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O Renascimento Italiano e as reformas institucionais do século XIV

Amanda Ramalho Guimarães*

Resumo: Este artigo trata de forma breve a relação entre os movimentos de arte
renascentista italiano, datados do final do século XIV, com a consolidação do antigo regime e
a transformação do significado atribuído à temporalidade da Igreja Católica. Através de uma
perspectiva histórica e artística, pretendo enumerar elementos da estrutura Renascentista,
tecendo uma análise conjuntural da arte em relação à política e à Igreja. É notória a
importância desses elementos na compreensão do todo da Renascença, sejam pelas lentes
compreensivas da política doméstica, ainda em formação, ou da análise do sistema de trocas e
novos fluxos de comunicação que começam a efervescer dentro da península itálica. No
apanhado teórico, temos um panorama que pode ser organizado de uma forma fluida e até
mesmo linear. Temos, de um lado, uma formação tardia de um Estado territorialmente
localizado na Europa, continente mergulhado no antigo regime, já no começo do século XIV;
do outro lado, os núcleos de famílias burguesas espalhadas pela península itálica controlavam,
muitas vezes de forma não institucionalizada, a vida política e econômica, e tinham como
papel secundário reforçar a importância do vínculo do Homem com Deus. Maquiavel, autor-
chave na compreensão desse processo de maturação política, estabelece como um dos pilares
para a queda do Império Romano a falta de um eixo religioso consolidado que permitisse ao
governante um apelo imaterial para a coesão da sociedade romana. No contexto do
Renascimento, a prática política era vista como a arte de governar. Seguindo esse pretexto, o
conteúdo de arte visual presente neste artigo pretende ilustrar, em sua elegância e
racionalidade características, essa passagem por transformações institucionais da Itália, ainda
no final do século XIII. Numa perspectiva sistêmica, levando-se em conta as múltiplas
interações que ocorreram entre as cidades-estados da Itália, o modelo de causalidade da
abordagem construtivista das Relações Internacionais atribui uma dimensão de
compartilhamento valorativo e identitário que permite um vínculo com a ascese do
Renascimento.

___________
*Graduanda em Relações Internacionais

1
Abstract: This article points briefly the relation between the artistic renaissance
movements in Italy, dated by the end of the XIV century, with the consolidation of the ancient
regime and the transformation of the embedded concept of the Catholic’s Church temporality.
Through a historical and artistic perception, I intend to number structural elements of the
Renaissance, making a conjunctural analysis of art in terms of politics and the Church itself. It
is notorious the importance of these elements in the comprehension of the whole Renaissance,
rather being from the comprehensive lens of policies - which were still being built, by the era
of this analysis - or from an analysis of the change system and new fluxes of communication
that started to emerge inside the italic peninsula. Concerning the theoretical aspect, we have a
panorama that could be organized in a fluid and linear form. We have in comparison board, the
late formation of a State located in Europe, a continent drawn on the ancient regime by the
beginning of the XIV century; on the other hand, the familiar bourgeoisie arrangements spread
through the italic peninsula which were charged with the control in a non-institutionalized way
of the public and economic life; as so, they had a secondary role in enforcing the importance of
the interaction between man and God. Machiavelli, a key author in the comprehension of this
policy’s maturation process, stablishes as one of the cornerstones for the fall of the Roman
Empire the lack of a religious axis; which being consolidated would bring to the ruler – or
policy makers – an immaterial appeal for the cohesion of the roman society. In the
Renaissance context, the political practice was seen as an art of ruling. Following this pretext,
the content of the visual art presented on this article intends to illustrate, in its elegance and
rationality, this passage through institutional transformation in Italy, by the end of the XII
century. In a systemic perspective, taking into account the multiple interactions which
occurred between the city-states in Italy, the causality model of the constructivist approach in
International Relations brings a dimension of shared of valuable and identity concepts, which
provides a bond with the Renaissance’s ascesis.

Palavras-chave: Renascimento, antigo regime, Idade Média, comércio, Estado Moderno, arte.

1. Introdução:

Aplicando uma abordagem construtivista da relação de co-constituição da agência


Estatal e estrutura, pretendo analisar a estética Renascentista da Itália, no século XV, como
forma de expressão da formação do Estado italiano sob a égide do antigo regime. É sabido

2
que essa formação da agência, aos moldes da época, só se deu plenamente no século XIX, a
chamada centralização tardia (NETO; TASINAFO, 2011). No entanto, existem elementos da
época descrita capazes de endossar uma análise discursiva do movimento de centralização das
cidade-estado italianas. Através desta análise do discurso, parto do princípio que o
Renascimento enquanto instituição artística apropriou-se de uma narrativa de oposição à
Idade Média para descolar o elo ideacional-político presente no cerne do modelo medieval e
fortalecer a proposta de elucidação através do conhecimento racional.
A construção de uma identidade renascentista se torna importante pelos fins ao quais
essa construção serve e pela funcionalidade do processo em si. A junção visual entre três
grandes instituições que ora estão a efervescer ou em processo de mudança estrutural – a
Igreja, o Estado e o Homem – faz com que a linguagem tenda a se adequar ao panorama que
descreverei a seguir. Dentro do conceito de identidades de Alexander Wendt (2014), o foco
deste artigo estará centrado nas identidades pessoais e na influência destas na ação coletiva e
na institucionalização do modelo artístico-político renascentista no que diz respeito a
centralização da península itálica. Além deste conceito, trataremos da intersubjetividade como
conexão valorativa no assentamento de padrões e identidades nas artes renascentistas e a
política do antigo regime.
A julgar pela mutabilidade da estrutura entre a Idade Média e a Idade Moderna, temos
a arte enquanto um ponto dessa estrutura que reflete simbolicamente o conjunto de novos
códigos sociais que começam a se constituir através das fases da Renascença Italiana – o
Trecentto, Quatrocentto, Cinquecentto1. A oposição artística construída entre o ambiente
“selvagem, cruel, amargo” 2 da Idade Média e a forma humana se sobrepondo como a medida
clara de todas as coisas, bem como a retomada do matrimônio artístico entre o homem e a
natureza, figuras pagãs e o divino católico, se estendem por diversas manifestações artísticas
que compõem a Renascença Italiana, a partir do séc. XV.
Referente à estrutura política que serve de pano de fundo para essas transformações,
discorrerei acerca do caráter transitório da descentralidade para a centralização prevista em
teorias de regimes contratuais que começam a aparecer ainda no século XIV, com Thomas
Hobbes. A inclusão de um elemento de análise importante na constituição do Estado
Moderno, a sociedade civil responsável por sua composição reflete, em larga medida, um

1
Divisão feita por historiadores da arte para definir a transição da Idade Média para a Renascença, o Trecentto; o
auge do Renascimento, o Quatrocentto; e o período final de maturação do movimento artístico, o Cinquecentto.
2
Trecho retirado do Canto 1, da Divina Comédia, de Dante Alighieri.
3
padrão comportamental constitutivo para a essência política imaterial deste conceito de
Estado em ascensão.

2. O movimento gótico e a Idade das “Trevas” - a narrativa bidimensional do


teocentrismo e da descentralização do poder político:
Tendo o período das artes clássicas helênicas (séc. VI ao séc. IV a.C.), como período em
que o homem se cercou de uma métrica artística em que a medida certa se dava entre o próprio
corpo e o espaço que o cerca (ARISTÓTELES, 1991)3; esse classicismo artístico, empenhado
em conjunto com a filosofia clássica grega, imputavam ao homem o locus de ação política e
artística – o homem enquanto “animal político” (ARISTÓTELES, 1991). Em termos
religiosos, a ascese4 da Grécia Helênica era uma projeção das necessidades e paixões do
homem na metafísica divina. Sendo os deuses parte da natureza humana, as artes refletiam o
medo e admiração. A veemência com que eram representados caracteriza as emoções com as
quais eram consentidos.

“E às formas de veneração que os homens naturalmente consideravam


próprias para oferecer a seus deuses, tais como sacrifícios, orações e
ações de graças, além das acima referidas, os mesmos legisladores dos
gentios5 acrescentaram suas imagens, tanto em pintura como em
escultura. A fim de que os mais ignorantes (quer isto dizer, a maior
parte, ou a generalidade do povo), pensando que os deuses em cuja
representação tais imagens eram feitas nelas realmente estavam
incluídos, como se nelas estivessem alojados, pudessem sentir perante
elas ainda mais medo” (HOBBES, 1990).

Sendo a Grécia Antiga o berço da democracia ocidental, o caráter político do homem


era constantemente condensado em formas artísticas que compõe o cenário necessário à
efetividade desse dispositivo político. A própria organização política das cidades gregas no
sistema de cidades-estados, concebe, em si, a ideia de centralidade atômica, cujas interações
entre agentes se davam de forma bilateral, sem uma coesão identitária que permitissem às
cidades-estados constituírem-se conjuntamente enquanto o Estado da Grécia. O Parthenon,
construído a pedido do rei Péricles, no séc. V a.C, reflete a arquitetura da pólis, a ágora6 de
participação do homem com a sua criação, o lugar de transformação do meio através do
discurso. A arquitetura da Grécia clássica conspira com o ideal filosófico da época, da razão

3
“A finalidade da arte é dar corpo à essência secreta das coisas, não copiar sua aparência” (ARISTÓTELES,
1991).
4
No sentido de “encadeamento causal” (WEBER, 2000)
5
Gentios, pagãos, aqueles que não professam a religião cristã.
6
Pólis: cidade, em grego. Ágora: praça, do grego, onde ocorriam as discussões políticas.
4
como centro e fim último do pensamento do homem. Temos na alegoria da caverna7 a ideia da
existência humana como um borrão cuja nitidez depende do esclarecimento inato dos filósofos
para que aconteça. A ideia do divino é pautada, em partes, nesse pensamento, sendo os deuses
uma visão mais clara e menos tortuosa do homem da época. A arte então, toma o homem como
medida e impõe à essa estética melhoramentos que o tornariam os signos associados à esta
imagem, perfeitos.
“Baseados em todas as descrições que conhecemos, a sua estátua
possuía a dignidade que transmitia ao povo uma ideia muito diferente
do caráter e significado de seus deuses. A Atena de Fídias era como
um grande ser humano. O seu poder residia menos em quaisquer
poderes mágicos do que em sua beleza. As pessoas compreenderam na
época que a arte de Fídias dera ao povo da Grécia uma nova
concepção do divino” (GOMBRICH, 2010).

Com a queda do Império Romano (476 d.C.) e a ascensão dos domínios ideológicos da
Igreja Católica – com sede em Bizâncio – a Igreja se torna um elo entre as organizações
feudais, ainda que não houvessem interações significativas entre essas organizações. O
isolamento feudal acaba por incutir de um caráter reducionista e regional as manifestações
políticas, que se davam de forma efetiva pela autoridade temporal. O paganismo, por sua vez,
herança da Grécia Helênica nas ruínas da Roma Antiga, era tido como uma doutrinação imoral
que objetivava única e exclusivamente à coesão dos extensos territórios romanos8:
“Portanto os romanos, que tinham conquistado a maior parte do
mundo então conhecido, não tinham escrúpulos em tolerar qualquer
religião que fosse, mesmo na própria cidade de Roma, a não ser que
nela houvesse alguma coisa incompatível com o governo civil. E não
há notícia de que lá alguma religião fosse proibida, a não ser a dos
judeus, os quais (por serem o próprio reino de Deus) consideravam
ilegítimo reconhecer sujeição a qualquer rei mortal ou a qualquer
Estado. E assim se vê como a religião dos gentios fazia parte de sua
política” (HOBBES, 1990).

O caráter visual da arte assume grande papel, tanto na Grécia Helênica, quanto no
período Medieval e durante a Renascença e pode ser explicado, de forma prática, pelo fato de
que a população medieval não era majoritariamente, alfabetizada e a criação de mecanismos de
cópia de textos, que não fosse manual e de posse das instâncias da Igreja Católica, surge
apenas no séc. XV.9

7
“Assemelham-se a nós. E, para começar, achas que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si
mesmos e dos seus companheiros, mais da que as sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna que lhes
fica defronte? ” (PLATÃO, 1997).
8
A religião pagã à luz de uma leitura medieval hobbesiana.
9
A imprensa de Gutemberg.
5
“Assim, a arte cristã da Idade Média tornou-se uma curiosa mistura de
métodos primitivos e sofisticados. O poder de observação da natureza,
a cujo despertar assistimos na Grécia, por volta de 500 a.C, voltou a
adormecer por volta de 500 d.C. Os artistas deixaram de cotejar suas
fórmulas com a realidade. Não mais se dispunham a fazer descobertas
sobre o modo de representar o corpo ou de criar a ilusão de
profundidade”. (GOMBRICH, 2010)

A bidimensionalidade visual dos trabalhos do período medieval possui duas interpretações-


chave: a primeira tem a ver com o propósito da arte em si: retratar em forma de afrescos nos
templos as histórias bíblicas; e servir, de forma lúdica, ao propósito de levar conhecimento dos
textos sagrados aos fiéis (GOMBRICH, 2010). O estilo gótico, que emerge das duas
necessidades descritas, se caracteriza pelos arcos de assinatura gótica, as colunas jônicas e a
ausência de profundidade notável entre a luz e a escuridão. As formas humanas mesclavam
feições de assombro e poucos detalhes na expressão do corpo – o foco no contexto da
temporalidade e não nas minúcias da anatomia humana. A separação e pretensão do espírito
em detrimento da carne se opõe a justaposição da religião à política, sendo esta, uma prática
que objetiva suprir de forma justa as contendas exprimidas pela primeira (AGOSTINHO,
1996).
O homem europeu, que no auge da Grécia Helênica era tido como “animal político”
(ARISTÓTELES, 1991), dá lugar ao homem servil - “porquanto és pó e ao pó te tornarás”
(BÍBLIA, Gênesis, 3:14-19). A alteração na visão da essência do homem, numa perspectiva
contratualista, altera a essência do contrato com as formas políticas de sua representação.
Sendo assim, num momento de pré-existência do Estado Moderno, a organização feudal teve
por objetivo maximizar a sobrevivência do homem ainda que sem a existência de um Leviatã10
centralizado e interventor, como se veria a seguir.

“Dado que a constituição do corpo de um homem se encontra em


constante modificação, é impossível que as mesmas coisas nele
provoquem sempre os mesmos apetites e aversões, e muito menos é
possível que todos os homens coincidam no desejo de um só e mesmo
objeto” (HOBBES, 1990).

A importância de contrapor o momento histórico medieval com o surgimento das


manifestações renascentistas, se deve, em partes, ao fato de a Idade Média ter sido conhecida
historicamente, por muito tempo, como “Idade das Trevas”. Além da concepção material de
que nenhum legado profundo de conhecimento tivesse sido deixado pelo período, as formas

10
O Leviatã, Thommas Hobbes.
6
artísticas produzidas na época, por mesclarem traços simples com composições sofisticadas,
materiais de cujas propriedades se desgastavam rapidamente, evocam a existência da
renascença e todas seu desenvolvimento artístico-cultural como parte dos “séculos das luzes”11
(GOMBRICH, 2010).
Há que se observar que a narrativa da Renascença é construída com base na ideia de
oposição ao período histórico que a precede. As “Trevas” da Idade Média eram respondidas
com discursos da perfeição racional, a adoção de métricas geométricas na composição artística
– como no homem vitruviano, de Leonardo da Vinci – e trazendo luminosidade aos trabalhos
em tela e afrescos. Esta oposição pode ser descrita não como uma oposição plena dentro de um
espectro dual, mas como uma reforma funcional de algumas instituições e a relação destas
instituições com o novo ente em emersão – o Estado Moderno. A relação entre Igreja e homem
se transforma na presença do ente estatal em formação a partir do momento em que o homem
começa a estabelecer novas relações metafísicas. A Igreja, portanto, passa a incorporar, já no
Quatrocentto da Renascença, elementos artísticos que antes eram vistos como heresia, como o
nu e as formas humanas expressas de forma similar às divinas (HAWKSLEY; PANKHURST,
2015).

3. A concepção maquiavélica de Estado Moderno e o antropocentrismo - os estudos


visuais do homem como criador da história e o Renascimento enquanto fenômeno
político:
Alguns fatores históricos, para fins didáticos, são considerados responsáveis pela
centralização das unidades feudais em Estados. O comércio enquanto um desses fatores tem
sua presença no contexto italiano à medida que, “no século XII12, Gênova, Pisa e Veneza
dominavam o intenso comércio no mar Mediterrâneo com os árabes e revendiam os produtos
na Europa” (NETO; TASINAFO, 2011).
Para além das cidades italianas, pode-se dizer que o comércio motivou, também, as
campanhas ultramarinas de Portugal e Espanha para o Oriente, impactando no encontro entre
mundos não atingidos pela história europeia até então e o Velho Mundo. O advento do Estado
Moderno, entre outros fatores, foi viabilizado pela renovação do comércio na época moderna.
“Sendo o comércio a principal atividade realizada das cidades, a maior parte delas se

11
Em algumas concepções da história da arte, tem-se o Renascimento como o primeiro século das luzes, anterior
ao Iluminismo, que ganha esta alcunha.
12
Período histórico referente à Baixa Idade Média.
7
desenvolveu próximo às grandes rotas de comércio ou se tornou o centro delas” (NETO;
TASINAFO, 2011).
Atrelado ao renascimento comercial e urbano, que sustentou as bases para que se houvesse
a convergência de fluxos artísticos e políticos – que estão sendo analisados neste trabalho – a
Renascença Italiana emerge como um marco de retomada dos valores clássicos dentro de um
contexto de formação de um Sistema de Estados Europeu, diverso em sua própria essência,
que precede à época feudal e encarna, em si, as heranças helênicas, romanas e bárbaras.

“Renascimento é importante na história da Europa e do


mundo, tanto do ponto de vista geral e cultural quanto,
especialmente, pela evolução do conceito de Estado e das
relações entre Estados. O Renascimento foi essencialmente
um fenômeno italiano” (WATSON, 2010).

Em termos institucionais, amarrados pela legitimidade da Igreja Católica e afastados


pela sua autonomia local, as províncias italianas no antigo regime se diferenciam das potências
europeias no mesmo período pela ausência de unidade política. As famílias de nobres, que aos
poucos abdicavam do caráter nobre para se fundirem à burguesia, controlavam as
efervescentes rotas comerciais e artísticas entre as províncias italianas, na fluidez dos
princípios de oferta e demanda, que delineou polos de expressividade em certos setores
(TOCQUEVILLE, 1997).
Sendo a Igreja o elo ideológico e geográfico entre as províncias na Itália, a presença
dos Estados Pontifícios no território pode ser lida, no prisma artístico, como um polo de
atração e financiamento, dentro sistema de mecenato que possibilitou que artistas de diferentes
regiões da Itália pudessem partir em direção aos Estados Pontifícios, afim de contribuir com o
acervo que é atualmente de posse do Vaticano e seus museus (GOMBRICH, 2010).
O mecenato era uma espécie de financiamento mobilizado por parte das famílias de
nobres afim de se certificarem através da arte como forma de exercer poder político. Desta
forma, assegurava-se a existência de registros históricos da passagem de determinada família,
Governo ou até mesmo Papas. Há inúmeras galerias no Vaticano que surgiram fruto de
estímulos de mecenas, com o intuito de mapear, de forma lúdica e sofisticada, o poderio da
Igreja Católica (UNESCO, 1999).
Numa dimensão sistêmica do sistema de Estados da Itália, considerando o processo
lento de consolidação da agência estatal italiana, é possível que se faça uma análise
construtivista do relacionamento entre os agentes e suas trocas. Farei uso, portanto, de alguns
pontos da discussão de intersubjetividade e identidades, feita por Alexander Wendt. Por

8
intersubjetividade, trataremos o compartilhamento de valores, regras e comportamentos entre
os agentes de determinada estrutura. Aquilo que não pode ser tangenciado ou explicado pela
materialidade em si, mas por interpretações que surgem acerca do que é palpável (WENDT,
2014). A estrutura do sistema internacional a partir do século XIII passa a se decompor de sua
organização prévia e começa por dispor de novos parâmetros estruturantes, através de um
compartilhamento em nível interacionista e transita historicamente, nesta análise, até a
Renascença italiana. Portanto, a arte pode ser considerada um elemento desta estrutura em
formação, representando os fluxos intersubjetivos que começam a se consolidar em
identidades pessoais que atravessam o território da península itálica conectando
geograficamente e tecendo novos padrões de relacionamento e comportamento entre as
cidades-estados.

“Isso significa que a identidade é, em sua base, uma qualidade subjetiva ou


enraizada no autoentendimento de um ator. (...) A identidade terá uma
qualidade intersubjetiva e sistêmica”. (WENDT, 2014)

Já no fim da Idade Média temos manifestações na literatura, como na obra ‘Inferno’ 13, que
representa a passagem tênue ente elementos que caracterizem de forma mais regional o
homem e sua inserção no espaço e a relação deste homem com a dimensão de Deus. A partir
deste livro, um dos primeiros escritos em italiano, não em latim, temos a marca da
transitoriedade de estilos (NETO; TASINAFO, 2011). A universalidade do latim enquanto
idioma dos homens eclesiásticos, começa a dar lugar às línguas locais, não só na Itália.
Entretanto, na península itálica, o efeito imediato pode ser medido através do alcance da obra
de Dante Alighieri e na consolidação de Florença – cidade de nascimento do autor – em um
convulsionado polo artístico da época.
“Quando eu me encontrava na metade do caminho de nossa vida, me
vi perdido em uma selva escura, e a minha vida não mais seguia o
caminho certo. Ah, como é difícil descrevê-la! Aquela selva era tão
selvagem, cruel, amarga, que a sua simples lembrança me traz de volta
o medo. Creio que nem mesmo a morte poderia ser tão terrível. Mas,
para que eu possa falar do bem que dali resultou, terei antes que falar
de outras coisas, que do bem, passam longe” (ALIGHIERI, 1999).

No que concerne ao Estado e suas transformações, podemos dizer que o momento pré-
Estado Moderno concebido na Idade Média, torna o senhor feudal o centro político da
estrutura do feudo, sempre embasado e respaldado pela autoridade temporal. Com o
renascimento urbano, já no final do século XIII, a emersão de famílias burguesas e a retomada
13
A Divina Comédia: Inferno, obra pré-moderna de autoria de Dante Alighieri.
9
de linhagens sanguíneas dos nobres italianos, corroborou para que, em torno dessas estruturas
começassem a serem demarcados modos políticos que se diferenciavam dos feudos e se
aproximavam à Estados já existentes no contexto da Europa, como Portugal, Espanha, Áustria-
Hungria e Franca.
O surgimento das teorias contratualistas modernas – pós-hobbesianas – compõem o
retrato da relação entre o indivíduo e o antigo regime, regime político que estava sendo
consolidado na época. As correntes nacionalistas e a emersão de conceitos como os de
“direitos naturais” e de “direitos à propriedade” (LOCKE, 2005), reforçam o ambiente, tanto
natural quanto político, como essenciais para a construção de bases que forneçam impulsos
para a humanidade renascer, na concepção humanista. Outra pauta que corrobora para a
ascensão das famílias burguesas na Itália são os primeiros debates acerca do papel do Governo
em assegurar os direitos de sucessão (MAQUIAVEL, 1994).
“Deste modo, o legislador sábio, animado do desejo exclusivo de
servir não os interesses pessoais, mas os do público: de trabalhar a
favor dos próprios herdeiros, mas para a pátria comum, não poupará
esforços para reter em suas mãos toda a autoridade” (MAQUIAVEL,
1994)
Ainda que as ideias de contrato social tenham dado nova forma às interações entre
indivíduo e estado no antigo regime, o fator religioso se mantém como esteio institucional de
uma República ou reino que, por sua vez, é apontado por Maquiavel14, em ‘Discursos sobre a
primeira década de Tito Livio’. A necessidade da religião enquanto instituição que fortalece os
valores compartilhados dentro de um sistema político é um elemento-chave para o progresso
delineado pelo autor aos moldes da época. Trazendo essa necessidade para a análise de
algumas obras produzidas no período, é possível que conjuguemos os elementos
essencialmente políticos das manifestações do Antigo Regime na Itália com sua produção
artística, o que faremos a seguir.
A solidez do antigo regime na Europa perpassa, em clara oposição, a situação anterior
de descentralidade feudal. Pode-se dizer de um estabelecimento de um conjunto de instituições
homogêneas em todo o oeste europeu, ainda que a diversidade étnica e cultural tivesse sido
largamente acentuada desde as invasões bárbaras quando da queda do Império Romano.
(TOCQUEVILLE, 1997).
“As constituições das cidades assemelham-se; o campo é governado da
mesma maneira. A condição dos camponeses é muito parecida: tomam
posse, ocupam e cultivam da mesma maneira e o agricultor tem os
mesmos encargos (...). Acredito que se possa dizer que no século XIV
as instituições sociais, políticas, administrativas, judiciárias,

14
Capítulo 9, pág. 49.
10
econômicas e literárias da Europa talvez mais se assemelhavam umas
com as outras do que atualmente (...)” (TOCQUEVILLE, 1997)

Tais instituições, centradas na figura de um só soberano e na ampliação de Impérios


como a forma mais estável para ganho de poder – sendo esse poder, essencialmente ligado à
expansão territorial – regiões pouco centralizadas como a Itália do ressurgimento, destoavam
da França de Luís XIV, não somente em status sistêmico e influência local, mas em dimensões
artísticas.
Há que se observar que a congruência de poder e a necessidade de bases visuais que
consolidassem a imensidão dos Impérios em expansão, tem em si a arte e seu vasto espectro de
possibilidades como registro histórico das conquistas imperiais.

“Admito que a centralização é uma bela coisa, consinto que a Europa nos
inveje (a França), mas sustento que não é uma conquista da Revolução
(Francesa). É, ao contrário, uma conquista do Antigo Regime, que sobreviveu
à Revolução porque era a única que podia se encaixar no novo estado social
criado por esta revolução” (TOCQUEVILLE, 1997)

Para além da ideia de centralização como forma mais elucidativa de organização


burocrática nos Estados Europeus num contexto pré-Vestfália15, a racionalidade dos agentes ao
se pensar a política das províncias ao fim da Idade Média se misturam com a intenção de
separar o poder temporal do poder político suis generis. Tal separação era inconcebível, de
forma material, na Idade Média haja vista a união descentralizada entre a Igreja Católica e o
sistema feudal.

4. Análise político-social da obra ‘A Criação de Adão’, de Michelangelo


(1511):
Partindo agora para uma alocação dos conceitos discutidos ao longo do artigo na
análise da Imagem 1, A Criação de Adão, por Michelangelo, pintada no teto da Capela Sistina,
em 1511, no Vaticano.
Nascido em 6 de março de 1475, na cidade de Caprese, região de Casentino, Itália,
Michelangelo Buonarroti se muda para Florença logo após perder a mãe, aos 6 anos de idade.
Alguns historiadores da arte creditam a essa perda o sentimento de solitude que perpassa as
obras do artista. Sob o mecenato de Lorenzo de Médici, ele esculpe Pietà e Davi. Entre os anos
de 1505 e 1507, Michelangelo recebe um convite do então papa Júlio II para a construção de

15
Conjunto de tratados que marcam, historicamente, a consolidação dos Estados Modernos na Europa
(WATSON, 2010)
11
um mausoléu na cidade de Roma. Ainda que ele tenha deixado essa obra inacabada para
trabalhar, conjuntamente com Leonardo da Vinci, na sala do Conselho do Palazzo Vecchio,
Júlio II encomenda a ele a decoração da abóbada da Capela Sistina, advento que é conhecido
como “o despertar do gênio” (FOLHA DE SÃO PAULO, 2007).

Imagem 1 – A Criação de Adão

Na Imagem 1, temos um dos nove quadros ilustrativos da passagem do livro bíblico de


Gênesis, conjunto de obras que está ao longo da abóbada da Capela Sistina. Na composição da
imagem podemos correlacionar elementos debatidos ao longo deste trabalho, como a
transformação discursiva do Divino e da Igreja, do Homem e do Estado Moderno em ascensão.

“Michelangelo é um desses nomes que identificam um momento crucial na


história da civilização ocidental; um momento de esplendor cultural e artístico
no qual o homem, sob os auspícios dos princípios humanistas, reconhece-se
capaz de intervir na natureza, acomodar o mundo a suas necessidades e forjar o
próprio destino”. (FOLHA DE SÃO PAULO, 2007)

Consolidar a obra em dois pontos principais que descrevem, em conjunto, uma


oposição natural em convergência assintomática e programada, é a chave do pensamento
Renascentista, que evoca o Homem em troca de imagem – portanto, identidades -, com Deus.
Esse encontro é endossado pela presença dos anjos, que, ainda que confusos sobre a
confiabilidade do homem enquanto personificação do sagrado – é possível verificar essa
emoção no arcanjo ao lado direito de Deus -, selam, enquanto testemunhas, o matrimônio com
a raça humana. O conjunto institucional responsável por verificar a proximidade do Homem
12
com Deus, é a Igreja Católica Apostólica Romana. Entretanto, esse matrimônio é obscurecido
pelo “enigma da Criação”.

“Do seu ponto de vista, o observador assiste ao extraordinário momento em


que o dedo divino se estica e, em um portentoso gesto criador, confere vida a
sua criatura”. (FOLHA DE SÃO PAULO, 2007)

O enigma da Criação se decompõe na premissa “Deus criou o Homem, ou o Homem


criou Deus? ”. Tampouco a assimetria na altura dos corpos na Criação de Adão é capaz de
trazer luz à tal questionamento. A possibilidade de equidade é mostrada, pela eminência do
toque entre a materialidade humana e a metafísica divina.
Adão conclama, ainda que entorpecido pela criação recente, uma terra sob seus pés.
Neste aspecto, a diferença entre criador e criatura se dá visualmente na imagem, pela presença
de um território definido e do dever do homem em povoá-lo e cultivá-lo:

“E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e


enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as
aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra”.
(BÍBLIA, Gênesis, 1:28)

O Homem, neste contexto, poderia ter sido retratado em um ambiente tão mágico
quanto o que envolve a figura de Deus, porém ele é tratado como parte integrante de um
território real e sua postura no quadro refletem a segurança e a confiança que ele tem da posse
daquela terra. O conceito de propriedade é uma das possíveis interpretações para a relação do
elemento homem na pintura, o que o distingue de Deus.
Finalmente, a naturalidade com que a nudez se mostra na imagem faz parte da aceitação do
homem como locus da humanidade. A interação do Homem com um Deus igualmente
humanizado é uma representação fidedigna do sistema de significados que eram
compartilhados na Renascença.

5. Conclusão
Através de uma breve reflexão que incluiu elementos artísticos, religiosos, políticos,
sistêmicos e estruturais, a digressão acerca da co-constituição entre tais elementos motivando o
surgimento e fortalecimento do Renascimento enquanto um discurso polivalente em termos de
abrangências em áreas do conhecimento, ocorreu de modo a dar corpo teórico à uma análise
que poderia ser feita à uma simples visita ao museu. Decerto que a complexidade dos termos
utilizados inviabiliza uma curta duração de tal visita, creio que as ferramentas de análise
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dispostas se entrelaçam de forma a compor esteticamente uma movimentação que, num
primeiro momento, acontece numa dimensão de significados invisíveis e imateriais.
Portanto, o corpo artístico do Renascimento é fruto de eixos temáticos transversais que nos
permitem por meio da metonímia, fazer uma leitura de processos, sejam eles políticos,
históricos ou culturais, de uma forma abrangente e interconectada.
O legado deixado pelos avanços estéticos do Renascimento é motivo de reflexões
dialéticas contínuas dentro de diferentes movimentos artísticos até hoje. O endosso ou
refutabilidade desses parâmetros são, em si, uma unidade de análise do desenvolvimento do
campo. As interconexões com temas de política doméstica e internacional são um espectro
infinito de alcance das pesquisas, que objetivam, em fim último, fazer um resgate à história da
humanidade sob as luzes discursivas de novos tempos.

6. Referências
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ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. 4 ed. São Paulo. Editora 34, 1999.
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Cultural. 1991.
BÍBLIA, Gênesis. Bíblia Sagrada. 98. Cd. São Paulo: Gênesis 1, versículo 28.
BÍBLIA, Gênesis. Bíblia Sagrada. 98. Cd. São Paulo: Gênesis 3, versículos 14-19.
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9. São Paulo, 2007.
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MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos Sobre A Primeira Época de Tito Lívio. 3 ed. Brasília.
Editora: UNB, 1994.
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2011.
TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e A Revolução. 4 ed. Brasília. Editora
UNESCO. Mecenato Cultural. Estatuto do Mecenato. Organização das Nações Unidas, 1999.

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WATSON, Adam. A Evolução da Sociedade Internacional. 2 ed. São Paulo. Coleção das
Relações Internacionais. Editora: UNB, 2010.
WEBER, Max. A Ética Protestante e O Espírito do Capitalismo. 2 ed. Editora Pioneira,
2000.
WENDT, Alexander. Teoria Social da Política Social. 1 ed. São Paulo. Editora Apicuri,
2014.

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