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PARTE 1
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
PARTE 2
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
PARTE 3
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Agradecimentos
Sobre a autora
PARTE 1
Março de 2011.
Alexia se joga na cama quando termino de desembaraçar seus
cachos molhados. Ela me faz largar a escova e me puxa até estar
deitada também.
Entrelaço nossas pernas e olho para o teto. Nossa música favorita
toca na rádio.
Enquanto canta o refrão, Alexia levanta a minha mão e brinca
com a pulseira no meu pulso. No pingente pendurado, está escrito
meu nome.
Viro meu rosto para encará-la. Seus olhos escuros me
contemplam e consigo ver meu reflexo neles. Ela continua
balbuciando a letra da música enquanto balança o pingente que me
deu.
Abro um pequeno sorriso.
Alexia desce o olhar para meus lábios e os umedeço por instinto.
Meu coração parece tremer quando percebo sua aproximação, até
que toca meu nariz com o seu e cola os lábios nos meus, então, o
tremor para.
Ainda desacostumada com a sensação dos seus lábios e sem
saber o que fazer, acabo seguindo meu instinto de colocar a mão no
seu rosto.
Assim que meus dedos tocam a sua pele, a porta é escancarada
em um baque estrondoso que me faz soltá-la de imediato.
— Sua puta!
Meu padrasto enlaça meu cabelo com uma das mãos como se
fosse uma corda e puxa os fios com brutalidade enquanto me
arrasta para fora do quarto.
— Solta ela! — grita Alexia ao tentar o empurrar.
— Deixa, Lexie! — suplico.
Imploro com os olhos para que não se envolva nisso. Posso
aguentar ser machucada por Wellerson, mas jamais suportaria vê-lo
tocar minha amiga.
Sou jogada contra o sofá e meus olhos encontram os de
Alessandro, irmão gêmeo de Alexia, que está parado ao lado da
porta da casa, sem esboçar nenhuma reação.
É assustador como sua aparência é idêntica à da minha amiga,
exceto que há maldade no seu olhar. Uma maldade que jamais
encontrei nos olhos de Alexia.
— Você está endemoniada! — O cuspe viscoso do meu padrasto
atinge meu rosto. — Sua vadiazinha barata, você...
— Wellerson!
Minha mãe se põe entre nós.
— Você criou um demônio, Julia! — Seu dedo aponta para mim e
depois para a porta. — A vagabunda estava se agarrando com a
outra! O espírito da prostituição está nessa garota!
— Não a chame assim.
Minha mãe é estapeada e a força do tapa faz seu corpo
despencar sobre o sofá. Meu instinto é ajudá-la, mas Alexia me
impede segurando meus braços com força e me puxa para longe.
— Você é outra sem fé que eu jamais deveria ter me envolvido!
Essa casa está cheia de meretrizes que se acreditam dignas de
alguma coisa! Deus me abençoaria se eu saísse desse inferno!
Wellerson cospe as palavras enquanto tremo de raiva nos braços
da minha amiga. Em um impulso, puxo a mão de Alexia e a coloco
para fora do apartamento, antes que possa contestar.
Alessandro agarra o pulso da irmã e a impossibilita de voltar ao
apartamento. Apesar de me ajudar, tenho a impressão de que não é
por bondade ou empatia. Sua face completamente neutra
contrapõem o desespero de Alexia ao seu lado e lhe dá um
semblante de lunático.
— O que você está fazendo? — pergunta Alexia.
— Salvando você — respondo.
Alexia coloca o pé no batente da porta e Alessandro tenta a
impedir, mas ela resiste.
— Alexia, vá embora — insisto.
— Não vou deixar você sozinha.
Sou puxada para trás e, como se meu peso fosse vento, caio com
as mãos apoiadas no chão, meu pulso reclama e não consigo me
levantar.
— Você vai embora agora. — diz Wellerson e avança para cima
de Alexia.
Minha amiga fecha os punhos e ergue o queixo. Vejo Alessandro
esboçar um pequeno sorriso, mas logo escondê-lo e pôr a mão
sobre o ombro da irmã enquanto sussurra algo para ela.
Na hora em que me levanto para implorar outra vez que vá
embora, Wellerson empurra Alexia e fecha a porta.
Escuto os gritos angustiados da minha melhor amiga e suas
batidas insistentes. Meu padrasto volta, me arrasta pelo cabelo e me
devolve ao estofado, ao lado da minha mãe.
Fecho os olhos e rezo em silêncio para que Alexia vá embora e
Wellerson não lhe alcance.
Capítulo 1
Janeiro de 2026.
A fumaça do cigarro paira sobre meu rosto. Observo a nuvem
cinzenta se dissipando enquanto bato o pé de modo nervoso.
Minhas poucas malas estão apoiadas na coluna mais próxima. A
mulher da recepção me olha como se a qualquer momento eu
pudesse ter uma recaída e voltar para dentro da clínica.
A ignoro, desbloqueio o celular e vejo a hora. Ainda faltam cinco
minutos para o horário marcado.
Ele não vai vir, você está sozinha.
Tento afastar a voz com uma tragada.
Somos só eu e você.
A internet está desligada desde que peguei o smartphone. Não
tive coragem de encarar as notificações quando chegassem ou, pior,
a completa inexistência delas.
Não sei o que me atingiria com mais força: milhões de pessoas
palpitando sobre minha vida ou saber que não fiz falta para
nenhuma delas.
Meu pé para de tremer.
Vejo meu amigo saltar do carro e pôr seus óculos de sol. O medo
irreal de que houvesse feito o bastante para ele desistir de mim se
dissipa junto da fumaça do cigarro.
Guilherme abre os braços e grita meu nome.
— Eva!
Jogo o cigarro na grama, piso na bituca e corro em sua direção.
Minhas pernas enlaçam sua cintura e seus braços contornam meu
corpo. O escuto puxar o ar e cheirar meu cabelo.
— Me desculpa. — Desço do seu colo e pego seu rosto entre
minhas mãos.
— Foi imperdoável não permitir visitas, mas não precisa se
desculpar. — Ele abre um sorriso e suas covinhas aparecem. — Eu
sei que você precisava de espaço.
Guilherme me solta e vai pegar minhas malas.
Não olho uma última vez para a clínica antes de entrar no carro,
tenho medo de que a voz me mande de volta para lá.
Me sento no banco do passageiro e, enquanto espero Guilherme,
escuto uma mulher apressada falar no rádio.
— Ocorrência na rua Virgílio Távora, número 50. Assalto a mão
armada.
Agarro os cantos do assento com força, sinto os nós dos meus
dedos latejarem, meu coração acelera e o barulho da sirene tapa os
meus ouvidos.
Guilherme entra no carro e entende de imediato o que aconteceu.
Ele se estica para desligar o rádio da polícia e pigarreia para chamar
minha atenção.
— Desculpa, esqueci ligado — diz. — Você está bem?
Balanço a cabeça e umedeço os lábios. Minha boca está seca.
Parece que levei um murro no estômago.
— Só foi estranho. — Esboço um sorriso falso e forço minhas
mãos a colocarem o cinto de segurança. — Como está o trabalho?
— Normal. — Dá de ombros. — Tenho pensado em mudar de
área, o que você acha?
Desnorteada e atônita, viro meu rosto.
— Mas você demorou tanto para conseguir o cargo de
investigador.
— É. — Guilherme passa as mãos pelo volante. — Não tem sido
como imaginei.
— É por causa de mim — digo. — Não é?
— Não, claro que não.
Sua voz não me soa convincente, mas, antes que eu possa
contestar, ele muda a frequência do rádio e uma música calma
começa a tocar.
Respiro fundo, sem saber o que dizer.
Você estraga mesmo tudo à sua volta, ein?
A frase ecoa nos meus ouvidos e faz com que seja impossível
identificar quem a disse. Posso ter dito em voz alta, sussurrado para
mim, ou até mesmo ter sido Guilherme quem falou. Começo a
afundar em meio à realidade enquanto tento me ater ao único fato
que tenho certeza:
Não só estraguei a minha vida como também a do meu melhor
amigo. Essa é a pior consequência dos meus atos.
Ser condenada à cadeira elétrica teria sido mais fácil.
「• • •」
O silêncio já se estendeu por tempo demais, tenho pleno
conhecimento disso, mas Diana não parece querer me forçar a falar,
então aproveito para analisar o consultório e fugir da terapia.
É mais aconchegante do que imaginei.
Não me lembro de ter parado para pensar como seriam as
consultas fora da clínica psiquiátrica, mas tenho a impressão de
esperar algo bem mais aterrorizante que isso.
Talvez o que falte seja a camisa de força.
— Gostou da decoração? — pergunta Diana.
— As lâmpadas são bonitas.
— É para imitar pássaros, vê? — Seus dedos finos tateiam o
conjunto de lâmpadas e mostram o formato em V, que simula um
conjunto de pássaros voando para algum lugar.
Não consigo ver de onde isso se parece com pássaros, mas não
quero tirar sua ilusão.
— E o tapete? — arrisco, pois o silêncio começa a me incomodar.
— Que ir para lá?
— Nós podemos?
— Claro. — Ela dá um riso fraco e deixa que eu vá na frente.
O consultório não é grande, mas é bem mais aconchegante que o
da clínica. O tapete felpudo fica do lado esquerdo e algumas
almofadas estão arrumadas pelo local, me apresso em pegar uma e
abraçá-la.
Não quero admitir, mas no meio de todas essas almofadas,
encostada entre um móvel e a parede que dá para a televisão, me
sinto segura.
Ao lado da JBL preta, um vaso espelhado reflete o meu rosto.
Não reconheço a pessoa que me olha através do objeto, acuada
como um animal machucado.
Sinto pena dela, parece desesperada.
— Como é o apartamento do Guilherme?
— Geek demais. Eu gosto, mas não parece a casa de um homem
de trinta e dois anos.
— E como deveria ser a casa de um homem solteiro de trinta e
dois anos? — Ela ergue uma sobrancelha.
— Mais séria?
— Você não é séria.
— É. — Dou de ombros. — Não sei.
O silêncio quase se instala outra vez, mas Diana não deixa.
— Como é estar de volta por tempo indeterminado?
Aperto o travesseiro contra o peito.
— Não tenho certeza se sou capaz de voltar a interagir em
sociedade — admito em um murmuro.
Sinto seus olhos sobre mim, captando cada sinal de fraqueza que
esboço com todo meu corpo e alma. Não consigo mais fingir que
estou bem na frente dela e nem mesmo sei por que ainda tento.
— Por que não seria?
Solto uma risada de escárnio. Diana sabe por quê.
— Porque não sou normal. — A encaro. — Ela não me deixa ser
normal.
— Você dá muito poder a uma voz que não me parece ser tão
forte assim.
Olho para as lâmpadas de pássaros na tentativa de evitar o
assunto.
— Sabe algo engraçado? — Cruzo os braços. — O primeiro lugar
em que eu quis ir depois que saí foi a casa da minha avó.
Faz tantos anos e mesmo assim parece ter sido ontem.
Sempre me disseram que com o tempo a dor do luto vai embora e
fica apenas a saudade. O que esqueceram de me avisar é que a
saudade dói tanto quanto o luto.
— Ela teria soltado fogos se soubesse que matei o Wellerson —
completo. — Será que é ela que está enfiando o tridente na bunda
do meu padrasto?
Diana tenta conter a risada, mas a vejo sorrir.
— Você acha que ela foi para o Inferno também?
— Minha avó era tudo, menos santa. — A lembrança me tira um
sorriso melancólico. — Ela sempre soube antes de todos nós que
ele era um hipócrita de merda.
— Como você se sente sobre isso? De não ter percebido antes a
pessoa que ele era.
A conversa que antes me trazia certo prazer se torna incômoda e
me mexo desconfortável no tapete.
— Impotente. — Franzo o cenho com frustração. — Tem noção
que o chamei de pai até os 9 anos?
— E o que mudou para que você parasse? — Diana se curva
para escutar melhor e seu cabelo crespo cai sobre o rosto.
— O casamento — digo. — Minha mãe era diferente também
antes de se casar com ele, mais viva, bonita, sorridente. Wellerson
tirou tudo isso dela. Na religião deles é proibido divórcio, então,
talvez, ele tenha se sentido confortável e começou a mostrar quem
era depois de casado.
Comprimo os lábios e apoio a cabeça na parede.
— O único problema é que ele ficou confortável demais.
「• • •」
Ao sair do consultório, me deparo com os espelhos da sala de
espera.
A mesma mulher que foi refletida no vaso espelhado me encara
neste espelho. Agora, está mais nítida, apesar de confusa. Metade
do seu cabelo está pintado de loiro e a outra metade se mistura
entre o desbotado e o natural.
Não confio nos olhos verdes sem brilho, escondidos debaixo dos
óculos grossos. Sei que são meus olhos, mas sinto que os perdi
dentro do reflexo.
Me lembram os olhos de Judas antes de beijar Jesus.
— Será que devo virar o outro lado do meu rosto para você bater
nele também? — retruco em voz alta enquanto imagino a dona da
voz se misturando ao verde dos meus olhos.
À algumas cadeiras de distância, uma mulher finge estar lendo
uma revista, mas vejo os cantos dos seus olhos demorando em
mim. Paro de olhar meu reflexo e me apresso em sair antes que
queiram me internar outra vez.
Saio pela porta transparente e sinto o bafo quente da cidade
atingir o meu rosto, passo a andar com meus sapatos
desconfortáveis. O calor faz meu pé suar e machuca os calcanhares
com o atrito.
Na minha cabeça, há um turbilhão de mensagens sobrepondo
umas às outras. Não consigo me ater a uma única linha de
raciocínio, então apenas deixo que a enxurrada de
questionamentos, medos e paranoias invada minha caminhada.
Guilherme costuma dizer que quando estou perdida dentro de
mim, meus olhos se arregalam e param de piscar. É um
comportamento tão natural que só percebo quando começam a
arder e sou obrigada a fechá-los por um instante.
É o que acontece.
Sou obrigada a piscar de modo lento enquanto tento voltar a
realidade.
Ao abrir os olhos, me deparo com o portão do prédio onde morava
minha mãe.
Plantas cresceram por entre as grades, de onde estou, consigo
ver o zelador limpando o hall de entrada, de costas para mim. Ergo
o olhar até o segundo andar, onde fica a janela da minha antiga
casa.
As luzes estão desligadas, mas a cortina está aberta.
Engulo em seco e respiro profundo, sentindo o formigamento
voltar para o meu corpo e um frio mórbido se espalhar por meu
ventre.
Capto um vulto passando pela janela e pisco para ter certeza do
que vi.
Ninguém volta a aparecer. A casa parece tomada pela escuridão.
Antes que possa pensar, estou com a mão no interfone. O zelador
se vira e espia por entre o portão, então grita:
— O interfone não está funcionando.
Repito para mim mesma que não estou louca e que é válido
incomodar alguém com isso.
Tem razão, você não está, você é louca.
Há um homem na minha casa. Não estou louca, sei o que vi.
— Boa tarde. Soube que o 202 está disponível para venda. Há
alguém morando lá ou talvez a corretora esteja aí?
— Não senhora. — Ele me olha de cima a baixo enquanto segura
a vassoura. — Mas a moça sabe a história do apartamento, não é?
— Não tem ninguém aí agora? — ignoro sua pergunta.
— Não, ninguém aparece já tem um tempo. — O zelador torce o
rosto em uma careta. — Não conheço a senhora de algum lugar?
— Duvido muito, não sou daqui — minto com um sorriso no rosto
e me afasto. — Obrigada, boa tarde.
Volto a olhar a larga janela que dá para a sala de estar.
Posso jurar que o que vi era Wellerson e sei que o reconheceria
de longe.
Entretanto, se ele está aqui, quem eu matei?
Os segundos passam devagar enquanto espero o vulto voltar,
mas nada se move.
Capítulo 2
O cheiro de ovos fritos faz meu estômago rugir antes mesmo que
eu esteja de pé.
Cubro meus olhos com a mão, desconfortável com a luz que entra
pela janela, e saio da cama. Estou vestindo uma camiseta que não é
minha e minha roupa da noite anterior está dobrada sobre uma
cadeira.
Fecho as cortinas com brutalidade enquanto solto o ar pelo nariz
de forma demorada. Minha cabeça dói e, apesar da fome, sinto que
não vou conseguir ingerir nada sem vomitar.
— Bom dia. — Alex aparece na porta vestindo uma calça moletom
e uma camisa cinza. — Tem remédio na mesa junto do café da
manhã.
O acompanho por não ter mais o que fazer. Minha mente está
confusa e tento organizar os acontecimentos da noite anterior, mas
falho. Dessa vez não foi a amnésia dissociativa que apagou os
eventos traumáticos, mas sim a tequila.
Engulo o comprimido com suco de laranja e me sento ao seu
lado, me sirvo de um pedaço de pão e ovos enquanto o olho de
soslaio. Parece relaxado, seu cabelo encaracolado está bagunçado.
— Desculpa se isso parecer rude, mas...
— Não.
— Você não sabe o que eu ia perguntar.
— Nós não transamos.
Comprimo os lábios para calar minha boca, pois é exatamente o
que ia questionar. Meu foco volta à comida no prato.
— Não que você não tenha tentado. — Ele dá um sorriso tímido e
solta uma risada nasal. — Você tirou a roupa sozinha e acabei tendo
que te dar uma camisa.
— Meu Deus... — Escondo meu rosto com a mão e mordo o pão
com o ovo. — Mil desculpas.
— Tudo bem. — Silêncio. — Seu telefone tocou algumas vezes,
tive que atender para a pessoa não se preocupar.
— Quem era?
— Talita.
— Ah.
Bebo da minha xícara de café.
— Sua amiga?
— Ex-namorada.
Alex para de comer e me encara, parece que não esperava por
essa resposta. Sinto o nervosismo tomar conta de mim
gradativamente, mas ele volta a comer sem falar nada.
— Algum problema?
— Não sabia que você gostava de mulheres — diz com rigidez.
Ele larga os talheres e se levanta para jogar os restos no lixo.
— Gosto. Isso é um problema? — repito e também deixo minha
refeição de escanteio.
— Não.
Fico incomodada com o modo bruto com que lava a louça apenas
para não me olhar. O prato cai de sua mão e se espatifa no chão,
Alex aperta as bordas da pia com força e me levanto para ajudá-lo,
mas sou impedida.
— É melhor você ir.
Não o respondo, nem contesto. Se é assim que reage a minha
bissexualidade, não merece metade da atenção que lhe dei. Volto
para o quarto e troco de roupa, deixando sua blusa embolada na
cama.
Quando volto para a sala, ele não está lá, mas deixou a porta
entreaberta.
「• • •」
Um arrepio mórbido passa pela minha coluna ao parar em frente
ao IML.
Chacoalho os ombros em um espasmo, me encolho dentro do
blazer e caminho em passos apressados até o segurança na porta,
ele lê uma revista e nem sequer se incomoda de erguer o olhar até
mim.
Finjo naturalidade ao tocar na maçaneta para entrar no local, mas
basta fazer isso para que o homem largue a leitura.
— Posso ajudar?
Dou um sorriso amarelo e coloco as mãos no bolso.
— A doutora Talita Lima me requisitou. Meu nome é Eva Borges.
O guarda permanece impassível perante minha mentira.
— Você quer que eu ligue para ela? Tenho certeza de que ela
pode confirmar.
— Isso não vai funcionar comigo, moça. — Ele ergue o queixo e
aponta para a porta. — Se quiser entrar, peça para ela vir aqui
autorizar.
Torço os lábios e mudo o peso de um pé para o outro.
— Ela disse que já tinha autorizado de manhã, talvez você
estivesse desligado e se esqueceu.
Seus olhos me fuzilam, mas permaneço confiante.
— Acabei de trocar de turno, o outro segurança não me passou
nada.
— Então ele deve ter esquecido. — Solto o ar, indignada. — Ela
está trabalhando, não vai atender o telefone tão fácil. Por que não
facilita isso para nós dois?
O segurança me olha dos pés à cabeça, o vejo hesitar e, quando
está prestes a negar mais uma vez, abro a bolsa e tiro meu CRMV,
estendendo a ele.
— Sou médica veterinária, especializada em saúde pública. A
doutora Talita tem um caso que precisa da minha vistoria. — Guardo
o documento antes que ele possa gravar o número. — Estamos
acordados?
Incomodado ele se levanta e abre a porta. Dou um sorriso e sinto
uma baforada fria vinda de dentro.
O silêncio é estarrecedor, meus saltos ecoam pelo corredor
enquanto a lâmpada fraqueja e deixa a entrada em uma meia-luz
assombrosa.
Não consigo imaginar como é trabalhar até tarde em um lugar
como esse, mas acaba que combina com Talita. Ela nunca teve
medo dos mortos, seu problema é com os vivos.
Não sei para onde estou indo, as paredes descascadas parecem
as mesmas para todos os lados em que olho e não há ninguém na
recepção para me ajudar.
Me apresso em dobrar o corredor e procurar nas janelas se Talita
está em uma daquelas salas. Todos os meus pelos se arrepiam com
uma brisa fria que passa por mim. Solto uma risada nervosa e
continuo a andar, enquanto me convenço de que é apenas o ar-
condicionado.
Vozes baixas sussurram no corredor ao lado. Escuto passos e me
apresso para encontrá-las, mas ecoam para longe e não consigo as
acompanhar. O ar sai dos meus pulmões de modo ansioso e
começo a me arrepender de ter vindo até aqui apenas para
encontrar Talita.
— Eva. — Escuto uma voz atrás de mim e todo o meu corpo se
petrifica. — Eva.
Me forço a continuar e ignorá-la, mas alguém toca meu ombro.
Dou um grito amedrontado e um pulo para longe. A risada de
Talita ecoa pelo corredor.
— Merda! — grito ao colocar a mão sobre o coração. — Que
susto, Talita! Achei que era uma assombração.
— A única assombração aqui sou eu. — Ela aperta a barriga
enquanto tenta parar de rir.
— Tá gostando, né? Filha de uma égua.
— Não posso dizer que tenho pena depois de ontem à noite.
Meus ombros caem e junto se vão as barreiras pós-susto.
— É por isso que vim aqui. Para pedir desculpas.
Ela encara o chão e esconde as mãos no jaleco.
— Eu não devia ter te tratado daquele jeito — insisto. — Sei que
você só estava preocupada.
— É, mas você tinha razão. — Talita força um sorriso. — Não
temos nada, você não me deve satisfações.
— Ainda assim...
— Sou sua amiga, não quero te ver nunca em um lugar como
esse — completa, e sinto meu corpo arrepiar. — Não importa o
passado que tivemos, você é parte da família.
— Sou a Pequena Eva, não é? Essas coisas não se esquecem.
Meus lábios se curvam um pouco para cima e Talita comprime os
dela, envergonhada.
— Fui descoberta?
— Só uma pessoa no mundo usaria o user PequenaEva01 para
me defender no Twitter.
Dou um passo à frente, abrindo os braços meio acanhada.
— Estou perdoada?
— Preciso de algumas horas de drama antes de te abraçar. —
Ergue o relógio. — Achei que você viria mais tarde, está cinco horas
adiantada.
Solto uma risada nasal e cruzo os braços.
— Eu não teria coragem de vir aqui de noite. — Olho em volta. —
De dia já é sinistro e extremamente vazio, imagina ao escurecer.
— Não é sempre assim. Acabamos de ter uma ocorrência, por
isso está vazio.
— Tem um corpo vindo pra cá? — pergunto, me sentindo
incomodada de repente.
— É o IML, não é? Para onde mais você quer que levem?
— Não sei. Não pensei nesse detalhe. — Talita solta uma risada
fraca e toca o meu braço com a ponta dos dedos.
— Agradeço as desculpas, mas talvez seja melhor você ir.
O silêncio é quebrado por uma diversidade de vozes que se
sobrepõem e apressam pelo corredor ao lado, não tenho tempo de
fugir dos funcionários do IML que dobram na nossa direção com
uma maca coberta.
— Boa tarde, doutora. — Um dos homens cumprimenta Talita ao
parar com o cadáver ao seu lado e lhe estender um documento.
O desconhecido está coberto por um pano branco e os pés
escapam para fora. Visualizo as unhas sujas e torço o nariz, mesmo
que o cheiro ainda não tenha se tornado insuportável.
Ela pega uma requisição das mãos do funcionário e passa os
olhos depressa pelos dados do cadáver.
— Levem para a necropsia, já estou indo.
Observo a maca ser levada e me deixo suspirar ao vê-los dobrar
o corredor. Encarar a morte tão de perto me faz pensar como foi a
necropsia do Wellerson. Foi Talita quem a fez? Como ela se sentiu
ao remexer um cadáver que eu matei?
— Eva? — Volto meu rosto para ela. — No que está pensando?
— Nada.
Talita fica em silêncio enquanto morde o lábio inferior e me olha.
Sei que não acredita que minha mente está vazia, mas nunca foi o
tipo que insiste.
— É melhor eu ir indo então. — Dou um pequeno sorriso. —
Desculpa por tudo.
— Não se preocupe. — Ela tira as mãos do bolso e dá um passo
na minha direção. — Acho que estou pronta para aquele abraço.
— Você não tem um morto para remexer?
— Não é como se ele fosse morrer de tanto esperar.
Solto uma risada fraca e abro os braços, deixando que passe os
seus pela minha cintura. Seu cheiro é de formol e desinfetante de
limão, mas seus cabelos escuros ainda têm resquício do seu
verdadeiro perfume.
Fecho os olhos e a aperto contra meu peito. É mais fácil lidar com
a saudade e com as lembranças quando estou longe, tê-la perto é
uma tortura para a minha mente cansada.
Talita me solta e esboça um sorriso tímido.
— Preciso ir.
— Bom trabalho.
Ela assente e volta a esconder as mãos no jaleco, em seguida,
caminha apressada para o fim do corredor.
Assim que cruzo a porta do IML meu telefone vibra. O segurança
fala com um policial no canto do muro, e aproveito para me apressar
e sair antes que me veja. É só chegar na calçada que Isis me
encara, apoiada no capô do seu carro da polícia.
Seu rosto se torce em indignação e frustrada ela olha para os
lados, antes de me puxar pelo braço e levar até um canto mais
reservado. A encaro, estarrecida com sua brutalidade.
— O que você faz aqui, Eva? — Apesar da voz contida, vejo que
está com raiva.
— Vim ver a Talita.
Ela solta meu braço e coloca a mão na cintura, seus olhos
percorrem o quarteirão mais uma vez.
— Você tem noção da merda que fez ao vir aqui?
— Vou relevar sua falta de educação porque é parceira do meu
irmão — digo. — Vim ver uma amiga, qual o...
— O corpo que acabou de entrar é do Vicente Carvalho, pastor da
Coração de Cristo. — Isis aponta para o IML e depois para mim. —
E a esposa dele está agora mesmo na delegacia com o Guilherme
te acusando formalmente de assassiná-lo.
Olho para o celular na minha mão, há quinze mensagens
acumuladas na tela e não param de chegar mais.
— Como assim? Eu não posso ter matado ele. Isso é um absurdo.
— É?
Arqueio minhas sobrancelhas e me aproximo dela.
— Isis, eu não sei do que o Vicente morreu, mas não fui eu.
— Onde você estava ontem à noite?
Dou um passo para trás.
— Na casa de um amigo.
— A noite toda?
— Sim. — Vejo seus ombros caírem e a pose de policial ir
embora.
— Desculpa. Essa mulher me deixou maluca. Ela falou que vocês
discutiram ontem à tarde e mais um bocado de coisas. Está
histérica.
— Relaxa. — Olho para o celular, Guilherme está me ligando. —
Acho que eu também desconfiaria de mim.
— Não se preocupe, apenas vá para casa e espere o Guilherme
chegar.
Assinto e me afasto com um “tchau” baixo. Minha cabeça trabalha
em mil possibilidades e minhas mãos tremem ao levar o celular à
orelha.
Culpada. Culpada. Culpada.
A última coisa que me lembro da noite anterior é do olhar
decepcionado de Talita ao me ver subir na garupa da moto.
— Ligue para a sua advogada, agora. Nos encontramos em casa
em quinze minutos. — A voz do Guilherme ao telefone faz todo o
meu corpo tensionar.
Não parece confiante de que sou inocente.
Capítulo 10
O silêncio me enlouquece.
Balanço meu pé de um lado para o outro enquanto tento me
concentrar em algo que não seja o jantar maçante que se desenrola.
— O Gui também adora cozinhar — digo.
— É mesmo? — Alex pergunta.
— Sim, ele faz um ótimo macarrão com cogumelos. — Meus
olhos vão da cara fechada do Guilherme para Alex. — O que você
mais gosta de cozinhar?
— Comida japonesa.
— Não gosto de sushi — diz Guilherme com um arquear de
sobrancelha.
Comprimo os lábios para segurar uma risada de raiva e encaro
meu amigo.
— Comida japonesa não é só sushi.
Minha vontade é de enterrar o rosto do Guilherme no empadão.
Sua birra infantil me tira a paciência, mas também faz com que eu
esqueça o vídeo comprometedor de minutos atrás.
— Qual seu CPF, Alex?
Me engasgo com a comida e Alex me estende um copo de água,
bebo de uma vez e perco o ar.
— Pelo amor de Deus — digo com a voz arranhada, ainda
tossindo.
Alex ri.
— Não tem problema. Eu entendo.
O silêncio se instala outra vez, Guilherme olha para Alex, que
sustenta seu olhar. Não sei se está à espera de um CPF ou apenas
pensando em outro ponto para azucrinar Alex, mas parece
concentrado demais para alguém que não pensa em nada.
Ele se levanta e leva o prato para a pia, observo seus passos até
que desvia o olhar de nós. Me permito soltar o ar preso nos
pulmões. Alex esgueira sua mão por debaixo da mesa até tocar a
minha, seus lábios se curvam em um sorriso compreensivo e, por
um segundo, me esqueço da tensão estabelecida no ambiente.
— Chaveiro da Torre Eiffel? — Guilherme questiona e volta nossa
atenção para ele. Demoro alguns segundos para me dar conta do
que fala.
— Sim — Alex responde. — Morei na França por um tempo.
— Conveniente…
Pressiono minha têmpora e inspiro profundo, Alex abre um sorriso
amarelado.
— Você nunca falou francês comigo — digo em uma tentativa de
deixar o ambiente menos desagradável e direcionar o assunto para
outro âmbito.
— Você nunca pediu… — Ergo uma sobrancelha e abro um
sorriso tímido. — O que quer que eu fale?
— Qualquer coisa.
Guilherme nos espreita enquanto lava a louça, opto por ignorar
sua presença — mesmo que ronde o ambiente como uma nuvem
negra de tempestade.
— Seu amigo é muito ciumento — Alex diz em um francês
perfeito. Não entendo uma palavra, mas gosto do timbre da sua voz
em língua estrangeira.
— Não é ciúme, é preocupação. O homem “perfeito” é um homem
que mente — retruca Guilherme e enfatiza uma das palavras que
desconheço. Apesar de não compreender o contexto, sei que se
trata de algo ruim, pois o clima volta a ficar desconfortável.
— Não sabia que você também falava francês.
— É. — Ele abre os lábios em um sorriso, o mesmo sorriso que
dá ao encerrar um caso. — Fiz uns anos de francês na faculdade,
ainda me lembro de algumas coisas.
— O que vocês estavam falando?
— Nada — diz Guilherme.
A mentira descarada sem dúvidas esconde um segredo, pois os
dois se encaram com desprezo, até Alex desviar o olhar e me
direcionar um sorriso forçado.
Não sei o que foi dito, mas parece ter atingido ambos.
「• • •」
Meus dedos contornam seu maxilar, passam pela barba rala e
param nos lábios finos.
— O que você e o Guilherme conversaram?
Alex acaricia minha mão no seu rosto.
— Nada que precise se importar. — Ao ver que não vou desistir,
continua: — Ele não parece muito disposto a me aceitar. Tem
certeza de que vocês são só amigos?
— Claro. — Franzo o cenho. — Já te disse, Guilherme é um irmão
para mim.
— Não parece ter sentimentos de irmão, é bem possessivo, na
verdade.
— Eu sei e vou conversar com ele sobre isso. Não se preocupe,
Guilherme é apenas… muito cuidadoso.
— Se você diz. — Alex leva minha mão até seus lábios e deposita
vários beijos sutis. — Eu gosto de você, Eva. Não quero nada
atrapalhando nós dois.
Minha mão para onde está e sinto meu coração apertar à medida
que percebo que não posso continuar com Alex a não ser que saiba
toda a verdade sobre mim.
— Há coisas sobre mim que você não sabe — digo. — Não é
justo esconder isso de você, mesmo que você decida não ficar
comigo depois.
— Não vou embora.
— Não seria a primeira vez — retruco com a voz trêmula. — Sou
como um parque de diversões: todo mundo gosta de visitar, mas
ninguém fica para sempre.
— Não tem nada que você possa me dizer que me faça fugir. —
Suas mãos seguram meu rosto. — Você já me conquistou.
— Eu também não sei tanto sobre o seu passado.
— Não tem muito o que saber. Meus pais tiveram gêmeos, eu e
minha irmã, crescemos no interior de Santo Oiti na nossa fazenda
de laticínios. Morei um tempo fora, e é isso. Você já sabe tudo sobre
mim, mas pode perguntar o que quiser.
— Sua irmã mora aqui?
— Minha irmã morreu aos 14 anos.
— Sinto muito. — Toco sua mão. — E seus pais?
— Morreram também, alguns anos atrás.
— Como eles eram?
Alex foge do meu olhar por um instante.
— Ruins. — Dou um sorriso triste e entrelaço meus dedos aos
seus. — Minha irmã era a preferida, nada do que fazia era ruim aos
olhos dos meus pais. Já eu, fui deixado de lado e colocado como
errado durante anos. Diziam que minha irmã foi abençoada por
Deus e eu pelo Diabo.
Viro meu rosto para encará-lo. Há brilho no seu olhar, mas não sei
se é o brilho que os pais de Alex considerariam divino.
— Sinceramente, foi um alívio que morreram — completa.
— O que você fez para eles dizerem algo assim?
— Nasci, acredito eu. — Ri. — Nunca fiz nada pior do que um
adolescente normal faria.
Contemplo seu rosto enquanto busco as palavras necessárias
para dizer que eu fiz algo pior do que um adulto normal faria. Sei
que não se esqueceu do assunto e está me dando tempo para
pensar, pois seus olhos vez ou outra param sobre mim, curiosos.
Sinto as extremidades dos meus dedos esfriarem e uma bola se
formar na minha garganta, a vontade de vomitar surge, como
sempre. Engulo em seco e tento lutar contra meu estômago.
— Não tenho orgulho do que fiz.
Não tem mesmo? Eu tenho.
— O que?
Puxo o ar e, com toda a coragem que me resta, encaro seus
olhos.
— Eu matei alguém.
Fico à espera do momento em que se levanta e vai embora, mas
Alex permanece parado a me olha fixamente com seus olhos
profundos e incomuns.
— Você escutou?
— Sim. — Ele solta o ar e se senta, em seguida, me puxa para
seu colo. — Eva — diz ao pegar minhas mãos e as colocar entre as
suas. — Você acha mesmo que eu não sabia sobre Wellerson
quando decidi me envolver com você?
— O que... — Franzo o cenho. — Por que não falou nada?
— Porque você estava envergonhada e se culpando, não queria
te constranger ainda mais. Sinceramente, não entendo por que você
se culpa tanto. — Suas sobrancelhas se juntam momentaneamente.
— Na minha opinião, o que você fez foi pouco.
— Como pode ter tanta certeza de que ele merecia a morte?
— Sei que sim.
Sinto um pouco da culpa se desfazer em seus braços.
— Túlio também mereceu o fim que teve — completa. — Não
precisa ficar triste por isso.
Junto as sobrancelhas.
— Mas não fui eu quem matei ele — digo. — Foi suicídio.
— Claro. — Alex acaricia meu cabelo. — Entendo
completamente.
Algo pegajoso desce pela minha língua e para na minha garganta,
não consigo engolir.
— Como você sabe sobre ele?
Alex me olha, curioso.
— Você me contou, Eva.
Me encolho e balanço a cabeça. Não tenho certeza se contei,
mas não me surpreenderia se tivesse, Alex parece tirar com
facilidade da minha boca todos os meus segredos mais obscuros.
— Você vai ver que temos muito mais em comum do que você
imagina, meu amor — diz enquanto passa os dedos pelo meu
cabelo.
Sua frase atiça minha curiosidade, mas algo dentro de mim diz
que não é hora de questioná-lo.
Apoio minha cabeça em seu ombro e fecho os olhos.
Nos segundos seguintes tento me convencer de que o alívio por
ser aceita vale mais que sanar minhas dúvidas sobre Alex.
「• • •」
Seu cabelo cai sobre meu rosto quando se curva para me beijar.
Passo a mão pela sua bochecha e tiro seus fios do caminho, os
enroscos nos meus dedos e puxo para trás. Talita dá um sorriso
sacana e suspira contra os meus lábios.
Pisco. De repente, é Alex quem está lá, debaixo de mim, me
desafiando a continuar.
Paro com a mão sobre a porta enquanto tento manter a mente
limpa e, então, dou duas batidas fortes na madeira.
Uma pequena fresta é aberta e Talita coloca a cabeça para fora. A
franja está bagunçada e há bolsas debaixo de seus olhos.
— Eu preciso de um favor. — Troco o peso de uma perna para
outra.
— Você sabe que não posso.
— Lita, por favor.
Ela suspira ao escutar seu apelido e em seguida abre a porta,
agradeço com um murmuro e entro na casa. Os papéis que desejo
estão jogados por toda a mesa preta e uma garrafa de vinho
repousa ao lado do tapete, vazia.
— Quer beber alguma coisa? Vinho, chá, café? — Ela não espera
que eu responda, pega duas taças e as enche de vinho branco. —
Você vai precisar.
Pego a taça e a viro sobre meus lábios.
— Antes, preciso te perguntar uma coisa. — Talita foge do meu
olhar e sorrio discretamente. Ela nunca gostou de ser olhada por
tempo demais. — Foi você a fazer a necropsia do Wellerson?
Talita me olha por um curto instante e leva o vinho aos lábios.
Discretamente, assente.
— O que disse a necropsia?
Dessa vez, nem tenta fugir, leva a garrafa de vinho nova até o
sofá e se senta de pernas cruzadas, em seguida, começa a falar.
— Parada cardiorrespiratória por tranquilizante de cavalo, no
exame de sangue encontramos a amostra da droga, mas você já
sabe disso. O que você realmente quer saber, Eva?
— Tem chances de eu ter simulado uma briga para matá-lo?
Ela para de encher a taça e seus olhos deslizam até encontrar os
meus.
— O que você está falando?
— Por favor, responda. — Desvio do seu olhar e encaro as
cortinas góticas.
— Chance tem, não fomos a fundo na investigação, Guilherme
conseguiu fechá-la pedindo um favor a um amigo. — Talita se
levanta e vem até mim, sua mão repousa de forma carinhosa em
meu ombro. — Mas as chances de realmente ter acontecido uma
briga são muito maiores, Eva. Tinha DNA seu debaixo de todas as
unhas dele e... — Seus olhos descem para o meu decote, não de
forma sexual como eu gostaria, de forma triste. — Não ficou
cicatriz? Ele rasgou seu seio.
Balanço a cabeça em negação e vou até a mesa bisbilhotar os
papéis. É a autópsia do Vicente, porém ainda há resultados
inconclusivos.
— Acha que ele se matou mesmo?
— Não.
— Sei que você ainda não trabalhava no IML na época... —
Engulo em seco. — Mas esse caso não te lembra o do Túlio
Valadares?
— Duas pessoas próximas a você que se suicidaram sem
explicação. — Talita caminha pela casa, indo até uma prateleira no
canto. — Sem indícios anteriores de autoflagelação ou tentativas de
suicídio. Inexplicavelmente um dia tiveram coragem, e ninguém
percebeu. — Ela ri ao puxar uma pasta. — É claro que eu lembrei
do seu ex.
— O que tem aí?
— A necropsia e algumas anotações pessoais. Não foi muito
investigado, era um adolescente que tinha acabado de terminar um
namoro, as pessoas tendem a pensar que isso é o bastante para
alguém cortar os pulsos. — Talita vira o vinho mais uma vez. — É
fácil morrer de amor por você, mas não acho que Túlio tenha se
matado.
— Acha que alguém o matou? — Me viro abruptamente.
— Ele foi encontrado na banheira com um cinto como torniquete,
mas nem a mãe nem o pai reconheceram o cinto. Não era dele, mas
tudo bem, adolescentes compram coisas que os pais não sabem o
tempo todo. — Me encolho e abro a pasta. — Ele tomou os
calmantes da mãe horas antes, para tomar coragem,
provavelmente. Não sou investigadora, mas sinto que tudo isso foi
montado. Parece algo que eu veria em um filme de baixo
orçamento.
Solto uma risada fraca, nervosa e sem ânimo. Uma foto de Túlio
está presa à primeira página.
— Estou com medo — admito ao sentir minhas mãos tremerem
sobre as folhas.
— Do que?
— De ter o matado. — Viro a página e encaro as fotos grotescas
de seus cortes profundos. — Eu sabia exatamente onde cortar para
matar alguém naquela época, fantasiava com isso. Essa era a
minha morte: calmantes e uma banheira de sangue. Foi Túlio quem
me fez desistir dessa ideia, ele deu um valor para a minha vida. —
Meus lábios tremem. — Não acho que ele tenha se matado, não
assim, e não consigo parar de pensar que pode ter sido eu.
— Ei. — Ela segura minhas mãos entre as suas e me obriga a
olhar em seus olhos. — Não sabemos o que aconteceu, mas você
não pode se culpar só por não se lembrar de algo.
— Eu odeio isso. Sinto que estou afundando cada vez mais e que
já não tem mais volta.
— Você saiu do fundo do poço uma vez, pode sair de novo. —
Talita me puxa para seus braços e acaricia o meu cabelo. — Eu
tenho uma teoria de que foi a mesma pessoa a matar Túlio e
Vicente, mas essa pessoa não é você.
— Quem é?
— Ainda não sei. — Me afasto brevemente e ela dá um sorriso
discreto. — É muita coincidência que dois homens com quem você
se relacionou tenham se suicidado, mas não significa que você é
uma assassina.
— Mas eu sou. Wellerson está morto.
— Foi legítima defesa. Se você não acredita em si mesma,
acredite na necropsia.
Talita se levanta e vai até a prateleira, procurando por algo entre
as lombadas e, ao encontrar, volta até mim com a pasta em mãos.
— Você e Guilherme tem cópia de tudo? — pergunto ao segurar o
arquivo, trêmula.
— Só do que me interessa. — Sorri. — Deve ser de família.
Ela se senta ao meu lado e abro a primeira página, não há muitas,
apenas uma dissertação detalhada do corpo e uma foto de
Wellerson jogado no chão da sala.
O relatório diz exatamente o que Talita já me disse, mesmo assim,
não consigo esquecer do que Lourdes me falou dias atrás.
Você não tinha motivo para carregar aquela seringa.
Talvez eu seja mais traiçoeira do que imaginava.
Capítulo 14
17 de janeiro de 2020.
— Obrigada por ter vindo em um dia tão delicado pra senhora,
doutora — diz Jorge enquanto segura o porta-malas do carro para
que eu guarde minhas coisas.
— Não se preocupe. Foi bom me distrair um pouco.
Ele me entrega o envelope com o valor da consulta da Rubi, sua
égua premiada.
Um filhote desse animal vale mais do que ganho em um ano.
Agradeço e dou partida, seguindo viagem para Santo Oiti.
Jorge acena ao me ver sair pela estrada de terra. Foi sorte estar
perto da sua fazenda e andar sempre equipada ou meu tempo de
locomoção poderia resultar na morte do animal.
Ligo o rádio e respiro profundamente, sentindo o cheiro de
fazenda tomar conta do carro recém lavado. De certa forma, esse
odor de feno com comida de cavalo, me acalma.
Mas já estou calma, passei o dia à espera de um ataque de
nervos que não veio. Minha mãe morreu e estou calma.
Parece um dia normal de trabalho, dirigindo para interiores e
cuidando de éguas doentes. De jeito nenhum me sinto prestes a
pisar no purgatório.
Olho para a rua e tento convencer a mim mesma de que é só um
bate e volta. Amanhã cedo estarei em casa, longe de tudo de ruim
que Santo Oiti traz.
Piso no acelerador e começo a batucar os dedos no volante, ao
ritmo da música no rádio.
「• • •」
Trinta minutos depois que cruzo a enorme placa de “Bem-Vindo a
Santo Oiti”, meu celular apita descontroladamente com as
notificações.
Espio pelo canto do olho as mensagens que chegam. Gente que
nem me lembro de ter dado meu número deseja seus pêsames,
lamentando a morte prematura da minha mãe. Eles podem
facilmente ter copiado as mensagens uns dos outros, pois todas
parecem iguais.
“Se você precisar de qualquer coisa estou por aqui”
“Ela está em um lugar melhor”
“Que Deus te conforte. A dor vai passar com o tempo”
Mentira de merda. Ninguém dá a mínima para o que eu preciso,
só querem se sentir melhores consigo mesmos.
Uma ligação sobrepõe as mensagens. Coloco na viva voz do
carro.
— Você já está chegando? — pergunta Guilherme do outro lado
da linha.
— Uma hora, mais ou menos.
— O que você quer comer? Pensei em fazer um pão recheado
com brócolis e espinafre, mas posso fazer almoço se você ainda
não tiver almoçado.
— O pão está bom.
— Ok. Como ficou a égua do seu Jorge?
— Vai sobreviver. Escuta, provavelmente vou perder o sinal de
novo. Depois te ligo. Beijos.
— Dirija com cuidado.
Coloco o celular no modo avião e aumento o volume do rádio.
Julia gostaria que eu lembrasse os convidados de algum
momento em que fora feliz, mas não consigo me lembrar de
nenhum.
Seus últimos anos foram longe de mim e, na minha adolescência,
estávamos sempre em brigas intermináveis por conta do
comportamento do seu marido.
Como eu falaria com aquelas pessoas que lembravam da minha
mãe como alguém sorridente, se todas as memórias que tenho dela
era à beira das lágrimas, implorando para que Wellerson não a
deixasse?
Se eu não fizer um discurso, é capaz da minha mãe ressuscitar
para reclamar. Deve ter algo que eu possa falar, ela não foi sempre
tão triste.
É impossível que seja tudo ruim.
Guilherme está na portaria do prédio quando estaciono. Desço do
carro com um sorriso e corro para seus braços que me envolvem e
me erguem para cima.
— Gui! — reclamo, apesar de ter um sorriso estampado no rosto.
— Estou com saudade.
Fico içada por seus braços e deixo que me aperte com força
enquanto isso sinto minhas barreiras caírem e me deixarem
vulnerável.
— Vamos. — Sou colocada no chão. — Deixa eu levar sua mala.
Há apenas uma mala azul de rodinhas e minha mochila. Deixo o
macacão e os equipamentos de veterinária na minha maleta dentro
do porta-malas e subo com meu amigo para seu apartamento.
Sou surpreendida por uma cama arrumada e uma escrivaninha,
não é muita coisa, mas só o fato de ter sido preparado para mim,
mesmo que para passar uma noite, me deixa comovida. Coloco a
mochila em cima da mesa e sorrio para meu amigo.
— Muito obrigada.
— Vou deixar você tomar banho, o pão já está pronto.
Guilherme sai do quarto e olho em volta.
Mesmo que eu tenha prometido nunca mais pisar nesse município
esquecido pela humanidade, onde apenas o sol faz questão de
marcar presença, o destino deu um jeito de me jogar no meu inferno
pessoal novamente.
「• • •」
Assim que descemos do carro somos parados por membros da
Igreja Coração de Cristo. Os fiéis me abraçam e desejam seus
pêsames de forma demorada e exagerada.
Talvez a errada seja eu, que não vejo conforto algum em pessoas
desconhecidas me dizendo “que Deus te console”. Wellerson
sempre me disse que eu não tinha coração, talvez estivesse certo
no fim das contas.
Caminho de braços dados com Guilherme para a sala onde minha
mãe é velada. Me sinto marchando contra o exército inimigo — que
é muito mais armado e volumoso que o meu. Há pessoas rondando
a minúscula sala o tempo todo, como moscas que vão e vem em
cima da comida podre.
Péssima comparação.
Ergo meu queixo na tentativa de passar confiança através da
postura, pelo jeito que me olham e cochicham sei que não sou bem-
vinda.
— Como vai, Eva? — Sinto o pão recheado revirar no meu
estômago. Há lágrimas de crocodilo caindo de seus olhos. — É
muito triste, minha filha.
Wellerson dá um passo em minha direção na intenção de me
abraçar, mas recuo e ele estagna onde está.
Quero retrucar e dizer que não sou sua filha, que é melhor ser
filha de ninguém ao ser filha dele, mas minha língua parece
paralisada.
— Guilherme. — Meu padrasto ergue a mão na direção do meu
amigo e Guilherme aceita, apesar do olhar de desgosto.
O pastor da igreja está ao lado do caixão com a mão sobre o
rosto do cadáver. Não consigo vê-la de onde estou e tenho medo de
me aproximar. Já faz cinco anos desde a última vez que lhe vi, pois
Wellerson não a permitia visitar a capital e jurei nunca mais voltar à
Santo Oiti.
Será que Julia mudou muito desde a nossa última ligação? E se
mudou, eu a reconheceria se visse na rua? É minha mãe, mas
parece tão distante...
Procuro por Vicente e Lia no salão, já que reconheço seus pais no
canto da sala cochichando um com o outro, mas não os vejo em
lugar algum. Não sei se me sinto aliviada ou desrespeitada.
— Paz do Senhor, Eva. — O pastor me cumprimenta.
O encaro impassível enquanto tento descobrir se está sendo
falso, porém, além da pena em seu olhar — o que me irrita — não
há nada. O único sentimento que o pastor Vinicius transpassa é
pena por quem me tornei.
— Olá, Pastor Vinicius. Como vai? — digo ao repuxar os lábios
em um sorriso educado e falso. Trago Guilherme para mais perto. —
Por favor, me deixe apresentá-los. Esse é meu noivo, Guilherme.
Guilherme, esse é o pastor Vinicius do qual te falei.
Sou alvo do olhar confuso do meu amigo por curtos segundos, por
sorte Guilherme pensa rápido e logo se recompõe e aperta a mão
do pastor.
— É um prazer.
— Não sabia que estava noiva, sua mãe não falou nada. — Seu
olhar muda rapidamente, como se eu merecesse mais respeito por
estar noiva.
— Era para ser uma surpresa — lamento. — Infelizmente ela se
foi muito cedo.
— Entendi. Felicidade aos dois, vou deixá-los a sós. — Sua mão
toca a minha e seguro o impulso de me afastar. — Meus pêsames.
O pastor dá as costas e Guilherme me olha em repreensão, o
ignoro e seguro sua mão me aproximando do caixão.
O cadáver da minha mãe está com uma maquiagem sutil que não
esconde em nada sua pele acinzentada. Nem de longe esse rosto
inchado parece com o da mulher que conheci em vida, esse defunto
está maltratado, sofreu, não foi uma morte fácil com overdose de
calmantes.
Ergo a mão e percebo que não tremo. Estou acostumada aos
tremores em momentos de emoção forte, mas agora estou neutra,
completamente equilibrada. Nem sequer sinto vontade de chorar.
Sua pele está endurecida e os lábios, apesar de pintados, estão
pálidos. Parece uma daquelas bonecas que imitam bebês humanos.
Não é natural, mas também não parece completamente sintética.
Desço meus dedos por seus braços até enroscar sua mão na
minha. Está gelada e as flores que lhe cobrem não são suas
favoritas.
Fico parada, esperando que abra os olhos e venha para cima de
mim, como em um filme de terror, ou então que seus cílios pisquem
por um segundo, mas ela continua estática como uma boneca
mortificada.
É sua culpa.
Dou um passo para trás e solto a mão da minha mãe.
— O que você disse? — pergunto para Guilherme ao que ele
franze o cenho.
— Nada, algum problema?
Balanço a cabeça e olho para o corpo outra vez.
É sua culpa. A voz é aguda, sútil e sibila ao meu redor como uma
cobra.
Olho em volta a procura de onde vem a voz, o restante das
pessoas parece imersa no próprio luto e sofrimento, algumas
chegam a erguer os olhos para mim, mas outras nem isso.
Guilherme toca a minha mão e volto minha atenção a ele.
Como chegamos a esse ponto?
— O culto vai começar — anuncia o pastor.
Seguimos o fluxo de pessoas até a capela local enquanto tento
me convencer de que não estou louca e a voz que escutei é real.
Pode ter sido alguém falando ao telefone ou cochichando, não
necessariamente foi comigo que falaram. É, pode ter sido isso,
penso.
Que piada, um monte de evangélicos fervorosos e extremistas
sendo obrigados a fazer o culto em uma capela católica.
Viro o rosto abruptamente achando que é a mulher ao meu lado
quem fala isso, mas ela está orando de olho e boca fechada. Franzo
o cenho e cutuco Guilherme.
— Você escutou isso? — pergunto.
— O que?
— Alguém disse que é uma piada esse monte de evangélicos
extremistas sendo obrigados a fazer o culto em uma capela católica.
— Guilherme ri. — Você escutou?
— Não, mas você tem razão.
Torço o rosto em curiosidade e travo o maxilar. Não é possível
que apenas eu esteja escutando.
Na capela, uma foto enorme da minha mãe está presa a um tripé
ao lado do pastor. Ela toma minha atenção durante todo o tempo da
pregação.
Julia sorri com todos os dentes, um sorriso meio exagerado e
forçado, uma franja rala cai em sua testa e esconde os cabelos que
raspou em uma crise. Passo tanto tempo encarando que tenho a
impressão de que me encara de volta e eventualmente pisca para
mim.
— Mais alguém? — pergunta o pastor enquanto olha para todos.
Os discursos acabaram sem que eu percebesse, os olhos verdes
da minha mãe me hipnotizaram por todo esse tempo.
Me levanto, o som dos meus saltos ecoa por todo o ambiente e
sinto os olhares sobre mim ao subir no palco.
— Boa noite. — Minha voz estoura no microfone, me afasto com o
susto e tento outra vez. — Passei o dia tentando escolher uma
memória feliz da minha mãe para subir aqui e contar a vocês, mas a
verdade é que não tenho muitas. Não me entendam mal, Julia era
muito feliz e sorridente antes de se casar, mas essas memórias
foram sendo enterradas pelos gritos, desespero e abuso físico e
psicológico que o casamento trouxe. — O burburinho se inicia, como
imaginei. — Acho que o melhor discurso que posso fazer à minha
mãe hoje é falar a verdade: Ela não era feliz. Não podia usar as
roupas que queria, o batom vermelho que tanto amava, perdeu as
amigas, o trabalho e os hobbies. Wellerson tirou isso dela e vocês
deixaram. — Vejo o pastor Vinicius tentar acalmar meu padrasto e
um outro homem vindo em minha direção. — Wellerson não foi o
salvador da Julia, foi o carcereiro. Desafio vocês a olharem para as
mulheres da Igreja Coração de Cristo e se perguntarem: elas são
livres? A resposta provavelmente será não. — O homem sobe ao
palco e Guilherme se apressa em impedi-lo de chegar até mim. — E
se estamos aqui hoje é porque essa igreja de merda não sabe ver
uma mulher livre.
— Mentirosa! — vocifera Wellerson, mas logo recua na tentativa
de manter a postura. — Sua mãe era feliz e se não acredita em
mim, venha até a minha casa. Julia deixou uma carta para você
dizendo os motivos que a fizeram cometer esse pecado, eu não
estou entre eles, mas você está!
Fico parada no altar, Guilherme segura meu braço e olha
fixamente para mim, todos estão boquiabertos e silenciosos.
— Não fui eu quem bati, gritei, humilhei ela — digo. — É
impossível que ela me culpe por algo que é sua culpa.
— Estamos cansados das suas mentiras, Eva. Ninguém aqui
acredita em você — sibila. — Venha e veja com seus próprios olhos
as mentiras que contou a si mesma.
「• • •」
— Você tem certeza de que quer fazer isso? — Guilherme me
pergunta uma última vez.
Estamos parados em frente ao prédio da minha mãe. Daqui,
consigo ver a luz da sala do segundo andar acesa.
— Se ao menos uma vírgula do que ele falou é verdade, eu
preciso saber — digo. — Vai ser rápido. Vou subir, pegar o que quer
que ela tenha deixado e nós vamos embora — repito meu plano em
voz alta na esperança de que me dê coragem.
— Tem certeza de que não quer que eu vá com você?
— É melhor não, qualquer coisa eu grito. — Repuxo os lábios em
um sorriso forçado. — Ele não vai ter coragem de fazer nada.
Guilherme não parece convencido, mas assente e abro a porta do
carro.
— Você pode abrir o porta-malas? Deixei minha bolsa lá.
Caminho até a traseira do carro e pego minha bolsa no bagageiro,
meus olhos recaem sobre a minha maleta médica.
Seria bom ter algo para se prevenir, não?
Engulo em seco.
Não é como se você fosse matá-lo. É só precaução.
Abro a maleta e afasto as gazes e remédios até encontrar o que
quero: uma seringa de aplicação rápida, o calmante já está dentro,
basta aplicar. Jogo dentro da bolsa e fecho a maleta e o porta-
malas.
É uma precaução, mas você sabe que ele merece.
Quem é você?
Você sabe quem eu sou.
Olho para Guilherme uma última vez, sentindo o peso da seringa
na bolsa.
Entro no prédio e subo as escadas até o segundo andar.
Wellerson está com a porta aberta, bato duas vezes na madeira
apenas para avisar que cheguei. Ele aparece, saindo da cozinha.
Sinto minhas mãos tremerem e as seguro, então, ergo o queixo e
dou um passo para dentro da casa que costumava ser a minha.
Minha respiração fica pesada, inspiro e expiro enquanto conto
mentalmente até cem para não parecer nervosa.
— Entre, Eva. Fiz café, aceita? — Wellerson toca meu cotovelo e
me afasta da porta, a fechando em seguida. — Tem muitos
fofoqueiros nesse prédio.
Meu corpo estremece por completo e me afasto em um impulso.
Seu toque é como ativar todos os meus gatilhos ao mesmo tempo,
de repente quero chorar, correr e me esconder como uma criança
assustada.
É isso que somos.
O medo me congela e tira o folego, não tenho certeza se sou
capaz de continuar.
— Não, obrigada. — Minha boca está seca. — Só vim pegar o
que minha mãe deixou.
Wellerson se apoia na mesa e me encara com frustração.
— Os anos aqui foram difíceis depois que você foi embora. —
Solto o ar de forma nervosa ao perceber que vai iniciar um
monólogo e troco o peso de uma perna para outra.
— Eu sei. Onde está? O que ela deixou?
— Sua mãe sofreu muito com a sua ida. Você deveria estar aqui
esse tempo todo, cuidando dela.
— Eu fiz o que pude para cuidar dela.
Ele dá uma risada de escárnio e sinto o ódio encher meu sangue.
— Essa pose de homem de família pode enganar a sua igreja,
mas não me engana. Eu sei toda a maldade que você já cometeu,
com ela e comigo.
— Isso é uma acusação muito séria, Eva — diz. — Você está
sendo injusta. Fui eu quem fiquei com sua mãe durante esse tempo
todo enquanto você a abandonou.
— Eu a abandonei? — Levanto as sobrancelhas. — Você fez da
minha vida um inferno, como que depois de tudo eu poderia ficar e
encarar o meu abusador todos os dias?!
— Era para você ter ficado e sofrido com a gente! Sua mãe não
me deu um minuto de paz todos esses anos!
— Você queria um minuto de paz? — Ergo minha voz, assim
como ele fez com a dele. — Depois de tudo que você fez? Acha que
eu esqueci, por acaso?! Você me exorcizou, me fez achar que eu
era louca durante anos, tirou minha mãe de mim e me humilhou, seu
manipulador de merda! Acha que vai para o céu depois de tudo que
fez? — Cuspo as palavras em sua direção. — Sinto te informar que
não existe Deus no mundo que vá te aceitar no paraíso! Daqui é
direto para o inferno, Wellerson.
Ele me desfere um tapa com tanta força que sou jogada contra o
chão e meu rosto rasga na quina do rack da televisão. Wellerson
sobrepõe meu corpo e me contorço na tentativa de fugir de seus
braços.
— Eu fui bom demais com você, sua garota mimada!
— Me larga! — grito e lhe dou um cruzado de direita no rosto.
Tento correr para a cozinha, mas Wellerson me puxa pelos
cabelos e joga meu corpo contra o chão outra vez, recebo um chute
na costela e fico sem ar, tossindo compulsivamente.
Uso minhas unhas para tentar afastá-lo, ele segura meus pulsos
como se eu fosse um animal a ser contido, levo um soco, minha
visão fica turva. Não consigo mais vê-lo.
— Você vai aprender a respeitar os outros agora, sua puta.
A seringa.
Minha bolsa está jogada no chão a poucos centímetros dos meus
dedos, se abriu durante a briga e, agora, a ponta da seringa está
para fora.
— Parece que uma vez não foi o bastante para você aprender,
machuda. Vou te ensinar como que se trata uma mulher como
você.
Olho para cima no momento em que ele sobe a minha blusa e
rasga o meu seio com as unhas sujas, grito de dor e tento fugir de
suas mãos. Ele solta meu braço para abrir a braguilha da calça e o
empurro, usando o impulso para alcançar a seringa.
No segundo seguinte a agulha está cravada no seu peito e injeto
todo o calmante em uma única dose.
Um grito agudo e alto toma conta do prédio, pode ter sido ele ou
eu. Nunca saberei.
Wellerson cai sobre mim como um boneco, empurro seu peso e
me levanto. Tremo de forma anormal, todo o meu corpo se contorce
a ponto de achar que tenho uma convulsão consciente — nem
sequer sei se isso é possível.
Guilherme aparece, grita meu nome enquanto segura as minhas
mãos machucadas e pergunta porque há sangue na minha roupa. É
meu sangue, meu seio esquerdo está sangrando, mas não consigo
lhe dizer isso.
Lourdes vem logo depois, mais lenta e racional. Fico sentada no
sofá, olhando o defunto à minha frente enquanto os escuto discutir
sobre a situação.
Finalmente. A voz infantil diz dentro da minha cabeça. Agora
podemos viver em paz.
Agora podemos viver em paz, concordo em silêncio.
Guilherme some, depois reaparece carregando minha maleta
médica. Com a ajuda de Lourdes eles espalham o conteúdo pela
sala e simulam uma briga diferente da que aconteceu.
Minha vizinha vem até mim e pega meu rosto, sacudindo-me.
— Se alguém perguntar, diga que você consultou o Gafiel antes
de vir aqui. Por isso estava com a maleta. Entendeu? — Não
consigo responder e Lourdes me dá um tapa forte o suficiente para
que eu acorde, mas não para me machucar. — Diga que entendeu,
Eva!
Balanço a cabeça para cima e para baixo, concordando.
— Você vai ligar para a ambulância e dizer o que aconteceu, mas
não fale com a polícia. — Lourdes coloca o telefone na palma da
minha mão. — Não fale nada quando eles chegarem.
— Eles vão te levar presa e te interrogar, mas se lembre do que
sempre te ensinei: não abra a boca para investigadores. —
Guilherme segura meu rosto e me encara profundamente. — Vai dar
tudo certo, vou ligar para a sua advogada e vamos alegar
insanidade.
Olho para o número discado e aperto o botão de ligar, ouço
alguém falar “alô” do outro lado da linha.
— Alô? — digo debilmente.
— Meu nome é Helena, qual a emergência?
— Não sei, eu... — Minha voz sai fraca e perdida.
De longe, Lourdes me incentiva a falar.
— Senhora, por favor me explique o que aconteceu de modo claro
e objetivo.
— Acabei de matar o meu padrasto.
Capítulo 19
Julho de 2026.
Exalo um cheiro fétido e apodrecido, tenho certeza de que
Guilherme finge não sentir, pois seu olfato sempre foi muito
aguçado. Ele segura minha mão enquanto dirige para nossa casa,
seu toque mais parece o de um espírito do que de alguém de carne
e osso.
Encaro meu celular desligado dentro da sacola zip lock.
Não gosto de como as coisas ficaram com Talita — ela nem
mesmo foi me buscar na delegacia —, mas não tenho forças para
consertar isso agora.
O percurso de dez minutos parece durar dez horas. Encosto
minha testa no vidro e fecho os olhos, preciso urgentemente dormir
e tomar um banho, não me sinto humana desse jeito, apenas um
receptáculo para uma alienígena qualquer.
Quem sabe por isso eu me sinta tão incompreendida e sem rumo.
É uma justificativa plausível para os acontecimentos absurdos que
se desenrolaram nos últimos dias.
Ou você enlouqueceu de vez.
Pelo amor de Deus, me dê um minuto de descanso. Penso
esperando que a voz retruque, mas ela fica em silêncio.
— Precisa de alguma coisa? — pergunta Guilherme ao abrir a
porta do apartamento.
— Não.
Me arrasto pela sala como uma alma penada, jogo as roupas
sujas pelo chão, disposta a queimá-las mais tarde, e entro no
banheiro.
Quero chorar, gritar, bater, mas não tenho forças. Meu corpo e
mente estão exaustos e funcionam no automático, sem sentimento
algum envolvido. Estou apenas sobrevivendo apaticamente, à
espera de um milagre que resolva magicamente meus problemas.
Encharco o travesseiro e os lençóis ao me deitar ainda molhada.
Minha mente implora para que eu desligue e durma um pouco,
porém a exaustão me impede de fechar os olhos e relaxar.
Olho para a parede sem sentir nada, pensar em nada, ou falar
nada. Sou como uma planta.
Provavelmente uma erva daninha que acaba com tudo que há de
bom à sua volta ou, então, o fruto proibido do Jardim do Éden que
manda as criações perfeitas de Deus embora do paraíso.
De qualquer forma, sou a pior coisa que possa imaginar.
Estou quase caindo no sono quando me sobressalto assustada
com o nada e volto a ficar atenta por mais alguns segundos.
Começo a cogitar pedir um calmante para Guilherme, entretanto,
não tenho coragem de me levantar ou erguer a voz, sendo assim,
fico no limbo, pestanejando e brigando com meu cansaço.
「• • •」
Meu sono não é revigorante. Pelo contrário, acordo mais cansada
do que antes.
Peso na balança se devo tentar voltar a dormir ou me levantar e
comer alguma coisa. Meu estômago nem ronca mais, já desistiu,
agora apenas doí como se os outros órgãos estivessem o
esmagando.
A fome acaba que me vence. Me ergo com dificuldade e bocejo.
Chuto as roupas sujas no caminho para o guarda-roupa e me
visto com um pijama surrado. Assim que a peça passa pela minha
cabeça me lembro que preciso falar com Alex e Talita.
O telefone está jogado pela cama, o ligo e enquanto espero iniciar
jogo novamente nos lençóis.
O silêncio do apartamento me deixa incomodada. É o mesmo tipo
de silêncio que tinha minha casa antes de uma grande briga, na
época em que ainda morava com Julia e Wellerson.
Me locomovo na ponta dos pés, engolindo saliva e sentindo os
machucados da minha boca seca. Preciso de água.
Guilherme está sentado no sofá folheando um arquivo, ele ergue
os olhos para mim e paro de andar para encarar sua figura séria.
— Dormiu bem?
Balanço a cabeça em negação e tomo coragem de ir até a
cozinha.
— Fiz lasanha, está no fogão. É só esquentar.
Confiro a travessa e ligo o forno.
— Alex me ligou. — Ele larga os arquivos e vem até mim. — Você
precisa terminar com ele.
— O que? — Minha cabeça lateja ao me virar rápido demais.
Fecho os olhos e me seguro na bancada.
— Ele só trouxe problemas desde que apareceu.
— Não. — Minha voz sai fraca. — Quem trouxe problema fui eu.
O centro disso tudo sou eu. Alex foi uma das poucas pessoas que
me trouxe paz nas últimas semanas.
— Você mal o conhece.
— Conheço o bastante. — Encho um copo de água e viro sobre
meus lábios.
Aquela sensação boa de passar muito tempo desidratada e, de
repente, tomar uma grande quantidade de água, invade minha boca.
— Talita concorda comigo.
Franzo o cenho e solto o ar, indignada.
— E o que ela tem a ver com isso?
— Eu sei sobre vocês, Eva. — Ele se apoia na bancada e arqueio
levemente as sobrancelhas. — Esperei vocês me contarem por
anos, mas você foi embora, ela ficou arrasada, e eu não quis tocar
no assunto.
— De qualquer forma, isso não importa. Nenhum de vocês
conhece o Alex como eu. — Meus olhos se fecham e demoram a
abrir novamente. — Ele é...
— Ele é o que você quer que ele seja. — Guilherme me
interrompe. — Você não percebeu que ele se molda exatamente ao
que você precisa no momento? Ninguém é assim, Eva.
— Eu não tenho forças para discutir isso agora.
Ele assente e saio cambaleando para o quarto.
Meu celular acende e apaga com a chegada de diversas
mensagens. O pego, diminuindo o brilho e lendo as notificações,
Alex me ligou milhões de vezes e a caixa de mensagem conta mais
de cem. O número continua subindo à medida que a internet
acompanha seu desespero.
Só há uma mensagem da Talita. Uma frase curta e direta.
Me desculpa.
Um frio sobe pela minha espinha pressentindo que algo está
errado. Talita nunca foi o tipo de poucas palavras, principalmente
para se desculpar. Sua impessoalidade me deixa alarmada e me
sinto desperta no mesmo segundo.
Será que a magoei ao ponto que não liga mais para mim? Que
não se preocupa em mandar seus longos textos cobertos de
insegurança e paixão, por que não me ama mais?
Meu coração aperta e desbloqueio o celular, digito seu número e
escuto os bips até que cai na caixa postal. Tento novamente e
escuto a mesma coisa.
Chegamos ao ponto de ignorar as ligações uma da outra. Jamais
fizemos isso, nem quando fui embora.
Assim como a Eva original, envenenei quem eu amo.
Caio sobre a cama e coloco o rosto entre as mãos à espera de
que meus olhos se encham de água, mas estou seca. Nem meu
coração bate mais rápido. Meu corpo simplesmente não acompanha
meu sofrimento psíquico.
Guilherme entra e me olha desconfiado.
— Quando você falou com sua irmã pela última vez?
— No dia que você foi presa. — Ele se apoia no batente da porta.
— Ela falou que tinha descoberto algo que podia ajudar você, mas
não me ligou mais. Deve estar atolada com trabalho.
— Você não ligou?
— Não. Você sabe que às vezes a Talita some. — Guilherme me
olha preocupado. — Qual o problema?
— Nada.
— Eva, é a minha irmã. Fala comigo.
Engulo em seco. O cheiro de lasanha se propaga pelo ar. Meu
estômago ronca pela primeira vez em horas ao reconhecer o aroma.
— Nós brigamos semana passada. — Lhe explico de forma
supérflua e me levanto para ir à cozinha. Guilherme vem no meu
encalço. — Ela não me atende.
— Óbvio que não. Você escolheu outra pessoa no lugar dela, uma
segunda vez. Eu também estaria te ignorando se fosse comigo.
— Eu não escolhi outra pessoa no lugar dela. Eu me mudei. Eu
me escolhi.
— E eu não lhe culpo, mas você não imagina o que Talita passou.
— Guilherme coloca um prato na mesa e se senta à minha frente. —
Ela nunca me falou qual era o problema, mas passou muito tempo
em um lugar bem obscuro. Não sorria mais, não se alimentava.
Mamãe começou a achar que ela estava precisando dos remédios
para a depressão outra vez.
Meu peito dói ao imaginar Talita chorando pelos cantos da sua
casa, sozinha, bebendo vinho e pensando no que vivemos.
Provavelmente não foi assim que as coisas se desenrolaram, mas
minha imaginação fértil me leva até a sala do seu apartamento
gótico e imagina todos os detalhes.
— Você pode ligar para ela? Só para ver se ela está bem? —
pergunto.
Guilherme não confirma, saca o celular do bolso e no segundo
seguinte está com ele no ouvido. Seus olhos estão baixos, parece
exausto, não o vejo tão cansado e preocupado há muito tempo.
— Caixa postal.
Olho para a lasanha, meu estômago implora que eu coma, mas
não vou conseguir deglutir.
— Talvez esteja no trabalho — completa. — Os horários dela são
uma loucura.
Balanço a cabeça e caminho até o quarto em passos curtos e
apressados, o máximo que consigo com minha energia atual. Pego
o celular jogado e procuro o número do IML no Google. Volto para a
cozinha com o celular na viva voz.
— Instituto Médico Legal de Santo Oiti, no que posso ajudar?
— Eu sou noiva da Doutora Talita Lima. Não estou conseguindo
falar com ela, você sabe me dizer se ela está trabalhando hoje?
— Nós não podemos conceder informações sobre nossos
funcionários, senhora.
— Por favor, é muito importante. O irmão dela está no hospital,
preciso falar com ela urgentemente.
Escuto a mulher inspirar profundamente. Olho para Guilherme
que me encara de braços cruzados e uma sobrancelha arqueada.
— Um momento, por favor.
A linha é mutada. Em silêncio, peço para o universo para que me
digam o que eu quero, pois começo a pensar no pior.
Não imaginei que meu término com Talita tivesse sido tão ruim
para ela. Foi ruim para mim, principalmente por estar sozinha em
outra cidade, mas se Guilherme estava certo sobre o passado, ela
poderia estar mal novamente. Precisaria de alguém do seu lado.
Além disso, no fundo da minha mente, uma parte que eu desejo
muito ignorar me lembra do que Talita me disse dias atrás: “Acho
que ele vai matar outra vez, só não sabemos quando.”
— Ela está escalada para trabalhar hoje, mas não bateu ponto.
Ergo o olhar até Guilherme, já não pareço tão paranoica e
desesperada aos seus olhos, vejo até que me dá certa razão agora.
— Obrigada. — Desligo e no mesmo momento Alex me liga.
Encaro os botões de atender e recusar a chamada. Ignoro os dois
e deixo o telefone tocar até que caia na caixa postal.
Guilherme usou esse tempo para pegar a chave do carro.
— Vou com você.
— Ela não vai querer ver você, Eva. — Ele me olha exausto,
parece mais velho de repente.
— Não ligo, se ela disser que não me quer lá volto na mesma
hora, só preciso vê-la.
Seus ombros caem cansados e ele assente.
— Você deveria ter a escolhido. Ela ama você muito mais do que
esse Alex ama.
— A vida não é preta e branca, Gui. — Comprimo os lábios. — Às
vezes, nem a gente entende o que está fazendo.
E, às vezes, cometemos o mesmo erro duas vezes.
「• • •」
Guilherme dá um chute lateral logo abaixo da maçaneta da porta.
A fechadura cede e abre uma fresta para nós. Nos últimos
minutos a adrenalina transformou minha apatia em ansiedade.
— Talita?! — Guilherme grita.
— Ela não atendeu a campainha, você acha mesmo que vai
responder? — Minha cabeça está pesada e o sangue zumbe no
meu ouvido. Não sei de onde meu corpo tirou energia para tanto
nervosismo, mas sinto que vou morrer de um ataque cardíaco a
qualquer momento.
Corro até o quarto com Guilherme no meu encalço, escancaro a
porta e olho para dentro. Talita não está lá e a cama está organizada
como se ninguém dormisse nela há dias.
Guilherme tira o celular do bolso com as mãos trêmulas e tenta
ligar para Talita novamente, ele sai do quarto e vai à procura da irmã
nos outros cômodos, mesmo que as possibilidades sejam mínimas.
Inspiro o cheiro específico que só Talita tem, o quarto está
impregnado com ele, não é perfume ou amaciante. Não consigo
comparar com nada que já senti na vida, porque a muito tempo
atrás meu cérebro categorizou essa fragrância como o cheiro dela.
Passo os dedos pelo lençol da cama e tento entender o que
acontece diante dos meus olhos. Há tantas possibilidades e
nenhuma parece fazer sentido.
Para onde Talita iria se pudesse fugir?
Deve ter me falado algum dia, quando estávamos deitadas na
cama e tínhamos conversas pós-sexo, mas não consigo lembrar de
jeito nenhum.
Provavelmente é algum lugar sinistro e obscuro, como aquele
bosque japonês que as pessoas vão se suicidar, ela é obcecada
pela história daquele lugar.
A luz do banheiro está acesa e vaza por debaixo da porta. Meu
coração, que já se acalmava, volta a acelerar.
— Talita? — sussurro na direção da porta e paro minha mão
sobre a maçaneta.
Não sei se tenho coragem de abrir. A possibilidade de algo terrível
ter acontecido me deixa petrificada.
A imagem de Túlio em sua banheira, com os pulsos cortados, tira
meu equilíbrio. Apoio a testa na porta e fecho os olhos, sei que
preciso empurrá-la e acabar logo com essa sensação.
— Vou entrar — aviso para ninguém.
Giro a maçaneta, abro os olhos e dou um passo para dentro.
Esperava encontrá-la no chão, desmaiada, mas o banheiro está
vazio. Talita deve ter esquecido a luz ligada.
Meu corpo continua tensionado. Há algo errado, sinto nos meus
ossos. Me forço a respirar ao perceber que já prendi o ar por tempo
demais.
Observo os móveis e a cortina fechada da banheira, me
impedindo de ver o chuveiro. Dou passos vacilantes até a cortina de
patos pretos, não sei onde conseguiu essa coisa horrorosa, mas
combina tanto com seu estilo que quero chorar.
Meus dedos param sobre o tecido enquanto o coração bate forte
contra o peito. Puxo de uma vez, como faria com um band-aid e
encaro a banheira vazia. Solto o ar, aliviada.
— Puta merda. — Rio da minha paranoia e saio do cômodo,
desligando a luz. — Guilherme?
Espio a sala e continuo pelo corredor. A casa está em completo
silêncio, mas começo a notar um cheiro estranho que não havia
reparado antes. É forte e não parece ter uma fonte específica — é
como se estivesse se propagando pelo ar junto com o ar-
condicionado.
Porque ela deixou o ar-condicionado ligado?
— Guilherme?
Encaro seus pés, jogados para fora do quarto de visitas e corro ao
seu encontro. Imediatamente levo meus dedos ao seu pescoço para
conferir a pulsação, mas não consigo me concentrar.
Não sei se o coração que pulsa é o dele ou o meu. O sangue
zumbe tão alto e forte que me deixa tonta e enjoada.
Minha cabeça gira, provavelmente pela falta de comida, e sou
obrigada a olhar ao redor. Tento pressionar minha têmpora e me
manter alerta, mas algo parece puxar minha mente cada vez mais
para o fundo.
Há uma poça de sangue ao lado da cama. Meu olhar vertiginoso
acompanha a gota que escorre do dedo indicador, vinda de um
pulso cortado verticalmente.
Quanto mais subo meu olhar e reconheço os cabelos pretos
esparramados pelo travesseiro, mais minha mente parece desligar e
meu coração parar.
Me ergo cambaleante e me sento na ponta da cama. Ela parece
em paz. As pálpebras estão fechadas como se estivesse dormindo,
mas a coloração pálida do seu rosto me mostra que não. A vida já
deixou seu corpo a muitas horas.
Toco o rosto de Talita com a ponta dos dedos trêmulos e perco a
consciência, caindo sobre seu corpo mortificado.
Capítulo 20
Levo o cantil aos lábios e sinto a bebida quente descer pela minha
garganta e se apossar do meu estômago vazio.
— Ele disse que é culpado — digo. — Depois do último
julgamento, pelo que me falaram, fez um vídeo de confissão
explicando detalhadamente cada crime que cometeu. Alexia, Túlio,
Vicente, você... A acusação adorou. — Rio. — Todos adoraram.
O silêncio plácido me faz tomar mais um gole.
— Prisão perpétua não parece o bastante. — Apoio minha cabeça
nas costas da mão, me sentindo um pouco zonza. — Morte também
não parece o bastante. Então eu fico me perguntando, o que seria o
bastante?
Ergo meu rosto, encarando a lápide à minha frente.
— Você teria ficado satisfeita? — pergunto, mas é obvio que não
recebo resposta.
Meus ombros tremem antes que as lágrimas venham à tona. Sou
tomada por uma série de soluços que não param por nada.
— Me sinto tão culpada — admito com a voz embargada. — Por
ter ido embora... Por ter tido a necessidade, tão grande, de não me
sentir abandonada que corri atrás dele. Você era muito mais
importante que o Alex e mesmo assim eu te deixei. — Encosto
minha testa na lápide e imagino sua franja colada ao suor do meu
rosto. — Eu sei que a gente tinha prazo de validade... — Uma
lágrima grossa desce pelo meu queixo e cai na terra. — Mas eu
também me apaixonei. Eu amava você, Talita. Queria ter dito isso
antes.
Encaro o cantil enquanto sinto meu coração se desfazer dentro de
mim. A dor misturada a culpa é o coquetel mais forte que já tomei
em toda minha vida, tenho certeza de que passarei os restos dos
meus dias de ressaca, me arrependendo das escolhas que tive no
último ano.
Com uma das mãos, derramo o restante da bebida sobre a terra.
— Deixei o último gole para você — digo. — Sei que preferia
vinho, mas a cachaça estava em promoção e eu precisava de algo
mais forte, de verdade.
Me levanto com dificuldade e caminho em passos vacilantes para
longe da lápide. Só percebo o caminho que estou fazendo na
metade, mas não o interrompo por isso. Sigo meus pés, me
esquivando das flores e terra remexida, até estar em frente à lápide
da minha mãe.
Encaro sua foto fincada na pedra, Julia não está bonita nela, a
pele ficou flácida e o sorriso escancarado demais.
Espero por alguns segundos sentir saudade como sinto de Talita,
mas só há tristeza pelo que passamos, por termos chegado até
aqui.
Ouço passos atrás de mim e, alguns segundos depois, sinto um
braço passando em volta dos meus ombros e me trazendo para
perto.
— Me sinto aliviada por ela estar morta. Sou uma pessoa horrível
por isso? — pergunto.
— Ser policial me ensinou que não existe bom e mau — diz
Guilherme. — Ninguém pode julgar um sentimento seu, quando não
esteve nas mesmas circunstâncias que te levaram a senti-lo.
Apoio a cabeça em seu ombro e recebo um beijo nos fios
bagunçados. Como sempre, Guilherme cheira a lavanda.
— Isis está no carro? — Ele assente. — É melhor irmos, então.
— Espera. — Sua mão no meu ombro me impede o movimento.
— Tenho algo para você.
O encaro com curiosidade enquanto ele inspira e me solta.
Parece tomar coragem para algo.
— Quando a polícia estava vasculhando sua casa para o
julgamento da morte do Wellerson, encontraram um bilhete picotado
em vários pedacinhos. Tentaram reestruturar, mas estava muito
rasurado e de difícil compreensão, então deixaram de lado. — Me
afasto, temendo onde a conversa está nos levando. — O processo
se encerrou e as provas foram arquivadas, mas eu dei um jeito de
ficar com essa.
— Você roubou uma prova confidencial da polícia? — o
interrompo. — Definitivamente você não deveria ser policial.
— Tem policiais que fazem muito pior que isso. Foi com uma boa
intenção. — Arqueio uma sobrancelha. — Enfim, com a ajuda da
Isis encontrei um especialista em reconstrução de provas em São
Paulo. Demorou para ele me devolver, mas valeu a pena.
Guilherme tira uma sacolinha zip lock do bolso e estende para
mim, dentro, há um pedaço de papel. Não consigo acreditar ao tocar
o plástico com meus dedos, tenho medo de abrir a sacola e estragar
o trabalho do reconstrutor, então passo os olhos pelo texto assim
mesmo. Em seguida, ergo o rosto para analisar a feição do meu
amigo, na tentativa de buscar algum sinal de que é brincadeira.
— Ela deixou algo para mim?
— Sim. Ela se despediu.
Tiro o papel de dentro da sacola com as mãos geladas, há
pequenas fissuras, mostrando que a carta foi recortada e colada. O
que leio é uma reprodução digitalizada da versão original. Como não
sinto que vai se desfazer nas minhas mãos, continuo.
A letra da minha mãe toma forma e se estende pela folha.
Minha querida filha,
Quando Deus criou Eva, pôs nela esperança. Esperança de que a
humanidade fosse sua criação perfeita e que aquela mulher fosse a
responsável por continuá-la.
Assim como o criador, pus esperança em você. Esperança de que
você me completaria para todo o sempre, que éramos feitas uma
para a outra.
E éramos.
Após a sua ida, o paraíso fechou as portas para mim. A vida se
tornou insuportável sem a sua presença e, só então, percebi que
havia perdido a minha felicidade, o único motivo pelo qual valia a
pena viver.
Errei ao achar que outro amor pudesse ser maior que o amor de
mãe e, infelizmente, não sou forte como você. Não vejo saída e nem
sei se desejo ver.
Se Deus não puder me perdoar, espero que você possa.
Amo você, minha filha. És meu presente de Deus, minha criação
perfeita, minha Eva.
Dessa vez, não haverá nada entre nós.
Com amor, sua querida mãe, Julia Borges.
As lágrimas escorrem pelo meu rosto e meus olhos recaem sobre
o túmulo de Wellerson, ao lado do da minha mãe.
Sinto que estou terminando essa história exatamente onde
comecei.
Só que agora, nós temos o poder.
Fim
Agradecimentos
Julie Pedrosa
Escritora apaixonada por criminologia, psicologia e aviação. No
tempo livre, é criadora de conteúdo no Instagram.
Maldita Seja Eva é seu livro de estreia.