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Suplemento

literário do
Jornal A União

Agosto - 2022
Ano LXXIII - Nº 6
R$ 12,00
Exemplar encartado no jornal A União apenas para assinantes. Nas bancas e representantes, R$ 12,00

Zezita Matos,
80 anos
A vida e a arte de uma das
maiores atrizes da Paraíba,
cuja carreira, além do
teatro, cinema e televisão,
é pautada pela educação e a
arte de domingos sávio sobre luta contra a opressão
foto de roberto guedes
MARKETING EPC / Fotos: @edsonmatosfotos
R$ 30,00 R$ 35,00

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A Editora A União tem o melhor


da literatura paraibana. Contato comercial:
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6 editorial

Viva Zezita!
Entender o que move a A reportagem cura resgatar o papel huma-
arte e a vida de Zezita Ma- no que a atriz desempenhou,
tos foi o grande objetivo da termina com com maestria, na educação e
pauta que gerou a matéria no enfrentamento à ditadu-
de capa desta edição de
uma entrevista
ra, que assolou o país entre
agosto, mês em que a gran- exclusiva, 1964 e 1985. “Zezita segue
de primeira-dama do teatro na mesma trincheira de luta,
paraibano alcança 80 anos concedida por nunca deixou o lado certo
de idade. Aniversário, aliás, da história”, cravou o pro-
que celebra com saúde e bas- Zezita, onde
fessor e idealizador do Fest
tante disposição. ele reflete a Aruanda, o maior festival
Com filmes inéditos, audiovisual do estado.
prontos para serem lança- respeito de sua A reportagem termina
dos, e que ratificam o talen- com uma entrevista exclu-
to da artista nascida Seve- própria história
siva, concedida por Zezita,
rina de Souza Pontes, em onde ela reflete a respeito de
28 de agosto de 1942, além sua própria história, falando
de sua incansável batalha sobre seu casamento com o
pelo audiovisual, através da também ator Breno Matos,
Academia Paraibana de Ci-
filhos e os papeis marcan-
nema, entidade que conta
tes de sua prolífica carreira,
justamente com Zezita na
tanto no teatro, quanto no
presidência (desde 2018), a
cinema e na televisão.
atriz não dá sinais de que vai
parar tão cedo. Ainda bem. de Zezita, o também ator
Boa leitura!
A repórter Alexsandra Ta- Everaldo Pontes - para cons-
vares conversou com outros truir um perfil que vai além O editor
artistas - incluindo o irmão dos palcos, ou das telas: pro- editor.correiodasartes@gmail.com

6 índice

, 11 @ 15 2 22 D 28
memória música poeta e cronista entrevista
Amigos e colegas jornalistas Pouquíssimo lembrada, João Trindade, autor Solange de Oliveira fala
traçam um retrato de Otávio Mêves Gama foi uma de 'Um pouco além do sobre o livro ‘Arte por um
Sitônio Pereira Pinto, cantora que fez muito sonho' e prestes a lançar fio’, que tem um volume
enaltecendo a cultura e a sucesso no rádio, e foi a 'O estranho professor de dedicado ao estudo da obra
valentia do escritor, que primeira paraibana a gravar violão', nos brinda com de Bispo do Rosário e outro,
morreu em junho passado. forró e rock. alguns de seus poemas. da de Judith Ann Scott.

SECRETARIA DE ESTADO DA COMUNICAÇÃO INSTITUCIONAL


Empresa Paraibana de Comunicação S.A.
Naná Garcez de Castro Dória
DIRETORA PRESIDENTE
William Costa Amanda Mendes Lacerda Rui Leitão
DIRETOR DE MÍDIA IMPRESSA DIRETORA ADMINISTRATIVA, DIRETOR DE RÁDIO E TV
FINANCEIRA E DE PESSOAS

Correio das Artes


Uma publicação da EPC
Av. Chesf, 451 - CEP 58.082-010 Distrito Industrial - João Pessoa/PB
André Cananéa Paulo Sergio C. Azevedo
OUVIDORIA : Gerente Executivo de Mídia Impressa DIAGRAMAÇÃO
99143-6762 Editor do Correio das Artes Domingos Sávio
ARTE DA CAPA
PABX: (083) 3218-6500 / ASSINATURA-CIRCULAÇÃO: 3218-6518 / Comercial: 3218-6544 / 3218-6526 / REDAÇÃO: 3218-6539 / 3218-6509
6 capa

foto: roberto guedes/a união


80 anos
da mãe, atriz e educadora:

Zezita Matos “Ela faz parte

Alexsandra Tavares
do patrimônio
lekajp@hotmail.com
artístico desse
país, que atravessa

N
o dia 28 de agosto de 1942 nascia, na Fazenda Una, na peque-
na cidade de Juripiranga, distante cerca de 60 quilômetros de
João Pessoa, a primeira filha do casal Manoel de Souza Pontes um dos momentos
e Maria José Pereira Pontes. Batizada como Severina, a meni-
na passou a infância sem ser chamada pelo nome de registro, mais dramáticos de
mas pelo de coração - Zezita, dado pela mãe. Na puberdade,
a descoberta do Severina nos documentos lhe trouxe tanta sua história. Nesse
estranheza que o fato lhe rendeu algumas lágrimas.
Primogênita de uma prole de cinco filhos (todos vivos), particular, Zezita
ainda mocinha aprendeu a admirar os artistas da Sétima Arte
por meio das revistas que colecionava. A convite do então não se cansa de
ator Breno Matos (já falecido), que tempos depois se tornou
seu companheiro de vida por 40 anos, ela encontrou-se na denunciar e manter
arte de encenar e, em paralelo, também na de educar.
Assim, ao mesmo tempo em que atuava nos palcos ou sua postura altiva”
diante das câmeras, Zezita trabalhou como professora até se
aposentar das salas de aula. A arte de representar e a de ensi- Lúcio vilar
nar, porém, nunca foram abandonadas, sendo características
intrínsecas dessa mulher que se tornou a síntese da nordestina
batalhadora, que conquistou seu espaço no mundo. c

4 | João Pessoa, agosto de 2022 Correio das Artes – A UNIÃO


lado certo da história. Viva Zezita Destemor e alegria

foto: mano de carvalho/fest aruanda


Matos 8.0!”, frisou o professor da de estar em cena
Universidade Federal da Paraíba Fundador da Companhia do
(UFPB) e produtor do Fest Aruan- Latão, em São Paulo (onde atuou
da do Audiovisual Brasileiro, Lúcio por 10 anos) e do Coletivo de Teatro
Vilar. Alfenim, em João Pessoa, o drama-
Ele lembrou que a paraibana turgo paulistano e encenador Már-
fez parte do conhecido movimen- cio Marciano contou que conhece
to chamado Teatro do Estudante, Zezita Matos há mais de 15 anos.
ao lado de figuras como Vladimir Ele enfocou que a paraibana é uma
Carvalho, e esteve no set de produ- das fundadoras do Alfenim, pois
ção do primeiro longa-metragem atuou em Quebra-Quilos, primeira
ficcional rodado na Paraíba, em montagem do Coletivo, na qual
1965 – Menino de engenho, baseado Zezita e Soia Lira faziam o papel
em obra homônima do paraibano de mãe e filha.
José Lins do Rego. Ao ressaltar os diferenciais da
“Dirigido pelo estreante na dire- atriz a qual já acompanhou em
ção, Walter Lima Jr., um niteroiense alguns trabalhos, Marciano cita
Lúcio Vilar: “Zezita segue na mesma
e crítico de cinema, o filme foi um inúmeros atributos da paraiba-
trincheira de luta, nunca deixou o sucesso de público no Brasil com na: “Disposição e integridade no
lado certo da história” mais de dois milhões de ingressos enfrentamento do desconhecido.
vendidos (1966), com consagração Ânsia de conhecimento. Discipli-
da crítica e prêmios em festivais no na. Destemor do erro. Alegria de
país e no exterior. Porém, vamos estar em cena. Capacidade de re-
ter um hiato entre esse momento invenção, tanto pessoal quanto na
c Os prêmios regionais e nacionais inaugural e a sua redescoberta três condição de atriz”.
conquistados só reforçam o talento décadas depois, com a participa- Ele contou que, logo quando
artístico dessa paraibana que, ain- ção de Zezita no antológico filme chegou em João Pessoa, em 2006,
da menina, foi morar em Pilar, e, Cinema, aspirinas e urubus, em 2005; procurou o pessoal da Escola Piol-
mais tarde, em João Pessoa, onde a partir daí, ela não mais parou lin, sobretudo Everaldo Pontes e
reside até os dias atuais. Nesse ani- de fazer filmes, e são dezenas de Nanego Lira, que ele conhecia de
versário de 80 anos de existência, produções, entre curtas e longas, encontros em festivais de teatro.
Zezita Matos não apenas mantém- onde inscreveu definitivamente Então, falou para os dois sobre o
-se em pleno vigor artístico, como seu nome no cinema brasileiro con- interesse de formar um grupo de
também se reinventa como pessoa temporâneo”, enfocou Lúcio. pesquisa continuada na capital
e educadora. Segundo Lúcio Vilar, Zezita paraibana. Everaldo e Nanego lhe
Ao longo das décadas, a atriz Matos se consagrou como atriz indicaram vários nomes de atores e
atuou em várias frentes, trilhando dramática, condição que justifi- atrizes, entre eles o de Zezita. c
uma trajetória que se assemelha cou o título de “Primeira Dama
a um roteiro de uma obra cine- do Teatro Paraibano”; com o ci-
matográfica. Ativista política, lu- nema e o audiovisual (trabalhos foto: arquivo pessoal

tou contra a opressão da Ditadura em televisão aí incluídos). Para


Militar, defendeu as causas dos ele, esse conceito se amplia, redi-
trabalhadores rurais, chorou as mensionando a estatura da atriz
perdas e frustrações que teve pela “enquanto profissional de múl-
caminhada, se reergueu e até hoje tiplas atuações magistrais”. “Seu
não se cala diante de injustiças ou diferencial está na capacidade de
desrespeitos de qualquer ordem. se reinventar a cada novo desafio
“Ela faz parte do patrimônio ar- que abraça e que se traduz em prê-
tístico desse país que atravessa um mios e reconhecimento da crítica
dos momentos mais dramáticos de especializada”.
sua história. Nesse particular, Zezi- Apesar de ter vencido dezenas
ta não se cansa de denunciar e man- de prêmios, ser aplaudida pela crí-
ter sua postura altiva, de quem, no tica e pelo público em vários traba-
passado, resistiu e foi perseguida lhos, a atriz não perde a simplicida-
pela Ditadura Militar e que, no de de ser e de agir, e se autodefine
presente, se coloca frontalmente como uma “operária do teatro”. Tal
contra o obscurantismo das artes, postura, segundo Lúcio, surge na-
patrocinado pelos donos do poder. turalmente em uma mulher cujos
Ela combate, sem tréguas, esses ne- valores e preceitos não dão lugar
fastos personagens que têm ojeriza para ostentação nem estrelismos
à Cultura e aos princípios básicos de qualquer espécie. “Zezita é o Para Márcio Marciano, Zezita sempre
de civilidade. Ela segue na mesma que é, transparente, acessível e de se colocou na humilde condição de
trincheira de luta, nunca deixou o uma generosidade ímpar”. aprendiz, “O que revela sua grandeza”

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2022 | 5


c Segundo Márcio, nessa épo-
ca, a paraibana participou de
uma oficina, cujo objetivo era

foto: edson matos/a união


apresentar ao grupo os proce-
dimentos de trabalho que o dra-
maturgo havia desenvolvido na
Companhia do Latão. Esse foi o
início da parceria entre os dois.
No Coletivo de Teatro Alfenim,
Zezita construiu e atuou nos es-
petáculos Quebra-Quilos, Milagre
Brasileiro, Brevidades e Memórias
de um cão.
Em meio a dezenas de traba-
lhos realizados por Zezita, Mar-
ciano destacou a peça Brevidades.
“Foi seu primeiro monólogo,
numa carreira de longos anos.
É importante tanto pelo desafio
de estar sozinha em cena, quanto
pelo tema, o mal de Alzheimer.
Representar uma atriz impos-
sibilitada de atuar devido ao
processo de degenerescência “Minha eterna admiração
que a doença acarreta, se asse-
melha a convidar a ‘morte’ para por minha irmã”
um chá. Zezita enfrentou essa Dos cinco filhos do comerciante Manoel de Souza Pontes e da
contradição com serenidade e dona de casa Maria José Pereira Pontes, dois são atores: Zezita
encantamento, apesar da crueza Matos e Everaldo Pontes (foto). “A minha mãe teve 11 filhos,
do assunto”, declarou Marciano. mas só cinco sobreviveram, dois homens e três mulheres. Todos
Um dos pontos que mais cha- nós tivemos esse contato com o teatro, mas o único que gostou
ma a atenção do dramaturgo é o fui eu”, frisou Everaldo Pontes, o caçula da família. Segundo
fato de Zezita, mesmo com toda ele, como a irmã atriz é a primogênita, a diferença de idade os
experiência e reconhecimento afastou das brincadeiras compartilhadas quando crianças, no
conquistados, se colocar sempre entanto, já na fase adulta, eles ficaram mais próximos.
na condição de igual para com “Como caçula, sou o mais diferente de todos. Quando nasci,
os outros colegas de cena. A pa- a família já estava constituída e os ‘dramas’ já rondavam nas
raibana, de acordo com ele, co- cabeças de cada um. Mas, a lembrança mais marcante que te-
meçou no Coletivo já com uma nho de Zezita acho que foi no palco: a beleza da sua postura, a
trajetória consolidada por sua elegância da atriz, a sua presença na cena. Isso sem falar na sua
dedicação ao cinema e teatro. personalidade desbravadora como pessoa”, ressaltou.
Ele declarou que, embora ela Segundo ele, enquanto a irmã mais velha encontrou o teatro
nunca tivesse atuado em proces- por intermédio de Breno Matos, na época namorados, e das
sos colaborativos de construção experiências do Coletivo de Teatro do Estudante, no colégio
da dramaturgia da cena, com Liceu Paraibano, Everaldo se encantou pelo cinema, o rádio
toda dificuldade que esse méto- e a música ainda criança. Porém, Zezita teve participação na
do de trabalho acarreta, Zezita inserção dele nos palcos. “Cheguei no teatro por meio de Zezita,
sempre se colocou na “humilde aos 12 anos de idade”. Aliás, todos os irmãos da atriz tiveram
condição de aprendiz”. “O que familiaridade com as artes cênicas, uma vez que, a cada ensaio
revela a grandeza de seu talento para uma peça, Zezita precisava ir acompanhada de um irmão
e caráter”, afirmou. ou irmã, a pedido do pai.
Ao ser indagado sobre qual Ao refletir sobre o comportamento e perfil da irmã, Everaldo
relação mantém atualmente com Pontes revelou que é difícil defini-la como pessoa, mas como
a paraibana, Márcio afirma que atriz, ele a vê com um atributo muito distinto e incomum para
as “adversidades inerentes a um o trabalho: “a humildade”, além da capacidade de se “re-
projeto artístico politicamen- -inventar” a cada fase da vida.
te posicionado, cujo principal Para Everaldo, as oito décadas de vida de Zezita Matos
objetivo é atuar no plano sim- “significa e re-significa a sua ‘luta’ para atuar enquanto mulher,
bólico pela ativação da luta de educadora, mãe e atriz, numa sociedade de tantos preconceitos
classes, requerem dos artistas e de tantos faroestes machistas”. E acrescenta: “Minha eterna
que se propõem a essa tarefa, admiração por minha irmã. Sempre vi a sua objetividade, seu
uma atitude sempre vigilante e caráter, sua jovialidade e, principalmente, a sua loucura artística
a construção de laços fortes de para enfrentar os desafios e as barreiras sociais, sendo mulher”.
amizade e solidariedade”. c

6 | João Pessoa, agosto de 2022 Correio das Artes – A UNIÃO


foto: Gr aça Sousa/Arquivo A União foto: arquivo pessoal/zezita matos

Zezita em ‘As Velhas’, dividindo a


cena com Ingrid Trigueiro e Anderson
c Carreira prolífica (2020), com direção de Tiago Ne- Noel (ao lado), e com o falecido ator
Novelas e série: Participação em ves; Não me Esqueças, Me Ame para Domingos Montagner (acima): “Ele me
Vereda Tropical (1984). Em Velho Chi- Sempre, de Guilherme Andrade chamava de mãe”, recorda a atriz

co (2016), ela interpretou Piedade, (2020), e O Quarto Negro (2019), cuja


mãe de Santo dos Anjos, persona- direção é de Carlos Kamara. No
gem de Domingos Montagner. Na filme, Zezita Matos conquistou o nacional de Cinema da Fronteira
trama Amor de Mãe, Zezita era Ma- prêmio de melhor atriz no Festival e também no Festival Paulínia de
ria, a mãe de Lurdes, personagem Rima (Rio International Monthly Cinema, sendo esse último com-
de Regina Casé. A novela iniciou Awards) de 2021. partilhado com Marcélia e Dé-
em 2019, foi suspensa por conta Longa-metragem: Entre os bora Ingrid. No longa Mãe e filha,
da pandemia e voltou em 2021. A longas-metragens estão Menino de venceu o prêmios de Melhor Atriz
paraibana também atuou na série Engenho (participação/1965), sendo no Cine Ceará, FestCine Goiânia
Onde Nascem os Fortes, dirigida por dirigida por Walter Lima Júnior; e FestCine Maracanau. Por seu
Luiz Fernando Carvalho. Cinema, Aspirinas e Urubus (2004), desempenho na obra, recebeu
de Marcelo Gomes; O Céu de Suely sua primeira indicação ao Prê-
Filmes (2006), dirigido por Karim Aïnouz ; mio Guarani, considerado a maior
Curta-metragem: Foram cerca Mãe e Filha (2011) de Petrus Cariry; premiação da crítica cinemato-
de 10 curtas-metragens. Entre eles, A História da Eternidade (2015), fil- gráfica brasileira, na categoria
estão A Canga (2001), de Marcus me dirigido por Camilo Cavalcan- de Melhor Atriz Coadjuvante. No
Vilar; Olhos de Botão (2015), dirigido te; Reza a Lenda (2015), dirigido por filme Pacarrete (2020), interpre-
por Marlom Meirelles; Remoinho Homero Olivetto; e Pobres Diabos tou Chiquinha, sendo aclamada
(2017), dirigido por Rosemberg pela crítica e indicada ao Grande
foto: Suellen Britto/Divulgação Cariry. Em Pacarrete (2020), Ze- Otelo de melhor atriz coadjuvante.
zita interpretou Chiquinha, irmã Neste trabalho, ela ganhou o Prê-
da protagonista Pacarrete (Mar- mio Guarani, como Melhor Atriz
célia Cartaxo). Ainda podemos Coadjuvante. Em 2020, ganhou o
citar Acqua Movie (2021), dirigido prêmio de Melhor Atriz no 15º Fest
por Lírio Ferreira; Deserto Particu- Aruanda do Audiovisual Brasilei-
lar (2021), dirigido por Aly Mu- ro com o curta Remoinho.
ritiba, representante do Brasil na Teatro: Foram inúmeros, mas
disputa do Oscar de melhor filme o ponto de partida foi Prima Dona
estrangeiro. Por esse trabalho, Ze- (1958); Outro destaque é a peça
zita se saiu vitoriosa no Cine PE, As Velhas (1988); pelo Coletivo
como Melhor Atriz Coadjuvante; de Teatro Alfenim, Zezita Matos
Documentários: O olhar de Ze- atuou em Quebra-Quilos (2007),
zita (2011), da diretora Mercicleide Milagre Brasileiro (2010), Brevidades
Ramos. A obra fala da trajetória de (2013) e Memórias de um cão (2015).
vida da artista. Academia Paraibana de Ci-
nema – Em 2018, a atriz tomou
Prêmios posse como presidente da Acade-
Em A História da Eternidade mia Paraibana de Cinema (APC),
A atriz na montagem ‘Brevidades’, de (2015) Zezita Matos foi bastante tornando-se a primeira mulher a
2013, primeiro monólogo da primeira- elogiada, vencendo os prêmios assumir a função, onde permanece
dama do teatro paraibano de Melhor Atriz no Festival Inter- até hoje. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2022 | 7


6 entrevista

As dores e amores de

Zezita Matos
U
ns a chamam a “Dama do Teatro Paraibano”; no Brasil, ela já é conhe-
cida pelos trabalhos feitos na televisão, cinema e teatro. Já foi aplaudi-
da pelo público e pela crítica em trabalhos como o filme ‘Pacarrete’,
e no rol de reconhecimentos foi merecedora de prêmios importantes, a exemplo
do Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro, como Melhor Atriz Coadjuvante.
Mas a paraibana Severina Zezita Souza de Matos, ou simplesmente Zezita
Matos, se considera uma “operária do teatro”, e por que não dizer, das artes
cênicas. Com mais de 60 anos de carreira, ela foi ativista na época da Ditadura
Miliar, engajada na causa das Ligas Camponesas, foi perseguida pelos repres-
sores do Regime Totalitário, casou, separou, tem três filhos, seis netos e quatro
bisnetos “lindos”, como gosta de frisar. Em 28 de agosto, Zezita completou 80
anos de vida. A longevidade aperfeiçoou o foco no que ela nasceu para fazer
– atuar, e também lhe impregnou na alma a missão de educar, profissão que
seguiu por cerca de 60 anos em paralelo à carreira de atriz. Inquieta e de bem
com a vida, Zezita optou por morar sozinha em um apartamento no bairro
de Intermares, em João Pessoa, sinal de pura independência. Em pleno vigor
produtivo, é sempre requisitada para novos trabalhos, seja diante das
câmeras ou nos palcos. A presidente da Academia Paraibana de Cinema
concede entrevista exclusiva ao Correio das Artes, fala das dores e amores,
da trajetória profissional e anuncia a estreia de dois curtas-metragens e três
longas. Confira.

A entrevista

n Zezita Matos é um nome já co- chame de Severina, me chame de n E hoje, já tem o Zezita registrado
nhecido entre as atrizes brasileiras. Zezita”. Aí, todos me chamavam nos seus documentos?
É verdade que você não foi batiza- de Zezita, mas na caderneta tinha – Em 1964, os militares foram
da assim, e que só descobriu que Severina. Imagina como foi duro, atrás de mim no Liceu Paraiba-
chamava-se Severina depois dos só depois de grande descobrir que no, onde eu estudava, porque eu
10 anos de idade? era Severina. Só faltei entrar de fazia política estudantil. Eles pro-
– Eu era Severina de Souza chão a dentro quando soube disso. curavam por Zezita, mas como na
Pontes, mas minha mãe nunca me caderneta tinha Severina, alguém
chamou de Severina e, sim, de Ze- do colégio não disse que Severina
zita. Eu descobri que era Severina era Zezita. Quando foi em 1992,
quando fui fazer meu exame de Alexandre Guedes, que é advoga-
admissão, no Colégio das Damas, do, me perguntou se eu não que-
por volta dos 13 anos de idade. ria mudar de nome porque Lula
Meu nome foi uma promessa que e Xuxa tinham incorporado esses
minha vó fez para minha mãe me “Você não vai nomes aos documentos. Eu disse
chamar assim e nunca soube o que não queria tirar o Severina,
motivo desta promessa. Quando viver de prêmio, mas gostaria de incorporar o Zezita
criança, estudei em um colégio também, porque o Severina tinha
particular e em um grupo de Pilar mas sim do me salvado na década de 1960.
e todos me chamavam de Zezita. Então, hoje eu sou Severina Zezita
Somente quando fui fazer o exame próximo trabalho Souza de Matos, tirei o Pontes, não
de admissão, em Campina Gran- sei o porquê, e coloquei o Matos
de, descobri que era Severina. Só que poderá por causa do casamento.
faltei morrer! Quando o professor
entrava na sala e dizia meu nome, garantir outro n Por que foram procurá-la no Li-
eu levantava o dedo morta de ver- ceu, onde a senhora estudava?
gonha e pedia: “Professor, não me prêmio” – Porque Breno (Matos, namo- c

8 | João Pessoa, agosto de 2022 Correio das Artes – A UNIÃO


c rado na época) já estava preso, Zita me convidar para ser atriz, papai momento, é uma nova aprendiza-
Gondim também, Maria José Li- deixou. Agora, ele disse uma coisa gem, acumulada com tudo o que já
meira, escritora, também. Os mili- muito séria: “Minha filha, você fiz. Não é porque fiz vários espetá-
tares batiam na porta e levavam os vai fazer teatro, agora tem de le- culos que eu sei tudo. Eu faço o que
ativistas. Breno foi preso e depois var um irmão para os ensaios com os outros artistas também fazem,
levado para o Grupamento de En- você e tem de pensar que a gente todos os trabalhos de pesquisa,
genharia. Eu morava no bairro de veio para João Pessoa para vocês se como se fosse a primeira vez.
Oitizeiro, em João Pessoa, então formarem”. Aí eu escolhi primei-
corri e fui para a casa de um tio-avô, ro Letras, e depois fiz Pedagogia. n Quais os principais ensinamen-
no bairro de Tambiá, e me escondi Ele quis que tivéssemos uma for- tos que ficam quando se atinge
lá. Meu tio, que era irmão do pai mação. As duas condições foram tamanha experiência profissional
da minha mãe, dizia: “Isso é o que essas. Naquela época, em 1958, e pessoal?
dá namorar com comunista”. Ele tinha muito preconceito com quem – Fica toda uma aprendizagem
nunca dizia que eu era comunista fazia teatro. de cada diretor, de cada espetácu-
(risos). lo, de cada filme. É um acúmulo
n Então, a senhora é formada em de aprendizagem que, claro, vai
n Quais as influências que a se- Letras e Pedagogia? servindo como base para o apri-
nhora teve para seguir a carreira – Sou formada em Pedago- moramento. Mesmo o cinema, o
artística? Foi de algum parente gia, em Letras e mestre em Edu- teatro e a novela tendo linguagens
ou ídolo? cação pela Universidade Federal diferentes, tudo é uma dialética
– Me enveredei pelo caminho da Paraíba (UFPB). Fui a primei- que, ao final, se somam.
artístico porque recebi o convite de ra mulher a coordenar cursos no
Breno (Matos). Comecei a namorar Unipê (Centro Universitário de n A senhora participou de inú-
com Breno em Campina Grande, João Pessoa). Coordenei o curso de meros trabalhos no cinema, na
em um encontro de estudantes. Ele Pedagogia e, depois, o de Letras. televisão e no teatro e alguns ren-
me convidou para um espetáculo Depois fui a primeira mulher a ser deram importantes premiações. A
que ele estava fazendo, no Grupo ouvidora (do Unipê) e, mais tarde, que atribui esses reconhecimentos?
de Teatro Popular de Arte. Isso foi fui coordenar a parte cultural (da Foram frutos de muita dedicação e
em agosto de 1958. Antes, eu não instituição). apreço pelo que faz?
pensava em ser atriz. Agora, o que – Sim. E a orientação de cada
eu gostava era de cinema. Quando n Qual o seu primeiro trabalho diretor, mas quem faz o trabalho
fui para o colégio Liceu Paraiba- como atriz? sou eu. Sempre costumo dizer para
no, também em 1958, comecei a – Foi a peça Prima Dona. Eu os diretores: “Pode mandar repetir
participar do cineclube de lá, e do fui escolhida para fazer um papel quantas vezes quiser”. O público,
Grêmio Estudantil. E antes mesmo bem pequeno, só com uma fala. quando vê tudo pronto, não ima-
de ir para o Liceu, eu já coleciona- Ensaiamos tudo e a menina, que gina o quanto a gente repetiu e
va a revista Cinelândia. Adorava era a atriz principal, não pôde ir repetiu de diversas formas. Porque
acompanhar as notícias sobre Gina para a estreia porque alguém da a gente lê o texto, mas não sabe
Lollobrigida, Sophia Loren, Grace família adoeceu. Eu estreei em ou- o que está na cabeça do diretor.
Kelly, que eram as atrizes da época. tubro de 1958 no papel principal, e Enquanto não chegamos no que
E James Dean era a minha paixão. ela não voltou mais. Esse foi meu ele está querendo, pode mandar
Quando eu conheci Breno, ele usa- primeiro trabalho e de lá para cá, repetir. E cada prêmio represen-
va um blusão igual ao de James nunca mais parei. Fomos para um ta uma nova responsabilidade,
Dean, aí foi amor à primeira vista. festival de teatro em Maceió com porque fico pensando: eu tenho
Muitas tomadas de decisões da esse espetáculo, e lá ganhei o título que me superar quando for fazer
minha vida foram encaminhadas de melhor voz. No elenco tinha o próximo trabalho. É maravilho-
por Breno. A de ser professora, de Breno de Matos, Antonio Lucena, so ganhar prêmios, mas você tem
ser uma pessoa atuante, engajada, que trabalhava na Rádio Tabajara, uma responsabilidade a mais. Você
de participar do Juventude Comu- Carlos Pessoa (falecido) e eu. não vai viver de prêmio, mas sim
nista, de ir para as ruas... Vivi com do próximo trabalho que poderá
Breno 40 anos, foram oito anos de n Observando sua história de vida garantir outro prêmio. A minha
namoro e 32 de casamento. Quan- na posição de um telespectador, expectativa é de não me repetir, e
do nos separamos, nunca pensei como se fosse um filme ou novela, de aprender cada vez mais.
em casar de novo. Enquanto vivi como a senhora avalia esses 80
com Breno, foi maravilhoso. anos de trajetória? n Essa sede de aprendizagem vem
– Foi uma história de aprendi- do amor à profissão?
n Quantos filhos tiveram? zagem. Eu não fiz curso de arte e – Sim, amo fazer teatro, cinema,
– Tenho três filhos, seis netos e me tornei atriz. Cada diretor meu novela e dar aula. São as coisas que
quatro bisnetos lindos. foi um professor. Como professora amo de paixão.
e também atriz, a gente está sempre
n Qual a reação da sua família aprendendo e se você quer aquilo, n Nessa trajetória, foram muitas
quando decidiu seguir a carreira está sempre aprimorando. Nunca as amizades que lhe ajudaram a
artística? eu vou saber de tudo, e todas as alcançar seus objetivos profissio-
– Quando Breno foi lá em casa, vezes que entro em cena é um novo nais? Poderia citar algumas? c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2022 | 9


c – Não gostaria de citar nomes, – Quando fui dirigir o Teatro trabalho pedagógico, enquanto
porque eu voltaria a trabalhar de Santa Roza, no Governo de Wilson presidente da Academia. A ideia
novo com todo mundo que traba- Braga, na década de 1980, Everaldo era criar um cineclube em todas as
lhei. Mas tiveram muitas pessoas Vasconcelos era coordenador do escolas, onde não tinha. Mas veio a
importantes e todos são referências Teatro Lima Penante. Toda vez pandemia e a gente parou.
para mim. O teatro, a novela e o que ele me cumprimentava, dizia:
cinema são uma arte compartilha- “Diga primeira dama!”. E eu res- n Quais os projetos em andamen-
da. Por exemplo, no nosso grupo, pondia: “Diga primeiro damo”. to?
Coletivo de Teatro Alfenim, tem Pronto, aí pegou. Eu digo sempre – Tenho cinco filmes para se-
o diretor, mas é autoral porque a que não sou primeira-dama, sou rem lançados, três longas e dois
gente dá palpite, dá exemplos, a operária do teatro. E agora mais curtas, que foram feitos durante a
gente faz cena e ele transfere para do que nunca, com esse Governo, pandemia. Morria de medo, mas
o texto. Quando se faz cinema, é em que não temos nem Ministério fazíamos testes de Covid, e todo
uma grande equipe. Você trabalha da Cultura, aí é que sou mesmo mundo usava máscara. Tem um
junto, você discute, você lê junto. operária. longa-metraagem do Maranhão,
Quando fomos fazer a novela Ve- com direção e roteiro de Frederico
lho Chico, foram seis meses com o n E como a senhora avalia a pos- Machado, cujo nome é Baldio som
grupo trabalhando junto. Nunca tura do Governo Federal em rela- de Deus, e mais um chamado O Ale-
Domingos (Montagner) me cha- ção ao tratamento dispensando à crim e o Sonho, de Valério Fonseca,
mou de Zezita, mas de “mainha”, Cultura do país? que vai ser lançado agora. O outro
pois eu fazia o papel da mãe dele. – Eu abomino, a palavra é essa longa, de São Paulo, é Atmosfera,
Quando Domingos morreu, foi que mesma! Faço resistência contra lindíssimo, que tem roteiro e di-
descobri que ele não tinha mais a esse sanguinário que deixou tanta reção de Paulo Caldas. Os curtas
mãe dele. Ele costumava me abra- gente morrer sem comprar as va- são: Flores, direção e roteiro de Leo-
çar, me beijar e dizia “ô bicha chei- cinas contra Covid. Além de tudo, nardo Gonçalves; e A gota d’água,
rosa!” (risos). desmanchou as leis de incentivo com direção e roteiro de Andryelle
à Cultura. Aí enganou com a Lei Araújo. Fui convidada para outro
n Avaliando sua carreira, que fase Aldir Blanc e a do Gustavo (Lei filme, mas não posso dizer agora
a senhora elencaria como a mais Paulo Gustavo) para tapar a boca porque não assinei o papel ainda.
difícil? da gente, mas não tapou, porque
– Foi exatamente na separa- um país que não tem um Ministério n Como é chegar aos 80 anos ainda
ção com meu marido, no final da da Cultura, só existe aqui. Então, produzindo?
década de 1990. Eu tinha feito a luto, trabalho até de graça para que – Isso é o que me sustenta. Nem
qualificação em Cuba para o dou- o teatro e o cinema não se acabem. parece que tenho essa idade. Penso
torado, passei três meses naquele Minha vida começou lutando nas que estou começando agora, lhe
país. Quando eu voltei, já estava Ligas Camponesas e agora luto dando essa entrevista, passando a
fazendo a dissertação, na área da pela Cultura do país. Temos de limpo uns 50 anos da minha vida.
Educação, mas veio a separação e fazer resistência. Eita danado! Com um espetáculo
não consegui terminar. Antes, eu para quando o pessoal do Coletivo
tinha dito aos meninos do Grupo n A senhora também trabalhou (Alfenim) voltar e a gente retomar.
de Teatro Contratempo que não iria como professora e agora está apo-
trabalhar em As Velhas por conta sentada. Como foi essa experiên- n E como foi comemorado esse
do doutorado. Quando me sepa- cia? aniversário?
rei, e desisti de voltar para Cuba, – Sou professora aposentada, – Fizemos um almoço em famí-
fui pedir para fazer o espetáculo. mas a veia de educadora sempre lia, inclusive com os familiares que
Ângelo (Nunes) era o diretor, mas está presente. Estou louca que essa vieram de São Paulo e Sorocaba.
depois de dois meses de ensaio, ele pandemia acabe para eu voltar Muito íntimo. E
morreu repentinamente, em um para as periferias para discutir com
acidente de automóvel. Eu cho- as pessoas, levar jornais para elas
rava muito por causa de Breno lerem. Quando eu era jovem, em
e de Ângelo. Depois de 15 dias, 1958, eu lia no bairro de Oitizeiro,
nos reunimos e dissemos a Duílio no Cristo, o jornal comunista No-
(Cunha), que era assistente, que ele vos Rumos. Pegava umas mulheres
continuasse o trabalho de Ângelo. para a gente ler à noite. Como pre-
Mas nos ensaios, eu não conseguia sidente da Academia Paraibana de
decorar o texto. Depois de muita Cinema, desenvolvo alguns proje-
persistência decorei, andamos o tos. Antes da pandemia, visitei al-
Brasil inteiro, passamos oito anos gumas cidades do interior, fui para
com esse trabalho e ganhei muitos Ingá, Itabaiana, fomos para Santa
prêmios com ele. Luzia, que já tinha um cineclube. A
gente está mantendo esse cineclube Alexsandra Tavares é jornalista,
n A senhora é chamada de “Primei- on-line na pandemia. Então, a cada repórter do Jornal A União e do
ra-Dama do Teatro Paraibano”. 15 dias a gente mostra um filme e Correio das Artes. Vive e trabalha
Por que? faz um debate on-line. Esse é um em João Pessoa (PB).

10 | João Pessoa, agosto de 2022 Correio das Artes – A UNIÃO


6 Sitônio Pinto

A cultura
justo e correto, por isso estava sempre
ao lado dos que sofriam. Não tinha
medo de falar o que sentia, em defen-
der seus ideais e suas convicções de
sertanejo corajoso, destemido e afoi-

e valentia to, como foram seus antepassados


que lutaram ao lado do coronel José
Pereira Lima para manter o Sertão
de um descendente de livre dos cabrestos do Governo”,
declarou o escritor, jornalista e diá-
revolucionário cono José Nunes, um dos membros
do Instituto Histórico e Geográfico
Paraibano (IHGP), entidade a qual Si-
Alexsandra Tavares tônio ocupava a Cadeira número 42.
lekajp@hotmail.com José Nunes conheceu Sitônio em
1979, quando trabalhavam na reda-
ção do jornal A União. Na época, a
superintendência estava sob a res-

O
távio Augusto Sitônio Pereira Pinto. No sangue, ele trazia a va- ponsabilidade de Nathanael Alves e
lentia ancestral do tio, coronel José Pereira Lima, líder político da a Diretoria Técnica aos cuidados do
região de Princesa Isabel nos idos de 1930, que não hesitou em jornalista Gonzaga Rodrigues. A re-
romper os laços políticos com o então presidente de Estado João dação do veículo impresso ficava na
Pessoa, tornando-se um dos personagens no quebra-cabeça que rua João Amorim, no Centro de João
desaguou na Revolução de 1930. Para os que o conheceram de Pessoa. Nunes ainda hoje recorda o
perto, Sitônio era um homem de poucas palavras, economizava jeito que o amigo chegava ao traba-
sorrisos, polido, porém, sem paparicos no trato, mas esbanjava lho. “Sempre andava de motocicleta
inteligência e cultura. Com tais características só poderia ser um e chamava a atenção pelo modo como
paraibano de personalidade ímpar. entrava na redação, a passos largos,
Foi publicitário, auditor fis- bornal a tiracolo, barba comprida.
cal, cronista, articulista, Cumprimentava a todos, às vezes
poeta, ensaísta, mas, sentava a uma mesa para redigir
acima de tudo um ser seus artigos, quando não os trazia
humano corajo- prontos”.
so, justo e leal As conversas sempre giravam em
com seus torno dos momentos políticos e des-
princípios. cambavam para as “escaramuças”
“Sitô- de 1930. “Seu parente, coronel José
Foto: edson matos/a união

nio Pinto Pereira Lima, aliou-se a João Suas-


era um suna e, com seus homens, enfrentou
homem a polícia de João Pessoa. Sobre esses
episódios, gostava de recordar e jus-
tificava, com relevância de dados
e fatos, as façanhas do homem (tio
José Pereira) que tornou a cidade de
Princesa Isabel território livre e fez
tremer as forças políticas do Gover-
no”, frisou Nunes.
O episódio vivido entre o tio c

Otávio Augusto Sitônio Pereira


Pinto: homem de poucas
palavras, que economizava sorrisos
e esbanjava inteligência e cultura

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2022 | 11


foto: miqueis/divulgação

como cronista. Ele era extremamente sas. Transformava teorias complexas


cuidadoso e tinha uma cultura muito em frases compreensíveis, na visão
vasta”, frisou. não apenas do jornalista, mas exercia
Chico Pereira afirmou que Sitônio a influência da publicidade sobre o
absorveu muito conhecimento sobre jornalismo. Mesmo quando trabalha-
a economia sertaneja, em um tempo va como redator, seu discurso tinha o
em que ainda não se falava em eco- víeis da publicidade, dessa ciência da
logia, mas sim em desenvolvimento semiótica, de como as coisas podem
regional, dentro das características se efetivar de forma muito eficien-
geográficas de cada lugar. “E tudo te enquanto linguagem”, ressaltou
aquilo que ele falava nas suas crôni- Pereira.
cas e no jornalismo, veio depois se
transformar na grande ciência que Na partida,
hoje chamamos de ecologia voltada as lembranças
para o desenvolvimento, ou seja, que
o crescimento de um lugar não seja dos encontros
destrutivo, mas que se possa apro- Não resistindo à complicações
veitar o potencial de cada região”. causadas pela doença de Parkinson,
Na vida profissional, a compe- Otávio Sitônio Pinto morreu aos 77
tência e o comportamento reservado anos no dia 21 de junho deste ano,
eram uma das marcas registradas do em João Pessoa, e a perda deixou uma
sertanejo, natural de Princesa Isabel. lacuna na cultura paraibana, bem
Segundo Chico Pereira, a capacidade como muita saudade em familiares
intelectual de Sitônio era revelada e amigos. Um deles foi o escritor e
Para José Nunes, Sitônio não
tinha medo de defender seus quando o leitor tinha a oportunidade jornalista Gonzaga Rodrigues, que o
ideais e suas convicções “de de apreciar os textos que ele escrevia, conheceu entre 1979 e 1980 na reda-
sertanejo corajoso” ção do Jornal A União.
Gonzaga comentou as peculiari-
foto: arquivo pessoal
dades da obra de Sitônio, sobretudo
os escritos com foco na seca e no Nor-
deste. “Tudo que escreveu caracteri-
zou-se inconfundível, próprio, dele
e de mais ninguém, no modo de ver
c de Sitônio e o presidente de Estado
na década de 1930 é comentado pelo e de dizer. Num tratado euclidiano
escritor, professor e artista plástico sobre a seca, lavrado no oposto ao
Chico Pereira, no livro Paraíba na próprio Euclides e a outros clássicos
Literatura, volume 3, publicado pela dos estudos sobre o Sertão nordesti-
Editora A União. Nessa passagem no. Mesmo que o leitor mantenha-se
do texto, Chico conta que a cidade noutro ponto de vista, rende-se ao c
natal de Sitônio e de sua família se
declarou, por decreto, “Território Li- foto: roberto guedes/a união

vre de Princesa” no ano de 1930, pelo


coronel José Pereira Lima. Na época,
o patriarca era um líder político da
região, que rompera os laços políticos
com o presidente João Pessoa. O fato
levaria a uma luta armada entre o Chico Pereira, autor do
exército formado pelo coronel e a For- perfil sobre Sitônio na série
ça Pública do Estado, cujos desdobra- ‘Paraíba na Literatura’:
pessoa reservada que soltava
mentos resultariam no assassinato de “tiradas” capazes de desafiar
João Pessoa e na Revolução de 1930. o raciocínio do ouvinte
Em entrevista ao Correio das Ar-
tes, Chico Pereira contou que o amigo
de mais de 50 anos era uma pessoa
reservada, mas soltava umas “tira-
das” que desafiavam o raciocínio dos pois o autor possuía a habilidade
ouvintes. “As suas tiradas, em qual- de reunir a prática publicitária com
quer discussão que tínhamos, nos a jornalística. Com isso, conseguia
colocavam sempre em situações que expressar em poucas palavras, e de
requeriam muita inteligência e cultu- forma contundente, a mensagem,
ra para a gente entender realmente o mostrando um dom para a concisão. Gonzaga, sobre o amigo: “Tudo
que ele escreveu caracterizou-
que ele queria dizer nos seus discur- “Ele tinha essa capacidade de di- se inconfundível, próprio, dele
sos. Sempre o tive como um mestre zer, em poucas palavras, tudo o que e de mais ninguém, no modo de
da criação publicitária, no jornalismo, era preciso dizer sobre grandes coi- ver e de dizer”

12 | João Pessoa, agosto de 2022 Correio das Artes – A UNIÃO


foto: arquivo pessoal
c sortilégio de sua abordagem”, frisou.
Ao comentar a notícia da morte
de Sitônio (divulgada em vários veí-
culos de comunicação, sobretudo no
Jornal A União), Gonzaga enfocou
os olhos atentos e curiosos do amigo
intelectual, característica que parecia
espelhar o pensamento ligeiro e o
talento do escritor e publicitário sobre
a visão vanguardista sobre o mundo.
“O que logo se vê na fotografia que
ilustra a notícia da morte de Sitônio
são os seus olhos espantados, sempre
surpresos, olhasse para a escuridão
repentina de um eclipse total do sol
ou para quem batesse à sua porta”.
Otávio Sitônio e Ilka, casados por
Esses mesmos olhos chamaram a 31 anos, até a morte dele: homem
atenção de Gonzaga há mais de 40 ela revelou que apesar da lamentável carinhoso, atencioso e preocupado com a
anos, ao encontrar o paraibano prin- partida, ficaram os ensinamentos so- segurança da família
cesense pela primeira vez nas depen- bre “generosidade”, da importância
dências do jornal A União quando, de se ajudar ao próximo e de nunca
durante uma reunião, Sitônio aden- se desistir dos objetivos.
trou o gabinete de trabalho. “Como
acentuei na crônica do necrológio, Semente plantada
ditos de Sitônio Pinto, mas a ideia
estávamos uns cinco ou seis da casa na família ainda está sendo trabalhada. “Estou
tentando um slogan para uma nova Ele tem 27 anos, é solteiro, pro- estudando as obras dele para esco-
fase do jornal, quando a entrada re- fessor de Educação Física, mora em lher quais poderiam ser editadas,
pentina de Sitônio nos levou mais a João Pessoa e tem pretensões de ser ainda é algo que precisa ser lapida-
seus olhos, a seu assombro, do que escritor, mais precisamente, articu- do”. Os temas que serão incluídos
às suas palavras. Chegava com seu lista. Olhando rapidamente para nesse trabalho ainda não podem ser
ouro, como surgiu com outras sur- esse breve perfil, alguns duvidariam divulgado, porque segundo Bruno
presas acendidas, pelo olhar, desco- dessa relação entre um profissional “ainda é algo recluso à família”, mas
brisse que aqui ‘o sol nasce primeiro’ da área da saúde, algo mais técnico que no momento certo deverá ser
ou o ‘Lula-lá’”, ressaltou Gonzaga. e científico, com o universo da inte- anunciado como uma forma de ho-
Foi em A União que a viúva de lectualidade, da subjetividade. Mas menagear o tio.
Otávio Sitônio Pinto, Ilka Soares, estamos falando de Bruno Otávio da A mãe de Bruno, Teresa Cristina,
também conheceu o futuro marido. Silva Albino, sobrinho e afilhado de é irmã de “criação” de Sitônio, sendo
Em suas lembranças estão os mo- Otávio Sitônio Pinto, cuja bagagem adotada por Carmélia Pereira Sitônio
mentos de quando ele chegava para conta com anos de convivência com Pinto. “Nós morávamos na mesma
exercer suas funções. “Trabalhei du- o tio, acompanhando-o em muitos casa e após o falecimento da minha c
rante anos neste jornal, tínhamos trabalhos e também na vida.
uma boa amizade. Lembro-me dele “Verdade, sou professor de Educa- foto: arquivo pessoal
chegando na redação com um chapéu ção Física, formado em 2018, e tenho a
de vaqueiro”, destacou Ilka, que entre vontade de ser escritor por influência
outras ocupações, trabalhou como de Sitônio, que sempre vi ser media-
revisora no impresso estatal. dor de uma ideia ‘incopiável’ com
Do casamento de 31 anos, ficou a artigos de opinião. Muitas vezes,
filha Mira-Céli, único fruto da união. acompanhei ele no seu escritório,
Mas Otávio Sitônio deixou mais dois escrevendo, e me enchia os olhos de
filhos e outra filha de diferentes rela- estar ali, admirando. Então, vendo-o,
cionamentos. Segundo Ilka, o marido fui me encantando e comecei também
foi um homem carinhoso, atencioso e a escrever”, declarou.
preocupado com a segurança da fa- Bruno Otávio afirmou que planeja
mília. “Como pai, amava demais seus lançar, no ano que vem, um blog com
filhos. A nossa filha, ele a colocou na textos opinativos. Um dos artigos,
natação aos dois anos de idade e a chamado ‘Ser sim e não ter’, já foi
ensinou como jogar xadrez quando revisado e aprovado pelo tio. “Me
tinha três anos. Aos nove, a colocou lembro quando eu o mostrei. Ele dis-
no caratê, e tinha muito orgulho das se: ‘Está bom’. E ali ganhei meu dia”,
vitórias que ela conseguiu nos cam- confessou Bruno. O jovem disse que
peonatos. Quanto aos estudos, nunca já escreveu outros artigos, abordando Bruno Otávio deseja seguir
os passos do tio na escrita e
pressionou uma faculdade específi- temas como empatia e amor próprio. pretente editar alguns textos
ca”, declarou. O educador físico também tem que Sitônio Pinto deixou inéditos
Ao comentar a morte do marido, planos de editar alguns textos iné-

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2022 | 13


foto: roberto guedes/a união

c vó Carmélia, na década de 1980, cada slogans como “Onde O Sol nasce


família que morava nessa casa foi primeiro”, uma referência usada até
para seu próprio lar”, frisou. hoje pelo setor turístico pessoense.
A relação estreita com o tio e pa- Pena que houve criação que não lhe
drinho iniciada na infância, intensifi- atribuíram o crédito devido. Um
cou-se na adolescência. “Foi quando exemplo foi o “Lula-lá”, publicado
ele me colocou em uma academia, me pela primeira vez em 26 de novembro
apresentou a arte marcial, o caratê. de 1988 no jornal A União e creditado,
Quando me formei em Educação Físi- em 1989, ao publicitário Carlito Maia.
ca, aos poucos, ajudei também em sua Com voz corajosa e ferrenho de-
questão de saúde. Para mim, ele está fensor de suas convicções, atuou na
viajando e, em sonho, ele retornará”. imprensa paraibana como redator,
articulista e cronista, tendo passagens
Os traços imortais registradas pelos jornais A União, e os
do paraibano extintos veículos impressos O Norte
Membro da Academia Paraibana e Correio da Paraíba. Foi membro da
de Letras (APL), Otávio Sitônio Pinto lista tríplice que dirigiu o Sindicato
ocupava a cadeira número 30. Segun- dos Jornalistas da Paraíba e ocupou
do o presidente da entidade, Rama- cargo de assessor de planejamento do
lho Leite, o escritor e publicitário era Instituto da Terra (Interpa-PB).
“um pedaço da história da Paraíba”. Para Ramalho Leite, Publicou títulos como Collor, a
“Sobrinho do lendário coronel José presidente da Academia Raposa no Planalto, Caminhos de Toboso,
Pereira Lima tornou-se a última tri-
Paraibana de Letras, Otávio Sessão das Bruxas, Deliciosos (prêmio
Sitônio Pinto era “um pedaço de Melhor Livro de Crônicas em 2001
buna de defesa do perrepismo, sem da história” do estado
medo de defender suas ideias e expô- pela Academia Paraibana de Letras) e
-las ao debate”, declarou. Dança de Urubu, que recebeu a Men-
ção Honrosa da Associação Nacional
Sobre o temperamento do ser-
de Escritores, em Brasília, no ano de
tanejo, Ramalho destacou que era
2002.
uma figura “meio arredia”, de “pou-
rística e do seu sarcasmo indispen- A obra de maior destaque foi, in-
ca festa com os amigos”, “sisudo”,
sável”, comentou Ramalho Leite. clusive com o aval de diversos amigos
mas “pronto a reagir a qualquer
intelectuais, Dom Sertão e Dona Seca,
afronta”. E uma das teses que o ensaio ganhador de três prêmios da
princesense defendia era de que Vasto legado APL. “Sua obra mais densa, um ver-
o deserto era necessário, por isso, Em 6 de maio de 1945 nascia no
dadeiro ensaio sobre o semiárido ir-
“transpor o Rio São Francisco seria município de Princesa Isabel, Sertão
regular, comete conceitos que poucos
o mesmo que aterrar o Pantanal com paraibano, Otávio Augusto Sitônio
teriam coragem de revelar”, atestou
o Planalto Central”. Pereira Pinto, nome que, em certa
o presidente da APL, Ramalho Leite.
Diante dessas convicções, Rama- ocasião, o artista plástico Chico Pe-
Ao lamentar a morte do amigo
lho recordou que Sitônio Pinto afir- reira registrou (no livro Paraíba na
sertanejo, o escritor e jornalista José
mou certa vez: “quando falam em ir- Literatura, volume 3) ser um misto
Nunes, um dos membros do Insti-
rigação do Semiárido Irregular, puxo de designação dada a imperador,
tuto Histórico e Geográfico Parai-
a peixeira”. “E há quem diga que filósofo, poeta, repentista e a “judeus
bano (IHGP), disse: “o que nos resta
puxava em outras ocasiões”, enfati- errantes”. Era filho de Otávio Sitô-
é, a partir de agora, fazer memória
nio da Silva, da família Genipapo de
zou Leite. Apesar da personalidade do trabalho que ele deixou como
Misericórdia do Vale do Piancó, e de
forte, o paraibano manteve uma boa legado, ressaltando, sobretudo, a
Carmélia Pereira Sitônio Pinto.
relação por onde passava. Conviveu sua obra máxima, que é Dom Sertão,
Ainda criança, veio morar em João
bem com seus confrades da APL, do Dona Seca”.
Pessoa onde passou por várias insti-
IHGP e da Associação Paraibana de Para Nunes, o livro, publicado em
tuições escolares, entre elas o Grupo
Imprensa (API). 2002, é um ensaio multidisciplinar
Escolar Epitácio Pessoa, o Colégio
O escritor e publicitário mante- sobre o semiárido Nordestino. “Obra
Santa Rosália, Colégio Pio X, Liceu
ve-se produtivo até as vésperas de pela qual abre discussões sobre as
Paraibano e a Escola Técnica de Co-
sua morte. Articulista do Jornal A mais diferentes variantes que pode-
mércio Epitácio Pessoa, concluindo o
União, o último texto de sua autoria riam levar a transformação da região
colegial, em regime de supletivo, na
foi publicado no veículo centenário árida, em um lugar de abundância
Escola Estadual da Prata, em Cam-
no dia 19 de junho, dois dias antes em termos econômico e social, au-
pina Grande.
do falecimento. “Sua ausência será tossuficiente na produção de bens e
Como redator, trabalhou em algu-
serviços”. E
notada naquele recando de página mas agências de Brasília e de Pernam-
de A União, onde todas as semanas buco. Foi em Recife que Sitônio deu
presenteava seus leitores com reta- origem ao Sindicato dos Publicitários
lhos da sua memória ou opinava so- de Pernambuco. Como publicitário Alexsandra Tavares é jornalista,
bre os acontecimentos do cotidiano. realizou diversos trabalhos de des- repórter do Jornal A União e do
Correio das Artes. Vive e trabalha
Sem eximir-se da sua ironia caracte- taques nacionais, criando célebres em João Pessoa (PB).

14 | João Pessoa, agosto de 2022 Correio das Artes – A UNIÃO


6 memória

Mêves Gama: ram com o nome registrado e todos


a chamavam pelo nome dado pela
mãe, ou melhor, Mêves.
Nascida em 8 de dezembro de
Primeira paraibana a gravar 1939, na rua 12 de outubro do bair-
ro de Jaguaribe, em João Pessoa
forró e rock (PB), Mêves era filha de Manoel
Gama e Inalda Pereira Costa. O
casal teve oito filhos, tendo seis de-
les chegado a idade adulta, sendo
Jocelino Tomaz de Lima Mêves a mais velha dos seis. Seus
Especial para o Correio das Artes outros irmãos são Gildete, Idel-
var (falecido), Ginaldo, Genilda
Foto: arquivo de família
e Manoel Gama Filho (falecido).
Os pequenos, que faleceram mais
cedo, foram Ivanildo, que veio a
óbito aos 11 meses, e Gilvandro,
aos oito anos.
Nessa época, o Brasil vivia a
chamada “Era do Rádio” e na Pa-
raíba, a Rádio Tabajara, inaugurada
em 1937, era a de maior destaque.
Após uma efervescência entre 1937
e 1946, a rádio teve uma estagnação
até 1950, mas em janeiro de 1951,
quando assumiu sua direção An-
tonio Lucena (irmão do político
Humberto Lucena). Foi quando
voltaram os rádio-teatros, com Lin-
duarte Noronha, os famosos pro-
gramas de auditório, entre eles o
dominical ‘Matinal do Guri’, sob o
comando de Gilberto Patrício, com
suas disputas de calouros. Mêves
e sua irmã Gildete participaram, e
ela foi a vencedora. Pouco tempo
depois, Mêves foi convidada para
ser atração do programa, sendo
contratada aos 11 anos de idade.
O pai da nova cantora era sa-
pateiro e a mãe, lavadeira. Com c

Nascida em João Pessoa, em 1939,


e hoje pouco lembrada, Mêves fez
sucesso nos programas de rádio

I
delvita Pereira Gama deveria se chamar “Mavis”, nome
de uma amiga americana da sua mãe, Mavis Vance, mas
o tabelião não sabia como escrevê-lo, daí a madrinha dela, Através do QR Code,
chamada Júlia, que foi ao cartório no lugar dos pais, achando ouça uma parceria
que poderia corrigir depois, pediu que colocasse o nome da inédita em disco entre
mãe dela, Idelvita. Ao chegar em casa, os pais não concorda- Mêves e Luiz Gonzaga

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2022 | 15


Foto: arquivo de família

c a grande quantidade de filhos, a


família vivia em dificuldades fi-
nanceiras, logo, a renda de Mêves
passou a fazer diferença na vida
da família.
Nessa época, os gêneros de
maior sucesso eram o samba, o
chorinho e o baião, este último ten-
do, poucos anos antes, ganhado
projeção através de Luiz Gonzaga.
De início, foi com chorinho que
Mêves chamou mais atenção, che-
gando a ser chamada “Garota do
Chorinho”.
Dos programas infantis, ela pas-
sou para os de maior audiência da
rádio, como os dos apresentados
por Jacy Cavalcanti e Pascoal Car-
rilho, “O Príncipe dos Auditórios”, Mêves, no palco, companhada
tendo, inclusive, a versão de ter ins- por Barbosa (afoxé), Tamires
(cavaquinho) e Vital (violão), além
pirado o famoso Chacrinha, já que, pois, tivemos nomes como Zélia do filho Flávio Queiroga na bateria
por vezes, também de se trajava de Gonzaga, com a qual tive contato e (atrás)
noiva, baiana, Papai Noel, etc. afirmou ter sido fã de Mêves Gama.
Nesses programas, os artistas Não era fácil se assumir cantora
eram acompanhados pela Orques- naqueles tempos, o preconceito era
tra Tabajara ou pelos conjuntos de enorme, muitos tinham os canto-
música regional. Na fase áurea, se res como boêmios, vagabundos,
apresentaram, na Tabajara, atra- e as cantoras como “mulheres da
ções como Angela Maria, Cauby vida”. Se evitava convidar can-
Peixoto, Vicente Celestino, Nelson tores para participar de eventos
Gonçalves, Luiz Gonzaga, Orlando Mudança para
sociais. Cantoras citam que colegas
Silva, Emilinha Borba, as irmãs de escola se afastaram delas. Por
Pernambuco
Dircinha e Linda Batista, dentre O talento de Mêves chamou
serem menores de idade, tinham
outros. Certamente, Mêves teve atenção de outras emissoras que a
que ter autorização dos pais e isso
contato com alguns deles. queriam no seu “cast”, principal-
geralmente gerava polêmica, pois
A revista Radiolândia (1954) mente as grandes rádios de Per-
“mulher que falava em rádio se
assim cita Mêves: “É um nome nambuco. Assim, após recusar con-
tornava ‘mulher falada’”. Muitas
realmente fora do comum – é uma vite da Rádio Jornal do Comércio,
tiveram seus sonhos frustrados
garota prodígio... canta melhor do no início de 1956, veio uma oferta
pelos tabus da época.
que muita gente grande”, em outra melhor da Rádio Tamandaré, de
nota, a referencia como “O maior Recife. Assim, o pai Manoel Gama,
cartaz da I-4” (como era também vislumbrando a possibilidade de
chamada a emissora). Segundo Pe- ascenção da filha e a esperança de
reira Nascimento, no livro História uma vida melhor em Pernambu-
da Radiofusão na Paraíba, “Mêves co, permitiu que Mêves aceitasse
Gama, tinha uma voz estonteante a proposta e a família se mudou
– ora aguda, ora rouca. Ela era o para Recife.
O livro ‘História A Tamandaré fazia parte do gru-
ritmo em pessoa, uma cantora por
demais escolhida para apresenta- po empresarial Diários Associados,
da Radiofusão na do paraibano Assis Chateaubriand.
ções nos programas de auditório,
sempre como atração principal. Lá, Mêves passou a ser destaque no
Considerada a “Rainha do Chori-
Paraíba’ registra programa ‘Variedades Fernando
nho”, gostava de executar sambas Castelão’, aos sábados e domingos,
e chorinhos. Mêves tinha orgulho
que Mêves Gama de início, interpretando, principal-
de ser “paraibana da gema”. mente, chorinhos e canções para o
Nessa época, as cantoras de rá- tinha uma voz Carnaval daquele ano, destacando
dio eram uma “febre nacional” composições dos paraibanos Fer-
e na Paraíba, além de Mêves, se estonteante, ora nando Peixoto e Aurélio Carvalho.
destacavam Mércia Paiva (cha- Em 1954, foi instalada, em Re-
mada de “garota prodígio” pela aguda, ora rouca. cife, a fábrica de discos Rozeblint,
sua desenvoltura com a sanfona), que lançou o selo Mocambo para
Onilda Figueredo, Penha Maria, “Ela era o ritmo música regional, dando grande
Marlene Freire, Zete Farias, Célia impulso para divulgação da mú-
Maria, Genilda Barbosa. Anos de- em pessoa” sica nordestina e vindo a ser uma c

16 | João Pessoa, agosto de 2022 Correio das Artes – A UNIÃO


Foto: arquivo de família
a compor o conjunto do “Rei do
Baião”, junto com Abdias. Foi a pri-
meira mulher a formar um conjun-
to de forró e a lançar um disco do
gênero, com o título Vamos Xaxar,
um grande sucesso. Em conversa
com a neta de Mêves, a cantora Yla-
na Queiroga, Marinês teria afirma-
do que Mêves foi a maior cantora
que ela já viu.

Cantora estreou em
disco de São João
As primeiras gravações de Mê-
ves se deram em 1958, em um co-
letânea de músicas juninas lançada
em LP pela gravadora Mocambo
chamada Viva São João. Mêves inter-
pretou o baião ‘Receita de Canjica’
e a marcha junina ‘Forró da Doro-
téia’, respectivamente dos compo-
sitores Sebastião Lopes (PE) e Alde-
mar Paiva (AL). ‘Forró da Dorotéia’
trata de personagens do programa
de rádio ‘Festa do Varandão’, como
o Seu Vém Vém e a própria Doro-
As primeiras gravações de Mêves se téia. Também participaram do LP
deram em 1958, em um coletânea de
músicas juninas lançada em LP pela os cantores Jair Pimentel e Toinho
c das maiores gravadoras do Brasil. gravadora Mocambo da Sanfona.
Ainda em 1956, Mêves era sondada ‘Receita de Canjica’ foi, segun-
pela gravadora Mocambo para lan- do o jornal Diário de Pernambuco
çar seu primeiro disco, onde pre- (29/06/1958), “A mais vendida das
tendia gravar o baião “Rosinha” e o festas juninas”. Tanto ela quanto
coco “Intriga de Sebastião”, ambos ‘Forró da Dorotéia’ ficaram várias
dos compositores paraibanos Fer- por Aldemar Paiva. Posteriormen- vezes entre “as mais vendidas da
nando Peixoto e Aurélio Carvalho. te, Mêves e Genival Lacerda seriam semana”. Outro jornal da época
“Pretendo, nos meus primeiros as maiores atrações do programa cita a paraibana como uma das
discos, gravar músicas de autores ‘Fim de Semana Castelo’, também artistas do rádio pernambucano
paraibanos”, diria, a época, em apresentado por Aldemar. Ela que possuía o maior número de fãs.
entrevista ao Jornal O Norte. Ela também abrilhantou programas Com essas gravações, Mêves foi a
também pretendia gravar o samba como ‘Brasil Matuto’, ‘Atrações do primeira paraibana a gravar e ter
“Brasileiro”, dedicado à Assis Cha- Meio-dia’ e ‘Alegria dos Bairros’. sucesso no gênero forró.
teaubriand, como forma de agra- Sua jovialidade e desenvoltura a Ainda no final de 1958, Mêves
decimento pelo reconhecimento levaram a também ser chamada gravaria o frevo ‘Segure seu Ho-
que lhe dera. de “Boneca” e seu nome artístico mem’, do renomado compositor
também variou nessa época, sendo Capiba. A música foi o maior su-
Reecontro também chamada de “Maves”. cesso do Carnaval pernambucano
Um grande reencontro de Mê- Um fato marcante no mercado de 1959, segundo o jornal Diário
ves com seu público paraibano se fonográfico, e na música nordesti- de Pernambuco. “Capiba domi-
deu em 25 de setembro de 1956, no na como um todo, se deu em 1957 nou o Carnaval. Sua frase musical
grande show de artistas recifenses como lançamento do primeiro ‘Segure seu homem’ se transfor-
na inauguração da filial das Casas disco de Marinês, a “Rainha do mou, durante o Carnaval, numa
Costa Júnior, em João Pessoa, no Xaxado”. Nascida em Pernambuco gíria popular, dirigida sempre a
suntuoso evento prestigiado, in- e vinda, ainda na infância, para uma moça ou senhora que brincava
clusive, pelo então governador da Campina Grande, Inês de Castro acompanhada do noivo ou esposo,
Paraíba, várias outras autoridades (seu verdadeiro nome) também e foi cantada de ponta a ponta, nos
e um público enorme. Também se iniciou sua carreira nos programas salões com preferência, em todo
apresentaram Genival Lacerda e o de calouros. Aos 15 anos, Marinês Recife” (DP 15/02/1959).
trio Cigano (conhecido nacional- assumiu um relacionamento com Uma diversidade de talentos,
mente na época), dentre outros. o sanfoneiro Abdias, junto com o ela também atuou como atriz de
Nessa época, Mêves já era estrela qual passou a fazer shows, prin- teatro e foi muito aplaudida, prin-
do programa ‘Festa no Varandão’, cipalmente cantando as músicas cipalmente no Teatro Marrocos,
apresentado na rádio Tamandaré de Luiz Gonzaga, depois passou em espetáculos da Companhia de c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2022 | 17


c Valença Filho, da qual fazia parte.

Foto: reprodução/r adiolândia


Além de destaque como cantora,
Mêves também era aclamada por
sua beleza, chegando a ser, por
mais de uma vez, finalista no con-
curso de “Rainha do Carnaval” de
Recife, uma delas em 1959.
Para os festejos juninos daquele
ano, Mêves voltou a gravar músi-
ca regional, lançando o primeiro
disco de 78RPM só com músicas
interpretadas por ela, com ‘Balão-
zinho Azul’ e ‘Adivinhações’, esta
última, uma composição de Nelson
Ferreira e Luiz Queiroga. As can-
ções também fizeram parte do LP/
coletânea Capelinha de Melão.

Casamento
com Luiz Queiroga
Segundo sua irmã Gildete, A revista Radiolândia, de 1954,
quando saiu da Paraíba, Mêves registrava o sucesso de Mêves
namorava e chegou a noivar com no rádio e afirmava: “É um nome
Abelardo Menezes, operador de Nesse período, Mêves, já com a realmente fora do comum”
áudio da Rádio Tabajara entre 1953 família maior, optou por se afastar
e 1955 que, a apartir daí, atuou no da carreira artística para se dedicar
departamento comercial da emis- mais aos filhos.
sora até 1996. No entanto, o noiva- Vale destacar que, quando se
do foi desfeito em 1958, quando ela encontrava no Rio, em 1973, Mêves
se encantou pelo caruarense Luiz reviveu seus tempos de caloura nos
Queiroga. programas da Tabajara, da Paraíba.
Queiroga foi parceiro artístico Na cidade carioca, ela participou dela, com músicas do paraibano
e grande amor da vida de Mêves. do famoso programa ‘A Grande Arnaldo Leão, nas quais Mêves
Se casaram em abril de 1960, já Chance’, apresentado por Flávio interpreta, dentre outras, o rock
com um filho, o atual cantor Lula Cavalcanti na TV Tupi, com a mú- ‘Canção do recruta’ primeira das 12
Queiroga, nascido um mês antes. sica “Cavalhada”, composição do faixas, que incluíam ritmos como
Os padrinhos do casamento foram marido Luiz Queiroga e de um swing, fox e valsa. Algumas fai-
dois grandes nomes da música sobrinho dele, Dade Queiroga. A xas questionam tabus da época e
pernambucana da época: Nelson performance de Mêves foi acla- caíram como uma luva na voz de
Ferreira e Aldemar de Paiva. mada e ela conquistou o primeiro Mêves, que gostava muito de dan-
Luiz Queiroga (1930-1978) foi lugar. Essa canção, posteriormente, çar, usar saias mais curtas e pintar
um nome de destaque na cultura foi gravada pela cantora Luiza de os cabelos.
pernambucana, além de radialista, Paula, que era amiga da família em O LP foi gravado pelo selo Cons-
compositor, autor teatral, humoris- Recife, no LP Nordestino, Profissão tellation, de Campina Grande (PB),
ta, autor de rádio novelas, cantor e Esperança, de 1982. e fabricado pela Rozeblint, de Re-
ator. Entre seus feitos está a criação cife. Em consulta a vários colecio-
do personagem Coronel Ludugero. Primeira paraibana a nadores e pesquisadores, entre eles
Também escreveu textos humorís- gravar rock o professor universitário Ramsés
ticos para Chico Anysio, Renato A estreia de Mêves na TV se deu Nunes, que está lançando um livro
Aragão, Dercy Gonçalves e Jô Soa- na TV Rádio Clube do Recife (canal sobre o rock na Paraíba, pudemos
res, dentre outros. Compôs mú- 6), onde, além de cantora, também constatar que esse foi o primeiro
sicas gravadas, entre outros, por manifestou sua veia humorística disco com música de rock gravado
Luiz Gonzaga, Marinês, Genival em programas como ‘Risos e Melo- na Paraíba, e Mêves, além de pio-
Lacerda e Trio Nordestino. dias’, ‘Todos Cantam a sua Terra’, neira gravando forró, também foi
‘Música e Simpatia’ e ‘Riso de Gra- a primeira paraibana a gravar rock.
Rio de janeiro ça’ (este com Consuelo Leandro, A crítica musical considerava
Em 1963, Luiz Queiroga foi con- Lúcio Mauro e Zezé Macedo). No que o talento de Mêves estava sen-
tratado pela TV Tupi e a família teatro, atuou em musicais como ‘É do pouco aproveitado pela gra-
mudou-se para o Rio de Janeiro, Proibido Falar’ (1960). vadora Mocambo, que deveria
indo morar no bairro de São Gon- A versatilidade de Mêves tam- lança-lá em LP e projetá-la nacio-
çalo. Depois da Tupi, Queiroga bém pode ser comprovada no LP nalmente.
atuou também na Rede Globo. A Psicose Musical, lançado em 1960, Seguindo com sua carreira de
família voltou para Recife em 1975. o primeiro LP totalmente na voz “forrozeira”, lançados em discos c

18 | João Pessoa, agosto de 2022 Correio das Artes – A UNIÃO


c de 78RPM e nas coletâneas Viva do compositor Donzinho, sucesso música. Foi integrante do coro de
São João temos as canções ‘A rifa em 1964; ‘Bloco do mela-mela’ e ‘O várias orquestras em Pernambuco
do menino’ e ‘Adivinhação’ (1960); velho e o novo’ (1976); ‘Banho de e na Paraíba.
‘A tomada da fogueira’ (1961); ‘Ba- lua no Carnaval’ (1977), ‘Sai mas Provavelmente em 1987, foi pro-
lão da esperança’ e ‘Lesou, lesou’ não sai’ e ‘Se você deixar’, ambos duzido mais um disco de Mêves.
(1962); ‘Arranjei um casamento’, do posteriormente renomado for- Seria uma guinada na carreira da
‘Por que mudou’ e ‘Minha rosei- rozeiro Ivan Ferraz (1978); e ‘Foi cantora, com participações de Luiz
ra” (1963), esta última lançada na você’, no LP Capital do Frevo (1983). Gonzaga, Dominguinhos e Genival
coletânea Nordeste Cabra da Peste; Boa parte desses frevos foram su- Lacerda. Porém, segundo o sobri-
‘Canto sem protesto’ (1968), ‘A cessos no Carnaval recifense e são nho da artista, Ricardo Costa, antes
volta’ (1969); ‘O filé de jumento’ lembrados até hoje. do lançamento, a gravadora Colibri
(1975). No LP/coletânea Do Sertão faliu e esse material nunca foi lan-
para a Cidade (1976), ela marca pre- De volta à Paraíba çado. Entre as faixas, se encontra
sença com a faixa ‘Só falta chover’; Na década de 1980, já sem o um dueto de Mêves Gama com
‘Zé Piaba’, lançada em um com- seu amor e parceiro Luiz Quei- Luiz Gonzaga, na canção ‘Forró no
pacto; ‘Bonde de burro’ e ‘Banho roga, falecido em 1978, Mêves, meu pé de serra”, música do com-
de cachoeira’ (1976); ‘Carro de tendo que manter seus sete filhos, positor paraibano Taty Veloz, seu
Boi’ (1977). intensificou sua carreira artísti- genro, à época. localizamos essa
As músicas ‘Arranjei um casa- ca participando dos carnavais de música e trata-se de uma canção
mento’ e ‘Por que mudou’ foram Pernambuco, gravando frevos, inédita com participação do Rei
relançadas no LP Feira de Caruaru realizando bailes junto com or- do Baião.
(1980). As coletâneas Viva São João, questras e shows diversos. Em Mêves Gama faleceu em 6 de
das quais Mêves participou até o 1980, a produção do programa dezembro de 1999 em Recife, viti-
quinto volume, assim como as cole- ‘Evoé – Aí vem o Carnaval’, da ma de câncer no pulmão, doença
tâneas Capelinha de Melão e Nordeste Super Rádio Clube, organizou adquirida pelo fato de ela ser fu-
Cabra da Peste, que também con- o LP Evoé nº 1, com a Orquestra mante.
tavam com artistas como Genival do Maestro Guedes Peixoto e vá- Na vida pessoal, do casamento
Lacerda, Os Três Boêmios, Toinho rias intérpretes, Mêves entre elas. com Luiz Queiroga, vieram sete fi-
da Sanfona, Jair Pimentel, Jacinto Apresentou-se, também, com o lhos, todos artistas: Lula Queiroga,
Silva e Coronel Ludugero, dentre show ‘Noites Recifenses’, em par- cantor, compositor, poeta, cineasta
outros. Também na coletânea Do ceria com o cantor Romilson. Em e escritor; Flávio Queiroga, empre-
Sertão para a Cidade, ela interpretou 1982, participou do coral de vozes sário e produtor cultural; Mevinha
‘Ciranda a beira mar”. do LP O Amor não é Amado, do Queiroga, cantora e pesquisadora
No Natal de 1962, a gravadora Padre Amaury de Paula. cultural; Lucke Luciano, composi-
lançou o LP Presentes Sonoros de Mêves voltou a ter mais contato tor e músico; Tostão Queiroga, ba-
Natal, uma coletânea que tem com a Paraíba na primeira metade terista; Neno Queiroga, produtor
como primeira faixa a canção dos anos 1980, com suas participa- de palco e músico; e Nena Queiro-
‘Para os namorados’, composição ções junto a orquestra do maestro ga, cantora considerada “Rainha
de Nelson Ferreira sobre o tema paraibano Vilô, que por muitos do Carnaval de Pernambuco” e “A
‘Jingle bells’, interpretada por anos animou os carnavais do Clu- Voz do Galo da Madrugada”.
Mêves Gama. Uma outra faixa, be Cabo Branco, Bandeirantes e Mevinha Queiroga também é
“Imagem de Natal’, consta como outros, além de se apresentar com autora da biografia Luiz Queiroga,
intérprete “Mevinha”, como era frequência em Pernambuco. O Humilde Imenso e está prestes a
chamada a primeira filha da can- Dessa parceria resultaram, lançar outra biografia, desta vez so-
tora, porém a própria Mevinha também, as últimas gravações de bre a vida e a obra da criação mais
afirma que, na verdade, a grava- Mêves em LPs, como Vilô e sua Or- famosa do seu pai, o personagem
ção é da própria Mêves, imitando questra fazem o Carnaval, com a faixa Coronel Ludugero.
voz de criança. ‘Tem viúvo por aí?’; Frevilô 2, com Mêves Gama, que frequente-
‘Cidade Verde’ (homenagem a João mente era elogiada por sua bele-
Frevo Pessoa) e Frevilô 1985, com ‘Paraíba za, disse: “Quando coloco minha
Mêves é mais lembrada, em Re- 400 anos’ e ‘Meu sublime torrão’, cabeça no travesseiro, à noite, e
cife, como uma grande intérprete esta última, o “hino extraoficial” consigo dormir em paz com minha
de frevos, depois do já citado su- de João Pessoa. consciência, sabendo que fui uma
cesso de ‘Segure seu homem’, que A artista também tinha um con- pessoa decente e fiz o melhor que
também foi lançada na coletânea junto regional para apresentações podia, sem passar por cima de nin-
Cidade do Frevo – Vol. 2. Nos anos no período junino. Cantou em ba- guém, é quando verdadeiramente
seguintes, gravaria frevos como ‘Tá res, restaurantes e casas noturnas. me sinto uma pessoa bonita”. E
faltando alguém’ e ‘Amor de hoje’ Gravou jingles comerciais e polí-
(1961), ‘Velho sol’ (1962); ‘Me dei- ticos e participou de festivais de
xa, Seu Freitas’ (1963) - nesse ano
participou do antológico LP Velhos Jocelino Tomaz de Lima é pesquisador e ativista cultural, presidente do
coletivo Grupo Atitude que promove voluntariamente, desde 2005, a leitura e
Carnavais do Recife, organizado por a cultura na cidade de Caiçaram(PB). Licenciado em Geografia e Bacharel em
Nelson Ferreira -; ‘Eu quero mais’, Direito. Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça da Paraíba. Mora em Caiçara.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2022 | 19


6 artigo

Sobre a
simultaneidade
dos fatos
Francisco Gil Messias
gmessias@reitoria.ufpb.br

H
á muitos anos escrevi um poema a que dei o título ‘Au-
rora’. Ele consta do meu livro ‘Olhares (Poemas bissextos),

ilustr ação: tonio


Editora Ideia, 2008. Permita-me o leitor transcrevê-lo a
seguir, para que se possa entender o porquê de sua pre-
sença neste texto:

Aurora
Em alguma casa o dia amanheceu diferente,
a aurora não irrompeu,
os passarinhos não cantaram
e a noite se estendeu.

Em alguma casa a manhã não virá com o cheiro


do café bom preparado na hora,
nem com o jornal mensageiro
das notícias do mundo lá fora.

Em alguma casa foi a noite insone,


onde algo terrível ocorreu
e as pessoas não têm ainda um nome
para o drama que aconteceu.

Em alguma casa o dia amanheceu diferente,


com choro e ranger de dentes.
É que durante a noite alguém da casa morreu
e o dia que agora nasceu
ninguém quer ter pela frente.
Em alguma casa o dia raia com dor.
Enquanto isso, o vizinho,
alheio ao que acontece,
conclui que o sol apetece
e passa o bronzeador. c

20 | João Pessoa, agosto de 2022 Correio das Artes – A UNIÃO


fotos: Sophie Bassouls /Divulgação

c Muita gente, claro, já passou


por uma aurora como essa que
o poema descreve. Eu já passei
mais de uma vez. As madruga-
das, sabemos, são grandes cei-
fadoras de vidas. Mas não foi a
experiência pessoal que me ins-
pirou o poema e sim a de uma
amiga, cujo pai morreu durante a
noite. À época, fiquei imaginan-
do como teria sido o amanhecer
daquela família, já que, então,
ainda não conhecera essa dor
mais que democrática – univer-
sal. E me veio também à mente
o plausível vizinho que nada sa-
bia do ocorrido na casa ao lado Susan Sontag: talvez seja nossa
sina ficarmos surpresos com a
e que, despreocupadamente, de simultaneidade dos fatos
manhãzinha, se prepara para to- júbilo. E continua a ensaísta:
mar sol ou ir à praia, como se fos- “Talvez seja nossa sina ficarmos
se um dia como outro qualquer. surpresos com a simultaneidade
Estava, portanto, configurada a dos fatos – com a mera extensão
simultaneidade de situações tão do mundo no tempo e no espaço. Retorno a Susan Sontag: “...
díspares, coisa que faz parte do Que estejamos aqui, agora, prós- não é ‘natural’ ficar lembrando
mundo e da vida, e da qual nem peros, seguros, com pouca pro- que o mundo é tão... amplo. Que,
sempre nos apercebemos. O poe- babilidade de dormir com fome enquanto isso está acontecendo,
ma registrou minha reflexão – e ou de sermos despedaçados por aquilo também está acontecen-
meu sentimento - naquele mo- uma explosão nesta noite... en- do”. É “natural”, portanto, não
mento já longínquo, continuan- quanto longe daqui, em outras pensarmos na simultaneidade
do, creio, perfeitamente atual. partes do mundo, exatamente dos acontecimentos, preservan-
Enquanto um chora, o outro ri, agora ... em Grózni, em Najaf, no do-nos em nosso “mundinho”.
diz a canção. E é exatamente as- Sudão, no Congo, em Gaza, nas E ela conclui: “... é por isso que
sim. Milhões de vezes ao dia. Na favelas do Rio...”. E não é mesmo precisamos de ficção: para am-
verdade, o tempo inteiro é assim assim, leitor? pliar o nosso mundo”. Eu diria:
– e não nos damos conta. O que Por que essa nossa surpresa para ampliar o nosso mundinho,
é bom, penso, pois do contrário com tais simultaneidades con- no qual, inscientes, nos prepara-
enlouqueceríamos, sem condi- trastantes? Por acaso não sa- mos para passar o bronzeador,
ções de aproveitar e viver cada bemos que elas ocorrem desde enquanto, ao lado, nossos vizi-
momento bom ou simplesmente sempre? Por que as ignoramos, nhos passam pela dor.
“normal”, sob a angústia ator- como se não existissem? Será Que seria de nós, portan-
doante da ciência contínua do uma defesa da nossa estrutura to, sem a literatura de ficção? E
sofrimento alheio, imposta pela psicológica, para que possamos como vivem os que não gostam
solidariedade e pela compaixão. tocar o nosso barco particular, de ler? A pessoa pode ficar to-
A dor dos outros embota nossa indiferentes ou alheios ao que talmente limitada pela doença e
alegria. acontece mais adiante com os pela velhice, mas se gosta de ler
A escritora e ensaísta norte- outros, e cuja ciência certamen- e consegue fazê-lo, tudo será su-
-americana Susan Sontag refle- te nos afundaria na depressão? portável. Nesse aspecto, os livros
tiu sobre isso numa conferên- Como lidarmos com a dor que superam todos os remédios. Ben-
cia a que deu o título Ao mesmo não é nossa mas que sabemos ditos sejam eles! I
tempo: O romancista e a discussão existir? Graves questões. E, nor-
moral, cujo texto integra o livro malmente, passamos ao largo
Ao mesmo tempo, Companhia das delas. Salvo quando acordamos
Letras, 2008. E foi a leitura des- tranquilos e percebemos que a
sa conferência que me trouxe ao noite do nosso vizinho foi de pe-
pensamento o poema antigo e sadelo.
sua história.
Segundo Sontag, Voltaire, ao
tomar conhecimento das terrí-
veis notícias sobre o grande ter- Francisco Gil Messias é bacharel em Direito pela UFPB, mestre
em Direito do Estado pela UFSC e foi procurador federal junto à
remoto que arrasou Lisboa em 1º UFPB. É autor dos livros ‘Olhares: Poemas Bissextos’, ‘Na Medida
de novembro de 1755, escreveu, do Possível: Poemas da Aldeia’ e ‘Um Dedo de Prosa: Escritos
desolado: “Lisboa jaz em ruínas da Aldeia’. Seu mais recente livro é ‘O Redator de Obituários:
e aqui em Paris nós dançamos”. Crônicas Artigos e Talvez Ensaios’, a ser lançado em setembro de
2022 (todos pela Ideia Editora). Mora em João Pessoa (PB).
Simultaneidade do pesar e do

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2022 | 21


POE

João Trin
Encantamento
Eu te direi palavras doces
e tingirei teu corpo de mel
Sem me lambuzar.
Eu saberei amar em silêncio
como amam as pedras
9 De fevereiro
como brilha a luz. E irrompe a coluna,
E saberei caminhar pelo teu monstro,
céu grandiosa,
sem fazer alarde. pela cidadezinha.
Eu te darei um gozo infinito Alguém atirou,
e farei do teu grito quebrando o combinado.
uma eterna oração. E irrompe a coluna,
Febril, vingativa,
Sanguinária.
Maria E quebra a cidade,
rompendo o silêncio.
Quem diria
Os tiros são balas
Que Maria
de destruição.
Choveria
Arrastam o padre
Novamente
e riem, e choram, e gritam
Em mim?
IRADOS.
Não era pluviométrica,
Bebem o sangue da vingança.
Nem pluvimedonha:
Carótida rasgada,
Simplesmente
o padre agoniza,
MARIA
engolindo os órgãos (genitais)
Mas veio
com grande aflição.
Das cinzas
A coluna passou.
Sem carnaval.
E deu um sorriso
Meio maroto
Meio irônico
No meio da manhã...
Meio de saudade?
Maria longe dos trilhos
Do brilho
Das solenidades
Maria saudade
Que permanece Canção sertaneja
Platonicamente
Chovendo. Se o feijão falta
A mesa é farta
Criação De preocupação.
Se o feijão some
Para Sérgio de Castro Pinto O homem se consome
Eu brinco com as palavras Em eterna aflição.
Mágico poeta E fica sem planos,
Que retrata a vida: Perdido no Plano
Eterna folha de papel. Das contradições.
Debulhe-se o feijão,
Eu brinco com o sonho, Poupança infinita,
Mágico poema, E não falte o pão,
Velho estratagema Que a sociedade grita.
De enganar a solidão.

22 | João Pessoa, agosto de 2022 Correio das Artes – A UNIÃO


SIA
ilustr ação: tonio

Trindade

João Trindade é poeta e


cronista. Autor, entre outras
obras, de “Um Pouco Além do
Sonho” (poemas), editora A
União, 1981; e “O Estranho
Professor de Violão” (crônicas),
editora Ideia, 2022. Já foi
editor deste suplemento.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2022 | 23


6 artigo

O antropófago
va em Vila Madalena num imóvel
modesto, tinha a saúde debilitada
pela diabetes e estava muito magro
aos 64 anos de idade. Perguntou a
Marcos se ele havia lido seu livro

atormentado
Um homem sem profissão. Ao ouvir a
resposta afirmativa, o veterano es-
critor paulistano disse que a morte
de Daisy, de certo modo, fora culpa
sua, por tê-la incentivado a abortar
Adhailton Lacet Porto um filho que ele nem tinha certe-
Especial para o Correio das Artes
za se era seu. Daisy era como Os-

O
bviamente é o tempo pre- meçou a ser bajulado e receber wald chamava a normalista Maria
sente o que nos importa – ao convites para eventos. de Lourdes Castro Dolzani. Nessa
menos para a maioria das Foi num desses encontros que, época, Owald era casado com sua
pessoas -, pois nele vivemos e faze- à época atormentado, e já ficando primeira esposa.
mos acontecer. Todos nós conhe- esquecido pelo público, Oswald Após o aborto a saúde de Daisy
cemos alguém que, decadente e de Andrade conheceu o também definhou em decorrência de uma
esquecido, alimenta-se das glórias escritor, então iniciante, Marcos hemorragia agravada por uma
do passado. Concordo que fatos Rey. Houve admiração recíproca tuberculose. Oswald toma uma
pretéritos, se marcantes em nossas e ficaram amigos. Oswald até es- decisão: larga a esposa e sai para
vidas, devem ser lembrados: mo- creveu um artigo em sua coluna casar com Daisy dentro do pró-
mentos felizes, conquistas e filhos “Telefonema”, no jornal Correio prio quarto do hospital, no leito de
realizados nos dizem que viver é da Manhã, do Rio de Janeiro, em morte. Duas semanas após a união
bom, até fracassos e tragédias, pois 2 de fevereiro de 1954, elogiando o dos dois, Daisy morre. Nas suas
também nos dão lição de vida. primeiro livro de Rey, Um gato no memórias, Oswald escreve: “A que
Agora, viver atormentado por um triângulo. encontrei enfim, para ser toda mi-
acontecimento do passado é abaca- Por outro lado, Wilson Mar- nha, meu ciúme matou…” (in Um
xi para analista descascar. tins, crítico respeitado e impiedo- homem sem profissão, Companhia
Nos anos 1950, a socialite pau- so, tachou o livro de Marcos de das Letras, 2019).
listana (mas espanhola de nasci- “melodrama barato”. Meio século O escritor Carlos Maranhão no
mento) Carmem Dolores Barbosa depois, em sua monumental obra livro Maldição e glória – A vida e o
costumava reunir, nas terças-fei- História da Inteligência Brasileira, mundo do escritor Marcos Rey (Com-
ras, em seu apartamento situado reafirmou: “Eu até o elogiei mais tar- panhia das Letras, 2004), registra
na Rua General Jardim, 51, 3º an- de, mas ele era fraquinho no começo da que após a morte de Daisy, Oswal-
dar, muitos escritores, não se sabe carreira”. do “Por um longo tempo, guardou
bem por qual motivo, mas tinha Já com a amizade sedimentada restos de palha das duas cestas de flo-
admiração pelos cultores das le- com o responsável pelo movimen- res que enfeitaram o quarto no casa-
tras. Tanto que, certa feita, Clarice to antropofágico de 1928, Marcos mento e um busto de Daisy esculpido
Lispector disse desconhecer qual Rey sugere a Oswald de Andrade por Victor Brecheret…”.
“a razão do envolvimento de tal escreverem juntos um livro, uma E durante aquela conversa que
senhora com tantos escritores”. espécie de entrevista longa. Mar- tivera com Marcos Rey, trinta e
A única queixa que os escrito- cos perguntava e Oswald respon- cinco anos após a morte de Daisy,
res faziam dessas reuniões é que dia. O participante da Semana de que fora enterrada vestida de bran-
a anfitriã não servia bebida alcoó- Arte Moderna de 1922 gostou da co no túmulo da família Andrade,
lica (a exceção foi quando William ideia e começaram a se encontrar no Cemitério da Consolação em
Faulkner, que era bom de copo, sempre na casa do autor de O Rei São Paulo, Oswald nem de longe
veio ao Brasil e visitou seu aparta- da vela. Foi numa dessas conversas lembrava aquele homem polêmi-
mento). que Oswald revelou a Marcos Rey co, rico, esbanjador e mulheren-
Escritor gosta de ser paparica- um fato que o atormentava por se go que fora no passado. Tinha se
do – aliás, como todo o mundo – sentir culpado, e que está narrado transformado num antropófago
e talvez isso justificasse o sucesso no seu livro de memórias Um ho- atormentado. I
desses encontros de intelectuais. mem sem profissão.
Lembro que, em entrevista, o escri- Oswald, que nessa época mora-
tor paulistano Bernardo Kucinski
afirmou que em mais de 30 anos
de jornalista e professor nunca lhe Adhailton Lacet Porto é juiz e escritor, mora em João Pessoa. Autor do livro Os ditos
fizeram nenhum agrado, porém, do quiçá (Arribaçã, 2020, 2ª ed. 2022), escreve crônicas e contos e colabora com o
quando decidiu virar escritor co- site MaisPB e o Diário de Pernambuco.

24 | João Pessoa, agosto de 2022 Correio das Artes – A UNIÃO


6 scholia
Milton Marques Júnior
marquesjr45@hotmail.com

José Américo
e os poetas da abolição

N
o dia 13 de maio de 1909, o poeta Augusto dos Anjos proferir a conferência “Poetas da Abolição”,
proferiu uma palestra no Teatro Santa Rosa, de João realizada no dia 13 de maio de 1921, a convite
Pessoa, abordando a escravidão e suas consequên- do Grêmio 24 de Março, do Liceu Paraibano.
cias danosas. Foi um discurso genérico, em que o São especulações, mas não de todo impro-
poeta fez um histórico da escravidão, de modo a váveis.
chegar no Brasil, concluindo com uma exaltação a O fato é que, se os dois escritores, em
José do Patrocínio, que “representou o maior fator momentos e locais diferentes, abordaram
dinâmico na reorganização onímoda de nossa vida tema semelhante, a finalidade se apresenta
política”, considerado “o Buda libertador dos últi- diferente, no fundo e na forma. Poderíamos
mos escravos que gemiam nas senzalas aberratórias dizer que o discurso de Augusto dos Anjos,
da humanidade culta!” (ANJOS, 1994, p. 651). Des- além de mais genérico, tem uma finalidade
taque-se que o poeta do Eu estava muito adiante do social, de que assoma o aspecto político, no
seu tempo, ao utilizar o termo “escravizado”, muito bom sentido que a palavra tem. Na conferên-
difundido hoje em dia, em lugar de “escravo” (idem, cia de José Américo, a preocupação é verificar
p. 650). Seu texto foi publicado, em seguida pelo como o assunto foi abordado, não apenas do
jornal A União, nos dias 20, 22 e 23 de maio de 1909. aspecto puramente político, pelos jornalistas,
É possível que o jovem José Américo de Almeida, por exemplo, mas do aspecto estético, prin-
então com 22 anos, tenha estado presente ao evento cipalmente, com o termo “poeta” ganhando
e que isto o tenha motivado a aceitar o convite para uma dimensão maior do que aquele que
produz poemas, passando a designar tam-
foto: arquivo a união bém os prosadores, como Aluísio Azevedo
e os jornalistas e políticos combativos da
época. José Américo, portanto, torna o seu
texto mais aprofundado do que o de Augusto
dos Anjos, quando procura ler nos poetas o
horror da escravidão, sem abrir mão de uma
preocupação social.
No exórdio de sua conferência, José Amé-
rico fala da importância que tem a habilidade
do saber ler em público, dando a atenção
devida à entonação, às pausas, como um re-
curso para não cansar ou entediar o ouvinte.
O orador ou o leitor precisa saber dizer o
que lê, pois ouvir um texto é tão importante
quanto escrevê-lo ou lê-lo.
O escritor vai, então, para a primeira parte
de sua exposição, apresentando um histórico
Quando procura ler,
nos poetas, o horror
da escravidão, desde o tempo mais remotos,
da escravidão, José entre os persas, hebreus, egípcios, babilôni-
Américo (foto) torna cos, gregos, romanos, até a sua vinda para
seu texto mais o Brasil, expressando a dor e a miséria da
aprofundado que
o de Augusto dos
escravidão, no apartamento, e na travessia
Anjos desumana “no brigue infecto”, lamentando-a c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2022 | 25


6 scholia
c como “uma organização universal” estadistas que se mostraram favorá- seu texto: uma referência, ao menos
(p. 4). Diante da crueldade de uma veis à abolição e cujos projetos, como en passant, à palestra sobre a escravi-
página recontada de Melo Moraes o de Antônio Prado (Lei do Sexagená- dão, realizada por Augusto dos An-
Filho, surge o escritor que se apoia rio, 1885) e o de Correia de Oliveira jos, em 1909, no Teatro Santa Rosa – é
em Castro Alves, em seu poema “O (Lei Abolição da Escravatura, 1888), possível também que ele não tenha
Navio Negreiro”, na referência ao foram fundamentais para o fim da tido notícia desse acontecimento –,
“quadro dantesco” da tragédia que se escravidão institucional no Brasil. e a citação do poeta do Pau d’Arco
desenrola, também, durante o tráfico É só a partir da página 13 que José como um dos que fizeram registro
negreiro. Américo começa a entrar no cerne de contra a escravidão, em seu livro Eu,
No quadro que procura pintar da sua conferência, falando da impor- no soneto “Ricordanza della mia Gio-
desumanidade da escravidão, José tância dos poetas, para a causa abo- ventù”. Podemos até compreender a
Américo mostra a irracionalidade licionista, ainda que pareça menos ausência das referências aos poemas
das Ordenações portuguesas – as Ma- importante aos olhos de sua época de Augusto do Anjos, tendo em vista
nuelinas e as Filipinas -, seguindo o e, principalmente, de hoje, diz ele. que o Eu não trata dessa escravidão
que Euclides da Cunha já fizera no A poesia abolicionista é tratada pelo específica, senão a escravidão do
Capítulo I de “O Homem”, segunda escritor como um gesto “humanitário homem encerrado na materialidade
parte de Os sertões. Diz Euclides: e social”, elevando-se ao estatuto de de que não consegue se libertar. Mas
uma literatura militante – “Sim, a caberia um registro à conferência do
“As velhas ordenações, esta- poesia, fremente de piedade, acionou poeta, como um dos momentos im-
tuindo o ‘como se podem enjei- a ideia da emancipação” (p. 13) –, portantes na história da escravidão
tar os escravos e bestas por os pois, “no Brasil, em vez dos guerrei- brasileira, sobretudo diante da pro-
acharem doentes ou mancos’, ros, foram os poetas que pelejaram ximidade do fato, momento em que
denunciam a brutalidade da pelo ideal da abolição” (p. 12). a escravidão real ainda se observava.
época” (CUNHA, 2019, p. 96- Com este conceito, José Américo Ao final da conferência, José Amé-
97). faz a separação entre o lirismo amo- rico de Almeida refere-se à revolu-
roso do lamento individual, desta- ção soviética; condena a violência
O que reverbera na conferência do cando daí a poesia que se engaja em e credita à juventude esse trabalho
autor de A bagaceira: uma causa social. O problema é que transformador para o bem comum.
a qualidade da criação poética pode A violência e a cultura da guerra,
“Podemos aquilatar o espíri- estar em uma ou outra, nas duas, ou no seu entendimento, devem ser
to dessa civilização que reduzia em nenhuma, tendo em vista que o substituídas pela lei do Amor. Para
a condição humana à cousa ve- que define a qualidade poética é a a fundamentação de sua ideia, José
nal pelos termos do título 16, urdidura que o poeta faz. Américo faz a referência ao “Sermão
liv. 4º das Ordenações Manue- É nesse momento de sua confe- da Montanha”, de Jesus Cristo. Acre-
linas: ‘Como se podem enjeitar rência que José Américo de Almeida ditando no amor, na filantropia e no
os escravos e bestas por os acha- elenca poetas vários e trechos de seus altruísmo, o escritor renega Lenine
rem doentes ou mancos’. As poemas, de modo a mostrar a indig- e a doutrina marxista, ironizando o
Ordenações Filipinas apresen- nação geral com a monstruosidade ideal igualitário buscado por ela: Só
tam quase a mesma redação, de uma situação. Não vamos detalhar se for “a igualdade da cova rasa...” (p.
no liv. 4, tít. 17: ‘Quando os que quantos e quais são os poetas, pois 25). A revolução, se houver, há de ser
compram escravos ou bestas as o leitor terá a oportunidade de ler e pacífica, transformadora e em nome
poderão enjeitar por doenças apreciar a conferência em seus deta- do bem comum:
ou manqueiras.’” (p. 5). lhes. Gostaríamos, no entanto, de res-
saltar algumas faltas que sentimos no “Somos um povo abençoado
De modo a acentuar a violência seu texto. Adiantamos que são mais de Deus: enquanto os outros
e a brutalidade, José Américo faz lacunas nossas do que de José Amé- vão colher as conquistas da ci-
referência a alguns instrumentos de rico que, em momento algum mostra vilização nos abismos das lutas
tortura aplicados ao escravo, bem querer exaurir tão vasto assunto. intestinas, mergulhando em
como à degradação, levando a um A nosso ver, Castro Alves deveria sangueiras, nós alcançamos os
desejo de fuga. ter sido mais exigido no texto. Não mesmos frutos na solidarieda-
Seguem-se algumas referências só pelo grande poeta que é, mas por de dos transportes patrióticos.”
elogiosas, sensuais e brejeiras às mu- ser autor de dois livros de poesia (p. 24)
lheres negras, na poesia de vários abordando a escravidão – Cachoeira
escritores, bem como o elogio aos de Paulo Afonso (1876) e Os escravos Acreditando que a democracia é
que lutaram a luta legal pela abolição, (1883). José Américo dedica-lhe duas a saída para se resolverem os pro-
acompanhando uma breve evolução páginas e umas poucas estrofes, fa- blemas da desigualdade social, José
da história da abolição, da revolução zendo referências apenas aos dois Américo nos brinda com uma frase
francesa ao congresso de Viena. An- mais conhecidos textos do poeta – “O que, tendo mais de cem anos, rever-
tes de passar à parte substancial de Navio Negreiro” e “Vozes d’África”, bera como se houvesse sido escrita
sua conferência, José Américo elenca ambos de Os escravos. Por outro lado, hoje: c
uma série de jornalistas, políticos e sentimos também duas ausências no

26 | João Pessoa, agosto de 2022 Correio das Artes – A UNIÃO


6 scholia
c “O que deprime e desmo- o maior argumento, encontra-se na

foto: reprodução
raliza o regime são os seus excelente companhia de Camões,
monstruosos desvios; a política como podemos ver em Os Lusíadas,
vesga; os governos aladroados; Canto V, estância 97, verso 8 – “Por-
a orgia das injustiças; a preteri- que quem não sabe a arte, não na
ção dos valores; o favoritismo estima” (itálico nosso).
exclusivista; a mão de ferro dos No que diz respeito às línguas
mandões!... estrangeiras citadas por José Amé-
Tentemos ainda conjurar as rico, fizemos, quando necessário,
correntes racionárias pelo exer- os ajustes da ortografia, como é o
cício das virtudes republicanas. caso da língua francesa, em que al-
Restaurando-se a moralidade guns acentos não foram colocados,
administrativa, suprimindo- conforme ocorre, por exemplo, em
-se o monopólio dos cargos re- “chatiments”/châtiments”, na citação
munerados, conciliando-se as da obra de Victor Hugo. Há casos em
tendências, estabelecendo-se Castro Alves chegou que o autor foi traído pela composi-
a escrever dois livros
um sistema de compensações, de poesia abordando a
ção tipográfica. É assim que “Emílio
poderá subsistir o nosso estado escravidão: ‘Cachoeira Rouède” vira “Emílio Ronède”, como
social e político.” (p. 25). de Paulo Afonso’ e ‘Os o “u” é um “n” de cabeça para baixo,
escravos’ no antigo sistema de composição grá-
É preciso, como diz o escritor que fica, torna-se evidente que a confusão
“emendemos, antes, os costumes” (p. não é de José Américo. Do mesmo
25), sem isso, a sociedade não poderá modo, quando ele cita o nome de
avançar, nem a violência irá resolver de edição do texto da conferência. Gustave Le Bon, a impressão tipo-
o que só a “caridade, fraternidade, Aplicamos o itálico nos títulos de gráfica transformou em “Gustavo Le
solidarismo, filantropia, altruísmo, algumas obras, a exemplo da Ilíada e Bon”. Ora, na sequência do nome do
humanitarismo”, poderão alcançar. da Odisseia, não só porque o próprio autor francês há uma citação em lín-
Não importa de onde venham, estas José Américo faz isto para outras gua francesa. Não teria sentido fazer
virtudes são a base para a transforma- obras citadas, mas, para destaque e a citação em francês e aportuguesar
ção social, juntamente com a coibição uniformização do texto, conforme o o nome do autor, por isto fizemos as
dos descalabros administrativos. A uso corrente. correções necessárias para “Rouède”
nosso ver, a conferência de José Amé- Preservamos algumas formas, e “Gustave”.
rico, mais do que falar de poetas e de de modo a não perder o sabor da A nossa intenção sempre foi a
poesia abolicionista, é uma mensa- época do texto, nem a erudição de de preservar o texto de José Améri-
gem de esperança, que ainda não foi José Américo de Almeida. Assim é co, mas apontando, sempre que for
entendida. que mantivemos “cousa”, em lugar possível, as divergências de edição,
Com a recente publicação do livro de “coisa”, e “calefrios”, em lugar quando elas surgirem. Ao que parece,
(José Américo de Almeida, Os poetas de “calafrios”, entre outros termos. o escritor cita muito versos de memó-
da abolição; organização de Astenio Gostaríamos, contudo de chamar a ria, ou de edições mal cuidadas, por
Cesar Fernandes e Milton Marques atenção para o uso da forma “não esse motivo é que, nas notas, apre-
Junior, João Pessoa, Editora Ideia, na”, em que o objeto direto prono- sentamos uma edição condizente
2022), cabem ainda algumas palavras minal, facilitando a prolação, recebe com o texto original citado por José
a respeito da edição do texto. O que a nasalização do advérbio, em lugar Américo.
fizemos foi uma atualização ortográ- de “não a”, que mantivemos, pela Por fim, esclarecemos que as notas
fica da conferência de José Américo, elegância do estilo, como vemos na são apenas orientações para o leitor,
de acordo com a ortografia vigente. frase da página 6: não têm o sentido de exaurir as refe-
Não fizemos uma edição textual a rências feitas por José Américo. Mes-
rigor, filológica. Para tanto, necessi- “E a frota negreira injuriava mo porque há nomes que não con-
taríamos, além do texto do livro, do o oceano, montando o seu dor- seguimos identificar, alguns só com
texto que foi reproduzido no jornal so, encrespado, fiada em que a ajuda do Google, de que fizemos,
A União, em 1921. Em último caso, não na tragaria a vingança dos nestes casos, a paráfrase. Se o leitor
necessitaríamos também do texto naufrágios, com pena daquele quiser mais explicações sobre alguns
manuscrito. magote de deserdados que es- fatos e sobre alguns nomes deve ir em
A atualização e padronização do trebuchavam nos porões. Pie- busca de livros especializados. I
texto se fez necessária, pois a ortogra- guice do mar” (itálico nosso).
fia da língua já mudou muito de 1921
para os dias de hoje, tendo a última José Américo, e este poderia ser
mudança ocorrida em 2002, com o
acordo ortográfico assinado pelos
países de língua portuguesa. Passa- Milton Marques Júnior é professor da Universidade Federal da
mos, então, a descrever as ocorrências Paraíba (UFPB). Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2022 | 27


6 entrevista

Os fios da arte Estudos abordam obras de


Artur Bispo do Rosario e
Judith Ann Scott

Eduardo Augusto Este afastamento do convívio familiar


Especial para o Correio das Artes agravou severamente sua condição,
(Colaborou Roxenne Nunes)
a tal ponto de, apenas nos anos 1980,
identificarem sua surdez.

C
hega pela editora Estação Liberdade o trabalho de fôlego da profes- Esse agravamento tornou Judith
sora doutora Solange de Oliveira, Arte Por Um Fio, estudo em dois ainda mais reclusa, afetando de tal
volumes sobre Artur Bispo do Rosario e Judith Ann Scott. Nestes forma suas funções cognitivas que
volumes, a autora entrelaça os fios condutores de uma arte em ela permaneceu em seu silêncio e iso-
estado bruto, tendo como força propulsora suas próprias punções. lamento por longos anos, até o reen-
No primeiro volume, Solange aborda Arthur Bispo do Rosario, contro com a irmã. Mas apesar desse
mostrando sua trajetória de vida a partir do asilo em instituições silenciamento, ainda era capaz de ser
manicomiais e de suas memórias em um Sergipe embrionário. tocada pelas imagens e texturas.
Trazendo o conceito de Jean Dubuffe de art brut e a fenomenolo- A autora ressalta a impressionante
gia de Merleau-Ponty, Solange alinha as memórias do artista, onde capacidade de criação da Judith, em
estão presentes sua terra natal, as representações dos folguedos que suas obras ganham, no decorrer
populares, o artesanato e a religiosidade. dos anos, personalidade e consolidam
Evidenciando a parte têxtil do trabalho de Bispo do Rosario, a seu estilo próprio. Judith faleceu em
autora nos coloca diante do azul dos fios, que nos lançam nas mais 2005, aos 62 anos. Hoje, sua irmã,
duras reflexões sobre nossa própria condição. Joyce, dedica-se ao cuidado e divul-
Já no segundo volume, Solange lança luz sobre Judith Ann Scott, gação das obras.
artista estadunidense, usando com aporte teórico o filosofo Henri Professora Solange de Oliveira
Bergson para dar conta do percurso de vida e obra da artista. apresenta um trabalho pioneiro, tra-
Judith nasceu em Ohio, conviveu com sua irmã gêmea até os zendo nova perspectiva ao trabalho
sete anos, quando foi diagnosticada com Síndrome de Down e en- entre arte e psicanálise, como afirma o
caminhada para instituições onde viveu até sua morte, aos 62 anos. professor Ricardo Fabbrini (FFLCH):
“Não se trata, porém, de uma apli-
cação da psicanalise à arte, ou seja,
foto: divulgação
de uma subsunção das obras artísti-
cas aos conceitos psicanalíticos para
‘Arte Por Um Fio’:
Solange de Oliveira reduzi-los aos sintomas, mas de um
lançou dois livros texto que pressupõe a ‘implicação’
com estudos sobre a reciproca entre os dois campos”.
produção de artistas
Solange nasceu em São Paulo, é
internadas em
instituições graduada em artes visuais e filoso-
fia, doutora em psicologia social. Foi
docente no departamento de Artes
Visuais e Design da Universidade
Federal de Sergipe, desenvolveu sua
pesquisa em estética e filosofia con-
temporânea junto ao departamento
de Filosofia da Universidade de São
Paulo.
Se aprofundou nos estudos da ima-
gem pelo campo da fenomenologia,
transitando pelo campo da memória,
intuição e as condições existenciais.
Nos últimos anos tem se debruçado c

28 | João Pessoa, agosto de 2022 Correio das Artes – A UNIÃO


c sobre Arte Ínsita e da Outsider Art.
Em entrevista exclusiva ao Correio

fot o: divu lga ção


das Artes, Solange faz um apanhado
de sua carreira, vida profissional,
arte e da imersão na obra dos artistas
estudados por ela, uma fala de quem
é apaixonada pela arte. Vamos ler
Solange de Oliveira.

A entrevista
n Como foi o processo de imersão
nessas realidades? O que te motivou
a seguir esse caminho?
– Quando eu voltei para a universi-
dade, já na USP, eu resgatei essa pai-
xão que eu tinha pelas artes visuais.
Fui fazer um mestrado e pensei um
pouco no que eu gosto, e lembrei de
uma aula que eu tive há muitos anos,
lá na graduação em artes visuais, que
era sobre um artista que vivia asilado
num manicômio, e eu lembro de ter
ficado muito impressionada com a
obra (dele). Assim, eu puxei de volta
o (Arthur) Bispo (do Rosario) para a
minha vida. Então, como sou fenome-
nóloga e existencialista, não poderia
ser diferente o caminho que eu fiz,
que foi tematizar o Arthur Bispo, mas
segundo uma perspectiva existencial
minha, e eu venho de uma família
que as mulheres costuram e bordam.
Então eu trabalho com o acervo do
Arthur Bispo de uma maneira global,
mais especificamente com o recorte
do acervo têxtil. Isto compõem, mais introjetamos essas histórias, esses muito respeitosa na medida em que
ou menos, 86% das obras, muita coisa mitos, todo esse paradigma dos têxtis, aceita o que cada um é ou o que cada
bordada e têxtil. Eu trabalho com mas a gente nem se dá conta de como um decidiu ser.
o significante desse acervo: o que eles são presentes no nosso vocabulá-
significa bordar? O que é bordar? rio cotidiano, por exemplo: “Fulano n Isso está ressaltado no seu traba-
Porque essa coisa com o bordado, não serve nem para pano de chão”, ou lho, ele é muito poético. Não é aquele
com a costura, ela é muito antiga... na “Isso aí vai dar pano para a manga”. texto crítico de arte hermético...
mitologia grega, havia mulheres que Então foi mais ou menos esse o meu – Essa é uma maneira como a fe-
costuravam o destino: as três moiras! percurso, por isso o meu envolvimen- nomenologia lida com os objetos de
Uma tecia o fio da vida, a outra enro- to de como esses artistas trabalham arte, porque senão você fica tradu-
lava o fio da vida e a terceira, cortava com os têxteis, a abordagem da ter- zindo as coisas em palavras. Existe
o fio da vida, tematizando, assim, o minologia, que é a abordagem que uma articulação pela fenomenologia
surgimento, o desenvolvimento da é eu faço no meu trabalho em geral. que é assim: você lida com a arte em
decrepitude, o ciclo da vida relacio- (...) Um belo dia, eu tive uma aula termos artísticos, você não traduz!
nado com o têxtil, além, também, onde a abordagem era fenomenolo- É quase como se você pesquisasse
da Penélope, que aguarda a volta do gia, e eu sai de lá com duas sensações: mesmo sobre aquilo, é como se você
Ulisses por 20 anos, e como ela tinha a primeira foi “Nossa, não entendi fizesse arte inspirado pela arte, essa é
um poder político, de reger uma cida- nada!” e a segunda foi “Nossa, que a maneira com que a fenomenologia
de enquanto o marido estava ausente, coisa maravilhosa!”. Parece que era lida com os objetos de arte.
muitos pretendentes queriam usá-la isso que eu sempre estive procurando
para poder ter esse poder político, para lidar com os assuntos de arte, e n Noto que nos seus trabalhos, a
então ela diz que vai se casar quando eu não consigo olhar para os objetos senhora não utiliza a fenomenologia
terminar uma tapeçaria, e ela a tece de arte sem ser por este olhar da fe- Hegeliana. Poderia falar um pouco
durante o dia e a desfaz durante a nomenologia existencialista, que eu sobre quais autores usa como aporte
noite, para postergar essa união, até acho muito humana, muito libertária, teórico para o seu trabalho?
que Ulisses volte. Então tem todo um às vezes até anárquica. É uma manei- – Eu uso os franceses. É bem dife-
mapa mental, uma geografia mental, ra de olhar para as coisas sem análise, rente da fenomenologia alemã. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2022 | 29


c Eu esqueci de te falar isso, eu te- ela é aflitiva, ela se fecha em um es- mando o que ela julgava não-arte,
nho uma segunda graduação, que é tado de melancolia, de agonia... As para poder dar fôlego ao mercado?
em filosofia, porque quando eu me pessoas que fazem coisas absurdas, – Na verdade, não é que eles jul-
apaixonei pela fenomenologia, eu por exemplo, o Zezão, que é um grafi- gavam não-arte. Eu acho que existe
percebi que eu ia ter que fazer um teiro paulistano. Ele era um motoboy uma coisa, vamos separar assim: o
curso, uma faculdade de filosofia para que, quando ele acabava de fazer que é consenso, o que todo mundo
poder entender, porque é tudo muito as entregas dele, no final do dia, ele concorda e o que as pessoas discor-
complexo. A fenomenologia alemã, vestia uma roupa toda emborrachada, dam. Todo mundo concorda que tem
em geral, é um pouco mais durinha... botas de borracha, entrava em um expressão de sentido nessa produção.
E aí você fica só com o Heidegger, que duto de esgoto perto da rodoviária de É uma produção exuberante. Se eu
ele é um pouco mais orgânico. Mas a São Paulo, caminhava por dentro dos começar a especificar, não vou parar
fenomenologia francesa é outra histó- esgotos e grafitava nesses esgotos, até mais. Mas vou dar um exemplo, vai.
ria, inclusive existe uma disputa entre o sistema das artes, os pesquisadores, O consenso é: todo mundo concorda
os pensadores alemães e franceses. doutorandos, começaram a carregar que essa produção tem valor expressi-
Os alemães falam assim: “Ah, aquela o Zezão para a defesa de tese: “Olha vo muito alto. O que é uma discordân-
filosofia da escritura...”. Eles acham isso aqui, tal, tal...”, e aí as galerias cia? Uma disputa discursiva, porque,
que é quase como se fosse uma litera- chiques do Jardins (bairro paulista- na verdade, quer dizer assim: isso é
tura, sabe, eles desprezam um pouco no) resolveram que iriam começar arte contemporânea e, do outro lado,
alguns pensadores. Então tem isso, a comercializar as obras do Zezão. no eixo l’art brut , outsider art, isso é
porque a fenomenologia francesa é Como isso foi possível? Aí o Zezão arte “outsider”. Não usam, em geral, a
isso que você está dizendo, ela pa- começou a grafitar as tampas dos palavra museu, usam “uma coleção”,
rece poesia, é uma coisa mais fluída. bueiros e as tampas dos bueiros foram porque eles são críticos do museu e,
Eu trabalho com alguns franceses, comercializadas nas galerias. Então, de modo geral, eles são muito mais
mas principalmente com o (Maurice veja esse processo, esse movimento respeitosos com o discurso, a narrati-
Merleau) Ponty e o (Henri) Bergson. que vem acontecendo. Dito isso, o va dos autores, do que o sistema das
Eu amo o Bergson! Usei o Ponty no que acontece? O sistema das artes, artes. O sistema das artes vem com
mestrado e doutorado e o Bergson o comércio das obras, se uma obra “ai, é arte contemporânea...” Aí usa
no pós-doutoramento. O livro dois, contemporânea ela é política, muitas aquele léxico, aquele vocabulário de
da Judith, eu faço esse trabalho, é vezes são ações, ocupações, coletivos arte contemporânea. Os “outsiders”,
mais ou menos assim, o livro um é que lutam contra o racismo, contra o não. Eles replicam o discurso dos
o Ponty lendo o Arthur do Bispo e o preconceito contra as mulheres, que autores, dos criadores, então eles são
livro dois é o Bergson lendo Judith. lutam por direitos humanos e das mais aderentes a fala dos criadores. O
minorias. Como que você vai comer- trabalho que eu faço vai por aí, porque
n Como a senhora vê a crítica de cializar isso? É difícil. O que eu vejo eu digo assim: Por que que eu escolhi
arte hoje? Ela recebe melhor esses que acontece - isso é uma percepção arte ínsita? É um meio termo, eu digo
artistas, ou ainda há essa represália, minha - é que existe um mapeamento, assim... Tá, concordamos que a pro-
como houve com os artistas nos anos o sistema das artes fica mapeando, dução do Arthur do Bispo é arte, mas
1970,1980? vendo onde eles podem encontrar para ele não é. Para ele, é uma missão
– Essa pergunta envolve muitos objetos comercializáveis e, parece, religiosa. A gente precisa respeitar a
dados históricos, eu vou tentar ser isso já está assim, bastante avançado, fala dele. Ele não fez aquilo para ir
breve, tá, porque eles podem ser mais em termos internacionais, e no Brasil para o museu, ele fez aquilo como
complexos do que é que eu vou con- começa esse movimento de colocar rito. O sujeito viveu 50 anos internado
tar aqui. Existe uma discussão entre essas obras da outsider art para dentro e morreu sem voz, e a gente continua
muitos pensadores da arte contempo- do sistema e comercializá-las. Já tem, não dando voz a ele. Precisa dar voz
rânea, Jameson, Baudrillard, Andreas por exemplo, peças dos artistas de a ele. Então tem essa questão: todo
Huyssen, Lyotard, Agamben, tem l’art brut, criadores de l’art brut, nos mundo concorda que é arte, porém
vários pensadores que falam sobre mais proeminentes leilões da Christie, o pessoal “outsider” concorda que é
exaurimento da arte. Se você jogar no por exemplo, com lance inicial de 30 arte, mas respeita o discurso dos auto-
Google “O fim da arte” ou “É o Fim da mil euros, peças que foram produzi- res. Nem sempre é arte para eles, eles
arte?”, vai ver que tem toda uma dis- das em asilos, peças da coleção, não não têm essa noção de arte, tanto que
cussão sobre a arte ter chegado a um da coleção do Dubuffet, porque uma tem um dado muito relevante, que
ponto de exaurimento. Não tem mais das exigências do Dubuffet foi que fica muito difícil da gente compreen-
para onde ir, acabou. É quase como se não poderiam comercializá-las, peças der, porque a gente vive num mundo
esse sistema estivesse implodindo. É dessa linhagem. Então eu acho que, capitalista, é que o autor, os autores,
uma discussão muito recente, muito por mais que existisse esse movimen- criadores, eles não se preocupam
atual, tanto que a gente costuma dizer to, de o sistema das artes se interessar com o produto, eles se preocupam
que a arte contemporânea, ela é mais pelo universo outsider para fazer des- com o processo. Eles querem fazer e,
ética que estética, ela está mais para o sa produção, produtos rentáveis, eu depois de feito, eles largam. A pessoa
político, do que para o estético. Essa acho que existe esse movimento, ele é morre, a família toma, joga fora, não
coisa da punção, de você ficar curtin- um movimento real e bastante inten- restaura. Tem muita dificuldade de
do uma paisagem, uma pintura, uma so que já acontece fora do Brasil e já recuperação desses acervos, porque
marinha, ela não existe mais. A arte começa a aparecer por aqui também. os materiais, às vezes, são muito pere-
contemporânea não contemplativa, cíveis, e porque a preocupação deles
na verdade, ela é asquerosa, às vezes n Então é o sistema da arte transfor- não era a fama, nem ganhar dinheiro. c

30 | João Pessoa, agosto de 2022 Correio das Artes – A UNIÃO


c Eles queriam simplesmente fazer. Judith, a Judith teve uma história de tou em Aracaju. Você está em uma la-
asilamento muito parecida com a do titude e longitude diferente da minha.
n O despreparo dessas instituições de Arthur Bispo. Ela foi para uma insti- Não tem mais ninguém que esteja na
acolhimento ou de confinamento é um tuição quando ela tinha idade escolar latitude em que você está. Mesmo
problema para o desenvolvimento de e por lá ficou até 30, 35 anos, quando que nós dois sentássemos na praia e
artistas outsiders, como o Arthur do a irmã gêmea resolveu procurar por olhássemos para o mar, estaríamos
Bispo e Judith Scott? ela, porque ouviu esse chamado que em pontos matemáticos diferentes.
– Eu não lido com essa questão. Eu os gêmeos normalmente têm. Ela Olhamos para as coisas da mesma
não trabalho com isso por dois moti- sentiu mal com o fato de ter perdido maneira? Do ponto de vista físico,
vos: primeiro, existem várias pessoas o vínculo com a irmã que era gêmea, não, porque você olha para um lugar
trabalham com esse assunto. Eu diria e ela foi maltratada tanto quanto o eu olho para outro, isso sem contar
que todo mundo trabalha, por exem- Bispo. Arrancaram todos os dentes, questões de confirmação biológica
plo, no caso do Arthur Bispo, com a e a irmã a encontrou em situação de mesmo - eu uso óculos, não enxergo
questão da esquizofrenia, da loucura, sujeira, com a roupa rasgada (...) O muito bem, e um pode ser mais alto,
disso e daquilo. (...) Eu não quis fazer que eu acho que é crucial na obra da o outro, mais baixo, então um olha
isso, porque eu não sou psicóloga, eu Judith, são duas questões muito poé- mais em cima, o outro mais embaixo.
sou filósofa. Eu não tenho cabedal ticas, primeiro, a condição existencial Além disso, além desse ponto de vista
para lidar com isso, eu pesquiso o dela, porque ela faz uns casulos. Ela matemático e da questão biológica,
que faz sentido pra mim como feno- está contando a própria história, e ela temos pontos de vistas existenciais
menóloga. E o que faz sentido para sai de uma situação que ela era uma muito distintos, porque eu nasci em
mim? Olhar para essa posição do larva e se torna uma linda borboleta. São Paulo, sou paulistana, moro em
ponto de vista da memória, do ponto A outra questão existencial na obra Aracaju, tenho os valores x/y, cresci
de vista existencial, do ponto de vista da Judith é que a vida dela tem um assim, assado, e você idem, com uma
dos têxteis, isso que faz sentido para forte paradigma, que é a relação dela outra idade, cresceu numa outra épo-
mim, então eu me dedico a isso. (...) com a irmã gêmea Joyce, que é uma ca, viveu outras experiências... nossas
Às vezes, eu tenho a sensação de que graça de pessoa, muito bondosa. En- experiências não são similares. Toda
o sujeito que fica reduzido à esqui- tão toda a obra da Judith está centrada obra de arte é encarada pela fenome-
zofrenia, parece que ele não é mais nisso, nessa transformação dela, em nologia como se fosse um ser, uma
um homem que tem uma história, como ela amarrou a existência dela a alteridade, então cada um de nós
que tem passado, que tem memórias, da irmã, com muitas peças que são os estabelece, com a obra, um tipo de
que tem valores. Parece que ele está duplos - a gente fala “twin sculpture/ relação, que não é padrão, não é uni-
reduzido à esquizofrenia e à condição esculturas gêmeas”, várias esculturas forme. Ninguém aqui vai macular o
asilar. Quando, na verdade, o que ele que são as pessoas amarradas umas às cultural que está inserido, é lógico que
fez foi justamente o contrário, ele su- outras. Então eu prefiro lidar com isso respeitamos todas as conversões, os
plantou a condição asilar, tanto que, do que me concentrar na esquizofre- consensos do mundo cultural, existe
no final da vida, o Frederico Moraes o nia ou, no caso da Judith, a síndrome o acumulo de cultura, e uma determi-
convidou para morar no museu e ele de down, a surdez... eu decidi fazer nada postura a partir da qual a gente
não quis. Ele quis ficar no manicômio, este outro caminho, que não é nem olha para os objetos de arte, ninguém
um contrassenso! Eu acho que vai mais, nem menos, do que o dos pes- está negligenciando isso, mas existe,
numa noção de liberdade Sartriana, quisadores que se dedicam à questão também, uma área de atuação que é
que o sujeito é sempre livre. Olha que de reclusão, de asilamento. É apenas pessoal e intransferível. Então, res-
paradoxo: recluso nesse sistema ma- um caminho diferente. pondendo a sua pergunta: eu não
nicomial e absolutamente livre, como posso e não vou fazer isso de ocupar
é possível isso? Eu acho que é! Eu não n Agradeço desde já a entrevista, mas o seu direito político de se relacionar
lido com essa questão, mas não vou antes de encerrar, gostaria de lhe fazer com as obras. Isso é uma questão
te dizer que eu negligencio. É lógico uma provocação: o que é arte? sua, então fica aí a sua pergunta em
que a condição de asilado manicomial – Então, eu vou devolver a provo- aberto. O que é arte? Pergunto de
circunscreveu a materialidade da cação: não vou responder! É o seguin- volta a você. E
obra. Por exemplo, ele recolhe coisas te, como fenomenóloga, veja, cada um
do cotidiano asilar ali, do lixo, desfa- de nós é único, não tem outro igual no
zia os uniformes, desfazia os tecidos mundo. Isso dentre vários aspectos,
uniformes, para usar os fios para bor- mas eu vou mencionar apenas dois:
dar... então existe uma condição, de estamos em pontos de vistas mate-
fato, pela circunstância de ele estar maticamente diferentes, você em João
asilado. Mas eu não lido com isso, eu Pessoa, é isso?
escolhi lidar, por exemplo, com mui-
tos traços que estão presentes na obra n Sim, João Pessoa...
do Bispo, que são traços da cultura – Você está em João Pessoa e eu es-
daqui, onde eu moro, em Aracaju, da
cultura sergipana, da cidade de Japa-
ratuba, que tem outros folguedos...
Eduardo Augusto é graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal
Eu acho que existe uma condição he-
da Paraíba (UFPB), é pesquisador da obra do artista visual José Rufino e presta
gemônica no acervo do Arthur Bispo assessoria para a Diretoria de Mídia Impressa da Empresa Paraibana de
que é muito importante. No caso da Comunicação (EPC) e para a editora A União. Mora em João Pessoa (PB)

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2022 | 31


POE

Configurações do espanto Ronaldo C


Ainda há ruas para a revolta do mundo.
Jorge de Sena

Como atravessar o tumulto macabro E nos perímetros da tragédia


nesse anfiteatro de horrores resistem a póstuma certeza do nada
sem o escrutínio da indignação? e a vertigem de uma geografia (de desdéns)
já tão fraudada por contágios
Os homens soam pela mecânica dos desertos
ferozes e os comícios da impostura.
e a política se dilui
entre o cortejo dos guichês Em sua atômica potência,
e a lambança na pocilga o silêncio implode
o que resta do que não f(l)ui:
Percorremos sintaxe da ruína, caligrafia do desastre
a sacralidade do caos - matéria-prima com a qual
em meio reivindico o espanto
à totalitária argumentação diante da fúnebre convulsão dos dias
da morte quando deparo com o cadáver insepulto
às pleonásticas núpcias da nossa miséria
dos pusilânimes e já não conseguimos
com sua prole de fantasmas desarmar as nuvens

Enquanto escorpiões em romaria Estrangeiros nesse nada que nos derrota,


concebem traições onde querem, entre mísseis, serpentes e diplomacia necrosada
a religião dos genocidas construímos uma solidão inflamada de vertigens,
ergue seus fatídicos temp(l)os sucumbimos
na apoteose das nulidades
Em seu ímpeto escatológico, viúvas negras entre
ovulam nas consciências inermes a sofisticação das intrigas
e os corações domesticados e a versatilidade dos engodos
são planícies rachadas
imoladas pelo fogo Razão maior tem Cioran a nos dizer,
entre a corrosão e o desencanto:
“Seria a existência o nosso exílio e o vazio a nossa pátria?” .

A vida não tem métrica


Matéria inabitada,
o futuro não sabe nada de nós, Quarentena
assim como reclamamos do passado Da janela promontório
aquilo que a memória sabotou ausculto a cidade
em nossos corações esquivos imersa numa vastidão silenciosa e vazia.

Pisamos o presente Entre


como se fosse nossa dízima periódica, nadas e ausências,
uma mulher absorta e um amolador de facas
esticamos as cordas para medir os desenganos; cruzam-se na faixa de pedestre
e penumbram o verão parado e sem sombras.
e o resultado é nunca absorver o mínimo
de nossa máxima fugacidade. Essa inequívoca solidão
inunda-me na tarde imóvel.
Na autópsia do instante,
fósseis de um tempo natimorto
povoam as vísceras do pranto.

32 | João Pessoa, agosto de 2022 Correio das Artes – A UNIÃO


SIA

do Cagiano

ilustr ação: tonio

Ronaldo Cagiano, mineiro de Cataguases, formado em Di-


reito, viveu em Brasília e São Paulo e está radicado em
Lisboa. É autor, dentre outros, de “Eles não moram mais
aqui” (Contos, Prêmio Jabuti 2016), “Todos os desertos:
e depois?”, (Contos, 2018), “Cartografia do abismo” (Poe-
sia, 2020) e “Horizonte de espantos” (Contos, 2021). Os
poemas integram o livro “Arsenal de vertigens”, a sair em
outubro, pela editora Edições Húmus, de Portugal.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2022 | 33


6 conto

ilustr ação: tonio

Entrementes Cláudio Feldman


Especial para o Correio das Artes

1
Naquele dia, 13/12/’68, Janaína Ramos estava fazendo 40 anos, mas seu ma-
rido, o carreteiro Lindalvo, não lembrou-se da data e, por isto, foi o alvo de
ácidas críticas.
Uma delas, talvez a pior, arranhou os ouvidos do esposo:
– Você se esquece de mim, pois está sempre pensando em outras mulheres.
Lindalvo ouriçou-se com a injustiça.
Se a implicância tivesse partido de um homem, saberia como responder :
esticaria o braço cabeludo da mão calosa e dura e meteria um soco de entor-
tar nariz. c

34 | João Pessoa, agosto de 2022 Correio das Artes – A UNIÃO


c Não era à toa que erguia mó- teria os seus limites e seria ga-
veis pesadíssimos, sem suar, em rantida por um velho revólver
seu caminhão de mudanças! que, prouvera Deus, permaneces-
Mas o sermão partira de sua se sempre frio e mudo na gaveta
mulher e ele, embora raivoso, ti- do balcão, como jazem os mortos
vera que engoli-lo. na tumba.
Sua única reação foi atirar o Era preciso, porém, que não
boné amarrotado do Flamengo deixasse ninguém montar-lhe no
para cima da carapinha e sair, espinhaço.
batendo a porta como protesto. Nesse dia, estaria tudo perdi-
Depois de fumar um mata-ra- do: até cachorro de mendigo iria
to, dirigiu-se ao botequim “Estre- urinar em sua perna.
la da Pavuna”, ali próximo. Seria o carreteiro, agora, um
dos provocadores?
2 Talvez.
Quando entrou, resmungando – Olá, seu Lindalvo, então não
um “boa noite”, Clodô, o dono da paga a despesa?
ilustr ação: tonio

birosca, ecoou o mesmo, sem le- O freguês voltou-se, encarou


vantar a vista da pia, onde lava- o botequineiro e aproximou-se.
va um boião para picles. Ia colocar a mão calosa e dura
Lindalvo, irritado pela desa- do braço cabeludo no bolso e es-
tenção, não desgrudou os olhos tender o dinheiro?
da figura arqueada. Não.
Então disse, com ironia na voz: O que ele moveu foi o punho,
– Se não for muito trabalho, que fez estalar a cara sardenta
quero um traçado! de Clodô.
O botequineiro enxugou as Este, abalado, mas não o sufi-
mãos no avental, foi até a prate- ciente, recompôs-se, limpou o fio
leira, tirou uma garrafa de ver- de sangue no canto esquerdo da
mute (a cachaça já dormia no bal- boca e, sem demora, fez a gaveta
cão) e misturou os líquidos no do balcão ranger.
copo. Antes que Lindalvo lhe desse
Lindalvo virou o conteúdo de as costas, com o pé na poeira da
um trago, devolveu o recipiente rua, o dono do botequim berrou:
e limpou a boca na manga suja – Hei, não esqueça o troco!
da camisa. E descarregou um par de
A bebida teve o dom de exci- “azeitonas” no carreteiro.
tar seus pensamentos sobre as Uma atingiu o enrugado da
fraquezas das pessoas, que fa- testa, outra cavou-lhe o umbigo.
ziam do homem um joguete da Lindalvo desabou no chão de
mulher. ladrilhos, com duas fontes ver-
Após, foi saindo a passos len- melhas a minar.
tos. Ao menos, já não teria que
Clodomiro, Clodô, não era aguentar nunca mais os desafo-
amigo de brigas, mas quando ros da mulher...
fora para ali, estabelecer-se à bei-
ra da Via Dutra, já sabia os cuida- 3
dos necessários para uma perma- A fuga do assassino não me-
nência demorada naquela zona. receu, no dia seguinte, qualquer
Carregara a carranca, fechan- menção no jornal “Hora Agá”,
do a fisionomia e, de expansivo pois outro crime, bem maior, mo-
visceral, tornara-se um servidor nopolizou a edição : o AI-5.
distante, que poupava palavras. Mas Clodô, se fosse pego, não
Esta atitude discreta, neutra, seria enquadrado neste decreto. E

Cláudio Feldman é professor aposentado e autor de 58 livros; o mais recente é


“ABZ Dos Esdrúxulos”,contos, que acaba de ser editado

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2022 | 35


6 convivência crítica
Hildeberto Barbosa Filho
hildebertobarbosa@bol.com.br

A carta de
Joaquim Inojosa
T
endo sido indicado, em Recife, como cor- próprio Joaquim Inojosa, em O movimento
respondente da revista Era Nova, em seu Modernista em Pernambuco, volume 3, em
editorial de 15 de maio de 1924, Joaquim especial no capítulo “A arte moderna e suas
Inojosa envia, aos diretores deste órgão de repercussões”, assim como Wilson Martins,
cultura, longa carta, com data de 5 de julho em O Modernismo (Cultrix, 1969, p. 83), Laé-
daquele ano. lia Maria Rodrigues da Silva, em dissertação
Escusamo-nos de analisar o texto da defendida na UFPB, acerca da revista ‘Era
carta e remetemos o leitor, sobretudo para Nova’, e Neroaldo Pontes de Azevedo, na
a análise empreendida por Neroaldo Pontes obra já referida, tal objetivo, a rigor, não
de Azevedo, no tópico “A arte moderna: vir- teve êxito, embora, evidentemente, a carta
tudes, defeitos e repercussões”, inserido em tenha aquecido o ambiente de discussões
seu livro Modernismo e Regionalismo: Os Anos em torno da arte moderna.
20 em Pernambuco’, publicado pela Secreta- Não é outra a conclusão a que chega Wil-
ria de educação e Cultura da Paraíba, em son Martins, ao considerá-la uma “espécie
1984, e, em segunda edição pelas Editoras de epístola paulina destinada a difundir o
Universitárias/UFPB-UFPE, em 1996. Modernismo no Nordeste” ou mesmo um
Tocaremos apenas nos pontos que con- documento básico do Modernismo, à seme-
sideramos de interesse específico para uma lhança de obras como ‘O espírito moderno’,
possível mudança na atitude poética dos de Graça Aranha, e ‘A escrava que não é
novos autores paraibanos. Isaura’, de Mário de Andrade.
Publicada, em forma de plaquete, pelas Neroaldo Pontes de Azevedo, em objeti-
Oficinas Gráficas do Jornal do Commercio, va leitura do seu texto, por sua vez, também
com o título de ‘A Arte Moderna’, a carta conclui:
se constitui num verdadeiro manifesto em
prol da renovação literária desencadeada É preciso assinalar que o manifesto
a partir do movimento paulista, então di- de Inojosa teve resultados aquilatá-
vulgado por Joaquim Inojosa no Nordeste. veis. Se de um lado divulgou o moder-
Ao mesmo tempo que plataforma es- nismo do Sul no Nordeste, também di-
tética em defesa dos novos ideais, a carta vulgou o que se passava no Nordeste/
também se revela como uma convocação, Norte, do Brasil. Com a repercussão
em geral aos “novos” da Paraíba para que que teve, a carta levou para fora de
abracem o chamado “novo credo” e, em Pernambuco o nome de intelectuais
especial, à ‘Era Nova’, no sentido de que efetivamente pouco conhecidos.
ela procurasse, sintonizada com o espírito
do tempo, se tornar “a ‘Klaxon’ paraibana”. E, mais adiante, arremata:
Pelo que nos demonstra, no entanto, o c

36 | João Pessoa, agosto de 2022 Correio das Artes – A UNIÃO


6 convivência crítica
foto: arquivo a união

c Mas o maior saldo positi-


vo que se deve acreditar ao
opúsculo é o fato de chamar
a atenção para a propagan-
da do modernismo que ele
empreendia, provocando to-
mada de posições, pondo, na
ordem do dia a discussão do
futurismo, pois, não obstan-
te as reiteradas tentativas de
Inojosa de rechaçar o rótulo
de futurismo para o ideário
que pregava, era sobre futu-
rismo que se discutia.

Fazendo um balanço retrospec-


tivo do Modernismo, tocando em Joaquim Inojosa (na foto, ao lado
suas matrizes europeias, repassan- Alegria. Guerra aos códigos de Carlos Drummond de Andrade):
literários, `às fórmulas prees- carta do jornalista foi fundamental
do os turbulentos fatos da Semana na formulação de uma consciência
de Arte Moderna e informando a tabelecidas. Guerra ao par- crítica em torno da necessidade de
respeito dos possíveis adeptos em nasianismo, ao gagaismo, ao renovar a expressão poética
Recife, Belém e Natal, a carta ainda academismo, ao naturalismo
se desdobra em aspectos teóricos da prosa, ao virtuosismo, ao
sobre a estética moderna, inclusive conformismo, ao copismo,
com amplas inscrições de poemas ao dicionarismo. Guerra aos
de autores brasileiros e estrangei- almofadinhas do soneto’, aos
ros, já familiarizados com a prática gramáticos ápteros, aos regio- Faz-se necessário substi-
do verso livre. nalistas sistemáticos. Guerra tuir os bondes da T.L.F. por
Ao constatar que a literatura ao passadismo inatualizável. outros que correspondam aos
brasileira vive uma fase de maras- Guerra à estética absoluta, à ideais modernos desse povo
mo e que, portanto, será preciso arte oficial, à pintura de cópia. carinhoso, inteligente e tra-
renovar, salienta Joaquim Inojosa: Guerra ao belo como o fim balhador.
da arte. Está decretada, aí também,
{...} A ‘poesia pau-brasil’ a falência da arte antiga.
do parnasianismo está gas- Finalmente, reproduzindo o Seja a Era Nova o porta-voz
ta porque os poetas de hoje esquema de Mário de Andrade, de todos os clamores de reno-
querem a sua arte livre, sem chega a conclusão de que “Arte vação, e assim terá cumprido
códigos, sem preconceitos, – desinteresse: liberdade; relativi- a sua mais nobre finalidade.
sem mordaças. Há muitos dade”. Seja a Klaxon paraibana.”
anos que se diz a mesma coi- Tudo, obviamente, no sentido (58)
sa e faz-se mister que outros de estimular à adesão dos jovens
motivos inspirem os artistas. paraibanos, uma vez que se tinha Ora, a repercussão da carta, na
A arte não tem passado, nem plena consciência – e neste passo o Paraíba, é imediata.
futuro, tem presente. Reali- texto da carta é claro – de que havia Descontadas, contudo, as catili-
zemos a arte da hora atual. O “uma nova geração que anseia por nárias de Lauro Neiva e de Vieira
século não é mais de carros de ideais novos”. de Alencar, publicadas respectiva-
bois, porém, do automóvel e Neste sentido, para além da ar- mente em A Província do Pará, de 29
do aeroplano. gumentação estética, Joaquim Ino- de agosto de 1924, e em O Norte,
josa transcreve, a título de exemplo de maio de 1925, as ideias da carta
Caracterizando a civilização de de arte moderna, diversos poemas são recebidas com alguma reserva,
hoje como uma civilização febril, de autores brasileiros e estrangei- haja vista o próprio editorial da Era
nervosa, agitada, aponta o descom- ros, para afinal fazer a convocação Nova, em número de agosto de 1924,
passo entre as velhas formas artís- definitiva aos paraibanos, nestas escrito como resposta, e o noticiário
ticas e as novas injunções do meio, palavras: que se estampou em jornais, como
arrematando que a “vitória, no caso, O Norte (30/07/1924), O Combate
pertence à Arte Moderna”. E, para “{...} ou a Paraíba se filia ao (01/08/1924), A União (09/08/1924
alcançá-la, postula o remetente: movimento renovador, ou, e Correio da Manhã (18/08/1924),
em arte, ficará no Morro do assim como as diversas cartas-
“{...} – guerra aos precon- Castelo da antiguidade. -respostas que os autores paraiba-
ceitos artísticos. Liberdade e Não. nos enviaram a Joaquim Inojosa. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2022 | 37


6 convivência crítica
foto: roberto guedes/a união

c {...} Nós os novos, os ado-


Se o noticiário de A União, de O lescentes da literatura parai-
Combate e do Correio da Manhã ape- bana, há muito procurávamos
nas aborda a disposição renovado- fugir à monotonia das velhas
ra de Joaquim Inojosa, resenhando, formas e... das velhas fôrmas.
em breves tópicos, aspectos con- Isto fizéramos e fazemos sem
teudísticos da carta, o editorial de alarde, silenciosamente, pois
Era Nova e o comentário de O Norte, o meio é tão estreito, que, por
a seu turno, sinalizam claramente certo, se não admitiriam atitu-
para a tendência moderada com des de revolta e de heroísmo.
que os paraibanos reagiriam ao As quatro ou cinco juven-
ideário modernista. tudes que aqui cultivam as
Revelando bem o espírito ecléti- boas letras, se gritassem o
co a Era Nova, na medida em que, fariam apenas para os seus
mesmo admitindo a necessidade próprios ouvidos, porque o
de renovação não deixava, con- silêncio indiferente dos qua-
tudo, de cultuar os modelos do tro ou cinco consagrados que
passado, afirma, a certa altura, o estão à nossa frente, cairia
Em livro, Neroaldo Pontes
editorial, descartando, assim, uma registrou: “Com a repercussão sobre o nosso grito como um
adesão radical: que teve, a carta (de rochedo sobre uma ave. Nada
Inojosa) levou para fora pior que a indiferença pre-
de Pernambuco o nome de
Por tudo isso, só podemos meditada. É a mais horrível
intelectuais efetivamente
aplaudir o movimento levan- pouco conhecidos” das ironias! Assim, para não
tado em Recife pelo nosso cairmos no ridículo de pregar
digno representante, na certe- para nós mesmos, prefería-
za de que a carta dirigida aos mos trabalhar calmamente,
nossos diretores é mais uma dar novas expressões às nos-
reação local da sua robusta sas ideias, procurando aliar
capacidade, integrada com o nosso senso estético e antes
vantagens no meio literário de tudo o nosso temperamen-
pernambucano, que a incerta to literário, à corrente renova-
previsão de uma reforma na dora que atualmente seduz e
intelectualidade da Paraíba. das cartas recebidas por Joaquim arrasta para as plagas de um
Inojosa, em particular, na de José esplêndido futuro as inteli-
Já em O Norte, as palavras ainda Américo de Almeida e na de Perylo gências moças do país. A Era
são mais evidentes: Doliveira. Nova, penso, será o vexilo das
Diz o autor de A bagaceira, em nossas conquistas. Mas, nada
Entretanto, pensamos, e carta datada de 08 de agosto de de gestos largos. As nossas
com razão, que aquele grito 1924: mãos tocariam, ferindo-se,
não terá entre nós a esperada as paredes que nos cercam.
ressonância. As inteligências “{...} Não sou infenso ao V. pode gritar. Está em campo
moças da Paraíba já se não espírito novo. Compreendo aberto. Nós, não. Ademais,
filiam servilmente aos mol- a necessidade de subordi- nossos poetas novos, três no-
des em que se recalcaram as nar a arte às outras formas mes, apenas, aparecem na
ideias florescidas no passado. de vida que as conquistas do imprensa e contam com a
Aqui há a mesma ânsia de re- progresso vão impondo. Pen- atenção do público; Eudes
novação que nos outros esta- so, porém, que para ampliar Barros, S. Guimarães Sobri-
dos do país. E ‘Era Nova’ mes- essa tendência não é preci- nho e... o outro talvez não me-
ma tem servido de estandarte so destruir o patrimônio da reça ser incluído, nem citado.
às novas concepções. O que inteligência cosmopolita. É E todos estes têm dado ao seu
há, decerto, é uma especial arriscado conjurar, de uma verso roupagens novas, dife-
moderação no entusiasmo vez, as fórmulas consagradas. rentes da veste talar usada
dos novos legionários da li- Daí as demasias das reações pelos sonetos e baladas. Não
teratura conterrânea, porque que resultam ridículas. gritamos, mas reagimos. Eis
a estreiteza do ambiente não por que não me fez surpresa
permite lutas e nem permite De outra parte, Perylo Doliveira, a sua carta. Entretanto, meu
mestres. um dos jovens poetas a aderir, mais caro Inojosa, quando ‘A Arte
tarde, ao verso livre, considera, em Moderna’ não tenha sido,
Tais apreensões são perfeita- carta de 06 de agosto de 1924: para nós, uma revelação, foi,
mente confirmadas em muitas pelo menos e pelo mais, um c

38 | João Pessoa, agosto de 2022 Correio das Artes – A UNIÃO


6 convivência crítica

c estímulo de que muito care- Nas nossas obras perpassa da adolescente veio residir,
cíamos. Não foi uma semente, um largo sopro de fé e idealis- com a família, em Princesa
mas foi um pouco de água so- mo, fé que constrói, idealismo Isabel, onde ensinava primei-
bre a árvore mal nascida que que evolui. Vê-se bem que ras letras aos meninos locais.
já plantáramos e que mais o autor de A Arte Moderna Fundou aí, em 28 de outubro
tarde há de florir e frutificar. é um espírito combativo e de 1925, o Grupo Literário
perseverante – talento em Joaquim Inojosa, aderindo,
Ora, as ponderações de José flor, ao serviço de uma moci- precipitadamente, ao futu-
Américo de Almeida e de Perylo dade ousada, que vai ao léu rismo. Mas, apenas de boca.
Doliveira demonstram que ambos da Vida sem ribiezas, sem Era um poeta romântico da
são simpáticos à poesia moderna. recuos, danunzianamente au- velha guarda, leitor de Cas-
Simpatia, no entanto, moderada, daz, pelejando pelos ideais tro Alves, Fagundes Varela,
tanto pela formação de cada um que enchem o cérebro tumul- Gonçalves Dias, que imitou
quanto pelo contexto, decerto pou- tuário do século XX. durante toda a vida. Suas re-
co favorável às mudanças. Benedita a vossa coragem, lações com a intelectualida-
Em contraposição, no entanto, Mestre denodado! Bendita a de paraibana se davam por
não podemos esquecer o pitoresco vossa abnegação, chefe queri- intermédio do coronel José
Grupo Literário Joaquim Inojosa, do e excelso! Aqui, estaremos Pereira, que encaminhava
fundado na cidade sertaneja de sempre impávidos e resolu- suas peças poéticas para pu-
Princesa Isabel, em 28 de outubro tos, ouvindo a vossa voz de blicação na revista Era Nova e
de 1925, sob os auspícios da famosa comando, que tão bem sabe no jornal A União, e que nada
carta. ecoar no coração entusiasta têm de modernista, muito
Seu presidente e fundador foi o da Mocidade. pelo contrário. Morreu na mi-
poeta Emydio de Miranda; seu se- séria, alcoólatra e tuberculo-
cretário, José Cypriano Maracajá e, A bem da verdade, ao entusias- so, solteirão, completamente
como demais componentes, temos mo dos assinantes deste documen- ignorado. Deixou dois livros
as figuras de Manuel Monteiro to não corresponde uma prática de versos, ‘Rosa da Serra’ e
Donino, José Vieira de Mello, João textual efetiva, com características ‘Rosal’, ainda inéditos, e uma
Maximiano dos Santos, Miguel que lhe comprovem a modernida- novela manuscrita, em papel
Francelino de Souza, Zacharias de. A própria linguagem do texto já almaço, intitulada ‘Terra de
Sitônio, Renato Freitas, Epami- demonstra, através de sua retórica amor e sangue’.
nondas Monteiro Diniz, Cláudio estereotipada, seu compromisso
Pinheiro dos Santos, Manoel Lima com os mandamentos estéticos do Apesar de certos defeitos de vi-
e Belarmino Medeiros. passado. De outra parte, não se são e de alguns erros informativos,
Em correspondência enviada a tem notícia da existência de obras já apontados por seus analistas
Joaquim Inojosa, o “grupo” assim poéticas responsáveis pelo fun- e, noutro sentido, mesmo que a
se justificava: cionamento do referido “grupo. carta de Inojosa não tenha, de fato,
Tudo leva a crer que tal atitude deflagrado a prática do verso mo-
Os signatários da presente, dos seus membros não passou de derno em terras paraibanas, é, sem
membros efetivos do Grupo meros arroubos de juventude, sem dúvida, um documento fundante
Literário Joaquim Inojosa, que quaisquer implicações estéticas e no estabelecimento dos debates e
nesta localidade foi funda- literárias. na formulação de uma consciência
do sob o vosso patrocínio, Gemy Cândido, estudando as crítica em torno da necessidade de
com os nobilíssimos intui- “origens da literatura paraibana”, renovar a expressão poética.
tos de trabalhar pela Escola em artigo publicado no número Autores como Perylo Doliveira
Moderna cujo supremo che- 261 do Correio das Artes, assinala, e Eudes Barros, de certa maneira,
fe aqui no Norte é o vosso em nota de roda-pé, a respeito do pagam algum tributo a Joaquim
erguido vulto, emocionados poeta Emydio de Miranda. Inojosa pelo que este trouxe, ao
agradecem vossa carinhosa Nordeste e a Paraíba, de ideias
lembrança pela remessa que Emydio de Miranda nas- novas concernentes à elaboração
fizestes dos exemplares da ceu em Serra Talhada (?), mu- do texto poético. E
A Arte Moderna e do O Bra- nicípio de Pernambuco. Ain-
sil Brasileiro, − livros que são
bem a síntese perfeita das
ideias renovadoras, que, nes-
te momento, universalmente Hildeberto Barbosa Filho (HBF) é poeta e crítico literário. Mestre e doutor
vão de vitória em vitória, con- em Literatura Brasileira, professor titular aposentado da UFPB e membro da
Academia Paraibana de Letras. Autor de inúmeras obras no campo da poesia,
quistando terreno aos arraiais da crítica, da crônica e do ensaio, dentre as quais se destacam: Nem morrer
defensivos do passadismo é remédio: Poesia reunida; Arrecifes e lajedos: Breve itinerário da poesia na
bolorento. Paraíba; Literatura: as fontes de prazer; Os livros: a única viagem, e Valeu a pena.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2022 | 39


6 imagens amadas
João Batista de Brito
brito.joaobatista@gmail.com

Revendo o noir:
três subestimados

“H
at, gun and dame” (“Chapéu, arma e mu- ganhou, embora tenha havido algumas
lher”). Com estas três palavras, certo se- raras indicações.
tor da crítica americana resumiu aquele Toda essa desimportância trazia, por
gênero de filmes a que chamamos de noir. ironia, uma grande vantagem do ponto
E faz sentido. A primeira palavra su- de vista artístico. É que os diretores desses
gere que se trata de um gênero datado, filmes ficavam livres das pressões comer-
do tempo em que os cavalheiros usavam ciais dos estúdios e, assim, podiam tomar
esse item da indumentária masculina. certas liberdades com a linguagem, sendo
Tanto é assim que os historiógrafos mais eventualmente mais criativos.
rigorosos colocam o noir entre os anos de Na época (anos 40/50), essa criativi-
1941 (estreia de ‘Relíquia Macabra’) e 1958 dade dos filmes noir mal era notada pela
(‘A Marca da Maldade’). crítica americana. Foi preciso o tempo
O segundo termo indica que da trama passar para que se consagrasse esse gênero
não poderiam estar fora assassinatos e como um dos mais esteticamente férteis.
muita violência. O terceiro registra a pre- Os primeiros a notar a qualidade do noir
sença da figura feminina, normalmente a foram os críticos e teóricos franceses da
“femme fatale” que conduz o protagonista revista Cahier du cinéma, mas esta é uma
à perdição. longa história que não cabe contar aqui.
Lembrar que, ao contrário do que se po- O fato é que o gênero noir já é cult há
deria pensar, “dame” tem valor pejorativo muito tempo e a crítica especializada, no
e poderia muito bem ser traduzido como mundo todo, já estabeleceu o seu cânone.
“rabo de saia” ou “chamego”. E não como Tanto é que todo cinéfilo que se preza exibe
o nosso aristocrático “dama”. a sua listinha antológica.
Normalmente de orçamento modesto, Ainda assim, acho que nem tudo está
os filmes noir eram feitos para tapar bura- definido na antologia do noir. Nesse sen-
cos entre as grandes produções hollywoo- tido é que, aqui, refiro três filmes que,
dianas – filmezinhos a serem exibidos nos apesar da inegável qualidade, nunca vejo
circuitos menores, geralmente em dias de aparecer no rol dos noir consagrados, quer
semana. Nenhum deles foi concebido para da crítica, quer dos cinéfilos comuns.
ganhar Oscar, e, efetivamente, nenhum Esses filmes são, em ordem cronoló-
gica: ‘O Justiceiro’ (‘Boomerang’, 1947,
foto: Divulgação
de Elia Kazan), ‘Sublime Devoção’ (‘Call
Northside 777’, 1948, de Henry Hathaway)
e ‘Escândalo’ (‘Scandal Sheet’, 1952, de
Phil Karlson).
Como não podia deixar de ser, o pivô
que põe as narrativas em andamento é,
em cada um deles, um crime. E a vítima,
Em ‘O Justiceiro’, sempre uma pessoa de bem: no caso, res-
Elia Kazan pectivamente, um padre, um policial e
adota um tom
uma mulher.
documental,
atípico do Os enfoques, porém, diferem.
gênero O filme de Kazan possui um tom docu- c

40 | João Pessoa, agosto de 2022 Correio das Artes – A UNIÃO


6 imagens amadas
fotos: Divulgação

‘Sublime Devoção’ (E) e


c mental que os outros não têm, e que, Em Karlson, o crime – mostrado ‘Escândalo’ (D): dois filmes que
aliás, nem é típico do gênero. Depois ao espectador - é acidental e o ponto passam ao largo do rol dos
do misterioso assassinato do Padre de vista narrativo é praticamente do noir consagrados, apesar da
inegável qualidade de ambos
Lambert, uma cidadezinha do nor- assassino. Pelo menos a ele é dado
deste americano entra em alvoroço, um considerável “tempo de tela”. Em
polícia, imprensa e população. De- violenta querela privada, um diretor
pois de muito sufoco, um forasteiro de jornal mata a escandalosa e incon-
é preso, mas o júri o inocenta, o que veniente ex-esposa, que o ameaça de Em ‘Sublime Devoção’ a sonega-
dá um happy end para o advogado de suborno. Sendo o corpo encontrado, ção (seria o réu cuja mãe protege,
defesa, mas não propriamente para o assunto vira manchete no próprio realmente inocente?) é mantida até
o filme, já que o culpado continua jornal que ele dirige. De modo que o último momento, mesmo muito
desconhecido e à solta. se configura essa situação psicolo- tempo depois de o personagem do
E pior, um certo flashback sugere gicamente insustentável: um diretor repórter investigador (e nós também)
– não para os personagens do filme, de jornal sendo forçado a divulgar estar convicto dessa inocência. Nesse
mas só para nós, espectadores - um e, consequentemente, a estimular as final feliz, não vai interessar quem
culpado, quando vemos o Padre investigações sobre um crime que ele tenha praticado o crime, mas pelo
Lambert em ácida discussão com mesmo cometeu. Não precisa enfati- menos não se mostra na tela, como
um de seus paroquianos, o qual, mais zar o terrível efeito do suspense sobre em Kazan, um suspeito impune.
tarde, assistirá às sessões do júri, com o espectador. Já em ‘Escândalo’, a sonegação
cara nervosa de suspeito. Quando se Na comparação dos três filmes, de informação diegética é de ordem
considera que ‘O Justiceiro’ é baseado ressalta um aspecto interessante que estritamente actancial, isto é, só existe
em um caso verídico sem desvenda- é o da focalização – ou seja, o do ponto para os personagens, já que ao espec-
mento, esse personagem inventado de vista narrativo, e o modo como a tador foi dado o privilégio de ser tes-
pela direção se torna ainda mais in- informação diegética é fornecida ou temunha ocular do crime cometido
trigante. sonegada, ora para o espectador, ora pelo protagonista, logo no início do
No filme de Hathaway o crime para os personagens. filme, aquele diretor do jornal que,
é desvendado por um repórter de Na narração cinematográfica em acidentalmente, mata a ex-esposa
jornal, com todo o crescente suspense geral, é comum, por exemplo, que a num quarto de hotel. Em outras pa-
do gênero, mas o clima geral é mais sonegação de informação diegética lavras, todo o trabalho investigativo
doméstico que de costume, mais sen- aconteça até certa altura da história, da polícia e demais envolvidos na
timental mesmo. A indicação disso já depois do que vem sempre a recom- solução do caso, conduz o especta-
vem no título original, ‘Call North- pensa, com o fornecimento – parce- dor, passo a passo, a uma realidade
side 777’, o endereço – impresso em lado ou total - do que faltou, para o diegética que ele, o espectador, já
jornal – de uma mãe que está pagan- espectador e/ou para os personagens. conhecia desde a primeira sequência
do uma certa quantia economizada a Em ‘O Justiceiro’ essa regra é que- do filme.
duras penas para libertar um filho in- brada e, como vimos, deixa-se, no Enfim, aos três filmes falta a figura
justamente preso, uma pobre senhora desenlace, a lacuna com o angustiado da “femme fatale”, mas a gente nem
que trabalha de faxineira, esfregando espectador. Aquele paroquiano que, nota, nem isso os torna menos noir.
o assoalho alheio. Depois de muita dias antes do crime, brigou com o Confiram. I
luta, o rapaz é libertado, não com padre assassinado, e que assiste, ner-
o dinheiro economizado pela mãe, voso, ao júri no final do filme, é dado
mas com o empenho (primeiramente pela narração onisciente como prová- João Batista de Brito é escritor e
desconfiado, depois piedoso) de um vel culpado mas, no entanto, a sessão crítico de cinema e literatura. Mora
repórter. termina sem a punição esperada. em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2022 | 41


6 cantinho do conto
Rinaldo de Fernandes
rinaldofernandes@uol.com.br

Paladares

ilustr ação: tonio

U
ma pequena cidade. À beira de um rio, não pela rua, a garrafa debaixo de seus paladares. E
longe do oceano. Uma pousada com pombos foram, cambaleantes, úmidos, por uma estrada
no topo, dando para uns barcos e para as sortes e encontraram, lá adiante, as dunas. E no meio
do rio. Que eram tantas, com destaque para as delas poças d’água onde a lua ralhava com
margens, tão secas, com os pássaros laranjas uns fantasmas. E eram mesmo os fantasmas
pousados na poeira. Uma rua de pedras bicu- da paixão, que bebem luz e se apavoram, que
das, os postes tristes, curtos. E foi ali que nasceu sentem sede após comerem flores. Fantasmas
a paixão deles. Foi ali que cantou uma mesa. que arrotam perfumes, mas que bicam o que
Que cantou um banco de madeira tosca. Que se decompõe. E que batem contra as águas o
cantou uma garrafa de vinho. Foi ali que o rio anseio das pedras. I
mordeu um grande peixe, que veio cobrir a
mesa. Que veio se afogar no alface e recrear os
Rinaldo de Fernandes
tomates. Foi ali que a mão tocou na unha quen- é escritor, crítico de literatura e professor da
te que subia a azul. Foi na noite que eles saíram Universidade Federal da Paraíba.
Mora em João Pessoa (PB).

42 | João Pessoa, agosto de 2022 Correio das Artes – A UNIÃO


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