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Quem é a mulher-pássaro dos relevos SumériosŠ

Shirlei Massapust

Compare estas imagens. À esquerda vemos uma peça datada entre 1800 e 1750
a.C., proveniente da Babilônia, capital da Suméria, atual objeto número 2003,0718.1 no
acervo do British Museum1, em Londres (existem outras fotos online). À direita vemos outra
peça datada em meados do século 1 a.C., proveniente da cidade de Larsa, na Suméria,
atual objeto de referência alfanumérica AO 6501 do acervo do Louvre, em Paris.2

Objetos nº 2003.0718.1, do British Museum3, e AO 6501, do Louvre.

Ambas as peças são esculturas de terracota em alto relevo. Ambas representam


uma mulher nua com asas e pés de pássaro, usando a tradicional coroa de deus, feita de
quatro pares de chifres de boi e um disco no topo. O penteado é igual: Duas pequenas
mechas presas à altura do pescoço. O par de braceletes e o colar de contas são idênticos.

1 BURNEY RELIEF / QUEEN OF THE NIGHT. Catálogo virtual do British Museum. Acessado em 18/01/2018. URL:
<http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?assetId=33323001&objectId=1355
376&partId=1>.
2 DEESSE NUE AILEE FIGURANT PROBABLEMENT LA GRANDE DEESSE ISHTAR. Catálogo virtual do Louvre. Acessado
em 18/01/2018. URL: <http://cartelen.louvre.fr/cartelen/visite?srv=car_not_frame&idNotice=24780>.
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O objeto nº 2003.0718.1 do British Museum, em Londres, é um baixo-relevo em terracota, sumério ou ass“rio, datado entre
1800 e 1750 a.C. Antes de sua aquisição pelo museu, isto pertenceu à coleção particular do coronel Norman Corville e ficou
conhecido como Burney Relief.

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Isso significa que o motivo iconográfico sobreviveu sem alterações durante mil e
oitocentos anosŠ! O cenário retratado em ambas as peças representa animais em figuras
simétricas com relação a um elemento central. Isto é o que se costuma chamar de estética
heráldica. Temas heráldicos idênticos ao dos objetos do British Museum (nº 2003.0718.1)
e do Louvre (AO 6501) ocorrem em duas peças do Louvre, provenientes de Lasash e Girsu,
no atual Telloh, apenas substituindo a mulher pelo pássaro Zu, também chamado Imdugud.
Um mesmo jarro de prata, datado de cerca de 2400 a.C., contém uma sequência
em tira alternando duas figurações de strigiforme, onde o pássaro subjuga duplas de leoas
e de cabritos-montês (Capra Pyrenaica).4 A capacidade de tal ave em dominar leões é
reforçada em AO 2354, baixo relevo do in“cio do per“odo dinástico dedicado pelo sacerdote
Dudu, em Girsu. Quanto à mulher pássaro, a peça do British Museum (nº 2003.0718.1) tem
um par de leoas e um par de corujas sobre uma base com escamas que parece ser um
of“dio. A peça do Louvre (AO 6501) contém um par de cabritos montês machos.
Na do British Museum a deusa está segurando um par de artefatos de identificação
controversa. Isto é a mesma coisa que o deus ama – sentado em seu trono de base
escamada – segura diante do Rei Hamurábi numa figura contemporânea que ilustra o topo
da estela do código de leis atualmente exposta no Louvre.5
No Egito, a consciência ( , akh) da múmia se repartia em duas metades para se
locomover: Uma delas era a força vital ( , KA) que dorme e a outra o esp“rito ( , BA) que
usava uma ferramenta abstrata chamada shem para se transformar em homem pássaro
e voar. É sabido que o shem era uma figura transcendental compartilhada pela arte eg“pcia,

4 O acervo do Louvre, Paris, inclui um jarro de prata com base de bronze, com dedicatória de Entemeda, soberano de Lagash
(atual Telloh), ao deus Ningirsu. Este notável exemplo da arte metalúrgica sumeriana foi encontrado intato no s“tio
arqueológico. De acordo com Giovanni Garbini, o artefato, de 34,9 cm de altura, data do segundo per“odo, primeira dinastia,
de 2600 a 2350 a.C. Ou, segundo Michael Roaf, mais especificamente, por volta de 2400 a.C. Na decoração do jarro de
Enteneda há, vis“vel, uma ave (corujaŠ) sobre dois cabritos montês ao lado de outra ave idêntica sobre dois leões, seguida
de mais uma ave sobre dois cabritos montês e, de novo, uma quarta ave sobre dos leões, finalizando a volta na circunferência
por traz do primeiro desenho. Giovanni Garbini opina que as quatro aves são a mesma deidade, possivelmente Ningirsu, a
quem o vaso foi dedicado; porém reconhece que a ave delicadamente gravada neste jarro era um motivo comum no 3 º
milênio e muitas vezes se identificava com o pássaro Imdugud. Já Michael Roaf tem certeza que o vaso representa Indugud.
(ROAF, Michael. Mesopotâmia e o Antigo Médio Oriente. Edições Del Prado, agosto de 1996. Vol. 1. P 81; GARBINI, Giovanni.
Mundo Antigo. Editora Expressão e Cultura, 1966, p 38). Segundo Carmen Gómez Urdáñez, no mesmo per“odo em que
cinzelaram o jarro de Enteneda, em Lagash, fez-se o relevo em metal do templo de Tell el-Obed onde representa-se a ave
Imdugud aos lados da qual se dispõem simetricamente dois cervos em padrão heráldico. (URDÁÑEZ, Carmen Gómez. O
Melhor da Arte do Próximo Oriente. Lisboa, G & Z Edições, p 42).
5 O deus ama também segura o shem diante do Rei da Babilônia Nabu-apla-iddina no Tablet of Shamash (British Library
room 55) encontrado em Sippar, datado do século 9 a.C.

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suméria, etc., composta por dois objetos amarrados. Georges Conteneau opinou que o
shem seria possivelmente um conjunto de c“rculo mágico e varinha de condão.

Em todos os tempos o mágico se cercou de um c“rculo traçado sobre o


solo com sua varinha, ou de um c“rculo feito de farinha. Esse c“rculo pode
ter uma dupla finalidade: constitui uma barreira atrás da qual o exorcista
se coloca ao abrigo dos ataques do demônio, mas também isola aquele
que nele se encerra. Se for de mau caráter, não poderá expandir sua
influência maligna para fora, não poderá igualmente receber socorro do
exterior.
O segundo acessório necessário ao mágico é a varinha mágica,
da qual foi escrito: O c“rculo mágico de Ea está em minha mão, a madeira
do cedro, a arma santa de Ea está em minha mão, o ramo de palmeira do
grande rito está em minha mão .
É de supor, por esse texto, que a varinha era de madeira de cedro,
de tal modo empregada nas cerimônias religiosas. A palma, ou ramo de
palmeira, que se vê Gudéia ostentando no ombro, num fragmento de
baixo-relevo de Berlim, é o s“mbolo do deus Tammuz.
Diante dessa passagem, podemos indagar se dois objetos um
pouco enigmáticos que são postos nas mãos dos deuses em todas as suas
representações, um c“rculo e uma varinha, nitidamente duas coisas
distintas, como se vê às vezes pelas posições respectivas e nos afrescos
por sua cor diferente, não seriam, em certos casos, ao mesmo tempo que
ins“gnias do poder, a varinha e o c“rculo mágico materializadoŠ 6

A hipótese de que isto era um compasso primitivo não se sustenta porque existe
pelo menos outra variante contemporânea (a estela de nº 6034 do Louve) onde ama
segura um shem de haste tão longa que o peso do galho teria prejudicado o equil“brio da
mão de quem tentasse usar para desenhar em argila.
No caso das peças 2003,0718.1 do British Museum e AO 6501 do Louvre, a mulher
pássaro esculpida de pé sobre um par de animais agachados utiliza o shem para subjugar
feras. Ou então ela tem a coragem de um rei vencedor de leões. O exemplar do Louvre,
avariado e erodido, perdeu as mãos. Por isto não sabemos se, nele, a mulher-pássaro
também segurava o c“rculo e o báculo.

6 CONTENEAU, Georges. A Civilização de Assur e Babilônia. Rio de Janeiro, Ferni, 1979, p 202-203.

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Eu francamente não consigo entender a resistência dos psicanalistas em realizar
pesquisa interdisciplinar quando comentam achados arqueológicos. Eles fingem não ver
que as leoas sem juba representadas no desenho da peça do British Museum são de sexo
feminino, ignoram a existência de corujas de sexo masculino na natureza e a historicidade
da crença no deus Nanna (D E .KI, DNANNA) que representava o satélite da Terra naquela
época e lugar. Contra todas as evidências, os psicanalistas insistem em atualizar o quadro
rotulando-o como imposs“vel arquétipo da lua subjugando o arquétipo do macho figurado
por leões solares na luta pelos ideais feministas, figurados por corujas lunares .7
Pior ainda é quando acontece a interpolação de mitos de duas culturas diferentes
na intenção de criar coisa nova. No livro Die große Mutter (1955) o psicólogo Erich Neuman
chamou a mulher pássaro de Lilith.8 Sua opinião foi endossada por ninguém menos que o
historiador Raphael Patai no polêmico The Hebrew Goddess (1967).9
Este último citou um precedente mirabolante para sustentar sua hipótese. Segundo
a interpretação do assiriólogo e professor Samuel Noah Kramer (1897-1990), uma frase
repetida nas linhas 43 e 84 do prólogo de Gilgamesh afirma que Lilith (em substituição de
ki-sikil-lil-la-ke) fez sua casa no tronco da árvore uluppu plantada pela deusa Inanna numa
propriedade particular, em Uruk, na intenção de esperar crescer e fazer mob“lia de madeira.
O desfecho, nas linhas 96 e 97, informa que Lilith (ki-sikil-lil-la-ke) desfez sua casa
quando Inanna chamou o herói Gilgamesh para derrubar a árvore e matar uma serpente
entocada nas ra“zes. O pássaro Anzu (IM-dugud) também recolheu seus filhotes dum ninho
no topo daquela árvore.10 A narrativa finalmente termina quando o herói Gilgamesh cata os
restos de madeira não utilizados por Inanna e faz para si mesmo dois artefatos mágicos
chamados pukku (gi ellag-a-ni- è) e mikkû (gi [E.A]G-ma-ni- è).11
Claro que, infelizmente, não podemos afirmar que a fêmea voadora que fez sua
casa no centro da árvore era mãe dos filhotes do pássaro macho que constru“ seu ninho no
topo e nem tão pouco que ela é a mesma deusa retratada nos relevos de mulher-pássaro.

7 KOLTUV, Barbara Black. O Livro de Lilith. Trad. Rubens Rusche. São Paulo, Cultrix, 1997, p 47 e figura 3; SICUTERI,
Roberto. Lilith: A Lua Negra. Trad. Norma Telles e J. Adolpho S. Gordo. São Paulo, Paz e Terra, 1998, p 42-43.
8 NEUMAN, Erich. The Great Mother: An analysis of the archetype. Trad. Ralph Manheim. Princeton University Press, 1963,
p 272 e pl. 126.
9 PATAI, Raphael. The Hebrew Goddess. Detroit. Wayne State University Press, 1990, p 222 e plate 31.
10 KRAMER, Samuel Noah. Gilgamesh and the uluppu-Tree: A reconstructed Sumerian Text. Chicago, The University of
Chicago Press, 1938, p 5, 8 e 9-10.
11 KRAMER, Samuel Noah. Gilgamesh and the uluppu-Tree: A reconstructed Sumerian Text. Chicago, The University of
Chicago Press, 1938, p 10, linhas 102 e 103.

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O Talmude informa que Lilith é um esp“rito que possui face humana e asas (B. Nid.
24b). Se assumirmos que ela já foi humana e morreu, sua imagem foi talvez inspirada na
transformação do BA em homem pássaro. Mas, se assumirmos que Lilith era uma entidade
abstrata desde o in“cio, então sua descrição poderia derivar de imagens de deusas aladas.
Necessariamente, o inverso não é presum“vel de modo algum. Se ki-sikil-lil-la-ke fosse
Lilith, consequentemente 1) o Talmude e o Livro de Isa“as deveriam existir em edições
iguais às atuais e circular à época, de modo a serem conhecidos pelos artistas sumérios 2)
a expressão a-ri-a-ri-e 12 deveria se referir à localidade destru“da por YHWH em Isa“as 34.13
Muitos dizem que ki-sikil-lil-la-ke é uma coruja porque mora num tronco de árvore.
Hoje em dia a espécie Strix butleri é chamada de Lilith do Deserto (‫ )לילית מדבר‬em
hebraico, talvez para despertar o interesse geral pelo animal em risco de extinção. Todavia,
antes da publicação da b“blia inglesa, King James Version (KJV), onde Lilith é night owl ,
nem a entidade do folclore judaico era identificada como qualquer espécie de coruja.

Conclusão:

É sabido que o sumério lil designa certa espécie de esp“rito. Tem-se discutido que
esta pode ter sido a raiz do nome hebraico Lilith, caso haja entrado do folclore judaico por
interação cultural. O que sabemos sem dúvida é que a personagem representada no
Burney Relief é exatamente a mesma retratada no objeto AO 6501 do Museu do Louvre;
outra placa do antigo per“odo babilônico. Apenas desconhecemos sua identidade, como
desconhecemos certa deusa recostada do acervo do Museu de Berlim, proveniente da
Mesopotâmia. A figura humana tem asas e pés emplumados. Com o braço direito sobre as
ancas, a mulher-pássaro apoia sobre o cotovelo esquerdo.

12 Segundo Samuel Noah Kramer, a expressão a-ri-a-ri-e (l. 97) duplica a palavra a-ri, ru“na , indicando a ida para lugares
desertos , aos quais o grupo de bestas realmente pertencia. (KRAMER, Samuel Noah. Gilgamesh and the uluppu-Tree: A
reconstructed Sumerian Text. Chicago, The University of Chicago Press, 1938, p 62).
13 KRAMER, Samuel Noah. Gilgamesh and the uluppu-Tree: A reconstructed Sumerian Text. Chicago, The University of
Chicago Press, 1938, p 62.

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Porque alguém esculpiria Lilith portando mitra, varinha e báculoŠ Porque ornaria tal
ser com colares e braceletes dignos da realeza? Porque lhe concederia a coragem dum
domador de leõesŠ A resposta é simples: Ela não é Lilith e também não é um esp“rito
qualquer. Pode ser Ninlil nua, ou outra deusa. Pode até ser Ereshkigal, que aparece
entronada entre duas corujas num baixo relevo proveniente de Parthia, Hatra, esculpido no
segundo século da era cristã. Hoje isto pertence ao acervo do Museu de Bagdad.14
Neste relevo espec“fico, a deusa Ereshkigal porta o caduceu ( η ύ ε ον) assimilado
da mitologia grega, ainda que o objeto mágico nada mais seja do que um super shem com
seis c“rculos. Seu esposo Nergal, em primeiro plano, possui um cão com várias cabeças
muito parecido com o Cérbero (Κέ βε ο ) da mitologia grega, confirmando o sincretismo.

14 COLLEDGE M. A. R. The Parthians. London, Thames and Hudson, 1967, p 159, fig. 46.

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