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VISÃO CRÍTICA DA LEGISLAÇÃO SOBRE O ENSINO

JURÍDICO

VISÃO CRÍTICA DA LEGISLAÇÃO SOBRE O ENSINO JURÍDICO


Revista de Direito Constitucional e Internacional | vol. 45/2003 | p. 148 - 156 | Out -
Dez / 2003
DTR\2003\527

Nina Beatriz Stocco Ranieri

Área do Direito: Fundamentos do Direito; Educação


Sumário:

1. Introdução - 2. A eficácia da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB - 3.


A política pública - 4. Conclusões

1. Introdução

Entre os vários ângulos pelos quais o tema poderia ser desenvolvido, considerando a sua
amplitude e o tempo que me foi atribuído, optei por focar a crítica, exclusivamente, na
eficácia dessa legislação em termos de garantia da qualidade de ensino.

Em outras palavras: a atual legislação que incide sobre os cursos de direito constitui
fator de garantia do ensino? Como e em que medida?

O ensino do direito submete-se, tanto quanto os demais cursos superiores, à


Constituição Federal (LGL\1988\3), à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, às
Leis 9.131/95 e 9.192/95, ao Dec. 3.860/2001, e às diversas medidas provisórias,
decretos, resoluções, portarias e deliberações emitidas pelos inúmeros e prolíficos
órgãos normativos do sistema federal de ensino.

Além destas, poderá haver eventual legislação suplementar pelos Estados e pelo Distrito
Federal (art. 24, IX, da CF/1988 (LGL\1988\3)), para os respectivos sistemas de ensino,
com reflexos diretos ou indiretos no ensino do direito, em face de competências de
autorização e credenciamento de cursos e instituições.

Também não se pode deixar de considerar a interferência de várias outras leis ordinárias
na atividade educacional. Em matéria trabalhista, por exemplo, a Lei 9.601/98, relativa
aos contratos de trabalho por tempo determinado; a Lei 9.608/98, que trata do serviço
voluntário, que abrem novas perspectivas para atividade docente. Em matéria
previdenciária, a Lei 9.732/98, que impôs ônus significativos para as IES sem finalidade
lucrativa, especialmente as confessionais. Inúmeros exemplos poderiam ainda ser
citados, mas creio que estes já são suficientes para demonstrar que a normatização da
atividade educacional não se esgota na legislação de ensino e que todo esse universo
legal interfere direta ou indiretamente, na sua qualidade.

O direito, certamente, ao compor todo esse arcabouço, para ficar apenas com as
prescrições educacionais, pretende garantir valores mais amplos - expressos no art. 3.º,
da CF/1988 (LGL\1988\3), e que constituem objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil - como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a
garantia do desenvolvimento nacional; a redução de desigualdades sociais; a promoção
do bem de todos etc.

E não há dúvida de que a educação, em todos os seus níveis e modalidades, é


instrumento para alcance desses objetivos. Não é por outra razão que a Constituição
Federal (LGL\1988\3) individualiza a educação como bem jurídico, atribuindo ao Estado
e à sociedade a tarefa de oferecê-la com qualidade.

2. A eficácia da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB

Ocorre que a atual LDB, ao modificar a forma de organização da educação, flexibilizou


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vários dos processos educacionais, antes rigidamente normatizados, por meio de duas
vertentes principais:

a) a da descentralização - expresso na discriminação de competências de controle da


atividade educacional para as unidades federadas e dos sistemas de ensino;

b) a do estímulo à inovação - expresso pela margem de liberdade de processos que


concede aos sistemas e às instituições de ensino.

Para tanto, a LDB faz uso de previsões genéricas que, para terem eficácia técnica,
exigem detalhamentos.

Esta atividade normativa infralegal que, do ponto de vista do direito, deveria


restringir-se à fiel execução da lei, como previsto no art. 84, IV, da CF/1988
(LGL\1988\3), fundamento genérico do poder regulamentar reiterado no art. 87, II, da
CF/1988 (LGL\1988\3) (relativamente à edição de decretos e regulamentos pelo
Presidente da República e de portarias pelos Ministros de Estado, e bem assim de
resoluções, portarias, instruções, deliberações etc., editados por autoridades
administrativas) acabou por ser exercitada fora destes parâmetros constitucionais. A
pretexto de regulamentar a LDB, legislou, provocando não só um cipoal, mas um
verdadeiro pântano de regulamentos, instruções, pareceres, deliberações etc., em
relação às quais não se sabe o que se aplica a quem e até quando.

É nessa regulamentação da LDB, que vai do óbvio ao inconstitucional, que a meu ver se
encontram vários dos problemas relativos à ineficácia da legislação educacional para
garantia da qualidade. Ou seja, é no exercício do poder regulamentar, de natureza
administrativa, e não legislativa, que se criam as condições para o desvio de finalidade
em matéria de garantia de qualidade, pelas seguintes razões de ordem técnica:

a) quanto mais procura disciplinar e regular todos os espaços, menos o Estado parece
capaz de expandir o seu raio de ação e de mobilizar os instrumentos de que
formalmente dispõe, para exigir respeito às suas ordens; e

b) quanto mais legisla, menor é a coerência interna.

Do ponto de vista jurídico, essa situação permite que se façam as seguintes críticas ao
conjunto da legislação educacional, legal e infralegal, no que concerne à eficácia da
qualidade de ensino:

a) a primeira delas, e desta decorrem as demais, refere-se à constatação de que o


direito, na área educacional, não cumpre sua função promocional, no sentido de
incentivar e encorajar comportamentos socialmente desejados (cf. Norberto Bobbio,
Dalla struttura alla funzione, Milano: Di Comunità, 1977), não obstante a pletora das
normas de organização;

b) a segunda crítica refere-se aos perversos e antinômicos efeitos provocados pela


regulamentação editada pelo MEC que, sendo excessiva, confusa e volátil, cria as
condições de seu próprio desatendimento e, por conseqüência, da sua própria
ineficiência. Em resumo, não vincula aqueles que deveriam observá-la; reforçando o
normativismo reativo do MEC, numa espécie de "jogo sem fim";

c) além disso, na tentativas de impor sua autoridade e readquirir o controle da situação,


os órgãos normativos atuam muitas vezes à margem do direito e com abuso de poder, o
que enseja questionamentos judiciais.

Basta lembrar o recente episódio da fixação dos parâmetros mínimos de duração de


cursos superiores, limitados em três anos letivos pelo Parecer 100/2002 do Conselho
Nacional de Educação, não homologado pelo Ministro da Educação, mas incorporado ao
Parecer 146/2002, do mesmo CNE, referente às esperadas diretrizes curriculares
nacionais de vários cursos de graduação. Este último, embora homologado pelo Ministro,
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teve os seus efeitos suspensos para o curso de direito em razão da recente decisão em
mandado de segurança, a favor da OAB.

A par das inúmeras impropriedades jurídicas cometidas ao longo de todo o processo,


como sói acontecer no âmbito do MEC - nomeadamente a homologação indireta do
Parecer 100 do CNE e a falta de definição oficial acerca da recepção ou revogação da
Portaria 1.886/94 - somente agora, após a decisão judicial provocada pela OAB, sabe-se,
com clareza, que o referido parecer não se aplica aos cursos de direito, que o ensino
jurídico deve conformar-se aos parâmetros da Portaria 1.886/94 e que não poderá ser
integralizado em três anos.

No âmbito do CNE a matéria vinha sendo discutida e foi objeto de duas manifestações
distintas: a) no Parecer 67, de 11.03.2003, propõe-se a revogação do ato homologatório
do indigitado Parecer CNE/CES 146/2002; b) no Parecer CNE/CES 108/2003, nota-se um
considerável recuo nas posições anteriores do Conselho, relativamente ao curso de
direito, não só no que tange à sua duração como também no que concerne às diretrizes
curriculares, "por sua consolidada e centenária experiência". Neste último, em longo e
elaborado arrazoado, o Conselho se rende, finalmente, à evidência de que o exercício
profissional é matéria estatal (como se desconhecesse o art. 5.º, XIII, da CF/1988
(LGL\1988\3), que garante a liberdade de trabalho, ofício ou profissão, atendidas as
qualificações profissionais que a lei estabelecer), enaltecendo a certificação profissional
promovida pela OAB, por meio de exame específico, na comparação com as demais
ordens profissionais.

O Parecer CNE/CES 67/2003 foi recentemente homologado pelo Ministro da Educação e,


simultaneamente, revogado o ato homologatório do Parecer CNE/CES 146/2002 ( DOU
02.06.2003, Seção 1, p. 7), voltando-se ao status quo ante da inexistência de diretrizes
curriculares. O Parecer CNE/CES 108, ainda não.

É evidente que situações desse tipo, além de gerarem incerteza jurídica, em nada
contribuem para a garantia de padrão de qualidade do ensino jurídico.

Pelo contrário, os atos do CNE e do MEC relativos às diretrizes do curso de direito


provocaram a absurda situação de ensinar-se o direito, que é uma ciência dogmática por
excelência, sob o signo da incerteza jurídica em matéria curricular, possibilitando fraude
à norma constitucional.

Qual o valor que se está transmitindo aos alunos neste contexto? Afinal, a Constituição
Federal (LGL\1988\3) vale ou seria mera "folha de papel", como afirmava Ferdinand
Lassale ("O que é uma Constituição Política"), uma vez que não representaria os
verdadeiros fatores reais de poder, ou seja, aqueles que efetivamente podem alterar o
modo de ser da sociedade?

Certamente essas atitudes (e este é apenas um exemplo na área da educação), não


contribuem para assegurar a "vontade de Constituição", para citar Konrad Hesse que, ao
rebater Lassale, assinala que a força normativa da Constituição decorre, entre outros
fatores, da crença do povo nos valores nela expressos e na dogmática jurídica.

Se os acadêmicos de direito não têm certeza, sequer, da legislação a que se submetem,


como incutir-lhes os valores e a crença nos postulados básicos do Estado Democrático de
Direito? A formação jurídica, nesses termos, já começa de forma equivocada e
inadequada.

Ademais, se os próprios órgãos normativos do sistema não atentam para a Constituição,


que legitimidade têm para exigir o cumprimento de suas determinações pelos demais
atores envolvidos no processo educacional?

De tudo resulta que a meta da qualidade não é alcançada, ao menos na proporção


minimamente desejada para alcance dos objetivos nacionais, não obstante o arcabouço
constitucional e legal que a suporta.
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Nesta perspectiva, seria a legislação educacional "mitologia jurídica", com contornos


fantásticos ou semi-fantásticos, semi-verdades em que alguns acreditam, outros não?

Ao definir o que seja mitologia jurídica, alerta Santi Romano ( Fragmentos de un


diccionario jurídico. Buenos Aires: Ed. Jurídicas Europa-América, 1964. p. 224 et seq.),
que esta qualificação não deve ser atribuída àquelas normas que são ineficazes em
virtude da falta de consciência social acerca da dinâmica do ordenamento jurídico.

Acredito que este seja o problema central da ineficácia da legislação educacional, em


termos de garantia do padrão de qualidade: a ausência de consciência social por parte
dos vários atores que interagem na atividade educacional. E não porque seja irreal ou
imaginária, como os mitos.

O problema, por assim dizer, é cultural, é de descrença nos valores jurídicos e


educacionais sancionados pelo direito.

Como já tive oportunidade de me manifestar anteriormente (cf. Educação superior,


direito e estado na lei de diretrizes e bases da educação. São Paulo: Edusp, 2001), esta
constatação não é nova na área da educação.

De fato, embora a pesquisa sistemática da organização jurídica do ensino brasileiro


constitua um campo pouco explorado e não haja, na área jurídica, estudos que permitam
avaliar o impacto da legislação na implantação de políticas públicas de educação,
estudos recentes sugerem que o direito foi mais utilizado como técnica de formalização
do que instrumento que poderia contribuir à meta da garantia de qualidade, entre
outras.

Ou seja, o direito não é tomado como expressão cultural que recebe e sanciona valores
de uma dada sociedade, os quais, incorporados ao direito positivo, atuam como valores
jurídicos submetidos à dinâmica própria das regras do direito (o que nada tem a ver com
o famoso "formalismo").

Ora, se o direito positivo exige a qualidade de ensino e se tal garantia constitui princípio
educacional, expresso na Constituição, logo todos aqueles que atuam e interferem no
processo educacional - o Estado, as instituições de ensino, os professores e alunos e
também a OAB - estão obrigados a atendê-lo, sob pena de responsabilidade.

E neste aspecto enfatizo o papel da OAB, que como instituição que deve buscar o
aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas e promover a seleção de
advogados no País, diante de sua missão legal de defesa da Constituição, da ordem
jurídica e dos direitos humanos, também é parte nesse processo, como recentemente
realçado no citado MS 8.592-DF, concedido em favor do Conselho Federal da OAB,
contra ato da Ministra Interina da Educação, que homologou o inconseqüente Parecer
146/2002 da CES/CNE.

Mas não é só. A responsabilidade pela garantia do padrão de qualidade do ensino


jurídico também é da magistratura (no exercício de suas funções judiciais e na seleção
dos seus integrantes), e bem assim do Ministério Público e da Advocacia Pública. De
fato, tanto nas funções judiciais como naquelas consideradas essenciais à justiça pela
Constituição Federal (LGL\1988\3) (previstas no Capítulo IV, do Título IV, que trata,
justamente, da Organização dos Poderes), há uma relação intrínseca e necessária entre
formação acadêmica e exercício profissional, pelo fato de que todos os magistrados,
advogados, procuradores ou promotores de justiça devem ser bacharéis em direito. Em
outras palavras, o Poder Judiciário é a única das funções do Estado que exige formação
superior específica de seus integrantes e bem assim as chamadas funções essenciais à
justiça.

A relação entre formação acadêmica e exercício profissional é hoje enfatizada pela atual
LDB (art. 48, da Lei 9.394/1996) em face da natureza meramente declaratória que
confere aos diplomas de ensino superior - apenas atestam a formação recebida por seu
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titular - a exigir a atuação dos órgãos de classe e das diversas carreiras jurídicas
públicas na seleção profissional.

A formação dos operadores do direito, consideradas as premissas acima, não pode se


fazer em mundos distintos e incomunicáveis, o acadêmico e o profissional. Ao contrário,
esta formação deve ser integrada e complementar sob pena de não haver possibilidade
de exercício profissional para muitos, e esta não é uma advertência vazia ou retórica.

Ora, o ensino jurídico vem sendo oferecido, desde a edição da LDB, em 20.12.1996,
para um universo de cerca de 415.000 alunos (cf. Inep, Sinopse do Censo do Ensino
Superior/2001), sem que houvesse garantia de padrão de qualidade de ensino, fosse
pelas dúvidas acerca da aplicabilidade da Portaria 1.886/94 (recepcionada ou revogada
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pela LDB? ), fosse pela inexistência de diretrizes curriculares nacionais (dada a demora
do Conselho Nacional de Educação, que apenas as fixou em 2002 em atabalhoado
procedimento e em meio à contestação de vários setores).

Dos 415.000 alunos, cerca de 11% formam-se anualmente, muitos deles desprovidos
dos conhecimentos básicos requeridos para o início do exercício profissional, como o
comprovam os resultados dos exames da OAB e também os realizados para ingresso na
magistratura e nas demais carreiras jurídicas públicas.

No caso da OAB, em especial, constata-se uma situação perversa na qual o ente de


fiscalização profissional acaba assumindo o papel de aferidor da qualidade de ensino,
substituindo-se ao Estado pela via da reprovação nos exames profissionais, sem
qualquer possibilidade de ação pró-ativa, uma vez que não tem o controle das variáveis
que interferem no processo educacional, a não ser a ineficaz incumbência de
manifestar-se previamente à criação de cursos de direito, sequer considerada pelo
Conselho Nacional de Educação na grande maioria dos casos.

É evidente que nesse cenário nada resulta em termos de garantia da qualidade de


ensino, a não ser a comprovação de que "qualidade" não depende de legislação, mas da
forma como as instituições de ensino encaram o oferecimento da educação, e o ensino
do direito em particular, como atestam conhecidas ilhas de excelência, via de regra
instituições confessionais e públicas.

Mas, se a legislação pode ser tida como "neutra" ou "positiva" para as escolas de
qualidade (até porque se houver desvios, e os há, os atuais métodos de avaliação
públicos e a divulgação de seus resultados induzem à correção de rumos), o mesmo não
se pode dizer em relação àquelas instituições que não se preocupam com ética e valores
educacionais, o que naturalmente se reflete na qualidade do ensino.

Para essas, em verdade, a atual legislação favorece a manutenção de baixos padrões de


qualidade, como ocorre, v.g., na abertura de cursos "fora de sede", ao abrigo do Dec.
3.860 (em relação à qual não há exigência de manifestação prévia da OAB, uma vez que
considerados pelo CNE mera extensão de curso previamente existente na sede
universitária).

A isto se some a não aplicação de sanções às instituições que não alcançam os


patamares mínimos de qualificação, medidos pelo sistema de avaliação do MEC, torna
letra morta aquelas exigências, com sensíveis prejuízos para os alunos e para a
sociedade. Que curso de direito foi desativado, descredenciado ou teve seu
reconhecimento suspenso pelo MEC, após a identificação de deficiências ou
irregularidades? Qual o limite aceitável dessas deficiências e irregularidades? Até onde e
até quando serão toleradas?

O fato é que embora a Lei 9.394/96 (LDB) tente estabelecer um novo padrão de
articulação entre a União e os Estados, e entre estes e a esfera privada, ampliando o
grau de atuação autônoma dos sistemas e das instituições de ensino, insistindo na idéia
de controle de resultados, o fato é que não foram alcançados os resultados desejados
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em termos de qualidade, não obstante os inegáveis avanços produzidos pelo "provão" e


demais instrumentos de avaliação, em termos de divulgação pública daqueles
resultados.

Essa legislação, em verdade, mantém os padrões de centralização e controle estatal


observados na educação superior brasileira desde a criação dos primeiros cursos e
academias de estudos superiores, no século XIX, e que nada mais revelam senão a
incapacidade dos mecanismos cartoriais e burocráticos no controle da expansão e na
garantia de qualidade.

3. A política pública

Com efeito, conforme já tive oportunidade de apontar anteriormente (cf. Educação


superior, direito e estado..., cit., São Paulo: Edusp, 2001), análises sobre o ensino
superior no Brasil, dos anos setenta aos noventa, apontam que políticas fragmentadas,
de curto prazo, foram eficazes para provocar a expansão do sistema de ensino superior,
permitindo o acesso de vastas camadas da classe média ao ensino universitário, assim
atendendo às suas expectativas e demandas, ao mesmo tempo em que se desonerava o
Estado de oferecê-lo diretamente, uma vez que se privilegiou a função complementar do
ensino privado superior.

O caráter empresarial de muitas escolas particulares (à exceção das confessionais),


entretanto, determinou um perfil de ensino menos exigente do que o oferecido nas
escolas públicas, que à época absorvia docentes em regime de dedicação exclusiva.

As conseqüências deste ciclo são conhecidas e atualíssimas: falta de qualidade,


desajuste em relação ao setor produtivo e financiamento público escasso criaram pontos
de estrangulamento no ensino superior, que permaneceram presentes nas décadas de
oitenta, noventa e neste início de século.

Apesar de tudo, a intervenção do Estado revela uma certa rendição à economia de


mercado. Se à vertente econômica da atividade educacional é dispensado o tratamento
fiscal e previdenciário aplicável a qualquer outra atividade econômica, os seus
empreendedores podem voltar-se à lucratividade, ainda que se trate de função de
natureza pública.

Estimulados pela busca da realização do lucro, esforçam-se em obter a autorização de


cursos, o credenciamento e o recredenciamento das instituições, o que, na lógica da
avaliação permanente, garantiria a qualidade do ensino.

Enfim, da análise de mérito dos inúmeros decretos, resoluções do Conselho Nacional de


Educação e portarias do Ministério da Educação, percebe-se que o Poder Executivo não
tem clara a medida do controle que deve exercer sobre as IES, atuando mais como seu
tutor do que como coordenador da política nacional de educação, ou como articulador
dos diferentes níveis e sistemas de ensino e, se age como tutor, ou não acredita na
maioridade do sistema; ou não quer abrir mão da expansão regulada, como forma de
manutenção do poder do Executivo nesta área; ou ambas hipóteses.

Autonomia e controle são as palavras-chave de todo esse processo. A medida de um e


de outro depende do grau de intervenção desejado pela política pública, determinada
basicamente pela União. Assim se forjam as relações entre Estado e educação superior
no Brasil. Do ponto de vista jurídico estas relações, tal como positivadas na LDB, têm
suas condições de eficácia condicionadas por normas regulamentares, que, nas situações
referentes à descentralização, liberdade de iniciativas procedimentais e expansão da
educação superior, e garantia de qualidade de ensino, em conseqüência, negam o que a
lei concedeu, não obstante a natureza de complementar da LDB em relação à
Constituição, e do campo material indevassável que deveria assegurar.

Não parece que a estratégia de regulamentação adotada venha a induzir modificações


significativas no sistema educacional, no que concerne à melhoria da qualidade do
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ensino e à ampliação do acesso, posto não alterar as condições de centralização e


credencialismo, há muito presentes na legislação brasileira, e que, comprovadamente,
não propiciaram aquelas condições.

4. Conclusões

A visão crítica da legislação sobre o ensino jurídico, quanto à sua eficácia na garantia de
qualidade, consiste na visão crítica da eficácia da própria legislação de ensino superior,
considerada em seu conjunto.

Acredito que as deficiências dessa legislação tornam-se mais evidentes no ensino do


direito em razão da necessidade da aprovação prévia nos diversos exames exigidos para
o exercício profissional, o que inexiste em relação às demais profissões regulamentadas
em lei.

O amplo espaço regulamentar conferido pela LDB ao Poder Executivo Federal ensejou
excesso de discricionariedade e mesmo desvios de poder, sendo certo que a elaboração
de regulamentos que exorbitam os limites da função normativa administrativa enseja
questionamentos acerca da legalidade e da legitimidade do controle que exerce, o que
não só o enfraquece como provoca um alto grau de incerteza relativamente ao
referencial legal-administrativo assim inserido no sistema jurídico.

Este procedimento desencadeia táticas defensivas, não cooperativas, por parte dos
grupos afetados e tende a relativizar o direito em sua generalidade abstrata.

Em última análise, pode-se concluir com José Eduardo Faria ( A crise do direito numa
sociedade em mudança. Brasília: Universidade de Brasília, 1988, p. 98) que "(...) tudo
termina dependendo dos critérios, dos hábitos e dos procedimentos de quem realmente
detém o controle do aparelho estatal no nível de sua competência funcional (...). De
modo que, com o tempo, o sistema jurídico se torna cada vez mais independente de
suas condições iniciais, uma vez que as regras de calibração - portarias, instruções
normativas, resoluções ou simples decretos, por exemplo - é que dão o sentido e o
alcance da própria ordem constitucional".

Mas se a prática governamental não se coaduna à legalidade formal, impõe-se o seu


controle e correção pelo Judiciário, por via incidental ou pelo controle abstrato de
inconstitucionalidade, em face da Lei 9.131/96, na forma do art. 103, da CF/1988
(LGL\1988\3), aí avultando o papel da OAB para a preservação e a garantia de direitos
individuais, coletivos e institucionais, e para que sejam evitadas a arbitrariedade e a
desarticulação do sistema jurídico. A correção pelo Legislativo também se impõe, por
meio da sustação, pelo Congresso Nacional, dos atos normativos que exorbitem do
poder regulamentar (art. 49, V, da CF/1988 (LGL\1988\3)).

Ressalto, portanto, que a fundamental participação da OAB nesse processo cuida de


efetivamente garantir qualidade de ensino e por via de conseqüência de qualidade
profissional, especialmente porque não haverá justiça (e este é um direito fundamental
no Estado Democrático de Direito), sem bons advogados.

(1) Não há homologação da Indicação CES 1/99 pelo Ministro da Educação, que
propunha a revogação da Portaria 1.886/94.

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