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Maldita Seja Eva.

Copyright © 2021 Julie Pedrosa


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Proibido o armazenamento e/ou a reprodução gratuita ou
comercial dessa obra sem a autorização da autora. É proibida a
divulgação parcial da obra, mesmo que de forma gratuita, sem os
devidos créditos. Maldita Seja Eva é uma obra de ficção, qualquer
semelhança com pessoas ou fatos reais é mera coincidência.
Capa: Alice Prince
Diagramação: Julie Pedrosa
Para todos aqueles que acreditaram em mim quando nem
mesmo eu acreditei.

É graças a vocês que cheguei até aqui.


Sumário

PARTE 1
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
PARTE 2
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
PARTE 3
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Agradecimentos
Sobre a autora
PARTE 1

Março de 2011.
Alexia se joga na cama quando termino de desembaraçar seus
cachos molhados. Ela me faz largar a escova e me puxa até estar
deitada também.
Entrelaço nossas pernas e olho para o teto. Nossa música favorita
toca na rádio.
Enquanto canta o refrão, Alexia levanta a minha mão e brinca
com a pulseira no meu pulso. No pingente pendurado, está escrito
meu nome.
Viro meu rosto para encará-la. Seus olhos escuros me
contemplam e consigo ver meu reflexo neles. Ela continua
balbuciando a letra da música enquanto balança o pingente que me
deu.
Abro um pequeno sorriso.
Alexia desce o olhar para meus lábios e os umedeço por instinto.
Meu coração parece tremer quando percebo sua aproximação, até
que toca meu nariz com o seu e cola os lábios nos meus, então, o
tremor para.
Ainda desacostumada com a sensação dos seus lábios e sem
saber o que fazer, acabo seguindo meu instinto de colocar a mão no
seu rosto.
Assim que meus dedos tocam a sua pele, a porta é escancarada
em um baque estrondoso que me faz soltá-la de imediato.
— Sua puta!
Meu padrasto enlaça meu cabelo com uma das mãos como se
fosse uma corda e puxa os fios com brutalidade enquanto me
arrasta para fora do quarto.
— Solta ela! — grita Alexia ao tentar o empurrar.
— Deixa, Lexie! — suplico.
Imploro com os olhos para que não se envolva nisso. Posso
aguentar ser machucada por Wellerson, mas jamais suportaria vê-lo
tocar minha amiga.
Sou jogada contra o sofá e meus olhos encontram os de
Alessandro, irmão gêmeo de Alexia, que está parado ao lado da
porta da casa, sem esboçar nenhuma reação.
É assustador como sua aparência é idêntica à da minha amiga,
exceto que há maldade no seu olhar. Uma maldade que jamais
encontrei nos olhos de Alexia.
— Você está endemoniada! — O cuspe viscoso do meu padrasto
atinge meu rosto. — Sua vadiazinha barata, você...
— Wellerson!
Minha mãe se põe entre nós.
— Você criou um demônio, Julia! — Seu dedo aponta para mim e
depois para a porta. — A vagabunda estava se agarrando com a
outra! O espírito da prostituição está nessa garota!
— Não a chame assim.
Minha mãe é estapeada e a força do tapa faz seu corpo
despencar sobre o sofá. Meu instinto é ajudá-la, mas Alexia me
impede segurando meus braços com força e me puxa para longe.
— Você é outra sem fé que eu jamais deveria ter me envolvido!
Essa casa está cheia de meretrizes que se acreditam dignas de
alguma coisa! Deus me abençoaria se eu saísse desse inferno!
Wellerson cospe as palavras enquanto tremo de raiva nos braços
da minha amiga. Em um impulso, puxo a mão de Alexia e a coloco
para fora do apartamento, antes que possa contestar.
Alessandro agarra o pulso da irmã e a impossibilita de voltar ao
apartamento. Apesar de me ajudar, tenho a impressão de que não é
por bondade ou empatia. Sua face completamente neutra
contrapõem o desespero de Alexia ao seu lado e lhe dá um
semblante de lunático.
— O que você está fazendo? — pergunta Alexia.
— Salvando você — respondo.
Alexia coloca o pé no batente da porta e Alessandro tenta a
impedir, mas ela resiste.
— Alexia, vá embora — insisto.
— Não vou deixar você sozinha.
Sou puxada para trás e, como se meu peso fosse vento, caio com
as mãos apoiadas no chão, meu pulso reclama e não consigo me
levantar.
— Você vai embora agora. — diz Wellerson e avança para cima
de Alexia.
Minha amiga fecha os punhos e ergue o queixo. Vejo Alessandro
esboçar um pequeno sorriso, mas logo escondê-lo e pôr a mão
sobre o ombro da irmã enquanto sussurra algo para ela.
Na hora em que me levanto para implorar outra vez que vá
embora, Wellerson empurra Alexia e fecha a porta.
Escuto os gritos angustiados da minha melhor amiga e suas
batidas insistentes. Meu padrasto volta, me arrasta pelo cabelo e me
devolve ao estofado, ao lado da minha mãe.
Fecho os olhos e rezo em silêncio para que Alexia vá embora e
Wellerson não lhe alcance.
Capítulo 1

Janeiro de 2026.
A fumaça do cigarro paira sobre meu rosto. Observo a nuvem
cinzenta se dissipando enquanto bato o pé de modo nervoso.
Minhas poucas malas estão apoiadas na coluna mais próxima. A
mulher da recepção me olha como se a qualquer momento eu
pudesse ter uma recaída e voltar para dentro da clínica.
A ignoro, desbloqueio o celular e vejo a hora. Ainda faltam cinco
minutos para o horário marcado.
Ele não vai vir, você está sozinha.
Tento afastar a voz com uma tragada.
Somos só eu e você.
A internet está desligada desde que peguei o smartphone. Não
tive coragem de encarar as notificações quando chegassem ou, pior,
a completa inexistência delas.
Não sei o que me atingiria com mais força: milhões de pessoas
palpitando sobre minha vida ou saber que não fiz falta para
nenhuma delas.
Meu pé para de tremer.
Vejo meu amigo saltar do carro e pôr seus óculos de sol. O medo
irreal de que houvesse feito o bastante para ele desistir de mim se
dissipa junto da fumaça do cigarro.
Guilherme abre os braços e grita meu nome.
— Eva!
Jogo o cigarro na grama, piso na bituca e corro em sua direção.
Minhas pernas enlaçam sua cintura e seus braços contornam meu
corpo. O escuto puxar o ar e cheirar meu cabelo.
— Me desculpa. — Desço do seu colo e pego seu rosto entre
minhas mãos.
— Foi imperdoável não permitir visitas, mas não precisa se
desculpar. — Ele abre um sorriso e suas covinhas aparecem. — Eu
sei que você precisava de espaço.
Guilherme me solta e vai pegar minhas malas.
Não olho uma última vez para a clínica antes de entrar no carro,
tenho medo de que a voz me mande de volta para lá.
Me sento no banco do passageiro e, enquanto espero Guilherme,
escuto uma mulher apressada falar no rádio.
— Ocorrência na rua Virgílio Távora, número 50. Assalto a mão
armada.
Agarro os cantos do assento com força, sinto os nós dos meus
dedos latejarem, meu coração acelera e o barulho da sirene tapa os
meus ouvidos.
Guilherme entra no carro e entende de imediato o que aconteceu.
Ele se estica para desligar o rádio da polícia e pigarreia para chamar
minha atenção.
— Desculpa, esqueci ligado — diz. — Você está bem?
Balanço a cabeça e umedeço os lábios. Minha boca está seca.
Parece que levei um murro no estômago.
— Só foi estranho. — Esboço um sorriso falso e forço minhas
mãos a colocarem o cinto de segurança. — Como está o trabalho?
— Normal. — Dá de ombros. — Tenho pensado em mudar de
área, o que você acha?
Desnorteada e atônita, viro meu rosto.
— Mas você demorou tanto para conseguir o cargo de
investigador.
— É. — Guilherme passa as mãos pelo volante. — Não tem sido
como imaginei.
— É por causa de mim — digo. — Não é?
— Não, claro que não.
Sua voz não me soa convincente, mas, antes que eu possa
contestar, ele muda a frequência do rádio e uma música calma
começa a tocar.
Respiro fundo, sem saber o que dizer.
Você estraga mesmo tudo à sua volta, ein?
A frase ecoa nos meus ouvidos e faz com que seja impossível
identificar quem a disse. Posso ter dito em voz alta, sussurrado para
mim, ou até mesmo ter sido Guilherme quem falou. Começo a
afundar em meio à realidade enquanto tento me ater ao único fato
que tenho certeza:
Não só estraguei a minha vida como também a do meu melhor
amigo. Essa é a pior consequência dos meus atos.
Ser condenada à cadeira elétrica teria sido mais fácil.
「• • •」
O silêncio já se estendeu por tempo demais, tenho pleno
conhecimento disso, mas Diana não parece querer me forçar a falar,
então aproveito para analisar o consultório e fugir da terapia.
É mais aconchegante do que imaginei.
Não me lembro de ter parado para pensar como seriam as
consultas fora da clínica psiquiátrica, mas tenho a impressão de
esperar algo bem mais aterrorizante que isso.
Talvez o que falte seja a camisa de força.
— Gostou da decoração? — pergunta Diana.
— As lâmpadas são bonitas.
— É para imitar pássaros, vê? — Seus dedos finos tateiam o
conjunto de lâmpadas e mostram o formato em V, que simula um
conjunto de pássaros voando para algum lugar.
Não consigo ver de onde isso se parece com pássaros, mas não
quero tirar sua ilusão.
— E o tapete? — arrisco, pois o silêncio começa a me incomodar.
— Que ir para lá?
— Nós podemos?
— Claro. — Ela dá um riso fraco e deixa que eu vá na frente.
O consultório não é grande, mas é bem mais aconchegante que o
da clínica. O tapete felpudo fica do lado esquerdo e algumas
almofadas estão arrumadas pelo local, me apresso em pegar uma e
abraçá-la.
Não quero admitir, mas no meio de todas essas almofadas,
encostada entre um móvel e a parede que dá para a televisão, me
sinto segura.
Ao lado da JBL preta, um vaso espelhado reflete o meu rosto.
Não reconheço a pessoa que me olha através do objeto, acuada
como um animal machucado.
Sinto pena dela, parece desesperada.
— Como é o apartamento do Guilherme?
— Geek demais. Eu gosto, mas não parece a casa de um homem
de trinta e dois anos.
— E como deveria ser a casa de um homem solteiro de trinta e
dois anos? — Ela ergue uma sobrancelha.
— Mais séria?
— Você não é séria.
— É. — Dou de ombros. — Não sei.
O silêncio quase se instala outra vez, mas Diana não deixa.
— Como é estar de volta por tempo indeterminado?
Aperto o travesseiro contra o peito.
— Não tenho certeza se sou capaz de voltar a interagir em
sociedade — admito em um murmuro.
Sinto seus olhos sobre mim, captando cada sinal de fraqueza que
esboço com todo meu corpo e alma. Não consigo mais fingir que
estou bem na frente dela e nem mesmo sei por que ainda tento.
— Por que não seria?
Solto uma risada de escárnio. Diana sabe por quê.
— Porque não sou normal. — A encaro. — Ela não me deixa ser
normal.
— Você dá muito poder a uma voz que não me parece ser tão
forte assim.
Olho para as lâmpadas de pássaros na tentativa de evitar o
assunto.
— Sabe algo engraçado? — Cruzo os braços. — O primeiro lugar
em que eu quis ir depois que saí foi a casa da minha avó.
Faz tantos anos e mesmo assim parece ter sido ontem.
Sempre me disseram que com o tempo a dor do luto vai embora e
fica apenas a saudade. O que esqueceram de me avisar é que a
saudade dói tanto quanto o luto.
— Ela teria soltado fogos se soubesse que matei o Wellerson —
completo. — Será que é ela que está enfiando o tridente na bunda
do meu padrasto?
Diana tenta conter a risada, mas a vejo sorrir.
— Você acha que ela foi para o Inferno também?
— Minha avó era tudo, menos santa. — A lembrança me tira um
sorriso melancólico. — Ela sempre soube antes de todos nós que
ele era um hipócrita de merda.
— Como você se sente sobre isso? De não ter percebido antes a
pessoa que ele era.
A conversa que antes me trazia certo prazer se torna incômoda e
me mexo desconfortável no tapete.
— Impotente. — Franzo o cenho com frustração. — Tem noção
que o chamei de pai até os 9 anos?
— E o que mudou para que você parasse? — Diana se curva
para escutar melhor e seu cabelo crespo cai sobre o rosto.
— O casamento — digo. — Minha mãe era diferente também
antes de se casar com ele, mais viva, bonita, sorridente. Wellerson
tirou tudo isso dela. Na religião deles é proibido divórcio, então,
talvez, ele tenha se sentido confortável e começou a mostrar quem
era depois de casado.
Comprimo os lábios e apoio a cabeça na parede.
— O único problema é que ele ficou confortável demais.
「• • •」
Ao sair do consultório, me deparo com os espelhos da sala de
espera.
A mesma mulher que foi refletida no vaso espelhado me encara
neste espelho. Agora, está mais nítida, apesar de confusa. Metade
do seu cabelo está pintado de loiro e a outra metade se mistura
entre o desbotado e o natural.
Não confio nos olhos verdes sem brilho, escondidos debaixo dos
óculos grossos. Sei que são meus olhos, mas sinto que os perdi
dentro do reflexo.
Me lembram os olhos de Judas antes de beijar Jesus.
— Será que devo virar o outro lado do meu rosto para você bater
nele também? — retruco em voz alta enquanto imagino a dona da
voz se misturando ao verde dos meus olhos.
À algumas cadeiras de distância, uma mulher finge estar lendo
uma revista, mas vejo os cantos dos seus olhos demorando em
mim. Paro de olhar meu reflexo e me apresso em sair antes que
queiram me internar outra vez.
Saio pela porta transparente e sinto o bafo quente da cidade
atingir o meu rosto, passo a andar com meus sapatos
desconfortáveis. O calor faz meu pé suar e machuca os calcanhares
com o atrito.
Na minha cabeça, há um turbilhão de mensagens sobrepondo
umas às outras. Não consigo me ater a uma única linha de
raciocínio, então apenas deixo que a enxurrada de
questionamentos, medos e paranoias invada minha caminhada.
Guilherme costuma dizer que quando estou perdida dentro de
mim, meus olhos se arregalam e param de piscar. É um
comportamento tão natural que só percebo quando começam a
arder e sou obrigada a fechá-los por um instante.
É o que acontece.
Sou obrigada a piscar de modo lento enquanto tento voltar a
realidade.
Ao abrir os olhos, me deparo com o portão do prédio onde morava
minha mãe.
Plantas cresceram por entre as grades, de onde estou, consigo
ver o zelador limpando o hall de entrada, de costas para mim. Ergo
o olhar até o segundo andar, onde fica a janela da minha antiga
casa.
As luzes estão desligadas, mas a cortina está aberta.
Engulo em seco e respiro profundo, sentindo o formigamento
voltar para o meu corpo e um frio mórbido se espalhar por meu
ventre.
Capto um vulto passando pela janela e pisco para ter certeza do
que vi.
Ninguém volta a aparecer. A casa parece tomada pela escuridão.
Antes que possa pensar, estou com a mão no interfone. O zelador
se vira e espia por entre o portão, então grita:
— O interfone não está funcionando.
Repito para mim mesma que não estou louca e que é válido
incomodar alguém com isso.
Tem razão, você não está, você é louca.
Há um homem na minha casa. Não estou louca, sei o que vi.
— Boa tarde. Soube que o 202 está disponível para venda. Há
alguém morando lá ou talvez a corretora esteja aí?
— Não senhora. — Ele me olha de cima a baixo enquanto segura
a vassoura. — Mas a moça sabe a história do apartamento, não é?
— Não tem ninguém aí agora? — ignoro sua pergunta.
— Não, ninguém aparece já tem um tempo. — O zelador torce o
rosto em uma careta. — Não conheço a senhora de algum lugar?
— Duvido muito, não sou daqui — minto com um sorriso no rosto
e me afasto. — Obrigada, boa tarde.
Volto a olhar a larga janela que dá para a sala de estar.
Posso jurar que o que vi era Wellerson e sei que o reconheceria
de longe.
Entretanto, se ele está aqui, quem eu matei?
Os segundos passam devagar enquanto espero o vulto voltar,
mas nada se move.
Capítulo 2

Viver na fronteira entre a lucidez e a insanidade é como estar,


para sempre, em uma corda bamba: horas caímos para um lado,
horas para outro.
Por mais que a corda esteja estável por um longo tempo,
sabemos que é inevitável que ela trema e nossas pernas cedam.
Temos que conviver com a ansiedade e lidar com a espera, porque
apesar de não sabermos quando, em algum momento vamos cair.
Só nos resta torcer para que não seja a última queda em direção
ao precipício da loucura, já que a insanidade humana é diferente do
fundo do poço — da sensação de que a vida não significa nada e
que seria melhor estar morto. Do fundo, você consegue pegar
impulso para sair.
Em um precipício não há onde se segurar para sobreviver.
Tenho a impressão de que quanto mais nossa mente nos
consome, mais nos sentimos confortáveis com os demônios
internalizados dentro de nós, até chegar um ponto em que nos
acostumamos com a queda infinita.
Minhas costas ardem com a sensação de que estou sendo
seguida. Olho para trás mais uma vez e me certifico de que não há
ninguém por perto.
O sol acabou de se pôr. Alguns poucos e fracos postes não
permitem que a rua fique escura por completo e por ser no centro da
cidade, ainda há comerciantes fechando suas lojas. Não parece
haver perigo iminente, mas meu subconsciente entende que há.
Eles estão esperando você vacilar.
Meus olhos encontram os de um homem de meia-idade que me
encara de cima a baixo, ele coça o saco de modo exagerado. Viro o
rosto e me encolho no moletom.
Está calor e o suor escorre pela minha coluna como o de um
porco indo para o abate, mesmo assim, corro até o outro quarteirão
e só relaxo ao entrar na padaria.
Ainda sinto os olhares sobre mim enquanto pego um pacote de
pão e duas latas de leite condensado, tento me convencer que
desta vez é apenas pelo meu estado deplorável.
Na fila do caixa, a mulher à minha frente balança o cartão de
crédito entre os dedos, impaciente com a demora. Meus olhos
analisam suas unhas bem-feitas. Nem me lembro a última vez que
separei um tempo para fazer as minhas, suponho que seja porque
não havia muitos esmaltes na clínica.
Subo o olhar até sua face torcida em uma falsa cordialidade.
Cachos pesados caem sobre seu rosto e talvez seja por isso que
a não a reconheci de imediato. Estou acostumada à sua imagem
adolescente, de cabelo liso e cara papocada de espinhas.
Me escondo com o capuz e torço para que não olhe para trás.
Lia pega as sacolas e sai, está quase na porta da padaria quando
escuto meu nome.
— Eva Borges? — Uma mulher se coloca à minha frente e
praguejo em um murmuro. — É realmente você. — Ela se apressa e
tira o celular do bolso. — Senhorita Borges, se importaria de dar
algumas palavras ao jornal Folha de Santo Oiti? Será rápido.
Temerosa, arrasto o olhar pelo chão até encontrar os sapatos de
Lia parados à alguns metros, ergo o olhar ciente de que está virada
para mim.
Seus olhos estão fixos na minha pessoa, mas ela não fala nada.
— Senhorita Borges?
— Não. Não darei entrevistas — digo rispidamente e desvio o
olhar de Lia. — Por favor, me deixe apenas fazer minhas compras.
— A senhorita não gostaria de contar o seu lado da história? —
insiste. — Retomar o poder, talvez?
Lia ainda olha para mim. Solto uma risada fraca.
— Não há poder nenhum para ser retomado — digo. — Minha
história já foi contada, muito obrigada.
Me espremo para chegar ao caixa e deixo a jornalista falando
sozinha enquanto passo minhas compras, Lia não vem falar comigo,
mas percebo com o canto do olho quando se vira e vai embora.
Um ano atrás, ao voltar à Santo Oiti, me convenci de que seria
apenas um dia, assim não precisaria lidar com os motivos pelo quais
fui embora. Era apenas um compromisso, bate e volta, e eu estaria
em casa.
Encontrar Lia é como dar de cara com a parede. Os
acontecimentos se desenrolaram muito diferente dos meus planos.
Talvez você já tenha morrido e esteja no inferno. Todas essas
pessoas são demônios que você mesmo criou.
Talvez você seja um demônio que eu criei, respondo.
Não reparo no percurso de volta, pelo contrário, ando tão rápido e
desatenta que em minutos estou abrindo o portão e nem sequer me
dou conta.
Deixo a sacola de compras em cima da bancada e me jogo no
sofá. A fome passou.
Se não fosse por algumas marcas da idade e o cabelo cacheado,
diria que Lia ainda é a mesma garota que foi minha melhor amiga
durante o colégio.
Curiosamente, a primeira lembrança que me vem à memória é
uma briga nossa.
Não me recordo o motivo pelo qual sua mão bateu com tanta
força contra o meu rosto, mas lembro de tê-la encarado em
completa descrença e sentir meu sangue ferver.
— Você está se desvirtuando por uma qualquer, Eva!
Impulsionei minha mão para trás e lhe dei um tapa. Meus dedos
ficaram marcados em sua pele coberta de espinhas. Lia largou a
mochila no chão para voar em meu rosto, agarrou meus fios de
cabelo e gritou comigo enquanto os puxava.
Em segundos, rolamos pelo o chão da escola entre chutes,
arranhões e puxões de cabelo.
Solto uma risada débil.
Sua imagem descabelada, com um corte fino na maçã do rosto e
meus dedos marcados na bochecha, me deixa de bom humor em
um estalo.
Lia sempre me disse que eu precisava ser mais delicada.
「• • •」
Meus pelos se arrepiam quando cruzo o corredor.
Apresso o passo e entro no quarto. Giro a maçaneta, ela não
fecha. Tento trancar com a chave, mas ao girar, ela se quebra no
meio, com uma parte presa dentro da fechadura.
Olho outra vez para o corredor vazio. Meu coração está prestes a
explodir e tenho certeza de que vou morrer. Forço a porta mais uma
vez e o suor faz minhas mãos escorregarem.
Começo a chorar. Meus braços tremem. Tento a todo custo tirar a
parte presa da chave.
Sinto alguém tocar meu ombro e viro de imediato. Minha visão
está turva e os vultos dançam à minha volta. No meio da escuridão
vejo Lia se misturar à jornalista, as duas rindo e apontando o dedo
para mim.
Nós te encontramos!
A chave caí da minha mão.
Olho para a mesa de cabeceira e me jogo na porta. Meu corpo
sente o peso de alguém a empurrando do outro lado e com
dificuldade puxo o móvel para impedir quem quer que seja de entrar.
Consigo, e ao me afastar percebo que está muito silencioso.
Recuo até estar de costas contra a parede. Uma dor excruciante
se alastra do meu peito para meu braço direito.
Você vai morrer. Você vai morrer. A voz irritante e infantil canta.
Talvez a dor seja um infarto, ao menos parece ser um. Meu
coração deve parar dentro de alguns minutos.
E se isso não me matar, o assassino do outro lado da porta vai.
Meu corpo escorrega pela parede até alcançar o chão, me sento
encolhida e olho para o único modo de entrar no quarto enquanto
seguro os joelhos com força e tento respirar.
As lágrimas se juntam à suspiros desesperados. Não tenho
coragem de expirar muito alto e nem consigo fechar os olhos.
Ouço passos e perco o ar, meus punhos estão fechados e meu
corpo tão tenso que se me batessem, cairia dura no chão como uma
pedra.
Tento puxar oxigênio com respirações curtas e entrecortadas, mas
não funciona e afundo mais em meu desespero.
Respire, idiota. É só respirar.
Os comandos do exercício terapêutico que aprendi na clínica
zumbem como mosquitos no meu ouvido.
Volte para a realidade, ordeno para a mim mesma.
Consigo ver a porta. A mesinha de cabeceira. O celular. A cama.
E a cadeira.
Antes de continuar o exercício, tento puxar o ar outra vez.
Consigo tocar nos meus joelhos.
Paro um instante e arrisco levar minha mão ao chão frio.
O chão.
Sinto a ponta dos meus dedos deslizarem pelo meu corpo até
chegar ao meu cabelo.
Meu cabelo. E meu rosto.
Meu peito ainda sobe de forma descompassada e esquisita. Fico
em silêncio enquanto tento engolir meu choro e prestar atenção nos
sons do ambiente.
Consigo escutar meu choro. Um latido. O ar-condicionado.
Inspiro fundo pela primeira vez e meus pulmões agradecem.
Consigo sentir o cheiro do sabonete e do amaciante.
Consigo sentir o gosto dos salgadinhos que comi mais cedo.
Olho em volta como se aquele exercício pudesse ter me trazido
de volta à realidade, mas não. Ainda morro de medo e estou
incapacitada por completo de mover um músculo, mas já não há
tanto desespero quanto antes. Apenas a ansiedade de alguém que
sabe que vai morrer a qualquer segundo.
Patética.
Não discuto com a voz imatura em meus ouvidos, pois está certa.
Devo parecer patética, encolhida no canto do quarto, à olhar de
forma obsessiva para a porta, sem conseguir piscar, esperando que
a qualquer momento alguém venha com uma faca e me mate.
Começo a contar.
1, 2, 3, 4, 5... 30... 40... 80... 100...
Perco a conta e volto ao início. O tempo está deturpado e, apesar
de contar os segundos que se passam, já não sei há quanto tempo
estou aqui.
Meu coração dispara ao escutar passos ecoarem pela casa.
— Eva? — Guilherme me chama do corredor. Não tenho coragem
de me mover. Ele força a porta. — Eva? Por que a mesinha de
cabeceira está na porta?
— Não consigo me mover.
— Tudo bem. Vou empurrar o móvel, ok?
— Ok.
Guilherme coloca o peso do seu corpo sobre a madeira e abre
uma fresta, em seguida se espreme até conseguir tirar a mesa de
cabeceira com as próprias mãos. Ele me olha e caminha com
naturalidade até estar ao meu lado, sentado com a cabeça apoiada
na parede.
— O que aconteceu?
Apoio minha testa em seu ombro e ele aproveita para passar os
braços em volta dos meus.
— A porta. — Me encolho, já estou sentindo frio a muito tempo e
o corpo de Guilherme ainda está quente do trabalho. — A fechadura
não funcionou e, quando eu forcei, a chave quebrou dentro.
— Merda. — Ele fecha os olhos e massageia a têmpora. — Ela
está assim há meses, me esqueci. Desculpa, Eva, sério, foi culpa
minha. Amanhã chamo um chaveiro, você pode dormir no meu
quarto hoje.
—Tudo bem. — O tranquilizo. — Eu... — hesito. — Pude jurar que
tinha alguém na sala, alguém tentando entrar. Não tinha nada
suspeito quando você chegou?
— Não, mas não se preocupe. Você está segura agora. — Sua
mão toca o meu cabelo e ele me abraça com mais força. — Não
tinha nada suspeito. Você pode ficar tranquila, estou aqui.
— Obrigada.
Minha respiração normaliza aos poucos e um cansaço anormal
toma conta de mim. Meu amigo iça meu corpo até estar em seus
braços e me carrega para seu quarto. Sou posicionada em meio às
cobertas, com apenas meu rosto para fora.
Apreensiva, o observo voltar ao meu quarto para pegar meus
remédios.
Ele coloca os comprimidos na palma da minha mão e me entrega
um copo de água. Tomo em um só gole e volto a me deitar.
Meus olhos se fecham contra a minha vontade.
Sinto meu corpo afundar na cama macia e, ao longe, escuto o
som do chuveiro do Guilherme, que se confunde com uma chuva
em minha consciência exausta.
Capítulo 3

O cheiro de perfume barato se mistura ao cecê.


Mudei o horário da minha consulta para acompanhar Guilherme
em um almoço de família e, como as visitas à sua casa costumam
durar a tarde inteira, fui obrigada a me espremer entre os
estudantes e trabalhadores às sete horas da manhã.
Me arrependi no momento em que entrei na sardinha fantasiada
de ônibus.
O automóvel passa por uma descida brusca e todos os
passageiros dão um grito agudo e zombeteiro, seguido de risada.
Um frio sobe pela minha barriga por não ter onde me segurar, mas
está tão apertado que meu corpo nem sequer se move.
Quando chego à minha parada, o oxigênio parece ser muito mais
agradável do que me lembro. O ar-condicionado da recepção,
então, simula o céu.
Apoio a cabeça no encosto do sofá e respiro fundo. Deixo que
meu corpo relaxe após tanto tempo inalando aquele cheiro fétido.
— Está tudo bem?
Olho de forma rápida em direção a pessoa que me fez a pergunta
na intenção de respondê-lo e ignorar sua presença, mas meus olhos
me enganaram. Não é possível olhá-lo e fugir da sua imagem com
tanta agilidade.
Sou pega desprevenida pela sua beleza e, principalmente, pelos
seus olhos. A cor preta se funde à íris, tornando seu orbe um círculo
de escuridão. É impossível desviar o olhar.
Ele abre um sorriso contido e leva minha atenção para o restante
do seu rosto, às pontas do seu cabelo que se enrolam em pequenos
cachos e lhe dão a aparência de um anjo.
Não. Um anjo não.
Os cachos podem enganar à primeira vista, mas a intensidade de
seus olhos conta toda a verdade.
É um demônio no corpo de um homem.
Sua beleza é tentadora demais para ser considerada divina.
— Está tudo bem? — repete, e noto que não o respondi.
— Sim. — Sorrio. — O ônibus estava lotado.
— Houve um acidente na Washington Soares, acho que por isso
os ônibus devem estar mais lotados que o normal.
Movo a cabeça em sinal positivo, sem saber o que dizer. Ainda
estou extasiada com seus olhos.
Estou prestes a me virar, mas noto o livro em sua mão. É um dos
meus romances policiais favoritos.
Abro um sorriso. Na verdade, não sei se parei de sorrir em algum
momento.
— Os filmes não fizeram jus — digo, apontando para a capa.
— Eu também prefiro os livros. — Seus dedos marcam a página
em que parou e ele me estende a mão livre. — Meu nome é Alex.
— Prazer, Alex. Sou Eva.
Percebo que me analisa por um segundo, e seus olhos vagueiam
pelo meu rosto como se eu fosse muito interessante. Me arrependo
de não ter penteado o cabelo ao sair de casa.
— Para Adão, o paraíso era onde Eva estava... — Alex pronuncia
de forma demorada.
— Mark Twain — completamos juntos.
Dou uma risada fraca e ele sorri.
— Temos muitos gostos em comum, pelo visto.
— Sim... — Desvio do seu olhar momentaneamente, mas logo
volto. — Você gosta de Paris também?
Ele franze o cenho e aponto para a miniatura da Torre Eiffel que
foge do seu bolso. Alex ergue as sobrancelhas em compreensão e
puxa a estatueta para fora, mostrando um conjunto de chaves.
— Morei um tempo na França.
— Como é lá? — Me curvo em sua direção, interessada. — Era
meu sonho de menina conhecer a Torre Eiffel...
Comprimo os lábios e dou um sorriso triste. Meus planos eram
viajar para Paris com minha melhor amiga, Lexie, após nossa
formatura no colégio.
— Paris é um lugar maravilhoso — diz. — E a Torre Eiffel é linda,
não tem como não gostar.
— Imagino.
— Eva — A recepcionista me chama. — Pode entrar.
Dou um sorriso desconcertado para Alex. Por alguns minutos me
esqueci que estamos na sala de espera de uma clínica de saúde
mental.
Ótimo, agora ele já sabe que você é doida.
— Foi um prazer te conhecer, Alex — digo me levantando.
— Espera. — Ele tira uma caneta do bolso e puxa minha mão. —
Se você quiser escutar mais histórias sobre a França ou conversar
sobre o livro, é só me ligar.
Enquanto encaro o número na minha mão, começo a pensar que
talvez eu esteja sonhando acordada, ao som do despertador, pois a
probabilidade de um desconhecido — bonito — dar em cima de mim
tão descaradamente é bem baixa na vida real.
Se for um sonho, por favor não me acorde. Estou adorando.
「• • •」
Sinto o gosto de sangue se espalhar pela minha boca.
Meus lábios estão machucados e desidratados. Uma afta que
está ali há alguns dias vira uma ferida dolorosa depois que a mordo
repetidas vezes.
Com certa dificuldade, me ergo da cama em um pulo e calço
minhas pantufas. Minhas mãos pequenas de garota de seis anos
tateiam as paredes enquanto caminho para a cozinha a procura de
água.
São três da manhã, escuto o som baixo da televisão da sala, mas
mesmo com o barulho meu instinto me leva a andar na ponta dos
pés por medo de acordar alguém.
Uma mão está jogada dentro do meu campo de visão. Paro de
andar, o coração errando uma batida. Os piores cenários são
desenhados pela minha imaginação infantil.
É uma boneca esquecida no tapete? Um sonho muito real?
Sinto nos meus ossos que não é nada do que tento imaginar.
Com minhas pernas curtas e bambas corro até a mão e me jogo
sobre o corpo da minha mãe.
O desespero me consome em segundos. Não consigo identificar
se ainda está viva.
Toco sua mão e a chamo pelo nome, esperando que me
responda, mas seus dedos já estão frios e o toque é pegajoso.
Me levanto trêmula e procuro pelo telefone. Não consigo digitar o
número e o aparelho escapa das minhas mãos pequenas. O pego
do chão e fico mais atormentada ao ser obrigada a continuar
olhando para o corpo de Julia.
Minha avó atende no primeiro bip.
Em minutos, a ambulância está em frente a nossa casa.
Abro a porta para os paramédicos. Um deles me afasta e pede
que eu espere no quarto. Não o obedeço, nem sequer consigo me
mover. Ele desiste.
Fico assistindo minha mãe ser reanimada até que minha avó
chega, me toma em seus braços e diz que vai ficar tudo bem.
Meu primeiro contato com a morte me faz sentir insuficiente.
É esse o amor que aprendo a aceitar. Um amor que a qualquer
momento vai embora, que preciso correr atrás das migalhas e que
não é capaz de cuidar de mim.
A amnésia dissociativa não apagou minha primeira lembrança
traumática, e nem sei se gostaria que tivesse apagado.
Não saber de partes da minha história é desesperador, ter
consciência de que minha doença já me tirou mais memórias do que
posso contar, faz com que eu me atenha às lembranças reais.
Lembrança como essa, que doem tanto que não poderiam ser
inventadas.
— Depois da primeira vez, veio as seguintes — digo enquanto
olho para o teto, deitada no divã. — Um dia, tentei separá-la do
Wellerson, e funcionou a princípio. Ela passou uma manhã inteira
sem ele. — Solto uma risada. — A noite, a encontrei desmaiada na
cama, com uma carta do lado e várias cartelas de remédios jogadas
no chão. Dá para saber quando a vida tá saindo do corpo da
pessoa, sabe? O corpo fica mole e os olhos perdem o brilho.
— O que dizia a carta?
— Que eu era a culpada da sua morte, porque tinha tentado
separá-la do Wellerson.
Minha terapeuta me olha durante longos segundos, mas não me
atrevo a olhá-la de volta.
— Como é para você ter tido a sensação de vê-lo na janela da
sua antiga casa? — pergunta Diana.
— Sinto que antecipei o pagamento de todos os meus pecados.
Ela dá uma risada nasalada.
— Talvez, se você deixar ele ir, ele vai pagar os pecados dele e
você fica livre dos seus. — Diana arqueia uma sobrancelha.
— Você acha que eu não quero que ele vá? — Cruzo os braços.
— Eu acho que você está usando a memória dele para se
automutilar.
Comprimo os lábios de forma demorada.
— E se eu achar ter matado ele, mas não matei?
Minha terapeuta inspira enquanto procura palavras para explicar
para mim, mais uma vez, que Wellerson está morto. Que eu o matei.
— Eva, é comum que algumas mulheres vejam o rosto do seu
agressor em qualquer homem na rua que se pareça com ele, mas
eu posso lhe garantir que Wellerson está morto, não é ele quem
você tem visto. — Ergo as sobrancelhas, não estou inclinada a
acreditar em suas palavras. — Talvez você deva ir ao cemitério
onde seu padrasto foi enterrado, chame o Guilherme para te
acompanhar.
— Podem ter enterrado a pessoa errada, ele teria a capacidade
de matar alguém e colocá-lo no caixão — retruco, sentindo o
sangue sair da minha cutícula e sujar minha mão.
Diana se levanta, pega um lenço de papel e me entrega.
— O caixão estava aberto, não teria como ter posto outro corpo
no lugar.
— Não sei... — Aperto meu dedo machucado e observo o sangue
manchar o lenço.
— Vá ao cemitério. Você não pode passar muito mais tempo em
negação e com essa dúvida. — Ela me dá um sorriso triste. — Mas
por favor, não vá sozinha.
O silêncio toma conta do ambiente nos próximos segundos.
Analiso de forma rigorosa a alça da bolsa da minha terapeuta, que
ficou presa para fora do armário.
— Ainda temos algum tempo, tem algo mais que queira me
contar?
Meus ombros caem de forma exausta e me movo até estar
deitada de lado.
— Eu só queria que ela tivesse me escolhido ao menos uma vez.
Capítulo 4

O prédio parece o mesmo e o porteiro ainda lembra meu nome,


mas nada disso me engana, muita coisa mudou nos últimos seis
anos.
Com uma das mãos equilibro um bolo e com a outra agarro o
corrimão. Ao meu lado, Guilherme carrega uma torta e segura a
porta de vidro para que eu passe primeiro.
Meu coração acelera ao escutar a música sertaneja vinda do
quarto andar.
Me dou conta de que não saberei lidar se a família do Guilherme
me condenar pelas minhas últimas ações, mas é tarde demais, não
tenho tempo hábil para a fuga.
Mudo meu peso de um pé para o outro e espero que alguém abra
a porta para a nós.
— Eva! — Sérgia, mãe do Guilherme, cantarola meu nome,
emendando em um axé conhecido.
Sou puxada para um abraço apertado. O almoço mal começou e
ela já cheira a cerveja.
— É a Eva? — Cristiano larga seu baralho para vir me receber. —
É a Eva!
O pai do meu melhor amigo tira o bolo das minhas mãos e me
puxa dançando para dentro da casa. Seus movimentos
desengonçados me fazem rir, no final da dança recebo um beijo no
topo da cabeça e um abraço saudoso.
— Sentimos sua falta, menina Eva — murmura com meu rosto
entre suas mãos e então grita para o grupo de homens sentados na
varanda: — Minha parceira de jogo voltou, quero ver vocês
ganharem agora!
De todos os cenários que imaginei, esse era o impossível.
Seis anos se passaram, matei alguém, e os pais de Guilherme me
recebem como se eu ainda fosse a jovem Eva, melhor amiga do
filho deles, parte do que consideram família.
Quanto tempo até você estragar isso também? A voz sussurra,
provavelmente na tentativa de tomar um pouco da minha felicidade
momentânea.
Quanto tempo até eu matar você engasgada com o próprio
sangue?
Para isso você teria que se matar, e nós duas sabemos que você
não é boa nisso.
Não consigo pensar em uma resposta, pois simultaneamente sou
apresentada para todos os homens e mulheres de meia idade
espalhados nas mesas de plástico da varanda. Eles me
cumprimentam com entusiasmo e carinho, e acabo me sentando
para assistir à partida de truco com uma cerveja em mãos. Até
arrisco me balançar no ritmo da música.
Não me lembro da última vez em que me senti acolhida como me
sinto agora. Em parte, porque já faz muito tempo que não vejo a
família de Guilherme.
Alguns têm a sorte de nascer e se conectar com a família
biológica, mas outros, como eu, precisam vagar pelo mundo a
procura do que é família. Pode ser uma cidade, uma casa, até você
mesmo, mas para mim, é isso aqui.
Me pergunto como fui capaz de deixar que algo ficasse entre nós.
— Então você voltou para o Jardim do Éden. — Ouço uma voz
familiar falar atrás de mim.
Me viro devagar, despreparada para rever seu rosto. Talita sorri e
ergue a cerveja em minha direção, em um brinde silencioso, em
seguida vira a latinha nos lábios. Repito seu movimento,
desesperada por um pouco de álcool para lidar com o turbilhão que
se inicia dentro de mim.
— Esse inferno não pode ser chamado de paraíso.
— É. — Ela se apoia na parede. — Como você está?
— Bem.
— Não está falando isso só para eu te deixar em paz?
— Que isso, você sabe que sua companhia sempre é bem-vinda.
Dou um sorriso nervoso e Talita ri, depois bebe um pouco mais.
— Você mora com o meu irmão agora?
— Por enquanto. Não sei ainda quando vou poder voltar para a
capital.
— Você vai embora? — Guilherme pergunta atrás de mim.
— Você não espera que eu more com você para sempre, né? —
digo ao me curvar para conseguir vê-lo.
— Não vejo problema. — Suas sobrancelhas se curvam em
incompreensão. — Por que você quer ir embora? Fiz algo de
errado? Minha casa não é boa o bastante? Podemos reformar.
— E é agora que eu saio dessa conversa. — Talita diz com os
olhos arregalados em minha direção.
— Você não fez nada de errado, mas não posso morar com você
para o resto da vida. Minha vida está em outra cidade.
— Não achei que você fosse voltar para a capital.
— Quando me liberarem, eu vou. — Dou uma risada fraca, como
se fosse obvio, mas Guilherme continua de cara fechada. — Qual o
problema? Você não achou que eu fosse ficar em Santo Oiti para
sempre, achou?
— Não sei o que pensei. — Ele foge do meu olhar encarando as
cartas de um idoso na mesa de truco. — Você poderia ficar.
— Essa cidade não me faz bem, Gui.
— Eu sei — diz. — Você está certa, acho que...
Silêncio.
— O que?
— Você fez muita falta nesses seis anos — diz, e esboço um
sorriso triste e compreensivo. — A possibilidade de te ter de volta
me deixou feliz. Acho que foi isso.
Inspiro fundo, descruzo os braços e o puxo para um abraço.
— Também senti sua falta.
Guilherme é pego de surpresa, mas corresponde meu carinho em
prontidão.
「• • •」
— O bolo é delicioso — digo. — Fui eu quem fiz.
Talita está com a cabeça enfiada na geladeira quando me
aproximo. Ela ergue os olhos castanhos de modo desconfiado para
mim e depois volta ao bolo.
— Não vou pegar uma infecção alimentar?
— Deixe de besteira. — Pego um prato e me sirvo da torta de
limão que dona Sérgia fez, arrisco dizer, para mim.
— Ela gosta mais de você do que de mim. — Talita balança a
cabeça e dá uma risada fraca. Ela pega um pedaço do bolo.
— A culpa não é minha se você não tem coração.
— Você sabe muito bem que isso não é verdade.
Meu sorriso some no mesmo instante e me viro para ir embora.
— Vai fugir só por que toquei no assunto? — provoca.
— Não.
— Sei.
Me apoio ao seu lado na bancada da cozinha e belisco minha
torta de limão. Tenho certeza de que vamos escutar um sermão se
Sérgia nos pegar cutucando as sobremesas antes da hora, mas não
é isso que me preocupa no momento.
Tantos erros... Você não acerta em nada, ein?
Reviro os olhos sem que Talita perceba e engulo o comentário
ácido que anseia sair da minha garganta.
— Como está o necrotério? — pergunto.
— Frio.
— Jura?
Ela dá uma risada nasalada.
— É um emprego bom, ganho bem — diz cutucando o pedaço de
bolo. — Acho que estou feliz.
— Então também estou feliz.
— Ao menos os últimos anos serviram para você virar uma
cozinheira melhor — comenta, mudando o assunto.
— Não conte com isso, essa é a única receita que aprendi.
Seu sorriso é contido, raramente mostra os dentes, mas não deixa
de ser agradável ao olhar.
— Acho que te devo desculpas — digo.
— Não. Não deve.
— Talita... — Deixo meu garfo de lado e me viro para ela.
— Eva, nós duas sabíamos que tinha data de validade. — Talita
suspira e olha para mim com tanto carinho que sinto saudade de
abraçá-la. — Você não me deve desculpas se ambas sabíamos o
que estávamos arriscando.
— É, mas...
— Deixa pra lá, ok?
Assinto hesitante e volto a comer minha torta.
O silêncio se torna incômodo, nossos olhares se cruzam vez ou
outra e há uma infinidade de palavras não ditas entre nós. Agradeço
em silêncio quando Guilherme aparece e dá um rumo diferente à
nossa conversa.
「• • •」
Como se soubesse do meu arrependimento, o Facebook me
notifica sobre um vídeo postado sete anos atrás.
Estou bêbada, sentada no meio fio e um coro de vozes me pede
para cantar.
Talita está ao meu lado com uma lata de cerveja em mãos e bate
palmas quando termino a música. Está mostrando os dentes em um
sorriso genuíno.
O vídeo finaliza com uma risada minha. Pareço feliz.
Após dias fugindo dos espelhos, me obrigo a levantar e encarar
meu reflexo atual.
Meu rosto parece inchado, mas o que mais me incomoda são
meus olhos. Estão caídos, perdidos e sem qualquer sinal de vida.
Parece que fui colocada dentro de um robô, o qual não reconheço
nada.
Foi assim que Talita me viu mais cedo?
— Quem é você? — pergunto, imersa nessa pessoa
desconhecida que me olha. Nem minha voz parece a mesma. — O
que aconteceu com a menina de cabelos dourados do vídeo?
Você nos matou. A entonação perversa contrasta com a voz
aguda. Parece uma criança ao falar e sinto que a reconheço. Aos
poucos, me dou conta de que se parece muito com minha própria
voz.
Toco o vidro com a ponta do dedo e meu reflexo repete o ato.
— Por quê? Você devia ajudar ela. Por que você não ajudou?
Por quê? Porque você não a ajudou, Eva? A voz insiste na
pergunta por longos segundos, que parecem horas.
Saio da frente do espelho e abro minha gaveta à procura de uma
tesoura. Não sei como me tornei a pessoa que olho agora e não a
desprezo por completo, mas não sou eu, não há nada de mim aqui.
Quem é essa que tomou minha imagem e distorceu meu
pensamento?
No fundo da gaveta encontro uma tesoura, giro a mão no cabelo e
faço um rabo de cavalo baixo, depois, me posiciono em frente ao
espelho.
— Você tem o controle — digo a mim mesma, antes de cortar os
fios na metade, deixando-os um pouco abaixo da orelha. — Você
tem o controle, isso não é real.
Passo a tesoura com brutalidade pelo cabelo, os fios tingidos
caem como plumas pelo chão do quarto, cobrindo cada ladrilho e se
espalhando. Ao acabar, só resta um dedo de tinta nas pontas.
Dou um sorriso de canto e viro o rosto para ver como ficou. Tem
algumas falhas, mas no geral está simétrico e bonito.
Você tem o controle, mas até quando?
Esmurro o espelho e minha face se contorce em ódio. Soco o
vidro mais uma vez, grunhindo de dor quando os cacos cortam
minha pele. Seguro minha mão direita e me arrasto até o chão,
começo a chorar apoiada na parede enquanto o sangue escorre e
suja toda minha roupa.
Grito de frustração. Guilherme não chegou ainda, então não me
importo em ser ouvida. A única que consegue me escutar é a
própria causadora dos berros — e ela também está gritando.
Capítulo 5

Tento manter minhas mãos repousadas na coxa enquanto o


avaliador passa pelas folhas do meu currículo. Um barulho esquisito
sai da minha barriga e quero correr para o banheiro, começo a suar
frio.
Meu impulso é arrancar as cutículas, mas não o faço, no lugar,
puxo o ar e estufo o peito, em uma tentativa falha de parecer
confiante e natural.
— Seu currículo é muito bom para alguém da sua idade — diz ele
ao cruzar as mãos sobre a mesa. — Por que a nossa empresa seria
a ideal para você?
Porque foi a única que me ligou e preciso de um emprego para
mostrar a Diana que estou melhorando, penso.
— Vi que vão começar a investir na parte farmacêutica e acredito
que posso ajudá-los com o meu conhecimento na veterinária. Sua
empresa é minha primeira opção tendo em vista a oportunidade de
crescimento e valores comuns, como o senso de comunidade.
Você nem sabe o que isso significa.
— Mas sua licença foi revogada. — O homem se reclina na
cadeira e tamborila os dedos sobre meu currículo.
— Sim, mas não esqueci tudo que aprendi na faculdade e nos
meus anos de experiência. Posso melhorar seus produtos e até
mesmo criar outros, conheço o mercado e as necessidades. Por
exemplo, seu último lançamento. — Ele ergue as sobrancelhas e
ajeito a postura. — Houve reclamações sobre cachorros que
perderam dentes. Isso não aconteceria com uma médica veterinária
no seu time.
O avaliador me encara de forma desconfiada e se apoia na mesa
para ficar mais próximo. Desvio o olhar para o meu currículo e volto
para ele, esperando alguma reação.
— Temos uma política rigorosa aqui na empresa. — Pausa. —
Sobre agressões.
Forço um sorriso.
— Isso não seria um problema.
— Tem certeza? — Ele tira uma pasta da gaveta e deixa sobre a
mesa. — Você foi presa duas vezes. Uma aos dezenove anos por
destruir um carro e outra um ano atrás.
— Foi um mal-entendido.
— As duas vezes?
Umedeço os lábios e sinto meu sangue ferver, fecho os punhos,
estou perdendo a paciência e minha respiração já não está tão
calma quanto antes. Utilizo todo meu autocontrole para não erguer a
voz.
— Não me entenda mal, seria ótimo ter alguém como você na
equipe. — O avaliador se levanta, dá a volta na mesa, apoia-se na
borda e olha para mim, seus olhos descem até minha mão
enfaixada. — Mas não posso colocar alguém que arrisque a
segurança da equipe.
Sinto sua mão repousar no meu ombro e meu corpo treme, há um
nó na minha garganta e não sei se devo torcer seus dedos ou
permanecer calada.
Não. Por favor, não…
— Nós podemos sumir com esses arquivos se você me prometer
que vai se comportar. — Sua mão vira o meu rosto até encará-lo. —
É isso que você quer?
Eu prometo ser uma boa menina, por favor...
Os sussurros me trazem uma sensação inexplicável de injustiça e
ódio. Meu sangue fervilha e meus olhos o fuzilam. Nos meus
pensamentos, já o matei de dez modos diferentes e carbonizei seu
corpo, mas, na vida real, abro um sorriso e toco sua mão, a tirando
devagar do meu queixo.
Por favor…
E então torço seus dedos até ele gritar de dor.
— Nunca mais toque em mim, seu filho da puta. — Largo seus
dedos retorcidos e pego minha bolsa, saindo do escritório antes que
chame os seguranças.
As lágrimas caem assim que ultrapasso a porta da empresa.
Tento segurar o choro, mas é em vão, me sinto suja e sem valor.
Cheguei ao ponto de implorar por um trabalho que nunca esteve
nos meus planos, apenas para comprovar minha sanidade. Estou na
estaca zero, perdida por completo e sem um futuro. Tudo por ter
feito o que ninguém mais fez.
Paro em frente a um carro e limpo as lágrimas, incomodada com
a atenção que recebo das pessoas na rua.
— Eva? — Fecho os olhos e torço para ser uma alucinação. —
Sabia que era você.
Me viro com um sorriso forçado e Alex some com o dele ao ver o
meu estado.
Fico à espera de que fale algo, mas seus lábios apenas se
curvam de modo tímido.
— Você não ligou.
— Desculpa, esses dias têm sido meio loucos. — Fungo e solto
uma risada fraca. — Você trabalha por aqui?
— Eu moro naquele prédio. — Ele aponta para um pequeno
prédio de dois andares na esquina. — Estou indo almoçar... Quer vir
comigo?
— Almoçar com você? — Corrijo minha postura, envergonhada do
meu estado.
— É, se...
— Quero sim. — O interrompo, antes que tenha tempo de se
arrepender.
— Ótimo.
Passo a andar ao seu lado segurando minha bolsa enquanto ele
caminha com as mãos no bolso. Ficamos em silêncio, mas não me
incomoda. Sua companhia acaba que me acalma e fico feliz por ele
não ter perguntado o que aconteceu.
Paramos em um restaurante de aparência simples. Alex me guia
pelas escadas até o segundo andar e nos sentamos em uma mesa
próxima a uma plataforma, onde alguns clientes estão espalhados
em pufes, lendo. No canto, há uma estante com títulos variados.
— É um restaurante vegetariano, espero que não se importe —
diz Alex e estende o cardápio para mim.
— Sério? — Abro um sorriso zombeteiro. É coincidência demais.
— Eu sou vegetariana...
— Então acertei no local do encontro.
A palavra “encontro” me deixa intimidada. Dou uma risada
nervosa e abro o cardápio para esconder meu rosto por trás.
— Você parece acertar em tudo.
— Deve ser o destino.
Espio seu rosto, Alex está sorrindo e desvia os olhos dos meus
quando o encaro.
— A feijoada vegana é uma delícia, mas talvez você prefira a
macarronada... — divaga e depois se vira para mim. — Podemos
pedir um de cada e você prova um pouco do meu.
Arqueio uma sobrancelha e abaixo o cardápio, assentindo. A
garçonete se aproxima e Alex faz o pedido por nós dois.
Seus olhos recaem sobre mim quando a mulher vai embora e leva
nossos cardápios, me impedindo de esconder o rosto outra vez.
— De onde você é? — pergunto. — Digo, onde você nasceu.
— Aqui — responde. —A família do meu pai tem fazendas na
área rural de Santo Oiti.
— Você deve amar essa cidade para ter ido até a França e
voltado para cá.
Seu olhar vagueia pela decoração antes de parar em mim outra
vez.
— Não diria que amo a cidade. — Alex puxa o lábio inferior,
pensativo. — Acho que não consigo esquecê-la.
Ele me encara intensamente. Sem jeito, desço meu olhar para os
guardanapos, imaginando que também vá desviar sua atenção de
mim, mas não, ele continua a me olhar. Alex passa tanto tempo
vidrado em mim, que sou atraída pelos orbes escuros mais uma
vez, mas agora, tomo coragem para sustentar seu olhar.
— Faz seis anos que fui embora dessa cidade. — Sou
surpreendida por mim mesma ao tocar no assunto com tanta
facilidade. — Nunca achei que estaria de volta.
— E por que você voltou?
— Para o enterro da minha mãe.
— Sinto muito.
Sua mão toca a minha por cima da mesa e me faz parar de puxar
as cutículas compulsivamente. Ele não pergunta sobre a atadura
cobrindo os cortes que fiz.
— Foi ano passado — murmuro. — Achei que a essa altura já
estaria de volta à capital.
— Não tem nada que te mantenha aqui?
— O meu irmão, mas não é como se ele me mantivesse aqui. —
Alex recolhe as próprias mãos e me olha confuso. — É só saudade.
— Você tem irmãos?
— Por quê? — Rio. — Não pareço ter irmãos?
— Não é...
— Estou brincando. — Abano a mão na frente do rosto e abro um
pequeno sorriso. — Guilherme é meu melhor amigo, mas é como se
fosse um irmão para mim. Sou filha única biologicamente.
Nossos pratos chegam e encerram a conversa. Dou uma primeira
garfada na macarronada e constato que, de fato, é muito boa. Alex
sorri e estende um garfo cheio para que eu prove da feijoada.
Encaro sua mão, surpresa que me ofereça comida na boca com
tanta naturalidade, uso toda minha coragem para abocanhar o garfo.
— Você estava certo. É a melhor feijoada vegana que já provei.
Alex balança a cabeça e volta a comer.
Depois do almoço, caminhamos de volta até a sua casa, onde ele
pega a moto e insiste em me levar de volta para a minha.
Sinto o vento no meu rosto enquanto seguro sua cintura com
força. Meu coração bate forte no peito e repouso a cabeça em seu
ombro, sentindo o cheiro suave do seu xampu.
Reconheço a fragrância de algum lugar e meus ombros relaxam
de imediato. O cheiro remete à minha adolescência, mesmo que eu
não consiga identificá-lo.
Ele me deixa na porta de casa e se despede com um aceno sutil.
No elevador, abro o celular e ignoro as notificações de Guilherme
para digitar uma mensagem para Alex.
“Estou mandando mensagem para você salvar meu número e me
chamar para mais tardes como essa. Não me decepcione.”
Capítulo 6

Ainda não tenho certeza sobre minha decisão ao pisar na grama


verde do cemitério.
Guilherme está a minha frente e caminha de cabeça baixa, com
uma blusa preta e uma calça jeans. Também me vesti em preto, não
por luto ou respeito, mas porque quero passar despercebida.
Meu coração bate forte durante todo o caminho, como se alguém
pudesse se levantar das covas e me apontar o dedo, me acusando
de algo que não fiz.
Guilherme para a alguns metros de mim e se vira com as mãos no
bolso. Caminho até estar na frente da lápide de Wellerson e espero
que os lampejos de memória me invadam, mas nada acontece.
Ainda não parece real que eu o tenha matado. A última coisa da
qual me lembro sobre sua infeliz existência é dos seus gritos no
enterro da minha mãe.
Não há lágrimas, apenas o sentimento maçante que é me dar
conta da pessoa horrível que me tornei.
Amnésia dissociativa.
Foi esse nome que me inocentou perante o juiz.
Pobre Eva, que não se lembra de nada e ficou em estado de
choque por meses — ao contrário, era capaz de eu ter me entregue
por conta própria.
— Eva? — Guilherme me chama, ajoelhado ao meu lado.
Ao lado da lápide do meu padrasto, está minha mãe. A foto que
escolheram para sua homenagem não é das mais bonitas.
— Desculpa — sussurro ao me afastar de seu toque.
A pouco tempo, eu acreditava que legítima defesa era o bastante
para limpar minha consciência, mas agora, vejo que não importa o
que me levou a isso, eu o matei.
E o que me garantia que não faria de novo?
Nada.
「• • •」
Médica Veterinária mata padrasto com tranquilizante de cavalo.
O título da reportagem está destacado em vermelho e meus
dedos tremem sobre o mouse ao arrastá-lo para baixo, na intenção
de ler o restante do texto. É a primeira vez que tomo coragem de
pesquisar sobre o que aconteceu um ano atrás, no dia 17 de janeiro
de 2025.
Na última sexta-feira (17/01/2025), a polícia prendeu Eva Borges,
de 27 anos, suspeita de assassinar o padrasto, Wellerson Moreira
Santos, 74 anos.
De acordo com a polícia, Wellerson Moreira, servidor público e
ministro da Igreja Coração de Cristo, foi encontrado na sala de sua
casa, onde morava com a esposa Julia Moreira, após uma parada
cardiorrespiratória causada por tranquilizante de cavalo. Havia
marcas de briga física por seus braços e peitoral.
A suspeita de cometer o crime é a enteada, Eva Borges, Médica
Veterinária. Testemunhas da igreja relataram que Wellerson Moreira
e Eva Borges não se davam bem desde que a mulher era uma
criança.
Leia a reportagem completa em nosso site.
Clico no link que me leva ao site do jornal, há uma página inteira
que faz suposições sobre minha vida e a motivação para matar
Wellerson, mas o que, de fato, me chama atenção é uma entrevista
dada ao final.
Vicente Carvalho foi amigo de infância de Eva Borges e
atualmente é o pastor responsável pelos jovens da Igreja Coração
de Cristo. Em ligação, ele afirma ter tido uma relação próxima com a
veterinária, mas que os dois se afastaram com o tempo.
“Eva se tornou alguém imprevisível e rancorosa, foi o motivo pelo
qual nos distanciamos, mesmo na época que éramos amigos, ela
tinha uma fixação anormal por Wellerson. Achávamos que era
apenas exagero de uma adolescente desvirtuada. É uma pena que
essa obsessão tenha levado a vida de alguém tão importante para a
congregação.”
Solto uma risada engasgada, sem acreditar no que leio. Não
consigo digerir que isso foi dito por Vicente. Na verdade, me esqueci
por completo da sua existência até agora.
Passo para o próximo link na pesquisa do Google. Este é mais
recente e fala sobre a sentença judicial.
Eva Borges foi absolvida pelo assassinato do padrasto, Wellerson
Moreira.
A sentença foi presidida pelo Juiz Carlos Racine, ao constatar que
o ato da acusada foi legítima defesa e que, vendo o estado
emocional em que a réu se encontrava, era impossível se tratar de
um homicídio doloso.
A Médica Veterinária foi internada nesta terça-feira (04/02/2025)
em uma clínica psiquiátrica, e deverá passar o próximo ano no local,
se recuperando dos eventos traumáticos.
Testemunhas afirmam ter escutado Wellerson Moreira atacar Eva
Borges naquela noite. A própria acusada foi a pessoa a acionar o
serviço de socorro.
Uma foto minha está anexada à reportagem.
Os guardas me levam pelos braços enquanto tento entender o
que acontece dentro de mim. Pareço ter sido desligada.
Sigo minha pesquisa, leio tão rápido que me esqueço de detalhes
que vi a pouco tempo, então pego um caderno para anotar os
principais pontos que me ressaltam.
O link seguinte me redireciona para o site da Igreja Coração de
Cristo. Sinto meu estômago revirar e agradeço a mim mesma por
não ter comido nada o dia inteiro.
É um vídeo em homenagem a Wellerson.
Suspiro e bato os dedos no teclado de forma ansiosa. Em um
impulso de coragem acabo por dar play e assistir, antes mesmo de
raciocinar meus medos.
Uma foto de Wellerson agarrado a Julia inicia a homenagem, por
trás, um hino cristão toca, mas logo diminui o volume para dar
abertura à imagem do pai de Vicente, o pastor da Coração de
Cristo.
“É com muita tristeza que iniciamos essa homenagem. Wellerson
Moreira foi nosso ministro de oração durante vinte e três anos, esse
homem acrescentou muito à nossa congregação. Era um bom
amigo, marido e padrasto.”
Sinto meu corpo se contorcer e pego o lixeiro que há em minha
escrivaninha. Vomito apenas bile e água, o líquido ácido rasga
minha garganta e deixa minha boca com gosto de merda.
“Conheci Wellerson no início de seu relacionamento com Julia.
Me lembro que o aconselhei a não se relacionar com ela, pois era
uma mulher abandonada pelo primeiro marido e com uma filha
pequena de apenas cinco anos. Ele não me ouviu, era bom demais
para deixar Julia desassistida. Ele foi como um pai para aquela
menina.”
A voz da pastora da congregação, mãe de Vicente, é pano de
fundo para meu vômito. Dou pause no vídeo e limpo minha boca
com as costas da mão.
Vou ao banheiro jogar o conteúdo do lixo no vaso sanitário e
escovar meus dentes. Esses foram os dois minutos e meio mais
longos de minha vida.
Engulo dois comprimidos de calmante com uma garrafa de água
que deve estar ali a dias, está quente e minha boca implora por
mais, mas não quero sair e encarar Guilherme.
Continuo minha pesquisa enquanto anoto a ordem dos fatos em
meu caderno:

1. Mais cedo naquele dia, fui à fazenda do senhor Jorge. A


égua dele estava doente e ele não confiava em outra pessoa
além de mim.
2. Fui ao enterro.
3. Wellerson me convenceu a ir à casa da minha mãe
quando o velório acabou, pois ela deixou algo para mim lá. O
que era? Não recebi.
4. De acordo com os jornais iniciamos uma briga corpo a
corpo que resultou em sua morte com o tranquilizante de
cavalo. Por que eu estava com o tranquilizante na bolsa?
Sempre coloco na maleta. A maleta estava no carro.
5. Há uma gravação da minha ligação para a ambulância.
Tentei salvá-lo.
6. A polícia chegou e eu fui presa.

A última coisa da qual tenho certeza é de estar estacionada na


frente do prédio.
Que conveniente essa amnésia dissociativa.
— Não acho — murmuro. — Preferia saber a verdade.
Você sabe a verdade, só não quer vê-la.
Paro de escrever por um segundo. É estranho quando ela me
responde, porque ao mesmo tempo que se parece comigo, também
parece ter vida própria.
Balanço a cabeça em negação e volto minha atenção aos fatos.
Guilherme estava na direção e insistiu em subir comigo, mas
neguei repetidas vezes. Nós poderíamos ter ido embora ou ficado,
não faria diferença, pois eu não me lembraria da mesma forma.
Depois disso, estou na casa do meu amigo, envolta em lençóis
enquanto ele me faz café. Está quente, mas me sinto mais protegida
dessa forma.
Deve ser uma lembrança do dia em que saí de custódia.
Devoro o restante das reportagens até que elas começam a se
repetir e percebo que é hora de encerrar minha pesquisa por ali.
Jogo meu nome na barra de pesquisa do Twitter e me preparo
para os comentários maldosos que provavelmente irei encontrar.
Enquanto observo a página carregar, inspiro fundo e expiro
devagar. Sei o quanto a internet tornou as pessoas perversas, por
isso fico ansiosa. Do outro lado da tela todos se sentem no direito
de falar o que pensam, sem calcular os efeitos causados. Não tenho
certeza se estou pronta para ser crucificada na internet.
Sou surpreendida ao perceber que, na verdade, a maioria está ao
meu favor. Poucos são os que me crucificam.
Deslizo pela página enquanto leio dos tweets mais novos até os
mais antigos. Observo as pessoas vibrarem com minha absolvição e
uma minoria reclamar da decisão do juiz.
Durante meses, um usuário é rotineiro nos comentários.
PequenaEva01 discute com internautas sobre mim, relatando
como sou uma pessoa amorosa e preocupada com os outros, que
jamais machucaria outro ser humano se não fosse alguém horrível
como Wellerson.
Sua conta está com uma thread fixada e não sei se me
surpreendo primeiro com o título ou com a quantidade de retweets.
Por que Eva Borges fez um favor a humanidade: A thread que
conta a verdade.
Em meados de 2015 conheci Eva e, consequentemente,
Wellerson. Ele se mostrou uma pessoa inconveniente de início, fazia
questão de me tocar e abraçar, apesar de ser um homem de meia
idade e, eu, uma menina de vinte anos.
Wellerson tem histórico de abuso de substâncias e estupro. Ele
usa a palavra de Deus para dizer que foi salvo, mas quem tem o
mínimo contato com o ministro da Igreja Coração de Cristo sabe que
não é verdade.
Já vi mais de uma vez Julia, esposa de Wellerson, com sinais de
abuso físico e psicológico, apesar de ela negar inúmeras vezes.
Wellerson era um homem abusivo, imprevisível e controlador.
Na verdade, todos naquela igreja são. Coração de Cristo é o
nome que esconde estupradores, pedófilos e abusadores. A melhor
parte dessa igreja são os hipócritas. O restante é a escória da
humanidade que usa o poder divino para encobrir os crimes um dos
outros.
Tomo dois comprimidos do calmante, pois sinto que a ansiedade
volta a me atacar. Continuo a olhar, obcecada, a tela do computador.
A thread feita pela PequenaEva01 incentivou meninas que
frequentavam a Coração de Cristo a contarem suas histórias.
É estranho que me sinta melhor ao ver que não fui a única a
sofrer nas mãos de um homem poderoso que usou o nome de Deus
para encobrir seus abusos, mas é assim que me sinto.
Durante toda minha adolescência passada nessa igreja, me senti
sozinha e incompreendida. Com Wellerson em um cargo poderoso e
visto como alguém abençoado, meus relatos foram jogados de lado
e eu taxada como louca. Minha própria mãe encobria suas mentiras
e fechava os olhos para o que não queria ver, chegando até a me
questionar se eu não inventava tudo para chamar atenção.
Saber que alguém compreende uma parte do que passei me traz
um pouco de paz.
Sinto uma lágrima escorrer pelo meu rosto.
Naquela época me afundei tanto no meu sofrimento e desespero,
que não percebi que simultaneamente a ele outras meninas também
sofriam.
Reconheço entre os relatos nomes de vítimas e abusadores, e as
peças começam a se encaixar. Comportamentos que antes
pareciam ser sem sentido, agora fazem parte de um repertório de
testemunhos.
Alguém bate na porta e em seguida a abre, tiro os olhos da rede
social e dou atenção a visita inconveniente.
Guilherme vem até a escrivaninha cabisbaixo. Estou dividida em
mandá-lo embora para continuar lendo os tweets e lhe pedir um
abraço.
— Não faça isso — diz. — Me afastar.
— Gui. — Não tenho coragem de olhá-lo. — Eu matei alguém.
Não importa o motivo, eu sou culpada, mesmo que a justiça tenha
me absolvido. Você não merece alguém assim na sua vida.
O fantasma do meu padrasto está certo em me perseguir, sou um
monstro que merece ser torturado.
Pela primeira vez, me sinto digna de ir ao inferno.
— Eva. — Ele se apoia na escrivaninha e segura minhas mãos.
— Tem algo que eu preciso te contar sobre aquela noite.
Fico em silêncio e espero que continue. Ele hesita.
— Eu menti para você. — O vejo soltar o ar de forma demorada.
— No meu testemunho, falei que subi junto com a polícia para o
apartamento, mas é mentira. Fiquei com medo de te deixar sozinha
e subi antes. Quando cheguei, Wellerson já estava morto.
— Guilherme... — De repente minha boca ficou seca, umedeço os
lábios. — Não sei se estou entendendo.
— Eu sou seu cúmplice. — Silêncio. — E a sua vizinha também.
「• • •」
À noite, ao deitar a cabeça no travesseiro, uma dor anormal toma
conta de mim.
Parece que alguém corta um pedaço do meu coração e joga aos
lobos, sinto que me despedaço de dentro para fora até que reste
apenas lágrimas e sangue.
A dor não me deixa respirar, mas em seguida percebo que não é
essa a causa, é a água.
O universo ainda está lá, o barulho dos carros na rua, o latido do
cachorro da vizinha, mas tudo parece distante demais. Já a água ao
meu redor parece tão real que posso senti-la se mover pelos meus
dedos.
Olho para baixo, a procura de algo que prenda meu pé, alguma
corda talvez, porque não consigo chegar à superfície, então deve ter
algo.
Exceto que não têm.
É como se eu estivesse em um aquário vedado por todos os
lados. A única coisa que consigo escutar é a voz dela gritando
distante.
Pelo amor de Deus, não! Alguém me ajude!
Bato no vidro e grito por ajuda, por mim e por ela, mas minha voz
sai abafada. Vejo meus dedos se dissolverem ao tentar bater no
aquário outra vez.
Minha pele se deteriora rápido, como se a água fosse alguma
espécie de ácido.
Observo em choque o sangue sair por minhas veias e sujar todo o
azul de vermelho. A cor me cega e em minutos passo a sufocar em
meu próprio sangue.
O gosto de ferrugem se mistura com o cloro.
Fecho os olhos, sentindo que não há mais como lutar.
Talvez meu rosto também esteja derretendo, pois paro de senti-lo
e logo em seguida perco a consciência.
Capítulo 7

Não sinto meus braços e pernas, tenho certeza de que os perdi.


Minha boca está seca e machucada, e minha garganta range ao
tentar falar. Engulo saliva na tentativa de umedecê-la.
Guilherme se aproxima ao notar que acordei, ele segura minha
cabeça e derrama água sobre meus lábios.
— O que aconteceu? — pergunto com a voz fanha.
Noto o motivo pelo qual não consigo me mover: virei uma múmia
mal-acabada. As ataduras cobrem meu pulso e vão até o meu
cotovelo, há também curativos sobre as coxas, que estão
manchadas de sangue, sabe-se lá o porquê.
— Eu não sei o que aconteceu, Eva. — Pelos olhos vermelhos de
Guilherme suponho que tenha chorado. — No sábado, depois de
conversarmos, fui para o meu quarto. Acordei de madrugada com
um pressentimento ruim e vim te ver. Você estava no banheiro, tinha
cortado suas pernas e braços com o vidro do espelho. Não quis te
levar ao hospital porque sei que você não quer que ninguém saiba
das suas crises, ainda assim, fiquei com tanto medo. — Ele segura
minha mão. — Você fez cortes profundos, mas nenhum que
pudesse te matar, então cuidei de você e torci para que ficasse bem.
— Obrigada — murmuro, estarrecida. — Que dia é hoje?
— Segunda. — Seus olhos percorrem os meus curativos. — O
que aconteceu?
— Não sei — admito com dificuldade. — Não me lembro de nada
disso, só lembro de cair no sono e ter um pesadelo.
Ele passa a mão pelo rosto e inspira fundo.
— Eu não deveria ter falado nada.
— Então é verdade? Achei que tivesse sonhado isso também. —
Ele assente. — Guilherme... — me estico na cama, mas me
arrependo no mesmo momento. Torço o rosto em uma careta de
dor. — Não é sua culpa.
— Acho que seria bom você ligar para sua terapeuta. —
Guilherme repousa a mão no meu tornozelo, fazendo um carinho
sútil. — Se você quiser, posso ligar e explicar o que aconteceu.
Balanço a cabeça para cima e para baixo, sem forças para
continuar a falar, e volto a apoiar a cabeça no travesseiro.
Em um lampejo vejo a água novamente, reluzindo no teto branco.
Estou tão chapada que o esforço para lembrar de algo é uma piada,
a única vantagem é o silêncio. Não há nenhuma voz sussurrando no
meu ouvido.
Parece que enfim algo te calou, penso.
Com meus olhos pesando e minha mente desligando, vario entre
a consciência e inconsciência diversas vezes.
Posso ver o momento em que Guilherme se levanta e pega o
telefone, consigo captar partes da sua conversa com Diana, mas
não o suficiente para compreender o assunto.
Estou cansada demais para querer entender e desperdiçar a paz
que o silêncio trouxe.
「• • •」
Algo que poucas pessoas compreendem sobre automutilação, é
que não se trata de querer morrer, mas sim de não aguentar a dor
psicológica dentro de nós.
É canalizar o que me impede de respirar para algo físico, algo que
posso controlar.
Sempre é sobre controle. Até quando queremos morrer.
Só consigo despertar e ter coragem para me mover horas depois.
O sol já se põe no horizonte. Devo ter dormido por uns dois dias,
mas ainda sinto meu corpo exausto ao tentar me sentar e olhar os
machucados.
Desfaço o nó das ataduras e as desenrolo devagar, minha pele
reclama do atrito, deixo os pedaços brancos do curativo jogados na
cama e observo as cicatrizes profundas em meu braço.
Minha tatuagem está desfigurada e a águia parece ter sido
brutalmente degolada, pois uma faixa vermelha lhe corta a garganta.
Os cortes ainda estão recentes e inflamados. Doem ao toque,
mas não há mais sangue.
Desfaço o curativo do outro braço, me decidindo se estou enojada
ou satisfeita pelo trabalho que minha loucura causou.
São garranchos grotescos, sem sentido algum, sobrepõem uns
aos outros e contrastam com a cor branca da minha pele. Minha
mente doente cria afeto pela imagem horrenda.
Minhas coxas estão em estado pior. Não vou conseguir andar
direito por um tempo. Os machucados ocupam parte da minha
virilha até o meio das coxas, por dentro e por fora, como se
traçassem o caminho para o meio das minhas pernas.
Há tantas cicatrizes, que foi preciso que eu cortasse mais fundo
para sentir algo.
Meus dedos tateiam o local, sentindo as elevações, e param ao
perceber que alguns cortes ainda sangram.
É provável que precisassem de pontos, mas como Guilherme não
me levou ao hospital, já entraram em processo de cicatrização
sozinhos.
— Você acordou. — Meus ombros tremem com o susto. —
Calma, sou eu. Tudo bem? — Seus olhos estão sobre meus cortes,
mas logo desviam para o meu rosto.
Balanço a cabeça e forço um sorriso de canto, que deve ter saído
mais como uma careta. Ele se aproxima com um copo de vitamina
na mão e me entrega.
— Diana vai vir te visitar agora a noite e um tal de Alex não para
de ligar. — Guilherme recolhe as ataduras usadas e se senta na
cama. — Quer ajuda para tomar banho?
— Só me leve até o banheiro — digo. — Depois eu me viro.
Ele concorda. Tenho certeza de que também não gostaria de me
dar banho, seria inconveniente para nós dois.
Guilherme espera que eu termine a vitamina para me carregar até
o banheiro. Não tenho que fazer nenhum movimento, mas meu
corpo reclama da mesma forma. Escondo a minha cara de dor até
que ele feche a porta e me deixe sozinha.
Puxo o ar com força para me concentrar em algo além da água
chicoteando minha pele mutilada, bato o punho contra os ladrilhos, e
sinto os machucados arderem para um inferno. Engulo um grito de
dor e minha vista fica turva por um segundo.
A tortura continua quando tenho que me enrolar na toalha, o
tecido roça nos machucados e tenho a impressão de que mancho
tudo de sangue.
Guilherme deixou um pijama mais apresentável em cima do vaso
sanitário, e junto dele há mais ataduras. Opto por fazer um curativo
apenas nas coxas que é onde os cortes estão piores e deixo os
braços à mostra.
Ele me estende o telefone assim que saio do banheiro.
— Alex está ligando. De novo.
Encaro o celular e vejo a tela piscar com a ligação insistente.
Pego e atendo, ouvindo Alex soltar um suspiro do outro lado da
linha.
— Eva?
— Sou eu.
— Graças a Deus! — exclama e quase posso visualizá-lo pondo a
mão na testa de forma preocupada. — Estava morrendo de
preocupação, seu irmão me falou que você está doente e não podia
me atender. Como você está? Posso te visitar?
— Calma. — Arqueio uma sobrancelha para Guilherme, que me
observa de cara fechada enquanto converso com Alex. — Eu estou
bem, foi só... — Espero que meu amigo soletre “virose” de forma
exagerada e sem som para respondê-lo. — Só uma virose muito
forte, é melhor você não vir, pode pegar.
— Minha saúde é forte, posso ir te visitar.
— É melhor não...
— Ok. Eu ainda estou no trabalho, posso te ligar mais tarde?
— Claro.
Alex desliga e me deixa a sós com Guilherme. Meu amigo me
estende um copo de água, sem fazer grandes questionamentos
sobre a ligação.
— Fala alguma coisa — peço.
Guilherme comprime os lábios, o que geralmente não é bom sinal.
Ele se senta ao meu lado e puxa o lençol para cobrir suas pernas.
— Quem é esse?
— Um amigo que conheci na clínica.
Voltamos a ficar em silêncio. Ainda estou atordoada pelo cansaço
emocional, então, o tempo passa devagar e arrastado, parecendo
durar muito.
— E por que ele te liga tanto?
Dou um sorriso débil.
— Tá com ciúme?
Guilherme revira os olhos. Passamos mais alguns segundos sem
conversar, até que ele volta a falar.
— Já que estamos falando disso — diz. — Acho que nunca vou
conseguir esquecê-la.
— Não. — Aponto o dedo para seu rosto. — Não diga que é ela
de novo.
— Você sabe que é. — Bufo lentamente, na tentativa de mostrar
ao máximo minha repulsa. — Ela me ligou todos esses dias que não
fui trabalhar.
— Gui, olha para mim. — Seguro seu rosto com minhas mãos. —
Isis teve a oportunidade de te escolher e não o fez, ela tem uma
filha com outro homem. Da última vez que você achou que ia dar
certo, não deu. Não é agora que vai dar.
— Todo mundo merece uma segunda chance.
— Meu Deus! Não é segunda, é décima chance! — exclamo,
engolindo sílabas com minha língua pesada. — Nunca vi alguém tão
trouxa em toda a minha vida.
Guilherme ri.
— Não sei se em algum momento deixei de estar apaixonado. —
Pestaneja, e suas sobrancelhas formam uma linha. — Ela sabe
como mexer comigo, não entendo isso. E aquele corpo não ajuda.
— É poder, você deu esse poder para ela. — Atropelo as palavras
outra vez. — Você me deu algum remédio?
— Sim, você me pediu um calmante horas atrás. Sua memória
está ruim assim?
— Normal — balbucio ao fechar os olhos. — O que a Isis fez além
de te ligar esses dias? Você precisa de mais do que isso para uma
recaída.
— Abra os olhos — ordena e, ao fazê-lo, encaro seu celular perto
demais do meu rosto.
Afasto o aparelho com um tapa débil em sua mão.
Uma foto da Isis de lingerie estampa a tela, é compreensível que
Guilherme pense nela, sua parceira na polícia tem um corpo de tirar
o fôlego e um jeito que faz qualquer homem comer em sua mão.
Até eu arriscaria quebrar meu coração se Isis me desse uma
chance, principalmente se usasse o uniforme dentro de casa.
— Esperta — digo com um sorriso chapado e Guilherme assente.
— Ela mandou sem querer.
Levanto minha cabeça para encará-lo.
— Foi o que ela disse — completa. — Mas nós não acreditamos
nisso, que fique claro.
— Ok. — Volto a me deitar. — Ela também não facilita sua vida.
— Definitivamente não.
O som do interfone encerra nossa conversa, Guilherme se levanta
para atendê-lo e me ajeito na cama para receber Diana. Agradeço
em silêncio ao meu eu grogue que pediu um calmante algumas
horas atrás, ou então estaria ansiosa para explicar o que aconteceu
para minha terapeuta.
Mas afinal, o que aconteceu?
Você enlouqueceu, idiota.
Demorou para o diabo aparecer, penso.
Duas batidas leves precedem o rosto da minha psicóloga. Seu
cabelo, tão escuro quanto sua pele, foi alisado e escorre ao lado do
rosto. Ela me direciona um sorriso pequeno antes de entrar no
quarto.
— Seja bem-vinda a minha caverna. Fique à vontade.
— Como você está, querida?
— Não sei. — Talvez tudo esteja confuso e eu apenas não sinta
nada, ou então adentrei tão profundo na minha loucura que me
esqueci como ser humana. — Estou sobre efeitos de calmantes
fortíssimos.
— O que aconteceu, Eva?
— Também não sei. — Dou de ombros. — Foi uma grande
confusão — completo, com a voz arrastada e um sorriso de canto.
Diana assente enquanto olha para meus braços machucados.
— Fui ao cemitério.
— Por isso se cortou?
— Não. Acho que não. Quer dizer... — Engulo em seco. — Estou
cansada disso. Todo mundo a minha volta morre.
— O que te leva a acreditar nisso?
— É a verdade. Meus avós morreram, Túlio morreu, minha mãe
morreu. E se eu tiver matado todos eles e não me lembro? —
Comprimo os lábios, frustrada. — Como eu não me lembro?
— Eva...
— Eu sei. Amnésia dissociativa. Eu sei.
— Não era isso que eu ia falar. — Fico em silêncio e espero que
fale. — Não tem como você ter matado essas pessoas, você sabe
disso. Seus avós morreram em um acidente, sua mãe de overdose.
Não sei do que Túlio morreu, mas tenho certeza de que não foi sua
culpa também.
— Suicídio.
Diana ergue as sobrancelhas.
— Foi o que disseram. — Encaro a parede.
Sinto meu coração apertar. Sempre tive medo de me esquecer
como Túlio era.
Dos seus cabelos escuros e da pele dourada, de como seu
sorriso levantava mais no canto direito que no esquerdo.
De como virou meu mundo em poucos meses.
Não sei se me apaixonei por ele nas máquinas de dança Pump It
Up, ou quando roubou um beijo na praça perto da minha casa. Não
importa, porque, um dia, percebi que o amava mais do que a mim
mesma.
— Não posso culpá-lo, eu também iria embora se pudesse.
Diana fica em silêncio enquanto espera que eu termine a história.
Já estou em terapia há um ano e nunca citei o nome de Túlio, acho
que tinha medo de desenterrar a verdade. Hesito, com medo de
soar louca.
— Eu disse que morreria se ele me deixasse, que iria cortar meus
pulsos no chão do banheiro. — Fujo de seu olhar. — Na época, a
dor foi insuportável. Até hoje parece que uma parte de mim ficou
com ele. E eu tentei morrer, mais de uma vez. — Prendo o ar
enquanto olho para canto nenhum. — Durante três semanas
terminamos e voltamos mais vezes do que posso contar, algumas
ele mesmo voltou atrás e eu não precisei convencê-lo. Até que
acabou.
— Como acabou?
Não sinto meu coração pulsar e nem meus dedos se mexerem.
Parece que minha alma deixou o corpo e que agora estou a vagar
pelas lembranças que me fizeram parar aqui.
— Antes, eu queria morrer. Depois, eu queria matá-lo.
Fico à espera das lágrimas ou do arrependimento. Algum
sentimento que me mostre que ainda sou humana e estou nesse
plano, mas nada vem. Nem mesmo o triste fim de Túlio é capaz de
me tirar uma reação.
— Encontraram ele na semana seguinte com os pulsos cortados
no chão do banheiro.
Capítulo 8

Minha nuca lateja com as vozes repetitivas.


Não consigo me mover. Estou parada em frente à Igreja Coração
de Cristo, com os fantasmas do meu passado consumindo o
restante da minha sanidade, e não consigo ir embora.
Em nome de Jesus, eu ordeno que saia! Você não tem lugar aqui,
satanás!
A voz de Wellerson berra no meu ouvido. Uma gota de suor
escorre pelo canto do meu rosto e sinto a respiração falhar.
Os ministros da congregação estão a minha volta, suas mãos
pesam na minha cabeça e sou chacoalhada de um lado para o outro
enquanto oram em desarmonia.
Uma baforada quente vem da varanda, junto da fumaça. Observo
todas as fotos, presentes e lembranças que tenho da minha amiga
de infância serem queimadas em uma fogueira improvisada.
O apartamento poderia pegar fogo que não faria diferença, a
melhor parte de mim foi arrancada naquele momento.
A palma do meu padrasto pressiona minhas costas com
brutalidade e sou jogada contra o chão. Minha mãe se apressa em
vir me ajudar, mas Wellerson a impede.
Não me movo, com medo de que pensem que o demônio ainda
está em mim.
Meu rosto está a poucos centímetros da fogueira e a fumaça faz
meus olhos se encherem de lágrimas, o que me obriga a fechá-los.
Visualizo o rosto da Alexia, agora que essa é minha única
lembrança tenho medo de esquecê-la também. Nos meus sonhos
lúcidos, ela abre um pequeno sorriso e pisca devagar enquanto me
encara com seus olhos profundos.
O som de passos me traz de volta a realidade. Percebo que estou
chorando e limpo as lágrimas com pressa.
Vicente e Lia estão diante de mim. Dou uma risada fraca e
indignada, minha mente esqueceu dos limites ao me fazer recordar
desses dois.
— Eva? — Meu corpo tenciona por completo, a voz parece perto
demais para ser uma lembrança.
A construção enorme os faz parecer pequenos. Lia está de braços
dados com Vicente e juntos descem as escadarias da igreja.
Se eles caíssem e quebrassem o pescoço, você podia sair
andando e fingir que não viu.
Poderia mesmo, penso.
— Que bom vê-la aqui. Veio para o culto? — diz Vicente com um
sorriso cortês.
Dou uma risada amargurada e uma fungada, limpando o nariz
com a mão.
— Bom? É pecado mentir, pastor.
Ele se remexe desconfortável e Lia segura sua mão para acalmá-
lo. Arqueio uma sobrancelha ao notar o anel no dedo dos dois.
— Como você está? — Minha antiga amiga me pergunta ao
repousar a mão sobre a minha. Recuo, assustada que seja real. —
Sinto muito pela sua mãe.
— E ainda assim você se casou com uma pessoa que defende o
abusador dela. — Olho para Vicente. — Cuidado para ele não bater
e te manipular também.
— Sua...
— Vicente não é assim, você sabe. — Lia o interrompe.
Cruzo os braços e me encolho.
— Não sei mais de nada sobre vocês dois. — A olho de cima a
baixo, se tornou exatamente quem imaginei. — Sempre soube que
iam ser os servos de Deus que tanto queriam, mas não achei que
iam defender o que acontece aqui.
— Não defendemos nada errado, Eva. Foi você quem matou uma
pessoa, não nós. — Vicente puxa Lia para perto dele. — Você não
deveria ter vindo aqui.
— Ah, é? — Ergo o queixo, sorrindo. — Uma pena para você que
fui absolvida e posso andar por onde quiser, não é?
Lia balança a cabeça indignada. Não parece a menina sorridente
que costumava brincar comigo pelos corredores da igreja, seu brilho
se apagou e até as roupas que usa lhe deixam mais velha do que é.
— Você nunca nos deu a oportunidade de te ajudar. — Ela fala e
solta a mão do marido. — Vou orar por você, Eva.
— Não finja que sente muito por mim, eu vi a entrevista que
Vicente deu. Eu sou a infeliz desvirtuada, não é? Obcecada com
Wellerson. — Silêncio. — É fácil mentir para Deus, Vicente?
Não espero que me responda, pela dureza dos seus olhos sei que
não há resposta à altura em sua mente. Dou as costas para os dois
e caminho em passos largos para o mais longe da Igreja Coração
de Cristo.
Meus pulsos se fecham com força e sinto as unhas perfurarem a
pele.
Há um bar duas ruas depois, o local está vazio por conta do
horário, exceto por dois bêbados no fundo. Me sento na bancada e
peço duas doses de tequila, observo ansiosa o barman despejar o
álcool nos copos minúsculos e os viro assim que termina.
Sinto meu sangue fervilhar e peço mais doses de imediato. A
bebida rasga minha garganta, mas me traz alívio. Meus punhos se
abrem e noto a marca das unhas na palma, pequenas gotas de
sangue se acumulam nos cortes que fiz.
Minha mão repousa sobre a coxa, onde sei que os outros cortes
ainda estão sensíveis, e pressiono a palma contra o jeans. Uma
música baixa toca ao fundo do bar e o cheiro de batata frita faz meu
estômago roncar.
Esqueci de comer o dia inteiro e que a tequila é a primeira coisa a
ser digerida em horas.
Peço uma porção junto das próximas doses. O barman deixa a
garrafa no balcão, cansado de me servir.
— Tequila? — Me viro devagar, disposta a enxotar o homem
inconveniente que se senta ao meu lado. Alex sorri.
— Minha favorita — respondo.
Ele ergue o pulso e confere o horário, então dá de ombros e puxa
um dos copos para perto, se servindo de uma dose.
— O que você está fazendo aqui? — As batatas fritas chegam,
inspiro o cheiro delicioso que exalam antes de devorá-las.
— Tive que resolver umas coisas desse lado da cidade. E você?
— O mesmo.
— Suas coisas não parecem ter ido bem. — Ele me olha. — Quer
conversar sobre isso?
Dou uma risada de boca cheia, Alex parece me conhecer melhor
do que eu mesma. Não consigo ficar calada por muito tempo e a
pergunta que me fez tira o peso de tentar manter a conversa
animada.
— Eva é mais um verbo do que um nome, sabia? — Encho meu
copo antes de continuar. — Adão chamou Eva de hawwah, que está
relacionado a vida. Ele a chamou assim porque foi Eva quem
povoou a terra.
— Foi por isso que sua mãe te deu esse nome?
— Também, mas foi mais por Eva ser a criação perfeita de Deus.
Na concepção da minha mãe, eu era a criação perfeita dela. — Dou
um sorriso fraco e viro a tequila sobre meus lábios. Minha visão fica
turva e decido parar de beber por um instante. — Ela se esqueceu
que Eva também foi a primeira pecadora, quem ofereceu o fruto
proibido para Adão. Não é bom ter um nome desses em uma igreja
evangélica, as crianças sacaneiam, crentes ou não.
Encaro a prateleira de bebidas à minha frente, sem ter coragem
de olhar para Alex.
— Vicente e Lia eram os únicos que não brincavam com o meu
nome, crescemos juntos na Coração de Cristo. — Meus dedos
passam pela borda do copo e me distraio com o som que faz. —
Vicente é filho do pastor, então era esperado ele assumir a igreja,
porque o irmão mais velho não quis e a do meio é mulher. Já Lia foi
criada para ser a esposa perfeita. Sinceramente, não sei como me
encaixei entre esses dois.
Nos visualizo rodopiando pelo parquinho da igreja, rindo e caindo
na areia. Meus dedos tocam a mão de Vicente e Lia sorri para mim.
Sem jeito, olho para Alex.
—Não tinha nada em Vicente que me atraísse, só o poder de
varão prometido, filho do pastor. Estar com Vicente era bom aos
olhos da minha mãe e, naquele momento, isso era tudo que eu
precisava, então eu me declarei. — Dou uma risada fraca. — Ele me
humilhou diante de todos os adolescentes da congregação quando
disse que eu nunca seria uma boa esposa, que era Lia quem era
uma dama e que eu precisava aprender com ela. Esse foi o começo
do fim da nossa amizade.
— Você parece perfeita para mim.
Alex toca a minha mão, o que faz com que eu pare de cravar as
unhas na palma.
— Não sou nem um pouco.
— Então ele foi seu primeiro amor? — Alex recolhe sua mão e
volta ao assunto.
— Tecnicamente, não foi amor. — Volto a encher meu copo e
sirvo bebida para ele também. — E você? Quem foi seu primeiro
amor?
— A melhor amiga da minha irmã. — Alex abre um sorriso
nervoso. — Ela foi meu primeiro amor, mas também foi o último.
「• • •」
A mistura de medicação tarja preta com tequila me deixa
embriagada depressa.
Alex está atrás de mim e me ensina a jogar bilhar, mas sou
péssima e não consigo focar nas bolas, então ele acaba desistindo
e me segura pela cintura para que eu não caia. Me apoio na mesa,
perdida em seus olhos escuros, enquanto ele ri da minha
embriaguez.
Há algo nele que me conforta. Não sei se são seus olhos, tão
nostálgicos, ou o jeito que sorri.
Não consigo entender como seu primeiro amor foi capaz de o trair
com a irmã dele, mas Alex se recusa a me dar mais detalhes, então
esqueço o assunto.
— Adoro o jeito que você me olha — confessa no meu ouvido. —
Parece que está me desafiando.
— Talvez eu esteja.
O canto dos seus lábios sobe em um sorriso pequeno.
Sua mão vem até a minha nuca e acaricia minha pele enquanto
brinca com os fios curtos. Alex cola seu corpo ao meu sem pressa, e
aproveito a sensação da sua mão na minha.
Encosto meus dedos no seu rosto e me aproximo para beijá-lo ao
que Alex recua com um sorriso esperto. No segundo seguinte, me
beija.
Seus lábios têm gosto de tequila e são maleáveis aos meus, toda
a tensão acumulada se esvai no momento em que sou puxada pela
cintura e aprofunda o beijo.
O sinto tocar meu ombro e subir pelo meu pescoço, faço o mesmo
e o puxo para mais perto de mim.
Me afasto bruscamente pondo a mão sobre a boca, peço um
minuto para Alex com a outra mão e sumo por entre os corredores
do bar até achar o banheiro.
Estou ofegante e o suor escorre pela minha testa ao me ajoelhar
para vomitar. Toda a bebida e comida consumida nas últimas horas
sai pela minha boca em uma enxurrada e quando penso que
acabou, mais uma sessão de vômito se inicia.
Sinto uma mão acariciar o meu cabelo e ergo o rosto, confusa.
Talita está com as sobrancelhas arqueadas, curvada sobre mim e
massageando minhas costas.
— Se sente melhor?
— Isso é um sonho? — pergunto débil.
— Não. — Ela ri. — É real.
— O que você está fazendo aqui?
— A equipe quis tomar uma cerveja depois do trabalho. — Talita
me ajuda a levantar. — Vi você correndo pro banheiro. Quem é o
cara que estava com você?
Dou um sorriso discreto e pego papel higiênico para limpar meus
lábios.
— Alex.
— Vocês parecem estar se dando bem. — Ela arqueia uma
sobrancelha.
— Somos amigos.
— É. — Talita foge do meu olhar. — Sei que não é da minha
conta, mas você está bem para estar beijando desconhecidos? Não
prefere ir para casa? Eu posso te levar.
Gargarejo com água e cuspo na pia, o gosto de vômito volta para
a minha boca e torço o rosto com nojo.
— Estou bem.
— Quanto você bebeu?
— Você não é mais minha namorada, Talita. Não precisa fiscalizar
o que eu faço. — Sou impedida de passar pela porta.
— Eu me preocupo com você, Eva.
— Pois não precisa.
Cruzo os braços e espero que saia da frente. Talita enche os
pulmões e me dá passagem.
Alex está no bar e assim que me aproximo desliza um copo de
água na minha direção.
— Tudo bem?
— Sim. — Forço um sorriso e tomo a água, o sabor se mistura ao
gosto de vômito e me traz o enjoo de volta. — O que você acha de
sair daqui?
— Para onde você quer ir?
— Não sei. Me surpreenda.
Ele olha para a porta do bar.
— Eu estou de moto, mas não sei se...
— Não tem problema, vamos.
Do lado de fora, Alex me oferece o capacete extra. Me sento na
garupa da moto e seguro na sua cintura.
Antes de ir, olho uma última vez para o bar.
Meus olhos encontram os de Talita, que está imóvel de trás da
janela. No momento em que Alex dá partida, ela se vira e vai
embora.
Capítulo 9

O cheiro de ovos fritos faz meu estômago rugir antes mesmo que
eu esteja de pé.
Cubro meus olhos com a mão, desconfortável com a luz que entra
pela janela, e saio da cama. Estou vestindo uma camiseta que não é
minha e minha roupa da noite anterior está dobrada sobre uma
cadeira.
Fecho as cortinas com brutalidade enquanto solto o ar pelo nariz
de forma demorada. Minha cabeça dói e, apesar da fome, sinto que
não vou conseguir ingerir nada sem vomitar.
— Bom dia. — Alex aparece na porta vestindo uma calça moletom
e uma camisa cinza. — Tem remédio na mesa junto do café da
manhã.
O acompanho por não ter mais o que fazer. Minha mente está
confusa e tento organizar os acontecimentos da noite anterior, mas
falho. Dessa vez não foi a amnésia dissociativa que apagou os
eventos traumáticos, mas sim a tequila.
Engulo o comprimido com suco de laranja e me sento ao seu
lado, me sirvo de um pedaço de pão e ovos enquanto o olho de
soslaio. Parece relaxado, seu cabelo encaracolado está bagunçado.
— Desculpa se isso parecer rude, mas...
— Não.
— Você não sabe o que eu ia perguntar.
— Nós não transamos.
Comprimo os lábios para calar minha boca, pois é exatamente o
que ia questionar. Meu foco volta à comida no prato.
— Não que você não tenha tentado. — Ele dá um sorriso tímido e
solta uma risada nasal. — Você tirou a roupa sozinha e acabei tendo
que te dar uma camisa.
— Meu Deus... — Escondo meu rosto com a mão e mordo o pão
com o ovo. — Mil desculpas.
— Tudo bem. — Silêncio. — Seu telefone tocou algumas vezes,
tive que atender para a pessoa não se preocupar.
— Quem era?
— Talita.
— Ah.
Bebo da minha xícara de café.
— Sua amiga?
— Ex-namorada.
Alex para de comer e me encara, parece que não esperava por
essa resposta. Sinto o nervosismo tomar conta de mim
gradativamente, mas ele volta a comer sem falar nada.
— Algum problema?
— Não sabia que você gostava de mulheres — diz com rigidez.
Ele larga os talheres e se levanta para jogar os restos no lixo.
— Gosto. Isso é um problema? — repito e também deixo minha
refeição de escanteio.
— Não.
Fico incomodada com o modo bruto com que lava a louça apenas
para não me olhar. O prato cai de sua mão e se espatifa no chão,
Alex aperta as bordas da pia com força e me levanto para ajudá-lo,
mas sou impedida.
— É melhor você ir.
Não o respondo, nem contesto. Se é assim que reage a minha
bissexualidade, não merece metade da atenção que lhe dei. Volto
para o quarto e troco de roupa, deixando sua blusa embolada na
cama.
Quando volto para a sala, ele não está lá, mas deixou a porta
entreaberta.
「• • •」
Um arrepio mórbido passa pela minha coluna ao parar em frente
ao IML.
Chacoalho os ombros em um espasmo, me encolho dentro do
blazer e caminho em passos apressados até o segurança na porta,
ele lê uma revista e nem sequer se incomoda de erguer o olhar até
mim.
Finjo naturalidade ao tocar na maçaneta para entrar no local, mas
basta fazer isso para que o homem largue a leitura.
— Posso ajudar?
Dou um sorriso amarelo e coloco as mãos no bolso.
— A doutora Talita Lima me requisitou. Meu nome é Eva Borges.
O guarda permanece impassível perante minha mentira.
— Você quer que eu ligue para ela? Tenho certeza de que ela
pode confirmar.
— Isso não vai funcionar comigo, moça. — Ele ergue o queixo e
aponta para a porta. — Se quiser entrar, peça para ela vir aqui
autorizar.
Torço os lábios e mudo o peso de um pé para o outro.
— Ela disse que já tinha autorizado de manhã, talvez você
estivesse desligado e se esqueceu.
Seus olhos me fuzilam, mas permaneço confiante.
— Acabei de trocar de turno, o outro segurança não me passou
nada.
— Então ele deve ter esquecido. — Solto o ar, indignada. — Ela
está trabalhando, não vai atender o telefone tão fácil. Por que não
facilita isso para nós dois?
O segurança me olha dos pés à cabeça, o vejo hesitar e, quando
está prestes a negar mais uma vez, abro a bolsa e tiro meu CRMV,
estendendo a ele.
— Sou médica veterinária, especializada em saúde pública. A
doutora Talita tem um caso que precisa da minha vistoria. — Guardo
o documento antes que ele possa gravar o número. — Estamos
acordados?
Incomodado ele se levanta e abre a porta. Dou um sorriso e sinto
uma baforada fria vinda de dentro.
O silêncio é estarrecedor, meus saltos ecoam pelo corredor
enquanto a lâmpada fraqueja e deixa a entrada em uma meia-luz
assombrosa.
Não consigo imaginar como é trabalhar até tarde em um lugar
como esse, mas acaba que combina com Talita. Ela nunca teve
medo dos mortos, seu problema é com os vivos.
Não sei para onde estou indo, as paredes descascadas parecem
as mesmas para todos os lados em que olho e não há ninguém na
recepção para me ajudar.
Me apresso em dobrar o corredor e procurar nas janelas se Talita
está em uma daquelas salas. Todos os meus pelos se arrepiam com
uma brisa fria que passa por mim. Solto uma risada nervosa e
continuo a andar, enquanto me convenço de que é apenas o ar-
condicionado.
Vozes baixas sussurram no corredor ao lado. Escuto passos e me
apresso para encontrá-las, mas ecoam para longe e não consigo as
acompanhar. O ar sai dos meus pulmões de modo ansioso e
começo a me arrepender de ter vindo até aqui apenas para
encontrar Talita.
— Eva. — Escuto uma voz atrás de mim e todo o meu corpo se
petrifica. — Eva.
Me forço a continuar e ignorá-la, mas alguém toca meu ombro.
Dou um grito amedrontado e um pulo para longe. A risada de
Talita ecoa pelo corredor.
— Merda! — grito ao colocar a mão sobre o coração. — Que
susto, Talita! Achei que era uma assombração.
— A única assombração aqui sou eu. — Ela aperta a barriga
enquanto tenta parar de rir.
— Tá gostando, né? Filha de uma égua.
— Não posso dizer que tenho pena depois de ontem à noite.
Meus ombros caem e junto se vão as barreiras pós-susto.
— É por isso que vim aqui. Para pedir desculpas.
Ela encara o chão e esconde as mãos no jaleco.
— Eu não devia ter te tratado daquele jeito — insisto. — Sei que
você só estava preocupada.
— É, mas você tinha razão. — Talita força um sorriso. — Não
temos nada, você não me deve satisfações.
— Ainda assim...
— Sou sua amiga, não quero te ver nunca em um lugar como
esse — completa, e sinto meu corpo arrepiar. — Não importa o
passado que tivemos, você é parte da família.
— Sou a Pequena Eva, não é? Essas coisas não se esquecem.
Meus lábios se curvam um pouco para cima e Talita comprime os
dela, envergonhada.
— Fui descoberta?
— Só uma pessoa no mundo usaria o user PequenaEva01 para
me defender no Twitter.
Dou um passo à frente, abrindo os braços meio acanhada.
— Estou perdoada?
— Preciso de algumas horas de drama antes de te abraçar. —
Ergue o relógio. — Achei que você viria mais tarde, está cinco horas
adiantada.
Solto uma risada nasal e cruzo os braços.
— Eu não teria coragem de vir aqui de noite. — Olho em volta. —
De dia já é sinistro e extremamente vazio, imagina ao escurecer.
— Não é sempre assim. Acabamos de ter uma ocorrência, por
isso está vazio.
— Tem um corpo vindo pra cá? — pergunto, me sentindo
incomodada de repente.
— É o IML, não é? Para onde mais você quer que levem?
— Não sei. Não pensei nesse detalhe. — Talita solta uma risada
fraca e toca o meu braço com a ponta dos dedos.
— Agradeço as desculpas, mas talvez seja melhor você ir.
O silêncio é quebrado por uma diversidade de vozes que se
sobrepõem e apressam pelo corredor ao lado, não tenho tempo de
fugir dos funcionários do IML que dobram na nossa direção com
uma maca coberta.
— Boa tarde, doutora. — Um dos homens cumprimenta Talita ao
parar com o cadáver ao seu lado e lhe estender um documento.
O desconhecido está coberto por um pano branco e os pés
escapam para fora. Visualizo as unhas sujas e torço o nariz, mesmo
que o cheiro ainda não tenha se tornado insuportável.
Ela pega uma requisição das mãos do funcionário e passa os
olhos depressa pelos dados do cadáver.
— Levem para a necropsia, já estou indo.
Observo a maca ser levada e me deixo suspirar ao vê-los dobrar
o corredor. Encarar a morte tão de perto me faz pensar como foi a
necropsia do Wellerson. Foi Talita quem a fez? Como ela se sentiu
ao remexer um cadáver que eu matei?
— Eva? — Volto meu rosto para ela. — No que está pensando?
— Nada.
Talita fica em silêncio enquanto morde o lábio inferior e me olha.
Sei que não acredita que minha mente está vazia, mas nunca foi o
tipo que insiste.
— É melhor eu ir indo então. — Dou um pequeno sorriso. —
Desculpa por tudo.
— Não se preocupe. — Ela tira as mãos do bolso e dá um passo
na minha direção. — Acho que estou pronta para aquele abraço.
— Você não tem um morto para remexer?
— Não é como se ele fosse morrer de tanto esperar.
Solto uma risada fraca e abro os braços, deixando que passe os
seus pela minha cintura. Seu cheiro é de formol e desinfetante de
limão, mas seus cabelos escuros ainda têm resquício do seu
verdadeiro perfume.
Fecho os olhos e a aperto contra meu peito. É mais fácil lidar com
a saudade e com as lembranças quando estou longe, tê-la perto é
uma tortura para a minha mente cansada.
Talita me solta e esboça um sorriso tímido.
— Preciso ir.
— Bom trabalho.
Ela assente e volta a esconder as mãos no jaleco, em seguida,
caminha apressada para o fim do corredor.
Assim que cruzo a porta do IML meu telefone vibra. O segurança
fala com um policial no canto do muro, e aproveito para me apressar
e sair antes que me veja. É só chegar na calçada que Isis me
encara, apoiada no capô do seu carro da polícia.
Seu rosto se torce em indignação e frustrada ela olha para os
lados, antes de me puxar pelo braço e levar até um canto mais
reservado. A encaro, estarrecida com sua brutalidade.
— O que você faz aqui, Eva? — Apesar da voz contida, vejo que
está com raiva.
— Vim ver a Talita.
Ela solta meu braço e coloca a mão na cintura, seus olhos
percorrem o quarteirão mais uma vez.
— Você tem noção da merda que fez ao vir aqui?
— Vou relevar sua falta de educação porque é parceira do meu
irmão — digo. — Vim ver uma amiga, qual o...
— O corpo que acabou de entrar é do Vicente Carvalho, pastor da
Coração de Cristo. — Isis aponta para o IML e depois para mim. —
E a esposa dele está agora mesmo na delegacia com o Guilherme
te acusando formalmente de assassiná-lo.
Olho para o celular na minha mão, há quinze mensagens
acumuladas na tela e não param de chegar mais.
— Como assim? Eu não posso ter matado ele. Isso é um absurdo.
— É?
Arqueio minhas sobrancelhas e me aproximo dela.
— Isis, eu não sei do que o Vicente morreu, mas não fui eu.
— Onde você estava ontem à noite?
Dou um passo para trás.
— Na casa de um amigo.
— A noite toda?
— Sim. — Vejo seus ombros caírem e a pose de policial ir
embora.
— Desculpa. Essa mulher me deixou maluca. Ela falou que vocês
discutiram ontem à tarde e mais um bocado de coisas. Está
histérica.
— Relaxa. — Olho para o celular, Guilherme está me ligando. —
Acho que eu também desconfiaria de mim.
— Não se preocupe, apenas vá para casa e espere o Guilherme
chegar.
Assinto e me afasto com um “tchau” baixo. Minha cabeça trabalha
em mil possibilidades e minhas mãos tremem ao levar o celular à
orelha.
Culpada. Culpada. Culpada.
A última coisa que me lembro da noite anterior é do olhar
decepcionado de Talita ao me ver subir na garupa da moto.
— Ligue para a sua advogada, agora. Nos encontramos em casa
em quinze minutos. — A voz do Guilherme ao telefone faz todo o
meu corpo tensionar.
Não parece confiante de que sou inocente.
Capítulo 10

— Eva, vou perguntar uma única vez. — Minha advogada me


encara enquanto balança a caneta em sua mão. — Você teve
alguma coisa a ver com a morte de Vicente Carvalho?
— Eu... — Engulo em seco, minhas mãos tremem por debaixo da
mesa. — Não sei.
— Você teve amnésia dissociativa de novo? Porque isso não vai
te livrar da prisão uma segunda vez.
— Não! Quer dizer, eu acho que não. — Olho para Guilherme,
que me incentiva a falar com um leve manear de cabeça. — Eu bebi
muito ontem à noite. Não me lembro de nada depois das vinte e três
horas.
— Você esteve com alguém que possa comprovar sua inocência?
— Com o Alex, dormi na casa dele.
— Ótimo. — Ela escreve algo no bloco de anotações e ergue os
olhos para mim. — Não podemos fazer nada por enquanto a não ser
nos prepararmos para a bomba. Comprove seu álibi e vamos
esperar pela análise do corpo.
A advogada recolhe os papeis dispersos pela mesa e estende a
mão para mim.
— Fique tranquila, não temos motivo para nos preocuparmos por
hora. — Aperto sua mão e forço um sorriso de canto. — Me liguem
se alguma coisa mudar.
Guilherme a acompanha até a porta. O silêncio toma conta da
pequena sala da sua casa.
— Eu sinto muito. Queria poder fazer mais — diz.
— Não, você já faz mais do que devia. — Me aproximo e
descanso a cabeça em seu ombro. — Obrigada por acreditar em
mim.
— Eu não quero forçar, mas acho que chegou a hora — sussurra.
— Você precisa entender o que aconteceu no dia 17.
Fecho os olhos.
— Vou ligar para ela, não se preocupe.
「• • •」
Alex atende a porta na primeira batida, abrindo espaço para que
eu entre.
Dou um boa-noite tímido e espero que tranque a fechadura e me
indique onde sentar. Não conversamos depois dele espatifar o prato
no café da manhã e, apesar de agora terem aparecido problemas
piores, ainda temo que seja um bifóbico.
— Obrigada por vir — diz ao se sentar e me servir café. — Não
sabia se ia querer me ver depois de hoje de manhã.
— Na verdade, preciso falar com você também. — Levo a xícara
aos meus lábios.
— Primeiro você. O que quer falar?
— Então... — Me mexo desconfortável e encaro o tapete
desgastado. — É meio difícil falar isso. — Seus olhos estão fixos
sobre mim. — Eu não me lembro de nada depois que saímos do
bar. Eu passei a noite inteira com você?
— Sim. — Alex ri. — Mas você sumiu por algumas horas. Depois
do bar fomos dar uma volta na praia, encontramos uns
desconhecidos lá, você fumou maconha com eles e depois sumiu.
Fiquei te esperando enquanto conversava com os caras, umas duas
horas depois você voltou, tinha chorado. Não questionei, então não
sei por quê. Só te trouxe para casa.
Sinto a vergonha e o medo tomar conta do meu rosto, beberico o
chá para fugir do seu olhar.
Culpada. Foi você. Culpada. A voz cantarola.
Cala a boca, retruco e fecho os olhos por um momento.
Meu coração se aperta ao ver meu álibi escorrer por entre meus
dedos.
— Obrigada por cuidar de mim.
— Não há de que. — Alex continua a me encarar. — Desculpe por
hoje de manhã, não quis te assustar. Estava meio estressado com
algumas coisas.
— Então você não é bifóbico?
Ele ri.
— Não sou. — Deixo a xícara sobre a mesa para olhá-lo. — Mas
preciso que você me garanta algo.
— O que?
— Que não existe nada entre você e sua ex. — Seus olhos
vacilam por um instante, mas logo voltam a me encarar. — Estou
começando a gostar de você, então se tiver algo...
— Alex... — Coloco a mão sobre os lábios e tusso para limpar a
garganta. — Gosto de você, mas, no momento, não posso te
prometer nada. Não tenho como sustentar um relacionamento nem
suprir expectativas. Vou entender se não for isso que você procura e
quiser parar por aqui.
Alex balança a cabeça e ri.
— Não quero que namore comigo, só estou pedindo para me
garantir que não há nada entre vocês. — O tom da sua voz me
deixa envergonhada por cogitar que queira algo mais sério comigo.
— É muito para você?
— Nós terminamos seis anos atrás, mas não sei...
— Ótimo, era só isso que eu precisava. — Sorri.
Alex vem até mim e me beija com paixão, sua mão pesa na minha
cintura e faz com que me deite no sofá. No curto tempo que se
afasta, vejo seus olhos brilharem através dos cílios grossos e o
preto refletir minha imagem distorcida.
Na sua escuridão, esqueço quem sou e os problemas que me
rodeiam.
「• • •」
Túlio morava na beira da praia de Santo Oiti.
Ele sempre reclamava que os aparelhos estragavam rápido, mas
adorava assistir ao pôr do sol comigo na varanda da sua casa. A
brisa do mar sempre trazia um alívio para o calor infernal da cidade
e transformava aqueles momentos em belas memórias.
Na época em que namorávamos, o trajeto era sempre o mesmo:
escola, sua casa, minha casa. A mãe dele passava o dia no
trabalho, então era costume passar as tardes na sua casa, e
durante muito tempo essa foi minha forma de fugir do meu inferno
pessoal e me manter próxima a ele.
Da escola para sua casa eram três ou quatro músicas, quinze
minutos no máximo. Talvez vinte, se estivesse muito preguiçosa, ou
bêbada.
Com uma pesquisa rápida nas redes sociais, descobri que
Vicente mora do lado da casa dos seus pais, próximo da nossa
antiga escola. Não me surpreendo, ele sempre foi muito
acomodado.
Se eu fosse da praia até a sua casa a pé, mesmo que bêbada,
não demoraria mais que quatro músicas para voltar.
— Não consigo viver assim — murmuro para Diana enquanto
deixo a fumaça do cigarro sair pela janela.
— Assim como?
— Duvidando de mim mesma o tempo todo — murmuro.
Não posso envolver Guilherme e Dona Lourdes na confusão em
que me meti, mas é difícil mentir sobre o que sei — apesar de saber
pouco.
— Vicente Carvalho se suicidou — recito o que sei. —
Enforcamento. Horas depois de ter me encontrado. Onde eu
estava? Bêbada em algum lugar.
— Não significa que você o tenha matado.
— Será? — Olho para Diana e balanço o cigarro de modo
nervoso. — Vicente nunca foi o corajoso de nós três, na verdade,
era o mais medroso. Ele nunca teria se matado.
— Você o conheceu quando criança, Eva. As pessoas mudam, se
tornam mais complexas.
— Isso não mudou. — Dou uma tragada rápida antes de me voltar
para ela. — No dia que o encontrei na frente da igreja, ele mal teve
coragem de defender a esposa. Vicente continua sendo um
covarde.
— Você está ansiosa e distorcendo os fatos. Mesmo que Vicente
não tenha se matado, nada te coloca na cena do crime.
— Nada me coloca fora dela também.
— Ok. Eva, eu preciso que você se acalme. — Diana se levanta,
vem até mim e apaga meu cigarro na janela. — Não estou
conseguindo acompanhar seu raciocínio.
— Nem eu. — Olho para as plantas da parte de trás do
consultório e suspiro. — E se eu for culpada, Diana? Se eu o tiver
matado?
Ela me leva de volta ao divã e me sento com a cabeça entre as
mãos.
— Vou tentar organizar seus pensamentos, para você visualizar a
situação melhor. — Seus dedos empurram um copo de água na
minha direção. — No primeiro cenário você o matou. Álcool,
medicação e maconha não funcionam bem, você sabe disso, são
grandes causadores de surtos psicóticos. Você teve outra amnésia
dissociativa, ou simplesmente blecaute por conta da mistura. E
agora? O que você faz com isso?
— Me entrego.
— Você tem provas? Além da sua desconfiança em si mesma?
— Não...
— Ok. Vamos para o segundo cenário. — Diana se curva. —
Vicente se sente culpado, ele defendeu alguém que não merecia, e
reencontrar você o faz lembrar disso. Ele está insatisfeito com a
própria vida, com a esposa e com a igreja, duvida até da própria fé
e, por fim, se mata. Você está bêbada há alguns quilômetros de
distância e por isso é culpada?
Fico em silêncio, refletindo sobre suas palavras.
— Me parece que nos dois cenários você tem que investigar o
que aconteceu, mas lhe digo algo, minha querida. — Ela segura
minha mão entre as suas. — Um homicídio feito por impulso não é
limpo como o do Vicente foi.
Capítulo 11

Acordo com o som do telefone tocando. Meu corpo se levanta em


um impulso e pego o aparelho. Consigo ouvir a pulsação do meu
coração zunindo no meu ouvido enquanto maltrata meu peito.
— Eva? — Uma voz cansada e arrastada fala do outro lado. —
Olá, linda. Sou eu, sua antiga vizinha do 203.
Passo a mão pelo rosto. Demoro alguns segundos para entender
o que está acontecendo.
— Senhora Lourdes! — exclamo. — Como está? Quanto tempo.
Idiota. Ela sabe todos os seus segredinhos sujos.
— Vou bem meu amor, só com malefícios da idade. Escute... —
Ela tosse. — Guilherme me contou que você saiu esses dias da
clínica. Queria lhe chamar para tomar um café.
Filho de uma égua. Ele não me deu tempo para pensar — e ainda
mentiu para a velha, já faz meses que saí da clínica. Está claro que
é uma desculpa para me fazer falar com Lourdes.
— Claro. Quando a senhora prefere?
— Você está ocupada hoje, princesa? Se não, pode vir às quatro,
que tal?
— Perfeito, dona Lourdes.
— Pelo amor de Deus, menina. É apenas Lourdes para você.
— Certo, Lourdes — digo. — Te vejo mais tarde.
— Um beijo. Fique com Deus.
Me deito de barriga para cima e seguro o aparelho contra meu
peito enquanto inspiro e expiro várias vezes, até meus batimentos
se regularem.
Me sinto culpada por não ter mantido contato, Lourdes foi alguém
importante para mim quando criança. Consigo me lembrar fielmente
do seu gato persa, Tigrão, e da sala de estar toda decorada em
crochê.
Você a deixou para trás. Deixou todos para trás.
Fecho os olhos e tento mudar minha linha de pensamento. Não
deixei todos para trás. As pessoas vêm e vão e, por mais que
tenham sido boas para nós, perdemos contato.
Você abandonou a todos. Nós sabemos disso.
O telefone treme e o levanto para ler a mensagem que recebi.
Alex enviou um bom dia com vários emojis e me convidou para
jantar.
Dou uma desculpa dramática, pois ele ainda não sabe a verdade
sobre mim. Nem mesmo eu sei, quem dirá ele. O que sei, é que a
visita a casa de Lourdes provavelmente me tomará toda a energia
do dia e me impedirá de jantar com ele.
「• • •」
O cheiro de mofo faz meu nariz coçar.
A porta para o estacionamento está escancarada e, ao subir as
escadas, consigo ver o zelador limpando o chão. Me pergunto se ele
está sempre lá, varrendo a confusão dos outros.
O silêncio é plácido, na escada minha pisada ecoa como a de um
elefante. Lembro de quantas vezes desci esses lances às presas,
desesperada e ansiosa, e fico com ânsia de vômito.
Toco a campainha. O barulho parece absurdo no silêncio do
segundo andar. Meus olhos desviam por um segundo para o único
outro apartamento, o da minha mãe, mas logo voltam para a porta
quando Lourdes a abre.
Sou recebida por um gato persa de linhas douradas, seus olhos
amarelos fixam em mim e sinto um frio na barriga. Dou um passo
vacilante.
Não é possível que esse gato esteja vivo todo esse tempo.
— Olá, princesa. Como está? — Lourdes me puxa para um
abraço e desvio os olhos do gato.
— Bem, e a senhora?
— Implorando para Deus ou o Diabo me levarem logo embora
dessa terra. Não aguento mais. Já passou o tempo da minha idade
ser uma benção, agora é punição.
Ela não mudou nada.
Solto uma risada alta, que ecoa pelo corredor. Fico
envergonhada, mas não dura muito tempo.
O gato continua a me olhar.
Talvez ele também saiba os seus segredinhos sujos.
Seria melhor do que a possibilidade que estou cogitando, penso.
Estarrecida, o encaro durante longos segundos na tentativa de
entender como é possível Tigrão estar vivo durante mais de vinte
anos.
— Não é o Tigrão — diz Lourdes, lendo minha mente. — É o filho
dele, Gafiel. Também já está velho, pobrezinho.
Ela pega o animal nos braços e lhe fez carinho no pescoço. Gafiel
joga a cabeça para trás, manhoso.
— Acho que vamos morrer juntos.
— Não era para ser Garfield?
— Era, mas meu neto não sabia pronunciar Garfield quando
colocou o nome, então ficou Gafiel.
Abro um pequeno sorriso.
— Como está a família?
— Bem. Longe de mim. Sou uma velha abandonada — resmunga
ao sentar-se no sofá e me chamar com a mão. Há duas xícaras de
café à nossa espera. — E você? Já está casada?
Engulo o líquido quente com demora, fingindo saborear o gosto
forte, mas a verdade é que só quero adiar a conversa
constrangedora.
— Ah, essa geração jovem. Sinto falta do meu tempo. Essas
coisas eram mais fáceis.
Sorrio e passo os olhos pela sala. Ainda é decorada em crochê,
mas tenho quase certeza de que são diferentes dos que me lembro.
— Fiquei surpresa com a sua ligação — digo.
O que aconteceu na noite de 17 de janeiro de 2025?
— Orei todos os dias para você sair bem da clínica, meu amor. —
Apesar de não acreditar em orações, me sinto grata. — É bom lhe
ver assim, sorrindo. Descontraída.
— É bom ver a senhora também.
— Seu rostinho continua o mesmo. — Suas mãos enrugadas e
pesadas tocam minha bochecha. — Como é a capital? Você gosta
de lá?
Detalho para Lourdes como era minha casa, meu antigo trabalho
e minha vida antes de tudo virar de cabeça para baixo.
Ela parece solitária. Não me deixa passar muito tempo em
silêncio.
Lourdes me aconselha a fechar o aluguel do meu apartamento e
passar um tempo com Guilherme — para reorganizar a vida, diz ela.
É o momento em que entramos no corredor da morte. No assunto
do qual me esquivei ao máximo, mas que desejo muito saber a
resposta.
— Sempre soube que você seria uma menina muito bem-
sucedida na vida. — Vindo de outra pessoa, acharia que era uma
piada de mal gosto, mas sei que fala de coração. — Era muito
inteligente, esforçada, resolvia tudo sozinha desde pequena. Fiquei
muito feliz quando você saiu da casa daquele infeliz, mas triste por
não ver mais o seu rostinho e nem comer dos seus bolos.
— Ah, dona Lourdes...
— Só Lourdes, filha. Só Lourdes.
Balanço a cabeça e engulo o choro.
— A idade não me levou a memória e sou muito agradecida por
isso, mas tem coisas que eu gostaria de esquecer. Aquele homem é
uma delas.
— Do que a senhora se lembra?
— De tudo, minha filha. — Ela leva a xícara de café aos lábios. —
Lembro do dia que ele se mudou para cá. Aquela pose de homem
de família enganou muita gente, mas não a mim.
— Guilherme falou...
— Eu sei o que ele disse. — Lourdes me interrompe. — E não me
arrependo nem por um segundo, menina. Aquele homem asqueroso
teve o que mereceu. — Gafiel sobe em seu colo e ela lhe faz um
carinho demorado antes de continuar. — Na época em que você era
menina, eu te trazia para o meu apartamento nos momentos mais
difíceis. Dizia que você queria brincar com o Tigrão, lembra?
— Sim.
— Não pude usar essa mesma desculpa ao ser procurada pela
sua mãe. — Minhas sobrancelhas se juntam em incompreensão. —
Depois que você foi embora, ele ficou mais violento. Espancava sua
mãe. Até comigo gritou, achei que ia morrer ali mesmo.
— Ele a espancava? — Sinto minha garganta se fechar. — Meu
Deus...
Nunca duvidei que Wellerson fosse capaz de machucar Julia, mas
ao ir embora, já tinha feito todo o possível e impossível para tirá-la
das mãos dele.
Existe um ponto que tudo que você pode fazer é torcer para a
pessoa que ama continuar viva.
— Não se culpe, minha filha. — Lourdes toca minha mão. — Você
fez certo em ir embora. Ele teria matado você também.
— Como assim também?
Ela se recosta no sofá, fugindo do meu olhar.
— Acho muito estranho essa morte repentina da sua mãe.
Principalmente porque eles passaram a semana anterior em uma
briga interminável.
— Você acha que ele a matou?
— Não sei. — Sua boca faz um bico muxoxo e os olhos se
curvam para baixo. — Mas você se surpreenderia se tivesse?
Me sinto menos culpada por tê-lo matado.
— Lourdes — digo com cautela — Não me lembro do que
aconteceu naquela noite. Não sabia que vocês tinham... — Procuro
uma palavra que não soe tão criminal. — Tinham me ajudado. Foi
Guilherme quem me contou.
— Você estava em choque, parecia uma boneca de pano, só fazia
o que mandávamos. — Ela volta a beber o café. Pego o meu,
percebendo que já esfriou. — Do que você se lembra?
— De estar no carro com Guilherme, depois disso, nada.
Ela alisa o próprio cabelo de modo demorado, o que me deixa
mais ansiosa.
— Wellerson veio antes, deixou a porta aberta para você. — Seus
olhos se curvam para baixo de modo discreto. — Por que você
subiu, minha filha?
— Ele falou que minha mãe tinha deixado uma coisa para mim.
Lourdes balança a cabeça em descrença.
— Escutei você passar pelo corredor. Fiquei parada na porta à
sua espera, para dar meus pêsames. Minha audição já não é mais a
mesma, mas escutei ele sibilando para você, daquele jeito que fazia,
cuspindo nas pessoas.
Tenho que deixar o café na mesa, pois minhas mãos tremem
muito.
— Escutei o vidro se quebrar, móveis serem arrastados. Uma
verdadeira confusão. — Suspira. — Deveria ter ligado para a polícia,
mas escutei seu grito desesperado. Ecoou pelo prédio inteiro, sua
sorte é que os apartamentos de baixo estavam de férias.
Espero uma memória, um lampejo do que estou ouvindo, mas
como sempre, nada vem.
— Ao abrir a porta, Guilherme estava saindo das escadas.
Encontramos você parada em frente ao corpo do Wellerson, com a
seringa na mão. — Lourdes se levanta e vai até o móvel da
televisão. — Na sua idade, fui advogada criminal. Me aposentei
cedo, com medo de perder alguém que amava, mas nunca me
esqueci da adrenalina.
Ela pega uma fotografia e me entrega. A menina da foto não se
parece em nada com a idosa que vejo à minha frente, exceto pelos
olhos caídos.
— Passei minha vida defendendo jovens que entraram na vida do
crime porque a sociedade falhou com eles. Então vi você, uma
menina que sei que é boa, segurando uma arma de crime com um
corpo aos pés. Você poderia ter usado qualquer outra coisa para
matá-lo que seria considerado legítima defesa, mas não um
tranquilizante de cavalo. Você não tinha motivo para ter um
tranquilizante de cavalo se não estava em serviço.
Minha barriga faz um barulho assustador, de repente, quero ir ao
banheiro vomitar — na verdade, não sei por onde sairia a comida,
mas de alguma forma iria para fora. Meu queixo bate de nervosismo
e sinto que vou congelar, mas é apenas a ansiedade.
— O que a senhora está dizendo?
— Não estou lhe acusando de nada, minha filha. Deus sabe que
não posso fazê-lo. — Lourdes deixa os ombros caírem de modo
cansado. — Mas você entende que não tinha por que carregar essa
seringa em sua bolsa? Não tinha nenhum paciente seu para tratar.
O tempo para.
Minha língua parece pesada e gorda.
— Então... — Toco minha cabeça, sentindo uma pontada. Tenho
que fazer um enorme esforço para perguntar o que desejo: — Eu
planejei matá-lo?
PARTE 2

Meus dedos acariciam seu pulso e sobem pelo caminho que as


veias fazem.
Túlio está entre as minhas pernas, triste por algo que não me
lembro. Brinco com os fios do seu cabelo enquanto espalho o
xampu e massageio o couro cabeludo. Ele fecha os olhos, os cílios
longos e negros batem com o frio.
Minhas mãos acariciam seus bíceps e descem pelo antebraço.
Ele apoia as costas no meu peito e descansa a cabeça no meu
ombro. A banheira mal cabe nós dois e, por isso, suas pernas ficam
dobradas.
Meu coração se aperta, como se alguém o pegasse e amassasse
por entre os dedos até o sangue escorrer e não restar nada. Um
vazio. Um buraco. Sinto meu peito pesado com a certeza de que
conheci o amor e o perdi, mesmo que Túlio esteja na banheira
comigo.
Olhar para ele me traz a calma que tanto procurei nos últimos
dias. Não há nenhum pensamento a me atormentar, minha mente
está vazia.
Túlio se mexe de modo débil. Está chapado pelos medicamentos.
Meus olhos param sobre a lâmina na borda da banheira. Os
pulsos de Túlio flutuam sobre a água. Túlio ergue o olhar para mim,
incapaz de reclamar, seus olhos me pedem desculpas silenciosas, e
o beijo uma última vez.
Por trás, faço o exato ângulo que ele faria ao cortar os pulsos e,
em seguida, observo o sangue jorrar.
Capítulo 12

Vicente Carvalho coleciona uma vida perfeita nas redes sociais.


Entre viagens missionárias, cultos e projetos sociais, há fotos dele
com a esposa e família. Seus pais adquiriram gordura localizada
com a idade, mas fora isso, parecem os mesmos para mim.
É inevitável pensar e se.
E se eu tivesse ficado na igreja? Eu teria sido convidada para o
casamento da sua irmã? Ainda seríamos amigos? Ele me chamaria
para brincar com seus futuros filhos no quintal da sua enorme casa?
Nunca almejei esse espaço na vida do Vicente e da Lia, mas,
vendo o rumo que suas vidas tomaram, é inevitável voltar ao
passado e cogitar uma realidade diferente.
Paro em uma foto sua com uma criança, o menino está sujo de
fuligem e sorri, há uma flor entre suas mãos, e Vicente o segura no
colo com o rosto colado ao seu. Do outro lado está Sara, agarrada
aos dois como a grande sanguessuga que é.
Basta digitar seu nome na barra de pesquisa para saber que a
filha do ministro de louvor continua solteira. Seu feed é recheado de
fotos de Vicente nas viagens missionárias que fazem juntos — e há
apenas uma foto com Lia, uma que estão todos os missionários em
grupo na rodoviária.
Solto uma risada fraca, me sentindo presa no tempo.
Uma das últimas fotos é do casamento de Vicente e nem nela Lia
está. Deve ter sido um inferno ver o amor de sua vida se casar com
outra pessoa.
Largo o computador e coloco a cabeça para fora do quarto, à
procura do Guilherme. O encontro dormindo no sofá, com o celular
jogado ao lado. Pego o aparelho sem fazer movimentos bruscos e,
antes de arriscar uma senha, dou um passo para trás.
O celular vibra ao me indicar que errei minha primeira tentativa.
Levo o dedo até os lábios e puxo a pele ao redor enquanto tento
pensar qual outra senha ridícula ele usaria. Digito o aniversário da
Talita e o aparelho nega mais uma vez.
Tento todos os aniversários dos quais consigo me lembrar. Erro
todas as tentativas e o aparelho bloqueia por um minuto.
A ansiedade me consome enquanto passo os olhos da
cronometragem para o meu amigo adormecido. Guilherme se
remexe e meu corpo trava, não consigo respirar até que se vire e
volte a dormir.
Na última tentativa, tento o meu aniversário, e o telefone
desbloqueia.
Abro seu Instagram às pressas, sentindo minha pulsação acelerar
absurdamente em um curto espaço de tempo. Clico nos storys e a
imagem de Sara aparece na tela. Cato os fones jogados sobre o
sofá e os enfio no meu ouvido, escutando a voz aguda e irritante de
imediato.
Falsa. Devia se engasgar com tanto veneno.
Me sinto culpada por julgar alguém que está sofrendo tanto, mas
é inevitável. A voz devassa sussurra para mim como reflexo do que
penso, mas ao mesmo tempo, tem vida própria.
Sara postou uma série de vídeos e fotos relembrando sua
amizade com Vicente, com uma música cristã ao final — para
reflexão. O seu choro me irrita.
Pauso o vídeo e aproximo meu rosto da tela para tentar identificar
um objeto ao fundo. Minha face se torce e volto ao Instagram do
Vicente. No último aniversário de casamento ele deu um carro cor
de rosa para Lia, na foto, ela segura uma chave com um pompom,
também rosa, pendendo dela.
Sara tem um chaveiro igual no fundo de seus vídeos e pelo
formato da chave posso arriscar que também tem o mesmo carro.
Guilherme se move e largo seu celular em seguida.
「• • •」
Jogo minha lasanha de um lado para o outro, transformando-a em
um amontoado de ingredientes.
— Não gostou? — Guilherme ergue o olhar e me forço a levar
uma garfada aos lábios.
— Está ótima.
Ele me analisa por curtos segundos, pega a jarra de suco e me
serve.
— O que há de errado?
— Nada.
— Vai me fazer insistir?
Mastigo mais devagar que o necessário, fugindo de seu olhar
questionador. Não quero falar sobre Lia e Sara para não soar como
uma stalker, mas também não quero ficar calada.
— Alex não pode comprovar meu álibi.
Guilherme larga o garfo e limpa os lábios com um guardanapo.
— Por quê?
— Eu sumi durante uma parte da noite.
Ele passa a mão pelo rosto e cabelo, em seguida, pressiona o
encontro de suas sobrancelhas. Remexo a lasanha mais uma vez,
incomodada de trazer mais um problema à mesa.
— Eva, por favor, me diga que não vou encontrar provas que te
incriminem mais.
— Você está investigando?
— Claro que sim. — Guilherme levanta as sobrancelhas e me
olha como se eu fosse estúpida. — O melhor jeito de te livrar é
achando o verdadeiro culpado.
E se eu for culpada? Engulo em seco, pois não quero pôr em
palavras o pensamento que me vem.
— É melhor você deixar isso de lado.
— Você fala isso porque sabe que o matou ou porque está
paranoica? — Ergo meus olhos com raiva. — É uma pergunta séria.
Se você fez algo, precisa me dizer.
— Não sei. — Travo meu maxilar. — Eu não imaginava que podia
ter matado Wellerson de propósito, mas matei. Não só o matei,
como planejei. Não posso confiar nos meus instintos.
Guilherme solta o ar de forma demorada e me olha, indecifrável.
Ele se levanta e para ao meu lado. O encaro, ainda sentada.
— Vamos — diz.
— Onde?
— Deixa eu te mostrar uma coisa.
Sou arrastada até o seu quarto, onde há papéis espalhados por
toda sua cama. Ele me direciona enquanto segura minha mão e me
coloca no centro de tudo.
Reconheço fotos de Vicente e da casa onde morava.
Guilherme afasta um amontoado de papel e se senta na borda da
cama. Antes de me entregar os arquivos, os organiza em uma pilha.
Os papéis que me entrega são da investigação em andamento — e
tem muito mais informações do que minhas pesquisas até agora.
— Vicente se suicidou com um cinto. Prendeu no ventilador e
pulou de um banquinho. — Ele vira a página do documento e mostra
uma foto de Vicente caído sobre um banco e o ventilador em cima
dele. — Óbvio que o ventilador cedeu depois de um tempo, foi o
momento em que a sobrinha dele escutou um barulho e foi ver o
que era.
— O que ela fazia lá?
Pelas fotos no Instagram penso que a menina não tem mais que
cinco anos. Nem deve ter entendido o que aconteceu.
— A irmã dele teve que resolver algo importante e por isso deixou
a menina com eles. Vicente estava dormindo no quarto de visitas
porque tinha discutido com a esposa, então Lia ficou no quarto
principal com a sobrinha. De madrugada, a menina acordou a tia
para avisar que o tio tinha caído.
Balanço a cabeça em negação ao dar uma olhada no depoimento
da Lia. Meu coração se aperta ao vê-la descrever os
acontecimentos com suas palavras, sinto que vou derramar uma
lágrima, mas meus olhos permanecem secos.
Veja o que você fez. Escuto a voz cantarolar.
— O que eu quero que você veja é que não existe a possibilidade
de você ter matado Vicente. — Sua mão tapa o documento e me
obriga a prestar atenção em seu rosto. — Se você chegasse bêbada
de madrugada para matá-lo, alguém escutaria.
— Você não sabe...
— Eva, Vicente pesava oitenta e sete quilos. — Guilherme
suspira. — Se você o matasse, ia ter que içar oitenta e sete quilos,
com um cinto, no ventilador, e ainda teria que se preocupar em
deixar o corpo exatamente como seria se fosse um suicídio.
— Mas...
— Ok — me interrompe. — Você entra armada e o induz ao
suicídio. Sei que é isso que você estava pensando. — Reviro os
olhos. — O que te faz pensar que Vicente não reagiria a uma mulher
bêbada armada? Você seria alvo fácil.
Solto o ar de forma demorada. Guilherme tem razão, me sinto
estúpida.
— Agora que te convenci, preciso mostrar algo. — Ele puxa o
computador para perto e abre um vídeo. — A polícia não tem essas
gravações, então vamos manter entre nós.
— Você roubou câmeras de segurança?
— Você vai entender por quê.
A filmagem mostra a fachada da casa dos pastores da Coração
de Cristo. Na borda da tela o portão do Vicente aparece.
A expectativa cresce ao longo dos segundos, até que uma figura
trôpega surge no canto. Está de noite e a iluminação ruim deixa
difícil o reconhecimento.
A pessoa se apoia em um poste e vomita, mas ao olhar para a
enorme construção dos Carvalho, para. Ela levanta o dedo do meio
na direção do portão e algo reluz em seu pulso ao ser atingido por
um feixe de luz.
Arqueio as sobrancelhas, sem entender o objetivo do vídeo. A
figura alcoolizada vira na direção da câmera.
A má qualidade do vídeo não me impede de ter certeza de que
sou eu. Eu estava em frente à casa do Vicente na hora de sua
morte.
Antes que a gravação falhe, consigo ver alguém surgir na borda
da câmera. É impossível identificar quem é, a filmagem corta, e me
deixa com a eterna dúvida de quem esteve comigo naquela casa.
A campainha toca e me viro apreensiva para Guilherme, meu
primeiro pensamento é que a polícia está vindo me pegar outra vez.
Ele segura minha mão e a aperta.
— Não significa nada — sussurra.
A pessoa na porta insiste e me levanto no automático. Abro a
porta como um robô faria e encaro Alex parado diante dela com uma
travessa de empadão.
— Tudo bem? Você está pálida.
Balanço a cabeça ao tentar voltar à realidade.
— Sim. O que veio fazer aqui?
— Você me convidou para jantar.
Arregalo os olhos, sentindo uma pontada na nuca.
— Eu posso voltar depois se você preferir.
— Não. — Indico que entre no momento que Guilherme aparece
na sala. — Desculpa, o dia foi estressante. O Gui já comeu, mas eu
gostaria de um empadão vegetariano.
— Boa noite. — Alex segura o empadão com uma das mãos para
estender a outra ao meu amigo. — Sou o Alex.
Guilherme não o responde, aperta sua mão, mas olha para mim a
procura de respostas.
— Alex vai jantar aqui.
— Ótimo. Vou me juntar a vocês.
— Você já jantou — repito.
— Isso não é problema — diz ao puxar a cadeira e se sentar na
mesa de jantar. — Ninguém nega um empadão vegetariano, não é,
Alex?
Alex sorri incomodado e olha para mim. Em seguida, assente para
Guilherme.
Capítulo 13

O silêncio me enlouquece.
Balanço meu pé de um lado para o outro enquanto tento me
concentrar em algo que não seja o jantar maçante que se desenrola.
— O Gui também adora cozinhar — digo.
— É mesmo? — Alex pergunta.
— Sim, ele faz um ótimo macarrão com cogumelos. — Meus
olhos vão da cara fechada do Guilherme para Alex. — O que você
mais gosta de cozinhar?
— Comida japonesa.
— Não gosto de sushi — diz Guilherme com um arquear de
sobrancelha.
Comprimo os lábios para segurar uma risada de raiva e encaro
meu amigo.
— Comida japonesa não é só sushi.
Minha vontade é de enterrar o rosto do Guilherme no empadão.
Sua birra infantil me tira a paciência, mas também faz com que eu
esqueça o vídeo comprometedor de minutos atrás.
— Qual seu CPF, Alex?
Me engasgo com a comida e Alex me estende um copo de água,
bebo de uma vez e perco o ar.
— Pelo amor de Deus — digo com a voz arranhada, ainda
tossindo.
Alex ri.
— Não tem problema. Eu entendo.
O silêncio se instala outra vez, Guilherme olha para Alex, que
sustenta seu olhar. Não sei se está à espera de um CPF ou apenas
pensando em outro ponto para azucrinar Alex, mas parece
concentrado demais para alguém que não pensa em nada.
Ele se levanta e leva o prato para a pia, observo seus passos até
que desvia o olhar de nós. Me permito soltar o ar preso nos
pulmões. Alex esgueira sua mão por debaixo da mesa até tocar a
minha, seus lábios se curvam em um sorriso compreensivo e, por
um segundo, me esqueço da tensão estabelecida no ambiente.
— Chaveiro da Torre Eiffel? — Guilherme questiona e volta nossa
atenção para ele. Demoro alguns segundos para me dar conta do
que fala.
— Sim — Alex responde. — Morei na França por um tempo.
— Conveniente…
Pressiono minha têmpora e inspiro profundo, Alex abre um sorriso
amarelado.
— Você nunca falou francês comigo — digo em uma tentativa de
deixar o ambiente menos desagradável e direcionar o assunto para
outro âmbito.
— Você nunca pediu… — Ergo uma sobrancelha e abro um
sorriso tímido. — O que quer que eu fale?
— Qualquer coisa.
Guilherme nos espreita enquanto lava a louça, opto por ignorar
sua presença — mesmo que ronde o ambiente como uma nuvem
negra de tempestade.
— Seu amigo é muito ciumento — Alex diz em um francês
perfeito. Não entendo uma palavra, mas gosto do timbre da sua voz
em língua estrangeira.
— Não é ciúme, é preocupação. O homem “perfeito” é um homem
que mente — retruca Guilherme e enfatiza uma das palavras que
desconheço. Apesar de não compreender o contexto, sei que se
trata de algo ruim, pois o clima volta a ficar desconfortável.
— Não sabia que você também falava francês.
— É. — Ele abre os lábios em um sorriso, o mesmo sorriso que
dá ao encerrar um caso. — Fiz uns anos de francês na faculdade,
ainda me lembro de algumas coisas.
— O que vocês estavam falando?
— Nada — diz Guilherme.
A mentira descarada sem dúvidas esconde um segredo, pois os
dois se encaram com desprezo, até Alex desviar o olhar e me
direcionar um sorriso forçado.
Não sei o que foi dito, mas parece ter atingido ambos.
「• • •」
Meus dedos contornam seu maxilar, passam pela barba rala e
param nos lábios finos.
— O que você e o Guilherme conversaram?
Alex acaricia minha mão no seu rosto.
— Nada que precise se importar. — Ao ver que não vou desistir,
continua: — Ele não parece muito disposto a me aceitar. Tem
certeza de que vocês são só amigos?
— Claro. — Franzo o cenho. — Já te disse, Guilherme é um irmão
para mim.
— Não parece ter sentimentos de irmão, é bem possessivo, na
verdade.
— Eu sei e vou conversar com ele sobre isso. Não se preocupe,
Guilherme é apenas… muito cuidadoso.
— Se você diz. — Alex leva minha mão até seus lábios e deposita
vários beijos sutis. — Eu gosto de você, Eva. Não quero nada
atrapalhando nós dois.
Minha mão para onde está e sinto meu coração apertar à medida
que percebo que não posso continuar com Alex a não ser que saiba
toda a verdade sobre mim.
— Há coisas sobre mim que você não sabe — digo. — Não é
justo esconder isso de você, mesmo que você decida não ficar
comigo depois.
— Não vou embora.
— Não seria a primeira vez — retruco com a voz trêmula. — Sou
como um parque de diversões: todo mundo gosta de visitar, mas
ninguém fica para sempre.
— Não tem nada que você possa me dizer que me faça fugir. —
Suas mãos seguram meu rosto. — Você já me conquistou.
— Eu também não sei tanto sobre o seu passado.
— Não tem muito o que saber. Meus pais tiveram gêmeos, eu e
minha irmã, crescemos no interior de Santo Oiti na nossa fazenda
de laticínios. Morei um tempo fora, e é isso. Você já sabe tudo sobre
mim, mas pode perguntar o que quiser.
— Sua irmã mora aqui?
— Minha irmã morreu aos 14 anos.
— Sinto muito. — Toco sua mão. — E seus pais?
— Morreram também, alguns anos atrás.
— Como eles eram?
Alex foge do meu olhar por um instante.
— Ruins. — Dou um sorriso triste e entrelaço meus dedos aos
seus. — Minha irmã era a preferida, nada do que fazia era ruim aos
olhos dos meus pais. Já eu, fui deixado de lado e colocado como
errado durante anos. Diziam que minha irmã foi abençoada por
Deus e eu pelo Diabo.
Viro meu rosto para encará-lo. Há brilho no seu olhar, mas não sei
se é o brilho que os pais de Alex considerariam divino.
— Sinceramente, foi um alívio que morreram — completa.
— O que você fez para eles dizerem algo assim?
— Nasci, acredito eu. — Ri. — Nunca fiz nada pior do que um
adolescente normal faria.
Contemplo seu rosto enquanto busco as palavras necessárias
para dizer que eu fiz algo pior do que um adulto normal faria. Sei
que não se esqueceu do assunto e está me dando tempo para
pensar, pois seus olhos vez ou outra param sobre mim, curiosos.
Sinto as extremidades dos meus dedos esfriarem e uma bola se
formar na minha garganta, a vontade de vomitar surge, como
sempre. Engulo em seco e tento lutar contra meu estômago.
— Não tenho orgulho do que fiz.
Não tem mesmo? Eu tenho.
— O que?
Puxo o ar e, com toda a coragem que me resta, encaro seus
olhos.
— Eu matei alguém.
Fico à espera do momento em que se levanta e vai embora, mas
Alex permanece parado a me olha fixamente com seus olhos
profundos e incomuns.
— Você escutou?
— Sim. — Ele solta o ar e se senta, em seguida, me puxa para
seu colo. — Eva — diz ao pegar minhas mãos e as colocar entre as
suas. — Você acha mesmo que eu não sabia sobre Wellerson
quando decidi me envolver com você?
— O que... — Franzo o cenho. — Por que não falou nada?
— Porque você estava envergonhada e se culpando, não queria
te constranger ainda mais. Sinceramente, não entendo por que você
se culpa tanto. — Suas sobrancelhas se juntam momentaneamente.
— Na minha opinião, o que você fez foi pouco.
— Como pode ter tanta certeza de que ele merecia a morte?
— Sei que sim.
Sinto um pouco da culpa se desfazer em seus braços.
— Túlio também mereceu o fim que teve — completa. — Não
precisa ficar triste por isso.
Junto as sobrancelhas.
— Mas não fui eu quem matei ele — digo. — Foi suicídio.
— Claro. — Alex acaricia meu cabelo. — Entendo
completamente.
Algo pegajoso desce pela minha língua e para na minha garganta,
não consigo engolir.
— Como você sabe sobre ele?
Alex me olha, curioso.
— Você me contou, Eva.
Me encolho e balanço a cabeça. Não tenho certeza se contei,
mas não me surpreenderia se tivesse, Alex parece tirar com
facilidade da minha boca todos os meus segredos mais obscuros.
— Você vai ver que temos muito mais em comum do que você
imagina, meu amor — diz enquanto passa os dedos pelo meu
cabelo.
Sua frase atiça minha curiosidade, mas algo dentro de mim diz
que não é hora de questioná-lo.
Apoio minha cabeça em seu ombro e fecho os olhos.
Nos segundos seguintes tento me convencer de que o alívio por
ser aceita vale mais que sanar minhas dúvidas sobre Alex.
「• • •」
Seu cabelo cai sobre meu rosto quando se curva para me beijar.
Passo a mão pela sua bochecha e tiro seus fios do caminho, os
enroscos nos meus dedos e puxo para trás. Talita dá um sorriso
sacana e suspira contra os meus lábios.
Pisco. De repente, é Alex quem está lá, debaixo de mim, me
desafiando a continuar.
Paro com a mão sobre a porta enquanto tento manter a mente
limpa e, então, dou duas batidas fortes na madeira.
Uma pequena fresta é aberta e Talita coloca a cabeça para fora. A
franja está bagunçada e há bolsas debaixo de seus olhos.
— Eu preciso de um favor. — Troco o peso de uma perna para
outra.
— Você sabe que não posso.
— Lita, por favor.
Ela suspira ao escutar seu apelido e em seguida abre a porta,
agradeço com um murmuro e entro na casa. Os papéis que desejo
estão jogados por toda a mesa preta e uma garrafa de vinho
repousa ao lado do tapete, vazia.
— Quer beber alguma coisa? Vinho, chá, café? — Ela não espera
que eu responda, pega duas taças e as enche de vinho branco. —
Você vai precisar.
Pego a taça e a viro sobre meus lábios.
— Antes, preciso te perguntar uma coisa. — Talita foge do meu
olhar e sorrio discretamente. Ela nunca gostou de ser olhada por
tempo demais. — Foi você a fazer a necropsia do Wellerson?
Talita me olha por um curto instante e leva o vinho aos lábios.
Discretamente, assente.
— O que disse a necropsia?
Dessa vez, nem tenta fugir, leva a garrafa de vinho nova até o
sofá e se senta de pernas cruzadas, em seguida, começa a falar.
— Parada cardiorrespiratória por tranquilizante de cavalo, no
exame de sangue encontramos a amostra da droga, mas você já
sabe disso. O que você realmente quer saber, Eva?
— Tem chances de eu ter simulado uma briga para matá-lo?
Ela para de encher a taça e seus olhos deslizam até encontrar os
meus.
— O que você está falando?
— Por favor, responda. — Desvio do seu olhar e encaro as
cortinas góticas.
— Chance tem, não fomos a fundo na investigação, Guilherme
conseguiu fechá-la pedindo um favor a um amigo. — Talita se
levanta e vem até mim, sua mão repousa de forma carinhosa em
meu ombro. — Mas as chances de realmente ter acontecido uma
briga são muito maiores, Eva. Tinha DNA seu debaixo de todas as
unhas dele e... — Seus olhos descem para o meu decote, não de
forma sexual como eu gostaria, de forma triste. — Não ficou
cicatriz? Ele rasgou seu seio.
Balanço a cabeça em negação e vou até a mesa bisbilhotar os
papéis. É a autópsia do Vicente, porém ainda há resultados
inconclusivos.
— Acha que ele se matou mesmo?
— Não.
— Sei que você ainda não trabalhava no IML na época... —
Engulo em seco. — Mas esse caso não te lembra o do Túlio
Valadares?
— Duas pessoas próximas a você que se suicidaram sem
explicação. — Talita caminha pela casa, indo até uma prateleira no
canto. — Sem indícios anteriores de autoflagelação ou tentativas de
suicídio. Inexplicavelmente um dia tiveram coragem, e ninguém
percebeu. — Ela ri ao puxar uma pasta. — É claro que eu lembrei
do seu ex.
— O que tem aí?
— A necropsia e algumas anotações pessoais. Não foi muito
investigado, era um adolescente que tinha acabado de terminar um
namoro, as pessoas tendem a pensar que isso é o bastante para
alguém cortar os pulsos. — Talita vira o vinho mais uma vez. — É
fácil morrer de amor por você, mas não acho que Túlio tenha se
matado.
— Acha que alguém o matou? — Me viro abruptamente.
— Ele foi encontrado na banheira com um cinto como torniquete,
mas nem a mãe nem o pai reconheceram o cinto. Não era dele, mas
tudo bem, adolescentes compram coisas que os pais não sabem o
tempo todo. — Me encolho e abro a pasta. — Ele tomou os
calmantes da mãe horas antes, para tomar coragem,
provavelmente. Não sou investigadora, mas sinto que tudo isso foi
montado. Parece algo que eu veria em um filme de baixo
orçamento.
Solto uma risada fraca, nervosa e sem ânimo. Uma foto de Túlio
está presa à primeira página.
— Estou com medo — admito ao sentir minhas mãos tremerem
sobre as folhas.
— Do que?
— De ter o matado. — Viro a página e encaro as fotos grotescas
de seus cortes profundos. — Eu sabia exatamente onde cortar para
matar alguém naquela época, fantasiava com isso. Essa era a
minha morte: calmantes e uma banheira de sangue. Foi Túlio quem
me fez desistir dessa ideia, ele deu um valor para a minha vida. —
Meus lábios tremem. — Não acho que ele tenha se matado, não
assim, e não consigo parar de pensar que pode ter sido eu.
— Ei. — Ela segura minhas mãos entre as suas e me obriga a
olhar em seus olhos. — Não sabemos o que aconteceu, mas você
não pode se culpar só por não se lembrar de algo.
— Eu odeio isso. Sinto que estou afundando cada vez mais e que
já não tem mais volta.
— Você saiu do fundo do poço uma vez, pode sair de novo. —
Talita me puxa para seus braços e acaricia o meu cabelo. — Eu
tenho uma teoria de que foi a mesma pessoa a matar Túlio e
Vicente, mas essa pessoa não é você.
— Quem é?
— Ainda não sei. — Me afasto brevemente e ela dá um sorriso
discreto. — É muita coincidência que dois homens com quem você
se relacionou tenham se suicidado, mas não significa que você é
uma assassina.
— Mas eu sou. Wellerson está morto.
— Foi legítima defesa. Se você não acredita em si mesma,
acredite na necropsia.
Talita se levanta e vai até a prateleira, procurando por algo entre
as lombadas e, ao encontrar, volta até mim com a pasta em mãos.
— Você e Guilherme tem cópia de tudo? — pergunto ao segurar o
arquivo, trêmula.
— Só do que me interessa. — Sorri. — Deve ser de família.
Ela se senta ao meu lado e abro a primeira página, não há muitas,
apenas uma dissertação detalhada do corpo e uma foto de
Wellerson jogado no chão da sala.
O relatório diz exatamente o que Talita já me disse, mesmo assim,
não consigo esquecer do que Lourdes me falou dias atrás.
Você não tinha motivo para carregar aquela seringa.
Talvez eu seja mais traiçoeira do que imaginava.
Capítulo 14

Guilherme está sentado entre os milhares de papéis da polícia.


Estou no sofá, com um livro aberto, sem prestar atenção nele.
Meus olhos estão no computador deixado de lado na mesa. Sei que
os relatórios da polícia podem me dar a paz que procuro, mas
Guilherme jamais me deixaria olhá-los, sabe o quanto sofri com a
morte de Túlio, e o pequeno surto que tive ao confirmar minha
presença na casa do Vicente só piora a situação.
Ele se espreguiça e olha para mim. Dou um sorriso de canto e
passo as páginas do romance pausadamente, fingindo estar imersa
na leitura.
Observo com o canto do olho ele guardar suas canetas e empilhar
os papéis. Seus dedos vão ao encontro de suas sobrancelhas e
depois fecham o computador.
— Vou dar uma corrida, quer ir?
Meu coração acelera, balanço a cabeça em sinal negativo, ele
assente e se levanta. Minutos depois some no corredor, em direção
ao seu quarto.
O sangue zumbe nos meus ouvidos enquanto tento parecer
casual, mas minhas mãos se tornam inquietas. Tamborilo os dedos
sobre as páginas.
— O livro não está bom? — pergunta ao surgir na sala com
roupas de academia.
— Um pouco cansativo.
Guilherme comprime os lábios. Deve estar pensando em algum
assunto para puxar, já que não conversamos a manhã inteira.
— Volto em trinta minutos.
— Ok. Fica tranquilo.
Dou um sorriso e marco a página que, supostamente, parei.
Guilherme se despede com um aceno e fecha a porta. Fico atenta
ao som de seus passos indo até o elevador e, só então, me movo.
Deixo o livro sobre o sofá e caminho lentamente até a mesa, à
espera de que ele me pegue no flagra, nada acontece e decido não
perder tempo.
Abro o notebook e visualizo a página inicial do sistema da polícia.
Um login é pedido, mas não faço ideia de qual seja o usuário e
senha.
Procuro papéis jogados à mesa. Há casos recentes da polícia e
algumas anotações inúteis. Dentro de seu estojo também não há
nenhum post-it com o que procuro.
Sinto minha chance de conseguir algo sumir em um passe de
mágica.
Você é mesmo muito burra de pensar que conseguiria assim, não
é?
— Não é burrice, é esperança — murmuro.
Fecho o computador e caminho até o quarto. Enquanto me
pergunto onde Guilherme deixaria o seu login da polícia, fico
admirando a decoração de super-heróis.
Será que alguma menina se sente confortável transando em um
quarto como esse?
— Por favor, agora não. — Fecho os olhos e tento manter o foco.
A senha está apenas na sua cabeça? Espero que não.
Há seis nichos ao lado da televisão, a maior parte do conteúdo é
de quadrinhos e livros de ficção criminal, mas na parte mais alta dos
últimos dois há alguns arquivos escondidos detrás de uma coleção
de Funko Pop.
Me coloco na ponta dos pés e apoio uma das mãos no rack para
conseguir impulso, ainda assim, o máximo que consigo alcançar é
um dos bonecos de Game of Thrones.
A porta é aberta e meu coração dispara, despenco do móvel com
o susto e caio de bunda no chão.
— O que você está fazendo aqui? — Guilherme questiona com o
cenho franzido, vem até mim e me ajuda a levantar.
— Queria ler algo mais interessante. — Aponto para as prateleiras
despretensiosamente. — Já foi e voltou?
— Esqueci os fones. — Ele pega os airpods na mesinha de
cabeceira e se aproxima. — Não tem nada nesse nicho. —
Guilherme se estende e pega um livro no topo, longe dos arquivos
que realmente desejo. — Lê esse daqui. Você vai gostar.
— Obrigada.
Ficamos em um silêncio desconfortável por longos segundos, até
que sou obrigada a acompanhá-lo para fora do quarto. Minha
atuação esfarrapada não deve tê-lo convencido, mas não é preciso
que Guilherme acredite por completo em mim, basta me deixar
sozinha para que eu tenha acesso aos arquivos.
É mais fácil pedir desculpas do que permissão.
Me sento novamente no sofá, abrindo o livro que me deu. Ele se
alonga e sai pela porta segundos depois.
Corro até seu quarto, o coração brigando comigo, querendo sair
do meu peito. Dou um pulo para alcançar os arquivos, mas não é o
bastante, então subo no rack da televisão e torço para que não
quebre e eu me espatife no chão outra vez.
Meus dedos tocam a ponta de um dos arquivos e o puxo o
máximo que posso, em seguida, pego um último impulso e o seguro
entre minhas mãos.
Desconheço o nome na capa e solto ar de forma frustrada. De
nada adiantou o meu esforço, mesmo assim, subo outra vez e me
estico para pegar os restantes.
Conheço alguns nomes da televisão de crimes cometidos em
Santo Oiti que surpreenderam o público, mas outros são
completamente desconexos para mim.
Jogo o penúltimo arquivo na cama e observo a pasta escondida
por detrás de todos eles. Meu nome está estampado em letras
garrafais. A abro imediatamente.
O primeiro arquivo é referente a Wellerson. Corro os olhos pelas
páginas, consumindo o máximo de informação possível, apesar de
saber que grande parte deste arquivo é mentira — apenas três
pessoas sabem a verdade.
Me deparo com o relatório sobre Vicente, que é muito mais largo
que o do Wellerson. Não há chances de conseguir ler tudo isso
antes que Guilherme chegue, então passo pelos títulos e torço para
não estar perdendo muita informação.
Por fim, observo o nome de Túlio ao lado de sua foto adolescente.
As páginas estão um tanto gastas e as bordas se curvam, o que
mostra que alguém já as leu muitas vezes.
Culpada. Culpada. Culpada.
Meu coração machuca o peito de tão forte que bate, mas não
posso ceder ao medo.
Na última página encontro o que procurava: as últimas pessoas a
ver a vítima.
Franzo meu cenho ao reconhecer um nome além do meu:
Alessandro Figueredo. Não tenho certeza de onde é o nome e
sobrenome, mas acabo lendo o que está escrito por intuição.
Alessandro Figueredo foi amigo de Túlio através de uma rede
social. Na ficha está escrito que ele forjou um perfil falso para iniciar
a amizade com Túlio e que só depois revelou sua verdadeira
identidade.
Os fatos ocorreram simultaneamente ao meu namoro com Túlio,
mas não consigo me lembrar de nenhum Alessandro que fosse tão
próximo ao meu ex a ponto de ser uma das últimas pessoas para
quem ele ligou.
Apesar da pulga coçando minha orelha, dou continuidade.
Nas últimas linhas está meu nome, com uma foto da minha
adolescência. Há uma data no canto e franzo o cenho ao perceber
que é o dia da morte de Túlio. Não me lembro daquilo.
Estou na portaria e me estico para falar com o porteiro, horas
antes do meu namorado morrer.
Você é culpada.
Eu sou culpada.
「• • •」
Observo o fogo consumir meu cigarro.
As pequenas chamas crepitam e me obrigam a sacudir levemente
a ponta para as cinzas caírem. O cigarro não para de balançar entre
meus dedos trêmulos, então o levo aos lábios.
— Está com frio? — Alex aparece ao meu lado e passa os braços
em volta da minha cintura.
Deixo minha cabeça pender para o lado e descansar em seu
ombro, em seguida, esboço um sorriso abatido que ele
provavelmente não viu.
— Só um pouco cansada.
Do terraço consigo ter a vista perfeita do fim de tarde. O sol se
põe e mistura suas cores no céu, esfriando o tempo quente de
Santo Oiti.
Ele beija o meu pescoço e brinca com os fios da minha nuca,
depois, se afasta de modo lento e se apoia no parapeito comigo.
Dou uma longa tragada para fugir de uma possível conversa. Alex
desiste de tentar decifrar minha feição e tira um prensado do bolso.
Seria ótimo um trago.
Fecho os olhos.
Não, não posso.
É só para provar.
— Você se importa? — pergunta ao pegar a seda.
Balanço a cabeça em sinal negativo e dou uma última tragada no
meu cigarro. Em seguida, o apago no parapeito.
Na primeira tragada de Alex o cheiro de maconha impregna o ar,
invade minhas narinas e faz minha boca salivar ao imaginar o gosto
doce amargo e o quanto me acalmaria um baseado.
Os médicos são claros quanto à mistura de maconha, álcool e
medicação. É o kit surto, mas não posso dizer que me importo o
bastante agora.
Na verdade, estou exausta de tudo isso. Os remédios. O
tratamento.
A sanidade parece superestimada.
— Quer? — Alex estende o baseado na minha direção.
Seguro com minhas mãos trêmulas e o levo até os lábios, dou
uma longa tragada. O alívio se expande pelo meu corpo ao sentir o
frescor na língua.
— Como está o caso? A mulher maluca ainda te acusa?
Assinto, sem ter coragem de olhá-lo nos olhos.
— Foi muita má sorte você ter discutido com ele horas antes...
— É.
— Mas não se preocupe, minha mãe sempre me dizia que quem
não deve, não teme. — Alex ri e eu endureço a feição.
Meu telefone vibra, há uma notificação de Talita na tela.
PRECISO FALAR COM VOCÊ.
Guardo o aparelho no bolso.
Alex coloca o cigarro nos meus lábios e passa as mãos pelos
meus ombros, massageando-os. Solto o ar de forma demorada,
aliviada que esteja sendo cuidada por alguém durante a loucura que
se tornou minha vida.
— Você quer conversar? — diz ao colar os lábios no meu ouvido
e passar os braços ao redor da minha cintura.
— Não sei.
— Se estiver se sentindo culpada pelo cara, não sinta. Você disse
que ele era um idiota.
Solto uma baforada pura maconha e encaro a fumaça densa subir
aos céus. Alex pega o baseado da minha mão.
— Vicente podia ser um idiota, mas não merecia aquilo. Ninguém
merece. — Meu coração se aperta, porém não dura muito tempo. A
erva me deixa anestesiada. — E Lia pode ter sido uma vaca comigo,
mais de uma vez inclusive, mas sei a dor de perder alguém que se
suicidou.
— Está falando do seu ex-namorado?
— Sim. — Me viro brevemente e olho seu rosto apoiado no meu
ombro. Alex me acalma, não é só a droga. — Eu amava Túlio, mas
no fim fiz mal a ele.
E quem garante que você não vai fazer mal a ele também?
Spoiler: Ninguém.
— Acontece, as pessoas fazem mal umas as outras. Precisamos
normalizar isso e tirar a ideia de que somos saudáveis em 100% do
tempo.
Fico desconfortável em seus braços e me mexo.
— Mesmo assim. Antes dele se matar, eu o magoei, manipulei e
menti. — Engulo em seco. — Você merece alguém melhor do que
eu, Alex.
Alguém que não pense que seria capaz de te matar.
— Você é perfeita para mim, não diga isso.
— É a verdade. — Me viro e colo as costas no parapeito,
permanecendo entre seus braços. — Eu duvido da minha sanidade
o tempo todo, me esqueço de coisas importantes para mim e morro
de medo de amar de novo e a pessoa me abandonar. Ninguém
merece alguém tão problemático.
— Você só diz isso porque nunca esteve com alguém que te
entende. — Seus dedos tocam meu cabelo e delineiam meu rosto.
— Você merece ser valorizada, Eva. Me deixa fazer isso por você.
Encaro meu reflexo em seus orbes escuros. Não consigo saber se
as pupilas estão dilatadas, mas sei que se movem freneticamente. É
tão cheio de sentimento que me deixa paralisada.
Estou perdida no tempo, afundando no meio dos meus medos e
na profundidade de seu olhar. Minha respiração pesa, perco o ar
gradativamente enquanto imagino uma piscina tão escura quanto os
olhos de Alex.
— Eva? Está tudo bem?
Balanço a cabeça e me obrigo a voltar para a realidade. Pego o
baseado entre seus dedos mais uma vez.
— Sim. Desculpa.
— Tenho algo para você. Feche os olhos.
O obedeço e sinto seus dedos sobre o meu pulso, me aproximo
do seu corpo.
— Posso abrir?
— Pode.
Encaro seu rosto bem próximo ao meu e lhe roubo um beijo débil
enquanto dou um sorriso cansado. Alex sorri contra meus lábios e
ergue meu pulso para que eu veja seu presente.
Uma pulseira de prata brilha na escuridão, meu corpo petrifica
enquanto viro o adereço para encontrar o pingente. Está escrito
exatamente o que imaginei: meu nome.
— Não gostou? — Ele pergunta se aproximando de mim. —
Podemos trocar se quiser.
— Não. Não é isso. — Ainda olho inebriada para a pulseira. — Eu
adorei, é que... Tive uma igual na adolescência.
— Impossível. — Ri. — As joias dessa loja são exclusivas e sob
encomenda. Não pode ser igual. — Alex ergue as sobrancelhas. —
A não ser que seja a mesma. — brinca.
Dou uma risada débil, nervosa e olho a pulseira outra vez.
— Deve ser só impressão — digo, mas não sei se estou tentando
convencer a ele ou a mim mesma.
Alex junta nossos lábios, passa seus dedos por meus fios escuros
e se afasta para aprofundar o ato. Meus olhos se abrem por um
milésimo de segundo, o momento exato em que vejo um vulto correr
à suas costas.
Me afasto imediatamente e olho alarmada para o espaço aberto
do terraço.
— Alguém passou correndo.
— Tem certeza?
Engulo em seco e esboço um sorriso nervoso.
— Não sei, estou um pouco chapada.
— Tudo bem. — Ele segura minha mão e dá um sorriso bobo que
relaxa meus ombros. — Você é tão linda.
— Olha quem fala. — Solto uma risada fraca, ainda preocupada,
e escondo meu rosto entre seu pescoço e ombro.
Alex massageia minha nuca e afunda a mão pesada no meu
cabelo, me apertando contra seu peito, ergo o rosto e o encaro por
alguns segundos, antes de ser puxada para um beijo voraz.
Nossos lábios são lentos, mas cheios de luxúria. O beijo distrai
minha mente do vulto que vi e me leva para a sensação doce que é
sentir seu gosto e pele contra meus lábios.
Minhas costas queimam e tenho certeza que ao abrir os olhos irei
me deparar com um rosto assustador próximo ao meu. Fecho os
olhos com força e tento me focar no beijo.
Escuto passos, não consigo fingir que está tudo bem, me afasto.
A visão turva pela maconha não me deixa reconhecer o que é fruto
da droga e o que é real.
— Tem alguém aqui — insisto, apavorada. — Vamos embora.
— Ok.
Escuto risadas altas ecoarem na minha cabeça quando tento
focar nas mínimas figuras no nosso caminho para a saída. Desço os
degraus do terraço com pressa, Alex tem que gritar para que eu vá
devagar.
Estou no alto das escadas e me arrependo de olhar para baixo,
minhas mãos suam ao segurar os degraus de cima, o mundo passa
a girar como em uma roda infinita, vou vomitar.
As risadas ficam mais altas e meu coração bate mais forte, se eu
soltar a escada, cairei uns doze metros em queda livre.
De repente, sinto que é esse meu fim.
Meus dedos se abrem um a um.
— Eva! — Alex grita em cima de mim. — Desce. Com cuidado.
Não solte as escadas em momento algum.
Meus pés tocam o degrau de baixo, vacilantes, mas acabo
conseguindo descer mais um lance. Repito isso mais algumas
vezes, com os olhos semicerrados enquanto encaro as escadas de
tinta amarela desgastada à minha frente.
Solto o ar aflita ao tocar os pés no chão. Alex desce logo depois e
me puxa para seus braços.
— Tinha alguém lá, juro — sussurro contra seu peito.
— Ok, calma. Já saímos de lá. — O medo o deixou levemente
sóbrio. Alex me segura como se eu pudesse me desfazer a qualquer
segundo.
Estou a vagar em volta do meu corpo ao ser levada até seu
apartamento. Ele me senta no sofá antigo coberto de mofo e me
obrigo respirar enquanto olho para a janela e porta, em uma
tentativa de me convencer de que estou segura. Não há ninguém
nos espionando.
Ou há?
E se Alex estiver te espionando?
Ele vai até a cozinha pegar água para mim, a quitinete me permite
ficar atenta a cada movimento seu.
Um vento frio arrepia minha espinha. Sigo seu fluxo e olho para
as persianas que batem vorazmente contra a janela aberta.
Há um rosto por entre as dobras. Os olhos esbugalhados me
encaram e o homem esboça um sorriso doentio. Ao forçar meu
olhar, percebo que não está sorrindo, os lábios estão cortados nos
cantos.
Me levanto, dou passos vacilantes para trás enquanto encaro
aquela figura horrenda, choco contra algo e me viro abruptamente
enquanto grito. Alex segura meus ombros. O copo de vidro cai e se
espatifa por todo o chão.
— Tem um homem na janela! — Aponto para a persiana,
exatamente onde o vi.
Não há nada.
Largo Alex e vou até a porta conferir as fechaduras, minhas mãos
tremem, o que dificulta o trabalho. Depois, viro para a janela, sem
ter coragem de ir até lá.
— Por favor. — Alex entende o que lhe peço e vai até as
persianas, fechando a entrada de ar e as cortinas.
Ele vem até mim e segura minhas mãos entre as suas.
— Não tem ninguém lá, Eva.
Sou envolvida por seus braços e ninada como uma criança
enquanto sussurra que estamos seguros.
Escuto alguém forçar a porta e me encolho em seu peito. Alex
não me solta, mesmo com minhas súplicas para que o faça e ligue
para Guilherme.
— Ninguém vai te machucar, meu amor. Eu nunca vou deixar —
diz de modo débil e arrastado. — Você tem a mim agora, não
precisa se preocupar. Você não tinha a mim antes, por isso tudo deu
errado.
— Você merece alguém que não seja assim.
— Não existe ninguém melhor para mim do que você, Eva. — Ele
beija meu pulso, onde a pulseira está. — Nós somos destinados.
Capítulo 15

Minha mãe sempre dormiu sob efeito de calmantes fortíssimos.


Por isso, nunca foi difícil para mim me esgueirar para fora de casa
de madrugada. Bastava inventar uma desculpa para ir à cozinha,
passar um tempo fingindo estar comendo e depois voltar até o
corredor e bater minha porta, como se tivesse entrado no quarto.
Ninguém se importava o bastante para fiscalizar minhas saídas
então repeti a fuga várias e várias vezes, sempre chegando antes
das cinco da manhã, que era o horário em que ela acordava.
Uma vez, cheguei às sete.
Tinha acabado de terminar com Túlio, a maquiagem borrada das
lágrimas e minha roupa cheirando a vodca e refrigerante de laranja.
Minha mãe estava sentada no sofá quando cheguei, assistindo ao
culto.
Ainda me lembro do seu olhar que misturava o choque e a
decepção. É o mesmo que Guilherme faz enquanto me leva para
casa depois de me pegar no Alex — exceto que sua carranca é
mais de raiva e decepção, que choque.
Ele me conhece bem demais para ficar chocado, diferente de
Julia.
— Você sabe que maconha e medicação não combinam.
Me encolho no banco do passageiro, arrependida por ter pedido a
Alex que lhe ligasse.
— Talvez eu deva parar a medicação, então — digo em um tom
quase inaudível, mas Guilherme me ouve e seus olhos me
repreendem em silêncio.
— Foi o Alex quem te ofereceu?
— E isso realmente importa?
— Filho da puta, eu não devia ter deixado você ficar com ele.
— Deixado? — Solto uma risada fraca. — Eu sou uma mulher
adulta, Guilherme. Você não manda em mim.
Ele fecha os punhos no volante e assente de modo atingido.
Reviro os olhos e encaro a janela.
— Você devia ter cuidado com ele. A ficha dele é limpa demais,
você sabe que...
— Você verificou o histórico dele? Pelo amor de Deus, Guilherme!
— Me escuta. — Cruzo os braços. — Não tinha nada, mas...
— Você ultrapassou todos os limites.
— Droga, Eva! Todo mundo tem ao menos alguma coisa nas
fichas. O Alex nem existia até uns anos atrás. Não tem pais, não
tem irmãos. Nada. — Ele gesticula na minha direção e viro o rosto
para a rua, com medo de que bata o carro. — Você não entende?
Pode ser nada, mas pode ser alguma coisa.
— Existem tantos motivos para as pessoas não terem ficha na
polícia. — Comprimo os lábios com raiva. — Na verdade, fora do
seu mundinho policial, é normal as pessoas não terem ficha
criminal, sabia?
— Não é essa a questão, Alex provavelmente não é o nome de
nascença dele e, se está mentindo sobre isso, pode estar mentindo
sobre várias coisas.
— Isso é tão absurdo que eu nem acredito que está vindo de
você.
— É para sua segurança.
— Para minha segurança? — ironizo. — É pro seu ego infantil
que não consegue me dividir com ninguém! Você está fazendo o
mesmo que fez com o Gabriel, mas isso não tá na sua ficha, não é?
Adivinha por quê? Porque eu escondi pra você.
— É isso que estou tentando falar, Eva! Uma ficha limpa, é
duvidosa.
— Vai a merda, Guilherme. Nem todo mundo é perturbado que
nem você.
O carro para em frente ao nosso prédio, saio com raiva e bato a
porta com força.
「• • •」
— Só acho engraçado que ele fala tanto de hipocrisia, mas é tão
hipócrita quanto as pessoas que fala mal.
— Entendo.
— Investigar o Alex? Onde já se viu isso?
Diana assente.
— Ele é um maluco ciumento, doido por controle.
— Ok, vamos com calma, Eva. Você sabe que Guilherme estava
com a melhor das intenções. — Minha psicóloga se curva na
cadeira. — Não seja tão dura com ele.
— Sério? — Solto uma risada de escárnio. — Guilherme não
estava com a melhor das intenções, ele queria agradar a si mesmo,
porque não suporta que eu me relacione com outras pessoas.
— Isso é muito comum entre irmãos, Eva. — Suspira. — O irmão
sempre tem um pé atrás com o namorado da irmã. Só que o seu é
investigador. A mente dele é programada para ver problemas onde
não tem.
— Eu não preciso que ele investigue a minha vida, já tenho
problemas demais. Alex é uma das poucas coisas descomplicadas
que tenho no momento — Arqueio uma sobrancelha. — E não é
meu namorado.
— Ok — diz com uma risada fraca. — Talvez você deva falar isso
para ele então. Sair do carro batendo a porta não vai adiantar.
— Foi satisfatório, ao menos. — Passo a mão pelo queixo, rindo
de raiva. — Eu odeio essa masculinidade tóxica de querer decidir as
coisas por nós mulheres só porque acham que vamos fazer as
escolhas erradas.
— Entendo você.
— Não, Diana, acho que você não entendeu. — Meus pés batem
freneticamente no chão. — Da última vez Guilherme espancou um
cara.
— O que?
— Estávamos em uma calourada. — Meus lábios se curvam para
cima, rio. — Bêbados, chapados e propensos a fazer merda. Eu
estava a noite toda com esse garoto, Gabriel.
“Mesmo aos vinte e poucos anos parecia um adolescente, com as
bochechas grandes e a boca rosada. Guilherme não gostou dele de
imediato e mandou eu me afastar, mas não o fiz.
Pelo contrário, agarrei Gabriel antes que pudesse trocar mais de
duas palavras comigo. Fomos para trás de um carro e demos alguns
beijos, até que pisei em falso e torci o pé.
Ele se agachou e me disse para ficar parada, mas eu gemia de
dor. Estávamos escondidos e quem ouvisse nossa conversa poderia
entender errado.
Foi exatamente o que aconteceu.
Não tive tempo de contestar. Guilherme puxou a gola de Gabriel,
o jogou na lama e perdeu as estribeiras logo no primeiro murro.
Sangue esguichou para todo lado e se misturou à terra enlameada.
Gritei por ajuda, sem conseguir me mover por conta do pé
machucado. Quando separarem os dois, Gabriel estava
desacordado, banhado em sangue.
Foi preciso muito dinheiro para calar sua boca ao chegar no
hospital.”
Diana olha para o chão por um longo segundo e depois volta para
mim.
— Você tem conhecimento que essa é uma relação levemente
problemática, não tem?
— Só não teria se fosse cega. — Dou de ombros. — Mas não é
apenas do lado dele. Já envolvi Guilherme nas piores situações
imagináveis. Por Deus, ele é investigador e a melhor amiga quase
foi presa por homicídio, isso já é humilhante o bastante — digo. —
Quando ele estava na academia da polícia, teve que me tirar da
prisão depois que estraçalhei o carro do Wellerson.
— Eva. — Diana cruza as pernas. — Não é porque uma relação é
problemática dos dois lados que está tudo bem. Não está, vocês
precisam mudar isso.
「• • •」
Assim que abro a porta, Guilherme se vira com a pulseira que
Alex me deu na mão. Não consegui ficar carregando essa
lembrança constante de Alexia para todos os lugares, por isso deixei
em casa.
— Veio me investigar, agora?
Arranco o acessório dos seus dedos e ponho sobre a
escrivaninha.
— Onde você conseguiu essa pulseira?
— Alex me deu. Por quê? É alguma arma do crime e eu não sei?
— Cruzo os braços.
— Pode ser, me lembro de algo assim em algum arquivo...
Bufo de raiva e indico a porta a ele.
— Chega, Guilherme.
Ele me olha e suspira.
— Olha sobre...
— Não, Guilherme. Realmente não quero conversar agora. —
Indico a porta com a cabeça. — Me deixa descansar, mais tarde a
gente conversa.
Ele assente e olha uma última vez para a pulseira.
— Você não tinha um igual? — pergunta.
— Não — minto.
— Estranho. Sinto que já vi em algum lugar.
— No momento eu realmente não ligo para suas paranoias.
Meu celular toca dentro da bolsa e lhe dou uma última olhada
antes de pegar o aparelho para ver quem é. É a terceira vez que
Talita me liga, já perdi as contas de quantas mensagens me enviou.
— Preciso ficar só. — Olho para meu amigo, que finalmente
entende e sai do quarto. — Alô?
— Pra que você tem telefone se não atende?
— Boa tarde para você também — digo. — O que foi?
— Por que não me respondeu? Te enviei milhões de mensagens.
É importante.
— Foram dias difíceis. — A escuto suspirar. — Pode falar agora.
— Posso ir aí?
— Pode ser depois? Preciso de um banho e um...
— Sei quem matou Vicente.
Capítulo 16

Equilibro a fornada de biscoitos em uma das mãos enquanto


fecho o forno com a outra. Talita está parada na bancada e bebe
uma xícara de café despreocupadamente.
— Isso é hora de cozinhar? — Me pergunta ao repousar a xícara
no mármore.
— Estou nervosa. Você não pode me culpar.
— Pelo visto esse hábito não mudou. — Solto o ar fracamente.
Estar com ela me lembra constantemente do que perdi ao ir
embora.
Encho um pote com os biscoitos e os jogo com pressa de um
recipiente para outro para não queimar meus dedos.
— Vamos para o quarto — digo e indico que leve minha xícara de
café.
Talita se senta na cama e deixa as xícaras de lado, abre a mochila
e joga várias pastas sobre meu lençol cor de rosa. Busco um cigarro
e abro a janela para a fumaça correr, o acendo e me sento ao seu
lado.
— Quem foi? — pergunto ao dar uma longa tragada.
— Vicente usou um cinto para se matar, mas as marcas da
necropsia não correspondem a de um cinto. — Ela abre em uma
página e a estende para mim. — Tenho quase certeza de que foi
uma corda com quase a mesma espessura.
Na página que Talita deixou aberta vejo a marca vermelha-
arroxeada que cobre a garganta de Vicente e sobe por sua nuca, ela
se espalha pelos cantos, como se tivesse espinhos. Não parece
real. A sensação é de ver uma maquiagem artística muito malfeita.
Esperava algo mais vibrante, dramático, mas é apenas uma
cicatriz opaca.
— Essa foi a causa da morte ou havia calmantes no sangue dele?
— Causa da morte. Quem matou Vicente se preocupou em fazer
isso com uma corda que fosse muito parecida com a marca que um
cinto faria, mas ele não contava que investigaríamos como um
assassinato. Em casos de suicídio, principalmente de um pastor
influente, o instituto acelera o processo para a mídia não cair em
cima e geralmente esses detalhes passam em branco. — Talita
morde o lábio inferior. — Já estou sendo pressionada para acabar
com a necropsia, mas não podia fazer isso de qualquer jeito. Não
quando o seu nome está no meio.
— Obrigada... — Olho para a imagem mais uma vez e subo os
olhos até Talita. — Eu poderia ter feito isso?
— O que? — Ela ergue as sobrancelhas. — Sério?
Balanço a cabeça em sinal positivo e fujo do seu olhar.
— Guilherme falou que eu precisaria de muita força para não
fazer barulho e erguê-lo no ventilador.
— Ele está certo — diz. — Fizemos a análise juntos, o provável
culpado tem no máximo trinta e sete anos, entre um metro e oitenta
e um metro e noventa, não é sedentário e provavelmente já matou
antes. Quem fez isso não é fraco e nem amador, Eva.
— Não seria minha primeira vez.
— Você perdeu o resto dos neurônios? — Suas mãos seguram
minha bochecha e sou obrigada a olhá-la. — Não está me
escutando? Não tem chances de ser você.
— Não?
— Você matou por legítima defesa. Não é uma assassina.
— Isso não é verdade — Talita fica em silêncio e suas mãos caem
no meu colo. — E você sabe, não é?
— Não sei, mas tinha minhas dúvidas.
— Agora não as tem mais. — Solto a fumaça em uma risada
amargurada. — Minha vizinha encobriu o crime, por isso
acreditaram que foi legítima defesa, mas na verdade, coloquei a
seringa na bolsa de propósito.
— Você se lembra disso?
— Não preciso me lembrar para saber que seria completamente
capaz. — Fecho os olhos, meus lábios tremem. — Você sabe que
imaginei a morte dele mais vezes do que posso enumerar.
— No seu lugar qualquer um teria imaginado.
— Será? — Dou de ombros. — Eu não me lembro de nada, Lita,
mas aconteceu. Nada me garante que a história não está se
repetindo.
— Eva... — Sua mão toca meu cabelo.
— Sinto que tenho uma irmã gêmea que mata gente por aí e eu
tenho que arrumar a bagunça dela.
— Isso é coisa de filme.
— No fim das contas, a vida é um filme. Um filme cult de baixo
orçamento.
Talita ri enquanto acaricia minha nuca. Descanso o rosto na palma
de sua mão e fecho os olhos, meu coração se aperta ao sentir seu
toque carinhoso.
— Tem mais uma coisa. — Ergo o olhar ao som da sua voz. —
Você conhece o culpado. Não importa se foram amigos próximos ou
inimigos, você definitivamente cresceu com essa pessoa, só assim
ele saberia exatamente quem matar e como te enlouquecer com
isso.
Solto o ar de forma demorada e dramática, chegamos a algum
lugar e ao mesmo tempo em lugar nenhum.
— Todos se conhecem nessa cidade de merda, Lita.
— Sim, mas essa pessoa te conhece o bastante para saber que
as mortes estão mexendo com a sua cabeça — diz. — E eu acho
que ele vai matar outra vez, só não sabemos quando.
Olho para o teto e fecho os olhos, cansada.
— Pode ter sido a Sara — digo em tom de piada. — Acho que ela
tinha um caso com o Vicente. Postava mais fotos com ele do que a
própria esposa do cara.
— Ela foi ao necrotério ontem, me pediu para ver o corpo. —
Arqueio uma sobrancelha. — Óbvio que não deixei, mas ela podia
estar querendo esconder provas.
— Talita... — Meus lábios se curvam em um sorriso triste. — Você
sabe que Sara nunca teria força para erguer Vicente em um
ventilador.
— Eu sei. — Ela cola a testa à minha, bagunçando sua franja. —
Mas preciso que você confie um pouco em si mesma. Acredito na
sua inocência, Eva. Por favor, faça o mesmo.
Engulo em seco, sentindo um peso tomar conta do meu peito.
Sinto a ponta do meu nariz tocar o seu e quero beijá-la, mas não
tenho coragem.
— Eu não sou confiável.
— Você é. É a pessoa mais confiável que conheço, o problema é
que não confia em si mesma. — Seus cílios se movem e abro os
olhos para encará-la, os orbes castanhos estão fixos em mim. Perco
a respiração. — Se não quer fazer isso por você, faça por mim.
Confie na sua inocência essa única vez.
Umedeço os lábios inconscientemente e noto o momento em que
Talita desce o olhar discretamente, sinto algo queimar meu dedo e
jogo o cigarro pela janela.
Talita me analisa por longos segundos quando volto a olhá-la.
— Vou tentar. — Ela sorri e meus ombros caem, vencidos pelo
cansaço. — Você sempre consegue tudo que quer de mim.
— Não consegui te fazer ficar.
Um nó fecha minha garganta. Observo seus olhos passarem por
todo o meu rosto e seus dedos se aproximarem até tocarem minha
bochecha, um pequeno choque se espalha pelo local e um frio
anormal sobe pelo meu ventre.
— Desculpa — murmuro.
— Você não tem pelo que se desculpar, sempre deixou claro que
ia embora. A culpada sou eu, que me apaixonei mesmo assim.
Minhas sobrancelhas caem e comprimo os lábios na tentativa de
engolir a tristeza que me invade. Nunca cheguei a lhe dizer o que
realmente sentia, que a correspondia.
Não tinha por que fazê-lo. Admitir que lhe amava a faria sofrer
muito mais quando eu fosse embora.
Era melhor que achasse que seu amor jamais foi correspondido.
Seus lábios roçam nos meus com carinho, fecho os olhos com
força, mas isso não impede que uma lágrima solitária escorra pela
minha bochecha e se mescle ao nosso beijo melancólico.
Não há tesão, nem pressa. Só saudade e tristeza, que se juntam
e me transportam para seis anos atrás, a época em que estávamos
juntas e éramos felizes.
Minha mão toca seu rosto por cima do cabelo escuro, a trago para
mais perto, sabendo que em breve vou ter que me separar e ir
embora. Um pedaço do meu coração parece ser devolvido nesse
instante, para no segundo seguinte ser tomado com força de mim.
A porta é escancarada e a afasto.
Minha visão turva pelas lágrimas me faz enxergar Wellerson,
tenho certeza de que irá me puxar pelos cabelos e arrastar-me pela
sala para mais um exorcismo. Igual fez aos meus doze anos quando
me pegou beijando Alexia.
Mas é Alex quem está na porta. Estático enquanto encara nós
duas sentadas na cama, ainda próximas uma da outra e com os
lábios inchados do beijo. Aos poucos me dou conta do que
aconteceu e corro para fora no exato momento em que ele dá as
costas.
— Alex, vamos conversar.
— Você falou que não tinha nada com ela, me prometeu. — Ele ri,
mas a risada sai quase como um rosnado.
— Não prometi nada disso, falei que não podia te prometer! —
Olho para Talita parada no batente da porta. — Deixei tudo muito
claro para você.
— Por que eu nunca sou o bastante para você?! — Alex grita e
dou um passo para trás, batendo contra a parede.
Meus olhos se arregalaram, ele avança na minha direção e me
olha em fúria. Tenho medo de que a qualquer momento vá levantar
o braço e me estapear, mas não o faz, apenas se vira e vai embora.
Minhas lágrimas, antes de saudade, viram de medo. Abraço o
meu próprio corpo e nego quando Talita arrisca se aproximar de
mim.
— Eu preciso ir.
— Por quê? Você não viu o que ele acabou de fazer com você?
— Talita se põe entre mim e a porta, ergo o queixo, sentindo as
lágrimas jorrarem.
— Você não pode culpá-lo, eu também teria ficado brava se fosso
o contrário.
— Eva! Você deixou claro que não queria um relacionamento com
ele! — A voz dela está esganiçada. — Não prometeu nada.
— Por favor — a interrompo. — Me deixa ir, Talita.
Ela me olha e meu coração se aperta ao ver seus olhos
castanhos se encherem de lágrimas. Talita nunca foi de chorar,
principalmente na frente de alguém, vê-la desse jeito me parte o
coração. Ela dá um passo para o lado e deixa o caminho livre para
mim.
Olho para o corredor e depois para a mulher à minha frente, que
abaixou a cabeça e esconde as lágrimas com o cabelo escuro.
Você não precisa deixá-la dessa vez. Pode ficar.
Então me lembro do rosto decepcionado e magoado de Alex ao
nos ver juntas. Ele também fez muito por mim e merece uma
explicação.
Dou um passo à frente e lhe olho uma última vez antes de sair
pelo corredor.
Meu romance conturbado com Talita pode esperar.
「• • •」
Meu punho bate contra a madeira mais uma vez. Já perdi as
contas de quantas vezes insisti à espera de que Alex cedesse em
algum momento, mas não cedeu.
Massageio minha têmpora e inspiro profundamente, minhas
pernas estão cansadas de tanto ficar em pé, então me apoio na
porta e escorrego até estar sentada no chão, com o rosto entre
meus joelhos.
A vizinha abre a porta e me julga através do seu olhar. Devo estar
a confusão em pessoa, mas não me importo no momento. Tudo que
eu quero é que Alex abra a porta, para explicar o que aconteceu.
Solto uma risada melancólica.
Nem sei o que irei falar, não tenho o que explicar.
— Abre essa porta, menino! A moça vai se acabar em lágrimas.
— A velinha grita na direção da quitinete do Alex e depois olha para
mim. — Não fica assim não menina, nenhum homem merece essas
lágrimas todas.
— Não quero perdê-lo.
Ela ri.
— Deixa de ser boba — diz e fecha a porta, sumindo do corredor.
Bato a cabeça contra a madeira. Nem sei por que ainda me presto
esse papel. Diana deve ter vergonha de dizer que é minha
psicóloga.
Escuto a chave virar e me levanto abruptamente, passo a mão
pelo rosto para enxugar as lágrimas e parecer mais apresentável.
Alex não abre a porta, apenas deixa uma fresta escancarada.
Empurro a madeira e escuto o rangido, em seguida, dou um
passo para dentro do apartamento. Ele está sentado no sofá, se
servindo de uma dose de vodka.
— Oi.
— Oi. — Seus olhos não encontram os meus, pelo contrário,
fogem de mim.
Me sento ao seu lado e engulo em seco. Ele acaba me servindo
uma dose também. A viro meio hesitante e sinto o álcool arranhar
minha garganta.
— Precisamos conversar — digo com dificuldade enquanto me
recupero da bebida.
Ele balança a cabeça, mas não diz nada.
— Nós nunca falamos sobre exclusividade, para começo de
conversa. — Tento soar convincente. — Não somos namorados
nem nada, então, tecnicamente, não devo satisfações de quem eu
beijo.
— Então por que está aqui?
— Porque quero dar satisfações. — A pose de confiante vai
embora. — O que eu e Talita tivemos foi a muito tempo e não
acabou bem.
— E mesmo assim beijou ela.
— É complicado, nós duas...
— Você está tentando convencer a mim, ou a si mesma? — Alex
me interrompe e estremeço com o seu olhar. — Achei que você
tivesse preferência por homens.
— O que isso tem a ver?
— Que mesmo você tendo preferência por homens, você me
trocou por ela. Uma mulher.
— Primeiro — Me afasto, abismada. — Eu nunca disse que tenho
preferência por homens. Não tenho preferência, ponto final. E
segundo que não te troquei, estou aqui, não estou? Se não quisesse
você, não teria vindo.
Alex me olha hesitante e se serve de mais vodka.
— Eu só queria ser o bastante.
Me curvo e toco seu joelho.
— Você é o bastante. Me desculpa por te fazer sentir que não é.
— Não, Eva, você não entende. Eu...
— Alex. — Ergo seu queixo com a minha mão e me aproximo. —
Você é mais que suficiente. Nunca duvide disso.
Colo meus lábios aos seus, o impedindo de falar, e Alex passa a
mão pela minha cintura. Sinto suas lágrimas rolarem e se
misturarem ao nosso beijo ávido, deixando o gosto adocicado de
seus lábios, salgado.
Ele desce os beijos pelo meu pescoço e esconde o rosto no meu
ombro. O abraço com força, trazendo-o para mais perto de mim e o
escuto chorar por longos minutos.
Em um prazo de trinta minutos, consegui estragar absolutamente
tudo.
Parabéns.
Capítulo 17

Escuto Alex gritar com alguém na sala, me esgueiro pela cama


para escutar melhor.
— Ela está nua, você não pode entrar! — Sua voz me assusta e
puxo o cobertor para cobrir minha nudez.
É o tempo de Alex entrar e me dar uma ordem curta e rápida:
— Se vista, a polícia está aqui.
Poderia ser Guilherme me fazendo uma pegadinha, mas pelo seu
tom de voz imagino que não.
Cato as roupas pelo chão e as coloco de qualquer jeito. Quase
caio ao tentar entrar na calça jeans.
— O que aconteceu?
Isis está parada no meio da sala de estar e um outro policial a
acompanha.
Guilherme morreu.
É a primeira coisa que me veem a mente e logo meu coração se
aperta, mas sou surpreendida por suas palavras:
— Eva, preciso que você venha comigo até a delegacia. — Isis
indica a porta para mim, percebo que não é um pedido. — Me
desculpe por isso.
— Para que? — É Alex quem questiona.
Olho para Isis, também ansiosa pela resposta. A parceira de
Guilherme inspira profundamente e olha para o chão antes de me
responder.
— Eva é suspeita do homicídio de Vicente Carvalho. — Seus
olhos estão fixos em mim ao elevar o tom de voz. — Se não vier,
temos ordens para prendê-la.
— Isso é um completo absurdo. — Alex se coloca à minha frente.
— Vocês não têm provas contra ela.
— Alex. — Toco seu braço, o que o faz se virar para mim. — Se
eles têm ordens para me prender, é porque tem provas. Ligue para
o Guilherme.
Isis me acompanha para fora da casa. Olho uma última vez para
Alex, sentindo meu corpo estremecer.
A velha fofoqueira está no corredor e me olha com desprezo
quando passo por ela.
— Eu disse que esse garoto era problema.
Minha cabeça dói e sinto que vou desmaiar em breve. Os flashes
de memória da noite em que fui presa por assassinar Wellerson me
deixam atordoada. Parece que estou em uma arena, com uma dúzia
de lutadores experientes me socando sem parar.
É de manhã, mas em outro momento é noite. Olho para os lados
a procura do barulho da ambulância e do carro do IML, mas só
encontro Isis assustada.
— O que aconteceu? — pergunto, sentindo o mundo girar.
Isis olha para o colega que caminha à nossa frente.
— Não responda nada até sua advogada chegar — sussurra.
O outro policial olha para trás e Isis fecha o rosto em uma
carranca, suas sobrancelhas quase se juntam e uma veia salta em
sua testa. Assim que entramos no carro, ela pega os óculos de sol
do bolso e cobre os olhos, porém, antes, consigo ver a preocupação
expressada neles.
Não sei que provas a polícia tem contra mim, mas não acho que
seja pouca coisa.
「• • •」
A minha frente há uma cadeira e um vidro escuro.
Deve ser de lá que me vigiam — ou da câmera no canto da sala
minúscula.
Minhas mãos tremem e a incompreensão do que acontece me
deixa ansiosa. As coloco no colo e aperto, torcendo para que se
esquentem um pouco. A ponta do meu nariz também está
congelando.
Talvez eles estejam tentando te matar de frio.
O barulho da porta se abrindo quebra o silêncio. Um homem
baixo, levemente acima do peso e com o símbolo da polícia civil
agarrado em seu cinto, aparece.
— Bom dia, senhorita Borges. Me chamo Carlos Aguiar e sou
investigador da polícia, estou aqui para lhe fazer algumas
perguntas. — Ele me analisa e se senta. — Está com sede? Lhe
trouxe um café.
Olho para sua mão, que se aproxima da metade da mesa com um
copo de papel. Pego a bebida e tomo em um único gole. Está forte
demais e torço o rosto em uma careta, entretanto, continuo a beber.
O que busco é o calor que exala.
— Por que estou aqui? — pergunto ao devolver o copo vazio.
O inspetor joga um pacote zip lock em cima da mesa, há uma
pulseira dentro. O objeto faz um barulho mudo ao encontrar o metal
e sou obrigada pela minha curiosidade a me curvar e constatar o
que já imaginava: é idêntica a minha pulseira.
— Reconhece essa pulseira?
Não esboço qualquer reação. É claro que reconheço, é a pulseira
que Alexia me deu quando éramos adolescentes, igual à que está
no meu pulso nesse exato momento, mas esta é presente do Alex.
— A sobrinha de Vicente Carvalho foi encontrada com essa
pulseira. A mãe demorou para perceber que nunca tinha comprado
nada igual para a filha. — Lhe olho, impassível. — Com o nome Eva
escrito. Que coincidência.
— Por que estou aqui? — repito.
Volto minhas mãos para o colo, não quero que perceba que estão
tremendo.
— Essas pulseiras são feitas sob encomenda e a loja promete ser
uma joia inédita, sei disso porque minha filha é obcecada por uma
dessas. — Seus olhos recaem sobre a cópia em meu pulso. — O
único meio de conseguir duas joias iguais é comprando-as ao
mesmo tempo ou o dono pedindo para fazer uma réplica.
Interessante, não é?
Continuo em silêncio.
— Caso você não tenha entendido, isso a coloca diretamente na
cena do crime. Se você é dona da pulseira em seu pulso, também
fez a encomenda da pulseira que estava no pulso da sobrinha de
Vicente. — Prendo o ar, não quero lhe dizer que foi Alex quem me
deu. Carlos tira um cigarro do bolso. — Aceita?
Olho para o cigarro e depois para o investigador. Sei que só quer
ganhar a minha confiança e, apesar da minha necessidade por
nicotina nesse momento, nego.
— Seu ex-namorado se suicidou alguns anos atrás, não é
mesmo, senhorita Eva?
Não movo nem um músculo sequer.
Se há algo que Guilherme me ensinou em nossos anos de
amizade é não responder às perguntas dos investigadores.
— Achei que a senhorita era amiga da polícia, gostava de ajudar.
Não é quase irmã do meu amigo Guilherme Lima?
— Por que estou aqui? — repito mais uma vez e tento soar firme.
Carlos desiste de fumar, guarda o cigarro, se recosta na cadeira e
apoia as mãos na barriga.
— A senhorita está aqui porque preciso que me explique algo. —
Ele mexe no saco zip lock enquanto o olha despretensiosamente. —
A sobrinha de Vicente Carvalho não sabe como conseguiu essa
pulseira, misteriosamente acordou com ela na noite do crime e,
inexplicavelmente, há DNA seu por toda a pulseira. Gostaria que me
explicasse isso, senhorita Borges.
Culpada. Culpada. Você é culpada.
O investigador ergue o olhar para mim e faço o possível para
parecer segura e inocente, mas meu queixo treme. Não sei se de
frio ou medo.
Devem ter me injetado um tranquilizante muscular, pois não
consigo mover um dedo e nem sei se ainda respiro. Meus olhos
estão fixos no policial a minha frente enquanto tudo que consigo
pensar é:
Onde diabos foi parar a pulseira que Alexia me deu?
— É verdade que a senhorita não se lembra de ter matado seu
padrasto, Wellerson Moreira?
Ele já sabe a resposta, mas mesmo que quisesse respondê-lo,
não consigo mover meus lábios.
— Onde estava na noite da morte de Vicente Carvalho?
A adrenalina e o medo percorrem minhas veias, se misturam e
causam o efeito que uma droga causaria. Sinto minha cabeça
latejar.
— E Túlio Valadares, por que se matou? Você esteve envolvida
nessa morte também?
Não sei se Carlos falou ou eu mesma pensei.
— Não...
— A morte da sua mãe também foi sua culpa, não é?
Avanço para cima dele e jogo a pulseira contra seu rosto gritando
para que pare. Seu copo de café intocado caí e o líquido quente
atinge sua perna, ele se afasta imediatamente e ergue a arma para
mim.
A porta é aberta com brutalidade, Guilherme entra na sala
acompanhado de dois policiais e da minha advogada.
— Que merda é essa, Carlos? Ela é a minha irmã! — Guilherme
empurra a arma do investigador.
— Ela avançou pra cima de mim, cacete!
— Você está bem? — Ele toca meu rosto.
Meus ombros relaxam com a sua presença. Assinto.
— Levem ela para a cela. — Carlos faz sinal para os dois policiais
e olho em desespero para minha advogada.
— Você não pode...
— Ela acabou de agredir um policial. Você vai ter que recorrer. —
Os policiais me pegam pelo braço e olho para Guilherme uma última
vez.
— Não se preocupe, vou tirar você daí.
Antes de cruzar a porta e ficar longe de suas vozes, escuto o
investigador dizer:
— Você está fora de todas as investigações, Guilherme. Não ligo
se ela é sua irmã, sua esposa ou sua mãe. Temos provas que Eva
Borges está envolvida nesse caso e, se você não consegue ver o
óbvio, está cego.
「• • •」
A infiltração da minha cela me toma a atenção por uma boa meia
hora, talvez até mais.
A água escorre pelo teto até chegar em um ponto onde a gotícula
não consegue se segurar e cai no chão, numa poça perto do vaso
sanitário.
Estou à procura de baratas ou ratos, mas ainda não vi nenhum,
mesmo assim, a sujeira do local me dá a impressão de que a
qualquer momento um inseto indesejado vai aparecer e me
assustar.
Ao menos não estou algemada.
Tento pensar racionalmente e organizar os acontecimentos. Me
esforço em buscar na minha memória onde foi parar minha pulseira
original, mas toda vez que penso em Alexia e nos seus olhos
escuros, meu coração se aperta.
Minha vida é cheia de relacionamentos fracassados, mas com
Alexia foi interrompido. Nós nunca tivemos uma chance, Wellerson
tirou isso de nós.
Recordar do seu sorriso me faz me perguntar onde está agora. No
que trabalha, se ainda pensa em mim. Se há chances de ter ficado
com minha pulseira ao ir embora, ou se foi arrancada de mim no
meio da confusão.
Tenho quase certeza de que passei noites me acabando em
lágrimas agarrada a essa pulseira, antes da minha mãe descobrir
que fora dada por Alexia e dar descarga nela — era impossível
atear fogo, punição favorita de Julia, então teve que improvisar.
Só pode ser uma jogada do Carlos para me manipular e ter a
solução de modo rápido. Mesmo que seja a minha pulseira, não é
possível que ainda haja DNA nela. A não ser que...
Tão ingênua.
Refaço meus passos na noite em que bebi com Alex, mas minha
mente está confusa e as lembranças se dissipam no meio de outras
memórias. Tenho uma vaga recordação de rir na areia da praia
enquanto fumo com algum desconhecido, mas não confio no que
vejo. É volúvel demais para que eu me atenha.
— Se concentra, droga.
Passo a caminhar pela cela minúscula.
Nas filmagens, parei na frente da antiga casa do Vicente. O muro
era alto demais para pular bêbada, mas, talvez, conseguisse subir
pelas trepadeiras. Com dificuldade, mas conseguiria.
Mas ele não estava lá. Estava na casa do lado.
Minha mãe sempre me falou que minhas mentiras, por mais que
ninguém descobrisse, tinham um preço.
Achei que Deus tinha esquecido de me cobrar, mas no fim das
contas estava apenas atrasado.
Capítulo 18

Wellerson está parado no canto da cela.


Seus lábios estão imóveis, mas consigo escutá-lo como se tivesse
controle sobre a minha mente. A figura estranha não tem sua voz,
mas sim do Túlio.
Um arrepio percorre minha espinha ao reconhecer o timbre do
meu ex-namorado no corpo do meu padrasto.
Ele está acocorado, virado para mim e usa as roupas de um
pastor. As mesmas que Vicente usava no dia em que lhe
reencontrei.
Dou uma risada amargurada perante minha loucura, entretanto,
não consigo parar de olhar o espírito sem forma — que ao mesmo
tempo é muito real — no canto da cela.
Passos apressados ressoam pelo corredor. Me ergo do colchão
fino ao ver Isis marchar até meu carcereiro e sussurrar algo para
ele. O homem vai embora em seguida.
Não quero criar esperanças, mas meus olhos brilham ao vê-la,
esperando pela liberdade. Isis se aproxima das grades e dá um
suspiro pesado enquanto olha ao redor.
— Hoje é sexta-feira, a juíza já está de folga. Guilherme não vai
conseguir te tirar daqui até segunda.
— É brincadeira, não é?
— Infelizmente, não. — Ela se vira para mim, as mãos segurando
no colete. — Eu sinto muito, Eva.
Balanço a cabeça em sinal positivo e olho para Wellerson no
canto da cela. Antes que Isis se vá, falo:
— Eles têm mais provas contra mim? — A vejo hesitar. — Por
favor. Já vou passar o fim de semana presa por um crime que não
cometi. Me dê algo com que eu possa trabalhar.
Espero longos segundos, começo a temer que Isis se vire e vá
embora sem dar ouvidos ao meu pedido desesperado, mas ela me
olha e baixa a guarda.
— Não foi mesmo você?
— Não.
A tensão em seu corpo não se vai, mas vejo o alívio percorrer
seus olhos. As pessoas acreditam no que querem acreditar. Ela se
aproxima do meu rosto colado contra o metal.
— Por que sua pulseira estava na cena do crime, Eva?
— Não faço ideia, mas não fui eu.
Você acha.
Ela percorre meu rosto com seu olhar materno e cuidadoso. Sinto
que teme por mim.
— Não sei de muita coisa, a investigação ficou confidencial. — O
carcereiro aparece no fim do corredor e ela se vira, mudando a
expressão para uma carranca. — Eles não vão conseguir te manter
aqui por muito tempo, não se preocupe.
O policial anda até nós e acena para Isis no meio do percurso, ela
ergue o queixo em um cumprimento discreto.
— Preciso ir, se o detetive vier falar com você não diga nada. Boa
noite, Eva.
Ao me virar, a figura deturpada sumiu, suspiro aliviada e volto
para o colchão fino sentindo meu cóccix reclamar de dor.
Eva foi a primeira mulher e você é meu primeiro amor. De uma
pioneira para outra.
Para ela, eu era apenas seu primeiro amor, mas para mim, Alexia
era esperança. Esperança de que, algum dia, poderia sair daquele
inferno e encontrar o meu paraíso.
Deitada entre meus lençóis, minha melhor amiga me presenteou
com uma pequena caixa envolvida em papel cor de rosa. Alexia me
deu um beijo na bochecha e se apoiou no meu ombro para me ver
desembrulhar a pulseira.
A imagem da pulseira descendo na descarga parece leitosa como
num sonho e começo a me questionar se Julia realmente se livrou
da joia. E se eu tiver conseguido salvá-la? Enfiado na mochila ou
debaixo da cama, antes que minha mãe pegasse?
Não faz sentido.
Não acho que cheguei a esse nível de loucura, mas não posso
descartar a hipótese.
Em um flash doloroso estou no apartamento de Vicente, subindo
pelas trepadeiras até o quarto de visita. A janela foi deixada aberta e
o vento frio entra pela mesma fresta que eu.
Me sinto como um leão à caça e o sangue lateja nas minhas
veias.
Enlaço o pescoço da minha presa e o arrasto para baixo,
impedindo sua respiração. Me deleito com seu desespero em busca
de ar e o vejo perder a consciência.
Não. Jamais seria capaz de fazer algo tão perverso.
Ou seria?
「• • •」
Ergo os olhos com dificuldade enquanto tento me manter atenta
após uma noite em claro em uma cela úmida.
— Dormiu bem, senhorita Borges?
— Maravilhosamente — ironizo.
Carlos esboça um sorriso discreto e leva o café aos lábios. Seu
bigode fica sujo de espuma e passa a língua nos pelos para limpá-
los.
— Por que a pulseira com seu nome? Não é muito óbvio?
Consigo visualizar Guilherme sentado no canto da sala de
interrogatório bebendo um vinho barato e dissertando sobre tudo
que aprendeu na academia de polícia e cursos de investigação
criminal — e os motivos pelo qual não devo falar nada.
— Então me fale sobre Túlio. Ele não te quis mais e você planejou
um suicídio para se vingar?
Ergo meus olhos com ódio, mas Carlos me encara interessado e
nem um pouco atingido, como se apreciasse uma obra de arte.
— O que você escutou?
Permaneço calada, a encarar a parede cinza.
Carlos se espreguiça e coloca os sapatos sobre a mesa.
— Acho interessante que as únicas câmeras que filmaram a
entrada da casa naquela noite foram quebradas coincidentemente
no mesmo dia — diz. — Você sabe que sumir com provas é
obstrução de justiça e dá cadeia, não é?
Ele alisa a barba em seu queixo.
— Guilherme poderia se tornar um ótimo investigador, mas se for
preso não vai conseguir nada.
Tento me manter impassível para mostrar que suas palavras não
me atingem, mas já me sinto culpada. Desde que voltei para Santo
Oiti só trouxe desgraça para a vida do meu melhor amigo.
Por onde passo, a morte me acompanha.
— Temos muitas provas em análise nesse exato momento... —
Carlos abaixa os pés e se curva na mesa. — Quando saírem, você
vai ser presa, mas se você me ajudar agora, posso diminuir sua
pena.
— Você vai tentar usar essa com a irmã de um policial? —
Arqueio uma sobrancelha e me curvo para ficar na sua linha de
visão. — Nós dois sabemos que você não pode fazer nada por mim.
Carlos dá uma risada satisfeita, como se eu fosse uma de suas
alunas e tivesse aprendido exatamente como mandava a regra.
— Já que estamos falando do que você pode fazer por mim. Isso
aqui, com certeza, não é uma das coisas. — Aponto para a mesa
com desdém. — Um interrogatório sem a minha advogada? Eu nem
deveria estar nessa sala, Carlos.
— Ok. Você pode ligar para a sua advogada quando quiser. — Ele
se levanta. — Já terminei.
O encaro com desgosto ao ver os policiais entrarem na sala para
me levar. Carlos me dá um sorriso amigável e me desfaço das mãos
que tentam me carregar. Ando sozinha, à frente dos dois
carcereiros.
— Vocês não podem me impedir de vê-la! Isso é um absurdo! Sou
eu, cara. Estudamos juntos.
Me viro para o corredor. De onde estou, consigo ver Guilherme
discutindo com um policial na recepção, mas ele não me vê,
continua argumentando com o colega enquanto o outro insiste que
se meu amigo continuar com aquilo será preso também, por
desacato a autoridade.
Guilherme vai embora frustrado e sou puxada brutalmente de
volta a minha cela.
「• • •」
A linha entre a sanidade e a loucura parece menos palpável e,
sem as medicações, é questão de tempo até que eu mesma me
consuma.
Uma vez, um coach me disse que nós somos inimigos de nós
mesmos — e é óbvio que não levei a sério. Aquela balela
motivacional de que temos que reestruturar nosso modo de pensar
não funciona para mim, mas talvez o desgraçado estivesse certo —
ou estou tão louca que dei significado para uma frase de coach.
Olhar por horas a finco uma parede de concreto trouxe à minha
mente minha imagem içando Vicente no ventilador de teto e rindo da
situação. Poderia ser real. Parecia real.
Mas também poderia ser inventado. Afinal, vi só o que já sei sobre
sua morte. Os motivos, o percurso, nada disso está claro para mim.
Você não precisa de motivos. Você gosta. Admita.
A voz que antes era minha, agora, parece de outra pessoa e está
coberta de razão. Talvez eu tenha gostado.
O sentimento de culpa e desespero é realístico.
Qual a pena para alguém que comete todos os tipos de homicídio
em um prazo de um mês? Será que existe um bônus de acréscimo
por ter concluído a tabelinha premiada?
Há uma aranha presa no canto da cela, está tecendo sua teia, à
espera de que um animal indefeso caia nela. De repente, a música
da aranha subindo a parede surge na minha mente. Minha mãe
sempre cantava para mim quando criança.
Fecho os olhos e sinto sua mão brincar com meu cabelo fino
enquanto canta a música da aranha. Não era boa cantora, mas o
fato de ser minha mãe a colocava no posto de melhor em tudo que
fazia.
Julia ri, sobe os dedos pelo meu nariz e me faz cócegas quando a
aranha cai da parede. Consigo visualizar o ventilador do nosso
antigo apartamento rodando enquanto ela canta baixinho, mais uma
vez, o caminho da maldita aranha.
Começo a cantarolar a música. Meus ombros tremem e me
engasgo nas palavras, tento me ater ao seu toque firme no meu
cabelo, como se estivesse ali me consolando, mas minha mãe se
dissolve na minha mente e o que toma o seu lugar são todos os
medos e paranoias dos últimos dias.
Meus demônios me acharam e agora vão me consumir.
Encaro a aranha tecendo sua teia e jogo o travesseiro nela.
PARTE 3

17 de janeiro de 2020.
— Obrigada por ter vindo em um dia tão delicado pra senhora,
doutora — diz Jorge enquanto segura o porta-malas do carro para
que eu guarde minhas coisas.
— Não se preocupe. Foi bom me distrair um pouco.
Ele me entrega o envelope com o valor da consulta da Rubi, sua
égua premiada.
Um filhote desse animal vale mais do que ganho em um ano.
Agradeço e dou partida, seguindo viagem para Santo Oiti.
Jorge acena ao me ver sair pela estrada de terra. Foi sorte estar
perto da sua fazenda e andar sempre equipada ou meu tempo de
locomoção poderia resultar na morte do animal.
Ligo o rádio e respiro profundamente, sentindo o cheiro de
fazenda tomar conta do carro recém lavado. De certa forma, esse
odor de feno com comida de cavalo, me acalma.
Mas já estou calma, passei o dia à espera de um ataque de
nervos que não veio. Minha mãe morreu e estou calma.
Parece um dia normal de trabalho, dirigindo para interiores e
cuidando de éguas doentes. De jeito nenhum me sinto prestes a
pisar no purgatório.
Olho para a rua e tento convencer a mim mesma de que é só um
bate e volta. Amanhã cedo estarei em casa, longe de tudo de ruim
que Santo Oiti traz.
Piso no acelerador e começo a batucar os dedos no volante, ao
ritmo da música no rádio.
「• • •」
Trinta minutos depois que cruzo a enorme placa de “Bem-Vindo a
Santo Oiti”, meu celular apita descontroladamente com as
notificações.
Espio pelo canto do olho as mensagens que chegam. Gente que
nem me lembro de ter dado meu número deseja seus pêsames,
lamentando a morte prematura da minha mãe. Eles podem
facilmente ter copiado as mensagens uns dos outros, pois todas
parecem iguais.
“Se você precisar de qualquer coisa estou por aqui”
“Ela está em um lugar melhor”
“Que Deus te conforte. A dor vai passar com o tempo”
Mentira de merda. Ninguém dá a mínima para o que eu preciso,
só querem se sentir melhores consigo mesmos.
Uma ligação sobrepõe as mensagens. Coloco na viva voz do
carro.
— Você já está chegando? — pergunta Guilherme do outro lado
da linha.
— Uma hora, mais ou menos.
— O que você quer comer? Pensei em fazer um pão recheado
com brócolis e espinafre, mas posso fazer almoço se você ainda
não tiver almoçado.
— O pão está bom.
— Ok. Como ficou a égua do seu Jorge?
— Vai sobreviver. Escuta, provavelmente vou perder o sinal de
novo. Depois te ligo. Beijos.
— Dirija com cuidado.
Coloco o celular no modo avião e aumento o volume do rádio.
Julia gostaria que eu lembrasse os convidados de algum
momento em que fora feliz, mas não consigo me lembrar de
nenhum.
Seus últimos anos foram longe de mim e, na minha adolescência,
estávamos sempre em brigas intermináveis por conta do
comportamento do seu marido.
Como eu falaria com aquelas pessoas que lembravam da minha
mãe como alguém sorridente, se todas as memórias que tenho dela
era à beira das lágrimas, implorando para que Wellerson não a
deixasse?
Se eu não fizer um discurso, é capaz da minha mãe ressuscitar
para reclamar. Deve ter algo que eu possa falar, ela não foi sempre
tão triste.
É impossível que seja tudo ruim.
Guilherme está na portaria do prédio quando estaciono. Desço do
carro com um sorriso e corro para seus braços que me envolvem e
me erguem para cima.
— Gui! — reclamo, apesar de ter um sorriso estampado no rosto.
— Estou com saudade.
Fico içada por seus braços e deixo que me aperte com força
enquanto isso sinto minhas barreiras caírem e me deixarem
vulnerável.
— Vamos. — Sou colocada no chão. — Deixa eu levar sua mala.
Há apenas uma mala azul de rodinhas e minha mochila. Deixo o
macacão e os equipamentos de veterinária na minha maleta dentro
do porta-malas e subo com meu amigo para seu apartamento.
Sou surpreendida por uma cama arrumada e uma escrivaninha,
não é muita coisa, mas só o fato de ter sido preparado para mim,
mesmo que para passar uma noite, me deixa comovida. Coloco a
mochila em cima da mesa e sorrio para meu amigo.
— Muito obrigada.
— Vou deixar você tomar banho, o pão já está pronto.
Guilherme sai do quarto e olho em volta.
Mesmo que eu tenha prometido nunca mais pisar nesse município
esquecido pela humanidade, onde apenas o sol faz questão de
marcar presença, o destino deu um jeito de me jogar no meu inferno
pessoal novamente.
「• • •」
Assim que descemos do carro somos parados por membros da
Igreja Coração de Cristo. Os fiéis me abraçam e desejam seus
pêsames de forma demorada e exagerada.
Talvez a errada seja eu, que não vejo conforto algum em pessoas
desconhecidas me dizendo “que Deus te console”. Wellerson
sempre me disse que eu não tinha coração, talvez estivesse certo
no fim das contas.
Caminho de braços dados com Guilherme para a sala onde minha
mãe é velada. Me sinto marchando contra o exército inimigo — que
é muito mais armado e volumoso que o meu. Há pessoas rondando
a minúscula sala o tempo todo, como moscas que vão e vem em
cima da comida podre.
Péssima comparação.
Ergo meu queixo na tentativa de passar confiança através da
postura, pelo jeito que me olham e cochicham sei que não sou bem-
vinda.
— Como vai, Eva? — Sinto o pão recheado revirar no meu
estômago. Há lágrimas de crocodilo caindo de seus olhos. — É
muito triste, minha filha.
Wellerson dá um passo em minha direção na intenção de me
abraçar, mas recuo e ele estagna onde está.
Quero retrucar e dizer que não sou sua filha, que é melhor ser
filha de ninguém ao ser filha dele, mas minha língua parece
paralisada.
— Guilherme. — Meu padrasto ergue a mão na direção do meu
amigo e Guilherme aceita, apesar do olhar de desgosto.
O pastor da igreja está ao lado do caixão com a mão sobre o
rosto do cadáver. Não consigo vê-la de onde estou e tenho medo de
me aproximar. Já faz cinco anos desde a última vez que lhe vi, pois
Wellerson não a permitia visitar a capital e jurei nunca mais voltar à
Santo Oiti.
Será que Julia mudou muito desde a nossa última ligação? E se
mudou, eu a reconheceria se visse na rua? É minha mãe, mas
parece tão distante...
Procuro por Vicente e Lia no salão, já que reconheço seus pais no
canto da sala cochichando um com o outro, mas não os vejo em
lugar algum. Não sei se me sinto aliviada ou desrespeitada.
— Paz do Senhor, Eva. — O pastor me cumprimenta.
O encaro impassível enquanto tento descobrir se está sendo
falso, porém, além da pena em seu olhar — o que me irrita — não
há nada. O único sentimento que o pastor Vinicius transpassa é
pena por quem me tornei.
— Olá, Pastor Vinicius. Como vai? — digo ao repuxar os lábios
em um sorriso educado e falso. Trago Guilherme para mais perto. —
Por favor, me deixe apresentá-los. Esse é meu noivo, Guilherme.
Guilherme, esse é o pastor Vinicius do qual te falei.
Sou alvo do olhar confuso do meu amigo por curtos segundos, por
sorte Guilherme pensa rápido e logo se recompõe e aperta a mão
do pastor.
— É um prazer.
— Não sabia que estava noiva, sua mãe não falou nada. — Seu
olhar muda rapidamente, como se eu merecesse mais respeito por
estar noiva.
— Era para ser uma surpresa — lamento. — Infelizmente ela se
foi muito cedo.
— Entendi. Felicidade aos dois, vou deixá-los a sós. — Sua mão
toca a minha e seguro o impulso de me afastar. — Meus pêsames.
O pastor dá as costas e Guilherme me olha em repreensão, o
ignoro e seguro sua mão me aproximando do caixão.
O cadáver da minha mãe está com uma maquiagem sutil que não
esconde em nada sua pele acinzentada. Nem de longe esse rosto
inchado parece com o da mulher que conheci em vida, esse defunto
está maltratado, sofreu, não foi uma morte fácil com overdose de
calmantes.
Ergo a mão e percebo que não tremo. Estou acostumada aos
tremores em momentos de emoção forte, mas agora estou neutra,
completamente equilibrada. Nem sequer sinto vontade de chorar.
Sua pele está endurecida e os lábios, apesar de pintados, estão
pálidos. Parece uma daquelas bonecas que imitam bebês humanos.
Não é natural, mas também não parece completamente sintética.
Desço meus dedos por seus braços até enroscar sua mão na
minha. Está gelada e as flores que lhe cobrem não são suas
favoritas.
Fico parada, esperando que abra os olhos e venha para cima de
mim, como em um filme de terror, ou então que seus cílios pisquem
por um segundo, mas ela continua estática como uma boneca
mortificada.
É sua culpa.
Dou um passo para trás e solto a mão da minha mãe.
— O que você disse? — pergunto para Guilherme ao que ele
franze o cenho.
— Nada, algum problema?
Balanço a cabeça e olho para o corpo outra vez.
É sua culpa. A voz é aguda, sútil e sibila ao meu redor como uma
cobra.
Olho em volta a procura de onde vem a voz, o restante das
pessoas parece imersa no próprio luto e sofrimento, algumas
chegam a erguer os olhos para mim, mas outras nem isso.
Guilherme toca a minha mão e volto minha atenção a ele.
Como chegamos a esse ponto?
— O culto vai começar — anuncia o pastor.
Seguimos o fluxo de pessoas até a capela local enquanto tento
me convencer de que não estou louca e a voz que escutei é real.
Pode ter sido alguém falando ao telefone ou cochichando, não
necessariamente foi comigo que falaram. É, pode ter sido isso,
penso.
Que piada, um monte de evangélicos fervorosos e extremistas
sendo obrigados a fazer o culto em uma capela católica.
Viro o rosto abruptamente achando que é a mulher ao meu lado
quem fala isso, mas ela está orando de olho e boca fechada. Franzo
o cenho e cutuco Guilherme.
— Você escutou isso? — pergunto.
— O que?
— Alguém disse que é uma piada esse monte de evangélicos
extremistas sendo obrigados a fazer o culto em uma capela católica.
— Guilherme ri. — Você escutou?
— Não, mas você tem razão.
Torço o rosto em curiosidade e travo o maxilar. Não é possível
que apenas eu esteja escutando.
Na capela, uma foto enorme da minha mãe está presa a um tripé
ao lado do pastor. Ela toma minha atenção durante todo o tempo da
pregação.
Julia sorri com todos os dentes, um sorriso meio exagerado e
forçado, uma franja rala cai em sua testa e esconde os cabelos que
raspou em uma crise. Passo tanto tempo encarando que tenho a
impressão de que me encara de volta e eventualmente pisca para
mim.
— Mais alguém? — pergunta o pastor enquanto olha para todos.
Os discursos acabaram sem que eu percebesse, os olhos verdes
da minha mãe me hipnotizaram por todo esse tempo.
Me levanto, o som dos meus saltos ecoa por todo o ambiente e
sinto os olhares sobre mim ao subir no palco.
— Boa noite. — Minha voz estoura no microfone, me afasto com o
susto e tento outra vez. — Passei o dia tentando escolher uma
memória feliz da minha mãe para subir aqui e contar a vocês, mas a
verdade é que não tenho muitas. Não me entendam mal, Julia era
muito feliz e sorridente antes de se casar, mas essas memórias
foram sendo enterradas pelos gritos, desespero e abuso físico e
psicológico que o casamento trouxe. — O burburinho se inicia, como
imaginei. — Acho que o melhor discurso que posso fazer à minha
mãe hoje é falar a verdade: Ela não era feliz. Não podia usar as
roupas que queria, o batom vermelho que tanto amava, perdeu as
amigas, o trabalho e os hobbies. Wellerson tirou isso dela e vocês
deixaram. — Vejo o pastor Vinicius tentar acalmar meu padrasto e
um outro homem vindo em minha direção. — Wellerson não foi o
salvador da Julia, foi o carcereiro. Desafio vocês a olharem para as
mulheres da Igreja Coração de Cristo e se perguntarem: elas são
livres? A resposta provavelmente será não. — O homem sobe ao
palco e Guilherme se apressa em impedi-lo de chegar até mim. — E
se estamos aqui hoje é porque essa igreja de merda não sabe ver
uma mulher livre.
— Mentirosa! — vocifera Wellerson, mas logo recua na tentativa
de manter a postura. — Sua mãe era feliz e se não acredita em
mim, venha até a minha casa. Julia deixou uma carta para você
dizendo os motivos que a fizeram cometer esse pecado, eu não
estou entre eles, mas você está!
Fico parada no altar, Guilherme segura meu braço e olha
fixamente para mim, todos estão boquiabertos e silenciosos.
— Não fui eu quem bati, gritei, humilhei ela — digo. — É
impossível que ela me culpe por algo que é sua culpa.
— Estamos cansados das suas mentiras, Eva. Ninguém aqui
acredita em você — sibila. — Venha e veja com seus próprios olhos
as mentiras que contou a si mesma.
「• • •」
— Você tem certeza de que quer fazer isso? — Guilherme me
pergunta uma última vez.
Estamos parados em frente ao prédio da minha mãe. Daqui,
consigo ver a luz da sala do segundo andar acesa.
— Se ao menos uma vírgula do que ele falou é verdade, eu
preciso saber — digo. — Vai ser rápido. Vou subir, pegar o que quer
que ela tenha deixado e nós vamos embora — repito meu plano em
voz alta na esperança de que me dê coragem.
— Tem certeza de que não quer que eu vá com você?
— É melhor não, qualquer coisa eu grito. — Repuxo os lábios em
um sorriso forçado. — Ele não vai ter coragem de fazer nada.
Guilherme não parece convencido, mas assente e abro a porta do
carro.
— Você pode abrir o porta-malas? Deixei minha bolsa lá.
Caminho até a traseira do carro e pego minha bolsa no bagageiro,
meus olhos recaem sobre a minha maleta médica.
Seria bom ter algo para se prevenir, não?
Engulo em seco.
Não é como se você fosse matá-lo. É só precaução.
Abro a maleta e afasto as gazes e remédios até encontrar o que
quero: uma seringa de aplicação rápida, o calmante já está dentro,
basta aplicar. Jogo dentro da bolsa e fecho a maleta e o porta-
malas.
É uma precaução, mas você sabe que ele merece.
Quem é você?
Você sabe quem eu sou.
Olho para Guilherme uma última vez, sentindo o peso da seringa
na bolsa.
Entro no prédio e subo as escadas até o segundo andar.
Wellerson está com a porta aberta, bato duas vezes na madeira
apenas para avisar que cheguei. Ele aparece, saindo da cozinha.
Sinto minhas mãos tremerem e as seguro, então, ergo o queixo e
dou um passo para dentro da casa que costumava ser a minha.
Minha respiração fica pesada, inspiro e expiro enquanto conto
mentalmente até cem para não parecer nervosa.
— Entre, Eva. Fiz café, aceita? — Wellerson toca meu cotovelo e
me afasta da porta, a fechando em seguida. — Tem muitos
fofoqueiros nesse prédio.
Meu corpo estremece por completo e me afasto em um impulso.
Seu toque é como ativar todos os meus gatilhos ao mesmo tempo,
de repente quero chorar, correr e me esconder como uma criança
assustada.
É isso que somos.
O medo me congela e tira o folego, não tenho certeza se sou
capaz de continuar.
— Não, obrigada. — Minha boca está seca. — Só vim pegar o
que minha mãe deixou.
Wellerson se apoia na mesa e me encara com frustração.
— Os anos aqui foram difíceis depois que você foi embora. —
Solto o ar de forma nervosa ao perceber que vai iniciar um
monólogo e troco o peso de uma perna para outra.
— Eu sei. Onde está? O que ela deixou?
— Sua mãe sofreu muito com a sua ida. Você deveria estar aqui
esse tempo todo, cuidando dela.
— Eu fiz o que pude para cuidar dela.
Ele dá uma risada de escárnio e sinto o ódio encher meu sangue.
— Essa pose de homem de família pode enganar a sua igreja,
mas não me engana. Eu sei toda a maldade que você já cometeu,
com ela e comigo.
— Isso é uma acusação muito séria, Eva — diz. — Você está
sendo injusta. Fui eu quem fiquei com sua mãe durante esse tempo
todo enquanto você a abandonou.
— Eu a abandonei? — Levanto as sobrancelhas. — Você fez da
minha vida um inferno, como que depois de tudo eu poderia ficar e
encarar o meu abusador todos os dias?!
— Era para você ter ficado e sofrido com a gente! Sua mãe não
me deu um minuto de paz todos esses anos!
— Você queria um minuto de paz? — Ergo minha voz, assim
como ele fez com a dele. — Depois de tudo que você fez? Acha que
eu esqueci, por acaso?! Você me exorcizou, me fez achar que eu
era louca durante anos, tirou minha mãe de mim e me humilhou, seu
manipulador de merda! Acha que vai para o céu depois de tudo que
fez? — Cuspo as palavras em sua direção. — Sinto te informar que
não existe Deus no mundo que vá te aceitar no paraíso! Daqui é
direto para o inferno, Wellerson.
Ele me desfere um tapa com tanta força que sou jogada contra o
chão e meu rosto rasga na quina do rack da televisão. Wellerson
sobrepõe meu corpo e me contorço na tentativa de fugir de seus
braços.
— Eu fui bom demais com você, sua garota mimada!
— Me larga! — grito e lhe dou um cruzado de direita no rosto.
Tento correr para a cozinha, mas Wellerson me puxa pelos
cabelos e joga meu corpo contra o chão outra vez, recebo um chute
na costela e fico sem ar, tossindo compulsivamente.
Uso minhas unhas para tentar afastá-lo, ele segura meus pulsos
como se eu fosse um animal a ser contido, levo um soco, minha
visão fica turva. Não consigo mais vê-lo.
— Você vai aprender a respeitar os outros agora, sua puta.
A seringa.
Minha bolsa está jogada no chão a poucos centímetros dos meus
dedos, se abriu durante a briga e, agora, a ponta da seringa está
para fora.
— Parece que uma vez não foi o bastante para você aprender,
machuda. Vou te ensinar como que se trata uma mulher como
você.
Olho para cima no momento em que ele sobe a minha blusa e
rasga o meu seio com as unhas sujas, grito de dor e tento fugir de
suas mãos. Ele solta meu braço para abrir a braguilha da calça e o
empurro, usando o impulso para alcançar a seringa.
No segundo seguinte a agulha está cravada no seu peito e injeto
todo o calmante em uma única dose.
Um grito agudo e alto toma conta do prédio, pode ter sido ele ou
eu. Nunca saberei.
Wellerson cai sobre mim como um boneco, empurro seu peso e
me levanto. Tremo de forma anormal, todo o meu corpo se contorce
a ponto de achar que tenho uma convulsão consciente — nem
sequer sei se isso é possível.
Guilherme aparece, grita meu nome enquanto segura as minhas
mãos machucadas e pergunta porque há sangue na minha roupa. É
meu sangue, meu seio esquerdo está sangrando, mas não consigo
lhe dizer isso.
Lourdes vem logo depois, mais lenta e racional. Fico sentada no
sofá, olhando o defunto à minha frente enquanto os escuto discutir
sobre a situação.
Finalmente. A voz infantil diz dentro da minha cabeça. Agora
podemos viver em paz.
Agora podemos viver em paz, concordo em silêncio.
Guilherme some, depois reaparece carregando minha maleta
médica. Com a ajuda de Lourdes eles espalham o conteúdo pela
sala e simulam uma briga diferente da que aconteceu.
Minha vizinha vem até mim e pega meu rosto, sacudindo-me.
— Se alguém perguntar, diga que você consultou o Gafiel antes
de vir aqui. Por isso estava com a maleta. Entendeu? — Não
consigo responder e Lourdes me dá um tapa forte o suficiente para
que eu acorde, mas não para me machucar. — Diga que entendeu,
Eva!
Balanço a cabeça para cima e para baixo, concordando.
— Você vai ligar para a ambulância e dizer o que aconteceu, mas
não fale com a polícia. — Lourdes coloca o telefone na palma da
minha mão. — Não fale nada quando eles chegarem.
— Eles vão te levar presa e te interrogar, mas se lembre do que
sempre te ensinei: não abra a boca para investigadores. —
Guilherme segura meu rosto e me encara profundamente. — Vai dar
tudo certo, vou ligar para a sua advogada e vamos alegar
insanidade.
Olho para o número discado e aperto o botão de ligar, ouço
alguém falar “alô” do outro lado da linha.
— Alô? — digo debilmente.
— Meu nome é Helena, qual a emergência?
— Não sei, eu... — Minha voz sai fraca e perdida.
De longe, Lourdes me incentiva a falar.
— Senhora, por favor me explique o que aconteceu de modo claro
e objetivo.
— Acabei de matar o meu padrasto.
Capítulo 19

Julho de 2026.
Exalo um cheiro fétido e apodrecido, tenho certeza de que
Guilherme finge não sentir, pois seu olfato sempre foi muito
aguçado. Ele segura minha mão enquanto dirige para nossa casa,
seu toque mais parece o de um espírito do que de alguém de carne
e osso.
Encaro meu celular desligado dentro da sacola zip lock.
Não gosto de como as coisas ficaram com Talita — ela nem
mesmo foi me buscar na delegacia —, mas não tenho forças para
consertar isso agora.
O percurso de dez minutos parece durar dez horas. Encosto
minha testa no vidro e fecho os olhos, preciso urgentemente dormir
e tomar um banho, não me sinto humana desse jeito, apenas um
receptáculo para uma alienígena qualquer.
Quem sabe por isso eu me sinta tão incompreendida e sem rumo.
É uma justificativa plausível para os acontecimentos absurdos que
se desenrolaram nos últimos dias.
Ou você enlouqueceu de vez.
Pelo amor de Deus, me dê um minuto de descanso. Penso
esperando que a voz retruque, mas ela fica em silêncio.
— Precisa de alguma coisa? — pergunta Guilherme ao abrir a
porta do apartamento.
— Não.
Me arrasto pela sala como uma alma penada, jogo as roupas
sujas pelo chão, disposta a queimá-las mais tarde, e entro no
banheiro.
Quero chorar, gritar, bater, mas não tenho forças. Meu corpo e
mente estão exaustos e funcionam no automático, sem sentimento
algum envolvido. Estou apenas sobrevivendo apaticamente, à
espera de um milagre que resolva magicamente meus problemas.
Encharco o travesseiro e os lençóis ao me deitar ainda molhada.
Minha mente implora para que eu desligue e durma um pouco,
porém a exaustão me impede de fechar os olhos e relaxar.
Olho para a parede sem sentir nada, pensar em nada, ou falar
nada. Sou como uma planta.
Provavelmente uma erva daninha que acaba com tudo que há de
bom à sua volta ou, então, o fruto proibido do Jardim do Éden que
manda as criações perfeitas de Deus embora do paraíso.
De qualquer forma, sou a pior coisa que possa imaginar.
Estou quase caindo no sono quando me sobressalto assustada
com o nada e volto a ficar atenta por mais alguns segundos.
Começo a cogitar pedir um calmante para Guilherme, entretanto,
não tenho coragem de me levantar ou erguer a voz, sendo assim,
fico no limbo, pestanejando e brigando com meu cansaço.
「• • •」
Meu sono não é revigorante. Pelo contrário, acordo mais cansada
do que antes.
Peso na balança se devo tentar voltar a dormir ou me levantar e
comer alguma coisa. Meu estômago nem ronca mais, já desistiu,
agora apenas doí como se os outros órgãos estivessem o
esmagando.
A fome acaba que me vence. Me ergo com dificuldade e bocejo.
Chuto as roupas sujas no caminho para o guarda-roupa e me
visto com um pijama surrado. Assim que a peça passa pela minha
cabeça me lembro que preciso falar com Alex e Talita.
O telefone está jogado pela cama, o ligo e enquanto espero iniciar
jogo novamente nos lençóis.
O silêncio do apartamento me deixa incomodada. É o mesmo tipo
de silêncio que tinha minha casa antes de uma grande briga, na
época em que ainda morava com Julia e Wellerson.
Me locomovo na ponta dos pés, engolindo saliva e sentindo os
machucados da minha boca seca. Preciso de água.
Guilherme está sentado no sofá folheando um arquivo, ele ergue
os olhos para mim e paro de andar para encarar sua figura séria.
— Dormiu bem?
Balanço a cabeça em negação e tomo coragem de ir até a
cozinha.
— Fiz lasanha, está no fogão. É só esquentar.
Confiro a travessa e ligo o forno.
— Alex me ligou. — Ele larga os arquivos e vem até mim. — Você
precisa terminar com ele.
— O que? — Minha cabeça lateja ao me virar rápido demais.
Fecho os olhos e me seguro na bancada.
— Ele só trouxe problemas desde que apareceu.
— Não. — Minha voz sai fraca. — Quem trouxe problema fui eu.
O centro disso tudo sou eu. Alex foi uma das poucas pessoas que
me trouxe paz nas últimas semanas.
— Você mal o conhece.
— Conheço o bastante. — Encho um copo de água e viro sobre
meus lábios.
Aquela sensação boa de passar muito tempo desidratada e, de
repente, tomar uma grande quantidade de água, invade minha boca.
— Talita concorda comigo.
Franzo o cenho e solto o ar, indignada.
— E o que ela tem a ver com isso?
— Eu sei sobre vocês, Eva. — Ele se apoia na bancada e arqueio
levemente as sobrancelhas. — Esperei vocês me contarem por
anos, mas você foi embora, ela ficou arrasada, e eu não quis tocar
no assunto.
— De qualquer forma, isso não importa. Nenhum de vocês
conhece o Alex como eu. — Meus olhos se fecham e demoram a
abrir novamente. — Ele é...
— Ele é o que você quer que ele seja. — Guilherme me
interrompe. — Você não percebeu que ele se molda exatamente ao
que você precisa no momento? Ninguém é assim, Eva.
— Eu não tenho forças para discutir isso agora.
Ele assente e saio cambaleando para o quarto.
Meu celular acende e apaga com a chegada de diversas
mensagens. O pego, diminuindo o brilho e lendo as notificações,
Alex me ligou milhões de vezes e a caixa de mensagem conta mais
de cem. O número continua subindo à medida que a internet
acompanha seu desespero.
Só há uma mensagem da Talita. Uma frase curta e direta.
Me desculpa.
Um frio sobe pela minha espinha pressentindo que algo está
errado. Talita nunca foi o tipo de poucas palavras, principalmente
para se desculpar. Sua impessoalidade me deixa alarmada e me
sinto desperta no mesmo segundo.
Será que a magoei ao ponto que não liga mais para mim? Que
não se preocupa em mandar seus longos textos cobertos de
insegurança e paixão, por que não me ama mais?
Meu coração aperta e desbloqueio o celular, digito seu número e
escuto os bips até que cai na caixa postal. Tento novamente e
escuto a mesma coisa.
Chegamos ao ponto de ignorar as ligações uma da outra. Jamais
fizemos isso, nem quando fui embora.
Assim como a Eva original, envenenei quem eu amo.
Caio sobre a cama e coloco o rosto entre as mãos à espera de
que meus olhos se encham de água, mas estou seca. Nem meu
coração bate mais rápido. Meu corpo simplesmente não acompanha
meu sofrimento psíquico.
Guilherme entra e me olha desconfiado.
— Quando você falou com sua irmã pela última vez?
— No dia que você foi presa. — Ele se apoia no batente da porta.
— Ela falou que tinha descoberto algo que podia ajudar você, mas
não me ligou mais. Deve estar atolada com trabalho.
— Você não ligou?
— Não. Você sabe que às vezes a Talita some. — Guilherme me
olha preocupado. — Qual o problema?
— Nada.
— Eva, é a minha irmã. Fala comigo.
Engulo em seco. O cheiro de lasanha se propaga pelo ar. Meu
estômago ronca pela primeira vez em horas ao reconhecer o aroma.
— Nós brigamos semana passada. — Lhe explico de forma
supérflua e me levanto para ir à cozinha. Guilherme vem no meu
encalço. — Ela não me atende.
— Óbvio que não. Você escolheu outra pessoa no lugar dela, uma
segunda vez. Eu também estaria te ignorando se fosse comigo.
— Eu não escolhi outra pessoa no lugar dela. Eu me mudei. Eu
me escolhi.
— E eu não lhe culpo, mas você não imagina o que Talita passou.
— Guilherme coloca um prato na mesa e se senta à minha frente. —
Ela nunca me falou qual era o problema, mas passou muito tempo
em um lugar bem obscuro. Não sorria mais, não se alimentava.
Mamãe começou a achar que ela estava precisando dos remédios
para a depressão outra vez.
Meu peito dói ao imaginar Talita chorando pelos cantos da sua
casa, sozinha, bebendo vinho e pensando no que vivemos.
Provavelmente não foi assim que as coisas se desenrolaram, mas
minha imaginação fértil me leva até a sala do seu apartamento
gótico e imagina todos os detalhes.
— Você pode ligar para ela? Só para ver se ela está bem? —
pergunto.
Guilherme não confirma, saca o celular do bolso e no segundo
seguinte está com ele no ouvido. Seus olhos estão baixos, parece
exausto, não o vejo tão cansado e preocupado há muito tempo.
— Caixa postal.
Olho para a lasanha, meu estômago implora que eu coma, mas
não vou conseguir deglutir.
— Talvez esteja no trabalho — completa. — Os horários dela são
uma loucura.
Balanço a cabeça e caminho até o quarto em passos curtos e
apressados, o máximo que consigo com minha energia atual. Pego
o celular jogado e procuro o número do IML no Google. Volto para a
cozinha com o celular na viva voz.
— Instituto Médico Legal de Santo Oiti, no que posso ajudar?
— Eu sou noiva da Doutora Talita Lima. Não estou conseguindo
falar com ela, você sabe me dizer se ela está trabalhando hoje?
— Nós não podemos conceder informações sobre nossos
funcionários, senhora.
— Por favor, é muito importante. O irmão dela está no hospital,
preciso falar com ela urgentemente.
Escuto a mulher inspirar profundamente. Olho para Guilherme
que me encara de braços cruzados e uma sobrancelha arqueada.
— Um momento, por favor.
A linha é mutada. Em silêncio, peço para o universo para que me
digam o que eu quero, pois começo a pensar no pior.
Não imaginei que meu término com Talita tivesse sido tão ruim
para ela. Foi ruim para mim, principalmente por estar sozinha em
outra cidade, mas se Guilherme estava certo sobre o passado, ela
poderia estar mal novamente. Precisaria de alguém do seu lado.
Além disso, no fundo da minha mente, uma parte que eu desejo
muito ignorar me lembra do que Talita me disse dias atrás: “Acho
que ele vai matar outra vez, só não sabemos quando.”
— Ela está escalada para trabalhar hoje, mas não bateu ponto.
Ergo o olhar até Guilherme, já não pareço tão paranoica e
desesperada aos seus olhos, vejo até que me dá certa razão agora.
— Obrigada. — Desligo e no mesmo momento Alex me liga.
Encaro os botões de atender e recusar a chamada. Ignoro os dois
e deixo o telefone tocar até que caia na caixa postal.
Guilherme usou esse tempo para pegar a chave do carro.
— Vou com você.
— Ela não vai querer ver você, Eva. — Ele me olha exausto,
parece mais velho de repente.
— Não ligo, se ela disser que não me quer lá volto na mesma
hora, só preciso vê-la.
Seus ombros caem cansados e ele assente.
— Você deveria ter a escolhido. Ela ama você muito mais do que
esse Alex ama.
— A vida não é preta e branca, Gui. — Comprimo os lábios. — Às
vezes, nem a gente entende o que está fazendo.
E, às vezes, cometemos o mesmo erro duas vezes.
「• • •」
Guilherme dá um chute lateral logo abaixo da maçaneta da porta.
A fechadura cede e abre uma fresta para nós. Nos últimos
minutos a adrenalina transformou minha apatia em ansiedade.
— Talita?! — Guilherme grita.
— Ela não atendeu a campainha, você acha mesmo que vai
responder? — Minha cabeça está pesada e o sangue zumbe no
meu ouvido. Não sei de onde meu corpo tirou energia para tanto
nervosismo, mas sinto que vou morrer de um ataque cardíaco a
qualquer momento.
Corro até o quarto com Guilherme no meu encalço, escancaro a
porta e olho para dentro. Talita não está lá e a cama está organizada
como se ninguém dormisse nela há dias.
Guilherme tira o celular do bolso com as mãos trêmulas e tenta
ligar para Talita novamente, ele sai do quarto e vai à procura da irmã
nos outros cômodos, mesmo que as possibilidades sejam mínimas.
Inspiro o cheiro específico que só Talita tem, o quarto está
impregnado com ele, não é perfume ou amaciante. Não consigo
comparar com nada que já senti na vida, porque a muito tempo
atrás meu cérebro categorizou essa fragrância como o cheiro dela.
Passo os dedos pelo lençol da cama e tento entender o que
acontece diante dos meus olhos. Há tantas possibilidades e
nenhuma parece fazer sentido.
Para onde Talita iria se pudesse fugir?
Deve ter me falado algum dia, quando estávamos deitadas na
cama e tínhamos conversas pós-sexo, mas não consigo lembrar de
jeito nenhum.
Provavelmente é algum lugar sinistro e obscuro, como aquele
bosque japonês que as pessoas vão se suicidar, ela é obcecada
pela história daquele lugar.
A luz do banheiro está acesa e vaza por debaixo da porta. Meu
coração, que já se acalmava, volta a acelerar.
— Talita? — sussurro na direção da porta e paro minha mão
sobre a maçaneta.
Não sei se tenho coragem de abrir. A possibilidade de algo terrível
ter acontecido me deixa petrificada.
A imagem de Túlio em sua banheira, com os pulsos cortados, tira
meu equilíbrio. Apoio a testa na porta e fecho os olhos, sei que
preciso empurrá-la e acabar logo com essa sensação.
— Vou entrar — aviso para ninguém.
Giro a maçaneta, abro os olhos e dou um passo para dentro.
Esperava encontrá-la no chão, desmaiada, mas o banheiro está
vazio. Talita deve ter esquecido a luz ligada.
Meu corpo continua tensionado. Há algo errado, sinto nos meus
ossos. Me forço a respirar ao perceber que já prendi o ar por tempo
demais.
Observo os móveis e a cortina fechada da banheira, me
impedindo de ver o chuveiro. Dou passos vacilantes até a cortina de
patos pretos, não sei onde conseguiu essa coisa horrorosa, mas
combina tanto com seu estilo que quero chorar.
Meus dedos param sobre o tecido enquanto o coração bate forte
contra o peito. Puxo de uma vez, como faria com um band-aid e
encaro a banheira vazia. Solto o ar, aliviada.
— Puta merda. — Rio da minha paranoia e saio do cômodo,
desligando a luz. — Guilherme?
Espio a sala e continuo pelo corredor. A casa está em completo
silêncio, mas começo a notar um cheiro estranho que não havia
reparado antes. É forte e não parece ter uma fonte específica — é
como se estivesse se propagando pelo ar junto com o ar-
condicionado.
Porque ela deixou o ar-condicionado ligado?
— Guilherme?
Encaro seus pés, jogados para fora do quarto de visitas e corro ao
seu encontro. Imediatamente levo meus dedos ao seu pescoço para
conferir a pulsação, mas não consigo me concentrar.
Não sei se o coração que pulsa é o dele ou o meu. O sangue
zumbe tão alto e forte que me deixa tonta e enjoada.
Minha cabeça gira, provavelmente pela falta de comida, e sou
obrigada a olhar ao redor. Tento pressionar minha têmpora e me
manter alerta, mas algo parece puxar minha mente cada vez mais
para o fundo.
Há uma poça de sangue ao lado da cama. Meu olhar vertiginoso
acompanha a gota que escorre do dedo indicador, vinda de um
pulso cortado verticalmente.
Quanto mais subo meu olhar e reconheço os cabelos pretos
esparramados pelo travesseiro, mais minha mente parece desligar e
meu coração parar.
Me ergo cambaleante e me sento na ponta da cama. Ela parece
em paz. As pálpebras estão fechadas como se estivesse dormindo,
mas a coloração pálida do seu rosto me mostra que não. A vida já
deixou seu corpo a muitas horas.
Toco o rosto de Talita com a ponta dos dedos trêmulos e perco a
consciência, caindo sobre seu corpo mortificado.
Capítulo 20

O trauma muda a forma de trabalho da mente humana. Diria até


que nos torna mais sagaz.
É por isso que pessoas traumatizadas reconhecem umas às
outras e procuram se relacionar entre elas. O trauma nos traz
profundidade. Nessas horas, empatia não serve de nada, é preciso
ter estado no fundo do poço para entender como é.
Estamos à beira das conversas normais, espreitando o mundo
real enquanto vivemos no nosso próprio: com demônios a cada
esquina e, na maior parte das vezes, dentro de nós.
Nos acostumamos a ler nas entrelinhas, fantasiar com o que não
existe e imaginar o pior cenário de algo simples. Dependendo do
ponto de vista, isso pode ser bom.
Somos as pessoas mais difíceis de enganar e derrubar. Afinal, na
maior parte do tempo, estamos mais atentos e paranoicos do que
qualquer outra pessoa normal estaria.
A loucura nos faz categorizar o som das batidas, dos passos e até
mesmo da respiração das pessoas. Nos faz desconfiar até do
narrador mais confiável.
Pisco algumas vezes antes de abrir os olhos por completo e
encarar o teto de madeira.
A luz que entra pela fresta da janela faz meus olhos se fecharem
e torço o nariz para o cheiro de mofo que inalo. Curiosa, coloco
minha mão na frente do rosto e forço meus orbes a se acostumarem
com a luz. Pequenas lágrimas se acumulam no canto dos meus
olhos e passo as mãos com brutalidade sobre eles para enxergar
melhor.
Estou em um quarto antigo, a tinta nas paredes está descascando
e a cama onde estou é tão dura que sinto as madeiras por debaixo
do colchão. Entre o guarda-roupa velho e a parede há uma enorme
teia, mas nem sinal da aranha.
— Eva. — Alex me chama.
Me sinto menos assustada ao perceber que não estou só, mas
não menos alarmada. Já faz dias que algo sussurra no meu ouvido
para não confiar nele.
— Onde estamos?
Continuo sem enxergar muito bem, então forço meus olhos com
mais empenho.
— Em uma das fazendas da minha família, você não se lembra?
— Ele se senta na ponta da cama.
— Me lembro do que?
— Você concordou em vir comigo. — Alex espera um sinal de que
estou lembrando, mas não consigo entender o que diz. — Depois da
delegacia, você teve uma crise... Guilherme a queria levar para a
clínica e eu o convenci que você só precisava de um tempo longe
da cidade. Então, perguntei se você queria vir para cá comigo e
você disse que sim.
— Guilherme? — Sinto vontade de vomitar ao me lembrar do seu
corpo desacordado no chão da casa da Talita.
Talita. Meu Deus.
— Que tipo de crise, Alex? Do que você está falando? — Minhas
mãos estão trêmulas, percebo que os cantos das unhas já estão em
carne viva. — Eu estava na casa da Talita, ela... — A respiração
pesa. — Ela...
— Ela o que, Eva?
— Está morta. — Não consigo deglutir, há um nó na minha
garganta. — Cortou os pulsos.
Alex se remexe desconfortável e desvia o olhar do meu.
— Isso é impossível.
— Eu vi — insisto.
— Você não pode ter visto nada, Eva. — Ele se vira para mim. —
Você veio da delegacia direto para cá, nunca foi na casa da Talita.
— O que?
— Antes de virmos você ligou para ela pelo meu celular, porque o
seu estava com algum problema. Não sei o que falaram, você só me
disse que ela não iria se despedir e que podíamos ir embora. — Ele
tira o celular do bolso e estende para mim. — Não tem sinal para
ligar para ela, mas pode ver no registro de chamadas.
Encaro o número do telefone da Talita na tela. Alex está certo, há
uma ligação com duração de três minutos no registro.
— Foi uma crise, então?
— Está tudo bem, meu amor. — Acaricia meu cabelo. — Você
está segura agora. Não precisa se preocupar com essas coisas.
— Não faz sentido... Eu...
Minha cabeça dói e no lugar de alívio fico desnorteada. Deveria
estar feliz que o que tive foi um surto, mas não acredito que minha
ficha vá cair até ver Talita à minha frente, sã e salva.
— Podemos ir até a cidade? Quero vê-la.
Alex me olha fixamente, em seguida, percorre todo o meu rosto.
Parece um tanto julgador, com as sobrancelhas juntas e a face
torcida, como se eu fosse uma incógnita. Me sinto louca, não posso
evitar, minha cabeça virou uma bola de informação sem nexo e
preciso organizá-la.
— Claro, o carro deu problema e devo precisar de um dia para
ajeitar, mas podemos ir depois de amanhã. — Ele sorri e se
aproxima para me dar um selinho. — O que você precisar, meu
amor.
— Obrigada.
Volto a me deitar, Alex se aproxima e me faz um cafuné. Forço um
pequeno sorriso e fecho os olhos.
Só quero que me deixe só para que eu possa tentar organizar
meus pensamentos, mas ele não o faz. Pelo contrário, sinto seus
olhos sobre mim durante todo o tempo que fico com eles fechados.
Não consigo ter memória alguma sobre o que me foi falado e as
lembranças que tenho da morte de Talita são enevoadas e
confusas. No meu último surto, do qual me esqueci completamente
dos fatos, matei Wellerson. E se...?
Você sabe que você seria capaz. Seria apenas mais um nome na
lista.
Talvez o próximo seja o Alex.
Sinto vontade de gritar ao escutar os sussurros irritantes me
rondando. Achei que enfim tinha tido um pouco de paz, mas ela
apenas não havia achado um momento oportuno para me atazanar.
Não posso confiar em mim — e não tenho certeza se posso
confiar em Alex.
「• • •」
O cadáver está mal iluminado pela minha lanterna velha, mas
consigo distinguir uma de suas patas jogada a alguns metros.
Uma raposa entrou no terreno de madrugada e matou uma das
galinhas. As restantes conseguiram fugir, e tivemos que sair da
cama para procurá-las.
Alex não quis minha ajuda a princípio, mas insisti tanto que o
venci pelo cansaço. Foi bom sair de casa e compreender os
arredores e, ao mesmo tempo, não tão bom, porque percebi que
não posso me entregar para a polícia de jeito nenhum. Não há
vizinhos ou sinal de telefone por perto.
Só há uma justificativa para Guilherme ter concordado em me
isolar nessa fazenda: estou em perigo. Se em um surto eu tiver
matado Talita, não serei inocentada uma segunda vez.
Dariam um jeito de me culpar pela morte de Vicente também e
não duvido que pudessem colocar Túlio no meu histórico.
É melhor fugir para o meio do mato, que viver atrás das grades.
Entretanto, duas coisas fogem do meu raciocínio desesperado: Eu
seria capaz de a matar? E Guilherme seria capaz de me perdoar e
ainda por cima me esconder?
É claro, partindo do pressuposto de que Alex está falando a
verdade, porque se ele não estiver e o que penso for real...
Piso no sangue que escorre da galinha e torço o nariz, seus olhos
esbugalhados me encaram com o bico aberto em desespero.
Durante as últimas horas investigando ignorei a possibilidade de
ter uma terceira pessoa em cena. Alguém além de mim que
pudesse ser culpado de tudo aquilo.
Uma raposa.
Forcei minha mente a encaixar os fatos na história deturpada de
Alex porque ele parece ter mais lucidez que eu — nunca o vi ter
uma crise ou se esquecer das coisas, ao menos.
Só ao olhar para essa galinha deformada entendo que estou
procurando no lugar errado.
Limpo minhas botas na grama e apresso o passo para
acompanhar Alex.
Com pouco tempo de caminhada meu peito chia, pedindo por um
descanso. À medida que amanhece, o tempo esquenta, o suor
escorre pela minha testa e desce pelo canto do rosto, a gota pinga
no chão ao chegar no queixo.
Alex, entretanto, parece inabalável, sem camisa e com o suor
escorrendo pelo corpo parece ter sido criado exatamente para o
trabalho braçal que exerce. Paro meus olhos sobre seu abdômen
trincado e subo pelos braços tonificados que afastam a plantação e,
às vezes, arrancam plantas inteiras em uma única puxada.
Nunca tinha parado para reparar o quão forte e musculoso é. Ele
faz academia? Toma algum suplemento? Nós conhecemos a um
tempo razoável e nunca me questionei sobre quase nada da sua
vida.
Sinto uma conexão anormal com ele e por isso não tomei tanto
cuidado. Talvez Guilherme estivesse certo ao me acusar de estar
cega de paixão, Alex é o tipo de pessoa que te envolve e tira o seu
ar em segundos, sempre fez tudo tão perfeitamente que foi cômodo
estar ao seu lado.
Era como se me conhecesse há anos.
Avisto uma das galinhas ciscando perto de um arbusto.
A ave ergue a cabeça, olha para os lados e volta a ciscar. Me
agacho por trás de seu corpo e caminho sorrateiramente até estar
próxima o bastante, e então avanço nas suas asas, as cobrindo com
minha mão.
A galinha se sacode e tenta fugir, mas a aperto com mais força e
corro até Alex, que me olha com orgulho.
— Olha só! Já podemos te treinar para ser uma fazendeira de
verdade.
Solto uma risada fraca.
— Foi até fácil, ela estava de costas, nem previu.
— É assim mesmo que se faz meu amor. — Alex estala um beijo
na minha testa. — Seja o inesperado.
O inesperado.
Paro um momento, ainda com a galinha na mão, e analiso seu
corpo imóvel. Se eu tivesse ido por outro ângulo, ela teria fugido de
mim.
Qual é o outro ângulo da minha história?
Quem, ou o que, é o meu inesperado?
— Está tudo bem? — pergunta ao tomar o animal das minhas
mãos.
— Sim, só um pouco ansiosa. — Forço um sorriso e escondo as
mãos.
Caminhamos juntos até o galinheiro e devolvemos a primeira das
galinhas fujonas. Alex limpa as mãos na calça e se aproxima de
mim, passando seus braços pela minha cintura.
— Trouxe seu medicamento se quiser, está na mochila. — Ergo
meu olhar e encontro seus olhos escuros. — Estou aqui para o que
precisar.
Me afasto para lhe observar.
— Obrigada — digo.
— Não precisa agradecer, Eva. — Ele acaricia meu cabelo. — Eu
faço por amor. — Seus olhos descem pelo meu rosto enquanto
analisam minha reação. Fico completamente impassível perante
suas palavras: — Eu amo você.
Capítulo 21

A vida é uma prisão. Não é à toa que, após a morte, temos o


Juízo Final. Já estamos presos, a morte é apenas a revisão do
nosso caso.
Nos prendemos em relacionamentos tóxicos, trabalhos que não
nos fazem felizes, uma cidade, uma casa — e até dentro de nós
mesmos. Somos presos pelos padrões que nos impõem e pelas
exigências que fazemos.
Somos nossos próprios carcereiros e, ocasionalmente, deixamos
que outras pessoas o sejam.
É um paradoxo um tanto engraçado. Enquanto somos nossos
próprios inimigos, também somos salvação.
Nós temos a chave das grades, podemos abrir a qualquer
momento, mas não o fazemos.
Entretanto, apesar de nos colocarmos em situações
aprisionadoras, não queremos que outras pessoas nos coloquem
nelas sem nosso consentimento. A perda do controle, ser submetido
drasticamente a uma realidade que você não optou, enlouquece.
Quando alguém nos priva da nossa liberdade, o instinto é lutar.
Ergo meu celular para o céu e fico na ponta dos pés para tentar
conseguir sinal, mas não obtenho nada.
Já faz três dias que estou na fazenda do Alex. O carro deu outro
problema, sendo assim, terei que ficar no mínimo mais um ou dois
dias.
Em outras circunstâncias, poderia ser relaxante estar no meio da
natureza, correndo atrás de galinhas e ordenhando vacas, mas não
é. Minha mente virou um emaranhado de informações e falsas
lembranças, parece um fone de ouvido velho que quanto mais tento
desembaraçar, mais emaranhado fica. Não sei o que ocorre dentro
de mim e nem muito menos fora, não consigo entender sequer por
que estou aqui.
Sinto que fui substituída e esqueceram de fazer o download das
memórias.
Me sento na grama, guardo o celular no bolso e bufo, indignada.
Guilherme me ensinava a procurar pela motivação nos filmes e
livros policiais que líamos juntos. Nenhum assassino em série age
aleatoriamente, existe sempre uma marca, algo que liga todas as
vítimas além da forma como morreram.
Se não fui eu a matar todas aquelas pessoas, teria que ser
alguém que tivesse motivos e oportunidade. Talita estimou que
fosse um homem de 1,80 a 1,90 de altura, na casa dos 30 e
intimamente ligado a mim.
Não sei como pensei que poderia ter sido capaz de tê-la matado,
agora me parece uma piada. Cometi o erro de ir atrás do Alex, mas
o que sinto pela irmã do Guilherme é muito maior.
Se é que ela está morta.
Quero acreditar que Alex diz a verdade, que Talita está viva e é
tudo parte de uma grande paranoia, mas a imagem dos seus pulsos
cortados está impregnada na minha mente há dias. Não consigo
dormir sem ver seu sangue pingando no carpete e não posso fechar
os olhos sem que seu sorriso apareça para mim.
E quanto mais Alex me exclui da humanidade, mais sinto que tem
algo a esconder. A bolha que criou para nós dois não me convence.
Se existe uma hora para me perdoar pelo que fiz ao Wellerson e
analisar os últimos meses por outro ângulo, é essa.
Meu telefone apita, uma mensagem diz que o chip não está
funcionando e me faz franzir o cenho. Procuro a entrada do cartão e
tiro um grampo do cabelo para tentar abri-la.
Tudo cai sobre a grama e xingo enquanto cato o chip e a
bandejinha que o coloca dentro do celular, consigo encontrá-lo e
puxo com a ponta das unhas. Está completamente riscado, nem
sequer consigo identificar a operadora. É por isso que não consigo
sinal, o telefone não deve reconhecer o cartão nesse estado.
— Puta merda. — Olho para o céu, pedindo a Deus que minhas
suposições não estejam certas.
Alex vem na minha direção limpando o rosto com as costas das
mãos, está sujo de fuligem e suado.
— Tudo bem? — grita de longe e corre ao meu encontro.
Escondo o celular e sorrio, meus instintos me dizem para correr,
mas fico.
— O que estava fazendo? — Alex sorri.
— Olhando o céu.
— Nesse sol?
— É bonito. Diferente. — Forço um sorriso. — Conseguiu ajeitar o
carro?
— Falta uma peça, vou ver se consigo pegar o cavalo e pedir na
vizinhança.
— Cavalo? — Arqueio as sobrancelhas. — Você não me disse
que tinha um.
— Ele já está velho, é para emergências.
O olhar profundo de Alex sempre me deixou sem graça, parecia
prestar tanta atenção nos meus detalhes que eu tinha medo de que
olhasse por tempo demais e percebesse o quanto sou defeituosa.
Agora, seus olhos fogem de mim.
Sou eu quem estou sempre o analisando.
— Entendi.
— Vamos almoçar e eu vou. — Ele me estende a mão.
Olho para seus dedos sujos e para seus olhos desconfiados,
sorrio e me apoio nele para me levantar.
Preciso fingir ser a namorada perfeita que deseja, ou as coisas
podem piorar muito.
「• • •」
Alex olha para trás. Abro um sorriso e aceno em despedida. Ele
segue viagem e espero que sua figura suma no horizonte antes de
voltar para a casa.
Passo pela cozinha extensa e sigo para a sala de estar. A
residência é pequena e malcuidada, os móveis de madeiras foram
corroídos pelos cupins ou inchados pela água da chuva, os de ferro
estão cobertos de ferrugem e, os que sobreviveram, acumulam uma
longa camada de poeira.
Não há fotografias ou objetos pessoais à vista, nem mesmo uma
televisão. A sala consiste em um sofá e poltronas antigas, com o
estofamento saindo do tecido cortado, e uma mesinha de madeira
no centro.
Encaro a mochila do Alex deixada ao pé da cama e não hesito
antes de abri-la e procurar seu celular ou qualquer eletrônico que
possa me dar contato com o mundo exterior. Minha esperança se
esvai à medida que tiro suas trouxas de roupa e não encontro nada.
Fora seus pertences inúteis, só há uma cama velha de casal e um
guarda-roupa que cheira a mofo.
Caminho apressada até o quarto ao lado e forço a fechadura, já
tentei e falhei antes, mas uma parte de mim esperava que dessa
vez fosse ceder e me conceder algumas respostas.
Tamborilo os dedos uns nos outros enquanto tento pensar onde
Alex poderia ter colocado a chave. Volto até o quarto e procuro nos
bolsos da sua mochila, depois debaixo do colchão e por último
dentro do guarda-roupa coberto de teias de aranha.
Não há nada.
Frustrada e um pouco desesperada marcho pela casa, olhando os
móveis e imaginando onde eu esconderia uma chave, se fosse ele.
Supero meu medo de haver algum inseto por entre as almofadas
do sofá e enfio minha mão lá. Sem sucesso. Sigo a procura na
cozinha e me certifico de passar os olhos pelas panelas de madeira
e armários minuciosamente.
Abro cada gaveta até chegar na de temperos, que é a única com
algum conteúdo — apesar de a validade mostrar que ninguém se
alimenta ali a muito tempo —, coloco a mão dentro dos potes que
consigo abrir e os tampo em seguida. No fundo do armário, em um
grande pote, está a farinha misturada a baratinhas minúsculas, a
puxo para perto e enfio o pulso dentro, tateando e remexendo com
minhas últimas esperanças.
Meus dedos tocam algo, puxo para fora e encaro a chave.
Não tenho tempo de processar o que isso significa nem a sorte
absurda que tive, Alex não vai demorar muito. Corro para a porta e
enfio a chave ao que a maçaneta cede. Solto um suspiro aliviado
que logo é sobreposto por minha respiração ansiosa.
A porta se abre em um chiado longo e agudo. Meu coração bate
com força contra o peito, dou o primeiro passo para dentro do
quarto. Uma fresta de luz ilumina o ambiente, dá para ver a poeira
brilhando e se espalhando, coço o nariz e prendo a respiração para
não espirrar.
Agacho para olhar debaixo de uma das camas, mais uma aranha,
desta vez gigante, firma residência no local, me afasto com nojo e
sigo até o guarda-roupa.
O baque alto da porta caindo me assusta, dou um pulo para trás e
observo o móvel quebrado. Minhas mãos tremem ao puxar a
madeira e tentar encaixá-la de volta, é difícil me concentrar com a
respiração entrecortada, o trinco não quer voltar ao lugar. Consigo
me imaginar sendo pega nesse exato momento.
Ponho as mãos no joelho e começo a contar até dez.
Você precisa estar sã. Faça isso direito.
Desse lado do guarda-roupa há cabides vazios e uma galinha de
pelúcia, a reconheço de algum lugar, mas não sei de onde. Afasto o
pensamento e ergo a porta, encaixando-a no lugar e cobrindo a
visão de dentro do móvel.
O outro lado ainda está escancarado, com a porta presa a
estrutura de madeira exatamente como devia. Tateio por entre os
vestidos velhos e fico na ponta dos pés na tentativa de encontrar
algo na parte mais alta.
Sinto algo subir pela minha mão, as perninhas se movendo
rapidamente. Puxo meu braço de uma vez e atinjo a madeira com o
cotovelo. Uma barata cascuda voa da parte de cima do guarda-
roupa.
Engulo meu grito e seguro meu braço como se tivesse sido
mordida.
Contorço o rosto em completo desprezo enquanto olho para o
inseto parado na parede.
Se você contar para alguém, as baratas vão te devorar. A voz do
Wellerson sussurra no meu ouvido.
Não, por favor, não...
Encaro o inseto cascudo, com as asas tão escuras que me fazem
querer vomitar apenas de olhá-lo.
— Você não vai vencer dessa vez. — Me aproximo outra vez do
guarda-roupa e coloco minha mão tremula na parte de cima. Tenho
a impressão de que toquei algo além da barata.
Não tiro os olhos do inseto nem por um segundo, ela chega a
caminhar um pouco para o lado, mas não faz mais que isso.
As pontas dos meus dedos alcançam o que pode ser uma caixa.
Me estico mais, sentindo minha coluna estalar com o alongamento
despreparado. Não é o bastante para que eu consiga puxar a caixa
para perto de mim.
Encho o pulmão de ar e dou o pulo mais alto que posso, me
jogando contra o guarda-roupa, a caixa para na beira do móvel e
consigo alcançá-la. Saio do quarto às pressas e me sento na mesa
da cozinha, onde consigo ver se o portão se abrir.
Ao abrir a caixa, me engasgo com meu grito. Há um rato morto
por cima dos papéis.
Ao menos não é uma barata.
O cheiro fétido impregna nas minhas narinas. Torço o rosto e puxo
o rabo do bicho com a ponta dos dedos, em seguida o sacudo para
longe da caixa e olho os papéis com desgosto.
Vejo uma série de contas pagas. Repito o endereço que está no
canto do boleto em voz alta, para memorizá-lo. Se for o da fazenda
e eu tiver oportunidade de dá-lo a alguém, não quero me esquecer.
Os documentos estão em nome de Francisca Pereira Figueiredo.
Mais uma vez a sensação de reconhecimento me invade.
Eu sei quem são… Você sabe quem são...
Continuo a vasculhar a caixa até perceber que tudo data 2011,
quinze anos atrás.
Bufo frustrada e olho para o rato morto, tenho que colocá-lo de
volta na caixa antes de devolvê-la.
Volto para o quarto e olho uma última vez o guarda-roupa. Não é
possível que Alex não guarde nenhuma lembrança de infância.
Puxo a primeira gaveta e tateio o fundo na expectativa de achar
uma madeira solta. Repito o mesmo procedimento por todas as
gavetas e quase perco a esperança de que haja algo. Na última,
alcanço um pedaço de pano e o puxo, revelando uma pistola entre
as minhas mãos.
Está carregada, pelo peso consigo dizer. Junto dela há um
cartucho.
Solto o ar de modo entrecortado e nervoso. Escuto o rangido do
portão se abrindo e devolvo a arma para seu local de origem.
Corro para fora do quarto. Alex grita meu nome enquanto tento
fechar a porta com minhas mãos trêmulas. Sinto meu coração
prestes a explodir e deixo a chave cair no chão.
— Eva? — Ele coloca a cabeça para dentro da casa e escondo a
chave às minhas costas. — Quer me ajudar?
— Sim — digo. — Já vou, vou só lavar as mãos.
— Ok, te espero no celeiro.
Caminho naturalmente até a cozinha e me abaixo até alcançar o
pote de farinha, jogo a chave dentro e a cubro.
Sinto falta dela. É sua culpa, sabia?
Em um lapso de memória, me recordo de onde reconheço a
galinha de pelúcia que vi no guarda-roupa.
Dezessete anos atrás, dei aquela pelúcia de presente para Alexia.
Me ergo lentamente e encaro Alex através da janela da cozinha,
ele cruza o terreno e parece despreocupado, mas no segundo
seguinte, como se soubesse que o olho, se vira para mim e sorri.
Seu sorriso me dá as respostas que faltavam.
Capítulo 22

Me sinto estúpida ao olhar para Alex.


Seus olhos escuros tentam decifrar minha face impassível, abro
um pequeno sorriso e levo a sopa aos lábios. Não quero que
desconfie de mim.
Não sei o que dizer, nem o que achar. Posso estar louca — ou
posso ser a mais sã entre nós dois.
— Conseguiu a peça do carro? — pergunto.
— Não, estava em falta.
Conveniente.
Dou de ombros enquanto escorrego minha mão pela mesa até
encontrar a sua. Sinto um frio se alastrar pelo meu estômago e o
ignoro.
— Ao menos estamos longe do caos.
Alex solta os talheres e segura minha mão, beijando-a.
— Sim, meu bem. É melhor assim.
Sorrio ao puxar minha mão de volta.
O observo discretamente: o maxilar marcado, a barba rala, sua
feição distinta e suave, exatamente o tipo que me atrai. Posso até
arriscar dizer que se parece um pouco com Túlio, isto é, se ele
tivesse chegado à idade do Alex.
Os músculos do seu braço estão contraídos pelo trabalho árduo
na fazenda. Desconfio que haja um caseiro, ao contrário, as vacas e
galinhas estariam mortas, entretanto, Alex deve ter o dispensado.
Para me dar privacidade, talvez?
Ou para me manter presa.
Com sua altura e porte, Alex poderia ter erguido um corpo de
oitenta e sete quilos em um ventilador.
— No que está pensando?
— Preciso de absorventes — minto.
— Posso comprar amanhã.
Balanço a mão na frente do rosto, indicando que não é
necessário.
— Eu gosto de um específico e realmente preciso dar uma volta.
Por que não vou com você?
— É longe, vou pegar a moto do vizinho emprestada, não sei se...
— Por favor. — Seguro sua mão. — Só quero conhecer o lugar
onde você cresceu, não me deixe sozinha aqui... De manhã
apareceu uma barata. Não sei se posso suportar ver outra.
Alex ri, me puxa para perto e me dá um selinho.
— Tudo bem, sairemos cedo então.
Sorrio, e começo a arquitetar um plano em silêncio.
「• • •」
Alex dorme profundamente ao meu lado.
Tenho medo de que as batidas do meu coração lhe acordem, mas
ele não desperta nem quando me movo de um lado para o outro
inquieta, imagine com o som do meu coração. Sua respiração
mostra que está nas camadas mais profundas do sono,
completamente apagado.
É um ótimo momento para asfixiá-lo.
Olho para o meu travesseiro e solto uma risada nasal.
Não, estou tentando provar que não sou uma assassina.
Deslizo os olhos até a lanterna deixada de lado em uma cadeira e
depois volto para o homem ao meu lado. Seus cílios longos e
curvados se mexem, parece estar sonhando com algo.
Me esgueiro para fora da cama, pego meu casaco pendurado na
cadeira e enfio a lanterna no bolso. Saio na ponta dos pés, minhas
pernas tremem de frio ao atravessar a porta do quarto e sair da
casa.
Minha lanterna fraqueja e a luz apaga por um curto instante,
sacudo-a diversas vezes e bato contra a palma da minha mão. Ela
volta a iluminar o breu à minha frente.
Escuto as corujas nas árvores e o latido de um cachorro, ou lobo,
a distância. Os barulhos fazem com que eu me encolha no casaco e
reze para continuar viva.
Há um casebre nos fundos do terreno, Alex nunca se atreve a
chegar perto e a quantidade de árvore ao redor me dá a sensação
de que há algo proibido lá. De manhã, parece um percurso
relativamente curto a se fazer, mas nas trevas da noite de uma
fazenda afastada da humanidade, sinto que é uma maratona.
As galinhas estão trancadas e os animais descansam em suas
baias. Nessa parte da cidade o céu é menos poluído e, por isso, as
estrelas e lua iluminam o campo com sua luz prateada. É uma vista
bonita: a extensão verde banhada na escuridão e refletindo os
brilhos do céu — pena que não tenho tempo de me ludibriar nela.
Ergo a lanterna para a porta trancada, um cadeado grosso pende
do trinco. É impossível arrombar e não vou achar a chave no pote
de farinha desta vez. O casebre de madeira parece ter muito mais
informações do que aquele quarto abandonado. Alex não seria bobo
de esconder a chave tão facilmente.
Dou a volta na cabana enquanto tento achar um meio de entrar,
há uma pequena janela na parte de trás, mas está fechada. Se eu
arrombar, irei causar desconfiança, mas se não o fizer, não
descobrirei nada.
Olho para uma pedra largada no terreno árido e deixo a lanterna
no chão, iluminando apenas o suficiente para que eu quebre o vidro.
Um som estrondoso se alastra pelo silêncio plácido. Todos os meus
músculos se retraem e olho em direção à casa, com medo de que
Alex corra pela porta e aponte a pistola na minha direção.
Os segundos se arrastam e o barulho dos animais volta a ser o
único a perturbar o silêncio. A casa está distante o bastante, ele não
ouviu. Solto o ar, aliviada, e pego a lanterna colocando-a na minha
boca. O gosto de terra me faz deglutir com nojo.
Fecho a mão sobre a base da janela e sinto um caco de vidro
perfurar minha palma, engulo um grito de dor e uma lágrima salgada
escorre pela minha bochecha. A dor irradia por todo o meu braço e
o sangue quente escorre da minha mão para a janela.
Uso a dor para impulsionar meu corpo e jogar uma das pernas
para o outro lado. Outro caco rasga a minha coxa. Solto uma risada
desesperada entre dentes, com a lanterna ainda me impedindo de
gritar, e rolo para dentro do casebre, caindo em cima de uma
prateleira.
O móvel, assim como todos os objetos nele, despenca no chão.
Minhas costas doem com o impacto, perco o ar, não consigo me
mover, meu corpo todo reclama e tenho medo de que, talvez, o ferro
da prateleira tenha atingido um nervo da minha coluna e me deixado
paraplégica. Seria ótimo Alex me encontrar nesse casebre
abandonado, sem movimento algum.
Encaro o teto antigo e tomo coragem para mover a ponta dos
meus dedos — eles se movem, e todo o meu corpo relaxa.
Tiro a lanterna da boca e ilumino o pequeno depósito enquanto
tento recobrar o fôlego.
Há pilhas de tralhas antigas e objetos inutilizados, minha queda
quebrou uma vitrola e agora seus restos mortais se espalham pelo
casebre.
O caco de vidro ainda está preso na palma da minha mão que,
coincidentemente, é a mesma que foi machucada meses atrás ao
quebrar o espelho do quarto. As cicatrizes ainda estão altas e
vermelhas.
Tiro o objeto cortante e torço o nariz quando o sangue começa a
escorrer em maior volume. Uso meu casaco para estancar o
sangramento, amarrando o tecido em volta, e com a mão livre
começo a remexer as tralhas.
Há móveis desmontados, fotografias borradas e roupas
amontoadas em caixas. Tiro alguns vestidos velhos, um a um, na
esperança de encontrar algo útil, mas são apenas roupas muito
antigas e desgastadas, algumas com buracos enormes.
Algo passa por cima do meu pé e corre em passos apressados.
Paraliso, engulo em seco, e decido dar continuidade a minha busca.
Não quero imaginar o que foi ou perderei a coragem.
Seguro um porta-retratos quebrado, a foto nele é muito antiga —
nem sequer tem cores, apenas uma sépia desgastada. Um casal
segura dois bebês recém-nascidos idênticos, cada um em uma
manta diferente. Deve ser Alex e a falecida irmã.
Devolvo a fotografia para o seu lugar e percorro o ambiente com a
lanterna. Há tanta coisa para analisar que me sinto um pouco
perdida, passo os dedos livres pelas lombadas de alguns livros
antigos enquanto minha outra mão treme de dor.
Direciono a lanterna nos títulos e forço os olhos para enxergar
melhor, uma das capas me chama a atenção.
Pego o exemplar surrado e assopro a poeira sobre a capa, a
edição em minhas mãos parou de ser vendida há anos e era meu
sonho de consumo, infelizmente, só encontrei uma cópia e acabei
comprando para Alexia — também eram seus contos favoritos.
Tremo descontroladamente ao abrir a primeira página, meu
queixo bate e meus dentes fazem um barulho incômodo. Travo o
maxilar ao iluminar o texto, debaixo do título há uma letra que
reconheço de longe.
Para a outra metade do meu coração.
Você é e sempre será o meu primeiro e último amor.
Te amo, Alexia.
Com carinho, Eva.
As lágrimas deixam minha visão turva. Já faz tanto tempo que me
esqueci como é amar tão puramente e inocentemente como nessa
dedicatória.
É horrível ver o quanto a amava e saber do final que tivemos.
Aperto o livro contra o meu peito e me permito chorar por alguns
segundos.
Seus olhos escuros me encaram por de trás das minhas
pálpebras, mas logo se misturam aos de Alex. São da mesma cor e
tem o mesmo caimento, a única diferença entre eles é que os da
Alexia tem um brilho imaculado que Alex já perdeu — ou nunca
teve.
Mas eu também perdi. Meu olhar não é o mesmo de quando ela
me conheceu.
Engulo o choro e devolvo o livro, preciso de mais provas. Provas
que me convençam que estou errada, pois minhas hipóteses
começam a beirar a loucura.
Não pode ser verdade.
Ilumino as outras tralhas, desesperada.
Você deveria tê-lo matado quando teve tempo.
— Cala a boca, merda.
No final de uma montanha de papéis há alguns álbuns
empilhados. Empurro os arquivos que não desejo com o ombro e
me apresso em pegar o que quero e colocar sobre outra pilha para
ver com mais clareza.
As primeiras páginas estão vazias, não há fotos, somente restos
de asas de baratas e outros insetos, porém, no meio do álbum há
uma. Uma menina e um menino se esticam para soprar uma velinha
de cinco anos, estão de mãos dadas e sorriem. Por de trás deles,
está escrito em uma enorme faixa:
“Parabéns Alexia e Alessandro”
Um barulho me faz desligar a lanterna. Meu coração acelera à
medida que escuto passos de alguém se aproximando, prendo a
respiração, meus músculos paralisam imediatamente.
Os passos param. O suor escorre pela minha testa.
A fraca luz da lua não é o bastante para iluminar o casebre,
consigo enxergar as árvores do lado de fora e a madeira
desgastada, mas nada mais que isso.
Minha respiração faz o barulho de um tambor de tão alta que soa
para mim. O silêncio se estende pelos segundos e alimenta minha
ansiedade, meu nariz coça — não sei se porque estou nervosa ou
se pela poeira que voa pelo local.
Escuto algo cheirar o batente da porta e dou um passo para trás,
descartando a possibilidade de ser Alex e começando a me
preocupar com os animais que rondam o terreno.
A porta sacode ao barulho de um tiro ricocheteando o ar.
Capítulo 23

Ao impulsionar meu corpo para fora do casebre, caio rolando em


uma descida e só paro ao bater as costas em um tronco.
Lágrimas grossas se acumulam nos cantos dos meus olhos, meu
corpo dói como se um caminhão tivesse passado por cima, várias e
várias vezes. Apoio minha mão machucada no chão e acabo caindo
de novo, não tenho qualquer força.
Alex continua gritando meu nome, me procurando na escuridão.
Estou com tanta dor que quase grito por ele também.
Levanto com dificuldade e uso o tronco que quase me deixou
paraplégica como apoio. Arrisco espiar morro acima, onde Alex
está, e vejo a luz da sua lanterna brilhando distante de mim.
Se aproxima do meu lado do terreno, vindo em direção ao
casebre, quando uma movimentação lhe desvia a atenção. Uma
raposa passa às pressas em direção ao galinheiro e Alex vai atrás
dela.
Aproveito a distração para me esgueirar pelas árvores e
atravessar o morro até o outro lado do terreno — o mais longe
possível do casebre e do que aconteceu lá.
Faltam apenas alguns metros, já estou na metade da volta que
deveria fazer, mas sou puxada com brutalidade pelo braço e Alex
surge da escuridão das árvores, me olhando furioso.
— Que merda é essa, Eva?
O encaro, meu corpo treme de medo, seus olhos escuros me
causam arrepios.
— A raposa voltou. Não quis te acordar, mas ela acabou me
machucando. — As lágrimas caem pelo meu rosto
automaticamente, talvez sejam reais, tamanho o desespero que
sinto. Alex afrouxa sua mão no meu braço e corro para seu peito de
modo dramático e teatral. — Levei uma queda.
Alex me afasta e direciona a lanterna para o meu corpo, minhas
roupas estão sujas e as pernas completamente esfoladas.
— Vamos para casa. — Ele coloca a mão na minha cintura e me
ajuda a andar. — Por que veio sozinha?
— Você estava dormindo tão bem, não quis te acordar. Achei que
era só espantar ela.
Ele assente. Não parece completamente convencido, mas não
preciso que fique.
Só preciso mantê-lo dentro da nossa bolha enquanto descubro
como fugir.
「• • •」
A moto estaciona em frente a uma mercearia de aparência
duvidosa.
Há uma adolescente folheando uma revista, sentada no caixa.
Seus olhos se erguem quando entro machucada ao lado de Alex,
mas logo voltam ao que fazia.
— Os absorventes ficam na última sessão. — Aponta até a fileira
de prateleiras. — Consegue andar até lá? Vou pegar as coisas para
o curativo.
Assinto e ele me solta, seguindo até a área de gazes, água
oxigenada e esparadrapos.
Apesar do calor da região, um calafrio sobe pela minha espinha
quando o ventilador de teto joga uma baforada quente na minha
cara, seu barulho ao se mover é arrastado e arranhado, me afasto
com medo de que caia em cima de mim.
Alex não me olha, está distraído com a prateleira de primeiros
socorros. Pego o primeiro absorvente que vejo e me apresso até o
caixa.
A menina ergue os olhos para mim.
— Só isso?
Encaro sua revista de fofoca e a caneta jogada entre os
caramelos da bancada, meu rosto vira na direção de Alex e volta
para garota. Pego a caneta.
— Eu...
— Você quer um chiclete, meu bem? — Ele vem em minha
direção enquanto balança uma caixinha de chicletes. Largo a caneta
na bancada.
— Não. — Forço um sorriso. — Não gosto de chiclete.
A garota olha para mim e depois para Alex, meus olhos
amedrontados imploram por ajuda e finalmente pareço ter tirado sua
atenção da revista. Propositalmente, deixo minha mão machucada a
vista.
— Dez reais. — A caixa diz, ainda me olhando. — Você pode usar
o banheiro dentro da casa se quiser se trocar.
— Não preci-
— Eu gostaria muito — interrompo Alex com um sorriso no rosto e
uma mão em seu ombro. — Por favor. É melhor fazer o curativo logo
também, para não infeccionar — sussurro.
Ele leva um dos dedos até o meio da testa e massageia o
encontro de suas sobrancelhas, depois, levanta o canto dos lábios
em um sorriso nervoso.
— Só não demore.
— Claro. — Meu sorriso se torna genuíno. Me viro para a garota
do caixa. — Vamos?
A menina se levanta e joga a revista em cima da bancada,
maneando com a cabeça para segui-la. Nos esgueiramos por entre
as prateleiras até chegar a uma porta fina, ela abre e deixa que eu
passe primeiro.
Caminhamos em silêncio pelo corredor, aperto a sacola entre os
dedos com tanta força que os nós já estão brancos. Uma pequena
porta de madeira é aberta e dou um passo para dentro, pois nós
duas não cabemos no corredor ao mesmo tempo.
Tic, tac, tic, tac, tic...
— Escute — digo em tom baixo. — Não preciso ir ao banheiro.
Quero que chame a polícia. — Ela troca o peso de um pé para o
outro, inquieta. — Chame a oficial Isis Melo e diga que a Eva está
presa em uma fazenda, a uns trinta minutos daqui. Uma casa
amarela com telhado vermelho. Rua...
Ela se vira no momento que Alex atinge a lateral do seu rosto com
um pedaço de madeira. A menina cai dura no chão e ele a chuta
para longe.
De dentro do cubículo que chamam de banheiro, não era possível
o ver chegar. Estarrecida, subo o olhar do corpo desmaiado para os
olhos escuros do Alex. Não consigo identificar se a menina ainda
respira, mas seu corpo magro caiu de forma bruta no chão. Duvido
que vá acordar tão cedo.
— Presa, Eva? — Sou puxada para fora do banheiro. — Você
acha que eu nasci ontem?
— Me desculpa — imploro com os olhos cheios de lágrimas. —
Só queria te deixar fora disso, eu matei aquelas pessoas. Você não
deveria ter que se esconder do mundo por minha culpa.
Alex aperta meu braço e me arrasta para fora da loja, suas unhas
cravam na minha pele e causam ardência.
— Pare de mentir, Eva. — Ao se virar, tenho certeza de que
aqueles são os olhos do demônio: brilhantes, tentadores e mortais.
— Ambos sabemos que essa cara de sonsa nunca caiu bem em
você.
「• • •」
Existe um motivo para demorarmos a falar sobre assuntos
difíceis: enquanto não for dito, não é palpável.
No momento em que as palavras saem da nossa boca e vão para
o mundo, elas ganham poder, e aí, temos que encarar a realidade e
suas consequências.
As palavras têm um preço e nem sempre estamos dispostos a
pagá-lo.
Por isso o silêncio perdura há tanto tempo entre nós dois.
Ele, sentado em uma cadeira ao lado da porta com a pistola
repousando na coxa, e eu, na cama, completamente refém de suas
ações. Quero saber a verdade, mas também a temo.
— Sempre se achando tão esperta — diz, quebrando o silêncio
imaculado que criamos. — A quanto tempo está nesse teatrinho?
— Não sei do que você está falando.
Alex ri como se a minha falsidade fosse flerte e tivesse lhe
fisgado.
— Adorava isso em você quando éramos adolescentes. — Ele
apoia os cotovelos nos joelhos. — Você era uma manipuladora fria,
escolhia quem queria conquistar e se tornava exatamente quem ele
ou ela desejava. Fazia isso melhor do que ninguém.
— Então é mesmo você. — Arqueio as sobrancelhas com falsa
surpresa. Depois do que vi no casebre não tenho dúvidas de quem
Alex é.
— Te disse que éramos mais parecidos do que você imaginava.
— Não somos parecidos.
Ele esboça um sorriso sacana e se recosta na cadeira, as pernas
abertas e o tronco relaxado.
— Manipuladores, assassinos, mentirosos. Me diga, Eva, o que
mais temos em comum? — Ri. — Não adianta mentir, te conheço a
tempo demais para saber o que realmente guarda aí dentro.
Engulo em seco.
— Não sei quem você pensa que conheceu, Alessandro, mas não
sou nenhuma dessas coisas. — Ergo o rosto. — Sim, já manipulei
muitas pessoas, já menti e já matei, mas os fiz para sobreviver,
diferente de você.
— Você realmente acredita nisso? — Franze o cenho. — Para
sobreviver? Pelo amor de Deus, Eva. Nós dois sabemos que
Wellerson não triscou um dedo em você, foi tudo uma história
arquitetada para esconder seu sangue frio.
Ajeito minha postura e tento não transparecer que suas palavras
me atingiram.
— Não. — Balanço a cabeça. — Você não vai mais mexer com a
minha mente. Não somos parecidos, eu jamais mataria Vicente ou
Talita como você fez.
— E Túlio — completa com desdém. — Não esqueça dele, foi
especialmente difícil de matar.
A respiração fica presa na minha garganta, tento questioná-lo,
mas só consigo pronunciar um arranhado “como?”.
— Não imaginei que você fosse se atrair por alguém tão
tradicional. — Alex revira os olhos. — Mesmo depois de uma
desilusão amorosa ele não estava suscetível a se drogar comigo,
menino sem graça. — Ri. — Consegui o convencer bem na hora
que uma loira de olhos verdes bateu na portaria atrás do
desgraçado. Você quase arruinou meus planos naquele dia, Eva.
— Eu não estou entendendo... — Minha mente trabalha tão rápido
que me sinto zonza. — Por quê?
Ele cai na gargalhada. A princípio, não me deixo atingir com suas
risadas altas e descontroladas, mas duram tanto que passo a ficar
incomodada.
— Você nunca entendeu, não é mesmo? — Sua mão fecha sobre
a arma. — Era comigo que você tinha que ficar, Eva.
— Eu namorava sua irmã, Alessandro — digo — Meu Deus, você
roubou o nome dela. — De repente, tudo começa a se encaixar: a
triste história que me contou sobre o seu amor infantil no bar, o
chaveiro da Torre Eiffel, os livros, seus olhos... — Você deixou a
pulseira com a sobrinha do Vicente para me incriminar.
— Saiu um pouco dos meus planos, mas continuou sendo
maravilhoso te ver enlouquecendo. — Ele sorri. — A ideia da
pulseira foi minha a princípio, fui eu quem encomendei e deveria te
dar, mas Alexia decidiu que você jamais teria a minha atenção e
roubou a ideia.
— Onde ela está?
— A sete palmos de terra em algum lugar do nosso quintal. Talvez
você tenha pisado nela outro dia. — Dá de ombros. — Tirei a cruz
de cima do caixão, chama muita atenção.
— Não... — Me curvo, a dor é tão grande que me desnorteia. —
Você disse que ela tinha se suicidado. — Lembro de Túlio, Vicente e
Talita. — Todos eles foram dados como suicídio.
— É. — Olha para a arma. — Foram mais pessoas do que
imaginei. Você é bem mais vagabunda agora.
— Tudo isso por quê? Para me ter de alguma forma?
— Para ser amado por você. — A voz dele sobe um tom e sua
expressão muda. Devo ter tocado na sua ferida. — Te via amando
Alexia e a invejava todos os dias por isso. Seu amor era imaculado,
redentor e arrebatador. Dava para ver nos seus olhos o quanto
amava cada um deles e eu... — A risada sai com escárnio da sua
boca. — Eu só queria um pouco disso, mas você não podia me dar,
não é? Nem mesmo após todos esses anos foi capaz de me amar.
— Alex...
— Pensei que afastando Alexia teria uma chance, então falei para
Wellerson o que vocês faziam trancadas no quarto naquele dia. —
Ele ergue as sobrancelhas. — Mas sua mãe nunca mais me deixou
chegar perto de você. Depois, veio Túlio.
Um frio mórbido sobe pela minha espinha. Alex parece perdido
nas próprias memórias, narrando seus crimes com indiferença e
frieza.
— Li em uma ficha da polícia que você criou um perfil falso para
se aproximar dele. — Comprimo os lábios. — No momento não me
lembrei quem era Alessandro Figueredo, mas não era esse o nome
que você usava, não é?
Sua resposta é um sorriso bizarro e doentio, os olhos pretos
semicerrados em prazer de ver a minha confusão.
— Você foi embora e minha vida voltou ao normal. — Gesticula
inocentemente, se fazendo de vítima. — Só que você voltou e
trouxe de volta esse desejo que não consigo me livrar. Era para
você ser minha, Eva. Tudo teria dado certo se você fosse minha,
mas você não me deu opção.
Alex se levanta e aponta a arma para a minha cabeça, meu corpo
petrifica imediatamente com medo de que qualquer movimento
brusco o faça atirar.
— Calma, Alex. Nós podemos dar certo, só precisamos de um
recomeço. — Ergo as mãos em sinal de rendição e me levanto
devagar.
— Não adianta mais. A Alexia podia cair nas suas manipulações
baratas, mas eu não. —Ele olha para o meu corpo uma última vez.
— É um desperdício, nós teríamos sido um lindo casal.
Olho para sua arma.
— Alex.
Em um impulso suicida empurro sua mão para o lado, ele segura
a arma com força e não consigo tomá-la, mas meu dedo encosta no
gatilho e o aperto. Um tiro atinge o teto, areia, folhas secas e poeira
caí sobre nós junto dos restos de uma telha.
Alex chuta o meu estômago e me derruba. A arma foge da minha
mão e cai próximo aos meus pés, tento alcançá-la e sou impedida
por seus dedos emaranhados nos meus fios, puxando meus cabelos
com uma força descomunal. Ele me ergue dessa forma até meu
rosto ser pressionado contra a parede quente.
Sinto os tijolos rasgarem minha bochecha e a ardência se
espalhar. Atinjo a sua cabeça com a força da minha e uso o tempo
que Alex fica desnorteado para chutar a arma para longe.
Ele se vira para procurar a pistola e lhe dou uma rasteira seguida
de um chute na costela. Quando se levanta, consigo ver o fogo do
inferno brilhando através dos seus olhos.
Seu punho encontra o meu nariz, dou um passo para trás
desnorteada com a dor e Alex aproveita para correr até a sala e
pegar a arma.
O barulho de sirene ecoa pela casa, mesmo que não haja
acústica para isso.
Me questiono se estou alucinando ou se a polícia conseguiu me
achar. Pelo olhar fulminante de Alex e o modo como me amaldiçoa
através dos orbes escuros, arrisco dizer que é real.
Ele ergue a arma e atira.
A bala atinge minha barriga e coloco a mão sobre o buraco
enquanto me ajoelho na terra seca da casa. Isis chuta a porta da
frente e entra, seguida de mais dois policiais.
— Abaixa a arma! — Isis grita. — Abaixa a arma, agora!
Ele está ao meu lado com a arma apontada para a minha
têmpora. Não sei em que momento se moveu, a dor me toma o
raciocínio.
— Abaixa a arma ou eu vou explodir a cabeça dela! — Alex
vocifera.
Isis olha para mim, balanço a cabeça em sinal negativo, mas ela
não me escuta. Suas mãos se erguem e mostram a arma, ao que os
outros dois policiais fazem o mesmo.
— Agora põem no chão.
Eles se abaixam lentamente, ainda olhando para nós, e colocam
as pistolas no chão sujo. Alex indica com o cano da arma que se
levantem.
— Fizemos o que pediu, agora solta ela. — Isis olha para a minha
barriga. — Ela está sangrando.
Sinto a adrenalina se esvair junto do meu sangue, minha mão é
como uma peneira e não estanca nada, nem sequer retarda minha
hemorragia. Me sinto estúpida por continuar apertando o ferimento
quando já está claro que vou morrer.
— Você não vai conseguir ir muito longe, solta ela — insiste.
— Para de falar, merda!
— Eu só quero que você entregue a refém.
— Eu não vou entregar ninguém. — Alex rosna como um
cachorro encurralado. — Eu vou sair daqui com ela ou vai todo
mundo morrer.
Ele me puxa pelo braço, o que faz com que eu solte o ferimento e
me levante, um grito de agonia escapa dos meus lábios ao me
mover e Alex pressiona a arma mais forte contra a lateral da minha
cabeça. O cano frio me dá vontade de vomitar — ou talvez seja o
choque.
— Você a está machucando! — Isis sobe seu tom de voz e dá um
passo à frente.
Alex direciona a arma para ela e é tudo que precisa. Isis segura o
cano e aponta para cima, socando seu rosto, uma bala ricocheteia
no telhado e acaba com o restante da estrutura.
Os outros dois policiais se apressam em pegar suas armas e
render Alex, mas ele não se intimida. Seu punho atinge um dos
oficiais enquanto o outro tenta segurá-lo. Antes que eu possa
raciocinar, um tiro o derruba e vejo o sangue se espalhar pelo chão.
Ele cai ao meu lado, com o rosto próximo ao meu, e seus olhos se
fixam em mim enquanto o mundo se torna distante e abafado.
Escuto Isis gritar e me sacudir, mas não consigo reagir.
A única coisa que tenho forças para fazer é me afundar na
escuridão dos olhos de Alex, que reflete todo seu amor doentio
misturado ao desgosto. Observo os orbes perderem o brilho
gradativamente, à medida que se esvai em sangue, e vejo o
momento em que fica cansado a ponto de fechar as pálpebras.
Ele desiste.
E em seguida eu também.
Capítulo 24

Na abafada tarde de janeiro de 2027, me vejo outra vez nos


corredores do Fórum de Santo Oiti, no interior do Ceará. Está lotado
de advogados, testemunhas e curiosos, assim como no ano anterior.
É cômico que eu esteja no mesmo lugar em que me julgaram,
participando de outro julgamento de homicídio, apenas uma semana
antes do dia em que fui inocentada — dois anos atrás.
O Juiz Carlos Racine entra na sala e se instala atrás da pilha de
processos das várias audiências do dia. Uma risada fica engasgada
na minha garganta e me traz lágrimas aos olhos. Guilherme se
curva em minha direção e acaricia minhas costas enquanto
pergunta se está tudo bem.
— É o mesmo juiz — digo com a voz arranhada.
Ele ergue os olhos para o juiz e depois para mim.
— Consegue continuar?
— Sim. — Recupero meu folego. — Não dava para esperar outra
coisa de uma cidade tão pequena.
Dois policiais instalam Alex em uma cadeira no fundo da sala.
Com as mãos algemadas e o uniforme de presidiário, ele
permanece impassível enquanto a Promotoria de Justiça lê a
denúncia que o coloca como o Assassino Suicida e o acusa pela
morte de, pelo menos, quatro pessoas.
Algumas vezes, durante o texto extenso, se perde na pintura da
parede, como se estivesse entediado, apesar da sua postura ser de
quem presta atenção em tudo. Seus olhos brilham como nunca e
chego a me perguntar se está à beira das lágrimas, mas não. Alex
parece tudo, menos arrependido.
Sua cabeça vira devagar até me encontrar, a poucos metros de
distância.
Desde que a verdade veio à tona e o mistério se encerrou, fico me
perguntando como não percebi que era ele antes. Muito em sua
aparência mudou desde a adolescência, mas não o olhar. É o olhar
de quem brinca com a morte e o amor ao mesmo tempo.
— Senhor Figueredo, como o senhor se intitula perante as
acusações?
Antes de responder, Alex demora mais um segundo em mim.
Sustento seu olhar e enquanto tento decifrar sua feição, sinto a mão
de Guilherme repousar sobre a minha. Indiferente, o réu se vira e
paro de ter sua atenção.
— Culpado.
O burburinho surge como uma chuva de gafanhotos, começa
silencioso, mas toma proporções estrondosas no segundo seguinte.
— Ordem no tribunal! — manda o Juiz. — Sr. Figueredo, o senhor
está admitindo culpa por todas as acusações de forma consciente,
inteligente e voluntária?
— Sim.
Vejo o advogado de Alex massagear a têmpora e o promotor dar
um sorriso, não consigo acompanhar a reação de todos e enquanto
tento compreender o que significa sua declaração, me esqueço que
estou sendo observada. Sou parte do espetáculo que se desenrola
e devia estar feliz pela declaração do réu, exceto que não estou.
Alex me tirou a única coisa que me traria paz: seu sofrimento
perante seu destino final. Arrisco dizer que fez de propósito.
— Muito bem. Senhoras e senhores, tendo em vista a declaração
inesperada do Sr. Figueredo, peço a todos que se dirijam à sala do
júri. Providenciarei para que os restantes sejam chamados assim
que estivermos em condição de prosseguir. Obrigado.
Guilherme e Isis se levantam ao meu lado, percebo que olham
durante um longo tempo para mim enquanto esperam que os
acompanhe, mas não consigo. Alex cravou os olhos nos meus outra
vez e é impossível desviar a atenção. Observo quando os policiais o
levantam e arrastam para fora do tribunal e, antes que vire o rosto e
suma da minha vista, vejo seu sorriso se estender pelos lábios finos.
— Eva? — Diana me chama.
Me viro devagar, sem acreditar que veio ao julgamento.
— Ele se declarou culpado.
— Eu vi. — Guilherme abre espaço e deixa que ela se sente ao
meu lado. — Isso é bom, não é? Ele não vai ter como escapar
agora.
Não respondo, pois não tenho certeza se alguém seria capaz de
entender o que se passa dentro de mim agora.
Eu entendo.
Minhas mãos gelam enquanto encaro a cadeira do réu. De
repente, uma dor de cabeça me invade.
Ele deveria sofrer, mas você o matou rápido demais.
— Vamos lá fora, você precisa tomar um ar.
Pareço uma boneca de pano, igual à noite em que Dona Lourdes
me encontrou sob o corpo de Wellerson. Me deixo ser levada pelos
corredores e escadas do fórum, até estar no jardim de entrada junto
dos outros ouvintes do julgamento. Diana se afasta comigo diante
do olhar preocupado de Guilherme e Isis.
— No que está pensando? — pergunta ao pararmos em frente a
uma plantação de mini margaridas.
— Não estou pensando. — Me encolho no blazer. — Estou
escutando.
— O que ela está falando?
Olho para a grama.
— Que o matei rápido demais.
Diana não desvia o olhar de mim, sua análise minuciosa me deixa
desconfortável e, pelo modo que comprime os lábios carnudos, sei
que está prestes a desabafar algo.
— Você nunca sentiu que reconhecia ela de algum lugar?
— Você sabe que já.
— Eu sei. — Ela reprime um sorriso. — Mas nunca contei quem
ela me lembra.
Arqueio uma sobrancelha, o que é o bastante para Diana voltar a
falar.
— Quando, ainda durante sua internação, você me falou dessa
voz infantil, petulante e provocadora que perturbava sua cabeça, eu
pensei automaticamente que era alguma espécie de reflexo seu.
Veja bem, Eva... Você nunca fez nenhuma das minhas atividades
terapêuticas, parecia uma criança petulante. Quando se sentia em
perigo, provocava os outros pacientes e médicos. Toda vez que tive
intenção de direcionar algum comportamento seu, tive que fazer
debaixo dos panos, sem que você percebesse o efeito que eu
estava querendo alcançar.
— Que eu sou alguém difícil de se lidar todos já sabem, mas qual
a relação entre as duas coisas?
— Vou dizer de um jeito que talvez não soe tão técnico, mas que
sei que vai te fazer entender — diz. — Foi ela quem foi abandonada,
abusada e maltratada durante anos. Você não matou Wellerson pelo
que te fez aquela noite, matou pelo que ele fez a ela. A sua criança
interior. A pequena Eva traumatizada que ainda habita dentro de
você.
Meu instinto é abraçar a mim mesma e me encolher mais dentro
do blazer.
— Já passou da hora de você abraçar essa criança e cuidar dela,
Eva. — Diana está séria. — Nem ela e nem você, são culpadas do
que aconteceu, vocês são as vítimas dessa história.
Não somos.
— E se ela não me perdoar por ter falhado com ela? — pergunto.
Diana me dá um sorriso triste e descansa a mão sobre a minha.
— Não foi você quem falhou.
Ao longe escuto o aviso de que o julgamento vai dar continuidade.
Olho para Guilherme no topo das escadarias do fórum e ele me
indica a porta de entrada com a cabeça.
— Aceite a chance que a vida te deu de retomar o controle, Eva.
Não são todos que tem a mesma sorte — Diana diz e assente, me
incentivando a voltar ao tribunal.
Caminhamos juntas de volta ao julgamento: eu, Diana e ela.
— Sr. Figueredo. Por favor, nos conte sobre o seu primeiro crime.
A vítima foi Túlio Valadares, correto?
— Errado, senhor. — Alex tenta esconder o sorriso de satisfação
ao pegar todos de surpresa, mas eu vejo. — Foi minha irmã gêmea,
Alexia Pereira Figueredo.
Penso que vou vomitar ao som dos burburinhos do meu estomago
vazio ecoando pelas paredes do tribunal, mesmo que o barulho
tenha se instaurado outra vez.
— Sua irmã não se suicidou?
— Foi o que os fiz pensar — diz. — Me surpreende que ninguém
tenha descoberto a verdade desde então. Um menino de quatorze
anos deixa muitos vestígios.
— E como o senhor a assassinou?
— Não foi muito difícil. Após o término com Eva, Alexia ficou
menos disposta a ir à cidade. Ainda estudávamos em Santo Oiti,
mas fins de semana e feriados ficávamos na fazenda. Eu já
planejava a alguns meses, porém, não tinha oportunidade. Quando
nossos pais precisaram ficar na cidade e nos mandaram para o
interior, facilitaram a execução do meu plano. Eu nunca havia
estrangulado alguém antes, então, não sabia quanta força por ou
quanto tempo iria demorar, mas Alexia não resistiu. Lembro que
fiquei frustrado, porque não foi como imaginei. — Dá de ombros. —
Mesmo que não tenha sido perfeito, parecia que finalmente eu tinha
o controle da minha vida.
— E como fez para encobrir o crime?
— Não sei se o senhor conhece o interior, mas lá é uma terra sem
lei. — Alex dá uma risada fraca. — Eu apenas a amarrei ao teto e
fingi ter a encontrado. Ninguém nunca desconfiaria de um irmão que
encontrou a irmã morta. Exceto meus pais, com eles foi mais difícil.
Para eles, Alexia sempre foi a santa e eu a encarnação do diabo.
— Eles foram os próximos, então?
— Sim, senhor. Anos depois, quando souberam da morte de Túlio
Valadares, ligaram os pontos a mim no mesmo momento. Os vi
ponderando falar o que sabiam para a polícia, o que não era muito,
mas poderia me causar problemas. Então, envenenei os dois e os
enterrei no quintal, ninguém frequentava nossa casa a essa altura e
não sentiram falta dos meus pais, os poucos que questionaram dei
desculpas rasas e jogadas. Em seguida, voltei para Santo Oiti e
passei a viver aqui. O ensino médio tinha acabado de se encerrar
para mim.
— Sr. Figueredo, houve outros crimes dos quais não estamos
cientes?
— Não. Houve muitos planos, mas não os consumei — diz. — Só
prossegui com os planos ligados à Eva. Ela é como uma munição
para mim.
— O senhor está dizendo que matou por amor?
Alex olha em minha direção e, com um sorriso doentio, responde:
— Chame do que quiser.
Capítulo 25

Levo o cantil aos lábios e sinto a bebida quente descer pela minha
garganta e se apossar do meu estômago vazio.
— Ele disse que é culpado — digo. — Depois do último
julgamento, pelo que me falaram, fez um vídeo de confissão
explicando detalhadamente cada crime que cometeu. Alexia, Túlio,
Vicente, você... A acusação adorou. — Rio. — Todos adoraram.
O silêncio plácido me faz tomar mais um gole.
— Prisão perpétua não parece o bastante. — Apoio minha cabeça
nas costas da mão, me sentindo um pouco zonza. — Morte também
não parece o bastante. Então eu fico me perguntando, o que seria o
bastante?
Ergo meu rosto, encarando a lápide à minha frente.
— Você teria ficado satisfeita? — pergunto, mas é obvio que não
recebo resposta.
Meus ombros tremem antes que as lágrimas venham à tona. Sou
tomada por uma série de soluços que não param por nada.
— Me sinto tão culpada — admito com a voz embargada. — Por
ter ido embora... Por ter tido a necessidade, tão grande, de não me
sentir abandonada que corri atrás dele. Você era muito mais
importante que o Alex e mesmo assim eu te deixei. — Encosto
minha testa na lápide e imagino sua franja colada ao suor do meu
rosto. — Eu sei que a gente tinha prazo de validade... — Uma
lágrima grossa desce pelo meu queixo e cai na terra. — Mas eu
também me apaixonei. Eu amava você, Talita. Queria ter dito isso
antes.
Encaro o cantil enquanto sinto meu coração se desfazer dentro de
mim. A dor misturada a culpa é o coquetel mais forte que já tomei
em toda minha vida, tenho certeza de que passarei os restos dos
meus dias de ressaca, me arrependendo das escolhas que tive no
último ano.
Com uma das mãos, derramo o restante da bebida sobre a terra.
— Deixei o último gole para você — digo. — Sei que preferia
vinho, mas a cachaça estava em promoção e eu precisava de algo
mais forte, de verdade.
Me levanto com dificuldade e caminho em passos vacilantes para
longe da lápide. Só percebo o caminho que estou fazendo na
metade, mas não o interrompo por isso. Sigo meus pés, me
esquivando das flores e terra remexida, até estar em frente à lápide
da minha mãe.
Encaro sua foto fincada na pedra, Julia não está bonita nela, a
pele ficou flácida e o sorriso escancarado demais.
Espero por alguns segundos sentir saudade como sinto de Talita,
mas só há tristeza pelo que passamos, por termos chegado até
aqui.
Ouço passos atrás de mim e, alguns segundos depois, sinto um
braço passando em volta dos meus ombros e me trazendo para
perto.
— Me sinto aliviada por ela estar morta. Sou uma pessoa horrível
por isso? — pergunto.
— Ser policial me ensinou que não existe bom e mau — diz
Guilherme. — Ninguém pode julgar um sentimento seu, quando não
esteve nas mesmas circunstâncias que te levaram a senti-lo.
Apoio a cabeça em seu ombro e recebo um beijo nos fios
bagunçados. Como sempre, Guilherme cheira a lavanda.
— Isis está no carro? — Ele assente. — É melhor irmos, então.
— Espera. — Sua mão no meu ombro me impede o movimento.
— Tenho algo para você.
O encaro com curiosidade enquanto ele inspira e me solta.
Parece tomar coragem para algo.
— Quando a polícia estava vasculhando sua casa para o
julgamento da morte do Wellerson, encontraram um bilhete picotado
em vários pedacinhos. Tentaram reestruturar, mas estava muito
rasurado e de difícil compreensão, então deixaram de lado. — Me
afasto, temendo onde a conversa está nos levando. — O processo
se encerrou e as provas foram arquivadas, mas eu dei um jeito de
ficar com essa.
— Você roubou uma prova confidencial da polícia? — o
interrompo. — Definitivamente você não deveria ser policial.
— Tem policiais que fazem muito pior que isso. Foi com uma boa
intenção. — Arqueio uma sobrancelha. — Enfim, com a ajuda da
Isis encontrei um especialista em reconstrução de provas em São
Paulo. Demorou para ele me devolver, mas valeu a pena.
Guilherme tira uma sacolinha zip lock do bolso e estende para
mim, dentro, há um pedaço de papel. Não consigo acreditar ao tocar
o plástico com meus dedos, tenho medo de abrir a sacola e estragar
o trabalho do reconstrutor, então passo os olhos pelo texto assim
mesmo. Em seguida, ergo o rosto para analisar a feição do meu
amigo, na tentativa de buscar algum sinal de que é brincadeira.
— Ela deixou algo para mim?
— Sim. Ela se despediu.
Tiro o papel de dentro da sacola com as mãos geladas, há
pequenas fissuras, mostrando que a carta foi recortada e colada. O
que leio é uma reprodução digitalizada da versão original. Como não
sinto que vai se desfazer nas minhas mãos, continuo.
A letra da minha mãe toma forma e se estende pela folha.
Minha querida filha,
Quando Deus criou Eva, pôs nela esperança. Esperança de que a
humanidade fosse sua criação perfeita e que aquela mulher fosse a
responsável por continuá-la.
Assim como o criador, pus esperança em você. Esperança de que
você me completaria para todo o sempre, que éramos feitas uma
para a outra.
E éramos.
Após a sua ida, o paraíso fechou as portas para mim. A vida se
tornou insuportável sem a sua presença e, só então, percebi que
havia perdido a minha felicidade, o único motivo pelo qual valia a
pena viver.
Errei ao achar que outro amor pudesse ser maior que o amor de
mãe e, infelizmente, não sou forte como você. Não vejo saída e nem
sei se desejo ver.
Se Deus não puder me perdoar, espero que você possa.
Amo você, minha filha. És meu presente de Deus, minha criação
perfeita, minha Eva.
Dessa vez, não haverá nada entre nós.
Com amor, sua querida mãe, Julia Borges.
As lágrimas escorrem pelo meu rosto e meus olhos recaem sobre
o túmulo de Wellerson, ao lado do da minha mãe.
Sinto que estou terminando essa história exatamente onde
comecei.
Só que agora, nós temos o poder.

Fim
Agradecimentos

Apesar de muitas pessoas acreditarem que ser escritor é solitário,


tenho muitos amigos para agradecer. Pessoas estas que
acreditaram em mim quando nem eu mesma acreditei.
Agradeço às minhas melhores amigas e betas: Alana, Juliana e
Gabi. Sem vocês eu provavelmente não teria uma carreira de
escritora. Muito obrigada por me incentivarem em cada ideia
absurda que eu tive, por me escutarem e ajudarem a encontrar
saídas quando fiquei na escuridão. Vocês são as melhores amigas
que eu poderia ter.
Meu amigo e irmão Kayo, muito obrigada por me atender de
madrugada e me ajudar a repensar todo o roteiro de MSE, no
começo não era um livro muito bom, mas sua ajuda foi muito
importante para que ele melhorasse. Parte desse mérito é seu. Não
sei o que faria sem você para me escutar.
Para escrever MSE estudei muito antes, me aprofundei em
storytelling, arquétipos, escrita criativa, e tudo que eu pudesse
absorver e usar nesse livro. Dois professores foram muito
importantes para mim nessa caminhada, são eles: Nano Fregonese
e Claudio Formiga. Esse dois são meus padrinhos de escrita, e sem
eles MSE não teria passado de uma ideia — e quem estuda com o
Nano sabe que uma ideia não vale nada.
Yasmin, quando você chegou na minha vida MSE já havia sido
escrito, mas sou muito agradecida por ter me ajudado a aguentar o
processo de preparo e lançamento do livro. Obrigada por ler MSE
30 vezes procurando erros, você me ajudou muito a não surtar de
vez.
Agradeço a você, meu leitor, pois sem você Maldita Seja Eva
definitivamente não seria nada. Um livro sem leitores não é nada
mais que palavras jogadas ao vento. Muito obrigada por pegar
essas palavras e guardar com você.
Por último, agradeço a minha avó que, apesar de não poder ler
esse parágrafo, foi a primeira a apoiar minha escrita. Seu apoio foi
muito importante, vó. Te amo.
Sobre a autora

Julie Pedrosa
Escritora apaixonada por criminologia, psicologia e aviação. No
tempo livre, é criadora de conteúdo no Instagram.
Maldita Seja Eva é seu livro de estreia.

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