinta anos eu lutei para levantar o povo contra este mal, e do Comitê, mas ficam em segundo plano.
(...) sofri muito por minhas opiniões tanto na minha pessoa
como em meus bens. Agora estou me aproximando do fim de A organização de Yorkshire (Walsh disse a “ B”) era condu­
minha peregrinação, mas vou morrer como vivi; meus poucos zida por um “ Comitê de Ofícios”, cujas reuniões se realizavam em
últimos dias serão dedicados à causa do povo. Saúdo o seu levante Leeds em extremo sigilo:
contra seus opressores, e espero que ele possa continuar até que
não haja mais nenhum tirano a ser conquistado. Esperei muito Os Comitês nunca realizam suas reuniões num estabelecimento
tempo pela aurora do dia vindouro, e pode ser que, velho como público, mas em casas particulares, ou quando o tempo permite
sou, ainda veja o triunfo glorioso da democracia. mesmo nos Campos à noite, e não como se fazia o velho negó­
cio deixando que toda a Cidade ficasse a par.220
Segundo a mesma tradição, um delegado de Nottingham cha­
mado Weightman tambcm falou: “ Nosso conselho está em comu­ Pode ser que, enquanto os “ velhos Jacks” eram mantidos em
nicação diária com as sociedades em todos os centros de insatis­ segundo plano em Leeds, os luddistas de Halifax fossem menos
fação, e urge um levante geral em maio” .217 circunspectos. E isso está em consonância com provas que sugerem
Existem razões para supor que, não as palavras, mas a ten­ que o luddismo em Yorkshire assumiu, depois do insucesso do
dência geral dessa versão seja verdadeira. As autoridades estavam ataque em Rawfolds, uma forma insurrecional mais generalizada.
nitidamente determinadas a conseguir uma condenação contra Bai­ Sem dúvida, em abril, estava funcionando algum sistema secreto
nes, apesar das provas muito frágeis dos seus espiões. Uma teste­ de delegados de West Riding. Depois de Rawfolds, a organização
luddista deslocou sua ênfase para preparativos revolucionários
munha afirmou que Baines dissera que “ não tinha o hábito de ter
gerais. Abril a setembro são meses de freqüentes batidas em busca
nada a ver com gente alguma que não estivesse familiarizada com
de armas, coletas de dinheiro e boatos de prestação de juramentos.
as duas palavras Aristocracia e Democracia” , ao passo que o O chumbo (para projéteis) desapareceu como neve em dia de sol;
Juiz considerou agravante do delito o fato de ele ter se gabado “bombas e mangueiras estão desaparecendo constantemente” ;221
de que “ seus olhos tinham estado abertos por vinte e três anos”.218 desapareceram até calhas e tonéis de tingimento. A conspiração
Se isso era apenas um caso para “ incriminar” os radicais locais, se estendeu para áreas como Sheffield e Barnsley, onde não exis­
ou se eles realmente tinham conexões com o luddismo, é uma tiam aparadores de tecido, cardas mecânicas nem cisalhadeiras. Os
outra questão. Mas os relatórios do principal informante de Lan-
cashire, “B”, em março e abril de 1812, lançam uma luz sobre 219. James Mann, um aparador de Leeds, foi preso sob a suspensão do
isso. “ B” declarava ter sido visitado por um delegado chamado habeas corpus em 1817 (adiante, p. 254), e mais tarde virou o principal
livreiro radical de Leeds. Seria interessante se esses dois “Mann" fossem o
Walsh, de Leeds, e ter recebido (em abril) uma carta de um certo mesmo.
220. Relatórios de "B", 25 de março, 18 de abril de 1812, H. O. 40.1.
217. Peel. op. cit. (ed. 1880), pp. 23-6. No prefácio da 2.° edição, 1888, Peel O “antigo Comitê" e o "velho negócio” presumivelmente se referem à
conspiração de 1801 e 1802, atrás, pp. 35-40.
conta como essa tradição foi preservada.
218. Report of the Proceeding (...) under Oyer and Terminer, pp. 124, 207. 221. Leeds Mercury, 6 de junho de 1812.

166 167
luddistas estavam inspirados por “ noções toscas de derrubar o seus padrões de vida e status. As pessoas viviam tão famintas que
próprio Governo, quando sua organização tivesse se espalhado estavam dispostas a arriscar suas vidas investindo contra um
sozinha por todo o país e tivessem reunido armas suficientes” .222 carregamento de batatas. Nessas circunstâncias, se os homens não
Se o luddismo de Yorkshire passou das reivindicações dos tivessem tramado sublevações revolucionárias, isso seria mais sur­
aparadores para metas revolucionárias mais gerais, não havia um preendente do que o contrário, e parecería altamente improvável
tema único a congregar os descontentes de Lancashire. Motins por que essas condições alimentassem uma safra de reformadores cons­
alimentos, pixações inflamadas, agitação sub rosa a favor da refor­ titucionais gradualistas, atuando dentro de uma Constituição que
ma política, comitês sindicais secretos, batidas atrás de armas, não reconhecia sua existência política.
ataques a teares mecânicos e provocações de espiões, tudo ocorria Pelo menos se poderia supor que uma cultura democrática
ao mesmo tempo, às vezes de forma espontânea, e freqíientemente abordaria a situação de apuros desses indivíduos com cautela e
sem nenhuma conexão organizativa direta entre eles. O capítulo humildade. De fato, praticamente não tem sido o caso. Vários
sobre o “ Luddismo de Lancashire” é o menos satisfatório em dos historiadores pioneiros no estudo desse período (os Ham­
O Trabalhador Qualificado. Algumas de suas afirmações são sim­ monds, os Webbs e Graham Wallas) foram homens e mulheres
plesmente falsas, como a que sustenta que todos os distúrbios em de convicções fabianas, que abordaram a “ histórica inicial do
Lancashire c Cheshire chegaram ao fim no início de maio de 1812. Movimento Trabalhista” à luz das Leis de Reforma posteriores e
Outras — como a prodigiosa influência atribuída a uns poucos do crescimento do TUC e do Labour Party. Como os luddistas
espiões de Bolton e “ B” de Manchester — se baseiam em espe­ ou saqueadores de alimentos não se mostram “ precursores” satis­
culações e arrazoados unilaterais, disfarçados de narrativa. As fatórios d’ “o Movimento Trabalhista”, não mereceram simpatia
conclusões são quase ridículas. Somos solicitados a acreditar que nem atenção cuidadosa. E esse viés foi complementado, por outra
71 companhias de infantaria, 27 tropas de Dragões e Guardas Mon­ direção, pelo viés mais conservador da tradição acadêmica orto­
tadas, além de milhares de polícias especiais (1.500 só na divisão doxa. Assim, a “história” tratou bem dos Mártires de Tolpuddle,
administrativa de Salford), foram totalmente mobilizados em Lan­ e um tanto grosseiramente de Francis Place; mas as centenas de
cashire, em maio de 1812, porque “ S pai”, “ S filho” e “ B” homens e mulheres executados ou desterrados por prestação de
tinham gelado o sangue dos seus patrões com estórias de insur­ juramentos, conspiração jacobina, luddismo, pelos levantes de Pen-
reição, e porque tinham ocorrido alguns motins espontâneos por tridge e Grange Moor, motins por alimentos, contra cercamentos
alimentos. e barreiras de pedágio, pelos motins de Ely e a Revolta dos Dia­
O que é mais notável no tratamento que os Hammonds dis­ ristas de 1830, e uma série de tumultos menores, foram esquecidos
pensam às fontes é uma disposição acentuada de começar sua pes­ por quase todos os especialistas, à exceção de uns poucos, ou,
quisa com o pressuposto de que quaisquer projetos revolucionários se não lembrados, é apenas como simplórios ou afetados por uma
bona fide por parte dos trabalhadores ou eram altamente imprová­ loucura criminosa.
veis ou, senão, equivocados e indignos de simpatia, a serem atri­
buídos, portanto, a uma franja lunática e irresponsável. Mas é Mas, para os que vivem nela, a história não é “ inicial” nem
difícil entender como. em 1812, pode se admitir isso. Com o “ recente”. Os “ processos” são também os herdeiros de um outro
passado. Os homens devem ser julgados dentro do seu próprio
intervalo de um ano, a guerra prosseguira por quase vinte anos.
contexto, c neste contexto podemos ver pessoas como George
O povo tinha poucas liberdades civis e nenhuma liberdade sindi­
Mellor, Jem Towle e Jeremiah Brandreth como homens de enver­
cal. Não eram dotados de clarividência histórica, de modo a pode­
gadura heróica.
rem se consolar sabendo que, dali a vinte anos (quando muitos
deles estariam mortos), a classe média obteria o direito de voto. Além disso, o viés tem sua forma de operar dentro das pró­
Em 1812, os tecelãos tinham vivido um declínio catastrófico em prias minúcias da pesquisa histórica. Isto é particularmente impor­
tante na questão do luddismo de Lancashire. Só há uma razão
para crer que os vários depoimentos entre os documentos do Minis-
222. Peel, op. cit. (ed. 1880), p. 9.

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tério do Interior, sobre suas características revolucionárias, são Sobre esta hipótese (sustentada pelo pressuposto de um conhe­
falsos, e é o pressuposto de que qualquer prova desse tipo está cimento superior que poucos leitores se darão ao cuidado de ques­
fadada a ser falsa. Uma vez assumido isso, os Hammonds embar­ tionar), edifica-se a ficção de provocação. Mas, poucas páginas
cam por sobre os oceanos da ficção histórica. Assim, o informante adiante, quando se torna conveniente aos mesmos autores dar cré­
mais regular de Lancashire, nos anos luddistas e pós-guerra, foi dito a outra parte dos relatórios de “B” , eles informam branda­
um indivíduo mencionado como “ B” . Esse “B” fora possivelmente mente ao leitor: “ É improvável que Bent tenha algum dia tentado
empregado como informante desde 1801 ou 1802,223 e tinha a con­ induzir seriamente algum colega seu a trabalhar por medidas vio­
fiança de ultra-radicais de Manchester. Seu nome era Bent, e era lentas, pois de outra forma homens da estampa de John Knight
um pequeno comerciante, descrito em 1812 como “ um comprador não teriam continuado a confiar nele. . . ” Em suma, os relatórios
e vendedor de estopa de algodão” .224 Como pessoa de relativa de “ B” são torcidos (bent) em qualquer sentido que calhe se
prosperidade, era frequentemente nomeado como tesoureiro de adaptar à lenda do momento.225
diversos comitês secretos — um admirável posto de escuta para Pode-se sugerir que os documentos do Ministério do Interior
um espião. Nessas condições, estava numa boa posição para for­ permitem uma leitura diferente. Bent não era um provocador, era
necer informações de dentro. um simples informante e limitou suas atividades ao necessário para
Em O Trabalhador Qualificado, “B” aparece com freqüência, garantir que manteria a confiança dos seus colegas radicais. Mos­
no papel de sensacionalista e provocateur: tra-se como um indivíduo um tanto burro, mas observador, com­
binação esta não de todo incomum. Assim, só se pode confiar nas
Os Documentos do Ministério do Interior contêm grande quan­ suas provas quando descreve acontecimentos dos quais participou
tidade de comunicados iletrados dele, cheios de vividas insinua­ pessoalmente, ao passo que, em seus relatórios sobre metas ulte-
ções sobre as explosões próximas das ordens inferiores, incenti­ riores ou a organização no resto do país, transmite as fanfarro-
vadas por seres misteriosos em posições elevadas. O levante nadas de alguns dos agitadores mais exaltados. A sugestão dc que
geral, com os vários milhares de homens que prestaram o jura­ Bent foi o delegado de Manchester que envolveu o comitê de
mento em diferentes partes do país, é seu tema constante. Stockport em planos conspirativos não resiste a um exame 226
De fato, se deixarmos de seguir a pista falsa da provocação,
O juramento luddista de Lancashire (declaram os Hammonds) é possível reunir uma versão mais coerente da história interna do
“ não é irrazoável supor (. . .) derivado da fértil imaginação de ‘B’ luddismo de Lancashire, empregando grande parte das mesmas
Frente a provas de que um delegado de Manchester visitara um fontes utilizadas pelos Hammonds. Em primeiro lugar, temos de
comitê secreto dos tecelãos de Stockport e tentou engajá-los em lembrar que o jacobinismo tinha lançado raízes mais fundas em
preparativos revolucionários, os Hammonds encontram a explica­ Lancashire do que em qualquer outro distrito manufatureiro, e
ção conveniente: adquirira um tom particularmente revolucionário com a imigração
irlandesa. Em Lancashire, quase que exclusivamente, há um fio
Agora ninguém que tenha lido os Documentos do Ministério do
Interior sobre esse período deixará de reconhecer, no relatório 225. Ibid., pp. 274-5, 297, 336-7.
do que disse o delegado de Manchester, a voz de “B”. .. 226. Durante todo o início da primavera de 1812, “B" fez relatórios
regulares e prolixos. Os Hammonds baseiam sua versão da reunião de
Stockport, em fevereiro, na confissão de Thomas Whittaker em H. O.
223. Ver The Skilleci Labourer, pp. 67, 73, e atrás, p. 56. Contudo, não
42.121. Mas “B" informou em 25 de março que ainda não conseguira ser
é totalmente certo que fosse o mesmo “B", pois foram empregados outros
admitido a nenhuma das reuniões secretas, embora esperasse sê-lo em breve
“B"s, como Barlow. por exemplo. Ver atrás, p. 52.
(H. O. 40.1). Ele efetivamente conseguiu comparecer a diversas reuniões
224. Depoimento de H. Yarwood, 22 de junho de 1812, em H. O. 40.1.
dos tecelãos em abril, mas ficou excluído de uma importante reunião em
Também foi descrito como "um respeitável comerciante de algodão": ver maio. devido a uma disputa sobre questões de dinheiro (depoimento de
The Triul at Full Lenght of lhe 38 Men frorn Manchester (Manchester. Yarwood, H. O. 40.1).
1812). p. 137.
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ininterrupto de agitação aberta contra a guerra e pela reforma, que mas porque existiam contradições no movimento. Num distrito
vem desde os anos 1790, passa pelos “ Ingleses Unidos” e vai ate relativamente tão sofisticado, em termos políticos, como Lanca­
o período do luddismo. Em 1808, registrou-se essa agitação não shire, era inevitável existirem conselhos que divergissem quanto
só em Manchester, mas também em Royton, Bolton e Blackburn. ao valor da destruição de máquinas. Esse conflito entre os conse­
‘Não será tempo” , perguntaram alguns tecelãos de Bolton, ao lhos dos trabalhadores provocou muitos atritos entre fevereiro e
anunciar em sua intenção de realizar manifestações dominicais, finais de abril de 1812. Assim, podia parecer que, em algum
durante dois meses, em Charters Moss, no alto da cidade: momento de fevereiro, a política do luddismo propriamente dito
era aprovada por reuniões de delegados dos tecelãos, que repre­
de arrastar a Constituição Britânica para fora do seu esconde­ sentavam os comitês secretos de diversas cidades. Segundo o depoi­
rijo, e cxpô-la em sua pureza nua e original, para mostrar a mento de um certo Yarwood, ele mesmo um subdelegado do co­
cada um as leis dos seus antepassados?227 mitê secreto de Stockpot, os tecelãos estavam alistados (e “ entre­
laçados” por juramentos) numa organização cujas finalidades eram
Ano a ano. a agitação infrutífera dos tecelãos por um salário a destruição de teares a vapor, a coleta de dinheiro para armas e
mínimo levara-os na direção da agitação política, fosse de natureza repelimento da força pela força. Recolhiam contribuições dc 1 pêni
revolucionária ou constitucionalista. por semana, e realmente se empregou, por um ou dois meses, um
organizador em tempo integral, na pessoa de John Buckley Booth,
Em segundo lugar, quando o luddismo se iniciou em 1811-12, um antigo “ ministro dissidente”.229 Mas, nesse ponto, as decla­
o sindicalismo ilegal já estava solidamente enraizado em Lanca- rações de Yarwood tornam-se vagas. Parece que outros ofícios,
shire. Já observamos o grau de organização e consulta dos ofícios principalmente os fiandeiros, alfaiates e sapateiros, tinham repre­
artesãos e dos fiandeiros de algodão em Manchester. Também a sentantes nos comitês secretos de Manchester e Stockport, e que
organização dos tecelãos provavelmente era ampla e de bases muitos outros, além dos tecelãos, foram “entrelaçados” . Mas os
firmes. Em vilas e mesmo em algumas aldeias de Lancashire, exis­ planos efetivos dos comitês não eram do conhecimento de Yarwood,
tiam “comitês secretos” de tecelãos mais ou menos representativos, que era secretário apenas para um distrito da organização de
com o hábito de se consultarem sobre requerimentos ao Parlamen­ Stockport e que entregou seu dinheiro e recebeu suas instruções
to, petições, levantamento de fundos etc.228 de John Buckley Booth.
Da versão de Yarwood e outras, fica claro, porém, que os
Assim, quando o luddismo chegou a Lancashire. não entrou
comitês estavam divididos. Já em 5 de abril, o Comitê de Manches­
num vácuo. Já existiam, em Manchester e nos centros maiores,
ter recusara-se a “ Lwd” :
uniões de artesãos, comitês secretos de tecelãos e de alguns grupos
antigos e novos de radicais painistas, com uma efervescente fímbria
Nada além de Discórdia reinou entre eles naquela noite. Não
irlandesa. Lancashire era um campo fértil para espiões e provo- houve dinheiro suficiente conseguido pelos Distritos para pagar
cateurs, não por ter pouca, mas sim tanta atividade. E os relatórios tantos bolos e bebidas consumidos pelo Comitê Secreto.
são contraditórios, não porque todos os informantes mentiam,
Foi necessário levantar o dinheiro necessário para enviar dele­
227. Ver Aspinall. op. cit., pp. xxiii n. 2, 98-9 n. 1, 100-1 n. 2. gados a Bolton e Stockport, “ para informá-los de que Manchester
228. Ver as evidências de A. B. Richmond, citadas atrás p. 112. Existe não agiria em comum acordo”, recorrendo ao empréstimo (por
também um depoimento completo entre os Fitzwilliam Papers F. 46(g), sugestão de Yarwood) do “ Sr. Bent (. . .) que eu tinha visto com
sobre uma obscura “união de tecelãos", que se estendería “de Londres a
Nottingham. e de lá a Manchester e Carlisle", unida pelo sigilo mais estrito, o Comitê Secreto no Armas do Príncipe Regente” . Os motins de
com diversos graus de juramentos a diferentes níveis de organização e meados de abril se revelariam, em sua maioria, espontâneos, sem
extremas precauções na entrega de documentos — o encontro noturno na
charneca, a mensagem deixada dentro de um pau oco num canto distante 229. Talvez pregador 1< I?
de um determinado campo, e assim por diante.
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instigação (e nem mesmo apoio) dos comitês secretos. No final de
truidores de máquinas.230 “ O Executivo”, Bent escreveu no início
abril, os ofícios de Manchester (notadamente os fiandeiros e alfaia­
de maio:
tes) negaram-se a contribuir com mais dinheiro, do que resultou
a exclusão dos delegados de Manchester (inclusive Bcnt) de uma recomenda que o povo seja pacífico, e não perturbe a paz em
importante reunião de delegados em Failsworth, a 4 de maio. caso algum — os que o fazem não são daqueles que estão
Daí por diante, revelam-se duas formas simultâneas (e talvez entrelaçados. . .
sobrepostas) de organização em Lancashire. De um lado, parte do
movimento se concentrou em renovar a agitação pela paz e refor­ “ O fato é” , escreveu em 6 de maio um jacobino anônimo de
ma parlamentar. Bent noticiou uma reunião de delegados realizada Lancashire, assinando-se “Tom Paine” :
em 18 de maio para elaborar uma petição nesse sentido, assistida
por representantes de diversas cidades de Lancashire e Yorkshire: que existe em andamento uma organização regular, geral, pro­
como de hábito, ele conseguiu ser nomeado como Tesoureiro. Foi gressiva do povo. Podem ser chamados de Hamdenistas, Sid-
a agitação à qual se associaram John Knight e os “ trinta e oito” neyistas ou Painistas. Coube à minha sorte unir milhares. NÓS
presos em junho por Nadin, em Maschester (devido à informação — pois eu falo em nome de multidões — digo nós negamos e
refutamos toda e qualquer conexão com quebradores de máqui­
de Bent), e acusados de ministração de juramentos. Por outro lado,
nas, inccndiadores de fábricas, extorquidores de dinheiro, pi-
uma outra parte do movimento estava certamente empenhada em lhadores de propriedades privadas e assassinos. Sabemos que
preparativos insurrecionais, [á em 28 de março, Bent declarava toda máquina para o abreviamento do trabalho humano é uma
ter tido uma reunião com conspiradores irlandeses, “ sujeitos peri­ bênção para a grande família de que fazemos parte. Pretende­
gosamente ousados, e nada menos que quatro deles tinham parti­ mos partir da Fonte de nossas injustiças como não é de uso nas
cipado da Rebelião na Irlanda” . Em abril, ele afirmou que um petições, pretendemos exigir e conduzir uma reparação de nossas
delegado irlandês realmente o visitara, tendo passado por Dublin, injustiças...
Belfast e Glasgow, pretendendo continuar sua viagem até Derby,
Birmingham e Londres. Declarava ter sido um oficial da rebelião, Pode-se sugerir que, em maio de 1812, o luddismo tanto em
chamava-se Patrick Cannovan e tinha “cerca de quarenta anos, Lancashire como Yorkshire tinha, em larga medida, cedido lugar
uma aparência elegante, bem trajado de preto com botas hessenas” . à organização revolucionária, que vinha efetuando contatos, atra­
A próxima visita a Bent foi um delegado de Birmingham, que pas­ vés de exilados irlandeses e velhos jacobinos, com muitos centros
sou por Manchester, a caminho para Glasgow, via Preston e Car- (Sheffield, Barnsley, Birmingham, as Potteries, Glasgow) onde não
lisle. Um outro delegado visitou um membro do Comitê em mea­ ocorreu nenhuma revolta luddista. Do luddismo propriamente dito,
dos de maio, vindo de Newcastle, nas Potteries, trazendo a notícia só sobreviveu o nome do General. Para a admissão às reuniões,
de que havia vários milhares de jurados e armados em seu distrito, usavam-se toscos cartões montados a mão, além de etiquetas, sinais
mas que Londres estava “muito atrasada ( . . . ) não é conduzida com e senhas secretas.231 Um fragmento de prova ainda mais inquie-
aquele espírito que se poderia esperar” . Os envolvidos na conspi­ tante consiste de papéis que teriam sido recolhidos na estrada,
ração em Londres eram “ principalmente Tecelãos c Alfaiates de logo depois do ataque luddista à fábrica de Foster, em Horbury,
Spitalfields” , “ Cavaleiros da Agulha”. perto de Wakefield. São dois longos discursos, numa floreada
Não existe nenhuma implausibilidade intrínseca nessas estó­ retórica libertária, junto com uma “ Constituição” e um “ Juramen­
rias sobre uma clandestinidade, cujo principal canal de comuni­ to” idênticos aos descobertos em mãos de um associado de Despard,
cação se fazia através dos refugiados irlandeses de *98. É errôneo,
porém, tentar dividir muito nitidamente esse quadro entre, aqui, 230. Cf. o comentário de Peel à reação dos democratas de Halifax ao
reformadores constitucionais e, ali, irlandeses insurrecionais. É assassinato de Horsfall: "O assassinato não encontrou nenhum advogado
igualmente possível que os reformadores políticos mais sofistica­ ou defensor na pessoa do velho democrata BainesL Peel, op. cit., p. 164.
dos se vissem como revolucionários mais sérios do que os des­ 231. Ver exemplo A Formação da Classe Operária Inglesa, vol. 1, p. 165.

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e citados como prova em seu julgamento.232 A. menos que supo­ Mas é quando encontramos rumores sobre uma organização
nhamos que era alguma “ pista falsa” deliberada (e não há razões nacional e líderes “ distintos” que devemos ser mais cautelosos.
para supô-lo), isso aponta inequivocamente para alguma ligação Evidentemente, os autênticos agitadores procuravam erguer o âni­
entre a clandestinidade de 1802 e a de 1812.233 mo dos seus seguidores com grandes promessas sobre um apoio
nacional ou até de pessoas de destaque (Cartwright, Burdett, Co-
A prova de alguma espécie desse tipo de clandestinidade pro­ chrane, Whitbread, Coronel Wardle e outros) que, esperava-se,
vém, de fato, de tantas fontes diferentes que, se todas elas tiverem ajudariam a revolução. Mas, quais que sejam os obscuros elos
de ser postas de lado, recairemos em alguma hipótese que forçaria fornecidos pela união dos tecelãos, pelos “ Cavaleiros da Agulha”
muitíssimo mais sua credibilidade: como, por exemplo, a existên­ ou por delegados irlandeses em trânsito, o certo é que o luddismo
cia de uma verdadeira fábrica de falsificações, que ainda produ­ era um movimento sem centro nem liderança nacional, e pratica­
ziría fantasias suplementares, com o único propósito de enganar mente sem nenhum objetivo nacional além da desgraça geral e do
as autoridades. Assim, um informante totalmente diferente, um desejo de derrubar o Governo. Principalmente a conversa (trans­
tecelão mencionado como disse ao juiz de paz local, no mitida por gente como Bent) sobre um “ Grande Comitê” em
início de junho, que se realizara em Stockport uma reunião de Londres era totalmente ilusória, e mostra que os revolucionários
delegados de Lancashire, assistida por pessoas de Nottingham. das províncias não estavam entendendo bem a sua verdadeira
Derby e Huddersfield. Esses delegados censuraram: situação.
O General Maitland provavelmente tinha razão quando de­
a precipitação do Povo daqui em começar os Motins antes do clarou que não existia “ nenhuma base real” para o luddismo,
prazo marcado, e antes que fossem em número suficiente e tives­ e que:
sem armas.
atualmente o conjunto desses Movimentos Revolucionários se
limita às ordens mais baixas do povo em geral, aos locais onde
Noticiadamente, prosseguia em Sheffield a confecção de lan­
eles se apresentam: e não existe nenhum acordo, nem plano
ças. coisa relativamente simples numa cidade com tantas forjas e algum além do que se manifesta nos atos abertos de violência
oficinas pequenas. Agora se falava que o levante estava programa­ que são diariamente cometidos.235
do para o final de setembro ou início de outubro. Um “ homem de
aparência distinta” dirigiu uma reunião a altas horas da noite Podemos aceitar essa avaliação, desde que prestemos atenção
num campo perto de Didsbury. Não houve “ nem uma palavra ao que está sendo dito. Observadores menos informados do que
sobre fábricas ou máquinas” , mas um apelo a um levante gerai Maitland se assustavam porque não conseguiam imaginar um “ Mo­
em vez de “ parcial” . Ele era um orador “ tão qualificado para se vimento Revolucionário” que não dispusesse dc um núcleo interno
levantar no púlpito ou no tribunal como qualquer homem do de “ homens mal-intencionados”, alguns líderes aristocráticos ou de
reino” 234 classe média, que estariam secretamente inspirando o conjunto.
Quando não se conseguia encontrar nenhum conspirador desses,
a opinião oscilava para o extremo oposto: se não existiam diri­
232. Anexos em Rev. W. R. Hay, 16 de maio dc 1812, em H. O. 41. gentes, então não existiría absolutamente nenhum movimento revo­
233. Oliver informou sobre uma reunião de delegados de West Riding
lucionário. Era inconcebível que aparadores de tecido, malharistas
(28 de abril de 1817): “Descobri que havia muitos entre eles que não
hesitavam em dizer que estiveram bem preparados com Despard &c. em e tecelãos tentassem subverter a autoridade por iniciativa pró-
1802, e que o Negócio se perdeu totalmente por causa de uns poucos que
tinham deixado de manter uma Comunicação íntima entre eles". “Narrativa" 235. Darvall, op. cit., p. 175. Cf. Beckett a Maitland, 29 de agosto de
de Oliver, H. O. 40.9. 1812: "é preciso haver uma cooperação mais simultânea e mais sistemática
234. Essa discussão sobre o luddismo de Lancashire baseia-se ampla­ naquilo que fazem antes que se deve temer qualquer dano grave da parte
mente sobre declarações de Bent. Yarwood, Whittaker, “R.W.", relatórios deles". H. O. 79.2.
de magistrados e cartas anônimas em H. O. 40.1 e 42.121 e 42.123.
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pria.236 "Não havia, ao que parece, nenhuma evidência que pro­ sem~poV abaixo, e as Câmaras do Parlamento estavam fora do
vasse um instigamento, nenhuma evidência que provasse um com- seu alcance. Não há dúvida de que os luddistas de diversos distritos
plô.” Foi o que comentou Cobbett sobre o Relatório da Comissão mantinham contato entre si, e não há dúvida de que, em Yorkshire
Confidencial da Câmara dos Comuns em 1812. "E esta é a circuns­ e Nottingham, fundara-se uma liderança distrital, conhecida apenas
tância que vai desorientar profundamente o Ministério. Não con­ por uns poucos "Capitães” , como Towle e Mellor. Mas, se são
seguem encontrar agitadores. Ê um movimento do próprio povo.”237 verdadeiros, como é provável, os relatos sobre as reuniões de
Foi um movimento, porém, que empenharia em combate, por delegados em Ashton, Stockport e Halifax, foi aí que o luddismo
alguns meses, 12.000 soldados, e que levou o Vice-Encarregado de foi mais fraco — mais exposto à infiltração de espiões e mais
West Riding a declarar, em junho de 1812, que a região estava dado a falatórios frívolos sobre insurreições apoiadas por franceses,
tomando a "Via direta para uma Insurreição aberta": irlandeses ou escoceses. Apenas nos meados do verão de 1812 é
que se revela o surgimento de uma organização conspirativa séria,
. . .à exceção dos estritos locais ocupados por soldados, a Região a qual se destacava das queixas industriais restritas e se estendia
estava praticamente sob o domínio dos sem-lei (...) sendo que a novos distritos. Em agosto (segundo a visão do Capitão Raynes),
os descontentes ultrapassavam em muitos Graus o número dos ou os luddistas teriam de "empreender um esforço desesperado
Habitantes pacíficos.238 para formarem uma entidade” ou o movimento entraria em colap­
so.239 Duas causas acabaram com ele. Em primeiro lugar, a revo­
Sob um aspecto, o luddismo pode ser visto como a coisa gação do Conselho de Ordens e uma rápida retomada do comércio.
mais próxima a uma "revolta camponesa” de trabalhadores indus­ Em segundo, a pressão crescente das autoridades: mais soldados,
triais; em vez de saquear os châteaux, atacava-se o alvo mais mais espiões, mais prisões e as execuções em Chester e Lancaster.
imediato que simbolizava sua opressão — a carda mecânica ou Sob outro aspecto, podemos ver o movimento luddista como
o pisão movido a vapor. Surgindo ao cabo de vinte anos de uma transição. Devemos encarar, através da destruição de máqui­
silenciamento quase completo de publicações e reuniões públicas, nas, os motivos dos indivíduos que brandiam as marretas. Enquan­
os luddistas não conheciam nenhuma liderança nacional em que to "um movimento do próprio povo” , fica-se surpreendido não
pudessem confiar, nenhuma política nacional com que pudessem tanto com seu atraso, mas com sua maturidade crescente. Longe
identificar sua agitação. Portanto, ele foi sempre mais forte a nível de ser “ primitivo” , ele demonstrou, em Nottingham e Yorkshire,
de comunidade local e com maior coesão quando envolvido em alto grau de disciplina e autocontrole. Pode-se ver o luddismo
ações industriais limitadas. como uma manifestação de uma cultura operária com maior inde­
pendência e complexidade do que qualquer outra vivida pelo
Mesmo quando atacavam esses símbolos de exploração e do século 18. As duas décadas de tradição ilegal antes de 1811
sistema fabril, tornavam-se conscientes de objetivos mais amplos, são anos de uma riqueza que só conseguimos intuir; principal­
e existiam bolsões de "Tom Painers” capazes de dirigi-los a mente no movimento sindical, patenteiam-se por todos os lados
metas ulteriores. Mas, aí, já não teria muita valia a cerrada orga­ novos experimentos, experiências e alfabetismo crescentes, maior
nização que servira para destruir um pisão ou uma armação de consciência política. O luddismo brotou dessa cultura — o mundo
malha; em sua comunidade, não havia um Old Sarum que pudes­ da sociedade da beneficência, da cerimônia e do juramento secre­
to, da petição de aparência legal ao Parlamento, da reunião dos
236. Ver The Historical Account of the Luddites, p. 11: “A opinião predo­ artífices na sala de convocações — de forma aparentemente inevi­
minante era que as idéias de algumas das pessoas engajadas nesses abusos tável. Foi uma fase de transição em que as águas do sindicalismo
estendiam-se a medidas revolucionárias, e pensavam na derrubada do go­ autoconfiante, represadas pelas Leis de Associação, lutaram por
verno: mas essa opinião parece não se sustentar em nenhuma prova satis­
fatória, e todos admitem que os líderes dos motins, embora possuíssem
irromper e se converter numa presença manifesta e explícita. Foi
considerável influência, eram todos das classes trabalhadoras”.
237. Cole, Life of Cobbett, p. 180. 239. F. Raynes, op. cit., p. 58.
238. Darvall. op. cit., p. 310.
179
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também um momento de transição entre, de um lado, Despard e a
“ Lâmpada Negra” , e Peterloo de outro. “ Estou autorizado a dizer” ,
escreveu um “Secretário do General Ludd” (provavelmente não
autorizado)240 de Nottingham a Huddersfield, em l.° de maio
de 1812: 3

que é a opinião do nosso general e homens que enquanto


aquele sujeito patife bêbado freqüentador de putas chamado DEMAGOGOS E MÁRTIRES
Príncipe Regente c seus criados tiverem algo a ver com o go­
verno nada senão a desgraça recairá dos seus estrados sobre
nós. Quero ainda dizer que se espera que vocês lembrem que
são feitos do mesmo estofo que Gorg Guelps Juner e o trigo I. Descontentam ento
e o vinho são enviados a vocês da mesma forma que a ele.
As Guerras terminaram entre motins. Com apenas um inter­
Nos três condados, a agitação pela reforma parlamentar co­ valo, elas tinham se estendido por vinte e três anos. Durante a
meçou no exato momento em que o luddismo foi derrotado. Em aprovação das Leis do Trigo (1815), as Câmaras do Parlamento
Halifax, mesmo antes do julgamento de Baines, fundara-se uma tiveram de ser defendidas por tropas contra multidões ameaçado­
das primeiras Uniões para a Reforma Parlamentar. “Ouvi dizer ras. Milhares de soldados e marinheiros licenciados voltaram e
que você é um Peticionário a favor de uma Reforma Parlamen­ depararam-se com o desemprego em suas aldeias. Os quatro anos
tar”, escreveu George Mellor a um amigo, enquanto aguardava seguintes correspondem à era heróica do radicalismo popular.
julgamento no Castelo de York: “ Quero que sejam dados esses Esse radicalismo, ao contrário dos anos 1790, não era uma
seguintes nomes. . .” Em anexo seguiam os nomes de trinta e nove propaganda de minorias, identificada com umas poucas organi­
companheiros de prisão. (“ Lembre-se”, acrescentou ele, “uma Alma
zações e escritores. Após 1815, as reivindicações dos Direitos do
vale mais do que Trabalho ou Dinheiro”.) E, se levarmos a lógica
Homem pouca novidade traziam; eram agora tidas por assentes.
até sua conclusão, poderemos dar crédito ao comentário exacer­
A maior parte da retórica e do jornalismo radicais se concentrava
bado de um magistrado de Derbyshire em 1817:
no desmascaramento gradual dos abusos do sistema de “ mercade-
Os luddistas agora estão principalmente engajados em política jamento de burgos” ou de “controle dos fundos” nos burgos —
e clandestinidade. São os principais líderes dos Clubes Hampdcn impostos, abusos fiscais, corrupção, sinecuras, acumulação de car­
que agora se formaram em quase todas as vilas no ângulo entre gos e benefícios clericais; e esses abusos, rvistos como oriundos de
Leicester, Derby e Newark.241 um grupelho venal, voltado para seus interesses pessoais, de pro­
prietários de terra, cortesãos e ocupantes de cargos indicados por
favores políticos, indicavam qual seria seu próprio remédio —
uma profunda reforma parlamentar. Foi este o ponto alto da propa­
ganda radical, cuja voz jornalística mais insistente foi a de William
240. Além de cartas provavelmente saídas de grupos luddistas bona jide, Cobbett e cuja voz mais convincente nas plataformas eleitorais
o período foi prolífico cm grande quantidade de iniciativas independentes
na redação de cartas. Entre autores que observei, encontram-se: “Sr. Pistola”, foi a de Henry Hunt. “ Quanto à causa de nossas misérias atuais” ,
"Lady Ludd", "Peter de Pelúcia", “General Tustiça", "Thomas Paine", “Um escreveu Cobbett em seu famoso Discurso aos Oficiais e Diaristas
Verdadeiro Homem", “Eliza Ludd", “Não ao Rei", “Rei Ludd" e “Joe (2 de novembro de 1816), “ é a enorme quantidade de impostos,
Incendiário", com endereços como "Caverna de Robin Hood" e "Floresta que o governo nos obriga a pagar para sustentar seu exército, seus
de Sherwood". ocupantes de cargos, seus pensionistas, &c. e pagar os juros de
241. Radcliffe MSS., 126/46 e 126/127A; An Appeal to the Nalion (Halifax.
1812); Lockett. 12 de janeiro de 1817, H. O. 40.3. sua dívida” .

180 181
O “Orador” Hunt tratava dos mesmos temas. Numa das
grandes encontros do radicalismo pós-guerra. Mesmo em 1802-3,
grandes manifestações em Spa’ Fields, Londres, no final de 1816,
pode-se ver essa disposição não só na simpatia demonstrada a
declarou:
Despard, como também na execração que acompanhou o Gover­
nador Wall em sua execução, pelo crime de ter ordenado o açoita-
Qual foi a causa da falta de empregos? Os impostos. Qual foi
a causa dos impostos? A corrupção. Foi a corrupção que permitiu mento até a morte de um soldado inocente.2 Dez anos depois,
aos mercadores de burgos empreender aquela guerra sangrenta quando Eaton, o velho editor dcísta, foi exposto no pelourinho por
que teve por objeto destruir as liberdades de todos os países mas ter publicado um folheto de Paine, sob o título de “ terceira parte”
principalmente as do nosso próprio país. (...) Tudo o que se da Idade da Razão, houve manifestações ainda mais enfáticas.
referia à sua subsistência ou comodidade foi taxado. O pão deles “Vi o Sr. Eaton no pelourinho” , lembrou Cobbett alguns anos
não foi taxado? a cerveja deles não foi taxada? tudo o que co­ mais tarde:
miam, bebiam, vestiam e até diziam não foi taxado? (...) Eles
[os tributos] foram impostos pela autoridade de uma facção Um dia antes, no mesmo lugar, um homem ocupara o pelourinho
mercadora de burgos que só pensava em oprimir o povo e viver por perjúrio, e fora alvejado com ovos podres, e quase sufocado
dos espólios arrancados às suas misérias. . .' com sangue e tripas trazidas dos matadouros, arremessadas ao
seu rosto. Muito diferente foi a recepção que teve o Sr. Eaton!
O radicalismo foi uma retórica libertária generalizada, uma Uma imensa quantidade de gente ficou a animá-lo durante a hora
luta contínua entre o povo e a Câmara dos Comuns não-refor- inteira que ali esteve: alguns estendiam biscoitos, como dando a
ele; outros estendiam-lhe copos de vinho, e outros bandeirolas
mada, onde se lançava à frente um problema após o outro. Em de triunfo e ramos de flores. Enquanto isso, o executor e oficiais
torno dessa luta, cresceu (ou, talvez se possa dizer, Cobbett criou) da Justiça eram vaiados! Esta é que foi a verdadeira causa de se
um martirológio e, mais especificamente, uma demonologia radi­ acabar com o castigo do pelourinho!
cal, onde o Príncipe Regente, Castlereagh, Sidmouth, os espiões —
Oliver, Castle e Edwards — , a Milícia Montada de Manchester, A multidão (dizia Cobbett) era “um espécimen londrino” —
Peel e o papel-moeda, e reformadores indiferentes ou equívocos, “Fidalgos, Comerciantes, Artífices de todos os tipos, artesãos e
como Brougham, tiveram todos eles sua participação ritual. Outras diaristas, e uma proporção bem razoável de mulheres” :
vozes, ocasionalmente, tiveram maior influência do que Cobbett
ou Hunt: T. f. Wooler e o Black Dwarf; as sátiras de William Eles não ignoravam a causa de sua exposição no pelourinho (.. .)
Hone; Carlile e o Republican. Mas essa retórica radical generali­ e no entanto não podiam concordar com um castigo infligido por
uma questão de opinião*
zada abrangia-os todos e estendeu-se, nos anos imediatamente pos­
teriores à guerra, desde seus representantes mais sofisticados —
Assim, o radicalismo da multidão londrina não era nenhum
Byron e Hazlitt, o Independent Whig de Henry White e o Exami-
fenômeno novo, mas nos anos pós-guerra assumiu formas mais
ner de John e Leigh Hunt — até os periódicos ultra-radicais,
conscientes, organizadas e elaboradas. O que havia de mais novo
como Medusa e The Cap of Liberty.
era a mudança, durante os anos de guerra, nas atitudes subpolí-
Essa retórica refletia e era sustentada pela disposição radical ticas das massas nas províncias, principalmente nas Midlands e
da multidão de Londres, nas vilas e distritos industriais. Existe
uma tradição praticamente ininterrupta de manifestações antiauto- 2. Political Register, dc Cobbett, 6 de fevereiro de 1802. Ao lado dos desta­
ritárias da multidão londrina, desde os dias de Wilkes, passando camentos de recrutadores, o açoitamento era, talvez, a instituição mais
pelas grandes manifestações convocadas pela SLC em 1795, até odiada da Velha Inglaterra. Cobbett lançou as bases para a sua grande
as agitações a favor de “ Burdett e Não à Bastilha”, e delas aos popularidade entre o povo comum, quando foi preso em 1810 por denunciar
essa violência. Sobre Wall, ver também Southey, Letters from England,
Carta 9.
1. Examiner, 17 de novembro de 1816. 3. Tbid., 27 de janeiro de 1820.

182 183
no norte. Nos anos 1790, apenas Norwich e Sheffield eram consi­
deradas pelas autoridades como centros irremediavelmente jaco- todas as simpatias e radicalismo latente da multidão londrina. Os
binos; nos primeiros anos do século 19, acrescentaram-se à lista marinheiros britânicos (muitos deles presentes na manifestação de
Nottingham, Conventry, Bolton; na época do movimento luddista, Spa Fields) destacavam-se por seus ânimos turbulentos: “ são sem­
pre os primeiros a aparecer (. . .) seja para lutar, beber, dançar ou
a maioria dos municípios de Lancashire e West Riding, além
de muitos outros nas Midlands, estavam “ descontentes”; no final armar uma briga”. Eram os heróis populares de inúmeras baladas
das Guerras. O indigno tratamento dispensado aos Cashmans con­
das Guerras, de Carlisle e Colchester e de Newcastle a Bristol,
trastava odiosamente com as generosas pensões outorgadas a sine-
a “ turba” tinha uma disposição radical. Inversamente, podemos
curistas e parentes de ministros e comandantes, as 400.000 libras
encontrar evidências no extenso programa de construção de quar­
téis durante a guerra — entre 1792 e 1815, foram construídos oferecidas a Wellington, para comprar uma mansão e uma pro­
155 quartéis, muitos deliberadamente situados nos distritos “ des­ priedade (além de outros emolumentos), as concessões de portos
contentes” das Midlands e do norte.4 A Inglaterra, em 1792, fora ou escritórios no Almirantado a inspetores ausentes. Cashman,
governada por consentimento e submissão, complementados com pessoalmente, sentiu-se tanto mais indignado com a injustiça em
o patíbulo e a turba de “ Igreja-e-Rei”. Em 1816, o povo inglês foi seu caso, ao ser conduzido nas ruas em uma carroça e “exposto
dobrado pela força. como um ladrão comum” . “ Não é por covardia” , exclamou,
Portanto, o radicalismo pós-guerra foi, por vezes, não tanto
Não fui trazido a isso por roubo nenhum. ( ...) Se eu estivesse
um movimento de uma minoria organizada, e sim a reação de toda
no meu quartel, não seria morto na mera fumaça: estaria dentro
a comunidade. Podemos observar dois exemplos, ambos de 1817. do próprio fogo. Não fiz nada contra meu Rei e país: mas lutei
O primeiro é a execução de um marinheiro, Cashman, por sua por eles.
participação num ataque a uma lòja de espingardas, após a ma­
nifestação de Spa Fields, em 2 de dezembro de 1816.5 Cashman A execução assumiu o caráter de uma grande manifestação
era um pescador irlandês, com “muitos anos” de serviço nas popular, e o cadafalso teve de ser protegido por barricadas e um
Guerras Navais, onde fora ferido nove vezes. Segundo seu relato, “imenso contingente” de policiais:
o Almirantado lhe devia mais de cinco anos de soidos atrasados,
além de uma considerável quantia referente a recompensas em Conforme os Xerifes avançavam, a turba expressava os mais fortes
dinheiro. A quantia de 1 libra mensal, que transferira para sua sentimentos de indignação: gritos e assobios explodiam de todos
mãe afundada na miséria, na Irlanda, nunca fora paga. Com o os lados, e tentavam se lançar à frente. (. ..) Cashman (. . .) pa­
término das Guerras, fora licenciado sem um único pêni e, ao recia partilhar do ânimo dos espectadores, e unia-se às suas excla­
mações com um terrível brado. ( .. . ) “ H urra, meus companheiros
buscar restituição do que lhe era devido, fora mandado de um
de causa! sucesso! ânimo!”
escritório para outro, numa contínua tergiversação. Na manhã do
motim, estivera uma vez mais no Almirantado; ao voltar, encon­
No patíbulo, Cashman repeliu as tétricas exortações de con­
trou “um colega marinheiro, um subtenente” que o convenceu a
fissão e arrependimento feitas por dois pastores anglicanos: “Não
assistir à manifestação de Spa Fields, oferecendo-lhe álcool e cer­
me amolem — isso não serve para nada — misericórdia só quero
veja durante o caminho. Pouco compreendia do propósito da
de Deus”. A seguir dirigindo-se à multidão: “ E agora, seus malan­
manifestação, e talvez não se lembrasse muito dos acontecimentos.
dros, dêem-me três vivas para eu partir” ; e, depois de dizer ao
As autoridades dificilmente poderíam ter escolhido uma víti­
carrasco: “ solte o pau da bujarrona” , Cashman “ deu vivas no
ma mais popular do que Cashman, e alguém mais capaz de atrair
momento em que a tábua fatal abriu-se sob seus pés” . Depois
de alguns minutos de silêncio mortal, a multidão “ renovou suas
4. Ver Halévy, England in 1815 (ed. Penguin), I, p. 104; Hammonds, The expressões de ódio e indignação contra todos os que tinham parti­
Town Labourer, p. 85.
5. Ver adiante, pp. 215-18. cipado do pavoroso espetáculo”, aos gritos de “ Assassinato!” e

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“ Vergonha!”. Passaram-se várias horas antes que o povo se dis­ fi difícil superestimar a importância das viagens evangeliza-
persasse.6 doras de Cartwright em 1812, 1813 e 1815. Por quinze anos, os
O outro exemplo é tomado de Lancashire, no mesmo mcs. bolsões de reformadores parlamentares por todo o país mantive­
Samuel Bamford, o tecelão de Middleton e Secretário do seu Clube ram-se sem nenhum líder ou estratégia nacional, exceto os ofere­
Hampden local, foi preso por Joseph Nadin e um destacamento cidos por Burdett e o Comitê de Westminster ou o Register de
de soldados, em sua aldeia natal. ímediatamente, uma multidão Cobbett. Tanto Cartwright como Cobbett consideravam fútil e abo­
cercou Nadin e seu destacamento, ameaçando resgatar o prisionei­ minável a fase insurrecional do luddismo. Mas ambos também
ro. Os capturadores de Bamford colocaram-se num coche, escol­ mostravam um interesse renovado pelo norte e pelas Midlands,
tado por dragões, e atravessaram Chadderton, para fazer novas onde vinha crescendo a insatisfação. O dramático apelo de Cobbett
prisões: aos “ Oficiais e Diaristas” só ocorreu em 1816. Foi o inflexível
Major, agora com mais de setenta anos, que decidiu entrar nos
Na estrada para a Sede de Chadderton, aconselhei meu condutor condados luddistas.
a parar e voltar para Manchester, garantindo-lhe que não captu­
raria mais nenhum do meu grupo naquele dia, e como prova Cartwright não tinha intenção de formar um movimento
apontei para os Morros de Chadderton e a região vizinha, onde radical “ operário” . Na verdade, considerava dever seu opor-se a:
montes de gente corriam como caçadores, como que para encon­
trar o coche perto de Royton. Toda a região se levantou, disse qualquer tentativa de incitar os pobres a invadirem a propriedade
eu, e quem quer que ele quisesse pegar estaria avisado de sua dos ricos. Não é com a invasão dessa propriedade que se alterarão
chegada. Rosnou uma grande praga, dizendo que nunca vira antes as condições dos pobres, mas sim por (.. .) LEIS IGUAIS (...).
nada parecido; o oficial que comandava os dragões, cavalgando
ao lado do coche, observou que vira algo parecido na Irlanda, Poderia se obter melhor uma pressão pela reforma “principal­
mas nunca em nenhum outro lugar.7 mente através das classes médias” . Ele queria canalizar o descon­
tentamento insurrecional para formas constitucionais,9 e lançar as
II. Problemas de Liderança bases para um movimento de âmbito nacional de petições cons­
tantes no Parlamento. No Clube Hampden de Londres, fora obri­
O Clube Hampden foi fundado em Londres em 1812. Era, gado a pôr em segundo plano sua crença pessoal no sufrágio
em si, uma entidade sem importância: um grupo seleto de refor­ masculino e Parlamentos anuais, e a se comprometer com a rei­
madores Whig, cada qual com uma renda anual de mais de 300 vindicação de um sufrágio reservado aos contribuintes de impostos.
libras, provenientes de propriedades rurais. Contudo, proporcio­ Mesmo assim, os reformadores nobres queixavam-se de suas opi­
nou ao Major Cartwright uma plataforma de onde podia lançar niões extravagantes e não conseguiam sequer comparecer aos jan­
seus discursos e uma base de onde empreender suas cruzadas pelas tares anuais do Clube. E o Major desdenhava reformadores tími­
Midlands e pelo norte, em prol da reforma parlamentar. “ Os fidal­ dos e whiguistas. Ainda acreditava na agitação entre um “ número
gos ingleses vivem eternamente viajando”, respondeu aos críticos ilimitado de membros”. Estava mais interessado nos princípios dos
de sua propaganda: “ Alguns vão ver lagos e montanhas. Não seria homens com quem trabalhava do que nas suas rendas ou ativida­
igualmente admissível viajar para ver a condição real de um povo des. Nisso demonstrou coragem. “ Recentemente tive contato com
miserável ?” 8
9. Cartwright a Thomas Hardy, 5 de janeiro de 1801: “Não concordo com
6. Courier, 12 de março de 1817; Weekly Political Pamphlet, de Cobbett. muitos que pensam que, mesmo agora, é tarde demais para formar a mente
15 de março de 1817; Black Dwarf, 19 de março de 1817. pública no sentido de se deter na Reforma, em vez de se dirigir para uma
7. S. Bamford, Passages iti the Life oj a Radical (ed. 1893), p. 77. Revolução. ( . . . ) O exemplo da França certamente serviría para evitar que
8. F. D. Cartwright, Life and Correspondence of Major Cartwright (1826). pensemos em estabelecer as coisas sobre uma base totalmente nova”. F. D.
II, p. 45; E. Halévy. The Liberal Awakening (ed. 1949), pp. 11 ss. Cartwright, op. cit.. I, pp. 292-3.

186 187
r
pessoas ligadas aos distritos perturbados” , escreveu em maio de Anual e Sufrágio Universal” , e a Presidência foi ocupada por
1812. “ Para conduzir os descontentes a um canal legal favorável à “um dos nossos homens violentos”.11
Reforma Parlamentar, estão ansiosos para obter o conselho e apoio Cartwright anunciou que voltava dessas viagens com 200.000
de nossa Sociedade.” Já em janeiro de 1812, visitara Derby e Lei- assinaturas para as petições pela reforma. (Uma viagem posterior,
cester, e tentara realizar em Nottingham uma reunião pública pela em 1815, levou-o à Escócia.) Os encontros não se passaram sem
reforma, no auge das revoltas luddistas. Reclamara, em cartas incômodos. Em Huddersfield, a 22 de janeiro de 1813 (apenas
abertas na Nottingham Review, contra a timidez daqueles fidal­ uma semana depois da execução de catorze luddistas), a reunião
gos reformadores que não tinham lhe dado apoio: “ quando falta foi invadida pelo Exército, papéis e petições foram apreendidos,
emprego, e os trabalhadores não conseguem pão ( . . . ) não é este, Cartwright e reformadores locais (principalmente “ artífices mecâ­
Sir, o momento adequado para reuniões?” Quando John Knight e nicos”) foram presos, e apenas o evidente conhecimento do Major
os “Trinta e Oito” foram presos em Manchester, no verão de 1812, sobre o direito constitucional impediu outras perseguições. Em
Cartwright escreveu imediatamente, para dar incentivo e prestar Bolton, Rochdale, Salford, reformadores que coletavam assinaturas
auxílio à defesa. No outono, decidiu entrar novamente nos “ distritos para suas petições foram presos ou vitimados. Podemos supor que,
perturbados”. como Cartwright passava rapidamente de cidade em cidade, os
Em sua viagem de 1812, realizou encontros em Leicester, clubes incipientes que deixava atrás de si tinham as maiores difi­
Loughborough (onde compareceram 600 pessoas), Manchester, culdades em se manter. Foi somente a partir de 1816 que lançaram
Sheffield, Halifax, Liverpool e Nottingham. Em janeiro e fevereiro raízes nos distritos manufatureiros.12
de 1813, empreendeu uma segunda viagem, realizando encontros Os bastiões do jacobinismo tinham se concentrado em centros
em 35 lugares das Midlands, norte e oeste em menos de trinta artesãos. É impossível ter uma definição clara a partir de 1815.
dias.10 (Esta viagem — e as viagens de Oliver em 1817 — lem Em diversos momentos entre 1815 e 1832, a agitação contra abu­
bra-nos que somos rápidos demais ao ressaltar as dificuldades de sos específicos — imposto de renda, dízimos, Leis do Trigo, sine-
comunicação antes do surgimento das estradas de ferro.) Em cada curas — empolgou muitíssimas parcelas da população. Industriais,
um desses centros, existia um núcleo de reformadores que proce* agricultores, pequenos fidalgos, profissionais liberais, bem como
dera aos preparativos para o encontro. Cartwright punha-se à dis­ artesãos e diaristas, uniam-se na reivindicação de alguma medida
de reforma parlamentar. Mas o impulso consistente por trás do
posição deles, fossem fidalgos, pequenos comerciantes, artesãos ou
movimento pela reforma provinha das “ classes industriosas” —
tecelãos; dava as costas à insípida fidalguia e grandes patrões
malharistas, tecelãos manuais, fiandeiros de algodão, artesãos e,
Whig que se escandalizavam com a ralé à qual se associava. Mesmo associados a estes, uma grande quantidade difusa de pequenos
seu velho colega Wyvill, num panfleto sob pseudônimo, denun­ mestres, comerciantes, taverneiros, livreiros e profissionais libe­
ciou-o por apoiar luddistas e incendiários. Durante um jantar ofe­ rais, dentre os quais às vezes eram extraídos os diretores de socie­
recido em sua homenagem pelos “ Amigos da Reforma Parlamen­ dades políticas locais.
tar”, em Sheffield, um industrial que se considerava reformador
A constituição do movimento pela reforma variava de uma
sentiu-se escandalizado, pois “ os ingressos para o jantar estavam
reunião para outra, conforme sua estratégia e tom. Em Bristol,
a preço tão baixo que os participantes, com poucas exceções, eram
onde Henry Hunt foi o porta-voz de uma impressionante agitação
do mais baixo nível” . Predominavam os “homens do Parlamento
antes do final das Guerras, predominavam os artesãos, principal-

10. Lutterworth, Minckley, Leicester, Loughborough, Chesterfield, Sheffield.


11. F. D. Cartwright, op. cit., I, p. 243, II, pp. 17, 21, 31-55, 110; H. O.
Huddersfield, Bradford. Wakefield, Leeds, Preston, Wigan, Liverpool. Bolton. 42.119; Nottingham Review, 27 de dezembro de 1811, 3 e 17 de janeiro de
Manchester, Lees, Stockport, Newcastle, Birmingham, Worcester, Tewkes- 1812; T. A. Ward, Peeps into the Past, p. 191.
bury, Glaucester, Stroud, Bath, Shepton Mallet, Bridgwater, Taunton, 12. F. D. Cartwright, op. cit., pp. 47-55; Fitzwilliam Papers, F. 46(g);
Wcllington, Bristol, Calne, Marlborough, Newbury, Hungerford. Abingdon. Radcliffe MSS., 126/117.
Reading.
189
188
mente os cordovaneiros e vidraceiros.13 No sul de Lancashire, onde
em Bamslev ou Loughborough. Nas aldeias e pequenas vilas
era maior o fosso entre os grandes manufatureiros e os trabalha­
industriais, os mesmos líderes radicais podiam continuar em seus
dores. o movimento operário pela reforma era mais “ independen­
postos por vinte e até quarenta anos, com poucas alterações em
te” , mantendo sua distância até dos ativos reformadores de classe
sua atividade ou status.
média de Manchester. Em West Riding, as clivagens econômicas
não eram tão acentuadas, os tecelãos manuais só ingressaram em A liderança londrina dá uma impressão de transitoriedade.
sua pior fase crítica no final dos anos 1820, e em Leeds havia Personalidades nacionais importantes, oradores, apadrinhados, jor­
uma certa cooperação entre reformadores artesãos e de classe nalistas ou demagogos de bar sucediam-se uns aos outros, em pres­
média. Em Birmingham, onde as gradações sociais eram menos tígio, e freqüentemente entravam em ásperas polêmicas destrutivas
abruptas e o artesão ainda aspirava a se tornar pequeno mestre, em pleno público. Além disso, o radicalismo londrino emergira
existia um vigoroso radicalismo nativo, apoiado por muitos patrões das Guerras já muito dividido. O candidato natural à liderança
e em certa medida, sob uma liderança de classe média. era o velho Comitê de Westminster. Mas esse Comitê agora se
O radicalismo de Manchester, Birmingham ou Leeds manti­ encaminhara decididamente para uma aliança entre reformadores
nha uma relação direta com a estrutura de cada comunidade. Já artesãos e de classe média. Burdett, cujos ardores radicais vinham
menos fácil é apresentar um autêntico radicalismo londrino oriun­ se esfriando, começou em abril de 1816 uma campanha pelo direito
do de sua estrutura industrial ou de seus padrões comunitários. de voto para todos os que pagavam impostos diretos. Era apoiado
Todos os que aspiravam a uma liderança ou influência radical pelo Comitê de Westminster, que inaugurara sua agitação pós-
tinham seguidores londrinos — Cobbett, Burdett, Carlile, Thistle- guerra com uma petição contra o imposto' de renda (um apelo
wood, os benthamistas, Henry Hunt e muitos mais. Dos prelos lon­ direto ao apoio das classes proprietárias, principalmente dos re­
drinos fluíam constantemente livros e jornais radicais. Mas Lon­ formadores londrinos cujo porta-voz era Alderman Waithman).
dres, em si, raramente surgiu como foco nacional para a organi­ Lorde Cochrane ainda ocupava a outra cadeira de Westminster,
zação reformadora popular até as vésperas de 1832. com o entusiasmo byroniano de revolucionário nobre, mas sua
O problema, em parte, consistia no tamanho de Londres e reputação fora maculada por escândalos na Bolsa de Valores, tinha
na diversidade de suas profissões. Nos centros manufatureiros, era poucos dotes de líder político e, quando renunciou à sua cadeira
possível surgir uma liderança legal entre homens bastante conhe­ (para se alistar como flibusteiro democrático nas guerras sul-ame­
cidos na comunidade e certos do seu apoio. Em Londres, existia ricanas), foi finalmente substituído pelo benthamista John Cam
uma serie de sólidos distritos radicais — entre eles Bethnal Green, Hobhouse, preferido por Burdett e Place, em vez dos outros
Lambeth, Southwark, Finsbury, Islington — , de onde às vezes candidatos lançados, Cartwright e Hunt, favoráveis ao sufrágio
surgiam alguns líderes. Os “ spenceanos” e os conspiradores da masculino.14
Cato Street esperavam confiantes pelo apoio do populacho em Esse deslocamento para Westminster não foi gratuito. Francis
geral, particularmente dos trabalhadores da construção civil e docas Place e seus companheiros artesãos e pequenos mestres (alguns
e dos “navegadores” que escavavam o Canal de Paddington. Na deles agora grandes patrões, como Alexander Galloway) tinham
maior parte das vezes, podia-se contar com os tecelãos de seda de abandonado sua fé jacobina: a crença no sufrágio masculino e na
Spitalfields para as manifestações radicais, ao passo que os refor­ agitação popular ilimitada. Desprezavam a ralé londrina e alarma-
madores constitucionalistas de Westminster encontravam sólido vam-se com seus elementos turbulentos ou insurrecionais. Pouco
apoio entre os grêmios profissionais de artesãos. Mas a efetiva contato tinham com o mundo da taverna, onde agora se movia
liderança londrina, em vez de ser extraída diretamente desse uma nova geração de agitadores. Place declararia mais tarde que
apoio, tendia a se sobrepor a ele. A oportunidade de ascensão Cobbett era “ ignorante demais ( . . . ) para ver que o povo comum
social para os artesãos inteligentes era maior em Londres do que
14. Quase todos os radicais avançados opuseram-se a esta escolha. Ver
13. Henry Hunt, Memoirs (1822), III, pp. 7-12. Wallas, op. cit., p. 138.

190 191
será sempre imbecil a tal respeito [i.é., organização política] da influência de Hunt e Cobbett, e unir uma adesão operária a
quando não estimulado e apoiado por outros que tenham dinheiro uma nova liderança parlamentar, cujas estrelas em ascensão eram
e influfincia” . O próprio Place estava sob influência direta de Hume, Hobhouse e Brougham.
Bentham e James Mill. Embora não fosse menos radical em seu
Tal estratégia era pouco atraente para os reformadores mais
desprezo pela ineficiência e irracionalismo do governo aristocrá­
ardorosos de tradição jacobina e para os elementos mais radicais
tico e em sua indignação contra as Leis do Trigo e qualquer legis­ da multidão londrina. No entanto, a única liderança que se apre­
lação repressiva, era profundamente hostil a qualquer estratégia
sentou como alternativa ao Comitê de Westminster em 1816 foi
aberta de agitação e organização popular. Em 30 de janeiro de a pequena “ Sociedade de Filantropos Spenceanos”. Thomas Spence
1817, quando os representantes dos Clubes Hampden encontra­ morrera em setembro de 1814, e fora “enterrado com certa pompa”
vam-se numa conferência em Londres, Place redigiu um discurso por “cerca de quarenta discípulos” , a partir dos quais se organi­
de advertência para o Reformista Register de Hone, que era uma zara a Sociedade. Entre seus principais membros, supostamente
clara tentativa de salvar o movimento reformador da influência incluíam-se os dois Watson, pai e filho,17 Arthur Thistlewood.
da política em favor do sufrágio masculino. “ É a classe média Thomas Preston, Allen Davenport e os dois Evans, pai e filho. Em
agora, como em outras épocas”, dizia o discurso, “que deve ser conseqüência das recordações dc Place, figuram, na maioria dos
confiada a salvação de tudo o que é caro aos ingleses. ( . . . ) É estudos de história, como excentricidades e nulidades: Watson, o
desta classe ( . . . ) que deve provir tudo o que de bom possa se mais velho, como “ um homem de hábitos desregrados ( . . . ) mise­
ravelmente pobre”, seu filho como “ um sujeito devasso feroz” .
obter” .15
Evans, o bibliotecário da Sociedade, como um excêntrico que “ cos­
Em 1817, Cobbett já apelidara o Comitê de Westminster de tumava marchar de sua casa até as tavernas onde (. . . ) se realiza­
“o Rebotalho” *. Em 1820, ele o condenou como “ um pequeno vam os encontros da sociedade, com uma bíblia velha debaixo
grupo de homens que vêm se imiscuindo nos grandes assuntos do braço” .18
políticos de Westminster” , uma “ corporaçãozinha muito cômoda Os spenceanos eram “ quase nada nem ninguém”, prosseguia
que foi tão generosa a ponto de tomar para si o cargo de (. . . ) Place: eram “ inofensivos e simplórios”. Mas, na medida em que
escolher membros para representar aquela Cidade no Parlamento” , eram os principais concorrentes de Place e do Comitê de Westmins­
e um “miserável conluio ( . . . ) que, para todos os fins práticos, ter, em 1816-17, para a liderança do radicalismo londrino, Place
converteram Westminster num burgo podre, como Gatton ou não é uma testemunha desinteressada. Para um benthamista, o
Old Sarum”.16 Pouco interesse há em remexer em toda a lama Estado Cristão a Salvação do Império (1816) de Thomas Evans,
que Burdett e Place, de um lado, e Cobbett e Hunt, de outro, devia parecer uma asneira. Mas pode-se sugerir que o socialismo
lançaram uns contra os outros naqueles anos. Mais importante é agrário de Evans era mais racional e viável do que o Cálculo
da Felicidade de Bentham. Os adeptos spenceanos obtiveram gran­
notar que, em 1816, a estratégia do grupo mais organizado entre
de apoio entre as agremiações profissionais, principalmente entre
os radicais londrinos foi a de desvincular o movimento no campo
os sapateiros. Sua política — que “ toda feudalidade ou senhorio
do solo seja abolido, e o território declarado terra comum do
15. Add. MSS. 27.809, f. 16, 17. 51. Deve-se dizer que Hone não seguiu as povo” — estava preparando a mentalidade dos artesãos para
instruções editoriais de Place. aceitarem a Nova Visão da Sociedade de Owen.19
* mThe R u m p aqui traduzida simplesmente como ‘o Rebotalho", é uma
expressão que, entre outras coisas, designa o que restou de um conselho,
um legislativo etc., depois da renúncia ou expulsão da maioria dos seus 17. Que não devem ser confundidos com [ames Watson. o livreiro radical
membros, permanecendo como uma entidade não-representativa e sem auto­ e sócio de Carlile e Hetherington.
ridade. Com essa acepção, "The Rump" foi aplicado como apelido ao Par­ 18. Add. MSS. 27.809, ff. 72. 99.
lamento de 1640-1660, sob Cromwell. (N. do 7\). 19. Sobre a Christian Polity de Evans, ver A Formação da Classe Operária
Inglesa, vol. I. p. 179.
16. Political Register, 9, 16 de dezembro de 1820.

192 193
Se os spenceanos não eram tão “ simplórios” , também goza­ do dr. Watson. Em 1816, tinha talvez cinqüenta anos de idade,
vam — em 1816 — de alguma influência. Na terminologia de foi descrito, no seu julgamento, como “médico e químico”, era
Place, ser “ quase nada nem ninguém” significava que eles não pobre e talvez tenha se envolvido, por vários anos, em atividades
mexiam seus pauzinhos no Parlamento nem em círculos influentes políticas clandestinas.23 Era amigo daquele outro cirurgião jaco-
de classe média. Mas Preston e Thistlewood seguramente conhe­ bino, (ohn Gale Jones, que tomou a palavra em diversos encontros
ciam o mundo londrino das tavernas melhor do que Place. Os sob sua presidência. Arthur Thistlewood, ex-oficial do Exército
spenceanos, durante as Guerras, tinham defendido a política do e antigo agricultor-fidalgo, estivera na França em finais dos anos
“ livre e aberto” , dos encontros informais em Lambeth ou Bethnal 1790 e (segundo um relato) servira nos exércitos revolucionários.
Green. A Comissão Confidencial, que em fevereiro de 1817 regis­ Preston, embora às vezes citado como sapateiro, parece ter sido
trara a multiplicação de sociedades spenceanas entre artífices e pequeno patrão no ramo de coures. “Vi tantas desgraças em Spital-
manuíatureiros, soldados e marinheiros dispensados logo após a fields” , disse ao Lorde Prefeito em dezembro de 1816,
guerra, talvez não fosse tão alarmista quanto geralmente se supõe.
Existem algumas evidências de que, no final de 1816, os spenceanos que roguei a Deus que me engolisse — vi uma mulher nova e
tinham reorganizado suas tarefas, em seções e divisões, conforme delicada que por nove meses não teve Leito — arruinei-me, não
o velho esquema da Sociedade Londrina de Correspondência.20 tenho uma libra, manti quarenta homens em serviço...
Além disso, talvez exista uma certa ambigüidade no próprio
termo “ spenceano” . Evans, sem dúvida, foi um discípulo de Spen- Esses homens constituíam o núcleo do ultra-radicalismo lon­
ce, e ele e seu filho foram perseguidos pelas autoridades, com drino, fossem spenceanos ou “ velhos Jacks” da tradição cons-
um excepcional espírito vingativo, por terem tido a coragem de de­ pirativa de Despard. Seu campo de agitação era o grêmio pro­
fender por escrito a expropriação dos proprietários de terras — um fissional e a taverna.24 Samuel Bamford e seus colegas represen­
Parlamento de proprietários de terras não podia conceber crime tantes dos Clubes Hampden do norte, quando estiveram em Lon­
maior do que este. Ele e seu círculo sustentaram, em 1816-17, dres nos primeiros meses de 1817, assistiram a vários encontros
uma pequena propaganda filosófica a favor do socialismo agrário.21 desses.25 é provável que a maior parte do grupo tenha herdado a
Mas aos líderes políticos mais influentes em Londres — dr. James idéia de Despard, segundo a qual Londres devia desempenhar o
Watson, Arthur Thistlewood e Thomas Preston — cabe melhor papel de Paris numa Revolução inglesa, fosse através de motins
a designação de republicanos ou jacobinos da antiga tradição pai- que culminariam numa insurreição geral dirigida contra a Torre,
nista, sendo que — durante o período de grande desemprego nos as prisões e a Câmara do Parlamento, ou através de um coup
anos pós-guerra — também concordavam com a volta a pequenas d’état. Tampouco se deve supor que um movimento insurrecional,
propriedades e uma “lavoura de base”, como única solução para cm 1817 ou 1819, não conseguiría — se ganhasse impulso sufi­
o problema da fome.22 É difícil descobrir muitas coisas a respeito
ciente — obter um certo êxito temporário. Mas, mesmo que vários
membros do grupo tenham tido tristes ocasiões para provar sua
20. Ver O. D. Dudkin, Thomas Spence and his Contemporaries, pp. 146-9;
A. W. Waters, Spence and his Political Works; A. Davenport, The Life,
coragem, nada pôde poupá-los da acusação de amadorismo culposo.
Writings and Principies of Thomas Spence; W. M. Gurney, Trial of James
Watson (1817). I, p. 45: Address of the Spencean Philanthropists (1816), 23. Ver o interrogatório de Thomas Preston perante o Lorde Prefeito, 4 de
p. 4. dezembro de 1816: "Sempre considerei os Watson — ambos — os homens
21. Ver os pequenos periódicos editados por Robert Wedderburn, um mais corajosos da Inglaterra ( . . . ) creio que são ambos cirurgiões”. T. S.
alfaiate mestiço (filho de um fidalgo escocês e uma escrava jamaicana). 11.203. Ver também entrada em D.N.B.
The ‘Forlorn Hope' e The Axe Laid ío the Root, ambos de 1817. Os Evans 24. "Preston falou de um Clube Livre e Aberto como a melhor forma
foram presos sob a suspensão do habeas corpus em 1817-18 (pela segunda de reunir os homens [cm Spitalfields]." Depoimento de J. Williamson, 24 de
vez), e seu processo atraiu grande simpatia. setembro de 1817, T. S. 11.197.
22. Ver o resumo do discurso do dr. Watson em Spa Fields, A Formação 25. Bamford, op. cit.. pp. 25-6.
da Classe Operária Inglesa, vol. II. p. 64.
195
194
Foram vítimas de sua própria retórica inflada; conspiraram com encontram -se à noite em tavernas e estalagens. Q uase todas as
granadas e lanças caseiras, mas eram incapazes de construir uma ruas de um a cidade grande contam com um pequeno senado desse
única barricada protegida nas ruas de Londres; mais de uma vez, gênero; e os privilégios de se d eb ru çar em conselho sobre os
foram apanhados em posições românticas secundárias. Seu submun­ assuntos da nação, com um caneco de cerveja preta, há m uito
do de bravatas de taverna foi facilmente penetrado por espiões de tem po são reivindicados por britões livres, e reconhecidos por
t o d o s os governos.28
Sidmouth. Foi aí que Oliver obteve as credenciais que lhe deram
acesso aos conselhos de reformadores nas Midlands e no norte.
E sobre as duas tentativas genuinamente conspiradoras em Londres Foi nessas “sociedades” que Bewick e seus colegas artífices
(os motins de Spa Fields e da Cato Street) sempre pesará a sus­ radicais se reuniram em Newcastle no decorrer das Guerras. Durante
peita de que foram obra, em grande parte, de Castle e Edwards, a eleição de 1812, Brougham escreveu de Liverpool para Lorde
provocateurs do próprio Governo. Grey:
Assim, o movimento reformador londrino se iniciou dividido
entre, de um lado, prudentes constitucionalistas e, de outro, cons­ Você não pode im aginar com o é um a eleição em Liverpol. ( . . . ) É
preciso ir todas as noites aos diferentes clubes, sociedades bene­
piradores. O terreno intermediário entre esses extremos era ocupa­
ficentes etc., que se reúnem e discursam . (. . .) Estive nove noites
do por Cartwright, Hunt e Cobbett. Mas só conseguiremos avaliar
nos clubes, além de um discurso regular por dia, no fecham ento
toda a complexidade do problema da organização e liderança radi­ da apuração. N aquela época, fiz cento e sessenta e tantos dis
cal se olharmos para além de Londres, observando também a cursos. . 29
situação em que ainda se encontravam os reformadores, sob a Lei
das Sociedades Sediciosas, pela qual foram suprimidas as Socie­ Em 1817, Cobbett podia escrever:
dades de Correspondência em 1799.
Sob essa Lei, nenhuma organização política nacional era legal. Tem os Clubes P i t t , Clubes W h i g , Clubes p ara acabar com o vício,
Além disso, era ilegal formar sociedades locais que fossem ramos Clubes p ara localizar e punir ladrões, Clube da Bíblia, Clubes-
de uma sociedade nacional ou que se comunicassem com um cen­ Escolas, Clubes Beneficentes, Clubes M etodistas, Clubes H am pden.
tro nacional por correspondência ou troca de representantes. (Essa Clubes Spenceanos, Clubes M ilitares, Clubes N avais, Clubes de
legislação foi também obstáculo para a Associação Nacional pela logo, Clubes de Com idas, Clubes de Bebidas, Clubes de Mestres.
Carta em 1841). Os únicos direitos incontestes dos reformadores Clubes de O ficiais, e mil outros tipos de clubes e associações.30
eram, em primeiro lugar, o de formar clubes ou grupos de discus­
são locais e autônomos;26 em segundo lugar, o de enviar petições Mas era grande o passo entre o grupo informal de taverna e o
ao Parlamento ou ao Rei, e de se reunir para esse fim.27 clube declaradamente radical — o Clube Hampden ou a União
A reunião informal no clube e na taverna fazia parte do Política. Temos registros interessantes das discussões que acom­
processo democrático que sobreviveu à repressão de 1796-1806. panharam a formação dos primeiros Clubes Hampden em Lanca-
tanto nas províncias como em Londres. Em 1802, um correspon­ shire. Por exemplo, existe o relatório de um informante que com­
dente do Leeds Mercury referiu-se às ‘‘sociedades e clubes” onde pareceu a uma “ reunião de comitê sobre a reforma“ , na “ Marca
artífices do Cão”, em Little Bolton, em novembro de 1816:

John Kay com eçou a coisa nos perguntando se tínham os pesado


26. Isso quase nem era aceito como “direito" por alguns magistrados pro­ deliberadam ente as conseqüências em nossas m entes. Ele disse:
vinciais, que tomaram a seu cargo a intervenção e dissolução das reuniões. vocês estão p reparados para sofrer perseguições, isoladam ente e
Foi o que aconteceu com o Clube Hampden de Leeds.
27. Mesmo durante os piores anos de repressão, o próprio Governo, da
boca para fora, defendeu esse direito “inviolável". Ver também P. Fraser. 28. Leeds Mercury, 6 de março de 1802.
"Public Petitioning and Parliament before 1832", History. XLVI, 158, outu­ 29. Brougham, Life and Times (1871), II, p. 62.
bro de 1961. 30. Weekly Political Pamphlet. de Cobbett. l.° de março de 1817.

196 197
cm suas pessoas em prol daquela grande e boa causa da reform a. vários clubes se correspondiam livremente dentro do comando, e
( . . . ) Nossa tarefa é árdua e perigosa. Vocês que estão aqui estão chegaram ao ponto de convocar reuniões de delegados ou comitês
dispostos a se engajar nessas condições? de condado, com bom comparecimento. Em 6 de janeiro de 1817,
Robeson Bradley disse: sei que sofrem os, nessas condições, um informante do clube de Leicester podia relatar:
temo que antes do fim do Inverno. Ele disse que fomos levados
a uma situação tal pelos nossos opressores que pouco vale pre­ Foi enviada uma delegação a Manchester. Foram Graham e
servar a vida e a liberdade. ( . . . ) Kay disse que é legal buscar Warburton. Graham apresentou a grande desgraça em que se
m elhorias através da reform a. Mas q uando o P arlam ento se reúne encontravam em Lancashire. Que a maior parte dos pobres só
eles podem tornar ilegal a reunião e não é provável que renunciem tinha um pouco de água e sal e farinha de aveia — alguns faziam
docilm ente às suas sinecuras, pensões etc. que têm gozado d u ­ uma refeição por dia, e alguns faziam uma refeição a cada três
rante anos. Ele disse que os hom ens cruéis preferirão sacrificar dias. Então leu uma carta de Derby, dizendo que uma pessoa de
m etade do povo da nação a renunciar pacificam ente, se renunciam Manchester visitaria o clube de Leicester em seu caminho para
tem de ser à força, e em sua queda esm agarão m ilhares de nós. . . Birmingham e Bristol. Então lê uma carta do Major Cartwright,
dizendo que tinha recebido informações de catorze sociedades
Concordou-se em se escrever ao Sr. Knight (o veterano de diferentes que pretendem enviar Delegados para um Comitê em
Oldham do julgamento dos “Trinta e Oito”, em 1812) e também Londres em 22 de janeiro.. .32
ao “ sr. W. Cobbett onde mora” , “ pedindo a eles que nos infor­
mem se seria legal recolher dinheiro na entrada para cobrir a Poucas semanas antes, os reformadores de Lancashire tinham
despesa relativa a Aluguel & contatos, folhetos políticos &c. (. . .)” . ido além. Numa reunião de delegados em Middleton, assistida por
A resposta de John Knight a essa pergunta também sobreviveu: “ representantes de Cheshire & West Riding”, bem como de Lan­
cashire, foram indicados quatro “missionários” — dois para viajar
Senhor, mal reccbi sua carta e respondo ter de declarar que por Potteries, até Birmingham, dois para realizar encontros em
o sr. pode alugar uma sala para o propósito de discutir questões Yorkshire. Até se resolveu que “ todas as entidades peticionárias
políticas ou outras (sem tirar licença p ara a sala) desde que não em todo o Reino Unido deviam enviar (. . .) um ou mais repre­
cobre entrada nem tranque a porta de fora d u ran te sua estada sentantes a Manchester (. . .) para ajudar a trazer toda a força
mas que as pessoas entrem & saiam à vontade. N um a carta que das Uniões a um só ponto de vista” .33
reccbi ontem de Londres recom enda-se que essas reuniões sejam
Assim, nos últimos meses de 1816, ocorreu um crescimento
anunciadas publicam ente, que um M agistrado seja inform ado
delas, & além disso que seria m elhor evitar reuniões secretas & bastante considerável dos Clubes Hampden ou sociedades da União
que nas reuniões com pareça o m aior núm ero possível de pessoas nas províncias;34 semanas depois de sua formação, esses clubes esta­
— a Linguagem usada deve ser b randa & constitucional, mas vam insistindo em contatos regionais e nacionais, ilegais sob a Lei
firm e & clara. A lugam os um a sala aqui [i.é., M anchester] capaz das Sociedades Sediciosas. Ao mesmo tempo, parecia que Man­
de conter mil pessoas. T ínham os pensado cm inaugurá-la na chester iria assumir a liderança nacional. No caso, porém, foi
próxima segunda-feira, mas esperando conseguir um núm ero con­ Cartwright e o Clube Hampden de Londres que convocaram uma
siderável das Classes superiores (como são cham adas) adiando-a Convenção de delegados dos clubes, que se realizou no final de
por uma sem ana concordam os com isso. . .31 janeiro de 1817, na taverna “ Coroa e Âncora” . Essa reunião, assis­
tida por setenta delegados, tentou contornar a Lei realizando-se
Knight, muito provavelmente, estava sendo aconselhado pelo
Major Cartwright ou por Thomas Cleary, seu lugar-tenente. Tanto 32. H. W. C. Davis, The Age of Grey and Peel, p. 181.
em Lancashire como em Leicestershire, no inverno de 1816-17, os 33. H. W. C. Davis, Lancashire Reformers, pp. 27-8.
34. Afora Lancashire e Leicestershire, os principais centros dos Clubes
Hampden eram Nottinghamshire, Derbyshire, Birmingham, Norwich c
31. H. O. 40.3, citado em H. W. C. Davis, Lancashire Reformers. 1816-17 partes de West Riding.
(Manchester, 1926), pp. 21-2.
199
198
em sessão pública e declarando representar ‘‘pessoas que podem
ser enviadas de cidades, vilas e outras comunidades peticionárias maior circulação no norte.37 A mudança decisiva só veio em
para conferenciar juntas (. . .) sobre os melhores meios de se novembro de 1816, quando Cobbett, encontrando uma brecha nos
efetuar uma reforma constitucional” . Seus trabalhos não foram regulamentos sobre a franquia das publicações, começou a editar
suspensos pelas autoridades: na medida em que contrastava com o em separado seu artigo principal, como um Weekly Political
tratamento dado à “ Convenção Britânica” em Edimburgo, em Pamphlet, a 2 penies (“ Tralha de dois penies”). O primeiro pan­
fleto foi seu famoso “ Discurso aos Oficiais e Diaristas” :
1793, isso indica um ligeiro avanço. Mas a reunião também ressal­
tou a falta de coesão do movimento nacional.
Amigos e Companheiros do Campo,
A base imediata do encontro foi a influência popular crescen­ Seja no que for que alguns homens tenham sido levados a
te de Cobbett. além dos grandes encontros de Spa Fields, cm acreditar por Orgulho de posição, ou riqueza, ou erudição (. ..)
novembro e dezembro de 1816, onde a palavra coube a Henry a força real e todos os recursos de um país sempre brotaram e
Hunt. O relato de Bamford é bem conhecido: sempre deverão brotar do trabalho do seu povo. (...) Roupas ele­
gantes, móveis luxuosos, construções grandiosas, belas estradas e
Nessa época, os textos de William Cobbett subitamente revesti­ canais, cavalos e carruagens velozes, navios sólidos e numerosos,
ram-se de grande autoridade; eram lidos em praticamente todas armazéns cheios de mercadorias; todos (. . .) são inúmeros sinais
as lareiras dos chalés dos distritos manufatureiros do sul de da riqueza e recursos nacionais. Mas todos brotam do trabalho.
Lancashire. dos de Leicester. Derby e Nottingham; também em Sem os oficiais e os diaristas nenhum deles poderia existir. . .
muitas das vilas manufatureiras escocesas. (. . .) Ele dirigia os
seus leitores para a verdadeira causa dos seus sofrimentos — o “ Os dinheiristas insolentes chamam a vocês de turba, ralé.
mau governo — e para o seu corretivo adequado — a reforma escória, multidão porca, e dizem que sua voz não vale nada; que
parlamentar. Os motins logo escassearam (...) Agora se funda­ nada têm a fazer em reuniões públicas. . . ” Cobbett mostrava, em
vam Clubes Hampden. (...) Os Diaristas (...) tornaram-se deli­ termos simples, a carga da tributação indireta sobre o povo; os
berados e sistemáticos em seus procedimentos.. .35 grandes gastos com “Indicados para Sinecuras e Pensionistas”; a
ligação constitucional entre tributação e representação. Atacava o
‘A existência de qualquer conhecimento político, os princí­ argumento malthusiano de que os sofrimentos dos pobres eram
pios políticos estabelecidos, entre os pobres dessas vizinhanças, provocados pelos seus casamentos precoces e fecundidade excessi­
é muito recente” , escreveu um reformador de Manchester em va (“De modo que um rapaz, de braços dados com uma moça de
1820, também atribuindo essa mudança aos “ensaios magistrais do faces rosadas, deve ser um espetáculo de mau agouro!”), e o
sr. Cobbett. sobre a situação financeira do campo e os efeitos da argumento de que a única solução para o desemprego era a emi­
tributação na redução do bem-estar do lavrador” : gração: “vocês que ajudam a sustentá-los com os impostos que
pagam têm tanto direito a ficar no país quanto eles! Vocês têm
O preço baixo dessas publicações permitiu-lhes uma circulação pais e mães e irmãs e irmãos e filhos e amigos, assim como
mais ampla; e o estilo forte, claro, condensado e argumentativo eles. . .”. A única verdadeira solução era um parlamènto reforma­
do escritor adequa-se de modo feliz à capacidade da categoria do: “ Precisamos ter isso antes, ou nada teremos de bom”.
mais numerosa dos seus leitores.. .36
Exorto-os a agirem de modo pacífico e legal, mas ao mesmo tempo
Por vários anos, o Poliiical Register de Cobbett. a 1 xelim e agirem com ardor e resolução para a realização desse objetivo.
meio pêni, devido às grandes taxas de franquia, viera ganhando Se os que se esquivam não se unirem a vocês, se os fidalgos
“decentes do lar” se mantiverem arredios, ajam por vocês mesmos.
35. Bamford, op. cit., pp. 11-2.
36. [J. E. Taylor], Notes and Observations ( . . . ) on the Papers relative 37. Ver T. A. Ward, op. cit., p. 163, para referência, já em 1810, a “o
to the Internai State of the Country (1820). clube que recebe Register de Cobbett", "Clube de Cobbett, em Sheffield.

200 201
Qualquer indivíduo pode redigir uma petição, e qualquer indi­ substituído pela crispação do desdém ou pela praga de indignação.
víduo pode levá-la a Londres. . .38 Sua voz rugia; seu rosto inchava e se afogueava; sua mão con­
traída batia como que para reduzir a pó; e todas as suas maneiras
No final de novembro de 1816, tinham sido vendidos 44.000 davam mostras de uma energia dolorosa, lutando para sair.
exemplares do Discurso — “ Que a Corrupção o apague, se puder1’.
No final de 1817, era anunciada uma venda de 200.000.39 Desde A vaidade de Hunt não se coadunava com a auto-estima
os Direitos do Homem, nenhum texto conseguira uma tal influên­ igualmente grande do tecelão de Middleton, e o juízo final de
cia popular; a ele seguiram-se panfletos semanais, em forma de Bamford sobre Hunt era severo. Mas Bamford também apresentou
cartas abertas — para “ Os Homens Bons e Sinceros de Hamp- um traço importante: Hunt “ estava constantemente (. . .) se colo­
shire” , para “Todos os Ingleses Sinceros de Coração” ou para cando em situações muito difíceis. ( ...) Estava sempre se baten­
estadistas individuais — , todos de grande circulação. Mas Cobbett do contra uma tempestade criada por outros ou por ele mesmo.
se mantinha afastado de qualquer passo que pudesse dar uma expres­ Assim, tinha a sustentar mais do que qualquer outro homem de seu
são organizada ao movimento pela reforma; e, embora os Clubes tempo e posição, e deve ser julgado de acordo com isso” .40 É
Hampden se alimentassem com seus textos, não era esta a sua verdade. Desde o finai das Guerras até a aprovação do Projeto de
intenção. As grandes manifestações pela reforma em Londres, em Lei da Reforma, à exceção de vários anos dc meados da década
15 de novembro, 2 e 10 de dezembro de 1816, em Spa Fields, de 1820. Hunt foi o principal orador público do movimento pela
foram convocadas por iniciativa de um comitê onde predominava reforma. Falou em Spa Fields em 1816. Continuou sua atividade
a influência dos “ spenceanos” (dr. Watson, Thistlewood, Prestou; durante a suspensão do habeas corpus em 1817, quando Cobbett
Hooper). Cobbett, na verdade, recusou um convite para falar na julgou mais conveniente retirar-se para os Estados Unidos. Foi o
primeira delas, e o principal orador nas três manifestações foi principal orador em Peterloo, tendo sido preso por sua participação
Henry Hunt. no encontro. Foi eleito para o Parlamento pelo eleitorado “ imposto
e taxa” de Preston em 1830, e foi o paladino solitário do movi­
Hunt era um rico agricultor-fidalgo, que por dez anos fora
mento operário pela reforma na Câmara não-reformada dos Co­
um reformador com as tendências de Cobbett e ganhara pela pri­
muns. De 183Ó a 1832, manteve-se fiel à reivindicação do sufrágio
meira vez destaque nacional ao travar uma campanha impressio­
masculino, e combateu o Projeto de Lei de 1832 como uma traição
nante como radical em 1812, numa eleição de Bristol. Bamford
dos reformadores plebeus. Sua própria coerência e combatividade
descreve-o — conforme se lembrava dele em 1817 — como um
faziam dele um centro de controvérsias e alvo de insultos.
homem bonito, “ cavalheiresco em suas maneiras e trajes, com mais
de 1,80 m de altura” : Os insultos, porém, não eram infundados, pois Hunt possuía
tanto as qualidades como os defeitos dos demagogos. Essas carac­
Seus lábios eram delicadamente finos e retraídos. (...) Seus olhos terísticas podem se encontrar numa série de líderes do período,
eram azuis ou ligeiramente cinzentos — não muito claros nem de modo que devemos considerá-las típicas do movimento da épo­
rápidos mas antes pesados; exceto, como posteriormente pude ca. Havia, em primeiro lugar, a velha tradição wilkista, que se
observar, quando estava excitado ao falar; nessas ocasiões, pare­ rompia apenas lentamente, pela qual mesmo o movimento demo­
ciam se distender e saltar; e se se punha furioso (...) tornavam-se crático buscava um líder aristocrático ou fidalgo. Somente o fidal­
raiados de sangue e quase saíam fora das órbitas. Era então que go — Burdett, Cochrane, Hunt, Feargus 0 ’Connor — conhecia as
se devia observar a expressão da sua boca — o sorriso gentil era formas e a linguagem da grande política, somente ele podia fazer
boa figura nos palanques eleitorais ou invectivar os ministros em
38. A maior parte desse Discurso vem reproduzida em G. D. H. e M. Cole, sua própria língua. O movimento pela reforma podia empregar a
The Opinions of William Cobbett (1944), pp. 207-17.
39. Ver W. H. Wickwar, The Struggle for the Freedom of the Press, 1819- 40. Bamford, op. cit., pp. 19-20.
1832 (1928). pp. 52-4.
203
202
retórica da igualdade, mas muitas das velhas reações de submissão Thistlewood, de um lado, e constitucionalistas imaculados de
ainda persistiam, mesmo entre as multidões aclamantes. Sempre outro, como Place ou Bamford.41 De fato, tanto o radicalismo
que um trabalhador parecia subir “ acima de si” , mesmo no movi­ como o cartismo ocupavam um certo espaço entre esses dois
mento pela reforma, rapidamente atraía a inveja de muitos de extremos. Poucos foram os reformadores que, antes de 1839,
sua classe. A seguir, existia aquele elemento demagógico inevitá­ engajaram-se em sérios preparativos insurrecionais; mas menos
vel num movimento popular excluído do poder ou da esperança ainda eram os que se dispunham a rejeitar totalmente o direito
de poder que estimulava a . retórica totalmente improdutiva da último do povo de recorrer à rebelião contra a tirania. O lema
denúncia. A par dos seus mártires e intrépidos organizadores vo­ cartista, “ Pacificamente se pudermos, à força se precisarmos” ,
luntários, o movimento radical tinha seu lote de bêbados, Tesou­ também exprime a noção comum partilhada pelos radicais de
reiros fugidos e efêmeros jornalistas briguentos — e sua linguagem 1816-20 e 1830-32. O Major Cartwright insistia no direito do
não era menos bombástica e flamejante. As próprias frustrações cidadão a portar armas. Henry White, o editor do moderado
de um movimento popular, onde milhares de indivíduos sem poder Independent W hig, era apenas um entre os muitos jornalistas ra­
se lançavam contra um Estciblishment armado, liberavam-se em dicais que lembravam aos leitores o precedente da Revolução
hipérboles; Hunt, como o orador nas grandes assembléias pela Gloriosa de 1688:
reforma, sabia como suscitar essas reações. Seu estilo oratório
era-lhe dado pelas frustrações dos indivíduos a que se dirigia. É a uma Revolução que eles devem todas as parcelas da Liberdade
civil e religiosa de que já lhes é permitido desfrutar, e (...) é a
Mas muitos outros fatores contribuíram para a exaltação dos uma Revolução que final mente terão de recorrer, se forem negados
demagogos. A nível nacional, o radicalismo nunca conheceu a todos os outros meios legais de obter uma Correção das injus­
autodisciplina de uma organização política. Como qualquer parti­ tiças. . .42
do ou centro de correspondência era ilegal, e como nenhum exe­
cutivo eleito determinava a política e a estratégia, a liderança O nome dos Clubes Hampden lembrava um precedente ainda
caiu inevitavelmente nas mãos de oradores e jornalistas indivi­ mais drástico, e Cobbett empenhava-se em ressaltar que a Revo­
duais. Divergências reais sobre questões políticas convertiam-se lução era uma boa doutrina Whig. O direito de resistir à opressão
em invejas pessoais; da mesma forma, o líder cuja política era pela força (escreveu ele) “é claramente reivindicado e estabelecido
aprovada por aclamação popular aí encontrava alimento para sua pelas leis e costumes da Inglaterra” :
vaidade pessoal. As condições da agitação geraram a personali­
zação das questões. A grande reunião de massa exigia uma figu­ Não digo que o direito deva ser exercido agora absolutamente.
ra de proa exuberante. Hunt, com sua cartola branca, gostava de (. ..) Digo, portanto, sobre este ponto, o que diz o JUIZ BLACK-
STONE: e c que o direito de resistir à opressão, sempre existe,
ser conhecido como o “ Paladino da Liberdade” ou (durante sua
mas os que compõem a nação numa determinada época qualquer
reclusão depois de Peterloo) “ São Hcnry de llchester” , assim devem poder julgar por si mesmos quando é que a opressão terá
como posteriormente Oastler dizia-se “ Rei dos Meninos dc Fábri­ chegado a um grau que justifique o exercício de tal direito.
ca” , e CPConnor, “ O Leão da Liberdade” .
Além disso, o radicalismo popular e o cartismo, por meio 41. Embora Bamford se apresente como um sóbrio reformador consti­
século, viveram no dilema que assediou Thclwall, Gale ]ones e tucional, cm suas Passages in the Life of a Radical, escritas em 1839,
existem muitas indicações de que o autor (que tinha se afastado tanto do
os “ tribunos” jacobinos dos anos 1790. O conflito entre os refor­
seu passado de agitador que estava disposto a servir de polícia especial
madores pela força “ moral” ou “ física” às vezes vem expresso contra os cartistas) esforçou-se em encobrir suas ligações pessoais com o
de modo excessivamente dogmático, como se pudesse traçar uma lado conspirador do movimento.
linha nítida entre conspiradores resolutos, como o dr. Watson e 42. Independent Whig, 27 de julho de 1817.

204 205
F. mais, Cobbett estava disposto a apresentar uma defesa do
censurados por Bamford), “ que fizeram do discurso um comércio”
Levante de Pentridge: “ O que Brandreth fez que os Whigs na e competiam entre si disputando a aclamação da multidão, entre-
Revolução não fizeram?” 43 gando-se “ à bazófia mais violenta e extravagante” .47 Os líderes
nacionais Cobbett e Wooler com suas penas e Hunt com sua voz
Cobbett insistiu deliberadamente nesta ambigüidade: o povo eram peritos em assestar sua retórica bem ao lado da traição;
tinha o direito de se rebelar, mas somente se a opressão ultrapas­ mas podia lhes caber (como. depois deles, Oastler e 0 ’Connor)
sasse um certo ponto indefinido. Wooler adotou a mesma perspec­ a acusação de encorajar terceiros a empreender ações ilegais ou
tiva no Black Dwarf: “o direito do povo de resistir à opressão traidoras, de cujas conseqüências eles próprios escapariam.
sempre existe, e ( ...) o pGder necessário para tal sempre reside Esta era uma das fontes de disputa entre a liderança radical.
na vontade geral do povo” .44 Carlile, no Republican, foi além, Uma outra fonte constante de rivalidades eram questões monetá­
depois de Peterloo, e defendeu o tiranicídio.45 Todos os jornais rias. Era caro ser líder radical, como bem podiam saber Cobbett
e oradores radicais populares fizeram alguma referência, oblíqua e Hunt. Além da elaboração de discursos, publicações, viagens e
ou direta, ao direito de rebelião. Insinuar, advertir ou ameaçar o correspondência, eram grandes as despesas em que se incorria com
recurso último do povo à força física fazia parte da retórica essencial defesas legais ou candidaturas eleitorais. Cobbett e, mais especifi­
de um movimento quase sem nenhum acesso à reparação legal camente, Hunt tinham gostos extravagantes — Cobbett em suas
através do voto. Quando Henry Hunt falou na primeira grande especulações agrícolas, Hunt em seu estilo geral de vida. Ambos
eram descuidados em seus assuntos financeiros. O inconsistente
reunião de Spa Fields (15 de novembro de 1816), não foi além de
movimento radical, sem executivo eleito nem tesoureiro autorizado,
muitos outros oradores: vivia continuamente sujeito a apelos de comitês ad hoc para con­
tribuições em dinheiro para esta ou aquela emergência. Cobbett
Ele sabia da superioridade da força mental sobre a força física; recuperava suas perdas com os lucros de suas publicações, ao
tampouco teria aconselhado qualquer recurso a esta até que a passo que Hunt tentava se aproveitar da propaganda vendendo um
primeira tivesse se revelado ineficaz. Antes que se aplicasse a
“café da manhã radical” (uma mistura feita à base de cereais tor­
força física, era dever deles requerer, protestar, invocar a alta
voz uma reforma oportuna. Os verdadeiros amigos da confusão rados, vendida como substituto do chá ou café, recomendada aos
e do derramamento de sangue eram os que resistiam às reivindi­ radicais como forma de boicotar produtos taxados). Não existia
cações justas do povo (...) mas se o dia fatal estivesse destinado nenhuma linha clara entre seus interesses profissionais particula­
a chegar, ele lhes garantia que, se conhecia algo sobre si mesmo, res e as finanças do movimento. Questões sobre o uso ou a admi­
não seria visto a se esconder por trás de uma porta nem a se nistração dos fundos radicais ou a indistinção entre interesses
refugiar na retaguarda.46 públicos e privados tornaram-se — como viriam também a se
tornar para 0 ’Connor e Ernest Jones — temas de uma humilhante
Essas referências ao “ dia fatal” ou “o dia do acerto de contas” censura pública.48
suscitavam os maiores vivas entre as multidões. E nem devemos Mas a maior causa das divergências radicais era a pura vai­
minimizar os vícios resultantes de um tal estilo. Ele também ali­ dade. E a vaidade era um elemento de desordem tão comum entre
mentava os demagogos de botequim, cujo radicalismo era mais os líderes radicais que aparece menos como causa de divergências
frívolo do que sólido, e mesmo os oradores itinerantes pagos (tão
47. Bamford, op. cit., p. 36.
48. Por exemplo, depois de Peterloo, Hunt entrou numa longa alteração
43. Political Register, 4 de abril, 6 e 20 de junho, 26 de setembro de 1818. pública com seu colega reformador, Joseph Johnson de Manchestcr, onde
44. Black Dwarf, 30 de dezembro de 1818. foram expostos todos os custos de trocas mútuas de hospitalidade, contas
45. Ver adiante, p. 363. Também Political Register, de Sherwin, 23 de maio de lavanderia, a quantidade de aveia dada ao cavalo de Hunt e a gorjeta
de 1818. dada (ou não dada) a uma criada de quarto. Ver J. Johnson, A Letter to
46. Examiner, 16 de novembro de 1816. Henry Hunt (Manchester. 1822).

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cio que sintoma da falta geral de uma organização coesa. Pratica­
O tema predileto de Cobbett, de fato, era William Cobbett de
mente todos os líderes reformadores apressavam-se em contestar
Botley. Páginas e páginas do seu Register vêm ocupadas com seus
os motivos dos seus colegas, ao primeiro sinal de divergência. As
casos, autojustificativas, argumentos, sentimentos, impressões for­
suspeitas aumentaram com a revelação dos papéis desempenhados
tuitas e encontros. A causa da reforma foi personalizada como o
pelos provocateurs, Castle, Oliver e Edwards. A partir de 1817, o
confronto entre William Cobbett e a Velha Corrupção. Castlereagh,
ar tornou-se pesado, com o rancor de homens que se acusavam
“Fletcher, o Seteiro de Bolton” , Wilberforce, Malthus, Brougham,
mutuamente de “espiões” . Burdett eram — ou se tornaram — seus inimigos pessoais. Com­
Na falta de uma organização política democrática, a política panheiros reformadores moviam-se constrangidamente entre o calor
radical se personalizou. O movimento após 1816 tinha muitas das volúvel de sua aprovação pessoal; “ele disputa com suas próprias
virtudes do movimento da década de 1790, mas não a da égalité. criaturas” , observou Hazlitt com certa justeza, “tão logo lança-as
Cobbett imprimira um estilo pelo qual não seria muito justo criti­ em voga — e à prisão” .
cá-lo. O surgimento de uma imprensa radical independente depois
Temos de aceitar os defeitos de Cobbett como o lado negro
das Guerras foi, em larga medida, triunfo pessoal seu. Seu relato
de seu talento, talento este que lhe permitiu exercer, semana a
acerca dessa realização (escrito em 1817 e 1819) aproxima-se da
semana, durante trinta anos, uma influência maior do que a de
verdade:
qualquer outro jornalista na história inglesa. Esses defeitos pare­
Há muitos anos (...) parti como uma espécie de político de­ cem mais desagradáveis quando vistos à parte do seu talento. Pois
pendente apenas de mim mesmo. Minhas opiniões eram pró­ Cobbett imprimiu um estilo que, inevitavelmente, seus colegas e
prias. Arremetia-me contra todos os preconceitos. Desprezava rivais tentaram imitar: Hunt, em suas Memórias, publicadas em
seguir quem quer que fosse em matéria de opinião. Antes da partes quando estava na prisão de Ilchester; Carlile, no Republican,
minha época, todo escritor de talento alistava-se sob a bandeira e uma dúzia de outros menos importantes. Os anos entre o final
de um partido, um ministro ou alguma outra coisa. Mantive-me das Guerras e o Projeto-de-Lei da Reforma constituíram a era do
livre de todas essas ligações. (...) De modo que, por muitos anos, “ político que só dependia de si mesmo”. Todo radical era um
fui objeto de ódio para homens no poder, para homens que protestador político; todo líder reconhecia-se individualista, sem
visavam ao poder...
dever respeito a nenhuma autoridade além do seu próprio juízo e
consciência pessoal. “ Um reformador” , escreveu Hazlitt em 1819,
No final das Guerras, tornara-se (conforme a descrição de
“geralmente é dirigido por um espírito de contradição” .
Hazlitt) “uma espécie de quarto estado na política do país” e
“ inquestionavelmente o escritor político mais poderoso da atuali­
É um instrumento ruim de se manejar; parte de uma máquina que
dade”. “ Os reformadores liam-no quando era um Tory, e os Tories nunca se adapta ao seu lugar; não pode ser disciplinado, pois
lêem-no agora que é um reformador.” Sucessivos decretos para (...) o primeiro princípio de sua mente é a supremacia da cons­
aumentar o imposto sobre jornais e periódicos, e para endurecer ciência e o direito independente do juízo particular. (...) É o
a lei contra libelos sediciosos, destinavam-se em grande parte ao seu entendimento que deve ser satisfeito em primeiro lugar, ou
próprio Cobbett. “ Não há nenhum laivo de egocentrismo ao dizer então não arredará nem um centímetro; por nada do mundo entre­
isso” , admitiu Cobbett; e suas conclusões são tipicamente pessoais: garia um princípio a um partido. Preferiria a escravidão à liber­
dade, se não for uma liberdade exatamente à sua maneira. ..
Esse homem, de cujos textos tentou-se sustar o andamento com
uma revolução total operada nas leis de um grande reino, não Um líder reformador, continuava Hazlitt, “disputa com todos
pode ser acusado de egocentrismo. Tal homem necessariamente os que estão no mesmo barco ( ...) e acha que prestou um grande
se converte em grande tema de discussão e registro; todos os
serviço à causa por ter empanturrado seu próprio mau humor e
seus atos, maneiras, hábitos de vida, e quase que a constituição
do seu corpo e a cor dos seus cabelos convertem-se. para o povo vontade pessoal, os quais equivocadamente toma por amor à liber­
desse reino, em objeto de algum interesse. dade e paixão pela verdade!”

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Outros (...) entram em comitês (.. .) alimentam pretensões à Temos de lembrar, quando falamos em Hunt, Burdett, Oestler
chefia de um partido, em oposição a um outro partido; insultam- ou CTConnor, que suas viagens eram parecidas com as da mais
se, degradam-se, ridicularizam-sc, traem-se, opõem-se e minam-se popular Majestade, e suas aparições com as de uma prima dorma.
mutuamente de todas as formas, e lançam a presa às mãos do
Hunt foi recebido numa aldeia de Lancashire, em 1819, com o
inimigo comum. . 49
caminho atapetado de flores. Aos lemas “ Burdett e Não à Bastilha!”
e “ Hunt e Liberdade!”, acrescentaram-se os versos:
As virtudes desse individualismo intratável podem ser vistas
na longa disputa de Carlile com as autoridades.50 Mas, tanto em
Com Henry Hunt iremos, iremos,
Hunt como em Carlile, os defeitos eram desagradáveis e foram Com Henry Hunt iremos;
profundamente prejudiciais para o movimento pela reforma. A vai­ Ergueremos o barrete da liberdade,
dade dos grandes ou pequenos líderes subia como vapor da agita­ A despeito de Nadin Joe.52
ção ondulante do povo. Place considerava todos, exceto ele mesmo
e uns poucos benthamistas, como tolos que deviam ser manipulados. Na escola dominical radical de Manchester, os monitores usa­
Bamford é um exemplo de auto-apreço complacente do autodidata; vam, em vez de crucifixos, medalhões com o retrato de Hunt.53
seus princípios eram à prova de perseguição, mas não de palavras
Nenhuma reunião ficava completa enquanto não se desatrelassem
gentis do Lorde Sidmouth ou de um elogio de um fidalgo aos seus os cavalos da carruagem do orador principal e o povo o carre­
versos. Carlile era o individualista cabal, tão confiante em seu
gasse em triunfo pelas ruas. As grandes manifestações tinham um
próprio julgamento que repudiava a própria noção de organização
caráter ritual, onde o orador movia-se entre declamações e questões
ou consulta política. Hunt (a crermos apenas numa parte das acusa­
retóricas, jogando com as esperadas reações tumultuadas.54 Os ora­
ções levantadas contra ele por colegas como Bamford e Johnson)
dores carismáticos eram os que tinham o gosto pela autoteatrali-
às vezes era desprezível em sua vaidade. Certa vez, Hunt e seus
zação. O rugido de aprovação saído das gargantas de 20.000
companheiros de banco de réus, depois de Peterloo, fizeram uma
pessoas inflaria o auto-apreço da maioria dos homens. Conforme
viagem pública, enquanto aguardavam o julgamento, pelas vilas
crescia a vaidade, os oradores se viciavam com o som e a visão
algodoeiras de Lancashire. “ Senti-me divertido”, lembrava Bamford,
da multidão aglomerada a aclamá-los ao pé do palanque. “ Seu
“e também um pouco humilhado com o que ocorria continua­
apetite”, observou Prentice a propósito de Hunt, “crescia com o
mente ao meu lado” :
que comia”. Tornou-se cioso contra rivalidades, à espreita cons­
Hunt sentou-se na cabine. (...) Moorhouse ficou na capota do tante de ocasiões para assumir poses teatrais, negligente e descui­
coche, seguro por uma corda que estava amarrada aos ferros de dado em relação aos seus colegas menos importantes, que, por sua
ambos os lados. Mantivera-se nessa posição durante todo o ca­ vez, sentiam sua vaidade ferida pela indiferença popular — por
minho desde Bolton. (.. .) Hunt continuamente tirava o chapéu, que não “ Johnson e Liberdade!” ou “ Bamford e Liberdade!”?
acenava-o humildemente, inclinava-se graciosamente, e de vez em O demagogo é um líder ruim ou ineficaz. Hunt expressava
quando dirigia algumas palavras ao povo; mas se se passassem não o princípio e nem sequer uma estratégia radical bem formu­
cinco ou dez minutos sem um ou dois hurras, ou sem o som lada, mas as emoções do movimento. Esforçando-se sempre em
ainda mais agradável de “Hunt para Sempre” (...) cie se levan­
dizer o que pudesse suscitar a aclamação mais viva, não foi o
taria do banco, se voltaria e, maldizendo membros, alma ou
olhos do pobre Moorhouse, diria: “ Por que você não grita, ho­
mem? Por que você não grita? Dê-lhes o hip-hip-hurra — não 52. J. Harland, Ballads and Songs of Lancashire, p. 262.
vê que eles estão se esfalfando?”51 53. D. Read, Peterloo (Manchester, 1957), p. 54.
54. Por exemplo, Saxton em Rochdale: “todo o país tem apenas de estar
unido ( .. . ) e exigir seus direitos como HOMENS determinados a ser livres,
49. W. Hazlitt, Prefácio a Political Essays (1819), Works, VII, pp. 13-7. ou morrer nobremente na luta. — (Grandes aplausos)”. Weekly Political
50. Ver adiante, pp. 361-67. Register, de Sherwin, 7 de agosto de 1819.
51. Loc. cit., p. 200.

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líder, mas o prisioneiro da parcela mais instável da multidão. local ou entre os documentos do Ministério do Interior. Esses indi­
Segundo Place: víduos proporcionavam a plataforma sem a qual seus líderes por-
fiosos e protestadores seriam impotentes; com freqiiência observa­
Hunt diz que seu modo de agir é arremeter contra bons pontos
vam desalentados as disputas entre as lideranças.
e não se preocupar com ninguém; que não se misturará com ne-
nenhum comitê nem partido; que agirá por si mesmo; que não A confusão dos acontecimentos do inverno e primavera de
pretende fazer nenhuma afronta a ninguém, mas que não se 1816-17 ilustra os problemas de um movimento nacional crescente
importa com quem se ofende. incapaz de encontrar um centro nacional. A reunião dos delegados
dos Clubes Hampden locais na “Coroa e Âncora” (janeiro de 1817)
Mas Place também escreveu (numa carta a Hobhouse) em foi convocada por iniciativa do Major Cartwright; era a culminação
termos mais generosos sobre Hunt, após sua triunfal recepção em de uma campanha nacional de petições, onde foi apresentado um
Londres, no auge de sua popularidade depois de Peterloo: total de petições pela Reforma estimado entre meio milhão e um
milhão e meio de assinaturas (na maioria, a favor de Parlamentos
Sim, ele a mereceu [i.é., a recepção de Londres] muito, e mais Anuais, Sufrágio Masculino Universal e Voto Secreto).
do que teve. Se o povo — refiro-me ao povo trabalhador — só
Mas entre o momento em que Cartwright enviou sua carta
tiver um homem, apoiarão, como devem, esse homem pelo menos
com seus clamores. E existem muitos casos também em que lu­ circular, convocando a reunião (setembro de 1816), e a própria
tariam com ou por ele. De quem é a culpa de que nenhum homem reunião, ocorreram os motins vinculados à segunda grande mani­
melhor circule entre o povo? Não deles; vão aderir ao melhor festação de Spa Fields, em 2 de dezembro. A origem e o significado
homem que faça causa comum com eles. Lembro como me senti desses motins continuam obscuros. Já em março dc 1816, parece
quando era trabalhador. (...) Se ninguém além de Hunt se apre­ ter ocorrido uma espécie de agitação ultrajacobina em Londres,
sentar. Hunt terá de ser o homem deles.55 voltada contra as prisões de insolventes. As autoridades intercep­
taram uma carta dirigida aos “ Nossos Companheiros Conterrâneos
Encarcerados” , declarando provir d’ “ O Comitê Tricolor” e anun­
III. Os Clubes Hampden ciando a intenção de alçar o “estandarte tricolor’'* em 2 de março.
Nesse dia, “ as portas da prisão serão abertas, ( .. .) [e] suas altas
Só entenderemos a extraordinária desordem do radicalismo Bastilhas reduzidas a Cinza” :
pós-guerra se tivermos em mente esses problemas de liderança e
personalidade. Foi a era heróica do radicalismo popular, mas seus Solicita-se que vocês divulguem nossos Planos para todas as
líderes, no cenário nacional, raramente pareciam heróicos e, por Prisões em Londres — Bench, Fleet, Marshalsea, Horsemonger
vezes, faziam ridículo. De 1815 até os anos cartistas, o movimento Lane &c. — para que possam agir todos ao mesmo tempo.56
sempre se mostrou mais vigoroso, coeso e forte na base, principal­
mente em centros provinciais como Barnsley e Halifax, Loughbo- Tal agitação não é totalmente improvável. Os pequenos mes­
rough e Rochdale. Seus verdadeiros heróis eram os vendedores tres de Londres e Birmingham, que tinham trabalhado sob contra­
locais de livros e jornais, os organizadores de sindicatos, os secre­ tos de guerra, estavam entre as maiores vítimas da depressão pós-
tários e oradores locais dos Clubes Hampden e Uniões Políticas guerra. Ocorreram muitas falências. Durante a guerra, muitos pe­
— homens que não esperavam se converter em honoráveis pensio­ quenos mestres eram subempreitados por grandes agentes, que
nistas vitalícios do movimento, como recompensa por terem sido ficavam com a parcela maior do lucro. Agora viam os intermediá­
rios confortavelmente estabelecidos, como resultado do seu labor,
presos, e que, em muitos casos, eram obscuros demais para outra
ao passo que a eles restava arcar com o ônus da taxação e de
coisa, além de legar alguns registros de sua atividade na imprensa

56- T. S. 11.203; H. O. 40.7/8.


55. Wallas, op. cit., pp. 120, 146.

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assistência aos pobres nos distritos mais afetados.57 Tais experiên­ afetando igualmente Lancashire, Yorkshire, os negócios de Bir-
cias levaram-nos a um radicalismo extremado, para o qual há muito mingham e Londres. Na metrópole, ocorreu uma depressão simul­
estavam preparados pela propaganda da SLC e das sucessivas tânea em duas indústrias básicas — o ramo da relojoaria e a
eleições de Westminster. Se as prisões para devedores eram locais indústria de seda. Somente em Spitalfields, alegou-se, havia em
onde, ocasionalmente, podiam se recrutar espiões, eram também, e novembro 45.000 pessoas sem alimento, exigindo entrar nos asilos
em maior medida, escolas de preparo e aperfeiçoamento de radicais, de pobres.60 Na mesma época. Londres estava apinhada de soldados
onde as vítimas que definhavam sob os rigores punitivos das leis e marinheiros licenciados. Mas ficou muito claro que o Comitê de
de insolvência podiam ler, discutir e aumentar seu conhecimento.58 Westminster vinha se arrastando e se recusando a tentar qualquer
Nada resultou das ameaças de março de 1816. Mas o tema de agitação entre as massas londrinas. Afora os palanques de West­
um ataque à prisão retorna no caso de Spa Fields em dezembro. minster em períodos eleitorais (e em eleições em Londres, quando
Temos de abrir nosso caminho através de, pelo menos, três versões grandes aglomerações se comprimiam na frente da Prefeitura),
contraditórias desse acontecimento: a apresentada pela Promotoria desde 1795 não fora convocada nenhuma manifestação totalmente
no julgamento posterior do dr. James Watson, a oferecida por “ ilimitada” de caráter radical em Londres. Então se formara um
Henry Hunt em suas “Memórias” em 1822 e a fornecida pela pequeno comitê ultrajacobino (ou “spenceano”), cujos membros
Defesa ou pelo próprio Watson. Nenhuma delas é confiável. O pro­ mais ativos eram Watson e filho, Preston, Thistlewood, Hooper e
cesso da Coroa baseou-se largamente sobre as evidências de um o espião Castle. Esse comitê lançou uma convocação para uma
cúmplice que se convertera em provocateur, John Castle: mostrou- manifestação em Spa Fields, a 15 de novembro de 1816, e dirigiu-
se uma testemunha totalmente desacreditada, perjurador e protetor se a uma série de radicais destacados, convidando-os a comparecer.
de uma “ madame” de bordel.59 Hunt, escrevendo da Prisão de Cobbett manteve distância, e apenas Hunt concordou em falar.
Uchester, na esteira da Conspiração da Cato Street — e depois de Hunt encontrou os organizadores só na véspera da manifestação,
ter se indisposto definitivamente com Watson — , estava interessado quando substituiu as resoluções propostas pelo comitê por outras
em oferecer uma versão que minimizasse sua participação pessoal: mais moderadas. Na própria manifestação, os preparativos mostra­
ao passo que Watson, numa polêmica com Hunt através da im­ ram-se inadequados e não havia nem um palanque decente; mas
prensa, no outono de 1819, recusou-se a revelar seu lado da histó­ compareceu uma enorme aglomeração, totalmente além das expec­
ria, alegando que o momento ainda não era adequado. tativas dos organizadores, para a qual Hunt discursou de uma
janela com vista para os campos.
A história verdadeira talvez seja a seguinte. O outono de 1816
foi um período de extrema miséria e desemprego de pós-guerra, O encontro foi “ suspenso” até 2 de dezembro. Segundo o
relato de Hunt, os organizadores ficaram eufóricos com o sucesso,
acompanhando-o de volta até sua hospedaria, entregando-se a gran­
57. Esta era uma queixa constante dos pequenos mestres e artesãos tri­
butados com a tarifa dos pobres em East End. Assim (nos anos 1790), des fanfarronadas revolucionárias durante o jantar, quando nin­
nos anos ruins, a tarifa dos pobres aumentou de 5 para 10 xelins por guém menos que Castle propôs o brinde: “ Que o último Rei seja
libra, em Spitalfields e Mile End, mas apenas de 2 para 2 xelins e 6 estrangulado com as tripas do último padre”. (Watson e Thistle­
penies em West End. Ver Um Magistrado, An Account of a Meat and wood visitaram Hunt no dia seguinte e pediram desculpas pelo
Soup Charity in the Metropolis (1797); W. Hale, Letter to S. Whitbread on comportamento de Castle!) Mais ou menos na mesma época, for­
lhe Distresses of the Poor in Spitaljields (1806); T. F. Buxton, The Distress
mava-se na metrópole um certo “ comitê de ofícios” , ao qual Preston
in Spitaljields (1816): Trades Newspaper, 15 de outubro de 1826.
58. Embora as Leis da Insolvência fossem aprovadas em 1797 e 1801. estava ativamente associado e onde um outro espião (T. Thomas)
não aliviaram os pequenos devedores, que foram obrigados a ficar presos conseguiu se eleger Presidente. Segundo Thomas, Preston estava
enquanto as despesas de sua detenção se somavam às dívidas. Ver J. Neild. tendo êxito em suas reuniões para organizar os tecelãos de Spital-
Account of the Society for the Relief of Small Debtors (1802), pp. 301,
335-7. Os documentos do Ministério do Interior de 1816 c 1817 contêm
muitas petições plangentes de devedores. 60. Ver em esp. People, 19 de abril de 1817; T. F. Buxton, The Distress
59. Ver atrás, pp. 52, 56. in Spitalfields (1816).

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fields; em conversas privadas, falava em acabar com todos os volta, tomara suas precauções, e Hunt ficou surpreendido ao ver
proprietários de terras c encarregados dos fundos públicos, e dis­ “grandes quantidades de guardas e oficiais da polícia” estaciona­
cutia um levante onde se atacaria o Banco, a Torre e as prisões. dos em frente da prisão de Cold Bath Fields. Mas os motins em
Castle secundava animadamente essas propostas, e realmente pôs momento algum envolveram mais do que uma parcela da enorme
algumas espingardas numa carroça, levada a Spa Fields em 2 de multidão. A maior parte ficou para ouvir o discurso de Hunt,63 e
dezembro. A multidão presente nessa manifestação foi ainda mais a seguir dispersaram-se pacificamente, depois de concordar mais
numerosa do que na anterior, incluindo muitos soldados e mari­ uma vez em “suspender” o encontro até 9 de dezembro.
nheiros. Correra o boato de que “ alguma coisa” iria “acontecer”
Esse terceiro encontro em Spa Fields de fato realizou-se, com
no encontro, e esse rumor tinha chegado até o norte da Inglaterra.61
um comparecimento ainda maior do que antes.64 Não é fácil apre­
Do ponto de vista de Preston, o Exército estava à beira de se
sentar uma explicação que concorde com todos esses acontecimen­
amotinar, não só devido às injustiças sofridas pelos soldados, mas
tos misturados. Os motins não eram uma simples explosão bêbada,
também por uma simpatia generalizada pelo povo.62 Uma das ban­ nem uma provocação cuidadosamente planejada, tampouco uma
deiras estendidas em Spa Fields declarava: “ Os bravos soldados tentativa definida de imitar a tomada da Bastilha, mas tinham um
são nossos amigos, tratem-nos bem” . pouco dos três ao mesmo tempo. O dr. Watson talvez fosse res­
. .a fome da Barriga cria uma febre na Cabeça. . . dizia ponsável apenas pelo efeito da manifestação propriamente dita.
um trecho de um volante, redigido para circular entre as tropas, Mas é igualmente possível que Thistlewood e o jovem Watson
supostamente encontrado na casa do dr. Watson, depois do caso (instigados por Castle) estivessem com uma idéia superficial de
de Spa Fields. Mas a febre cerebral mais notável, em 2 de dezem­ suscitar um motim “espontâneo” , que abriria a via para um coup
bro, parece ter sido não a dos soldados, mas a do filho do dr. cVétat popular. Watson filho escondeu-se, e alguns meses depois
Watson. Ambos os Watson (disse Preston) tinham bebido antes do contrabandeou-se para um navio que partia do Tâmisa com destino
encontro, e Watson filho bebera excessivamente. Chegando cedo aos Estados Unidos, seguindo disfarçado como quacre e o rosto
ao palanque, falou para uma parte da multidão, e entre ela muitos desfigurado por soda cáustica.6* Hunt, certamente, não teve ne­
(como Cashman) deviam estar tão bêbados como ele. Então, pu­ nhuma participação em qualquer conspiração insurrecional; mas,
lando para fora da carreta, mergulhou na multidão e conduziu um
da mesma forma, dispôs-se a se apresentar como testemunha de
contingente para os lados da Torre. Outros punhados dispersaram-
defesa durante o julgamento do dr. Watson, depondo sobre sua
se em diversas direções. Várias oficinas de armas foram saqueadas.
influência moderadora,66 e continuou a trabalhar intimamente com
Alguns dos tumultuadores alcançaram a Torre, e um homem (talvez
Preston ou Thistlewood) escalou o muro e exortou as tropas a se o doutor por mais dois anos.
unirem ao povo. Nas Minories, os tumultos duraram várias horas,
numa escala que lembrava os Motins de Gordon, completados com 63. Dr. Watson também declarou que tinha ficado para trás, tentando paci­
um homem (cuja identidade era ignorada tanto pelas autoridades ficar a multidão. Ver Irulependent Whig, 3 de agosto de 1817.
64. Não deram certo outras tentativas de realizar manifestações em Spa
como pelos conspiradores) que, montado a cavalo, comandava a Fields, em fevereiro e março de 1817 (depois das Duas Leis e a suspensão
turba. O Governo, precavendo-se contra alguma tentativa de re­ do habeas corpus). O relato acima provém principalmente de W. M. Gurney,
Trial of James Watson (1817), em esp. I, pp. 45-51, 56-61, 73, 531. II. p. 190;
Memoirs of //. Hunt (1822), III, p. 329. 344, 369-72, 447; interrogatório de
61. Em Manchester, a 3 de dezembro, grupos ansiosos de delegados dos Preston pelo Lorde Prefeito, 4 e 5 de dezembro de 1816, em T. S. 11.203;
Clubes Hampdcn das redondezas esperaram a chegada do correio de Londres. T. Thomas a Sir U. Conant, 9 e 27 de novembro de 1816, em H. O. 40.4:
Houve expectativas semelhantes em Sheffield. documentos em H. O. 40.3 e 7; D.N.B.
62. Preston declarou: "a situação deles é melhor do que a dos artífices 65. Independent Whig, 27 de julho, 12 de outubro de 1817.
— mas o estado miserável dos seus amigos e parentes pesa em suas 66. Hunt também ocupou a Presidência num jantar realizado em comemo­
mentes". (T. S. 11.203.) As tropas, de fato, tinham demonstrado uma acentua­ ração à absolvição do dr. Watson. acusado de alta traição, ibid.. 3 dc
da falta de entusiasmo, quando convocadas para reprimir os motins contra agosto de 1817.
a Lei do Trigo, em 1815: Hammonds, The Town Labourer, p. 86.
217
216
Place chamou os amotinadores de Spa Fields de “ um grupo
desprezível de idiotas e infames”. Mas não há razão para se supor mais uma vez, em controvérsias. Tentou-se (com o apoio dc
que a maioria dos londrinos os visse a essa mesma luz. Se pa­ Cobbett) seguir as vontades do ausente Burdett e limitar as exigên­
deciam de liderança amadora e cheia de pose, devia-se em parte cias dos reformadores ao sufrágio por domicílio. Hunt declarou-se
a favor do sufrág;o masculino e foi apoiado por delegados pro­
à incapacidade do Comitê de Westminster em se manter fiel aos
vinciais. Cobbett, então, por razões tipicamente pragmáticas, de­
seus princípios jacobinos anteriores. Mas o caso de Spa Fields teve
clarou-se convertido. Apoiara o sufrágio domiciliar (explicou ele)
pelo menos três sérias conseqíiências. Primeiro, deu às autoridades
só porque não conseguia ver como “homens que não tinham uma
o pretexto que queriam para agir contra os reformadores. Segundo,
residência estabelecida e visível em cuja segurança estivessem inte­
já no início da agitação pós-guerra, afastou os reformadores mode­ ressados ( ...) poderíam votar com clareza” :
rados de classe média do movimento radical popular.67 Terceiro,
lançou os líderes reformadores em confusão, às vésperas da reunião Não via como se poderia impedir que grandes multidões de
dos delegados dos Clubes Hampden. Burdett, que assinara a circular indivíduos se deslocassem de uma paróquia para outra, com isso
original de Cartwright, convocando a reunião de delegados, em votando duas ou três vezes no mesmo dia. em cinco ou seis
nome do Clube Hampden de Londres, retirou-se para suas pro­ diferentes membros.
priedades em Leicester e não compareceu ao “ Coroa e Âncora” .
Cobbett, segundo seu relato, desconversou até a véspera do en­ Finalmente, “um homem muito sensato e modesto, cujo nome
contro; julgava que “ uma tal Reunião, durante tal crise, seria um lamento ter esquecido, e que veio de Middleton no Lancashire”,
ótimo alvo para as flechas da Corrupção”, e que os delegados se satisfez às suas objeções, ressaltando que, sob as leis do Exército,
exporiam, se não à prisão, pelo menos à atenção dos espiões do existiam relações militares de todos os habitantes masculinos de
Governo.68 Ele também tinha uma visão mais aguda do que a cada paróquia; o mesmo meio poderia ser empregado para montar
maioria dos reformadores quanto ao sistema de provocação do listas eleitorais. “ Isso me bastou. A coisa nunca tinha me passado
Governo e sua estratégia de divisão do movimento, espicaçando pela cabeça. . .” 71
os radicais extremados e levando-os a ações insurrecionais aborta­ O “ homem sensato e modesto de Middleton” era Samuel
das. “ Eles suspiram por um COMPLÔ”, escreveu em dezembro de Bamford, o tecelão e — feitas todas as críticas — o maior cronista
1816. “ Oh, e como suspiram! Lidam e mourejam e se roem e ficam do radicalismo dos inícios do século 19. Na verdade, é provável
aflitíssimos; suam de ansiedade por todos os poros; definham que a impressão favorável criada em Cobbett por um homem como
totalmente e morrem por um complô!” 69 Bamford tenha contribuído, mais do que a questão das listas mili­
No ultimo minuto, Cobbett anuiu em comparecer (como “ depu­ tares, para convertê-lo à causa do sufrágio masculino. Em termos
tado” de Westminster) junto com Hunt (o representante de Bristol práticos, a distinção entre o sufrágio domiciliar e o sufrágio mas­
e Bath). Major Cartwright ocupou a Presidência, com seu ar im­ culino foi, por muitos anos, a linha de demarcação entre os movi­
perturbável, “ com seu sobretudo comprido marrom e peruca cas­ mentos reformadores operários e de classe média; a adesão de
tanha lisa, andando pela sala e sentando-se placidamente à cabe­ Cobbett ao lado operário teve grande importância. Mas sua adesão
ceira”.70 Mas os delegados dos enérgicos clubes de Lancashire e de forma alguma solucionava os problemas de organização e lide­
Leicestershire ficaram desalentados ao ver a reunião mergulhar, rança enfrentados pelos Clubes Hampden. A Cobbett também não
agradavam as políticas de compromisso de Burdett e do “ Rebo-
talho” de Westminster, e tampouco o subterrâneo conspirador dos
67. Ver Halévy, op. cit., pp. 18-22.
68. Political Register, 11 de abril de 1818. Ver também ibid., 18 de abril
clubes de taverna de Londres. A outra forma de agitação, a que
de 1818: “Eu sempre disse [a Burdett] que o efeito seria expor uma parcela Cobbett deu seu apoio formal, era a proposta pelo velho Major
de indefesos às presas da Corrupção". Cartwright. Mas as idéias de Cartwright, sob muitos aspectos, ainda
69. Political Register, 14 de dezembro de 1816. Ver também Cole, Life of
Cobbett, p. 216.
70. Bamford, op. cit., p. 20. 71. Weekly Political Pamphlet, dc Cobbett, 22 de fevereiro de 1817.

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pertenciam aos dias de Wyvill e Associações de Condado dos re­ tendo conseguido uma promessa do Lorde Cochrane de apresentar
formadores da pequena fidalguia. Se os fidalgos não conseguiam as petições. Ao voltar da abertura do Parlamento em 28 de ja­
avançar, o Major estava certo em se associar aos artesãos ou pe­ neiro, o Príncipe Regente foi cercado por uma turba e a janela de
quenos mestres. Mas ainda depositava sua fé no velho estilo de sua carruagem foi quebrada. O Governo acionou imediatamente a
atividade: petições e reuniões de condado. Os Comitês Confiden­ maquinaria de “ alarme” que herdara de Pitt e dos acontecimentos
ciais podiam ir e vir, podiam-se seguir suspensões e suspensões do de 1795. e indicou Comissões Confidenciais. Enquanto estas inves­
habeas corpus: o Major Cartwright mantinha-se em seu posto, tigavam minuciosamente os “ Sacolas Verdes”, com suas supostas
desafiando as autoridades a prendê-lo, lançando discursos, pro­ provas de traição, uma grande manifestação de reformadores car­
curando antigos precedentes constitucionais (pois ainda vivia na regava em triunfo Lorde Cochrane ate a Câmara dos Comuns, com
era do exemplo anglo-saxão) e expedientes meio obscuros do lado uma petição (de Bristol) nos braços “ com o tamanho de um barril
da lei. Canning prestou-lhe uma hostil homenagem quando descre­ razoável”. A Comissão da Câmara dos Comuns apresentou, em
veu-o como “o velho coração em Londres que abastece as veias da meados de fevereiro, ao descrever as atividades dos spenceanos.
sedição no campo” .72 Mas a homenagem de Bamford, do ponto de os amotinadores de Spa Fields e os Clubes Hampden nos termos
vista de um radical do campo, é mais exata: durante a suspensão mais sensacionais. Encontrou provas que demonstravam que:
do habeas corpus em 1817 (escreveu ele), “ o velho e digno Major
manteve-se em seu posto, bravo como um leão, sereno como uma formara-se uma conspiração traidora na metrópole com o propó­
criança inocente; e também, na correría e tumulto daquela época, sito de derrubar, através de uma insurreição geral, o Governo,
pouco notado” .73 leis e Constituição estabelecida deste reino, e proceder a um
saque geral e divisão da propriedade (...) e que tais desígnios
Não se poderia pedir muito mais. Mas, em 1817, Cobbett (...) estenderam-se largamente em alguns dos distritos mais popu­
assumiu as idéias ultrapassadas de organização de Cartwright, losos e manufatureiros.74
pouco acrescentando além de uma confiança ilimitada no poder
dos seus próprios textos. Até o final da vida, nutriu um receio
Nos últimos dias de fevereiro e março, foi aprovada uma série
constante pelas sociedades jacobinas; sentia-se infeliz em qualquer
de medidas contra os reformadores, recolocando em vigência, com
movimento que não se subordinasse à sua influência. Exagerou o
todo o seu rigor, a legislação repressiva dos anos 1790. O habeas
poder da palavra escrita, em sua ação sobre “o público” , e mini­
corpus foi suspenso até l.° de julho de 1817.75 A Lei de Reuniões
mizou a importância das organizações que devem mediar a opinião
Sediciosas (com vigência até 24 de julho de 1818) destinava-se a
pública, para que esta se torne eficaz. Além disso, no início de
garantir que todas as “ Sociedades e Clubes [reformadores] ( ...)
1817, tinha razões públicas e privadas para tomar extremo cuidado,
devem ser totalmente eliminados e proibidos como associações e
lá sofrerá perseguições suficientes durante sua reclusão na época confederações ilegais”. Não poderia se realizar nenhuma reunião
da guerra. Encontrava-se em uma de suas fases periódicas de agu­
dos problemas financeiros, e estava pessoal mente decidido a evitar
as atenções das autoridades. 74. Relatório da Comissão da Câmara dos Lordes. Hansard, 1817, XXXV,
p. 411. Sidmouth só podia ver nos Clubes Hampden “Associações que. sob
Todos esses fatores, pessoais e ideológicos, ajudam-nos a en­ a Máscara da Reforma Parlamentar, visam à Confusão Pública e à Revolu­
tender por que — mal decorrida uma semana desde a Convenção ção": Sidmouth a Fitzwilliam, 10 de dezembro de 1816. Fitzwilliam Papers,
do Clube Hampden em Londres, nos finais de janeiro de 1817 — F. 45(g).
o movimento radical fragmentou-se confusamente. De qualquer 75. A Lei de Suspensão do Habeas Corpus. aprovada em 4 de março de
forma, a Convenção não tomara nenhuma decisão organizativa 1817, foi redecretada em julho, e só expirou em janeiro de 1818. Place
calculava que, no outuno de 1817. havia 96 pessoas presas sob acusação
séria. Depois de um final de semana de debates, ela se dissolveu. de traição na Inglaterra, e 37 na Escócia — a maioria posteriormente
liberada sem julgamento. Relatórios sobre a Inglaterra, em H.O. 42.172.
72. Ver R. J. White, Waterloo to Peterloo (1957), p. 134. no entanto, mostram apenas 43 detentos. Para um resumo dessa fase da
repressão, ver H. fephson, I, pp. 399-434.
73. Bamford, op. cit., p. 44.

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com mais de cinqüenta pessoas sem aviso prévio aos magistrados, parcial da voz pública, que o sr. diz fundamental. (...) O senhor
aos quais foi dado o poder de dispersar qualquer reunião que está jogando com a causa da reforma de modo muito nocivo,
apresentasse (segundo o juízo pessoal deles) tendência sediciosa. oferecendo aos adversários dela a sua aprovação dos piores argu­
Simultaneamente, Sidmouth enviou uma circular do Ministério do mentos contra ela. (...) O homem que divide o público, de fato
Interior, chamando a atenção dos magistrados para o seu poder de destrói a mente pública.77
prender pessoas suspeitas de divulgar libelos sediciosos.
Nesse momento, Cobbett desertou. Sua deserção foi dupla. No final de março, veio a outra deserção de Cobbett. Decla­
Em primeiro lugar, escolheu a hora em que as autoridades agiam rando que a legislação repressiva do Governo dirigia-se especifica­
contra os Clubes Hampden para lançar seu repúdio geral a todas mente contra ele, seguiu em exílio voluntário para os Estados
as sociedades reformadoras: Unidos.78 Uma série de outros jornais tentaram preencher o fosso
— principalmente o Black Dwarf, o Reform isfs Register de Hone
Aconselho meus compatriotas a não manterem nenhuma relação e o Political Register de Sherwin — e, resistindo vitoriosamente à
com qualquer Clube Político, qualquer Conluio secreto, qualquer perseguição, obscureceram a deserção de Cobbett. Mas sua fuga
Correspondência; mas confiar em ações individuais e reuniões trouxe um desalento e uma desmoralização imediatos; na confusão
abertas. (...) Existem homens muito dignos e ciosos que perten­ que se seguiu, não é possível vislumbrar nenhum centro nacional
cem a tais Clubes; mas será muito difícil fazer-me crer que. para o movimento reformador.
desta forma, estão se empenhando na via melhor e mais eficaz.
Essa coincidência entre perseguição e confusão é o pano de
A essa advertência, de meados de fevereiro, seguiu-se um re­ fundo da emaranhada história da Marcha dos Manteiros, da Cons­
púdio ainda mais forte, duas semanas depois: “Sempre empenhei- piração de Ardwick e do Levante de Pentridge. O movimento
me o mais seriamente possível em persuadir o público de que local pela reforma era forte em muitas partes das Midlands e do
TODOS OS TIPOS de Clubes tinham em geral uma tendência norte. Tinham se realizado impressionantes reuniões públicas no
nociva, e em nenhuma hipótese possível poderíam produzir o bem”: outono e inverno anteriores.79 À crise política do início da prima­
vera coincidiu com uma extrema miséria econômica, o desemprego
Eu disse (...) que se o objetivo não viesse a ser conseguido pela nos distritos têxteis e de ferro e preços em alta — que se prolon­
impressão e expressão geral, livre, aberta, imparcial da mente garam até o final do verão de 1817. No inverno de 1816-17, o
pública, nunca poderia, nem nunca deveria ser conseguido de hábito de reuniões políticas, leituras e discussões, difundira-se pela
forma alguma.76 maioria dos distritos manufatureiros. De centros como Leicester,
Manchester, Nottingham, Derby, Sheffield e Birmingham, irradiava
Essa renúncia absoluta à organização popular, publicada na uma rede de contatos com grupos reformadores nas aldeias indus-
mesma semana da suspensão do habeas corpus>levou Wooler, no
Black DwarJ, a suplicar: “ Pelo amor dos céus, senhor, não nos 77. Black Dwarf, 5 de março de 1817.
traia assim às mãos dos nossos inimigos, por recomendações que 78. Cobbett só retornou no final de 1819. Mas, após um intervalo, ele
só podem fazer mal” : retomou a edição do Register, comentando a distância os acontecimentos
ingleses, muitas vezes cinco ou seis meses depois de ocorridos. Assim, seus
comentários sobre as execuções em Derby (7 de novembro de 1817) apare­
Nossos inimigos estão associados em toda a nossa volta. Será que ceram no Register de 11 de abril de 1818. Seus comentários, contudo, eram
os clubes militares, os clubes navais e os clubes de traficantes geralmente bem informados, devido à sua correspondência e também aos
de influência não ajudam a causa da corrupção? (...) Sempre relatos de reformadores refugiados nos Estados Unidos.
achei que qualquer tipo de clube fosse o meio mais importante 79. Por exemplo, reuniões pela reforma ocorreram em Nottingham. Bolton
de reunir e concentrar aquela opinião geral, livre, aberta e im­ e Sheffield (8.000 presentes) em setembro e outubro de 1816, e em Birmin­
gham em janeiro de 1817: Nottingham Review, 27 de setembro, 4 e 11 de
outubro de 1816; Langford, A Century of Birmingham Life, II, pp. 414-6.
76. Weekley Political Pamphlet, 15 de fevereiro, I.® de março dc 1817. 80. H. O. 40.3; A. Patterson, Radical Leicester, pp. 107 ss.; H. W. C. Davis,

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(riais. Nos centros maiores, que ofereciam o foco de organização Libertem-se milhões! Grandes aplausos. Cantou uma canção revo­
principal, entre os reformadores geralmente incluía-se uma série de lucionária.
artesãos e pequenos comerciantes, alguns diaristas e vários “ hun-
tistas” extremados de classe média. Estes conseguiam apoio não No final de 1816, era anunciada a existência de mais de trinta
só em seu próprio centro urbano, mas também entre os artesãos Clubes Hampden nas aldeias e vilas de Leicestershire. Há indica­
ou trabalhadores manuais das áreas adjacentes. Uma vez radicada ções de que a difusão desses clubes coincidiu com a organização
a causa da reforma na aldeia dedicada à malharia em bastidor, à sindical dos tecelãos em malharia de bastidor, e mais de um juiz
olaria, à produção de pregos ou à tecelagem manual, logo forma­ alarmado viu os clubes como uma “ tentativa de enxertar a Reforma
vam-se clubes municipais ou aldeães locais, de natureza quase Parlamentar no Luddismo”. As autoridades observavam com a
totalmente proletária e com o mesmo tipo de domínio sobre a maior preocupação a penetração do radicalismo político nas aldeias,
simpatia da comunidade local que possuíam os ativistas luddistas. alegando que os malharistas “ estavam unicamente voltados para a
crença de que o objetivo era a Revolução, e só se interessavam em
Temos maiores informações sobre o movimento em Leicester-
estar prontos para lutar quando necessário” . A cessação imediata
shire e Lancashire. O clube de Leicester foi fundado em outubro
de atividades abertas por parte dos Clubes Hampden de Leicester,
de 1816. Seu Presidente era um tintureiro e comerciante de ma­
deira, o Vice-Presidente era um remendão, seus membros mais com a suspensão do habeas corpus, foi interpretada pelas mesmas
ativos incluíam um impressor, um forjador de estruturas metálicas autoridades (com boas razões) como prova de que os reformadores
e líderes dos tecelãos locais em malharia de bastidor. Dentro de tinham se recolhido para formas secretas de organização, para as
um mês, o número de membros (com uma contribuição semanal quais tinham se preparado com as experiências do luddismo.80
de 1 pêni) tinha ultrapassado a casa dos 500. Um espião informou Em Lancashire, o quadro é um tanto semelhante. Manchester
sobre os acontecimentos ocorridos numa reunião geral, no final de era a principal metrópole da reforma, embora outros centros —
novembro de 1816. Compareceram mais de 200 pessoas; passou- Oldham, Stockport, Bolton, Rochdale — tivessem dimensões sufi­
se mais de uma hora em bebidas, conversas e coleta de subscrições. cientes para fornecer modelos alternativos e sustentar o movimento
A seguir, foi indicado o Presidente daquela noite — William Scott, quando os reformadores de Manchester enterravam-se em disputas.
o forjador de estruturas, um painista veterano dos anos 1790. As memórias de Bamford começam com uma lista de chamada dos
Tomou a palavra da reunião, apresentando um exemplar do Calen­ “principais reformadores de Lancashire” no final de 1816:
dário da Corte e lendo uma lista de pensionistas, sob o acompa­
nhamento de vaias e comentários entre os ouvintes: Havia John Knight, de Manchester, da manufatura algodoeira;
William Ogden, de Manchester, impressor em copiadoras de
Alguém disse: topamos expulsar alguns desses sujeitos. (.. .) cartas (...) William Benbow, de Manchester, sapateiro; Brad-
Outro respondeu: “Que morram em suas jarreteiras”. Outro disse: bury, de Manchester, canteiro; Charles Walker, de Ashton, te­
“Mandem-nos para a Torre”. Outro disse: “ Esperem só dois celão; foscph Watson, de Mossley, tamanqueiro; Joseph Ramsden,
anos” (...) Exércitos permanentes clamorosamente condenados. de Mossley, tecelão de lã; William Nicholson, de Lees, impressor
(...) Um homem chamado Riley fez uma moção para que fos­ de copiadoras de cartas; John Haigh, de Oldham, tecelão de seda;
sem comprados 100 exemplares por semana do Register de loseph Taylor, de Oldham, chapeleiro; John Kay, de Royton, da
Cobbett. (...) Foi apoiado por uma salva de palmas. manufatura algodoeira; William Fitton, de Royton, estudante de
cirurgia; Robert Pilkington, de Bury, tecelão de algodão; Amos
A um voto de agradecimentos à Presidência, Scott respondeu com Ogden, de Middleton, tecelão de seda; Caleb Johnson, de Mid-
uma canção: dleton, tecelão de algodão; e Samuel Bamford, de Middleton,

Ele disse que era a mesma que estava cantando quando os valen­ 80. H.O. 40.3; A. T. Patterson, Radical Leicester, pp. 107 ss.; H. W. C.
tões irromperam nas “Três Coroas” cerca de dezoito anos antes; rhe Age of Grey and Peel, pp. 180-3.

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tecelão de seda. Logo depois, juntaram -se a nós John Johnston,
de M anchester. alfaiate, e Joseph M itchell. de Liverpool. fan- da Política. No início de novembro de 1816, visitou Cartwright
queiro.81 em Londres, e encontrou Cobbett, que lhe deu o posto de agente
do Political Register em Lancashire (posto que parece ter parti­
A estes, podemos acrescentar outros nomes de destaque entre lhado com Benbow). A partir daí, sua história se funde com a dos
1816 e 1819: John Browe, de Oldham, oficial mecânico e pre­ Clubes Hampden.83
gador laico na Capela Unitarista Metodista; o amigo engraçado Embora existisse um punhado de pequenos manufatureiros e
de Bamford, Joseph Healey, barbeiro e “curandeiro” ; John Baggu- profissionais liberais ativos no movimento de Lancashire, devem
ley, criado, e Samuel Drummond, de Stockport, os principais orga­ ser claramente diferenciados dos pequenos grupos de reformadores
nizadores da Marcha dos Manteiros; Joseph Johnson, de Man­ de classe média em Manchester. Estes tinham sua imprensa pró­
chester, pequeno fabricante de escovas; e o grupo em torno do pria, sua ideologia benthamista específica e empenhavam-se em
periódico radical Manchester Observer, fundado no início de 1819, se distanciar dos reformadores huntistas, mesmo nas ocasiões em
a saber, particularmente Wardle, James Wroe e J. T. Saxton. Além que participavam das mesmas agitações ou (como depois de Peter-
disso, os homens sob suspeita de cumplicidade na conspiração de loo) prestavam-lhes grande auxílio.84 É curioso notar que não
Ardwick incluíam um amolador de facas, um tanoeiro e um figura nenhum fiandeiro de algodão ou trabalhador fabril entre a
alvejador. liderança radical local. Poucas dúvidas há sobre as simpatias radicais
Da lavra não plenamente confiável do impressor Joseph Mit­ dos fiandeiros. As autoridades de Manchester observaram, em
chell, provém um relato sobre os primeiros meses do movimento fevereiro de 1817, que as reuniões reformadoras “aumentaram
de Lancashire. No início de 1816, inscrevera-se como membro muito em número de participantes desde o momento em que as
da Sociedade Concêntrica de Liverpool, uma associação em larga fábricas de Fiação nas vizinhanças suspenderam o trabalho —
medida de classe média, que o desagradou por sua recusa em se uma prova de que os descontentes não se resumem aos que estão
dedicar à propaganda pública: em desgraça, sendo as condições dos fiandeiros relativamente boas.
Esta categoria ultimamente tem contribuído, com seus fundos, para
Podem beber, cantar, fum ar, levantar brindes, fazer trocadilhos, o auxílio aos reformadores” .85 Os fiandeiros, que vinham sofrendo
discursar depois de um bom ja n tar, e após u m a garrafa, e fazer reduções naqueles anos, aproximavam-se do primeiro auge de sua
grandes elogios a hom ens com o Brougham e sim ilares ( . . . ) mas força sindical. O ano de 1818 presenciaria a grande greve dos
não fariam um único gesto em favor da causa do povo.82 fiandeiros e as primeiras tentativas impressionantes de organizar
uma “ União Geral dos Ofícios” . Durante a greve, as cartas dos
Mitchell foi até o sul de Lancashire, em busca de trabalho, magistrados ao Ministério do Interior traziam muitas queixas sobre
encontrando muitos reformadores “ professos” mas inativos e deci­ a influência de agitadores radicais, como Bagguley e Drummond.
dindo “ misturar-se entre o povo, para difundir informações morais tanto sobre os fiandeiros como os tecelãos.86
e políticas” . Tornou-se o primeiro missionário político autonomea- Os fiandeiros de Lancashire, portanto, encontravam-se no
do, visitando vilas e mais vilas e sustentando-se com a venda dos núcleo do sindicalismo do norte e, na verdade, eram pioneiros em
panfletos de Cartwright e seu próprio Discurso ao Povo: ou ABC
83. Blanketteer, 27 de novembro dc 1819; Address to the People (1816),
em H. O. 40.9.
81. Bamford, op. cit. (3.* ed. Heywood, s/d), p. 9. A anotação de um 84. Sobre os reformadores de classe média, ver A. Prentice, op. cit., pp. 73-4;
magistrado em 1816 (H. W. C. Davis, Lancashire Rejormers, p. 24) descreve D. Read, Peterloo. cap. 5.
Knight como "um homem sem nenhuma propriedade nem caráter", Kay 83. H. W. C. Davis, Lancasihre Reformers. p. 30.
e Fitton como tecelãos. Mitchell era um oficial gráfico, cuja mulher 86. Ver Hammonds, The Skilled Labourer, cap. 5; Aspinall. Early English
vendia tecidos. Trade Unions, cap. 7; Cole, Attempts at General Union, cap. 2. Sobre a
82. Sobre a Sociedade Concêntrica, ver B. Whittingham-Jones, "Liverpool s carta impressionante de um fiandeiro de algodão no Black Dwarf, em 1818.
Political Clubs", Trans. Lanes. & Cheshire Hist. Soc., 1959, p. 129. ver A Formação da Classe Operária Inglesa, vol. II. pp. 23-27.

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novas formas de organização no cenário nacional. Por que não
eram imediatos, as conseqüências eram palpáveis. Os fiandeiros
produziram nenhum líder reformador notável? As razões podem
de algodão eram majoritariamente radicais; mas as autoridades
ser em parte circunstanciais, em parte políticas e ideológicas. O
não temiam nenhum levante nem marcha de fiandeiros sobre
sindicato dos fiandeiros era (sob a Lei das Associações) uma enti­ Londres.
dade semilegal. Com os anos, os trabalhadores tinham se tornado
peritos em manter num segundo plano os seus efetivos líderes. A isso, podemos acrescentar que Manchester já tinha algo
Eram muito mais vulneráveis a represálias dos seus patrões do que das fraquezas, assim como das forças, de uma metrópole. Suas
os tecelãos ou artesãos; e os donos de fábricas em Lancashire grandes dimensões, a diversidade de profissões, as favelas que se
tinham a tradição de fazer listas negras de agitadores políticos.87 espraiavam e o constante tráfego de imigrantes davam à cidade
Neste sentido, o trabalhador fabril era menos “ independente” do um menor grau de coesão do que o existente nos municípios do
que o tecelão, muito embora este pudesse viver à beira da fome. planalto. A enorme população irlandesa, embora simpatizasse com
Além disso, devemos nos lembrar das muitas horas de trabalho a agitação de 1816-20, não chegou a se integrar no movimento.
nos cotonifícios. O modo dc vida descrito por Bamford, onde, nos Além disso, enquanto algumas cidades algodoeiras (principalmente
períodos de auge das agitações, os tecelãos e artesãos semi-empre- Bolton) contavam com magistrados ardentemente legalistas, muitas
gados podiam conseguir tempo para palmilhar muitos quilômetros vilas menores tinham um caráter quase totalmente proletário e
até as reuniões dc delegados, ou para falar em encontros de refor­ dispunham de pequeno policiamento.88 Em Manchester, o Sub-
madores, estava vedado aos fiandeiros de algodão em idade adulta. Comissário, Joseph Nadin, ganhara experiência em caçar radi­
cais durante os anos luddistas. Os líderes radicais conhecidos
Mas não é difícil sugerir outras razões para a ausência dos eram marcados e observados, e os espiões se infiltravam continua­
fiandeiros em posição de liderança entre os reformadores. O radi­ mente na Sociedade Constitucional ou na União Política de Man­
calismo de Cobbett e Hunt, com sua ênfase sobre os valores da chester. Lá, em 1817 e 1819, os homens de Nadin e os líderes
independência econômica, sua hostilidade emocional frente ao sis­ dos reformadores roçavam-se nas ruas, e às vezes paravam para
tema fabril e sua crítica ao presente, à luz de um passado ideal trocar zombarias ou ameaças. William Ogden, detido em março
com laços mútuos e reciprocidade econômica, era pouco repre­ de 1817, depôs que “o notório J. Nadin ( ...) por seis semanas
sentativo da situação de transe enfrentada pelos trabalhadores antes tinha me dito, de tempos em tempos, que se eu não parasse
fabris. Até a década de 1820, quando começou a se dar uma con­ de comparecer às reuniões públicas, ele me prendería” .89 “ É um
fluência entre o owenismo e o sindicalismo, é difícil apontar um prazo médio para começar”, observou Nadin certa vez, para levan­
radicalismo afinado com a experiência dos que estavam em coto­ tar o moral de um dos seus prisioneiros, “ mas será maior para a
nifícios, embora existam algumas indicações de que certos grupos frente se voltar a Reighton: então você será enforcado” .90 Mas a
de fiandeiros, aqui e ali, preferiam o apelo mais ordenado e utili­ “gente do campo” só raramente sofria suas indelicadas atenções.
tário de Wooler e Carlilc ao tom moralizador do Register de
Os “ patriotas rurais”, então, foram a espinha dorsal dos
Cobbett. O radicalismo huntista pouco tinha a dizer sobre a refor­
movimentos reformadores daqueles anos. Eles próprios sentiam
ma fabril ou questões sociais de modo geral. O principal canal isso. Depois de uma reunião ao ar livre em Manchester, no final
para a energia dos trabalhadores fabris, entre 1816 e 1820, encon­
trava-se em sua própria organização sindical. Aqui, os resultados
88. A. T. Patterson levanta o mesmo ponto a respeito de Leicestershire.
onde, nessa época, Loughborough só contava com um juiz de paz residente;
87. No início do século, os donos de fábricas de Lancashire foram esti­ e traça uma distinção entre a tradição da "força física” nas aldeias do norte
mulados a demitir suspeitos de jacobinismo (Aspinall, op. cit., p. xxiii). de Leicestershire, e (em comparação) a reputação da própria Leicestershire
Em outubro de 1816, os "Proprietários tirânicos" despediram trabalhadores como cumpridora das leis. Ver “Luddism, Hampden Clubs, and Trades
que compareceram a reuniões radicais (H. O. 40.9). Nos anos 1830, houve Unions in Leicestershire", English Historical Review, LXII1 (1948). p. 172.
um expurgo de trabalhadores fabris owenistas: G. Simmons, The Working 89. Political Register, de Cobbett, 16 de maio de 1818.
Classes (1849). p. 70. 90. Bamford (3.* cd., Hcywood), p. 174.

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de outubro de 1816, um informante voltou “ com um monte de essa babilônia apática do sistema fabril, alimentou, em 1817 e
reformistas de Failsworth” : depois novamente em 1819, a conversa de se começar a insurrei­
ção fazendo uma “ Moscou de Manchester” . E, no final de 1819,
Eles soltavam as piores pragas & censuras contra o povo de quando o movimento de Manchester começava a se dissolver num
IVlanchester, mas principalmente contra as classes superiores. rebuliço de disputas pessoais e facções em guerra, um interessante
Consolaram-se atribuindo a ausência do povo de Manchestcr à relatório de um espião sobre uma reunião espantosamente ranco­
coerção dos Patrões. (.. .) Do número presente, o Informante rosa e desordeira da União de Manchester concluía:
julga que metade era do campo.91
. . neste momento apresentaram-se dois Homens do Campo, um
Entre os que partiram de Manchester, com suas petições e dos quais se levantou e quis saber se aquela era a União —
mantas, em sua marcha até Londres (março de 1817), a maioria passou-se algum tempo antes que alguém falasse — finalmente
alguém disse que deveria ser — o Estranho então disse que vinha
eram tecelãos do campo.92
de Flixton, para ver como estava indo a Reforma — alguém
Embora em 1818 Stockport oferecesse um modelo importante gritou: “foi o juiz Wright que o enviou?” o Velho não prestou
de um tipo diferente de movimento reformador urbano, sob a Atenção mas continuou dizendo que na sua Região diariamente
liderança do Reverendo loseph Harrison, pastor metodista conver­ centenas de pessoas juntavam-se às suas Seções, e se ele dissesse
tido em mestre-escola e orador radical,93 o povo do “ campo” ainda a elas o que tinha visto nesta Noite nunca teriam confiança na
predominava em 1819: eram os indivíduos cujos treinamentos no­ União de Manchester. — Vários dos Líderes rodearam os Estra­
turnos, dos quais Bamford deixou relatos idílicos e uitra-ingênuos. nhos e persuadiram-nos a não contar o que tinham visto naquela
preludiavam Peterloo. (Os trabalhadores fabris de Manchester não Noite.94
tinham nem o tempo, nem as charnecas desertas para se dedicar
a tais preparativos.) Era também o povo cujos grandes contingen­ Evidentemente, essas pessoas eram, em sua maioria, tecelãos
tes ordenados — de Lees e Saddleworth, Middleton e Rochdale, manuais, cujos problemas e modo de vida já examinamos em capí­
Oldham e Bury — ocuparam parte tão ampla dos St Peter’s Fields, tulo anterior. Em 1819, tinham aderido à causa da reforma comu­
em 16 de agosto de 1819. E assim como o partido mais extremado nidades inteiras de tecelãos de Lancashire; desde então, até os
da “ força física” nas províncias esperava um sinal de Londres, últimos anos cartistas, os tecelãos e malharistas sempre estiveram
da mesma forma muitos tecelãos do planalto aguardavam impa­ entre seus adeptos mais firmes e extremados. Sucessivos fracassos
cientes por Manchester, para dar início à insurreição. O furor não em suas agitações por uma proteção parlamentar conduziram dire­
só contra as autoridades, mas também (é de se suspeitar) contra tamente à questão da reforma — ou derrubada — do próprio
Governo. Não podiam esperar melhorar sua posição apenas através
da ação sindical; o fracasso da grande greve dos tecelãos, em 1818,
91. H. W. C. Davis, Lancashire Reformers, p. 24. É de se notar que,
nessa reunião, foram recusadas várias indicações de reformadores dc classe em obter qualquer ganho duradouro serviu para reforçar a lição.
média de Manchester para ocupar a Presidência da mesa. Se a ideologia da “ independência” econômica e do individualismo
92. As listas dos presos (em H. O. 42.172) mostram um grande predo­ político inflexível, expressa por Cobbett e Hunt, não se afinava
mínio de tecelãos Numa leva de 48 prisioneiros, 29 eram tecelãos, 2 fiandei­ com a experiência dos trabalhadores fabris, por outro lado cabia
ros, 2 diaristas e 1 de cada ofício seguinte: marceneiro, serrador. encader­
como uma luva para o caso dos tecelãos. Eles partilhavam da
nador dc livros, carpinteiro, fabricante de máquinas, fabricante de velas
de sebo. tintureiro. sapateiro, cordoeiro, "calendarista". Em outro lote dc aversão de Cobbett pelo barulho e opressão das fábricas; da sua
173 prisioneiros, havia ainda fiandeiros, cardadores, alvejadores, armeiros insistência sobre o direito de cada homem em obter, pelo suor
etc., mas a grande maioria ainda era composta de tecelãos.
93. Sobre a Sociedade da União de Stockport. ver D. Read. op. cit., pp. 47
94. H. O. 42.198. citado na íntegra em D. Read. op. cit.. Apêndice B, p. 221.
s$., e adiante, p. 311.

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do seu rosto, uma alimentação substancial, uma roupa decente e IV. Brandreth e Oliver
bem-estar físico; de sua suspeita contra Londres, o papel-moeda,
“ a Assembléia” ; de sua preferência pelo argumento moral, em vez Mas todos os grandes centros de trabalhadores manuais fica­
do pragmático; de sua nostalgia por valores rurais em desaparição. vam de 150 a 300 quilômetros de distância de Londres. Se os
Na verdade, eles respondiam entusiasticamente à maioria das centros têxteis ficassem em Essex, as aldeias produtoras de pregos
idéias de Cobbett em 1817 — salvo seu repúdio às sociedades e em Sussex — se os tecelãos portassem suas bandeiras a Spa Fields,
clubes políticos. em vez de St Peter’s Fields — , o curso da história inglesa seria
A força dos reformadores extremados, portanto, residia nas outro. Tal como eram as coisas, sempre que latejava um senti­
aldeias de trabalhadores manuais das Midlands e do norte. Espera­ mento insurrecional nos Peninos ou em Warwickshire, não havia
mos ter nos descartado da concepção errônea de que esses aldeãos nenhum objetivo evidente disponível. O luddismo, em 1817, estava
industriais fossem “ labregos” ou “caipiras” dos setores mais “ atra­ largamente desacreditado. Como o peso do sentimento nas provín­
sados” do povo. Embora os primeiros seguidores do deísmo de cias poderia se fazer valer para o próprio Governo? A Marcha
Carlile e do socialismo de Owen proviessem dos bastiões artesãos dos Manteiros (que, em seus primeiros estágios de planejamento,
das cidades — Londres, Birmingham, Norwich, Sheffield, New- talvez fosse do conhecimento e aprovação de Cartwright e Cobbett)
castle — , os trabalhadores manuais, em termos de inteligência e foi uma tentativa de fazer valer essa pressão. Os homens de Lan-
instrução, talvez se equiparassem a eles, e levavam vantagem cashire iriam pacificamente marchar sobre Londres, com suas peti­
quando comparados a outros grupos industriais — mineiros e ções, realizando reuniões e ganhando apoio durante o percurso.
trabalhadores em ferro, diaristas manuais urbanos pobres e muitos Havia uma certa expectativa de apoio da parte de outros grupos
trabalhadores fabris.95 A relativa prosperidade dos primeiros anos de marcha de Yorkshire e Midlands, e há notícias de que um dos
da Revolução Industrial, devido ao surto da fiação mecânica, leva­ líderes de Manchester teria dito: “ Se conseguíssemos alcançar vocês
ra a uma ascensão nos valores não só materiais, mas também cul­ até Birmingham, estaria tudo feito, pois não duvido que vocês
serão 100.000” .96 Quanto ao que se pretendia em Londres, cor­
turais. Era a desintegração desse modo de vida que dava uma
riam vários rumores. Os organizadores declararam que pretendia-
força tão grande ao protesto dos trabalhadores manuais. Se os
se apenas a apresentação de suas petições ao Príncipe Regente
centros de “ conspiração” radical viriam a persistir por trinta anos
Mas esperavam-se boas-vindas tumultuadas por parte do popula
em locais como Pentridge, Loughborough e Barnsley — se se
cho londrino, e pode ter existido alguma expectativa de que os
discutiam complôs numa capela em Middleton, num bar em Thorn-
marchadores desempenhariam um papel semelhante ao dos marse-
hill Lees e numa cascalharia em Heckmondwike — , não era por­ lheses em Paris, em 1792.
que tais lugares fossem remotíssimos, mas porque o povo dessas
vilas e aldeias estava no centro do conflito entre o individualis­ Novamente impõe-se uma questão. Não se trata apenas do que
se pretendia, mas de quem pretendia. A situação geográfica dos
mo econômico não planejado e um modo de vida mais antigo.
trabalhadores manuais contribuía não só para o seu isolamento em
Os teceiãos e malharistas foram as maiores vítimas do laissez-faire,
relação aos centros de poder, mas também uma fraqueza crucial
e portanto também mereciam as atenções mais cuidadosas dc em matéria de comunicação e organização. Notamos a coesão das
Lorde Sidmouth e Oliver. Eram os trabalhadores — não atrasados comunidades industriais menores, e sua opacidade ao olhar escru-
— mas típicos dessa fase da Revolução Industrial. tinador das autoridades. Os pontos fracos em sua organização eram

95. Ver R. K. Webb, “Working-Class Readers in Early Victorian England", 96. H. W. C. Davis, Lancashire Rejortners, p. 31. Os mineiros de Stafford-
English Historical Review, LXV (1950), pp. 333 ss., para evidências de que shire tinham aberto um precedente em 1816, com a primeira "marcha contra
(apesar de constantes queixas sobre um decréscimo recente) o grau de a fome”. Os “Manteiros", de fato, foram impedidos de prosseguir sua
alfabetização dos tecelãos manuais em 1840 era maior do que o de outros marcha pelo Exército, quando foram presos mais de 200. e poucos foram
grupos. além dc Lcek.

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Biblioteca Universitária
UFSC
sempre os elos entre elas e os centros regionais e, sobretudo, entre por um magistrado bem informado de Lancashire como “ uma
estes centros e Londres. Para as autoridades, foi relativamente fácil espécie de chefe para toda a parte da região”99) passou a se deslo­
infiltrar espiões na organização em Manehester, e mesmo em Shef- car com freqüência entre Londres, Midlands e norte. Quando
field e Nottingham: esses espiões, por sua prontidão e tempo Bamford compareceu à “convenção” do Clube Hampden, em janeiro
disponível, com grande freqüência conseguiam se tornar delega­ de 1817, tanto Mitchell como Benbow tinham feito muitos con­
dos para os comitês regionais. A coisa mais fácil do mundo era tatos londrinos. Benbow atuava “ quase como mestre-de-cerimô-
nias”, e Mitchell acompanhou Bamford numa visita aos quartéis,
pôr espiões entre os extremistas londrinos de taverna.
onde (por acaso, segundo o relato insincero de Bamford) distri­
Um relato amplamente aceito dos acontecimentos da prima­
buíram panfletos radicais. Como Cartwright, Cobbett e Hunt não
vera e verão de 1817 é o seguinte:
ofereciam nenhuma liderança organizada séria, alguns dos dele­
gados provinciais tiveram encontros posteriores, em “ O Galo”,
Em março e de novo em junho, os magistrados investiram contra
reuniões de delegados operários e prenderam todos. Esses homens na Grafton Street, com o dr. Watson e seu grupo, onde foram dis­
supostamente estavam engajados em planos para uma insurreição cutidos planos de comunicação nacional e (talvez) organização
geral; mas, exceto as evidências fornecidas por espiões e infor­ secreta.100
mantes pagos, não existe nada que prove a existência de um tal Assim, quando foi suspenso o habeas corpus, na primeira
movimento. Sem dúvida, existiam boatos desenfreados; mas sobre semana de março, já existia algum sistema incipiente de organiza­
qualquer conspiração organizada não existe absolutamente ne­ ção nacional. As autoridades declararam que havia quatro centros
nhuma evidência pura.97 de organização controlados por “comitês secretos”: 1. Nottingham,
Derby e Leicester; 2. Birmingham e distrito; 3. Lancashire; 4.
Ê a clássica interpretação Whig de 1817, e também a defesa Yorkshire. Havia inquestionavelmente um trânsito considerável de
empregada pelos próprios reformadores da época. Ê uma inter­ delegados e também de correspondência radical. Mitchell deixou
pretação que recebeu respaldo acadêmico com o Trabalhador Qua­ alguns relatos sobre esses meses, quando ele, Benbow e Knight
lificado (capítulo 12) dos Hammonds, que continua a ser a recons­ eludiram as autoridades, “quase nunca ficando mais de duas noites
trução mais autorizada da carreira do famoso Oliver.98 num lugar”.101 Bamford também descreveu seus dias “ de correría”
A argumentação Whig, porém, é uma grave ultra-simplifica- com Healey, numa época em que alguns reformadores de Lanca­
ção. Não precisamos voltar uma vez mais à nossa discussão sobre shire não ousavam sair “ seguros como corujas ao cair da noite” ,
o que constitui uma evidência “ pura” . Mas existem razões esma­ enquanto outros “ reuniam-se sob vários pretextos” :
gadoras para se supor que, em 1817, vinha se preparando algum
Às vezes chamavam-se “sociedades beneficentes”, às vezes “reu­
tipo de conspiração pela “ força física” , inextricavelmente ligada niões botânicas”, “reuniões para a assistência às famílias de
à contraconspiração de provocateurs do Governo. Já em dezembro reformadores presos” ou “dos que tinham deixado o país”; mas
de 1816, existia um contato vago entre o partido “ jacobino” em seu propósito efetivo, divulgado apenas entre os iniciados, era o
Londres e reformadores extremados nas províncias. Pelo menos de pôr em execução o ataque noturno a Manehester. . .
dois dos incumbidos de missões pela reunião de delegados de
Lancashire, naquele mesmo mês, com instruções para visitar York- Um informante numa dessas reuniões em Chadderton, em
shire e as Midlands, eram partidários da “ força física” — William março, relata em termos familiares desde os tempos luddistas até
Benbow e Joseph Mitchell. A partir de então, Mitchell (descrito os cartistas:

97. Cole e Postgate, The Comnton People. p. 217. 99. Ver H. W. C. Davis. Lancashire Re/ormers, p. 28.
98. O artigo de A. F. Fremantle, “The Truth about Oliver the Spy", Eng. 100. Bamford (ed. 1893). pp. 21, 32-3: H. Hunt, The Green Pag Plot (1819).
Hist. Review, XLV11 (1932), pp. 601 ss., foi largamente utilizado por R. 1 P- 9.
White, em sua recente versão do levante de Pentridge, em From Waterloo 101 Blanketteer, 23 dc outubro de 1819.
to Peterloo, cap. 13. Ambas, porém, são inferiores à dos Hammonds.
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O homem de Chadderton disse que a maioria do povo já tinha . . era essa a forma de pensar de uma grande parte do povo em
armas. Disse que achava que recrutariam 70 Mosquetes. ( ...) sua Vila nos meses de março, abril e maio dc 1817...
Concordou-se em irem a Manchester na sexta-feira à tarde
às 3 horas & se encontrarem no Carvalho Real na Ponte de Mas “embora os meios de resistência fossem ansiosamente
Ardwick. para saber as notícias chegadas de Birmingham, Shefficld desejados ( ...) não se formara nenhum plano de resistência até
& todos os outros lugares de onde se esperavam informações.
um certo momento no mês de maio” . Foi discutido pela primeira
O homem de Chadderton disse que tinha visto o Delegado de
Bury & [tinha] estado em Huddersfields & Leeds & confiava vez quando, em abril, “ o sr. Mitchell passou por Nottingham ( ...)
que o povo estava todo pronto para começar a qualquer hora em seu caminho para Londres”.103
visto que tinham reunido uma quantidade de armas que estavam Mitchell (disse Bamford) “ movia-se numa esfera própria, cujo
escondidas desde o tempo dos luddistas.102
raio ninguém sabia exceto ele”. Em abril, ele visitou em Londres
Charles Pendrill, o sapateiro jacobino e antigo associado de Des-
“ Avançariam quando vissem um Projétil. . Podem-se encon­
pard, que então se preparava para fugir para os Estados Unidos.
trar passagem quase idênticas entre os documentos do Ministério
Pendrill recentemente ajudara um amigo, conhecido por ele como
do Interior, para os anos de 1839 e 1848. Os partidários da força
William Oliver, a sair da prisão por dívidas: logo depois, esse
física estavam sempre à espera “ de saber as notícias chegadas”
de Birmingham ( ...) ou Londres ( ...) ou Newport. De certo Oliver “começou a fazer profissões de patriotismo muito caloro­
ponto de vista, a história é patética. Foi de meia dúzia de reuniões sas e expressou uma ansiedade incomum em saber se havia alguma
dessas que se montou a “ Conspiração de Ardwick” , no final de Associação Política onde pudesse ser admitido”.104 As profissões
março, sob o pretexto de terem sido apanhados vários dos mais de fé de Oliver foram tomadas a sério, e em março viu-se admi­
ativos líderes de Lancashire. Sob outros aspectos, é mais séria. tido no círculo interno de reformadores londrinos. Em 28 de
Dezenas de vezes, numa dúzia de lugares, indivíduos com umas março, pediu uma entrevista com Lorde Sidmouth. Em abril, foi
poucas espingardas e armas caseiras reuniram-se em aldeias das apresentado por Pendrill e outros reformadores a Mitchell, que o
Midlands e do norte e procederam a movimentos vacilantes, menos visitou em seus aposentos e ficou impressionado com sua “ estátua
por timidez do que pelo medo de traição e sensação de isolamento de Napoleão em tamanho natural” sobre a cornija da lareira e os
geográfico. Se, em qualquer uma dessas crises, tivessem chegado retratos de Burdett, Cobbctt, Horne Tooke e Fox:
as “notícias” , se um centro importante tivesse sido “ tomado” por
revolucionários, a insurreição poderia ter se espalhado rapida­ Ele me disse que era desejo dos amigos de Londres formar uma
mente por outros distritos. conexão com os amigos do campo. Eu disse ( ...) que isso também
cra muito desejado pelo campo.
Em maio, o sentimento revolucionário vinha se erguendo em
vários distritos, com comunicação esporádica entre eles. Mas não
havia nenhum centro organizador responsável. O campo esperava Mas quando Mitchell solicitou um encontro com o comitê
Londres; mas os londrinos com quem tinham um superficial con­ londrino, Oliver garantiu-lhe que era um momento muito perigoso
tato eram tão incapazes de iniciar um atentado insurrecional quan­ para reuni-los.105
to os camponeses. William Stevens, um agulheiro de Nottingham
que participou ativamente da conspiração e depois fugiu para os
103. Depoimento em P o litic a l R e g is te r , de Cobbett, 16 de maio de 1818.
Estados Unidos, declarou posteriormente que, após a suspensão
104. Depoimento de Pendrill cm P o litic a l R e g is te r , de Cobbett, 16 de maio
do habeas corpus, “ muitas centenas (. ..) e, conforme acredita, dc 1818. Pendrill conhecia Oliver desde 1811, época em que foi ajudante
muitos milhares disseram que ( . . . ) era tempo de resistir” : de carpinteiro. Oliver foi diversamente descrito como carpinteiro construtor
c contador; de fato era um primeiro-escrevente ou guarda-livros e inspetor.
105. B la n k e tte e r , 23 de outubro dc 1819.
102. Bamford, op. cit., p. 44; H. W. C. Davis, op. cit., p. 35.

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Oliver convenceu MitchelI que permitisse acompanhá-lo em nhavam-se cm apresentar todos os fragmentos de provas que de­
seu próximo giro pelas províncias. Os dois saíram em 23 de abril, monstrassem que Oliver fora o principal instigador e organizador
para uma viagem que duraria (para Oliver) vinte e três dias, dos acontecimentos de 9 de junho. As autoridades, por outro lado,
quando vi ria a ser apresentado a reformadores importantes nos alegavam que o papel de Oliver fora apenas o de informante, que
principais centros das Midlands e do norte,106 Foi um magnífico se interviera nos planos revolucionários, fora apenas para adiá-los
golpe de espionagem, e Sidmouth viu-se bem servido com os rela­ ou desmontá-los, e que fora apenas graças à sua vigilância que se
tórios de Oliver. Em 5 de maio, relatou o comparecimcnto aum impedira uma perigosa insurreição.
importante encontro de delegados em Wakefield, Huddersfield, A verdade, provavelmente, é mais complexa do que ambas
Barnsley, Leeds, e por Thomas Bacon do distrito do Norte das as versões. Oliver não era o único espião na organização secreta.
Midlands — fizeram-se grandes promessas acerca do número de Os magistrados de Lancashire e Nottingham mantinham-se instruí­
homens que se levantariam em cada distrito. A data do levante dos através dos seus próprios informantes locais. Mas, ao mesmo
foi planejada para 26 de maio, e Oliver prometeu que Londres tempo, não é verdade que os únicos instigadores da revolução
'estaria pronta’*. Confidencialmente, relatou que era “ um plano fossem espiões. Bamford foi visitado em maio, em Middleton, não
fraco e inviável, o se pudesse ser adiado, goraria por si só” .107 por Oliver, mas por delegados de Derby — Thomas Bacon e
Mas — talvez por um erro de cálculo — MitchelI fora preso Turner — , e ambos viriam a se envolver no Levante de Pentridge.
em 4 de maio, e Oliver, enquanto “o delegado de Londres’*, agiu William Stevens depôs que, quando Thomas Bacon levou seu rela­
por conta própria.108 Assim ocorria uma situação extraordinária, tório sobre a reunião de Wakefield, de 5 de maio, para o comitê
onde eram levados à frente preparativos insurrecionais em diver­ das Midlands do Norte;
sos distritos, e o único contato londrino identificável era um agente
do Governo. Em Londres, Watson, Thistlewood, Preston e Hooper Brandreth, Turner e Ludlam estavam presentes, além de muitís­
simas outras pessoas. (...) Cerca de cinco ou seis dias antes de
ainda estavam à espera de julgamento por alta traição, pela sua
26 de maio. chegou a Nottingham uma carta dos nossos amigos
participação no caso de Spa Fields, e de modo geral esperava-se de Sheffield, informando-nos de que o levante fora adiado para
uma condenação. Alguns reformadores importantes estavam escon­ 9 de junho, em conseqüência do conselho de Oliver (...) porque
didos; outros tinham seguido Cobbett até os Estados Unidos; outros as noites então estariam escuras, e porque todo o país estaria no
mais já estavam no cárcere. Até agora, as coisas parecem bastante momento num estado mais perfeito para o levante. (...) Em
claras. Mas, daqui em diante, as fontes tornaram-se maciçamente conseqüência disso, continuaram a se fazer preparativos em Not­
partidárias. Os reformadores e críticos Whig do Governo (como tingham e vizinhanças até o dia do levante.
Bennet na Câmara dos Comuns e Baines no Leeds Mercury) empe-
109. Baines, que desmascarou Oliver no Leeds Mercury, também liderou o
10b. Oliver deixou Londres em 24 de abril; 25, Birmingham; 26, Sheffield. ataque contra MitchelI. MitchelI era um conspirador tolo e amador, mas
através de Derby; 27, 28, Wakefield. Dewsbury; 29, Leeds; 30, Manchester; não um espião. Uma investigação radical formal, encabeçada por Jones
l,° e 2 de maio, Liverpool; 3, Manchester; 5, Wakefield; 6, Huddersfield; Burdett. limpou seu nome. Bamford dedicou um capítulo à sua defesa,
7, Wakefield; 8, Huddersfield; 9, Barnsley; lü, Ossett; 11, Spne Valley; 12. concluindo, em letras maiúsculas — “Se fosse um espião, teria traído os
Bradford; 13, Leeds; 15, Londres. No caminho entre Birmingham e Leeds. que nunca foram traídos", o que é um reconhecimento de que existiam
MitchelI apresentou Oliver a um líder reformador de Derby “enquanto outros no complô que nem Oliver conhecia. Ao ser libertado da prisão.
eram trocados os cavalos do coche". H. Hunt, The Green Bag Plot. Ver MitchelI não ouviu o conselho do Major Carlwright de que. se era um
também o documento chamado "0's Tour", em T. S. 11.351, e “Narrative" indivíduo honesto, devia se retirar da vida pública; reingressou na política
de Oliver (H. O. 40.9) e suas cartas (H. O. 40.10). radical; defendeu sua reputação contra as acusações de Baines. em seu
Blanketteer; foi apedrejado e jogado no canal em Leeds; e foi preso em
107. Hunt, op. cit.; e depoimento de Stevens. 1820 por libelo sedicioso. Ver Bamford, op. cit., caps. 12. 26; Life of
108. Segundo um relato, MitchelI estava viajando com nome falso, vestido Edward Baines. p. 109; Blanketteer, 23 de outubro a 20 de novembro de
como tecelão, "com roupas de fustão & tinha um avental em torno". T. W. 1819; Fitzwilliam Papers, F. 52(c); L. T. Rede. York Castle in the Nine-
Tattie a Fitzwilliam, 22 dc janeiro dc 1820, Fitzwilliam Papcrs, F. 52(c). teenth Century, p. 630.

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Nesse ínterim, Oliver tinha voltado para informar seus patrões talvez não seja superado pór nenhuma cidade do mundo” .113 Já
em Londres, sem deixar de visitar seu velho colega Mitchell na em dezembro de 1816, Benbow realizara uma reunião em Pentrid-
prisão de Cold Bath Fields (com isso levantando a duradoura sus­ ge. O principal reformador do distrito, Thomas Bacon, era um
peita de que também fosse um espião).109 Em 23 de maio (segundo “velho Jack” , provavelmente nos seus quarenta anos, que, por
as autoridades), Sidmouth foi informado pelos magistrados das algum tempo, trabalhara como limpador ou aparador de ferro fun­
Midlands e do norte de que a insurreição ocorrería em 9 dc junho, dido na Fábrica de Ferro Butterey. (Perseguido por suas atividades
com ou sem o apoio de Londres. “ Enviou Oliver pela costa até políticas, em 1817 recorrera ao ofício de malharista de bastidor.)
o campo.” 110 Segundo a súmula preparada pela Coroa contra ele (mas, na con­
Mas, nessa segunda viagem, Oliver agiu como um indivíduo tinuação, nunca utilizada), desde 1791 tinha sido “ um defensor
com instruções totalmente diferentes. Sua conversa, agora, era ativo das Doutrinas da Liberdade e Igualdade e ardoroso discí­
cheia de grandes promessas. Antes, tinha se apresentado às vezes pulo de Thomas Paine” . Ele sustentava que a propriedade devia
como “ incumbido” por Burdett, Cochrane, Hunt ou Major Cartw- ser “ igualada”, as propriedades rurais dissolvidas e distribuídos
right.111 Agora, acrescentava notícias sobre os planos dos refor­ 3,2 ha (8 acres) a cada homem. Para Bacon, o Register de
madores de Wolverhampton para a tomada dos Quartéis de Wee- Cobbett e os Clubes Hampden “ não avançavam o suficiente”.114
don: Wooler, o editor de Black Dwarj, “ agora estava ocupado No outro centro revolucionário, West Riding, a situação era
em Londres imprimindo as Proclamações a serem lançadas pelo um pouco mais confusa, visto que a magistratura W hig de Fitz-
Governo Provisório” ; os preparativos (dizia ele) estavam sempre william e Lorde Sidmouth muitas vezes se opunham. (Parece pro­
mais adiantados cm todos os outros lugares do que onde estava vável que o próprio Lorde-Encarregado não estivesse a par da iden­
no momento. Suas atenções se concentraram particularmente sobre tidade e objetivos de Oliver.) Na última semana de maio, dili­
West Riding e Nottingham.112 gentes magistrados de Sheffield, agindo por informação própria,
surpreenderam uma reunião, a altas horas da noite, dos “ Líderes
É significativo que Oliver tenha se decidido pelos dois dis­
de Dezenas” na “ Roda de Moinho do sr. Chandler” . “ Quando a
tritos onde a organização luddista secreta tivera sua maior força.
reunião deu o alarme, homens correram pelas portas Sc janelas &
Além disso, ambos eram os centros de uma tradição revolucionária
precipitaram-se para o Bosque.” Wolstenholme, um dos líderes
ainda mais antiga. “ O Povo de Nottingham”, escreveu Sherwin.
locais, e três outros foram capturados, e a partir daí o movimento
“ tem ( ...) um sentimento habitual de ódio contra a opressão que
de Sheffield decaiu em confusão.115
Sobre aqueles dias em Nottingham, podemos comparar duas
110. Ver H. Hunt, op. cit.
111. Ver, p. ex., o depoimento de Scholes em Leeds Mercury, 21 de junho
fontes independentes, sendo de se esperar que suas perspectivas
de 1817; W. Cliff (de Derby) cm Duckett's Dispatch, 9 dc dezembro de tenham tendências opostas. Na primeira delas, um informante local
1818. (que não conhecia a verdadeira identidade de Oliver) relatou a
112. O documento intitulado “O s Tour" (T. S. 11.351) apresenta o seguinte um magistrado também local:
itinerário: 23 de maio, deixou Londres; 24, Birmingham; 25, 26, Derby; 27,
Nottingham; 28, aldeias perto de Nottingham; 29, Sheffield até Wakefield;
Eu (...) fui à casa de Jerry Brandreth entre 6 e 7 horas
30. Bradford e Halifax; 31. Manchester; l.° de junho, Liverpool; 2, Man-
chester até Wakefield; 3, Wakefield; 4, Camps Mount (quartel-general do daquela tarde. (...) Deixamos sua Casa (...) e encontramos
General Byng, perto de Wakefield); 5, Leeds; 6, Thornhill Lees, perto de [Stevens] na frente da prisão. Subimos a Sandy Lane (...)
Dcwsbury: seguiu com a posta para Nottingham; 7, Nottingham; seguiu Stevens disse que eu devia ter ido lá na segunda à noite. (...)
com a posta para Londres. Em Lancashire, segundo Bamford e Prentice, Contou que estava um Delegado de Londres, que informou que
tanto os reformadores de classe média com os operários já desconfiavam
dele, c lançaram advertências contra seus planos. Ver também Political
Register, dc Sherwin, 15 de novembro de 1817, 14 de fevereiro de 1818; H3. Political Register, de Sherwin, 21 de junho de 1817.
“Narrative" e cartas de Oliver. em H. O. 40.8/10; depoimentos de Bradley 114. Rex v. Thomas Bacon\ súmula em T. S. 11.351.
e Dickenson. H. O. 42-165 e 167. ^15. Parker a Fitzwilliam, 29 de maio de 1817, Fitzwilliam Papers, F. 45(i).

240 241
cerca de 70.000 em Londres estavam prontos para agir conosco; Depois dessa reunião, Oliver seguiu imediatamente para Lon­
e que estavam muito maduros em Birmingham. (. . .) Não se disse dres, explicando que devia “dar aos revoltados de Londres uma
onde ele morava, mas que era um amigo fiel, e que (. . .) estaria garantia da cooperação sincera do Campo” .117
aqui outra vez na quarta ou quinta, e traria a decisão da data Muito foi revelado sobre os movimentos de Oliver em York­
a ser estabelecida para a Insurreição.116
shire entre 2 e 6 de junho. Deslocou-se rapidamente entre as vilas,
preparando uma reunião de delegados em Thornhill Lees, perto de
Na segunda fonte, Stevens apresenta sua versão pessoal, qua­
Dewsbury, no dia 6 de junho. Dois dias antes, teve um encontro
se um ano depois:
privado com o General-de-Divisão John Byng, que comandava as
. . .No dia l.° ou 2 de junho, Oliver veio a Nottingham ( .. . ) à
tropas do norte. A reunião de Thornhill Leeds foi cercada, e os
casa do depoente. Ele disse que tudo estaria pronto em Londres delegados apreendidos, por tropas sob o comando pessoal do
para 9 de junho (. . .) Oliver então teve uma reunião conosco, General Byng.118 Permitiram que Oliver “escapasse” , mas um
na qual estavam presentes Brandreth e Turner, e muitos outros. reformador, poucas horas depois, viu-o num hotel em Wakefield
Nessa reunião, apresentou a nós um papel que ele chamava de (logo antes que partisse com a diligência de Sheffield), em conver­
um Plano da Campanha. . . sa com um empregado do General Byng, e a verdade transpirou.
Quando Oliver assim combinou tudo conosco, preparou-se para Quando Oliver chegou a Nottingham, no entardecer do dia 7,
ir organizar as coisas em Yorkshire, de modo que todos pu­ alguns rumores de traição já tinham alcançado a cidade; a reunião
dessem estar prontos para agir no Campo no momento em que
final descrita por Stevens incluiu um interrogatório minucioso e
o levante ocorresse em Londres, onde ele nos disse que havia
Cinqüenta Mil Homens com armas preparadas, e que iam tomar exaustivo do espião, ao qual teve a sorte de sobreviver. Um homem
a Torre. . . alto disse (informou Oliver) que “ não estavam tão ansiosos em
serem enforcados por nada em Nottingham como estavam em
Uma “ convenção” de delegados do norte se reuniria em Sheí- Lancashire, e se eu não parava, ele não sabia o que pensar de
field em 7 de junho, para fazer os últimos preparativos: mim”.119
Mas “ Jerry” Brandreth não estava nessa última reunião, lá
Quando ela tivesse se reunido, os membros se separariam e iriam em 5 de junho, o Escrivão da Cidade de Nottingham fora noti­
para as várias grandes Vilas; e os membros iriam não para seus ficado pelo seu informante:
locais de domicílio, mas para outros lugares, para que pudesse
se estabelecer confiança mútua e para que pudessem trocar infor­ Vi Jerry na casa dele ( ...) Perguntei-lhe se eles tinham algum
mações verdadeiras. . . Contato com alguma outra pessoa além do Delegado de Londres
— ele disse que não, mas que alguns dos camaradas tinham. (. . .>
De fato. Stevens seguiu para Sheffield em 7 de junho, mas Disse-me que estava indo a Pentridge de vez, para comandar o
“ foi alcançado por um Menino a cavalo”, e com isso voltou a homens que lá se levantariam, e que os traria aqui ( . . . ) e reu­
Nottingham: niria homens de todas as Cidades por onde passassem. . .

Em sua casa, ele encontrou Oliver, que então disse que ocorrera 117. Depoimento de William Stevens em P o íitic a l R e g iste r, de Cobbett,
alguma traição cm Yorkshire; mas que, como tudo estava pronto 16 de maio de 1818. Essas referências contradizem a sugestão de A F
em Londres, tudo seguiria bem, se se mantivessem fiéis às suas Fremantle e R. J. White de que Oliver nunca tivera nenhum contato com
promessas em Nottingham e Derby. Então houve uma reunião, Brandreth. Ver também N o ttin g h a m R e v ie w , 7 de novembro de 1817.
onde Oliver esteve presente. . . 118. Essas prisões não foram planejadas por Sidmouth nem Byng. mas
foram impostas por um magistrado zeloso. Ver Hammonds. op. cit.. p. 358
119. Para esses dias, ver H. O. 40.9 e L e e d s M e rc u r y . em esp. 21 de
116. O informante (H. Sampson de Bullwell?) incluiu em sua carta de junho de 1817.
Enfield para Sidmouth, l.° de junho de 1817, H. O. 40.6.

243
242
Depois, no mesmo dia, a mulher de Brandreth disse ao infor­ verno se preparava para julgar por alta traição não só o dr
mante que ele já partira. “ Ela achava que ele não voltaria até Co­ Watson e seus companheiros, mas também grupos de reformadores
meçado o negócio.”120 Lorde Sidmouth estava a par de todos esses de Sheffield e Glasgow.126 A Farsa da Anarquia revela não a
acontecimentos. A partir de 7 de junho, o Governo, o Exército e “ injustiça ignorante” do juízo de Shelley,127 mas juízos que vieram
os magistrados ficaram de prontidão, esperando a revolta de Pen- a ser partilhados pela maioria dos seus conterrâneos. O Governo
tridge. Naquele dia, o Escrivão da Cidade de Nottingham confe- queria sangue — não um holocausto, mas o suficiente para servi;
renciou o tempo todo com os magistrados sobre “os meios para de exemplo.
impedir e eliminar uma insurreição esperada do populacho na A história de Pentridge se conta rapidamente. Brandreth, o
cidade e arredores” . No dia 9, o Escrivão da Cidade escreveu: “ Capitão de Nottingham”, desempenhou a parte que assumira
“ Meu funcionário secreto está de vigia perto de Pentridge, obser­ Por dois ou três dias antes de 9 de junho, estivera a fazer prepa
vando o efeito dos movimentos ameaçados do velho Bacon. ( ...)
rativos abertos, recrutando c realizando encontros em uma dar
Sentamo-nos em conselho, à espera, durante a primeira parte da
estalagens de Pentridge. Na noite de 9, duzentos ou, no máximo,
noite” .121
trezentos homens vindos das aldeias reuniram-se no sopé do Derbv
“ Oliver seguiu em direção a Londres, abandonando sucessi­ Peak — Pentridge, South Wingfield, Ripley. Eram malharistas,
vamente suas vítimas nas armadilhas que montara para elas. (. . .) canteiros, trabalhadores em ferro (da Fábrica de Ferro de Butter-
Os patrões de Oliver em uma hora podiam ter interrompido total­
ley) e diaristas, com umas poucas espingardas e mais lanças, foices
mente aqueles preparativos, fazendo-os ir pelos ares. (. . .) [ElesJ
e cacetes. Muitos — os Ludlam, os Weightman, os Turner —
quiseram, não impedir, mas provocar aqueles atos.” 122 Foi esta a
interpretação de Cobbett, e é difícil imaginar alguma outra capaz eram parentes entre si. Saíram sob chuva para percorrer os 22
de se aplicar às evidências. As recentes sugestões de que Oliver quilômetros até Nottingham, passando por chácaras e casas e anga­
não era um provocateur ou, se era, excedera as instruções de Sid­ riando armas e apoio, durante o percurso. Numa dessas chácaras,
mouth123 são insustentáveis. Tampouco há razão alguma para se foi derramado o único sangue do levante; Brandreth. ao exigir
supor que os membros da administração de Liverpool tivessem imperiosamente a entrada numa casa onde, segundo se acreditava,
muitos pruridos — ou, de fato, sentissem qualquer sentimento de havia uma espingarda, disparou pela janela e matou um empre­
culpa — em relação à idcia de derramar sangue. “Não se pode gado rural. Brandreth conduziu o grupo cada vez mais desanima
nunca sentir que o Rei está seguro em seu trono até que tenha do (e minguado) com implacável determinação. Repetiu- alguns
ousado verter o sangue dos traidores” , escrevera o próprio Lorde versos que captavam bem o espírito daquela noite:
Liverpool, quando se recusou a interceder pela vida do Marechal
Ney.124 Castlereagh fizera seu aprendizado no esmagamento da re­ Todo homem sua arte deve tentar,
belião irlandesa. O Lorde Chanceler Eldon vinha travando uma Deve se apresentar e não se negar;
ação de retaguarda contra Romilly e os reformadores do código Nenhum cruel soldado deve temer,
penal, em defesa da pena de morte.125 Naquele momento, o Go­ Deve sc apresentar e por pão combater.
Chegou a hora de claramente ver
Que o governo oposição deve ter.
120. H. O. 40.6.
121. D. Gray, Nottingham Through 500 Years (Nottingham, 1960), p. 169:
Maccoby, op. cit., p. 352. 126. Os seis trabalhadores de Sheffield apanhados no final de maio foram
122. Political Register. de Cobbett, 16 de maio de 1818. acusados de alta traição, mas nunca foram levados a julgamento — cm
123. Ver A. F. Frcmantle e R. J. White, ubi supra. parte porque a opinião pública de Yorkshire, incluindo muitos fidalgos,
124. Ver R. ). White, op. cit., p. 95; E. P. Thompson, MGod and King and ficara escandalizada com as revelações de Oliver. Em fevereiro vários
Law", New Reasoner, 3, 1957-8. reformadores de Glasgow tinham sido presos, mas, devido à coragem da
125. Por exemplo, em 1813 ele tentou manter as penas medievais por alta principal testemunha da acusação, foram absolvidos em julho.
traição. Ver L. Radzinowicz, op. cit., 1, pp. 519-20. 127. R. f. White, op. cit., p. 70.

244 245
Um dos auxiliares garantiu a uni adepto que:
shire em Thornhill Lees,129 várias centenas de trabalhadores no
ramo de vestuário, vindos principalmente do vale de Holmfirth,
Ele achava que o dia e a hora foram marcados para quando se
esperava que toda a nação se levantasse; e antes do meio da avançaram sobre Huddersfield com um líder que lhes dizia: “ Agora,
semana, ele achava que haveria centenas de milhares em armas meus camaradas, toda a Inglaterra está em armas — nossas liber­
(...) havia homens indicados em cada nação. . . dades estão garantidas — os ricos serão pobres, e os pobres serão
ricos”. Pode-se encontrar uma explicação para a ocorrência desse
atentado, apesar de já ser conhecida em Yorkshire a traição de
Brandreth ajuntou outras promessas, adequadas ao moral do
Oliver, nos depoimentos de dois dos insurretos. Um dos líderes
momento ou à sua audiência: “ Nottingham se entregaria antes que
chegassem lá”, “eles deviam seguir de Nottingham a Londres, e locais (segundo um relato) leu o Leeds Mercury e “ disse que
liquidar com a Dívida Nacional”, as forças “ chegariam de York- estava tudo perdido, pois o Plano fora totalmente forçado, e disse
shire de manhã como uma nuvem” , e: que devia ser executado agora ou seríamos todos enforcados. .
Em outro relato, um líder disse: “Temos de ir, Camaradas, pois
por uma carta de Londres que tinha visto ontem, as chaves da não adianta enrolar, a coisa tem que ser feita hoje à noite” — “ele
Torre seriam entregues ao grupo do Clube Hampden, se já não achava que íamos lutar pela liberdade. . . ” O incidente reproduz
tinham sido. em muitos detalhes o Levante de Pentridge, mas no levante de
“Folley Hall”, os sublevados tiveram muito mais sorte do que seus
A alguns recrutas, relutantes, fora prometido “ rosbife e cer­ colegas de Derbyshire. Trocaram-se alguns tiros com um pequeno
veja” , rum e até um passeio pelo Trent. Formar-se-ia “um governo grupo do Exército, mas ninguém perdeu a vida. Quando o Exército
provisório”, que enviaria auxílio ao campo, para as mulheres e voltou com reforços, os insurgentes (talvez desacorçoados por não
filhos dos que tinham tomado em armas. Prometia sempre que encontrarem nenhum revolucionário no comando de Huddersfield)
chegariam as “ nuvens do norte” , “ homens do norte iam (. . .) tinham desaparecido na noite. Dois dos líderes esconderam-se. Os
varrer tudo à sua frente, e atirariam ali mesmo em qualquer um capturados beneficiaram-se da alteração dos sentimentos provocada
que se recusasse”. Durante toda a noite, as aldeias adjacentes pelas revelações do Leeds Mercury sobre o papel de Oliver; quan­
foram perturbadas com “ tiros de espingardas, toques de corneta, do foram levados a julgamento em julho, o júri recusou-se a
condená-los.130
gritos e diversos ruídos”. Quando a coluna se aproximou de
Nottingham na manhã seguinte e não viu nenhum apoio à sua Contamos longamente a estória de Oliver, por ser uma das
espera, os homens ficaram ainda mais desacorçoados, e começa­ grandes estórias da história inglesa que chegaram a ter um cará­
ram a escapar furtivamente, ao passo que Brandreth se tornava ter quase mítico. Oliver era o arquétipo do Judas dos radicais, e
mais imperioso e ameaçava atirar nos desertores. Finalmente, viram seu papel lendário prolongaria sua influência por toda a história
aproximar-se um pequeno contingente de hussardos. A insurreição do século 19. Podemos distinguir entre a influência imediata
terminou em pânico, quando os homens jogaram suas armas e
fugiram para se proteger, enquanto as tropas perseguiam-nos a 129. Esses delegados de Leeds, Wakefield, Dewsbury, Holmfirth, Hudders­
cavalo ou iam-nos cercando durante alguns poucos dias.128 field. Bradford e Spen Valley p o d e m ter sido apenas reformadores operários
que Oliver engodara e conduzira à reunião. Mas pelo menos um deles,
Pentridge não foi a única aldeia que se levantou na noite lames Mann, o cortador de tecidos de Leeds, era um líder reformador local,
de 8 para 9 de junho. Apesar da prisão dos delegados de York- que mais tarde se tornaria o principal livreiro radical de Leeds. É mais
provável que fossem de fato "delegados" de alguma coisa. Ver L e e d s M e r­
c u r y , 14 e 21 de junho de 1817.
128. W. B. Gurney, T r ia ls o f / e re m ia h B ra n d re th & c. (1817), I, 87, 152, 130. L e e d s M e rc u r y , 49 e 26 de junho de 1817; D. F. E. Sykes, H isto ry
II. 398, 420, 443. 450. Uma das aldeias atravessadas pelos rebeldes foi o f H u d d e r s fie ld (1908), pp. 292-4; depoimentos de John Buckley e John
Eastwood — a "velha Inglaterra selvagem" dc D. H. Lawrcnce. Langley, em Fitzwilliam Papers. F. 45(k); T. S. 11.3336 e 4134 (2).

246 247
e a influência a mais longo prazo. Durante os anos luddistas, o assim num a com unidade em boa ordem , teriam sido todos en
emprego de informantes tornara-se praticamente rotineiro entre os fo rc a d o s.. .l31
magistrados nos centros industriais maiores; e a partir dos anos
1790, parte dos recursos do Governo sempre se destinou a tais A reação de Cobbett (nos Estados Unidos) inevitavelmente
propósitos de serviço secreto. Mas a prática era considerada por atrasou-se; mas, desde seus primeiros comentários em 1818, nunca
um imenso setor da opinião pública como totalmente alheia ao permitiu que se esquecessem os nomes de Brandreth ou Oliver.
espírito do direito inglês. Mesmo em processos penais, era cho­ O Governo cometera uma violência não só contra os reformadores,
cante a idéia de uma ação policial “preventiva”, e quando se mas também contra todos os que davam valor à velha retórica do
estendeu a questões de crença política “ interna” , foi como uma constitucionalismo libertário, segundo a qual a finalidade mesma
afronta a todos os pressupostos do inglês livre de nascimento. O do Governo era a salvaguarda dos direitos individuais.
desmascaramento do papel de Oliver como agent provocateur, no O julgamento e a execução posterior dos amotinadores de
Leeds Mercury, literalmente estarreceu a opinião pública. Embora Derby serviram para aprofundar ainda mais a já profunda hostilida­
o historiador possa ler com pouca surpresa os relatórios de Oliver de dos sentimentos. Embora o processo de Brandreth tivesse um
entre os documentos do Ministério do Interior — vendo neles resultado inevitável (visto ter matado um homem), seus seguidores
apenas um dos mais diligentes e ousados entre uma série de infor­ podiam muito bem ter sido acusados apenas de motim. Mas o Gover
mantes — , em 1817 milhares de donos de lojas e oficinas, proprie­ no estava resolvido a exigir sua dose completa de sangue. Trinta «
tários rurais, pastores dissidentes e profissionais liberais não tinham cinco homens foram acusados de alta traição. Tomou-se um extra
a menor idéia de que pudessem ocorrer tais coisas na Inglaterra. ordinário cuidado em se escolher minuciosamente o corpo de jura
Portanto, as revelações do Leeds Mercury, publicadas menos dos mais dócil possível.132 Dez advogados serviram à Acusação,
de uma semana depois dos levantes, tiveram um efeito catastró­ contra os dois indicados para a Defesa. O julgamento, adiado até
fico sobre a reputação do Governo. Na mesma semana em que se outubro, deu-se numa atmosfera de terror. Os prisioneiros foram
deu o caso dc Pentridge, o dr. Watson enfrentava seu julgamento mantidos a pão e água por semanas, sem poder receber visitas.
por alta traição. A Defesa fez em pedacinhos a principal testemu­ (Nas paredes da Igreja de Todos os Santos de Derby, estava rabis­
nha de acusação, Castle, e o júri teve tempo de conhecer as pri­ cado “ Enforquem Todos os Jacobinos” .) Além disso, o próprio jul­
meiras revelações sobre Oliver, antes de formular o veredicto. Foi gamento seguiu um curso curioso. Todo o país falava de Oliver,
“ Não Culpado” . Esta foi apenas uma entre uma série de derrotas e esperava-se confiantemente que a Defesa tentaria provar a sua
nos tribunais: as absolvições dos “conspiradores” de Glasgow e
instigação. Mas o nome do espião nunca chegou a ser mencionado.
Folley Hall, de Wooler e (em dezembro) de Hone, da acusação
A Acusação (que manteve de reserva, em Derby, Oliver incognitó)
de libelo sedicioso. Embora, durante todo o ano de 1817, muitos
reformadores continuassem presos sob a suspensão do habeas baseou seu pleito nas provas das ações abertas cometidas pelos
corpus, por todo o país cresceu o protesto contra o “ sistema con­ acusados. A Defesa no processo de Brandreth, na pessoa do “ Advo­
tinental de espionagem” . Em vez de isolar os reformadores adep­ gado do Contra”, declarou que o prisioneiro fora instigado e ilu­
tos da “força física” , a reviravolta contra os atos de Oliver uniu dido — não por Oliver — mas por Cobbett e pelas “ publicações
grupos moderados e extremistas. “ As práticas mais abomináveis artificiosas e insidiosas” da imprensa radical:
registradas na história”, escreveu John Wade no Gorgon. Dez anos
N ão posso deixar de aludir ( . . . ) a um a das publicações mais
depois, Francis Place escreveu: “ Desisto de conseguir exprimir
m alignas e diabólicas jam ais editadas n a im prensa inglesa. ( . . . )
adequadamente uma noção corrente da baixeza única, da infâmia
Chama-se “ Um D iscurso aos O ficiais e D iaristas” . . .
detestável, de sua conduta igualmente indigna e assassina” :

Os que aprovaram as Leis de A m ordaçam ento, em 1817, e as 131. Gorgon, 27 de junho de 1818; Wallas, op. cit., p. 123.
Seis Leis em 1819 eram uns tais infam es que, se tivessem agido 132. Ver Hammonds, op. cit., p. 366-8.

248 249
Eram “ as publicações mais nocivas que jamais chegaram às
havia ainda uma outra consideração (talvez mais importante): ter
mãos humanas’’.133 Condenado Brandreth, a Defesa mudou sua
levado Oliver “ a falar de suas conversas com Brandreth só prova­
ênfase, e alegou que seus cúmplices tinham estado sob o feitiço
ria que o plano de insurreição ia além do que era de interesse dos
do seu líder carismático — e Denman comparou o Capitão de
prisioneiros em sustentar” . Na verdade, agora sabemos que a sú­
Nottingham ao Corsário de Byron:
mula dos fatos para a Defesa dos prisioneiros vem endossada com
uma anotação, declarando que a prova de instigação através de
Poucos eram os que se exporiam ao desafio
Oliver “é inadmissível e, se admissível, não atenua a Malignidade
De enfrentar a plenas seu olho inquiridor.
Havia um demônio zombador em seu escárnio do D e lito ...” 136
Que despertava emoções de cólera e temor. É uma explicação plausível. Mas é difícil crer que não pudes­
sem se encontrar formas de procedimento para expor um caso tão
Aos jurados de Derby, essa alegação não pareceu capaz de flagrante de provocações. Ainda que a prova de instigação por
servir como atenuante para os agricultores, por mais que tenha Oliver não pudesse constituir base legal para uma defesa, os jura­
aumentado a fama de Denman entre os advogados. Turner, Lud- dos de Londres e Yorkshire tinham demonstrado quão poderoso
lam e Weightman foram declarados culpados e condenados à era, de fato, o efeito provocado por tais suspeitas. Existem outras
morte; com isso, os prisioneiros restantes, inclusive o reformador explicações possíveis. As autoridades estavam desesperadas por
veterano Thomas Bacon, apresentaram declarações de culpa, enten­ uma condenação. (Lorde Sidmouth estava doente em outubro,
dendo que suas vidas seriam poupadas. Sobre a participação de mas “ tirou mais proveito do término dos julgamentos de Derby
Oliver “ cerrou-se [um] véu” .134 do que tudo que os médicos podiam lhe dar” .) Também estavam
É um caso extraordinário, ainda mais que certos reformado­ dispostas a tomar medidas extraordinárias para impedir que se
res no campo tinham se declarado voluntariamente dispostos a ir introduzisse o nome de Oliver. A partir das súmulas entre os
documentos do Ministro da Fazenda, fica claro que a Coroa ini
até Derby, para depor sobre as atividades de Oliver, mesmo sob
cialmente pretendera julgar antes Thomas Bacon (que não parti­
o risco de se incriminarem pessoalmente.135 Não podemos aceitar
cipara do levante em questão) por traição e insurreição. Mas,
a explicação de que a Defesa não citou Oliver porque, de fato,
embora (como mostra a súmula) a Coroa pudesse ter instaurado
Oliver não tivera nenhuma ligação com Brandreth. Em primeiro
um processo contra Bacon sem recorrer ao testemunho de Oliver,
lugar, sabemos que tinha. Em segundo lugar, Denman também
o velho reformador certamente forçaria a questão de algum modo,
sabia. Antes do julgamento, ele escreveu a um amigo, dizendo
e até conseguiría se defender. Na última hora, a Coroa mudou de
ter razões para crer que Oliver estava por trás de “todo o negó­ tática: “ decidimos não abrir nenhum processo onde o nome [de
cio”. Ao defender sua conduta na Câmara dos Comuns, em 1820, Oliverl possa entrar em questão” . Com Brandreth como réu prin­
ele disse que não tinha “ a menor dúvida” de que o levante fora cipal, foi possível limitar as acusações a atos abertos de rebelião.
instigado por Oliver, “pelas informações que obtivera na época,
Além do mais, os próprios prisioneiros ficaram isolados até
como advogado dos prisioneiros, e que posteriormente reforça­
o momento do julgamento, e talvez não conhecessem a estória
ra. . Contudo, achou imprudente convocar espiões como teste­
inteira do papel de Oliver. Embora seus parentes vendessem tudo,
munhas da Defesa, pois, sob as normas dos procedimentos legais,
até as camas, para conseguir dinheiro para a defesa, foi só no
não podería aplicar o reexame de contradição às suas próprias
outono, quando um radical trabalhador em arames, chamado West.
testemunhas: “como o reexame era impraticável, eles teriam lan­
formou um comitê de defesa em Londres (e, no último momento,
çado todo o peso do seu testemunho contra os prisioneiros”. E
persuadiu Hunt a ir a Derby), que começou a chegar alguma
133. W. B. Gurney, Trials, 1, pp. 198-200.
134. A pena de Weightman foi comutada, e ele acompanhou treze outros 136. J. Arnold. Memoir oj ( . . . ) Lord Denman (1873), 1, p. 116; Hansarcl
deportados. (nova série), I. 267; R. ). White. op. cit.. p. 173. Ver também Nottingham
135. Ver Political Register, de Sherwin, 15 de novembro de 1817. Review . 8 de agosto de 1817.

250 251
ajuda nacional. Na verdade, não é impossível que o Governo Não tenho medo de passar pela sombra da morte para a vida
tenha feito alguma pressão sobre a Defesa. Até no patíbulo, deve- eterna; assim espero que você faça a promessa de Deus como
se o cuidado de impedir que as vítimas exercessem seu direito eu fiz, pela sua alma, de podermos nos encontrar no Céu. (.. .)
tradicional às suas “últimas palavras”, e o capelão interpôs-se Minha amada (...) esta é a relação do que lhe envio — um cesto
pessoalmente entre os condenados e a multidão. A imprensa radi­ dc costura, dois novelos de lã penteada e um de fio de algodão,
cal declarou, com uma certa vivacidade, que houvera um acordo e um lenço, um par velho de meias e uma camisa, c a carta que
com a Acusação, atribuindo as piores intenções ao “ Advogado do recebi de minha querida irm ã.. .138
Contra”. O caso de Brandreth era perdido. Terá a Coroa insinua­
do que seriam poupadas as vidas de alguns, ou todos os seus com­ É desses detalhes, assim como do julgamento, que devemos
panheiros, se a Defesa não mencionasse a participação de Oliver? reconstruir um retrato de Brandreth, e isso por uma razão interes
Ou terá a Promotoria ameaçado implicar muitos outros reforma­ sante. Até o final, ele se recusou “ a dizer onde nasceu, as diversas
dores, se se convocasse o testemunho de Oliver?137 posições que ocupou em vida ou qualquer pormenor relativo à
Mas, nessas especulações, facilmente se esquecem os prisio­ sua família” . Diziam os boatos que tivera várias ocupações c pro­
neiros. Quem era [eremiah Brandreth? Os Hammonds, tipicamen­ vinha de Exeter. Na prisão, declarou-se “ de fé batista”. 'Muito
te, descrevem-no como “ um malharista de bastidor meio morto se falou”, contava Denman a um amigo, “ sobre o patriotismo rigo­
de fome, analfabeto e desempregado” , “ pronto a (. . .) seguir qual­ roso e inflexível do caráter dele”. A um magistrado que tentou
quer proposta por mais violenta que fosse”. São afirmações pejo­ obter uma confissão sua, no cárcere, ele soltou “ uma saraivada dc
rativas. Sabemos que Brandreth não era analfabeto. Se andava insultos e zombaria” , mas em outras vezes manteve-se estranha­
meio morto de fome e sem emprego, o mesmo ocorria com muitas mente silencioso e resoluto.139
centenas de colegas malharistas, principalmente no ramo de “ Ma­
lhas Caneladas de Derbyshire” . em que estava empregado. Sabemos De fato, esses conspiradores nem sempre eram os caipiras
que tinha uma casa em Nottingham, e, quando foi preso, sua mu­ analfabetos que alguns historiadores julgariam.140 Só porque um
lher foi enviada como indigente para seu povoado em Sutton-in- dos seus adeptos achou que um “ governo provisório” tinha algo
Ashfield. De lá, escreveu ao marido, ao saber por ele da con­ a ver com “ provisões”, não precisamos supor que todos fossem
denação: campônios rudes, com palha no cabelo. Vários tinham sido sol­
dados, viajando muito a serviço. Entre os companheiros de Brand­
. . se você (é esta a opinião geral) foi arrastado a isso por aquele reth, William Turner era um pedreiro de 47 anos, que servira
miserável Oliver, perdoe-o, e abandone-o a Deus e à sua cons­ o Exército no Egito e em outros lugares.141 Weightman era um
ciência. Pois Deus dará a cada homem a sua recompensa, embora, serrador — “ um caráter muito civil e decente” , “ um homem pací­
quando falo dele como um ser humano, mal consigo imaginá-lo fico e sóbrio”. Isaac Ludlam “ era um homem com algumas pe­
assim (ainda que sob forma humana). Ó, se eu pudesse expiar
quenas posses, tendo parte da propriedade de uma pedreira” perto
tudo e salvar a sua vida.
de Derby, e “bastante conhecido por alguns quilômetros em tomo
(Mesmo esta carta foi retirada de Brandreth pelo carcereiro.)
Ann Brandreth, não tendo um tostão, foi a pé de Sutton a Derby, 138. Hammonds, op. cit., p. 358; Arnold, op. cit., p. 116; P o litic a l R e g is te r ,
para dar adeus ao marido. A última carta dele a ela foi escrita de Cobbett, 25 de abril de 1818.
com uma letra “ clara, firme e regular”: 139. L e e d s M e r c u r y , 8 e 15 de novembro de 1817; Arnould, op. cit., p. 115.
140. Entre os 35 indiciados nos julgamentos de Derby, 13 eram malha­
ristas de bastidor, 7 eram diaristas, 5 carvoeiros, 2 canteiros, 2 agricultores
137. T. S. 11.351; H. Hunt, M e m o ir s , III, pp. 499-502; B la c k D w a r f , 12 de e 1 de cada: pedreiro, moldador, ferreiro, mecânico, serrador. alfaiaic
novembro de 1817; P o litic a l R e g iste r, de Cobbett, 25 de abril de 1818; T. S. 11.351.
Hammonds, op. cit., p. 368; R. |. White, op. cit., p. 172; E. P. Thompson, 141. I n d e p e n d e n t W h ig , 23 dc outubro de 1817.
op. cit.. pp. 73-4.
253
252
como pregador metodista” .142 Na prisão, confortava-se lendo o É provável que tenha calado sobre Oliver, na esperança de que
Apelo aos Não-Convertidos de Baxter. Os delegados de Yorkshire sua morte expiasse os delitos dos seus companheiros, e a fim
apreendidos eram, em sua maioria, artesãos de nível,143 ao passo de impedir o envolvimento de colegas reformadores. “Brandreth”,
que nove, entre os trinta e quatro acusados após o levante de segundo um relato, “ teria declarado que seu sangue deve ser der­
Folley Hall, eram cortadores de tecido. ramado, assim como ele derramara sangue; mas esperava ser a
Isso sugere uma outra forma de encarar os revoltosos. Um única vítima” . Mas, ao mesmo tempo, “ não sentia nenhuma con­
boato contínuo insinuava que o próprio Brandreth tinha sido um trição” pelo assassinato que cometera. Embora “ pronto a se reunir
luddista — talvez até mesmo um “ capitão” luddista.144 O vaie a qualquer ato religioso” , era “ insensível a qualquer remorso, e à
de Holmfirth, de onde vinham os sublevados de “ Folley Hall”, era prova contra qualquer temor” . “ Deus me deu grande força” , escre­
uma área com ligações constantes com os juramentos luddistas veu à mulher, “ para manter meu ânimo durante o julgamento” .146
de 1812. Pelo menos um dos insurretos tinha “ uma velha Ala- Podemos ver o levante de Pentridge como uma das primeiras
barda que dizia ter sido usada na época luddista” . Um oficial tentativas da história de se empreender uma insurreição totalmente
notou que o atentado veio acompanhado de sinais de luz nas proletária, sem nenhum apoio da classe média. Os objetivos desse
colinas e tiros de aviso: “ o sistema parece ser exatamente igual movimento revolucionário talvez encontrem sua melhor caracteri­
ao praticado na época dos luddistas” . O cortador de tecido de zação nas palavras da canção de rua de Belper — “ A Nivelução
Leeds, fames Mann, pode ter sido um líder do luddismo local, começou.. . ” 147* A tentativa lança luz sobre o extremo isolamento
ao passo que dizia-se que um dos delegados presos em Thornhill a que, durante as Guerras, tinham sido obrigados os trabalhadores
Lees (Smaller) era “um famoso ladrão de armas em 1812”. “Um do norte e das Midlands, e é um momento de transição entre o
Levante no dia 8 ou 9”, informou um magistrado de Leeds, “ foi luddismo e o radicalismo “ populista” de 1818-20 e 1830-32. Mes­
o tema comum de Conversa nas Oficinas dos Cortadores de Tecido mo sem as evidentes provocações de Oliver, provavelmente ter-se-ia
por duas ou três semanas atrás”.145 tentado algum tipo de insurreição, e talvez com maior margem de
Assim, há razões para se supor que alguns dos envolvidos êxito.148 Na verdade, do ponto de vista da Coroa, o principal insti­
não eram bobos, e sim revolucionários com experiência. O longo gador de rebeliões era, não Oliver nem Mitchell, mas Thomas
silêncio de Brandreth tinha um heroísmo que foi pouco entendido. Bacon, que viajara pessoalmente entre Nottingham, Derby, York­
shire, Lancashire e Birmingham.149
142. Leeds Mercury, 30 de outubro de 1817. Foi desmentido na semana Isso, em termos de uma realpolitik, fornece uma pequena
seguinte, por “solicitação’, mas Ludlam pode ter pertencido a uma das
entidades metodistas dissidentes — a Nova Conexão ou os Primitivos. Ver justificativa para os atos de Sidmouth e do Governo. Crendo ine­
também as evidências de B. Gregory. Ver A Formação da Classe Operária vitável alguma revolta, decidiram tratá-la de modo a extrair um
Inglesa, vol. II, p. 281. exemplo de terror e castigo que silenciaria, de vez por todas, a
143. Dois cortadores de tecido, três confeccionistas, um sapateiro, um car­ monstruosa sedição das “ordens inferiores” . Mas isso não significa
pinteiro, um tecelão, um fabricante de cartões c um tavemeiro. Ibid., 14 de
junho de 1817.
144. Ver p. ex. Legislator, l.° de março de 1818, e Lorde G. Cavendish a 146. Independent Whig. 9 de novembro de 1817; Nottingham Review, 24
Fitzwilliam, 25 de agosto de 1817, Fitzwilliam Papers, F. 45(k). Mais notá­ de outubro de 1817.
vel, Brandreth esteve presente à execução de Despard — quando foi dada 147. B. Gregory, Autobiographical Recollections, p. 129. Os homens de
uma explicação sobre as formas de penas por alta traição, ele disse que cra Pentridge se autodenominavam “os Regeneradores’.
dispensável, pois já a presenciara durante o processo do Coronel Despard * "Levelution": jogo entre ulevelling" e *Revolution”. (N . do T.)
(Independent Whig, 9 de novembro de 1817). Dois outros conspiradores da 148. Ver o depoimento de um dos profundamente envolvidos, James Birkin,
época envolveram-se no caso Despard: Pendrill e Scholes de Wakefield. segundo o qual não duvidava de que a insurreição teria estourado “em
Ver também o depoimento de Oliver, atrás, p. 176, n. 233. vários locais em Nottingham, Yorkshire, Lancashire e Staffordshire", sem
145. Wood a Fitzwilliam, 6-7 e 9 de junho de 1817; depoimento de John a intervenção de Oliver (H. O. 42-172).
Buckley; Cap. 1. Armytage a Fitzwilliam; todos em Fitzwilliam Papers, F. 149. The King v. Thomas Bacon, súmula em T. S. 11.351; Lorde G. Caven­
45(i) e (k). Sobre Mann, ver atrás, p. 166. dish a Fitzwilliam, 25 de agosto de 1817, Fitzwilliam Papers. F. 45(k).

254 255
dizer que, em quaisquer circunstâncias em 1817, uma insurreição
após 1817, uma perspectiva resoluta mas constitucionalista. “ Paci­
operária tivesse alguma esperança de sucesso. Todos os detalhes ficamente se pudermos” tomou prioridade sobre “à força se pre­
da estória ilustram a fragilidade da organização revolucionária e cisarmos”. As absolvições de Wooler, Hone, os revoltosos de
a falta de uma liderança experiente. O depoimento do informante Foliey Hall e os protestos contra o “ sistema de espionagem”, por
de Nottingham, que, evidentemente, também foi empregado (com parte de homens como o Conde Fitzwilliam e Coke de Norfolk
conhecimento do Escrivão da Cidade e de Sidmouth) para um (e boa parcela da imprensa), reforçaram a importância de direitos
papel provocador, mostra a posição dos reformadores numa cen­ elementares e da tradição constitucionalista. O fracasso em Pen-
tena de vilas industriais. Em 6 de junho, ele visitou Charles Smith tridge ressaltou o extremo risco de conspiração. Somente o impac­
em Arnold (antes, um notável centro luddista), “ e comecei a falar to de Peterloo (agosto de 1819) devolveu parte do movimento a
com ele sobre o Negócio e lhe perguntei se ele já tinha alguém cursos revolucionários; e a Conspiração da Cato Street (fevereiro
pronto” : de 1820) serviu para reforçar a lição de Oliver e Pentridge. De
1817 até o período cartista, a principal tradição operária foi a que
Ele disse que toda a Cidade estaria pronta, se houvesse probabi­
explorava todos os meios de agitação e protesto, sem uma prepa­
lidade de dar certo, mas não achava que existisse uma possibili­
dade — Ele disse que não se poderia fazer nada a menos que ração insurrecional ativa.
estivessem adequadamente organizados e tivessem um bom líder, Além disso, os Whigs e os reformadores moderados não tar
e aconselhou-me a me manter a salvo das mãos da Justiça, visto daram em utilizar em proveito próprio a lição de Oliver. Na ver­
que a tentativa pretendida só resultaria em muitos enforcados. . .,5° dade, o Leeds Mercury extraiu do desmascaramento uma lição
que, de fato, significava que a classe operária devia se pôr sob a
orientação e proteção dos Whigs e reformadores de classe média.
V. Peterloo Em seu editorial sobre os julgamentos de Derby, ele aconselhou
os reformadores a:
Nos meses seguintes, homens como Charles Smith, aos milha­
res, prantearam Brandreth. À parte Cashman, foi o primeiro der­ . . . evitar como inim igo todo m issionário político que tente
ramamento de sangue no combate. As conseqüências psíquicas instilar os gcrmse m ortais da rebelião em suas m entes ( . . . ) D ora­
foram profundas, e a partir daí tanto o Governo como os refor­ vante, deve-se suspeitar de cada um que fale de q u alq u er força
que não seja a da razão com o espião, inform ante ou incendiá­
madores passaram a considerar a questão como uma clara disputa
rio. . .150151
de poder. E no entanto a influência a mais longo prazo do caso
Oliver foi a de fortalecer a ala constitucionalista, em oposição à Em Londres, o periódico burdettista Independent Whig extraiu
revolucionária, do movimento pela reforma. Uma sublevação sem uma lição muito semelhante: uma das vítimas em Derby, um
Oliver levaria o pânico à classe média, conduzindo-a para o lado pouco antes, no mesmo ano de 1817, tinha cancelado sua assina­
do Governo. Uma sublevação com Oliver alertou os Whigs e os tura do Whig e anunciado sua intenção de assinar o Political
reformadores de classe média por três anos, as principais disputas Regisíer, e o levante foi visto como resultado da propagação das
políticas concentraram-se na defesa das liberdades civis e dos “doutrinas venenosas” de Cobbett.152 Cobbett, por seu lado. via
direitos da imprensa, ao que a própria classe média era mais confirmadas suas advertências contra todos os “clubes e corres­
sensível. O caso Oliver deu ao movimento operário pela reforma, pondências”, ao passo que Hunt, em mais de uma ocasião, viria
a gritar “ Oliver” para silenciar críticos como Watson, Cleary e
Thistlewood. Por mais quarenta anos, o nome de Oliver ressoou.
150. H. O. 40.6. Uma semana antes, Smith dissera ao informante: “Ele
tinha lido sobre muitas Revoluções mas nenhuma que desse certo sem a
cooperação de alguns grandes homens & ele acha que não há nenhum 151. L e e d s M e r c u r y , 30 de outubro dc 1817.
para auxiliar os atuais procedimentos..." 152. I n d e p e n d e n t W h ig , 23 de outubro de 1817.

256 257
como um dobre de finados, na memória de cartistas e reformado- estender às “ ordens inferiores” . Mas se se obtivessem tais direitos,
res adeptos da força física, marcando todos os seus preparativos isso significaria, mais cedo ou mais tarde, o fim do antigo regime:
com uma irresolução fatal. como inúmeros magistrados escreveram ao Ministério do Interior,
Sob um aspecto, Peterloo derivou direta e inevitavelmente de em termos muito semelhantes, se se permitissem reuniões, associa­
Pentridge. Foi o resultado de uma agitação “ constitucionalista” ções ou panfletos sediciosos, onde isso iria parar? Pois ninguém
extraordinariamente poderosa e decidida, de caráter largamente supunha que a estrutura de poder se assentasse apenas sobre os
operário, dentro de um contexto potencialmente revolucionário. quartéis de Pitt. O tecido do poder, fosse no campo ou na vila
O que se mostrou, em 1819, não foi a força, mas a fragilidade corporativa, compunha-se de submissão e medo. Se, de quando em
crescente do ancien régime inglês. Fragmentado e aterrorizado, com quando, eram inevitáveis os tumultos ou greves, esses dois requi­
muitos líderes locais na prisão, o movimento pela reforma, durante sitos ainda deviam ter uma presença suficientemente forte, para
boa parte de 1818, teve pouca expressão organizada. Mas, curiosa­ que a insubordinação se refreasse tão logo a punição dos seus lí­
mente, as autoridades também estavam impotentes. O Governo se deres se convertia em exemplo e advertência.
deparou com uma Londres hostil, onde os jurados tinham se re­ Em 1817, esse mundo vinha desaparecendo. Em 1819, em
cusado a condenar Wooler e Hone, onde sátiras e cartuns burlescos regiões inteiras da Inglaterra, tinha desaparecido. As barreiras da
eram expostos nas janelas, onde disseminavam-se impunemente submissão tinham se enfraquecido com a Dissidência e (a despeito
publicações que, aos olhos das autoridades, eram atrocidades se- de si próprio) o Metodismo. Tinham sido contestadas pelo luddismo
diciosas. Um por um, foram obrigados a libertar os reformadores e pelos Clubes Hampden. Em maio de 1817, Sherwin aprofundou
— Thomas Evans, Gravener Hensen, Knight, Bamford, Johnson, a visão de Thelwall sobre a influência das fábricas sobre o traba­
Bagguley, Mitchell e muitos outros — , mantidos sob suspeita em lhador. “ A natureza da sua profissão obriga-o à associação com
1817. Os libertados recusaram-se à passividade: discursaram em seus companheiros.” É inevitável a discussão política num distrito
encontros, compareceram a jantares em sua homenagem, tentaram
manufatureiro, e os trabalhadores, reunindo seus penies, têm meios
processar o Governo por prisão ilegal. Em Lancashire e nas Mid- de se organizar. O número traz uma ausência de submissão:
lands, ocorreram grandes greves onde sindicatos supostamente ile­
gais desfilaram pelas ruas. A repressão dos anos 1790 tinha sido Se um Aristocrata calha encontrar um Tecelão na rua, e este não
aprovada não só pelos proprietários rurais e muitos patrões, como opta por tirar o chapéu, o homem de posição não pode prejudi­
também por uma parcela da opinião pública entre a classe média cá-lo. Daí brota aquele desprezo em aceitar a grandeza e o
e operária suficiente para silenciar os jacobinos. A repressão de despotismo indigno, que podemos observar em todas as cidades
1817, pelo contrário, provocou um fortalecimento dos reformado­ manufatureiras. E desse desprezo provém (. ..) aquele ódio profun­
res radicais, enquanto que um largo setor da opinião de classe damente enraizado que podemos observar quando ouvimos um
média mantinha-se à distância do Governo. Em 1795, Pitt pôde se homem de mentalidade aristocrática a falar daquelas partes do
apresentar como defensor da Constituição, contra inovações fran­ país onde as fábricas e a informação política floresceram.. .153
cesas. Em 1819, Liverpool, Sidmouth, Eldon e Castlereagh foram
vistos como homens dispostos a eliminar direitos constitucionais Os direitos reivindicados pelos reformadores em 1819 eram
o de organização política, liberdade de imprensa e liberdade de
através de um controle despótico “ continental” .
reunião pública; além deles, o direito de voto. Podemos tomá-los
O ano de 1819 foi um ensaio para 1832. Em ambos, era por ordem. Quanto ao primeiro, a classe operária britânica já se
possível uma revolução (e em 1832 ela era muito próxima) porque tornara — como persistiría por cem anos — talvez a classe ope­
o Governo estava isolado e existiam profundas divergências dentro rária mais “ associável” da Europa. É formidável a facilidade com
da classe dominante. E em 1819 os reformadores apareceram com que os trabalhadores ingleses formavam sociedades no início do
uma força maior do que jamais ocorrera antes, porque apresenta­
ram-se no papel de constitucionalistas. Reivindicavam direitos,
153. Political Register, de Sherwin. 24 de maio de 1817.
alguns dificilmente recusáveis por lei, que nunca se pretendera
25 9
258
século 19. A influência do metodismo e das capelas dissidentes; a
organização conseguiríam se transformar de turba em movimento
crescente experiência dos sindicatos e sociedades amigáveis; as
político. Além disso, embora a legislação de Pitt contra as socie­
formas do constitucionalismo parlamentar, tal como as observadas
dades de correspondência ou delegados nacionais continuasse a
nos palanques ou as mediadas pelos reformadores autodidatas e de fazer parte do código jurídico, quando as “ Leis de Amordaçamento”
classe média até o movimento operário — todas essas influências expiraram em 1818, dificilmente poderia se contestar por lei o
tinham difundido uma inclinação geral pelas formas e qualidades direito de organização local. Os últimos meses de 1818 e os pri­
do constitucionalismo organizativo. Às vezes, até parece que meia meiros de 1819 presenciaram uma série de novos modelos de socie­
dúzia de trabalhadores nem podiam se sentar juntos numa sala sem dades reformadoras locais: a União Política de Stockport; os Pro­
indicar um Presidente da Mesa, levantar uma Questão de Ordem testantes Políticos de Hull; o Fórum Britânico em Londres. Compa­
ou avançar a Questão Anterior: rados às Sociedades de Correspondência ou aos Clubes Hampden,
distinguiam-se por seu caráter aberto. Eram. sobretudo, centros de
. . .fez-se uma Moção “Que só os Líderes de Seções podem debate e discussão política (em Newcastle, chamavam-se “Socie­
votar” — um Cavalheiro levantou e falou o seguinte: — A Mesa! dades de Leitura Política”) e de venda de edições radicais. Como
A Mesa!! A Mesa !!! Desejo que você cumpra com o Seu Dever tal, eram menos vulneráveis a provocações de espiões. Os espiões
de manter a Ordem — depois que ele repetiu isso tantas vezes podiam entrar, mas o que mais podiam fazer?155
que receei pelos seus Pulmões, o Presidente da Mesa gritou
Ordem! Ordem!! e com um vozeirão que me fez tremer. (. . .) Na falta de uma organização nacional, as sociedades locais
Então continuou: — Sr. Presidente, vejo-nos aqui como Mem­ buscaram sua liderança na imprensa radical, [ustamente porque
bros enviados para este lugar aqui, para negociar a questão da essa imprensa fornecia o próprio tecido que impediria a desinte­
Reforma, da mesma maneira que nossa questão seria discutida gração do movimento, uma das exigências radicais prioritárias era
no Parlamento, ao qual nos comparo aqui. (. . .) Então tomou a reivindicação pela mais ampla liberdade de imprensa. 1816-20
Assento e se levantaram outros dois ou três (...) um deles dizendo foram, acima de tudo, anos em que o radicalismo popular assumiu
que tinha apenas umas palavras a dizer Contra aquele Cavalheiro o seu estilo a partir da imprensa manual e dos periódicos semanais.
que tinha comparado esse lugar à Câmara dos Comuns — aquela Esse meio de propaganda estava em sua plena fase igualitária.
Câmara da Corrupção — aquele Antro de Ladrões, como Cobbett A impressão mecânica, movida a geradores de energia, mal come­
bem disse, se ele achava que eles se pareciam com aquela Gente, çara a apontar (começando com The Times, em 1814), e o grupo
de jeito nenhum ele jamais voltaria novamente a esse lugar. . .l54 radical plebeu tinha um acesso tão fácil à imprensa manual quanto
a Igreja ou o Rei. O transporte era lento demais para que os jornais
O relato vem de Manchester. Mas, se é de se crer no relatório nacionais (ou londrinos) conseguissem enfraquecer a posição da
de um outro informante, os Conspiradores da Cato Street, enquanto imprensa de província, mas rápido o suficiente para que os sema­
conspiravam num sótão o assassinato do Ministério, acharam ne­ nários Political Register ou Black Dwarf mantivessem comentários
cessário indicar um Presidente (com uma lança como símbolo do correntes sobre as notícias. Os meios de produção da página im­
cargo) e encaminhar as questões de decapitar Castlereagh e incen­ pressa eram suficientemente baratos para que não fossem muito
diar a Torre de Londres, seguindo os procedimentos adequados, vantajosas as rendas obtidas com anúncios ou investimentos de
submetendo à votação uma moção explícita. capital, embora um periódico radical bem-sucedido pudesse sus­
tentar não só o editor como também os agentes regionais, livreiros
Esse brincar-de-Parlamento era apenas o lado risível da tradi­
e vendedores ambulantes, assim convertendo o radicalismo, pela
ção criativa de organização. Unir-se frente à exploração ou opres­
primeira vez, numa profissão capaz de manter seus próprios agita-
são era a reação quase instintiva de homens como tecelãos e
carvoeiros. Eles mesmos vieram a compreender que só através da
155. Para um relato sobre o impressionante modelo de Stockport. ver
adiante, p. 311; sobre os Protestantes Políticos. Wearmouth. op. cit..
154. H. O. 42.198, reeditado na íntegra em D. Read, op. cit., pp. 219-20. pp. 88 ss.. e Halévy, op. cit.. pp. 59-60.

260 261
dores de tempo integral. Em condições favoráveis, a circulação dos cobertura jornalística admirável, mas (por sua política whiguista ou
textos de Cobbett, Carlile, Wooler e Wade competia, ou até supe­ burdettista) pouco interessado na organização radical. O Examiner
rava de longe, quase todos os jornais estabelecidos.156 de John Hunt funcionava brilhantemente como o semanário da
intelligentsia radical, tendo Hazlitt como colaborador regular. John
Desde a deserção de Cobbett, foi o Black Dwarf a comandar
Thelwall ressurgira para assumir a editoria do Champion. Todos
o maior público de radicais. Seu editor, T. J. Wooler (1786-1853)
esses jornais mantinham-se à distância do movimento plebeu —
era um impressor nascido em Yorkshire, tendo feito seu aprendi­
zado em Shoreditch. e sua iniciação política nas pequenas socie­ John e Leigh Hunt irritaram-se quando confundidos com seu ho­
dades de debates (como a União Socrática, que se reunia na mônimo, cuja “ vulgaridade” os desagradava. (O Examiner afastou-
“Taverna da Sereia5’, em Hackney) e com os periódicos dos anos se, em editorial, do Orador logo depois da primeira manifestação
de guerra.157 Em 1815, fundara The Stage, cuja mescla de sátira em Spa Fields — “ nunca pronuncia uma frase digna de ser ouvi­
brutal e retórica libertária também daria o tom ao Black Dwarf. da” — , com uma discriminação tão flagrante quanto obtusa.)159
Contava com o apoio moral (e talvez os subsídios) do Major Cart- Entre os periódicos com o formato de panfletos, os mais influentes
wright, e tinha uma fluência extraordinária como orador e escritor eram o Political Register, de Sherwin, e o Gorgon. Sherwin fora
— às vezes compondo diretamente seus artigos no prelo. Era um demitido do cargo de guarda da Casa de Correção de Southwell,
defensor coerente da organização radical, segundo o padrão aberto por se declarar discípulo de Paine. Embora mal tivesse 18 anos,
e constitucionalista: seu Register era talvez (junto com o Gorgon) o periódico mais
convincente e bem-escrito. Além disso, ocupa seu lugar na história
Os que condenam os clubes não entendem o que podem realizar, da teoria radical devido à associação de Sherwin com Richard
ou não querem que se faça nada. (...) Observemos e tentemos Carlile, que assumiu inicialmente o controle gráfico e, depois, edi­
imitar a paciente resolução dos Quacres. Eles conquistaram sem torial do Register, transformando-o finalmente no famoso Repu-
armas — sem violência — sem ameaças. Conquistaram pela união. blican.160 O Gorgon, muito barato, tinha uma circulação menor,
restrita a Londres e Manchester. Editado por John Wade, ex-oficial
Os “ Protestantes Políticos” (cujo primeiro clube foi fundado classificador de lã, era o mais sóbrio e respeitável, em termos inte­
em julho de 1818, em Hull), para ele, exemplificavam a forma lectuais. Wade também era o autor do impressionantíssimo Livro
organizativa conveniente, com grupos de no máximo vinte pessoas, Negro, cujas provas, obtidas com uma boa pesquisa, sobre a cor­
uma contribuição semanal de 1 pêni e a função principal de vender rupção parlamentar, sinecuras, acúmulos de cargos e absenteísmos
e discutir publicações radicais. “ Reuniões maiores não se adaptam
na Igreja, o nepotismo e as extravagâncias no Banco e na Companhia
tão bem a discussões.” Um regulamento desautorizava todas as das índias Orientais, foram publicadas em fascículos quinzenais,
“ transações secretas”, e membros que as propusessem seriam
a 6 penies, com uma venda de 10.000 exemplares cada. A prin­
admoestados ou expulsos. “ Nossos livros e contas (. . .) deverão
cipal influência do Gorgon deu-se sobre a teoria em formação do
estar sempre abertos à inspeção dos magistrados.55 Contra tais me­
movimento operário, onde serviu como conexão entre os utilita-
didas (declarava ele) “ serão inúteis os espiões” , e — em seu típico
ristas e os sindicalistas radicais: “ desejamos” (declarou Wade)
estilo tão floreado — “os agentes de um Sidmouth e um Castlereagh
serão tão inofensivos quanto o carrancudo demônio que se sobres­ “que os Ultra-Reformadores, os homens do Sufrágio Universal, a
saltou ao ouvido de Eva com o toque de Ituriel” .158 quem pertencemos, aproximem-se dos Reformadores Moderados”.161

Wooler teve muitos concorrentes. Em Londres, o Independem


159. Examiner, 24 de novembro de 1816.
W hig, de Henry White, era um importante semanário, com uma 160. Durante suas primeiras semanas, o Register de Sherwin usou esse nome.
Sobre Sherwin, ver Wickwar, op. cit., pp. 69 ss., e sobre Carlile, ver adiante,
156. Sobre todos esses pontos, ver adiante, pp. 312 ss. pp. 314-22.
157. Ver entrada em D.N.B. 161. Gorgon, 25 de julho de 1818. Ver também adiante, p. 371, e Wickwar.
158. B la c k D w a r f , 9 de setembro de 1818. op. cit.. pp. 60*1, 67.

262 263
Do outro lado de Wooler e Cobbett, existia uma dúzia de perió­ e desafio.”164 Seria monótono repetir o alarma expresso por magis­
dicos mais ou menos efêmeros, adeptos da força física, sendo o trados ou ministros frente a tal fenômeno. O efeito da imprensa,
mais duradouro entre eles o Medusa: or Penny Politician, editado aos olhos de um observador, foi que:
por Thomas Davison, um livreiro de Smithfield, que trazia edito­
riais sobre temas como “ A Explosão do Sistema Atual” , e advertia uma linha de demarcação foi traçada entre os diferentes níveis
aos seus críticos que: da sociedade, e uma antipatia arraigada e um feroz espírito de
retaliação engendraram-se nas mentes das classes trabalhadoras.165
. . .existem árvores, postes de luz e cordas em qualquer lugar,
se for necessária uma justiça sumária, para dar exemplos com
qualquer infame empedernido e incorrigível, ou qualquer grande No final de 1819, durante o auge das sátiras brilhantes de Hone
ou pequeno espoliador da propriedade.162163* e Cruikshank (A Casa Política que fack Construiu teria vendido
100.000 exemplares), Eldon declarou indignado:
Eram estes os periódicos que irradiavam o radicalismo de
Londres até as províncias, cujos editores, publicadores, livreiros, Quando estava no cargo [como Ministro da Justiça em 1794],
vendedores ambulantes e até pregadores de cartazes estiveram na nunca ouviu falar de carroças cheias de papéis sediciosos para
frente do combate pela liberdade de imprensa entre 1817 e 1822. serem distribuídos em cada aldeia, espalhados pelas estradas,
postos cm chalés. ( ...) Dificilmente existia (.. .) uma aldeia no
Uma grande preocupação entre os radicais era a de aumentar suas
Reino que não tivesse sua lojinha onde só se vendia blasfêmia e
vendas. Mas, à medida que o movimento crescia, os centros pro­ sedição.166
vinciais começavam a desenvolver sua própria imprensa. De longe
o mais impressionante deles era o Manchester Observer, antes
jornal que periódico, cuja circulação no final de 1819 aproximou- “ Dificilmente há uma rua ou um poste na Terra que não
se da do Black Dwarf, com uma sensibilidade para as novidades tenha um cartaz afixado com algo sedicioso”, escreveu “ Fletcher,
do movimento maior do que qualquer concorrente seu. É evidente o Seteiro de Bolton” . Perseguições à parte, houve muitas tentativas
que o Observer estava intimamente envolvido na política de Man­ de “ depreciar Cobbett” em jornais legalistas subsidiados: W hite
chester; a política local suscitou a necessidade de jornais em outros Dwarf de Merle, ShadgetPs Weekly Review of Cobbett, Wooler,
centros. George Edmonds, em Birmingham, travou uma árdua Sherwin, and Other Democratical and Infidel Writers, o Patriot
campanha radical que assegurou a sua eleição, em abril de 1819, de Manchester, e panfletistas grosseiros do grupo de “ )ob Nott” ,
para o Conselho de Guardiães de Birmingham. Ele conduziu sua em Birmingham. (As eternas brigas entre as fileiras dos próprios
luta numa série de Cartas163 que, mais tarde, deram origem ao reformadores forneciam boa parte das matérias desses jornais.)
Edmond's Weekly Register. Em Norwich, onde ainda conservava Podemos pegar um exemplo dessas publicações como indica­
uma certa realidade aquela velha aliança jacobina-WTx/g que ele­ dor do grau de pânico que se teria no final de 1819. É um
gera William Smith para o Parlamento em 1802, a Eleição Geral Reformer’s Guide falsificado (imitando o artigo verdadeiro), publi­
de 1818 gerou um Blue and White Dwarf. Pequenos folhetins sur­ cado em Leeds, e seus orgulhosos autores enviaram um exemplar
giram em Coventry, Dudley, e sem dúvida em outros lugares mais. a Lorde Sidmouth, na esperança de atrair a atenção do Ministro:
“ Lixeiros e faxineiros lêem e discutem política; e diaristas,
oficiais e mestres falam uma única linguagem de descontentamento Uma reforma radical significa uma revolução completa. É uma
mudança de governo, fundada em princípios republicanos, e seu
objetivo é uma nova alteração dos direitos da humanidade. Este
162. M e d u s a , l.° e 29 de maio de 1819. Ver também Wickwar, op. cit.,
pp. 63-4.
163. G. Edmonds. L e tte r s to th e P a rish io n e r s o f B ir m in g h a m (1819). Ver 164. Ver R. K. Webb, T h e B r itish W o r k in g C la ss R e a d e r, pp. 47 ss.
também uma coletânea de panfletos anti-Edmonds (Museu Britânico. 8135 165. A. B. Richmond, N a r r a tiv e . p. 64.
cc. 6); e B ir m in g h a m I n s p e c to r (1817). 166. Ver Wickwar, op. cit., pp. 135 ss.

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é seu verdadeiro caráter, e seus elementos sâo a pilhagem, o cessário comparecer pessoalmente, enquanto, a pequena distância,
assassinato e o massacre. as tropas aguardavam fora do alcance da visão.169
Os reformadores impunham um “princípio nivelador” , e “ se Foi sobretudo em Lancashire que o novo padrão de manifes­
tivéssemos um direito igual à propriedade dos outros ( ...) o mesmo tação reformadora constitucionalista amadureceu inicialmente. Já
argumento (.. .) encobriría e justificaria a violação de suas mulhe­ em outubro de 1816, há notícias de uma manifestação ordeira ao
res e filhas” . ar livre em Blackburn. Em janeiro de 1817, uma reunião em
Oldham veio precedida de uma procissão, completada por uma
Quem são os que lucram com os seus desatinos? Vejam os livrei­ banda, simbolicamente encabeçada por um boticário quacre.170 O
ros políticos. (. . .) De início, como certos répteis venenosos, eram caso Spa Fields — e, a seguir, a experiência de Pentridge — redo­
encontrados em vielas e buracos escuros, e esconderijos, não brou a determinação dos constitucionalistas de refutar as acusações
ousando se mostrar. . . de serem uma ralé desordeira e esfarrapada. O relato de Bamford
sobre os preparativos para Peterloo é bastante conhecido:
Mas agora eles colhiam lucros da credulidade do povo:
fulgou-se conveniente que esse encontro fosse, moralmente, o
Benza a Deus pelas dádivas a você. Não pode fazê-lo honesta­ mais eficiente possível, e exibisse um espetáculo como nunca
mente tendo um caráter sedicioso e insatisfeito. Dê graças por antes visto na Inglaterra. Fomos freqüentemcntc ridicularizados
ser um inglês. (. . .) Leia sua Bíblia. (...) Mantenha sua mulher na imprensa pela nossa aparência suja e esfarrapada (...) pela
c filhas em casa.. ,167 confusão dos nossos procedimentos e pelas multidões semelhantes
a turbas em que nossos membros se aglomeravam...
O terceiro direito reivindicado pelos reformadores constitu-
cionalistas em 1819 era o de reunião pública e manifestação ao ar “ ‘Limpeza’, ‘sobriedade’, ‘ordem’ foram as primeiras exigências
livre. Vinte anos tinham decorrido entre as últimas manifestações determinadas pelo comitê, às quais, por sugestão do sr. Hunt, acres­
da SLC e os encontros de Spa Fields. Durante todo esse tempo, centou-se depois a de ‘paz’.” Foi uma finalidade importante dos
as reuniões políticas populares, em larga medida, permaneceram treinos noturnos ou matinais que precederam 16 de agosto de 1819.
latentes, exceto em época de eleição ou ocasiões em que autori­ Foi também uma função da disciplina e fausto com que os con­
dades Whig locais convocavam reuniões de condado, presididas tingentes se deslocaram até Manchester — um líder para cada cem
pela fidalguia. Nas províncias, a idéia mesma de encontros de tra­ homens (que se distinguia por um raminho novo de louro no
balhadores sob os auspícios de indivíduos de suas próprias fileiras chapéu), as faixas c as grandes bandeiras bordadas (doadas ceri-
era, para a fidalguia legalista, sinônimo de motim e insubordinação. moniosamcnte pelas Uniões Femininas), o conjunto de “ nossas mo­
Quando um magistrado eclesiástico impediu, no início de 1817, a ças mais bonitas” à frente.171
realização de um encontro ordeiro pela reforma em Birmingham, Mas Bamford superestima o caráter inédito dessa disciplina
as palavras que lhe vieram foram “ procedimentos desenfreados e e demonstração, pois as formas assumidas pelos radicais provinham
ignominiosos — clamor e violência de um populacho mal-orientado de várias fontes. As reuniões campais dos metodistas primitivos
— procedimentos tumultuosos ( ...) maquinações de uns poucos contribuíram um pouco, mas sua influência mais clara pode ser
indivíduos ardilosos (. . .) artifícios perversos”.168 Quando se rea­
lizou nas Potteries (em Burslem, janeiro de 1817) o primeiro en­
contro pela reforma ao ar livre, o Conde Talbot.. o Lorde-Encar- 169. H. O. 40.4. O Conde Talbot, porém, ficou favoravelmente impressio­
nado com a ordem da multidão de 3.000 pessoas, e recomendou a Lorde
regado de Staffordshire, e um grupo de magistrados julgaram ne­ Sidmouth que se suprimissem, em vez do direito de reunião, os Clubes
Hampden.
170. H. O. 40.4.
167. R e fo r m e r 's G u id e o r T h e R ig h ís o f M a n C o n s id e r e d (Leeds, 1819).
171. Bamford (ed. 1893), cap. 24, 25.
168. G. Edmonds, L e tíe r to th e I n h a b ita n ts o f B ir m in g h a m (1817), p. 15.

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vista nas reuniões campais dos cartistas do norte. Houve também centes legais.174 Existem evidências crescentes de que, nos anos
uma certa contribuição dos veteranos do Exército que tinham se pós-guerra, os sindicatos “ ilegais” vinham mostrando abertamente
convertido em sargentos radicais de treinamento. Os reformadores sua força. Os mineiros de Dewsbury percorreram a cidade, em
deveram muito mais à tradição política radical, aos sindicatos e 1819, com faixas e bandeiras flutuantes; os malharistas de bastidor
às sociedades dc amigos. Desde a época de Wilkes, o povo lon­ fizeram manifestações ordeiras em Nottingham em 1819; em Man-
drino deleitava-se com o cerimonial das grandes ocasiões políticas. chester, durante a grande greve de 1818, os fiandeiros “marcharam
Mesmo o austero Comitê de Westminster de Place gastou mais nas por Piccadilly na terça-feira e demoraram 23 1/2 minutos para
comemorações da vitória em 1807 do que em toda a campanha passar”, relatou o informante, Bent: “ Um homem de Cada oficina
eleitoral.172 Cada grande ocasião era planejada por um comitê é escolhido pelo Povo e ele os comanda, forma-os em Filas e ( . . . )
especial, que dispunha sobre a ordem da procissão, seu itinerário, obedecem-no tão Estritamente como o Exército obedece ao seu
os emblemas e divisas convenientes a serem exibidos, a disposição Coronel e com tão Pouca Conversa como num Regimento” .175
das faixas e bandeiras. Quando Henry Hunt fez sua entrada “ A conduta pacífica de tantos milhares de Homens desempre­
triunfal em Londres, em 15 de setembro de 1819 (no intervalo gados não é natural” , comentou o general Byng na ocasião. É uma
entre Peterloo e seu julgamento), as ordens-do-dia ocupavam uma frase que merece reflexão. A fidalguia, que depreciava os reforma­
coluna inteira em tipo miúdo: “ Algumas centenas de homens a pé dores como uma ralé, estava assombrada, e alguns até foram to­
carregando grandes ramos de carvalho, choupo &c.” , “ Um homem mados de pânico quando descobriram que não eram tal ralé.
a pé, carregando o emblema da união — um feixe de varas fin­
cado num forcado.. . ”, “ Os Comitês, carregando bastões brancos, . . .aquela mesma ORDEM que antes enalteciam
e todos trazendo laços de fita vermelha e folhas de louro nos Irritou-os depois de mil vezes mais,
chapéus”, “ Uma bandeira de seda verde, com letras douradas e o Quando viram que esses homens, em seus “Trajes Radicais”,
emblema da Irlanda”, faixas, homens a cavalo, “ Uma bandeira Marchavam pacificamente, com seus Estandartes e Bandeiras.176
branca encimada e bordada com crepe”, com inscrições em negro
pelas vítimas de Peterloo, “ A velha bandeira vermelha, com a O comentário, de Newcastle, adapta-se com força redobrada a
inscrição ‘Sufrágio Universal’”, uma carruagem com os srs. Watson, Manchester. Norris, o Presidente do Tribunal, ao prender Hunt
Thistlewood, Preston e outros amigos d o s r . Hunt, mais faixas, para o julgamento depois de Peterloo, falou (talvez numa auto-
mais bandeiras, mais homens a cavalo, o sr. HUNT ( ...) e assim justificativa) de um encontro:
por diante, até o final da página. Até um cachorro levava um
emblema, inscrito como “ Não ao imposto sobre os Cães” , em sua reunido, com tais insígnias e de tal maneira, com a bandeira
coleira. “ Eu levaria um dia inteiro e um caderno todo para lhe negra, o punhal sangrento, com “Representação Igual ou Morte”.
dar alguns detalhes”, escreveu Keats ao seu irmão George. “Toda (...) Vieram de modo ameaçador — vieram sob os estandartes da
morte, com isso mostrando que pretendiam derrubar o Governo.177
a distância que vai do Anjo em Islington até a Coroa e Âncora
estava forrada de multidões.” 173
Bamford reconhecia que a bandeira, preta como breu, da
Essa tradição, evidentemente, era menos forte no norte, que
União de Lees e Saddleworth, trazendo em tinta branca a palavra
não dispunha de nenhum Burdett nem de eleições westminsterianas.
“Amor”, duas mãos dadas e um coração, era “ uma das coisas mais
Aqui, mais influentes eram os sindicatos e as associações de amigos, sepulcrais que se poderia inventar”. Mas, mais que as bandeiras,
fá observamos o cerimonial medieval das Guildas de Preston e dos
penteadores de lã, do qual muito extraíram as sociedades benefi­ 174. Ver A Formação da Classe Operária Inglesa, vol. II, pp. 320-22.
175. Dewsbury, ver Aspinall, op. cit., p. 341; Nottingham, ver ibid., p. 320;
172. Ver atrás, p. 25. Manchester, ver The Skilled Labourer, p. 100.
173. Cap of Liberty, 15 de setembro de 1819; Independent Whig, 19 de D6. “Bob in Gotham", Radical Monday (Newcastle, 1821), p. 4.
setembro de 1819; John Keats, Works (Glasgow. 1911). V. p. 108. 177. Um Observador, Peterloo Massacre (Manchester, 1819), p. 46.

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o que suscitou tanto alarma foi a disciplina dos sessenta ou cem insurreição. Wooler e Hunt tinham alcançado, sem nenhuma “ cor­
mil homens reunidos em St Peter’s Fields. O treino, nas semanas respondência” secreta ou sistema de delegados, uma posição de
que precederam ao encontro, às vezes feito por veteranos de onde poderíam convocar um movimento nacional. A eleição (em
Waterloo — de vez em quando com bastões no ombro como Birmingham, em julho) de Sir Charles Wolseley, como “ advogado
mosquetes ou aplausos imitando disparos — , deu um colorido às legislativo” que representaria os não-representados. indicava a via
palavras das testemunhas de acusação, que falavam de uma “ for­ para um desenvolvimento ainda mais perigoso: uma Convenção
mação militar”. (O próprio Hunt tinha desaprovado esse “ brincar Nacional, indicada por votos radicais, a contestar o Parlamento.
de soldados*’.) Para além dessa reação circunstancial, porém, de­ Confrontada por esse poder crescente, a Velha Corrupção se de­
vemos entender o medo mais profundo evocado pela evidência de parou com as alternativas de enfrentar os reformadores com a
conversão da turba em uma classe disciplinada. repressão ou a concessão. Mas a concessão, em 1819, significaria
Mesmo os reformadores de classe média presenciaram alar­ concessão a um movimento reformador amplamente operário; os
mados esse desenvolvimento: a “ afobação e perda de tempo” da reformadores de classe média ainda não estavam fortes o suficiente
“ constante sucessão de encontros”, as “ resoluções violentas” e (como viriam a estar em 1832) para oferecer uma linha de avanço
os “ discursos imoderados” , tudo provoca “um imenso dano — que mais moderada. Foi por isso que ocorreu Peterloo.
impede totalmente que os moderados lhes desejem sucesso” .178 É preciso repeti-lo, visto que recentemente se sugeriu que
Para as autoridades legalistas, parecia um repto entre a ordem e Peterloo fora um caso em parte não-premeditado, em parte deri­
a perda de qualquer autoridade moral, e mesmo física. “ Armados vado das relações exacerbadas dentro de Manchester, mas de forma
ou desarmados, Senhor” , escreveu um legalista de Yorkshire, nenhuma, parte de uma política deliberada da repressão governa­
mental. Sr. Donald Read, num estudo sobre Peterloo que se es­
considero essas reuniões, como a realizada em Manchester, como
nada mais nada menos que sublevações do povo; e creio que força muito em situar o acontecimento em seu contexto local,
essas sublevações do povo, se se permitir continuarem, termina­ sustenta a idéia de que:
rão em rebelião aberta. . .179
Peterloo, como mostram as evidências do Ministério do Interior,
Era instantâneo o efeito de cada manifestação sucessiva sobre nunca foi desejado nem precipitado pelo Ministério Liverpool,
como atitude repressiva cruenta para subjugar as ordens inferiores.
o moral dos reformadores. A cada brecha nas comportas da sub­
Se os magistrados de Manchester tivessem seguido o espírito da
missão, jorravam as águas da insubordinação. O moral de cada política do Ministério do Interior, nunca teria ocorrido um
tecelão ou sapateiro individual subia com a confiança reconfor­ “massacre”.
tante dos números, do cerimonial, da retórica. Se a organização
aberta do povo tivesse prosseguido em tal escala, teria se tornado Provavelmente, nunca conseguiremos determinar com exatidão se
impossível governar. As semanas antes de Peterloo viveram inú­ Liverpool e Sidmouth participaram ou não da decisão de dispersar
meras reuniões pequenas e (a cada semana) manifestações cada vez à força a manifestação.181 Mas, em termos da política local de
mais impressionantes nos centros regionais: em junho, Manchester
e Stockport; em julho, Birmingham, Leeds e Londres.180 A política 181. Loc. cit., p. 207. O Sr. Read deu grande peso (p. 120) a uma carta
do constitucionalismo aberto vinha se mostrando, em suas impli­ de Sidmouth, de doze dias antes de Peterloo, aconselhando os magistra­
cações, mais revolucionária do que a política da conspiração e dos de Manchester a “se abster de qualquer atitude de dispersar a turba".
Mas, se Sidmouth e os magistrados chegaram a qualquer “decisão sobre
Peterloo”, é provável que tenha sido a nível secreto, na semana anterior
178. Manchester Gazette, citado em D. Read, op. cit., p. 71. à manifestação. E é altamente improvável que se deixasse qualquer re­
179. Um Proprietário Livre de Yorkshire, A Letter to S. W. Nicholly Esq. gistro, para posterior inspeção, entre os documentos oficiais do Ministério
(1819), p. 8. do Interior. A correspondência “Privada e Secreta" entre Hobhouse, Byng
180. Ver Halévy, op. cit., pp. 62-3. e Norris (em H. O. 79.3) é curiosamente ambígua. Várias cartas (que têm

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Manchester, conseguimos entender tão pouco o significado de Pe- não foi premeditada, parece ter sido o sinal para o que esperava
terloo quanto entenderiamos a importância estratégica de Waterloo o Governo.*182
em termos do campo e das ordens-do-dia. Se o Governo não estava Lorde Liverpool declarou que a ação dos magistrados de Man­
preparado para as notícias de Peterloo, nenhuma autoridade jamais chester fora “ substancialmente correta”, embora não inteiramente
agiu com tanta energia para se tornar cúmplice depois de consu­ “ prudente”. “ Não restou alternativa senão a de apoiá-los.” Em
mado o fato. Em quinze dias, as congratulações de Sidmouth e os alguma medida, o confronto era inevitável. Mas o que tornou-o
agradecimentos do Príncipe Regente foram comunicados aos ma­ menos que “ prudente” foi sua singular brutalidade, e para expli­
gistrados e militares, “ por suas medidas prontas, decididas e efi­ cá-la precisamos ver o contexto de Manchester. Prevalecia um
cientes para a preservação da paz pública” . Os pedidos de um antagonismo excepcional entre os legalistas e reformadores operá­
inquérito parlamentar foram energicamente recusados. O Ministro rios de Manchester. isso, em parte, resultava da maturidade do
e os Procuradores Gerais ficaram “plenamente satisfeitos” com a movimento operário; por outro lado, derivava de vários fatores:
legalidade das atitudes dos magistrados. O Lorde Chanceler (Eldon) os sentimentos legalistas de muitos dos grandes estabelecimentos
foi da “clara opinião” que a reunião “era um ato aberto de trai­ comerciais e industriais; sua oposição contra as uniões sindicais;
ção” ; via à frente “ uma chocante opção entre um governo militar o legado do luddismo e dc 1817; a influência de Nadin; a influên­
e a anarquia”. Começaram as perseguições oficiais não contra os cia dos religiosos Tory. “ Esses milicianos voluntários e magistrados
perpetradores, mas contra as vítimas do dia — Hunt, Saxton, de Manchester são uns brutos maiores do que você possa imaginar ’,
Bamford e outros — , e a intenção inicial de acusá-los de alta escreveu Place a Hobhouse:
traição só foi abandonada com relutância. Se foram os magistrados
de Manchester a iniciar a política de repressão, o Governo endos­ Conheço um desses sujeitos que pragueja: “ Malditos sejam, sete
sou-a com todos os recursos à sua disposição. Hunt, Cartwright, xelins por semana é mais do que bom para eles” ; e quando faz
Burdett, Carlile, Sir Charles Wolseley, Wroe (do Manchester a ronda para ver quanto os seus tecelãos fizeram cm seus teares,
Observer), Edmonds (de Birmingham) são apenas alguns dos leva consigo um cão bem-nutrido. ( . . . ) Ele disse algum tempo
que. no final de 1819, estavam presos ou aguardavam processo. atrás que “ Os filhos das putas acabaram com todas as agulhas
Hay, o destacado membro clerical da magistratura de Peterloo, foi de malharia por quinze quilômetros em torno de Manchester, e
recompensado com o benefício eclesiástico de Rochdale, de 2.000 agora não têm verdura para a sopa” . Ao exprimir minha indigna­
ção, ele disse: “Malditos sejam, o que você tem que se preocupar
libras. O Conde Fitzwilliam, por ter protestado contra o massacre,
com eles? Como eu ia vender a você produtos tão baratos, se
foi removido do seu cargo de Lorde-Encarregado. As Seis Leis
fosse me incomodar minimamente com eles?” .
selaram o que o dia 16 de agosto iniciara. Se a decisão de Peterloo
“ Eles esmagaram e pisotearam o povo; e então isso ia acabar da
o ar de destinadas “para os registros") reprovam ações “precipitadas" ou mesma forma como acabaria um esmagamento e pisoteamento de
violentas contra a multidão (pastas 479, 480, 483); mas há um certo ar moitas de tojo em alguma terra comunal.” 183 Um colaborador do
inédito de antecipação, dá-se um endereço secreto de correspondência para Manchester Observer, na semana anterior a Peterloo, dirigiu-se aos
Norris (Presidente do Tribunal de Manchester) (pasta 489) e, dois dias
“fidalgos oficiais de Manchester” : “ Desafio os adeptos sanguiná
depois de Peterloo, Hobhouse registra a satisfação de Sidmouth na avalia­
ção do Coronel l/Estrange, em "seu emprego da Milícia Montada na rios de Danton, Marat, Robespierre a apresentar um bando mais
Linha de Frente, em concordância com o Plano que sei que você pretendia
agir" (pasta 510). Minha opinião é: (a) que as autoridades de Manchester
pretendiam seguramente empregar a força, (b) que Sidmouth sabia — e 182. Ver in te r alia C. D. Yonge, L i f e o f L o r d L iv e r p o o l (1868), II, pp. 378.
concordava — com a sua intenção de prender Hunt no meio da assembléia 409, 419-22, 432; H. Twiss, L i f e o f L o r d E ld o n , II, pp. 337-40; Wickwar.
e de dispersar a multidão, mas que não estava preparado para a violência op. cit., pp. 129-31, p a s s im ; Pellew, L ife o f L o r d S id m o u th . pp. 283 ss.
com que isso se efetivou. 183. Wallas, op. cit., p. 141.

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despótico e tirânico” .184 Um mês depois de Peterloo, um magis­ nheciam os oradores pelo nome e tentaram acertar velhas contas,
trado eclesiástico concedeu-se o privilégio do Supremo Tribunal, e que, ao fim do seu triunfo, reuniram-se e deram vivas. “ Havia
para dizer aos acusados: zunidos para cá e zunidos para lá”, declarou um fiador de algodão:
“ sempre que alguém implorava ‘piedade’, eles diziam 'Dane-se, o
Para mim, você é um reformador patife total. Alguns de vocês que te trouxe aqui?’ ” Podemos ter uma idéia do confuso campo
reformadores deviam ser enforcados, e alguns de vocês serão de batalha com a seguinte passagem:
certamente enforcados — a corda já está nos seus pescoços.. .185
Apanhei um Barrete da Liberdade; um homem da Cavalaria veio
Há duas questões em Peterloo que, de alguma forma, desapa­ atrás de mim e exigiu-o; recusei a entregar-lhe. Então vieram
receram de relatos recentes. A primeira é a efetiva violência san­ dois outros e perguntaram o que estava acontecendo, e o primeiro
grenta daquele dia. Foi realmente um massacre. Não precisamos disse: esse sujeito não entrega o Barrete da Liberdade. Um dos
repetir uma vez mais sua exposição detalhada.186 Mas, apesar do outros então disse: dane-se ele, derrube-o. Com isso, corri. ( . ..)
Um da Cavalaria atacou Saxton, mas seu cavalo parecia inquieto,
que alguns dos tecelãos treinados pudessem ter em mente, Hunt
e ele errou o golpe. Então gritou para um outro: “ Ê Saxton,
empenhara-se efetivamente, na semana anterior ao acontecimento, dane-o e, persiga-o”. O outro disse: “Prefiro não, deixarei para
em garantir a obediência ao seu pedido de “calma e ordem” e você”. Quando cheguei no final da rua Watson, vt dez ou doze
“postura constante, firme e moderada”. Os líderes dos contingentes da Cavalaria da Milícia Montada e dois Hussardos investindo
tinham avisado seus seguidores para que ignorassem todas as pro­ contra o povo, que estava muito comprimido, quando um oficial
vocações. Muitos bastões — ou “ bengalas” — tinham sido deixados dos Hussardos cavalgou até seus homens, e golpeando suas espa­
para trás. A presença de tantas mulheres e crianças era uma prova das disse: “Malditos sejam, o que vocês querem com isso?”
esmagadora do caráter pacífico de uma manifestação que (sabiam Então gritou para os Voluntários: “Que vergonha, cavalheiros;
os reformadores) toda a Inglaterra observava. Pelo veneno do pâ­ o que vocês pretendem? O povo não consegue escapar”. Por um
nico, recaiu o ataque sobre essa congregação de gente. tempo desistiram, mas tão logo o oficial seguiu para outro lado
Mas o pânico não foi (ao contrário do que se sugeriu) o pânico do campo, voltaram à carga.188
de maus cavaleiros cercados por uma multidão. Foi o pânico do
ódio de classe. Foi a Milícia Montada — os manufatureiros, nego­ Não há outro termo para isso a não ser guerra d e classe. Mas
ciantes, taverneiros e lojistas de Manchester, a cavalo — que fez foi uma guerra pateticamente unilateral. O povo, totalm ente aper­
mais danos do que os efetivos regulares (hussardos). Entre a Mi­ tado, uns pisando nos outros ao tentar escapar, não procedeu a
lícia Montada (declarou um reformador de classe média), “existem nenhuma retaliação até as fronteiras do campo, onde uns poucos
( ...) indivíduos cujo rancor político se aproxima da loucura restantes sem escapatória — vendo-se perseguidos de volta às ruas
absoluta”.187 Foram os que perseguiram os porta-estandartes, co­ e pátios — atiravam cacos de tijolo contra seus perseguidores.
Onze foram mortos, ou morreram em conseqüência d e ferimentos.
184. Manchester Observer, 7 de agosto de 1819. Naquele fim de tarde, podiam-se ver os feridos em todas as estradas
185. The Times, 27 de setembro de 1819.
186. Ver os relatos em Bamford, Prentice, J. E. Taylor; os informes con­
temporâneos de Tyas em The Times, de Baines no Leeds Mercury e de um agente corretor, um professor de dança, um comerciante d c queijos, um
Carlile no Political Register de Sherwin; as provas das testemunhas e açougueiro etc.; Address to the Radical Reformers, 29 de outubro de 1822,
participantes do Trial de Henry Hunt, o ínquest on John Lees de Oldham pp. 13-6. Ver também D. Read, op. cit., p. 81.
e o processo contra o coronel Birley; F. A. Bruton, The Story of Peterloo 188. ínquest on John Lees, 1820, pp. 70, 180. Compare-se com o relato
(1919) e Three Accounts of Peterloo (1921), e (em defesa) ÍFrancis Philips!. de Tyas em The Times: “Dois Cavaleiros da Milícia voluntária avançaram
An Exposure of the Calumnies &c. (1819). contra Saxton. ‘Lá ( . . . ) está aquele infame, Saxton; atravesse-lhe o corpo.’
187. ). E. Taylor, op. cit., pp. 175-6. Hunt publicou uma lista das profis­ — ‘Não’, respondeu o outro. ‘Prefiro não — Deixo para você'. O homem
sões da Milícia Montada que realmente esteve no 16 de agosto; incluía imediatamente deu uma estocada em Saxton".
diversos filhos de taverneiros e manufatureiros, um comerciante de vinhos.
275
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que saíam de Manchester. O Comitê de Assistência de Peterloo, tivera que passar pelas varas dos guardas especiais, que espanca­
no final de 1819, tinha autenticado 421 pedidos de auxílio pôr ram-no com seus bastões: o General Clay “com uma grande vara
ferimentos recebidos em campo (outros 150 casos ainda aguarda­ bateu-lhe na cabeça com ambas as mãos, quando estava subindo
vam investigação). Entre eles, 161 casos eram ferimentos por sa­ os degraus até a casa do Magistrado”, golpe que desmontou sua
bres, e os restantes correspondiam a ferimentos sofridos com o famosa cartola branca e “ afundou-a em seu rosto” . A despeito
pisoteamento da multidão ou os cascos dos cavalos. Mais de 100 desse tratamento, quando saiu da casa (lembrava um adversário
feridos eram moças e mulheres. Embora alguns pudessem ser im­ imparcial):
postores, por outro lado muitos feridos, decerto, não pediram
assistência porque os ferimentos eram leves ou temiam persegui­ Pensei perceber um sorriso de triunfo em sua fisionomia. Uma
ções.189 Podemos deixar o campo de batalha com o retrato ines­ pessoa (creio que Nadin) ofereceu-se para tomá-lo pelo braço,
quecível de Bamford: mas ele recuou, e numa espécie de murmúrio disse: “Não, não,
é algo até muito bom .. ”192
Em dez minutos (...) o campo era um espaço livre e quase
deserto. (...) Os palanques ficaram com uns poucos mastros de Por vários dias, as conversas imediatas em Lancashire eram
bandeira de pé, rachados e quebrados, e um ou dois estandartes sobre vingança. Manchester parecia estar sob lei marcial; houve
pendentes, rasgados e retalhados; enquanto que por todo o campo motins e rumores de que o povo “ do campo” estaria avançando
espalhavam-se coifas, barretes, chapéus, xales e sapatos, e outras em ordem militar; Bamford descreveu o afiar de foices e o pre­
peças de roupa masculina e feminina, pisados, rasgados e ensan­ paro de “velhas machadinhas ( ...) chaves de fenda, espadas enfer­
guentados. A Milícia Montada tinha apeado — alguns afrouxavam rujadas, lanças e molhos de pregos” .193 Mas, no final de agosto, o
as cilhas dos cavalos, outros arrumavam seus equipamentos, e impulso insurrecional se deteve e estacionou com a evidência do
alguns limpavam seus sabres. . ,190 enorme apoio moral no país. O próprio epíteto — “ Peter-Loo” * — ,
com sua confiança ferozmente sarcástica, mais do que qualquer
A segunda questão sobre Peterloo que, de alguma forma outra evidência, mostra o teor dos sentimentos. Nas semanas se­
escapou à análise, é a simples dimensão do acontecimento, em guintes, a agitação da imprensa radical aumentaria ainda mais com
termos do seu impacto psicológico e múltiplas repercussões.191 Foi as sátiras inspiradas de Cruikshank e Hone; os “carniceiros” de
inquestionavelmente uma experiência formadora na história polí­ Manchester se viram às voltas não só com a retórica libertária, a
tica e social britânica. Mais uma vez, como em Pentridge, podemos todo vapor, de Hunt e Wooler, mas também com zombarias impie­
distinguir entre as repercussões a curto e a longo prazo. Dois dias dosas, bem mais difíceis de suportar. “ Eis O POVO todo esfarra­
depois de Peterloo, toda a Inglaterra estava a par do ocorrido. pado e rasgado”, dizia A Casa Política que )ack Construiu:
Em uma semana, cada detalhe do massacre era discutido em cerve­
jarias, capelas, oficinas, residências. À primeira vista, é difícil per­ Que maldizem o dia em que nasceram.
ceber qualquer padrão claro de reação. A nota principal, entre os Por conta dos Impostos excessivos a arcar,
E rezam por socorro, da noite à manhã,
reformadores e seus adeptos, certamente era não de alarma, mas
Que, em vão, fazem todo tipo de Petição,
de indignação, fúria ou compaixão. Já no campo, Henry Hunt (que Que, pela Reforma em pacífica Reunião,
mostrou o melhor de si durante o momento de crise) parecia sentir Sentiram os sabres da Milícia Montada,
que, para os radicais, Peterloo era uma vitória moral. Fora pessoal­
mente vítima da violência da Milícia Montada. Após sua prisão,
192. F. A. Bruton, Three Accounts of Peterloo, pp. 20-1, 68.
193. Bamford, op. cit., p. 163; ver também Independent Whig, 22 de agosto
189. ). E. Taylor, op. cit., p. 170. de 1819.
190. Bamford, op. cit., p. 157. * Peter-Loo, o hífen aí colocado acentua o Loo na pronúncia. Torna-se
191. Ver. porém, a útil discussão sobre a seqüência imediata de Peterloo assim um trocadilho com Waterloo. O acontecimento de Peterloo. teria sido
em Read, op. cit., cap. 9-14. a Waterloo dos pobres. (N . do T.)

276 277
Com os agradecimentos do HOMEM barbeado e aparado,
Todo recoberto de Ordens — e todo deplorável; (com declarações grosseiras) do seu lado.196 Mas se muitos fidalgos
O DÂND1 SEXAGENÁRIO que se curva com graça e profissionais liberais ficaram chocados com Peterloo, ao mesmo
E tem gosto por perucas, golas, rendas e couraça, tempo não tinham nenhuma vontade em despertar outras manifes­
Que a trapaceiros e tolos deixa o Estado e seu tesouro, tações gigantescas do povo.197 Assim, o efetivo movimento após
E quando a Grã-Bretanha chora, passeia à vontade. . . Peterloo, que se voltou do clamor por “vingança” para formas de
protesto constitucionalistas, foi de iniciativa e caráter largamente
Até o discurso do Príncipe Regente, na abertura do Parlamento, operário.
foi matéria de outra paródia: Se Peterloo pretendera sufocar o direito de reunião pública,
teve conseqüências exatamente contrárias. A indignação redundou
mas quê!
em organização radical onde nunca existira antes, e realizaram-se
CONSPIRAÇÃO e TRAIÇÃO à solta!
Esses diabretes das trevas gerados no ventre manifestações abertas em regiões até então sob o feitiço dos “ lega­
De rocas, rodas de novelo e teares, listas” . Em Coseley, perto de Wolverhampton, formou-se uma
Em Lunashire — União Política — a primeira naquela área da Região Negra (i.é.,
ó Deus! mineira). “ O descontentamento” , queixou-se um juiz de paz local,
Meus S~es e C-lh-os, temos muito a temer! nessas redondezas certamente não pode provir da miséria, pois
Reforma, Reforma, grita a porca ralé — em questão de emprego e Salários os Trabalhadores nas Minas e
Claro que significando rebelião, sangue e motim — Fundições estão talvez numa situação melhor do que as Classes
Velhacos atrevidos! vocês, meus Senhores, e eu Trabalhadoras em qualquer outro ramo no reino.198
Sabemos que sua obrigação é morrerem de fome calados. . .194

Peterloo violou toda a crença e pressupostos do “ inglês livre A adesão mais notável ao movimento veio de Newcastle, e
dos mineiros de Northumberland e Durham. Aqui — apesar de
de nascimento” — o direito de livre expressão, a vontade de um
uma tradição contínua de radicalismo desde os anos 1790 (Bewick
“ jogo limpo” , o tabu contra o ataque a indefesos. Por um certo
e seus companheiros artífices e artesãos, e as sólidas associações
tempo, os ultra-radicais e os moderados deixaram de lado suas
de amigos e sindicatos) — , a facção da “ Igreja-e-Rei” controlava a
diferenças, num movimento de protesto ao qual muitos Whigs
Corporação e tinha intimidado os reformadores contra uma orga­
estavam dispostos a se associar. Realizaram-se reuniões de pro­
nização aberta. Tinha “ sido por muito tempo motivo de orgulho
testo: em 29 de agosto, em Smithfield, com o dr. Watson na presi­
para a facção Pitt”, escreveu o Independent Whig, “ que a popu­
dência e Arthur Thistlewood como orador; em 5 de setembro,
lação dessa parte da Inglaterra fosse totalmente passiva e destituída
uma reunião muito mais ampla em Westminster, com Burdett, Cart-
de espírito”. Em julho e agosto de 1819, as “ Sociedades de Leitura”
wright, Hobhouse e John Thelwall entre os oradores.195 Quando, radicais deram origem aos Protestantes Políticos (segundo os mol­
dez dias depois, Hunt fez sua entrada triunfal em Londres, The des recomendados pelo Black Dwarf). Depois de Peterloo, o dis­
Times calculou 300.000 pessoas nas ruas. trito inteiro pareceu voltar-se para os reformadores. Em 11 de
Ninguém que estude a reação aos acontecimentos de Peterloo
pode supor que a tradição do “inglês livre de nascimento” fosse
meramente conceituai. Nos meses subseqüentes, o antagonismo po­ 196. H. O. 42.198. O Comitê das Escolas Dominicais de Manchester resol­
veu (24 de setembro de 1819) expulsar todas as crianças que compareciam
lítico se acentuou. Ninguém podia permanecer neutro; na própria com chapéus brancos ou distintivos radicais. Ver, porém, D. Read, op. cit.,
Manchester, os “legalistas” ficaram extremamente isolados, e os p. 203, sobre as dissensões entre os metodistas.
metodistas foram a única entidade com apoio popular a se pôr 197. Houve exceções, por exemplo: em Yorkshire e Norfolk, rcalizaram-se
reuniões de protesto sob os auspícios Whig.
198. H. O. 42.98. O comitê consistia de dois padeiros, um ferreiro, um
194. W. Hone (com Cruikshank), The Man in the Moon (1819). agente de minas de carvão, um malhador dc forja, um carvoeiro, um
195. Independent Whigt 29 dc agosto, 5 dc setembro de 1819. pequeno agricultor e um sapateiro.

278 279
outubro, foi convocada (com a permissão do Prefeito) uma mani­ Contra essa ameaça, os legalistas de Newcastle formaram uma
festação de protesto ao ar livre. Esperava-se que a “ relativa esta­ Associação Armada. Contra a Associação Armada, os mineiros e
bilidade” do setor carvoeiro, juntamente com a ameaça, por parte forjadores, por sua vez, começaram a se armar. São as preliminares
de certos exploradores de minas, de demitir os empregados que para a guerra civil. Fomos excessivamente influenciados pelo re­
comparecessem, restringiria a adesão. No caso, trato que Bamford nos apresentou sobre a reação sóbria e contida
de todos, à exceção de uns poucos esquentados, a Peterloo. Pois,
Do Norte, do Sul, do Leste, do Oeste, os RADICAIS vieram até em outubro e novembro, o próprio constitucionalismo radical to­
a Cidade, em fila sêxtupla, mou um rumo revolucionário. Se seus adversários estavam armados
e agiam inconstitucionalmente, eles também, então, exerceríam o
com o acompanhamento de uma banda que tocava “ Johnnie Cope, direito (tão proclamado pelo Major Cartwright) de portar armas.
você já está andando?” Se as reuniões iam ser subjugadas, então compareceríam a elas
De cinqüenta a cem mil pessoas “ puseram-se em marcha, com meios de defesa. Os meios mais usuais eram lanças, paus rijos
como que por mágica” , e os observadores ficaram assombrados em com um entalhe na ponta onde podia se encaixar uma lâmina
ver não só os temidos carvoeiros, mas também os marinheiros de aguda (que traziam num bolso). As lâminas podiam ser feitas com
Sunderland e Shields a seguir as instruções de “ Ordem, Ânimo, facilidade (com diversos tamanhos, custando de 1 a 3 xelins, con­
Unanimidade”. Depois de caminhar doze quilômetros, o contin­ forme os recursos do reformador) em uma das pequenas forjas que
gente de Shields recusou-se até “ a partilhar de um barril de cer­ abundavam em Newcastle, Sheffield, Birmingham e Manchester.
veja providenciado para eles”, “ determinados ( ...) a não fazer Temos algumas notícias sobre um desses entrepreneurs de Man­
nada que pudesse pôr em risco a harmonia do dia”. Entre os chester (com um olho no seu Black Dwarf e outro num próspero
oradores, havia um tecelão, um mestre-escola, um alfaiate, um mercado), chamado Naaman Carter. Foi tão imprudente a ponto
mestre impressor, um livreiro e um remendão. Depois da “ Segunda- de contratar como seu principal empregado (cuja tarefa era pro­
Feira Radical” (anunciada como a “ primeira reunião política pú­ pagandear amostras das lanças nas estalagens e ‘‘bares ilegais”
blica [dz Newcastle] jamais realizada a céu aberto”), a cidade nas vilas tecelãs e coletar as prestações dos que compravam suas
nunca perdeu sua posição entre os três ou quatro principais centros lâminas a um “crédito a perder de vista”) um indivíduo já con­
radicais e cartistas. Nas poucas semanas seguintes, com a velocidade tratado para outra coisa — o informante “ Y” . Os relatórios por­
de uma campanha renovada, formaram-se “ turmas” radicais em menorizados, e frequentemente irrelevantes, de “ Y” provavelmente
todos os portos e vilas industriais das redondezas: Jarrow, Sheriff não podem ser descartados como invenções. Certa vez, quando
Hill, Penshaw, Ramton, Houghton, Newbattle, Hetton, Hebbern, passou na casa do ferreiro radical:
South Shields, Winlaton, Sunderland — podia-se ver o Black Dwarf
“ na copa do chapéu de quase todos os mineiros que você encon Encontrei sua mulher e ele a brigar — disse-lhe que era tolo
tra”. A sedição estendeu-se até os mineiros de Bishop Wearmouth, brigar no dia de Descanso, teriam feito melhor adiando a briga
até segunda-feira, quando poderíam decidir a questão. A Mulher
que (escreveu um magistrado exasperado a Sidmouth) “ tiveram a
disse: Não vou ser espancada por você, vou te pôr em New
Desfaçatez de propor que os Comerciantes conhecidos como Radi­ Bailey por fazer Lanças — Ela disse isso quando ele estava-a
cais deviam ser empregados para fornecer Artigos de consumo às empurrando e chutando para fora da porta. . .
minas de carvão”.199
Mas os problemas de adaptação conjugal de Naaman Carter
199. A Full Account of the General Meeting of the Inhabitants of New­ não afetaram o comércio de lanças, florescente na primeira semana
castle (Newcastle, 1819); "Bob in Gotham", Radical Monday; Black Dwarf de novembro. “Y” encontrou inúmeros fregueses, admirando as
e Newcastle Chronicle, passinv, Durham Advertiser, citado em Political amostras que (dizia um deles) “ resolveríam o caso com o Príncipe
Observer, 19 de dezembro de 1819; H. O. 42.198; Independent Whig, 17 e todos os seus Patifes” . Um dos compradores foi o próprio Bam­
de outubro de 1819; R. G. Wearmouth, op. cit., pp. 102-3; Ver A Formação
da Classe Operária Inglesa, vol. II, pp. 228 e 280. ford, o qual, nos relatórios de “ Y”, mal se parece com o auto-

280 281
retrato que esboçaria vinte anos depois. Numa loja secreta onde
se fez a transação, Bamford ergueu o brinde: “ Que a Árvore da Mas, no final de dezembro de 1819, o movimento estava pra­
Liberdade seja plantada no Inferno, e que os Carniceiros sangui­ ticamente em colapso. Houve duas rázoes para tal: as divisões
nários de Manchester sejam seus Frutos!” Quando as névoas do entre os líderes radicais e a repressão das Seis Leis. A primeira
ilícito se tornassem róseas, disse um dos seus companheiros, da­ delas compõe uma estória complicada que ainda não foi bem de­
riam aos carniceiros de Manchester “ uma estocada danada de boa, senredada. Já observamos que a organização radical londrina sem­
e ele iria para casa e trabalharia, até que Deus o condenasse, suas pre foi frágil e amorfa. Em 1818 e primeiros meses.de 1819, não
mãos se afrouxariam, e cantaria Britannia, e o Diabo levaria todos existia em Londres nenhuma entidade coesa central semelhante às
eles” .200 Uniões e Protestantes Políticos das Midlands e do norte. Frequente­
É inquestionável que esses sentimentos eram generalizados nos mente, as atividades eram convocadas em bases ad hoc — reuniões
distritos manufatureiros. Corriam rumores sobre pistolas contra­ dos “ amigos do Sr. Wooler” ou jantares especiais na “ Coroa e
bandeadas de Birmingham para o norte, nas “carroças de panelas” . Âncora”. As duas eleições de Westminster em 1818 tinham provo­
De sucessivas cidades, em outubro e novembro, vinham relatórios cado grande dissensão entre os defensores de Burdett (que insistia
sobre armamentos, treinamentos e manifestações armadas: New- em dar seu apoio como segundo candidato, contra as reivindicações
castle, Wolverhampton, Wigan, Bolton, Blackburn. Os reformado­ de Cartwright, Cobbett ou Hunt, inicialmente a um amigo ban­
res de Halifax voltaram de uma reunião em Huddersfield, em
queiro, Kinnaird, e depois a John Cam Hobhouse) e outros grupos
novembro, “ andando em filas de oito ou dez, com música, e seis
radicais.
ou sete bandeiras, e velas acesas; muitos traziam bastões. . . ” A
certa altura, “ gritaram e dispararam muitas pistolas no ar”. Em Apesar do fiasco de Spa Fields, dr. Watson e Thistlewood
Burnley, dez a quinze mil pessoas compareceram a uma manifes­ continuaram no centro das tentativas mais enérgicas de organização
tação, apesar dos cartazes dos magistrados, advertindo-os a não ir. do radicalismo popular londrino. A se crer nos relatórios de mais
À sua frente vinha um homem com uma placa de “ Ordem, Ordem”, um informante bem-situado (John Williamson), Thistlewood e
mas lá também “ dispararam inúmeras pistolas”. Em Halifax, numa Preston retomaram, no outono de 1817, o empenho de criar forças
reunião anterior, um dos 41 estandartes dizia: “ Curvamos sob o para a conspiração.202 Encontraram dificuldades, logo após o le­
peso da carga, à espera de sermos libertados. ( .. .) Mas exultamos vante de Pentridge. A miséria em Spitalfields já não era tão grande.
com as esperanças de um Jubileu”. (O jubileu assim antecipado Em setembro (segundo Williamson), Preston disse que “ tinha esta­
não era o de George III.) Outro declarava: “Aquele que derramar do em Spitalfields ( ...) para ver dois ou três velhos conhecidos e
o sangue do homem terá seu sangue pelo homem derramado”. descobrir que tinham conseguido serviço e não gostavam de gente
O contingente de Ripponden trazia uma pintura com um tecelão como ele”. Em vez de parar para ouvir seu “ discurso” , continua­
semimorto de fome em seu tear: “ O trabalho do pobre lhe é tão ram trabalhando no tear. Thistlewood passou de reunião em reu­
caro como a propriedade para o rico” . Em Sheffield, uma procissão nião, a altas horas da noite. Houve uma conversa obscura sobre
gigantesca se dirigiu até o Brocco, atrás de bandas que tocavam subsídios de um inglês em Paris, um refugiado dos anos 1790.
a “Marcha Fúnebre em Saul” e “ O que têm os Escoceses com Prestaram-se juramentos, mas a organização continuou minúscula
Wallace exangue” .201 porque “ Preston disse que ninguém devia saber quais seriam os

200. Depoimento oral de "Y" ao Bailio do Burgo de Manchester, 6 e 8 de


novembro de 1819, em H. O. 42.198. 202. Segundo o P o litic a l R e g is te r de Sherwin (13 de setembro de 1817), as
201. “Papers rei ative to the Interna State of the Country", P a rlia m e n ta ry autoridades entraram em pânico com o boato de que havia uma insurreição
D e b a te s , XLI (1820), p a s s im (uma seleção um tanto sensacionalista de rela­ planejada para coincidir com a Feira de São Bartolomeu. Foram convoca­
tórios de magistrados etc.); H. O. 42.198; J. E. Taylor, op. cit., pp. 102-34; dos quatro regimentos de cavalaria, e o Lorde Prefeito deu busca a armas
B r ito n , 11 de novembro de 1819; I n d e p e n d e n t W h ig , 10, 17, 31 de oiitubro
entre os “barris de ostras, as bancas de chouriços e os cestos de pão de
de 1819; Halévy, op. cit., p. 66. gengibre". Ver H. O. 40.7 c 8, para detalhes dessa conspiração.

282 283
planos” até três horas antes de pô-los em execução. Preston fez de Carlile, Cap of Liberty e Medusa. Foi o “ Comitê dos Duzentos”
uma rápida visita (dezembro de 1817) a Birmingham, e declarou que tomou a iniciativa nos bons preparativos para a entrada de
que os homens de lá se encontravam com “ boa disposição” . Hunt em Londres, após Peterloo,206 e o próprio “ Doutor” conduziu
Williamson foi pessoalmente enviado por Thistlewood, para fazer as cerimônias de boas-vindas, mostrando um tato e um autocon­
um reconhecimento de um quartel e descobrir o número de canhões trole consideráveis frente à arrogância inflada e aos melindres
lá existentes. Mas, afora as fantasias insurrecionais, as efetivas políticos de Hunt.
realizações do grupo foram muito pequenas. Forneceram a Lorde Em 1820, depois da Conspiração de Cato Street, um observa­
Sidmouth algumas leituras alarmistas, formaram uns poucos grupos dor hostil apresentou uma versão sobre a “ Sala do Comitê Radical” ,
de taverna, e várias vezes atuaram como instigadores de aplausos no “ Leão Branco”, na Wych Street, que era tida como um centro
em manifestações da multidão londrina.203 do “subterrâneo” radical de Londres. No botequim:
Embora o dr. Watson ainda estivesse associado a Thistlewood,
provavelmente não teve nenhuma participação nessa tentativa de sentou-se um grupo de sujeitos suspeitos e mal-encarados ( ...)
enquanto numa mesinha de negócios à direita sentou-se o sr.
conspiração.204 Em fevereiro de 1818, Sidmouth encontrou um com um livro e alguns papéis e notas impressas à frente; pela
meio conveniente de afastar Thistlewood do caminho, sem recorrer escuridão do local, que não tinha luz a não ser a que provinha
a um processo. Thistlewood tinha publicado uma carta aberta, de uma vela colocada na frente do sr. —, ou da do balcão, um
onde se misturavam queixas públicas e privadas, exigindo “ satis­ estranho que chegasse não conseguiria reconhecer nenhum dos
fações” do Ministro do Interior — isto é, desafiando-o para um rostos, ao vê-los depois em outro lugar. À direita ( .. . ) há uma
saleta; ali, numa noite, reuniu-se um comitê selecionado, e nin­
duelo. Como resultado, foi confinado na prisão do Supremo Tri­
guém mais foi admitido. Era a sala onde se faziam as transações
bunal, como perturbador da paz, e Lorde Sidmouth pagou do seu mais privadas; o Sr. Thistlewood ou o dr. Watson sempre saíam
próprio bolso pela sua manutenção. Em 1819, a Londres radical até a passagem para falar com alguém lá chamado para negócios.
redespertou. e formaram-se inúmeros grupos de taverna e socie­ Numa sala muito grande no andar de cima ( .. . ) mais de cem
dades de debate (algumas chamadas de Sociedades de União). indivíduos mal-encarados reuniam-se à noite; lá reuniam-se mem­
Mais uma vez, Watson tentou montar alguma organização central, bros avulsos e o comitê aberto da sociedade. ( .. . ) Aqui são
e no verão de 1819 a ele se uniu Thistlewood, agora libertado, o preparadas suas procisões &c., guardadas (. ..) suas bandeiras;
qual — ao que parece — tinha aceitado a política de agitação ao passo que os assuntos mais privados eram conduzidos embaixo,
na saleta.207
constitucional, abandonando, por algum tempo, complôs sobre um
coup cVétat. Nesse verão, formou-se em Londres um “ Comitê dos
Tal centro, inevitavelmente, era tema de atenção constante de
Duzentos” .205 De junho a outubro, Watson, Thistlewood, Preston
espiões do Governo. Mas daí não se segue que todos os seus pro­
e Waddington foram os líderes londrinos mais ativos e influentes, cedimentos fossem ridículos. Os ultra-radicais de Londres, depois
principalmente entre os trabalhadores. Contavam com o apoio do de Peterloo, viram-se numa situação muito difícil. “ A reforma não
velho orador jacobino, lohn Gale fones, além do de Republican, pode ser obtida sem derramamento de sangue” , declarou categori­
camente o Cap of Liberty em outubro, e o Medusa, mais irrespon­
203. Ver p. ex. depoimento de Williamson, 18 de dezembro de 1817; sável, escreveu:
Thistlewood disse que “Carlile ia ser julgado amanhã e ele esperava que
todos pudessem vir e trazer consigo o máximo de gente possível, para lhe
dar três vivas". T. S. 11.197. 206. Havia dois comitês preparatórios: o do dr. Watson e um rival que
204. 1bid., 27 de setembro de 1817; “Thistlewood não falou muito depois incluía Thomas Evans, Galloway e Carlile. Mas ambos se fundiram sob a
que chegou Watson. Acho que ele não gosta de W atson”. Também 11 de presidência de Watson. Ver I n d e p e n d e n t W h i g , 12 de setembro de 1819.
fevereiro de 1818 em H. O. 40.9. 207. G. T. Wilkinson, T h e C a to S tr e e t C o n s p ir a c y (1820), pp. 56-7.
205. M e d u sa , 31 de julho de 1819.
285
284
Nào há uma Posta de qualquer lugar do Reino que não traga
legais contra os perpetradores de Peterloo e abstinência de todos
algum novo exemplo chocante da necessidade do uso constante
de armas.208 os artigos taxados. Em agosto, ela era muito recomendável, e foi
fielmente apoiada por todas as seções do movimento. Mas em
outubro estava desgastada. Era mais do que evidente que as espe­
Carlile (dois anos mais tarde) resumiu a mensagem de todos os
ranças de uma reconstituição legal eram vazias, principalmente em
seus textos na seguinte frase: “A reforma será obtida quando as
Lancashire, ao passo que era supérfluo recomendar abstinência aos
autoridades existentes não tiverem mais o poder de detê-la, e não
tecelãos do norte. Além disso, à medida que o movimento de pro­
antes. . . ” 209 Ademais, os dois meses que se seguiram a Peterloo
testo crescia a cada semana, os moderados não ofereciam nenhum
mostraram em toda a sua plenitude a debilidade da liderança na­
conselho além do de esperar pacientemente a abertura do Parla­
cional. A pusilanimidade de Hunt estava em seu ponto pior. Depois mento. Aí, se não se abrisse nenhum inquérito sobre Peterloo —
de Peterloo, ocupou o centro do palco, e tanto os reformadores ou se o habeas corpus fosse suspenso — , poderia se dar algum
como as autoridades observavam ansiosamente cada movimento outro conselho indefinido. Mas o Parlamento só se reuniu em 23
seu. Foi um prato cheio para sua vaidade. Peterloo podia ter sido de novembro — mais de três meses depois de Peterloo. Os ultra-
uma afronta pessoal, e suas procissões por Lancashire e Londres, radicais alegaram, com certa razão, que o conselho de Hunt signi­
triunfos pessoais. Não gostou que Watson tivesse qualquer parcela ficava sufocar o movimento no campo, abandonar a iniciativa po­
das homenagens da manifestação londrina; brigou por causa do pular e, de fato, transferir a liderança para os Whigs parlamen­
itinerário escolhido pelo Comitê e, com isso, milhares de londrinos tares. Como outros demagogos, Hunt parece ter se alarmado com
ansiosos ficaram à espera durante meio dia. (De qualquer forma, os ânimos que ele próprio ajudara a despertar.
ele tinha um ressentimento contra Londres, visto que fora vaiado
Depois de esperar quase dois meses, os “ultra,, recorreram a
e tratado grosseiramente em 1818, no palanque eleitoral de West-
uma outra política, apoiada por Watson e Carlile. Era a de “ reu­
minster.) Brigou com Watson pelo Presidente (Gale Jones) esco­
niões ( ...) por todo o Reino num único e mesmo dia”. O dia
lhido para seu jantar de boas-vindas, gritando-lhe em público:
inicialmente proposto foi l.° de novembro, embora fosse, depois,
“Você é um maldito sujeito intrometido e abelhudo; por que não
adiado duas vezes. Considerando-se as circunstâncias, era apenas
fico eu com a presidência, como Sir Francis Burdett depois da fazer com que o movimento constitucionalista avançasse um passo,
procissão dele!” Então começou a discutir sobre assuntos finan­ embora os conspiradores autênticos (entre eles Arthur Thistlewood)
ceiros. Em Lancashire, conseguiu ofender a maioria dos líderes pudessem esperar que as reuniões simultâneas levassem diretamente
reformadores locais, ao realizar uma procissão fúnebre de alguns a uma insurreição. Durante o mês de outubro, a política obteve
milhares para assistir ao enterro do seu cavalo favorito. De fato apoio, e foram planejadas reuniões em Newcastle, Carlile, Leeds,
(e não sem razão), estava mais preocupado em manobras para Halifax, Huddersfield, Barnsley, Manchester, Bolton, Wigan, Black-
conseguir uma posição vantajosa nos julgamentos que se aproxi­ burn, Burnley, Newcastle-under-Lyne, Nottingham, Leicester e Co-
mavam do que em ajudar o movimento no campo.210 ventry. No final do mês, o General Byng, geralmente bem-infor-
Em setembro, os reformadores estavam se dividindo entre uma mado, considerava que Thistlewood “ suplantou Hunt na idolatria”
ala revolucionária e uma ala constitucionalista. A política aprovada do povo londrino. Thistlewood visitou Manchester (onde agora
por Hunt e Wooler era a de resistência passiva, protestos, ações existia uma União ultra-radical, além da Sociedade Patriótica hun-
tista), onde a proposta ganhou amplo apoio. De fato, ocorreram
algumas reuniões, e fizeram-se outros planos para 15 de novembro.
208. Medusa, 9 de outubro de 1819.
Mas, em meados de outubro, ao ver que o movimento escapava
209. R. Carlile, An Effort to set at rest some little disputes and misun-
derstandings between the reformers of Leeds (1821), p. 10. de suas mãos, Hunt empenhou-se em recuperar o controle. Numa
210. Peterloo Massacre, p. 72; Bamford, op. cit., pp. 247 ss; Cap of Liberty, “Carta aos Reformadores do Norte” , publicada no Manchester
15 de setembro de 1819; ). Johnson, Letter to Henry Hunt, passim; cartas Observer de Wroe (em 19 de outubro), ele denunciou o plano de
entre Hunt. Watson e Thistlewood trocadas na imprensa em geral, outubro reuniões simultâneas. Prosseguiu com mais uma carta, relembrando
e novembro de 1819.
287
286
o nome de Oliver e atribuindo especificamente a Thistlewood a
Se se pode acusar Thistlewood de loucura (pela qual pagaria
acusação de espionagem. com sua própria vida), agiu, porém, sob grande provocação. A
A partir daí, durante semanas a imprensa ficou aberta à troca reação dos líderes radicais nacionais às Seis Leis, que correram pela
de cartas furiosas entre Thistlewood e Watson, de um lado, e Hunt Câmara em dezembro, foi extremamente débil. Cobbett tinha volta­
e seus adeptos, de outro, reeditadas com deleite pela imprensa do do seu exílio no início de novembro, aportando em Liverpool
legalista, sob a manchete irônica: “ Documentos de Estado Radi­ e encontrando uma triunfante recepção do povo de Lancashire.
cais” . O dr. Watson tinha sido preso por dívida, pelo não-paga- Desorientado após sua ausência e sem a mínima vontade de lide­
mento de uma conta da recepção de Hunt, e Hunt tentou manho- rar uma insurreição operária, parecia ter perdido a cabeça. Em
samente explicar o que fizera com o dinheiro coletado para as Liverpool, declarou que trouxera consigo os ossos de um dos
despesas. Boa parte da controvérsia foi irresponsável de ambos os maiores filhos da Inglaterra — Tom Paine. Por então (revelou-se),
lados. Por baixo dela, parece que" Hunt tinha suspeitas fundamen­ o que Cobbett queria homenagear não era o republicanismo de
tadas sobre as intenções conspiradoras de Thistlewood e a debili­ Paine, mas suas idéias sobre uma reforma monetária. O Register
dade e amadorismo do dr. Watson como líder político. Por outro alternava grandes rompantes (“a grande massa tem direito de se
lado, parece que Thistlewood tinha realmente conseguido montar armar em defesa própria”) e banhos de água fria: “ Minha esperan­
uma cadeia clandestina de comunicação no campo que, em partes ça mais sincera é a de que o povo deposite sua máxima confiança
das Midlands e do norte, sobreviveu aos ataques de Hunt.211 A na Dívida” . Essa “Escavadora de Buracos” derrubaria a Velha
União Política de Manchester ficou desalentada com a recusa de Corrupção por si só, sem o esforço do povo:
“Hunt e sua Cabala” em apoiar as reuniões propostas. Fizeram-se O meio mais eficiente, além de mais seguro, é deixar que a
alterações nos planos, e os delegados da “ clandestinidade” de truta se canse, enquanto seguramos a vara, a linha e o anzol.
Londres, Escócia Ocidental, Lancashire, Yorkshire, Birmingham e
Potteries deveriam se encontrar em Nottingham, no dia de reaber­ Depois da aprovação das Seis Leis, ele apresentou uma nova
tura do Parlamento, mantendo-sc em assembléia secreta perma­ proposta grandiosa para “ continuar com a luta pelos direitos e
nente. como um “ executivo” com instruções para convocar reu­ liberdades do nosso país”. A proposta era um Fundo para a Re­
niões simultâneas, em caso de suspensão do habeas corpus. A ás­ forma, de cerca de 5.000 libras, a ser levantado em contribuições
pera oposição de Hunt impediu que esses planos amadurecessem.212 de 2 penies, recolhido por reformadores e sindicalistas “e deposi­
tado em minhas mãos” :
211. Apenas dois ou três mil compareceram a uma manifestação de Smith- a ser usado unicamente por mim, é claro, e sem o controle ou
field, convocada pelo Comitê dos Duzentos na primeira semana de novem­ verificação de ninguém; e sem que ninguém jamais tenha o direito
bro, onde discursaram Thistlewood e Preston. Mas não é claro se foi con­ de me perguntar o que vou fazer com ele (. . .) Não direi a
sequência dos ataques de Hunt nas duas semanas anteriores ou do tempo ninguém como pretendo empregar o dinheiro: não responderei a
muito ruim. Ver I n d e p e n d e n t W h i g , 7 de novembro de 1819. nenhuma pergunta.. 213
212. Essa versão se baseia em várias fontes em H. O. 42.198 e 199; A. B.
Richmond, op. cit., pp. 1814; J. E. Taylor, op. cit., p. 134; C a p o f
L i b e r ty , 13 dc outubro e 15 de dezembro de 1819; R e p u b lic a n , 12 de
novembro de 1819: General Byng a Wellington, 28 de outubro de 1819, com certa satisfação pessoal) “formou as ligações mais úteis possíveis e deu
em W e llin g to n D is p a tc h e s , I, p. 84. Ver também D. Read, op. cit., pp. 147-50, provas de escapar aos engenhosos ardis da Polícia". Ver “Alfa" a Fletcher,
155-8. O Secretário da União Política ultra-radical de Manchester, W. C. 15 e 17 de novembro de 1819, em H. O. 42.198, e comparar com D. Read,
Walker, cujo famoso caráter e “duas mulheres" causaram tal alvoroço em op. cit., pp. 157, 218-23.
uma reunião, foi considerado pelo tributário de Manchester, Norris, como 213. P o litic a l R e g iste r, de Cobbett, 6 de novembro, 5 de dezembro de
o "Thistlewood dessa região". Mas o coronel Fletcher, de Bolton. e Lorde 1819, 6 de janeiro de 1820. O Fundo só chegou a poucas centenas de
Sidmouth sabiam mais. A partir de evidências internas, parece que Walker libras e foi largamente aplicado por Cobbett em sua própria candidatura
(que seria um dos delegados do “executivo" em Nottingham) era o próprio em Coventry. em 1820. Esse incidente politicamente desonroso foi um
“Alfa", a serviço do Coronel Fletcher. Walker ("Alfa" informou a Fletcher tanto negligenciado por Cole, L i f e o f C o b b e tt, p. 242.

288 28 9
As Seis Leis surgem como uma codificação e ampliação da
legislação de 1795 e 1817. A primeira Lei proibia exercícios e reza dos seus seguidores nos centros industriais. Hunt vinha se
treinos “ militares” ; a segunda autorizava os juizes a darem entra­ dissociando ativamente dos extremistas e se abstendo de qualquer
da e busca, sem mandado judicial, nas casas suspeitas de terem ação que pudesse prejudicar seu próximo julgamento. Cobbett
armas; a terceira proibia reuniões com mais de cinqüenta pessoas, instruía seus leitores quanto ao uso de trigo torrado, como subs­
tituto do café, e à superioridade da água sobre o vinho. Em 22
com certas exceções (reuniões de condado e paróquia) e acrésci­
de janeiro de 1820, finalmente lançou “ UM PLANO”. Era diri­
mos (feitos para eliminar reuniões de leitura radicais); a quarta
gido “Às Senhoras” , destinado a “ Promover a Sobriedade e a Fru­
Lei (de grande relevância nos doze anos seguintes) aumentava a
galidade, e Aversão ao Jogo”.216 Foi nessas circunstâncias que se
tarifa de franquia nas publicações periódicas, subindo seu preço deu o episódio final da agitação pós-guerra.
para 6 ou mais penies; a quinta e a sexta Leis destinavam-se a
ampliar os poderes das autoridades contra sediciosos, principal­ Não sabemos muito sobre Arthur Thistlewood e os conspira­
mente nos processos e libelos judiciais rápidos.214 A única medida dores da Cato Street.217 Thistlewood era um fidalgo que tinha
das repressões anteriores que não se repetiu foi a suspensão do spfrido vários reveses, em sua maioria (ao que parece) por obra
sua. Entre os homens já processados por alta traição, não eram
habeas corpus. A partir daí, o Governo entrou na campanha mais
muitos os que se dispunham a arriscar as suas cabeças uma segun­
longa de processos judiciais da história inglesa. No verão de 1820,
da e terceira vez, como fez Thistlewood em 1817-18 e, nova­
Hunt e quatro reformadores de Manchester (indiciados por sua
mente, em 1820. Mais de três quartos de sua coragem eram pura
participação em Peterloo), Wooler, Burdett, Sir Charles Wolse- temeridade, mas o mesmo vale para Emmett ou para os homens
ley, Reverendo J. Harrison, Knight, Carlile, Edmonds, Wroe, Bag- da “Páscoa de 16”. As fotografias grosseiras que apareceram na
guley, Drummond e Mitchell foram todos presos. Começara uma imprensa, na época de sua morte, perpetuaram uma tradição que
grande investida contra a imprensa “sediciosa” e “ blasfema”. subsiste ainda hoje nos textos.218 Mas, para dizer o mínimo, o caso
Inúmeros processos contra editores ou vendedores de jornais fo­ não está provado é não condiz com sua conduta no patíbulo.
ram abertos pelas sociedades particulares de perseguição, ou tra­ Para George Borrow, que pode ter romantizado a cultura do sub­
tados pela jurisdição sumária. E Arthur Thistlewood teve sua mundo, Thistlewood era um dos “Velhos Radicais” — “um bravo
última apresentação pública no cadafalso. soldado” que “ serviu com distinção como oficial no Exército fran­
cês”, e “ um dos maiores espadachins da Europa”. “ Nunca desem-
bainhou a espada ( ...) a não ser em defesa dos fracos e maltra-
VI. A Conspiração da Cato Street
216. Political Register, 4 de dezembro de 1819, 22 de janeiro dc 1820.
As Duas Leis de 1795, pelo menos, foram aprovadas diante 217. Resta muito por descobrir. The Cato Street Conspiracy (1962), de John
de manifestações gigantescas, onde o próprio Fox concordou em Stanhope, é agradável na tradição familiar do "romance policial". Estabelece,
tomar a palavra. Em dezembro de 1819, Hunt, Cobbett, Wooler para além de qualquer dúvida, o papel provocador de Edwards, a partir das
ou Burdett poderiam ter enchido as ruas de Londres, Midlands, evidências em H. O. 44.4/6. Contudo, não situa a conspiração no seu con­
texto, e os detalhes biográficos foram amplamente extraídos das reportagens
norte e Escócia com manifestações.215 É difícil não concluir disso hostis na imprensa e da versão de G. T. Wilkinson sobre os julgamentos.
que os próprios líderes radicais estavam alarmados com a natu­ Está ainda por se investigar uma série de documentos, anotados no verso
como "Documentos de Thistlewood", em H. O. 42 e H. O. 40.7/10.
218. Ver, por exemplo, R. J. White, op. cit., p. 199, onde é comparado
214. Para um resumo útil, Yer Halévy, op. cit., pp. 67 ss; Jephson, op. a um "traidor tal como uma bomba atômica", auxiliado por “moleques de
cit., II, pp. 502 ss; Maccoby, op. cit., cap. 20. Sobre as perseguições à rua grosseiros"; e as referências do Sr. Stanhope (pp. 28, 57) a "persona­
imprensa, ver adiante, pp. 314-20. lidades psicopáticas", com “neuroses pessoais". Como uma questão dc
215. Ver o comentário em Union: Prospective of a New Publicaiion (1831) fato, um dos únicos homens de 1819-20 a quem podemos aplicar esses
(John Rylands Lib. R. 106147): "O Governo em 1819 deveu sua segurança epítetos com uma precisão clínica é o Lorde Castlcrcagh. Ver H. M. Hyde,
à abstenção do Sr. Hunt". fhe Strange Death of Lord Castlereagh (1959).

290 291
tados — era bom e de coração aberto, mas também de extrema extensa miséria) entre os ultra-radicais londrinos, os artesãos,
simplicidade. . .” “ Oh, existia algo naqueles sujeitos!”219 diaristas e artífices deístas que liam e aprovavam o Medusa de
Provavelmente, não podemos aceitar sem reservas a versão Thomas Davison ou o Theological Comet de Shorter, nos quais
dos seus adversários ou de Borrow. Ele era, é certo, um “Velho aguardava-se avidamente a derrubada sangrenta dos padres e reis.222
Jade” e republicano rematado. E, ao passo que muitíssimos asso­
ciados seus deram expressão ao seu republicanismo através da Eram muitos os que aplaudiam a idéia de um levante — os
arenga e da retórica de gráfica, a ele pode-se creditar um caráter sapateiros, em particular, estavam prontos, e sua associação era
relativamente taciturno e uma atenção à organização prática. Mas praticamente uma organização jacobina223 — , enquanto havia notí­
mais importante é avaliar a situação em que um tal homem se cias da presença de irlandeses de 98 em Londres, no mês de
encontrava. Numa reunião no “ Leão Branco”, em início de no­ novembro, numa reunião na oficina de Davison, “novamente em­
vembro (informou um espião a Lorde Sidmouth), o dr. Watson penhando-se em incitar a ordem Inferior dos Irlandeses à Rebe­
informou ao comitê “que a comunicação entre ele e as Regiões do lião”.224 Além disso, alguns homens tinham idéias de como desfe­
Campo tinha cessado, pois eles se alinharam com Hunt” . Nessa rir o primeiro golpe. George Edwards, um artista medíocre que
época, “ Thistlewood estava com os tecelãos em Spitalfields”.220 tinha feito um busto de Paine para Carlile, e era irmão de um
Segundo outros relatos, o próprio Thistlewood ficara profunda e antigo Secretário dos spenceanos, era particularmente fértil em
amargamente abalado com a acusação de Hunt de ser um espião, sugestões. “ Ele propôs”, declarou Thistlewood em seu desafiante
e estava resolvido a afastar a calúnia com alguma ação audaciosa. discurso antes de receber a condenação à morte:
Quando as Seis Leis estavam em tramitação pelo Parlamento, ele
um plano para explodir a Câmara dos Comuns. Não cra meu
retomou algumas ligações clandestinas, principalmente com York-
ponto de vista: eu queria punir apenas os culpados, e portanto
shire e Glasgow.221 Em dezembro, estava pronta a Conspiração declinei da idéia. A seguir, ele propôs que atacássemos os Minis­
da Cato Street. tros na fête dada pelo Embaixador espanhol. Opus-me resoluta­
Foi uma repetição, mesmo em certos detalhes, dos casos Des- mente a isso (...) havia senhoras convidadas para a diversão — e
pard e Spa Fields. Mas foi mais violenta e mais prática. Thistle­ eu, que logo subirei ao cadafalso, estremecí de horror a tal idéia,
wood sentiu que recaía sobre si o dever de libertar o país da que teve uma amostra prévia com os Agentes do Governo cm
repressão. Se se conseguisse desferir apenas o golpe inicial — Manchester.. .
contra a Torre, o Banco, o Parlamento ou o Rei — , então se
daria o sinal (ele tinha certeza) para a sublevação de Spitalfields, “ Edwards estava sempre inventando; e finalmente ele propôs
Minories, Smithfield, e as “ Regiões do Campo” varreríam tudo atacá-los num jantar ministerial.” As reuniões se realizavam em
pela frente. E mais, parece que Thistlewood tinha empenhado sua diversas salas e sótão na Cato Street. James Ings, um açougueiro
palavra de honra, junto aos emissários provinciais, de que Londres propenso a exuberantes fantasias, desde logo ficou empolgado
agiria assim. Se ele se conduziu, em janeiro e fevereiro de 1820,
com uma temeridade que dificilmente era sã, foi porque era a 222. Ver, por exemplo, T h e T h e o lo g ic a l C o m e t : o r F r e e -T h in k in g E n g lish -
temeridade do desespero. Movia-se ansiosamente (ele mesmo numa ntan, 28 de agosto de 1819: “Aos Perseguidores de Manchester'’ — “Vocês
têm uma inclinação tão re lig io sa para se deleitar com as barbaridades e
massacres daquele Moisés carniceiro m onstruoso...?"
219. G. Borrow, R o m a n y R y e y Apêndice, cap. 10. Borrow também afirma 223. A tradição jacobina entre os sapateiros vem desde Thomas Hardy e
que Thistlewood perdeu sua fortuna não (conforme as versões grosseiras) John Ashley (ambos Secretários da SLC), passando por Charles Pendrill
no jogo, mas por um empréstimo imprudente a um amigo. (e outros associados de Despard) e Devenport, o spenceano, até os ultra-
220. Relatórios de 10 de novembro de 1819, H. O. 42.198. radicais Prcston e Waddington. A maioria dos conspiradores da Cato
221. Ver principalmente A. B. Richmond, op. cit., pp. 1834. Em 23 de Street era composta de sapateiros, e a Central e os ramos do oeste de
dezembro de 1819, foram presos, presumivelmente por delação de "Alfa", Londres votaram por 50 libras cada, para a defesa ( I n d e p e n d e n i W h ig .
nove delegados da organização secreta de Lancashire. Ver I n d e p e n d e tit 12 de março dc 1820).
W h ig , l.° de janeiro de 1820. 224. Relatórios de “I.S.", 15 de novembro de 1819, H. O. 42-198.

292 293
com seu papel, quando (de acordo com o plano) invadiríam a Vocês nunca trabalham nem labutam,
casa e abriríam a porta do cofre sobre os comensais: “ Vou dizer; Mas podem comer e beber,
‘Meus Senhores, aqui trago homens tão bons como os milicianos Nunca cultivam a terra,
Nem pensam no pobre...
voluntários de Manchester — Entrem, cidadãos, e cumpram seu
dever!” As cabeças de Castlereagh e Sidmouth seriam postas na
ponta de lanças — seriam afixadas na cidade as proclamações “ Minha querida Célia” , escreveu James Ings à sua mulher:
de um “ Governo Provisório” — e diversões menores se iniciariam
na Torre e na Mansão. À medida que se aproximava o momento Devo morrer segundo a lei, e deixá-la numa terra cheia de cor­
do ataque proposto, Thistlewood parece ter se mantido fiel a ele rupção, de onde fugiram a justiça e a liberdade para outras costas
apenas por uma espécie desesperada de honra. Algo devia ser longínquas. (...) Agora, minha querida, espero que você tenha
tentado. “ Espero que vocês não desistam do que vão fazer”, disse. em mente que a causa de minha entrega ao cadafalso foi um
“ Se desistirem, será um outro caso Despard.” motivo puro. Julguei dever prestar um serviço aos meus compa­
nheiros homens, mulheres e crianças à míngua...
O plano, evidentemente, era há muito tempo conhecido por
aquelas mesmas cabeças que, segundo a proposta, seriam carre­ John Brunt, sapateiro, declarou no tribunal, antes de apresentada
gadas pelas ruas na ponta das lanças. Mesmo o anúncio, no New a sentença, “ de maneira particularmente intrépida e desembara­
Times, do jantar ministerial foi um engodo. Os conspiradores çada” :
foram devidamente apanhados, embora não sem uma escaramuça,
quando Thistlewood trespassou um dos Agentes da Bow Street. ele tinha conseguido, com seu trabalho, ganhar cerca de 3 a 4
As prisões criaram o clima que o Governo precisava para jus­ libras por semana, e enquanto foi este o caso, nunca mexeu com
tificar as Seis Leis, e também para se sair bem numa Eleição Geral. política; mas quando viu sua renda reduzida a 10 xelins por
Os efeitos desse clima diminuíram com a realização dos julga­ semana, começou a olhar em torno de si. ( . . . ) E o que descobriu?
mentos (em meados de abril), quando se revelou o papel de Ora, homens no poder que se reuniam para deliberar como
provocateur de Edwards. podiam pilhar e submeter o país à fome. Considerou os anais de
Nos julgamentos e no patíbulo, Thistlewood e seus compa­ Manchester como os mais medonhos. ( ...) Unira-se à conspiração
nheiros conduziram-se com coragem, e até audácia. (O único sen­ pelo bem público. Não era homem que teria se detido. Ó não:
teria prosseguido com ela até o fim. ( .. . ) Morrería como o des­
timento de desilusão de Thistlewood parece ter ocorrido, nas
cendente de um antigo B retão...
semanas anteriores ao julgamento, quando os prisioneiros passa­
ram por Londres, e não se registrou nenhuma tentativa de resgate
No cadafalso, Thistlewood declarou, com seu forte sotaque
por parte da multidão londrina.) Todos, à exceção de Davidson
de Lincolnshire: “ Quero lembrar a todos aqui presentes que mor­
(um “homem de cor” da Jamaica, com algumas ligações metodis­ ro pela causa da liberdade.. .” Cobbett, num relato tocante e
tas), pareciam ser deístas, e recusaram os consolos do capelão da sem rodeios, lembrou o nome de Sir Thomas More. Hobhouse,
prisão. Mais de um prisioneiro, enquanto aguardavam julgamento, que presenciou as execuções, anotou em seu diário:
compôs versos desafiadores:
Os homens morreram como heróis. Ings, talvez, foi um tanto
Tiranos. Vocês apavoram o pobre ruidoso ao cantar “Morte ou Liberdade”, e Thistlewood disse:
E acabam com seu direito “Fique quieto, Ings; podemos morrer sem essa barulheira toda”.
Aumentam o preço do pão e da carne
E assim frustram seu trabalho.
A multidão foi mantida, com barricadas, a distância do patí­
bulo, de modo a impedir qualquer tentativa de libertação e não se
225. Ver Maccoby, op. cit., p. 366.
29 5
294
ouvir nenhum discurso final. Quando as cabeças das vítimas foram
apresentadas, a multidão ardeu de fúria: “os gritos e imprecações Venham, romanos, venham,
das multidões reunidas excederam tudo o que se pudesse ima­ E banhemos nossas mãos no sangue de César
ginar”.226 Até os cotovelos, e tinjamos nossas espadas:
Então sigamos, mesmo à praça do mercado,
Assim terminou o “ velho radicalismo” , que, à sua maneira, E, alçando nossas armas rubras por sobre a cabeça,
foi um prolongamento do jacobinismo dos anos 1790 até o século Gritemos todos: “ Paz, liberdade e independência” .
19. (Os sapateiros da Cato Street foram dos últimos a usar o
termo “ Cidadão” e outras formas jacobinas.) Tentamos corrigir Mas os que sofreram a morte com Thistlewood, e os mais
um pouco o quadro habitual de uma quadrilha de criminosos de­ autorizados para condená-lo por sua loucura, parecem ter sentido
sesperados. Thistlewood certamente foi culpado de loucura, ao a maior lealdade por ele. Também Susan Thistlewood aparece não
expor as vidas dos seus adeptos a uma provocação tão evidente. como uma nulidade, mas como uma entusiástica jacobina por si
(“ Sou como um novilho levado para ser vendido no mercado de mesma, com maneiras frias e intelectuais e presteza em participar
Smithfield”, explodiu Ings no seu julgamento: “ Lorde Sidmouth ativamente da defesa.227 Não está claro se, e até que ponto, a Cons­
sabia de tudo durante dois meses”.) Seus planos — tomar os piração da Cato Street estava ligada a algum autêntico plano nacio
canhões e arsenais, incendiar os quartéis e estabelecer um Governo nal. Logo após a prisão dos conspiradores, houve três tentativas de
Provisório na Mansão — não iam muito além de fantasias. Ele sublevação — uma em Glasgo? e duas em Yorkshire. Nos arredo
res de Glasgow, pequenos grupos de tecelãos se levantaram em 5 c
extraiu uma justificativa para seu complô dos defensores romanos
6 de abril (com seu famoso estandarte “ Escócia Livre ou um De
do tiranicídio. Em seu julgamento, declarou que “ fora cometida
serto”), com um áspero confronto com o Exército na “ Batalha
alta traição contra o povo de Manchester” : de Bonnymur” e, a seguir, a execução de três homens. Um deles
— James Wilson — era um “ Velho Jack” ; outro, um antepassado
Bruto e Cássio foram louvados pelos próprios céus por matar dc Keir Hardie; ambos autodidatas com resultados incomuns.228
César: realmente, quando qualquer homem ou grupo de homens
Parece que os insurgentes acreditavam estar desempenhando sua
se põe acima das leis do seu país, não há outro meio de levá-los
parte dentro de um plano de sublevações simultâneas na Escócia.
à justiça a não ser pelo braço de um indivíduo particular.
Yorkshire, Lancashire e Carlisle — todos os bastiões dos tecelãos.
Mas mesmo que alguma variante da Conspiração da Cato Seis dias antes (31 de março de 1820), ocorreu uma movi­
Street tivesse alcançado seu objetivo imediato, é difícil vislumbrar mentação vacilante nas vilas têxteis em torno de Huddersfield. Os
o que teria se seguido. Talvez, durante alguns dias, os “ Motins cortadores de tecido, como de hábito, estavam profundamente en­
de Gordon” em escala maior e muito mais sangrenta; então viria, volvidos. Depois de Peterloo, formaram-se inúmeros clubes, que
com todas as probabilidades, um “ Terror Branco” , com a reedição recebiam Black Dwarf, Cap of Liberty e Manchester Observer. Um
de Peterloo numa série de cidades inglesas e escocesas. Thistlewood cortador de tecido, que comparecera a manifestações com um
passou por cima do comentário irônico de Shakespeare, posto nos estandarte de “ Levantem-se Britões e reivindiquem seus Direitos:
O Leão desperta a uma Sensação de Perigo”, declarou em seu
lábios de Bruto:
depoimento que fora planejado um levante em novembro, “em
conseqüência de não ter se instaurado, conforme nossos desejos.
226. Thistlewood, Ings, Brunt, Tidd e Davidson foram executados em
I. ® de maio. Outros cinco foram deportados. Esse relato baseia-se em
G. T. Wilkinson, op. cit., p a s s im , H. Stanhope, T h e C a to S tr e e t C o n sp ira c y , 227. G. T. Wilkinson, op. cit., pp. 734; P o litic a l R e g is te r , de Cobbett.
em esp. cap. 6 (sobre o papel de F.dwards); P o litic a l R e g is te r , de Cobbett, 6 de maio dc 1820; Bamford, op. cit., p. 299.
6 de maio de 1820; R. F. Wearmouth, op. cit., p. 71; I n d e p e n d e n t Whig, 228. [Peter Mackenzie], A n E x p o s u r e o f th e S p y S y s te m P u r s u e d in G la s­
7 de maio de 1820; Lorde Broughton, R e c o lle c tio n s o f a L o n g L ife (1909), g o w (Glasgow, 1832), pp. 71-232, e T h e T r ia l o f J a m e s W ils o n (Glasgow.
II, p. 126; E. Aylmer, M e m o ir s o f G e o r g e E d w a r d s (1820) . 1832); A. B. Richmond, op. cit., p. 184.

296 297
uma investigação sobre os procedimentos em Manchester”. Distri­
▼ abril); mas, dez dias depois, anotou que três ultra-radicais “ deixam
buíram-se cartões, rasgados ao meio, trazendo escrito “ Demo” ; o o país, mas é segredo para onde vão. embora se diga que é por
sinal para o levante seria a entrega da outra metade (“cracia”). mar”. Em 14 de abril, um tecelão, Toseph Tyas, foi preso perto
O objetivo era “estabelecer um governo livre” . Acompanhando os de Huddersfield, e na coifa de sua mulher foi encontrada uma
sinais, reuniram-se 200 insurgentes, com lanças, forcados e espin­ carta dele dirigida aos “ nossos irmãos em Lankaster Shire” :
gardas. para logo a seguir se dispersar, quando os outros grupos
não apareceram. Na noite de 11 de abril, ocorreu a última tenta­ Prezados queridos:
tiva, em Grange Moor, perto de Bamsley. Existiam quarenta ou Esperamos que vocês estejam indo muito bem embora seu
cinqiienta “ turmas” radicais entre os tecelãos de linho e car- Cativeiro seja doloroso. (...) Nossa Música em Yorkshire tocou
voeiros da cidade, ligadas por um comitê geral de delegados e a duas vezes enquanto a de vocês em Lankashire nunca tocou, os
seguir por um comitê secreto de sete membros. Os temas discuti­ Músicos estão doentes? (...)
dos nas reuniões eram: Melancolia, Melancolia, Melancolia de Yorkshire, seus Refor­
madores continuam certos. (...) Cerca de 300 em Grange Moor,
A Opressão dos Pobres, a Tributação e a Dívida Nacional, e o andaram toda a noite, cada um tinha seu Cobertor Lança ou
que foi imposto sobre as coisas necessárias à vida (...) e a Arma & bem repletos de munição coitados a serem tão iludidos
Corrupção dos Ministros e como eram gastos muitos milhares de por homens de vista curta tocaria os sentimentos de vocês ver
libras por ano com eles e pensões c cargos retiradas dos nossos os bravos sujeitos a resistir com suas armas toda aquela noite
vencimentos. úmida depois de uma caminhada de 20 quilômetros e Nem um
Homem para encontrá-los segundo o Combinado todas as suas
Os radicais de Barnsley esperavam que todo o norte e as lanças dc ponta foram deixadas na maioria das lâminas retiradas
exceto 3 ou 4 que estavam muito justas, os coitados dos Homens
Midlands se sublevassem na mesma noite. Iriam até Grange Moor,
se mantiveram com os corações animados até a luz do dia batendo
onde se encontrariam com outros contingentes e de lá seguiríam:
os tambores e no peito mas nenhum outro grupo se reuniu a eles.
Todos sem saber o que fazer. Voltar a Barnsley não podiam
por Barnsley até Sheffield e de lá a Londres. Disse-se que os nem pensar mas quando não havia nenhuma outra perspectiva
escoceses estariam em Leeds junto conosco ou no máximo com todos começaram a derramar lágrimas a Maioria amargamente
um dia de caminhada atrás de nós. com Gritos dos mais perturbados. . .
Reuniram-se talvez 300 homens, com tambores, armas, mochi­ “Espero” , conclui a carta, “que possamos ainda nos encontrar
las (com provisões para três dias) e uma bandeira verde com todos num só Corpo e Voz. . .” .229
franjas negras: “ Aquele que abate um homem até morrer certa­
mente será entregue à morte”. Eram comandados por dois ex-sol­ “ Mais uma vez” , aconselhou o Manchester Observer, “ adver­
dados, Comstive (um “homem de Waterloo” e “ bom escritor”) timos nossos (. . . ) conterrâneos a não ouvir nenhum estrangeiro
e Addy (que trazia o simbólico chapéu branco). Arrastaram-se (...) sob qualquer pretensa autoridade de delegado de um local
penosamente pelos vinte quilômetros até Grange Moor, recolhendo distante”.230 Cato Street trouxe de volta à mente dos reforma­
pequenos grupos ao longo do caminho, chegando de madrugada dores, e com força redobrada, a mensagem de Oliver. Com a proi­
para encontrar deserto o local do rendez-vous. Depois de esperar bição das reuniões e a imprensa sob fogo, as uniões políticas come­
por algum tempo, correu entre as fileiras o boato de um complô çaram a desaparecer. Quando isso ocorreu, surgiram dois outros
do Governo, c dispersaram-se consternados. Por esses dois aten­
tados, Comstive, Addy e vários outros foram deportados. 229. T. S. 11.4131 e 3573; Peel, S p e n V a lle y , pp. 262-4, e R is in g s o f th e
Boatos invadiram os distritos manufatureiros. “ Noticiou-se que (ed. 1888), pp. 313-9; Bennett, H is to r y o f B u r n s le y , III, p. 380:
L u d d ite s
os escoceses logo invadirão a Inglaterra e se unirão aos radicais H. O. 40.11/12.
230. M a n c h e s te r O b s e r v e r , 15 de abril de 1820.
ingleses” , anotou um tecelão de Burnsley em seu diário (7 de
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acontecimentos que alteraram o caráter e a direção do movimento. O que teve a influência mais duradoura sobre a tradição po­
O primeiro foi o começo dos anos de prosperidade geral, entre lítica inglesa foi, talvez, não Cato Street nem as Seis Leis, mas
1820 e 1825. A queda dos preços e um nível de maior emprego Peterloo. Pois, após as reações imediatas, pode-se sentir uma rea­
embotaram o gume da fúria radical. E, ao mesmo tempo, os jorna­ ção a mais longo prazo. Em primeiro lugar, serviu para avisar aos
listas radicais sobreviventes voltaram-se (quase que com alívio) Whigs e reformadores de classe média sobre as conseqüências que
para uma nova causa — a agitação em prol da honra e direitos adviríam com a perda de sua influência sobre as massas não-repre-
régios da Rainha Carolina, última vítima de um “ Sacola Verde”, sentadas. Até Wilberforce sentiu que alguns reformadores mode­
a quem George IV queria pôr de lado por má conduta. Não preci­ radores deveríam, talvez, apresentar-se “ para libertar a multidão
samos nos deter sobre a fraude do caso da Rainha. Ele mostrou das mãos dos Hunt e dos Thistlewood” .233 Depois de se extinguir
todos os vícios, em sua maior escala, do movimento radical (e tam­ o clamor de 1819, o movimento reformador de classe média assu­
bém dos legalistas). Sua glória (do ponto de vista radical) foi a miu um aspecto mais definido. Em segundo lugar, a experiência
de colocar a Velha Corrupção nas posições mais ridículas e defen­ da agitação pós-guerra abalou a autoconfiança do ancien régime;
sivas. Fez com que discursos, protestos, censuras, petições radi­ alguns dos legalistas de 1819 mostraram-se dispostos, nos anos
cais fossem redigidos em defesa da honra, castidade, justiça e 1820, a admitir a necessidade de certas concessões restritas. Assim,
“ apego sincero ao Trono” . Fez também com que Hone e Cruik- até o Coronel Birley, da Milícia Montada de Manchester se encon­
shank escrevessem algumas de suas sátiras mais esplêndidas. Sema­ traria em campanha, nos anos 1820, pela transferência de cadei­
na após semana, ao longo de 1820, Cobbett dedicou inteiramente ras de “ burgos podres” para Manchester.234 Na mente de homens
seu Register à defesa da Rainha. Brougham, Cobbett e Aldermann como Peel, crescia a convicção de que era necessária alguma alian­
Wood trataram dos negócios da Rainha, e até escreveram as res­ ça entre os interesses industriais e agrários contra a classe operária.
postas dela aos Discursos (que também podem ter escrito), a ponto Mas a influência duradoura de Peterloo residia no puro hor­
de, justificadamente, o ultralegalista John Bull poder afirmar: “ Ela ror dos acontecimentos do dia. Em 1819, a ação dos legalistas
é uma líder dos radicais da mesma forma como Hunt antes dela” . obteve muitos defensores entre sua classe. Dez anos mais tarde,
era um acontecimento recordado com culpa, mesmo entre a fidal-
Esses devotos grandiloqüentes, bombásticos, cegos da desordem guia. Passou para a geração seguinte como um massacre e uma
e do motim, importam-se com a Rainha tão pouco quanto se
“ Waterloo dos pobres”. E, devido ao ódio em relação ao aconteci­
importavam com Hunt. Ela serve de mastro para içar o Barrete
mento, podemos dizer que, nos anais do “inglês livre de nascimen­
revolucionário da Liberdade. Burdett foi o mastro dc outrora
(...) Hunt foi o último mastro antes da Rainha: e agora sua to”, o massacre ainda foi, à sua maneira, uma vitória. Mesmo a
Majestade se confirmou como a verdadeira Mãe Barrete-Vermelho Velha Corrupção sabia, no seu íntimo, que não ousaria repeti-lo.
da facção.231 Dado que o consenso moral da nação proscreveu a perseguição a ca­
valo e o uso de sabres contra uma multidão desarmada, daí o coro­
Mas o que estava posto na Rainha não era mais o “ Barrete lário: ganhou-se o direito de reunião pública. Desde então, grevistas
revolucionário da Liberdade” . Este se perdera em algum lugar, ou trabalhadores rurais podiam ser perseguidos a cavalo ou disper­
no caminho entre Peterloo e Cato Street. Na verdade, o que pre­ sados com violência. Mas, desde Peterloo, nunca mais as autori­
dominou na agitação de Brougham, Wood e Hobhouse foi um pres­ dades se atreveram a empregar a mesma força contra uma multi­
ságio da forma do novo movimento nos anos 1820, sob a orien­ dão inglesa pacífica. Mesmo o tratamento dado aos “ Motins do
tação dos utilitaristas de classe média e Whigs mais jovens.232 Tabaco” (1842) e ao Domingo Sangrento (1887) tinha uma vio­
lência cuidadosamente controlada. O incidente mais portentoso do
16 de agosto ocorreu não em St Peter’s Fields, mas algumas horas
231. John Bull, 24 de dezembro (citado em Maccoby, op. cit., p. 354).
232. Sobre o caso da Rainha Carolina, ver Chester New, Life of Henry
Brougham, cap. 13; Halévy, The Liberal Awaketíing, pp. 80-106; Maccoby. 233. Wilberforce, Life, V. p. 37.
op. cit.. cap. 20; Cole, Life of Cobbett, cap. 16. 234. Ver D. Read, op. cit., cap. 11.

300 301
depois, na estrada que saía de Manchester. Samuel Bamford,
depois de procurar ansiosamente sua mulher, tomou o caminho
para casa, seguindo pela estrada por onde corriam centenas de
pessoas, em confusa debandada para os distritos do planalto. Em
Harpurhay, alcançou um grande número dos contingentes de Mid-
dleton e Rochdale: 4

Reuni-me aos meus camaradas, e pondo em fila cerca de mil deles, CONSCIÊNCIA DE CLASSE
partimos ao som do pífano e do tambor, com nosso único estan­
darte flutuando, e dessa forma reentramos na cidade de Middleton.

I. A Cultura Radical

Em comparação com os anos radicais que a precederam e os


anos cartistas que a sucederam, a década de 1820 parece estra­
nhamente calma — um planalto mansamente próspero de paz
social. Mas, muitos anos depois, um verdureiro londrino advertiu
Mayhew:

As pessoas imaginam que, quando tudo está quieto, está se estag­


nando. O propagandismo continua apesar disso. Ê quando tudo
está quieto que a semente cresce, os republicanos e socialistas
levam à frente suas doutrinas.1

Esses anos calmos foram os anos de luta de Richard Carlile


pela liberdade de imprensa; do aumento da força sindical e da
revogação das Leis de Associação; do crescimento do livre pensa­
mento, da experiência cooperativa e da teoria owenista. São anos
em que grupos e indivíduos tentaram teorizar as experiências gê­
meas que descrevemos — a experiência da Revolução Industrial
e a experiência do radicalismo popular insurgido e derrotado. E,
no final da década, quando a luta entre a Velha Corrupção e a
Reforma atingiu o seu clímax, é possível falar de uma nova forma
de consciência dos trabalhadores em relação aos seus interesses
e à sua situação enquanto classe.
Num determinado sentido, podemos descrever o radicalismo
popular daqueles anos como uma cultura intelectual. A consciên­
cia articulada do autodidata era sobretudo uma consciência polí­
tica. Poi a primeira metade do século 19, quando a educa-

L Mayhew, op. cit., I, p. 22.

302 303
depois, na estrada que saía de Manchester. Samuel Bamford.
depois de procurar ansiosamente sua mulher, tomou o caminho
para casa, seguindo pela estrada por onde corriam centenas de
pessoas, em confusa debandada para os distritos do planalto. Em
Harpurhay, alcançou um grande número dos contingentes de Mid-
dleton e Rochdale: 4

Reuni-me aos meus camaradas, e pondo em fila cerca de mil deles, CONSCIÊNCIA DE CLASSE
partimos ao som do pífano e do tambor, com nosso único estam
darte flutuando, e dessa forma reentramos na cidade de Middleton.

I. A Cultura Radical

Em comparação com os anos radicais que a precederam e os


anos cartistas que a sucederam, a década de 1820 parece estra­
nhamente calma — um planalto mansamente próspero de paz
social. Mas, muitos anos depois, um verdureiro londrino advertiu
Mayhew:

As pessoas imaginam que, quando tudo está quieto, está se estag­


nando. O propagandismo continua apesar disso. É quando tudo
está quieto que a semente cresce, os republicanos e socialistas
levam à frente suas doutrinas.1

Esses anos calmos foram os anos de luta de Richard Carlile


pela liberdade de imprensa; do aumento da força sindical e da
revogação das Leis de Associação; do crescimento do livre pensa­
mento, da experiência cooperativa e da teoria owenista. São anos
em que grupos e indivíduos tentaram teorizar as experiências gê­
meas que descrevemos — a experiência da Revolução Industrial
e a experiência do radicalismo popular insurgido e derrotado. E,
no final da década, quando a luta entre a Velha Corrupção e a
Reforma atingiu o seu clímax, é possível falar de uma nova forma
de consciência dos trabalhadores em relação aos seus interesses
e à sua situação enquanto classe.
Num determinado sentido, podemos descrever o radicalismo
popular daqueles anos como uma cultura intelectual. A consciên­
cia articulada do autodidata era sobretudo uma consciência polí­
tica. Poi a primeira metade do século 19, quando a educa­

is Mayhew, op. cit., 1, p. 22.

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ção formal de grande parte do povo se resumia a ler, escrever e dor analfabeto podia andar quilômetros para ouvir um orador
contar, não foi absolutamente um período de atrofia intelectual. radical, da mesma forma como ele (ou um outro) andaria para
As vilas, e até as aldeias, ressoavam com a energia dos autodida­ escutar um sermão. Em períodos de fermentação política, os anal­
tas. Dadas as técnicas elementares de alfabetização, os diaristas, fabetos pediriam aos companheiros de trabalho que lessem os
artesãos, lojistas, escreventes e mestres-escolas punham-se a apren­ periódicos em voz alta; lia-se o jornal nas pensões dos artífices, e
der por conta própria, individualmente ou em grupo. E os livros nas reuniões políticas gastava-se um tempo imenso com a leitura de
ou instrutores, muitas vezes, eram os que contavam com a apro­ discursos e a aprovação de longas séries de resoluções. O radical
vação da opinião reformadora. Um sapateiro, que aprendera a ler fervoroso até podia atribuir uma virtude talismânica à posse de
pelo Antigo Testamento, ia se aperfeiçoar com a Idade da Razão; obras privilegiadas que era incapaz de ler sozinho. Um sapateiro
um mestre-escola, cuja instrução não o levara muito além de de Cheltenham, que chamava W. E. Adams pontualmente, a cada
meritórias homílias religiosas, tentaria Voltaire, Gibbon, Ricardo; domingo, para ler-lhe “ a carta de Feargus”, era porém o orgulho­
aqui e ali, líderes radicais locais, tecelãos, livreiros, alfaiates reu- so dono de vários livros de Cobbett, cuidadosamente conservados
niriam pilhas de periódicos radicais e aprenderíam a usar as publi­ em capas de couro tratado.3
cações oficiais do Parlamento; diaristas analfabetos nem por isso Estudos recentes vêm esclarecendo muito a situação do leitor
deixavam de ir, todas as semanas, a um bar onde lia-se em voz operário daqueles anos.4 Para simplificar uma discussão complexa,
alta e discutia-se o editorial de Cobbett. podemos dizer que, nas primeiras décadas do século, cerca de
Assim, a partir de sua experiência própria e com o recurso dois em cada três operários conseguiam ler de alguma forma,
à sua instrução errante e arduamente obtida, os trabalhadores for­ embora fossem menos os que sabiam escrever. À medida que sc
maram um quadro fundamentalmente político da organização da sentia cada vez mais o efeito das escolas dominicais c diárias,
sociedade. Aprenderam a ver suas vidas como parte de uma histó­ além do esforço de auto-aperfeiçoamento entre os próprios traba­
ria geral de conflitos entre, de um lado, o que se definia vagamen­ lhadores, caía o número de analfabetos, embora esse decréscimo
te como “ classes industriosas” e, de outro, a Câmara não-refor- fosse mais lento nas áreas onde eram mais graves os problemas
mada dos Comuns. De 1830 em diante, veio a amadurecer uma do trabalho infantil. Mas a capacidade de leitura era apenas a
consciência de classe, no sentido marxista tradicional, mais clara­ técnica elementar. A capacidade de operar com argumentos abstra­
mente definida, com a qual os trabalhadores estavam cientes de tos e sucessivos não era absolutamente inata; tinha de ser desco­
prosseguir por conta própria em lutas antigas e novas. berta à custa de dificuldades quase esmagadoras — a falta de
É difícil formular generalizações sobre o grau de alfabetiza­ tempo livre, o preço das velas (ou dos óculos), além das carências
ção nos primeiros anos do século. As “ classes industriosas”, num de formação. Nos inícios do movimento radical, às vezes empre­
dos extremos, incluíam um milhão ou mais de analfabetos, ou de gavam-se idéias e termos que, evidentemente, tinham um valor
alfabetizados cujo grau de instrução ia pouco além da capacidade mais fetichista do que racional para alguns adeptos fervorosos.
de soletrar umas poucas palavras ou de escrever seus nomes. No Alguns dos rebeldes de Pentridge achavam que um “ Governo
outro extremo, estavam indivíduos com realizações intelectuais Provisório” garantiría um fornecimento maior de “ provisões” , ao
consideráveis. De forma nenhuma o analfabetismo (devemos lem­ passo que, segundo um relato dos mineiros do nordeste, em 1819
brar) excluía os indivíduos do discurso político. Na Inglaterra de “o Sufrágio Universal é entendido por muitos deles como sofri-
Mayhew, os cantadores de baladas e os “ discurseiros” ainda se
dedicavam a uma ocupação próspera, com suas farsas de rua
e paródias de esquina, seguindo o estado de espírito popular e 3. W. E. Adams, M e m o ir s o f a S o c ia l A t o m (1903), I, p. 164.
4. Ver em esp. R. K. Webb, T h e B r itish W o r k i n g C la ss R e a d e r, Í790-Í84S
dando um teor radical ou antipapista aos seus monólogos ou can­ 0955), o artigo do mesmo autor, "Working-Class Readers in Early Victorian
tilenas satíricas, conforme as condições do mercado.2 O trabalha­ England", E n g lis h H is í. R e v ., LXV (1950); R. D. Altick, T h e E n g lish
C o m m o n R e a d e r (Chicago, 1957), em esp. cap. 4, 7, 11; e T. F. C. Harrison.
L e a rn in g a n d L iv in g (1961), Parte Um.
2. Ver em esp. Mayhew, op. cit., I, pp. 252 ss.
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304
mento universal ( . . . ) ‘se um membro sofre todos têm de so­ Agüentar isso/malditos sejam todos Esses Patifes e governantes
frer’ V da Inglaterra mas Não faz mal Ned lud quando o general nody e
seu exército Vier Nós Vamos logo fazer a grande Revolução
Essas evidências relativas à instrução alcançada por operários então as cabeças de todos esses grandes homens vão fora.*
nas duas primeiras décadas do século servem apenas para mostrar
que as generalizações são tolas. Na época luddista (quando poucos Outros dos benefícios prometidos do “ general nody” eram: “ Nós
não-operários teriam apoiado suas ações), as mensagens anônimas Vamos Derrubar as Prisões e o Juiz nós Vamos matar quando
variam desde digressões autoconscientes sobre a “ liberdade com estiver dormindo”.7
seus Sorridentes Atributos” até pixações quase ilegíveis em muros.
A diferença (dir-nos-ão os críticos) não é apenas uma questão
Podemos tomar os dois tipos de exemplo. Em 1812, o Investigador
de estilo: é também uma questão de sensibilidade. Podemos supor
de Salford, que apresentara o veredicto de “ Homicídio Justificável”
que o primeiro foi escrito por um artesão grisalho de óculos —
para o corpo de um homem alvejado quando atacava a usina de
um remendão (ou chapeleiro ou fazedor de instrumentos) com
Burton, foi advertido:
Voltaire, Volney e Paine na prateleira, e gosto pelos grandes
autores trágicos. Entre os prisioneiros de Estado de 1817, havia
. . .saiba você, execrável insinuador, que se a ação infame de
Burton foi “justificável”, as Leis dos Tiranos são Ditames da outros homens desse tipo, vindos de Lancashire: o septuagenário
Razão. — Cuidado, Cuidado! A imersão nas águas do Estige William Ogden, impressor de cartas, que da prisão escreveu para
durante um mês não apagaria de nossas mentes esse feito sangui­ sua mulher: “ embora esteja em Ferros, encarei meus inimigos
nário, mas só aumenta a causa hereditária que nos revolve em como o Grande Caractacus quando da mesma situação”; Joseph
indignação.56* Mitchell, outro impressor, cujas filhas se chamava Mirtilla, Caro-
lina e Cordelia, e que — quando nasceu-lhe outra filha durante
A carta conclui com “Ludd finis est” — um lembrete de que sua prisão — escreveu apressadamente à mulher, propondo que a
Manchester orgulhava-se de ter um curso secundário (que o pró­ criança se chamasse Portia; ou o próprio Samuel Bamford, cujas
prio Bamford freqüentou por breve tempo), além de escolas parti­ instruções para a esposa foram mais específicas: “ a Mulher de
culares, onde os filhos dos artesãos podiam aprender latim sufi­ um Reformador deve ser uma heroína”.8 A segunda carta (podemos
ciente para tanto. O outro documento foi encontrado no Mercado ter quase certeza) é obra de um carvoeiro ou malharista de aldeia.
de Chesterfield. O propósito é muito semelhante, mas (apesar das É muito parecida com a carta mais jocosa, deixada em 1831 por
diferenças de instrução em desfavor do autor) de algum modo um mineiro da jazida carbonífera do nordeste na casa de um
porta uma maior convicção: explorador de minas, onde ele e alguns colegas irromperam duran­
te um motim grevista:
Vou lhe informar que tem Seis Mil homens que vão até você
Estive em sua casa na noite passada, e me pus muito à vontade.
em abril e então Nós Vamos ir e Explodir o Parlamento e Explo­
Você não tem família, e é um homem só com a mina de carvão,
dir tudo na nossa frente/o Povo trabalhador Não Pode Mais
vejo que você tem uma grande quantidade de cômodos e grandes

5. Political Observer, 19 de dezembro de 1819. * *7 Ham going to inform you that there is Six Thousand men coming
6. Uma outra carta (“Eliza Ludd" ao Rev. W. R. Hay, l.° de maio de to you in Apral and the We Will go and Blow Parlement house up and
1812) começa: “Sir, Sem Dúvida o senhor está bem familiarizado com a Blow up all afour hus/labring Peple Cant Stand it No Longer/dam all Such
História Política dos Estados Unidos", ambas em H. O. 40.1. Roges as England governes but Never mind Ned lud when general nody
* ".. .know thou cursed insinuater, if Burton’s injamous actions u>íjs ‘just~ and his harmey Comes We Will soon bring about the greate Revolution then
i f i a b l e t h e Laws of Tyrants are Reasons Dictates. — Beware, Beware! all these greate mens heads gose of.m
A Montlis bathing in the Stygian Lake would not was this sanguinary 7. H. O. 42.121.
deed from our minds, it but augments the heritable cause, that stirs up in 8. H. O. 42.163; Blanketteer, 20 de novembro de 1819.
indignation. *
307
306
adegas, e muito vinho e cerveja nelas, das quais peguei minha descansar rezo a Deus para perdoar todos os meus inimigos c
parte. Agora conheço alguns da nossa mina que têm três ou mudar seus corações.. .*
quatro rapazes e menores, e vivem em um cômodo que não é
nem metade de sua adega. Não pretendo saber muito, mas sei Ao lado, podemos pôr a carta do carpinteiro de Sheffield,
que não devia existir essa diferença tão grande. O único lugar Wolstenholme, para a sua mulher:
em que podemos ir nos finais de semana é a cervejaria e tomar
um caneco. Não pretendo que seja uma vantagem, mas sei disso, Nosso Pastor me emprestou quatro boletins do Missionary Register
e montes dos meus camaradas sabem que não somos tratados que me dão grande satisfação em ver como o Senhor prossegue
como deveriamos ser, e um grande filósofo diz que conhecer é com sua obra de graça em regiões distantes.**
saber que somos ignorantes. Mas já começamos a desmascarar
isso, e vocês patrões e proprietários podem tomar cuidado, pois
não vão ganhar tanto por sua conta própria, agora vamos ter algo O texto dessa carta foi escrito com dificuldade, visto que
de nosso. . .9* “quebrei meus óculos”.11 Essas cartas eram redigidas com um
tempo livre incomum. Quase podemos ver Wolstenholme a sole­
trar laboriosamente suas palavras, parando para consultar um
“ Se as Sociedades Bíblicas e as sociedades da Escola Domi­
prisioneiro mais “ bem-instruído” quando chegava ao obstáculo da
nical não foram freqüentadas para nenhum outro bem”, observou
palavra “ satisfação”. A Sra. Johnston pode ter consultado (mas
Sherwin, “ pelo menos produziram um efeito benéfico — foram provavelmente não o fez) um dos escritores de cartas “ profissio­
o meio de ensinar muitos milhares de crianças a ler”.10 As cartas nais” que se encontravam na maioria das vilas e aldeias, a 1 pêni
de Brandreth e sua mulher, dos conspiradores da Cato Street e por vez, por uma carta em forma adequada. Pois, mesmo entre
outros prisioneiros do Estado dão-nos alguma idéia sobre aquele os letrados, escrever cartas era incomum. O preço da postagem,
grande espaço entre as realizações dos artesãos qualificados e as por si só, tornava-o proibitivo, exceto a raros intervalos. Uma carta
dos semiletrados. Em algum ponto intermediário, podemos colocar do norte a Londres podia custar 1 xelim e 10 penies, e sabemos
a Sra. lohnston, dirigindo-se ao seu marido (“ Meu Querido John- que tanto a Sra. Johnston como a Sra. Wolstenholme estavam pas­
ston”), um oficial de alfaiataria, na prisão: sando por privações, na ausência dos maridos — os sapatos da
Sra. Johnston estavam encharcados de água, e desde que o marido
. .creia-me meu Querido que não há um dia nem uma hora do fora preso não pudera comprar nenhum outro par.
dia que minha mente não se empenhe um tanto ou quanto em Ao que parece, todos os prisioneiros da Cato Street sabiam
você. Posso rogar ao todo-poderoso que é verdade e quando vou escrever, de uma ou outra forma. Brunt, o sapateiro, temperou
alguns versos irônicos com um pouco de francês, ao passo que
9. R. Fynes, The Miners of Northumberland and Durham (ed. 1923), p. 21. James Wilson escreveu:
* "l was aí yor hoose last neet, and meyd mysel very comfortable. Ye hey
nee family, and yor just won man on the colliery, I see ye hev a greet lot * *.. .believe me my Dear if thare is not a day nor a hour in the day
of rooms, and big cellars, and plenty ivine and beer in them, which I got but what my mind is less or more engage about you. I can appeal to the
ma share on. Noo I naw some at wor colliery that has three of fower lads almighty that it is true and when I retire to rest I pray God to forgive alt
and lesses, and they live in won room not half as gude as yor cellar. I dont my enimies and change thare heart. .."
pretend to naw very much, but I naw there shudnt be that much difference.
** "Our Minaster hath lent me four vollams of the Missionary Register
The only place we can gan to o the week ends is the yel hoose and hev a>
pint. í dinna pretend to be a profit, but I naw this, and lots o ma marrows which give me grat satisfaction to se ou the Lord is carin on is work of
grais in distant contres."
nas te, that wer not tret as we owt to be, and a great filosopher says, to
get noledge is to naw wer ignorent. But weve just begun to find that, oot, 11. H. O. 42.172. Esses missivistas, que aguardavam impacientes pela sua
and ye maisters and owners may luk oot, for yor not gan to get se much libertação, sabiam que sua correspondência era lida pelo diretor da prisão,
o yor own way, wer gan to hev some o wors now .. e portanto eram particularmente propensos a incluir referências a perdão,
10. Political Register, de Sherwin, 17 de maio de 1817. misericórdia c leituras edificantes.

309
308
a Causa que retesou o braço de Bruto
para com alarme golpear um Tirano Na maioria dos ofícios artesanais, os oficiais e pequenos mes­
a causa por que morreu o bravo Hamden tres consideravam como uma necessidade profissional um certo
por que o Valoroso TelI desafiou grau de leitura e trato com os números.
a insolência e orgulho de um Tirano.
Além do cantador de baladas, o “homem dos números” ou o
“ homem dos calendários” percorria os distritos operários, venden­
Por outro lado, Richard Tidd, outro sapateiro, só conseguia do panfletos com a estória de casos,15 almanaques, últimas pala­
compor: “ Senhor sou muito ruim para escrever’* (Sir I Ham a vras e (entre 1816 e 1820, e depois esporadicamente) periódicos
very Bad Hand at Righting”).12 Evidentemente, não podemos to­ radicais. (Um desses “ homens dos calendários”, que viajava a cargo
má-los como “ amostra”, visto que seu envolvimento em atividades de Cowdrey e Black, os “editores sediciosos (i.é., Whig) de Man-
políticas indica que pertenciam à minoria mais consciente que chester”, foi detido pelos magistrados em 1812, pois descobriu-se
seguia a imprensa radical. Mas podem nos servir de advertência que nos seus catálogos vinha escrito: “ Não ao rei cego — Ned
para não subestimar o efetivo grau de alfabetização.13 Os artesãos Ludd para sempre”.16) Um dos traços mais extraordinários do
são um caso específico — a élite intelectual da classe. Mas exis­ radicalismo pós-guerra era o seu esforço contínuo de ampliar essas
tiam, disseminadas por todas as partes da Inglaterra, inúmeras realizações e aumentar o nível de consciência política. Em Barns-
instituições educacionais para trabalhadores, mesmo que o termo ley, já em janeiro de 1816, formou-se um clube de tecelãos, a 1
“instituição” seja formal demais para designar a escola de mu­ pêni por mês, com a finalidade de comprar periódicos e jornais
lheres, a escola noturna a 1 pêni por semana, dirigida por um radicais. Os Clubes Hampden e as Uniões Políticas empenhavam-
se largamente em montar “ Sociedades de Leitura”, e nos centros
aleijado por acidente de fábrica ou um mineiro inválido, ou a
maiores abriram salas de jornais ou de leitura permanentes, como
própria escola dominical. Nos vales da Cadeia Penina, onde os
a que ficava em Hamley nas Potteries. O local ficava aberto das
filhos dos tecelãos eram pobres demais e não podiam pagar o
8 horas da manhã até as 10 horas da noite. Havia penalidades
papel ou a lousa, aprendiam a escrever traçando as letras com*o
contra o uso de pragas, linguagem indecente e embriaguez. Todas
dedo numa mesa com areia por cima. Se milhares de pessoas, ao
as noites, os jornais de Londres deviam ser “ lidos publicamente” .
chegarem à idade adulta, perderam esses resultados elementares, Em 1818, nas salas da União de Stockport, segundo Joseph Mit-
por outro lado o trabalho das Igrejas Não-Conformistas, das asso­ chell, nas segundas-feiras à noite realizava-se uma reunião dos
ciações de amigos e sindicatos, e as exigências da própria indús­ líderes de classe; nas terças, “ leituras morais e políticas” ; nas
tria requeriam a consolidação e aperfeiçoamento dessa aprendi­ quartas, “uma conversa ou debate”; nas quintas, ensinava-se “ Gra­
zagem. “ Descobri” , declarou em 1824 Alexander Galloway, o mática, Aritmética &c.” ; os sábados eram noites sociais, enquanto
mestre-maquinista: os domingos eram dias de escola para adultos e crianças. Em
Blackburn, os membros da Sociedade Feminina de Reforma pro­
com o modo de dirigir meu negócio, por desenhos e descrições meteram-se “ empregar nosso máximo esforço para instilar nas
escritas, que um homem não é muito útil a não ser que saiba ler mentes dos nossos filhos um ódio profundo e enraizado aos nos­
e escrever; se um homem pede serviço, e diz que não sabe ler sos dirigentes corruptos e tirânicos”. Um dos meios era o uso de
nem escrever, nada mais lhe é perguntado.. .14 “ O Mau Alfabeto para o uso dos Filhos de Mulheres Reforma-
doras” : B de Bíblia, Bispo e Intolerância (Bigotry); K de Rei,
Escrófula, Velhaco e Raptor (King, King’s evil, Knave e Kid-
12. Ver J. Stanhope, op. cit., pp. 161-7.
13. Parte da mais antiga correspondência sindical sobrevivente — a dos
malharistas em bastidor nos Arquivos da Cidade de Nottingham — mostra 15. Catnach, “Trial of Thurtell", 500.000 (1823); “Confession and Execution
uma ampla difusão de grau de instrução alcançada. Ver atrás, pp. 104-10. of Corder", 1.166.000 (1828).
14. First Report ( . . . ) on Artizans and Machinery (1824), p. 25. 16. H. O. 40.1.

310 311
napper); W de Whig, Fraqueza, Vacilante e Cruel (Weakness, milhares ao longo de boa parte dos anos 1820. Com a agitação
Wavering e Wiclced). do Projeto de Lei da Reforma, a imprensa radical mais uma vez
A despeito da repressão a partir de 1819, a tradição de man­ atingiu uma circulação maior: o Voice of the People de Doherty e
ter tais salas de notícias (às vezes associadas à loja de um livreiro The Pioneer tinham uma edição superior a 10.000 exemplares,
radical) continuou pelos anos 1820. Em Londres, depois da guerra, assim como o Gauntlet de Carlile e o Poor Manfs Guardian de
houve uma proliferação de cafés, muitos com essa dupla função. Hetherington, ao passo que uma dúzia de periódicos menores,
Em 1853, o famoso “ Café e Sala de Notícias” de John Doherty, como o Destructive, rodavam alguns milhares. A queda violenta
anexo à sua livraria em Manchester, recebia semanalmente nada nas vendas de periódicos semanais caros (de 7 penies a 1 xelim),
menos de noventa e seis jornais, inclusive os ilegais “ não-fran- durante o decênio do imposto de franquia, foi em larga medida
queados”. Nas aldeias e vilas menores, os grupos de leitura eram compensada pelo crescimento nas vendas de livros baratos e
menos formais, mas não menos importantes. Às vezes encontra­ panfletos individuais, que iam desde A Casa Política que Jack
vam-se em estalagens, “ bares ilegais'’ ou casas particulares; às Construiu (100.000 exemplares) à Economia Rural (50.000, 1822-
vezes, o periódico era lido e discutido na oficina. O preço alto 28), História da “Reforma” Protestante e Sermões (211.000, 1821-
dos periódicos, durante a época dos “ impostos sobre o conheci­ 28), de Cobbett. Nesse mesmo período existiam na maioria dos
mento” mais pesados, levou a milhares de arranjos ad hoc, em que grandes centros um ou mais (e em Londres uma dúzia) diários ou
pequenos grupos faziam uma arrecadação para comprar o jornal es­ semanários que, ainda que não declaradamente “ radicais”, aten­
colhido. Durante a agitação do Projeto de Lei da Reforma, Thomas diam a esse grande público radical. E o crescimento desse enorme
Dunning, um sapateiro de Nantwich, associou-se com seus colegas público leitor operário e petit-bourgeois era reconhecido por aque­
de oficina e “ nosso pastor unitarista ( . . . ) para assinar o Weekly las influentes organizações — principalmente a Sociedade para a
Dispatch, de 8,5 penies, sendo a franquia 4 penies. Era caro de­ Promoção do Conhecimento Cristão e a Sociedade de Difusão de
mais para um crispino mal pago.. .” .17* Conhecimentos Üteis — , que faziam esforços prodigiosos e prodi­
gamente subsidiados para desviar os leitores para questões mais
A circulação da imprensa radical variava enormemente. O saudáveis e proveitosas.19
Register de Cobbett, a 2 penies, no seu auge entre outubro de
1816 e fevereiro de 1817, rodava uma edição semanal de 40.000 Esta era a cultura — com suas ávidas disputas em torno das
a 60.000 exemplares, quantidade muitas vezes superior a qualquer bancas de livros, nas tavernas, oficinas e cafés — que Shelley
tipo de concorrente.18 O Black Dwarf rodou cerca de 122.000 saudou em sua “ Canção aos Homens da Inglaterra” , e onde ama­
exemplares em 1819, embora essa quantia provavelmente tenha dureceu o gênio de Dickens. Mas seria um erro vê-la como um
sido superada depois de Peterloo. A partir daí, o imposto de único “público leitor” indiferenciado. Podemos dizer que existiam
franquia (e a recessão do movimento) reduziu severamente a vários “públicos” diferentes que se entrechocavam e se sobrepu­
circulação, embora os periódicos de Carlile fossem impressos aos nham, mas no entanto organizados segundo princípios diversos.
Entre os mais importantes estavam o público comercial, puro e
simples, que podia ser explorado em períodos de excitação radical
17. Sobre as salas dc leitura radicais, ver A. Aspinall, P o litic s a n d th e (os julgamentos de Brandreth e Thistlewood eram tão comerciali-
P ress (1949), pp. 25-8, 395-6; Wearmouth, op. cit., pp. 24-5, 88-9, 97-8,
111-12. Sobre Dunning, "Reminiscences" (ed. W. H. Chaloner), T r a n s. Lanes.
záveis como outras “ confissões de morte”), mas atendido apenas
& C h e s h ir e A n t i q . S o c ., LIX, 1947, p. 97. Sobre Stockport, ver B la n k e tte e r , segundo os critérios de rentabilidade; os vários públicos, mais ou
27 de novembro de 1819, e D. Read, op. cit., p. 48 f. Sobre Blackburn, menos organizados, em torno das Igrejas ou dos Institutos de Artes
W. W. Kindey, “Some Aspects of Lancashire Radicalism” (Tese de mestrado, e Ofícios; o público passivo que as sociedades de aperfeiçoamento
Manchester, 1927), p. 667.
* C risp in : referência a São Crispino, mártir cristão e santo padroeiro dos
sapateiros. (N . d o T .) 19. Sobre as tentativas de substituir a imprensa radical com matérias segu­
18. Em 1822, a circulação do principal diário, T h e T i m e s , era de 5.730 ras e edificantes, ver R. K. Webb, op. cit., cap. 2, 3, 4. e J. F. C. Harrison.
exemplares: do O b s e r v e r (semanário), 6.860. op. cit., cap. 1 e 2.

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tentavam conquistar e redimir; e o público radical ativo que se
indiciações ex-officio registradas pelos oficiais judiciários da Co­
organizou frente às Seis Leis e os impostos sobre o conhecimento.
roa.21 Os louros da vitória, neste ano, foram para Wooler e Hone,
A luta para constituir e sustentar este último público foi
e para os júris londrinos que se recusaram a pronunciar uma
admiravelmente apresentada por W. D. Wickwar, em A Luta pela
condenação. Wooler conduziu pessoalmente a sua defesa; era um
Liberdade de Imprensa.20 Talvez não exista nenhum país no mun­
orador capaz, com alguma experiência de tribunais, e defendeu-se
do onde a disputa pelos direitos da imprensa tenha sido tão áspe­
habilmente à maneira libertária grandiloqüente. O resultado dos
ra, tão enfaticamente vitoriosa e tão particularmente identificada
seus dois julgamentos (5 de junho de 1817) foi um veredito de
com a causa dos artesãos e diaristas. Se Peterloo instituiu (por
“ Não Culpado” e um veredito polêmico de “ Culpado” (contestado
um paradoxo dos sentimentos) o direito de manifestação pública,
por três jurados), posteriormente alterado no Supremo Tribunal.22
os direitos de uma “ imprensa livre” foram conseguidos numa cam­
Os três julgamentos de William Hone, em dezembro de 1817,
panha que se estendeu por quinze anos ou mais, incomparável por
fazem parte dos procedimentos legais mais hilariantes já registra­
sua audácia obstinada, cruenta e indômita. Carlile (um funileiro
dos. Hone, um livreiro pobre e antigo membro da SLC, foi
que, no entanto, tinha um ou dois anos de curso secundário em
indiciado por publicar libelos blasfemos, sob forma de paródia
Ashburton, Devon) viu corretamente que a repressão de 1819
do Catecismo, da Litania e do Credo. Hone, de fato, era apenas
converteu os direitos da imprensa no fulcro do movimento radical.
um expoente particularmente espirituoso de uma forma de pas­
Mas, ao contrário de Cobbett e Wooler, que mudaram de tom
quim político, há muito existente entre os jornaleiros e discursei-
para satisfazer às Seis Leis, na esperança de viver para lutar sob
ros ambulantes, e praticada de modo mais sofisticado por homens
outras condições (e que com isso perderam circulação), Carlile
de todas as facções, desde Wilkes aos redatores do Anti-Jacobin.
içou a bandeira negra do desafio não-autorizado e, como um
Hone, na verdade, nem achava que era o caso de pôr em risco
barquinho pirata, rumou diretamente para dentro das frotas asso­
a liberdade pelas suas paródias. Quando se iniciou a repressão de
ciadas do Estado e da Igreja. Quando, na esteira de Peterloo, fevereiro de 1817, tentou recolhê-las; e foi Carlile, ao republicá-
apresentou-se a julgamento (por publicar as Obras de Paine), toda las, que forçou a atitude do Governo. Eis um exemplo:
a imprensa radical louvou sua coragem, mas deu-o por perdido.
Quando finalmente retornou, após anos de reclusão, as armadas Senhor nosso que estais na Fazenda, qualquer que seja o vosso
aliadas tinham debandado em desordem para além do horizonte. nome, venha a nós o vosso poder aqui no império como em cada
Ele esgotara a munição do Governo, e convertera suas indiciações sessão. Os subornos nossos de cada dia nos dai hoje, e perdoai
ex-officio e júris especiais em objetos de derrisão. Pusera a pique as nossas ocasionais ausências nas votações, assim como prome­
as sociedades particulares de perseguição, a Associação Constitu­ temos não perdoar aqueles que votam contra vós. Não nos tireis
cional (ou “ Quadrilha da Bridge-Street”) e a Sociedade contra o de nossos cargos, mas mantende-nos na Câmara dos Comuns,
Vício, sustentadas pelo patrocínio e contribuição de nobres, bispos terra das Pensões e da Fartura; e livrai-nos do Povo. Amém.
e Wilberforce.
Carlile, evidentemente, não obteve tal triunfo sozinho. A pri­ Hone ficou preso, com saúde precária, de maio a dezembro,
meira rodada da luta fora travada em 1817, quando foram instau­ pois não tinha como pagar uma fiança de 1.000 libras. Não foi
rados vinte e seis processos por blasfêmia e sedição, e dezesseis grande a expectativa quando se soube que ele próprio conduziría
sua defesa. Mas Hone aproveitara o tempo na prisão reunindo
exemplos de outros parodistas, do passado e do presente; em seu
20. Seu relato, cobrindo o período 1817-32, gira principalmente em torno primeiro julgamento perante o juiz Abbott, conseguiu uma absol-
da primeira fase da luta — o direito de publicação —, particularmente
associada a Richard Carlile. A segunda fase, a luta dos “Grandes Não-
Franqueados" (1830-5), associada particularmente aos nomes de Carpenter. 21. Wickwar, op. cit., p. 315. Ver também ibid., pp. 38-9, sobre a forma
Hetherington, Watson, Cleave e Hobson, ainda não encontrou seu histo­ singularmente injusta de perseguição, a indiciação e x - o ffic io , que pratica­
riador. embora sejam de se ver C. D. Collett, H is to r y o/ th e T a x e s on mente permitia prisão sem julgamento.
K n o w le d g e (ed. 1933), cap. 2, e A. G. Barker, H e n r y H e th e r in g to n (s/d). 22. T h e T w o T r ia ls o f T . J. W o o le r (1817).

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vição. Nos dois dias seguintes, foi o próprio Lorde Juiz Supremo o direito de propriedade nas “ rendas profanas de publicações difa­
Eilenborough, velho, doente e irritadiço, quem presidiu aos jul­ matórias” . “ Não é um tanto estranho”, perguntou Hazlitt, “ que,
gamentos. Páginas e páginas dos registros estão repletas com as enquanto esse cavalheiro impetra um mandado contra si mesmo
interrupções de Eilenborough, as tranqüilas censuras de Hone à como autor de Wat Tyler, recomenda Projetos de Lei amordaçado-
conduta do Juiz Supremo, a leitura de paródias ridículas cuidado­ res contra nós, assim compensando pela força sua falta de argu­
samente selecionadas de várias fontes, e as ameaças do Xerife de mentos?”24 Por outro lado, Carlile (que assumira as tarefas de
prender “ o primeiro que eu enxergar dando risada” . Apesar da Sherwin) ficou mais do que contente quando o mandado foi recusa­
acusação irrestrita de Eilenborough (“ . . .em obediência à sua do — pois as vendas do poema constituíam a sua fonte principal
consciência e ao seu Deus, ele declarou-o como um libelo extre­ de renda nesse seu difícil início de um novo negócio. “ Glória a ti,
mamente ímpio e profano”), o júri apresentou mais dois vereditos Ó Southey!”, escreveu seis anos depois: {(Wat Tyler continuou a
de “ Não Culpado” , daí resultando (diz-se) que Eilenborough reti­ ser uma fonte de rendas, sempre que qualquer outra publicação po­
rou-se para seu quarto de doente, para nunca mais voltar. Daí lítica fracassava. O mundo não sabe o quanto deverá a Southey” .25
por diante — mesmo em 1819 e 1820 — , todas as paródias e Os incidentes das edições piratas de Rainha Mab e Visão do
pasquins tornaram-se imunes a perseguições.23 )uízo Final faziam parte da mesma estratégia efervescente. Nenhum
A perseguição não consegue se sustentar facilmente frente ao monarca inglês jamais foi retratado em poses mais ridículas e em
ridículo. Na verdade, há duas coisas que chamam a atenção nas termos mais ofensivos do que George IV durante a agitação da
lutas pela imprensa daqueles anos. A primeira é não a solenidade, Rainha Carolina, principalmente nos textos de Hone e Cruikshank:
mas o deleite com que Hone, Cruikshank, Carlile, Davison, Ben- O Direito Divino dos Reis de Governar Mal, Os Degraus para o
bow e outros atormentavam as autoridades. (Essa tradição foi pro­ Casamento da Rainha, Non Mi Ricordo e O Homem na Lua. Tapa
longada por Hetherington, que por várias semanas passou pelos na Cara e a Quadrilha da Rua da Ponte (1822), dos mesmos auto­
narizes dos guardas, e suas tarefas de editor do não-franqueado res, apareceu com o formato do New Times, periódico subsidiado
Poor Man*s Guardian, sob o disfarce altamente implausível de pelo Governo, trazendo um falso selo de franquia de jornal, com
quacre.) A sua detenção como editor radical trouxe-lhe, em vez o desenho de uma pata de gato e o lema “ Em Tudo Ele Bota A
de ódio, honras. A partir do momento em que os editores deci­ Pata”, e arremedos gozadores de informes e listas de nascimentos
diram que estavam dispostos a ir para a prisão, passaram a se e mortes:
empenhar entre si, sempre com novos expedientes, para ver quem
expunha seus adversários à luz mais ridícula. A Inglaterra radical Casamento
se deliciou (e ninguém mais que Hazlitt) com o Wat Tyler —
o pecadilho republicano da juventude de Southey — ressuscitado Sua Majestade Imperial o Príncipe Despotismo, vestido com um
por Sherwin. Southey, agora Poeta Laureado, era a voz mais alta desgaste, e Sua Suprema Antiguaria, A IGNORÂNCIA de De­
no clamor pela restrição da licenciosidade sediciosa da imprensa, zoito Séculos, com um declínio. Os trajes dos noivos eram
magníficos.
e impetrou um mandado contra Sherwin por violação do copirraite.
Lorde Eldon vetou o mandado: o Tribunal não poderia reconhecer
Enquanto Carlile continuava a lutar na prisão, os satiristas
varriam a fogo os seus acusadores.
23. S e c o n d T r ia l o f W illia m H o n e (1818), pp. 17, 45; P ro c e e d in g s at
th e P u b lic M e e íin g para organizar contribuições para Hone (1818); F. W.
Hackwood, W illia m H o n e (1912), cap. 9-11; Wickwar, op. cit., pp. 58-9. 24. Hazlitt, W o r k s , VII, pp. 176 ss. “Em vez de se aplicar num mandado
Um velho discurseiro de rua disse a Mayhew (I, p. 252) que, apesar das contra W a t T y l e r ", opinava Hazlitt, “o Sr. Southey faria melhor em se
absolvições, continuava difícil "trabalhar" com as paródias de Hone nas aplicar num mandado contra o Sr. Coleridge, que tomou sua defesa cm
T h e C o u r ie r ".
ruas: “havia um monte de guardas e policiais prontos a deter os tipos,
25. R e p u b lic a n , de Sherwin. 29 de março de 1817; R e p ú b lic a n , de Carlile.
e ( . . . ) um juiz que quisesse agradar aos grãos-senhores, acharia algum jeito
50 de maio de 1823.
de prendê-los

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O segundo ponto é a efetiva resistência da tradição libertária pre se manteve ali, com suas colunas — como o Republican —
e constitucional, não obstante as investidas do Governo. Não é abertas a qualquer caso de perseguição, de Bodmin a Berwick.
apenas uma questão de apoio em locais inesperados — a lista de As honras desse embate não pertenceram a uma classe única.
contribuições de Honc vinha encabeçada por doações de um duque John Hunt e Thelwall (agora solidamente situados entre os mode­
Whig, um marques e dois condes — que indica um desconforto rados de classe média) estavam entre os importunados pela “ Qua­
dentro da própria classe dominante. O que fica evidente a partir drilha da Rua da Ponte”; Sir Charles Wolseley, Burdett, o Reve­
dos relatórios dos oficiais judiciários da Coroa, em todos os julga­ rendo Joseph Harrison estavam entre os presos por sedição. Mas
mentos políticos, é o cuidado com que procederam. Estavam cons­ Carlile e seus balconistas estavam entre os que levaram o desafio
cientes, em particular, do caráter não-confiável (para seus propó­ ao seu mais alto grau. A principal luta se encerrou em 1823,
sitos) do sistema de júri. Pela Lei contra o Libelo de 1792, de embora se repetissem as perseguições no final dos anos 20 e
Fox, os jurados eram juizes tanto do libelo como do fato da início dos anos 30, e processos por blasfêmia continuaram a
correr até a época vitoriana. O maior delito de Carlile foi con­
publicação; por mais que os juizes pudessem tentar deixá-lo de
tinuar com a impassível publicação das Obras Políticas, e depois
lado, isso de fato significava que doze teriam de decidir se julga­
as Obras Teológicas de Tom Paine — obras que, embora circulan­
vam o “ libelo” perigoso a ponto de merecer, ou não, o encarcera­
do subrepticiamente nos enclaves dos “velhos Jacks” das cidades,
mento. Um processo do Estado que falhasse era um golpe no
tinham sido proibidas desde o julgamento in absentia de Paine,
moral da autoridade que só seria reparado com a vitória em três em 1792, e os julgamentos sucessivos de Daniel Isaac Eaton, du­
outros processos. Mesmo em 1819-21, quando o Governo e as rante as Guerras. A isso, ele somou muitos outros delitos conforme
sociedades de perseguição ganharam quase todas as causas26 (em prosseguia a luta; pessoalmente passara do deísmo para o ateísmo
parte devido a um melhor emprego dos recursos legais e de sua e lançava provocações — tais como a defesa do assassinato — que,
influência sobre os jurados, em parte porque Carlile estava mais sob qualquer ponto de vista do caso, eram instigações a novas
provocador do que nunca e tinha deslocado o campo de batalha perseguições. Foi um homem indômito, mas dificilmente apreciá­
da sedição para a blasfêmia), ainda assim não é possível falar vel, e seus últimos anos de prisão não o modificaram. Sua força
num despotismo “ totalitário” ou “asiático”. Os relatórios dos jul­ residia em duas coisas. Primeiro, não adimitiria sequer a possibi­
gamentos circulavam amplamente, com as próprias passagens — às lidade de derrota. Segundo, tinha como respaldo a cultura dos
vezes, na verdade, livros inteiros lidos pelos réus no tribunal — artesãos.
responsáveis pela condenação dos acusados. Carlile continuava a O primeiro ponto não é tão evidente como pode parecer.
editar imperturbavelmente o seu Republican na prisão; alguns dos Muitos homens resolutos (como nos anos 1790) foram silenciados
seus balconistas, aliás, passaram a editar na prisão um outro ou derrotados. É verdade que o tipo de determinação de Carlile
jornal, como meio de auto-aperfeiçoamento. Se o Black Dwarf de (“A LOJA DA FLEET STREET NÃO SERÁ FECHADA PURA
E SIMPLESMENTE”) era de trato particularmente difícil para as
Wooler desapareceu em 1824, Cobbett manteve-se em campo. S
autoridades. Por mais que contassem com a lei do seu lado, sempre
certo que andava muito moderado no começo dos anos 1820. Não incorriam em ódio com suas perseguições. Mas, com as Seis Leis,
apreciava o republicanismo e o deísmo de Carlile, e nem sua tinha se outorgado o poder de banir os agentes de sedição por
influência sobre os artesãos dos grandes centros; voltou-se cada delitos muito menores do que os que Carlile cometera e orgulho­
vez mais para o campo e afastou-se do movimento operário. (Em samente admitira. O fato de que, mesmo em 1820, esse dispositivo
1821. empreendeu o primeiro de seus Passeios Rurais, onde seu da Lei não tenha sido utilizado 6 uma prova do equilíbrio deli­
talento parece ter finalmente encontrado sua forma e matéria cado da época e dos limites impostos ao poder pelo consenso da
inelutável.) Mas, mesmo a essa distância, o Political Register sem­ opinião constitucional. À parte o banimento, Carlile não podia
ser silenciado, a menos que fosse degolado ou, o que é mais pro­
vável, posto em confinamento solitário. Mas o Governo não recor
26. Nesses três anos, ocorreram 115 processos e 45 indiciações ex-olficio-
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reu a medidas extremas por duas razões: primeiro, já em 1821 apoios mais constantes de Carlile. Em parte, era uma nova tradição,
isso lhes parecia menos necessário, pois o aumento das taxas de devendo algo à influência crescente de Bentham e algo aos “cris­
franquia estava surtindo efeito. Segundo, depois dos primeiros tãos livres-pensadores” e unitaristas, como Benjamin Flower e
embates, ficou evidente que, se Carlile fosse silenciado, em seu W. J. Fox. Cruzava-se com aquela subeultura vigorosa dos “ edi­
lugar surgiría meia dúzia dc novos Carliles. Os dois primeiros tores dos jornais dominicais e palestristas do Instituto Surrey” que
que surgiram eram realmente Carliles: sua mulher e sua irmã. o Blackwood e o Establishment literário tanto ridicularizavam —
A seguir-vieram os “balconistas”. Segundo um cálculo, antes de mestres-escolas, estudantes pobres de medicina ou servidores públi­
terminar a luta, Carlile recebera o auxílio de 150 voluntários — cos que liam Byron, Shelley e o Examiner, entre os quais não o
donos de lojas e oficinas, impressores, vendedores de jornais — , Whig ou o Tory, mas “o certo e o errado são avaliados teorica­
que somados tinham cumprido 200 anos de prisão. O Republican mente por cada homem” .28
tinha publicado um anúncio para os voluntários — homens “ que De pouco vale rotular essa cultura de bourgeoise ou petit-
eram livres, capazes e dispostos a servir no Corpo do General bourgeoise, embora Carlile tivesse sua grande parcela do indivi­
Carlile” : dualismo que (geralmente se supõe) caracteriza esta última. Parece
mais próximo da verdade afirmar que o impulso de esclarecimento
Deve-se entender claramente que é o amor à propagação dos prin­ racional, que (nos anos de guerra) ficara muito restrito à intelli-
cípios e o sacrifício da liberdade para tal fim (.. .E NÃO O gentsia radical, era agora assumido pelos artesãos e alguns traba­
GANHO, que deve ser o motivo para convocar esses voluntários:
lhadores qualificados (como muitos fiandeiros de algodão), com
pois — embora R. Carlile empenhe-se em (...) dar a esses homens
o melhor apoio ao seu alcance —, se um grande número for o ardor evangelista de levá-lo a um “ número ilimitado de mem­
preso, ele não está numa situação, seja de propriedades ou de bros” — ardor propagandjsta que dificilmente se encontraria em
perspectivas, que lhe permita prometer qualquer quantia semanal Bentham, James Mill ou Keats. As listas de subscrição pela cam­
específica.. .21 — panha de Carlile se basearam maciçamente em Londres e, depois,
em Manchester e Leeds. A cultura artesã era, acima de tudo, a
Daí em diante, o “ Templo da Razão” da Fleet Street prati­ cultura do auto-aprendizado. “ Durante aquela reclusão de doze
camente não ficou desatendido por mais de um dia. Os homens e meses”, lembrou Watson a propósito de sua prisão, “ li com pro­
mulheres que se apresentaram eram, quase todos, totalmente des­ fundo interesse e muito proveito Declínio e Queda do Império
conhecidos de Carlile. Simplesmente vinham de Londres ou chega­ Romano de Gibbon, História da Inglaterra de Hume e ( ...) Histó­
vam na diligência de Lincolnshire, Dorset, Liverpool e Leeds. ria Eclesiástica de Mosheim” .29 Os artesãos, que formavam os
Vinham de uma cultura. núcleos das “ Sociedades Zetéticas” de apoio a Carlile (bem como
da posterior Rotunda), suspeitavam profundamente de uma cultu­
Não era a cultura “operária” dos tecelãos ou mineiros de ra estabelecida que os excluía do poder e do conhecimento, e
Tyneside. O povo que mais se destacava na luta incluía caixeiros, responderam aos seus protestos com homílias e ensaios. As obras
ajudantes de lojas, o filho de um agricultor; Benbow, o sapateiro do Iluminismo chegaram a eles com a força de uma revelação.
que virou vendedor de livros; James Watson, o dono de um arma­
zém em Leeds que “ tinha a cargo um cavalo de sela” numa char-
queada; James Mann, o cortador de tecido que virou vendedor de 28. Keats a seu irmão George, 17 de setembro de 1819, Works (1901), V,
p. 108. A carta prossegue: “Isso torna o negócio de Carlile o livreiro de
livros (também de Leeds). A tradição intelectual derivava, em par­ grande importância para mim. Esteve vendendo panfletos deístas, reeditou
te, dos anos jacobinos, do círculo que outrora girara em torno de Tom Paine e muitas outras obras mantidas num terror supersticioso ( .. . )
Godwin e Mary Wollstonecraft, ou dos membros da SLC, cujo Afinal, eles temem processar. Temem sua defesa; ela seria publicada em
último autêntico porta-voz — John Gale Jones — foi um dos todos os jornais do império. Tremem com isso. Os julgamentos acenderíam
uma chama que não conseguiríam apagar. Você não acha isso de grande
relevância?"
27. Wickwar, op. cit., p. 231. 29. W. J. Linton, James Watson (Manchester, 1880), p. 19.

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Dessa forma, um público leitor, cujo caráter era cada vez para experimentar a força da ‘Potência* contra o ‘Direito* Seu
mais operário, foi obrigado a se organizar por si mesmo. Os anos discurso de abertura citava, cláusula por cláusula, as leis que pre­
de guerra e imediato pós-guerra conheceram, de um lado, uma tendia desafiar:
imprensa “sustentada” e, de outro, uma imprensa radical. Nos
anos 1820, boa parte da imprensa de classe média libertou-se da .. .o Poor Man’s Guardain (...) conterá “notícias, informações
influência direta do Governo, e utilizou parte das vitórias conse­ e ocorrências”, e “notas e observações sobre elas” e “sobre assun­
guidas por Cobbett e Carlile. The Times e Lorde Grougham, que tos da Igreja e do Estado tendendo”, decididamente, “a excitar o
desprezavam a “ imprensa pobre” talvez tanto quanto Lorde Elton ódio e o desprezo pelo Governo e Constituição (...) deste país,
(ainda que por razões diversas), deram ao termo “ radicalismo” conforme estabelecido POR LEI”, e também “difamar os ABUSOS
da R e lig iã o ..
um significado totalmente diferente — livre comércio, governo
barato e reforma utilitária. Trouxeram consigo, em certa medida
(embora de forma nenhuma totalmente), a classe média radical — Também se dispunha a desafiar todas as cláusulas da legisla­
os mestres-escolas, cirurgiões e lojistas, alguns dos quais tinham ção sobre as taxas de franquia das publicações:
outrora apoiado Cobbett e Wooler — , de modo que, em 1832,
ou quaisquer outras lei e a despeito das “leis” ou da vontade e
existiam dois públicos radicais: o de classe média, que antecipava
prazer de qualquer tirano ou corpo de tiranos, não obstante qual­
a Liga Contra a Lei do Trigo, e o de classe operária, cujos jorna­ quer coisa cm contrário (...) aqui-antes-contida ou em-qualquer-
listas (Hetherington, Watson, Cleave, Lovett, Benbow, 0 ’Brien) já outro-lugar.
vinham amadurecendo o movimento cartista. Por toda a década, a
imprensa operária lutou sob o peso esmagador das taxas de fran­ O quarto número trazia o anúncio “ PROCURAM-SE” : “ Algu­
quia,30 enquanto Cobbett mantinha-se frouxa e temperamentalmente mas centenas de HOMENS POBRES sem emprego que não têm
filiado ao movimento plebeu, de preferência ao de classe média. NADA A PERDER ( ...) para vender [o jornal] aos pobres e
A linha divisória veio a ser, cada vez mais, não estratégias alter­ ignorantes”. Não só apareceram os voluntários, como também sur­
nativas para a “ reforma” (pois os reformadores de classe média às giram outros jornais não-franqueados, principalmente o Gauntlet
vezes podiam ter um tom tão revolucionário quanto seus parceiros de Carlile e Voice of the West Riding de Joshua Hobson. Em
operários), e sim idéias alternativas quanto à economia política. 1836, a luta praticamente se encerrara e estava aberto o caminho
A pedra-de-toque pode ser vista na “ revolta” dos diaristas rurais em para a imprensa cartista.
1830, quando The Times (“ VELHOS TEMPOS SANGRENTOS” Mas a “grande imprensa não-franqueada” era enfaticamente
de Cobbett) liderou a exigência de exemplos saudáveis a serem operária. O Poor Man’s Guardian e o Working Man’s Friend, com
aplicados aos amotinados, ao passo que Cobbett e Carlile foram efeito, eram órgãos da União Nacional das Classes Trabalhadoras;
novamente processados sob a acusação de textos incendiários. o Poor Marís Advocate, de Doherty, era órgão do Movimento de
Em 1830 e 1831, a bandeira negra do desafio foi alçada uma Fábrica; Joshua Hobson era um ex-tecelão manual, que construíra
vez mais. Cobbett descobriu uma brecha na legislação e recome­ pessoalmente um prelo manual de madeira; Destructive, de Bron-
çou com sua Tralha de Dois Penies. Mas, desta vez, foi Hether­ terre 0 ’Brien, propunha-se conscientemente desenvolver a teoria
ington, um trabalhador gráfico, que conduziu o ataque frontal. radical operária. Esses semanários, cuidadosamente impressos, tra­
Seu Poor Manys Guardian trazia o emblema de um prelo manual, ziam notícias sobre a grande luta daqueles anos pelo Sindicalismo
o lema “ Saber é Poder” e o cabeçalho: “ Publicado contra a ‘Lei’ Geral, as demissões em massa de 1834 e os protestos no caso
Tolpuddle, ou debates de pesquisa e exposições da teoria sindical
e socialista. O exame desse período ultrapassa os limites deste
30. Em 1830, esses impostos chegaram a uma franquia de 4 penies para
cada jornal ou periódico semanário, uma taxa de 3 xelins e 6 penies em estudo, levando-nos a uma época em que a classe operária não se
cada anúncio, uma pequena taxa no papel e uma grande fiança em pro­ encontrava mais em seu fazer-se, já estando feita (em sua forma
cesso por difamação. cartista). O que devemos observar é o grau em que a luta pelas

322 323
liberdades de imprensa teve uma influência formadora fundamental
para o movimento que se modelava. Foram talvez 500 as pessoas formas indiretas. (Muitas vezes, os artigos de Cobbett nos Registers
processadas pela edição e venda dos “ não-franqueados”.31 De 1816 simplesmente não chegavam aos assinantes do interior — “ per-
(na verdade, desde 1792) até 1836, a luta envolveu não só os diam-se” no correio.) Em torno da imprensa militante, cresceu
editores, livreiros e impressores, mas também muitas centenas de todo um tipo de distribuição com seu folclore próprio. Os vende­
jomaleiros, vendedores ambulantes e agentes voluntários.32 dores ambulantes (soube Mayhew), para evitar “vender” o Repu-
Os anais da perseguição continuam ano após ano. Em 1817, blican, vendiam ninharias e então davam o jornal aos fregueses.
foram dois homens que vendiam panfletos de Cobbett em Shrop- No Spen Valley, na época dos “ não-franqueados”, jogava-se um
shire, que um magistrado eclesiástico “fez com que ( ...) fossem pêni por uma grade e o jornal “ aparecia” . Em outros lugares, as
apreendidos sob a Lei dos Vadios ( ...) e foram bem chicoteados pessoas desciam por becos ou atravessavam os campos à noite, até
no poste de açoitamento” ; no mesmo ano, vendedores ambulantes o ponto de encontro combinado. Mais de uma vez, os “não-fran­
em Plymouth, Exeter, a Região Negra, Oxford, norte; em 1819, queados” foram transportados debaixo do nariz das autoridades,
até um camelô de sessões de lanterna mágica, que apresentou uma dentro de um caixão acompanhado de uma piedosa procissão de
estampa de Peterloo numa aldeia de Devon. A reclusão raramente livres-pensadores.
ia além de um ano (muitas vezes, os jornaleiros eram condenados Podemos tomar dois exemplos de donos de lojas e vendedores.
a poucas semanas de prisão, sendo então liberados sem julgamento), O primeiro, uma dona de loja, faz-nos lembrar que, naqueles cír­
mas podia ter efeitos mais sérios sobre as vítimas do que as prisões culos racionalistas e owenistas, mais uma vez se levantava a rei­
amplamente divulgadas dos editores. Alguns eram jogados em in­ vindicação dos direitos das mulheres (quase ausente desde os anos
fectas “ Casas de Correção” ; muitas vezes agrilhoados e acorren­ 1790), lentamente se estendendo da intelligentsia para os artesãos.
tados; muitas vezes sem o conhecimento da lei nem dos meios de As mulheres adeptas de Carlile, que sofreram julgamento e prisão,
defesa. A menos que os casos chegassem ao conhecimento de agiram mais por lealdade do que por convicção. Muito diferente
Cobbett, Carlile ou alguma seção de radicais, suas famílias ficavam era a Sra. Wright, uma cerzideira de renda de Nottingham, volun­
sem nenhuma renda e podiam ser obrigados a ir para o asilo dc tária de Carlile e processada por vender um dos seus Discursos
indigentes.33 Na verdade, foi nos centros menores que a luta pela contendo opiniões à sua típica maneira;
liberdade foi mais árdua. Manchester, Nottingham e Leeds tinham
enclaves e pontos de reunião radicais, e prontamente socorriam as Um Sistema Representativo de Governo logo veria a propriedade
vítimas. Na cidade-mercado ou na vila industrial, o remendão ou de converter nossas Igrejas e Capelas em Templos de Ciência e
o professor que, nos anos 20, recebesse textos de Cobbett ou Car­ (...) alimentando o Filósofo em vez do Padre. Sustento que a
lile podia contar que ia ser vigiado e sofreria perseguições sob Realeza e a Política Clerical são a ruína da Sociedade. (. ..) Esses
dois males operam juntos contra o bem-estar do corpo e da mente,
e para encobrir nossas misérias nesta vida aquele último nos
31. Abel Heywood, o livreiro de Manchester, afirmava que eram 750.
32. Formaram-se Sociedades para a Difusão de “Conhecimento Realmente engana com a esperança da felicidade eterna..
Útil", em apoio aos “não-franqueados". Ver Working Manss Friend, 18 de
maio de 1833. Ela conduziu sozinha sua longa defesa34, e foi poucas vezes
33. Ver Wickwar, op. cit., pp. 40, 103-14; Second Trial o] William Hone interrompida. Quase no final:
(1818), p. 19, sobre o caso dc Robcrt Swindells, recluso no castelo de
Chester, enquanto sua mulher e bebê morreram por falta de assistência, A Sra. Wright solicitou permissão para se retirar e amamentar o
e sua outra criança foi enviada ao asilo de pobres; Political Register, de
nenê que estava chorando. Foi-lhe concedida, e ficou ausente do
Sherwin, 14 de março de 1818, para os casos de Mellor e Pilling de Warring-
ton, mantidos em correntes como criminosos por dezenove semanas no Tribunal por vinte minutos. Ao ir e voltar do Café Castelo, foi
Cárcere de Preston, enviados a julgamento no Supremo Tribunal em
Londres — tendo que andar os 320 quilômetros até lá — o julgamento foi 34. A maioria dos balconistas de Carlile recebia longas defesas escritas por
removido para Lancaster (320 quilômetros de volta) — e então liberados. Carlile, e foi esse provavelmente o seu caso.

324 325
aplaudida e aclamada em altas vozes por milhares de pessoas sobreviveram com uma pensão paroquial de 9 xelins por semana,
reunidas, todas a encorajá-la a ter ânimo e perseverar.
e algum auxílio de Carlile e Cobbett. Cobbett, na verdade, inte­
ressou-se particularmente pelo caso de Swann, e quando Castle-
Algum tempo depois, foi lançada à prisão de Newgate, numa reagh se suicidou, foi a Swann que Cobbett dirigiu suas triunfais
noite de novembro, com seu bebê de seis meses e sem nada para vituperações fúnebres: “ CASTLEREAGH CORTOU A GARGAN­
se deitar, além de uma esteira. Mulheres como a Sra. Wright (e a TA E MORREU! Que esse som alcance a você nas profundezas
Sra. Mann de Leeds) tinham que enfrentar, além das perseguições do seu calabouço ( ...) e lhe traga consolo para sua alma sofre­
habituais, os insultos e insinuações de uma imprensa legalista es­ dora” . Depois de cumprir seus quatro anos e meio, Swann “ atra­
candalizada. “ Essa mulher desgraçada e desavergonhada” , escreveu vessou o portão do Castelo de Chester (. . .) tão obstinado como
o New Times, foi visitada por “várias mulheres. Essas circunstân­ sempre” , e retomou seu ofício de chapeleiro. Mas ainda não encer­
cias não bastam para chocar qualquer mente pensante?” Ela era rara suas penas. Em novembro de 1831, o Poor Man’s Guardian
uma “ criatura abandonada” (o epíteto convencional para as pros­ noticiou os procedimentos do tribunal de Stockport, onde Joseph
titutas) “ que lançou fora todo o pudor e receio e decência distin­ Swann foi acusado de vender os “ não-franqueados” . O Presidente
tivos do seu sexo”. Com seu “exemplo medonho”, ela tinha de­ do Tribunal, Capitão Clarke, perguntou-lhe o que tinha a dizer
pravado as mentes de outras mães: “ esses monstros em forma de em sua defesa:
mulher apresentam-se, com rostos empedernidos, à luz do dia, para
trazer seu apoio e aprovação pública — pela primeira vez na Réu: Bem, Senhor, fiquei desempregado por algum tempo; não
história do mundo cristão — à pavorosa, grosseira, vulgar blas­ consigo encontrar serviço; minha família está toda passando
fêmia” . Ela era uma mulher, escreveu Carlile, “ de saúde muito fome. (...) E por uma outra razão, a mais forte de todas; eu os
delicada, e verdadeiramente toda espírito e não matéria” .35 vendo pelo bem dos meus companheiros conterrâneos, para fazê-
los ver como estão mal-representados no Parlamento (...) quero
As sentenças mais longas sofridas por um jornaleiro foram, que o povo saiba como são tapeados. . .
provavelmente, as que cumpriu Joseph Swann, um chapeleiro de Juiz: Refreie sua língua.
Macclesfield. Fora preso em 1819 por vender panfletos e um poe­ Réu: Não! pois quero que todos os homens leiam essas publi­
ma sedicioso: cações. ..
Juiz: Você é muito insolente, e portanto está condenado a três
Fora com os grilhões; dê um pontapé no jugo tirânico; meses de reclusão na Casa de Correção de Knutsford, em tra­
Agora, agora ou nunca, a cadeia pode ser rompida; balho pesado.
Então levante rápido e dê o golpe fatal. Réu: Não tenho nada a lhe agradecer; e quando eu sair, vou
vendê-los outra vez. E preste atenção (olhando para o Capitão
Transferido de cárcere para cárcere, acorrentado com crimi­ Clarke), o primeiro lugar onde vou vender é na sua casa. ..
nosos, foi finalmente condenado a dois anos de reclusão por cons­
piração sediciosa, dois anos por libelo blasfemo e mais seis meses Joseph Swanfi- foi então retirado à força do banco dos réus.36
por libelo sedicioso, a serem cumpridos consecutivamente. Quando Na retórica da democracia do século 20, esses homens e mu­
essas sentenças monstruosas foram aprovadas, Swann tirou seu lheres foram, em sua maioria, esquecidos por serem impudentes,
chapéu branco e perguntou ao magistrado: “ Já acabou? É tudo? vulgares, excessivamente entusiastas ou “ fanáticos” . Na sua esteira
Porque pensei que você tinha um pedaço de corda para mim, e vieram os órgãos subsidiados de “ aperfeiçoamento” , o Penny Ma­
ia me enforcar”. Sua mulher também foi presa por pouco tempo gazine e o Saturday Magazine (cujos vendedores ninguém proces-
(por continuar a vender os panfletos); ela e seus quatro filhos
36. Wickwar, op. cit., pp. 105-7; I n d e p e n d e n t W h i g , 16 de janeiro de 1820;
de Cobbett, 17 de agosto dc 1822; P o o r M a n s G u a r d ia n ,
P o litica l R e g iste r,
35. Ver Wickwar, op. cit., pp. 222-3; T r ia l o f M rs. S u s a n n a h W r ig h t (1822). 12 de novembro de 1831; A. G. Barker, H e n r y H e th e r in g to n , pp. 12-3.
pp. 8, 44. 56; N e w T im e s , 16 de novembro de 1822.
327
326
sou); e a seguir a imprensa comercial, com seus recursos muito
maiores, embora não tenha começado realmente a atrair o público Owen encarava a instituição do NOVO MUNDO MORAL através
leitor radical senão nos anos 40 e 50. (Mesmo então, a imprensa da propaganda com um otimismo messiânico, mas mecânico.
popular —- as publicações de Cleave, Howitt, Chambers, Reynolds Mas se esta foi, em parte, a ilusão racionalista, temos de lem­
e Lloyd — provinha dessa , base radical.) Podem-se observar em brar a segunda — e mais imediata — conseqüência: entre 1816 e
particular duas conseqüências da luta. A primeira (e mais evidente) 1836, essa “ multiplicação” pareceu funcionar. Pois os jornalistas
é que a ideologia operária que amadureceu nos anos 30 (e desde radicais e não-franqueados estavam aproveitando a máquina multi-
então resistiu, passando por várias versões) atribuía um valor plicadora em favor da classe operária; em todas as partes do país.
excepcionalmente elevado aos direitos de imprensa, expressão, reu­ as experiências dos vinte e cinco anos anteriores tinham preparado
nião e liberdade pessoal. A tradição do “inglês livre de nasci­ a mentalidade dos homens para o que agora podiam ler. Pode-se
mento” , evidentemente, é muito mais antiga. Mas dificilmente é o ver a importância da propaganda na constante expansão da orga­
caso da idéia que vai aparecer em algumas interpretações “ mar­ nização radical, desde as cidades grandes e regiões industriais até
xistas” recentes, onde essas reivindicações aparecem com uma he­ os pequenos burgos e cidades-mercados. Uma das Seis Leis de 1819
rança do “ individualismo burguês” . Na luta entre 1792 e 1856, (autorizando a busca de armas) limitava-se especificamente apenas
os artesãos e trabalhadores transformaram essa tradição em algo aos ditos “ distritos perturbados” das Midlands e do norte.38 Em
especificamente seu, acrescentando à reivindicação de livre expres­ 1832 — e depois, nos tempos cartistas — , existe um núcleo ra­
são e pensamento sua reivindicação própria de divulgação desim­ dical em cada condado, em cada minúscula cidade-mercado e até
pedida. sob a forma mais barata possível, dos produtos desse nas aldeias rurais maiores, e em praticamente todos os casos for­
pensamento. mado pelos artesãos locais. Em centros como Croydon, Colchester
Nisso, é verdade, partilharam de uma ilusão típica da época, e Ipswich, Tiverton e Taunton, Nantwich e Cheltenham, existiam
aplicando-a firmemente ao contexto da luta operária. Todos os entidades radicais ou cartistas intrépidas c militantes. Em Ipswich.
iluministas e aperfeiçoadores daqueles tempos julgavam que o encontramos tecelãos, seleiros, arreeiros, alfaiates, sapateiros; em
único limite à difusão da razão e do conhecimento era o imposto Cheltenham, sapateiros, alfaiates, canteiros, marceneiros, jardinei­
pela insuficiência dos meios. As analogias traçadas freqüentemente ros, um estucador e um ferreiro — “ gente séria c respeitável —
eram mecânicas. O método pedagógico de Lancaster e Bell, com com inteligência muito acima da média”.39 É a gente “ multipli­
sua tentativa de multiplicação barata do ensino através de instru- cada” por Cobbett, Carlile, Hetherington e seus jornaleiros.
tores-crianças, foi chamado (por Bell) de “ MÁQUINA A VAPOR “ Gente séria e respeitável. . .” — essa cultura autodidata nun­
do MUNDO MORAL”. Peacock mirou com uma precisão extrema ca foi analisada adequadamente.40 A maioria tinha recebido instru­
quando chamou a Sociedade para a Difusão do Conhecimento Útil, ção primária, embora sua insuficiência seja comprovada por muitas
de Brougham, de “Sociedade do Intelecto a Vapor” . Carlile tinha fontes:
confiança total de que “ a leitura de panfletos está destinada a
operar as grandes alterações morais e políticas necessárias entre
38. Os condados de Lancaster, Chester, West Riding, Warwick, Stanfford,
a humanidade” : Derby, Leicester, Nottingham, Cumberland, Westmorland, Northumberland.
Durham, a cidade de Coventry e os burgos rurais de Newcastle-upon-
A Prensa tipográfica pode ser estritamente denominada de uma Tyne e Nottingham.
Tábua de Multiplicação aplicável à mente humana. A arte de 39. W. E. Adams, op. cit., p. 169. Sou grato ao Sr. A. J. Brown por
Imprimir é uma multiplicação da mente. (...) Os vendedores de informações sobre Ipswich. Ver também Charíist Studies. ed. A. Brigs, sobre
panfletos são as molas mais importantes da maquinaria da Re­ o cartismo em Somerset e East Anglia.
forma.37 40. O admirável relato de J. F. C. Harrison cm Learning and Living tende
a subestimar o vigor da cultura radical antes de 1832. As melhores versões
de primeira mão encontram-se na autobiografia de William Lovett e (sobre
37. Ver Wickwar, op. cit., p. 214. os anos cartistas) Thomas Frost, Forty Years Recollections (1880).

528 329
Lembro bem a primeira escola de meio período em Bingley. Era atestam o fervor com que se transformava em canção a luta entre
uma cabana na entrada do pátio da fábrica. O professor, um legalistas e radicais. Talvez seja o teatro popular melodramático
homem velho e pobre que fazia serviços avulsos e simples a que melhor tenha se adaptado ao gosto dos jacobinos e dos “velhos
12 xelins por semana, veio ensinar os de meio-período. Mas, para
radicais” de 1816-20. Desde o começo dos anos 1790, o teatro,
que não ensinasse demais ou para que o sistema não saísse muito
principalmente nos centros provinciais, era um foro onde se con­
caro, ele tinha que arrancar arruelas do tecido com uma marreta
pesada de madeira, sobre um grande bloco* de madeira, durante as frontavam as facções opostas, que se provocavam nos intervalos
horas de aula.41 “dando o tom”. Um “ Nivelador e Revolucionário facobino” des­
creveu uma visita ao teatro, em 1795, num porto do norte:
Esta é, talvez, a “ aprendizagem” do início dos anos 1830 em
. . .c, como o teatro geralmente é o campo onde os Oficiais Volun­
seu pior momento. Nos anos 20, podiam-se encontrar escolas me­
tários travam suas Campanhas, esses heróis militares ( .. . ) deram
lhores, fossem da aldeia, fossem patrocinadas por artesãos, onde os
o tom de Deus Salve o Rei, e ordenaram à platéia que se pusesse
alunos pagariam uma pequena taxa. Também nessa época, as esco­ de pé e tirasse o chapéu ( ...) fiquei sentado de chapéu em
las dominicais vinham se libertando (ainda que lentamente) do desafio aos militares.43
tabu sobre o ensino da escrita, ao passo que as primeiras escolas
Britânicas e Nacionais (com todas as suas deficiências) vinham Foi nos anos de repressão que essa música (com sua denúncia
começando a ter algum resultado. Mas, para qualquer instrução dos “ardis desonestos” dos jacobinos) substituiu “ O Rosbife da
secundária, os artesãos, tecelãos ou fiandeiros tinham de aprender Velha Inglaterra” como “hino nacional” . Mas, conforme as Guerras
sozinhos. Até que ponto o faziam, atestam-no as vendas dos textos iam se arrastando, a platéia muitas vezes mostrava-se menos inti­
didáticos de Cobbett, principalmente sua Gramática da Língua midada com os valentões da “ Igreja-e-Rei” do que as gerações
Inglesa, publicada em 1818, que vendeu 13.000 exemplares em anteriores. Um motim em Sheffield, em 1812, teve início quando
seis meses, e mais 100.000 nos quinze anos seguintes.42 E temos “os oficiais de South Devon insistem em que se cante ‘Deus Salve
de lembrar que, ao traduzir as vendas (ou a circulação de perió­ o Rei', e a turbulência nas galerias insiste em que não se cante.
dicos) em estimativas de leitores, o mesmo livro ou jornal era (. ..) Um desordeiro foi enviado à prisão” .44
emprestado, lido em voz alta e passava por muitas mãos. A maioria dos motins em teatros do início do século 19 tinha
Mas a “ instrução secundária” dos trabalhadores assumiu mui­ um certo toque radical, mesmo que expressasse apenas o simples
tas formas, e o estudo solitário individual era apenas uma delas. antagonismo entre barracas e deuses. A inveja dos monopolistas
Em particular os artesãos não viviam tão enraizados em comuni­ Teatros de Patente Real contra seus pequenos rivais, com suas
dades ignorantes, como se poderia facilmente imaginar. Perambu- burlettas e seus espetáculos “ infamados ( ...) com a apresentação
lavam livremente pelo país, em busca de trabalho; à parte as via­ de Cavalos, Elefantes, Macacos, Cachorros, Esgrimistas, Acrobatas
gens impostas pelas Guerras, muitos artífices trabalhavam no exte­ e Dançarinos em Cordas” ,45 reforçava-se com o desprezo que sen­
rior, e a relativa facilidade com que milhares e milhares emigraram tiam os patrões pela efervescência perigosa da platéia. Em 1798,
para os Estados Unidos e as colônias (movidos não só pela miséria, os “opulentos Mercadores, Armadores, Fabricantes de Cordames”
mas também pelo desejo de novas oportunidades ou de liberdade apresentaram um memorial ao Governo, queixando-se de que as
política) sugere uma fluidez geral da vida social. Nas cidades, uma apresentações no Teatro da Realeza, perto da Torre, encorajavam
cultura plebéia sólida e indecorosa coexistia, entre os artesãos, com
tradições mais polidas. Muitas coletâneas de baladas do século 19 43. P h ila n th r o p is t, 22 de junho de 1795.
44. T. A. Ward, op. cit., p. 196. Ver também o exemplo de Nottingham,
atrás, p. 34.
41. Thomas Wood, Autobiography (1822-80) (Leeds, 1956). Ver também Um
45. Ver H. O. 119.3/4, para as acusações e contra-acusações que passa­
Velho Oleiro, Wheti I Was a C h ild (1903), cap. 1.
42. M. L. Pearl, W illia m C o b b e tt (1953), pp. 105-7. Havia também muitas vam entre Convent Garden e Drury Lane, de um lado, e os pequenos teatros
"ilegítimos" de outro, 1812-8.
edições piratas.

331
330
“hábitos de devassidão e libertinagem” entre “ seus numerosos Ma- Bispos não recebiam um tratamento melhor.) O cartum popular
nufatureiros, Trabalhadores, Empregados, & C .” 46 (A queixa se pro­ não era absolutamente uma arte para os analfabetos, como atestam
longava há mais de duzentos anos.) Em 1819, a desordem alastrou- os balõezinhos que saem das bocas dos personagens, cheios de
se como uma epidemia pelo centro de Londres, noite após noite, letrinhas miúdas. Mas o analfabeto também podia participar dessa
semana após semana, com os famosos motins de “ O.P.”, ao se cultura, parando por longo tempo em frente da janela da oficina
registrar um aumento dos preços em Drury Lane. Foi esse desprezo e decifrando as minúcias visuais intrincadas do último Gillray ou
específico da Autoridade por essa mescla de desordem e sedição Cruikshank; na de Knight em Sweeting’s Alley, na de Fairbum
dos teatros que permitiu aos Teatros de Patente Real conservar, em Ludgate Hill, ou na de Hone na Fleet Street (lembrava Tha-
pelo menos, as formas do seu monopólio até 1843. ckeray), “costumava ficar uma multidão (. . .) de artífices bonachões
A vitalidade do teatro plebeu não era acompanhada por um com largos sorrisos, que soletravam os versos em voz alta para
correspondente mérito artístico. A influência mais positiva sobre a todo o grupo, e recebiam um urro geral de simpatia nos pontos
sensibilidade dos radicais proveio não tanto dos pequenos teatros, engraçados”. Às vezes, o impacto era extraordinário; a Fleet Street
e sim da revivescência shakesperiana — Hazlitt, Wooler, Bamford, ficaria bloqueada com as multidões; Cruikshank achava que sua
Cooper e uma série de jornalistas radicais e cartistas autodidatas “ Nota de Restrição ao Banco” (1818) resultou na abolição da pena
tinham como praxe coroar seus argumentos com citações de Sha- de morte para quem passava dinheiro falso. Nos anos 1790, o
kespeare. O aprendizado de Wooler fora com a crítica dramática; Governo realmente subornou Gillray, para entrar a serviço anti-
ao passo que o jornal estritamente sindicalista Trades Newspaper jacobino. Durante as Guerras, a corrente principal de cartuns era
começou, em 1825, com uma seção de crítica teatral e também patriótica e antigaulesa (foi nesses anos que John Bull assumiu
uma coluna de esportes (que cobria lutas de boxe e a disputa entre sua forma clássica), mas, sobre questões internas, os cartuns eram
“o Leão Nero e Seis Cães”).47 Mas houve uma arte popular que, ferozmente polêmicos e muitas vezes com simpatias burdettistas.
entre 1780 e 1830, atingiu um auge de complexidade e qualidade Depois das Guerras, jorrou uma torrente de cartuns radicais, que
— o cartum político. se manteve imune a perseguições, mesmo durante a agitação da
Rainha Carolina, pois a perseguição teria se exposto a um ridículo
Foi a época, primeiramente, de Gillray e Rowlandson, e a ainda maior. Através de todas as suas transformações (e apesar
seguir de George Cruikshank, além de inúmeros outros caricatu­ da rudeza de muitos praticantes), conservou-se como uma arte
ristas, alguns competentes, alguns atrozmente grosseiros. Era, acima urbana altamente sofisticada: podia ser agudamente espirituosa ou
de tudo, uma arte metropolitana. Os modelos dos cartunistas pas­ cruelmente grosseira e obscena, mas, em ambos os casos, vivia de
savam em suas carruagens ao lado das oficinas gráficas, onde seus uma estrutura referencial de boatos compartilhados e conhecimento
pecados políticos (ou pessoais) eram impiedosamente satirizados. íntimo das maneiras e pontos fracos dos partícipes, mesmo meno­
De ambos os lados, nenhum espaço era vedado. Thelwall, Burdett res, dos negócios públicos — uma pátina de intrincadas alusões.48
ou Hunt podiam ser retratados pelos legalistas como incendiários
selvagens, com uma tocha acesa numa mão, uma pistola na outra, A cultura do teatro e da oficina de cartuns foi popular num
com cinturões abarrotados de facões de açougue; enquanto que sentido mais amplo do que a cultura literária dos artesãos radicais.
Cruikshank retratava o Rei (em 1820) refestelado totalmente bê­ Pois a nota fundamental da cultura autodidata dos anos 20 e
bado no trono, rodeado de garrafas quebradas, em frente de uma início dos 30 era a austeridade moral. É usual atribuí-la à influên­
cortina decorada com sátiros e prostitutas de seios enormes. (Os cia do metodismo, e é inquestionável que essa influência se pode
sentir tanto direta como indiretamente. A estrutura do caráter

46. H. O. 65.1.
47. Trades Newspaper, 31 de julho, 21 de agosto de 1825 e ss. O Editor 48. Pode-se ter uma idéia da complexidade dessa produção em Dorothy
sentiu-se levado a se desculpar por trazer notícias sobre lutas de boxe George, com os cruditíssimos Catalogues o/ Political and Personal Satire in
e açulamento de animais; mas o jornal era dirigido por um comitê de the British Museutn, vol. 7, 8, 9 e 10. Ver também Blanchard Jerrold.
sindicatos londrinos, e os desejos dos membros tinham de ser atendidos. George Cruikshank (1894), cap. 4.

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Biblioteca U niversitária |
UFSC
puritano sustenta a seriedade moral e a autodisciplina que permi­ “aprisionadora”, o espírito dos tempos operava uma conjunção
tiram aos homens trabalhar à luz de vela depois de um dia inteiro entre as duas tradições. Se a investigação intelectual foi desesti-
de labor. Mas podemos fazer duas ressalvas importantes. A pri­ mulada pelos metodistas, a aquisição de conhecimento útil podia
meira é que o metodismo foi uma influência fortemente antiinte- ser considerada piedosa e cheia de mérito. A ênfase, evidentemente,
lectual, da qual a cultura popular britânica nunca se recuperou recaía sobre o uso. A disciplina de trabalho, por si só, não te s ­
totalmente. O círculo ao qual Wesley restringiría a leitura de meto­ tava; era necessário que a força de trabalho progredisse para níveis
distas (observou Southey) “era bastante estreito; o principal de de realização mais sofisticados. O velho argumento oportunista
uma biblioteca metodista consistiría de suas próprias obras e sua baconiano — que não pode existir nenhum mal no estudo da
série pessoal de compilações e resumos” .49 No início do século 19, natureza, a qual é a evidência visível das leis de Deus — fora
os pregadores locais e líderes de classe foram estimulados a ler agora assimilado dentro da apologética cristã. Daí brotou aquele
mais: reedições de Baxter, a hagiografia do movimento ou os fenômeno curioso do início da cultura vitoriana, o pastor não-con-
“ volantes do Missionary Registcr”. Mas a poesia era suspeita, e a formista com a mão no Antigo Testamento e o olho no microscópio.
filosofia, a crítica bíblica ou a teoria política eram tabus. Todo o
Os efeitos dessa conjunção já se fazem sentir na cultura ope­
peso do ensinamento metodista recaía sobre o caráter abençoado
rária dos anos 20. A ciência — botânica, biologia, geologia, quí­
dos “ puros de coração”, independentemente do seu nível ou grau
mica, matemática e, particularmente, as ciências aplicadas — , os
de instrução. Foi o que deu à Igreja seu apelo espiritual iguali­
metodistas viam-na com receptividade, desde que essas investiga­
tário. Mas também alimentou (às vezes em proporções pantagrué-
ções não se misturassem com política ou filosofia especulativa.
licas) as justificativas filistinas dos semiletrados. “ É carte blanche
O mundo sólido, estatístico, intelectual que vinham construindo os
para a ignorância e o desatino”, explodiu Hazlitt:
utilitaristas era compatível também com a Assembléia Metodista.
Também compilavam suas tabelas estatísticas do comparecimento
Os (...) que não podem ou não querem pensar conectada ou
racionalmente sobre qualquer assunto são imediatamente libe­ na escola dominical, e Bunting (tem-se a impressão) ficaria feliz
rados de qualquer obrigação desse tipo, quando lhes disserem que se pudesse calcular os graus de graça espiritual com a mesma pre­
a fé e a razão opõem-se mutuamente.50 cisão com que Chadwick calculava a dieta mínima que sustentaria
o pobre com força suficiente para trabalhar. Daí veio aquela alian­
Os pastores metodistas defenderam seus rebanhos dos suces­ ça entre não-conformistas e utilitaristas sobre a prática pedagógica
sivos impactos de Paine, Cobbett, Carlile: muitíssimas eram as e a divulgação do conhecimento “aperfeiçoador”, ao lado de exor­
evidências de que a instrução não-orientada era a “ armadilha do tações piedosas. Já nos anos 20 está firmemente estabelecido esse
demônio” . tipo de literatura, onde as admoestações morais (e relatos das
orgias bêbadas de Tom Paine em seu leito de morte solitário)
Algumas das ramificações do ramo metodista principal — os
aparecem ao lado de pequenas notas sobre a flora venezuelana,
Unitaristas Metodistas (uma estranha conjunção) e principalmente
estatísticas sobre o número de mortes no terremoto de Lisboa, re­
a Nova Conexão — tinham um pendor mais intelectual, e suas
ceitas de verduras cozidas e considerações sobre hidráulica:
congregações se assemelham às Igrejas Dissidentes mais antigas.
Mas a principal tradição metodista reagiu à sede de esclarecimento
Cada espécie (...) requer um tipo diferente de alimento. (...)
de modo diferente. Já observamos51 as afinidades ocultas entre o Lineu observou que a vaca come 276 espécies de plantas e rejeita
metodismo e o utilitarismo de classe média. Por estranho que pa­ 218; a cabra como 449 e rejeita 126; o carneiro come 387 c re­
reça. quando pensamos em Bentham e sua aversão à superstição jeita 141; o cavalo come 262 e rejeita 212; e o porco, de paladar
mais refinado que os outros, come apenas 72 plantas e rejeita
49. Southey, Life of Wesley, p. 558. todas as demais. Mas tal é a prodigalidade ilimitada do Criador,
50. Works, IV, pp. 57 ss., de The Round Table (1817). que todas essas incontáveis miríades de seres sensíveis são ampla­
51. Ver A Formação da Classe Operária Inglesa, vol. II, p. 243. mente atendidas c nutridas por sua bondade! “Os olhos de todos

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voltam-se para Ele, e ele abre sua mão e satisfaz o desejo de
todos os seres vivos.”52 Nos anos pós-guerra, Hunt e Cobbett insistiram muito no
apelo à abstinência de todos os artigos taxados, e particularmente
E já nos anos 20, a Economia Política pode ser vista como nas virtudes da água em comparação ao álcool e à cerveja. A so­
um terceiro elemento ao lado da Moral e do Conhecimento Ütil, briedade dos metodistas foi o primeiro (e único) atributo de sua
sob forma de homilias às leis imutáveis, postas por Deus, da oferta “ seita” que Cobbett achou louvável: “ Considero a embriaguez
e da procura. O Capital, de gosto ainda mais refinado do que o como a raiz de bem mais da metade dos males, misérias e crimes
porco, escolhería apenas o trabalhador industrioso e obediente e que afligem a sociedade”.54 Nem sempre era esse o tom de Cobbett;
rejeitaria todos os demais. em outras ocasiões, podia lamentar o preço da cerveja para o
diarista. Mas, em muitos pontos, encontrar-se-ia uma meticulosa
Assim, o metodismo e o evangelismo contribuíram com poucos
correção moral generalizada. Era, em particular, a ideologia do
ingredientes intelectuais ativos para a cultura verbalmente arti­
artesão ou do trabalhador qualificado frente à impetuosa maré
culada do operariado, embora possa-se dizer que acrescentaram
não-qualifiçada. É o que se encontraria no relato de Carlile sobre
uma seriedade na busca de informação. (Arnold veria mais tarde
seus primeiros anos de homem adulto:
a tradição não-conformista como profundamente filistina, indife­
rente à “ doçura e luz”.) E há uma segunda ressalva a ser feita,
Eu era um homem regular, ativo e industrioso, trabalhando desde
quando se atribui a sobriedade do mundo do artesão a essa fonte. cedo até tarde (...) e quando saía da oficina nunca estava tão
Ê possível demonstrar que a sobriedade moral foi, de fato, resul­ feliz como em casa com minha mulher e dois filhos. Sempre
tado da própria agitação radical e racionalista, e muito deveu às detestei a cervejaria (...) achava que um homem (...) seria tolo
velhas tradições dissidentes e jacobinas. Isso não significa que não se não aplicasse corretamente cada xelim.55
existissem radicais bêbados nem manifestações desordeiras. Wooler
foi apenas um dos líderes radicais que, dizia-se, abusava do álcool, Muitas vezes deixava de fazer uma refeição, e “ levava para
ao passo que vimos que as tavernas de Londres e os bares ilegais casa alguma publicação a seis penies para ler à noite” . Ê o que
de Lancashire eram importantes locais de reunião. Mas os radicais se encontra, em sua forma mais admirável e tocante, em Vida
tentavam libertar o povo da atribuição de serem uma “turba”, e e Lutas ( . ..) em Busca de Pão, Conhecimento e Liberdade, de
seus líderes tentavam apresentar continuamente uma imagem de William Lovett, título que, em si, condensa tudo o que estamos
sobriedade. tentando descrever.
Além disso, existiam outros motivos para essa ênfase. É típico Era uma disposição de ânimo que se fortaleceu, entre os repu­
um dos Regulamentos da Sociedade da União de Bath para a blicanos e livres-pensadores, com a natureza dos ataques sofridos.
Reforma Parlamentar (fundada em janeiro de 1817): Denunciados em sátiras legalistas e púlpitos religiosos como exem­
plos ignominiosos de todos os vícios, buscavam mostrar-se com um
Recomenda-se seriamente a todos os Membros que não gastem caráter irrepreensível, ao lado de suas opiniões não-ortodoxas.
seu Dinheiro em tavernas, porque metade do dito Dinheiro vai Lutaram contra as lendas legalistas da França revolucionária, apre­
em Impostos, para alimentar os Caprichos da Corrupção.53
sentada como uma cozinha de ladrões sanguinários, cujos Templos
da Razão eram bordéis. Eram particularmente sensíveis a qualquer
52. Thomas Dick, O n th e I m p r o v e m e n t o f S o c ie ty b y th e D i ffu s io n o f acusação de indecência sexual, má conduta financeira ou falta de
K n o w le d g e (Glasgow, 1833), p. 175. Ver também p. 213, onde se afirma
que “a aritmética, álgebra, geometria, seções cônicas e outras áreas da
matemática’ são estudos particularmente piedosos, visto que “contêm 54. P o litic a l R e g is te r , 13 de janeiro de 1821. O Movimento da Tempe­
verdades que são eternas e imutáveis". rança pode ser remontado até essa campanha pós-guerra pela abstinência.
53. H. O. 40.4. 55. Ver Wickwar, op. cit., p. 68.

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apego às virtudes familiares.56 Carlile publicou em 1830 um livri- que o único meio de que dispunham as “ classes industriosas” para
nho de homílias, O Moralista, ao passo que o Conselho aos Jovens elevar seus padrões físicos e culturais era o de limitar seus nú­
de Cobbett não passava de um ensaio mais entusiástico, e de lei­ meros. Place e companheiros teriam ficado profundamente choca­
tura mais agradável, sobre os mesmos temas da industriosidade, dos com a sugestão de que tais meios contribuíam para uma liber­
perseverança e independência. Os racionalistas, evidentemente, pro­ dade sexual ou pessoal.58
curavam, de modo particularmente ansioso, refutar a acusação de
A leviandade ou o hedonismo eram tão alheios à disposição
que a recusa da fé cristã acarretaria inevitavelmente a dissolução radical ou racionalista quanto para os metodistas, e somos lem­
de todos os limites morais. Ao lado do importante Ruínas do brados da dívida dos jacobinos e deístas às tradições da antiga
Império, de Volney, foi traduzido, circulando como folheto, sua Dissidência. Mas pode-se ir longe demais nos juízos a partir dos
Lei da Natureza, que servia para sustentar — em forma de diálogo registros escritos e pela imagem pública do orador. No movimento
— que as virtudes respeitáveis devem ser assumidas de acordo real, continua a irromper a jovialidade, não só com Hone, mas,
com as leis de utilidade social: e cada vez mais, com Hetherington, Lovett e seu círculo, os quais
eram mais leves, mais bem-humorados, mais receptivos ao povo,
Pergunta: Por que você diz que o amor conjugal é uma virtude? menos didáticos, mas não menos determinados, do que seu mestre
Resposta: Porque a concórdia e a união, que são a conseqüência
Carlile. É tentador apresentar o paradoxo de que os artesãos racio­
do afeto que subsiste entre pessoas casadas, estabelecem no seio
nalistas, pelos moldes de Carlile ou Volney, mostravam os mesmos
de sua família uma série de hábitos que contribuem para sua
prosperidade e conservação. . . padrões de comportamento dos seus análogos metodistas; enquanto
que, num caso, recomendava-se a sobriedade e a limpeza em obe­
E assim vai por quase toda a página. E o mesmo em capítulos diência a Deus e à Autoridade, no outro caso, eram virtudes ne­
cessárias aos que compunham o exército que derrubaria os Padres
sobre o Conhecimento, a Continência, a Temperança, a Limpeza,
e os Reis. Para um observador que desconheça a linguagem, os
as Virtudes Domésticas, que se lêem como um programa da era
atributos morais de ambos pareceríam indiscerníveis. Mas apenas
vitoriana. Quando surge uma heterodoxia em matéria de relações em parte é assim. Pois os cabeçalhos dos capítulos de Volney pros­
sexuais, como entre os comunitaristas owenistas, em geral vem seguem: “ Das Virtudes Sociais e Da Justiça” . Havia uma profunda
com um ardor típico do temperamento puritano.57 O grupo mi­ diferença entre a disciplina recomendada para a salvação da sua
núsculo de neomalthusianos que, com uma coragem considerável, própria alma e a mesma disciplina recomendada como meio de
divulgou entre o operariado, no início dos anos 20, informações salvação de uma classe. O artesão radical e livre-pensador tinha o
sobre os meios anticoncepcionais, assim agiu pela convicção de máximo de seriedade em sua crença nos deveres ativos da cidadania.
Além disso, a par dessa sobriedade, a cultura artesã nutria
56. Cf. T. Frost, F o rty Y e a r s R e c o lle c tio n s , p. 20 (da propaganda anti- os valores de investigação intelectual e reciprocidade. Vimos muito
owenista dos anos 30): "Era um expediente muito comum entre os liti­ da primeira qualidade, demonstrada na luta pela liberdade de
gantes e testemunhas dizer sobre alguém acusado de furto, abandono do imprensa. O autodidata tinha, muitas vezes, um entendimento de­
lar ou praticamente qualquer outro delito que ‘Ele é um Socialista', e
sigual e difícil, mas era seu. Como tinha sido obrigado a encontrar
os relatórios de todos esses processos com o título à margem, ‘Efeito do
Owenismo'..." seu próprio caminho intelectual, pouco tomou de empréstimo: sua
57. Ver, por exemplo, William Hodson no S o c ia l P io n e e r , 20 de abril mente não se movia dentro da rotina estabelecida de uma educação
de 1839 (e t p a s s im ): "Permita-me, Senhor, expor (...) minhas idéias sobre
a Questão [do Casamento] (...) nem o h o tn e m n e m a m u lh e r podem ser
58. Ver Wallas, op. cit., pp. 166-72; N. Himes, "J. S. Mill's Attitude
felizes até que tenham direitos iguais; casar-se por um lar, como freqüente-
toward Neo-Malthusianism", E c o n . J o u rn a l (Suplemento), 1926-9. I. pp.
mente é o caso agora, é comerciar com carne humana; é um tráfico de
459-62; M. Stopcs, C o n tr a c e p tio n (1923); N. Himes. "The Birth Control
escravos do pior tipo. (...) Sustento que todas as uniões só devem se
Handbills of 1823", T h e L a n c e i, 6 de agosto de 1927; M. St. J. Packe,
fazer por afeição — prolongar as uniões quando cessa a afeição é perfeita
L ife o f J o h n S tu a r t M ill (1954), pp. 56-9. Ver também adiante, p. 378.
( ...) p r o s titu iç ã o

33 9
338
formal. Muitas de suas idéias contestavam a autoridade, e a auto­ de alguns julgamentos recentes”, considerando que os prisioneiros
ridade tentou suprimi-las. Estava disposto, portanto, a dar ouvidos tinham publicado “ uma quantidade de assuntos os mais grosseiros
a quaisquer novas idéias antiautoritárias. Foi esta uma das causas e criminosos”.60 O entusiasmo de Brougham pelos Institutos bastou
de instabilidade do movimento operário, especialmente entre 1825 para torná-los suspeitos desde o início; as tentativas de Place de
e 1835; ela também nos ajuda a entender a rapidez com que o servir de intermediário entre Brougham (a quem secretamente des­
owenismo se difundiu e a facilidade com que os indivíduos passa­ prezava) e os sindicalistas de Londres (que, menos secretamente,
vam de um a outro projeto utópico e comunitário, entre os que suspeitavam dele) não seriam capazes de desfazer a situação. Os
lhes eram apresentados. (Essa cultura artesã também pode ser conflitos cruciais giravam sobre as questões de controle, indepen­
considerada como um fermento ainda vivo nos anos vitorianos, na dência financeira e se os Institutos deviam ou não debater eco­
medida em que os selj-made men ou os filhos de artesãos dos anos nomia política (caso sim, a economia política de quem). Thomas
20 contribuíram para o vigor e a diversidade de sua vida intelec­ Hodgskin foi derrotado, neste último conflito, por Place e Brou­
tual.) Por reciprocidade entendemos a tradição de estudos, dis­ gham. Nos conflitos anteriores, Birkbeck, com seu ardor em levan­
cussões e aperfeiçoamento mútuos. Tivemos uma amostra com os tar dinheiro para aumentar as facilidades dos Instituto, rejeitou a
dias da SLC. O costume de ler em voz alta os periódicos radicais, recomendação de Robertson, Hodgskin e fohn Gast de que — se a
para proveito dos analfabetos, também redundava — como consc- questão fosse assumida de modo menos ambicioso — os próprios
qüência necessária — num grupo de discussão ad hoc a partir de artesãos levantariam os fundos necessários, deteriam e controlariam
cada leitura: Cobbett expusera seus argumentos, o mais direta­ a totalidade.
mente possível, e a seguir os tecelãos, malharistas ou sapateiros Essas duas derrotas e a inauguração das palestras de Brougham
discutiam-nos. sobre economia política (1825) significaram a transferência do
Um parente desse tipo de grupo era a sociedade de aperfei­ controle para os adeptos de classe média, cuja ideologia também
çoamento mútuo, formal ou informal, que se reunia semanalmente dominava a economia política da ementa. Em 1825, o Trades
com o propósito de adquirir conhecimento, geralmente sob a lide­ Newspaper deu o Instituto de Londres como causa perdida, depen­
rança de um dos seus membros.59 Aí, e nos Institutos de Artes e dente dos “ grandes e ricos” :
Ofícios, havia uma certa confluência das tradições das capelas e
dos radicais. Mas a coexistência era difícil, e nem sempre pacífica. Quando foi fundado, existia uma tal excitação forte e generali­
Os primeiros anos da história dos Institutos de Artes e Ofícios, zada a seu favor entre os Artífices da Metrópole que sentimo-nos
desde a formação do Instituto de Londres, em 1823, até os anos totalmente convencidos, se aquela excitação não tivesse sido aba­
1830, compõem uma estória de conflito ideológico. Do ponto de tida (...), de que os próprios Artífices podiam e teriam fornecido
vista dos artesãos ou sindicalistas radicais, seria muito bem-vindo todos os meios necessários para lhe assegurar o mais esplêndido
o entusiasmo do dr. Birkbeck, alguns clérigos dissidentes e pro­ êxito...
fissionais liberais benthamistas em ajudá-los a fundar centros para
a promoção do conhecimento. Mas certamente não estavam dis­ Nas províncias, a história dos Institutos de Artes e Ofícios é
postos a receber tal ajuda em quaisquer termos. Se, em alguns mais acidentada. Em Leeds (como mostrou o dr. Harrison), o Insti­
textos recentes, Brougham aparece como um grande radical, mas tuto, desde o início, foi controlado por patrocinadores de classe
oportunista, não era esta absolutamente a idéia que dele faziam os média, e principalmente por manufatureiros não-conformistas; em
“ velhos radicais” de 1823. Tinham-no visto a justificar o sistema Bradford e Huddersfield, foi, por um tempo, controlado por arte­
de espionagem em 1817 (num discurso que Cobbett reviveu várias sãos radicais. Depois dos meados dos anos 20, a tendência geral
vezes), e viriam a vê-lo se levantar na Câmara, no auge da cam­ foi a substituição dos costumes artesãos pelos da classe média baixa
panha de Carlile, e declarar que “se regozijava com o resultado
60. Ver Wickwar, op. cit., p. 147; e a crítica de Place: uBem jeito,
59. Ver J. F. C. Harrison, op. cit., pp. 43 ss. hipócrita; você mesmo não é um cristão".

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e a introdução da economia política ortodoxa nas ementas. Mas, interesse particular a atender; e, portanto, seu juízo não está
ainda em 1830, o movimento parecia suficientemente não-ortodoxo encoberto por preconceitos ou egoísmo. Além do quê, sua comu­
(devido à sua galáxia de patrocinadores utilitaristas e unitaristas) nicação recíproca é totalmente livre. Os pensamentos de um
para manter à distância muitos clérigos anglicanos e wesleyanos. suscitam outros pensamentos noutro. As idéias são discutidas sem
Um vigário de Yorkshire, em 1826, considerava os Institutos como a restrição imposta à suspeita, por falso orgulho ou falsa modéstia.
agências do sufrágio universal e do “ livre-pensamento universal” , E assim a verdade é rapidamente alcançada.62
que “ com o tempo [iriam] degenerar em clubes jacobinos, e se
tornar viveiros de descontentamento” . No início dos anos 30, um Quais argumentos, quais verdades?
cura àtacou a direção do Instituto de Artes e Ofícios de Leicester,
por pervertê-lo numa escola “ para a difusão de princípios pagãos,
republicanos e niveladores” . Entre os jornais assinados por sua II. W illiam Cobbett
biblioteca, encontrava-se o Gauntlet de Carlile.61
Cobbett exerce sua influência ao longo dos anos, desde o final
Falamos da cultura artesã dos anos 20. É o termo mais pre­
das Guerras até a aprovação do Projeto de Lei da Reforma. Dizer
ciso que temos à disposição, e ainda assim é apenas aproximado.
que ele não era absolutamente um pensador sistemático não signi­
Vimos que “petite-bou? geoise” (com suas conotações pejorativas
fica que não tivesse uma séria influência intelectual. Foi Cobbett
habituais) não serve, e seria prematuro falar de uma cultura “ope­
quem criou essa cultura intelectual radical, não porque tenha ofe­
rária”. Mas por artesão devemos entender um meio que abrangia,
recido a ela as idéias mais originais, mas por ter encontrado o tom,
de um lado, os mestres e operários de estaleiros londrinos e os
o estilo e os argumentos que uniriam num discurso comum o tece­
trabalhadores fabris de Manchester, e de outro, os artesãos rebai­
lão, o mestre-escola e o operário dos estaleiros. Da diversidade das
xados e trabalhadores por encomenda. Para Cobbett, abrangia os
injustiças e interesses, ele extraiu um consenso radical. Seus Poli-
“ oficiais e diaristas” ou, mais resumidamente, “o povo” . “ Sou da
tical Registers foram como que um meio de circulação, que for­
opinião”, escreveu ao Bispo de Llandaff em 1820, “ que Vossa
necia um instrumento comum de intercâmbio entre as experiências
Senhoria está muito enganada ao supor que o Povo, ou o vulgo,
de homens com realizações muitíssimo diferenciadas.
como lhe agrada chamá-los, é incapaz de compreender argumentos”:
Isso é visível se olharmos não tanto para as suas idéias, mas
O povo, asseguro a Vossa Senhoria, não gosta absolutamente de para o seu tom. E uma forma de fazê-lo é comparar suas maneiras
estorinhas simplórias. Tampouco apreciam uma linguagem decla­ com as de Hazlitt, o mais “jacobino” dos radicais de classe média
matória, ou, numa afirmação vaga, suas mentes, nos últimos dez e o único que — ao longo de muitos anos — mais se aproximou
anos, passaram por uma enorme revolução. (...) do mesmo ritmo dos artesãos. Hazlitt aplica seu gume aos deten­
Permita-me (...) dizer que (...) essas classes, conforme meu tores de fundos públicos e sinecuristas:
conhecimento certo, são atualmente mais esclarecidas do que as
outras classes da comunidade. (...) Enxergam mais longe no fu­ Os Governos legítimos (bajulemos como quisermos) não são mais
turo do que o Parlamento e os Ministros. — Existe essa vantagem um mito pagão. Nem são tão baratos ou tão magníficos como a
presente em sua busca de conhecimento. — Não têm nenhum edição Delphin das Metamorfoses de Ovídio. São, na verdade,
“Deuses a punir”, mas sob outros aspectos são “homens com as
nossas fraquezas”. Não se alimentam de ambrosia nem bebem
61. Ver cm esp. J. F. C. Harrison, op. cit., pp. 57-88, 173-8; Mechanics néctar; vivem dos frutos comuns da terra, dos quais pegam a
Magazine, 11 e 18 de outubro de 1823; T. Kelly, Georgc Birkbeck (Liver* parcela maior e melhor. O vinho que bebem é feito de uva: o
pool, 1957), cap. 5 e 6; E. Halévy, Thomas Hodgskin (1956), pp. 87-91: sangue que derramam é o dos seus súditos: as leis que fazem não
Chester New, op. cit., cap. 17; Trades Newspaper, 17 de julho de 1825: são contra eles: os impostos que votam logo a seguir devoram.
F. B. Lott, Story of the Leicester Mechanics Institute (1935); M. Tylecote.
The Mechanics Institutes of Lancashire and Yorkshire hefore 1851 (Man­
chester, 1957). 62. Political Register, 27 de janeiro de 1820.

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Têm as mesmas necessidades que nós: e, tendo a escolha, muito com um conflito europeu de significado histórico que os radicais
^aturalmente em primeiro lugar ajudam-se a si mesmos, com os plebeus parecem provincianos, tanto em term os espaciais como
fundos comuns, sem pensar que depois deles virão outros. (. . .) temporais. É uma questão de papéis. Cobbett nunca teria escrito
Nossos indigentes-do-Estado põem a mão em todos os pratos, e nem uma frase daquela passagem. Nunca adm itiría (nem como
todos os dias se tratam suntuosamente. Vivem em palácios e se figura de linguagem) que pudéssemos querer bajular a Legitimi­
refestelam em carruagens. Apesar do Sr. Malthus, suas coudelarias dade; não teria aceitado as normas d* “o m undo” , que Hazlitt
consomem o produto dos nossos campos, seus canis se empanzi-
assume, nem ao menos para puni-lo; não escrevería “nossos indi-
nam com a comida que manteria os filhos dos pobres. Eles nos
custam muito por ano com roupas e mobílias, muito com estrelas gentes-de-Estado”, visto que toda a sua energia se concentrava em
e jarreteiras, faixas azuis e grã-cruzes — muito em jantares, apresentar ao seu público os corretores de fundos públicos e os
desjejuns e ceias, e muito em ceias, desjejuns e jantares. Esses nomeados por interesses políticos como eles\ e , como corolário,
heróis do Imposto de Renda, Merecedores da Lista Civil dc Ren­ não teria escrito, com esse sentido de distanciamento, sobre “os
dimentos, Santos do calendário da Corte (compagnons du lys), têm filhos dos pobres” — teria dito (ao seu público) “seus filhos” , ou
suas coisas naturais e nâo-naturais, como o resto do mundo, mas a teria dado um exemplo específico. Não seria capaz de dizer “ Eles
um preço mais alto. (...) Você acharia mais fácil agüentá-los por nos custam muito por ano”; teria apresentado um a cifra definida,
uma semana do que por um mês; e, ao cabo, ao acordar do doce mesmo que ao acaso. “ Esses heróis do Imposto de Renda” se
sonho da Legitimidade, diria com Calibâ: ‘‘Sim, que tolo fui de aproxima mais do jogo de nomes de Cobbett;65 mas em Hazlitt
tomar esse monstro bêbado por um Deus”.63 ainda há a fala arrastada do Amigo nobre do Povo (como Wilkes
ou Burdett, uma cheiradinha de rapé bem no momento em que se
Hazlitt tinha uma sensibilidade complexa e admirável. Foi um levanta na Câmara para a estocada mais fatal); em Cobbett, não
dos poucos intelectuais que receberam o pleno impacto da Revo­ há nenhuma pretensão irônica de cerimônia — os nomes saem,
lução Francesa e, embora rejeitasse as ingenuidades do Iluminismo, Pároco Malthus, Fletcher de Bloton, a Assembléia, com uma brus­
reafirmou as tradições da liberté e da égalité. Seu estilo revela, a
quidão que fez recuar até mesmo Shelley (“ O rapé de Cobbett,
cada momento, que não só estava se medindo contra Burke, Cole-
vingança”).
ridge e Wordsworth (e, de modo mais imediato, contra Blackxvood
e a Quarterly Review), mas que tinha consciência da força de É uma questão de tom; e mesmo assim, no tom, encontra-se
algumas posições deles, e dividiu algumas de suas reações. Mesmo pelo menos metade do sentido político de Cobbett. O estilo de
em seu jornalismo radical mais engajado (com a amostra acima), Hazlitt, com seus ritmos sustentados e controlados, seu movimento
dirigia sua polêmica para a cultura não popular, e sim educada antitético, pertence à cultura polida do ensaísta. Apesar dos Passeios
de sua época. Seus Ensaios Políticos podiam ser publicados por Rurais, não se consegue pensar facilmente em Cobbett como um
Hone,64 mas. ao escrevê-los, pensaria menos no público de Hone ensaísta. Na verdade, a fértil alusão e a maneira estudada de Haz­
do que na esperança de fazer Southey se contorcer, provocar uma litt, na medida em que pertenciam a uma cultura que não era aces­
apoplexia no Quartely ou até deter Coleridge no meio de uma sível aos artesãos, bem poderíam ter suscitado a hostilidade deles.
frase. Quando Cobbett escreveu sobre sinecuras, foi em termos como
esses:
Não é de forma alguma uma crítica. Hazlitt tinha uma ta­
manha amplitude de referências e um tal senso de compromisso Desses cargos e pensões há de todos os tamanhos, desde vinte
libras a trinta mil e quase quarenta mil libras por anol (...)
63. "O que c o Povo?", de Political Essays (1819), em Works, VII, p. 263. Existem vários nomeados por interesses políticos cujos lucros de
64. Hone disse em sua advertência aos leitores: “O Editor conscientemen­
te declara que há um Pensamento mais Original e correto, luminosa­
mente expresso neste Livro, do que em qualquer outra Obra de um Autor 65. Cf. os "Senhores das Cordas Trançadas, Soberanos dos Fusos Múlti­
vivo". plos. Grandes Cavaleiros dos Fios" de Cobbett.

345
344
cada um manteriam mil famílias. (...) O sr. PR ESTO \ (...')
argumentos especiosos.68 Mas isso é irrelevante, desde que se enten­
que é um Membro do Parlamento e tem uma grande propriedade,
diz sobre esse tema: “Cada família, mesmo dos diaristas mais da a profunda, realmente profunda, influência democrática da
pobres, com cinco pessoas, pode ser considerada pagante de atitude de Cobbett para com seu público. Paine antecipa o tom;
impostos indiretos, pelo menos dez libras por uno, ou mais da. mas Cobbett. por trinta anos, falou assim com seu público, até que
metade dos seus salários de sete xelins semanais!” E os insolentes os homens vieram a falar e discutir como Cobbett por todos os
dinheiristas chamam a vocês de turba, ralé, multidão porca e cantos. Ele pressupunha, como algo que quase dispensava demons­
dizem que sua voz não vale nada. . .66 tração, que todo e qualquer cidadão tinha o poder da razão e que
era pelos argumentos dirigidos ao entendimento comum que se
Aqui, tudo é sólido e relacionado, não com uma cultura lite­ poderíam assentar as questões. Durante os últimos dez anos (escre­
rária, mas com uma experiência acessível a todos. Até o Sr. Prestou veu em 1820),
é invocado. Cobbett trouxe os ritmos da fala de volta à prosa; mas
é uma fala enfática, arduamente argumentativa. Não dirigi nada [ao povo] que, para dar certo, não contasse com
os fatos e os melhores argumentos que eu era capaz de apresentar.
Observemo-lo a escrever sobre o tema usual de que o clero Meus temas, de modo geral, eram da mais complexa natureza.
devia ser julgado, não por sua profissão de fé, mas por seus atos; (...) Não utilizei nenhum meio para atrair a curiosidade ou para
agradar à imaginação. Tudo apelava ao entendimento, ao discer­
Há algo de infeliz, para dizer o mínimo, nessa união perfeita nimento e à justiça do leitor.
de ação entre a Igreja e a Assembléia Metodista. A Religião não
é uma idéia abstrata. Não é algo metafísico. Serve para produzir Evidentemente, não é verdade que Cobbett não tenha empre­
efeitos sobre a conduta dos homens, ou então não presta para gado nenhum recurso para “ atrair a curiosidade” . Se tratava seus
nada. Serve para ter efeitos sobre as ações dos homens. Serve
leitores como iguais, por outro lado tratou Ministros, Bispos e
para ter uma boa influência nos assuntos e na condição dos
homens. Agora, se a religião da Igreja.. .67 Lordes como algo menos. (“Wilberforce”, começa uma de suas
cartas abertas: “ Tenho-o à minha frente num panfleto hipócrita” .)
A relação de Cobbett com seu público, em passagens como A este, poderiamos acrescentar dois outros expedientes. O primeiro
esta (e o exemplo vem do primeiro Register que cai nas mãos — é a analogia simples e prática, geralmente extraída da vida rural.
Nisso ele tinha um senso infalível sobre a experiência acessível a
quase todos eles dariam no mesmo), é tão tangível que se pode
todo o conjunto dos seus leitores. Essas imagens, em seus textos,
tocá-la. É um argumento. Traz uma proposição. Cobbett escreve
não eram decorativas e tampouco alusões gratuitas. Eram tomadas,
“metafísico”, olha o público e se pergunta se a palavra diz alguma sopesadas, reviradas, deliberadamente empregadas para avançar
coisa. Explica a importância do termo. Repete sua explicação na com o argumento e então apresentadas. Podemos pegar o exemplo
linguagem mais direta. Repete-a outra vez, mas agora amplia a da famosa descrição que Cobbett fez de Brougham e dos reforma­
definição, de modo a trazer implicações sociais e políticas mais dores moderados, como espantalhos ou EI-XÔS — “e agora vou
amplas. Então, encerradas as frases curtas, retoma sua exposição. lhes dizer por quê” :
Na palavra “ Agora” sentimos o implícito: “se vocês todos enten­
deram minha questão, vamos continuar ju n to s.. . ” Um espantalho é uma imitação dc homem ou mulher, feita de pa­
lha ou outro material, montado em torno de uma estaca, fincada
Não é difícil mostrar que Cobbett tinha algumas idéias muito
tolas e contraditórias, e que por vezes intimidou seus leitores com
68. A imprensa legalista se deliciava publicando listas das autocontra-
dições de Cobbett. O mesmo também, do ponto de vista contrário, faziam
66. "Address to the Journeymen and Labourers", Political Register, 2 seus adversários ultra-radicais: ver Gale Jones, com sua prejudicial Vindi-
de novembro de 1816. cation of the Press, against the Aspersions of William Cobbett, including
67. Ibid, 27 de janeiro de 1820 a Retrospect of his Political Life and Opinions (1823).

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no chão (...) com uma vara ou espingarda na mão. Esses espanta­ O que se faz com esse texto? Sob um aspecto, é um texto
lhos são usados para impedir que os pássaros estraguem o trigo ou imaginativo e talentoso. A analogia começa um pouco rígida; a
as plantações, e às vezes para espantá-los das cerejas ou outras política e a agricultura correm em linhas convergentes, mas senti­
frutas. O povo quer uma reforma do parlamento, e por muito mos que a imagem está longe de seu desfecho. Então — com
tempo (...) houve um pequeno grupo a declarar o desejo de “ olhinhos rápidos e penetrantes” — , os dois argumentos se fun­
obter uma reforma parlamentar. Fizeram moções, discursos e vo­ dem, num movimento de deleite polêmico. Cobbett está no meio
tações, com a idéia de alimentar as esperanças do povo, e assim da pilhéria, a imagem cresce a proporções surrealistas — Brougham
puderam mantê-lo quieto de tempos em tempos. Nunca quiseram com um pardal no chapéu, os reformadores com pólvora e chumbo,
ter êxito, pois o êxito poria fim às suas esperanças de emolu­ plantações de nabo e um vizinho MORELL (que provavelmente
mentos; mas entretiveram o povo. O grande conjunto das facções,
nunca mais voltará a aparecer). Sob outro aspecto, que coisa ex­
conhecendo a realidade de suas concepções, divertiu-se imensa­
mente com seus falsos esforços, que nunca os impediram minima­ traordinária é essa parte da tradição política inglesa! É mais que
mente de continuar a desfrutar da pilhagem generalizada. Ê exa­ polêmica: é também teoria política. Cobbett definiu, em termos
tamente como o que acontece com os passarinhos e os espantalhos que um lavrador ou um artesão entendería muito bem, a função
nos campos ou hortas. No começo, os passarinhos tomam os de uma forma muito inglesa de acomodamento reformista. Mais
espantalhos por um homem ou uma mulher de verdade; enquanto que isso, lança luz, por mais de um século, sobre os bobocas de
isso, deixam de pilhar; mas, depois de observar um pouco o outros partidos e outros tempos.
espantalho com seus olhinhos rápidos e penetrantes, e perceber O outro expediente, que já observamos,70 é a personalização
que ele nunca mexe nem pé nem mão, descuidam totalmente de questões políticas — uma personalização centrada sobre o pró­
dele, e ficam tão à vontade como se não passasse de um poste. prio Cobbett de Botley. Mas, se Cobbett foi seu próprio tema,
O mesmo acontece com esses espantalhos políticos; mas (...) eles tratou-o com uma objetividade incomum. Seu egocentrismo se ultra­
são prejudiciais. (...) Lembro de um caso (...) que ilustra muito passava, chegando ao ponto em que o leitor toma consciência não
bem as funções desses impostores políticos. Os pássaros estavam do ego de Cobbett, mas de uma sensibilidade observadora franca
devastando uma plantação de nabos que eu tinha em Botley. e fatual, com a qual sente-se estimulado a se identificar. Pede-se-lhe
“Ponha um espantalho”, eu disse ao meu capataz. “Não vai
que olhe não para Cobbett, mas com Cobbett. O sucesso desse
adiantar nada, senhor” (...), ele respondeu (...) me contando
que, naquela manhã, na horta do seu vizinho MORELL (...) jeito pode ser visto cm seus Passeios Rurais, onde seus contempo­
realmente tinha visto um pardal pousado com uma vagem em râneos e ainda gerações sucessivas sentiram sua presença palpável,
cima do chapéu do espantalho, como se fosse uma mesa de jantar, ao conversar com os lavradores nos campos, ao percorrer as aldeias,
e lá estava a bicar as ervilhas e a comê-las, coisa que podia fazer ao parar para alimentar seus cavalos. A força de sua indignação
com mais segurança ali, olhando à volta e vendo a aproximação é tanto mais convincente devido ao seu prazer com algo que lhe
de um inimigo, do que se estivesse no chão, onde podia ser apa­ agradasse. Em Tenterden:
nhado de surpresa. São exatamente as funções dos nossos espan­
talhos políticos. Os espantalhos agrícolas (...) enganam os pre­ a tarde estava muito bonita, e, logo que subi a colina e cheguei
dadores por muito pouco tempo; mas continuam a enganar os à rua, o povo tinha saído da igreja e seguia para suas casas. Era
que os fincam no chão e contam com eles, os quais, em vez de uma visão muito bonita. Gente mal vestida não vai à igreja. Vi.
levantar cedo e atacar os predadores com pólvora e chumbo, em suma, expostas à minha frente, a gala e a beleza da vila; e vi
confiam nos miseráveis espantalhos e assim perdem o trigo e as inúmeras moças muito, muito graciosas; vi-as, também, em suas
plantações. Assim é com o povo, que é o tapeado por todos os melhores roupas. Lembro as moças no Pays de Caux, e realmente
espantalhos políticos. Em Suffolk, e em outros condados orientais, acho que as de Tenterden se parecem com elas. Não sei por que
são chamados de bobocas. ..69 não haveria de parecer, pois existe o Pays de Caux logo do outro
lado do mar, bem na frente desse mesmo lugar.
69. Political Register, l.° de setembro de 1830. Ver G. D. H. e M. Cole
The Opinions of William Cobbett, pp. 2534. 70. Ver atrás, p. 208.

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Ou, numa aldeia em Surrey, a ausência de pobreza se converte lizou as gotas pendentes das árvores; de modo que o sol, que
num ponto expressivo em contraste com sua presença generalizada: agora está brilhando como no mês de maio na Inglaterra, expõe
esses sincelos como milhões incontáveis de diamantes cintilantes.
Quando eu estava indo de Upwaltham a Eastdean, chamei um
rapaz, que, junto com outros lavradores de nabos, estava sentado Mas essa posição convertia-se num efeito para dramatizar com
ao abrigo de uma sebe para o café da manhã. Veio correndo ate maior força os seus sentimentos (expressos numa carta a Hunt)
mim com sua comida na mão; fiquei contente ao ver que consistia inspirados pelas notícias da execução de Brandreth e seus com­
de um bom pedaço de pão caseiro e um bocado não muito pe­ panheiros:
queno de toucinho defumado (...) Ao deixá-lo, disse: “Então vocês
conseguem algum toucinho?” “Oh, sim, senhor!”, disse ele, com Tenho, meu caro Hunt, as pequenas cabanas com teto de palha
uma ênfase e um movimento da cabeça que parecia dizer: “De­ de Waltham Chase e Botley Common plenamente presentes agora
vemos e queremos ter isso”. Vi, e com grande prazer, um porco aos olhos da mente, e neste dia sinto, com mais força do que
em quase todas as casas dos lavradores. As casas são boas e nunca, aquela paixão que me faria preferir ocupar a mais pobre
quentes; e as hortas são das melhores que já vi na Inglaterra. de todas essas moradias humildes, acompanhado do caráter do
Que diferença, bom Deus!, que diferença entre essa região e os homem inglês, do que ter o domicílio c a propriedade efetiva de
arredores daqueles lugares corruptos Greaí Bedwin e Cricklade. tudo o que descreví acima sem a companhia daquele caráter.
Que tipo de café da manhã esse homem ter ia com uma gororoba Como disse quando deixei a Inglaterra, ainda repito que nunca
de batatas frias? Conseguiría trabalhar, e trabalhar também com poderei gostar tanto de povo algum como gosto do povo da
chuva, com uma comida dessas? Monstruoso! Não devia existir Inglaterra.
nenhuma sociedade em que os lavradores vivessem uma tal vida
de cachorro. Se Cobbett, a partir da luta do movimento pela reforma, montou
alguma martirologia ou uma demonologia, foi ele mesmo a figura
“ Existe o Pays de Caux ( ...) bem na frente desse mesmo central do mito. Mas devíamos hesitar antes de acusá-lo demasiado
lugar”, “ essa região”, “ esse homem” — onde estivesse, Cobbett de vaidade pessoal. Pois o mito exigia também que William Cobbett
sempre levava os seus leitores, pela imediatez de sua visão, pela fosse visto como um inglês comum, excepcionalmente beligerante
mescla de reflexão e descrição, pela solidez dos detalhes e pelo e perseverante, mas não especialmente talentoso — um homem
senso físico do espaço, a se identificar com sua posição. E “posi­ como o leitor podia se crer, ou como o lavrador no campo de
ção” é a palavra adequada, pois Cobbett se punha solidamente em nabos, ou (conforme esta ou aquela volta das circunstâncias) como
algum local físico — sua fazenda em Botley e a estrada para
podia vir a ser o filho da propriedade rural numa pequena estala-
Tenterden — , e então procedia da evidência dos seus sentidos
gem numa aldeia de Sussex:
para suas conclusões gerais. Mesmo durante seu exílio americano
(1817-19), era-lhe importante transmitir esse sentido do espaço:
A proprietária enviou seu filho para me trazer um pouco de
nata, e ele era um rapaz exatamente igual ao que fui na sua
De um ângulo da minha sela, vejo o curral de uma fazenda, idade, e vestido exatamente da mesma forma, sua peça principal
cheio de forragem e bois, carneiros, porcos e um monte de gali­
sendo um blusão azul, desbotado de tantô lavar, e remendado com
nhas, e a poucos passos, adiante do curral, corre o rio Susque-
retalhos de pano novo (...) A visão dessa bata trouxe-me à lem­
hannan, que é mais largo que o Tâmisa e tem inúmeras ilhas
brança muitas coisas que me são caras. Esse menino, ouso dizer,
desde mil até vinte ou trinta mil metros quadrados de extensão.
desempenhará sua parte em Billinghurst ou em algum local não
Do outro lado da sala, vejo um Pomar de Maçãs e Pêssegos de
longe dali. Se o acaso não tivesse me retirado de um cenário
dezesseis hectares, situado num vale estreito, que sobe por entre
semelhante, quantos infames e tolos, que foram bastante caçoados
duas montanhas por cerca de quatrocentos metros, com o mesmo
e atormentados, teriam dormido em paz à noite e passeariam
formato da cumeeira de uma casa, com as empenas voltadas para
o rio. Ontem à noite choveu: geou de madrugada, e o gelo crista­ arrogantes e impávidos durante o dia!

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Sua compaixão pelos pobres sempre teve essa qualidade: “ lá, outras coisas além dos detalhes e das circunstâncias locais. (...)
mas por graça de Deus, vai Will Cobbett”. Sua afetação era apa­ Os textos de Paine são uma espécie de introdução a uma aritmé­
tica política em novo plano: Cobbett mantém um diário e anota
recer mais “ normal” do que era. Nunca deixou que seus leitores
completamente todas as ocorrências e questões problemáticas que
esquecessem que outrora conduzira a charrua e servira como sol­ surgem ao longo do ano.
dado raso. Conforme prosperava, afetava os trajes, não como jor­
nalista (que pretendia não ser), mas como um antiquado agricultor-
A personalização da política — este lavrador na horta do seu
fidalgo. Segundo a descrição de Hazlitt, ele usava “um colete de
chalé, aquele discurso na Câmara dos Comuns, aquele outro exem­
casimira de lã escarlate com as abas dos bolsos pendentes, como
plo de perseguição — adaptava-se bem à aproximação pragmática de
era o costume entre os agricultores-fidalgos do século passado” ;
um público que mal despertara para a consciência política. Trazia
segundo Bamford, “ vestia um casaco azul, um colete amarelo de
também um valor oportunista, na medida em que, concentrando a
lã fina, calções justos de malha marrom e botas de cano alto
atenção em fatos circunstanciais e injustiças particulares, e evitando
virado ( ...) era a representação perfeita do que sempre quis ser
absolutos teóricos, permitia que monarquistas e republicanos, deís-
— um agricultor-fidalgo inglês”. É Hazlitt quem dá a versão mais
tas e religiosos se engajassem num movimento cpmum. Mas o
imparcial do tipo de vaidade de Cobbett: “ Seu egocentrismo é
argumento pode ir longe demais. Os Direitos do Homem de Paine
encantador, pois não há nenhuma afetação nele” .
tinham encontrado uma reação igual num público não mais instruí­
Ele fala de si mesmo não por falta do que escrever, mas porque do, e incentivara uma teoria dos direitos populares mais funda­
algo que lhe sucedeu é a ilustração melhor possível do tema, e mentada; ao passo que o êxito contemporâneo de jornais mais
ele não é homem de relutar em dar a melhor ilustração possível teóricos prova a existência de um grande público operário que
do tema só por melindres de delicadeza. Ele gosta tanto de si captaria nitidamente a sua política. Cobbett, de fato, ajudou a
como do seu tema. Não se põe à frente dizendo “Admire-me criar e alimentar o antiintelectualismo e oportunismo teórico (dis­
primeiro”, mas coloca-nos na mesma situação em que está, e nos
faz ver tudo o que faz. Não há nenhuma (...) autocomplacência farçado de empirismo “ prático”) que se conservaram como uma
abstrata e sem sentido, nenhuma admiração por si contrabandeada importante característica do movimento trabalhista britânico.
por procuração: é tudo claro e franco. Escreve diretamente sobre “ Lembro que minha mãe tinha o hábito de ler o Register de
si mesmo como William Cobbett, desnuda-se do modo mais abso­ Cobbett, e dizia que se admirava que as pessoas falassem tanto
luto que alguém poderia desejar — numa palavra, seu egocen­
trismo é pleno de individualidade e tem pouco espaço para uma contra ele; não via nada de mal, pelo contrário via muitíssimas
minúscula vaidade.71 coisas boas nele.” 72 A mãe de James Watson era uma empregada
doméstica na casa de um clérigo e professora numa Escola Domi­
É um juízo literário generoso. Mas um juízo político deve ser nical. “ Os Weekly Political Pamphlets do Sr. Cobbett” , escreveu
mais controlado. A grande alteração no tom e estilo do radicalismo Hone em 1817:
popular, exemplificada no contraste entre Paine e Cobbett, foi
definida pela primeira vez (novamente) por Hazlitt: deviam ser encadernados juntos, e ficar na mesma prateleira com
a História da Inglaterra, o Progresso do Peregrino, Robinson
Paine costumava reduzir as coisas a primeiros princípios, anun­ Crusoé e o Livro do Conhecimento do Jovem. Qualquer biblio­
ciar verdades auto-evidentes. Cobbett pouco se incomoda com teca simples c modesta no reino não está completa sem ele. ..

71. Poliiical Register, junho de 1817, 11 de abril de 1818, 2 de outubro 72. W. J. Linton, James Watson, p. 17, Cf. T. Frost, op. cit., p. 6:
de 1819; Rural Rides, passim; Bamford, op. cit., p. 21; Hazlitt, Table Talk ‘os únicos livros que vi na casa do meu pai, além da bíblia e uns velhos
(1821). livros escolares (...) eram alguns números avulsos do Register de Cobbett".

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Devia ser “ tão comum e familiar” como o Guia da Dona-de- foi além e cometeu o que (aos olhos de Cobbett) era uma blasfêmia
Casa e a Medicina Doméstica de Buchan.73 De fato, foi em grande ofensiva, ao datar o Republican “ com o ano de 1822 do filho da
parte o que viria a ocorrer. Wooler e Carlile, com suas maneiras mulher do Carpinteiro”, apelou à lei da turba. Se isso tivesse acon­
mais sofisticadas e intelectuais, podiam ter dado expressão ao radi­ tecido nos Estados Unidos (rugiu ele):
calismo dos artesãos urbanos; mas só Cobbett teria conseguido, em
1816, reunir malharistas e tecelãos no mesmo diálogo. Você seria ( .. . ) imediatamente envolvido numa camada de piche e
A forma curiosa como passou do torysmo para o radicalismo penas, e ( ...) carregado com o traseiro de fora em cima de um
resultou num certo oportunismo de sua posição. Conseguira escapar trilho, até cair ao lado de algum bosque ou pântano, onde seria
deixado a rum inar sobre a prudência (para não falar da modéstia)
dos preconceitos antigauleses e antijacobinos dos anos de guerra.
de se pôr como inventor de novos governos e religiões.74
Conseguiu recusar a Revolução Francesa e Tom Paine como coisas
de cuja defesa não participara. Finalmente (como ele mesmo reco­
Dificilmente terá existido algum outro escritor em nossa histó­
nheceu em termos generosos), veio a aceitar muitos dos argumentos
ria a formular ataques tão numerosos e tão expressivos ao clero
de Paine. Mas sempre se esquivou ao repúdio jacobino intransigente
anglicano (e, em particular, o clero rural). E no entanto, por
do princípio hereditário, e assim pôde se apresentar como refor­
nenhuma razão que jamais tenha exposto seriamente, muitas vezes
mador radical e constitucionalista. No “ Discurso aos Oficiais e
declarou sua adesão não só ao Trono (que quase derrubou durante
Diaristas” , alertou contra homens que “convenceríam você de que,
a agitação da Rainha Carolina) e à Constituição (que seus segui­
só porque as coisas foram desviadas dos seus verdadeiros fins, não
dores quase assassinaram), mas também à Igreja Estabelecida. Foi
existe nada de bom em nossa constituição e leis. Pelo que, então,
até capaz de escrever ocasionalmente sobre “nosso dever de tratar
Hampden morreu em campo e Sydney na forca?” Os americanos,
com ódio a Turcos e ludeus” porque o Cristianismo era “parte
ao se separar da Inglaterra, tinham tido o cuidado de preservar a
e parcela da lei” .
“ Magna Carta, a Carta dos Direitos, o Habeas Corpus” e o conjunto
do Direito Inglês: Tal oportunismo impossibilitou o desenvolvimento de qualquer
teoria política sistemática a partir do cobbettismo. E seus precon­
Queremos grandes alterações, mas não queremos nada de novo. ceitos econômicos pertenciam a esse mesmo tipo de evasiva. Assim
Alterações, modificações que sc adequem aos tempos e às circuns­ como ele desenvolveu não uma crítica de um sistem a político e
tâncias; mas os grandes princípios devem e precisam ser os sequer da “ Legitimidade”, e sim uma invectiva contra a “Velha
mesmos, ou então virá a confusão. Corrupção”, da mesma forma reduziu a análise econômica a uma
polêmica contra o parasitism o de certos interesses investidos. Não
admitiría uma crítica centrada na propriedade; portanto, expunha
Mesmo quando (em seu último ano de vida) pressionou o
(muito repetitivamente) uma demonologia, onde os males do povo
povo para resistir à força à Nova Lei dos Pobres, foi em nome dos
se deviam à tributação, à Dívida Nacional, ao sistema monetário
direitos constitucionais e da inviolabilidade dos costumes. Sua
e às hordas de parasitas — corretores dos fundos públicos, indica­
atitude frente aos racionalistas mostrava a mesma mescla de radi­
dos por favores políticos, intermediários e coletores de impostos —
calismo e tradicionalismo. Defendia firmemente seu direito de
que tinham engordado com os três primeiros. Isso não significa que
publicar argumentos contra a religião cristã. Mas quando Carlile
a crítica fosse infundada — nos moldes brutalmente exploradores
da tributação e nas atividades parasitárias do Banco e da Companhia
73. Reformist's Register, de Hone, 5 de abril de 1817, sobre a partida das Índias Orientais, havia combustível suficiente para alimentar
dc Cobbett para os Estados Unidos. Ver, porém, a réplica colérica de o fogo de Cobbett. Mas, tipicamente, os preconceitos de Cobbett se
Wooler: "Estamos quase inclinados a desejar que o sr. Cobbett tivesse sc afinavam com as queixas dos pequenos produtores, donos de lojas
limitado a escrever (...) sobre esses assuntos com que não poderia (.. )
iludir ninguém a não ser cozinheiras e lavadores de pratos". Black Dwarf,
9 de abril de 1817. 74. Political Register, 2 de fevereiro de 1822.

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e oficinas, artesãos, pequenos agricultores e consumidores. A aten­ produzem nas mentes deles. Ê o encontro entre a pederneira e o
ção se desviava do proprietário rural ou do capitalista industrial fuzil de pederneira que gera o fogo.75
e se concentrava nos intermediários — o corretor ou o agente que
açambarcava os mercados, lucrava com a escassez do povo ou
Como é instigante essa percepção da natureza dialética do
vivia, de qualquer forma que não fosse intimidamente ligada à
próprio processo onde se formaram suas idéias! São poucos os
terra ou à indústria, de rendimentos não-merecidos. Os argumentos
escritores que tanto foram a “voz” da sua própria audiência. É
eram tão econômicos quanto morais. Os homens tinham direito
possível tomar o talento de Cobbett como indicador do movimento
à riqueza, mas só se pudessem ser vistos a dar duro no trabalho.
pelo qual falava. Em períodos de crise, lá está essa brilhante incan­
Cobbett odiava, ao lado dos sinecuristas, os especuladores quacres.
descência. Em períodos de esmorecimento do movimento, ele se
Deficiente em termos teóricos, às vezes foi também nitidamente torna extremamente irritadiço e idiossincrático: seu estilo só se
prejudicial em sua influência imediata sobre a estratégia política, inflama opacamente. E isso vale até seus últimos anos; conforme
na medida em que nem sempre era, de forma alguma, tão direto em seu público mudava, ele também mudava junto.
seu trato privado e público quanto pedia que os outros fossem.
É o que Raymond Williams bem descreveu como a “extraordi­
Não foi totalmente responsável pelos seus defeitos enquanto líder
político. Era um jornalista, e não um líder ou organizador político, nária segurança do instinto” de Cobbett. E, no entanto, instinto de
e foi apenas o acaso do contexto (a proscrição dc uma real orga­ quê? Em primeiro lugar, era um instinto que revelava a natureza
nização política) que o obrigou ao outro papel. Mas, se não escolheu real das relações de produção em transformação, a qual ele avaliou,
ser um líder político, por outro lado relutava (como outros, nessa em parte, à luz de um passado patriarcal idealizado c, em parte, à
situação) em ver o movimento seguir alguma direção que não fosse luz da afirmação do valor de cada lavrador individual, a qual não
a por ele prescrita. Quando se contam todos estes — e outros — é absolutamente passadista. Em segundo lugar, Cobbett era a encar­
defeitos, é fácil subestimá-lo como um fanfarrão ou um romântico nação do “ inglês livre de nascimento” . Reuniu todo o vigor da
nostálgico. tradição do século 18 e trouxe-o, com nova ênfase, ao século 19.
Mas de nenhum proveito é o juízo corriqueiro, tão difundido, Seu ponto de vista aproximava-se intimamente da ideologia dos
de que Cobbett era “ realmente um Tory”. Uma razão já examinamos pequenos produtores. Os valores que defendia com todo o seu ser
o suficiente: o caráter democrático do seu tom. Sua relação com o (e escrevia com o melhor de si quando dava rédeas soltas aos seus
público era curiosamente íntima: lembremo-nos que ele estava preconceitos) eram a independência e o individualismo inflexíveis.
constantemente conversando com seus leitores. Discursava para Lamentava o desaparecimento dos pequenos agricultores e dos
eles em reuniões pela reforma. Fazia viagens de palestras. Mesmo pequenos comerciantes, a extração dos recursos do país aos “ grandes
quando morava nos Estados Unidos, sua mala postal era pesada, e montes” , a perda, pelos tecelãos, de “caráter corajoso e leal forjado
delegações de artífices escoceses e reformadores émigrés ficavam nos dias de sua independência” .76 O pequeno agricultor que se
à sua espera nas ribanceiras do Susquehannah. Percorria o campo indignava com a grande propriedade do cervejeiro ou do lorde
a cavalo, para descobrir o que os homens pensavam e falavam. ausente; o pequeno fabricante e vendedor de roupas que escrevia
Assim, as idéias de Cobbett podem ser vistas não tanto como petições contra o crescimento do sistema fabril; o pequeno alfaiate
um fluxo propagandista unilateral, e sim como a incandescência de ou sapateiro que descobria que os intermediários recebiam contratos
uma corrente alternada entre ele e seus leitores. ‘'Sempre digo que do Governo ou reservavam para si a melhor parcela do mercado
tirei do povo ( ...) dez vezes mais luz do que comuniquei a eles” : — eles estavam entre seu público natural. Também sentiam a mesma
hostilidade difusa contra a “ especulação” e o “ sistema comercial” :
Um escritor engajado na instrução de um tal povo é constante­
mente sustentado não só pelos aplausos que recebe, e por per­
ceber que sua faina traz resultados mas também pela ajuda que 75. Political Register, 27 de janeiro de 1820.
continuamente extrai daqueles novos pensamentos que os seus 76. Political Register, 30 de janeiro de 1832. Ver também R. Williams.
Culture and Society (ed. Pelican), pp. 32-4.
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mas (como Cobbett) detinham-se um pouco antes de qualquer Pobres, que essa condição tinha chegado a um grau insuportável,
crítica radical aos direitos de propriedade. é que se dispunha a contestar a ordem social dada:
Se isso fosse tudo, Cobbett teria se conservado como o porta-
voz político da pequena burguesia. Mas seu público — o próprio Deus lhes deu a vida nesta terra; têm tanto direito a estar aqui
quanto vocês; têm um claro direito ao sustento a partir da terra,
movimento radical — levou-o além. “ Estamos diariamente avançan­
em troca do seu trabalho; e, se vocês não podem gerir suas terras
do até o estado em que só existirão duas classes de homens, os
de modo a lhes retirar o trabalho em troca da subsistência, entre­
senhores e os abjetos dependentes.” Quando Cobbett avaliava a guem as terras a eles.. .78
posição do artesão ou do fiandeiro de algodão, extrapolava a
experiência dos pequenos mestres que vinham sendo obrigados a Isso foi escrito seis meses antes de morrer.
ingressar na classe operária. Via o proletariado fabril de Manchester
Ê por isso que Cobbett (e John Fielden, seu amigo e colega
menos como indivíduo de novo tipo, e sim como pequenos produ­
Membro por Oldham depois de 1832) chegou tão perto de ser o
tores que tinham perdido sua independência e direitos. Enquanto
porta-voz do operariado. Quando a condição real dos trabalhadores
tal, a disciplina de trabalho das fábricas era uma ofensa à sua
— para Cobbett, o diarista rural, para Fielden, a criança na fábrica
dignidade. Quanto ao trabalho de crianças, era simplesmente “não-
— converte-se não em um, mas no teste de todos os outros expe­
natural” .
dientes políticos, estamos próximos de conclusões revolucionárias.
Sua atitude para com os diaristas rurais era um tanto diferente. Ocultas na idéia aparentemente “ nostálgica” dos “ direitos histó­
Embora se esforçasse para entender uma sociedade comercial e ricos dos pobres” expressa, de formas diferentes, por Cobbett,
industrial, o modelo essencial de economia política em sua mente Oastler e Carlile, também amadureciam reivindicações novas de
provinha da agricultura. Aqui ele aceitava uma estrutura social onde que a comunidade socorresse os desamparados e necessitados não
o proprietário da terra, o bom rendeiro, o pequeno proprietário e o por caridade, mas como um direito.79 Cobbett abominava o “ sistema
diarista tinham, todos, a sua parte, dado que as relações produtivas confortador” de caridade e salvação moral e, em sua História da
e sociais eram governadas por certas sanções e obrigações mútuas. “Reforma” Protestante, preocupou-se principalmente em dar uma
Ao defender sua própria conduta como senhor de terras, citou o base histórica à sua noção de direitos sociais. A igreja Medieval
caso de um velho lavrador, que vivia retirado na fazenda em tinha assumido terras como curadora dos pobres. Apropriadas
Botley, quando ele a comprou: indebitamente ou mal distribuídas, eram ainda uma reivindicação
dos pobres, reconhecida (aos olhos de Cobbett) pela mediação da
O velho não me pagava nenhuma renda; quando ele morreu, antiga Lei dos Pobres. A revogação dessas leis constituía o último
pus uma lápide em sua sepultura para registrar que tinha sido gesto de uma vergonhosa série de roubos, que tinham lesado os
um homem honesto, habilidoso e industrioso; e dei à viúva um direitos dos pobres:
xelim por semana durante todo o tempo que fiquei em Botley.77
Entre esses direitos estava o de viver na terra onde nascemos;
Aqui ele não se distingue do melhor tipo de proprietário rural o de retirar a sobrevivência da terra de nosso nascimento em
cujo desaparecimento tanto lamentava. Mas isso não é tudo. Há troca do nosso trabalho devida e honestamente executado: o
também aquela frase incômoda: “ Não devia existir nenhuma socie­ direito, se caíssemos em desgraça, de ter nossas necessidades sufi­
cientemente atendidas com o produto da terra, fosse a miséria
dade em que os lavradores vivessem uma tal vida de cachorro”.
devida a doença, decrepitude, velhice ou incapacidade de encon­
Não devia existir nenhuma sociedade — a pedra-de-toque da sua trar emprego. (. . .) Por mil anos, a necessidade foi atendida com
crítica social é a condição do trabalhador rural. Quando julgava,
como na época da revolta dos diaristas rurais ou da Nova Lei dos
78. Political Register, 28 de fevereiro de 1835.
79. Ver Asa Briggs, “The Welfare State in Historical Perspective", Archiv.
77. Twopenny Trash, l.° de outubro de 1830. Europ. Sociol., II (1961), p. 235.

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o produto dos Dízimos. Quando os Dízimos foram tomados pela
aristocracia, e mantidos para cia mesma, ou entregues totalmente
T e cartistas se convertessem nas vivandeiras dos utilitaristas ou da
Liga Contra a Lei do Trigo. Alimentou a cultura de uma classe,
aos padres, tomaram-se providências a partir da terra, como com­ cujos erros sentia, mas cujas soluções não conseguiu entender.
pensação do que tinha sido tomado. Essa compensação era dada
segundo as taxas estabelecidas pela lei dos pobres. Eliminar essas
taxas seria violar o acordo, que dava o direito, em caso de ne­ 111. Carlile, Wade e Gast
cessidade, de receber auxílio a partir da terra, como deixava
ao proprietário o direito à sua renda.80 Mas não devemos esquecer as inconsistências, as fanfarronadas,
o antiintelectualismo, as profissões de lealdade ao Trono e à Igreja,
Esse mito histórico, que pressupõe algum pacto social medie­ o oportunismo teórico, as voltas e torções dos efêmeros textos
val entre a Igreja e a fidalguia, de um lado, e os lavradores de políticos de Cobbett. Essas fraquezas eram mais do que evidentes
outro, era empregado para justificar as pretensões a novos direitos para os radicais de maior clareza. Já em 1817, estava sob fogo
sociais, de modo muito semelhante ao emprego da teoria da cons­ cerrado de outros periódicos. Em 1820, muitos artesãos radicais
tituição livre de Alfredo o Grande e do jugo normando, para não o levavam mais a sério como pensador, embora sem deixar
justificar as pretensões a novos direitos políticos. Desse ponto de de apreciar suas polêmicas pantagruélicas. Continuaram a lê-lo,
vista, o direito de posse da terra pelos proprietários não era absolu­ mas começaram a ler também outros jornais. Entre esses jornais
to, mas dependia do cumprimento de suas obrigações sociais. Nem menores, entre 1817 e 1832, havia muitos pensamentos originais
Cobbett nem Fielden partiam do pressuposto de que os trabalhado­ e exigentes, que viriam a moldar a consciência política de classe
res teriam qualquer direito de expropriar o capital ou a proprie­ depois de 1832. Podemos selecionar quatro tendências: a tradição
dade fundiária; mas ambos concordavam que, se as relações de Paine-Carlile, os utilitaristas operários e o Gorgon, os sindicalistas
propriedade existentes violassem reivindicações fundamentais de em torno do Trades Newspaper de John Gast, e as várias tendências
realização humana do diarista rural ou da criança, então estaria associadas ao owenismo.
aberta à discussão qualquer solução, por drástica que fosse. (Para
Fielden, isso significava que ele — o terceiro maior “ Senhor dos Já examinamos o volume principal de idéias da primeira delas,
nos Direitos do Homem, e sua importantíssima contribuição na luta
Fios” em Lancashire — se dispunha a trabalhar com John Doherty
de Carlile pela liberdade de imprensa. A derivação a partir de
para uma Greve Geral pela jornada de oito horas.)
Paine é evidente. Não é apenas o reconhecimento de uma dívida,
A pedra-de-toque de Cobbett era, ao mesmo tempo, uma bar­ mas a afirmação de uma ortodoxia doutrinária:
reira intransponível entre o tipo de sua teoria política e a ideologia
dos utilitaristas de classe média. Se as conclusões de Malthus Os textos de Thomas Paine, por si sós, formam um modelo para
levavam à defesa da emigração ou de restrições ao casamento entre o que quer que mereça ser chamado dc Reforma Radical. Não
os pobres, essa pedra-de-toque mostrava suas imperfeições. Se os são Reformadores Radicais os que não alcançam a totalidade
“filósofos escoceses” e Brougham só destruíam os direitos do indi­ dos princípios políticos de Thomas Paine. (...) Não pode existir
víduo pobre sob a velha Lei dos Pobres, deixavam os tecelãos nenhuma Reforma Radical sem (...) uma forma republicana
morrerem de fome e aprovavam o trabalho de crianças pequenas de Governo.81
nas fábricas, essa pedra-de-toque declarava-os velhacos ardilosos.
É por vezes não um argumento, mas uma afirmação, uma impreca- Podemos ter uma idéia da força e fidelidade com que se
ção, um ímpeto do sentimento. Mas bastava. Cobbett contribuiu assumia a doutrina, a partir de um relato sobre uma reunião do
mais do que qualquer outro escritor para impedir que os radicais ramo cartista de Cheltenham, cujo presidente era um velho ferreiro:

81. R. Carlile. An Effort to set at rest (...) the Reformers of Leeds


80. Tour of Scotland (1833), citado em W. Reitzel (org.), The Auto-
biography of William Cobbett. pp. 224-5. (1821). p. 7.

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Uma noite (. ..) alguém falou de Tom Paine. O presidente deu um forma tenho a coragem de confessar que, se algum homem que
pulo. “Não sentarei à mesa”, gritou com imensa fúria, “para ouvir tenha sofrido injustamente sob o seu governo seja tão indiferente
injúrias àquele grande homem. Tenham em mente que ele não foi à sua vida a ponto de assassinar um ou mais deles, eu afinaria
um aventureiro. Não existe nenhum Tom Paine. Senhor Thomas minha lira para cantar em seu louvor.
Paine, por favor.”82
Mas esse tiranicida mostraria “ uma falta de virtude” se pro­
A hostilidade incondicional ao princípio hereditário e à supers­ curasse companheiros para executar o gesto; devia estar resolvido
tição e sobrevivências “góticas” , a afirmação desafiante dos direitos a agir sozinho: “ Condeno uma associação para tais finalidades” .84
do cidadão privado — são algumas de suas virtudes. Mas na E a passagem nos leva a outras fraquezas suas. Em primeiro lugar,
Inglaterra, pelo menos no final dos anos 1820, a tradição Paine- a irresponsabilidade do seu individualismo. É um incitamento que
Carlile tinha adquirido uma certa estridência e um ar de irrealidade. pode ter publicado (como publicou outros) apenas enquanto simples
O brado à bas les aristos perde em força quando observamos a incitamento, sem pensar nas conseqiicncias. Como outros que codi­
estrutura real de poder na Inglaterra à medida que avançava a ficaram idéias numa ortodoxia, não é verdade que ele tenha
Revolução Industrial, com a complexa interpenetração dos privilé­ meramente transmitido as idéias do seu mestre. Ossificou-as ao
gios aristocráticos e da riqueza comercial e industrial. As sátiras convertê-las em doutrina; tomou uma parte das idéias de Paine
racionalistas sobre o “corpo dos sacerdotes”, como os apologistas (a doutrina dos direitos individuais) e negligenciou outras. E a
de aluguel dos privilégios e emissários de uma ignorância maquina­ parte que adotou, levou-a aos limites, o ne plus ultra do individua­
da para manter o povo em servidão, em certo sentido estão sim­ lismo.
plesmente deslocadas; podiam atingir o pároco rural amante da
Nenhum cidadão deve qualquer respeito à autoridade e deve
caça à raposa ou o magistrado eclesiástico, mas passavam longe dos
agir como se ela não existisse. Isso ele fez, e estava disposto a
evangelistas e pastores não-conformistas já em atividade em escolas
assumir as conseqüências. Mas sustentava que o cidadão só tinha
britânicas e nacionais. A polêmica tende a se dissolver em abstra­
dever para com sua razão; não precisava consultar terceiros, nem
ções; não capta nem engaja, ao contrário do que Cobbett quase
mesmo do seu próprio partido, e tampouco submeter-se ao julga­
sempre faz. O “ padre” de Carlile aparecia azafamado com “ Genu-
mento deles. Na verdade, a própria idéia de partido era ofensiva.
flexões, dízimos, peregrinações, exorcismos, aspersões, crucifixos,
O poder da razão era o único organizador que admitia, e o único
sacramentos, abluções, circuncisão e palavrórios” nos intervalos da
multiplicador era a imprensa:
“ luxúria ( ...) e embriaguez” .83 Embora Carlile fosse o radical que
mais conhecesse as prisões inglesas, continuava a confundi-las com Quando os princípios políticos assentados por Thomas Paine
a Bastilha. Se George IV tivesse sido estrangulado com as tripas do estiverem bem entendidos pelo grande conjunto do povo, tudo
Bispo de Llandaff, teria sido uma vitória, mas não a vitória que ele o que for necessário para pô-los em prática se apresentará por si
imaginava. Ainda teria de lidar com o último edil da cidade e o mesmo, e serão totalmente desnecessários os complôs e as reuniões
último pregador local. de delegados (...) No atual estado deste país, o povo não tem
Como é típico dos doutrinários, por vezes ele tentou manipular nenhuma outra obrigação além de se familiarizar individualmente
com o que constitui os seus direitos políticos. (...) Nesse ínterim,
a realidade para confirmar suas doutrinas. Deu aos seus persegui­
cada indivíduo deve se preparar e manter-se pronto, enquanto
dores o alimento de novas provocações: indivíduo armado, sem relação nem consulta aos seus vizinhos,
caso as circunstâncias possam lhe exigir que tome em armas, para
Assim como penso que a maioria dos atuais Ministros são tiranos preservar a liberdade e a propriedade que já possua contra qual­
e inimigos, dos interesses e bem-estar do povo deste país, da mesma quer tentativa tirânica de reduzi-las. (...) Que cada qual cumpra

82. W. E. Adams, op. cit., I, p. 169. 84. Republican, 19 de janeiro de 1821. Carlile também reeditou “Killing
83. Philanthropus, The Character of a Priest (1822), pp. 4, 6. No Murder". de Sexby.

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com sua obrigação, e abertamente, sem nenhuma referência ao e estendê-la ao chapeleiro de Shoreditch ou ao fabricante de
que faz o próximo. . . bugigangas e seus artesãos de Birmingham.
Em termos dos direitos de imprensa e expressões, os resultados
Ao poder do conhecimento popular ele chamou de “ princípio eram tão expressivos quanto o tom democrático de Cobbett. Mas,
zetético” : em termos de teoria política e econômica, a posição era ou estéril
ou enganadora. A força da ideologia lockcana residia no fato de
Tentemos então progredir em conhecimento, visto que está que os burgueses eram homens com grandes propriedades; a rei­
demonstravelmente provado que o conhecimento é poder. É o vindicação do fim do controle ou da intervenção estatal era (para
poder do conhecimento que refreia os crimes dos ministérios e eles) uma reivindicação emancipadora. Mas o chapeleiro tinha
tribunais; é o poder do conhecimento que deve dar um basta a poucas propriedades, e os artesãos menos ainda. Exigir a ausência
guerras sangrentas e aos efeitos calamitosos de exércitos devasta­ de uma regulação estatal significava simplesmente dar ainda mais
dores.85 espaço aos concorrentes maiores (ou às “ forças do mercado”). E
isso era tão óbvio que Carlile, tanto quanto Cobbett, foi obrigado
A primeira passagem foi escrita no ano negro de 1820, e Carlile, a fazer uma demonologia dos sinecuristas, indicados políticos e
em parte, estava preocupado em proteger os radicais daquele tipo devoradores de impostos. O grande mal que aflige os pequenos
de organização tão facilmente invadida por provocateurs. Mas eis mestres deve ser visto na tributação. Deve existir o mínimo dc
aí a ausência do concreto — “ liberdade”, “ conhecimento” , “guerras Governo possível, e esse mínimo deve ser barato.
sangrentas” , “ ministérios e tribunais” . Eis aí também a grave falta Isso se aproximava do anarquismo, mas apenas na sua acepção
de compreensão do seu público: “ Que cada qual cumpra com sua mais negativa e defensiva. Todos devem ser livres para pensar,
escrever, comerciar ou portar uma espingarda. Os dois primeiros
obrigação (. . . ) sem nenhuma referência ao que faz o próximo. .
constituíam a sua principal preocupação, até o ponto em que a
Não sabia ele que a essência do movimento radical operário
liberdade de imprensa não era mais um meio, mas um fim em si
consistia na “consulta aos seus vizinhos”? Sem essa consulta, seus mesma. A perspectiva das propostas sociais apresentadas na segun­
balconistas não teriam se apresentado, seus agentes no campo não da parte dos Direitos do Homem era a parte da obra do mestre que
estariam em seus postos. A chave de sua cegueira talvez esteja na menos lhe interessava. Nutria o desprezo do self-made man pelos
frase: “ para preservar a liberdade e a propriedade que já possua ineficientes ou displicentes, e a impaciência do autodidata para com
contra qualquer tentativa tirânica. . .” Pois isso não é só Paine, os que não aproveitavam as oportunidades de auto-aperfeiçoamento.
é também Locke. Foi preso por abrir os portões da Razão; se os trabalhadores não
Mais uma vez, vem à mente o termo “ individualismo pequeno- o seguiam em massa, a culpa era deles: “ A Cervejaria, eu sei, tem
burguês”. E, se fizermos o árduo esforço de descartar algumas das encantos irresistíveis para o grande conjunto dos artífices” .86 Era
conotações pejorativas da expressão, poderemos ver que, no caso um homem de mentalidade de minorias.
de Carlile, ela é útil. O modelo que está por trás de suas idéias é, Seu racionalismo, como sua teoria política, era feito de nega­
talvez, o do pequeno mestre, o chapeleiro, o fazedor de escovas, ções. Sentia prazer em expor absurdos bíblicos e em publicar
o livreiro; podemos ver em Carlile não só as limitações da pequena passagens obscenas encontradas na Bíblia. Quando apresentou um
burguesia, mas também, nesses tempos revoltosos, suas forças. abecê das virtudes positivas, no Moralista, era (como vimos) uma
Bewick, se fosse um pouco mais jovem, podia ter lido o Republican. morna apologia racionalista das virtudes de um chefe de família
O que fazia Carlile era tomar a ciosidade burguesa na defesa dos burguês. Em sua atitude frente à poesia (ou a qualquer qualidade
seus direitos políticos e de propriedade, contra o poder da Coroa, imaginativa), mostrou uma “ visão única” tão estreita como a de
Bentham. Embora pirateasse Caim e A Visão do Juízo Final,
85. Republican, 4 de outubro de 1820, 26 de abril de 1822; ver Wick-
war, op. cit., pp. 213-5. 86. Republican, 23 de agosto de 1822.

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empenhava-se em ressaltar que foi “não por qualquer admiração Taylor, um anglicano apóstata e ex-capelão do Rei, que pregava —
pelas obras, mas porque vi-as ameaçadas pelos meus inimigos” . com todos os cânones — sermões ateístas contra o “ sacerdócio
A meia dúzia de Cantos do Don Juan que chegara a ler não egoísta e depravado”. Taylor era um indivíduo sério e erudito, que
passavam “ na minha opinião de mera conversa fiada, que não também cumpriu seu tempo de prisão, e ajudou a levar “ sua
presta para nada de útil à humanidade” . Não parece ter percebido Divina Majestade, a IGNORÂNCIA de Dezoito Séculos” a um
que todos eram espirituosos: declínio ainda maior. Mas seus sermões, copiosamente ilustrados
com críticas lingüísticas do texto hebraico, eram, para o seu público,
Não sou poeta, nem admirador da poesia para além das qualidades algo raro e estranho: uma mulher sem cabeça. O mesmo com um
que pode ter em comum com a prosa — o poder de instruir a outro dos espetáculos da Rotunda, Zion Ward, um herdeiro do
humanidade com conhecimento útil.87 manto southcottiano que enfeitiçava as platéias com assombrosas
arengas sobre a Revelação e a Reforma. Apesar dessas atrações,
“ Na minha opinião.. — isso nos lembra que a cultura do Carlile registrou uma triste diminuição no número de assistentes
autodidata também pode ser filistina. A democracia do intelecto dos debates religiosos semanais (agosto de 1831). A Rotunda agora
corria o risco de virar uma espécie de Feira de São Bartolomeu. estava sendo usada, nas quartas à noite, por um novo inquilino:
Aqui, qualquer um podia montar a sua barraquinha, as opiniões a União Nacional das Classes Trabalhadoras. Carlile (outra vez
de qualquer um eram tão boas como as de qualquer outro, podiam na prisão) ficou um pouco irritado ao saber que essa União estava
se oferecer todos os espetáculos mais estranhos — a mulher sem propondo organizar a próxima rodada da luta pelas liberdades de
cabeça e o coitado do velho urso dançarino. Os artesãos vaguea­ imprensa e “não-franqueados” . “Não tenho nada a fazer com
vam por lá e pagavam seus penies; eram imediatamente incentiva­ nenhuma associação”, escreveu ele, “e não procuro (. ..) auxílio
dos a montar suas próprias barracas, a discutir e debater sem em nada desse tipo” . Como outros individualistas, seu egocentrismo
qualquer aprendizado prévio no ofício. As mentes mais esforçadas tinha monopolizado a causa, e indignava-se com a idéia de que
que ofereciam seu trabalho no mesmo mercado — Hodgskin e outros pudessem assumi-la. “ Cuidado com os Clubes Políticos” ,
Thompson, 0 ’Brien e Bray — devem ter rogado muitas pragas escreveu um mês depois. Tinha a maior aversão contra clubes,
contra os dogmáticos camelôs cheios de opiniões que berravam sociedades, e até sindicatos ou clubes beneficentes. “ Quase todos
em tomo. os horrores da primeira Revolução Francesa brotaram de clubes
No entanto, feitas todas essas críticas — e são muitas, e chegam políticos. (. . .) Declaro-os todos associações covardes, nulidades
a explicar a estridência da tradição racionalista militante no século desprezíveis, frívolas, insignificantes.” Quando a luta pelo Projeto
18 — , dito tudo isso, foi Carlile quem montou o mercado. Não é de Lei da Reforma se tornou, semana a semana, mais crítica, ele
uma figura de linguagem. Suas publicações foram um mercado — publicou informações sobre barricadas, granadas de mão e ácidos
foi ele quem publicou Paine, Volney, Palmer, Holbach e muitos cáusticos: “ QUE CADA QUAL SE ORGANIZE POR SI” . Mas
outros. Mas também montou o mercado para o debate oral. Em a União Nacional continuava a se reunir na Rotunda, e muitos dos
1830, fundou a Rotunda, onde ocorreram os debates formadores seus líderes mais destacados — Watson, Hetherington, Lovett,
do movimento operário londrino. Suas atividades eram regular­ Cleave, Hibbert — eram homens formados na tradição de Carlile
mente publicadas em seu Prompter. Um título melhor do jornal que, há muito tempo, tinham-no deixado para trás, embora ainda
seria Promoter, pois foi no que Carlile se converteu. Era o Diretor solidamente ligados ao seu primeiro princípio: “A Livre Discussão
do Espetáculo do Livre-Pensamento, e ninguém tinha mais direito é a única Constituição necessária — a única Lei necessária à
a tal posição. Procurava estrelas que atraíssem as multidões. John Constituição”.88
Gale Jones, o cirurgião jacobino veterano, ainda comandava um
séquito. Mas seu maior êxito foi a promoção do Reverendo Robert
88. Republican, 11 de julho de 1823; DeviVs Pulpit, 4 e 18 de março
de 1831; Prompter, 30 de agosto, 31 de setembro. 15 de outubro de 1831;
87. Ver Wickwar, op. cit., p. 272. Radical, 24 de setembro de 1831; H. O. 40.25.

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Vinte anos de homílias de Hannah More e do Bispo de de Membros do Parlamento. Desde o início do século, sua ênfase
Llandaff, de Wilberforce e da Assembléia Metodista tinham cons­ recaíra na construção de pontes entre artesãos e classe média;
truído uma frente de pressão anticlerical entre os radicais. O deu seu apoio ao movimento por escolas em Lancaster e ao Instituto
Gorgon podia escrever, como algo corriqueiro, sobre “o dócil e de Artes e Ofícios; sua preocupação se concentrou no artesão
submisso Moisés que conduziu os israelitas sarnentos e esfarrapados sóbrio e respeitável e seus esforços de auto-aperfeiçoamento. Mas,
por ter sido, de modo tão evidente, um dos pais fundadores da
para fora do Egito” :
tradição fabiana (e tomado acriticamente como tal por Graham
Não diremos que Moisés foi um impostor tão grande e insidioso Wallas), nem por isso devemos supor que fosse incapaz de assumir
como Maomé. Não diremos que Aarão, o alto sacerdote, foi tão as posições mais intransigentes. Em questões de liberdade de pensa­
necessário a Moisés como outrora Perigord Talleyrand foi para mento e expressão, ainda era meio jacobino; ajudara a publicar
Bonaparte. Não diremos que Joshua foi um rufião do exército a primeira edição da Idade da Razão na Inglaterra e, muito embora
tão grande como o velho Blucher ou Suvaroff: nem que as viesse e considerar Carlile um “fanático”, deu-lhe grande assistência
crueldades e carnificinas cometidas em Canaã foram dez vezes em suas lutas anteriores. Vimos sua fúria contra a repressão de
mais atrozes do que qualquer outra cometida durante os vinte e 1817 e 1819, e a enorme dedicação com que trabalharia pelos
cinco anos de guerra revolucionária.. 89 direitos sindicais, embora seu entusiasmo pela causa dos sindicalis­
tas viesse curiosamente misturado com a economia política de
No entanto, é isso o que o Gorgon conseguia dizer. É o ponto M’Culloch. Em termos intelectuais, em 1818 era realmentc prisio­
onde se cruza com a tradição de Carlile, e ambos também se apro­ neiro de Bentham: em vez de investigar, ele aprendeu as doutrinas
ximam pelas suas afinidades com o utilitarismo. Em Carlile, elas de Bentham e de Mill pai, e em seus textos não lhes acrescenta
são implícitas: até a poesia tem de ser útil e fornecer conhecimento. quase nada, além dos fatos ilustrativos que reuniu com tanta dili­
A história intelectual do Gorgon é mais interessante. Foi uma gência. Mas, em termos políticos, tinha uma força própria; deu
tentativa explícita de promover uma junção entre o benthamismo e aos utilitaristas não só uma cadeira em Westminster sob seu
a experiência operária. Não foi (como teria sido se Place tivesse controle, como ainda um ponto de contato com o mundo dos
se apropriado dela) uma simples tentativa de transmitir as idéias artífices e artesãos radicais. O próprio fato de alguém conseguir
dos utilitaristas de classe média a um público operário. John Wade, desempenhar esse papel, tanto ideológica como politicamente, é
o cx-oficial classificador de lã que o editou (em 1818-9), era um um fenômeno novo.
homem de grande dedicação e originalidade que não se fiava de­ A principal contribuição de Place ao Gorgon foi a coletânea
mais em suas idéias. Por isso, o Gorgon parece não tanto aceitar de material fatual sobre os ofícios londrinos (principalmente os
essas idéias, e sim engalfinhar-se com elas, a partir da pergunta: alfaiates).90 John Wade dava o tom e a ênfase do periódico. Wade
pode-se usar o utilitarismo no contexto da experiência operária? (ao lado de Place) foi o mais extraordinário descobridor de fatos
A influência de Place foi importante, e precisamos nos apro­ entre os radicais. Seu Livro Negro é muitíssimo superior a qualquer
ximar mais para entender o homem. Nunca o perdemos de vista outra investigação radical do gênero. É visível que se sentiu atraído
durante todo esse estudo, pois, como arquivista e historiador (da pelos benthamistas devido à solidez de suas pesquisas e o interesse
SLC, do radicalismo de Westminster, da revogação das Leis de pelos detalhes práticos da reforma — na legislação, nas prisões, no
Associação), seu viés foi gravemente enganador. Subiu de oficial ensino. Desde o início, o Gorgon mostrou-se irritado com a retórica
de confecções de calções para próspero patrão e dono de uma
oficina, foi confidente íntimo de Bentham e dos Mill, e conselheiro 90. Ver A Formação da Classe Operária Inglesa, vol. II, p. 100. Não está
claro se Wade aceitou as anotações de Place tal como lhe chegaram, ou se
89. Gorgon, 24 de abril de 1819. Shelley, ao escrever Prometheus Unbound, tomou liberdades editoriais com elas. Embora Place colaborasse com o
em 1818-9, deu ao obscuro deus revolucionário o nome de “Demogorgon": Gorgon, nunca encontrou Wade. e o jornal “não era totalmentc uma publi­
éde se perguntar se havia aí alguma associação de idéias. cação como eu teria preferido". Ver Wallas, op. cit., pp. 204-5.

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predominante do radicalismo popular. De um lado, investiu dura­ Se o utilitarismo devia se estender como ideologia da classe operá­
mente contra os argumentos especiosos da antigüidade constitucio­ ria, era necessário ter alguma teoria da estrutura social e da econo­
nal — que se encontravam com extrema freqüência no Black mia política. Como se determinaria o bem da maioria, e seria
Dwarj, onde o Major Cartwright ainda escrevia sobre os witena- possível que o que era útil aos patrões fosse opressor para os
gernots e perpetuava a teoria do jugo normando: trabalhadores? A teoria da estrutura social de Wade era impressio­
nista e voltada para questões secundárias, mas ao menos oferecia
Realmente pensamos que só poderemos avançar mais a causa da algo além da “ Velha Corrupção” de Cobbett ou da retórica do
Reforma excluindo de consideração todas as alusões a um estado “ sistema de mercadejamento dos burgos”. Ele dividiu a sociedade
anterior da sociedade. . .
entre classes parasitárias e classes produtivas. No primeiro grupo,
estavam (a) as classes superiores, incluindo os altos membros da
Estranhamente saíam das bocas de reformadores operários,
Igreja e da Justiça, e a nobreza, e (b) as “classes intermediárias”
observou Wade, argumentos derivados dos “ bons velhos tempos” .
— párocos legistas, Encarregados dos Impostos, funcionários dos
Muito da “antiga cultura que foi ajuntada” era parte e parcela de
departamentos da Receita. Estes, ele identificava com a Corrupção.
uma legislação rigorosamente repressiva contra os diaristas. Os
No segundo grupo, estavam as “classes produtivas” : a expressão
líderes dos reformadores não poderão (perguntava ele):
era ampla o suficiente para abranger profissionais liberais e patrões,
mas a ênfase recaía sobre “ aqueles que, com o seu trabalho, aumen­
fazer valer nada contra o velho sistema de mercadejar os velhos
burgos podres além de pergaminhos bolorentos, letras góticas e tam os fundos da comunidade, como os lavradores, artífices, dia-
citações latinas? Não existe nada na situação das nossas finanças, distas, &c.” Abaixo desse grupo, ele colocou os indefinidos, como
no nosso atrasado sistema monetário, no número de mendigos — os indigentes e credores do Estado:

a se criticar e denunciar? Mas, se ele recusou o apelo artificioso As ordens industriosas podem ser comparadas ao solo, de onde
aos precedentes, também rejeitou a confiança de Paine na reivin­ tudo se desenvolve e se produz; as outras classes, às árvores,
ervilhacas, ervas daninhas e plantas, extraindo seus nutrientes (...)
dicação de “direitos naturais”. Se se afirmava que todos os homens
de sua superfície...
tinham um direito natural de voto, como alguém podería contestar
o mesmo direito às mulheres? Para Wade (assim como Cobbett),
Quando a humanidade atingisse um estado de “ maior pcrfec-
era a reductio ad absurdum. A lunáticos e indigentes reclusos em tibilidade”, só as classes industriosas então deveríam existir. “ As
asilos (como às muheres), era negado o voto por razões evidentes outras classes se originaram majoritaríamente dos nossos vícios e
de utilidade social, e esta parecia a base mais sólida onde os radicais ignorância ( .. .) não tendo emprego, seu nome e seu cargo desa­
operários (ou pelo menos a metade masculina) podiam fundar suas parecerão do estado social” .92
reivindicações:
Nessa altura, Wade recrutou o auxílio de Place, e o Gorgon
começou a apresentar matérias semanais sobre o estado das classes
A UTILIDADE GERAL é o objetivo único e último da sociedade;
trabalhadoras. Não se sabe quem teve maior influência. De um
e nunca consideraremos sagradas ou valiosas quaisquer pretensões
naturais ou normativas que possam se opor a ela.91 lado, há uma grande ênfase sobre o trabalho como fonte de valor,
ênfase talvez reforçada com os Princípios de Economia, de Ricardo,
Não era difícil justificar uma pretensão ao direito de voto publicados no ano anterior.93 “ O trabalho é o produto super-
sobre uma tal base. Mas aí vem o problema. Wade estava sauda­
velmente preocupado com a reforma social e a organização sindical. 92. G o r g o n , 8 de agosto de 1818, e T h e E x tr a o r d in a r y B la c k B o o k (ed.
1831), pp. 217-8. Ver também A. Briggs, “The Languagc of Class in
early ninetcenth-century Britain", E ssa y s in L a b o u r H is to r y , p. 50.
91. G orgon, 20 de junho, 18 de julho, 22 de agosto de 1818. 93. Ricardo é citado em G o r g o n . 26 de setembro de 1818.

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recorre a expedientes não-naturais ou artificiais, produzem efeitos
abundante deste país*’, escreveu o Gorgon, “e é a principal merca­
não-naturais.
doria que exportamos” :
Dos quatro produtos manufaturados básicos, a saber, algodão, A teoria das leis ou direitos naturais, expulsa por Wade pela
linho, tecidos e ferro, talvez a matéria-prima, em média, não porta da frente, tornou a entrar pela de trás. Pois, nessa época, era
constituía nem um décimo do seu valor, sendo que os outros, nove quase impossível pensar no utilitarismo de classe média, sem pensar
décimos criados pelo trabalho do tecelão, do fiandeiro, do tingi- também em Malthus e na economia política ortodoxa: a doutrina
dor, do forjador, do cutaleiro, e cinqüenta outros. (...) Os traba­ da utilidade só podia ser interpretada à luz das “ leis” populacionais
lhos desses homens formam o principal artigo de tráfico neste e da oferta e procura. Se o utilitarismo entrasse na ideologia
país. Ê do comércio do sangue e ossos dos oficiais e diaristas da operária, torná-la-ia prisioneira da classe empregadora.
Inglaterra que nossos mercadores derivaram suas riquezas, e o E no entanto a questão não se assentaria de modo tão fácil.
país, sua glória. . . Ao longo de setembro, outubro e novembro de 1818, o Gorgon
trouxe exames detalhados da situação de alguns ofícios londrinos:
A afirmativa é mais emotiva do que exata. Lembra-nos que a alfaiates, fundidores de tipos, fazedores de óculos, linotipistas.95
noção do trabalho como fonte de todo valor encontrava-se não só Ao mesmo tempo, empreendia a defesa dos fiandeiros de algodão
nos Direitos da Natureza de Thelwall, mas ainda, com um tom de Manchester, cuja greve vinha atraindo os ataques mais ásperos
enfático, no “ Discurso aos Oficiais e Diaristas” de Cobbett, de tanto na imprensa legalista como na imprensa radical de classe
1816. Cobbett, é a impressão que se tem, tinha em mente, enquanto média de novo estilo (principalmente The Times). A comparação
escrevia, sua própria fazenda, com os diaristas rurais ocupados dos índices salariais durante os últimos vinte anos, em ofícios
com o gado, com o arado, com o conserto das construções. Wade organizados e não-organizados, levou a uma conclusão irrefutável.
(ou Place) trazia em mente o artesão e o trabalhador por tarefa, Fosse “ natural” ou “ artificial” , a associação funcionava:
o selecionador de lã ou o alfaiate, que tinha recebido alguma
espécie de matéria-prima e, com seu trabalho ou qualificação, .. .sempre pensamos que a prosperidade dos mestres e a dos
processava o material. À matéria-prima, um décimo; ao trabalho e à oficiais eram simultâneas e inseparáveis. Mas o fato não c este.
qualificação, o resto.94 e não hesitamos em dizer que a causa da deterioração nas con­
Mas o mesmo artigo no Gorgon imediatamente começava a dições dos trabalhadores de modo geral, e dos diferentes graus
instruir os sindicalistas nos lugares-comuns da economia política. de deterioração entre as diversas classes de oficiais, depende
totalmente do grau de perfeição que prevalece entre eles, o qual
A remuneração pelo trabalho era regulada pela oferta e procura.
a lei declarou como crime — a saber, a ASSOCIAÇÃO. As
“ Um aumento nos salários dos oficiais é acompanhado por decrés­ condições dos trabalhadores não dependem minimamente da
cimo proporcional nos lucros dos mestres” — o fundo dos salários. prosperidade ou dos lucros dos mestres, mas do poder dos
Quando o preço do trabalho aumenta, tem “uma tendência a forçar trabalhadores de impor — não extorquir um preço alto pelo seu
a saída do capital daquele ramo da indústria”. E (numa linguagem trabalho.. 96
muito parecida com a daquele Place que ajudou na revogação do
Estatuto dos Artífices): Isso dificilmente seria de Place, em vista dos argumentos que
se sabe ter adotado em 1814 a 1824.97 Mas se o autor foi Wade,
Tanto os mestres como os oficiais devem, em todos os casos, agir
individualmente, e não coletivamente. Quando um dos lados
95. Sobre algumas de suas descobertas, ver A F o rm a ç ã o d a C la sse O p e rá ria
In g le s a , vol. II, p. 96.
94. Ibid., 12 de setembro de 1818. Sobre as origens da teoria do valor- 96. Ibid., 21 de novembro de 1818.
trabalho, abordadas apenas brevemente e de forma não-especializada neste 97. Place informou ao Comitê Seleto para Artesãos e Artífices, F irst
capítulo, ver G. D. H. Cole. H is to r y o f S o c ia list T h o u g h t, T h e F o re ru n n e rs R e p o r t (1824), p. 46: “nenhum princípio de economia política [está] mais
(1953); A Mcngcr, T h e R ig h t to th e W h o l e P r o d u c e o f L a b o u r (1898); bem estabelecido do que o dos salários: o aumento salarial tem de provir
R. N. Meek, S tu d ie s in th e L a b o u r T h e o r y o f V a lu e (1956). dos lucros".

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não manteve por muito tempo essa posição. Posteriormente, adotou em agosto de 1824, Gast foi seu primeiro Secretário. Nessa época,
a ideologia dos utilitaristas de classe média, e sua popular História devia ter seus cinqüenta e cinco anos.98
das Classes Medias e Trabalhadoras (1835) traz essa mescla carac­ Após a revogação das Leis de Associação, os operários em
terística de política radical e economia ortodoxa, junto com uma estaleiros envolveram-se numa luta particularmente violenta com
minuciosa compilação de fatos. É, porém, um trabalho decepcionan­ seus empregadores, que lideraram em 1825 o grupo de pressão por
te para vir do autor do Livro Negro e editor do Gorgon. uma nova legislação anti-sindical.99 Com isso, Gast e sua união
A história de Gast é diferente. Com Gravener Henson e John se viram numa posição de destaque. Mas, muito antes, ele já
Doherty, foi um dos três líderes sindicais verdadeiramente extra­ ganhara o respeito dos círculos sindicais londrinos. Já vimos que
ordinários que surgiram naqueles primeiros anos. Vinham de setores estava associado ao Gorgon, embora simultaneamente se destacasse
que passavam por experiências largamente diferentes, e por isso a nas tentativas (em Manchester e Londres) de formar o “ Hércules
contribuição específica de cada um foi diferente. Henson exem­ Filantrópico”, a primeira União Geral de todos os ofícios.100 É
plifica a luta dos trabalhadores por tarefa, à beira do luddismo, evidente que, em 1818, Gast era a figura de proa em mais de um
organizando sua associação ilegal, partilhando seu radicalismo comitê de “ofícios” londrinos. Além disso, entre 1819 e 1822,
político avançado e tentando, até 1824, que se decretasse ou en­ ocorreu uma interessante transformação no radicalismo operário
trasse em vigência uma legislação protetora a seu favor. Doherty, de Londres. Naquele primeiro ano, a entrada triunfal de Hunt
dos fiandeiros de algodão, conseguiu dar maior ênfase ao poder em Londres, depois de Peterloo, tinha sido preparada por um
dos trabalhadores para melhorar suas próprias condições, ou para comitê onde se ressaltavam homens como o dr. Watson, Gale
alterar todo o sistema, pela força da associação; em 1830, esteve Jones, Evans e Thistlewood — em sua maioria, velhos jacobinos,
no centro dos grandes movimentos dos trabalhadores do norte pelo profissionais liberais, pequenos mestres e alguns artesãos. Quando
sindicalismo geral, reforma fabril, organização cooperativa e “re­ Hunt foi libertado do Cárcere de Ilchester, no final de 1822, foi
generação nacional” . Gast, oriundo de um ofício especializado recebido em Londres por John Gast, em nome d’ “ O Comitê das
menor, mas altamente organizado, estava constantemente preocupa­ Classes Üteis” .101 Daí por diante, o radicalismo operário londrino
do com problemas de organização e apoio mútuo dos ofícios londri­ adquire uma nova relevância: é mais fácil ver de quais indústrias
nos e nacionais. retira a sua força. No comitê de Gast é possível vislumbrar um
Gast era um operário de estaleiro, que tivera seu aprendizado incipiente “conselho de ofícios”. Em 1825, com a revogação das
em Bristol (onde nascera em 1772), e veio para Londres por volta Leis de Associação e a ameaça de sua retomada, os ofícios sentiram-
de 1790. Dos seus “ trinta ou quarenta” anos no Tâmisa (disse em se suficientemente fortes para fundar seu próprio semanário, o
1825), vinte e oito se passaram num estaleiro de Deptford, onde Trades Newspaper.102
era o “ operário-chefe”, com dezesseis ou mais homens ao seu Trades Newspaper, com seu lema “ Cada um ajudou seu pró­
cargo: “ Lá participei da construção de nada menos que vinte ou ximo”, é importante não só por lançar uma torrente de luz sobre
trinta navios de guerra ( . . . ) sem contar os navios mercantes” . Em
1793, os operários de estaleiros tinham se organizado na Sociedade 98. T r a d e s N e w s p a p e r , 31 de julho de 1825.
99. Ver os Hammonds, T h e T o w n L a b o u r e r , pp. 138-40.
Beneficente Santa Helena — não existiam “ nem dez homens no rio 100. Ibid., p. 311; Webbs, H is to r y o f T r a d e U n io n is m , pp. 85-6; Wallas,
que não fossem membros”. A sociedade faliu, mas em 1812 houve op. cit., p. 189; G. D. H. Cole, A tt e m p t s a t G e n e r a l U n io n , pp. 81-2.
uma greve dos operários em estaleiros, e formou-se a Sociedade 101. Hunt, A d d r e s s to ih e R a d ic a l R e fo r m e r s , 9 de dezembro de 1822.
Beneficente Corações de Carvalho, onde Gast desempenhou um 102. O jornal foi concebido por “aqueles Representantes de Ofícios da
papel fundamental. A sociedade teve tanto êxito que, além de Cidade c do Campo que se reuniram em Londres para observar o progresso
do último Inquérito referente às Leis de Associação”. Os próprios ofícios
fornecer os serviços de assistência usuais, para doenças, acidentes contribuíram com 1.000 libras para fundar o jornal e, além dos operários
e morte, também construiu com recursos próprios treze casas dc em estaleiros, parecem ter se envolvido diretamente os serradores. tanoeiros,
caridade para operários de estaleiros aposentados. Quando a União carpinteiros, sapateiros de sapatos femininos, calafetadores e tecelãos de
de Previdência dos Operários de Estaleiros do Tâmisa se formou seda. O jornal era dirigido por um comitê dos ofícios.

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a força do sindicalismo que, até então, era preciso seguir pelas A isso, Cobbett há muito tempo respondera com uma negativa
sombras dos Tribunais e documentos do Ministério do Interior.103 apaixonada e explosiva (“ PADRE Malthus! Filósofos escoceses!”).
Indica também um ponto de ruptura total com o utilitarismo de O “ Anão Negro” apresentou argumentos mais trabalhados. “ A
classe média, de um lado, e, de outro, a incipiente “ teoria sindical”. quantidade de emprego é ilimitada” , disse ele:
O conflito era absolutamente explícito. É como se as parcelas orto­
doxas do Gorgon tivessem continuado com Place e Wade, enquanto Vi homens e mulheres sem meias nesse grande país manufatureiro,
que fornece meias a todos os quadrantes do mundo. (...) Se
a reivindicação não-ortodoxa do valor da associação se convertia
cada um, só nestas ilhas, se vestisse tão bem como quisesse, o
na base para a nova empresa de Gast. Algumas polêmicas dirigiam-
consumo interno seria dez vezes maior do que é.
se especificamente a Place, de maneira injusta e infeliz; isso pode
ajudar a explicar por que Gast e os ofícios londrinos figuram tão
“Não é diminuindo seus números”, concluía (respondendo a
pouco no relato pessoal de Place sobre aqueles anos. A contro­
objeções de Place), “mas apurando seus intelectos que a condição
vérsia, de fato, se iniciara no ano anterior, nas páginas do Black
da espécie humana deve ser melhorada” .106
Dwarf, agora em seu último ano de vida, de Wooler.104 Foi pro­
O argumento foi retomado no primeiro número do Trades
vocada pelo casamento que se celebrara, nas páginas de James Mill, Newspaper, cujo primeiro editor foi o radical avançado J. C.
entre o malthusianismo e a economia política. Pobremente formu­ Robertson, pioneiro do Instituto de Artes e Ofícios de Londres e
lado, propunha que o problema do desemprego105 era natural, ao colega de Thomas Hodgskin.107 O editorial discordava de M’Culloch
invés de artificial, derivado do “ excedente” da população; como por adotar a teoria malthusiana e aconselhar aos trabalhadores:
tal, era insolúvel; sendo insolúvel, era o determinante subjacente “ Limitem seus números de modo a não ter excessos para a procura
dos níveis salariais, visto que — por mais que grupos qualificados de trabalhadores” . “ Isso”, criticava o editorial, “é conspirar contra
conseguissem alcançar uma posição privilegiada com a restrição a natureza, contra a moral e contra a felicidade”. Os meios dispo­
de novos ingressos no ofício — a massa dos trabalhadores desco­ níveis para tal limitação eram a abstinência do casamento, a
briría que as leis naturais de oferta e procura barateariam o valor abstinência no casamento ou, ainda, o uso de anticoncepcionais.
de um serviço em oferta excessiva. Agora, Place adotara firmemente a posição malthusiana, e encarre­
gara-se de propagá-la entre a classe operária; mas, não confiando
na capacidade dela em praticar a abstinência sexual, colaborou
105. Ver A F o rm a ç ã o d a C la sse O p e rá r ia I n g le s a , vol. II, p. 76.
ainda na divulgação secreta de panfletos com informações sobre
104. Ver a discussão sobre população, que começou cm 12 de novem­
bro de 1823 e prosseguiu por vários números. O Sr. P.M. Jackson me os meios de controle de natalidade.108 Place agora tentava defender
informa que encontrou evidências (na coleção de Place) que permitem M ’Culloch nas colunas do Trades Newspaper.
identificar o correspondente malthusiano “A. M." como John Stuart Mill. Se Place tomara parte numa ação corajosa pela mais teimosa
105. Existe uma lenda de que o "desemprego" estava fora da estrutura das razões utilitaristas, o Trades Newspaper atacou-o asperamente
semântica dos anos 1820. Talvez derive de uma afirmação imprudente em pelos dois motivos. De um lado, insinuava-se que Place estava
G. M. Young, V ic to r ia n E n g la n d (Oxford, 1936), p. 27, de que "o desem­
prego estava além do alcance de qualquer idéia que os reformadores do associado a uma posição “ inominável” e imoral, repugnante demais
Início da Era Vitoriana dominavam, em larga medida porque não tinham
um termo para ele": ao que sc acrescenta a autoridade de uma nota de 106. B la c k D w a r f, 3 e 31 de dezembro de 1823.
rodapé: “Não a notei antes dos anos 60". Na realidade (o que fre- 107. Dr. Jorwerth Prothero chamou minha atenção para evidências que
qüentemente ocorre com essas “datações’' semânticas), a afirmação é sugerem que foi J.C. Robertson quem escreveu os primeiros artigos edito­
errônea. (Os cucos geralmente chegam a essas ilhas algumas semanas antes riais do jornal (o qual editou até março de 1826), e não Gast (a quem eu
que sejam anunciados em T h e T im e s .) “Desempregados", "os desemprega­ os atribuira na primeira edição deste livro). Mas Gast, como presidente do
dos" e (com menor frequência) "desemprego" podem-se encontrar todos comitê de ofícios majoritários, sem dúvida teve grande influência sobre a
em textos sindicais e radicais ou owenistas dos anos 1820 e 1830: as política e orientação do jornal.
inibições dos "reformadores do Início da Era Vitoriana" precisam ser 108. Ver. F. Place, Illu s tr a tio n s a n d P r o o fs o f th e P r in c ip ie o f P o p u la -
explicadas de alguma outra forma. tio n (1822). Ver também atrás, p. 339, n. 58.

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para ser descrita. (Lembremonos que essa reação à contracepção A teoria socialista primitiva de Hodgskin adaptava-se parti­
era partilhada por todos os lados, e não há razões para supor que cularmente bem à experiência dos ofícios londrinos — e dessa
Gast não estivesse realmente escandalizado.) Por outro lado, abriu experiência derivara grande parte de sua teoria. Frente a ameaças
uma crítica de significado muito mais relevante: renovadas de uma legislação anti-sindical, ele defendeu o sindica­
lismo com argumentos sólidos e do senso comum: “ A associação,
A se crer nos Srs. Malthus, IVPCulloch, Place & Cia., as classes por ela mesma, não é crime; pelo contrário, é o princípio pelo
trabalhadoras só têm de levar em conta como restringir seus qual se mantêm as sociedades”. Seu fogo se dirigia particularmente
números da forma mais eficiente possível, a fim de chegar a uma contra o capitalista, em seu papel de empresário ou intermediário:
solução completa de todos os seus problemas (...) Malthus &
Cia. (...) reduziríam todo o assunto a uma questão entre Artífices Entre quem produz o alimento e quem produz a roupa, entre
e suas namoradas e mulheres [em vez de] uma questão entre quem faz os instrumentos e quem os usa. aí se move o capitalista,
o empregado e seus empregadores — entre o Artífice e o plantador que nem os faz nem os usa e se apropria do produto de ambos.
de trigo e o monopolista — entre o pagador de impostos e o (. ..) Gradual e sucessivamente, ele se insinuou entre ambos,
infligidor de impostos.109 expandindo em volume à medida que se nutriu com seus trabalhos
cada vez mais produtivos, e separando-os tanto um do outro que
A nota é totalmente clara. Gast e Robertson tinham rejeitado nenhum deles consegue ver de onde é extraído aquele suprimento
o modelo de uma economia política “ natural” e auto-reguladora que cada um recebe através do capitalista. Enquanto espolia a
que, deixada a si mesma sem restrições, operaria em benefício ambos, exclui tão completamente um da visão do outro que ambos
tanto dos empregadores como dos empregados. Assume-se um crêem que devem a ele sua subsistência.
antagonismo essencial entre interesses, e sua solução ou regulação
deve ser uma questão de força. O que pode ser útil ao capital Em seu papel técnico ou administrativo ativo, o capitalista era
bem pode ser opressivo para o trabalho. E para essa teoria operária tido como produtivo; nesse papel também era um trabalhador, e
em formação vieram importantes reforços intelectuais. Em 1825, devia ser remunerado como tal. Mas, enquanto intermediário ou
foi publicado a Defesa do Trabalho Contra as Pretensões do Capital, especulador, era meramente parasitário:
de Thomas Hodgskin (sob o pseudônimo de ‘‘Um Diarista”), um
tenente da marinha aposentado a meio soldo. Gast, Robertson e A associação mais difundida e mais bem-sucedida possível para
Hodgskin já tinham se associado no Instituto de Artes e Ofícios, obter um aumento de salários não teria nenhum efeito prejudicial
onde este último fazia palestras sobre economia política. No além de reduzir as rendas dos que vivem de lucros e juros, e não
segundo semestre de 1825, a maior parte da Defesa do Trabalho têm nenhuma reivindicação justa, a não ser o costume, a qualquer
foi publicada em excertos no Trades Newspaper, e uma série de parcela do produto nacional.
editoriais preparou-lhe boas-vindas calorosas, mas não acríticas,
selecionando da obra de Hodgskin, com especial aprovação, os Hodgskin não oferecia nenhum sistema alternativo (a menos
elementos da teoria do valor-trabalho: “ a única coisa que se pode que fosse a rejeição de todos os sistemas no sentido godwiniano),
dizer acumulada é a qualificação do trabalhador". e num certo sentido esquivou-se à questão dos direitos de proprie­
dade. O que ele defendia era uma pressão organizada crescente,
Todos os capitalistas da Europa, com todo o seu capital circulante, com todas as forças e recursos intelectuais e morais da classe
não podem por si sós fornecer os alimentos e roupas de nem operária, para confiscar a riqueza bruta do comerciante capitalista.
uma semana sequer.. .110
Essa guerra entre capital e trabalho, entre “ industriosidade hones­
ta” e “ dissipação ociosa” , não terminaria enquanto os trabalhadores
109. Trades N e w s p a p e r , 17, 24, 31 dc julho, 11 de setembro de 1825. não recebessem o produto integral do seu trabalho, e “ até que o
Place parece ter contribuído para um rival malsucedido do T r a d e s N e w s ­
p a p e r, o A r t iz a r i s L o n d o n and P r o v in c ia l C h r o n ic le (1825).
homem seja considerado com mais honra do que o torrão em que
110. T r a d e s N e w s p a p e r , 21 e 28 de agosto de 1825 e ss. pisa ou a máquina que opera”.

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IV. O Owenismo classes e sua proclamação da vinda do Milênio; o interesse crescente
pelas suas idéias e promessas entre alguns setores de trabalhadores;
A publicação da Defesa do Trabalho c sua aceitação no a ascensão e queda das primeiras comunidades experimentais, em
Trades Newspaper representam o primeiro ponto claro de conexão especial Orbiston: a partida de Owen para os Estados Unidos,
entre os “economistas do trabalho” ou owenistas e uma parcela do para outros experimentos de formação de comunidades (1824-29);
movimento operário.1,0 Mas, evidentemente, Owen o precedeu; e a crescente adesão ao owenismo durante sua ausência, o enrique­
mesmo que Owen, Gray, Pare e Thompson não tivessem escrito, cimento de sua teoria por Thompson, Gray e outros, e a adoção
a obra dc Hodgskin necessariamente levaria à seguinte questão: de uma espécie de owenismo por alguns sindicalistas; a iniciativa
se o capital era largamente parasitário do trabalho, não poderia do dr. King em Brighton, com seu Cooperator (1828-30) e os expe­
o trabalho simplesmente dispensá-lo ou substituí-lo por um novo rimentos amplamente disseminados dc comércio cooperativo; a
sistema? Além disso, por uma curiosa torção, foi possível ao utili- iniciativa de alguns artesãos londrinos, entre os quais se destacava
tarismo chegar à mesma questão: se o único critério pelo qual Lovett, em promover uma propaganda nacional segundo princípios
se poderia julgar um sistema social era a utilidade, e se o maior cooperativos (a Associação Britânica para a Promoção do Conhe­
número dos membros dessa sociedade eram labutadores, evidente­ cimento Cooperativo) em 1829-30; a maré ascendente depois da
mente nenhuma veneração pelo costume ou por noções góticas volta de Owen, quando se viu, quase que a contragosto, na lide­
poderia impedir alguém de elaborar o plano mais útil possível, rança de um movimento que levou ao Grande Sindicato Nacional
para que as massas pudessem trocar e usufruir os seus produtos. Consolidado.
Assim, o socialismo owenista sempre contou com dois elementos Ê uma estória extraordinária, e no entanto, sob certos aspectos,
nunca totalmente fundidos: a filantropia do Iluminismo, traçando algumas partes suas tinham de ser assim. Podemos começar com
“ sistemas span-new” segundo princípios de utilidade e benevo­ o ponto de partida, a tradição paternalista. E devemos ver que os
lência; e a experiência daqueles setores de trabalhadores que esco­ grandes experimentos em New Lanark foram inaugurados para
lheram algumas noções entre o estoque owenista e adaptaram-nas enfrentar as mesmas dificuldades de disciplina do trabalho e adap­
ou desenvolveram-nas de acordo com seu contexto específico. tação dos desregrados diaristas rurais escoceses aos novos padrões
industriais de trabalho com que já nos deparamos em nossa discus­
A estória de Robert Owen de New Lanark é muito conhecida,
são sobre o metodismo e o dr. Ure. “ Naquela época, as classes
e até lendária. O dono de fábrica paternalista e self-made tnan
inferiores da Escócia ( . . . ) tinham fortes preconceitos contra estran­
exemplar que apresentava solicitações a realezas, cortesãos e go­
vernos da Europa para suas propostas filantrópicas; a exasperação geiros . .. ” ; “as pessoas empregadas nesses trabalhos ficaram por­
crescente do tom de Owen à medida que se deparava com aplausos tanto com um forte preconceito contra o novo diretor. . . ” :
corteses e dcsestímulos práticos; sua propaganda para todas as1
.. .já tinham quase todos os vícios e pouquíssimas das virtudes
de uma comunidade social. Sua ocupação era o roubo e a recep-
111. Nas páginas seguintes, não posso pretender reexaminar o pensamen­ tação de bens roubados, seu hábito era a ociosidade e a embria­
to de Owen ou dos “economistas do trabalho". Minha intenção é guez, sua figura a falsidade e a ilusão, sua prática cotidiana as
ilustrar, em um ou dois pontos, a forma como a teoria se chocou com a dissensÕes civis e religiosas; só sc uniam numa ardente oposição
experiência operária e como as novas idéias foram selecionadas ou trans­
formadas ao longo disso: isto é, minha preocupação se volta mais para a
sistemática aos seus patrões.
sociologia dessas idéias do que para sua identidade. Sobre Hodgskin, ver
a edição de G. D. H. Cole de L a b o u r D e fe n d e d (1922) e E. Halévy, T h o m a s Essas passagens, de Uma Nova Visão de Sociedade (1813),
H o d g s k in (1956, trad. A. J. Taylor). Para uma lúcida e rápida discussão de correspondem muito à carreira usual da experiência do novo dono
Owen e os economistas do trabalho, ver H. L. Beales, T h e E a r ly E n g lish de uma fábrica ou do novo mestre de fundição. O problema era
S o c ia lis ts (1933), cap. 4 e 5; para uma apresentação mais completa, G. D. H.
Cole, H is to r y o j S o c ia lis t T h o u g h t, I, T h e F o re ru n n e rs, e M. Beer. A H isto ry doutrinar o jovem em “hábitos de atenção, rapidez e ordem”. É
o f tír itis h S o c ia lis m , Parte III. um grande mérito que Owen não tenha escolhido nem os terrores

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psíquicos do metodismo, nem a disciplina do supervisor e das vilas de unidade e cooperação mútua.” O Filantropo, Sr. Owen,
multas, para atingir seus fins. Mas temos que ver que o socialismo andava à roda à frente dos seus olhos durante os desesperados
posterior de Owen sempre guardou as marcas de sua origem. anos de depressão pós-guerra. Muitos fidalgos estavam estarrecidos
Desempenhava o papel de bondoso Papai do Socialismo: Sr. Owen, com a extensão do desemprego e da miséria, enquanto também
o Filantropo, que tinha entrée na Corte e na Sala do Gabinete nos temiam a índole insurrecional dos desempregados. Ademais, as
anos pós-guerra (até dar seu faux pas ao descartar, com afável taxas dos pobres tinham chegado a mais de 6 milhões de libras,
tolerância, todas e quaisquer religiões reveladas como formas no­ numa época em que a agricultura perdera sua prosperidade do
civas de irracionalismo), surge, sem nenhum senso da crise, como tempo da guerra. Os pobres eram feios de se ver, constituíam
“o benevolente Sr. Owen”, que recebia e lançava acenos às classes uma fonte de sentimento de culpa, uma carga pesada para o país
trabalhadoras. Num certo sentido, foi o ne plus ultra do utilitarismo, — e um perigo. As colunas das revistas viviam cheias de discussões
planejando a sociedade como um gigantesco panopticon industrial; sobre a emenda das Leis dos Pobres, e todas tinham como objetivo
em outro sentido, extremamente admirável e generoso, foi um uma maior economia. O Sr. Owen (cujas extensas propriedades
Hanway industrial, que pensava muito nas crianças, gostava de em New Lanark tinham se tornado um complemento elegante das
vê-las felizes, e ficava realmente chocado com a empedernida viagens refinadas) então se apresentou com um Plano, que real­
exploração delas. Mas a idéia de avanço operário em direção a mente não podia ser mais bonito. Propunha colocar os pobres em
seus próprios objetivos, por sua própria atividade pessoal, era estra­ “ Aldeias de Cooperação”, onde — depois de um subsídio de capital
nha a Owen, muito embora tenha sido arrastado, entre 1829 e a partir dos impostos — eles poderíam pagar por conta própria,
1834, exatamente para esse tipo de movimento. Isso é visível no e se tornariam “úteis”, “industriosos”, “racionais” , autodisciplina-
tom de todos os seus textos. Ele queria (disse em 1817) “remoralizar dos e também moderados. O Arcebispo da Cantuária gostou da
as Classes Inferiores”. Ao lado de ‘‘benevolente”, as palavras que idéia, e Lorde Sidmouth examinou-a detalhadamente, junto com o
mais encontravam nos primeiros textos owenistas eram “providen­ Sr. Owen. “ Meu Lorde Sidmouth me perdoará”, escreveu Owen
ciadas para eles” . A educação devia “ imprimir no jovem idéias e numa de suas cartas públicas sobre a assistência aos pobres,
hábitos que contribuirão para a felicidade futura do indivíduo e do publicadas na imprensa londrina durante o verão de 1817, “ pois
Estado; e isso só pode ser alcançado instruindo-os para se tornarem sabe que não tenciono nenhuma ofensa pessoal. Suas disposições
seres racionais” ; são sabidamente brandas e am igáveis...” Isso foi publicado
quinze dias depois do levante de Pentridge e do desmascaramento
Quarto: Quais são as melhores providências para que esses de Oliver.
homens e suas famílias possam ser, bem e economicamente,
O Plano recendia a Malthus e aqueles rigorosos experimentos
alojados, alimentados, vestidos, treinados, educados, empregados
e governados?112 de magistrados (como o estranhamente chamado “ Reformadores de
Nottingham”) que já vinham executando o plano chadwickiano
Esse tom representava uma barreira quase intransponível entre de assistência com asilos de pobres que funcionavam como refor-
Owen e o movimento radical popular e, ainda, o sindical. “ Os matórios de trabalho forçado. Mesmo que Owen estivesse de pro­
operários e as classes trabalhadoras, nessa época, eram estranhos funda boa-fé (como alguns radicais se dispunham a conceder), e
a mim e a todas as minhas idéias e intenções”, observou Owen (em realmente consternado com a miséria do povo, seu plano, se fosse
sua Autobiografia) a propósito dos anos imediatamente posteriores assumido pelo Governo, certamente se orientaria nesse rumo.
à guerra. “ Seus líderes democráticos e muito equivocados ensina­ Cobbett fora acusado, com excessiva facilidade, de “ preconceito”
vam-lhes que eu era inimigo deles e queria escravizá-los nessas por denunciar as “Aldeias de Cooperação” de Owen como “ para­
lelogramas de indigentes”. Não só elas lhe sugeriam o “ confor­
tante sistema” de patronato e caridade que tanto abominava, como
112. R. Owen, A New View of Society and other Writings (ed. Every- também seu instinto provavelmente estava certo — as idéias de
man), pp. 74, 260. Owen, se tivessem sido assumidas pelas autoridades em 1817,
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provavelmente teriam gerado uma ampliação do “emprego produ­ por uma retórica onde todos os males eram atribuídos à tributação
tivo” dentro do sistema de asilo. Mas Cobbett estava apenas expres­ e às sinecuras, que se remediariam com a Reforma.
sando a reação radical generalizada. Suas instituições propostas A reação de Hazlitt à Nova Visão foi a mais elaborada, e
(escreveu Sherwin) seriam “ prisões”, “ uma comunidade de vassa­ mostra sua luta interna entre o jacobino ferido em sua suscetibili-*
los” : dade e o peso de Burke: “ Por que o Sr. Owen põe a palavra ‘Nova*
em letras góticas no cabeçalho do anúncio do seu plano de refor­
O objetivo do Sr. Owen parece-me ser o de recobrir a face do
país com asilos dc trabalho, de construir uma comunidade de m a?” “ A doutrina da Benevolência Universal, a crença na Onipo­
escravos, e conseqüentemente converter a parcela trabalhadora tência da Verdade e na Perfectibilidade da Natureza Humana não
do Povo em dependente absoluta dos homens de propriedade.113 são novas, mas ‘Velhas, velhas’, Mestre Robert Owen” :

Quando Owen tentou atrair a atenção dos radicais para suas Não sabe o Sr. Owen que o mesmo projeto, os mesmos princípios,
propostas, numa reunião numerosa na Taverna “Cidade de Lon­ a mesma filosofia de motivos e ações (...) da virtude e felicidade,
eram correntes no ano de 1793, foram divulgados no exterior,
dres”, os líderes radicais, um após o outro — Cartwright, Wooler,
foram proclamados aos quatro ventos, foram sussurrados em
Alderman Waithman — , opuseram-se a ele em termos semelhantes.
segredo, foram publicados em q u a r t o e d u o d é c i m o , em tratados
Quando Gale Jones propôs que o plano merecia ao menos um políticos, em peças, poemas, canções e romances — abriram seu
exame, foi silenciado aos gritos e acusado de apostasia .114 caminho até o tribunal, penetraram na igreja, subiram à tribuna,
O debate só serviu para mostrar a fraqueza de ambas as partes. diminuíram as classes das universidades (...) que essas “Novas
De um lado, Owen simplesmente tinha um vazio na mente, lá Visões de Sociedade” entraram nos corações dos poetas e nos
onde a maioria dos homens tem reações políticas. Parte da Nova cérebros dos metafísicos, apoderaram-se da imaginação dos meni­
nos e mulheres, e viraram as cabeças de quase todo o reino: mas
Visão era dedicada ao Príncipe Regente, parte a Wilberforce.
que houve uma cabeça de que nunca se apoderaram, e que ela
Quinze anos depois, seu Crisis navegava suavemente entre as águas tornou a virar as cabeças de todo o reino. . .?
de 1831 e 1832, transportando carregamentos de relatórios sobre
congressos cooperativos e armazéns comerciais em Slaithwaite, sem
Assim repelida, (zombava Hazlitt), parece que a filosofia foi
perceber que o país estava de fato num estado de crise revolucio­ afastada do país:
nária. Esse vazio tinha seus aspectos apreciáveis: quando ocorreu
ao Sr. Owen que a realeza era uma instituição irracional, e que e obrigada a se refugiar e se manter escondida por vinte anos
os Bispos eram um tributo caro e desnecessário à ignorância gótica, nas fábricas de New Lanark, com a conivência do rico proprietá­
não teve hesitação em declará-lo aos atuais incumbidos, certo de rio. entre a estopa e os fusos; de onde ele nos dá a entender que
que eles veriam que não pretendia “ nenhuma ofensa pessoal” ela sobe de novo as escadarias de Whitehall, como uma maré
e que se liquidariam devidamente em obediência à persuasão viva no auge da lua flutuando no sangue que correu pela restau­
racional. Mas dificilmente seria apreciável para os “ velhos radi­ ração dos Bourbon, sob o patrocínio da nobreza, da fidalguia.
cais” de 1817. A fraqueza deles, por outro lado, consistia numa do Sr. Wilberforce e do Príncipe Regente, e de todos os que são
falta de qualquer teoria social construtiva, cujo lugar era ocupado governados, como essas grandes personalidades, apenas pelo prin­
cípio da verdade, e apenas pelo desejo do bem da humanidade!
Esse blefe não nos pegará: somos macacos velhos, e não pomos
113. P o litic a l R e g is te r , de Sherwin, 26 de abril, 9 de agosto, 20 de setem­ a mão em cumbuca...
bro de 1817.
114. Ver I n d e p e n d e n t W h i g , 24 de agosto de 1817. Os únicos jornais
radicais que parecem ter mostrado alguma simpatia por Owen em 1817-9 A percepção de Hazlitt é excepcionalmente açuda. Pois Owen,
foram P e o p le , de curta duração, e o I n d e p e n d e n t W h ig , que enviou um na verdade, não foi o primeiro dos teóricos socialistas modernos
correspondente até New Lanark. (Hodgskin estava muito mais próximo disso), mas um dos últimos

384 385
racionalistas do século 18 — era um Godwin, agora saindo de New
Lanark para reivindicar a Presidência do Quadro de Diretores da
T A qualidade de Owen que seus patronos descobriram com
consternação (e que Hazlitt chegara a perceber) era um absoluto
Revolução Industrial. Em seu novo disfarce, de homem prático e entusiasmo propagandista. Ele acreditava, como Carlile, na multi­
muitíssimo bem-sucedido, tinha entrée onde os velhos filósofos eram plicação da “razão” através de sua difusão. Gastou uma pequena
desprezados e ultrajados. “Um homem que faz todo o caminho desde fortuna com o envio dos seus Discursos a homens de influência por
as margens do Clyde adquire uma força de projeção que o torna todo o país, e uma grande fortuna com as comunidades experimen­
irresistível” : tais. Em 1819, seus patronos estavam fartos, e ele, por sua vez,
estava se dirigindo mais especificamente ao operariado. Por muito
Ele tem acesso, compreendemos, aos homens do gabinete, aos tempo, sustentara a idéia de que os trabalhadores eram fruto das
membros do parlamento, aos lordes e fidalgos. Ele bate (.. .) em circunstâncias; deplorava sua “ brutal ferocidade de caráter” e
todas as suas instituições, na igreja ou no Estado (...) e entra sente-se que (como Shaw) a principal razão do seu socialismo era
calmamente em suas casas com as credenciais no bolso, e resigna- o desejo de que fossem eliminadas. Mas aqui vem uma torção no
os às inúmeras Casas da Indústria que está para construir no seu pensamento, que teve grandes conseqüências. Se os trabalhado­
lugar de suas atuais sinecuras. . . res eram fruto das circunstâncias, o mesmo — a idéia pode ter
lhe ocorrido enquanto andava no parque, depois de uma entrevista
“ Não queremos”, continuava Hazlitt, “ que altere seu tom” . insatisfatória — se dava com Lorde Sidmouth e o Arcebispo. A
Mas profetizava, com extraordinária precisão, algumas das conse- idéia foi comunicada num Discurso às Classes Trabalhadoras
(1819):
qüências, caso não o alterasse:

Seus projetos são tão tolerados, por serem remotos, visionários, Desde a infância, vocês (...) foram formados para desprezar e
impraticáveis. Nem o grande mundo, nem o mundo em geral odiar os que diferem de vocês nas maneiras, na linguagem e nos
se preocupam minimamente com New Lanark, nem se incomodam sentimentos. (...) Esses sentimentos de ódio devem ser retirados
sc os trabalhadores de lá vão dormir bêbados ou sóbrios, ou se antes que qualquer ser que tenha no coração o interesse real de
vocês possa depor o poder nas suas mãos. (...) Vocês então
as moças são recebidas com filho antes ou depois do casamento.
perceberão claramente que não existe nenhuma base racional
Lanark é distante. Lanark é insignificante. Nossos estadistas não
para o ódio. (...) Uma multiplicidade infindável de circunstân­
temem o sistema perfeito de reforma de que ele fala, e nesse cias, sobre as quais vocês não têm o menor controle, colocou-os
meio tempo sua cantilena contra a reforma no parlamento (...) onde vocês estão. (...) Da mesma forma, outros dos seus com­
serve como um diversionismo prático a favor deles. Mas que o panheiros foram formados pelas circunstâncias, igualmente incon-
bem que o Sr. Owen disse ter praticado numa aldeia pobre corra troláveis para eles, para se tornarem seus inimigos e opressores
o risco de se generalizar (...) e seus sonhos de alto patronato se cruéis. (...) Por esplêndido que possa ser seu aspecto exterior,
esfumarão. (...) Que sua “Nova Visão de Sociedade” faça tantos esse estado de coisas muitas vezes lhes causa um sofrimento ainda
discípulos como a “ Investigação sobre Justiça Política” e veremos mais pungente do que o de vocês. (. ..) Enquanto vocês mostram
como a maré vai virar. (. ..) Será estigmatizado como jacobino, com sua conduta qualquer desejo violento de despojá-los desse
nivelador, incendiário, em todas as partes dos três reinos; será poder, desses emolumentos e privilégios — não é evidente que
evitado pelos amigos e se tornará uma senha para seus inimigos eles têm de continuar a encarar vocês com sentimentos de inveja
(...) e descobrirá que não é uma tarefa tão fácil ou segura e hostilidade...?
quanto imaginava (.. .) fazer com que a humanidade entenda
seus próprios interesses, ou que os que a governam só cuidem
“ Os ricos e os pobres, os governadores e os governados têm
dos interesses dela.115
realmente apenas um interesse” — formar uma nova sociedade
cooperativa. Mas os ricos, tanto quanto os pobres, sendo fruto
115. Examiner, 4 de agosto de 1816; ver Works, VII, p. 97 ss. das circunstâncias, eram incapazes de enxergar seus verdadeiros

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interesses. (A “súbita admissão da luz forte” dos textos de Owen mas por outros contemporâneos seus. Um colaborador do Register
corria o risco de destruir seus “poderes infantis de visão”). Os de Sherwin comparou-o a Joanna, que:
trabalhadores (ou, dentre eles, os que tinham visto a luz da razão)
deviam se afastar do conflito de classe. “ Essa luta irracional e iludiu milhares até agora, dizendo-lhes que estava para vir ao
inútil deve cessar” , e a avant garde (estabelecendo comunidades mundo um Shiloh; um Príncipe da Paz, sob cujo estandarte todas
modelares e fazendo propaganda) podia abrir um caminho por onde as nações do mundo se uniriam; dizendo-lhes qüc (...) as espadas
os trabalhadores simplesmente passariam ao lado dos direitos de se converteríam em relhas de arado.117
propriedade e do poder dos ricos .116
Seria também examinado por Engels e Marx, e a promulgação
Por mais admirável que Owen fosse como pessoa, era um
mais recente dessa descoberta nos círculos acadêmicos não é origi­
pensador absurdo e, ainda que tivesse a coragem dos excêntricos,
nal .118 Owen, em 1820, prometia “deixar correr a prosperidade pelo
era um líder político nocivo. Entre os teóricos do owenismo, Thomp­
país'\ e em suas comunidades oferecia nada menos que o “ Paraíso” .
son é mais saudável e desafiador, ao passo que Gray, Pare, dr. King
Em 1820, vinha se formando uma sociedade owenista na metró­
e outros tinham um senso mais sólido de realidade. Por seus textos
pole, e o panfleto anunciando o seu periódico, o Economist,
não passa o mínimo senso dos processos dialéticos de transformação
social, de “ prática revolucionadora” : declarava:

A abundância cobrirá a terra! — O conhecimento aumentará! —


A doutrina materialista de que os homens são produtos das cir­ A virtude florescerá! — A felicidade será reconhecida, assegurada
cunstâncias e da educação, e que portanto homens transformados e desfrutada.
são produtos de outras circunstâncias e de uma educação trans­
formada, esquece que as circunstâncias são transformadas precisa­ Owen freqüentemente empregava analogias extraídas do grande
mente pelos homens e que o próprio educador também tem de ser
avanço nas técnicas produtivas durante a Revolução Industrial:
educado. Portanto, essa doutrina leva necessariamente à divisão
de sociedade em duas partes, uma das quais se sobrepõe à socie­ alguns indivíduos “esquecem que é uma invenção moderna para
dade (em Robert Owen, por exemplo). permitir que um homem, com o auxílio de um pouco de vapor,
execute o trabalho de 1.000 homens”. O conhecimento e o aper­
feiçoamento moral não poderiam avançar à mesma velocidade?
Assim dizia a terceira tese de Marx sobre Ludwig Feuerbach. Seus seguidores adotaram a mesma imagística:
Se o caráter social era (como sustentava Owen) o produto invo­
luntário de “ uma multiplicidade infindável de circunstâncias”, como . . . a construção de uma grande máquina social e moral, calculada
ele se transformaria? Uma resposta se encontrava na educação, para produzir riqueza, conhecimento e felicidade, com precisão
onde se pode ver uma das influências mais criativas da tradição e rapidez sem precedentes...
owenista. Mas Owen sabia que, até que as “circunstâncias” se
transformassem, não teria acesso à formação de uma geração. A Um correspondente do Economist observou que “ o tom de
resposta, portanto, devia se encontrar na mudança súbita do cora­ alegria e exultação que atravessa os seus textos é realmente muito
ção, no salto milenarista. O próprio rigor do seu materialismo contagioso”.
ambiental e mecânico significava que teria ou de desesperar ou Os membros da sociedade londrina estavam conscientes:
de proclamar um quiliasma secular.
Sr. Owen, o Filantropo, jogou o manto de Joanna Southcoti 117. Political Register, de Sherwin, 20 de setembro de 1817.
ao ombro. O tom do orador exaltado foi notado não só por Hazlitt. 118. Ver, porém, o generoso tributo de Engels a Owen em Anti-Düring
(1878; Lawrence & Wishart, 1936), pp. 287-92: “um homem de simplici­
dade de caráter quase sublimemente infantil, e ao mesmo tempo um líder
116. Ver Owen. op. cit., pp. 148-55. nato de homens".

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de que seus procedimentos devem ser relativamente imperfeitos, Portanto proclamo agora ao mundo o começo, neste dia, do
enquanto permanecem em suas atuais moradias, longe ( ...) umas prometido milênio, fundado em princípios racionais e prática
das outras. coerente.119

Com um entusiasmo que lembrava os primeiros moravianos. Essa proclamação, hoje, podería chocar algumas Guildas Co­
adquiriram algumas casas novas em Spa Fields (não mais como operativas de Mulheres. Também parece, à primeira vista, uma
local de manifestações), com uma sala de aula e um refeitório ideologia de aceitação pouco provável entre os trabalhadores, cujas
comum. As páginas do Ecortomist e outros primeiros jornais vinham experiências formativas constituem o tema deste estudo. E no en­
repletas de especulações sobre como levantar o capital — se se tanto, se observarmos com maior atenção, descobriremos que não
supusesse (uma suposição curiosa) que existiam 50.000 famílias foi algum frenesi psíquico ou “ paranóia coletiva” que permitiu a
das classes trabalhadoras na metrópole, elas teriam, se se associas­ rápida expansão do owenismo. Em primeiro lugar, o owenismo,
sem, uma renda média de 50 libras anuais, ou 2,5 milhões em do final dos anos vinte em diante, foi algo muito diferente dos
conjunto. E assim por diante. Os comunitários em Orbiston esta­ textos e declarações de Robert Owen. Foi a própria imprecisão de
vam inscritos numa “ Sociedade da Revelação Divina”. Em 1830, suas teorias que ofereceu, porém, uma imagem de um sistema
quando Owen, voltando dos Estados Unidos, descobriu-se à frente alternativo de sociedade, e fê-las adaptáveis a diferentes grupos
de um movimento de massas, esse tom messiânico tinha a força entre os trabalhadores. Dos textos dos owenistas, artesãos, tecelãos
de uma religião secular. Em l.° de maio de 1833, Owen lançou e trabalhadores qualificados escolhiam aquelas partes mais intima­
mente relacionadas com sua situação própria e modificavam-nas
um Discurso na Casa Nacional de Câmbio Equitativo do Trabalho,
pela discussão e pela prática. Se os textos de Cobbett podem ser
“ denunciando o Velho Sistema do Mundo e anunciando o Começo
vistos como uma relação com seus leitores, os de Owen podem ser
do Novo”. Não só a motivação pelo lucro seria substituída pela
vistos como uma matéria-prima ideológica difusa entre os traba­
cooperação, os vícios do individualismo pelas virtudes do mutua- lhadores, por eles processada em diferentes produtos.
lismo, como todos os arranjos sociais existentes dariam lugar às Os artesãos são o caso mais claro. O editor do Economist
federações de aldeias agrícolas e industriais mistas: admitiu, em 1821, que poucos dos seus leitores pertenciam às
classes trabalhadoras. Mas temos uma idéia sobre os primeiros
Nós ( .. . ) abandonaremos todos os arranjos gerados por interesses membros da “Sociedade Cooperativa e Econômica” de Londres,
[seccionais], tais como grandes cidades, vilas, aldeias e universi­ que fundaram a comunidade em Spa Fields, a partir de uma cir­
dades. (. . .)
cular enviada à Nobreza e à Fidalguia, solicitando seu patrocínio
Tribunais de lei e toda a parafernália e loucura do direito (. ..) para suas atividades. Ofereciam-se para executar gravações e dou­
não podem existir num estado racional de sociedade. . . raduras, botas e sapatos, ferragens (inclusive fogões e estufas),
cutelaria, roupas, corte e costura, móveis, venda e encadernação
Até então o mundo “em espessas trevas” . Toda a adoração de livros, desenhos em aquarela e sobre veludos, e Persianas Trans­
cerimonial de um Poder desconhecido era “ muito pior do que parentes para Janelas com Paisagem. Isso sugere artesãos e artífices
inútil”. Os casamentos serão reconhecidos apenas enquanto uma autônomos, que abundavam em dois dos maiores centros coopera­
“ união por afeição” . “ O celibato, em ambos os sexos, para além tivos — Londres e Birmingham. O espírito dessas iniciativas (que
do período designado pela natureza, não será mais considerado são numerosas, algumas anteriores a Owen) vem expresso numa
uma virtude” , mas “ um crime contra a natureza” . A nova socie­ carta enviada ao Economist:
dade proporcionaria um equilíbrio entre o trabalho físico e o tra­
balho intelectual, um entretenimento e o cultivo das capacidades 119. E c o n o m is t, 4 de agosto, 20 e 27 de outubro de 1821 e t p a ssim .
Para a proclamação do Milênio, empreguei a versão em anexo à edição
físicas como na Grécia e Roma. Todos os cidadãos abandonariam de Bronverre 0 ’Brien de B u o n a r r o t t is H is to r y o f B a b e u f s C o n s p ir a c y o f
qualquer ambição, inveja, ciúme e outros vícios mencionados: E q u a ls (1836), pp. 438-45.

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... as classes trabalhadoras, bastando que se empenhem v i r i l m e n t e , de sindicatos pré-owenistas que, quando em greve, empregavam
não têm necessidade de solicitar a menor assistência de nenhuma seus próprios membros e comerciavam o produto .123 O artesão
o u t r a classe, mas têm em si mesmas (...) recursos superabun- apenas lentamente vinha perdendo seu estatuto de trabalhador
dantes.120 autônomo ou com prestação de serviços a vários patrões; neste ou
naquele contrato, ele podia recrutar a ajuda de outros artífices
Não é o tom de Owen. Mas, certamcnte, é o tom que encon­ com diferentes especialidades. O mercado coberto, ou bazar, com
tramos repetidamente ao acompanhar o radicalismo político dos suas centenas de barraquinhas, era uma instituição antiga; mas, no
artesãos. O individualismo era apenas uma parte de suas posturas; término das Guerras, tinham surgido novos bazares, atraindo a
também eram os herdeiros de longas tradições de mutualismo — atenção de círculos filantrópicos e owenistas, onde se alugava uma
a sociedade beneficente, o grêmio profissional, a capela, o clube parte do balcão (medida por pés) por semana, dia ou até parte
social ou de leitura, a Sociedade de Correspondência ou a União do dia. Eram convidados todos os tipos de atividades — mesmo
Política. Owen ensinou que o motivo do lucro estava errado e era artistas com seus espetáculos — e pode-se supor que os inquilinos
desnecessário: isso se ajustava ao sentido de costume e preço eram os artífices e “ mestres-de-sótão” que vinham lutando por
justo do artífice. Owen endossava a idéia, também sustentada por “uma independência ” .124 Em 1827, formava-se um novo bazar que
Cobbett, Carlile e Hodgskin, de que o capitalista, em sua função, atuou como centro de troca de produtos feitos por membros de­
era largamente parasitário: “ o trabalho manual, convenientemente sempregados de ofícios londrinos — carpinteiros, alfaiates, sapa­
conduzido, é a fonte de toda a riqueza” : isso se ajustava às quei­ teiros e outros que se punham a trabalhar com materiais compra­
xas dos artesãos ou pequenos mestres-artífices contra os interme­ dos com fundos sindicais .125
diários e empreiteiros. Owen ensinou que “o padrão natural do Assim, as Casas de Câmbio Equitativo do Trabalho, fundadas
trabalho humano” devia ser tomado como “o padrão prático do em Londres e Birmingham em 1832-3, com suas notas de serviço
valor ” ,121 e que os produtos deviam ser trocados de acordo com e troca de pequenos produtos, não foram invocadas do nada por
o trabalho neles incorporado: isso se ajustava à perspectiva do profetas paranóicos. Se listarmos os produtos levados para trocas
sapateiro, do marceneiro e do fazedor de escovas, que viviam no ao Congresso Cooperativo em Liverpool, em outubro de 1832, tam­
mesmo pátio e que, de qualquer forma, de vez em quando troca­ bém poderemos ver as pessoas. De Sheffield, cutelaria e cafeteiras;
vam serviços. de Leicester, meias e cordões; de Huddersfield, coletes e xales; de
Na verdade, o germe da maioria das idéias de Owen pode Rochdale, flanelas. Havia tecidos ornamentados de Bamsley, fa­
ser visto em práticas que antecipam ou ocorrem independentemente zendas de Halifax, sapatos e tamancos de Kendal e estampas de
dos seus textos.122 Não só as sociedades beneficentes ocasional­ Birkacre. Um porta-voz da Casa de Câmbio Equitativo do Trabalho
mente ampliaram suas atividades com a construção de clubes so­ de Birmingham disse que o povo do seu distrito “não sabia o que
ciais ou casas de caridade; existe também uma série de exemplos fazer com seus montes de artefatos de ferro, bronze, aço e laca” :
por que não trocar por algodões de Lancashire e malhas de Lei­
120. E c o n o m is t , 13 de outubro de 1821, 9 de março de 1822. Ver Army- cester? A longa lista de ofícios que se propunham trazer seus
tage, op. cit., pp. 92-4, para um breve relato da experiência de Spa Fields.
121. Ver “Report to the County of Lanark" (1820), em Owen, op. cit.,
em esp. pp. 261-2. 123. P. ex., os Manufatureiros Oficiais de Cachimbos que, depois de
122. Já em 1796, houve uma tentativa de se formar uma Sociedade Fra­ uma greve de onze semanas, no inverno de 1818-19, começaram com manu­
ternal Britânica, que uniria os recursos das sociedades beneficentes a fatura direta em Maze, Borough — "um amigo" tinha “conseguido uma
formas de organização derivadas da Sociedade de Correspondência. Surgiu fábrica para nós". Ver G o r g o n , 6 e 13 de fevereiro de 1819.
entre os tecelãos de Spitalfields, propondo que se pagassem abonos de 124. J. Nightingale, T h e B a za a r (1816). Particularmente recomendado era
velhice e desemprego, que a Sociedade devia contratar seus próprios mem­ o Bazar Novo, Praça Soho, n.° 5, que abrira naquele ano; um Bazar
bros afastados do emprego e que os produtos dos tecelãos de seda. Colméia, em Holborn, também foi mencionado.
alfaiates, sapateiros &c. deviam ser trocados entre si. Ver Andrew Larcher, 125. C o o p e r a tiv e M a g a z in e (1827), pp. 230-1, citado em S. Pollard, “Ni-
A R e m e d y f o r E sta b lis h in g U n iv e r s a l P ea c e a n d H a p p in e s s (Spitalfields,
neteenth-Century Cooperation: from Community Building to Shopkeeping".
E ssa ys in L a b o u r H is to r y , p. 87.
1795) e A d d r e s s to t h e B r itish F ra tern a l S o c ie ty (1796).

393
392
artefatos à Casa de Câmbio de Birmingham inclui (na letra B) rimentos “ utópicos” de constituição de comunidades. A Associação
fabricantes de graxa preta, sineiros, fabricantes de vassouras de para a Promoção do Conhecimento Cooperativo de Manchester e
vidoeiro, de botões e passamanes, de fivelas, funileiros, fabricantes Salford, fundada em 1830, obteve apoio imediato. Os tecelãos
de escovas, padeiros, fabricantes de foles, de armações e enxergões esperavam encontrar na cooperação a força para concorrer com o
de cama, cesteiros. Na letra S, encontramos fabricantes de coifas tear a energia. Uma grande causa de males sociais, escreveu o
e chapéus de palha, de balanças, de grelhas de fogão, tecelãos de United Trades’ Cooperative Journal, estava:
seda, forjadores de ferro e de ligas claras, e papeleiros.* Não há
(e dificilmente havería) caldeireiros, fomalheiros ou mestres-de- na disposição errônea de nossos assuntos domésticos, sociais e
comerciais, que faz com que as máquinas concorram com e
obras; nem operários de estaleiros ou fiandeiros de algodão; nem
contra o trabalho humano, em vez de cooperar com ele.
mineiros ou mecânicos.126
A lista inclui não só os pequenos mestres e artesãos, mas tam­ “ Podemos descobrir perfeitamente que todas as misérias de
bém trabalhadores por encomendas para fora. Como sua situação que sofre a sociedade devem-se, em sua maioria, à distribuição
(tecelãos e malharistas) era a mais desesperada, o owenismo foi injusta da riqueza”, escreveu o Lancashire and Yorkshire Coope-
apenas uma das soluções a que tentaram se aferrar nos anos 30. rator.m Nesses distritos, com suas longas tradições de sindicalismo
O apelo da Casa de Câmbio do Trabalho não foi tão imediato e ajuda mútua, a cooperação oferecia um movimento onde racio-
nas vizinhanças de Huddersfield ou Burnley, pela razão óbvia de nalistas e cristãos, radicais e politicamente neutros podiam trabalhar
que, em distritos onde o produto básico era a tecelagem, e onde juntos. O movimento também congregou as tradições do auto-
centenas estavam semi-empregados ou empregados a salários de aperfeiçoamento e do esforço de aprendizagem, fornecendo salas
fome nessa mesma produção, não existia nenhum mercado evi­ de leitura, escolas e palestristas itinerantes. Em 1832, existiam em
dente. Portanto, os habitantes do norte, desde o princípio, foram todo o país talvez 500 sociedades cooperativas, com no mínimo
levados a pensar num plano nacional de cooperação. “ Se nossos 20.000 membros.129
amigos de Birmingham se comprometerem a vir a nossas fábricas” , Enquanto Owen (um tanto afetado, apesar do seu otimismo,
escreveu um cooperado de Halifax: pelos fracassos de Orbiston e New Harmony) estava à espera de
grandes doações financeiras antes de arriscar novos experimentos,
Nós nos comprometeremos em cortar nossa carne e pudim (quando os cooperados em inúmeros centros, desde Brighton a Bacup, esta­
conseguirmos algum) com suas facas e garfos, e tomar nossa vam impacientes em crescer imediatamente por seus próprios esfor­
sopa e papa de aveia com suas colheres; e, se nossos irmãos de ços. No Congresso de Liverpool, em 1832, os trabalhos mostram
Londres também se comprometerem, nós apareceremos, o mais o contraste entre longas arengas evangélicas e intervenções como
cedo possível, com seus lenços de seda em torno do pescoço .127 esta:

É em Lancashire e Yorkshire que encontramos o desenvolvi­ Sr. WILSON, um delegado de Halifax, declarou que, em maio
mento mais rápido de uma teoria geral de um novo “ sistema” , com de 1832, ele e mais 8 pessoas deram um xelim cada, e ( ...)
o qual podería surgir uma troca equitativa em escala nacional, começaram um negócio numa salinha de fundos. Seu número
bem como alguns dos apoios mais firmes e mais práticos aos expe­ cresceu; eles ( . . . ) agora contavam com 240 libras e tinham
começado a ter trabalho para alguns dos seus membros (Bravo,
bravo).130
* Letra B: blacking-makers, bell-ringers, birch broom makers, button and
trimming makers, brace-makers, braziers, brush-makers, bakers, bellows-
makers, bedstead-makers, basket-makers. Letra S: straw hat and bonnet- 128. 6 de março de 1830; 26 de novembro de 1831. Ver A. E. Musson.
makers, scale makers, stove grate makers, silkweavers, blacksmiths and “The Ideology of Early Cooperation in Lancashire and Cheshire". Transac-
whitesmiths, and stationers. tions Lanes. & Cheshire Antiq. Soc., LXVII, 1957.
126. Crisis, 30 de junho, 27 de outubro, 8 e 15 de dezembro de 1832. 129. S. Pollard, op. cit., p. 8 6 .
127. Lancashire and Yorkshire Cooperator, n.° 2 (data não-idc,ntifiçada). 130. Crisis, 27 de outubro de 1832.

394 395
Essa justaposição da lojinha com o projeto milenarista faz pobres da comunidade; portanto, não podem estar recebendo
uma recompensa justa pelo seu trabalho.
parte da essência do espírito cooperativo entre 1829 e 1834.
(Encontra-se também na diversidade de agravos específicos e orga­
nizações que, por um breve tempo, ocuparam o edifício do Grande Os objetivos da sociedade incluíam a proteção mútua de todos
Sindicato Nacional Consolidado.) os membros contra a miséria e “ o alcance da independência através
de um capital comum”. Os meios de atingir esses objetivos incluíam
Nas vizinhanças de Huddersfield e Halifax, onde a cooperação uma contribuição semanal para um fundo comum, e aplicação do
se difundiu com tanta velocidade entre os tecelãos, uma das espe­ capital em atividades profissionais, o emprego dos seus membros
ranças era que a loja pudesse comprar a trama e a urdidura para “ quando as condições permitirem” , e:
o tecelão e, depois, vender o produto, como um curto-circuito dos
empregadores. Os cooperados também podiam, com uma contri­ Por último. — Vivendo em comunidade recíproca, com os
buição semanal de 1 pêni, acumular o capital para empregar mem­ princípios de cooperação mútua, bens reunidos, igualdade de
bros desempregados. Mas os regulamentos de uma sociedade for­ esforços e dos meios de desfrute.131
mada em 1832 em Pipponden, uma aldeia tecelã dos Peninos,
podem exprimir melhor a maioria desses motivos: Não é apenas uma transposição das doutrinas de Owen para
o contexto de uma aldeia tecelã. As idéias foram laboriosamente
Com as espantosas mudanças que o curso de vários anos trouxe modeladas, em termos da experiência dos tecelãos; as ênfases se
para as classes trabalhadoras (...) com a concorrência e o deslocaram; em vez da estridência messiânica, a simples pergunta:
aumento das máquinas que suplantam o trabalho manual, asso­ por que não? Um dos pequenos jornais cooperativos se chamava,
ciada a várias outras causas sobre as quais, até agora, as classes apropriadamente, Common Sense: sua ênfase recaía sobre as “ Asso­
trabalhadoras não têm controle — as mentes dos homens pen­ ciações Profissionais” :
santes estão perdidas num labirinto de sugestões sobre o plano
a se adotar para melhorar, sc possível, suas condições. (...) O objetivo de uma Associação Profissional é sucintamente este:
Com o aumento de capital, as classes trabalhadoras podem fornecer a maioria dos gêneros alimentícios de consumo corrente
melhorar sua condição apenas se se unirem e puserem mãos à aos seus membros, e acumular um fundo com a finalidade de
obra; com unir-se, não queremos dizer greves e paradas por arrendar terras para cultivo e lá formar uma comunidade coope­
salários, mas, como indivíduos de uma única família, empenharmo- rativa.
nos em trabalhar por nós mesmos. (...)
O plano de cooperação que estamos recomendando ao público Uma quantia semanal dos salários seria empregada na compra
não é visionário, mas é praticado em várias partes do Reino; de chá, açúcar, pão ou farinha de aveia por atacado .132 De Brighton,
todos vivemos do produto da terra, e trocamos trabalho por o Cooperator do dr. King vinha defendendo a idéia com maiores
trabalho, o que é o objetivo pretendido por todas as Sociedades detalhes.133 Ela se ajustava a outras necessidades: a necessidade de
Cooperativas. Nós trabalhadores fazemos todo o trabalho e produ­ escapar à “ tommy-shop”* ou ao aproveitador; a necessidade de
zimos todas as comodidades da vida — por que então não comprar os gêneros de primeira necessidade, e se libertar da adul­
trabalharíamos para nós mesmos e nos esforçaríamos em melhorar teração criminosa que era excessivamente corrente — a farinha
nossas condições?
131. J. H. Priestley, History of Ripponden Cooperative Society (Halifax,
Princípios Fundamentais 1932), cap. 4. Não é claro se esses regulamentos datam dc 1833 ou 1839.
Primeiro. — Que o trabalho é a fonte de toda a riqueza; 132. Common Sense, 11 de dezembro de 1830.
por conseguinte, as classes trabalhadoras criaram toda a riqueza. 133. Ver S. Pollard, Dr. William King (Loughborough Cooperative College
Papers, 6, 1959).
Segundo. — Que as classes trabalhadoras, embora as produ­ * Tommy-shop — vendas onde os trabalhadores trocavam seus vales por
toras de riqueza, ao invés de serem as mais ricas, são as mais mercadorias. (N. do T.)

596 397
misturada com “gesso, ossos calcinados e uma substância mineral era compatível com a teoria cooperativa. A propaganda racionalista
chamada Branc^ de Derbyshire ” .134135 da década anterior fora eficaz; mas também tinha sido estreita e
negativa, e gerara uma sede por uma doutrina moral mais positiva,
Mas essa i^Jéia também exercia uma atração nos trabalhadores
qualificados e Organizados das indústrias maiores, cuja aproxima- atendida pelo messianismo de Owen. A imprecisão do pensamento
çao ao owenismo era majs circunspecta. O Trades Newspaper de Owen tornou possível a coexistência de diferentes tendências
trouxe algumas notícias sobre Orbiston, em 1825, mas os projetos intelectuais dentro do movimento. E devemos mais uma vez insistir
de comunidade^ de Owen eram considerados “ impraticáveis pela que o owenismo era mais saudável, e mais forte em termos inte­
aversão que hoimens independentes e livres de nascimento devem lectuais, do que o pensamento do seu mestre. Para os trabalhadores
sentir a que Iht^ digam o que têm de comer ( ...) e o que têm de qualificados, o movimento que começara a tomar forma em 1830
fazer’ . Além disso, a própria idéia de conquistar uma indepen­ finalmente parecia dar corpo à sua aspiração há tanto tempo ali­
dência econômi«£a> que atraía alguns pequenos artífices e trabalha­ mentada — uma união nacional geral. Desde o Hércules Filantró­
dores por encoiiYienda, levantava uma objeção ao operário de esta­ pico de 1818 até o grupo de pressão de 1825 contra as Leis de
leiro e ao trabvalhador da indústria de grande escala — qual a Associação, houvera muitas tentativas de se alcançar uma ação
utilidade de uir%a Aldeia de Cooperação para ele? unida. Ao longo de todo o verão e outono de 1825, o Trades
No final d(os anos 20, porém, Gast se declarou a favor do Newspaper cobriu cada etapa da greve dos penteadores de lã de
owenismo. Lmaj adesão mais importante foi a dos Fiandeiros dc Bradford e o apoio que para lá se dirigia de todas as regiões do
Algodão de Mí^nchester depois de sua greve de seis meses, em país. Declarou enfaticamente: “ São todos os trabalhadores da
1829. Doherty L 0i 0 pioneiro, em 1830, com a Associação Nacional Inglaterra contra uns poucos patrões de Bradford” .136 No fracasso
para a Proteção» do Trabalho, cujo órgão, o United Trades Coope- da grande greve dos fiandeiros de 1829, Doherty viu uma outra
rative fournal, iOg0 se converteu na Voice of the People. Pouco lição: “ Ficou então demonstrado que nenhum ofício isolado podería
depois, aquela outra entidade de trabalhadores qualificados, a resistir aos esforços combinados dos patrões daquele ofício isolado:
União dos Construtores, cujos produtos provavelmente não pode­ então procuraram-se unir todos os ofícios” .137 Um dos resultados
ríam ser levado ->5 a Casa de Câmbio Equitativo do Trabalho, vol­ foi a formação dos Fiandeiros Artífices da Inglaterra, Irlanda e
tou-se para o maior de todos os experimentos de ação direta Escócia, cuja primeira conferência, na Ilha de Man em dezembro
cooperativa. O que mudou? de 1829, mostrou uma tentativa impressionante de superar as com­
Uma respo:iSta p0de ser simplesmente que, no final dos anos plexidades de uma organização unida de três regiões díspares .138
2 0 , uma ou ou^tra variante da teoria cooperativa e econômica A partir dessa base, a Associação Nacional para a Proteção do
do trabalho tinhiia conseguido o controle da estrutura do movimento Trabalho congregou, por um curto período de tempo, trabalhadores
operário. Cobbe^ tt não oferecia nenhuma teoria coesa. O individua­ têxteis de lã, mecânicos, oleiros, mineiros, construtores e muitos
lismo de Carlile era impermeável. Hodgskin, implicitamente, apon­ outros ofícios; “ mas depois de ter se estendido por cerca de 160
tava para uma t teorja socialista madura, mas sua análise se detinha quilômetros à volta dessa cidade [Manchester], veio uma fatali­
antes, e, de qu lalquer forma, como mostrou William Thompson, dade que quase ameaçou sua existência” .139 A “ fatalidade” se deu
a partir de divisões e disputas dentro da própria entidade dos
134. T r a d e s N ew spaper, 31 de julho de 1825. Sobre os moinhos de tri­ Fiandeiros Artífices, de solicitações excessivas ou prematuras aos
go semicooperativ^ os fundados em conseqüência do ano quase de fome de fundos de greve da Associação e da imprudente tentativa dc
1795, ver G. J. f~Holyoake, S e lf H e lp A H u n d r e d Y e a r s A g o (1891), cap.
II, e J. A. Langfq^rdt 4 C e n tu r y o f B ir m in g h a m L ife , II, pp. 157-60. Em
algumas "Notes a ,irKj Observations on Cooperative Societies" (manuscrito), 136. T r a d e s N e w s p a p e r , 11 de setembro de 1825.
Lovett registra quue existiam muitas sociedades, principalmente grupos de 137. Hammonds, T h e T o w n L a b o u r e r , p. 312.
consumidores. dun*ante as guerras, e menciona os Tecelãos de Spitalfields: 138. R e p o r t o f th e P ro c e e d in g s o f a D e le g a te M e e tin g o f C o tto n S p in n e r s ,
Add. MSS., 27. 7 ^ 9 1 ff. 245, 258. & c. (Manchester, 1830).
135. Ibid., 14 de £.agosto de 1825. 139. U n io n P ilo t a n d C o o p e r a tiv e I n te llig e n c e , 24 de março de 1832.

398 399
Doherty de transferir o escritório do Voice o) the People para Wheeler) Um Apelo de Metade da Espécie Humana, as Mulheres,
Londres. Mas, apesar do seu fracasso, a Associação Nacional deu contra as Pretensões da Outra Metade, os Homens, de mantê-las
novas conotações à idéia de cooperação; e, embora o movimento em Escravidão Política e portanto Civil e Doméstica (1825), enri­
de Manchester ingressasse numa fase de recriminações, o movi­ queceram amplamente o movimento. Outros deram o dinheiro sem
mento continuou a florescer nas Potteries e em Yorkshire .140 Doher­ o qual seus experimentos não teriam sido implantados. No entanto,
ty pode ter tentado levar o movimento à frente com excessiva na maioria das comunidades, há a figura de um ou mais fidalgos
precipitação; mas viu corretamente, na popularidade crescente de excêntricos, cuja inexperiência na prática de qualquer unidade
idéias owenistas, um meio de unir os trabalhadores organizados do coletiva, e cujo experimentalismo utópico enfurecia os artesãos
país num movimento comum. A partir de então, a história do owe- owenistas. Declarar que os homens devem construir um novo sis­
nismo e do sindicalismo geral devem ser tomadas em conjunto .141 tema social era uma coisa; outra coisa era declarar que os homens
As comunidades experimentais fracassaram, embora uma ou podiam construir qualquer tipo de novo sistema. Um socialista
duas — como a de Ralahine — tenham tido um êxito parcial. artesão, Allen Davenport, ex-spenceano, deixou um retrato um
Enquanto os empreendimentos mais ambiciosos, como o dos cons­ tanto sardônico da Casa de Câmbio do Trabalho de Londres:
trutores, faliram totalmente, alguns dos empreendimentos coopera­
tivos menores de fato continuaram a lutar. A maioria das socie­ A mente pública estava totalmente eletrizada por esse novo e
dades e lojas do início dos anos 30 só faliu para renascer, em extraordinário movimento. (...) A grande sala de assembléia,
poucos anos, pelos moldes de Rochdale. A Casa de Câmbio ou originalmente adornada no mais elegante estilo (...) o teto era
Bazar do Trabalho, na Inn Road de Gray, era uma confusão magnificamente trabalhado em relevo, e as partes ornamentais
enorme. E, no entanto, não há nada totalmente inexplicável no ricamente douradas com iluminuras de ouro; e com capacidade de
conter duas mil pessoas. Mas isso (.. .) não era suficiente para
fermento owenista. Vimos como artesãos, trabalhadores por enco­
satisfazer as idéias de beleza do Sr. Owen. Foi levantada uma
menda e sindicalistas encontravam, todos eles, um lugar ali. Seus
magnífica plataforma, onde se colocou um órgão soberbo e
elementos milenaristas profundamente instáveis provieram, em larga majestoso. (...) Nas noites de festa (...) as aléias eram profusa­
medida, de duas fontes: os simpatizantes benevolentes e os muito mente iluminadas com (...) caras lâmpadas gregas. Eram utiliza­
pobres. Pois o primeiro owenismo (visto que professava não ser dos dez ou doze instrumentos musicais; e as damas e cavalheiros
uma doutrina de expropriação ou conflito de classe) atraiu um cantavam as mais doces árias. (...)
certo número de fidalgos filantropos e clérigos — godwinianos, As festas eram abertas com uma breve palestra, sobre os temas
quacres, rebeldes intelectuais e excêntricos. Alguns deles, como o do amor social, caridade universal e as vantagens da coopera­
dr. King e, mais notavelmente, William Thompson, o proprietário ção ( ...) À palestra seguia-se um concerto, e ao concerto um
de terras irlandês e autor de Investigação sobre a Distribuição baile. (...)
de Riqueza (1824), Trabalho Remunerado (1827) e (com Anna Entrementes todas as avenidas e até a Casa de Câmbio, durante
toda a semana, ficavam literalmente bloqueadas pelas multidões
140. Ver P o o r M a n 's A d v o c a te , de Doherty. 21 de janeiro de 1932: “A de gente que constantemente se reuniam — alguns atraídos pela
administração [da Associação] passou para as mãos dos vigorosos e inte­ novidade da instituição; alguns para ver seus progressos (...);
ligentes operários dc Yorkshire, onde esperamos será evitado o mesmo alguns para fazer depósitos e trocas. (...) Mas ai! logo se descobriu
espírito de inveja e facciosidade que, em grande medida, neutralizou a que as belas notas de serviço (...) não podiam absolutamente ser
melhor influência da Associação". empurradas para a circulação geral, com o que o suprimento de
141. Ver cspecialmcnte G. D. H. Cole, A t t e m p t s a t G e n e r a l U n io n ;
Postgate, T h e B u ild e r s ' U n io n , cap. 3-5; W. H. Warburton, H is to r y o f T. U. provisões faliu e uma falência total foi o resultado de um dos
O r g a n iz a tio n in th e P o tte r ie s (1931), cap. 2-4. Alguns detalhes da "fata­ movimentos mais extraordinários que jamais foram tentados neste
lidade" que perseguia a ANPL podem se encontrar em D. Caradog ou em qualquer outro país. Contudo, os princípios em que o
Morris. "The History of the Labour Movement in England, 1825-51" (tese sistema se fundara permanecem inatacáveis, e devem ser acalen­
de doutorado. Londres, 1952). tados na mente pública...

400 401
tham, Nottingham, Birmingham, Derby, Chesterfield, Leeds —
O Owen dessa versão é o Owen que Peacock ridicularizou em
muitos daqueles velhos bastiões southcottianos. Em Barnsley, sus­
Castelo Extravagante. Demasiados empreendimentos owenistas se
citou estrandosos aplausos quando investiu num ataque contra
excederam e terminaram nesse tipo de mistura de desperdício,
todos os clérigos “que, desde o Arcebispo até o mais inferior, são
benevolência e mau planejamento. Se Owen foi o maior propagan-
perjuros e os Falsos Profetas mencionados na Bíblia” . Esta se
dista do owenismo, foi também um dos seus piores inimigos. Se a
tornou, cada vez mais, a nota principal de suas profecias: “ Reve­
Casa de Câmbio do Trabalho tivesse sido entregue às mãos de
homens como Lovett, o resultado poderia ter sido diferente .142 lada a Política Clerical! Planejada sua Derrubada!” O Rei devia
“ retirar os enormes salários dos bispos, e gastar o dinheiro para
O outro aspecto dessa instabilidade milenarista veio, mais
o bem público” . Ele lançou um periódico semanal, The Judgement
diretamente, do quiliasma dos pobres. Assim como na época da
Seat of Christ — talvez a única vez em que Cristo tenha recebido
Revolução Francesa, durante e logo após a excitação da agitação
os créditos da direção editorial, semana a semana, de um jornal
pelo Projeto de Lei da Reforma ressurgem os movimentos messiâ­
popular. Por todo o verão de 1831, atraiu enormes públicos para
nicos. Restavam muitas ramificações do movimento southcottiano,
cujas seitas agora vinham assumindo formas estranhas e perverti­ suas palestras, muitas vezes lotando os 2.000 lugares da Rotunda
das 143 que talvez exijam a atenção mais do psiquiatra do que do de Carlile:
historiador. Mas podem-se indicar três exemplos dessa continuação
N.B. Os textos do Messias vendidos na (...) Rotunda, Blackfriars
da instabilidade milenarista.
Road. Pregação no Rotunda nas Quintas-Feiras à noite, às 7,30,
O primeiro é o enorme séquito de adeptos que, entre 1829 e e nos Domingos à tarde, às 3.
1836, ganhou um sapateiro aleijado, “ Zion” Ward, um dos her­
deiros do manto de Joanna. Ward, antes um ardoroso metodista, No início de 1832, foi declarado culpado de blasfêmia em
convencera-se, por malabarismos alegóricos, de que era o “ Shiloh” Derby (“ Os Bispos e o Clero são Impostores Religiosos, e como
cujo nascimento fora anunciado péla velha Joanna. Logo a seguir, tais pelas Leis da Inglaterra sujeitos a Punição Física” — decerto
veio a crer que era Cristo (e antes tinha sido Satanás) e que a um terreno perigoso para discussões?) e, com um companheiro
Bíblia inteira era uma profecia alegórica de sua anunciação. (A profeta, foi preso por dois anos. Apesar da doença e de uma para­
estória da vida de Cristo no Novo Testamento era uma falsa no­ lisia parcial, continuou com sua missão até sua morte em 1837.144
tícia — se o Redentor viera, “ por que o homem não está redimi­
O segundo exemplo é o do extraordinário “ Sir Wiiliam Cour-
do?”) O que havia de incomum na paranóia de Ward (afora seu
tenay” (ou J. N. Tom), que chegou numa sobressaltada Cantuária
solipsismo surrealista) era, em primeiro lugar, que ele a escorava
em 1832, vestindo roupas orientais e seguido de boatos de grande
com argumentos extraídos de Carlile e dos deístas; em segundo
fortuna, recebeu 400 votos inesperados na Eleição Geral e, depois
lugar, que dirigia seu apelo messiânico à dinâmica do radicalismo.
de ser condenado por perjúrio, publicou seu Leão, com as visões de:
Seu séquito brotou em Southwark, Hackney, Walworth; em Cha-
Sir William Courtenay (.. .) Rei de Jerusalém. Príncipe da Arábia,
142. Sobre Thompson, ver R. Pankhurst, W illia m T h o m p s o n (1954). Para Rei dos Ciganos, Defensor do seu Rei e País (...) agora na Prisão
relatos sobre a Bolsa de Trabalho, ver R. Podmore, R o b e r t O w e n (1906), da Cidade, Cantuária.
II; G. D. H. Cole L i f e o/- R o b e r t O w e n (1930), pp. 260-6, e Lovett,
op. cit., 1, pp. 43 ss. O relato de Davenport encontra-se em N a tio n a l
C o o p e r a tiv e L e a d e r. 15 de março de 1861. Tom, que era um comerciante de vinho originalmente vindo
143. Ver T. Fielden, A n E x p o s itio n o j th e F a lla cies a n d A b s u r d itie s o f das Terras Ocidentais de Joanna Southcott, fora por breve tempo-
th a t D e lu d e d C h a c h g e n e r a lly k n o w n as C h ris tia n ís r a e lite s o r uJ o h a n n a s "
(...) (1950), para detalhes dos “mistérios" de iniciação e disciplina nas
mãos das pias irmãs: "a mulher pega o homem pelas suas partes pudentas 144. G. R. Balleine, P a st F in d in g O u t h , cap. 11; ed. H. B. Hollings-
enquanto se mantém inclinado (...) ela o segura por uma mão, e dá-lhe worth, Z i o n s W o r k s (1899), I, pp. 300 ss; Zion Ward, A S e r io u s C all: o r
T h e M e ssia W s A d d r e s s to th e P e o p le o f E n g la n d (1831).
as chicotadas com a outra..."

402 403
um spenceano. Seu Leão denunciava igualmente todos os infiéis e beta e disse que estava sendo ouvido em Jerusalém, onde havia
clérigos: 10.000 prontos a obedecer ao seu comando. Finalmente travou-se
a batalha — talvez a mais desesperada em solo inglês desde 1745.
A Raiz de todo o Mal está na Igreja. Contra as armas de fogo e as baionetas, os lavradores de Kent só
Lucro! Lucro!! Lucro!!! tinham clavas: “Nunca vi maior determinação na minha vida” ,
O Céu projeta a Viúva, o órfão e o Aflito. disse uma testemunha. “ Nunca vi na minha vida homens mais
furiosos ou parecidos com loucos na sua investida contra nós.”
Solto da prisão e do asilo de loucos, foi viver nas casas de Um oficial foi morto, bem como Courtenay e onze ou doze segui­
camponeses em aldeias perto da Cantuária. Em maio de 1838, dores seus. Foi uma lista de mortos maior do que Pentridge ou
começou a circular pelas aldeias, a cavalo e armado com pistolas Peterloo .145
e uma espada, à frente de cinqüenta ou cem lavradores, armados O caso de Blean Wood pertence mais aos antigos do que aos
com cacetes. Um pão vinha fincado num mastro, abaixo de uma novos padrões culturais. Foi a última revolta dos camponeses. È
bandeira azul e branca com um leão rampante, e Tom teria lido interessante notar que os “ desvairantes” bryanistas, ou cristãos
o Capítulo V da Epístola de São Tiago para seus seguidores: bíblicos, tinham um dos seus bastiões em Kent; numa época em
que o mundo psíquico dos homens estava repleto de imagens vio­
Eia. pois, ó ricos, gritem e chorem por suas misérias que recairão lentas do fogo dos infernos e da Revelação, e seu mundo real
sobre vocês. (...)
repleto de miséria e opressão, é surpreendente que tais explosões
Eis que o salário dos trabalhadores que ceifaram seus campos,
o qual foi defraudado por vocês, clama (...) não fossem mais constantes. O terceiro exemplo, que nos apro­
xima do owenismo, é o extraordinário sucesso da propaganda
mórmon em distritos industriais na Inglaterra, nos finais dos anos
As mulheres, em particular, acreditavam que ele tinha poderes
1830 e 1840. Em poucos anos, foram batizados milhares de con­
milagrosos. Um lavrador disse mais tarde que “ amava Sir William” :
vertidos, e milhares desses “ Santos dos Últimos Dias” embarcaram
Ele falava de tal modo com eles, e estava sempre lendo as de Liverpool para a Cidade de Sião. Os primeiros conversos eram
Escrituras, que não o viam como um homem comum e teriam “ principalmente manufatureiros e outros artífices ( .. .) extrema­
alegremente morrido por ele. mente pobres, em sua maioria sem nem uma muda de roupa para
serem batizados com ela” . Muitos, que receberam auxílio em di­
Como Oastler e Stephens no norte, ele denunciou a Nova Lei nheiro para a passagem, percorreram a pé e empurraram carrinhos
dos Pobres como uma violação da lei divina. Finalmente, foi de mão todo o caminho de Council Bluffs (Iowa) até Salt Lake
enviado um policial para prendê-lo, a quem Courtenay (ou Tom) City .146
matou. Mas os lavradores não o abandonaram. Mais de cinqüenta Todos esses exemplos servem para ressaltar que é prematuro,
se retiraram com ele para Blean Wood, onde, na densa vegetação nos anos 30, pensar nos trabalhadores ingleses como indivíduos
baixa, aguardaram o Exército, Tom mostrou as chagas dos cravos totalmente abertos à ideologia secular. A cultura radical que exa­
nos pés e nas mãos, e anunciou que, se fosse morto, se levantaria minamos era a cultura de indivíduos qualificados, artesãos e alguns
outra vez: trabalhadores por encomenda. Sob essa cultura (ou coexistindo

Este é o dia do juízo — é o primeiro dia do Milênio — e neste


dia porei a coroa em minha cabeça. Vejam, está com vocês um 145. P. G. Rogers, B a ttle in B o ssen d ert W o o d (1961), pp. 4, 96; A n
A c c o u n t o f th e D e s p e r a te A ff r a y in B le a n W o o d (Faversham. 1838); E ssa y
maior que Sampson!
o n th e C h a ra c te r o f S ir W illia m C o u r te n a y (Cantuária, 1833); T h e L io n .
6 e 27 de abril de 1833; G lo b e , l.° de junho, 10 de agosto de 1838.
Aos seus seguidores prometeu terras — talvez 20 hectares 146. Ver Armytage, op. cit., Parte III, cap. 7, “Liverpool: Gateway to
para cada. Quando os soldados se aproximaram, soou uma trom- Zion"; P. A. M. Taylor, E x p e c ta tio n s Westward (1965).

404 405
com ela), existiam níveis mais obscuros de reação, de onde os é o mais sublime que se possa conceber, a saber — estabelecer
líderes carismáticos como Oastler e 0'Connor retiravam parte do para as classes produtivas um domínio completo sobre os frutos
seu apoio. (No movimento cartista, homens como Lovett nunca de sua própria industriosidade. ( ...) Uma mudança total na
sociedade — uma mudança chegando a uma subversão completa
viriam partilhar de uma perspectiva e estratégia comum com os da “ordem do mundo” existente — é o que pretendem as classes
“queixos não-barbeados e os paletós de fustão” do norte.) A insta­ trabalhadoras. Elas aspiram a estar no alto, ao invés de na base,
bilidade viria a se encontrar particularmente lá onde os novos da sociedade — ou melhor, que não existisse absolutamente nem
padrões racionalistas e os padrões metodistas ou batistas de tipo alto nem baixo.147
mais antigo se sobrepunham ou viviam em conflito dentro da
mesma mente. Mas, enquanto que a dissidência e o racionalismo Retrospectivamente, é fácil considerar esse estado de espírito
parecem ter amansado e posto ordem ao caráter do artesão do sul, como ingênuo ou “ utópico” . Mas não existe nada nele que nos
nas regiões onde o padrão metodista predominou durante as guer­ autorize a encará-lo com superioridade acadêmica. Os pobres eram
ras, as energias emocionais parecem ter sido armazenadas ou repri­ desesperadamente pobres, e as perspectivas de uma comunidade
onde poderíam não só mesclar a cultura intelectual com as ativi­
midas. Finque-se uma pá dentro da cultura operária do norte, em
dades atléticas da Grécia e Roma, mas também comer, eram
qualquer momento dos anos 30, e a paixão parece brotar do solo.
atraentes. Além disso, existia uma diferença importante entre o
Assim, o owenismo também congregou parte dessa paixão. owenismo e credos anteriores que concentravam o impulso milena-
Com Owen e suas palestras a profetizar que “ a prosperidade esta­ rista. Com os owenistas, o Milênio não estava por vir, estava por
ria à solta” , era inevitável que reunissem a seu redor os Filhos de ser feito por seus próprios esforços.
Israel. O anelo comunitário reviveu, e a linguagem da racionali­ É é aqui onde podemos reunir todas as linhas do owenismo:
dade foi transposta para a da fraternidade. Como em todas essas os artesãos, com seus sonhos de curto-circuitar a economia de mer­
fases de fermentação, o antinomianismo também reviveu, com seus cado; os trabalhadores qualificados, com seu impulso para o sindi­
equivalentes místicos das noções seculares de liberação sexual sus­ calismo geral; a fidalguia filantrópica, com seu desejo de uma
tentada entre alguns comunitários owenistas: "Se vocês se amam”, sociedade racional e planejada; os pobres, com seu sonho de terras
Zion Ward dizia aos jovens em suas “ capelas”, “juntem-se a qual­ ou do Sião; os tecelãos, com suas esperanças de autonomia própria;
quer hora sem lei nem cerimônia” . (Ward também tinha um e todos aqueles com suas imagens de uma comunidade fraterna
projeto de uma Colônia Rural, “ onde os que estão dispostos a justa, onde a ajuda mútua substituiría a agressão e a concorrência.
deixar o mundo podem viver juntos como uma só família” .) Além Maurice escreveu em 1838:
disso, para os pobres, o owenismo tocava em uma de suas reações Quando os pobres dizem: “nós, também, vamos reconhecer que
mais profundas — o sonho de que, de alguma forma, por algum as condições estão totalmente presentes, nós vamos lançar fora
milagre, poderíam ter novamente alguma participação na terra. qualquer crença no que é invisível, este mundo será o único lar
onde vamos morar”, a linguagem bem pode espantar todos que
Tem-se a impressão de que, nos anos 1830, muitos populares a escutam. (...) Contudo (. ...) é o “nós vamos” (...) que confere
ingleses sentiam que a estrutura do capitalismo industrial fora só às lascas secas da teoria do Sr. Owen a aparência de vitalidade.148
parcialmente edificada, e o telhado ainda não recobria a estrutura.
O owenismo foi apenas um dos gigantescos, mas efêmeros, im­ Este “ nós vamos” evidencia que os trabalhadores vinham che­
pulsos que captaram o entusiasmo das massas, apresentando a gando à maturidade, tornando-se conscientes dos seus próprios
visão de uma estrutura totalmente diferente, que poderia ser cons­
truída numa questão de anos ou meses, bastando que o povo 147. Poor Maris Guardian, 19 de outubro de 1833. Ver M. Morris, From
estivesse suficientemente unido e determinado. Cresceu um espírito Cobbett to the Chartists (1948), p. 87.
148. F. D. Maurice, The Kingdom of Christ, citado em Armytage, op.
de associação, escreveu Bronterre 0 ’Brien em 1833, cujo objetivo: cit., p. 85.

406 407
interesses e aspirações enquanto classe. Nâo havia nada de irra­
cional ou mecânico em apresentarem uma crítica do capitalismo seria equitativamente dividida por todos cujo trabalho a produ­
enquanto sistema, ou em projetarem idéias “ utópicas” de um sis­ zira ” .151 Os que, no fracasso desses experimentos, só vêem uma
tema alternativo mais racional. Não era Owen que estava “ louco”, prova de seu desatino talvez confiem demais que a “ história”
mas, do ponto de vista dos labutadores, um sistema social onde o tenha-lhes mostrado ser um beco sem saída.
vapor e as novas máquinas evidentemente desalojavam e degrada­ O que era irracional no owenismo (ou “ utópico” , em sua
vam os trabalhadores, e onde os mercados podiam ficar “ saturados” acepção pejorativa usual) era a impaciência da propaganda, a fé
enquanto o telecão descalço se sentava ao seu tear e o sapateiro na multiplicação da razão através de palestras e folhetos, a atenção
ficava em sua oficina sem nem um casaco nas costas. Esses ho­ inadequada aos meios. Sobretudo, havia a evasão fatal de Owen
mens sabiam, por sua experiência, que Owen estava são quando frente às realidades do poder político, e sua tentativa de se desviar
dizia que: da questão dos direitos de propriedade. O socialismo cooperativo
pretendia simplesmente remover o capitalismo, de forma indolor
. . .a atual disposição da sociedade é a mais anti-social, não- e sem nenhum embate, pelo exemplo, pela educação e pelo seu
política e irracional que se possa conceber; que sob sua influência crescimento dentro do próprio capitalismo, a partir de suas aldeias,
todas as qualidades superiores e valiosas da natureza humana são oficinas e lojas. A cooperação não tem nenhuma “ tendência nive-
reprimidas desde a infância, e que são usados os meios mais ladora” , apressava-se o Economist em tranqüilizar seus leitores.
inaturais para trazer à frente as tendências mais danosas.. .149 Seu propósito era “elevar a todos”; sua riqueza não seria retirada
dos possuidores atuais, mas seria uma “ riqueza produzida de modo
Muito longe de ter uma perspectiva retrógrada, o owenismo novo”.152 “ Nós (. . .) não viemos aqui como niveladores”, declarou
foi a primeira das grandes doutrinas sociais a prender a imaginação um clérigo de Warrington: “ Não viemos aqui para privar nenhum
das massas naquele período, que começava com a aceitação dos ser humano de nenhuma propriedade sua ” .153 Em 1834, no ponto
poderes produtivos ampliados da energia a vapor e da fábrica. mais avançado do movimento owenista, uma “ Carta dos Direitos
O que estava em questão nâo era tanto a máquina, e sim a moti­ da Humanidade” declarava:
vação do lucro; não as dimensões da empresa industrial, mas o
controle do capital social por detrás. Os pequenos mestres-de-obras A atual propriedade de todos os indivíduos, adquirida e possuída
e operários de construção, que se indignavam com o repasse do pelos usos e práticas da velha sociedade, manter-se-á sagrada até
controle e da maior parcela dos lucros para os construtores ou que (...) não possa mais ter nenhum valor de uso ou de troca. . .154
empreiteiros, não julgavam que a solução fosse uma multidão de
pequenos empresários.150 Antes queriam que a cooperação das Era a viciosa fraqueza do owenismo. Mesmo o pequeno grupo
especialidades envolvidas na construção civil se refletisse num con­ de filantropos spenceanos, no final das guerras, conseguia enxergar
trole social cooperativo. É irônico que um movimento que por que o socialismo acarretava a expropriação dos grandes proprietá­
vezes se supõe ter retirado boa parte de sua força dos “petit- rios de terra. “ É infantil” , escrevera Spence em seu Restaurador
bourgeois” deva ter feito as tentativas mais sérias de nossa história da Sociedade para seu Estado Natural (1800):
para inaugurar novas formas de vida comunitária. “ Todo o fervor
e entusiasmo das primeiras Sociedades Cooperativas”, escreveu . . . esperar jamais ver novamente Pequenos Sítios, ou jamais ver
Holyoake muitos anos mais tarde, “girava (. . .) em torno da vida algo além da máxima extorsão e trituração dos pobres, até que se
comunal. Os ‘Socialistas' ( ...) esperavam fundar cidades industriais subverta totalmente o atual sistema de Propriedade Fundiária.
voluntárias, auto-suficientes, autogeridas, onde a riqueza criada
151. Ver S. Pollard, op. cit., p. 90.
149. Owen, op. cit., p. 269. 152. Economist, 11 de agosto de 1821.
150, Ver Postgate, op. cit., pp. 72-3. 153. A. E. Musson, op. cit., p. 126.
154. 0 ’Brien, op. cit., p. 437.
408
409
Pois eles entraram agora no espírito e poder de opressão mais sobre a importância da educação e da força dos condicionamentos
plenamcnte do que jamais sc soube antes. (.. .) Portanto, qualquer ambientais. Tinham aprendido, com Thompson e Anna Wheeler,
coisa que não seja a Destruição total do poder desses Sansões a sustentar novas reivindicações pelos direitos das mulheres. A
será inútil (...) nada menos que o Extermínio completo do atual partir de então, nada na sociedade capitalista parecia dado e ine­
sistema de domínio da Terra (...) trará algum dia o Mundo de
vitável, produto da lei “ natural” . Tudo isso vem expresso na
volta a um estado digno de se viver nele.
Ültima Vontade e Testamento de Henry Hetherington:
Foi isso o que suscitou a fúria específica dos dirigentes ingle­ São estas minhas idéias e sentimentos ao deixar uma vida que
ses, os quais conservaram o brando Thomas Evans, autor do foi atribulada com os incômodos e os prazeres de um sistema
Estado Cristão, por um ano sem julgamento, numa época em que competitivo, engalfinhante, egoísta; um sistema onde as aspirações
Lorde Sidmouth estava discutindo as propostas do esclarecido Sr. morais e sociais dos seres humanos mais nobres são anuladas pela
Owen. Naquele ano, um dos últimos spenceanos, um alfaiate de labuta incessante e pelas privações físicas; onde, na verdade,
cor chamado Robert Wedderburn, promoveu um pequeno jornal todos os homens são treinados para ser escravos, hipócritas ou
mal-imprensso, The ‘Forlorn Hope criminosos. Por isso meu ardente apego aos princípios daquele
grande e bom homem — ROBERT OWEN.
O Sr. Owen (...) vai descobrir que as classes inferiores estão
muito convencidas de que ele é um instrumento dos proprietários
de terra e Ministros.. 155 V. “ Uma Espécie de M áquina”

Os spenceanos e velhos radicais de 1817 mostraram-se equi­ “ O dano efetivo que esses dois homens [Owen e Hodgskin]
vocados em sua avaliação de Owen, e a preocupação de Spence causaram em alguns aspectos é incalculável”, observou Francis
e Evans com o socialismo agrário não se adequava à Inglaterra Place.156 O “ dano” se inscreve entre os anos 1831-5. E, neste ponto,
industrial. Mas os spenceanos pelo menos dispuseram-se a colocar alcançamos os limites deste estudo, pois num certo sentido a classe
os problemas de propriedade e poder de classe. operária não está mais no seu fazer-se, mas já foi feita. Transpor
Foi por ter se recusado a encarar de frente ambos os proble­ o limiar de 1832 para 1833 é entrar num mundo onde a presença
mas que Owen pôde se manter totalmente indiferente ao radica­ operária pode ser sentida em todos os condados da Inglaterra e
lismo político, e conduzir o movimento muitas vezes por caminhos na maioria dos âmbitos da vida.
ilusórios. Durante anos, o movimento cooperativo continuou com A nova consciência de classe dos trabalhadores pode ser vista
essa coexistência de filantropos e radicais operários. Em 1832, po­ de dois aspectos. De um lado, havia uma consciência da identi­
rém, homens como Hetherington, 0 ’Brien e James Watson tinham dade de interesses entre trabalhadores das mais diversas profissões
ênfase completamente diferentes, e vinham rejeitando a posição de
e níveis de realização, encarnada em muitas formas institucionais e
Owen de descartar todos os meios políticos. O owenismo sempre
expressa, numa escala sem precedentes, no sindicalismo geral de
foi para eles uma influência forte e construtiva. Com ele, tinham
aprendido a ver o capitalismo não como uma coleção de fatos 1830-34. Essa consciência e essas instituições só se encontrariam
isolados, mas como um sistema. Tinham aprendido a projetar um em forma fragmentária na Inglaterra de 1780.
sistema de mutualismo alternativo e utópico. Tinham ultrapassado Por outro lado, havia uma consciência da identidade dos inte­
a nostalgia de Cobbett por um mundo mais antigo e adquirido a resses da classe operária, ou “ classes produtivas”, enquanto con­
confiança de planejar o novo. Tinham ganho uma compreensão trários aos de outras classes; dentro dela, vinha amadurecendo a
reivindicação de um sistema alternativo. Mas a definição final dessa
155. The ‘Forlorn Hope', or a Call to the Supine, 4 e 11 de outubro
de 1817. 156. Add. MSS. 27.791, f. 270.

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consciência de classe era conseqüência, em grande parte, da reação A forma sistemática como procedeu o povo, sua perseverança fir­
me, sua atividade e habilidade assombraram os inimigos da refor­
da classe média à força operária. A linha foi traçada, com extremo
ma. Reuniões de quase todos os tipos de gente realizavam-se em
cuidado, nas habilitações do direito de voto de 1832. Característica cidades, vilas e paróquias; por oficiais artífices em seus clubes
singular do desenvolvimento inglês foi que, onde esperaríamos e por trabalhadores comuns que não tinham nenhuma espécie dc
encontrar um crescente movimento de classe média pela reforma, grêmio ou associação de ofício...
com uma rabeira operária, só mais tarde seguido por uma agitação
independente da classe operária, o processo de fato inverteu-se.
Assim escreveu Place sobre o outono de 1830, acrescentando
O exemplo da Revolução Francesa iniciara três processos simultâ­
(sobre fevereiro de 1831):
neos: uma reação contra-revolucionária despertada por pânico, da
parte da aristocracia fundiária e comercial; um recuo por parte da
.. .mas não existia sequer a menor comunicação entre os locais
burguesia industrial e uma acomodação (em termos favoráveis) ao da mesma região; cada parcela do povo parecia entender o que
status cfuo; e uma rápida radicalização do movimento popular pela devia ser feito.. .157
reforma, a ponto de os quadros jacobinos suficientemente rijos para
sobreviver às Guerras serem, em sua maioria, pequenos mestres,
“ A grande maioria” dos que compareciam às crescentes mani­
artesãos, malharistas e cortadores de tecido, e outros trabalhadores.
festações, lamentou a Grey, em março de 1831, o Secretário par­
Os vinte e cinco anos após 1795 podem ser vistos como os anos
ticular do Rei, “é da mais baixa classe”. As enormes manifesta­
da longa contra-revolução; por conseguinte, o movimento radical ções, que chegaram a 100.000 pessoas em Birmingham e Londres
manteve um caráter largamente operário, tendo como teoria um no outono de 1831 e maio de 1832, eram esmagadoramente com­
populismo democrático avançado. Mas a vitória de um tal movi­ postas de artesãos e trabalhadores .158
mento dificilmente seria bem-recebida pelos donos de fábricas,
“ Não provocamos a excitação sobre a reforma” , escreveu Grey
donos de fundições e manufatureiros. Por isso a ideologia parti­
de modo um pouco impertinente ao Rei, em março de 1831:
cularmente repressiva e antiigualitária das classes médias inglesas “ Encontramo-la em plena força quando assumimos o cargo” . E,
(Godwin cedendo espaço a Bentham, Bentham cedendo espaço a sob outro ângulo, podemos ver por que, durante esses meses de
Malthus, M’Culloch e dr. Ure, e estes dando origem a Baines, crise, uma revolução seria realmente improvável. Pode-se encontrar
Macaulay e Edwin Chadwick). Por isso também o fato de que a a razão disso na própria força do movimento radical operário; a
mais branda medida de reforma, para corrigir as evidentes irracio- habilidade com que os líderes de classe média, Brougham, The
nalidades da Velha Corrupção, foi realmente adiada, de um lado, Times, o Leeds Mercury ao mesmo tempo usaram essa ameaça da
pela resistência da antiga ordem e, de outro, pela timidez dos força operária e negociaram uma linha de retirada aceitável por
manufatureiros. todos, exceto pelos defensores mais reacionários do ancien régime;
e a consciência, por parte dos Whigs e dos Tories menos intransi­
A crise do Projeto de Lei da Reforma de 1832 — ou, para
gentes, de que, embora Brougham e Baines só estivessem-nos chan-
ser mais exato, as sucessivas crises desde o início de 1831 até os
tageando, mesmo assim os reformadores de classe média, se não se
“ dias de Maio” em 1832 — ilustra essas teses em praticamente
chegasse a um compromisso, não seriam capazes de manter sob
todos os pontos. A agitação surgiu do “ povo” e rapidamente apre­
controle, por mais tempo, a agitação às suas costas.
sentou o mais surpreendente consenso de opinião sobre a necessi­
dade imperiosa da “ reforma”. Vista de um certo ângulo, a Ingla­ A burguesia industrial desejava, de corpo e alma, que não
terra vinha passando, sem dúvida alguma, por uma crise onde, ocorresse uma revolução, visto saberem que, no mesmo dia em
naqueles doze meses, era possível uma revolução. A rapidez com
que a agitação se estendeu mostra até que ponto a experiência em 157. Add. MSS. 27.789. Para um exemplo dessa facilidade de organi­
todos os tipos de agitação constitucional e semi legal estava pre­ zação espontânea, ver Prentice, op. cit., pp. 408-10.
sente entre o povo: 158. Ver Jephson, T h e P la tfo r m , II, cap. 15.

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que se iniciasse, haveria um processo agudo de radicalização, onde Tories pretenderam superá-los em astúcia, incentivando o movi­
líderes huntistas, sindicalistas e owenistas granjeariam um apoio mento reformador operário independente a se dispor de uma forma
crescente em praticamente todos os centros industriais. “ Ameaças tão alarmante que levasse Brougham e Baines a correr para a
de uma ‘revolução’ são empregadas pelas classes médias e pequenos Velha Corrupção, em busca de proteção. Quando a União Nacional
patrões” , escreveu o Poor Mcm’s Guardian. Mas: das Classes Trabalhadoras propôs convocar uma manifestação em
Londres pelo sufrágio masculino, contra o Projeto de Lei Whig
uma revolução violenta não só está além dos meios dos que a
ameaçam, como também é para eles seu maior objeto de temor; da Reforma, o próprio Rei escreveu (4 de novembro de 1831):
pois sabem que uma tal revolução só pode ser efetuada pelos A Sua Majestade não desagrada absolutamente que as medidas
milhões de pobres e desprezados, os quais, se levados a este pretendidas pela reunião em questão sejam tão violentas, e (...)
passo, usá-lo-iam para proveito próprio, e proveito daqueles mes­ objetáveis, pois confia que a manifestação de tais intenções e tais
mos que assim (...) veríam em risco seus caros direitos de propósitos pode conceder a oportunidade (...) de refrear o avanço
propriedade: estejam certos de que uma revolução violenta é o seu das Uniões Políticas.. ,161
maior pavor. . .159
Por todo o país, os reformadores operários e de classe média
Os reformadores de classe média lutaram habilmente em manobravam para conseguir o controle do movimento. Nos primei­
ambas as frentes. De um lado, The Times se apresentou como o ros estágios, até o verão de 1831, os radicais de classe média leva­
efetivo organizador da agitação de massa: “ Confiamos que não há ram vantagem. Sete anos antes, Wooler fechara o Black Dwarf
um condado, uma vila ou aldeia no Reino Unido que não vá se com um Discurso final tristemente desiludido. Não existia (em
reunir e fazer petições por uma reforma. . .” Até chegou a cobrar 1824) nenhum “ público devotadamente aferrado à causa da reforma
do povo “o solene dever de se formarem em sociedades políticas parlamentar”. Onde outrora centenas e milhares tinham clamado
por todo o reino” . Defendeu como Edward Baines em Leeds, frente por reforma, agora lhe parecia que tinham apenas “clamado por
a multidões aos vivas, medidas que apontavam diretamente para pão” ; os oradores e jornalistas de 1816-20 tinham sido apenas
a revolução: corrida aos Bancos, recusa de pagar impostos e arma­ “bolhas erguidas na fermentação da sociedade” .162 Muitos dos
mento de membros de Uniões Políticas. Por outro lado, os motins líderes operários do final dos anos 1820 partilhavam de sua desi­
em Nottingham, Derby e Bristol, em outubro de 1831, ressaltaram lusão, e aceitaram a postura antipolítica do seu mestre Owen. Foi
a função dupla das Uniões Políticas ao molde birminghamiano: somente no verão de 1830, com a “ revolta” dos diaristas rurais e a
Revolução de Julho na França, que a corrente do interesse popular
Essas Uniões destinavam-se à promoção da causa da reforma, à
proteção da vida e propriedade contra as violências particulariza- começou a voltar para a agitação política. E daí por diante a
das mas irregulares da turba, bem como à preservação de outros resistência desesperada, insanamente obstinada dos reacionários
grandes interesses contra as violências sistemáticas de uma oli­ (o Duque de Wellington, os Lordes, os Bispos) a qualquer medida
garquia. . .16° de reforma ditou uma estratégia (explorada ao máximo pelos radi­
cais de classe média) que levou a agitação popular a se pôr
Esses incendiários de classe média traziam em suas mochilas atrás de Grey e Russell, em apoio a um Projeto de Lei com o qual
uma insígnia de polícia especial. Em certas ocasiões, os próprios a maioria não tinha nada a ganhar.
Assim estava rompida a configuração de forças de 1816-20
(e, na verdade, de 1791-4) onde a demanda popular pela reforma
159. Outubro de 1831.
160. The Times, l.° dc dezembro de 1830, 27 de outubro de 1931; ver
lephson, op. cit., 11, pp. 69, 107. Durante os motins de Bristol, as autori­ 161. Citado em fephson, op. cit., II, p. 111. A manifestação da União
dades foram obrigadas a chamar os líderes da União Política de Bristol Nacional, de fato, foi declarada sediciosa e proibida. Era um risco dema­
para restaurar a ordem. Ver Bristol Mercury, l.° de novembro de 1831; siado para ser assumido.
Prentice. op. cit.. p. 401. 162. Discurso final, em prefácio ao Black Dwarf, XII (1824).

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se identificava com a plataforma do Major Cartwright pelo sufrágio um mês, ao longo da qual as classes produtivas assumiríam o
masculino. “ Se alguém supõe que esta Reforma levará a medidas controle sobre o Governo e os recursos da nação .165 Os debates gira­
posteriores” , declarou Grey na Câmara em novembro de 1831: vam cada vez mais em torno da definição de classe. William Car-
penter, que dividia com Hetherington a honra de ter iniciado a
está enganado; pois não existe ninguém mais decidido que eu luta pela imprensa “ não-franqueada”, apresentava uma opinião
contra parlamentos anuais, sufrágio universal e voto secreto. Meu divergente. O Projeto de Lei Whig devia ser apoiado enquanto
objetivo é não favorecer, mas pôr um fim a tais esperanças e “ cunha” . Lamentava que o Poor Maris Guardian empregasse as
projetos. palavras “ intermediários” (middlemeri) e “ classes médias” (middle
classes) como “termos conversíveis” , enquanto que as classes mé­
Isso era visto de modo bastante claro pelos radicais mais dias “ não só não são uma classe de pessoas com interesses diferentes
velhos, cujos eloqüentes porta-vozes extravasaram, em sua maioria, dos de vocês próprios. São a mesma classe; são, genericamente
profundo desdém pelo Projeto de Lei Whig até os últimos “ dias de falando, homens trabalhadores ou labutadores” ,166 A discussão se
maio” . “ Não lhe importava’’, declarou um radical de Macclesfield, prolongou durante toda a crise. Depois de aprovado o Projeto de
“se era governado por um mercadejador de burgos, um traficante Lei, o Poor Maris Guardian apresentou sua conclusão:
de putas ou um negociante de queijos, enquanto o sistema de
monopólio e corrupção ainda se mantivesse’*.163 Hunt, de sua Os promotores do Projeto de Lei da Reforma elaboraram-no não
cadeira como Membro por Preston (1830-32), sustentou as mesmas com vistas a subverter, ou sequer remodelar nossas instituições
proposições, numa linguagem apenas ligeiramente mais decorosa. aristocráticas, mas consolidá-las com um reforço da subaristo-
George Edmonds, o espirituoso e corajoso mestre-escola radical cracia a partir das classes médias. (...) A única diferença entre
que presidira à primeira grande manifestação pós-guerra em Newhall os Whigs e os Tories é esta — os Whigs renunciariam à imagem
Hill (janeiro de 1817), declarou: para preservar o conteúdo; os Tories não renunciariam à imagem,
porque, estúpidas como são, as massas de milhões não se deterão
Não sou dono de uma casa. — Posso sob pressão, ser dono de em imagens, mas dirigem-se a realidades.167
um mosquete. O nada-além-do-Projeto-de-Lei não reconhece Geor­
ge Edmonds como cidadão! — George Edmonds desdenha o nada- É problemático o grau em que os owenistas da Rotunda re­
além-do-Projeto-de-Lei, exceto quando é o corta-primeiro do La­ presentavam qualquer corpo massivo da opinião operária. Começa­
drão Nacional.164 ram representando apenas a intelligentsia dos artesãos. Mas, muito
rapidamente, ganharam influência; em outubro de 1831, eram
Era a posição também da elite dos artesãos radicais de Londres, capazes de organizar uma manifestação massiva, talvez com 70.000
alistados na União Nacional das Classes Trabalhadoras e Outras, pessoas, muitas trazendo lenços brancos ao pescoço, símbolo do
cujos debates semanais na Rotunda, em 1831 e 1832, foram apre­ sufrágio masculino; talvez tenham reunido 100.000 pessoas em
sentados no Poor Maris Guardian — inquestionavelmente o melhor suas manifestações contra o Jejum Nacional em março de 1832.
semanário operário que fora (até então) publicado na Inglaterra. Os Place julgava que os rotundistas (muitos dos quais descreveu como
debates eram assistidos pelo próprio Hetherington (quando não “ atrozes”) constituíam a maior das ameaças à estratégia de classe
estava na prisão), William Lovett, James Watson, John Gast, o
brilhante e malfadado Julian Hibbert e o velho William Benbow
(antigo colega de Bamford e Mitchell), agora insistindo em sua 165. V e r A . ). C. R ü tt e r , “Benbows Grand National Holiday’, I n te r n a ­
proposta de um “ Grande Feriado Nacional’’, uma greve geral por tio n a l R e v ie w o f S o c ia l H is to r y (Lciden, 1936), I, pp. 217 ss.
166. W. Carpenter, A n A d d r e s s to th e W ir k in g C la sses o n th e R e fo r m
B ill (outubro de 1831). Ver também a discussão que se seguiu no P o o r
163. P o o r M a r is G u a r d ia n , 10 de dezembro de 1831. M a r is G u a r d ia n .
164. G. Edmonds, T h e E n g lish R e v o lu tio n (1831), p. 5. Edmonds con­ 167. P o o r M a r is G u a r d ia n , 25 de outubro de 1832: ver A. Briggs. T h e
tinuou a desempenhar papel ativo no movimento cartista. A g e o f I m p r o v e m e n t, p. 258.

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média, e grande parte de sua história manuscrita sobre a crise do quartos alugados, que podiam atear fogo em Londres sem nenhuma
Projeto de Lei da Reforma (na qual os historiadores depositaram preocupação com seres indefesos no lar” :
excessiva confiança) é dedicada às manobras inescrupulosas com
que procurou limitar a influência deles e substituí-la pela da sua De modo que são antes corteses do que rudes; mas toque no
rival União Política Nacional. O próprio Duque de Wellington ponto sensível de um deles — diga apenas que você considera
via a disputa como um combate entre o Establishment e a Rotunda, indispensável o estímulo da concorrência para a produção da
que comparava a dois exércitos “en présence”. Sua mente militar riqueza; e ele se afastará de você com desdém, ou (...) lhe dirá,
viu-se muito confundida ao refletir que não poderia pôr nenhum com olhos faiscantes, que você é pago pelo Governo para dizer
rio entre os exércitos, com as sentinelas e vigias apropriadas nas disparates. O que os irrita, até mais do que uma firme oposição,
pontes. O inimigo estava instalado em pontos sensíveis dentro do é qualquer coisa que se assemelhe a um compromisso.
seu próprio acampamento .168
A procissão de outubro de 1831, porém, compôs-se principal­ Muitos, dizia ele (com certa verdade), “ contam com armas” :
mente (ao que parece) de “ donos de oficinas e artesãos de nível
superior” . E, embora os números anunciados fossem impressionan­ Se viesse a ocorrer uma insurreição do populacho londrino, eles
se encontrarão nos postos mais perigosos, liderando os ladrões e a
tes, mal se comparam às manifestações até maiores em Birmingham,
ralé, indicando as medidas mais eficazes e morrendo, se lhes
formadas a partir de uma população menor. Parecería que, embora couber a sorte, com gritos de desafio.
os artesãos londrinos finalmente tivessem conseguido construir uma
liderança coesa e altamente articulada, continuava a existir um
“ Serão estes os combatentes de nossa revolução, se precisarmos
grande fosso entre eles e a massa dos diaristas e trabalhadores
ter alguma.” 169
em ofícios desonrosos de Londres. (Esse problema viría a se repetir
constantemente na história do cartismo londrino). A situação foi O retrato é exagerado, mas não totalmente isento de verdade .170
caricaturada por Edward Gibbon Wakefield nas páginas de um O perigo, do ponto de vista da autoridade (fosse Whig ou Tory),
panfleto grosseiro e alarmista. Ele via os rotundistas como “ Despe- estava numa possível convergência entre os socialistas artesãos e as
rados” e idealistas, cujo perigo residia no fato de poderem liberar “classes criminosas”. Mas as massas não-qualifiçadas de Londres
as energias destrutivas das classes criminosas, “os ilotas da socie­ moravam num mundo que não era o dos artesãos — um mundo de
dade”, apinhados nas aléias e alamedas que saíam da Orchard extrema miséria, analfabetismo, desmoralização muito generalizada
e doenças, agudizadas com a epidemia de cólera no inverno de
Street, Westminster ou Whitechapel. Lá estavam os milhares de
apolíticos (mas perigosos) “ carroceiros de frutas e verduras, tro­ 1831-2. Aqui temos todos os problemas clássicos, a insegurança
precária, de uma cidade metropolitana inchada com imigrantes num
peiros, abatedores de gado, compradores de refugos e carcaças,
período de rápido crescimento populacional.171
comerciantes de cadáveres e carne de cachorro, trambiqueiros,
tijoleiros, limpadores de chaminé, trabalhadores noturnos, varredo­
res de rua &c.” Sua atitude para com os socialistas owcnistas da 169. E. G. Wakefield, H o u s e h o ld e r s in D a n g e r jr o m th e P o p u la c e (s/d,
Rotunda era ambígua. De um lado, eram em sua maioria “homens outubro de 1831?).
sóbrios, que se sustentam pelo trabalho” — homens claramente 170. Enquanto Lovett e seu círculo acreditavam no máximo de pressão
distintos, por dotes superiores, dos das classes perigosas. Por outro sem o recurso à força física (e mantinham algumas relações com Place),
outros, inclusive Benbow e Hibbert, vinham se preparando para uma luta
lado, muitos eram “ solteiros desregrados vivendo aqui e ali em armada.
171. É interessante especular até que ponto as freqüentes declarações de
Place sobre o aperfeiçoamento nas maneiras e costumes morais do popu­
168. Ver J. R. M. Butler, T h e P a ssin g o f th e G r e a i R e f o r m B ill (1914), lacho londrino expressavam a verdade, ou simplesmente o abismo crescente
pp. 292-3, 350; Add. MSS. 27.791 f. 51; Memorando sobre "Medidas a entre os artesãos e os não-qualificados, o estreitamento do próprio círculo
serem tomadas para pôr um Fim às Reuniões Sediciosas na Rotunda". de experiência de Place e o deslocamento da pobreza para fora do centro
W e llin g to n D is p a tc h e s , segunda série (1878), VII, p. 353. de Londres, para leste e sul. Sobre todo o problema do crescimento e

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Os não-qualificados não tinham porta-vozes nem organizações oficiais eram igualmente afetados .173 Assim, o antagonismo de
(afora as sociedades de amigos). Eram capazes de seguir a liderança classe era mais abafado do que em Manchester, Newcastle e Leeds.
tanto de um fidalgo como de um artesão. E, no entanto, a gravidade Durante toda a crise do Projeto de Lei da Reforma, Attwood
da crise política que se abriu em outubro de 1831 bastou para controlou a União de Birmingham com “ tais mostras de boa dis­
romper a crosta de fatalismo, submissão e necessidade em que posição” (lembrava 0 ’Brien mais tarde) “que os trabalhadores de
estavam encerradas suas vidas. Os motins daquele mês em Derby, Birmingham, tolos e espalhafatosos, pareciam acreditar de fato que
o saque ao Castelo de Nottingham, os grandes motins em Bristol estariam potencialmente, ainda que não realmente, representados
— tudo indicava um profundo distúrbio nas bases da sociedade, ao no parlamento 'reformado' ”. E, numa homenagem impressionante
qual os observadores esperavam ansiosamente seguir-se a sublevação a partir de uma crítica tão impiedosa, 0 ’Brien acrescentou:
do East End londrino.
A União Política de Birmingham era um modelo aceitável, A esta entidade, mais do que a qualquer outra, deve-se reconheci­
que o próprio The Times poderia recomendar, pois o contexto damente a vitória (tal como foi) do Projeto de Lei da Reforma
industrial local favorecia um movimento reformador das massas Seus procedimentos ordeiros, ampla organização e imensas reuniões
que ainda se mantinha sob sólido controle da classe média. A de gente, em períodos críticos do seu andamento, tornaram a
história do radicalismo de Birmingham é significativamente dife­ medida inevitável.174
rente da do centro-norte e norte Não havia base para o luddismo
em suas indústrias de pequena escala, e o “ pai” das Uniões Políticas. Em centros como Leeds, Manchester e Nottingham, a posição
Thomas Attwood, ganhou destaque público pela primeira vez dos reformadores de classe média era muito mais incômoda. Em
quando liderou, em 1812, uma agitação unida dos mestres e artesãos Manchester (como em Londres), coexistiam Uniões políticas rivais,
contra o Conselho das Ordens. Inquestionavelmente existiram gru­ e de outubro de 1831 em diante a União pelo sufrágio universal
pos de radicais da “ força física” na Região Negra entre 1817 c tomou a dianteira. Em Bolton, no mesmo mês, a rejeição do Projeto
1820, mas — por sorte ou juízo — nunca foram expostos por pela Câmara dos Lordes resultou numa divisão da União Política,
nenhum movimento abortado, como nos casos de Pentridge e e a seção majoritária (a do sufrágio masculino) organizou uma
Grange Moor.172 Conforme mostrou o professor Briggs, Thomas
manifestação, com 6.000 pessoas, com as bandeiras: “Abaixo os
Attwood foi capaz, em 1830, de “ harmonizar e unir” os diversos
Bispos!” , “ Não aos Pares ” .175 Nas Midlands e no norte, esses inci­
“materiais de descontentes” porque a Revolução Industrial em
dentes repetiram-se dezenas de vezes. “ Entre em qualquer alameda
Birmingham tinha “ multiplicado o número de unidades produtivas,
ou tavema onde esteja reunido um número de trabalhadores”,
sem tanto acrescentar à escala das empresas existentes”. Foi pouco
o trabalho qualificado substituído pela maquinaria; as inúmeras escreveu Doherty em janeiro de 1832:
pequenas oficinas indicavam que a inclinação social formava de­
clives menos abruptos, e o artesão ainda podia ascender à posição 173. Ver a crítica acerba de Cobbett: “Vocês imaginam que os gran­
de pequeno mestre; em períodos de recessão econômica, mestres e des manufatureiros. e comerciantes, e banqueiros estão gritando por RE­
FORMA, porque foram convertidos a um amor pelos direitos popularesl
Bah! (...) [Causas financeiras] fizeram com que aumentassem os salários;
estes eles não podem pagar, e ainda pagar também dízimos e impostos.
desmoralização (e seu fundamento “biológico”), ver L. Chevalier, Classes (...) Portanto, são eles reformadores; portanto, lançam seus braços robus­
Laborieuses et Classes Dangereuses à Paris Pendant La Prémière Moitié Du tos ao colo da Deusa": Political Register, 17 de outubro de 1831.
XlXème Siècle (Paris, 1958), que sugere muitas novas linhas de pesquisa 174. Destructive, 2 de fevereiro e 9 de março de 1833; A. Briggs, “The
sobre as condições londrinas. Background of the Parliamentary Reform Movement in Three English
172. ê difícil não levar em conta o relato circunstanciado de Olivcr Cities", Carnb. Hist. Journal, 1952, p. 293, e The Age of Improvement.
sobre os acordos de Birmingham (narrativa em H. O. 40.9). Ver também p. 247.
evidências em H. O. 40.3 e 6 . 175. W. Brimelow, Political History of Boston (1882). I. p. 111.

420 421
e ouça a conversa por dez minutos (...) Em pelo menos sete de evidenciada em comentários como este (sobre a União Nacional das
dez casos, os temas de discussão se mostrarão centrados na aterra­ Classes Trabalhadoras):
dora questão: vale mais a pena atacar as vidas ou as propriedades
dos ricos?176 . . . desagradou a pessoas sensatas (...) com sua tolice arrogante,
como quando a seção de Bethnal Green fez uma petição ao Rei
Na verdade, no inverno de 1831-2, o ridículo, que desceu para abolir a Câmara dos Lordes, ou quando a seção de Finsbury
como uma torrente sobre o Projeto e seus concomitantes trabalhos pressionou a Câmara dos Comuns para confiscar as propriedades
no Poor Man’s Guardian, assume um ar um tanto acadêmico. Sem dos 199 pares.. .l79
dúvida, os rotundistas tinham razão em considerar o Projeto de Lei
como uma armadilha (e uma traição do movimento radical). Mas Ê necessária alguma avaliação menos complacente. O fato de
a obstinação quase neolítica com que a Velha Corrupção resistia a não ter ocorrido uma revolução deveu-se em parte ao profundo
qualquer reforma levou a uma situação onde a nação avançou, com constitucionalismo daquela parcela da tradição radical,180 cujo
rapidez e sem premeditação, até o limiar da revolução. Tardia­ porta-voz era Cobbett (insistindo na aceitação do antes-pouco-do-
mente, o Poor Marís Guardian adaptou sua tática, publicando que-nada), e em parte à habilidade dos radicais de classe média em
como suplemento especial excertos das Instruções de Defesa para oferecer exatamente aquele compromisso que poderia não enfra­
o Povo (um manual sobre combate de rua) do Coronel Macerone.177 quecer, e sim fortalecer tanto o Estado como os direitos de proprie­
Durante os “onze dias dc apreensão e torvelinho da Inglaterra” dade contra a ameaça operária.
que precederam a aprovação final do Projeto de Lei na Câmara
dos Lordes, em maio, Francis Place prendeu a respiração. No fim Os líderes Whig se viam com o papel de encontrar a forma
do dia em que foi aprovado, voltou para casa e anotou: de “ aderir muitos à propriedade e à boa ordem”. “ É de máxima
importância” , disse Grey, “ associar as ordens médias às superiores
Estivemos a um passo da rebelião geral, e se tivesse sido possível da sociedade no amor e na defesa das instituições e governo do
ao Duque de Wellington formar um ministério a Assembléia e o país ” .181 O extremo cuidado com que foi traçada essa linha fica
povo teriam se posto em questão. patente com um levantamento feito por Baines em 1831, para
descobrir “o número e a respeitabilidade dos chefes de família na
Teria havido “ Barricada nas cidades principais — interrom­ faixa de 10 libras em Leeds”. Os resultados foram comunicados
pendo a circulação do papel-moeda” ; se tivesse começado uma ao Lorde John Russell, numa carta que deve ser considerada como
revolução, “ teria sido a ação de todo o povo a uma extensão maior um dos documentos clássicos da crise do Projeto de Lei da Reforma.
do que qualquer outra jamais antes realizada ” .178 Os investigadores de Baines, como pioneiros de um psefógrafo:
No outono de 1831 e nos “dias de maio”, a Grã-Bretanha ficou declararam unanimemente que a habilitação de 10 libras não
a um triz de uma revolução que, uma vez iniciada, bem poderia admitia ao exercício do voto eletivo uma única pessoa que não
(se levarmos em conta o avanço simultâneo na teoria cooperativa
e sindical) ter prefigurado, em sua rápida radicalização, as revo­
luções de 1848 e a Comuna de Paris. A Aprovação do Grande 179. Butler, op. cit., p. 303.
180. Ver o comentário de Gladstone: “Preguei um sermão a um tra­
Projeto de Lei da Reforma, de J. R. M. Butler, dá-nos uma idéia da balhador (...) no texto estabelecido, reforma era revolução (...) Eu disse:
magnitude da crise; mas seu estudo sai enfraquecido por uma ‘Ora, veja as revoluções em países estrangeiros', querendo dizer evidente­
consciência insuficiente da abertura potencial de toda a situação, mente França e Bélgica. O homem me olhou duro e disse (...) ‘Danem-se
todos os países estrangeiros, o que tem a velha Inglaterra a ver com países
estrangeiros’. Não foi a única vez que recebi uma lição importante de
176. Poor Mans Advocate, 21 de janeiro de 1832. uma fonte humilde". J. Morley, Life of Gladstone (1908). I. p. 54.
177. Poor Mans Guardian, 11 de abril de 1832. 181. Ver A. Briggs, "The Language of ‘Class’ in Early Nineteenth-Cen-
178. Add. MSS. 27.795 ff. 26-7. tury England", op. cit., p. 56.

422 42 3
pudesse tranquila e prudentemente ter esse direito: que ficaram e o dinheiro, que se tornou uma configuração duradoura da socie­
surpresos ao descobrir quão relativamente poucos estariam auto­ dade inglesa. Nos estandartes de Baines e Cobden não estavam
rizados a votar. égalité e liberté (muito menos fraternité), mas “ Livre Comércio” e
“ Austeridade Econômica”. A retórica de Brougham era a da pro­
Em resposta à pergunta de Russell sobre a proporção em que priedade, segurança, interesse. “ Se existe uma turba”, disse Brou-
os chefes de família na faixa de 10 libras se encontravam com o gham em seu discurso sobre a segunda leitura do Projeto da
resto da população, os investigadores informaram: Reforma:
. . . nas áreas ocupadas principalmente pelas classes trabalhadoras,
existe também o povo. Falo agora das classes médias — daquelas
nem um chefe de família entre cinqüenta poderia votar. Nas ruas
centenas de milhares de pessoas respeitáveis — a ordem mais
ocupadas principalmente por lojas, quase todos os chefes de
família tinham voto. (...) No município de Holbeck, com 11.000 numerosa e de longe a mais rica da comunidade, pois se todos
habitantes, principalmente das classes trabalhadoras, mas contando os castelos, domínios senhoriais, direitos de coelheiras e direitos
com diversas fábricas, tinturarias, tavernas e residências respeitá­ de coutadas, com todos os seus extensos hectares, de vossas
veis, existem apenas 150 votantes. (...) Entre 140 chefes de Senhorias fossem levados a leilão e vendidos a um rendimento
família, trabalhando na fábrica dos Srs. Marshall e Cia., são anual durante cinqüenta anos, o preço levantaria voo e bateria no
apenas dois que terão voto. (...) Entre 160 ou 170 chefes de braço da balança com o contrapeso das vastas e sólidas riquezas
família na fábrica dos Srs. O. Willan e Filhos, Holbeck, não há dessas classes médias, que são também as autênticas depositárias
nenhum voto. Entre cerca de 100 chefes de família empregados do sentimento inglês sóbrio, racional, inteligente e honesto. (...)
dos Srs. Taylor e Wordsworth, fabricantes de máquinas — a Despertem, rogo-lhes, não um povo amante da paz, mas um povo
categoria mais elevada dos mecânicos —, apenas um tem voto. resoluto. (...) Como amigo de vossas Senhorias, como amigo da
Ficou evidente que, das classes trabalhadoras, não mais que um
minha ordem, como amigo do meu país, como fiel servidor do meu
em cinqüenta rcceberia o direito de voto pelo Projeto de Lei.
soberano, aconselho-os a colaborar com seus máximos esforços
na preservação da paz, e na defesa e perpetuação da Constitui­
Mesmo essa estimativa viria a se mostrar excessiva. Relatórios ção. . .184
enviados ao Governo em maio de 1832 mostraram que, em Leeds
(população: 124.000), 355 “ trabalhadores” seriam admitidos ao Despidas de sua retórica, as reivindicações dos radicais de
direito de voto, dentre os quais 143 “ são funcionários encarregados classe média foram expressas por Baines, quando aprovado o
de armazéns, supervisores &c.” Os 212 restantes estavam num Projeto:
status privilegiado, ganhando de 30 a 40 xelins por semana .182
Tais levantamentos certamente tranqüilizaram o Gabinete, Os frutos da Reforma devem ser colhidos. Enormes monopólios
que estivera pensando em aumentar a habilitação ao voto de 10 comerciais e agrícolas devem ser abolidos. A Igreja deve ser
para 15 libras. “ O grande conjunto do povo”, escreveu Place, reformada. (...) Corporações fechadas devem ser abertas. A
“estava certo de que os Projetos de Lei da Reforma seriam apro­ austeridade e poupança devem ser impostas. Os grilhões do Escravo
vados pelo Parlamento, ou, se fossem rejeitados, eles [o povo] devem ser rompidos.185
obteriam, pela sua força física, muito mais do que continham os
projetos. . . ” 183 Foi a ameaça desse “ muito mais” que pesou sobre As reivindicações do radicalismo operário eram formuladas
Tories e Whigs em 1832, e que permitiu aquele acomodamento de modo menos claro. Pode-se citar um programa político mínimo
entre a riqueza fundiária e a riqueza industrial, entre o privilégio a partir do manifesto do Republican de Hetherington:

182. Baines, -Life o/ Edward Baines, pp. 157-9. 184. Ver J. R. M. Butler, op. cit., pp. 284-5.
183. Add. MSS. 27.790 185. Baines, op. cit., p. 167.

424 42 5
Extirpação da Demoníaca Aristocracia; Instituição de uma Repú­
seus lados entre as “ duas nações”. Ê uma questão de honra terem
blica. isto é, uma Democracia Representativa eleita por Sufrágio
existido muitos indivíduos que preferiram ser conhecidos como
Universal; Extinção de cargos, títulos e distinções hereditários;
Abolição da (. . .) lei de primogenitura; (. . .) Administração rápida cartistas ou republicanos, em vez de polícias especiais. Mas esses
e barata da justiça: Abolição das Leis de Caça; Revogação dos homens — Wakley, Frost de Newport, Duncombe, Dastler, Emest
diabólicos impostos sobre (ornais (...); emancipação dos nossos Jones, John Fielden, W. P. Robcrts e até Ruskin e William Morris
companheiros-cidadãos (udeus; Introdução das Leis dos Pobres — sempre foram indivíduos ou “ vozes” intelectuais descontentes.
na Irlanda; Abolição da Pena de Morte para delitos contra a Não representam, em sentido algum, a ideologia da classe média
propriedade; Apropriação das Rendas dos “ Pais em Deus”, os O que Edward Baines fizera, em sua correspondência com
Bispos para a manutenção dos Pobres; Abolição dos Dízimos; Russell, fora oferecer uma definição de classe de exatidão quase
Pagamento de cada Padre ou Ministro pela sua Seita; A “Dívida matemática. Em 1832, com as habilitações ao voto foi traçada a linha
Nacional” não a dívida da Nação; Desmontagem da Máquina do
na consciência social, com a crueza de uma tinta indelével. Além
Despotismo, os Soldados; Instituição de uma Guarda Nacional.
disso, esses anos também encontraram um teórico de envergadura
para definir a situação operária. Revela-se quase inevitável que
É o velho programa do jacobinismo, com pouco desenvolvi­ tenha sido um intelectual irlandês, unindo em si um ódio aos Whigs
mento desde os anos 1790. (O primeiro princípio de uma declaração ingleses e a experiência do ultra-radicalismo inglês e do socialismo
da União Nacional, redigida por Lovett e James Watson em no­ owenista. (ames “ Bronterre” CTBrien (1805-64), filho de um
vembro de 1831, era: “ Que toda propriedade (honestamente adqui­ comerciante de vinhos irlandês e destacado aluno do Trinity College,
rida) seja sagrada e inviolável” .)186 Mas, em tomo desse “muito em Dublin, chegou a Londres em 1829 “para estudar Direito e
mais” , acresciam outras reivindicações, segundo os principais agra­ Reforma Radical” :
vos em diferentes distritos e indústrias. Em Lancashire, Doherty e
seus adeptos sustentavam que “o sufrágio universal não significa Meus amigos me enviaram para estudar direito; dediquei-me à
nada mais que um poder concedido a todos os homens para impedir reforma radical por conta própria (...) Enquanto não fiz absolu­
que o seu trabalho seja devorado por terceiros” .187 Os owcnistas, tamente nenhum progresso cm direito, fiz imensos progressos em
os reformadores de fábrica e os revolucionários da “ força física” , reforma radical. E tanto que, se amanhã fosse instituída uma
como o irreprimível William Benbow, vinham pressionando por cátedra de reforma radical no King*s College (coisa aliás não
ainda outras reivindicações mais. Mas, no caso, os termos da disputa muito provável), creio que me candidataria (...) Sinto como se
cada gota de sangue em minhas veias fosse sangue radical.. .188
ficaram restritos aos limites desejados por Brougham e Baines. Foi
(como previra Shelley em 1822) uma disputa entre “sangue e
Depois de editar o Midlands Representative, durante a crise
ouro”, e, no seu resultado, o sangue se comprometeu com o ouro
do Projeto de Lei da Reforma, mudou-se para Londres e assumiu
em manter afastadas as reivindicações de égalité. Pois os anos
a editoria do Poor Man’s Guardian.
entre a Revolução Francesa e o Projeto de Lei da Reforma tinham
presenciado a formação de uma “ consciência de classe” da classe “ Previmos”, escreveu a propósito do Projeto de Reforma, “que
média, mais conservadora, mais desconfiada das grandes causas seu efeito seria desligar das classes trabalhadoras uma grande par­
idealistas (exceto, talvez, as causas de outras nações), mais estreita­ cela das fileiras médias, que estavam na época mais inclinadas
mente interessada em si mesma do que qualquer outra nação a agir com o povo do que com a aristocracia que as excluía ” .189
E, em sua Introdução à história da Conspiração dos Iguais, de
industrializada. Desde então, na Inglaterra vitoriana, o radical de
Buonarotti, traçou um paralelo: “ Os Girondinos estenderíam o
classe média e o intelectual idealista foram obrigados a escolher

188. Bronterre’s National Refonner, 7 de janeiro de 1837. 0 ’Brien real­


186. Ver Lovett, op. cit., 1, p. 74. mente se habilitara em direito no Tribunal de Dublin.
187. A. Briggs, op. cit.. p. 66 . 189. Destructive, 9 de março de 1833.

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direito de voto aos membros da pequena classe média (assim como Precisamos ter o que Southey chama “uma revolução de revolu­
nossos Whigs ingleses fizeram através do Projeto de Reforma) a ções”; uma tal como Robespierre e Saint-Just planejaram na
fim de subjugar de modo mais efetivo as classes trabalhadoras” . França no início de 1794; quer dizer, uma subversão completa
“ Entre todos os governos, o governo das classes médias é o mais das instituições pelas quais se distribui a riqueza. (...) Propriedade
esmagador e sem remorsos.” 190 — propriedade — é o que devemos atentar. Sem uma transforma­
ção na instituição da propriedade, não pode ocorrer nenhuma
Foi um tema a que freqüentemente retornou. Sua cólera se melhoria.
revigorava a cada novo ato do governo Whig — o Projeto de Lei
pela Coerção Irlandesa, a rejeição do Projeto de Lei das Dez Horas, Tal revolução (esperava ele) viria, sem violência, logo após a
o ataque aos sindicatos, a Emenda da Lei dos Pobres. “ Antes da obtenção do sufrágio masculino: “ Das leis dos poucos brotaram as
aprovação do Projeto de Reforma”, escreveu em 1836:
desigualdades existentes; mas as leis dos muitos farão com que
sejam destruídas ” .192
as ordens médias supostamente tinham alguma comunhão de
sentimerífos com os trabalhadores. Esse engano desapareceu. Mal Os historiadores de hoje certamente não aceitariam a identi­
sobreviveu ao Projeto pela Coerção Irlandesa, esvaneccu-se total­ ficação extremamente crua do governo Whig pós-reforma com os
mente com o decreto da Lei da Fome. Nenhum trabalhador jamais interesses da “classe média ” .193 (A Velha Corrupção tinha mais
voltará a esperar justiça, princípios morais ou clemência das mãos vitalidade, como viria mostrar a luta prolongada pela revogação
de um legislador traficante de lucros.191 das Leis do Trigo.) Tampouco é adequado escolher este único
teórico (de origem de classe média) como representativo da nova
Ele próprio um refugiado de uma cultura de classe média, consciência da classe operária. Mas, ao mesmo tempo, 0 ’Brien
tinha prazer especial em escrever sobre sua classe em termos que estava muito longe de ser um excêntrico na periferia do movimento.
imitavam os mexericos de sala de visita sobre as classes dos criados Como editor do Poor Man’s Guardian e outros jornais, comandava
e empregados domésticos: “As ocupações e hábitos [das classes uma grande, e crescente, audiência operária; mais tarde ganharia
médias] são essencialmente degradantes. Sua vida é necessariamente o título de “ Mestre-Escola” do cartismo. Seus textos são um fio
uma vida de especulações e astúcias mesquinhas. . condutor que passa pelas inúmeras agitações do início dos anos
1830, fornecendo um nexo entre as antigas reivindicações demo­
Essas duas classes nunca tiveram, e nunca terão, nenhuma comu­ cráticas, as agitações sociais (contra a Nova Lei dos Pobres e pela
nhão de interesses. O interesse do trabalhador é trabalhar o mínimo Reforma Fabril), os experimentos comunitários owenistas e as lutas
e ganhar o máximo possível por isso. O interesse do homem de sindicalistas das uniões profissionais. 0 ’Brien foi, como Cobbett e
classe média é extrair o máximo de trabalho possível do traba­ Wooler nos anos pós-guerra, uma autêntica voz do seu tempo.
lhador e pagar-lhe o mínimo por isso. Eis, pois, seus respectivos Para a maioria dos trabalhadores, evidentemente, a desilusão
interesses diretamente opostos entre si como dois touros em luta. com o Projeto de Reforma surgiu sob formas menos teóricas. A
prova do pudim estava em comê-lo. Podemos ver essa prova, a
E tentou, com um talento considerável, trançar a tradição do nível de microcosmo, em alguns dos incidentes ocorridos em uma
ultra-radicalismo com a do owenismo, num socialismo revolucio­ das disputas na Eleição Geral que se seguiu — em Leeds. Aqui.
nário cujos objetivos eram a revolução política, a expropriação das Baines, que já tinha usado sua influência para pôr Brougham
classes proprietárias e uma rede de comunidades owenistas:
192. D e s tr u c tiv e , 9 de março, 24 de
agosto de 1833; P e o p le 's C o m e r
v a ti v e ; e T r a d e s U n io n G a z e tte , 14 de
dezembro de 1833.
190. OBren, op. cit., pp. XV, XX. Sobre 0 ’Brien, ver G. D. H. Cole, 193. O próprio 0'Brien chegou a lamentar a veemência do seu descar-
(1941), cap. 9; T. Rothstein, F ro m C h a r tis m to L a b o u r is m
C h a rtist P o rtra its
tamento da “classe média" inteira, quando surgiu, nos anos 1840, uma
(1929), pp. 93-123; Beer, op. cit., II, pp. 17-22. oportunidade de aliança entre os cartistas e elementos de classe média: vei
191. T w o p e n n y D e s p a tc h , 10 de setembro de 1836. Beer, op. cit., II, p. 126.

428 429
como membro por Yorkshire, apresentou pelos interesses Whig Esse grande ADULADOR MENTIROSO de Brougham (...) que
dois nomes: Marshall, um dos maiores patrões de Leeds, e Macaulay sempre teve o cuidado de ter pelo menos um membro para causar
(ou “ Sr. Mackholy” , como um dos lojistas Whig do seu séquito maiores danos à liberdade pública do que outros cinqüenta
anotou em seu diário). Macaulay era um dos ideólogos mais com­ membros quaisquer da Câmara dos Comuns; esse adulador pre­
placentes do acordo sobre o Projeto de Lei da Reforma, traduzindo sunçoso, ganancioso e sem princípios que foi o enganador de
em novos termos a doutrina Tory da “ representação virtual” : Yorkshire por vinte anos atrás. 195

As ordens superiores e intermediárias são os representantes naturais Portanto, era inevitável uma aliança Tory-radical por trás de
da espécie humana. Seus interesses podem se opor, em algumas Sadler. Também inevitável era que a maioria do eleitorado “ lojo-
coisas, aos dos seus próprios contemporâneos, mas são idênticos crata” não-conformista ficasse com “Sr. Marshall Nosso Conterrâ­
aos das inúmeras gerações que se seguirão. neo e Sr. Mackholy o Escocês” (como disse nosso lojista em seu
diário):
“ A desigualdade com que está distribuída a riqueza obriga-se
a atrair a atenção de todos”, lamentava ele, embora “as razões . . .quanto a Sadler ele nunca fez nada de bom nem nunca
que demonstraram irrefutavelmente que essa desigualdade é neces­ fará (...) pois sempre fica inventando algo que tende a prejudicar
os habitantes da Cidade de Leeds (...) foi o primeiro defensor
sária ao bem-estar de todas as classes não sejam igualmente eviden­
da Lei de Melhoria que custou aos Habitantes muitos milhares
tes” . O sr. Marshall não se igualava a ele como teórico: mas, a e o ônus recaiu principalmente sobre os Lojistas e o que chamo
se crer num folheto eleitoral radical, era da opinião que 12 xelins a Classe Média do Povo (...) é verdade que é um do nosso Corpo
por semana eram um bom salário para um homem com família, de Magistrados mas nem por isso é melhor. . .196
achava que as classes trabalhadoras podiam melhorar suas condi­
ções com a emigração e:
Os radicais operários em Leeds mantiveram sua imprensa e
organização independente. Os homens de Leeds (declararam eles)
Na fábrica do Sr. Marshall, um menino de 9 anos foi completa­ que “ tinham se reunido com más notícias e boas notícias ( ...)
mente despido, amarrado a um pilar de ferro e impiedosamente estado prontos em tempo e fora de tempo”, agora foram traídos
chicoteado até desmaiar.194
pelos homens que, nos dias de maio, tinham discursado para suas
grandes assembléias e prometido reforma ou barricadas:
O candidato Tory, por outro lado, era Sadler, o principal
porta-voz parlamentar do Movimento das Dez Horas. Dois anos Srs. Marshall c Macaulay podem (...) ser muito amigos de
antes, Oastler tinha lançado, com os Comitês de Redução de Jorna­ Reformas de todos os tipos e tamanhos, tanto na Igreja como no
da de Trabalho, sua apaixonante campanha contra o trabalho infan­ Estado; também podem ser a favor da abolição de todos os
til. A surpreendente “ Peregrinação a York” tinha ocorrido em abril monopólios, exceto os seus, de donos de fábricas e ocupantes de
passado; e a agitação pelas Dez Horas (como a agitação owenista) cargos; mas os trabalhadores de Leeds se lembram de que, se os
continuou ininterruptamente durante os meses de crise do Projeto apoiarem, estão fazendo o que podem para pôr o poder Legislativo
de Reforma. Numa tal disputa, portanto, Oastler poderia se contar nas mãos dos seus inimigos.
ao lado de Sadler contra Baines, que conduzira no Leeds Mercury
uma defesa hipócrita dos donos de fábricas. Podia-se contar que Além disso, os radicais declaravam que as velhas formas de
Cobbett faria o mesmo. De fato, fizera uma referência a Baines suborno e influência eleitorais, empregadas pelos interesses aristo-
que nos lembra a amplitude das leis de difamação daquela época:
195. Political Register, 24 de novembro dc 1832. Cobbett estava invo­
cando o antigo membro do condado de Yorkshire. Wilberforce.
194. J. R. M. Butler, op. cit., pp. 262-5; Cracker, 8 de dezembro de 1832. 196. MS Lette'book of Ayrey (Leeds Reference Library).

430 431
cráticos, vinham agora encontrando novas feições a serviço dos ainda são muito pouco compreendidos. Contra o manifesto dos
interesses manufatureiros. Embora os trabalhadores não tivessem patrões, o Sindicato de Yorkshire lançou o seu:
voto, houve grandes esforços para compensar os efeitos das mani­
festações pelas Dez Horas, a favor de Sadler, induzindo trabalha­ O grito de guerra dos patrões não foi apenas o que soou, mas
dores fabris a se declararem a favor de Marshall e Macaulay nos também a devastação da guerra; guerra contra a liberdade; guerra
palanques eleitorais: contra a opinião; guerra contra a justiça; e guerra sem justifi­
cativa. . .
Poderiamos citar mais de doze fábricas, onde todos os trabalhado­
res receberam ordens categóricas para comparecerem ao Pátio na
“ Os mesmos homens”, declarou um sindicalista de Leeds, ‘‘que
Segunda-Feira e levantarem suas mãos pelos candidatos Laranja
(...) sob pena de perda imediata do emprego. (...) Cada um tinham mimado as Uniões Políticas, quando poderíam se tornar
tem seu lugar designado no pátio, onde vão ficar cercados como subservientes aos propósitos deles, agora vinham se empenhando
rebanhos de carneiros, rodeados por todos os lados por supervi­ em esmagar os Sindicatos” :
sores, funcionários e outros controladores, com o propósito de
executar os altos mandatos do escritório de contabilidade. Foi ainda outro dia que os operários foram levados em grandes
números à reunião de West Riding em Wakefield, com a finalidade
Na ocasião, o cenário do palanque virou um motim, onde de apoiar o Projeto de Lei da Reforma. Naquela época, os mesmos
indivíduos que agora estão tentando derrubar os sindicatos,
Oastler e os homens das Dez Horas “ soaram as matinas nas espes­
dispunham-nos em ordem de batalha para obter, pela força do
sas cascas das laranjas voadoras”. Quando Sadler foi derrotado na
número, uma reforma política que, de outra forma, ele tinha
apuração, Marshall e Macaulay foram queimados em efígie no certeza de que não teria sido obtida da aristocracia deste país.
mesmo centro da cidade onde Paine fora queimado pelos legalistas Aquela reforma que assim foi obtida revelou-se-lhe como o meio
em 1792.197 último de fortalecer as mãos da corrupção e opressão.199
F.ssa eleição de 1832 em Lceds teve uma significação mais
do que local. Tinha atraído a atenção de reformadores fabris de A linha que vai de 1832 ao cartismo não é uma alternância
todo o país, trazendo comunicados a favor de Sadler de milhares pendular fortuita de agitações “ políticas” e “ econômicas” , mas sim
de signatários de vilas do norte. O novo tom depois de 1832 é uma progressão direta, onde movimentos simultâneos e relacionados
inequívoco. Em todos os distritos industriais, uma centena de expe­ convergem para um único ponto. Este ponto era o voto. Em certo
riências comprovou a nova consciência de classe que o Projeto, sentido, o movimento cartista começou não em 1838 com a pro­
com suas próprias disposições, tinha definido tão cuidadosamente. mulgação dos “ Seis Pontos”, mas no momento em que o Projeto
Foi a Câmara “ reformada” dos Comuns que aprovou a deportação de Lei de Reforma recebeu o Assentimento Real. Muitas das Uniões
dos diaristas de Dorchester em 1834 (“ um golpe dirigido contra Políticas provinciais nunca se dispersaram, mas começaram ime­
todo o conjunto dos trabalhadores unidos ”) ,198 e lançou, com “o diatamente a agitar contra o direito de voto “lojocrata” . Em ja­
documento” e a greve patronal, a luta para quebrar os sindicatos, neiro de 1833, o Working Man's Friend podia declarar que a
cuja intensidade e significado (em termos políticos e econômicos) fortaleza do radicalismo de classe média fora tomada de assalto:
“ . .. apesar de toda a oposição e ardilosídade de uma MONAR­
197. Cracker, 8 , 10. 21 de dezembro de 1832. Ver também A. Briggs, QUIA MERCANTE ESFARRAPADA, a União das Classes Traba­
"The Background of the Parliamentary Reform Movement in Three English lhadoras das Midlands foi formada pelo povo corajoso mas, até
Cities", op. cit., pp. 311-4; E. Baines, Life, pp. 164-7; C. Driver. Tory então, mal conduzido daquela região” .200 A ideologia característica
Radical, pp. 197-202.
198. Palavras de William Ridcr, tecelão de fazendas finas de Leeds e
que mais tarde seria um destacado líder cartista. Leeds Times. 12 de abril 199. L e e d s T im e s , 12, 17, 24 de maio de 1834.
de 1834. 200. W o r k in g M a n s F rie n d a n d P o litic a l M a g a z in e , 5 de janeiro de 1833

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do radicalismo de Birmingham, que unia patrões e diaristas contra cúmplices em tais asneiras nacionais. Que os espalhafatosos atores
a aristocracia, os Bancos, a Dívida Nacional e o “ sistema do papel- fiquem com todo o divertimento para eles mesmos.
moeda” , estava começando a desaparecer. Por um tempo, o próprio
Attwood foi levado pela nova corrente, em parte por lealdade aos “ Como os bravios irlandeses de antigamente, os milhões ingle­
regimentos a que antes fizera grandes promessas. Mais uma vez, ses foram postos, por tempo demais, insolentemente fora do âm­
realizou-se uma manifestação gigantesca em Newhall Hill (maio de bito dos governos sociais” :
1833), onde se anunciou um comparecimento de 180.000 pessoas,
e expressou-se: Agora expresso os pensamentos dos meus milhões de companheiros
não-representados, os Bravios Ingleses, os escravos nascidos livres
. . .um sentimento de ódio comum aos grupos que, tendo sido do século 19.203
principalmente instrumentais para pressionar o poder, agora se reu­
niam para exprimir sua aversão pela (. . .) traição que tinham Mas, no contexto dos anos owenistas e cartistas, a reivindica­
manifestado. ção do direito de voto implicava também em outras reivindicações:
uma nova forma de os trabalhadores tentarem alcançar o controle
O comparecimento vinha engrossado por carvoeiros de Wal- social sobre suas condições de vida e trabalho. Inicialmente, e
sall. trabalhadores em ferro de Wolverhampton, trabalhadores por inevitavelmente, a exclusão da classe operária provocou um repú­
encomenda de Dudley. Começara o processo de radicalização que dio inverso, por parte dela, de todas as formas de ação política.
iria fazer de Birmingham uma metrópole cartista .201 Owen, há muito, preparara o terreno para tal, com sua indiferença
Mas o conteúdo dessa retomada das agitações era tal que o pelo radicalismo político. Mas, no ímpeto pós-1832 para o sindi­
próprio direito de voto em si implicava em “ muito mais*’, e foi calismo geral, esse viés antipolítico não era quietista, mas encar­
por isso que teve de ser negado. (A Birmingham de 1833 não era niçado, militante e até revolucionário. O exame da riqueza do
a Birmingham de 1831: era agora o lar de uma Casa de Câmbio pensamento político daqueles anos nos levaria à história do sindi­
Equitativo do Trabalho, era o quartel-general da União dos Cons­ calismo geral — e, na verdade, aos primeiros anos do cartismo — ,
trutores socialista, abrigava o escritório do Pioneer.) O voto, para a um ponto mais longe do que pretendemos ir. São os anos em
os trabalhadores desta e da próxima década, era um símbolo cuja que Benbow discutiu sua idéia do “ Grande Feriado Nacional” nos
importância nos é difícil avaliar, com nossos olhos embaçados por distritos industriais; em que o gráfico John Francis Bray levou
mais de um século de pesada névoa da “ política parlamentar avante as idéias de Hodgskin, em palestras a artesãos de Leeds,
bipartidária”. Implicava, em primeiro lugar, em égalité: igualdade mais tarde publicadas como Erros do Trabalho e Soluções do
de cidadania, dignidade pessoal, valor. “ Em vez de tijolos, arga­ Trabalho; em que a União dos Construtores e o Grande Sindicato
massa e areia, deve o HOMEM ser representado”, escreveu um Nacional Consolidade surgiram e desapareceram; em que Doherty
panfletista, lamentando a sorte d’ “o miserável inglês dito ‘livre e Fielden fundaram a “ Sociedade para a Regeneração Nacional”
de nascimento’, excluído do direito mais precioso de que o homem com sua solução de Greve Geral pela Jornada de Oito Horas. Os
pode desfrutar na sociedade política ” .202 “ Nunca mais sejamos, comunitaristas owenistas eram férteis em idéias e experimentos que
dos milhões trabalhadores” , escreveu George Edmonds: prefiguravam avanços na criação dos filhos, relações entre os sexos,
educação, habitação e política social. Tampouco essas idéias eram
vistos em espetáculos pueris, lanternas mágicas baratas de Lorde discutidas apenas entre uma intelligentsia restrita; operários da
Prefeito e Corações de mau gosto — não nos apresentemos como construção civil, oleiros, tecelãos e artesãos estavam dispostos, por
certo tempo, a arriscar a sua subsistência para testar os experi­
201. Report of the Proceedings of the Great Public Meeting &c., 20 de
mentos. A enorme variedade de jornais, muitos com exigências
maio de 1833.
202. “I.H.B.L.", Ought Every Man to Vote? (1832). 203. G. Edmonds, The English Revolution (1831), pp. 5. 8 .

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rigorosas aos leitores, dirigia-se a um público autenticamente ope­ Hodgskin, Thompson, James Morrison e 0 ’Brien; os perdedores
rário. Nas fábricas de seda do Colden Valley, isolado nos Peninos eram James Mill e Place. “ O que é o capital?” , perguntou um
entre Yorkshire e Lancashire, liam-se os jornais owenistas. articulista no Pioneer. “ É trabalho acumulado!”, grita M’Culloch.
Podemos mencionar apenas dois temas entre os que se repe­ “ . . . De quem e do quê foi acumulado? Da roupa e da comida
tiam naqueles anos. O primeiro é o internacionalismo. Fazia parte, dos miseráveis.”207 Assim, os trabalhadores que tinham sido “pos­
evidentemente, da velha herança jacobina, nunca esquecida pelos tos insolentemente fora do âmbito do governo social” desenvol­
radicais. Quando Oliver se dirigiu, com o cortador de tecido de viam, passo a passo, uma teoria do sindicalismo ou da “ Maçonaria
Leeds, [ames Mann, e um outro revolucionário, ao encontro mar­ Invertida ” .208 “ Os Sindicatos não só farão greve por menos traba­
cado em Thornhill Lees (em 1817), descobriu, pela sua conversa, lho e mais salário”, escreveu “Um Membro da União dos Cons-
que “ as notícias recentes dos Brasis pareciam animá-los com espe­ trutores” ,
ranças maiores do que nunca ” .204 Cobbett sempre conseguia achar
tempo para acrescentar uma notícia final em seus jornais: mas finalmente vão ABOLIR OS SALÁRIOS, tornar-se seus
próprios patrões e trabalhar uns para os outros; o trabalho e o
Só tenho espaço para lhes dizer que o povo da BÉLGICA, o capital não serão mais separados, mas estarão indissoluvelmente
povo comum, derrotou os exércitos holandeses, que tinham mar­ unidos nas mãos dos trabalhadores e trabalhadoras.
chado contra eles para obrigá-los a pagar impostos enormes. É
uma ótima notícia205 Os próprios sindicatos poderíam resolver o problema do poder
político; podería se formar um “ Parlamento” das classes indus-
A Revolução Francesa de 1830 teve um profundo impacto triosas, delegado diretamente a partir das oficinas e fábricas: “ as
sobre o povo, eletrizando não só os radicais londrinos, mas tam­ Lojas enviam Delegados das locais para as distritais, e das distri­
bém reformadores operários em longínquas aldeias industriais. A tais para as Assembléias Nacionais. Eis aí, incontinenti, o Sufrágio
luta pela independência polonesa foi acompanhada ansiosamente Universal, a Eleição Anual e Nenhuma Habilitação por Proprie­
pela imprensa operária, enquanto que Julian Hibbert, na Rotunda, dade ” .209 Desenvolveu-se a idéia (no Pioneer) de uma Câmara de
apresentava um voto de simpatia pelos tecelãos de Lyons, em Ofícios:
sua malfadada insurreição, comparando-os aos tecelãos de Spital-
fields. No movimento owenista, essa tradição política se ampliara que deve ocupar o lugar da atual Câmara dos Comuns, e dirigir
até abranger solidariedades sociais e de classe. Em 1833, um os assuntos comerciais do país, segundo a vontade dos ofícios que
“ Manifesto das Classes Produtivas da Grã-Bretanha e Irlanda” foi compõem associações industriais. É esta a escala ascendente pela
qual chegamos ao sufrágio universal. Começará em nossas oficinas,
dirigido a “ os Governos e Povos dos Continentes da Europa e
se estenderá à nossa união geral, abarcará a administração do
América do Norte e do Sul”, começando: “ Homens da Grande comércio, e finalmente engolirá todo o poder político.210
Família da Humanidade. . .” No final do mesmo ano, já estava em
discussão a questão sobre alguma aliança comum entre os sindica­
Essa visão se perdeu, quase tão rapidamente quanto fora des­
listas da Inglaterra, França e Alemanha .206
coberta, nas terríveis derrotas de 1834 e 1835. E, quando recupe­
O outro tema era o sindicalismo industrial. Quando Marx raram o fôlego, os trabalhadores voltaram ao voto, como a chave
ainda era um adolescente, a luta pelas mentes dos sindicalistas mais prática para o poder político. Algo tinha se perdido: mas o
ingleses, entre uma economia política capitalista e uma socialista, cartismo nunca esqueceu completamente essa preocupação com
fora ganha (pelo menos temporariamente). Os vencedores eram
207. Pioneer, 13 de outubro de 1833.
204. Narrativa de Oliver, H. O. 40.9. 208. Man, 13 de outubro de 1833.
205. Two-Penny Trash, l.° de outubro de 1830. 209. Man, 22 de dezembro de 1833.
206. Ver. p. ex.. Destructive. 7 de dezembro de 1833. 210. Pioneer, 31 de maio de 1834.

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o controle social, e o voto era visto como um meio para sua dizer que essa cultura era retrógrada ou conservadora. Bastante
realização. Esses anos revelam uma ultrapassagem da perspectiva verdadeiro é dizer que um rumo das grandes agitações dos arte­
típica do artesão, com seu desejo de uma subsistência indepen­ sãos e trabalhadores por encomenda, mantido por cinqüenta anos,
dente. “ pelo suor do seu rosto” , para uma perspectiva mais nova, era o de resistir a ser convertido em proletariado. Quando viram
mais reconciliada com os novos meios de produção, mas tentando que essa causa estava perdida, logo tentaram novamente, nos anos
exercer o poder coletivo da classe para humanizar o ambiente: 30 e 40, e procuraram alcançar novas formas, apenas imaginadas,
por essa comunidade ou aquela sociedade cooperativa, por esse de controle social. Por todo esse tempo, foram, enquanto classe,
obstáculo ao funcionamento cego da economia de mercado, aque­ reprimidos e segregados em suas próprias comunidades. Mas o
le decreto legal ou aquela medida de assistência aos pobres. E que a contra-revolução tentou reprimir apenas cresceu de modo
implícito, se nem sempre explícito, em sua perspectiva estava o ainda mais determinado nas instituições semilegais da clandesti­
perigoso princípio: a produção deve ser não para o lucro, mas nidade. Sempre que afrouxava a pressão dos dominantes, saíam
para o uso. homens das pequenas oficinas ou aldeolas de tecelãos e sustenta­
Essa autoconsciência coletiva foi realmente o grande ganho vam novas reivindicações. Fora-lhes dito que não tinham direitos,
espiritual da Revolução Industrial, contra o qual deve-se colocar mas sabiam que nasceram livres. A Milícia Montada investiu a
o esfacelamento de um modo de vida mais antigo e, em muitos cavalo em sua reunião, e o direito de reunião pública foi conquis­
aspectos, mais humanamente compreensível. Foi talvez uma forma­ tado. Os panfletistas foram presos, e das prisões editaram pan­
ção única essa classe operária inglesa de 1832. O aumento lento, fletos. Os sindicalistas foram encarcerados, e foram acompanhados
gradual da acumulação de capital tinha significado que as preli­ ao cárcere por procissões com faixas e bandeiras sindicais.
minares da Revolução Industrial remontavam a centenas de anos. Assim segregadas, suas instituições adquiriram uma singular
Da época Tudor em diante, essa cultura artesã se tornara cada resistência e flexibilidade. A classe também adquiriu uma resso­
vez mais complexa, a cada fase de transformação técnica e social. nância singular na vida inglesa: tudo, das suas escolas às suas
Delaney, Dekker e Nashe; Winstanley e Lilburne; Bunyan e Defoe lojas, das suas capelas aos seus divertimentos, converteu-se num
— todos, por vezes, dirigiram-se pessoalmente a ela. Enriquecidos campo de batalha de classe. Essas marcas subsistem, mas nem
pela experiência do século 17, trazendo pelo século 18 as tradições sempre são entendidas por quem vem de fora. Se em nossa vida
intelectuais e libertárias que descrevemos, formando suas próprias social pouco temos da tradição de égalité, a consciência de classe
tradições de mutualismo na sociedade de amigos e no grêmio pro­ do trabalhador pouco tem de submissão. “ Órfãos somos, e bastar­
fissional. esses homens não passaram, numa única geração, do
dos da sociedade”, escreveu James Morrison em 1834.211 O tom
campesinato para a nova vila industrial. Sofreram a experiência
não é de resignação, mas de orgulho.
da Revolução Industrial como ingleses livres de nascimento com
idéias articuladas. Os que foram enviados ao cárcere podiam co­ Reiteradamente, naqueles anos, os trabalhadores assim o expri­
nhecer a Bíblia melhor do que os que estavam na Magistratura, miram: “ querem nos fazer de instrumentos”, ou “ implementos” ,
e os que foram deportados para a Terra de Van Diemen podiam ou “ máquinas”. Pediu-se a uma testemunha perante a comissão
pedir aos parentes que lhes enviassem o Register de Cobbett. parlamentar que fazia um inquérito sobre os tecelãos manuais
Foi, talvez, a cultura popular mais destacada que a Inglaterra (1835) que apresentasse a visão dos seus colegas sobre o Projeto
conheceu. Abrangia a maciça diversidade de especialidades, com de Lei da Reforma:
os trabalhadores em metal, madeira, têxteis e cerâmica, e sem seus
“ mistérios” herdados e magnífica engenhosidade com instrumentos P. As classes trabalhadoras estão mais satisfeitas com as institui­
primitivos, as invenções da Revolução Industrial dificilmente con­ ções do país desde que houve a mudança?
seguiríam ter saído da prancheta. Dessa cultura do artesão e do
autodidata, vieram séries de inventores, organizadores, jornalistas
211. Pioneer, 22 de março de 1834; ver A. Briggs, “The Language of
e teóricos políticos de qualidade impressionante. É bastante fácil ‘Cias/ in Earlv Nineteenth Century England", loc. cit., p. 68 .

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R. Não creio. Elas viram o Projeto de Reforma como uma medida
calculada para unir as classes médias e superiores ao Governo, e
deixá-las nas màos do Governo como uma espécie de máquina
que funcione de acordo com a vontade do Governo.

ÍNDICE REMISSIVO
Esses homens encontraram o utilitarismo em suas vidas diá­
rias, e procuraram fazê-lo recuar, não cegamente, mas com inte­
ligência e paixão moral. Lutaram, não contra a máquina, mas
contra as relações exploradoras e opressivas intrínsecas ao capita­
lismo industrial. Naqueles mesmos anos, a grande crítica român­ Açambarcamento (e retomada), Artesãos, V I: 23, 168-72, 200;
tica ao utilitarismo vinha correndo num curso paralelo, mas total­ V I: 67, 69-71. V2: 64-7, 71-110, 187-8, 199,
mente separado. Depois de William Blake, ninguém esteve à von­ Addy, Richard (amotinador de 318-21, 171-2; V3: 70, 96, 114-
tade com ambas as culturas, nem teve o talento de interpretar as Grange Moor), V3: 298. 20, 189, 231-2, 369, 416-20.
duas tradições uma para a outra. Foi um atrapalhado Sr. Owen Ajustadores de carda, V2: 88-90, e condições ‘'desonrosas”, V2:
207, 306; V3: 164-5. 93-108.
que se ofereceu para desvelar o “ novo mundo moral”, enquanto
Alfabetização, V2: 57, 110, 145-7, e Owenismo, V2: 108; V3:
Wordsworth e Coleridge tinham se recolhido por detrás dos seus
298; V3: 232, 304-11. 391-3, 400-2.
baluartes de desencantamento. Assim, esses anos às vezes mostram Alfaiates, V í: 22-3, 171; V2: 25, Artífices, ver Artesãos
não um desafio revolucionário, mas um movimento de resistência, 72, 75, 77, 93, 96, 98-102, 109, Ashley, John (sapateiro londrino),
onde tanto os românticos como os artesãos radicais se opunham 172, 198, 319; V3: 22, 25, 139, V I: 171, 191, 198n.
à enunciação do Homem Aquisitivo. No fracasso em se chegar a 164, 173, 373, 392n. Ashton, T. S., V2: 19, 34-6, 81-3,
um ponto de junção entre as duas tradições, algo se perdeu. O Alimentação, V2: 25, 34, 37, 44, 91, 186, 212.
quanto foi, não podemos saber com certeza, pois estamos entre 110, 114-5, 140, 143-6, 1634, Ashton, William (tecelão de Barns-
os perdedores. 179-84, 194-5, 298, 309, 328; ley), V2: 151-2.
V3: 397-8. Ashton-Under-Lyne, V2: 162, 272,
Mas os trabalhadores não devem ser vistos apenas com as Amigos do Povo, V I: 93, 115. 306; V3: 36.
miríades de eternidade perdidas. Também nutriam, por cinqüenta Antinomianismo, V I: 29, 36; V2: Asilos de pobres (Casa de corre­
anos e com incomparável energia, a Árvore da Liberdade. Pode­ 251, 278, 288; V3: 406. ção), ("Bastilhas”), V2: 56n, 81,
mos agradecer-lhes por esses anos de cultura heróica. Aparadores, ver Cortadores de 113-5, 162, 167; V3: 324, 383.
pano. Associação Nacional de Proteção
Aparadores de tecidos, ver Corta­ ao Trabalho, V2: 341; V3:
dores de pano. 398-9.
Aprendizado, V2: 78-9, 94-5, 97, Associações de Amigos, ver Socie­
101, 102, 121-27, 133-4, 203-4, dades Beneficentes
211n, 214, 296; V3: 68, 70, 84, Attwood, Thomas, V3: 137, 420,
94-8, 115. Ver também Estatuto 434.
' dos artífices. Autodidatismo (e grupos de leitu­
Aramistas, V2: 77. ra, etc.), V I: 164-5, 169-71; V2:
Arbitragem (de salários), V2: 26-7, 146-51; V3: 262, 304-13, 321-2,
129, 158-62; V3: 85n, 111-2, 327-43, 365-8.
115-6, 139.
Aris, Governador, V2: 192; V3:
12. Bacon, Thomas (de Pentridge),
Arkwright. Richard, V2: 14, 237. V3: 238-41, 250-2, 255.

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