CURSO: CIÊNCIAS SOCIAIS TURMA: HC324 DISCIPLINA: ATORES, IDENTIDADES E SUJEITOS NAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS DOCENTE: MARCIO DE AGUIAR VASCONCELOS MONETA DISCENTE: VINÍCIUS GANDOLFI DE MORAIS GRR: 20212135
Sujeito, conhecimento e emancipação na contemporaneidade
Entre 2016 e 2018, a peça de teatro paulista “O Evangelho Segundo
Jesus, Rainha do Céu”, estrelado pela atriz Renata Carvalho tomou conta dos meios midiáticos por ser censurada em diversos festivais e manifestações artísticas pelo país. Uma adaptação da obra de Jo Clifford, a montagem apresenta uma versão de Jesus Cristo como uma mulher trans nos dias atuais e toma por base um dos pilares do discurso cristão, a aceitação, para refletir sobre as relações entre arte e sociedade, e sobre o poder das dramaturgias trans no confronto com mecanismos estruturais de exclusão. No entanto, mais do que isso, a polêmica em torno da realização do espetáculo nos revela um emaranhado multifacetado da relação entre sujeito e suas condições pós- modernas de identidade, conhecimento e emancipação na sociologia contemporânea.
Quando Giddens revela uma dialética clássica entre o eu e o outro em
uma rede de relações pessoais que tomou posse da modernidade entre a queda do feudalismo e a ascensão do capitalismo, o autor discute a forma em que o indivíduo perpassa por uma transformação de si mesmo, por meio de uma fuga de caminhos até então predestinados, dos costumes, dos hábitos, para a nova construção do eu, uma identidade livre das amarras tradicionais; bombardeado por várias informações. Essa nova ótica estruturante quebra as visões até então estabelecidas de tempo e espaço por conta do dinamismo acelerado dos novos sistemas socioeconômicos, uma ótica que é apoiada por David Harvey ao descrever a forma de como nossas percepções temporais e espaciais moldam nosso ritmo de existência a esse espectro acelerado.
Os efeitos dessa quebra paradigmática para o sujeito são diversos, desde
um ceticismo geral entre crença e razão até a promulgação de anseios, angústias, crises existenciais e uma nova identidade, permitindo novas possibilidades de conhecimentos de si mesmo. É o que conseguimos observar na polêmica em torno da peça de teatro, onde sua narrativa questionadora, ao traçar uma reinvenção de um personagem mítico e religioso no papel de um corpo estigmatizado e marginalizado, perturba a crença de parcela da população que não compreende a angústia gerada pela atriz e realizadora de ver seu corpo na figura daquele que é conhecido por ser “a imagem e semelhança de todos nós”;
Tal situação pode ser refletida na problemática do multiculturalismo de
Stuart Hall ao se traduzir como o modo da sociedade de se organizar com diferentes grupos culturais. Neste caso em específico, revela-se um Brasil nada apto a lidar com as diferentes orientações sexuais e identidades de gêneros que o compõem. Além disso, a visão de um sujeito pós-moderno de Hall é percebida na maneira em que ele assume diferentes papéis em diferentes situações, fragmentada e descentralizada do próprio sujeito, que no caso apresentado aqui, se trata dos movimentos de luta e visibilidade transsexual.
Segundo Ricardo Antunes, a crise da modernidade e da subsequente pós-
modernidade se atenua, dessa forma, na efemeridade do útil em relação a uma perspectiva da aparência, a estética torna-se cada vez mais imprescindível, e não somente a partir do objeto, mas principalmente a partir do sujeito. Através disso, as formas de conhecimento e de emancipação acabam afetadas também.
Ao propor uma desconstrução da imagem e história de Jesus Cristo e
expô-la amplamente ao cenário nacional, Renata Carvalho apresenta uma desmistificação do que até então era tido como a forma tradicional de apresentar o evangelho cristão para as novas gerações. Raewyn Connell é um dos nomes que enxerga essas novas contravenções como reflexos de um autoconhecimento da sociedade na busca de uma revolução nas teorias sociais. A visão também alcança Foucault ao dizer que a partir de práticas sociais, tomadas como discurso estratégico e polêmico, surgem novos tipos de subjetividade e novos tipos de sujeitos de conhecimento.
Ao tratar da emancipação do indivíduo contemporâneo, indo de Judith
Butler e sua materialidade e fundamentalismo do corpo e do sexo na pós- modernidade até as “imagens de controle” de Patrícia Hill Collins, nota-se um padrão de conflito entre as novas tendências identitárias da atualidade, de luta e imposição, com a capacidade de viver sem ser sugado pelas inseguranças da modernidade. O frágil sistema que não permitiu a subida da Rainha do Céu aos palcos de diversas cidades do país, é o mesmo sistema que fundamenta sua condição de existência como um ser ciente de suas próprias liberdades de construção no papel de uma figura transgressora.
Retornando à Giddens, a reflexividade da modernidade, como parte do
cotidiano do indivíduo, vista aqui como o momento em que as tradições vão sendo deixadas de lado e o ser humano é lançado em um meio em que outras potencialidades podem ser desenvolvidas, revela um sujeito da contemporaneidade extremamente consciente de si, calculista, com autocontrole e capacidades de mudança, mas ainda muito dependente das imposições, vigilância e controles sociais de um Estado que também se diz moderno.
Todos que vivem na modernidade são afetados pelos sistemas abstratos
da especialidade e são transformadores dela mesma; nesse sentido, se uma figura bíblica foi metamorfoseada em uma Rainha do Céu e teve sua condição de existência negada, talvez não exista nem mesmo uma segurança ontológica, como diria Giddens, que permita criar um ambiente de um quase faz-de-conta de confiança naquele social que nos rodeia cotidianamente.