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Renata Helena Paganoto Moura

DIREITO DAS COISAS

POSSE E PROPRIEDADE

V. 1

Editoria FACCAMP

1
Renata Helena Paganoto Moura
Professora de Direito Civil, Processo Civil e Prática Jurídica
Extrajudicial da Faccamp, Professora da Especialização em Processo
Civil da PUC-SP, Advogada

DIREITO DAS COISAS

POSSE E PROPRIEDADE

V. 1

1ª edição

2007

Editoria Faccamp

2
Aos meus alunos,
com quem sempre aprendo mais do que ensino,
o carinho desta professora.

3
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 10
1.0 Apresentação .................................................................................................................................... 10

2.0 Objeto do direito das coisas ............................................................................................................. 12

3.0 Diferença entre o direito real e o direito pessoal ........................................................................... 13

4.0 Características do direito real ......................................................................................................... 14

PRIMEIRA PARTE ................................................................................................ 20

I POSSE ........................................................................................................... 20
1.0 Considerações gerais ................................................................................................................................ 20
1.1 Conceito – teorias da posse ................................................................................................................. 20

1.2 Objeto da posse ......................................................................................................................................... 23

II CLASSIFICAÇÃO DA POSSE ...................................................................... 25


2.0 Apresentação ............................................................................................................................................. 25

2.1 Posse direta e indireta .............................................................................................................................. 25

2.2 Posse Justa e Injusta ........................................................................................................................ 27

2.3 Posse de Boa-fé e de Má-fé .............................................................................................................. 28

2.4 Posse e Detenção ............................................................................................................................... 30

2.5 Outras classificações da posse: ........................................................................................................ 33


2.5.1 Posse ad interdicta e posse ad usucapionem ............................................................................... 33
2.5.2 Posse nova e posse velha ............................................................................................................. 33
2.5.3 Jus possidendi e Jus possessionis ................................................................................................ 34

III AQUISIÇÃO DA POSSE ............................................................................ 37


3.0 Aquisição da posse ........................................................................................................................... 37

3.1 Aquisição ficta da posse ........................................................................................................................... 38


3.1.1 Constituto possessório ou Cláusula constituti ........................................................................... 38
3.1.2 Sucessão ........................................................................................................................................ 39

4
3.2 Transmissão da posse ............................................................................................................................... 41

3.3 Extensão da posse ..................................................................................................................................... 42

3.4 Legitimidade para aquisição da posse (quem pode adquirir a posse?) ....................................... 43

IV EFEITOS DA POSSE .................................................................................... 44


4.0 Efeitos da posse................................................................................................................................. 44

4.1 A faculdade de invocar os interditos............................................................................................... 45


4.1.1 Ação de manutenção de posse .......................................................................................................... 45
4.1.2 Ação de reintegração de posse (ação de força nova espoliativa, ou interdito recuperatório ou
ação de esbulho). ........................................................................................................................................ 47
4.1.3 Interdito proibitório (preceito cominatório ou ação de força iminente ou embargos à primeira).
..................................................................................................................................................................... 48

4.2 Percepção dos frutos ........................................................................................................................ 49

4.3 Indenização das benfeitorias e direito de retenção ........................................................................ 51


4.3.1 Direito à indenização pelas benfeitorias .................................................................................... 52
4.3.1.1 Obras e despesas: significado ............................................................................................ 53
4.3.1.2 Benfeitoria, acessão e pertença: diferença ....................................................................... 54
4.3.1.3 Valor das benfeitorias e compensação com os danos ...................................................... 55
4.3.2 Direito de retenção ............................................................................................................................ 55
4.3.2.1 Exercício processual do direito de indenização e retenção .................................................... 56
4.3.2.2 Aplica-se às acessões e pertenças o direito à indenização e retenção? .................................. 60

4.4 Responsabilidade pela deterioração e perda da coisa ................................................................... 61

4.5 Usucapião .......................................................................................................................................... 62

4.6 Ônus da prova e posição mais favorável do possuidor ................................................................. 63

4.7 Alegação de domínio ou outro direito (juízo possessório x juízo petitório)................................. 63

V PERDA DA POSSE ....................................................................................... 67


5.0 Considerações iniciais ...................................................................................................................... 67

5.1 Abandono .......................................................................................................................................... 67

5.2 Tradição ............................................................................................................................................ 69

5.3 Perda da coisa, Destruição dela ou Por ser posta fora de comércio............................................. 70

5.4 Posse de outrem ................................................................................................................................ 72

5.5 Constituto possessório ...................................................................................................................... 73

VI DEFESA DA POSSE ..................................................................................... 74


6.0 Defesa da posse ................................................................................................................................. 74

5
6.1 Legítima defesa x Desforço imediato .............................................................................................. 74

6.2 Ações possessórias típicas: Manutenção de posse; Reintegração de posse e Interdito


proibitório: ...................................................................................................................................................... 76
6.2.1 Características das ações possessórias:...................................................................................... 77
6.2.1.1 Fungibilidade...................................................................................................................... 77
6.2.1.2 Cumulação de pedidos ....................................................................................................... 78
6.2.1.3 Natureza dúplice ................................................................................................................ 78
6.2.1.4 Exceção de domínio ........................................................................................................... 79
6.2.2 Procedimento da ação de manutenção e reintegração de posse .............................................. 80
6.2.3 Procedimento do interdito proibitório ....................................................................................... 82

6.3 Outras ações em que se discute a posse (Ações possessórias atípicas) ......................................... 84
6.3.1 Nunciação de obra nova .............................................................................................................. 85
6.3.2 Ação de dano infecto ................................................................................................................... 91
6.3.3 Ação de imissão de posse............................................................................................................. 92
6.3.4 Embargos de terceiro senhor e possuidor ................................................................................. 94

SEGUNDA PARTE ............................................................................................... 99

I PROPRIEDADE ............................................................................................. 99
1.0 Considerações gerais ........................................................................................................................ 99

1.1 Disciplina jurídica da propriedade no CC ................................................................................... 101

1.2 Características ................................................................................................................................ 102

1.3 A propriedade na CF ..................................................................................................................... 103

1.4 A nova propriedade civil ............................................................................................................... 104

II DA PROPRIEDADE EM GERAL ................................................................. 106


2.1 Abuso de direito ............................................................................................................................. 106

2.2 Descoberta....................................................................................................................................... 108

III AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE IMÓVEL ................................................. 110


3.0 Considerações gerais ...................................................................................................................... 110

3.1 Registro ........................................................................................................................................... 111


3.1.1 Atributos do Registro:............................................................................................................... 112
Publicidade ..................................................................................................................................... 112
Força Probante ............................................................................................................................... 112
Legalidade ....................................................................................................................................... 112
Obrigatoriedade ............................................................................................................................. 113
Continuidade .................................................................................................................................. 113
Territorialidade .............................................................................................................................. 114
Prioridade ....................................................................................................................................... 114
Especialidade .................................................................................................................................. 115
Instância .......................................................................................................................................... 115
3.1.2 Lei dos Registros Públicos ........................................................................................................ 115

6
3.2 Usucapião ........................................................................................................................................ 117
3.2.1 Usucapião e prescrição .............................................................................................................. 117
3.2.2 Requisitos ................................................................................................................................... 117
3.2.2.1 Requisitos Gerais ............................................................................................................. 118
‘Animus domini’ ........................................................................................................................ 119
Posse mansa e pacífica .............................................................................................................. 119
Posse contínua ............................................................................................................................ 120
Posse pública .............................................................................................................................. 120
Posse incontestada ..................................................................................................................... 121
Tempo ......................................................................................................................................... 121
Bem público ............................................................................................................................... 121
Bem de família ........................................................................................................................... 122
Bem gravado com cláusula de inalienabilidade ...................................................................... 122
Bem de sociedade de economia mista ...................................................................................... 123
3.2.3 Espécies ...................................................................................................................................... 123
3.2.3.1 Usucapião extraordinário ................................................................................................ 124
3.2.3.2 Forma especial do extraordinário (§único, 1.238)......................................................... 125
3.2.3.3 Usucapião ordinário ........................................................................................................ 125
3.2.3.4 Forma especial do ordinário ........................................................................................... 126
3.2.3.5 Usucapião especial rural.................................................................................................. 126
3.2.3.6 Usucapião especial urbano .............................................................................................. 127
3.2.3.7 §4° e §5°do art. 1.228 do CC ........................................................................................... 128
3.2.3.8 Usucapião especial coletivo do Estatuto da Cidade (art. 10, L. 10.257/01) ................. 130
3.2.3.9 Usucapião índigena .......................................................................................................... 132
3.2.4 Usucapião de direitos reais sobre coisas alheias ..................................................................... 133
3.2.5 Acessio Possessionis ................................................................................................................... 135
3.2.6 Causas obstativas, suspensivas e interruptivas da prescrição aquisitiva.............................. 138
3.2.7 Ação de Usucapião..................................................................................................................... 139
3.2.8 Direito intertemporal ................................................................................................................ 143

3.3 Acessão ............................................................................................................................................ 144


3.3.1 Pela formação de ilhas .............................................................................................................. 144
3.3.2 Aluvião ....................................................................................................................................... 145
3.3.3 Avulsão ....................................................................................................................................... 146
3.3.4 Álveo abandonado ..................................................................................................................... 146
3.3.5 Construções e plantações .......................................................................................................... 147
CONSTRUÇÃO OU PLANTAÇÃO EM TERRENO PRÓPRIO COM MATERIAL ALHEIO.... 147
CONSTRUÇÃO OU PLANTAÇÃO EM TERRENO ALHEIO COM MATERIAL PRÓPRIO.... 148
CONSTRUÇÃO OU PLANTAÇÃO EM TERRENO ALHEIO COM MATERIAL ALHEIO...... 149
CONSTRUÇÃO EM ZONA LINDEIRA ........................................................................................ 149

IV AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE MÓVEL .................................................. 151


4.0 Considerações gerais ...................................................................................................................... 151

4.1 Usucapião ........................................................................................................................................ 151

4.2 Ocupação ........................................................................................................................................ 153

4.3 Achado do tesouro .......................................................................................................................... 154

4.4 Tradição .......................................................................................................................................... 155

4.5 Especificação................................................................................................................................... 157

4.6 Confusão, comistão e adjunção ..................................................................................................... 158

7
V PERDA DA PROPRIEDADE ....................................................................... 159
5.0 Perda da propriedade............................................................................................................................. 159

5.1 Alienação ................................................................................................................................................. 160

5.2 Renúncia .................................................................................................................................................. 161

5.3 Abandono ................................................................................................................................................ 163


5.3.1 Abandono do bem imóvel ............................................................................................................... 163
5.3.2 Arrecadação do bem abandonado ................................................................................................. 164
5.3.3 Procedimento da arrecadação de bem vago ................................................................................. 165
5.3.4 Abandono do bem móvel ................................................................................................................ 166
5.3.5 É possível adquirir um carro abandonado? ................................................................................. 167
5.3.5 O pagamento de tributos no abandono e renúncia dos bens: quem deve? ................................ 168

5.4 Perecimento da coisa .............................................................................................................................. 169

5.5 Desapropriação ....................................................................................................................................... 169


5.5.1 Espécies de desapropriação............................................................................................................ 170
5.5.2 Legitimidade para desapropriar (quem pode desapropriar?) .................................................... 171
5.5.3 Legitimidade para ser desapropriado (quem pode ser desapropriado?) ................................... 172
5.5.4 Objeto da desapropriação .............................................................................................................. 173
5.5.5 Retrocessão ...................................................................................................................................... 173
5.5.6 Processo Expropriatório................................................................................................................. 177
5.5.7 Desapropriação e função social da propriedade (Desapropriação sancionatória) .................... 178

VI DEFESA DA PROPRIEDADE ..................................................................... 181


6.0 Considerações gerais .............................................................................................................................. 181

6.1 Ação Reivindicatória .............................................................................................................................. 181


6.1.1 Processo e procedimento da ação reivindicatória ........................................................................ 183

VII CONDOMÍNIO .......................................................................................... 187


7.0 Condomínio..................................................................................................................................... 187

7.1 Classificação ................................................................................................................................... 188

7.2 Condomínio Geral .......................................................................................................................... 189


7.2.1 Condomínio Voluntário ............................................................................................................ 189
7.2.1.1 Direitos e deveres dos condôminos ................................................................................. 190
7.2.1.2 Extinção do condomínio .................................................................................................. 192
7.2.1.2.1 Divisão da coisa divisível ............................................................................................ 193
7.2.1.2.2 Alienação da coisa indivisível ..................................................................................... 193
7.2.1.3 Administração do condomínio ........................................................................................ 194
7.2.1.4 Renúncia ........................................................................................................................... 195
7.2.2 Condomínio Necessário ............................................................................................................. 195

7.3 Condomínio Edilício....................................................................................................................... 196


7.3.1 Natureza jurídica do condomínio edilício ............................................................................... 197
7.3.2 Instituição, Constituição e Regulamento do Condomínio ...................................................... 198
7.3.3 Direitos e deveres dos condôminos ........................................................................................... 201
7.3.3.1 Direitos dos condôminos (art. 1.335) .............................................................................. 201

8
Usar, fruir e livremente dispor de suas unidades: .................................................................. 201
Usar das partes comuns, conforme a sua destinação, e contanto que não exclua a utilização
dos demais possuidores: ..................................................................................................................... 202
Votar nas deliberações da assembléia e delas participar, estando quite............................... 202
7.3.3.2 Deveres dos condôminos .................................................................................................. 202
Contribuir para as despesas do condomínio, na proporção de suas frações ideais, salvo
disposição em contrário na convenção: ............................................................................................. 202
Proibição de o condômino realizar obras que possam comprometer a segurança da
edificação: ............................................................................................................................................ 204
Não modificar a forma nem a cor da fachada das partes e esquadrias externas:................ 204
Dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira
prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes:............ 204
Sanções pelo descumprimento dos deveres ............................................................................. 205
7.3.4 Da administração do condomínio............................................................................................. 206
VOTO ................................................................................................................................................... 207
OBJETO DA DELIBERAÇÃO ............................................................................................................ 207
7.3.5 Extinção do condomínio ............................................................................................................ 208

VIII PROPRIEDADE RESOLÚVEL E PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA ............ 210


8.0 Considerações gerais ...................................................................................................................... 210

8.1 Propriedade resolúvel .................................................................................................................... 211


8.1.1 Advento da condição ou termo ................................................................................................. 212
8.1.2 Advento da causa superveniente .............................................................................................. 212

8.2 Propriedade Fiduciária .................................................................................................................. 213


8.2.1 Procedimento da ação de busca e apreensão (Decreto-lei 911/69) ........................................ 217

IX LIMITAÇÕES AO DIREITO DE PROPRIEDADE ........................................ 219


9.0 A limitação ao direito de propriedade .......................................................................................... 219

9.1 As principais limitações ao direito de propriedade ..................................................................... 221


9.1.1 Limitações do direito de vizinhança......................................................................................... 222
9.1.1.1 Uso anormal da propriedade .......................................................................................... 222
9.1.1.2 Árvores limítrofes; Passagem de cabos e tubulações; Limites entre prédios e o direito
de tapagem ........................................................................................................................................... 224
9.1.1.3 Passagem forçada ............................................................................................................. 225
9.1.1.4 Águas................................................................................................................................. 227
9.1.1.5 Direito de construir.......................................................................................................... 228
9.1.2 Limitações por tombamento ..................................................................................................... 229
9.1.3 Limitações voluntárias .............................................................................................................. 233
9.1.3.1 Limitações convencionais ................................................................................................ 233
9.1.3.2 Limitações reais................................................................................................................ 236
9.1.4 Limitações pela preservação do meio-ambiente ..................................................................... 238

9.2 Função social da propriedade ....................................................................................................... 239


9.2.1 Usucapião e desapropriação: instrumentos da função social da propriedade ..................... 241

BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................... 244

9
INTRODUÇÃO

SUMÁRIO: 1.0 Apresentação; 2.0 Objeto do direito das coisas; 3.0 Diferença entre o
direito real e o pessoal; 4.0 Características do direito real

1.0 Apresentação

O Código Civil, como se sabe, é dividido em duas partes, a geral e a especial. E essas, por
sua vez, são divididas em livros. A parte geral é dividida em 3 livros, que tratam das
pessoas, dos bens e dos fatos jurídicos. A parte especial é dividida em 5 livros, referentes
aos grandes institutos jurídicos, o direito das obrigações, o dir. da empresa (trazido pelo CC
2002) o dir. das coisas, o dir. de família e o direito das sucessões.

A parte geral, que vai do art. 1º ao 232, trata de todos os conceitos gerais que serão
estudados ao longo do Código, é como uma apresentação da obra em que se procuram
definir conceitos e classifica-los. É aqui que o Código dirá o que se deve entender por
determinado termo jurídico, quais são as suas classificações. Fiquemos com o exemplo das
benfeitorias: na parte geral encontra-se a sua classificação e as suas definições (art. 96), na
parte especial, ao se referir às benfeitorias, o código apenas as cita, mas não mais as
conceitua, levando em consideração que todos esses termos foram explicados na parte
geral.

É como essas obras que necessitam de uma outra para explicá-la, um manual de como ler e
entender a obra. A parte geral também tem essa função.

A parte especial, que é toda a restante do CC, vai do art. 233 ao 2.046, dividida naqueles
livros acima referidos (obrigações, empresa, coisas , família e sucessões).

O curso de Direito Civil, nas faculdades, também é dividido conforme essa disposição
legal. Assim, têm-se a primeira disciplina de Civil, que costuma-se enumerá-la como Civil
I, como o estudo da parte geral, Civil II, com o estudo das obrigações e assim
sucessivamente.

Ao chegar-se aqui no direito das coisas, já se estudou a parte geral, as obrigações e os


contratos, e em algumas faculdades até o direito de empresa.

10
Na definição de Clóvis Bevilácqua, direito das coisas é o complexo das normas reguladoras
das relações jurídicas referentes às coisas suscetíveis de apropriação pelo homem.

Mas aqui também cabe outra explicação, pois afinal o que vem a ser COISA?

Vejam que o próprio conceito do jurista traz uma limitação ao termo coisa, pois afinal se
diz “coisas que são suscetíveis de apropriação pelo homem”.

Mas, se são somente as coisas suscetíveis de apropriação pelo homem, então existem coisas
que não são suscetíveis de apropriação pelo homem? Sim, como bem explica o prof.
Washington de Barros Monteiro, o sentido dessa expressão – ser suscetível de apropriação
pelo homem – quer significar a apreensão exclusiva pelo homem, pois aqueles bens
inesgotáveis, de uso comum da humanidade, ar, luz, não interessam ao direito das coisas.1

Nesse sentido, coisas se referem aos bens que têm valor econômico, aqueles, como se disse
acima, que podem ser apreendidos exclusivamente pelo homem. Mas todos os bens que têm
valor econômico são coisas? Até mesmo os bens imateriais (como os direitos autorais e os
direitos)?

Para o nosso atual legislador, não. A expressão coisas refere-se não só aos bens que têm
valor econômico como também aos bens corpóreos, entendendo-se aqui aqueles dotados de
existência física, que têm lugar no espaço.

O antigo legislador do Código trazia neste livro também os direitos autorais, causando uma
grande crítica da doutrina, que entendia que o termo não permitia essa extensão.

Mas, apesar da retirada dos direitos autorais deste livro, a denominação ainda sofre severa
crítica daqueles que vêem no termo um caráter restritivo porque o termo ‘coisas’
expressaria apenas uma das espécies de bens (gênero) da vida, enquanto o Livro II trata
também de relações fáticas, como a posse, sugerindo a denominação “Da posse e dos
direitos reais”.2

1 Curso de Direito Civil, p. 1.


2 Maria Helena Diniz, citando Ricardo Fiúza, p. 3.

11
Pois, como muito bem observado pelo prof. Fábio Ulhoa Coelho, ora coisa é gênero, do
qual os bens são espécies (nesse caso são as coisas que têm valor econômico) ora bens é
gênero, do qual as coisas são espécies (nesse caso, as corpóreas).3

2.0 Objeto do direito das coisas

Sendo o objeto deste livro as coisas corpóreas, trata o direito das coisas de uma espécie de
direitos, os direitos reais.

Mas, como vimos, não somente dos direitos reais, mas também da posse.

Tem por objeto o direito das coisas a posse e os direitos reais.

A posse é tratada nos arts.1.196 a 1.224 e os direitos reais são enumerados no art. 1.225.

O Código Civil enumera dez direitos reais: a propriedade, a superfície, as servidões, o


usufruto, o uso, a habitação, o direito do promitente comprador do imóvel, o penhor, a
hipoteca e a anticrese.

Destes, somente a propriedade representa um direito pleno; todos os demais são direitos
reais sobre coisas alheias.

Recebem esta denominação porque pressupõem a propriedade, são exercidos sobre a


propriedade alheia. Tenha-se o usufruto como exemplo, se é usufrutuário de um imóvel,
assim temos o proprietário e a sua propriedade e o usufrutuário e o direito de usufruto que é
exercido sobre aquela propriedade. E é assim com todos os demais, tem-se a servidão sobre
uma propriedade alheia, tem-se o direito de superfície de uma propriedade alheia, etc.

Os três últimos direitos, penhor, hipoteca e anticrese, ainda são direitos reais de garantia.

Dentre os direitos reais enumerados pelo Código, dois são novos: a superfície e o direito
do promitente comprador do imóvel. Foi retirada do Código a enfiteuse, instituto da
legislação anterior e que agora consta somente das disposições finais.

Esses são os direitos reais enumerados no Código Civil e objeto deste livro. A enumeração
do legislador é taxativa: são direitos reais esses trazidos no art. 1.225, não sendo permitido
aos sujeitos de direito a criação de direitos reais, e aqui já se encontra uma das principais
diferenças entre os direitos reais e os direitos pessoais, que abordaremos a seguir.

3 Curso de Direito Civil, p. 4.

12
3.0 Diferença entre o direito real e o direito pessoal

Direitos reais e direitos pessoais são uma das classificações que temos dos direitos
subjetivos.

Esse, por sua vez, é o poder que a ordem jurídica confere a alguém de agir e de exigir de
outrem determinado comportamento.4

Quando se classifica o direito subjetivo tendo como referência o bem protegido ou o fim a
que se destinam, este é dividido em direitos da personalidade, direitos de família e direitos
patrimoniais. Compreende os direitos patrimoniais, os direitos reais, os direitos de crédito e
os direitos intelectuais.5

É famosa e criticável uma explicação dos direitos reais que diz serem estes a relação entre
uma pessoa e a coisa, e os direitos obrigacionais (ou de crédito) a relação entre pessoas.

É criticável porque não podemos ter como sujeito de uma relação jurídica uma coisa.
Assim, dizem, o sujeito passivo desta relação é uma universalidade, são todos, pois todos
têm o dever jurídico de observar/respeitar esse direito.

E, ao falar nesse dever jurídico a que todos estão sujeitos, estamos diante de uma outra
classificação dos direitos subjetivos que, com base em sua eficácia, distinguem-os em
absolutos e relativos.

São absolutos porque devem ser respeitados por todos; são relativos porque devem ser
respeitados apenas por algumas pessoas.

Os direitos reais são absolutos porque impõem um dever jurídico a todos. Todos devem
respeitar o direito de propriedade, ninguém deve prejudicar o exercício do direito de
propriedade, logo esse dever de observar tal comportamento (“não prejudicar o exercício do
direito”) é dirigido a todos. Assim também é nos direitos de personalidade, em que todos
devem respeitar a intimidade, a liberdade, a vida, a honra alheia.

Mas, assim não são nos direitos obrigacionais, cujo dever jurídico é dirigido somente à
pessoa vinculada pela relação jurídica. Se devo, devo a alguém, e é a esse alguém que devo
4 Definição do prof. Francisco Amaral em sua obra, Direito Civil, p. 183.
5 Amaral, p. 194

13
observar o direito de pagar. Logo, o comportamento que o titular do direito subjetivo pode
exigir é dirigido somente ao seu devedor, ou seus devedores.6 Por isso ele é relativo.

Essa é também uma das características dos direitos reais que veremos a seguir.

Mas não é só, os direitos reais são exercidos sobre bens e a relação que se dá entre os
sujeitos de direito envolve bens. Ao contrário do direito obrigacional cujo objeto é a
prestação do outro. O que se quer é uma prestação do outro, de dar, fazer e não fazer. Não
que a prestação não possa envolver um bem, por exemplo: a entrega de um carro (obrigação
de dar). Mas aqui não se litiga sobre o bem em si, mas sim sobre o cumprimento da
prestação. É diferente se pensarmos num litígio envolvendo a discussão sobre a propriedade
do bem. No primeiro caso, eu quero o carro porque paguei, no segundo, eu quero porque
sou dona.

4.0 Características do direito real

Apresenta o direito real algumas características próprias que servem para distingui-lo dos
direitos obrigacionais/pessoais, como também para compreendê-lo em seus principais
aspectos7:

a) oponibilidade erga omnes:

Como vimos acima a oponibilidade erga omnes é uma característica dos direitos reais.

Assim, diz-se que o direito real é oponível erga omnes pois todos estão obrigados a
observá-lo. O seu sujeito passivo – antes de um conflito – é universal: todos devem
respeitar o direito de propriedade alheio.

Numa relação pessoal, só quem está obrigado a observá-lo é o outro sujeito da relação, pois
só dele o credor pode exigir um comportamento, só a ele o devedor está obrigado.

Pensemos no exemplo da propriedade: a propriedade impõe um comportamento passivo de


todos: não se deve entrar nela sem permissão, não se deve prejudicar o uso da propriedade
pelo seu morador etc, mas com relação à obrigação estabelecida entre as partes, só estas

6 Francisco Amaral define dever jurídico como a necessidade de se observar certo comportamento, positivo

ou negativo, a que tem direito o titular do direito subjetivo, p. 196.


7Utilizamos a enumeração de Washington de Barros Monteiro, acrescentando a oponibilidade erga omnes
não citada pelo autor, Curso de Direito Civil, p. 14.

14
estão obrigadas a observar um comportamento em relação a ela, os outros nada têm a ver
com esta relação ou mesmo têm o dever de agirem de determinada forma em virtude dessa
obrigação.

b) adere imediatamente à coisa, sujeitando-se diretamente ao titular – aderência:

Apontam os autores a aderência como uma segunda característica dos direitos reais. Uma
vez estabelecido o direito real em favor de alguém sobre certa coisa, tal direito se liga ao
objeto, adere a ele de maneira integral e completa, como afirma Sílvio Rodrigues.8

Como se trata, como vimos, de uma relação da pessoa sobre a coisa, representa dizer que ao
ser estabelecido cria-se esse liame jurídico do bem com a pessoa titular do direito. Assim,
adquirida a propriedade de um imóvel, constitui-se agora uma relação de direito do titular
da propriedade – proprietário - sobre o bem, podendo este opor esse direito a todos e
valendo-se de todas as prerrogativas que a propriedade lhe confere.

c) segue seu objeto onde quer que se encontre – direito de seqüela:

O direito de seqüela é uma conseqüência imediata das duas últimas características. Se o


direito real adere imediatamente à coisa atribuindo ao seu titular, como uma de suas
prerrogativas, a oponibilidade erga omnes, esta só se completa pelo direito de seqüela, que
permitirá ao titular do direito real buscá-lo com quem quer que se encontre.

Imaginemos o exemplo da hipoteca: trata-se esta de um direito real de garantia, conforme


estabelecido no art. 1.225, IX. Ao ser estabelecida, vincula o bem à garantia do pagamento
do crédito pelo devedor. Então, pergunta-se: pode o devedor – que estabeleceu a hipoteca
sobre seu bem, vendê-lo? A resposta é positiva. Pode vendê-lo. E, como ficará o credor
hipotecário, ficará sem garantia? Não, para o credor nada mudará, pois, como é titular de
um direito real, esse segue o bem onde quer que se encontre, e mesmo que esteja agora na
propriedade de outro, ao não ser paga a dívida pelo devedor, exercerá a sua garantia e
buscará o bem com quem quer que se encontre, para sobre ele exercer o seu direito real,
nesse caso, executando a hipoteca.

d) não é possível instalar-se direito real onde outro já exista – é exclusivo:

8 Direito Civil, p. 4.

15
Diz-se, conforme Sílvio Rodrigues, ser característica do direito real a exclusividade, no
sentido de que não se podem conceber dois direitos reais, de igual conteúdo, sobre a mesma
coisa.9

A princípio, para facilitar a compreensão, pensemos que não podem existir dois direitos
reais sobre o mesmo bem, por exemplo, não podem existir duas propriedades sobre o
mesmo bem, dois usufrutos sobre a mesma coisa.

Mas, percebamos que na excelente definição do prof. Sílvio Rodrigues, se diz direitos de
igual conteúdo, logo, podemos imaginar, sim, dois usufrutos sobre a mesma coisa, porém
não com o mesmo conteúdo: pode-se ser usufrutuário com uso limitado à plantação e pode-
se ser usufrutuário com uso limitado à moradia.

Assim, também como pode haver duas hipotecas incidindo sobre o mesmo bem. Porém a
primeira tem preferência sobre a segunda, e não sendo a dívida paga pelo devedor, os
credores exigirão os seus direitos, mas ao ser executada a hipoteca, da sua arrecadação
primeiro se pagará ao primeiro credor hipotecário, para só após pagar ao segundo. Logo,
apesar de haverem duas hipotecas sobre o bem elas não tem o mesmo conteúdo.

e) é provido de ação real, que prevalece contra qualquer detentor da coisa, razão pela
qual muitos o denominam de absoluto:

A ação conferida ao titular do direito real é ação real. E é real porque o seu direito incide
diretamente sobre o bem corpóreo e daí decorre que a ação pode ser endereçada a qualquer
pessoa que detenha o objeto do direito real.10

No Código Civil anterior ainda havia uma diferença com relação à prescrição destas ações:
as ações pessoais prescreviam em 10 anos e as ações reais em 15 e 20. O Código Civil atual
acabou com esta distinção e estabeleceu um prazo único de prescrição de 10 anos.

Fica como diferença a estabelecida acima, de que esta é endereçada a quem detenha o bem
objeto do direito real.

E aqui temos uma grande diferença do direito pessoal, pois a sua ação é endereçada ao
sujeito com quem se estabeleceu essa relação. Dirige-se a ação de cobrança contra o
devedor, com quem o credor estabeleceu uma relação de crédito. Por outro lado, em se

9 Op. Cit, p. 7.
10 Definição do prof. Sílvio Rodrigues, op.cit., p. 7.

16
tratando de direito real, a ação reivindicatória da propriedade é dirigida contra quem
detenha o bem, mesmo desconhecendo quem seja, mesmo não tendo nunca estabelecido
qualquer relação de direito com ele. A ação vai ao encontro do bem e da pessoa que sobre
ele está exercendo algum ato jurídico (posse, detenção...).

f) seu número é bastante limitado em contraposição aos direitos pessoais que são
infinitos:

Traz essa característica uma indagação: são direitos reais apenas os enumerados na lei?

Os direitos pessoais, por sua vez, não sofrem desta indagação, pois seu número é livre, a
autonomia privada dos sujeitos permite uma liberdade na sua criação.

E os direitos reais? Também podem ser criados pelas partes? Podem estas estabelecer
direito real sobre um direito?

Sobre esta questão há uma forte divergência em nossa doutrina: de um lado, os que
admitem essa criação, pela lei e pelas partes; de outro, os que não admitem essa criação
pelas partes, apenas pela lei.

A segunda corrente, da não admissibilidade da criação de direitos reais, prende-se ao fato


de que não poderiam as partes estabelecer direitos reais, pois as conseqüências destes são
próprias deste direito e possuem características importantes, como a seqüela e a
oponibilidade erga omnes. Como permitir, por exemplo, ao credor, estabelecer de uma
obrigação um direito real, obrigando agora todos a observá-lo, tendo ação contra quem quer
que esteja detendo o direito? E ainda observam esses autores que uma importante
característica dos direitos reais é o registro, mas este só é permitido por lei especial que o
autoriza (Lei 6.014/73), como então registrar um direito não autorizado?11

Por outro lado, tem-se entendimento como o do prof. Washington de Barros Monteiro, que
aceita a criação de direitos reais pelas partes. 12

A ponderar com a nossa jurisprudência, teremos que concordar com o memorável civilista.
A promessa de compra e venda hoje incluída no rol dos direitos reais, pelo inciso VII do
art. 1.225, conquistou essa característica muito antes pela nossa jurisprudência. Os nossos

11 São estas observações do prof. Sílvio Rodrigues, que entende não ser possível, fora da lei, a criação de
direitos reais, p. 9.
12 “Outros direitos reais poderão ser ainda criados pelo legislador, ou pelas próprias partes”, Curso, p. 12.

17
tribunais tinham o entendimento quase pacífico de que, desde que registrado e com cláusula
de não-arrependimento, o compromissário adquiria um direito à aquisição do bem, podendo
valê-lo contra terceiros que eventualmente tenham adquirido do promitente o bem. O CC
atual elencando no seu rol a promessa de compra e venda fez somente incorporar algo que
na prática já existia, o direito real do promitente comprador de imóvel.

Comentaremos mais na oportunidade própria, mas, diga-se de antemão, que se não fosse –
antes do CC 2002 – um direito real a única conseqüência pela não entrega do bem pelo
promitente comprador seriam as perdas e danos ao contrário do que ocorria, a busca do bem
com quem quer que ele se encontrasse e a efetiva transferência da propriedade.

Um outro direito real existente na prática e ainda não constante do rol do 1.225 é a locação
de imóveis com eficácia real ao se registrar o referido contrato. Caso isso ocorra (o
registro), esta valerá mesmo com a venda do bem e o adquirente terá que respeitar a
locação estabelecida.

Sendo assim, temos que concordar com o prof. Washington de Barros Monteiro: apesar de
terem um número bastante limitado, frente aos direitos pessoais, também podem os direitos
reais ser estabelecidos pelas partes.

g) só os direitos reais são suscetíveis de posse (tese que comporta divergências


doutrinárias):

A posse é um direito real ou pessoal? Esta indagação, em que se controverteram juristas de


ontem e hoje, é que implica o entendimento desta última característica.

Mas, neste caso, remetemos ou pedimos ao leitor para aguardar o trato desta matéria no
capítulo em que cuidaremos da posse.

Além destas características, aponta Caio Mário mais quatro, que, pela sua importância no
entendimento da matéria, citaremos:13

1- O direito real se adquire por usucapião, ao passo que os direitos de crédito não suportam
este modo de aquisição: trata-se de uma conseqüência da última característica – só os
direitos reais são suscetíveis de posse – pois os requisitos do usucapião são posse + tempo;

13 Instituições, p. 10.

18
2- Os direitos de crédito se extinguem pela inércia do sujeito, ao passo que os reais
conservam-se, não obstante a falta de exercício, até que se constitua uma situação contrária,
em proveito de outro titular. Apesar desta afirmação ser uma verdade com relação à
propriedade, já não é, por exemplo, com a servidão, que se extingue pelo não uso, conforme
art. 1.389, III, CC;

3- O titular do direito real tem a faculdade de receber privilegiadamente em caso de


falência ou concurso creditório, sem se sujeitar ao rateio, cabendo-lhe, dentro dos limites de
seu crédito, embolsar o produto da venda da coisa gravada (preferência): outros direitos
também gozam desta preferência, como o alimentar, trabalhista, fiscal, levando hoje o
crédito real a uma posição não tão prestigiada como a de antes;

4- O titular de um direito real que não possa mais suportar seus encargos tem a faculdade
de abandoná-lo, o que não cabe no tocante aos direitos de crédito: o abandono é uma das
causas de perda da propriedade (art. 1.275, III).

19
PRIMEIRA PARTE

I POSSE

SUMÁRIO: 1.0 Considerações gerais; 1.1 Conceito – teorias da posse; 1.2 Objeto da
posse.

1.0 Considerações gerais

Não se trata de tema fácil a posse, pois quase tudo que a envolve foi ou é objeto de imenso
debate: trata-se de um direito ou de um fato, é direito real ou pessoal, tem por objeto
somente bens corpóreos ou também incorpóreos, pode ter por objeto também direitos, e até
qual a sua origem, é tema de eterna divergência.

Mas, como aqueles temas historicamente debatidos que acabam sendo superados seja pela
sua descrição legislativa, seja por um consenso na busca de ponto comum que importa à
discussão, quanto à posse também podemos dizer que muito dessa discussão se superou.

Se é fato ou se é direito, o certo é que o Código a regula, e o faz abrindo o livro III, antes de
tratar da propriedade, o que, sem sombra de dúvidas, demonstra a sua importância na
disciplina do direito das coisas.

Mas, mesmo que em grande parte esta discussão esteja superada é necessário que
conheçamos seus principais elementos, principalmente as duas teorias em que divergiram
os juristas na elaboração da compreensão jurídica da posse.

1.1 Conceito – teorias da posse

O CC, em seu art. 1.196, define a posse como o exercício de fato de um ou mais poderes
característicos do direito de propriedade. E com essa definição aceita-se que o legislador –
mesmo o do código de 1916, pois o artigo aqui foi reproduzido – reconheceu a teoria de
Jhering.

À teoria de Jhering – chamada de objetiva – é oposta a teoria de Savigny – chamada de


subjetiva.

20
Para Savigny, primeiro a escrever sobre a posse, esta é o poder que tem a pessoa de dispor
fisicamente de uma coisa, com intenção de tê-la para si e de defendê-la contra a intervenção
de outrem.14

São dois, na sua teoria, os elementos constitutivos da posse: corpus + animus domini.

O corpus é o elemento material, mas não é a coisa em si e sim o poder físico da pessoa
sobre a coisa.

O animus domini pode ser definido como a intenção de ter a coisa como sua e por isso
constitui o elemento subjetivo, eis porque a sua teoria é designada TEORIA SUBJETIVA
DA POSSE.

Logo, na teoria de Savigny, para ser possuidor é necessário a relação entre a pessoa e o bem
(corpus), é necessário que haja um comportamento de proprietário sobre o bem (affectio
tenendi) e é necessário que haja a intenção de ter o bem para si (animus dominus).

A essa teoria se contrapôs Jhering, para quem a posse é a exteriorização do domínio. Para
ser possuidor basta comportar-se com o bem como se comporta o proprietário. Não há na
sua teoria o elemento subjetivo da intenção de ser dono, por isso é esta designada como
TEORIA OBJETIVA DA POSSE.

Por isso, quando o CC define o possuidor como aquele que exerce de fato um ou mais
poderes inerentes ao proprietário, estamos diante da aplicação da teoria objetiva, pois não
se exige a intenção de ser dono, mas simplesmente o comportamento como se dono fosse,
ou seja, a visibilidade do domínio.

A teoria objetiva explica melhor outras relações jurídicas como a do locatário, comodatário,
usufrutuário, que são, nesta teoria possuidores; mas, pela subjetiva não seriam, pois lhes
faltam o elemento subjetivo, animus domini.

Aplicando-se a teoria em termos práticos a diferença é que, ao serem definidos como


possuidores, podem o locatário, o comodatário, o usufrutuário se valerem de um dos
principais efeitos da posse que é a sua defesa, que pode ser dirigida contra terceiros, e até
mesmo contra o proprietário. Mas, no sentido inverso, caso se entenda que estes não são
possuidores, não poderão se valer dessas defesas.

14 Apud Washington de Barros Monteiro, p. 16.

21
Divergem também estas teorias no entendimento do que seja detenção, e, mais uma vez,
deixa claro o nosso legislador a adoção da teoria objetiva, mas cuidaremos desse tema na
classificação da posse.

Por último, um elemento que marca a divergência entre esses dois juristas é a explicação do
corpus. Se para Savigny este representa o poder físico sobre o bem, para Jhering não há
necessidade deste poder físico, mas apenas a relação entre a pessoa e coisa, de forma a ver
nele a exteriorização do proprietário.

Não havendo necessidade de ter a coisa sobre seu poder, pode-se perfeitamente está
distante dela e mesmo assim ser possuidor, e isto se deve principalmente a um outro
elemento da teoria objetiva que é a utilização econômica do bem. É necessário que o
comportamento da pessoa com o bem esteja dentro de uma relação econômica exercida
pelo bem. Por exemplo: sou possuidor de um terreno, porque mesmo não sendo
proprietário, dele cuido e planto, mas não estou presente nele a todo momento; às vezes,
viajo e em outras estou no local que resido e mesmo nestas ausência se é possuidor, pois a
relação da pessoa com a coisa subsiste e a utilização dada por ela ao bem exterioriza a
propriedade.

Isso não ocorre quando, mesmo sendo proprietário, por exemplo, de uma casa, deixa-a sem
cuidados. Ao vislumbrá-la, dirão todos: “está abandonada”, porque nela não se têm atos que
permitam dizer que está exercendo a sua função econômica (a função de uma casa não é
estar abandonada, caindo aos pedaços).

Esse conceito de Jhering também nos faz entender o abandono, instituto que leva à perda da
propriedade e que estudaremos no capítulo sob esse título.

Estabelece-se, no quadro abaixo, a diferença da posse para as duas teorias em seus


elementos e também nas principais colocações, conforme as duas teorias:

ELEMENTOS LOCATÁRIO/ DETENÇÃO ABANDONO POSSE


DA POSSE USUFRUTUÁRIO/ DIRETA/
COMODATÁRIO

22
INDIRETA

SAVIGNY Corpus + Não são Não são Diz-se que a Não considera
animus domini possuidores (pois possuidores coisa está este
lhes faltam o pois lhes abandonada desdobramento
animus domini) faltam o quando da posse, logo
animus não há nesta
domini teoria a posse
direta e
indireta. O
possuidor
direto seria um
detentor.

IHERING Corpus São possuidores Não são Diz-se que a Para a teoria
(affectio possuidores, coisa está objetiva a
tenendi) pois a lei abandonada posse
exclui a quando está desdobra-se
posse, apesar fora de uma em direta e
de terem o relação indireta.
corpus econômica

1.2 Objeto da posse

Qual pode ser o objeto da posse? Todas as coisas corpóreas e incorpóreas? Todos os
direitos pessoais e reais?

Aqui também se encontra uma outra grande polêmica da posse, mas que, podemos afirmar,
está, assim como a outra, também superada.

Para o nosso legislador, só são objeto de posse as coisas corpóreas, ou seja, só se tem posse
sobre coisas corpóreas e, conseqüentemente, só há posse nos direitos reais.

A tese da posse dos direitos pessoais já foi bravamente defendida entre nós por Ruy
Barbosa. Mas, sabe-se que toda a sua construção jurídica deveu-se ao fato de não termos

23
naquele momento um instrumento jurídico eficaz para proteção dos direitos públicos
subjetivos. Hoje, com o mandado de segurança, esta discussão ficou superada.15

A tese se baseou em dois grandes pressupostos: primeiro, se no direito romano a posse só


abrangia os direitos reais, o mesmo não ocorreu no direito medieval, em que, a posse
abrangia todos os direitos, e, segundo, a redação do art. 485 do CC (que é a mesma do atual
1.197) considerava possuidor todo aquele que tivesse de fato o exercício, pleno ou não, de
alguns dos poderes inerentes à propriedade – e se a propriedade também abrangia direitos
incorpóreos, logo, também se poderia ter posse sobre esses direitos (argumentavam que se
não fosse intenção do legislador ampliar a posse aos direitos pessoais, teria dito
simplesmente: considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou
não, de algum dos poderes inerentes ao domínio16).

Hoje, com o CC, esse último argumento não prospera, pois retirou-se do elenco do direito
das coisas a disciplina sobre os direitos autorais, reduzindo esse debate, pois, pelo menos
para o direito das coisas, a propriedade abrange somente as coisas corpóreas.

Dizer que somente há posse sobre direitos reais é também dizer que somente estes podem
se valer de efeitos desses direitos, como o da utilização das ações possessórias, usucapião
etc

15Essa tese é mais do advogado do que do jurista, pois defendeu Ruy Barbosa, em 1896, ação de manutenção
de posse em favor dos lentes da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, que sofreram suspensão por 3 meses,
para mantê-los no emprego,defendendo que tinham eles a posse do cargo público. Daí até hoje a expressão
tomar posse no emprego público.
16 Washington de Barros Monteiro, Curso, p. 23.

24
II CLASSIFICAÇÃO DA POSSE

SUMÁRIO: 2.0 Apresentação; 2.1 Posse direta e indireta; 2.2 Posse justa e injusta; 2.3
Posse de boa-fé e de má-fé; 2.4 Posse e detenção; 2.5 Outras classificações da posse;
2.5.1 Posse ad interdicta e posse ad usucapionem; 2.5.2 Posse nova e posse velha; 2.5.3
Jus possidendi e jus possessionis.

2.0 Apresentação

Classificaremos nesse capítulo a posse em: posse direta e indireta; posse justa e
injusta; posse de boa e de má-fé; posse e detenção.

2.1 Posse direta e indireta

Estabelece o art. 1.197 que a posse direta, de pessoas que, temporariamente, têm a
coisa em seu poder, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem
aquela foi havida, podendo o possuidor direto defender a sua posse contra o indireto.

Trata-se aqui do desdobramento da relação possessória.

Todas as vezes em que a posse couber a outra pessoa que não seja o proprietário, há
um desdobramento da posse que se apresenta sob duas faces, direta, para o que detém
materialmente a coisa, e indireta para o proprietário, para o que concedeu ao primeiro o
direito de possuir.17

Nesta classificação se percebe uma das principais divergências entre Savigny e


Ihering, pois para o primeiro não existe esse desdobramento, já que não podemos falar em
animus domini para o possuidor direto; para o segundo, essa classificação é perfeitamente
possível, pois, como vimos, para ser possuidor basta se comportar como se proprietário
fosse.

A posse direta ainda guarda uma outra característica em nossa norma, é temporária
(Art. 1.197. A posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em
virtude de direito pessoal, ou real...).

17 Washington de Barros Monteiro, in Curso, p. 26.

25
Isso quer dizer que a relação do possuidor direto com o bem é temporária. Não pode
ser estabelecida uma posse direta de duração eterna, ou seja, não pode haver uma relação
sem fim entre o possuidor direto e o indireto, o que nos indica que, para o legislador, ideal é
a posse plena na figura do proprietário, mostrando traços da teoria de Ihering, para quem
esta relação dissociada do possuidor e do proprietário não é a regra.18

Mas também não deixa de sofrer críticas esse desdobramento, pois a posse indireta
em certo sentido não deixa de ser uma ficção jurídica, se a posse é o poder de fato, não
existe então uma posse indireta.19

Para nós, essa classificação é extremamente útil pois permite uma série de relações
que só se tornam protegidas por essa divisão, como a do locador e do locatário, do
comodante e do comodatário, do arrendante e do arrendatário.

E um dos principais elementos desta proteção, sob o ponto de vista do possuidor


direto, é que este pode proteger a sua posse inclusive do possuidor indireto (art. 1.197:
...podendo o possuidor direto defender a sua posse contra o indireto e art. 1210, §2º: Não
obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de outro
direito sobre a coisa); e do ponto de vista do possuidor indireto, este não perde a posse
através deste desdobramento o que lhe permite enquanto possuidor a utilizar-se das ações
possessórias (por exemplo contra terceiros, e também contra o possuidor direto, quando
este permaneça na posse por tempo superior ao permitido, ou abuse do direito concedido.
E, talvez como uma das principais e mais importantes conseqüências, impede a usucapião
pelo possuidor direto, pois para ocorrer é necessário uma posse exclusiva).

O desdobramento da posse – posse direta e indireta, não implica que o possuidor


indireto seja sempre o proprietário. Imaginemos o exemplo da locação com sublocação:

PROPRIETÁRIO______ LOCATÁRIO______ SUB-LOCATÁRIO

(locador/p.i) (locatário/p.d/locador/p.i) (locatário/p.d)

18“Em geral o possuidor de uma coisa é ao mesmo tempo o seu proprietário”, afirma Ihering em sua Teoria
simplificada da Posse, para mais à frente dizer “O conflito será sempre entre o não-proprietário que possui e o
proprietário que não possui”, p. 67-68.
19 O professor Washington de Barros Monteiro cita o prof. Gondim Neto, que afirma, criticando tal
classificação, que a posse indireta constitui mera ficção, cuja importância não vai além da possibilidade de
recorrer seu titular às ações possessórias para reprimir atos atentatórios da posse do verdadeiro possuidor.

26
O proprietário, em sua relação como o locatário é possuidor indireto. O locatário, por sua
vez, em relação com o locador é possuidor direto, mas na sua relação com o sub-locatário é
locador e possuidor indireto, o sub-locatário em sua relação com o locatário é possuidor
direto.

O possuidor direto pode defender a sua posse inclusive do possuidor indireto, como
afirmamos, mas de qual ação ele se utilizará? Deverá se utilizar de uma ação possessória.

E o possuidor indireto, tem ação contra o possuidor direto? Sim, também tem. Mas
aqui cabe fazer uma ponderação. Se o desdobramento da posse – direta e indireta – ocorreu
por meio de uma locação, esta regulada pela Lei 8.245/91 determina em seu art. 5º, que seja
qual for o término da locação, a ação do locador é a ação de despejo. Mas se tratando de
outra relação jurídica, que não a locação, a ação do possuidor indireto contra o possuidor
direto, por exemplo, comodante x comodatário, será também uma ação possessória.

2.2 Posse Justa e Injusta

Preceitua o art. 1.200 que é justa a posse que não for violenta, clandestina ou
precária.

Define, a contrário sensu, a posse injusta que é aquela violenta, clandestina ou


precária.

Posse violenta é a que se adquire por ato de força, seja ela natural ou física, seja
moral ou resultante de ameaças que incutam na vítima sério receio (vi). O contrário da
posse violenta é a posse mansa, pacífica.

Posse clandestina é a que se adquire por via de um processo de ocultamento, em


relação àquele contra quem é praticado o apossamento (clam). O seu oposto é a posse
pública.

Posse precária é a do fâmulo na posse, isto é, daquele que recebe a coisa com a
obrigação de restituir, e arroga-se a qualidade de possuidor, abusando da confiança, ou
deixando de devolve-la ao proprietário, ou ao legítimo possuidor. (precario)20

20 São estas definições de Caio Mário em suas Instituições, p. 30.

27
Estabelece o art. 1.208 do CC, segunda parte, que não autorizam a aquisição da
posse os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessadas a violência ou a
clandestinidade. Como podemos interpretar este artigo? O possuidor injusto não adquire a
posse do bem injustamente possuído (...não autorizam a aquisição da posse...)? A
interpretação que deve ser feita deste artigo é que, enquanto subsistem os atos de violência
ou de clandestinidade, não há posse, porém, após cessarem esses atos, tendo este possuidor
tomado a posse, por esses atos, se torna possuidor; injusto, mas possuidor.

Veja que o artigo não trata da posse precária que, para alguns autores, por se tratar
de um vício absoluto (a violência e a clandestinidade seriam relativos), não convalesce. Ou
seja, a precariedade persiste impedindo a produção de efeitos nesta posse, como a
usucapião.

A posse injusta não é desprotegida pela ordem jurídica. Ao possuidor injusto se


atribuem os efeitos da posse, podendo valer-se de ações possessórias contra terceiros que
lhe queiram o bem e, pelo decurso autorizado do tempo, podendo usucapir.

A questão que se coloca é se o possuidor injusto pode defender a sua posse daquele
de quem tirou? E a resposta é negativa, pois, contra este, não tem legitimidade para
defendê-la.

Enfrentaremos mais algumas questões da posse justa e injusta a seguir na análise da


posse de boa e de má-fé.

2.3 Posse de Boa-fé e de Má-fé

Estabelece o art. 1.201 que é de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o


obstáculo que impede a aquisição da coisa.

Isso quer dizer que a posse de má-fé está eivada de alguns dos vícios conduzidos na
aquisição da posse (vi, clam aut precario). Pois, como afirma Washington de Barros
Monteiro, só é possuidor de boa-fé aquele que possui ignorando prejudicar o direito de
outrem.21

21 Apud Casati-Russo, Curso, p. 30.

28
Esta classificação é de extrema importância, pois repercute – em relação à
indenização por benfeitorias – aos frutos, ao exercício do direito de retenção e à aquisição
por usucapião.

Também é de boa-fé o possuidor que possui justo título, sendo este o título hábil a
transferir o domínio e que realmente o transferiria, se emanado do verdadeiro proprietário,22
assim estabelece o art. 1.202.

Exemplifiquemos então: imagine um proprietário que, ao tomar posse do bem


adquirido, acredita ser um quando na realidade é outro. Está de boa-fé, porém invadiu uma
propriedade alheia.

Porque a boa-fé, para o direito das coisas, é sempre a boa-fé subjetiva, o


desconhecimento do vício, a ignorância da situação que impedia o fato.

Num outro exemplo, imaginemos esse mesmo proprietário: agora ele adquire um
imóvel, por escritura e registro, toma posse do bem e depois vem a saber que se tratava de
um loteamento clandestino. Está de boa-fé, pois possui justo título, o que lhe vale a
presunção legal.

Interessante e até um pouco complicada é a relação da posse justa/injusta com a


posse de boa-fé e de má-fé. Podemos, por exemplo, afirmar que todo possuidor de má-fé é
injusto? E que todo possuidor de boa-fé é justo? E o contrário? Pode haver posse de boa-fé
injusta? E posse de má-fé justa?

Nem todo possuidor de má-fé é injusto, pois conhecendo o vício, pode ocupar um
bem sem nenhuma prática injusta (violência, clandestina ou precária), assim como nem
todo possuidor de boa-fé é justo, pois pode haver uma situação em que acreditando-se
legítimo proprietário de um bem, retire de lá a força o verdadeiro proprietário, nesse caso o
ato de violência vicia a sua posse tornando-a injusta, mas não lhe retira a boa-fé, pois
acreditava estar no exercício legal de seu direito. E com isso respondemos as outras
proposições: pode haver posse de boa-fé injusta assim como posse de má-fé justa.

Questão interessante nesta posse é a possibilidade de alteração da causa


possessionis: pode a posse de boa-fé transmutar-se para má-fé?

22 Washington de Barros Monteiro, p. 29.

29
Diz-se que sim, desde que o possuidor altere o título de sua posse: é possuidor de
má-fé, pois ocupa uma propriedade sabendo não ser sua, mas depois adquire-a do legítimo
proprietário. Como a causa de sua posse foi alterada, não é mais a ocupação e sim a compra
e venda, também nesse caso se altera a posse.

Surge diante disto a pergunta: a citação ao possuidor dando-lhe ciência dos vícios de
sua posse poderia alterar a qualidade de sua posse? Imagine um possuidor que até este
momento acredita exercer legitimamente a posse de um bem, pois adquiriu este em compra
e venda devidamente registrada. Caso venha a receber uma citação para responder a um
processo ajuizado por quem se afirma o verdadeiro proprietário, perderia neste momento ( o
da citação, que implicaria o conhecimento do vício) a boa-fé e se transmudaria em
possuidor de má-fé.

Esta é a opinião da maioria dos autores: a citação é o elemento caracterizador do


conhecimento da situação viciada.

Não é assim que pensamos, por entender que somente a sentença pode, neste caso,
alterar essa posse. Pois pode-se estar na posse de um bem que se adquiriu por registro e, ao
ser citado, não abalar esta convicção. Somente a sentença conferiria uma certeza maior do
que a do possuidor sobre a sua situação.

Trata-se de assunto bastante importante o da possibilidade de alteração da causa


possessionis, pois, de acordo com a regra do art. 1.203, entende-se manter a posse o mesmo
caráter com que foi adquirida: logo, se foi adquirida de má-fé, permanecerá de má-fé. Mas,
sobre a sucessão da posse analisaremos mais adiante.

2.4 Posse e Detenção

A detenção é tratada em dois momentos no Código. No art. 1.198, ao considerar


detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a
posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas. E no art. 1.208, 1ª
parte, quando estabelece que não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância.

Diga-se desde logo que o detentor não é possuidor.

Os dois artigos expressam isso de maneira antagônica. O primeiro descreve o


comportamento que implica em detenção, e o segundo descreve o comportamento que não

30
é posse, logo que é detenção. A primeira é considerada uma detenção dependente, pois o
detentor age no interesse do possuidor; a segunda por sua vez é considerada uma detenção
interessada, pois o detentor agirá em seu próprio interesse.23

Enquanto nas classificações anteriores (direta/indireta; justa/injusta; boa-fé/má-fé)


procurava-se estabelecer qual a característica da posse na relação entre a pessoa e a coisa,
aqui desqualifica-se essa relação para dizer que não há posse.

Para as duas teorias da posse, objetiva e subjetiva, o detentor não é possuidor,


divergindo porém nos motivos.24 Para a teoria subjetiva, o detentor não é possuidor porque
lhe falta animus domini; já para a teoria objetiva, o detentor não é possuidor porque a lei
não quis, porque a norma desqualificou aquela situação como de posse.

Nosso código mais uma vez adotou a teoria objetiva, aqui na definição de detenção.

Para Ihering a detenção é a posse juridicamente desqualificada, e assim o fez o


nosso legislador “desqualificando” as situações descritas nos arts. 1.198 e 1.208 como
posse. Ou seja, empiricamente é posse, pois através desta pessoa se tem a visibilidade do
domínio, comporta-se este frente ao bem como proprietário, mas juridicamente não há
posse, pois o legislador não atribuiu esse caráter a essas situações.

E quais são essas situações, a primeira descrita no art. 1.198 é a do empregado,


aquele que conserva a posse em nome de outrem; a segunda, como atos de mera permissão
ou tolerância, encontramos o amigo, o parente que reside em imóvel do proprietário.

O que implica dizer que, nesses casos, não há posse e sim detenção? Implica dizer
que para as pessoas que se encontram nesta situação não há que se falar na utilização de
ações possessórias, da percepção de frutos, na possibilidade de retenção e, principalmente,
na aquisição por usucapião. Pois, todos esses, como veremos, são efeitos da posse, e que,
logicamente, são atribuídas ao possuidor.

23Conceitos trazidos pelo prof. Arruda Alvim em seu texto Algumas notas sobre a distinção entre posse e
detenção.
24 “O que se verifica é que a situação do detentor explicável, pelas duas teorias a que se alude, de uma forma
diferente”, Arruda Alvim, p. 84.

31
Outra situação de detenção trazida pelo legislador é a segunda parte do art. 1.208:
...assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão
depois de cessar a violência ou a clandestinidade.

Mas aqui nos encontramos diante de uma detenção ilícita. Aquele que agindo com
violência ou clandestinamente tenta adquirir posse, enquanto durarem os atos de violência
ou de clandestinidade haverá detenção, se conseguir, por esses atos, adquiri-la, haverá, já
dissemos, posse injusta.25

É uma redação bastante complicada, devemos concordar, mas não deve ser
interpretada de outra forma, como fazem alguns autores, ora entendendo que após cessada a
violência ou a clandestinidade, a situação se legitima em posse justa,26 ora como outros,
que não haverá posse mesmo após a cessação da violência e da clandestinidade.

Por último, quanto à detenção há um aspecto processual de bastante relevância, que


é a citação do detentor para responder ação sobre a propriedade que detém. Como esse
exteriormente tem a visibilidade do proprietário, pode acontecer de a ação que seria dirigida
ao proprietário ser dirigida a ele. O que deve então fazer? Deve realizar a nomeação à
autoria do proprietário ou do possuidor. Assim, se o vizinho acreditando ser o caseiro o
proprietário da fazenda, ajuíza uma ação indenizatória contra este, pelo dano que aquele
gado tem causado em sua propriedade, ao receber a citação, conforme regra processual,
deve nomear à autoria o proprietário, pois como detentor não tem legitimidade para
responder a este processo.

Porém, questão interessante trazida pelo novo Código é a redação do art. 1.228 que
incluiu a expressão detenha onde antes só havia possua: O proprietário tem a faculdade de
usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que
injustamente a possua ou detenha.

Logo com esta redação o detentor é legítimo passa a ser legítimo para responder à
ação reivindicatória?

25 “O interregno temporal de disputa da posse, enquanto essa disputa durar, implica que a detenção não seja
transformada em posse, e, se vier a preponderar o poder de fato do que foi detentor firmando-se sua posse,
essa será sempre viciada em relação àquele de quem esbulhou a posse” (grifos do autor), ob. cit. p. 80.
26É o que parece entender Washington de Barros Monteiro ao explicar o art. 1.203 “Se ela começou de modo
violento, clandestino ou precário, conserva os mesmos caracteres que se transmitem aos respectivos
adquirentes, salvo se se provar, quanto à clandestinidade ou à violência, que já cessaram.”

32
Ao que parece, sim. Mas isso não impede que faça, ao invés da nomeação à autoria,
a denunciação da lide (art. 70, II) ao proprietário pois, afinal, é este de direito que deve
responder pelo bem e indenizar eventuais danos sofridos pelo detentor.

2.5 Outras classificações da posse:

2.5.1 Posse ad interdicta e posse ad usucapionem

Esta classificação serve para distinguir a posse que dá direito à utilização dos
interditos e a posse que dá direito a usucapião. A posse ad interdicta é a que pode valer-se
da proteção possessória através da utilização das ações possessórias. A posse ad
usucapionem é a posse prolongada que pode dar origem a usucapião.

Não se presta esta característica a explicitar algum elemento da posse, mas a


distinguir a sua utilização, pois ao se dizer posse ad interdicta quer se referir à posse que
propicia a sua proteção através dos interditos possessórios, que a princípio são todas, pois
toda posse tem como efeito o uso dos interditos possessórios, e ao se referir à posse ad
usucapionem quer se referir à posse prolongada que gerou a usucapião.

2.5.2 Posse nova e posse velha

A posse nova é a de menos de ano e dia.

A posse velha é a de mais de ano e dia.

Essa distinção guarda importância para a proteção possessória, pois, de acordo com
o art. 924 do CPC, regem o procedimento de manutenção e de reintegração de posse as
normas da seção seguinte, quando intentado dentro de ano e dia da turbação ou do esbulho;
passado esse prazo, será ordinário, não perdendo, contudo, o caráter possessório.

Havia maior interesse nessa distinção no sistema processual anterior à inclusão da


antecipação de tutela (art. 273 CPC). Isso porque, como não havia como regra a
possibilidade de provimentos antecipatórios, a liminar do procedimento sumário da posse
nova era uma situação extremamente vantajosa ao possuidor esbulhado ou turbado. É que,
na posse velha, por não seguir este procedimento sumário, e como o ordinário do Código

33
não permitia antecipação, não havia a possibilidade daquela liminar, sendo somente ao final
da ação deferida a tutela possessória.

Hoje, uma questão que podemos trazer é se com a antecipação de tutela a posse
velha não se assemelharia à posse nova no que diz respeito ao seu procedimento, ou à
possibilidade de obtenção liminar do mandado de reintegração ou manutenção?

E a resposta é afirmativa. Não existe mais toda aquela diferença de antes


(possibilidade de liminar x não possibilidade de liminar), mas ainda permanecem algumas
diferenças. Primeiramente, no tocante ao procedimento (sumário x ordinário), mas também
no tocante ao provimento antecipatório.

Para que o possuidor, esbulhado ou turbado, em menos de ano e dia obtenha a


liminar, será necessário que prove os requisitos do art. 927 ( I-a sua posse; II-a turbação ou
o esbulho praticado pelo réu; III-a data da turbação ou do esbulho; IV-a continuação da
posse, embora turbada, na ação de manutenção; a perda da posse, na ação de reintegração).
Provando esses elementos obterá, e até antes de ouvir o réu, o mandado liminar de
reintegração ou manutenção.

Já o possuidor, esbulhado ou turbado, em mais de ano e dia, só terá a possibilidade


de obter um provimento antecipatório, provando além destes os requisitos do art. 273
(prova inequívoca + verossimilhança + fundado receio de dano irreparável ou de difícil
reparação ou abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu).

Perceba-se, então, que para este fica mais difícil a obtenção da antecipação de
tutela, do que para o outro, pois a posse nova não obriga, por exemplo, a prova do dano
irreparável ou de difícil reparação. Basta provar que se é possuidor, que houve o esbulho ou
a turbação e a perda da posse. Provando isto, já se tem direito à liminar, conforme o art. 928
CPC.

Concluímos então que, apesar desta distinção ter diminuído, ainda é vantajoso para
o possuidor proteger a sua posse dentro de ano e dia.

2.5.3 Jus possidendi e Jus possessionis

34
Classifica-se também a posse em jus possidendi e jus possessionis. O jus possidendi
é o direito à posse decorrente do direito de propriedade. O jus possessionis é o direito à
posse resultante da posse exclusivamente.

Em outras palavras, é como se dissesse: tenho direito à posse porque sou


proprietário ou tenho direito à posse porque sou possuidor. Ou, conforme Washington de
Barros Monteiro, aquele é atributo do domínio, enquanto este deriva do próprio fato da
posse.27

Guarda importância essa classificação na defesa da posse, pois o art. 1210, §2º,
prescreve que não obsta, à manutenção ou reintegração na posse, a alegação de
propriedade, ou de outro direito sobre a coisa. Complementado pelo art. 923 CPC (Na
pendência de processo possessório, é defeso, assim ao autor como ao réu, intentar ação de
reconhecimento de domínio) proíbem a alegação de domínio durante a discussão da posse.

Ou seja, ao se pretender defender a posse por meio de uma ação possessória, não se
pode no curso desta alegar domínio; a defesa é pelo jus possessionis, o direito à posse pela
posse, o direito à proteção da posse porque se é possuidor.

Imaginem este exemplo: um proprietário de uma fazenda no interior de seu estado,


que há muito tempo não a visita, tem o seu imóvel invadido. Fica sabendo e ajuíza ação
possessória. A defesa dos possuidores-invasores é que ele não tinha posse, logo não era
possuidor, apesar de ser proprietário. Como será o fim desta ação? Provavelmente com a
vitória dos invasores, pois, não conseguindo provar posse, o proprietário também não
conseguirá a sua proteção, e como não poderá discutir domínio nesta ação, sairá perdedor.
Não terá então proteção à sua propriedade? Sim, terá, mas não através de uma ação
possessória. Terá que ajuizar uma ação reivindicatória onde discutirá o jus possidendi, ou
seja, o direito à posse em virtude da propriedade.

Acrescentam ainda outros autores, como o prof. Fábio Ulhoa Coelho, outras
classificações da posse, como posse viciada e sem vício, posse com e sem justo título e
posse singular e composse28. Preferimos, no entanto, manter estas classificações, primeiro

27 Curso, p. 32.
28 Curso, p. 24-30

35
por serem já tradicionais no estudo da posse e também por entendermos que não se tratam
necessariamente de classificações autônomas. Aquelas já se encontram descritas em outras
classificações, como a posse viciada e sem vício (que é uma conseqüência da classificação
da posse justa e injusta; assim, a posse sem vício seria uma posse justa e a posse viciada
uma posse injusta) e a posse com e sem justo título (que é uma outra leitura da posse de boa
e de má-fé, já que o justo título, diz a lei, tem a presunção de boa-fé). Quanto à composse,
trataremos dela na aquisição da posse.

Quadro das classificações da posse:

Posse Posse Posse de Posse e Posse ad Posse Jus


direta e justa e boa-fé e de detenção interdicta e nova e possidendi
indireta injusta má-fé posse ad posse e Jus
usucapionem velha possessionis

Diz respeito ao Diz Diz respeito É a Relaciona-se à É a Expressão que


desdobramento respeito ao diferença posse que pode diferença representa o
da posse: aos vícios conhecimento entre ser ou ou não gerar o de ser a direito à posse
aquele que usa da posse: dos vícios da não usucapião. A posse de pela
imediatamente posse justa posse: possuidor. posse ad menos propriedade e
(p. ex. é a sem possuidor de O detentor interdicta é a ano e dia o direito à
locatário); vícios; boa-fé é o não é que só permite a (posse posse pela
indireta, posse que possuidor defesa pelos nova) e posse.
aquele por injusta é a desconhece interditos e a ser a
meio de quem violenta, os vícios de posse ad posse de
se usa clandestina aquisição da usucapionem é mais ano
(p.ex.locador). ou posse, a que além da e dia
precária. possuidor de defesa pelos (posse
má-fé é o que interditos velha).
conhece os também é capaz
vícios de de gerar
aquisição da usucapião, pois
posse. contém os
requisitos
autorizadores.

36
III AQUISIÇÃO DA POSSE

SUMÁRIO: 3.0 Aquisição da posse; 3.1 Transmissão ficta da posse; 3.1.1 Constituto
possessório; 3.1.2 Sucessão; 3.2 Transmissão da posse; 3.3 Extensão da posse; 3.4
Legitimidade para aquisição

3.0 Aquisição da posse

Como todo direito (apesar daquela velha discussão29) a posse adquire-se e se perde.
E é também assim que trata o nosso legislador da aquisição e perda da posse.

Adquire-se, conforme o art. 1.204, desde o momento em que se torna possível o


exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade.

E, quais são os poderes inerentes à propriedade? De acordo com o art. 1.228 do CC,
que trata em seus termos das faculdades e não dos poderes, estes são o uso o gozo e a
possibilidade de disposição (O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa,
e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou a detenha).

Poderíamos então ler o art. 1.204 da seguinte forma: adquire-se a posse desde o
momento em que se passe a usar, gozar e se possa dispor da coisa.

Isto significa que a posse sempre se adquire por um ato corpóreo, a apreensão física
do bem? Não necessariamente.

Tito Fulgêncio tem um bom exemplo para explicar essa diferença:

“O caçador persegue a caça, e fere-a. Adquiriu a posse? De nenhum modo; a sua


vontade se realizará de fato em plenitude quando tiver segurado a caça, sujeitando-a a seu
poder físico.

E se essa caça tiver caído em seus laços, em sua ausência? O caçador adquiriu a
posse, porque sua vontade de apropriar se realizou de fato de maneira clara e enérgica,
embora a ausência do contato material”.30

29 Refiro-me à discussão sobre ser a posse um direito ou um fato.


30Da posse e das ações possessórias, p. 51. Compreenda-se a expressão ‘caiu em seus laços’, como cair em
sua armadilha.

37
Diante disso, critica o prof. Washington de Barros Monteiro a escolha pelo
legislador do termo “exercício” para a aquisição da posse, dizendo o ilustre mestre que não
se trata do exercício, mas da obtenção do poder de fato ou poder de ingerência
socioeconômica.31

Como se dá a aquisição da posse nas relações negociais em que desta é o objeto?


Por exemplo, um contrato de locação residencial perfeitamente realizado, por si só transfere
a posse? A resposta é negativa, enquanto não se ocupar o bem (fisicamente), ou então sobre
ele exercer atos possessórios, como por exemplo, o envio da mudança (é nesse sentido que
devemos entender a expressão poder de ingerência a que se refere Washington de Barros
Monteiro), não adquirir-se-á ainda a posse.

Para Ihering a resposta a essa pergunta – como se adquire a posse? – estaria sempre
ligada à visibilidade da posse, ou seja, é possuidor quem se comporta e age como se
proprietário fosse. Mas como se tornar visível para adquirir a posse. O legislador anterior
preocupou-se em estabelecer essas hipóteses.32 Já o legislador atual reduziu essa descrição
a uma única frase (“Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o
exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade”), porém,
tanto no CC anterior como neste não tratou o legislador da chamada aquisição ficta da
posse, como forma de aquisição da propriedade, mas pela sua importância merecem serem
aqui analisadas.

3.1 Aquisição ficta da posse

Questão interessante que se coloca nesses casos é a da transferência ficta da posse,


nos casos de constituto possessório e do direito das sucessões.

3.1.1 Constituto possessório ou Cláusula constituti

31“Portanto, para se adquirir posse, não se faz mister o exercício do poder; basta a possibilidade de exercício.
Não se pode prescindir é da existência do poder de ingerência”, op.cit., p. 34.
32 “Art. 493 CC/1916: Adquire-se a posse: I- pela apreensão, ou pelo exercício do direito; II- pelo fato de se
dispor da coisa, ou do direito; III- por qualquer dos modos de aquisição em geral.”

38
Constituto possessório ou cláusula constituti é o ato pelo qual aquele que possuía
em seu nome passa a possuir em nome de outrem.33

Tenha-se esse exemplo: o proprietário aliena sua casa, mas convenciona com o
comprador de nela permanecer (por exemplo até terminar a obra de sua nova casa).
Primeiramente, o comprador não se torna possuidor, pois não exerce o poder de fato sobre
o bem e nem atos possessórios, apenas se torna dono com o registro. Mas se estabelecer o
constituto possessório no contrato, tornar-se-á possuidor indireto e o antigo proprietário
será o possuidor direto.

Trata-se, como dissemos acima, de uma transmissão ficta da posse pois o


comprador não exerce em nome próprio os poderes inerentes à propriedade, mas é
admitida, mesmo que o Código não se refira a ela no capítulo da aquisição da posse, apesar
de fazer referência no parágrafo único do art. 1.267 (“Subentende-se a tradição quando o
transmitente continua a possuir pelo constituto possessório...).

É certo que o código a ela se refere na aquisição da propriedade móvel, mas não
teve essa intenção o legislador de excluí-la da propriedade imóvel.

O constituto possessório não se presume; deve constar expressamente do contrato,


pois se não estabelecido, a posse só pode ser adquirida pelo exercício do poder de fato.

Podemos ainda perguntar: para quem é mais importante a instituição do constituto


possessório: para o vendedor ou para o comprador? A resposta é para o comprador, pois se
não estabelecer tal procedimento não terá posse, apenas a propriedade, e não sendo
possuidor não poderá se valer das ações possessórias.

3.1.2 Sucessão

Outra forma de aquisição ficta da posse em nosso sistema, que não decorre do art.
1.204, ocorre com a sucessão. A morte do possuidor transfere aos seus herdeiros e
legatários a posse dos bens, mesmo que não exista um poder de fato. Em direito das
sucessões dá-se o nome a esse fenômeno de princípio da saisine. É essa a descrição de
nosso artigo 1.784: Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros
legítimos e testamentários.

33 Definição do prof. Washington de Barros Monteiro, op. Cit. p. 35

39
Por esse sistema entre nós adotado, os herdeiros – legítimos e testamentários, com a
morte do de cujus, automaticamente se tornam proprietários e possuidores dos seus bens. O
fato morte realiza essa transferência imediata, sem necessidade do animus e sem
necessidade do corpus.

Trata-se de regra utilíssima. Vamos pensar na seguinte situação: José, com a morte
de seu pai, herda os seus bens. Entre esses se encontra uma fazenda em outro Estado, que,
sabia que seu pai possuía, mas nunca lá esteve. Toma então conhecimento de que a fazenda
foi invadida recentemente. Poderá usar das ações possessórias para retirar os invasores?

Com o direito da sasine sim, mas, caso não houvesse entre nós esta regra, não
poderia. Pois nunca teve posse, e as ações possessórias são de legitimidade dos
possuidores.

E essa transferência ocorre no momento da morte, sem necessidade de arrolamento


ou inventário. Com a morte, automaticamente ocorre essa transmissão. O herdeiro, para
defender a sua posse, no exemplo acima, poderá fazê-lo imediatamente, sem necessidade de
nenhuma ação que o declare como inventariante.

Nelson Nery Junior nos dá conhecimento sobre dois sistemas jurídicos acerca da
posse dos herdeiros nos bens da herança: a) sistema romano, onde só se adquire o direito à
herança mediante a aceitação do herdeiro e só se adquire a posse dos bens mediante ato
físico de apreensão material; e o segundo: b) sistema germânico, segundo o qual os
herdeiros legítimos adquirem a posse e a propriedade da herança pelo só fato da morte.34

O sistema brasileiro, pelo que se vê, espelhou-se no sistema germânico, mas ainda
se diferenciou, pois, neste, somente os herdeiros legítimos adquirem a posse e a
propriedade e, no nosso, adquirem-na os herdeiros legítimos e testamentários.35

Quando o de cujus tenha deixado herdeiros, não podemos falar, em nosso direito, de
herança sem herdeiro, pois a sua morte transfere automaticamente a posse e a propriedade a
todos os herdeiros, mesmo que estes a desconheçam. Podem, então, tornarem-se
proprietários e possuidores de um bem de que nunca tomaram conhecimento.

34 Código civil comentado, comentários ao art. 1.784, p. 960.


35 “O Brasil adotou um sistema singular, próprio, mais evoluído do que os anteriormente mencionados,
porque aos herdeiros, legítimos ou testamentários, se transfere a herança (direitos e obrigações, posse e
propriedade) imediata e automaticamente no momento da morte do de cujus”, idem ibidem., p. 960.

40
E é essa a principal finalidade desse instituto: realizar a transmissão da posse e da
propriedade, para que não se tenha um intervalo de herança sem dono, de propriedade sem
proprietário.

3.2 Transmissão da posse

A posse transmite-se com os mesmos caracteres; se de má-fé, permanecerá de má-


fé, se injusta permanecerá injusta. Essa é a regra do nosso art. 1.206: A posse transmite-se
aos herdeiros ou legatários do possuidor com os mesmos caracteres.

Mas, o art. 1.207 complementando esta regra diferencia a situação do sucessor a


título universal e do sucessor a título singular (O sucessor universal continua de direito a
posse do seu antecessor; e ao sucessor singular é facultado unir sua posse à do antecessor,
para os efeitos legais).

Antes de mais nada, devemos diferenciar estas duas qualidades: sucessor universal e
sucessor singular.

Sucessor a título universal é aquele que substitui o titular primitivo na totalidade dos
bens ou numa quota ideal deles, como p. ex. o herdeiro. Sucessor a título singular é o que
substitui o antecessor em direitos ou coisas determinadas, como p. ex. o comprador e o
legatário.36

Nesse sentido, a regra diferencia a transmissão da posse a esses dois sucessores. O


sucessor a título universal sucede in vitia et virtutes, ou seja, sucede com as mesmas
características, se o antecessor era possuidor de má-fé, também será de má-fé, mesmo que
desconhecesse qualquer vício, se o antecessor era possuidor injusto, também será
considerado possuidor injusto, mesmo que não tenha realizado qualquer um dos atos.

Já o sucessor a título singular pode optar entre a unir a sua posse a do seu antecessor
ou não. Se unir será como o sucessor a título universal, todos os vícios, se existentes, lhe
serão transmitidos. Porém tem a possibilidade legal de não unir a sua posse a do antecessor,
e assim começar uma posse nova, sem vício (caso a anterior fosse viciada).

36 Washington de Barros Monteiro, p. 37.

41
Guarda muita importância essa diferença com relação aos efeitos da posse (frutos,
benfeitorias, retenção) e, principalmente, com relação à soma para a aquisição por
usucapião.

O possuidor de boa-fé, como veremos, tem muitas vantagens com relação à posse,
obviamente, do que o possuidor de má-fé. Assim, se de boa-fé terá um maior direito sobre
os frutos e as benfeitorias e terá direito ao exercício da retenção.

Tenhamos o seguinte exemplo: se o possuidor anterior era de má-fé e o possuidor


atual é sucessor a título singular, se unir a sua posse com a do anterior, perderá vários
direitos que a posse de boa-fé autoriza. Se não unir, terá esses direitos.

Mas, sem dúvida, é no campo da usucapião que esta regra mais faz sentido.

Porque, vejamos, qual seria o principal interesse do sucessor da posse em unir a sua
com a do seu antecessor? O prazo. Logo, a principal vantagem é a soma do prazo. Meu
antecessor é possuidor há dez anos; se uno a minha posse a dele, também passo a ser
possuidor há dez anos; se não uno, começo a contagem do zero.

Vamos agora imaginar uma situação em que esta somatória fará diferença para o
caso de usucapião: imagine um possuidor de má-fé (adquiriu a posse de forma violenta),
mas como não houve reação por parte do proprietário, lá permaneceu. Passado nove anos
falece, o seus herdeiros (mulher e filhos) o sucedem a título universal. Logo, também
passam a ser possuidores há dez anos, porém de má-fé. E, quanto a isso, não têm opção já
que o sucessor a título universal continua de direito à posse do antecessor. Quanto tempo
restaria para usucapir? Se residirem no imóvel, faltará apenas 1 ano.

Agora, imaginemos o mesmo exemplo com o sucessor a título singular. Se o


antecessor era possuidor de má-fé, terá a opção entre unir a sua posse ou não. Se unir
também será de má-fé, se não unir, será de boa-fé. Se unir, assim como na resposta anterior,
faltará apenas 1 ano (caso também resida no imóvel, pela aplicação do § único, 1.238). Se
não unir, será possuidor de boa-fé. Se tiver justo título, como determina o art. 1.242, lhe
faltarão 10 anos. Logo, nesta hipótese, para aquisição por usucapião é vantajoso a esse
possuidor, mesmo que torne-se possuidor de má-fé, unir a sua posse a do antecessor.

3.3 Extensão da posse

42
O art. 1.209 refere-se a um outro elemento da aquisição da posse, a sua extensão.

Estabelece o artigo que “a posse do imóvel faz presumir, até prova contrária, a das
coisas móveis que nele estiverem”.

A regra visa estabelecer uma presunção juris tantum, de que a posse de um imóvel
leva a presumir a posse dos bens que ali se encontram.

3.4 Legitimidade para aquisição da posse (quem pode adquirir a posse?)

Estabelece o CC em seu art. 1.205 que a posse pode ser adquirida:

I – pela própria pessoa que a pretende ou por seu representante;

II- por terceiro sem mandato, dependendo de ratificação.

Esse artigo é mais uma prova de que para o legislador essa discussão sobre ser a
posse fato ou direito é superada.

Somente sendo direito é que ela permite a sua aquisição por meio de terceiros.
Ninguém adquire um fato para outro, mas pode-se adquirir um direito para outro, desde que
seja seu representante legal ou convencional (pelo mandato).

Assim, o absolutamente incapaz pode adquirir posse, desde que representado. E o


interessado pode nomear um representante para adquirir a posse por ele, por exemplo, nas
relações negociais, uma locação, uma compra e venda, em que o novo adquirente nomeia
um representante para investi-lo na posse.

Também refere-se a lei ao gestor de negócios, aquele que age sem mandato em
nome de outrem e depois tem deste a ratificação do ato. Até este, pelo inciso II, pode
adquirir a posse para outrem.

Situação que aqui também se encaixa é a do constituto possessório. Diz-se que o


possuidor adquire a posse por meio de seu representante, que é o antigo possuidor. Ou seja,
numa compra de um bem, o antigo proprietário que lá permanece adquire a posse para o
novo proprietário, agindo como representante deste.

43
IV EFEITOS DA POSSE

SUMÁRIO: 4.0 Efeitos da posse; 4.1 Faculdade de invocar os interditos; 4.1.1 Ação de
manutenção de posse; 4.1.2 Ação de reintegração de posse; 4.1.3 Interdito proibitório;
4.2 Percepção dos frutos; 4.3 Indenização das benfeitorias e direito de retenção; 4.3.1
Direito à indenização pelas benfeitorias; 4.3.1.1 Obras e despesas: significado; 4.3.1.2
Benfeitorias, Acessões e Pertenças: diferença; 4.3.1.3 Valor das benfeitorias e
compensação com os danos; 4.3.2 Direito de retenção; 4.3.2.1 Exercício processual do
direito de retenção; 4.3.2.2 Aplica-se às acessões e pertenças o direito à indenização e a
retenção? 4.4 Responsabilidade pela deterioração e perda da coisa; 4.5 Usucapião; 4.6
Ônus da prova e posição mais favorável do possuidor; 4.7 Alegação de domínio ou
outro direito (juízo possessório x juízo petitório)

4.0 Efeitos da posse

Os efeitos da posse são bastante controvertidos. Há aqueles que reduzem essa


enumeração, como, por exemplo, Savigny, para quem existiam apenas 2 efeitos: o
usucapião e a faculdade de invocar os interditos e aqueles para quem essa lista é infinita.37

Para Clóvis Beviláqua, autor do nosso Código Civil anterior, são sete os efeitos da
posse:

– o direito ao uso dos interditos;


– a percepção dos frutos;
– o direito de retenção por benfeitorias;
– a responsabilidade pelas deteriorações;
– a posse conduz ao usucapião;
– se o direito do possuidor é contestado, o ônus da prova compete ao
adversário, pois que a posse se estabelece pelo fato;
– o possuidor goza de posição mais favorável em atenção à propriedade, cuja
defesa se completa pela posse.38
Seguindo a orientação deste jurista, explicaremos os efeitos da posse através de sua
enumeração, mesmo porque, ela preenche a descrição dos artigos relacionados a esse tema
no Código Civil (arts. 1.210 a 1.222).

37A título de curiosidade Caio Mário cita um escritor que chega a atribuir 72 efeitos da posse e também
aquele que nega qualquer efeito, Instituições, p. 53.
38 Enumeração trazida pelo prof. Washington de Barros Monteiro, op. cit. p. 40.

44
4.1 A faculdade de invocar os interditos

Ninguém discorda que o principal efeito da posse é a possibilidade de utilização dos


interditos possessórios para sua proteção.

Discordam sim quanto a motivação desta proteção.

Para Savigny, a posse é tutelada como repressão à violência. No interesse da


manutenção da paz e da ordem pública.

Para Jhering, a proteção concedida à posse representa indispensável complemento


da propriedade. Em atenção a esta é que a posse é protegida: “O proprietário, privado da
posse, acha-se paralisado quanto à utilização econômica da propriedade; protege-se aquela
para assegurar o gozo desta”.39

O nosso código protege o possuidor, sem entrar no mérito desta motivação e diz no
art. 1.210 que “O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação,
restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser
molestado”.

Turbação, esbulho e ameaça são as causas de pedir das ações possessórias. Para
cada uma causa de pedir uma ação:

CAUSA DE PEDIR AÇÃO

Turbação Manutenção de posse

Esbulho Reintegração de posse

Ameaça (justo receio de ser molestado) Interdito proibitório

4.1.1 Ação de manutenção de posse

A turbação é todo ato que embaraça o livre exercício da posse, haja, ou não, dano,
tenha, ou não, o turbador melhor direito sobre a coisa. Para Washington de Barros

39 “Somente de uma maneira pode-se explicar satisfatoriamente o aspecto da proteção possessória do direito
romano, e é dizendo que ela foi instituída com o fim de aliviar e facilitar a proteção da propriedade”, Ihering,
p. 86.

45
Monteiro, a turbação consiste na agressão material dirigida contra a posse e pode ser de fato
e de direito.40 A turbação de fato consiste na agressão material dirigida contra a posse,
como o rompimento de cercas; a turbação de direito consiste na atitude do réu, contestando
judicialmente a posse do autor.

Ainda a divide, como Câmara Leal, em turbação direta e indireta, positiva e


negativa. A turbação direta é a que se exercita imediatamente sobre a coisa (abrir picada no
terreno do autor) e a indireta é a praticada externamente, mas que repercute sobre a coisa
possuída (ex. em virtude de atos ou palavras do turbador, o possuidor deixa de arranjar
locatário). Positiva é a que resulta da prática de atos materiais equivalentes ao exercício da
posse sobre a coisa, negativa quando apenas dificulta ou embaraça a plena atividade
possessória do possuidor.41

Das causas de pedir das ações possessórias é a que permite maior amplitude de
interpretação, pois o próprio significado do termo turbar, como incomodar, perturbar,
atrapalhar leva-nos a enquadrá-lo em um sem-número de situações que vivenciamos a todo
momento, principalmente em grandes centros urbanos.

Se comparada com as outras causas de pedir, esbulho e ameaça, também leva


vantagem, pois esbulho e ameaça são expressões que não comportam meio termo, ou se foi
esbulhado e perdeu a posse ou se está sendo ameaçado, já, na turbação, posso estar me
sentindo sendo atrapalhado na posse, ou perturbado nela, quando o outro que assim o faz
sente-se no seu direito. Imagine alguém que esteja reformando a sua casa, é claro que
perturba o seu vizinho, mas este deve tolerar, pois, afinal, é uma decorrência da própria
liberdade do outro assim agir. Mas, onde se encontra esse limite que separa aquilo que devo
tolerar – e que perturba minha posse, daquilo que não devo – pois turba minha posse?

Não é esta pergunta de uma resposta só, mas que comporta indagação diante da
situação concreta. É claro que os limites da tolerabilidade aumentam em grandes centros
urbanos e diminuem em pequenas cidades. E é em virtude da proximidade desta matéria
com o direito de vizinhança que voltaremos a abordá-lo quando do estudo desta matéria.

Uma outra indagação que se coloca a respeito da turbação é como realizar a


contagem de ano e dia quando múltiplos forem os atos turbativos?

40 Op. cit., p. 44
41 Idem ibidem, p. 44

46
Profª Maria Helena Diniz resume bem essa situação:

“a) se há um, dentre eles, que importe, realmente, em privação da posse, daí correrá
o prazo;

b) se há vários atos distintos, sem nexo de causalidade entre eles, cada um será
autônomo, para efeito de contagem;

c) se há atos sucessivos, ligados entre si, há apenas uma turbação, e contar-se-á do


último deles o prazo para efeito de ser admitido o rito sumário.”42

4.1.2 Ação de reintegração de posse (ação de força nova espoliativa, ou interdito


recuperatório ou ação de esbulho).

Esbulho é o ato pelo qual o possuidor se vê privado da posse, violenta ou


clandestinamente, e ainda por abuso de confiança.43

Informa-nos Washington de Barros Monteiro que no CPC anterior o esbulho


provinha da violência descabendo quando o vício fosse outro. Porém, neste código o
legislador processual não diferencia tal situação, dizendo somente no art. 926 que “o
possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação e reintegrado no de
esbulho”.

Logo, o esbulho pode ocorrer por um ato de violência, de clandestinidade e de


precariedade, contanto que faça com que o possuidor perca a posse de seu bem, está
caracterizada esta causa de pedir.

É esbulho o ato do invasor que invade violentamente a posse alheia (violência), o do


comodatário que permanece no bem além do prazo previsto (precariedade), o do vizinho
que aproveita a saída do proprietário para lá se instalar (clandestinidade).

Regra interessante sobre a reintegração de posse é a estabelecida no art. 1.212 do


CC: o possuidor pode intentar ação de reintegração e de indenização não apenas contra o
esbulhador, mas também contra o terceiro que recebeu a coisa esbulhada sabendo que o era.

42 Direito civil brasileiro, p. 85


43 Washington de Barros Monteiro, p. 46.

47
Mas, de acordo com o enunciado 80 do CJF (Conselho da Justiça Federal) não pode
ajuizar contra o terceiro de boa-fé: “É inadmissível o direcionamento de demanda
possessória ou ressarcitória contra terceiro possuidor de boa-fé, por ser parte passiva
ilegítima, diante do disposto no art. 1.212 do novo Código Civil. Contra o terceiro de boa-
fé cabe tão-somente a propositura de demanda de natureza real.”44

Logo, por força desse enunciado, se o possuidor esbulhado não for também o
proprietário e dessa situação ocorrer a transferência da posse a um terceiro de boa-fé, nada
poderá fazer, pois, não sendo proprietário, não terá legitimidade, à defesa de sua posse.

Não acreditamos ser esta a melhor interpretação deste artigo para todas as situações.
Num primeiro momento é justo, afinal aquele que esbulhou está numa posse ilícita e por
isso injusta. Mas e se, apesar de injusta está numa posse prolongada, quase usucapião e vem
a sofrer esbulho, porém ao tentar recuperar encontra outro, que não o esbulhador, na posse
do bem. Sendo terceiro de boa-fé nada poderá fazer por aquela interpretação. Mas há que se
considerar outros elementos para interpretar este artigo.

4.1.3 Interdito proibitório (preceito cominatório ou ação de força iminente ou


embargos à primeira).

É a proteção preventiva da posse, na iminência ou sob ameaça de ser molestada.

Trata-se de uma tutela preventiva, o que se tem atualmente denominado de tutela


inibitória. Com essa tínhamos ainda, no nosso sistema o mandado de segurança preventivo
e o habeas-corpus preventivo.

Hoje, com a nova redação do art. 5º, XXXV da CF, que tutela a ameaça de lesão ao
direito (“a lei não excluirá da apreciação do poder judiciário, lesão ou ameaça a direito”),
a tutela inibitória tornou-se uma possibilidade comum. Mas, antes, era conhecida somente
nestas 3 situações.

O interdito pode ser impetrado contra a administração pública? A resposta é


positiva. Também esta pode ameaçar a posse.

Questiona-se também se constitui ameaça capaz de justificar o interdito a ameaça do


réu de que pretende lançar mão de medidas judiciais para defesa de supostos direitos.
44 Enunciado citado pela profª Maria Helena Diniz, op. cit., p. 87

48
Entendemos que nesse caso não, afinal como estabelece o art. 153 do CC, “não constitui
coação a ameaça de exercício normal de um direito, nem o simples temor reverencial”.

O CC, no capítulo referente aos efeitos da posse, só faz referência a essas 3 ações
possessórias, chamadas então de ações possessórias típicas. As outras ações, que também
tem a posse por objeto, mas por não serem exclusivamente possessórias são tratadas pelo
CPC em outras oportunidades (ações possessórias atípicas). Aqui, trataremos na defesa da
posse.

4.2 Percepção dos frutos

Para a teoria objetiva, frutos são utilidades que a coisa periodicamente produz, sem
detrimento de sua substância.

Classificam-se em: naturais, industriais e civis.

Naturais são os que se renovam periodicamente, em virtude da força orgânica da


própria natureza, como p. ex. as colheitas.

Industriais são os devidos à atuação do homem sobre a natureza, como a produção


de uma fábrica.

Civis são as rendas provenientes da utilização de coisa frugífera, como juros e


aluguel.

Quanto ao seu estado, podem ser divididos em pendentes, percebidos, estantes,


percipiendos e consumidos.

Pendentes quando ainda unidos à árvore que os produziu, tanto pelos ramos como
pelas raízes.

Percebidos são depois de colhidos.

Estantes quando armazenados ou acondicionados para venda.

Percipiendos são os que deveriam ter sido colhidos mas ainda nãoo foram.

Consumidos são os que não mais existem, pois já foram utilizados.

49
Classificação dos
frutos

Geral: naturais: são os que se renovam periodicamente, em virtude da


força orgânica da própria natureza, ex. colheita

industriais: são os devidos à atuação do homem sobre a natureza,


ex. produção de uma fábrica

civis: são as rendas provenientes da utilização de coisa


frugífera, ex. juros e aluguel.

Quanto ao pendentes quando ainda unidos à árvore que os produziu


estado:

percebidos depois de colhidos

estantes quando, colhidos, forem armazenados ou


acondicionados

percipiendos os que deveriam ter sido colhidos mas ainda não o


foram

consumidos os que já não existem

Essa classificação, não é meramente doutrinária, encontra importância no texto


legal, pois o legislador diferencia esses frutos quanto à possibilidade do possuidor tê-los ou
não.

O possuidor de boa-fé:

tem direito aos frutos percebidos: art. 1214

O possuidor de má-fé:

deve restituir os frutos pendentes(§único 1214)

deve restituir os frutos colhidos com antecipação (§único 1214)

responde por todos os frutos colhidos e percebidos (art. 1216)

responde pelos frutos que por culpa sua deixou de perceber (art. 1216)

50
Como última regra acerca dos frutos, estabelece o art. 1.215 que “os frutos naturais
e industriais reputam-se colhidos e percebidos, logo que são separados; os civis reputam-
se percebidos dia por dia”.

Importante também no estudo desta matéria é relembrar a noção anterior da


possibilidade da posse de boa-fé transmudar-se para posse de má-fé. Pois, como se viu, isso
implicará em uma diferença na percepção dos frutos. O código faz muita referência a este
estado provisório da boa-fé, p. ex., o possuidor de boa-fé tem direito, enquanto ela durar...
(art. 1.214), os frutos pendentes ao tempo em que cessar a boa-fé... (par.único, 1.214).

Tudo isso para indicar a importância de se distinguir essa diferença para efeitos de
percepção nos frutos. Pois, se o possuidor estando de boa-fé percebeu frutos, esses são
deles, mas, se já tendo conhecimento do vício de sua posse, os percebeu, não mais serão
dele, apenas poderá deduzir as despesas de produção e custeio (p.único, 1.214).

Para relembrar a discussão sobre a mudança da posse de boa-fé em má-fé,


remetemos o leitor ao capítulo sobre alteração da causa possessionis.

4.3 Indenização das benfeitorias e direito de retenção

O direito às benfeitorias e a possibilidade de retenção por elas, são o terceiro efeito


da posse.

Determina o art. 1.219 que “o possuidor de boa-fé tem direito à indenização das
benfeitorias necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem
pagas, a levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito
de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis.”

Para tratar desse assunto, o legislador mais uma vez faz distinção entre o possuidor
de boa-fé e de má-fé.

O possuidor de boa-fé:

tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis (art. 1.219)

tem direito de retenção por essas benfeitorias (art. 1.219)

tem direito de levantar as benfeitorias voluptuárias (art. 1.219)

O possuidor de má-fé:

51
somente tem direito à indenização das benfeitorias necessárias (art. 1.220)

não tem direito à retenção (art. 1.220)

Trata-se aqui de dois direitos: o primeiro deles o direito à indenização pelas


benfeitorias realizadas, e o segundo, a possibilidade do direito de retenção.

4.3.1 Direito à indenização pelas benfeitorias

Comecemos para explicar o direito à indenização pelas benfeitorias pelo seu


conceito: benfeitorias são obras ou despesas efetuadas numa coisa para conservá-la,
melhorá-la ou, simplesmente, embelezá-la (Clóvis Beviláqua).

A classificação das benfeitorias está descrita no art. 96 do CC e também lá estão os


seus conceitos:

§ 1º. voluptuárias são as de mero deleite ou recreio, que não aumentam o uso habitual do
bem, ainda que o tornem mais agradável ou sejam de elevado valor;

§ 2º. úteis são as que aumentam ou facilitam o uso do bem;

§ 3º. necessárias são as que têm por fim conservar o bem ou evitar que se deteriore.

Não se tem como previamente enquadrar uma benfeitoria como útil ou necessária
ou voluptuária. Para sua análise devemos nos deter na situação concreta. Por exemplo: uma
pintura é voluptuária, útil ou necessária? A resposta é: depende do caso.

Uma pintura para conservação do bem é necessária, pintar a parede de amarelo para
tornar o ambiente mais agradável é voluptuária, pintar para separar um ambiente da casa
pode ser útil.

A benfeitoria necessária é a que mais se diferencia, o que torna mais fácil a sua
classificação, ao contrário da útil e da voluptuária que podem levar a uma aproximação
entre elas de difícil distinção.

Até porque poderíamos perguntar: a benfeitoria é voluptuária, útil ou necessária


para quem? Para o possuidor ou para o proprietário?

Imagine o caso de uma casa em que o morador-possuidor faz uma cobertura na


garagem para o carro. Essa benfeitoria (cobertura) é útil, necessária ou voluptuária?

52
Necessária não é, pois não serve para conservar o bem nem evitar que se deteriore
(porque nesse caso o bem é o imóvel), seria voluptuária? acreditamos também que não, pois
não é de mero deleite ou recreio, mas pode ser útil. Porém útil para quem? Se responderá
tranqüilamente, para o bem. A utilidade do bem serve a quem? Ao seu morador? E nesse
caso o morador-possuidor ou morador-proprietário? Pois imaginemos também que se trate
de uma relação locatícia e esse imóvel foi dado em locação por um casal de aposentados
para ajudar na sua renda, essa garagem é útil a eles? Possivelmente não. É útil nesse caso
ao morador atual, o locatário.

E talvez, até pela dificuldade dessa diferença que extrema as benfeitorias úteis das
voluptuárias, é que a lei de locação tem uma resposta diversa do CC. Para esse diploma,
somente as benfeitorias necessárias são indenizadas ao possuidor de boa-fé, as úteis para
serem indenizadas dependem da autorização do proprietário. É o que consta do art. 35 da
Lei 8.245/91.45

É por isso que a essa questão respondemos que deve-se ter primeiro em mente se a
benfeitoria é útil para o proprietário ou se somente foi ou será útil para o possuidor. Porque
mesmo sendo a benfeitoria uma obra para o bem, obviamente não vemos um bem isolado
daquele que o utiliza. Com exceção da benfeitoria necessária que visa conservar o bem ou
evitar que se deteriore, as outras têm uma relação direta com a função que esse bem exerce,
e essa função tem que ser pensada sob o ponto de vista do seu proprietário. Senão,
estaremos inflingindo a este penalidades muito severas ao ter que indenizar benfeitorias que
nunca, possivelmente, realizaria no bem.

4.3.1.1 Obras e despesas: significado

O conceito de benfeitoria nos traz a expressão obras e despesas (benfeitorias são


obras ou despesas).

Exemplificar as benfeitorias através de obras é atividade comum, mas as


benfeitorias não são somente obras.Cmo nos diz o seu conceito, são também despesas.

Assim, são também benfeitorias as despesas realizadas no bem pelo possuidor de


boa-fé e, se necessárias e úteis, devem ser indenizadas.

45 “Salvo expressa disposição contratual em contrário, as benfeitorias necessárias introduzidas pelo locatário,
ainda que não autorizadas pelo locador, bem como as úteis, desde que autorizadas, serão indenizáveis e
permitem o exercício do direito de retenção”.

53
Mas quais podem ser exemplos de despesas? Podemos citar a vacinação de um
rebanho, pulverização da lavoura, aragem da terra e o pagamento de tributos.

Essa última é uma questão bastante polêmica. Mas o que pode representar o
pagamento de tributos pelo possuidor de boa-fé, como IPTU, taxas, como a de lixo? Devem
ser entendidas como benfeitorias, pois são despesas que se realizam em razão da coisa.46

Seriam, então, úteis ou necessárias? A resposta é necessárias. Pois servem à


conservação do bem, à conservação íntegra do bem, já que o pagamento de impostos é uma
obrigação legal, do qual ninguém pode se escusar e o seu não pagamento acarreta até
mesmo a perda do bem.

Dessa forma, ao analisar as benfeitorias realizadas pelo possuidor de boa-fé e


também de má-fé, deve-se ter em conta não somente as obras, mas também as despesas, e
classificá-las adequadamente, para efeito de indenização.

4.3.1.2 Benfeitoria, acessão e pertença: diferença

Questão também que nos cabe analisar é a diferença entre benfeitoria, acessão e
pertença.

Benfeitoria, como vimos, trata-se de obras ou despesas realizadas na coisa para


conservá-la, melhorá-la ou embelezá-la; acessão é tudo que se incorpora natural ou
artificialmente a uma coisa. Já as pertenças, por sua vez, são como as duas obras realizadas
no bem, mas de caráter autônomo e por isso não estão ligadas diretamente à coisa.

O código trata das benfeitorias na parte geral (quando as classifica) e aqui no direito
das coisas, quando trata da sua indenização. Já as acessões são tratadas como forma de
aquisição da propriedade imóvel (art. 1.248). O código se refere às acessões naturais (ilhas,
aluvião, avulsão e abandono de álveo) e as artificiais ou industriais (construções e
plantações).

46 É como nos ensina Álvaro Bourguignon, “Constituem despesas, portanto, não só os gastos feitos com a
coisa, relativos a obras, aparentes ou não – como é o caso, v.g., da vacinação procedida no rebanho - , mas
ainda aqueles efetivados em razão da coisa, tais como os que derivam de imposição direta do poder público,
ou outros coativamente exigíveis, cuja satisfação é indispensável à conservação da regularidade
administrativa e fiscal do bem. O possuidor de boa-fé que os tiver suportado terá direito de, por eles, ser
reembolsado, podendo, em garantia de seu crédito, exercer o direito de retenção”, Embargos de retenção por
benfeitorias..., p. 98.

54
Interessa-nos nesse capítulo as acessões artificiais, pois estas é que se assemelham
às benfeitorias, como obras realizadas na coisa.

As pertenças são referidas pelo legislador na parte geral, em dois artigos, no art. 93
as define como “os bens que, não constituindo partes integrantes, se destinam, de modo
duradouro, ao uso, ao serviço ou ao aformoseamente de outro” e no art. 94 estabelece a
regra de que as pertenças não segue o principal (“Os negócios jurídicos que dizem respeito
ao bem principal não abrangem as pertenças, salvo se o contrário resultar da lei, da
manifestação de vontade, ou das circunstâncias do caso”).

Para melhor compreendê-las, tenha-se a seguinte exemplificação: uma pintura,


instalação de lâmpadas, conserto de um vazamento, são benfeitorias; a construção de uma
casa em um terreno, de um galpão, são acessões; uma escada externa em um edifício são
pertenças.

4.3.1.3 Valor das benfeitorias e compensação com os danos

Qual o valor a ser pago pelas benfeitorias? Ao possuidor de boa-fé, o valor atual; ao
possuidor de má-fé, há a opção entre o valor atual e o seu custo (art. 1222).

O valor das benfeitorias pode ser compensado com os dos danos (inclusive os frutos
injustamente percebidos): art. 1221.

4.3.2 Direito de retenção

A retenção, conforme ensina Washington de Barros Monteiro, é um direito


negativo. Consiste na faculdade de sustar a entrega da coisa, até que se indenize o retentor.
Estes os seus pressupostos: a) a detenção da coisa; b) a existência de um crédito de retentor;
c) a relação de causalidade entre esse crédito e a coisa retida.47

Atribui esse direito ao possuidor de boa-fé sobre as benfeitorias necessárias e úteis o


art. 1.219 do CC (...e poderá exercer o direito de retenção pelo valor das benfeitorias
necessárias e úteis).

47 Op.cit., p. 64.

55
Mas como exercer o direito de retenção e efetivamente o que ele representa?

Representa inicialmente a possibilidade do possuidor de boa-fé, em não sendo


indenizado pelo reivindicante-vitorioso do bem, retê-lo até que tenha seu crédito, das
benfeitorias necessárias e úteis pagas.

Imaginemos a seguinte situação: João, possuidor de boa-fé, sofre uma ação


reivindicatória proposta por José, que alega e prova ser o verdadeiro proprietário. Porém,
durante o período que ocupou o bem, João realizou diversas benfeitorias. José deve, antes
de ocupar o bem, indenizar João pelas benfeitorias necessárias e úteis realizadas (pois é
essa também a regra do art. 1.219). Caso assim não o faça, poderá José reter o bem, ou seja,
permanecer no bem não o entregando, até que essas benfeitorias lhe sejam indenizadas.

Mas o que deve José fazer para ter esse direito (de retenção) assegurado? Deve
exercitá-lo no momento processual adequado, do qual falaremos a seguir.

4.3.2.1 Exercício processual do direito de indenização e retenção

Antes da Lei 10.444/02, que incluiu o art. 461-A no CPC e da reforma do processo
de execução (Lei 11.232/05 e Lei 11.382/06 ) existiam basicamente duas formas de se
argüir o direito à indenização e de retenção no processo: na contestação, em se tratando de
ações executivas ‘lato sensu’ ou nos embargos de retenção por benfeitorias, quando se
tratasse de execução para entrega de coisa certa, por título judicial ou extrajudicial.

A alegação na contestação ocorria porque as ações executivas lato sensu, como se


sabe, não comportam um processo de execução autônomo, são auto-executórias, ou seja
após a sua sentença procede-se imediatamente o cumprimento do preceito estabelecido.48
Como não há uma fase executiva, o direito deve ser alegado na fase de conhecimento. Já
era essa a posição de nossos tribunais nas ações possessórias.49

48 São exemplos de ações executivas lato sensu as ações possessórias e a ação de despejo.
49 “PROCESSUAL CIVIL REINTEGRAÇÃO DE POSSE PROCEDENTE. EMBARGOS DE RETENÃO

POR BENFEITORIAS. DISCUSSÃO NÃO REALIZADA NA FASE COGNITIVA. PRECLUSÃO.


Tratando-se de ação possessória, dada a sua natureza executiva, o direito à indenização e retenção por
benfeitorias deve ser discutido previamente na fase de conhecimento. Recurso especial não conhecido”.
(REsp 649296, j. em 21/09/2006 pela Quarta Turma).

56
A atual redação do art. 461-A, incluído pela Lei 10.444/02, diz que ‘Na ação que
tenha por objeto a entrega de coisa, o juiz, ao conceder a tutela específica, fixará o prazo
para o cumprimento da obrigação’. Ações para entrega de coisa são todas aquelas cujo
pedido é a entrega de um bem, incluem-se nestas, as ações possessórias e as ações
reivindicatórias. Assim para estas ações não haverá mais um processo de execução e nem
uma fase de cumprimento de sentença (como ocorre para as ações de quantia certa). A sua
execução ocorrerá imediatamente, sem intervalo, proferida a sentença concederá o juiz
prazo para o cumprimento (ex. desocupe o bem em 5 dias). Nada mudou para a ação
possessória que já tinha esse processo, mas para a ação reivindicatória, houve uma grande
mudança, pois antes necessitariam para o cumprimento de sua decisão do processo de
execução.

Hoje podemos afirmar que toda ação para entrega de coisa certa tornou-se uma
executiva ‘lato sensu’.

Porém persistimos com duas formas de argüição desses direitos: quando se tratar de
ações que tenham por objeto obrigação de dar coisa certa (possessória, reivindicatória...) a
alegação desse direito deverá ocorrer na contestação; quando se tratar de execução por
título extrajudicial (não há mais que se falar em processo de execução por título judicial,
após a Lei 11.232/05) cujo objeto seja entrega de coisa certa, a alegação se dará por meio
dos embargos do devedor.

Na ação de conhecimento cujo objeto seja a entrega de coisa certa, deve o réu ao
contestar a ação onde lhe é reivindicada a propriedade, informar que realizou benfeitorias
necessárias e úteis, arrolar os valores dessas benfeitorias e requerer desde já o direito de
retenção caso não lhe sejam indenizadas. A mudança aqui ocorre impondo ao réu esta
forma de alegação em toda ação de conhecimento para entrega de coisa certa, e não mais
somente nas ações executivas ‘lato sensu’.

O juiz deverá reconhecer na sentença esse direito – o da indenização pelas


benfeitorias e o direito de retenção diante do seu não cumprimento. Dessa forma, a sentença
determinará como condição da ocupação o pagamento das benfeitorias ao possuidor de boa-
fé (úteis e necessárias) e o direito de reter o bem caso não lhe sejam pagas e de má-fé
(necessárias).

57
Faz-se isso pois não existe uma fase executiva nesse processo, e o cumprimento da
sentença ocorre sem intervalo.

Vejamos esse exemplo: João ajuíza contra José uma ação reivindicatória, alegando
que a propriedade que este ocupa é dele. José deve na contestação, mesmo que afirme ser
ele o proprietário, informar a realização das benfeitorias, o seu valor e o seu direito de
retenção sobre elas.

Caso João saia vitorioso, pelo art. 461-A determinará o juiz a entrega do bem. Mas,
também deverá determinar o pagamento das benfeitorias por João, como condição de sua
reintegração. Caso João não pague, não poderá ser reintegrado.

Surgem-nos aqui duas questões: 1) E se o juiz por esquecimento não reconhece na


sentença o direito à indenização por benfeitorias; 2) E se o réu não alega em contestação
esse direito?

Quanto à primeira indagação, entendemos que deve o réu interpor embargos de


declaração já que a sentença foi citra petita, pois o reconhecimento desse direito para ele é
de extrema importância, não só para ser indenizado, como também pelo fato de que o
direito à retenção pressupõe o reconhecimento do direito à indenização, só há retenção onde
houver indenização.

Quanto à segunda indagação, entendemos que ocorre a preclusão. Por se tratar de


um processo que não comporta uma fase executiva autônoma, o momento para alegar esse
direito é na contestação. Pois não existe outro. Lembremos que pelo princípio da
eventualidade o réu deve alegar em contestação toda a matéria de defesa (art. 301) e como
o cumprimento da sentença ocorrerá sem intervalo, não haverá mais oportunidade para
alegação dessa defesa.

Tudo isso que dissemos diz respeito à ação para entrega de coisa certa, porém, se se
tratar de processo de execução por título extrajudicial, deverá o réu alegar o direito de
retenção através de Embargos do devedor, conforme art. 745, IV do CPC.

Antes da reforma operada pela Lei 11.382/06 o réu deveria opor o seu direito em
embargos de retenção por benfeitorias (antigo art. 744). Porém com essa reforma
concentrou o legislador as defesas da execução nos embargos do devedor, colocando aquela
como mais uma das hipóteses desta defesa.

58
Aqui os embargos funcionam como a contestação funciona no processo de
conhecimento, pois esta é a única oportunidade de defesa do réu, já que se trata de um título
extrajudicial não tenho havido atuação judicial anterior.

Estabelece o art. 745 e seu inciso IV: ‘Nos embargos, poderá o executado alegar:
IV- retenção por benfeitorias necessárias ou úteis, nos casos de título para entrega de coisa
certa (art. 621).

Era mais completo o art. 744 anterior, que em seu §1º especificava o que o devedor
deveria alegar nos embargos sob pena de não serem recebidos: I- as benfeitorias
necessárias, úteis ou voluptuárias; II- o estado anterior e atual da coisa; III- o custo das
benfeitorias e o seu valor atual; IV- a valorização da coisa, decorrente das benfeitorias.

Mas a alegação do direito de retenção deve pautar-se por esta descrição, pois deve o
devedor demonstrar o seu direito à indenização pelas benfeitorias, comprovando a sua
realização (por isso o confronto entre o estado anterior e atual da coisa) e o seu valor e
assim postular o direito de retenção, já que como dissemos só existe retenção onde há
indenização.

Pode também o credor-exeqüente nos embargos requerer a compensação desta


indenização por benfeitorias com a dos frutos e danos devidos pelo devedor-executado
(§1º, art. 745). E também pode requerer a imissão na posse, desde que preste caução ou
deposite o valor devido pelas benfeitorias ou resultante da compensação (§2º, 745)

Não é mais necessário segurar o juízo para opor embargos, apesar da redação do art.
621. O legislador equivocou-se mantendo esta redação quando dispôs no novo art. 736 que
“O executado, independentemente de penhora, depósito ou caução, poderá opor-se à
execução por meio de embargos’.

Também os embargos não possuem efeito suspensivo (art. 739-A)

E, assim, podemos resumir a forma como se dá o exercício processual desse direito:

AÇÃO EXERCÍCIO PROCESSUAL PRAZO


DO DIREITO DE RETENÇÃO

59
Ação para entrega de coisa contestação (art. 301 CPC) 15 dias, contados da juntada do
(possessória, reivindicatória, mandado de citação ou do AR (art.
despejo) 241, I e II)

Execução para entrega de coisa Embargos do devedor (art. 744, 15 dias, contados da juntada aos
certa (art. 621 CPC) IV, CPC autos do mandado de citação (art.
738 CPC)

4.3.2.2 Aplica-se às acessões e pertenças o direito à indenização e


retenção?

Questão interessante acerca dessa matéria é questionar se também podem ser


aplicadas às acessões e pertenças a mesma disciplina das benfeitorias, quanto à sua
indenização e à possibilidade de retenção.

Quanto as acessões parece poder se justificar o argumento de que a elas também


devem ser aplicadas o regime das benfeitorias quanto a possibilidade de sua indenização e
também do direito de retenção.

Em obra primorosa sobre esse assunto, justifica Álvaro Bourguignon em


argumentos sólidos a equiparação desse regime à acessão.

Traz como principais argumentos, primeiro: a proximidade muitas vezes existente


entre benfeitorias e acessões, p. ex., um muro em um terreno ou a construção de uma
garagem são benfeitorias ou acessões?, para o autor são os dois; segundo, o art. 97 do CC
(antigo 62), diz “Não se consideram benfeitorias os melhoramentos ou acréscimos
sobrevindos ao bem sem a intervenção do proprietário, possuidor ou detentor”, logo,
poderia-se concluir que acessões devem ser consideradas benfeitorias pois configuram
melhoramentos sobrevindos à coisa com intervenção do possuidor, proprietário ou
detentor.50

Quanto às acessões ainda, cabe uma última observação: por serem obras, geralmente
de valor mais elevado, em comparação com o bem, muitas vezes o valor à sua indenização
pode ultrapassar o do próprio bem, razão pela qual, o legislador atual modificou as regras
da acessão, para permitir uma regra inversa autorizando o autor da acessão a adquirir o
solo, mediante indenização ao proprietário. É o que estabelece dentre outros o p.único do

50 Embargos de retenção por benfeitorias, p. 107-108.

60
art. 1.255 “Se a construção ou a plantação exceder consideravelmente o valor do terreno,
aquele que, de boa-fé, plantou ou edificou, adquirirá a propriedade do solo, mediante
pagamento da indenização fixada judicialmente, se não houver acordo”.

E, por último, quanto às pertenças, não poderíamos falar nesse regime de


equiparação, pois, como são autônomas em relação ao bem, o próprio legislador resolve a
questão ao estabelecer que não seguem o principal.

Logo, quando se trata de pertenças, o possuidor deve retirá-las do bem, ou então,


mediante acordo com o proprietário ou possuidor reivindicante, deixá-las ante a
correspondente indenização.

4.4 Responsabilidade pela deterioração e perda da coisa

Tratamos agora do quarto efeito da posse: a responsabilidade pela perda ou


deterioração da coisa.

Esse efeito encontra-se estabelecido em dois artigos do CC: 1.217 e 1.218.

Estabelece primeiro o art. 1.217 que “O possuidor de boa-fé não responde pela
perda ou deterioração da coisa, a que não der causa”. Enquanto o 1.218 estabelece que “O
possuidor de má-fé responde pela perda, ou deterioração da coisa, ainda que acidentais,
salvo se provar que de igual modo se teriam dado, estando ela na posse do reivindicante”.

Mais uma vez, o legislador premia o possuidor de boa-fé.

O possuidor de boa-fé:

não responde pela perda ou deterioração da coisa

O possuidor de má-fé:

responde pela perda ou deterioração da coisa (ainda que acidentais)

Assim, tendo o possuidor de boa-fé que restituir o bem ao seu legítimo possuidor ou
proprietário, o fará no estado em que se encontra, não incorrendo em nenhuma
responsabilidade, caso tenha havido perda ou deterioração do bem.

Claro que responderá, caso tenha dado causa à deterioração ou perda, diz a parte
final do 1.217.

61
Questão interessante é saber se essa causa atribuída ao possuidor de boa-fé, abrange
o dolo ou somente a culpa.

Em outras palavras, o possuidor de boa-fé que deu causa, por um ato culposo
responde também? Ou somente a causa a que se refere o artigo exposto é a dolosa?

Diz-nos Washington de Barros Monteiro, citando Clóvis Beviláqua que essa


restrição final (“que não tiver dado causa”) deve ser entendida como equivalente à que não
proceder de culpa ou dolo.51

Não entendemos assim. Acreditamos que a causa ocorrida para responsabilizar o


possuidor de boa-fé deve ser a dolosa. Qualquer ato culposo (negligência, imprudência ou
imperícia) também é passível de ocorrer com o proprietário. Para se aferir esses atos é
necessário levar-se em conta a diligência mediana, do homem médio. Porque, se não,
incorreremos num elemento muito subjetivo: saber se o proprietário também agiria dessa
forma, se teria ou não esse cuidado, essa diligência.

Perquirir como agiria o proprietário é uma penalidade atribuída pelo legislador ao


possuidor de má-fé; quando para isentá-lo da responsabilidade pela perda ou deterioração,
manda que prove que o fato também ocorreria com o proprietário o fato (art. 1.218).

Para o possuidor de má-fé há uma presunção de responsabilidade,


independentemente de o fato ter sido, inclusive, acidental. Por exemplo, o caso fortuito ou
de força maior.

Imagine um possuidor de má-fé que resolve estocar a colheita no galpão X. Se este,


por um raio, vem a pegar fogo, perdendo-se toda a colheita, assim como o próprio galpão,
presume-se a sua responsabilidade. Mesmo que o evento tenha sido, como foi, acidental. Só
conseguirá se escusar se também provar que com o reivindicante também teria ocorrido o
mesmo.

É uma prova muito mais difícil e por isso só se pode exigir essa análise (saber como
o proprietário agiria) do possuidor de má-fé.

4.5 Usucapião

51 Curso, p. 66.

62
Junto com os interditos, é o usucapião o efeito mais importante da posse.

Para alguns autores, não se deve considerar o usucapião como um efeito da posse,
pois não depende exclusivamente dela, mas também de outros elementos.

Porém, sem dúvida é um efeito da posse e de imensa importância. Conhecida por


todos, mesmo pelas pessoas mais simples, que, às vezes não sabendo como defender a sua
posse, sabem que podem usucapir.

Mas, como, além de corresponder a um efeito da posse, é uma forma de aquisição


da propriedade, móvel ou imóvel, tratada pelo código nesta parte, também faremos o
mesmo que o legislador e abordaremos o usucapião no estudo da aquisição da propriedade.

4.6 Ônus da prova e posição mais favorável do possuidor

Goza o possuidor de posição mais favorável, pois quem contesta a posse deve
prová-la.

De resto, não é uma regra diferente da processual, pois o ônus da prova incumbe a
quem alega. Assim, ao reivindicante da posse compete provar que é possuidor e que não
assiste direito ao ocupante de permanecer no bem. Por exemplo, alegando ser possuidor, há
de demonstrar ter sido esbulhado e que o ocupante é possuidor injusto.

Porém, essa regra se completa com a próxima, que impede que na ação possessória
se discuta domínio. Isso, sim, faz com que o possuidor encontre-se em posição mais
favorável, pois se o reivindicante for proprietário mas não conseguir provar a sua posse, a
perderá para o ocupante, que mesmo injusto ou de má-fé, é possuidor.

4.7 Alegação de domínio ou outro direito (juízo possessório x juízo petitório)

Estabelece o §2º do art. 1.210 CC que não obsta à manutenção ou reintegração na


posse a alegação de propriedade ou de outro direito sobre a coisa.

Complementando essa regra, estabelece o art. 923 do CPC que “na pendência do
processo possessório, é defeso, assim ao autor como ao réu, intentar a ação de
reconhecimento de domínio”.

63
Tais regras visam privilegiar a defesa da posse. Ou seja, se a ação é possessória, a
posse discutida é a jus possessinis, o direito a posse pela posse: sou possuidor e, por isso,
tenho o direito de permanecer no bem.

O que deve fazer o reivindicante da posse: provar que é possuidor.

E se não o for, como, por exemplo, o proprietário de um imóvel que há muito tempo
não o ocupa e nem dele tem posse. Neste caso, possivelmente perderá a ação. Pois, se tentar
retirar os ocupantes-possuidores do bem, estes dirão que são possuidores, e ele não terá
como provar isso, pois não tinha posse e como não poderá discutir domínio, sairá perdedor.

Esse, para alguns autores, é mais um efeito da posse: a proibição de, durante
demanda possessória, discutir domínio.

Trata-se, conforme nos informa Washington de Barros Monteiro, de norma


universalmente aceita, cujo pensamento se exprimia através da máxima de Ulpiano:
separate essa debet possession a proprietate.52

Porém, o mesmo legislador que proíbe a discussão da propriedade na pendência do


processo possessório, parece criar uma exceção no art. 1.211 (“Quando mais de uma pessoa
se disser possuidora, manter-se-á provisoriamente a que tiver a coisa, se não estiver
manifesto que a obteve de alguma das outras por modo vicioso”).

O CC de 1916 trazia ainda uma outra regra, estabelecida na parte final do art. 505,
prescrevendo que a posse não deve ser julgada em favor daquele a quem evidentemente não
pertencer o domínio. A mesma constante da segunda parte do art. 923, revogado pela Lei
6.820/80.

Havia ainda a súmula 487 STF: Será deferida a posse a quem evidentemente tiver o
domínio, se com base neste for ela disputada.

O novo código excluiu a parte final do art. 505, permanecendo somente a sua
primeira parte, que é a regra do §2º do art. 1.210.

Podemos afirmar que, pela exclusão no Novo Código da última parte da redação do
art. 505, não houve a recepção da exceptio proprietatis?

Quando houver dúvida acerca da posse, o que deve o juiz fazer?

52 Curso, p. 56.

64
Para quem entende que a exceptio proprietatis não foi recepcionada, então o juiz
deve extinguir o processo sem julgamento do mérito (aplicando o ônus da prova: o ônus da
prova incumbe a quem alega, se o autor – que alega – não consegue provar, então extingue-
se o processo).

Porém, para aqueles que entendem que a exceptio proprietatis permanece, em


virtude da súmula 487 do STF, o juiz deve buscar quando houver dúvida sobre a posse (p.
ex. quando autor e réu se dizem possuidores e o juiz não consegue constatar a posse
legítima) a saída na propriedade e decidir a ação em favor daquele que for proprietário.

O prof. Washington de Barros Monteiro ainda alega que a regra da separação do


juízo possessório e petitório comporta duas exceções: quando os contendores disputam a
posse a título de proprietários e quando duvidosa a posse de ambos os litigantes.53

A segunda hipótese é a que explicitamos anteriormente. Já disputar a posse a título


de proprietário seria a situação do autor e réu defenderem a sua posse pelo jus possidendi,
tenho direito a posse porque sou proprietário.

Entendemos que essas regras (exceptio proprietatis) não foram recepcionadas pelo
legislador, até porque a confusão da interpretação desses artigos sempre foi maior do que a
própria solução. Assim, a posse tem que ser deferida àquele que provar ser o possuidor
legítimo; se o autor que demanda não consegue provar, então o seu pedido deve ser
indeferido.54

Somente há uma exceção legal, que é a do art. 1.211 e, nesse caso, para premiar a
posse legítima, de boa-fé. Pois, conforme o artigo, havendo dúvida, não se manterá na
posse aquele que estiver manifesto que a obteve de modo vicioso, p. ex, esbulhando.

Assim, reivindicando a propriedade do seu ocupante e não conseguindo o juiz


claramente decidir quem é o possuidor, mas constatando que o ocupante a tem de modo
vicioso, por exemplo, através de uma invasão, deve deferir-se a posse ao autor.

53 Curso de Direito Civil, p. 57.


54É a posição de Arruda Alvim: “Contudo, temos por inaceitável essa posição porquanto a revogação do art.
923 do CPC, pela Lei 6.820/1980, não teve a virtude de, revogando a lei revogadora (o art. 923 do CPC
revogara o art. 505 do CC/1916, nessa parte), nem pelo fato de ter sido revogada a lei revogadora, restaurar-
se-ia a lei revogada. Há entendimento, com o qual não concordamos, no sentido de que, em diversas
hipóteses, não incide a vedação do art. 923 do CPC.”, in Defesa da posse e das ações possessórias, p. 27.

65
Veja: não que a posse viciada não tenha proteção, mas, se o autor também consegue
demonstrar que é possuidor e o juiz não consegue distinguir a situação, deve deferir a posse
para aquele que não agiu de modo vicioso. Pois, se não o fizer, estará correndo o risco de
manter na posse aquele que dela retirou o legítimo possuidor.

66
V PERDA DA POSSE

SUMÁRIO: 5.0 Considerações iniciais; 5.1 Perda da posse; 5.1.1 Abandono; 5.1.2
Tradição; 5.1.3 Perda da coisa, destruição dela ou por ser posta fora de comércio;
5.1.4 Posse de outrem; 5.1.5 Constituto possessório

5.0 Considerações iniciais

O Código anterior descrevia 5 situações que configuravam a perda da posse: I-


abandono; II- tradição; III- pela perda, ou destruição delas, ou por serem postas fora do
comércio; IV- pela posse de outrem, ainda contra a vontade do possuidor, se este não foi
manutenido, ou reintegrado em tempo competente; V- pelo constituto possessório.

No Código Civil atual, o legislador opta por não fazer uma descrição, apenas
enunciando no art. 1.223 que perde-se a posse quando cessa, embora contra a vontade do
possuidor, o poder sobre o bem, ao qual se refere o art. 1.196.

Em outras palavras, diz-nos o legislador que se o possuidor não exercer sobre os


bens os poderes descritos no art. 1.196 (usar, gozar, dispor) perderá a posse, mesmo que
essa perda tenha ocorrido por um ato contrário a sua vontade, como p.ex., no esbulho.

E é por isso que cuida de regra especial para aquele que perde a posse sem
presenciá-la, por exemplo, através de um ato de esbulho que ocorre quando não se encontra
na propriedade. Para esse, não haverá perda da posse enquanto mantiver a sua situação de
desconhecimento e essa só ocorrerá quando tiver conhecimento e tentando recuperá-la não
conseguir.

A redação atual, sem dúvida, é melhor, porque procura explicar o instituto jurídico
não através da descrição de hipóteses, mas do seu significado.

Preferimos, no entanto, continuar explicando as hipóteses de perda da posse


elencadas no CC anterior, mesmo que a atual redação seja mais técnica; a anterior era
descritiva de determinadas situações comuns, que, também acabam servindo de exemplo
para a explicação do atual art. 1.223.

5.1 Abandono

67
O abandono é a primeira das hipóteses trazidas pelo legislador passado.

De acordo com Washington de Barros Monteiro, é o ato voluntário, pelo qual o


possuidor manifesta intenção de largar o que lhe pertence, é a renúncia da posse pelo
possuidor.55

Essa definição, que não deixa de estar correta, traz um elemento que permite
bastante equívoco: intenção. Como saber a intenção do possuidor? Como saber se aquele
bem foi abandonado ou perdido?

Esse elemento subjetivo nos remonta a Savigny: se para ter posse é necessário o
animus domini, para perdê-la é também necessário o “animus de abandono”.

Porém, perquirir sobre o elemento subjetivo é sempre algo complicado,


principalmente para identificar um determinado instituto. Melhor, nesse aspecto, fez
Ihering, para quem, dentro da sua teoria objetiva, o abandono representa a colocação de um
bem fora da sua relação econômica. Por exemplo, um livro encontrado dentro de uma sala
de aula. Está abandonado ou perdido? Provavelmente está perdido. Pois afinal ele está
dentro da sua relação econômica, da função que representa. E o mesmo livro encontrado
num terreno vazio, está abandonado ou perdido? Provavelmente, abandonado, pois não está
dentro da sua relação funcional.

Mas, claramente a adoção da tese de Ihering não significa responder a todas as


questões que envolvem o abandono.

Por exemplo, questão interessante trazida por Washington de Barros é a de uma


pessoa que, para salvação de navio em perigo, deita ao mar diversos objetos; arrojados à
praia, ou recolhidos por outrem, assiste ao dono o direito de recuperá-los?

Veja:, dentro da teoria de Ihering, se poderia dizer que os bens boiando no mar,
estavam fora da sua relação funcional, porém nesse caso não foram abandonados. Para
teoria de Savigny, ao se perquirir a intenção, se saberia que não tinha havido abandono.

E agora, como responder?

A resposta para o autor acima é de que, nesse caso não houve abandono.56

55 Curso, p. 68.
56 Citando Cunha Gonçalves, Curso, p. 69.

68
E, talvez a melhor teoria para responder essa argüição seja não adotar uma teoria só,
mas a sua conjugação e a análise de outros fatores, porque, no final, toda essa presunção de
abandono é sempre uma presunção juris tantum, que comporta, claro, prova em contrário.

O abandono para o legislador também é uma causa de perda da propriedade. Se bem


que aqui devemos ler com um certo cuidado e diferenciar o bem móvel do imóvel. Para o
bem móvel, desde que o bem haja sido abandonado, configura-se a perda da posse. Mas,
para o bem imóvel, o abandono não representa a perda imediata da propriedade. Diz-se que
não se perde a propriedade pelo não-uso, mas pelo uso de outrem (aqui, nos referimos à
propriedade imóvel).

O abandono de um imóvel não representa por si só a perda da propriedade; é


necessário que dela outrem se aposse, para assim, com o tempo, adquirir por usucapião. E é
por isso que o abandono é diferente da renúncia, outro instituto de perda da propriedade,
mas que necessita de registro para se configurar.

Porém, trouxe o legislador uma hipótese de perda por abandono da propriedade


imóvel, no art. 1.276. Esta se configurará pelos seguintes requisitos: abandono da
propriedade pelo proprietário + ausência de posse de outrem + arrecadação como bem vago
+ 3 anos. Veja, então, que para o abandono representar a perda da propriedade será sempre
necessário a posse de outrem, mesmo que este seja o poder público através dessa nova
hipótese.57

5.2 Tradição

A tradição é definida no CC como a forma de aquisição da propriedade dos bens


móveis, assim como o registro é dos bens imóveis (arts. 1.267 e 1.245).

Tradição é a entrega do bem do tradens (aquele que transfere) para o accipiens


(aquele que adquire).

Logo, nos bens móveis, a tradição representa a perda da propriedade para aquele
que transfere, que vende, por exemplo; e a aquisição, para aquele que adquire, por exemplo,
compra.

57 Trataremos melhor desse instituto quando da análise da perda da propriedade imóvel, ao qual remetemos o

leitor caso haja interesse.

69
Isso quer dizer que nos bens móveis, somente haverá aquisição da propriedade com
a tradição.

Para os bens imóveis a tradição representa somente a perda da posse, p. ex. a partir
do momento que vendo meu imóvel e entrego a chave para o comprador morar, perco a
posse mas o outro não adquire a propriedade enquanto não se efetivar o registro.

É por isso que dissemos anteriormente que a tradição está para a propriedade móvel
como o registro está para a imóvel.

A tradição nos bens móveis representa, ao mesmo tempo, perda da posse e aquisição
da propriedade.

Há 3 espécies de tradição: real, simbólica e ficta:

REAL= é quando ocorre a entrega física do bem. Numa compra e venda de um carro, por
exemplo, ocorre a tradição quando o vendedor entrega o carro ao comprador e, assim, deixa
de ter posse, passando o outro, comprador, a exercê-la;

SIMBÓLICA= é quando se entrega uma coisa ou documento representativo do objeto da


propriedade transmitida. No mesmo exemplo acima, seria – ao invés da entrega do bem em
si – a entrega das chaves. Também é comum entregar-se as chaves em negócios jurídicos
cujo objeto sejam imóveis; por exemplo, num contrato de locação a entrega da chave pelo
locador representa a tradição e neste caso, a transferência da posse, já que a transferência da
propriedade só ocorre com o registro;

FICTA= ocorre quando apenas se altera a qualificação jurídica da posse do bem e não a
situação de fato correspondente. O exemplo mais comum é o do constituto possessório.
Fiquemos com o mesmo exemplo que utilizamos para explicar o constituto possessório
anteriormente: numa compra e venda de imóvel, em que fique acordado que o vendedor
permanecerá no bem, as partes através da cláusula do constituto possessório, transferem a
posse; assim, apesar de não ter havido nenhuma alteração fática, o comprador se tornará
possuidor indireto e o vendedor alterará sua condição para possuidor direto.

5.3 Perda da coisa, Destruição dela ou Por ser posta fora de comércio

70
Tratava o legislador anterior, neste inciso, de 3 hipóteses: a perda do bem, a sua
destruição e a sua colocação fora de comércio. Refere-se o legislador, mais
especificadamente, ao bem móvel.

Comecemos pela perda do bem.

O que representa perder um bem? Por exemplo, a perda de uma coisa móvel, como
um relógio e a sua contínua procura, constitui perda? Para aquele que o encontra, qual a
diferença entre perda e abandono?

O legislador atual tratou da perda da coisa não mais como uma das hipóteses de
perda da posse e nem como uma forma de aquisição da propriedade móvel (como fez o
legislador anterior), mas na introdução da propriedade sobre a rubrica descoberta.

Assim, diz o legislador no art. 1.233, que quem quer que ache coisa alheia perdida
há de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor.

Com isso, já respondemos a última pergunta: para aquele que encontra faz diferença
a perda e o abandono. Pois, se houve o abandono, aquele que encontra coisa abandonada
adquire a propriedade, mas, se houve perda, aquele que encontra deve restituí-la ao dono ou
legítimo possuidor.

A fórmula que permite diferenciar a perda do abandono é a mesma que permite


identificar o abandono. Se o abandono é a relação da coisa fora da sua função econômica, a
perda é a relação da coisa dentro da sua função econômica. Fiquemos com um exemplo que
utilizamos ao tratar do abandono: um livro encontrado em uma sala de aula, foi perdido,
mas um livro encontrado em um terreno vazio, foi abandonado.

Claro que esse é um primeiro raciocínio, pois, pode ser que o livro encontrado em
um terreno tenha sido furtado e lá deixado, mas auxilia na diferenciação dessas situações,
mesmo que não a resolva definitivamente.

Determina ainda, em caso de perda, que aquele que encontrou, o descobridor (no
código passado, inventor), em não encontrando o dono, entregue o bem à autoridade
competente.

Quanto à destruição da coisa, necessariamente ela implica a perda da posse para


aquele que a detém. Um carro que se incendeia, um animal que morre por um raio, uma
explosão em um prédio são exemplos desta situação.

71
A destruição, para o proprietário também implica em perda da propriedade. Restará
saber se dessa perda poderá ser responsabilizado alguém, se, por exemplo, a explosão do
prédio foi responsabilidade do locatário, que, neste caso, deverá também responsabilizar o
proprietário.

E, por último, a colocação do bem fora de comércio é também uma forma de perda
da posse. Se, por exemplo, é proibido pelo Ministério da Saúde a venda de um determinado
remédio, todas as farmácias que o adquiriram perdem a sua posse.

5.4 Posse de outrem

Estabelece o art. 1.224 que só se considera perdida a posse para quem não
presenciou o esbulho, quando, tendo notícia dele, se abstém de retornar a coisa, ou,
tentando recuperá-la, é violentamente repelido.

Perde-se a posse pela posse de outrem, mas em que momento isso ocorre? Ou seja,
ocorrendo o esbulho, ele ocasionará imediatamente a perda da posse para o possuidor? Ou
haverá um tempo até se consolidar essa perda?

Temos dois artigos no CC que respondem essa questão, o 1.208 e o 1.224. O


primeiro estabelece, que enquanto durarem a violência e a clandestinidade para a aquisição
da posse, esta não será autorizada, a não ser quando cessem esses atos.

E o 1.224, que transcrevemos acima, trata de uma regra especial para aquele que
perde a posse sem estar presente.

Com a soma dos dois artigos podemos concluir que:

A posse de outrem implica em perda da posse ao possuidor esbulhado;

Porém, se a forma de adquirir a posse ocorre por violência ou clandestinidade, este


não a adquirirá enquanto não cessados esses atos;

O possuidor esbulhado, se ato contínuo defende a sua posse, não a perde por tratar-
se de desforço imediato;

Para o ausente só se considera perdida a posse quando ele tem notícia do fato e, ato
contínuo, tentando recuperá-la não o consegue.

72
Consideramos um equívoco o entendimento de alguns autores para quem a posse só
se considera perdida, após o esbulho, quando o legítimo possuidor nada faz no prazo de ano
e dia. Não deve ser este o entendimento destes artigos até porque o legislador nada diz com
relação a prazo, apenas enuncia um momento em que não ocorre posse, durante a violência
ou clandestinidade e durante a ausência do possuidor.58

5.5 Constituto possessório

Já tratamos do constituto possessório no capítulo da aquisição da posse, para o qual


remetemos o leitor nesse momento.

No entanto, podemos dizer que se para o comprador o constittuto possessório é


forma de aquisição da posse, para o vendedor pode representar sua perda.

Aquele que vende o bem e nele permanece por tolerância e permissão do novo
proprietário altera a sua causa possessionis de possuidor para detentor.

Dissemos que o constituto pode representar a perda da posse, porque nesta


convenção, se o antigo proprietário permanece no bem como locatário, é possuidor, como
sabemos. Mas, se, como dissemos, fica somente alguns dias a mais (para p. ex., resolver a
sua mudança) nele permanece como detentor, já que esta figura enquadra-se na primeira
parte do art. 1.208.

O atual legislador não tratou do contituto possessório nem como forma de aquisição
da posse nem como perda. Somente a ele se referiu na aquisição da propriedade móvel,
quando tratou da tradição (§ único, 1.267).

Mas, isso não impede que o constituto seja uma cláusula da propriedade imóvel, em
que se negocia fictamente a transmissão da posse ou a sua perda, como verificamos.

58 Essa é a opinião de Washington de Barros Monteiro para quem “O tempo competente, a que se refere o
texto, é o prazo de ano e dia. Decorrido esse lapso de tempo, sem reação do primitivo possuidor, firma-se a
posse nova, de modo que o novel possuidor deverá ser nela sumariamente mantido, até que seja convencido
pelos meios ordinários, nos termos do estabelecido no art. 924, in fine, do Código de Processo Civil”.

73
VI DEFESA DA POSSE

SUMÁRIO: 6.0 Defesa da posse; 6.1 Legítima defesa x Desforço imediato; 6.2 Ações
possessórias típicas (manutenção, reintegração e interdito proibitório); 6.2.1
Características das ações possessórias; 6.2.1.1 Fungibilidade; 6.2.1.2 Cumulação de
pedidos; 6.2.1.3 Natureza dúplice; 6.2.1.4 Exceção de domínio; 6.2.2 Procedimento da
ação de manutenção e de reintegração de posse; 6.2.3 Procedimento do interdito
proibitório; 6.3 Ação possessórias atípicas; 6.3.1 Nunciação de obra nova; 6.3.2 Ação
de dano infecto; 6.3.3 Ação de imissão na posse; 6.3.4 Embargos de terceiro senhor e
possuidor

6.0 Defesa da posse

Um dos principais efeitos da posse, como vimos, é a possibilidade de utilização das


ações possessórias, ou seja, a sua defesa por meio dessas ações.

Mas, a defesa da posse não ocorre somente por meio destas ações, a que já nos
referimos anteriormente, chamadas ações possessórias típicas, que são a reintegração e
manutenção de posse e o interdito proibitório. A defesa da posse também ocorre por meio
de outras ações em que a posse é discutida, às vezes não como objeto principal, mas como
objeto secundário dessas ações, e as designaremos como ações possessórias atípicas.59

Porém, em primeiro lugar, antes mesmo da utilização de qualquer ação, a posse


pode ser defendida por atos de autotutela do possuidor, autorizado no sistema, designados
por legítima defesa e desforço imediato. E são com esses atos que começamos esses
capítulo.

6.1 Legítima defesa x Desforço imediato

“O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua


própria força, contando que o faça logo; os atos de defesa ou de desforço, não podem ir
além do indispensável à manutenção ou restituição da posse”.

Com essa redação, estabelece o art. 1.210, §1º, os dois atos de autotutela autorizados
na posse: a legítima defesa e o desforço imediato.

59 São também chamadas de ações possessórias stricto sensu e de ações possessórias lato sensu, como o faz o

prof. Arruda Alvim, Defesa da posse e ações possessórias, p. 14.

74
Distinguem alguns autores esses atos, identificando a legítima defesa da posse com
a turbação, e o desforço imediato com o esbulho.60

Assim, nesta diferença, o desforço imediato seria mais amplo que a legítima defesa;
enquanto esta é uma reação imediata e momentânea de repulsa ao ato turbativo, naquela o
possuidor ultrapassa esse limite até que consiga recuperar a posse, “contanto que o faço
logo”.

Questão importante é saber quanto tempo tem o 'contanto que faça logo'.
Obviamente o legislador não tinha como estabelecer um prazo, pois qualquer um poderia
ser injusto frente a situação real, mas diz-se que a reação tem que ser imediata, em ato
contínuo, mesmo que, agindo dessa forma, isso dure alguns dias.

E, como autotutelas autorizadas no sistema, tais atos não constituem atos ilícitos,
pois, de acordo com o art. 188, I, do CP, não o são os praticados em legítima defesa ou no
exercício regular de um direito reconhecido.

Outra questão interessante a discutir é saber quem pode lançar mão da legítima
defesa da posse e do desforço imediato? Somente o possuidor? Somente o possuidor justo e
de boa-fé? Ou também pode o possuidor injusto? E o detentor?

Para a maioria dos autores, somente o possuidor pode se valer dessa autotutela, mas,
nesse caso, todo possuidor, justo e injusto, de boa e de má-fé. Pois a autotutela é uma
defesa para aquele que exerce posse repelir o ato injusto de outro, mesmo que o dele na
aquisição também tenha sido injusto.

Porém, há autores que defendem a possibilidade do detentor realizar a legítima


defesa da posse. E partem de um argumento bastante razoável: o detentor muitas vezes é a
pessoa contratada para cuidar/vigiar a posse, como o caseiro, o empregado. Se este vendo a
posse sofrer esses atos injustos nada puder fazer para repeli-los, umas das suas principais
funções estará esvaziada.61

60 “Prevê o legislador, com esse dispositivo, duas situações diferentes, a legítima defesa da posse, no caso de
turbação, e o desforço imediato, no caso de esbulho”, é como afirma Washington de Barros Monteiro, Curso,
p. 54.
61 É como pensa Álvaro Bourguignon, em sua obra, Embargos de retenção por benfeitorias, p.

75
Outra questão também levantada é se a legítima defesa e o desforço imediato podem
ser delegados, p.ex, sou esbulhado e contrato pessoas para me defender? É possível?
Entende-se que a autotutela (legítima defesa/desforço imediato) é um ato indelegável, mas
o possuidor pode se servir de amigos e mesmo empregados.

E, por último, os requisitos autorizadores para a utilização da autotutela são:

a) a violação da posse deve ser atual;

b) a repulsa à violação da posse deve ser imediata;

c) deve haver proporcionalidade dos meios utilizados pelo possuidor com a extensão
da ofensa efetivada.62

6.2 Ações possessórias típicas: Manutenção de posse; Reintegração de posse e


Interdito proibitório:

Já analisamos em outro capítulo as chamadas ações possessórias típicas,


principalmente sob seu aspecto civil, quando o fizemos analisando-as como um dos
principais efeitos da posse.

Convém agora analisar as ações possessórias dentro desse capítulo da defesa da


posse e assim privilegiar seu aspecto processual.

Estabelece o art. 1.210 CC que o possuidor tem direito a ser mantido na posse em
caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo
receio de ser molestado.

Já vimos que turbação, esbulho e ameaça são as causas de pedir das ações
possessórias.

Por sua vez, estabelece o CPC, no art. 926, que o possuidor tem direito a ser
mantido na posse em caso de turbação e reintegrado no de esbulho. E, por sua vez,
estabelece o art. 932 que o possuidor direto ou indireto, que tenha justo receio de ser
molestado na posse, poderá requerer ao juiz que o segure da turbação ou esbulho iminente,
mediante mandado proibitório, em que se comine ao réu determinada pena pecuniária, caso
transgrida o preceito.

62 Requisitos enumerados por Roberto Senise Lisboa, Manual, p. 114.

76
O CPC trata das ações possessórias no Capítulo V, do Livro dos Procedimentos
Especiais e o faz nos arts. 920 a 933. Porém, divide a matéria em 3 seções: disposições
gerais, manutenção e reintegração de posse e interdito proibitório.

Assim, também o faremos nesse capítulo e começaremos abordando as


características das ações possessórias.

6.2.1 Características das ações possessórias:

São quatro as principais características das ações possessórias: fungibilidade (art.


920); possibilidade de cumulação de pedidos (art. 921); natureza dúplice (art. 922), exceção
de domínio (art. 923).

6.2.1.1 Fungibilidade

A primeira característica da ação possessória é a sua fungibilidade.

Estabelece o art. 920 que a propositura de uma ação possessória em vez de outra
não obstará que o juiz conheça do pedido e outorgue a proteção legal correspondente
àquela, cujos requisitos estejam provados.

Autoriza a fungibilidade que o juiz decida pedido diverso daquele que foi formulado
pelo autor: pedindo o autor manutenção pode o juiz deferir a reintegração, desde que os
requisitos da reintegração estejam provados no processo, conforme também determina o
art. 920.

Não é desnecessário dizer que tal situação náo é possível no sistema processual
tradicional, pois o juiz fica vinculado ao pedido da parte, não podendo decidir diversamente
do que foi pedido (aplicação do princípio dispositivo, expressa no art. 460 CPC).

Caso isso ocorresse, ou o juiz indeferiria a petição inicial ou julgaria improcedente o


pedido por falta de provas (afinal aquilo que se pediu não se conseguiu provar, pois provou-
se o que não pediu).

Mas, com a fungibilidade, fica o juiz autorizado a decidir de maneira diversa.

E isto ocorre porque a situação possessória é muito transitória; hoje o que é ameaça
pode amanhã ser esbulho, e o processo não pode ser um obstáculo a essa defesa, pois,
afinal, o que se visa proteger é a ofensa à posse. Além do mais, por vezes a diferença entre

77
as possíveis causas possessionis é tênue, nem sempre é fácil distinguir, por exemplo,
turbação de esbulho. O vizinho que, por atos turbativos, impede o uso do meu quintal me
turba ou esbulha? Veja que nem sempre a distinção é clara.63

Com isso, podemos concluir que a causa de pedir nas ações possessórias é a ofensa
do direito de posse, que pode consistir numa ameaça, turbação ou esbulho.64

6.2.1.2 Cumulação de pedidos

A segunda característica das ações possessórias é a possibilidade de cumulação de


pedidos autorizada no art. 921.

Por esse artigo, permite-se que o autor cumule junto a seu pedido possessório o de:
I- condenação em perdas e danos; II- cominação de pena para caso de nova turbação ou
esbulho; III- desfazimento de construção ou plantação feita em detrimento de sua posse.

Todos são pedidos conexos com o da ofensa à posse e guardam com esta estreita
relação. É comum que no esbulho haja danos, que o esbulhador construa ou plante no
terreno e também que volte a esbulhar.

Mas, o que determina que esta seja uma característica especial da posse é que a
cumulação de pedidos, também permitida no CPC, impõe que o rito da ação seja o
ordinário (art. 292, =§°2), e aqui, mesmo com essa cumulação, o rito permanecerá sendo
especial.

6.2.1.3 Natureza dúplice

Como terceira característica das ações possessórias, temos a natureza dúplice,


contemplada no art. 922 (“É lícito ao réu, na contestação, alegando que foi o ofendido em

63 É a opinião de Arruda Alvim “O espectro da fungibilidade refere-se tanto ao erro na indicação da ação

quanto na identificação dos fatos, como, ainda nele está implicado que a ação deve ser aproveitada se se
alterarem os próprios fatos”, in Defesa da posse e ações possessórias, p. 15.
64 “Importa, pois, para a concessão da tutela adequada a que alude o art. 920 do CPC, que a causa de pedir
seja, genericamente,a ofensa do direito de posse do autor e, ainda, que este tenha postulado a concessão de
tutela possessória”, in Marcato, Procedimentos especiais, p. 152.

78
sua posse, demandar a proteção possessória e a indenização pelos prejuízos resultantes da
turbação ou do esbulho cometido pelo autor”).

Dentro de uma melhor técnica, não se trata a ação possessória de uma ação dúplice,
pois nestas, como bem explica Marcato, autor e réu ocupam simultaneamente ambas as
posições subjetivas na base da relação jurídica processual, podendo o último obter,
independentemente de pedido expresso (mas sem prejuízo dele), o bem da vida disputado,
como conseqüência direta da rejeição do pedido do primeiro.65

Na ação possessória, a indenização obtida pelo réu não é conseqüência da


duplicidade desta ação. A rejeição do pedido do autor não implica necessariamente a
obtenção de indenização pelo réu, esta só é obtida quando haja pedido do réu em sua
contestação, o que implica dizer que trata-se de pedido contraposto autorizado a ser
proposto na contestação e não em reconvenção, como ocorre no sistema tradicional.

E, com isso, ainda podemos perguntar: é cabível a reconvenção nas ações


possessórias? E a resposta é sim, pois a duplicidade aqui autorizada limita-se aos pedidos
do art. 922; pedidos de natureza diversa devem ser formulados por meio de reconvenção.66

6.2.1.4 Exceção de domínio

Como última característica das ações possessórias temos a exceção de domínio.

Determina o art. 923 do CPC que “Na pendência do processo possessório, é defeso,
assim ao autor como ao réu, intentar a ação de reconhecimento de domínio”.

A ação possessória é discutida com base no jus possessionis e não no jus possidendi.

É vedado ao réu, durante uma ação possessória, percebendo que não irá sair-se
vitorioso, por não conseguir demonstrar sua posse, ajuizar ação reivindicatória para pleitear
a posse através de seu domínio.

Poderá o réu fazer isso após o término da ação possessória e não durante o seu
curso. Isso porque o que se pretende é defender a posse de maneira mais prontamente, já
que esta representa a visibilidade do domínio.

65 Procedimentos especiais, p. 154.


66 Essa é a observação de Antonio Carlos Marcato, Procedimentos especiais, p. 154

79
E o inverso é admissível? Na pendência de ação reivindicatória é possível discutir
posse? A resposta é, sim. O que veda a lei é a discussão do domínio durante a ação
possessória, mas não o seu inverso. Havendo duas ação, uma reivindicatória e uma
possessória, ocorreria conexão, pela identidade de pedido. Pode-se questionar do sentido
prático disso, mas o certo é que o legislador não a proíbe.

Já discutimos essa característica quando abordamos os efeitos da posse, incluindo a


análise de uma exceção à aplicação desta regra, à qual remetemos o leitor nesse momento.

6.2.2 Procedimento da ação de manutenção e reintegração de posse

Os arts. 926 a 931 tratam do procedimento da ação de manutenção e de reintegração


de posse, que são idênticos pela lei.

Em primeiro lugar, esse procedimento especial aplica-se à posse nova e não à posse
velha, que seguirá o rito ordinário, conforme o art. 924.

A competência para as ações possessórias é o foro da situação da coisa (forum rei


sitae), conforme o art. 95.

Simplificadamente, o rito da ação de manutenção e de reintegração pode assim ser


resumidos:

1- Petição inicial (em que o autor deve provar: sua posse; a turbação ou esbulho
praticado pelo réu; a data da turbação ou do esbulho; a continuação da posse em
caso de manutenção e perda da posse na reintegração);

2- Mandado liminar de manutenção ou de reintegração ou

3- Audiência de justificação com citação do réu;

4- Procedente a justificação: Mandado de manutenção ou de reintegração;

5- Citação do réu para contestar (caso não tenha havido a audiência de justificação).

A audiência de Justificação Prévia ou Justificação da Posse prevista neste


procedimento não é audiência de instrução e julgamento. Esta visa simplesmente justificar

80
a posse do autor para obtenção do mandado de manutenção ou reintegração, quando o juiz
não tenha se sentido convencido a deferi-lo inaudita altera pars.

Uma questão que também se coloca é se o não comparecimento do réu à audiência


de justificação da posse implica em revelia: a resposta é não, pois o prazo para defesa
começa a ser contado a partir da decisão desta audiência, deferindo ou não a medida liminar
(p. único, art. 930). Mas, o seu não comparecimento implicará na sua intimação em
audiência para defesa, e o prazo começará a fluir a partir do dia útil seguinte, sem
necessidade de nova intimação.

Outra questão também interessante envolve a legitimidade desta ação. Quem pode
ser parte legítima – ativa e passiva – para demandar e ser demandado? A resposta é, o
possuidor.

Mas, e se for chamado como réu da ação o detentor? A resposta é que este deverá
nomear à autoria.67

E se for chamado como réu da ação o possuidor direto? Terá a faculdade de


denunciar à lide o possuidor indireto, para junto com este responder à ação e, caso este
venha a ser condenado, possa o denunciado nos mesmos autos indenizar o denunciante.

A ação possessória goza de grande efetividade e no nosso sistema sempre propiciou


a liminar, mesmo antes de termos isso estabelecido como uma possibilidade geral no art.
273 CPC.

Classificavam-se então as ações possessórias como ações executivas ‘lato sensu’,


tendo em vista a possibilidade de conhecimento e execução reunirem-se nestas ações.

Hoje, com a regra do 461-A do CPC não mais somente as ações possessórias gozam
desta característica mas toda ação que tenha por objeto uma entrega de coisa, onde se
incluem as possessórias, mas também se incluem as ações reivindicatórias.

Por isso já não representa mais uma imensa diferença o rito especial da ação de
força nova para o rito ordinário da ação de força velha assim também como para o rito de
todas as outras obrigações de entrega de coisa. A possibilidade destas ações, com as novas

67 Nomeação à autoria é uma das formas de intervenção de terceiros no processo, prevista no CPC nos arts.
62-69, onde ocorre uma correção da legitimidade passiva nas duas hipóteses previstas, sendo a primeira delas
a do detentor que responde ilegitimamente a uma ação (art. 62).

81
tutelas consagradas em nosso sistema (antecipação de tutela, 273 e obrigação para entrega
de coisa certa, 461-A), aproximam ao invés de distanciar essas ações.

Acreditamos que ainda há vantagem no rito especial, como expusemos em momento


anterior68, mas cada vez mais se diminuem essas distâncias e a proteção da posse que antes
gozava de grande eficácia frente às ações petitórias (fundadas em domínio) vão cedendo
espaço.

ORGANOGRAMA DA AÇÃO DE MANUTENÇÃO/REINTEGRAÇÃO:

Petição inicial
(art. 928, CPC)

Deferimento da Designação de
liminar (art. 928, audiência de
CPC) justificação prévia
(art. 928, CPC)

Expedição de Acolhida a Rejeitada a


mandado de justificação justificação
reintegração/manute
nção

Citação do réu Expedição da Intimação do réu


para contestar mandato de para contestar
reintegração/
manutenção

Não contesta Contesta Intimação do réu Não contesta Contesta


para contestar

Julgamento Audiência de Não contesta Contesta Julgamento Audiência de


antecipado da lide instrução e antecipado da lide instrução e
(art. 330, II) julgamento (art. 330, II) julgamento

Sentença Julgamento Audiência de Sentença


antecipado da lide instrução e
(art. 330, II) julgamento

Sentença

6.2.3 Procedimento do interdito proibitório

68 Verificar p.

82
A ação de interdito proibitório é uma ação para obrigação de não fazer, insere-se
dentro do grupo hoje designado de tutela inibitória.

É, por isso, uma tutela preventiva, pois visa a evitar que haja violação da posse,
consumada através de turbação ou esbulho.

O seu procedimento é descrito de uma forma bastante simplificada em dois artigos,


932 e 933.

O primeiro determina que o possuidor que tiver justo receio de ser molestado na
posse, requeira o mandado proibitório e a cominação de pena pecuniária para o caso de
transgressão.

Como obrigação de não fazer a sua violação ocorre com o fazer. Assim, o que antes
era uma ameaça vira lesão. O que antes era uma ameaça de esbulho, converte-se em
esbulho com a invasão. A multa cominatória era imposta para que se não fizesse: p. ex.
determina a multa de X para o caso de transgressão a essa ordem de não fazer. Trata-se
também de uma multa única, e não diária, pois esta só tem sentido quando está havendo a
violação. Mas, aqui podemos perguntar: a multa cominatória pode, caso haja a transgressão,
converter-se em multa diária?

Entendemos que sim, se bem que, no caso concreto, acreditamos que não será tão
eficaz, como um mandado de reintegração. Sim, porque, nesse caso e pelo princípio da
fungibilidade, a ação de interdito proibitório converte-se em reintegração de posse e o juiz
poderá determinar, caso a posse esteja justificada, mandado de reintegração.

O último e segundo artigo refere-se ao procedimento e remete em seu restante ao


capítulo anterior das ações de manutenção e reintegração.

ORGANOGRAMA DA AÇÃO DE INTERDITO PROIBITÓRIO:

83
Petição inicial

Deferimento do Designação de
mandado audiência de
proibitório justificação da
possedeferimento

Expedição do Deferimento do Indeferimento


mandado mandado
proibitório proibitório

Citação do réu Expedição do Citação do réu


mandado
proibitório

Não contesta Contesta Citação do réu Não contesta Contesta

Julgamento Audiência de Não contesta Contesta Julgamento Audiência de


antecipado da lide instrução antecipado da lide instrução

Sentença Julgamento Audiência de Sentença


antecipado da lide instrução

Sentença

6.3 Outras ações em que se discute a posse (Ações possessórias atípicas)

Como dissemos anteriormente, a posse não é defendida apenas através dos


interditos possessórios, que representam as chamadas ações possessórias típicas, mas
através de outras ações em que seu objeto indiretamente representa uma proteção à posse.

Estas ações representam ora uma defesa da posse através do jus possidendi, ou seja,
a posse em virtude da propriedade, como no caso da imissão de posse, ou representam uma

84
proteção da posse perturbada pela relação de vizinhança, como no caso da nunciação de
obra nova e da ação de dano infecto, como também o requerimento da posse que foi
retirada por medida judicial, embargos de terceiro.

Claro que existe um ilimitado número de ações que indiretamente visam à posse,
como a própria ação de despejo, a ação reivindicatória, porém nessas ações a posse muitas
vezes nem é discutida. Pede-se o bem no despejo pela falta de pagamento, mesmo que nem
se vá exercer sobre ele posse, enquanto naquelas ações a posse é sempre uma finalidade, é
sempre o objetivo final da ação.

Além do mais, uma outra característica importante que se coloca é que a


legitimidade dessas ações é do possuidor, enquanto nas outras, muitas vezes, a legitimidade
é somente do proprietário.

Assim, enumeramos essas quatro ações como as principais ações possessórias


atípicas: nunciação de obra nova + imissão de posse + ação de dano infecto + embargos de
terceiro.

6.3.1 Nunciação de obra nova

Contempla o CPC, nos arts. 934 a 940, a ação de nunciação de obra nova. Também
chamada de ação nunciatória ou embargo de obra nova.

É definida como medida judicial que objetiva a proteção do prédio de um


proprietário, confinante a um imóvel no qual se realiza uma obra que pode prejudicar o seu
bem ou o exercício do titular sobre a coisa.69

Também podemos incluir nesta definição o objetivo de impedir construção


irregular. Assim, definiríamos nunciação como a ação cujo objeto é evitar construção
irregular ou que prejudique as propriedades vizinhas ou o direito do co-proprietário.

Há uma estreita relação da ação nunciatória com o direito de vizinhança, pois esta
visa, em resumo, proteger o cumprimento de suas normas estabelecidas nos arts. 1.277 a
1.313 CC, principalmente nas que regulam o direito de construir “O proprietário pode
levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os
regulamentos administrativos” (art. 1.299).

69 Definição de Roberto Senise Lisboa, Manual, p. 120.

85
Não se trata de uma ação possessória típica, tem natureza de ação pessoal, embora
fundada em grande parte na posse e na propriedade, como se depreende da legitimação do
art. 934, I e II. Mas, pode ser classificada como o fizemos, como uma ação possessória
atípica, pois apesar de nem sempre se ter a posse como causa de pedir, e por isso não poder
ser classificada tradicionalmente como ação possessória, visa em última análise à proteção
da posse, que é prejudicada pela construção irregular.

Tem como competência o foro da situação do bem (art. 95) e mesmo sendo este um
critério territorial, o que levaria a considerá-la uma competência relativa, trata-se de
competência absoluta.

A legitimidade ativa desta ação, conforme art. 934, é do proprietário, do possuidor,


do condômino e do Município:

O proprietário é o legitimado ativo clássico, é o dono, aquele que mais diretamente


se sente lesado pela obra, pois isso afeta o seu bem, podendo trazer-lhe prejuízos.
Na legitimidade de proprietário também se compreende a do promitente comprador
do imóvel.

O possuidor também é legitimado e a sua legitimidade é autônoma. Isso quer dizer


que não age por representação do proprietário, dependendo de autorização deste.70 É
legítimo o possuidor direto, o possuidor indireto e até o possuidor sem título, pois o
que se protege também é o exercício dessa posse que é prejudicada pela obra
vizinha.

A legitimidade do condômino tem por base o art. 1.314 do CC, que o proíbe de
alterar a destinação da coisa comum sem o consenso dos demais. Não se trata
somente de uma obra prejudicial, mas de uma obra que prejudique ou altere a coisa
comum. Aplica-se tanto ao condomínio tradicional como ao condomínio edilício. E
é neste como observa Araken de Assis que a nunciação encontrará o seu maior
campo de aplicação. Há legitimidade do condômino para impedir a utilização

70 Comenta Araken de Assis que “O possuidor age por si mesmo, e, não, como representante do titular do
domínio. Por isso, o réu não se livra do embargo pelo fato de exibir autorização do dono, se a obra infringe
direito próprio do possuidor”, in Nunciação de obra nova, p. 14.

86
exclusiva de um condômino em área comum, a alteração da forma externa da
fachada, a utilização da unidade autônoma diversa da utilidade do prédio, etc.71

É também legítimo o Município. Mas também o é o Estado e a União. Como


compete tanto ao Estado como a União legislarem concorrentemente sobre direito
urbanístico, estes também se tornam legítimos para exigirem o cumprimento de suas
normas. E poderão até mesmo agir contra construção do próprio município.72

Quanto à legitimidade passiva o legislador nada falou. Regulou em três incisos a


legitimidade ativa mas se absteve de fazê-lo com relação à legitimidade passiva. Isso se
deve ao raciocínio quase lógico de que o legitimado passivo é o ‘dono da obra’ (expressão
empregada no CPC/39).

Utiliza o CPC atual em dois momentos a expressão proprietário, art. 935 e 938.

Mas proprietário é sinônimo de dono da obra? A resposta é não. Ao proprietário se


liga geralmente a idéia de proprietário do imóvel, e nem sempre o proprietário do imóvel é
o proprietário da obra (dono da obra). Pode ser dono da obra o locatário e assim ser o
legitimado passivo desta ação.

Como também pode ser dono da obra o poder público, por exemplo, na construção
de uma escola, de uma estrada, etc.

Mas, e se o empregado ou preposto do proprietário for citado como réu – construtor


ou operário? Nesse caso tem-se uma ilegitimidade passiva ou uma nomeação à autoria?

Entendemos que tal situação pode ser enquadrada nas hipóteses da nomeação à
autoria e assim deve ser autorizado ao construtor ou preposto nomear a autoria o
proprietário da obra. Implica até em economia processual. Pois o processo deixará de ser
extinto e prosseguirá contra a verdadeira parte legítima. Mas, não estará impedido esse réu
de alegar em defesa a sua ilegitimidade e, nesse caso, não se aplica a ele a responsabilidade
do art. 69, pois não se trata de uma nomeação obrigatória mas de uma possibilidade que
aqui se defende por analogia.

Além da legitimidade, compete a ação para impedir a obra nova que esteja sendo
construída de maneira irregular ou prejudicial aos vizinhos ou aos condôminos.

71 Idem ibidem, p. 15.


72 Araken de Assis, p. 16.

87
Mas, o que é obra nova?

“Obra nova” pode ser definida, por exclusão, como a que ainda não começou
(mesmo já tendo sido informado ao proprietário), e também a que ainda não terminou.73

Há uma crítica ao conceito restritivo do termo “obra”, pois pode representar também
uma reforma, terraplenagem, colheita, extração de minério etc.

Uma outra crítica terminológica é quanto à expressão ‘imóvel vizinho’, utilizada no


inciso I do art. 934. Essa referência não se restringe somente aos imóveis contíguos, mas a
toda vizinhança, no sentido de proximidade.

Diz-se ter sido essa ação uma criação pretoriana que nas suas origens representava
uma reação verbal da pessoa prejudicada pela obra iniciada por seu vizinho, que
simbolicamente lançava-lhe pedras em protesto, ou dispersava as pedras utilizadas na
própria construção, ou, ainda, tomava ambas as providências, na operação chamada iactus
lapilli74.

Esse protesto verbal e físico, iactus ou factus lapilli, foi o antecedente histórico da
ação de nunciação, pois com o protesto de lançamento de pedras pelo lesado, restava ao
dono da obra acudir ao Pretor, prestando caução (cautio ex operis novi nuntiatione) ou
obtendo autorização judicial (remissio) para prosseguir na edificação.75

Com o passar do tempo, essa autotutela deixou de ser autorizada e o factu lapilli foi
substituído por um procedimento judicial cujo objetivo era o desfazimento da obra.

Hoje, podemos afirmar que essa figura de autotutela - factu lapilli – foi substituída
pelo embargo verbal.

O embargo extrajudicial, embargo verbal, é previsto no art. 935 e permite ao


prejudicado notificar verbalmente o proprietário, pedindo-lhe que não continue a obra. Esse
embargo extrajudicial deve ser ratificado em juízo, no prazo de 3 dias.

73 Explica Araken de Assis que é nova toda obra que altere a situação de fato preexistente. Importa, diz o

autor, fixar o momento em que a obra inicia, criando o interesse necessário à nunciação, e até que ocasião
perdura a novidade idônea a ensejar o embargo. In Nunciação de obra nova, p. 21.
74 Araken de Assis in Nunciação de obra nova, Repro 128, p. 9.
75 Idem ibidem, p. 9.

88
É medida de economia processual, mas de eficácia contestada. E deve ser realizado
somente quando o caso for urgente!

Porém caso seja ratificado em juízo o seu efeito é retroativo à data do embargo
extrajudicial, podendo cometer atentado o réu que após esse ato privado continuo a obra.76

O autor pode cumular os seguintes pedidos (demandas) à sua ação:

– ratificação do embargo extrajudicial (caso o tenha realizado, § único, 935)

– reconstituição, modificação ou demolição da obra (art. 936, I);

– cominação de pena ao nunciado (art. 936, II);

– perdas e danos (art. 936, III);

– apreensão e depósito (936, §único).

Apesar do art. 936 usar a expressão ‘requererá o nunciante’, a cumulação é somente


uma possibilidade e não uma obrigatoriedade.

Porém o embargo para que fique suspensa a obra é um pedido obrigatório desta
ação, pois é o que a caracteriza. Se o autor for a juízo para pedir somente a demolição, não
se tratará de nunciação de obra nova, mas de ação demolitória.

Na petição inicial em que o autor requer o embargo deverá este provar que a obra é
nova, sob pena de não ser admitida esta ação. Mas caso não fique devidamente provado
poderá o juiz designar uma audiência de justificação prévia. Nada diz o legislador se deve
ou não ser citado o réu desta audiência, como o fez na ação possessória, mas até por
analogia a esta, e pela finalidade desta audiência, entendemos que o réu deva ser citado.

O pedido de embargo ou sua ratificação é necessário, é este como vimos que


caracteriza esta ação. Mas e se o juiz indeferir o embargo, seja liminarmente ou em
justificação prévia? Coloca-se aqui uma questão interessante: a ação deve prosseguir ou
deve ser extinta sem julgamento de mérito?

Entendemos que esta deve prosseguir, até porque o caráter destas decisões são
provisórias, nada impede que o juiz deixe para analisar o embargo da obra de forma mais

76 “Art. 879. Comete atentado a parte que no curso do processo: II- prossegue em obra embargada”.

89
aprofundada na instrução, até porque não são poucas as nunciações que envolvem uma
complexidade de questões e dados que merecem um maior espaço de análise.

Mas guarda muita coerência o pensamento daqueles que entendem que a ação deva
ser extinta, justificam que a nunciação estaria prejudicada em decorrência do indeferimento
do embargo e além do mais o prosseguimento da ação sem a concessão do embargo
implicaria numa hipótese não prevista na lei, haja visto que a medida seguinte adotada pelo
legislador implica no deferimento do embargo (art. 938. Deferido o embargo, o oficial de
justiça, encarregado de seu cumprimento, lavrará auto circunstanciado...).77

Por último, poderá o réu prosseguir com a obra caso caucione demonstrando o
prejuízo de sua suspensão, só não poderá caucionar, e logo, não poderá se valer do
benefício da continuidade da obra, caso esta tenha sido levantada contra determinação de
regulamentos administrativos (art. 940).

ORGANOGRAMA DA AÇÃO DE NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA:

Petição inicial

Embargo extrajudicial (art.


935 CPC)

Pedido de ratificação do
embargo extrajudicial ou pedido
de embargo da obra (art. 936, I))

Concessão do embargo Designação de audiência de


liminar justificação prévia

Intimação do construtor e Citação do réu (5 dias Concessão do embargo Não concessão do embargo
operários para que não contestar)
continuem a obra

Não contesta Contesta Audiência de instrução e


julgamento

Revelia Requer o prosseguimento da Sentença


obra prestando caução (art. 940)

Sentença Prova pericial

Audiência de instrução e
julgamento

Sentença

77 É o pensamento de Araken de Assis para quem indeferida a ratificação do embargo extrajudicial e a liminar

prevista no art. 937, CPC, com ou sem justificação prévia, incumbe ao juiz extinguir o processo sem
julgamento do mérito, haja vista a falta de pressupostos para seu desenvolvimento (art. 267, VI, CPC). Deste
ato caberá apelação (art. 513, CPC), in Nunciação de obra nova, p. 31.

90
6.3.2 Ação de dano infecto

Na definição de Maria Helena Diniz, a ação de dano infecto é uma medida


preventiva utilizada pelo possuidor que tenha fundado receio de que a ruína ou demolição
ou vício de construção do prédio vizinho ao seu venha causar-lhe prejuízos, para, por
sentença, obter do dono do imóvel contíguo caução que garanta a indenização dos danos
futuros.78

A previsão legal desta ação é o art. 1.280 do CC, que permite ao proprietário ou
possuidor exigir do dono do prédio vizinho a demolição, ou a reparação deste, quando
ameace ruína, bem como que lhe preste caução pelo dano iminente.

Assim como a nunciação de obra nova, a ação de dano infecto é ação que protege a
relação entre vizinhos, a convivência entre vizinhos.

Mas, a sua proximidade com a nunciação de obra nova está nesta relação com o
direito de vizinhança, pois, enquanto aquela visa a paralisar uma obra iniciada, esta visa a
demolir ou reparar uma obra pronta.

É também a ação de dano infecto uma tutela preventiva, pois visa a evitar um dano
que ainda não se concretizou, porém diferente do interdito proibitório, aqui não satisfaz a
aplicação de uma multa cominatória, pois isso não impedirá a ruína do prédio, lá a ordem é
dirigida à pessoa – não esbulhe, aqui a ameaça é da coisa, e para que esta não venha a
causar o dano ameaçado é necessário uma intervenção de fazer – p. ex., fazer a demolição,
fazer estrutura de apoio, etc.

A lei não descreve o rito desta ação, nem esta é descrita como uma ação especial,
logo o seu rito é o ordinário, com a possibilidade, diante da urgência, do pedido de tutela
antecipada.

ORGANOGRAMA DA AÇÃO DE DANO INFECTO:

78 Curso. p. 91.

91
Petição inicial com
pedido de caução

Citação do réu para Deferimento liminar


prestar caução e/ou da caução
contestar o pedido em

Presta caução Contesta Não contesta Prestada caução, 5


dias para contestar

Audiência de
instrução e julgamento

Sentença de Sentença de
procedência com improcedência
determinação de prazo

Propositura da ação
principal em 30 dias (art.
806): demolitória ou
reparatória

6.3.3 Ação de imissão de posse

Essa ação era prevista no CPC/39, no art. 381, que concedia imissão de posse:

I- aos adquirentes de bens, para haverem a respectiva posse, contra os alienantes ou


terceiros, que os detenham;

II- aos administradores e demais representantes das pessoas jurídicas de direito


privado, para haverem dos seus antecessores a entrega dos bens pertencentes a
pessoa representada;

III- aos mandatários, para receberem dos antecessores a posse dos bens do
mandante.

No CPC/73, não foi repetida essa ação, nem como ação possessória nem como ação
especial. Mas ela ainda continua a ser utilizada, principalmente pelo motivo exposto no
CPC/39, no inciso I, acima.

92
E, com isso, já se percebe que a ação de imissão de posse é de um proprietário não
possuidor e refere-se a uma posse nova, a uma posse que ainda não foi exercida. O que,
neste caso, a diferencia das ações possessórias típicas, que têm por legitimidade o possuidor
e referem-se a uma posse perdida, ou turbada, ou ameaçada, é que nestas há uma posse que
já foi ou está sendo exercida.

Neste caso, não há posse do seu requerente, nem esta foi perdida. Aliás, esta nunca
foi exercida, e o que se pretende é justamente exercê-la. E, por isso, o seu caráter
possessório é discutido visto ser uma ação em regra do proprietário e não do possuidor.

Apesar de não constar do CPC como ação especial, este a esta se refere em alguns
momentos, como os arts. 461-A, §2°, 625 e o 879, I. Também se refere à imissão de posse
o art. 66 da lei 8.245/91 (L. locação).

Nenhum destes artigos refere-se ao que a lei estabelecia anteriormente como


imissão de posse. Porém, não podemos deixar de notar que, não sendo uma ação especial
prevista no CPC, o seu rito será o ordinário, e esta é uma ação para entrega de coisa certa,
que seguirá o rito do art. 461-A e do art. 621, em se tratando de título judicial ou
extrajudicial.

Fazemos essa observação para constatar que, sendo o objeto desta lei a entrega de
coisa certa, ao final, o que se obterá é um mandado de imissão na posse, como determina o
art. 625, que, podemos concluir, serve de fundamento para a constatação da existência
desse pedido – imissão de posse – logo, também desta ação.

O que queremos em outro sentido dizer é que se há a possibilidade da concessão da


imissão na posse é porque há a possibilidade de se pedir a imissão na posse, e este é o
pedido das ações para entrega de coisa certa de imóvel. Logo, a imissão na posse é o pedido
de toda ação de entrega de coisa certa de imóvel e não somente daquelas 3 hipóteses
trazidas no art. 381 do CPC passado.

Porém, recebem o nome imissão de posse as ações cujo objeto sejam aqueles do art.
381 passado, mesmo sendo, ao final, ações para entrega de coisa certa.

E, por se tratarem de ações para entrega de coisa certa, o seu rito é o do art. 461-A
ou o 621, quando se tratar de título executivo judicial ou extrajudicial.

93
ORGANOGRAMA DA AÇÃO DE IMISSÃO DE POSSE:

Ação para entrega de


coisa certa ou execução

Citação do réu para Citação do réu para


contestar em 15 dias entregar o bem em 10
dias

Contestação Revelia Entrega o bem Apresenta embargos do


devedor

Audiência de instrução Julgamento antecipado Sentença de extinção Suspensão da execução Não suspensão da
e julgamento da lide fixando prazo do processo execução
para a entrega do bem

Sentença de Improcedência dos Mandado de imissão na


procedência fixando embargos posse
prazo para a entrega do
bem

Não entrega o bem no Mandado de imissão na


prazo fixado posse

Mandado de imissão na
posse

6.3.4 Embargos de terceiro senhor e possuidor

Os embargos de terceiro são previstos no CPC nos arts. 1.046 a 1.054.

O legislador não tratou dessa ação no capítulo das ações possessórias, mas como um
outro procedimento especial. Porém, como bem observa Washington de Barros Monteiro, é
inquestionável que tal remédio, quando empregado para a defesa da posse, reveste-se
indisfarçavelmente de caráter possessório. Efetivamente, os embargos de terceiro
representam a própria ação de manutenção, ou de reintegração de posse, que, por
necessidade de ordem prática, adota forma processual diversa.79

Chamam-se embargos de terceiro porque o requerente é um terceiro em relação ao


processo cuja medida retirou-lhe a posse do bem. É essa a dicção do art. 1.046: “Quem, não
sendo parte no processo, sofrer turbação ou esbulho na posse de seus bens por ato de

79 Curso, p. 50.

94
apreensão judicial, em casos como o de penhora, depósito, arresto, seqüestro, alienação
judicial, arrecadação, arrolamento, inventário, partilha, poderá requerer lhe sejam
manutenidos ou restituídos por meio de embargos”.

Sabe-se que os bens do devedor, presentes e futuros (art. 591 CPC), ficam sujeitos á
execução, pois, como nos diz aquele famoso adágio jurídico, ‘a garantia do credor é o
patrimônio do devedor’.

Porém, não só os bens do devedor ficam sujeitos à execução, as normas de


responsabilidade patrimonial (art. 591-597 CPC) impõe que outros bens, além dos do
devedor fiquem sujeitos ao pagamento de sua dívida, como é o caso dos bens dos sócios,
dos bens do devedor em poder de terceiros, dos bens que em fraude contra credores foram
alienados (e, por isso, respondem, pois essa venda é anulável) etc.

O problema ocorre quando essa medida judicial de constrição jurídica de um bem


para pagamento da dívida num processo atinge terceiro cujo bem não é responsável para o
cumprimento da obrigação.

Nesse caso, esse terceiro deve, por meio desta ação, requerer a liberação do seu
bem, mediante prova da sua posse, da sua qualidade de terceiro e da ausência de
responsabilidade do seu bem responder pela dívida.

É parte legítima ativa para requerer os embargos o proprietário (terceiro senhor) ou


possuidor.

Também equipara-se a terceiro, como nos diz o §2° do art. 1.046, a parte que,
defende bens que, pelo título de sua aquisição ou pela qualidade em que os possuir, não
podem ser atingidos pela constrição judicial. São exemplos da aplicação dessa regra a
defesa da parte quando a constrição judicial ocorre em um bem de família, ou a do
cônjuge, quando, defende a constrição que incide sobre sua meação, ou bens
reservados.80Nesses casos, mesmo sendo parte, defenderão os seus bens por meio de
embargos de terceiro.

80 Sobre a constrição à meação do cônjuge informa-nos Marcato que temos 3 posições jurisprudenciais: a) se
ele pretende impugnar a pretensão executiva, deverá valer-se dos embargos à execução; b) se almeja apenas a
exclusão da penhora sobre sua meação, valer-se-á dos embargos de terceiro (muito embora também se admita,
nesse caso, a utilização de embargos à execução); c) todavia, se na execução os cônjuges figuram como
litisconsortes passivos, porque ambos contraíram a obrigação, nenhum deles poderá opor embargos de
terceiro, devendo valer-se, isto sim, dos embargos à execução, Procedimentos especiais, p. 259-260.

95
A legitimidade passiva compete, via de regra, ao credor do processo principal, onde
ocorreu a constrição do bem do terceiro. Este, a princípio, responderá sozinho no pólo
passivo, mas, em determinados casos, poderá responder em litisconsórcio com o devedor.
Por exemplo, se a constrição ocorreu por indicação do devedor.

Como trata-se de uma medida preventiva a um processo existente, os embargos são


distribuídos por dependência ao processo cuja medida judicial retirou a posse do bem do
requerente (art. 1.049).

O legislador estabelece um prazo para o ajuizamento desta ação, assim se a


constrição ocorreu em um processo de conhecimento (p. ex. liminar de reintegração que
recaiu sobre o bem de um terceiro que não tinha responsabilidade) o prazo é até o trânsito
em julgado desta ação. Mas se a constrição ocorreu em um processo de execução (p. ex.
penhora que recaiu sobre o bem deste terceiro), o prazo é até 5 dias depois da arrematação,
adjudicação ou remição (art. 1.048).

ORGANOGRAMA DOS EMBARGOS DE TERCEIRO:

Petição inicial, distribuída


por dependência (art. 1.049)

Provada a posse Não provada a posse

Expedição de mandado de Audiência de


manutenão/restituição + justificação da posse
prestação de caução

Citação do embargado Provada a posse Não provada a posse


(10 dias para contestar)

Não contesta Contesta Indeferirmento

Revelia Audiência de instrução

Sentença Sentença

96
Para finalizar este capítulo, apresentamos um resumo descritivo das ações para
defesa da posse, apontando seus conceitos, seus elementos, sua disciplina legal bem como
suas principais características:

AÇÕES POSSESSÓRIAS ATÍPICAS:

NUNCIAÇÃO DE AÇÃO DE DANO IMISSÃO NA EMBARGOS DE


OBRA NOVA INFECTO POSSE TERCEIRO

CONCEITO Ação cujo objeto é Ação que visa Ação que visa Remédio
evitar construção acautelar o imitir o processual
irregular ou que possuidor ou proprietário na destinado a
prejudique as proprietário de um posse do bem para terceiros ou
propriedades bem diante do risco o qual se vê aqueles assim
vizinhas ou o de ruína de imóvel impedido equiparados pela
direito do co- contíguo ou dos lei, para proteger a
proprietário. riscos de uma posse de bens
construção. apreendidos
judicialmente

PREVISÃO Arts. 934-940 CPC Art. 1.280 e 1.281 Não há previsão Arts. 1.046-1.054
LEGAL CC expressa legal. É o CPC
pedido das
obrigações de dar
coisa certa imóvel

LEGITIMIDADE Proprietário, Proprietário e Proprietário-não Proprietário e o


ATIVA possuidor, possuidor possuidor possuidor
condômino e
Município

LEGITIMIDADE ‘Dono da obra’ Proprietário do Possuidor que Autor da ação


PASSIVA imóvel que ameaça ocupa o imóvel em judicial que
ruína que se pretende provocou a
ocupar. constrição ao bem
do terceiro.

97
CAUSA DE A causa de pedir Ameaça de ruína Recusa ou Turbação ou
PEDIR altera conforme o do prédio vizinho obstáculo na esbulho na posse
legitimado: entrega da posse do bem em virtude
prejuízo provocado de apreensão
pela obra vizinha; judicial.
alteração da coisa
comum; construção
irregular.

PEDIDO Paralisação da obra Caução pelo dano A posse do bem Manutenção ou


e reconstituição, iminente e restituição do bem.
modificação, demolição ou
demolição, reparação do
cominação de prédio que ameace
pena, perdas e ruína.
danos e apreensão
e depósito de
materiais (art. 936
e § único).

98
SEGUNDA PARTE

I PROPRIEDADE

SUMÁRIO: 1.0 Considerações gerais; 1.1 Disciplina jurídica da propriedade no CC;


1.2 Características; 1.3 A propriedade na CF; 1.4 A nova propriedade civil.

1.0 Considerações gerais

A propriedade é o mais completo dos direitos reais ou, como afirma Washington de
Barros Monteiro, é o mais importante e o mais sólido de todos os direitos subjetivos, o
direito real por excelência, é o eixo em torno do qual gravita o direito das coisas.81

Afirmar que é o mais importante dos direitos subjetivos talvez seja um reforço de
linguagem utilizado pelo autor, mas sem dúvida assume uma imensa relevância na história
do direito, e o seu estudo está presente na sociologia, na economia, na política e na própria
história da humanidade.

A propriedade, até há pouco tempo, e ainda em alguns países, representava a divisão


do sistema político: se havia propriedade privada o sistema era capitalista, se a propriedade
era pública, estávamos no sistema socialista.

Aliás, para a ciência política, a propriedade é um eixo fundamental, pois a defesa do


sistema socialista e comunista tem como um dos marcos divisores a propriedade.

Apesar dessa fascinante história e desse rico estudo que é a propriedade, devido às
dimensões do nosso trabalho, vamos nos restringir a uma breve análise jurídica.

Diz-se que no início a propriedade foi coletiva e esteve diretamente ligada à


família.82 A evolução da propriedade passa necessariamente pelo Direito Romano, que a
conheceu absoluta e perpétua, pela Idade média, que consagrou a superposição de
propriedades diversas incidindo sobre um único bem e pela Revolução Francesa que
instaurou o individualismo.

81 Curso, p. 83.
82 “Nesse estágio primitivo, é possível admitir que a propriedade comum constituiu a primeira forma de
propriedade, diretamente ligada a concepção então vigente acerca da família”, Fachin, p. 14.

99
Temos no direito napoleônico uma propriedade individual e também absoluta que
em seu famoso art. 544 prescrevia “La propriété est lê droit de jouir et disposer des choses
de la manière la plus absolue, pourvu qu’on n’em fasse pás um usage prohibé par les lois
ou par lês règlements”: que pode ser traduzida como “O direito de gozar e de dispor das
coisas da maneira mais absoluta, desde que delas não se faça uso proibido pelas leis e
regulamentos”.

O caráter absoluto inspirado nesta disposição legal foi muito mais fruto de um
pensamento da época do que do texto legal. Porque afinal neste não estava traduzida uma
idéia tão absoluta quanto foi interpretada.

Mas o certo é que se diz que da propriedade surgem 4 poderes, o direito de usar, jus
utendi, o direito de gozar, jus fruendi e o direito de dispor, jus abutendi e o direito de
reivindicá-la, rei vindicatio.

São esses os elementos constitutivos do direito de propriedade e estão expressos no


art. 1.228 do CC: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o
direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.

Diz-se então plena a propriedade quando concentra no proprietário este feixe de


direitos: usar, gozar, dispor e reaver. Assim a propriedade presume-se plena e exclusiva, até
prova em contrário, como determina o art. 1.231.

O conjunto desses atributos constitui a propriedade perfeita a plena in re potestas.

E pelos poderes ou direitos do proprietário (usar, gozar, dispor e reaver) podemos


entender:

a) Jus utendi: possibilidade de usar a coisa de acordo com a vontade do proprietário e


a de excluir estranhos de igual uso.

b) Jus fruendi: envolve o poder de colher os frutos naturais e civis da coisa, bem como
de explorá-la economicamente, aproveitando seus produtos.

c) Jus abutendi: é o direito de dispor da coisa, alienando-a, gravando-a. Não abusar!!


Diante da função social da propriedade essa idéia é inconcebível (art. 5º, XXXIII).

d) Rei vindicatio: é o direito de reivindicar a coisa.

100
1.1 Disciplina jurídica da propriedade no CC

O art. 1.225 enumera os direitos reais estabelecendo-os em número de 10. São esses:

1. Propriedade

2. Superfície

3. Servidões

4. Usufruto

5. Uso

6. Habitação

7. Direito do promitente comprador do imóvel

8. Penhor

9. Hipoteca

10. Anticrese

Com relação ao CC anterior houveram 3 novidades. Primeiro retirou-se desta lista a


enfiteuse, que consta hoje somente das disposições transitórias, art. 2.038. A segunda e
terceira novidade foram a inclusão de dois novos direitos reais, a superfície e o direito do
promitente comprador de imóvel.

A propriedade é elencada em primeiro lugar, por tratar-se do mais importante direito


real, só esta pode ser plena, todos os outros são limitados, pois todos os outros incidem
sobre a propriedade sendo assim direitos reais sobre coisas alheias.

Os 3 últimos direitos, penhor, anticrese e hipoteca, são também direitos reais de


garantia.

Constitui esse elenco numerus clausus, pois só são direitos reais esses estabelecidos
pelo legislador. E aqui se encontra uma das principais diferenças entre os direitos reais e os
direitos pessoais, enquanto neste a sua criação é ilimitada, naquele, não há criação pelas
partes permitindo-se somente ao legislador essa atribuição.

A propriedade constitui o Título III do Livro III, do direito das coisas.

101
Estabelece-a o legislador em nove capítulos. Iniciando por aspectos gerais no 1°
capítulo, depois enumerando as formas de aquisição da propriedade imóvel (capítulo II), da
propriedade móvel (capítulo III) e da perda da propriedade (capítulo IV). Depois regula o
legislador dos direitos de vizinhança (Capítulo V), as regras sobre Condomínio (Capítulo
VI e VII) e por último a propriedade resolúvel e fiduciária, estas novidades também deste
diploma (Capítulo VIII e IX).

1.2 Características

Diz-se serem 3 as características do direito de propriedade: absoluto, exclusivo e


irrevogável.
É absoluto porque o proprietário pode dispor da coisa, no sentido de sua utilização
como quiser. Assim pode construir, plantar, demolir, reconstruir, alugar, vender, etc. Claro
que hoje o sentido dessa expressão não implica em um agir arbitrário desprovido de função
e utilidade. É absoluto porque dá ao proprietário o direito de decidir como usar o bem.
A segunda característica, a exclusividade, implica no fato da mesma coisa não poder
pertencer com exclusividade e simultaneamente a duas ou mais pessoas: o direito de um
sobre determinada coisa exclui o direito de outro sobre essa mesma coisa.83 Porém tal
característica não é tão simples quanto parece, não quer dizer pela exclusividade que duas
pessoas não possam ser proprietárias do mesmo bem, nesse caso o direito é exercido
exclusivamente pelas duas, o que não poderia ocorrer eram dois direitos de propriedade
sobre o mesmo bem. Estabelece o CC no art. 1.231 que a propriedade presume-se plena e
exclusiva, até prova em contrário.
A terceira característica é a irrevogabilidade. Diz-se por esta característica que a
propriedade é perpétua, no sentido de que subsiste independentemente de exercício,
enquanto não sobrevier causa legal extintiva.84 É por isso que afirma-se que não se perde a
propriedade pelo não-uso, mas pelo uso do outro. Porém tal afirmação assim como o
próprio conteúdo da irrevogabilidade devem ser entendidos contextualmente, ou seja,
dentro do contexto de nossa realidade. Pela função social da propriedade se perde a
propriedade pelo não uso, assim também como pode se revogar a propriedade pela
desapropriação.
83 Washington de Barros, Curso, p. 85.
84 Ib. idem, p. 85.

102
Na verdade todas essas características são cada vez mais relativas, partiu-se de uma
idéia da propriedade como o mais absoluto dos direitos, o direito subjetivo por excelência, e
todo esse pensamento foi muito mais fruto de uma concepção liberal do direito,
principalmente pós-revolução francesa, onde garantir-se o direito de propriedade era um
dos pilares da própria idéia de liberdade.
Com o tempo foi-se percebendo que o direito de propriedade sempre foi limitado,
no sentido de sempre ter sofrido restrições. O próprio Código de Napoleão, considerado o
ápice do absolutismo do direito de propriedade estabelecia que este era o direito de gozar e
de dispor das coisas da maneira mais absoluta, mas desde que delas não se fizesse uso
proibido pelas leis e regulamentos, ou seja, ele trazia ínsito na própria definição do direito a
sua limitação.
Preservaram-se essas características, porém, cada vez mais, elas tem perdido o
sentido, pois o direito de propriedade nunca foi absoluto e irrevogável, e hoje tem sido cada
vez menos exclusivo.

1.3 A propriedade na CF

A propriedade como um dos mais importantes direitos assegurados ao indivíduo


num sistema capitalista é tratada na CF em diversos aspectos.
Inicia-se pelo art. 5º, XXII, que estabelece constitucionalmente esse direito no
capítulo dos direitos e garantias fundamentais prescrevendo naquele inciso que é garantido
o direito de propriedade.
No inciso seguinte estabelece o mais importante conteúdo desse direito
determinando que a propriedade atenderá a sua função social.
Como não se trata de um direito absoluto estabelece o inciso XXIV e XXV a
possibilidade de perda do direito pela desapropriação e a utilização da propriedade em caso
de perigo público. Isso tudo ainda no capítulo dos direitos e garantias fundamentais.
E como deve ser vista não só pela perspectiva individual do proprietário, mas como
fato econômico gerador de riquezas e de trabalho, a CF/88 inova ao estabelecer como
princípios gerais da atividade econômica a propriedade privada e a função social da
propriedade (art. 170, II e III).
Quer dizer muito o legislador nesse capítulo, pois se a ordem econômica deve ser
fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por finalidade

103
assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social, a propriedade
privada e a função social da propriedade como princípios dessa ordem econômica também
devem obedecer a esses ditames e é por isso que nas regras da política agrícola e fundiária
estabelece a Constituição que a função social não é cumprida quando há exploração de seus
trabalhadores ou quando não se observa em relação a estes as relações de trabalho.
Algo que chama a atenção é que o legislador estabeleceu as regras sobre a política
urbana e agrícola no título Da Ordem Econômica E Financeira, demonstrando que a
propriedade é um fator de geração de riqueza, mas que deve ser utilizada atendendo aos
princípios gerais dessa atividade, gerando riqueza mas também justiça social.
Por último podemos estabelecer como importantes regras sobre a propriedade as da
política urbana e agrícola. O legislador as estabelece em dois capítulos, Da Política Urbana
(arts. 182 e 183) e Da Política Agrícola E Fundiária E Da Reforma Agrária (arts. 184 a
191).
Estabelece na política urbana a obrigatoriedade de toda cidade com mais de 20 mil
habitantes ter um Plano Diretor como instrumento básico da política de desenvolvimento e
de expansão urbana, a política de sanções que o município pode aplicar ao proprietário do
solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado e o usucapião urbano.
Na política agrícola e fundiária legitima a desapropriação para reforma agrária do
imóvel que não estiver cumprindo sua função social, estabelece os bens que não podem
sofrer desapropriação, os requisitos para o atendimento da função social da propriedade
rural, diretrizes da política agrícola e o usucapião rural.
Estas são em síntese as principais regras constitucionais sobre a propriedade. Sobre
o direito de propriedade e sobre o exercício desse direito.

1.4 A nova propriedade civil

O novo Código Civil preocupou-se com questões ignoradas pelo legislador anterior,
mas talvez menos do que deveria se preocupar pelo momento atual.
Os cinco parágrafos do art. 1.228 foram acrescentados por este código prevalecendo
a busca pela função social, a preocupação, mesmo que tímida, com as questões ambientais
e em evitar o uso da propriedade de forma abusiva.
No §1° estabeleceu que “O direito de propriedade deve ser exercido em consonância
com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de

104
conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o
equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar
e das águas”.
Insere assim a propriedade dentro de um contexto de política ambiental,
demonstrando que o seu exercício deve se pautar pela preservação do ambiente a seu redor,
seja natural ou cultural.
O segundo inciso trata da proibição do abuso no exercício do direito de propriedade,
prescrevendo que são defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade,
ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
Trata-se da teoria do abuso de direito aplicada ao exercício do direito de
propriedade.
O parágrafo terceiro, assim como o art. 1.229 e 1.230 são limitações ao direito de
propriedade estabelecendo a possibilidade de desapropriação, a separação das jazidas e
outros recursos minerais do solo.85
Por último inova o legislador estabelecendo uma nova forma de perda da
propriedade nos §§4° e 5°, uma espécie de desapropriação judicial, pois o proprietário que
perde o bem deve ser indenizado, ao contrário do usucapião em que o proprietário que
perde o bem nada recebe.
Trata-se de uma regra sem dúvida inovadora, revolucionária para uns e injusta para
outros, mas que comentaremos melhor no capítulo da perda da propriedade.
São esses os principais contornos da nova propriedade civil, nesta nova roupagem
trazida pelo atual legislador e que comentaremos ao longo de todo o texto.

85 Desde o Código de Minas (Dec.n. 24.642, 10.7.1934) já havia separado o legislador a jazida do solo. Em
seu art. 4º prescrevia que: “A jazida é bem imóvel e tida como causa distinta e não integrante do solo ou
subsolo, em que está encravada. Assim a propriedade da superfície abrangerá a do subsolo na forma do direito
comum, excetuadas, porém, as substâncias minerais ou fósseis úteis `a indústria”. Também a CF/88
estabelece no art. 176 esta separação.

105
II DA PROPRIEDADE EM GERAL

SUMÁRIO: 2.0 Abuso de direito; 3.0 Descoberta

2.1 Abuso de direito

Recepciona o legislador na propriedade a teoria do abuso de direito.

Estabelece no §2° do art. 1.228 que são defesos os atos que não trazem ao
proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de
prejudicar outrem.

Trata-se de um corolário da regra geral estabelecida no art. 187 onde prescreve o


legislador que “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente aos limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou
pelos bons costumes”.

Preferiu tratar o legislador do abuso de direito como um ato ilícito, ou seja, é


também ato ilícito aquele cometido com abuso de direito.

Não é pacífica tal escolha adotada pelo legislador, propugna-se pela diferenciação
dos dois institutos, afinal ato ilícito é o cometimento de uma ação ou omissão violando
direito, já abuso de direito é o ato daquele que exercendo direito o excede.86

A história das limitações ao direito de propriedade passou necessariamente e


inicialmente pela interpretação da proibição do abuso de direito, como nos diz Barbosa
Moreira, as primeiras elaborações teóricas e os primeiros precedentes judiciais relacionados
com o abuso dizem respeito ao direito de propriedade.87

86 Observa Barbosa Moreira em artigo sobre o assunto que do art. 187 do CC extrai-se de imediato uma
ilação: a de que entre nós o abuso do direito está, de lege lata, equiparada ao ato ilícito. Semelhante
equiparação, já se registrou, não é pacífica em doutrina. E, na verdade, parece razoável, do ponto de vista
teórico, o entendimento que distingue as duas figuras. Uma é a situação de quem, sem poder invocar a
titularidade de direito algum, simplesmente viola direito alheio: seria esse o autêntico perfil do ato ilícito.
Outra situação é a daquele que, sendo titular de um direito, irregularmente o exerce. In, Abuso de direito, p.
104.
87 Ob. Cit. p. 107.

106
Lembram-se bastante de dois casos que já fazem parte da literatura jurídica. Um
decidido pelos Tribunais Alemães e outro pelos Tribunais Franceses.

O primeiro, é o caso de um proprietário de um castelo que nele sepultou a sua


esposa, porém impediu seu filho, com quem não mais falava, de nele ingressar para visitar
o túmulo da mãe. Ingressando na Justiça o filho ganhou o direito de visitar o túmulo da mãe
entendendo que o pai exercia o direito de propriedade com abuso, pois não se podia proibir
um filho de ingressar na propriedade para visitar o tumula da mãe.

O segundo caso também bastante lembrado acontecido na França é o do proprietário


de um terreno próximo do de um construtor de balões, que resolve erguer torres
pontiagudas em seu terreno, causando assim acidentes no pouso e decolagem dos balões.
Entendeu os Tribunais franceses, que excedia o exercício do direito de propriedade essa
construção pois dela seu proprietário não retirava nenhuma utilidade apenas o propósito de
prejudicar seu vizinho.

A teoria do abuso de direito pode ser lida de uma forma objetiva e subjetiva. Por
esta há a necessidade de caracterizar-se a intenção de prejudicar outrem, por aquela não se
alude aquela intenção mas à ultrapassagem de determinados limites no exercício. Tais
limites são caracterizados como: a) pelo fim econômico ou social do direito exercido; b)
pela boa-fé; c) pelos bons costumes.88

Adota-se entre nós a forma objetiva, pois o art. 187, regra geral do abuso de direito,
não exige a configuração do elemento subjetivo – intenção de prejudicar outrem-, porém o
faz o §2° do art. 1.228 ao considerar proibitivos os atos que não trazem ao proprietário
qualquer comodidade ou utilidade exige que tais seja realizados com a intenção de
prejudicar outrem.89

Com relação ao exercício do direito de propriedade interessa mais de perto o


excesso referente ao fim econômico ou social do direito.

88 Moreira, ib. idem, p. 105.


89Para Barbosa Moreira não se pode deixar de estranhar a falta de sintonia entre o art. 1.228, §°, fine, e o art.
187. Terá o código querido adotar dois conceitos distintos de abuso de direito, um, mais amplo, para os
direitos em geral, outro, mais restrito, para o direito de propriedade? É o que sugere o cotejo dos textos,
embora nada justifique, no plano da política legislativa, semelhante discriminação. A hipótese mais provável é
a de que falhou aí o trabalho indispensável de coordenação das várias partes de que se compõe o novel
diploma.

107
Haveria abuso de direito àquele que exerce o direito de propriedade fora da sua
finalidade econômica e social, pois esse é o seu contorno, esse é o seu limite.

Ao prescrever que a propriedade atenderá uma função social impõe o legislador o


seu limite, pois agir fora desse contorno é não atender a função social e assim abusar do
exercício desse direito. E pode se agir com abuso de direito tanto com ação ou com
omissão. Comete abuso do direito o proprietário rural que nada faz no seu terreno, não
planta, não mora, assim como o proprietário urbano que não cuida, que deixa o bem
deteriorar, são atos omissivos, mas abusivos, pois excedem ao limite estabelecido pelo
legislador pois não dão a esta a finalidade econômica e social exigida pelo legislador.

Também comete abuso, claro, quem age fora dos limites estabelecidos pela boa-fé e
pelos bons costumes.

Aqui nos encontramos diante de cláusulas gerais, conceitos jurídicos indeterminados


que devem ser interpretados pelo aplicador no caso concreto.

E, por último, age com abuso do direito de propriedade, o proprietário que ao


exercê-lo visa prejudicar outrem sem nenhuma vantagem ou utilidade em seu ato.

2.2 Descoberta

Melhora o código a disciplina da descoberta antes tratada no código anterior sob o


título invenção e no capítulo da aquisição e perda da propriedade móvel (arts. 603 a 606,
CC/1916).

É descoberta o achado de coisa alheia perdida, impondo-se ao descobridor o dever


de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor (art. 1.233. Quem quer que ache coisa alheia
perdida há de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor). E por isso não se trata de uma
forma de aquisição da propriedade como o fazia o legislador anterior, pois quem acha, deve
devolver ao dono.

Se o descobridor não conhecer o dono deve entregar à autoridade competente (§


único, 1.233). Esta dará conhecimento da descoberta, através da imprensa e de outros meios
de comunicação, podendo expedir editais se o valor do bem comportar (art. 1.236). Após 60
dias da divulgação pela imprensa ou por editais, não se apresentando o dono, será o bem
vendido em hasta pública conforme procedimento especial de jurisdição voluntária

108
estabelecido no art. 1.170 do CPC e deduzido do preço as despesas e a recompensa do
descobridor, o restante pertencerá ao Município em cujo local foi encontrado o bem (art.
1.237).

Mas se o bem for de pequeno valor que não compense o procedimento de venda em
hasta pública poderá o Município abandonar a coisa em favor de quem achou (§ único,
1.237).

Fará jus o descobridor a uma recompensa que não poderá ser inferior a 5% do valor
do bem, que deverá levar em conta para sua fixação o esforço do descobridor para
encontrar o dono, as possibilidades que teria este de encontrar a coisa e a situação
econômica de ambos, e ainda deverá ser somada a esta uma indenização pelas despesas
com a conservação e transporte da coisa (art. 1.234 e §único).

109
III AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE IMÓVEL

SUMÁRIO: 1.0 Considerações gerais; 1.1 Registro; 1.1.1 Atributos do registro; 1.1.2
Lei dos Registros Públicos; 1.2 Usucapião; 1.2.1 Usucapião e prescrição; 1.2.2
Requisitos; 1.2.3 Espécies; 1.2.3.1 Extraordinário; 1.2.3.2 Forma especial do
extraordinário; 1.2.3.3 Ordinário; 1.2.3.4 Forma especial do ordinário; 1.2.3.5
Especial Urbano (pro habitacione); 1.2.3.6 Especial Rural (pro labore); 1.2.3.7 §4° e
§5°, art. 1.228 CC; 1.2.3.8 Usucapião especial coletiva do estatuto da cidade; 1.2.3.9
Usucapião índigena; 1.2.4 Usucapião de direitos reais sobre coisas alheias; 1.2.5
Acessio possessionis; 1.2.5 Causas obstativas, suspensivas e interruptivas da prescrição
aquisitiva; 1.2.6 Ação de usucapião; 1.2.7 Direito intertemporal; 1.3 Acessão; 1.3.1
Formação de ilhas; 1.3.2 Aluvião; 1.3.3 Avulsão; 1.3.4 Abandono do álveo; 1.3.5
Plantação e construção

3.0 Considerações gerais


Após tratar da propriedade em geral, cuida o legislador dos meios de aquisição,
começando pela propriedade imóvel.
E a propriedade imóvel pode ser adquirida de 3 formas: pelo usucapião, pelo
registro e pela acessão. Esta última ocorre pela formação de ilhas, pelo aluvião, por
avulsão, pelo abandono do álveo e por plantações e construções.
Costuma-se classificar as formas de aquisição da propriedade em originária e
derivada. São assim formas originárias de aquisição da propriedade imóvel o usucapião e a
acessão e derivada o registro.
Esta classificação como explica Washington de Barros Monteiro refere-se a
diferença entre ser a aquisição direta e independente da interposição de outra pessoa e ter a
aquisição como pressuposto um ato de transmissão por via da qual a propriedade se
transfere para o adquirente.90
No usucapião e na acessão a aquisição da propriedade independe da transmissão de
outra pessoa, já no registro a propriedade é adquirida pela transmissão do antigo
proprietário ao novo proprietário.
Porém não é o registro a única forma de aquisição derivada da propriedade, esta
também ocorre pela sucessão, aliá isto fica claro na própria redação do art. 1.245
(‘Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no

90 Curso de Direito Civil, p. 98.

110
Registro de Imóveis), porém por ser um evento causa mortis não é tratado no livro do
direito das coisas, mas no livro das sucessões.
Comecemos então invertendo a ordem legal, pelo registro.

3.1 Registro
Diz o art. 1.245 que transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do
título translativo no Registro de Imóveis.

Logo é o registro entre nós a forma de aquisição da propriedade imóvel, o contrato


como se sabe não transfere a propriedade. Essa é uma opção do nosso sistema, não é assim,
por exemplo em outros países em que o acordo de vontades tem o efeito de transferir a
propriedade.

Essa afirmação sempre choca um pouco aqueles que ainda não conhecem essa
matéria, questiona-se para quê então serve o contrato de compra e venda de imóvel, se ele
não torna o comprador dono. Serve para permitir o direito a essa transferência, mas por si
só não transfere. Daí a vulnerabilidade do direito daqueles que optam por comprar um
imóvel e não registrá-lo, tornando-o um ‘contrato de gaveta’.

É claro que se comprado do verdadeiro dono, aquele em cujo nome está o registro,
ele garantirá o registro, mas enquanto este não ocorrer o dono do imóvel é o vendedor, em
cujo nome ainda permanece registrado o imóvel.

A insegurança dessa situação pode ocorrer pela possibilidade do vendedor vender


para outro, que registre, do vendedor falecer e o imóvel entrar no espólio dos herdeiros,
problemas com impostos, etc, é sempre um risco uma situação como esta.

Por isso adotou-se no Brasil a regra do registro que garante maior segurança nestas
transações, principalmente para terceiros, que tem no Cartório de Imóveis a possibilidade
de informar-se sobre a situação do imóvel sabendo quem é seu dono (para verificar se
aquele que lhe está oferecendo a propriedade é legítimo), se sobre ele pende algum ônus
real (como hipoteca), se há algum direito inscrito sobre o bem (como uma locação).

Além da segurança proporcionada pelo registro, este possui outros atributos


importantes e necessários para a compreensão desta matéria.

111
Conforme Washington de Barros Monteiro são 5 os atributos do registro:
publicidade; força probante; legalidade; obrigatoriedade e continuidade. Alguns autores
preferem denominá-los por princípios do registro e ainda enumeram junto a estes a
territorialidade, a prioridade, a especialidade e a instância.

Estudemos cada um deles.

3.1.1 Atributos do Registro:

Publicidade

O primeiro atributo do registro é a sua publicidade. É por isso que qualquer pessoa
pode ir ao Cartório de Registro de Imóveis e verificar a situação de imóvel. Quem é seu
dono, se sobre ele pende algum ônus, etc. Ao se registrar a transferência não se torna só
dono, também informa-se a todos de que se é dono. Ninguém poderá alegar
desconhecimento da sua propriedade, pois o registro lhe confere esta publicidade.

Daí como dissemos a importância de se registrar e a insegurança de permanecer


numa situação jurídica imobiliária sem registro.

Força Probante

O registro prova a propriedade. A pessoa em cujo nome está registrado o imóvel é o


proprietário. Essa é a força probante do registro.

Claro que não é uma presunção absoluta, admite-se prova em contrário, mas essa só
poderá ser feita no judiciário, pois terá que se provar, por exemplo, uma fraude, daquele
que se apresentou como dono, falsificando documentos e efetivou uma transferência de
propriedade. Por isso o CC prescreve no art. 1.245, §2º que enquanto não se promover, por
meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento,
o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel.

Legalidade

Também o registro opera uma legalidade do seu ato. Pois o registro não é realizado
somente pela apresentação da escritura pública, o cartorário verifica a legalidade do ato.
Verificará pela apresentação da escritura de compra e venda se aquele que vende é quem
está registrado o imóvel, se sendo casado o cônjuge também outorgou o documento, enfim

112
verificará se não há nenhuma irregularidade ou pendência que prejudique o registro e só
assim o fará.

Por isso que primeiro ocorre a prenotação do documento, para que nesse período de
análise o cartório possa verificar tudo isso e só depois é que se registrará na matrícula o
imóvel.

Obrigatoriedade

Para a transferência da propriedade imóvel o registro é obrigatório.

Todo imóvel se encontra sob a circunscrição de um Cartório de Registro de Imóveis


e este representa um determinado território. Por exemplo, a cidade de São Paulo possui xx
cartórios de registro de imóveis que dividem territorialmente a cidade, assim caso adquira-
se um imóvel um Pinheiros obrigatoriamente o seu registro ocorrerá no xx Cartório de
registro que responde por essa área.

No cartório de registro de imóveis não se registra somente a compra e venda de


imóvel, mas também a permuta, a doação, a dação em pagamento, ou seja, todos os atos
translativos da propriedade imóvel, e também a instituição de hipoteca, a sentença
declaratória de usucapião, incorporação, a partilha de bens imóveis do inventário e
averbam-se o cancelamento de hipoteca, cláusula de inalienabilidade, contrato de locação,
sentenças de separação judicial e divórcio quando partilhem direitos reais, tudo isso de
acordo com o art. 167 da Lei 6.015/73.

Nenhum ato registral pode ocorrer se não for autorizado pela lei dos registros
públicos, que é a referida lei 6.015/73.

Continuidade

O registro como explica Washington de Barros Monteiro deve ser contínuo,


prendendo-se necessariamente ao anterior, numa seqüência ininterrupta de atos.91

Assim ao adquirir uma propriedade imóvel registrando-a, o seu registro não


substitui o anterior mas soma-se a essa cadeia de registros indicando sempre através do
último nome a propriedade atual.

91 Curso de Direito Civil, p. 103.

113
Essa continuidade representa também um histórico da propriedade, pois sabe-se
através do registro quem foram os seus proprietários, em que ano ocorreram as
transferências, se houve ônus reais, como hipoteca, etc., enfim, conhece-se a história
daquela propriedade.

Devido à continuidade do registro não é permitido que a propriedade seja registrada


por um outorgante que não seja o proprietário anterior, isso quer dizer que se a propriedade
estiver em nome de José e este vender para João, que sem registrá-la vender para Augusto,
Augusto não poderá registrá-la pois, o outorgante João, não consta do registro. Assim para
manter a continuidade deverá se efetivar o registro da venda de José para João, para só
depois realizar a de João para Augusto. É isto o que diz o art. 195 da Lei dos Registros
Públicos: ‘ Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do outorgante, o
oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior, qualquer que seja a sua
natureza, para manter a continuidade dor registro’.

Além destes, como dissemos acima, citam alguns autores a territorialidade, a


prioridade, a especialidade e a instância.

Comentemos também brevemente cada um destes:

Territorialidade

Ao comentarmos sobre a obrigatoriedade do registro explicamos que todo imóvel se


encontra sob a circunscrição de um Cartório de Registro de Imóveis e este representa um
determinado território. Esta é a regra da territorialidade, o registro não se efetua em
qualquer cartório de imóveis, mas naquele que responde pela circunscrição daquele imóvel.

Dentro da regra da territorialidade, se o imóvel abranger circunscrições diversas,


deverá ser registrado em todas elas.

Prioridade

A prioridade protege quem primeiro registra o seu título e essa ordem é determinada
pela prenotação.

114
Imagine que mais de um título seja apresentado para registro, por exemplo duas
hipotecas sobre o mesmo imóvel. Se o credor 1 apresentá-la depois do credor 2, será este
último o primeiro hipotecário e se privilegiará da venda, pois o dinheiro arrecadado
primeiro pagará a este, só para depois, com o que sobrar pagar o 2º hipotecário.

Especialidade

Pela especialidade os imóveis devem ser descritos da maneira mais individualizada


possível.

Uma grande preocupação quando se trata de imóveis é que estes estejam


perfeitamente individualizados e destacados para não ocorrer confusão acerca de
propriedades, de metragens, etc.

O art. 225 da lei de registros públicos determina essa minuciosa individualização.

Instância

Pela instância não é permitido ao oficial proceder a registros de ofício, mas somente
a requerimento do interessado. Este requerimento poderá inclusive ser verbal, por exemplo,
com a apresentação do título, não é exigido que se realize o requerimento formal, por
escrito.

Dispõe o art. 13 da Lei de Registros Públicos, ‘Salvo as anotações e as averbações


obrigatórias, os atos do registro serão praticados: I- por ordem judicial; II- a requerimento
verbal ou escrito dos interessados; III- a requerimento do Ministério Público, quando a lei
autorizar’.

3.1.2 Lei dos Registros Públicos

Conhecida como a lei dos registros públicos, a lei 6.015 de 1973, regula os serviços
concernentes aos registros públicos, sendo estes o registro civil de pessoas naturais; o
registro civil de pessoas jurídicas; o registro de títulos e documentos e o registro de
imóveis.

Dispõe a lei sobre o registro de imóveis nos arts. 167 a 288.

115
Inicia estabelecendo a separação entre os atos que serão registrados (art. 167, I) e os
atos que serão averbados (art. 167, II). Todos descritos minuciosamente, sem o qual não
poderá o oficial registrar ou averbar.

Aliás o termo registro como bem aponta Nelson Nery não é unívoco. Ora se designa
por ele o próprio ofício público (Cartório de Registro de Imóveis), ora se designa o ato
praticado em livro desse ofício para realizar o referido fim.

Além do mais a própria lei acabou com a diferença entre transcrição e inscrição
resolvendo tudo pelo termo genérico registro como dispõe o art. 168 ‘Na designação
genérica de registro, consideram-se englobadas a inscrição e a transcrição a que se referem
as leis civis’.

A lei como dissemos só faz diferença entre o registro e a averbação, esta última
sempre envolve atos que dependem da existência de um registro anterior e se faz
marginalmente a esta.

Mas mesmo assim o termo registro acaba também abrangendo numa linguagem
comum a averbação, se diz que vai ao cartório registrar, quando tecnicamente o que se
realizará é uma averbação.

A lei de registros também especifica quais os livros do cartório e o processo de


registro.

Com relação ao processo este inicia-se com a prenotação do título, conforme art.
1.246 do CC e 182 da Lei de Registros, onde no prazo de 30 dias deverá o oficial do
cartório verificar a regularidade para só após registrar ou averbar o título.

Também estabelece quais os atos que poderá o oficial de ofício retificar e quando
deverá cancelar em virtude de decisão judicial (art. 213 e 214).

A novidade desta lei é o estabelecimento da matrícula a todo imóvel que venha a ser
registrado (art. 176, §1º, I). Assim, antes de efetivar-se o registro deve instituir-se a sua
matrícula, e isso ocorrerá quando o imóvel sofrer a sua primeira alteração na titularidade
após a vigência da lei.

Cuida a lei, enfim, de organizar e uniformizar o registro no Brasil.

116
3.2 Usucapião

De todas as formas de aquisição da propriedade imóvel, sem dúvida a que demanda


mais discussão é o usucapião.

Conforme Clóvis Bevilácqua usucapião é um modo de aquisição de domínio pela


posse prolongada.

Deriva o termo de duas expressões em latim, capio= tomar e usu=pelo uso.


Traduzindo esse termo como tomar pelo uso.

Tem-se o tempo como seu fator principal. Todo usucapião resulta de uma posse por
determinado tempo. O tempo varia nas modalidades de usucapião como veremos mas
sempre há uma soma do tempo + posse.

Não só a propriedade, mas também outros direitos reais, passíveis de posse


prolongada, podem ser usucapidos, como a servidão.

Porém sem dúvida é a propriedade o mais importante e o que gera a maior fonte de
investigação e estudo.

Cuida o CC nos arts. 1.238 a 1.244 desta forma de aquisição.

3.2.1 Usucapião e prescrição

Como a prescrição o usucapião possui os elementos do tempo e da inércia do titular


do direito. Mas, enquanto na prescrição esses elementos dão lugar à extinção do direito, no
usucapião dão lugar à sua aquisição.

E, por essa semelhança o instituto do usucapião é também chamado de prescrição


aquisitiva, enquanto a outra modalidade, seria a prescrição extintiva.

Mas o instituto da prescrição tem um alcance mais geral, pois se refere a todos os
direitos, enquanto o usucapião só se refere à propriedade e aos direitos reais.92

3.2.2 Requisitos

92 Explicação de Andrea Torrente, extraída da obra do prof. Washington de Barros Monteiro, Curso, p.122.

117
Para se adquirir por usucapião é sempre necessário os requisitos: posse + tempo.
Esses são os requisitos básicos, porém junto a estes aliam-se outros requisitos O requisito
tempo é diverso nas várias modalidades de usucapião atual como também na história desse
instituto. O certo é que o legislador opera com a seguinte equação: quanto maior o
tempo menor o número de requisitos, quanto menor o tempo maior o
número de requisitos.

A posse requisito essencial da usucapião também deve ser qualificada. Não é


qualquer posse, mas uma posse mansa e pacífica, contínua, pública e incontestada.

Também não é todo bem que pode ser usucapido, proíbe-se a aquisição de bens
públicos (art. 102, CC).

Assim poderíamos classificar os requisitos do usucapião em gerais, específicos e


negativos:

REQUISITOS DO USUCAPIÃO

GERAIS (aplicam-se a todas as posse (animus domini, mansa e pacífica,


modalidades de usucapião) contínua, pública e incontestada) +

tempo (varia de 5 a 15 anos)

ESPECÍFICOS (aplicam-se dependendo da justo título e boa-fé


modalidade de usucapião)
moradia

não ser proprietário de outro imóvel

produtividade

investimento social e econômico

NEGATIVO bem público

Trataremos nesse item dos requisitos gerais e negativos e deixaremos os específicos


para quando tratarmos das espécies de usucapião, onde será mais apropriado abordá-los.

3.2.2.1 Requisitos Gerais

118
‘Animus domini’

A posse deve ser exercida com animus domini, ou seja, exige-se aquele requisito
subjetivo Savinyano, o ânimo de possuir como dono, o animus rem sibi habendi.

Diz o código no art. 1.238 ‘aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem
oposição, possuir como seu...’. Também repete esta expressão nos arts. 1.239 e 1.240
do usucapião especial.

Não exerce posse com animus domini o locatário, o comodatário, o arrendatário, pois
reconhecem no proprietário a titularidade deste direito. Mas isto não quer dizer que a
causa possessionis destes não possa ser alterada, passando a assumir uma posição de
posse ad usucapionem.

Posse mansa e pacífica

A posse do usucapião deve ser mansa e pacífica, ou seja, não pode ser uma posse
contestada, é a posse que é exercida sem oposição.

Mas há que bem explicar-se essa ausência de contestação, Caio Mário, diz que “requer-
se ausência de contestação à posse, não para significar que ninguém possa ter dúvida
sobre a conditio do possuidor, ou ninguém possa pô-la em dúvida, mas para assentar
que a contestação a que se alude é a de quem tenha legítimo interesse, ou seja, da parte
do proprietário contra quem se visa usucapir”.93

E aqui já nos surge duas questões: 1° a contestação deve ser somente a do titular do
direito esbulhado, por exemplo, um terceiro que tenta tomar a posse é considerado para
efeito de contestação? Se terceiro, que não o proprietário de quem se pretende usucapir,
tenta obter a posse e não consegue por ação deste possuidor, que por exemplo, valendo-
se da legítima defesa da posse ou mesmo de medidas judiciais a recuperou não deve ser
considerado contestação ou oposição à posse. Deve ser entendida esta como a ação
vitoriosa do proprietário e não de um outro terceiro contra quem não está correndo o
prazo de usucapião.

2° a contestação do proprietário deve ser judicial e vitoriosa? Por exemplo, se ele na


tentativa de recuperar a posse ajuíza uma ação possessória e sai perdedor, também é
considerada contestada a posse? A resposta é não. A atitude do proprietário deve ser

93 Instituições, v. IV, p. 140.

119
vitoriosa, se este ajuizando uma ação contra o possuidor não logra sair vitorioso, não
interrompe a prescrição aquisitiva. 94

Posse contínua

A posse deve ser contínua, ou seja, sem interrupção. Como explica Carlos Roberto
Gonçalves, ‘o possuidor não pode possuir a coisa a intervalos, intermitente. É
necessário que a tenha conservado durante todo o tempo e até o ajuizamento da ação de
usucapião.95

Considera-se interrompida a posse quando o possuidor sofre esbulho por terceiro? Não,
mas desde que ele a recupere logo. O art. 1.210, §1° do CC usará essa expressão ao
dizer ‘O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua
própria força, contanto que o faça logo (...)’. Como visto não estabelece o código prazo
para essa interrupção, mas já se decidiu que se dentro de ano e dia houver a recuperação
da posse, esta não terá sido interrompida.

Também não deve ser considerada interrompida a posse por qualquer mudança do
possuidor, pode este, que antes morava no bem, vir a morar em outro local porém
continuar exercendo posse sobre o bem.

Por último, apesar do legislador exigir a continuidade da posse, esta não se dá na pessoa
do possuidor mas na posse exercida sobre o bem, quer se dizer que não é João, por
exemplo, quem deve exercê-la por 10 anos, mas que a posse exercida seja de 10 anos
contínuos, pois esta pode ser somada com a posse do antecessor. Trata-se da acessio
possessionis, que abordaremos a seguir.

Posse pública

Reforçam também os autores a idéia de que a posse ad usucapionem deve ser pública,
ou seja tem que ser aquela que ocorre na vista de todos, não é possível a aquisição por
usucapião de uma posse clandestina, aliás estando a posse a revestir-se dessa
característica nem inicia-se a contagem do prazo prescritivo.

94 Não é esta, por exemplo, a posição da 2ª Turma do STJ, que entendeu interrompida a prescrição mesmo no
julgamento improcedente de ação reivindicatória: “Direito processual civil. Efeitos da citação válida. Código
de Processo Civil, art. 219. Ação proposta, mas pedido julgado improcedente. Inequívoco exercício do direito.
Inércia descaracterizada. Prazo prescricional interrompido. (EREsp/SP; 1998/0057915-0, j. em 27/09/2006)”.
95 Direito Civil Brasileiro, p. 258.

120
Posse incontestada

Posse incontestada é sinônimo de posse mansa e pacífica. Pois a posse ocorre de forma
mansa e pacífica quando não é contestada.

Tempo

O tempo varia no usucapião. Varia historicamente e varia nas diversas modalidades de


usucapião que temos atualmente.

O CC 1916 estabelecia prazos de 30 anos para o usucapião extraordinário e de 20 e 10


anos para o usucapião ordinário diferenciando-o se este ocorria entre ausentes ou entre
presentes. Posteriormente com a edição da lei 2.437/55 os prazos foram reduzidos para
20 anos no usucapião extraordinário e 15 e 10 anos no usucapião ordinário. O CC atual
continuou a reduzir os prazos. O usucapião extraordinário tem um prazo de 15 anos,
que é o maior de usucapião e o usucapião ordinário tem um prazo de 10 anos, porém
não mais com aquela separação da posse entre ausentes e entre presentes.

Hoje o prazo do usucapião em todas as suas modalidades varia entre 15 a 5 anos.

REQUISITO NEGATIVO:

Bem público

Não podem ser adquiridos por usucapião os bens públicos, conforme art. 102 CC e
art. 183, §3° e 191, § único da CF.

São bens públicos: art 98 a 103 CC

- uso comum (99, I)

- uso especial (99, II)

- dominicais (99, III)

Já se achou no passado que os bens dominicais poderiam ser adquiridos por


usucapião, como também já se entendeu que o usucapião pro labore poderia incidir sobre
bens públicos. Porém as duas teses estão ultrapassadas, os bens públicos quaisquer que
sejam não podem ser adquiridos por nenhuma modalidade de usucapião.

121
Bem de família

Questiona-se se o bem de família pode ser usucapido.

É uma questão interessante, afinal se este goza de proteção legal impedindo a sua
constrição por motivos de dívida, poderia então sofrer a prescrição aquisitiva?

A resposta é sim. O bem de família pode ser usucapido.

E essa conclusão não decorre das ressalvas estabelecidas pela própria lei (art. 3°, da
lei 8.009/90), mas da própria interpretação do instituto do usucapião.

Para ser usucapido um bem precisa estar na posse de outro durante um determinado
tempo estabelecido pela lei, isso significa que durante esse tempo não houve reclamação
adequada para interromper essa posse, como pode então um bem de família que pela lei “é
aquele único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente
(art. 5°)” estar na posse de outro sem reclamação? Se isso ocorreu é porque não havia nele
moradia e se havia abandonou-se pela negligência ou descaso.

É esta também a posição do STJ como se vê nesse acórdão:

“REIVINDICATÓRIA. USUCAPIÃO COMO DEFESA. ACOLHIMENTO. POSSE


DECORRENTE DE COMPROMSSO DE VENDA E COMPRA. JUSTO E TÍTULO. BEM
DE FAMÍLIA. A jurisprudência do STJ reconhece como justo título, hábil a demonstrar a
posse, o instrumento particular de compromisso de venda e compra. O bem de família,
sobrevindo mudança ou abandono, é suscetível de usucapião. Alegada má-fé dos
possuidores, dependente do reexame de matéria fático-probatória. Incidência da súmula n.7-
STJ. Recurso especial não conhecido. (REsp 174108/SP, T4, j. 15/09/2005)”

Bem gravado com cláusula de inalienabilidade

Outra questão interessante em matéria de usucapião é a do bem gravado com


cláusula de inalienabilidade. Pode este ser usucapido?

A resposta também é positiva.

E assim se deve interpretar, porque o usucapião é uma forma originária de aquisição


da propriedade, não pressupõe a alienação do antigo proprietário ao atual. A cláusula de
inalienabilidade impede a alienação do bem, e não a aquisição originária por usucapião.
Pode preocupar uma possível fraude entre o usucapiente e o herdeiro do bem gravado para

122
assim desonerá-lo. Mas a isto deve estar atento o juiz na ação de usucapião e não, por esta
razão, interpretar de outra forma a norma e a natureza jurídica do instituto.

Bem de sociedade de economia mista

Poderia um bem em que as pessoas jurídicas de direito público respondem por mais
de 50% serem usucapidos?

A resposta é sim.

Apesar de terem uma participação pública tais bens não são considerados públicos e
a eles então não se aplica a regra do art. 102 do CC.

É esta também a posição de nossos tribunais como nesta decisão do STJ:

“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. USUCAPIÃO


EXTRAORDINÁRIO. MATÉRIA DE DEFESA. BEM PERTENCENTE A SOCIEDADE
DE ECONOMIA MISTA. POSSIBILIDADE. I- Entre as causas de perda da propriedade
está o usucapião que, em sendo extraordinário, dispensa a prova do justo título e da boa-fé,
consumando-se no prazo de 20 (vinte) anos ininterruptos, em consonância com o artigo 550
do Código Civil anterior, sem que haja qualquer oposição por parte do proprietário. II- Bens
pertencentes a sociedade de economia mista podem ser adquiridos por usucapião.
Precedentes. Recurso especial provido” ( REsp 647357MG, T3, j. em 19/09/2006, rel. Min.
Castro Filho).

3.2.3 Espécies

O CC 2002 inovou bastante na matéria de usucapião. Primeiro trouxe para o código


as modalidades que existiam na CF, usucapião especial urbano e rural, segundo diminuiu os
prazos das modalidades extraordinária e ordinária, e, ainda acrescentou formas especiais a
essas espécies tradicionais, e, por último criou uma espécie de usucapião coletivo.

São então estabelecidas no CC 6 modalidades de usucapião:

Usucapião extraordinário: art. 1238


Forma especial do extraordinário: 1238, § único
Usucapião ordinário: art. 1242
Forma especial do ordinário: 1242, §único

123
Usucapião Especial Urbano ou pro habitatione: art.1240 e 183,§1º a 3º, CF
Usucapião Especial Rural ou pro labore: 1239 e 191 CF

Estabelece ainda o código uma modalidade de perda da propriedade imóvel no §4º e


5º do art. 1228 do CC, que discutem ainda os autores a sua natureza jurídica, assemelha-se
a um usucapião, porém prevê uma indenização ao proprietário o que aproxima-o da
desapropriação. Além disso ainda temos no Estatuto da cidade uma modalidade de
usucapião coletivo, que não foi tratada no CC como a usucapião urbana que o legislador
trouxe para este diploma, e, por último ainda lembram alguns autores de uma forma de
usucapião estabelecida no estatuto do índio. Sendo assim poderíamos contar 9 modalidades
de usucapião. Sendo estas:

§§ 4º e 5º do art. 1.228 do CC

Usucapião coletiva do Estatuto da Cidade: art. 10 da Lei 10.257/01

Usucapião indígena

Comecemos pelas espécies tradicionais do CC, o usucapião extraordinário e o


ordinário:

3.2.3.1 Usucapião extraordinário

As duas tradicionais formas de usucapião do nosso sistema são o usucapião


extraordinário e o ordinário.

O CC 1916 inicialmente estabeleceu para esta modalidade um prazo de 30 anos,


posteriormente com a edição da lei 2.437/55 este prazo foi reduzido para 20 anos.

Atualmente o usucapião extraordinário tem um prazo de 15 anos estabelecido no art.


1.238 do CC que prescreve “Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição,
possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independente de título e boa-fé;
podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o
registro no Cartório de Registro de Imóveis”.

Seus requisitos são posse + tempo de 15 anos.

124
A posse como explicado no item dos requisitos deve ser qualificada o possuidor
deve possuir animus domini, sua posse deve ser mansa e pacífica e todo o período de 15
anos deve ter transcorrido sem oposição.

É a que se exige maior tempo e a que se exige menos requisitos.

3.2.3.2 Forma especial do extraordinário (§único, 1.238)

Criou o legislador essa modalidade de usucapião, como uma forma especial do


extraordinário. Assim, estabelece no §único do 1.238 que “O prazo estabelecido neste
artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia
habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo”.

Acrescenta o legislador mais dois requisitos junto a posse e ao tempo, que também
reduz para 10 anos: moradia + realização de obras ou serviços de caráter produtivo.

Trata-se de uma valorização da chamada posse-trabalho, onde o legislador atende a


diretriz constitucional da função social da propriedade.

3.2.3.3 Usucapião ordinário

A grande novidade do legislador nesta espécie de usucapião foi o término da


diferença nos prazos para a posse entre ausentes e a posse entre presentes.

Manteve somente um prazo: 10 anos, que correspondia ao prazo anterior do


usucapião ordinário entre presentes.

Nesta espécie começamos a ter alguns requisitos específicos, além daqueles gerais.
Aqui exige-se o justo título e a boa-fé.

Justo título na definição de Washington de Barros Monteiro é o título hábil a


transferir o domínio e que realmente o transferiria, se emanado do verdadeiro proprietário.96
Ou no dizer de Carlos Roberto Gonçalves é aquele que seria hábil para transmitir o domínio
e a posse se não contivesse nenhum vício impeditivo dessa transmissão.97

Não há necessidade que esse título esteja registrado, até porque se assim ele
estivesse, não haveria obstáculo à transmissão da propriedade. São justos títulos os famosos
‘contratos de gaveta’, os compromissos e promessas de compra e venda, etc.

96 Curso de Direito Civil, p. 29.


97 Direito Civil Brasileiro, p. 262.

125
A pessoa que toma posse por um justo título acredita ser o dono e por isso coloca-o
o legislador numa situação beneficiada de redução do prazo.

Também exige o usucapião ordinário a boa-fé, essa já explicada inicialmente nesse


curso, é a posse em que o possuidor ignora o vício, aquela em que acredita estar numa
situação de legitimidade.

O art. 1.201 do CC presume a boa-fé no justo título (“O possuidor com justo título
tem por si a presunção de boa-fé ...”). Porém aqui, no usucapião ordinário, o legislador
exige o justo título e a boa-fé. Não há aquela presunção. São necessários os dois requisitos.

Mas é claro, que no aspecto prático o possuidor do justo título provavelmente


também terá boa-fé.

3.2.3.4 Forma especial do ordinário

O legislador do atual código criou essa modalidade de usucapião como uma forma
especial ao usucapião ordinário, conferindo para este o prazo de 5 anos.

Sendo uma espécie daquele, exige-se os mesmos requisitos além dos seguintes
específicos: aquisição onerosa com base no registro constante do respectivo cartório,
cancelada posteriormente + moradia ou investimentos de interesse social e econômico.

Quis o legislador com esse primeiro requisito específico (aquisição onerosa...)


premiar a boa-fé, que aqui estaria ainda mais consubstanciada por um documento inclusive
registrado no Cartório. Já o segundo requisito (moradia ou investimentos...) é um prêmio
aquele que se utiliza do bem, ou seja, que cumpre mais do que o proprietário a sua função
social, seja morando, seja nele investindo, plantando, produzindo...é aquela velha idéia da
posse-trabalho.

Veja que fica claro a preocupação do legislador em coroar situações de fato de uso
da propriedade.

3.2.3.5 Usucapião especial rural

Esta espécie de usucapião surgiu na Constituição Federal de 1934 e pela primeira


vez utilizou-se de outros requisitos que não a posse, boa-fé e justo-título. O requisito então
utilizado foi o trabalho e a moradia. E por isso essa modalidade foi chamada de usucapião
pro labore e por constar somente da CF foi também chamado de usucapião constitucional.

126
Seu objetivo, como observa Washington de Barros Monteiro foi a fixação do
homem no campo.98

Exigiu-se primeiramente como requisito a posse por 10 anos + área não superior a
20 hec + não propriedade de outro imóvel + produtividade + moradia.

A CF/88 reproduzindo esta espécie estabeleceu no art. 191 “Aquele que, não sendo
proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem
oposição, área de terra em zona rural, não superior a 50 hectares, tornando-a produtiva por
seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade”.

O requisito do tempo já havia sido reduzido para 5 anos, modificando-se agora o


requisito da área de 20 hectares para 50 hecteres.

O usucapião especial rural foi a primeira espécie a indicar sua utilização pelo
legislador também como um instrumento de política social, para o atendimento da função
social da propriedade, aqui direcionada a fixação do homem no campo e uma premiação
àquele que dele faz sua moradia e da família e também sua fonte de sustento.

3.2.3.6 Usucapião especial urbano

A CF/88 inovou na disciplina da usucapião criando uma nova modalidade: a da


usucapião urbana.

Estabeleceu no art. 183 que “Aquele que possuir como sua área urbana de até
duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição,
utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não
seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”.

Vejam que os requisitos são próximos da usucapião especial rural, não se exige a
produtividade pois não é essa a finalidade de um imóvel urbano e estabelece-se outra
medida (250 m²) adequada à propriedade urbana.

O Estatuto da Cidade (art. 9°, Lei 10.257/01) reproduziu essa disposição assim
como o atual CC em seu art. 1.240.

Os três diplomas sobre a usucapião urbana (CF/CC e Estatuto da Cidade) são


praticamente idênticos, nota-se porém uma pequena diferença no Estatuto da Cidade, pois

98 Curso, p. 126.

127
enquanto os dois anteriores falam em área urbana este última fala em área ou edificação
urbana.

Haveria então diferença? Como exige o legislador a moradia, há quem entenda que
não seria possível, pela CF e pelo CC a usucapião de terreno urbano sem construção, tendo
em vista que o objetivo da lei é a moradia.

Não entendemos dessa forma, e além do mais não acreditamos que área urbana
refira-se a área construída, pois pode-se morar mesmo sem moradia e depois construí-la,
improvisando temporariamente, afinal quantas pessoas moram na rua.99

Também não é possível a usucapião de parte de área de terreno, por exemplo,


utilizar-se de parte de um terreno com metragem superior e depois querer usucapir área
limitada a permissão legal para se beneficiar do prazo, já que para usucapir o todo, exigiria-
se pelo menos o prazo de 10 anos.

Porém já entendeu o TJ/SP a possibilidade de usucapião de um lote de terreno em


área que seria objeto de um loteamento, que não desfigura a opinião anterior.

Pelo estatuto da cidade não fica dúvida de que para o legislador a usucapião é um
instrumento da política urbana (Art. 4°, V, j), e, assim poderíamos dizer para o
cumprimento da função social da cidade, como é o usucapião rural para o campo.

3.2.3.7 §4° e §5°do art. 1.228 do CC

Outra novidade do CC na matéria de propriedade foi a criação dessa modalidade de


aquisição coletiva da propriedade estabelecida nos §§4° e 5° do art. 1.228.

Estabelece o CC após tratar no parágrafo anterior da perda da propriedade pela


desapropriação que “O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel
reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco
anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou
separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico
relevante”.

99 Esse é o entendimento de Carlos Roberto Gonçalves, para quem a tal espécie não se aplica à posse de
terreno urbano sem construção , pois é requisito a sua utilização para moradia do possuidor ou de sua família.
Direito Civil, p. 240.

128
Consideram alguns autores como o prof. Carlos Alberto Dabus Maluf que se trata
de uma nova modalidade de usucapião, porém não se trata de uma posição unânime. E a
principal resistência a adoção dessa tese é que o parágrafo seguinte ainda tratando desta
espécie de aquisição dirá que “No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa
indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o
registro do imóvel em nome dos possuidores”. (grifo nosso)

A aquisição por usucapião nunca gerou indenização ao proprietário e por isso tal
espécie trazida pelo legislador civil não deve ser vista como uma modalidade de usucapião
e sim como uma outra causa de aquisição da propriedade.

Poderia então agora perguntar se não se trataria de uma espécie de desapropriação?


É esse, por exemplo, o entendimento de Nelson Nery para quem a norma cria a
desapropriação judicial.100

Mas entendemos que não se deve tentar conceituá-lo através de outros institutos em
que este não se enquadra sem uma distorção da idéia daquele, o melhor é defini-lo como
uma nova espécie de aquisição da propriedade, porque no caso da desapropriação, mesmo
que o §5° fale em indenização, essa indenização ao que indica, não é devida pelo Estado
mas sim pelos possuidores-beneficiados, o que modifica o próprio conceito de
desapropriação. 101

Sobre esta nova norma Miguel Reale em seus comentários de apresentação ao


Código Civil afirma que tal disposição tem caráter revolucionário pois é conferido ao juiz
um poder expropriatório o que não é consagrado em nenhuma legislação.102

Trata-se sem dúvida de uma licença poética do criador do código, dar a essa
disposição um caráter revolucionário, mas sem dúvida é um instrumento de grande poder
do juiz até devido ao número de conceitos vagos trazidos como extensa área, considerável
100 Código civil comentado, art. 1228, §4º, nota 27, ou autor inclusive define a desapropriação judicial na nota

29 como o ato pelo qual o juiz, em ação dominial (v.g., reivindicatória) ajuizada pelo proprietário, acolhendo
defesa dos réus que exercem a posse-trabalho, fixa na sentença a justa indenização que deve ser paga por eles,
réus, ao proprietário, após o que valerá a sentença como título translativo da propriedade, com ingresso no
registro de imóveis em nome dos possuidores, que serão os novos proprietários.

101É esse também o entendimento de José Carlos de Moraes Salles para quem como o §5° não diz a quem
incumbirá o pagamento da indenização devida ao proprietário, não será possível atribuir-se esse encargo ao
Poder Público, de modo que, por mais essa razão, a tal “privação” da coisa pelo proprietário não deriva de
desapropriação. Usucapião de bens imóveis e móveis, p. 494.
102 Visão geral do novo Código Civil, p XV.

129
número de pessoas e obras ou serviços considerados pelo juiz de interesse social e
econômico relevante.

Chama-nos a atenção nesta nova espécie de aquisição dois elementos: 1°o fato do
legislador não ter estabelecido a quem competirá o pagamento da indenização e 2° a
possibilidade desta aquisição ocorrer em imóvel público.

Com relação ao primeiro elemento é sugestivo que o legislador não tenha


estabelecido o legitimado a esta indenização. Serão os possuidores? A princípio parece que
sim, é esta a primeira resposta ao nosso pensamento. Mas será que não há uma certa
perspicácia neste fato, senão do legislador, dos seus intérpretes? Porque não definindo a
quem cabe o pagamento da indenização, poderá esta caber não só aos possuidores mas
também a outras pessoas, como o próprio poder público interessado em regularizar
situações possessórias.103

Com relação ao segundo elemento, por não se tratar de usucapião, é possível esta
aquisição sobre imóveis públicos, a vedação da lei não atingiria esta espécie, aliás este é um
dos motivos pelo qual não se deve chamar esta hipótese de usucapião, para não lhe trazer as
mesmas proibições.

No mais, como a usucapião urbana, trata-se de um instrumento jurídico para a


aplicação de uma justiça social.

3.2.3.8 Usucapião especial coletivo do Estatuto da Cidade (art. 10,


L. 10.257/01)

O Estatuto da Cidade trouxe essa grande inovação em matéria de usucapião, a


possibilidade de uma usucapião coletiva. Não há correspondência dessa modalidade no CC,
como com a usucapião urbana, pois a modalidade trazida pelo CC é uma forma de
aquisição coletiva, mas não de usucapião, como vimos acima, pois determina que o
proprietário seja indenizado.

103 Um elemento que também nos chama a atenção é a semelhança desta forma de aquisição com a do
usucapião coletivo do estatuto da cidade. Ambos requerem o prazo de 5 anos, o considerável número de
pessoas e a extensa área ocupada (no usucapião coletivo + de 250 m²). Para o usucapião coletivo se exige a
moradia, para este, obras e serviços de interesse social e econômico relevante. O que os diferencia e o que os
aproxima é algo que a doutrina e jurisprudência deverão resolver, para não aniquilar o usucapião coletivo
através desta forma de aquisição da propriedade.

130
Estabelece então o Estatuto da Cidade no art. 10 que “As áreas urbanas com mais de
250m², ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por 5 (cinco) anos,
ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados
por cada possuidor, são suscetíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os
possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural”.

As inovações nessa modalidade foram muitas: primeiro a possibilidade de usucapir-


se coletivamente, segundo a indeterminação da área (fala o legislador em área com mais de
duzentos de cinqüenta metros quadrados) e também de certa forma a indeterminação dos
sujeitos na posse ocupada (pois a norma diz, onde não for possível identificar os terrenos
ocupados por cada possuidor), o que mostra que o usucapião gerará um condomínio.

Esta espécie faz parte dos institutos jurídicos e políticos (art. 4º, V, j) utilizados
como instrumentos da política urbana (art. 4º) do Estatuto da cidade visando atender as
diretrizes gerais nele estabelecidas (art. 2º), neste caso visando a regularização fundiária e
urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda (art. 2º, XIV).

Trata-se na prática de áreas de favelas ou de aglomerados residenciais sem


condições de legalização do domínio.

Se o próprio instituto já foi uma grande novidade as repercussões dele advindas são
inúmeras.

Questiona-se primeiramente se se trata de uma nova modalidade de usucapião ou de


uma espécie do já estabelecido usucapião especial urbano. Esta discussão ocorre por efeito
de contagem do prazo usucapiendo, se uma nova modalidade não se contará o prazo
anterior ao Estatuto da Cidade, mas se uma espécie da usucapião urbana poderá realizar-se
a contagem do prazo pretérito à vigência do Estatuto.

Como a modalidade traz vários conceitos vagos todos eles reclamarão uma exegese
do julgador interpretando-os ao caso concreto. Por exemplo, o que significa população de
baixa renda? Há algum parâmetro para compreendê-la? E área superior a 250 m², haverá
um limite? E como deve ser a posse dessa população de baixa renda? Somente para
moradia? Poderá haver comércio (bar, salão, mercearia, etc.)? Enfim, são questões que se
resolverão com o tempo, com a aplicação do instituto na prática.

131
Como se resolver, por exemplo, a existência de ruas, vielas, caminhos, praças que
vão se formando nesta aglomeração urbana? Essas vias passarão para o domínio do
município como bens de uso comum do povo? Ou serão encaradas como uma espécie de
servidão? Tudo isso faz parte da problemática da aplicação desse novo instituto, que só o
tempo, a análise dos casos concretos e a consolidação de um pensamento sobre a matéria é
que determinará as melhores soluções.

Em matéria processual o instituto também traz novidades, que é a legitimidade


extraordinária conferida à associação de moradores da comunidade para propor a ação de
usucapião coletivo.

E, por último, há a formação de um condomínio pelos possuidores-usucapientes


definido pela lei como condomínio especial que só poderá ser extinto pela deliberação de
no mínimo 2/3 dos condôminos e as suas decisões deverão ser tomadas por maioria de
votos (§4º e §5º).

3.2.3.9 Usucapião índigena

Uma modalidade de usucapião pouco comentada é a da usucapião prevista no


Estatuto do Índio (L. 6.001/73).104

Prescreve o art. 33 que “O índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez
anos consecutivos, trecho de terra inferior a cinqüenta hectares, adquirir-lhe-á a
propriedade plena”.

Na explicação de Carlos Roberto Gonçalves o benefício é atribuído tanto ao índio já


integrado na civilização ou não, neste último caso deverá ser representado na ação pela
Funai.

Como se sabe no nossa sociedade o índio é considerado incapaz desde o nascimento


e até que preencha os requisitos do art. 9º desta referida lei (21 anos, conhecimento da
língua portuguesa, habilitação para o exercício de atividade útil à comunidade nacional,
razoável compreensão dos usos e costumes nacionais) e aí por ato judicial será considerado
capaz.

104 Lembrada por Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil, p. 250.

132
QUADRO-RESUMO DAS DIVERSAS ESPÉCIES DE USUCAPIÃO CIVIL:

ESPÉCIES DE EXTRAORDINÁRIO FORMA ESPECIAL ORDINÁRIO FORMA ESPECIAL ESPECIAL COLETIVO


USUCAPIÃO DO ESPECIAL DO URBANO RURAL
EXTRAORDINÁRIO ORDINÁRIO (est.cidade)

DISPOSIÇÃO Art. 1.238 CC § único, 1.238 CC Art. 1.242 CC § único, 1.242 CC Arts. 183 CF, Arts.191 CF Art.10
LEGAL 1.240 CC e 9º Est. e 1.239 CC
Cidade.
REQUISITOS Posse + tempo Posse + tempo +moradia Posse + tempo Posse+tempo+just Posse+tempo+ Posse + Posse + tempo+
ou realizar obras ou + justo título + o título+boa- tempo + moradia de
serviços de caráter boa-fé fé+aquisição moradia+ 250m² moradia + população de baixa
produtivo onerosa ou realizar +não ser torná-la renda+impossibilid
proprietário de produtiva ade de identificação
investimentos de + individual dos
interesse social e outro imóvel 50 hec. terrenos + não
econômico serem proprietários
de outros imóveis.

3.2.4 Usucapião de direitos reais sobre coisas alheias


Não é só sobre a propriedade que incide a prescrição aquisitiva, também outros
direitos reais sofrem os seus efeitos.

Entre estes há que haver o exercício de uma posse prolongada, por isso é possível
adquirir por usucapião a servidão. O código é inclusive expresso sobre esta possibilidade
quando no art. 941 do CPC diz que “Compete a ação de usucapião ao possuidor para que se
lhe declare, nos termos da lei, o domínio do imóvel ou a servidão predial”. Também o art.
1.379 do CC dirá que “O exercício incontestado e contínuo de uma servidão aparente, por
dez anos, nos termos do art. 1.242, autoriza o interessado a registra-la em seu nome no
Registro de Imóveis, valendo-lhe como título a sentença que julgar consumado a
usucapião”.

Mas como visto pela leitura, exige o legislador que a servidão seja aparente.
Servidão aparente é aquela que se manifesta por atos visíveis, como a servidão de aqueduto.
As servidões não aparentes são aquelas que não aparecem exteriormente, ou seja, não são
visíveis. Uma servidão de não edificar acima de certa altura é uma servidão não aparente.
Também como servidão não aparente encontra-se a servidão de trânsito ou também como é
conhecida servidão passagem.

Mas é comum se ouvir falar em usucapião de servidão de passagem, aquela em que


o usucapiente adquire o direito de passagem em determinado terreno pela posse

133
prolongada. Então como explicar o usucapião desta servidão não aparente? Justifica-se
quando a servidão de trânsito se apresenta ostensiva e materializada em obras externas,
como pontes, viadutos, trechos pavimentados e outros sinais visíveis. Nesse sentido dispõe
a súmula 415 do STF “Servidão de trânsito não titulada, mas tornada permanente,
sobretudo pela natureza das obras realizadas, considera-se aparente, conferindo direito à
proteção possessória”.

Além da servidão afirmam alguns autores ser possível usucapir o domínio útil na
enfiteuse, o usufruto, o uso e a habitação.105

O domínio útil na enfiteuse é alvo de uma velha controvérsia. O CC atual, como se


sabe, excluiu a enfiteuse do rol dos direitos reais, não sendo mais possível desde então
constituir enfiteuse. Mas conforme estabelece o art. 2.038 ainda permanecem as enfiteuses
de terreno de marinha. Seria possível então usucapi-las? Admite-se que sim. Mesmo sendo
um bem público, pois o que se está adquirindo por usucapião não é o domínio direto, mas
sim o domínio útil.

Também se admite o usucapião de usufruto e também assim o faz o legislador no


art. 1.391 (“O usufruto de imóveis, quando não resulte de usucapião, constituir-se-á
mediante registro no Cartório de Registro de Imóveis”), apesar de que, é tênue a linha que
separa a própria aquisição da propriedade da aquisição do direito real de usufruto. O que
diferenciaria a posse deste possuidor para ser possível adquirir tão somente o usufruto e não
a própria propriedade?

Considera-se em alguns julgados que o objeto sobre que recai o usufruto não
pertence àquele que o constituiu. Assim, estabelecido o usufruto entre A (nu-proprietário) e
B (usufrutuário), C tendo dele posse pelo período autorizado pela lei, adquire por usucapião
o usufruto de B. A prescrição aquisitiva opera entre B e C. O objeto do usufruto não
pertence a B mas a A, então o que se adquire de B é o seu direito real de usufruto. A,
continuará sendo nu-proprietário, mas agora o usufrutuário passará a ser C. É como nessa
jurisprudência citada por Moraes Salles “Consumada a prescrição, o direito do usufrutuário

105 Poucos autores enfrentam o tema do usucapião de direitos reais sobre coisas alheias, entre estes encontra-

se José Carlos de Moraes Salles, em sua obra Usucapião de bens imóveis e móveis, p. 151.

134
subsiste em pleno vigor com todos os seus efeitos diante do verdadeiro proprietário, como
se por ele mesmo houvesse sido estabelecido”.106

Mas veja como é tênue esta separação, porque a posse exercida por C não geraria a
própria usucapião da propriedade?

Também admite-se o usucapião do direito real de uso e habitação.

Tanto o uso como a habitação são espécies de usufruto, ou usufrutos limitados, pelo
uso ou pela habitação.

Outrora já foi comum decisões garantindo o direito de usucapião ao uso de linha


telefônica, sendo matéria, inclusive, de súmula: “O direito de uso de linha telefônica pode
ser adquirido por usucapião” (143/STF).

Por último, deve-se colocar também a possibilidade de usucapião da superfície.


Novo direito real trazido pelo legislador, estabelecido no art. 1.369 do Código que confere
a uma pessoa, o superficiário, o direito de construir e/ou plantar em um imóvel, a título
gratuito ou oneroso. E assim como os demais, pelo exercício da posse prolongada, pode ser
adquirido por usucapião.

3.2.5 Acessio Possessionis

Regra de extrema importância na matéria de usucapião é a da soma da posse,


chamada de acessio possessionis.

Trata-se da possibilidade permitida pelo legislador do possuidor somar à sua posse a


do seu antecessor.

Tal regra é contemplada no código em dois artigos: 1.207 e 1.243.

O primeiro destes estabelece que “O sucessor universal continua de direito a posse


do seu antecessor; e ao sucessor singular é facultado unir sua posse à do antecessor, para os
efeitos legais”. Já o 1.243 determina que “O possuidor pode, para o fim de contar o tempo
exigido pelos artigos antecedentes, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores (art.
1.207), contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, nos casos do art. 1.242, com justo
título e de boa-fé”.

106 Usucapião, p. 156.

135
Diferenciam os autores essa regra quando a soma da posse ocorre entre sucessores
singulares, chamando-a então de acessio possessionis, e quando a soma da posse ocorre
entre sucessores universais, que então seria a sucessio possessionis. Porém usaremos nesse
trabalho o termo acessio possessionis para designar as duas espécies.

Já tratamos da regra da acessão na posse na primeira parte deste trabalho no capítulo


sobre a aquisição da posse. Lá diferenciamos sucessor singular e sucessor universal bem
como estabelecemos alguns exemplos para explicar a importância dessa regra, ao qual
remetemos o leitor nesse momento.

Em regra é admissível a acessio possessionis para a soma do prazo de usucapião.


Não é necessário que a posse seja única, o possuidor atual pode somá-la com a do seu
antecessor, mas se sujeitará às conseqüências legais, pois se a do antecessor era viciada a
sua também será e assim não poderá adquirir em algumas das modalidades da usucapião,
como a ordinária que exige a boa-fé.

Porém a acessio possessionis não é admitida em todas as espécies de usucapião,


sempre se aceitou na usucapião extraordinária e ordinária, porém não se aceitava essa
possibilidade de soma da posse nas formas especiais, urbana e rural.

A justificativa para não se aceitar a acessio possessionis na usucapião é que se


tratava de uma modalidade especial, com prazo reduzido visando beneficiar aquele que a
utilizou para moradia e no caso da rural também produzindo, caso fosse permitida a soma
da posse poderia ocorrer desvio na finalidade deste instituto.

Porém o CC atual aumentou o número de espécies de usucapião, diminuindo prazos


como também exigindo requisitos semelhantes às das modalidades especiais como moradia
e produtividade, ficando então a pergunta se, seria também admissível para essas espécies a
acessio possessionis.

Os mesmos argumentos que levaram os autores a negar a acessio possessionis à


usucapião especial rural e urbana, estão presentes nestas formas especiais do extraordinário
e do ordinário, que são a exigência de moradia, de produtividade, ou seja, requisitos
especiais que dificultariam essa acessão na posse com as mesmas qualidades.107

107Esta é a opinião de alguns autores, como Carlos Roberto Gonçalves, que ao explicar a impossibilidade de
acessio possessionis à usucapião rural, assim justifica: “Não pode, assim, o possuidor acrescentar à sua posse
a dos seus antecessores, uma vez que teriam de estar presentes as mesmas qualidades das posses adicionadas,

136
Porém nada comentam os autores acerca destas formas especiais acrescentadas às
tradicionais. Entendemos, no entanto, que devido à redução de prazo e ao seu caráter
especial, só deve ser admitido a sucessio possessionis, ou seja, a acessão do sucessor
universal que já residia na posse, como o filho, que sucedendo ao pai, continua nela
morando e produzindo.

Por sua vez o Estatuto da Cidade provoca uma mudança na relação da acessio
possessionis na usucapião urbana. O §3° do art. 9° que versa sobre a usucapião urbana
individual, permite que o herdeiro continue a posse de seu antecessor, desde que já resida
no imóvel por ocasião da abertura da sucessão.

E na usucapião urbana coletiva permite que os possuidores possam acrescentar à


sua posse à do antecessor, contanto que ambas sejam contínuas (§1°, art. 10).

Com isso o Estatuto da Cidade permite a acessio possessionis na usucapião urbana


que não é referida nem na CF e nem no CC. Para a usucapião urbana individual, aceita-a na
modalidade da sucessio possessionis e na usucapião urbana coletiva aceita-a como regra
geral.

QUADRO SINÓPTICO DA ACESSIO POSSESSIONIS

ESPÉCIES: ACESSIO POSSESSIONIS:

USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO Sim

FORMA ESPECIAL DO EXTRAORDINÁRIO Não, somente a sucessio possessionis, pois


um dos requisitos é a moradia

USUCAPIÃO ORDINÁRIO Sim

FORMA ESPECIAL DO ORDINÁRIO Não, somente a sucessio possessionis, pois


um dos requisitos é a moradia

USUCAPIÃO RURAL Admite-se a sucessio possessionis por


interpretação, pois a lei fala em tornar
produtiva por seu trabalho ou de sua

o que seria difícil de ocorrer, visto que há requisitos personalíssimos incompatíveis com a aludida soma,
como produtividade do trabalho do possuidor ou de sua família e morada no local. É afastada até mesmo a
hipótese de adicionamento quando o sucessor a título singular faz parte da família e passa a trabalhar a terra e
a produzir, nela residindo”, Direito Civil, p. 240.

137
família.
USUCAPIÃO URBANA Admite-se a sucessio possessionis, §3º, art.
9º, Estatuto da Cidade

USUCAPIÃO COLETIVA Admite-se a acessio possessionis, §1º, art.


10, Estatuto da Cidade

3.2.6 Causas obstativas, suspensivas e interruptivas da prescrição


aquisitiva

Determina o CC no art. 1.244 que ao possuidor se apliquem as causas que obstam,


suspendem ou interrompem a prescrição do devedor.

Na matéria de usucapião isso tem um peso significativo pois tais causas não levam à
contagem do prazo aquisitivo.

O CC não se refere nominalmente à causa obstativa, na seção II do capítulo de que


trata da prescrição, refere-se somente às causas que impedem ou suspendem a prescrição. E
na seção III refere-se às causas interruptivas. As causas impeditivas a que se refere esta
seção são as causas obstativas a que se refere o art. 1.204. Dizer que uma causa obsta ou
impede a prescrição é dizer que esta nem se inicia, por outro lado dizer que uma causa
suspende ou interrompe é dizer que o prazo prescritivo já se iniciou porém foi suspenso ou
então interrompido.

Sendo assim, são causas obstativas da prescrição as descritas nos artigos 197, 198 e
199 do CC. São causas suspensivas as descritas no art. 201. E são causas interruptivas as
descritas no art. 202.

São exemplos de causas obstativas ou impeditivas em nosso código: o casamento, a


relação entre ascendente e descendente, a incapacidade, entre outros. Em matéria de
usucapião isso quer dizer que durante a sociedade conjugal não terá início prazo
prescricional sobre os bens compartilhados (p. ex. não se iniciará prazo prescricional para o
cônjuge usucapir bem em que exerce posse, morando), como também não correrá a
prescrição entre pai e filho (não poderá o filho depois de residir 10 anos na casa do pai
alegar usucapião) e também não poderá ser oposta a prescrição contra o incapaz (alguém

138
que possua um imóvel de um incapaz, não poderá alegar usucapião se este ainda for menor,
mesmo que tenha ficado no bem tempo suficiente para usucapir).

As causas suspensivas e interruptivas por sua vez pressupõe o início do prazo


prescricional apenas há uma cessação nesta contagem, que no caso da causa suspensiva faz
com que este continue de onde parou e no caso da causa interruptiva faz com que este
recomece novamente (§ único, art. 202 CC).

As causas impeditivas podem também ser suspensivas se a pretensão já tiver se


iniciado quando do surgimento de uma daquelas causas. Se um possuidor estiver na posse
de um imóvel por 2 anos, quando vier a tornar-se incapaz o proprietário, o prazo aquisitivo
ficará suspenso até que se retorne a capacidade.

Como importante causa interruptiva temos o despacho do juiz que ordena a citação
(art. 202, I). Imagine que um proprietário esbulhado em sua posse ajuíze ação possessória
após 4 anos e 11 meses (quando o prazo aquisitivo fosse de 5 anos), o despacho desta ação
interromperá o prazo prescricional do réu, que recomeçará a contar do zero após a sentença,
caso o possuidor-esbulhador saia vitorioso, que para usucapir agora deverá completar todo
o prazo novamente (no nosso exemplo, 5 anos).

Essa é a importância prática da aplicação das regras da prescrição extintiva para o


usucapião.

3.2.7 Ação de Usucapião

Determina o CC no art. 1.241 que “Poderá o possuidor requerer ao juiz seja


declarada adquirida, mediante usucapião a propriedade imóvel”.

Não há uma sintonia técnica na disposição deste artigo no Código, pois ele se
encontra entre a enumeração das espécies de usucapião e logo em seguida continua o
código a enumerar mais uma espécie de usucapião, podendo parecer que a esta ele não se
refere.108

108Os 3 artigos anteriores 1.238, 1.239 e 1.240 descrevem respectivamente o usucapião extraordinário, o
especial rural e o especial urbano, depois o 1.241 refere-se à ação de usucapião, e continua o 1.242 a
descrever o usucapião ordinário.

139
Também pode parecer pela sua leitura que é a ação de usucapião que faz com que o
possuidor adquira a propriedade. Esta já foi adquirida pelo decurso do tempo, pois
lembremos, o usucapião é uma forma originária de aquisição da propriedade.

A declaração obtida na sentença da ação de usucapião apenas permite que o


adquirente leve a registro no Cartório de Registro de Imóveis a sua propriedade (§ único,
1.241).

O rito processual da ação de usucapião é descrito no CPC nos arts. 941 a 945.

A competência para a ação de usucapião é o do foro da situação do imóvel pois


trata-se de uma ação real nos termos do art. 95 do CPC.

Também por determinação do art. 10 CPC se o usucapiente for casado deverá


propor a ação junto com seu cônjuge como também no polo passivo deverá citar o casal.

Para a ação deverão ser citados além do proprietário em cujo nome, está transcrito o
registro imobiliário, todos os confinantes do imóvel. Estes são partes no processo e não
testemunhas, se bem que a sua participação ocorra para testemunhar e não para pedir.
Trata-se de um litisconsórcio necessário, mas não unitário.

Também serão citados para a ação os representantes da Fazenda Pública que


intervirão para manifestarem caso haja interesse no bem, por exemplo, para alegar que o
bem é público, pertencente ao município e por isso não pode ser usucapido.

Todos estes, proprietários, confrontantes, representantes da Fazenda, são partes no


processo e a ausência de suas citações anulam toda esta relação processual. Sendo a citação
um pressuposto de existência, esta ausência pode ser requerida pela parte a qualquer
tempo.109

109 Como nesta decisão do STJ: “PROCESSUAL CIVIL. USUCAPIÃO. CITAÇÃO. CONFRONTANTE.
AUTOR. RESCISÓRIA. DESCABIMENTO. 1- Se o móvel da ação rescisória é a falta de citação de
confrontante (ora autor), em ação de usucapião, a hipótese é de ação anulatória (querella nulitatis) e não de
pedido rescisório, porquanto falta a este último pressuposto lógico, vale dizer, sentença com trânsito em
julgado em relação a ele. Precedentes deste STJ. 2- Recurso conhecido em parte e, nesta extensão, provido
para decretar a extinção do processo rescisório sem julgamento de mérito (art. 267, VI do CPC) (REsp
62853/GO, T4, rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 19/02/2004)”

140
O tempo de prescrição aquisitiva deve ter se completado quando do ajuizamento da
ação, se bem que já se admitiu que a posse exercida entre a propositura e o julgamento da
ação seja computada no prazo exigido para o usucapião.110

Uma outra questão interessante é se para a ação de usucapião a posse deve ser atual.
Ou seja, deve o possuidor se encontrar na posse do bem quando do ajuizamento da ação?
Imaginemos a seguinte situação: João possuiu um bem durante 06 anos, junto a outros
requisitos que lhe permitiriam adquirir na modalidade especial urbano individual. Porém
antes de ingressar com a ação, sofre esbulho. E agora, poderá ajuizar ação de usucapião?

As opiniões divergem bastante. Para muitos autores é necessário que a posse seja
atual. Se o possuidor-usucapiente foi esbulhado, deverá primeiro recuperar a posse para
somente depois ajuizar a ação de usucapião.111 Porém para outros, como trata-se o
usucapião de uma ação somente declarativa de um direito já conquistado, poderá o
possuidor, mesmo sem posse atual, ajuizar ação de usucapião para reconhecer seu direito e
depois vitorioso, ajuizará contra o possuidor-esbulhador ação reivindicatória.112

Mas mesmo diante desta última opinião faz ressalva quem entende desta forma à
usucapião especial, considerando que para esta a posse deve ser atual.

Devemos ainda lembrar que o usucapião pode ser alegado em defesa. Ou seja,
demandado pelo proprietário que pretende reivindicar a propriedade pode o possuidor
alegar que já usucapiu, não tendo mais direito o proprietário a essa reivindicação. Trata-se
de uma defesa de mérito indireta, pela alegação de um fato extintivo do direito do autor.

Mas a questão que surge é se o usucapião alegado em defesa também garante ao


possuidor o registro da propriedade?

Quanto a legitimidade esta compete ao possuidor, que se casado, como vimos


ingressará em litisconsórcio com seu cônjuge. Também haverá litisconsórcio entre os
compossuidores que juntos exerceram posse sobre o bem.

Também já se admitiu legitimidade ao espólio para propor ação de usucapião.

110 Carlos Roberto Gonçalves nos traz essa notícia, Direito Civil, p. 262.
111 Esta é a opinião de Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil, p. 270.
112Opinião de Nelson Luiz Pinto para quem já se tendo o usucapião consumado, quando a posse foi perdida,
não vemos como negar o direito à ação declaratória deste, àquele titular desse direito, mesmo sem posse
atual”, Usucapião, p. 73.

141
Como em algumas espécies como vimos não é necessário que a posse seja atual, a
legitimidade poderá ser daquele que no momento não tem posse.

Porém a grande novidade surgiu no Estatuto da Cidade que conferiu legitimidade a


associação de moradores da comunidade para ingressar com a ação de usucapião como
substituto processual dos possuidores (art. 12, III).

ORGANOGRAMA DA AÇÃO DE USUCAPIÃO:

Petição inicial (art.


942)

Citação do proprietário, dos


confinantes, dos réus em
lugar incerto, dos eventuais
interessados e dos
representantes da Fazenda

Intervenção obrigatória
do Ministério Público
(art. 944)

Contestação do Revelia do Manifestação da


proprietário proprietário Fazenda Pública

Audiência de Interesse no bem Não há interesse no


instrução bem

Sentença de Sentença de Bem público


procedência improcedência

Expede-se mandado de Extinção do processo


registro ao Cartório de por perda do objeto
Registro de imóveis

142
3.2.8 Direito intertemporal

Devido a redução de prazos no CC, o que também ocorreu em matéria de usucapião,


e à criação de novas modalidades estabeleceu o CC regras de direito intertemporal para
aplicação desses novos prazos após a vigência do código.

Tais normas encontram-se nos arts. 2.028, 2.029 e 2.030.

A norma do art. 2.029 referia-se especificamente às duas novas modalidades de


usucapião, a forma especial do extraordinário e do ordinário, estabelecendo uma regra
temporária de dois anos após a vigência do código.

Também como norma provisória a do art. 2.030 determinava que o mesmo prazo
anterior (acréscimo de dois anos) fosse aplicado ao instituto criado pelo §4° do art. 1.228.

Ainda em vigor resta a norma do art. 2.028 que determina que sejam os da lei
anterior os prazos, quando reduzidos pelo CC, se na data de sua entrada em vigor, já houver
transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada.

Em matéria de usucapião tal norma ainda tem aplicação. É o caso do possuidor que
quando da entrada em vigor deste código (2003) tenha cumprido mais da metade do prazo
da lei anterior (p. ex. tenha posse de um bem por 11 anos, mais da metade do prazo de 20
anos do CC anterior para usucapião extraordinário). Aplicando o 2.028 ele ainda terá que
cumprir mais 9 anos. Se, porém o prazo atual fosse a ele aplicado só teria que cumprir mais
4, pois esta forma de usucapião reduziu-se de 20 para 15 anos.

Também aplica-se esta regra ao usucapião ordinário. Imaginemos que o possuidor já


tenha cumprido 8 anos de um prazo anterior de 15. Aplicando-se o 2.028 ele ainda terá que
cumprir mais 7 anos, se porém já lhe fosse aplicado o novo prazo, só teria que cumprir 2,
pois esta modalidade reduziu-se de 15 anos para 10.

As demais modalidades permaneceram com o mesmo prazo, que são o usucapião


urbano e rural, cujo prazo permanece 5 anos. Logo a eles não se aplicam estas regras
transitórias. E a modalidade de usucapião coletiva só começa a sua contagem após a
vigência do Estatuto da Cidade. Como este entrou em vigor em outubro de 2001, somente a
partir de outubro de 2006 é que poderia ser pleiteado esse direito.

143
3.3 Acessão

Define-a Washington de Barros Monteiro como o modo originário de adquirir a


propriedade, em virtude do qual, ao proprietário fica pertencendo tudo quanto se une ou
adere ao seu bem.113 É um modo de adquirir a propriedade que importa na aquisição de um
novo direito de propriedade sobre o todo resultante da conjunção de duas coisas, até então
separadas.114

O CC contempla 5 formas de acessão:

1- pela formação de ilhas;

2- por aluvião;

3- por avulsão;

4- por abandono do álveo;

5- por plantações e construções.

As acessões ainda podem ser divididas em: acessões naturais e acessões artificiais.
A acessão natural se dá quando a união ou incorporação da coisa acessória à principal
advém de acontecimento natural. A acessão artificial ou industrial resulta de trabalho do
homem, de um comportamento ativo.115

3.3.1 Pela formação de ilhas

Estabelece o art. 1.249 que as ilhas que se formarem em correntes comuns ou


particulares pertencem aos proprietários ribeirinhos fronteiros, observadas as seguintes
regras.

113 Curso de Direito Civil, p. 108.


114 Ib. idem, p. 108.
115 Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil, p. 141.

144
Antes de mais nada cumpre indagar como faz Washington de Barros Monteiro, a
que ilhas se refere o legislador?

1° Não são ilhas que nascem no mar (pois, se em águas territoriais, serão do país por essas
banhado);

2° Não são ilhas em alto-mar, pois, nesse caso, pertencerá ao primeiro ocupante;

3° Não são ilhas em rios navegáveis, ou que banhem mais de um Estado, pois, nesse caso,
sendo tais correntes públicas (art. 20, IV, CF), as ilhas também serão públicas.

Então a que ilhas o legislador se refere? O CC se refere às ilhas e ilhotas aparecidas


nos rios não navegáveis ou nas águas comuns ou particulares.116

As regras seguintes a que se refere o art. 1.249 visam estabelecer a propriedade


destas ilhas, que como se percebe, parte-se até de uma noção de bom senso na
determinação de sua propriedade.

Imagina-se uma linha divisória nessa rio ao seu meio, às ilhas que ali nascerem
aplica-se essa linha, se formadas ao meio do rio, de acordo com essa linha divisória, serão
dos proprietários fronteiriços, de um lado e de outro. As que se formas entre a linha e uma
propriedade será desse proprietário e por último as que se formam pelo desdobramento de
um novo braço do rio continuam a pertencer aos proprietários dos terrenos às custas dos
quais se constituíram.

3.3.2 Aluvião

Aluvião é o acrescentamento insensível que o rio anexa tão vagarosamente às


margens, que seria impossível, num dado momento, apreciar a quantidade acrescida.117

O CC a estabelece no art. 1.250 determinando que “Os acréscimos formados,


sucessiva e imperceptivelmente, por depósitos e aterros naturais ao longo das margens das

116“Só interessam ao direito civil ilhas e ilhotas aparecidas nos rios não navegáveis, nas águas comuns ou
particulares. Pertencerão elas, de acordo com o citado art. 23, do Código das Águas, ao domínio particular”,
como mais uma vez nos informa Washington de Barros Monteiro, Curso, p. 110.
117 Famosa definição de Justiniano trazida por Washington de Barros Monteiro, Curso, p. 111.

145
correntes, ou pelo desvio das águas destas, pertencem aos donos dos terrenos marginais,
sem indenização”.

O terreno acrescido chama-se terreno aluvial e se este se forma em frente a imóvel


de mais de um proprietário, dividir-se-á entre eles, na proporção da testada de cada um
sobre a antiga margem, como prescreve o §único do 1.250.

3.3.3 Avulsão

Pela avulsão, desprende-se porção considerável e reconhecível de determinada


propriedade imóvel, transportada pela correnteza para outra propriedade, situada a jusante
ou na margem oposta.118

Estabelece o 1.521 sobre a avulsão que “Quando, por força natural violenta, uma
porção de terra se destacar de um prédio e se juntar a outro, o dono deste adquirirá a
propriedade do acréscimo, se indenizar o dono do primeiro ou, sem indenização se, em um
ano, ninguém houver reclamado”.

A coisa desprendida deve ser suscetível de aderência natural, como terra, areia, pois
se não o for, como madeiras, móveis que possam ser lançados de um imóvel para outro por
um furacão, não há que se falar em avulsão, mas sim em coisa perdida, que deve ser
devolvida ao dono.

A propriedade da coisa desprendida é do proprietário da coisa acrescida se indenizar


o dono do primeiro, ou caso esta não seja reclamada em 1 ano. Mas caso não indenize e
esta seja reclamada deverá aquiescer a que o proprietário remova a parte acrescida (§único,
1.521).

3.3.4 Álveo abandonado

Álveo, pelo Código das Águas, é a superfície que as águas cobrem sem transbordar
para o solo natural e ordinariamente enxuto (art. 9º).

Ou, em outra palavras, é o leito do rio.

118 Wasnhington de Barros Monteiro, Curso, p. 113.

146
A questão surge para o Direito quando o rio abandona o seu álveo. Por isso a forma
de acessão chama-se álveo abandonado.

Estabelece o art. 1.252 que “O álveo abandonado de corrente pertence aos


proprietários ribeirinhos das duas margens, sem que tenham indenização os donos dos
terrenos por onde as águas abrirem novo curso, entendendo-se que os prédios marginais se
estendem até o meio do álveo”.

O álveo abandonado pode ser de corrente pública ou particular, a lei não distingue.

E a mudança da corrente não gera indenização aos proprietários dos terrenos desse
novo curso, salvo se a mudança se fez por utilidade pública, neste caso, conforme art. 27 do
Código das Águas, o prédio ocupado pelo novo álveo deve ser indenizado, e o álveo
abandonado passa a pertencer ao expropriante para que se compense da despesa feita.

3.3.5 Construções e plantações

De todas as formas de acessão essa é a mais comum, ou pelo menos, a mais


perceptível.

Trata-se de uma acessão industrial, porque diferente das outras, ocorre por ação
humana.

E até por isso, pelos desdobramentos que traz, é regulada em mais artigos. Está
estabelecida no CC nos arts. 1.253 a 1.259.

Se submetem à regra de que tudo aquilo que se incorpora ao bem em razão de uma
ação qualquer pertence ao domínio de seu proprietário: “Toda construção ou plantação
existente em um terreno presume-se feita pelo proprietário e à sua custa, até que se prove o
contrário” (art. 1.252). É a regra do acessório segue o principal.

Porém dessa regra de que tudo que se incorpora ao bem pertence ao proprietário,
surgem 3 outras regras:

CONSTRUÇÃO OU PLANTAÇÃO EM TERRENO PRÓPRIO COM MATERIAL


ALHEIO

147
O art. 1.254 trata da situação da construção ou plantação em terreno próprio com
material alheio.

Neste caso, pela regra principal, o proprietário adquire a propriedade destes


materiais, mas fica obrigado a pagar o valor além de responder por perdas e danos
se tiver agido de má-fé.

CONSTRUÇÃO OU PLANTAÇÃO EM TERRENO ALHEIO COM MATERIAL


PRÓPRIO

O art. 1.255 trata da situação da construção ou plantação em terreno alheio com


material próprio.

Neste caso aquele que semeou perde para o proprietário o que plantou ou construiu.
Se de boa-fé, tem direito à indenização. Também uma conseqüência da regra de que
toda construção ou plantação em um terreno presume-se do proprietário.

Mas o §único do art. 1.255 inova, trazendo uma regra que inverte a regra geral do
1.253, invertendo assim a regra de que o acessório segue o principal: “Se a
construção ou a plantação exceder consideravelmente o valor do terreno, aquele
que, de boa-fé, plantou ou edificou, adquirirá a propriedade do solo, mediante
pagamento da indenização fixada judicialmente, se não houver acordo”.

Alguns autores tem chamado esta possibilidade de “desapropriação privada”.


Afinal, aquele que construiu ou plantou, não sendo o proprietário, adquirirá a
propriedade indenizando o proprietário do terreno. Ou seja, não é a construção que
adere ao solo, mas o solo que adere à construção.

Só se aplica às construções novas. Logo não se estende às benfeitorias, que não


devem ser confundidas com as acessões. Pois aquelas são coisas novas, enquanto
estas são melhoramentos em obras já existentes.

Por último, estabelece também o legislador uma regra para quando ambas as partes
estiverem de má-fé, neste caso o proprietário adquire a plantação ou construção,
devendo ressarcir o valor destas acessões, presumindo-se a má-fé quando a
construção ou plantação tiver sido realizada em sua presença sem impugnação (art.
1.256 e § único)

148
CONSTRUÇÃO OU PLANTAÇÃO EM TERRENO ALHEIO COM MATERIAL
ALHEIO

O art. 1.257 trata da situação em que a construção ou plantação é realizada em


terreno alheio com material alheio.

O proprietário dos materiais pode cobrar do proprietário do solo a indenização


quando não puder fazê-lo do plantador ou construtor.

CONSTRUÇÃO EM ZONA LINDEIRA

Também sobre acessões regula o legislador a invasão do solo alheio por construção,
a chamada construção em zona lindeira. Estabelece para esse caso 2 regra nos arts.
1258 e 1259, dependendo se a construção excede a 1/20 do terreno ou não.

1) QUANDO A CONSTRUÇÃO NÃO EXCEDER À 1/20 DO TERRENO

Adquire o construtor a propriedade do solo invadido se de boa-fé


quando o valor da construção for superior à dessa parte invadida.
Nesse caso deverá indenizar o proprietário pelo valor que represente
a área perdida + a desvalorização da área remanescente (art. 1.258)

Adquire o construtor a propriedade do solo invadido se de má-fé


quando o valor da construção exceder consideravelmente o da área
invadida e a demolição possa causar grave prejuízo à construção.
Nesse caso deverá indenizar o décuplo do valor estabelecido acima,
ou seja: valor da área perdida + desvalorização da área remanescente
(§único, 1.258).

Devemos ainda concluir que não é toda construção em solo alheio,


que gerará a aquisição da propriedade pelo invasor, essa só ocorrerá
quando o valor da construção for superior ao da área invadida.

Lembrando por último que essa construção é aquela feita


parcialmente em solo próprio que invade parte do solo alheio.

2) QUANDO A CONSTRUÇÃO EXCEDER A 1/20 DO TERRENO

149
Adquire o construtor a propriedade do solo invadido se de boa-fé,
devendo a indenização ser calculada sobre o valor que a invasão
acrescer à construção + a área perdida + desvalorização da área
remanescente (art. 1.259, primeira parte).

Se de má-fé, não poderá adquirir e será obrigado a demolir o que nele


construiu pagando ainda perdas e danos ao proprietário que serão
devidas em dobro (art. 1.259, segunda parte).

Apesar do legislador não se referir expressamente, essa construção a


que se refere este artigo é também aquela feita parcialmente em solo
próprio que invade solo alheio, pois se feita totalmente em solo
alheio, aplicaremos as primeiras a regra do art. 1.255 de acessão,
construção em terreno alheio com material próprio.

150
IV AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE MÓVEL

SUMÁRIO: 4.0 Considerações gerais; 4.1 Usucapião; 4.2 Ocupação; 4.3 Achado de
tesouro; 4.4 Tradição; 4.5 Especificação; 4.6 Confusão, Comistão, Adjunção

4.0 Considerações gerais

Separa o legislador as causas de aquisição da propriedade imóvel da móvel. Se bem


que também uma dessas causas é o usucapião.

O CC anterior regulava em um só capítulo as causas de aquisição e perda da


propriedade móvel, neste separou o legislador as causas de aquisição com as de perda. E
assim são reguladas neste capítulo 6 causas de perda: usucapião; ocupação; achado do
tesouro; tradição; especificação; confusão, comistão e adjunção.

Comecemos também pela ordem do legislador com o usucapião.

4.1 Usucapião

Não difere o instituto da usucapião de coisa imóvel e móvel, apenas perde este em
importância.

O legislador estabelece nos arts. 1.260 e 1.261 duas espécies de usucapião, as quais
podemos equipará-las com o usucapião ordinário e extraordinário.

Apresenta-se dessa forma o usucapião de coisa móvel para nosso legislador:

USUCAPIÃO EXTRORDINÁRIO ORDINÁRIO

DISPOSIÇÃO LEGAL 1.261 1.260

REQUISITOS posse + tempo (5 anos) posse + tempo (3 anos) +


justo título + boa-fé

A posse também há que ser pública, contínua e incontestada.

151
Não podemos confundir a aquisição por usucapião com a ocupação, esta é a
aquisição de uma coisa sem dono, abandonada. Na usucapião a aquisição surge em
decorrência do tempo de posse.

O fato de podermos encontrar coisa móvel e dela com a ocupação adquirirmos a


propriedade retira do usucapião sua importância, ou pelo menos, sua abrangência. Com a
coisa imóvel isso não ocorre pois esta não se adquire com a ocupação, é sempre necessário
o decurso do tempo. Mas se posso adquirir uma propriedade móvel abandonada, quando
que deverei usucapir para adquirir-lhe a propriedade? Quando esta não tiver sido
abandonada. Mas se a coisa foi perdida, devo entregá-la ao dono. Veja que o espaço
possível do usucapião fica muito reduzido, se é abandonada, adquiro a propriedade
imediatamente e se é perdida, sou obrigada a entregar ao dono.

Quando se pensa em um bem móvel economicamente interessante, lembramos


imediatamente do carro. É possível adquirir por usucapião um carro? A resposta é sim. Mas
e se o carro estiver abandonado não poderei por ocupação adquiri-lo? A resposta também é
sim, mas demonstrar o abandono de um carro não é tão fácil quanto demonstrar o abandono
de um livro, de um sofá. E se este estiver perdido, por exemplo, foi furtado e deixado em
um local, a obrigação é devolvê-lo, nesse caso comunicar à polícia.

Entende o STJ que a posse de um bem roubado não gera usucapião.119

É curiosa essa conclusão, pois afinal um bem imóvel pode ser ‘roubado’ no sentido
de violentamente tomado de seu proprietário, e mesmo assim gerará usucapião para esse
que tomou. Mas para o bem móvel essa situação não pode se aplicar, pois ao ser roubado o
proprietário não tem como agir, pois nem sequer sabe onde está o bem, por isso a
preocupação de se afirmar que esta posse não gera usucapião, pois afinal o proprietário
nada pode fazer para impedir a prescrição aquisitiva.

Por outro lado em se tratando de carro é comum que após a posse, no decurso de
prazo legal, se requeira usucapião para consolidar o direito e poder efetivar a transferência
no registro.

Também não pode ser confundida no usucapião de coisa móvel a detenção, a posse
por mera permissão ou tolerância. Se o carro, o computador, o dvd foi emprestado isso não

119 Conforme decisão da Terceira Turma em REsp 247345/MG.

152
configura posse, a não se que o decurso do tempo faça presumir que aquele que possui o faz
com animus domini.

No mais se aplica ao usucapião de coisa móvel todas as disposições sobre o


usucapião de coisa imóvel, as características da posse, as vedações.

4.2 Ocupação

Estabelece o art. 1.263 que “quem se assenhorear de coisa sem dono para logo lhe
adquire a propriedade, não sendo essa ocupação defesa por lei”.

Trata o legislador da “coisa sem dono”, se bem que conforme explica o prof.
Washington de Barros Monteiro prevê o dispositivo tanto a ocupação das res derelictae
(coisas abandonadas ou renunciadas) como das res nullius (coisas sem dono).120

As coisas comuns também podem ser apropriadas parcialmente, como rios, mares.121

É difícil imaginar hoje em dia algo sem dono, mas é possível que algo seja
abandonado. O abandono é uma das hipóteses legais de perda da propriedade e pressupõe
sempre a intenção.

Claro que a demonstração dessa intenção não é algo fácil, afinal ninguém abandona
um bem com uma carta avisando que se trata de abandono, esse deve sempre ser
presumido.

Mas remetemos o leitor nesse momento ao capítulo que tratamos do abandono onde
essa questão será melhor desenvolvida.

Como exemplo de coisas sem dono, mas por que comuns, podemos lembrar a
aquisição pela caça e pela pesca. Ambas constavam do CC anterior, não constam mais
deste, ma constituem objeto de leis especiais.

Historicamente como nos lembra Washington de Barros Monteiro o direito de


ocupação foi o primeiro e o mais importante dos modos de adquirir o domínio.

120
Estabelecia o código passado expressamente no §único do art. 592 que “volvem a não ter dono as coisas
móveis, quando o seu as abandona, com intenção de renunciá-las”.
121Como explica Washington de Barros Monteiro, as coisas comuns (res communis omnium) comportam
apropriação parcial; rios e mares não podem ser apropriados em seu todo, mas nada impede a apropriação de
uma parte, Curso, p. 188.

153
4.3 Achado do tesouro

Denomina-se tesouro o depósito antigo de coisas preciosas, oculto e de cujo dono


não haja memória.122

Disciplina o CC em 3 artigos a quem caberá a propriedade desse tesouro quando


encontrado.

Há 3 hipóteses previstas pelo legislador: a 1ª é quando o tesouro é achado


casualmente por um terceiro: neste caso o tesouro será dividido entre o que achar e o
proprietário (art. 1.264); a 2ª é quando o tesouro é encontrado pelo próprio proprietário do
prédio ou em pesquisa que ele ordenou: nesse caso o tesouro pertence integralmente ao
proprietário (art. 1.265) e a 3ª regra conclui como a primeiro apenas trata o legislador do
achado em terreno aforado: nesse caso a propriedade pertence toda ao enfiteuta se foi ele
quem achou, ou pertencerá ao enfiteuta e ao descobridor se por este encontrada (art. 1.266).

Estabelece Washington de Barros Monteiro 3 requisitos para que seja considerada


aquisição por essa modalidade: a) tratar-se de depósito antigo de moedas ou objetos
preciosos, como vasos e jóias; b) não restar memória de seu dono; c) estar oculto ou
enterrado; d) que a descoberta seja casual.123

Logo, por esses requisitos podemos concluir que não é achado de tesouro quando se
sabe o dono ou quando este aparece para reclamar a propriedade, assim também como não
o é, quando o achado não foi casual.

Discutia alguns autores se o tesouro deve ser encontrado em imóvel, p. ex.


enterrado em um terreno, ou se poderia ser encontrado em um móvel, afinal o legislador
fala em proprietário do prédio. Mas deve ser também considerado tesouro, quando se
encontra em bem móvel, p. ex., dentro de um armário antigo ou caído atrás de uma gaveta,
desde que preencha os mesmos requisitos descritos acima.

A importância dessa matéria deve ter sido tanta para o legislador que constitui
inclusive crime achar tesouro em prédio alheio e se apropriar, no todo ou em parte, da quota
a que tem direito o proprietário (art. 169, §único, I).

122 Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil, p. 298.


123 Curso, p. 191.

154
4.4 Tradição

Tradição é a entrega da coisa ao adquirente, o ato pelo qual se transfere a outrem o


domínio de uma coisa, em virtude de título translativo da propriedade.124 É o equivalente do
registro na propriedade móvel. Enquanto a propriedade imóvel se adquire com o registro, a
propriedade móvel se adquire com a tradição (art. 1.226).

Isso quer dizer, assim como na propriedade imóvel, que não é o contrato que
transfere a propriedade, é necessário a tradição, antes dela há um direito pessoal do
comprador, mas este ainda não é proprietário.

Dividem-na em três espécies: real, simbólica e ficta.

É real quando concretizada pela entrega efetiva da coisa; é simbólica quando


traduzida por ato representativo da transferência da coisa (ex. entrega das chaves) é ficta
quando decorrente do constituto possessório (em que o transmitente continua na posse da
coisa, não mais em seu nome, porém em nome e por conta do adquirente).125

Sem necessidade de maiores explicações, a tradição real e a simbólica, se faz, por


sua vez, necessário a explicação da tradição ficta pelo constituto possessório.126

O CC anterior tratava do constituto possessório tanto na aquisição da posse (art. 494,


IV) quanto nas hipóteses de perda da posse (art. 520, V). O legislador atual somente se
refere ao constituto possessório na tradição.

Não que o instituto tenha perdido em importância, essa tradição ficta é muito
comum nos contratos, principalmente no de compra e venda, tanto de propriedade móvel
quanto de propriedade imóvel. Por ela o comprador/adquirente tem a posse transferida pelo
vendedor/transmitente, mesmo que efetivamente o bem vendido ainda esteja no poder físico
do antigo proprietário. E este que antes a possuía como proprietário agora a possuirá como
possuidor direto, e o comprador se tornará possuidor indireto.

124 Washington de Barros Monteiro, Curso, p. 200.


125 Idem ibidem, p. 201.
126
O tema já foi explorado no capítulo da aquisição e da perda da posse, ao qual remetemos o leitor nesse
momento.

155
Por esse direito vim inserido em contrato, é também conhecido por cláusula
constituti.

É de grande importância nas relações negociais em que a venda não vem seguida da
efetiva tradição. Quando se trata de propriedade imóvel há a transferência negocial da posse
e também a inversão do título de posse do proprietário, quando se trata de propriedade
móvel há a transferência da propriedade, por essa tradição ficta.

A transferência que ocorre na alienação fiduciária é ficta. Pois o credor torna-se


proprietário do bem, mesmo que efetivamente não tenha havido uma tradição. Quando o
comprador adquire um carro e o financia, transfere para o credor (financiador) a
propriedade como garantia e torna-se possuidor do bem. Aquele tem a propriedade por uma
ficção jurídica, pois não recebeu o bem.

Estabelece também o §único do 1.267 que subtende-se a tradição quando o


transmitente cede ao adquirente o direito à restituição da coisa que se encontra em poder de
terceiro, ou quando o adquirente já está na posse da coisa, por ocasião do negócio jurídico.

Se o comprador já está na posse de um bem a título de empréstimo, quando adquire-


a comprando, subtende-se a tradição.

Também trata o legislador de outras regras acerca da tradição. Preocupa-se em


estabelecer que se feita por quem não seja proprietário, não alienará a propriedade, assim
também como se tiver por título um negócio nulo, não transferirá a propriedade (art. 1.268
e §2°).

Mas por sua vez ameniza esta regra ao estabelecer, primeiro, que se foi oferecida ao
público ou em estabelecimento comercial, cujas circunstâncias façam presumir a
legitimidade da transferência considera-se havida a tradição e segundo, se o alienante
realizou a tradição não era o proprietário e o adquirente estava de boa-fé, poderá
posteriormente haver a revalidação da tradição quando o alienante adquirir posteriormente
a propriedade.

É comum ainda se utilizarem de expressões latinas para designar os personagens


desta aquisição. Assim aquele que transfere é o tradens e aquele que adquire pela tradição é
o accipiens. E a tradição por sua vez, é a traditio.

156
4.5 Especificação

Especificação é o modo de adquirir a propriedade, mediante transformação de coisa


móvel em espécie nova, em virtude do trabalho ou da indústria do especificador, desde que
não seja possível reduzi-la à sua forma primitiva.127

Apesar dessa designação tão vestuta, são especificadores o escultor, o ourives, o


marceneiro e a indústria.

Preocupa-se o legislador em estabelecer regras sobre a especificação para definir a


propriedade do bem transformado quando o especificador se utiliza de matéria alheia, pois
claro, se transforma a sua própria matéria prima é dele a propriedade.

Assim, o especificador é dono:

a) quando a matéria-prima lhe pertença, ainda que em parte somente (art. 1269);

b) quando a matéria-prima é alheia, mas o especificador se acha de boa-fé (art.


1270, caput);

c) quando a espécie nova exceder consideravelmente o valor da matéria-prima (§2°,


1.270)

O especificador não é dono:

a) quando sendo a matéria-prima alheia, mesmo que em parte, nesta for praticável a
redução à forma originária (art. 1270, §1º);

b) se a espécie nova se obteve de má-fé (art. 1270, §1º)

As regras são simples: primeiro devemos perguntar se é possível restituir o bem à


forma anterior, se for, esta deverá ocorrer, segundo devemos perguntar se o especificador
estava de boa-fé, pois se estiver de má-fé, mesmo que seja possível restituir á forma
anterior perderá o bem. Haverá somente uma exceção que é quando a espécie nova exceder
consideravelmente o valor da matéria-prima, nesse caso, mesmo de má-fé o especificador
será dono, mas deverá indenizar o proprietário da matéria-prima (art. 1.271).

127Washington de Barros Monteiro, Curso, p. 193.

157
E em qualquer caso aqueles que sofrerem dano poderão tê-lo ressarcido, menos o
especificador de má-fé quando impraticável a redução à matéria-prima, nesse caso perderá
o bem sem direito à indenização.

4.6 Confusão, comistão e adjunção

Podem as coisas mesclar-se ou interpenetrar-se de tal maneira que não mais seja
possível separá-las, desmembrá-las ou distingüi-las. Quando a mistura se verifica entre
coisas líquidas, ou liquefeitas, existe confusão, entre coisas sólidas, ou secas, comistão e
quando ocorrer justaposição de uma coisa a outra, adjunção.128

Para o CC importa diferenciar se a mistura foi voluntária ou involuntária e não


sendo possível a quem caberá a propriedade.

As regras estabelecidas pelo legislador são as seguintes:

a) se não é possível separá-las, a cada um dos proprietários caberá quinhão


proporcional ao valor da coisa (§1°, 1.272);

b) se, não sendo possível separá-las mas uma das coisas puder ser
considerada a principal, o dono desta também será do todo que se formar,
cabendo indenizar os demais (§2°, 1.272);

c) se esta ocorreu de má-fé, poderá optar a parte que assim não agiu em
adquirir a propriedade no todo, pagando a parte que não foi sua, ou
renunciar ao que lhe pertencer mediante indenização (art. 1.273).

A última regra destas formas de aquisição trata da possibilidade de da união destas


matérias de natureza diversa formar-se espécie nova, nesse caso ocorrerá especificação e as
suas regras deverão ser aplicadas.

128 Washington de Barros Monteiro, Curso, p. 196.

158
V PERDA DA PROPRIEDADE

SUMÁRIO: 5.0 Perda da propriedade; 5.1 Alienação; 5.2 Renúncia; 5.3 Abandono;
5.3.1 Abandono do bem imóvel; 5.3.2 Arrecadação do bem abandonado; 5.3.3
Procedimento da arrecadação de bem vago; 5.3.2 Abandono de bem móvel; 5.4
Perecimento da coisa; 5.5 Desapropriação; 5.5.1 Espécies; 5.5.2 Legitimidade para
desapropriar (quem pode desapropriar?); 5.5.3 Legitimidade para ser desapropriado
(quem pode sofrer desapropriação?); 5.5.4 Objeto da desapropriação 5.5.5
Retrocessão; 5.5.5 Processo desapropriatório; 5.5.6 Desapropriação e função social da
propriedade (desapropriação sancionatória).

5.0 Perda da propriedade

O CC, com relação à aquisição da propriedade, contemplou dois capítulos distintos


para tratar da propriedade imóvel e da propriedade móvel. Porém, com relação à perda da
propriedade, o fez somente em um capítulo intitulado DA PERDA DA PROPRIEDADE, o
que nos leva a concluir que refere-se o legislador à propriedade móvel e imóvel.

Não era desta forma o CC anterior, que reservava um capítulo para a aquisição e
perda da propriedade móvel e outro para a perda da propriedade imóvel.

Só para efeito de comparação, a ordem do CC anterior era: AQUISIÇÃO DA


PROPRIEDADE IMÓVEL; AQUISIÇÃO E PERDA DA PROPRIEDADE MÓVEL E
PERDA DA PROPRIEDADE IMÓVEL.

A ordem do atual CC é: AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE IMÓVEL;


AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE MÓVEL E PERDA DA PROPRIEDADE.

Curioso realizar esta comparação, pois, se num primeiro momento nos parece mais
técnica a descrição atual, em outro nos perguntamos se as causas de perda da propriedade
são as mesmas tanto para o bem móvel quanto para o bem imóvel?

Enumera o art. 1.275 as cinco causas de perda da propriedade: I- alienação; II-


renúncia; III- abandono; IV- perecimento da coisa e V- desapropriação.

Mas, estabelece o caput do artigo que além destas descritas nestes 5 incisos existem
outras causas consideradas neste código.

Quais seriam estas outras causas consideradas neste código?

Poderíamos começar com as causas de aquisição da propriedade; pois, se estas de


um lado representam a aquisição, de outro representam a perda. Fiquemos com o exemplo

159
do usucapião. O usucapião é uma forma de aquisição da propriedade, mas é também de
perda. E isso ocorre com todas as causas de aquisição da propriedade móvel e imóvel.

E, por isso, foi mais técnico o legislador na descrição atual em não misturar as
causas de aquisição com as de perda e enumerar em um único artigo as causas de perda que
tanto servem para a propriedade imóvel como para a móvel.

Também podemos observar que não descreve o legislador como causa de perda da
propriedade o não-uso. Pois como observa Washington de Barros Monteiro, a prescrição
extintiva não se aplica ao direito de propriedade, de molde a acarretar-lhe a perda. O não-
exercício desse direito, por mais prolongado que seja, não o aniquila, não o extermina.129

Comecemos então pela alienação.

5.1 Alienação

Alienação conforme Washington de Barros Monteiro é o ato pelo qual o titular


transfere a outra pessoa sua propriedade.130

Essa transferência pode ocorrer a título gratuito, como no caso da doação, ou a título
oneroso, como no caso da compra e venda.

Já para Orlando Gomes alienação é o ato pelo qual o proprietário, por vontade
própria, transmite a outrem seu direito sobre a coisa.131

Reside aqui uma grande diferença na definição desses dois autores: é que sendo a
alienação a transferência voluntária da propriedade, não seriam transferência, logo
alienação, a desapropriação e também outros atos involuntários, como a arrematação no
processo de execução, que involuntariamente transmite para o arrematante a propriedade do
bem do devedor.

Conforme determina o parágrafo único do art. 1.275 a alienação só gera a perda da


propriedade com o registro.

129 Washington de Barros Monteiro, Curso, p. 169.


130 Curso, p. 169.
131 Direitos Reais, p. 185.

160
Mas aqui cumpre observar uma diferença entre a propriedade móvel e imóvel.
Enquanto para esta o registro representa a forma de aquisição da propriedade, logo sem ele
não ocorre a transferência da propriedade (art. 1.227), para o bem móvel esta só ocorre com
a tradição (art. 1.226).

Sendo assim, a determinação do legislador de que a perda da propriedade na


alienação está subordinada ao registro do título só tem efeito para a propriedade imóvel.
Até por isso, o legislador é expresso em referir-se ao registro do título transmissivo ou do
ato renunciativo no Registro de Imóveis.

Registre-se, então, uma diferença desta forma de perda da propriedade para o bem
móvel e para o bem imóvel.

5.2 Renúncia

Podemos renunciar aos nossos direitos; da mesma forma como renunciamos a um


direito de crédito, podemos renunciar à propriedade. Porém, para que a renúncia seja
diferente do abandono é mister que ela se efetive de modo explícito. Isto porque não é
renúncia o ato de não-usar o bem, ou de não exercer o direito, como no direito de crédito.
Enquanto não se operar a prescrição extintiva para este e a aquisitiva para aquele, não
ocorrerá a perda do direito.

É por isso que o legislador, no mesmo parágrafo único do art. 1.275, estabeleceu
que, para se efetivar a perda da propriedade pela renúncia, é necessário o registro do ato
renunciativo no Registro de Imóveis.

Mas se para os bens imóveis é necessário o registro, para os bens móveis o


legislador nada observou, levando-nos a concluir que para estes a renúncia não necessita de
nenhuma exigência para se efetivar.

Nos casos dos bens móveis é difícil estabelecer uma diferença entre renúncia e
abandono. Como saber se o bem foi renunciado ou abandonado se para distinguir esses atos
a lei nada exige?

Podemos inclusive ousar afirmar que, em se tratando de bens móveis, a renúncia e o


abandono são sinônimos. Imagine um livro encontrado em um terreno, houve renúncia ou
abandono? É indiferente. Os dois implicam na mesma conseqüência. Principalmente

161
porque, em se tratando de bens móveis, uma das formas de aquisição, como vimos, é a
ocupação, o que não ocorre na propriedade imóvel; aquele que dela se ocupa não adquire a
propriedade, e, por isso, é possível estabelecer uma diferença entre renúncia e abandono na
propriedade imóvel.

Orlando Gomes afirma que a renúncia independe do abandono material da coisa,


mas isso só se aplica aos bens imóveis, que para terem caracterizada a perda da propriedade
necessitam de registro. Como afirmar que houve renúncia de um bem móvel que permanece
na posse da pessoa? Claro que não podemos realizar essa afirmação nos bens móveis; não
posso ter renunciado a um relógio, com ele no meu pulso. É difícil imaginar e qualquer
diferença se estabelece somente em nível teórico.

Mais uma vez nos encontramos diante de uma diferença entre os institutos de perda
da propriedade, para a coisa móvel e imóvel.

A renúncia é um ato unilateral e para valer não necessita de aceitação de quem quer
que seja, como bem observa Orlando Gomes.132

A pergunta que nos resta é: renunciando-se ao bem, outrem adquire a propriedade?


Quem se torna proprietário de um bem renunciado?

A renúncia é um ato unilateral e para realizá-lo não se depende da aceitação de


ninguém. Mas para renunciar ao bem imóvel, como vimos, é necessário o registro. Em
ocorrendo isso, o bem renunciado se torna res nullius, coisa sem dono. Então, a perda da
propriedade, nesse caso, não implica na aquisição por outro. Pois, em se tratando de
propriedade imóvel, somente o usucapião do ocupante pode levar à aquisição. Mas como a
coisa sem dono é também uma coisa abandonada, poderá, como veremos, ser arrecadada
pelo Município como bem vago, caso ninguém a esteja ocupando.133

Na renúncia da propriedade móvel, que se identifica com o abandono, a perda da


propriedade também não equivale à aquisição, pois essa só ocorrerá quando alguém tomar
posse, ou seja, com a ocupação.

132 Direitos Reais, p. 185.


133Afirma Fábio Ulhôa que a renúncia pode se operar em favor de alguém, mas acreditamos estar equivocado
o autor, pois a renúncia é ato unilateral e, se ocorrer em favor de alguém, será se gratuita, doação e se onerosa,
cessão.

162
5.3 Abandono

Abandono é diferente de renúncia. E também é diferente do não-uso. É necessário,


dizem os autores, a intenção de abandonar.

Mas se tudo parece fácil num primeiro momento é difícil explicar na prática essa
diferença.

Define abandono Orlando Gomes como o ato pelo qual o proprietário se desfaz da
coisa que lhe pertence, por não querer continuar seu dono.134

Mas como configurar o abandono, como saber se uma coisa foi ou não abandonada?

Dizem serem dois os requisitos do abandono:

1- a derrelição da coisa;

2- o propósito de não a ter mais para si.135

Os requisitos, porém, não nos levam a responder a questão anterior: como


configurar o abandono?

Haverá diferença no abandono do bem móvel e do bem imóvel. A princípio não.


Porém algumas situações levam a diferenciá-lo e por isso comentaremos em separado.

5.3.1 Abandono do bem imóvel

Comecemos então pelos bens imóveis: como configurar o abandono do bem


imóvel?

Se o abandono é diferente do não-uso, como então saber se o imóvel foi


abandonado, como caracterizar esse elemento intencional: o propósito de não ter mais o
bem para si?

Apesar de afirmarem que o abandono é diferente do não-uso, esse só se caracteriza


com o não-uso. Porém o não-uso por si só não é suficiente, pois o bem pode não estar
sendo usado dentro de uma situação de normalidade. Por exemplo: um imóvel na praia é
usado pelos proprietários nas férias de final de ano, mas não é usado durante todo o resto do

134 Op. cit. p. 185.


135 Curso, p. 170.

163
ano. E esse não-uso não caracteriza abandono. Pois é normal que tais imóveis sejam usados
periodicamente, sazonalmente.

É evidente que para abandonar é preciso não usar, mas o não-uso tem que ser
analisado junto a outros elementos que tornem possível definir o abandono. E óbvio que
esse propósito de não ter o bem mais para si, tem que ser compreendido através dos
elementos que conduzem a essa interpretação, pois o proprietário não formalizará o
abandono, deixando uma carta no bem àquele que primeiro dele tomar conhecimento de
que o bem foi abandonado.

O abandono se caracteriza por atos externos, como a falta de cuidados com o bem,
telhado caindo, muro despencando, mato crescendo etc. Mas não só estes, é preciso
também analisar a relação entre o bem e sua finalidade, como dissemos acima: uma casa no
campo, na praia é comum ficar sem uso por quase todo um ano, mas uma casa na cidade é
incomum ficar sem uso e sem cuidados.

Se o abandono gera a perda da propriedade, como nos diz o código, não gera por
outro lado a aquisição, pois se for imóvel dependerá de usucapião do particular e se for
móvel dependerá de aquisição.

Mas é curiosa a análise dessa causa de perda na propriedade imóvel, pois se por um
lado foi abandonada, por outro o registro ainda continua em nome do ‘anterior’
proprietário, e o IPTU continua incidindo, assim como todas as outras taxas, lixo, luz, água,
etc. Como fica o pagamento destes, quem as deve, se o bem foi abandonado? A mesma
pergunta caberia no caso de renúncia, renunciando ao bem, a quem incide esses tributos?

5.3.2 Arrecadação do bem abandonado

Se o abandono do bem imóvel não gera, por outro lado, a aquisição da propriedade,
pois o particular dependerá para adquirir de usucapir, o Poder Público, por sua vez, pode
arrecadar esse bem. Esta é a possibilidade do art. 1.276: O imóvel urbano que o
proprietário abandonar com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que
se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar,
três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas
respectivas circunscrições.

164
Os requisitos para essa arrecadação são:

1- abandono;

2- não se encontrar na posse de outrem.

Para isso, o município presumirá o abandono por aqueles atos descritos


anteriormente e em constatando-o, arrecadará o imóvel como bem vago. Se o imóvel for
situado na zona rural, a arrecadação se dará pela União, como determina o § 1º do art.
1.276.

Haverá ainda uma presunção legal de abandono no caso de não pagamento dos
tributos incidentes sobre a propriedade (§ 2º do art. 1.276).

E, nesse caso, o legislador não determina prazo: quanto tempo é necessário ficar
sem pagar tributos (iptu, luz, água...) para presumir-se o abandono?

Mais uma vez se trabalhará com presunções subjetivas: 1 ano sem pagar iptu é
pouco e comum, mas 1 ano sem pagar conta de luz é muito, afinal o vencimento desta é
mensal, enquanto o daquele é anual.

Sobre isso concluiu a III Jornada do STJ que “A presunção de que trata o CC 1276
§2º não pode ser interpretada de modo a contrariar a norma-princípio da CF 150 IV”. Esta
norma constitucional proíbe que o imposto seja utilizado com efeito de confisco. Deverá se
levar conta estas presunções acima analisadas. Arrecadar um imóvel por 1 ano sem pagar
IPTU é valer-se do imposto para confiscar a propriedade.

É preciso também que o imóvel não se encontre na posse de outrem. Essa outra
pessoa não precisa ser o proprietário, afinal o bem foi por ele abandonado. O legislador se
refere a um terceiro que ocupe o bem. Para o Município ou União arrecadar como bem
vago, é preciso, como lhe diz o nome, que o imóvel esteja vago. Claro que essa ocupação
por outrem não gera a propriedade, mas com o tempo poderá gerar pelo usucapião. E, sendo
assim, o Município ou União não poderá arrecadar como bem vago.

5.3.3 Procedimento da arrecadação de bem vago

O procedimento da arrecadação de bem vago é judicial e de jurisdição voluntária. O


CPC o estabelece nos arts. 1.170 a 1.176.

165
Requererá o Município ou a União a arrecadação citando o proprietário
pessoalmente, quando se souber e esse for encontrado no endereço, ou por edital, quando
não o localizar (o que será o mais comum). Dentro do prazo legal, caso não haja
manifestação do proprietário ou de interessados, como parentes, por exemplo, o bem será
decretado vago e arrecadado pelo requerente. Após 3 anos dessa decretação judicial, o
Município ou União requererá a transferência da propriedade, também judicialmente, neste
mesmo processo.

A dicção legal é ...poderá ser arrecadado como bem vago e passar 3 anos depois à
propriedade do Município.., mas, essa transferência não é imediata. Dependerá de sentença
e mandado judicial, pois como se sabe somente o judiciário pode alterar o registro, além do
proprietário.

Também concluiu a III Jornada do STJ que “A aplicação do CC 1276 depende do


devido processo legal, em que seja assegurado ao interessado demonstrar a não-cessação da
posse”.

5.3.4 Abandono do bem móvel

O abandono do bem móvel, como vimos, identifica-se com a própria renúncia.

Presumir-se-á através de atos que impliquem em uma situação de abandono, sofá


deixado em um terreno vazio, livros jogados no lixo, restos de material de construção
largados em uma calçada, etc.

Um dos problemas do abandono é diferenciá-lo da coisa perdida; já tratamos disso


em capítulo anterior, ao qual remetemos o leitor.

Se o abandono de um lado gera a perda, de outro não gera a aquisição.

Mas, no caso da propriedade móvel, é mais simples, bastará a ocupação (art. 1.263).

Mas todo bem móvel pode ser adquirido por ocupação? Essa é uma pergunta
importante, pois, se a maioria dos bens móveis abandonados, por não terem maior valor
econômico, não trazem uma maior indagação, há bens móveis que guardam não só um
valor de uso bom como também de mercado.

166
5.3.5 É possível adquirir um carro abandonado?

É possível se assenhorear de um bem abandonado, conforme art.1.263 do CC; logo,


é também possível se assenhorear de um carro abandonado?

A ocupação, como vimos, é uma forma de aquisição da propriedade móvel; sendo o


carro um bem móvel é possível adquiri-lo por ocupação?

A princípio, a resposta não diverge de nenhum outro bem móvel: é também possível
adquirir por ocupação um carro abandonado. Porém, como saber que um carro foi
abandonado? Pelos mesmos vestígios que nos levam a concluir que um bem foi
abandonado: ausência de cuidados, abandono físico – o carro está naquela rua há dias etc

Porém, o carro é um bem móvel diferente de vários outros, pois possui registro,
havendo um departamento próprio para registrá-lo (DETRAN), assim como aos imóveis há
o cartório de registro. Mas, enquanto na propriedade imóvel a ocupação não é uma forma
de aquisição, aqui é. Então, voltemos à pergunta anterior: ao encontrar um carro
abandonado na minha rua posso ocupá-lo e assim adquiri-lo?

A resposta agora é não.

Porque o carro é um bem móvel que tem um aparato documental, são exigidas
algumas outras providências por parte do ocupante. A primeira é certificar-se de que esse
veículo não foi roubado e isso terá que ser feito na Polícia. A segunda é certificar-se da
propriedade do bem, pois, diferente de vários bens móveis, aqui há como se saber o dono.
E, se o dono for presente, obter dele, se possível, uma declaração desse abandono.136

É claro que todo esse raciocínio é meramente hipotético; não se abandona um


veículo de valor; geralmente quando esses são encontrados, ou são produtos de roubo, ou já
estão tão desvalorizados, por defeitos, deterioração, atrasos de multas e impostos que o
valor não compensa o seu pagamento. E, nesse último caso, o bem é recolhido ao Detran
para tornar-se sucata.

Mas, como cientistas do direito, cabe-nos analisar mesmo as hipóteses mais


incomuns, afinal a regra também se aplica a elas.

136 É por isso que afirma Sílvio Venosa que a renúncia de bens móveis pode exigir declaração expressa do
titular para conhecimento de terceiros, se o simples abandono for insuficiente para o caso concreto, não
refere-se o autor explicitamente ao carro, mas aplica-se bem a esta situação. Direito Civil, p.

167
Então, se hipoteticamente toda essa casuística se reunir: abandono do carro +
veículo não roubado + bem em estado de uso = o ocupante poderá exigir do detran o
reconhecimento desta ocupação e o novo registro em seu nome.

5.3.5 O pagamento de tributos no abandono e renúncia dos bens: quem deve?

Questão que merece também uma análise é o pagamento de tributos no abandono e


na renúncia dos bens? Quem os deve quando o bem foi abandonado?

Vamos, para responder a essas perguntas, trabalhar com termos. Diz o código que o
abandono e a renúncia são causas de perda da propriedade.

Mas se o bem for imóvel, ou alguns móveis como o carro, há um registro. O


abandono não altera esse registro. Apenas a renúncia no caso de imóveis é que pode
provocar essa alteração.

Sendo assim, quem deve os impostos cabíveis a partir do abandono e da renúncia?

Eis uma questão que não vemos enfrentada pelos autores que tratam do assunto,
mas é de uma imensa importância.

Trabalhemos com um exemplo de renúncia, pois nesta há uma data que marca o
termo inicial da perda da propriedade, o registro do ato renunciativo. A partir dessa data
incide IPTU? Caso o bem venha a ser ocupado, o imposto será devido por esses ocupantes?

No caso do abandono a questão é mais difícil, pois como precisar esse marco do
abandono? Quando o bem foi abandonado se para sê-lo não era necessário nenhum ato
formal? Não poderá haver má-fé do proprietário que abandona o bem para não mais pagar
impostos?

Respondamos primeiro com relação à renúncia. Se o bem for renunciado, poderão


surgir dois acontecimentos: primeiro, o Município ou União arrecadar como bem vago,
afinal autoriza o art. 1.276 a arrecadação do bem abandonado e com muito mais razão do
bem renunciado. Segundo, o particular dele tomar posse e nesse caso deverá este pagar os
impostos, tendo em vista a ausência de proprietário e a finalidade usucapienda desta posse.
E se houver impostos atrasados antes da renúncia: são devidos pelo proprietário-
renunciante.

168
No caso de abandono, é difícil a caracterização do marco do abandono. Mas, da
mesma forma que a renúncia o Município ou a União podem arrecadar como bem vago,
presentes aqueles requisitos anteriormente analisados. Mas se o particular ocupa o bem,
deve este pagar o imposto. De todo o período aquisitivo para à usucapião, assim como, por
exemplo, o IPVA do carro a partir do momento em que ocupou o bem. E se houver
impostos atrasados, deve ser cobrado do proprietário-abandonante.

5.4 Perecimento da coisa

O perecimento é a quarta causa de perda da propriedade e pode comparar-se à perda


de objeto do direito.

Tanto o bem móvel como o imóvel podem perecer. O perecimento tem que ser tal
que retire do bem a sua finalidade. Por exemplo, em uma batida de veículo, mesmo que não
haja mais possibilidade de conserto para torná-lo usual, a sucata é do proprietário, assim
também, como nos lembra Sílvio Venosa, no caso de animal morto, o corpo do animal é do
proprietário.

Com o perecimento, não há aquisição da propriedade por parte de outro, por ser
uma perda absoluta que não gera de outro lado a aquisição.

5.5 Desapropriação

A desapropriação é a última causa de perda da propriedade.

E de todas é a mais agressiva, pois todas as anteriores ou surgem por um ato do


proprietário, que aliena, renuncia ou abandona ou por um caso fortuito ou força maior que o
faz perder o bem, mas sem poder imputar isso a outro, pois se o bem perece em virtude de
outro surge o direito à indenização.

É por isso que alguns autores tratam da desapropriação também como uma forma de
limitação ao direito de propriedade, pois está além das forças do proprietário evitar essa
perda e, como todas as causas de limitação, deve se submeter a elas.

É instituto de direito público, e é nele que é mais profundamente estudado, mas que
importa ao direito civil pela perda da propriedade que ocasiona.

169
Está presente em nosso ordenamento desde a Constituição Imperial de 1824, e
atualmente é prevista na Constituição Federal no art. 5º, XXIV: “A lei estabelecerá o
procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse
social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos
nesta Constituição”.

Analisaremos a desapropriação naquilo que mais de perto interessa ao direito civil


enquanto causa de perda da propriedade sem nos aprofundarmos em outros aspectos que
interessam mais detidamente a um estudo de direito público.

Comecemos, então, pelas suas espécies.

5.5.1 Espécies de desapropriação

O CC anterior tratava da perda da propriedade por desapropriação em um artigo


próprio, separado das outras causas e, neste, diferenciava a desapropriação por necessidade
pública da desapropriação por utilidade pública. Não se referia à desapropriação por
interesse social.

Também nesse artigo enumerava quais eram as causas de necessidade pública e de


utilidade pública.137 Tratava-se de uma distinção também utilizada pela doutrina, na qual a
primeiro referia-se à atividade jurídica do Estado e a segunda à atividade social.

Porém, hoje legalmente não há essa diferença.

Com a edição do Decreto-lei 3.365/41, as hipóteses de necessidades fundiram-se


com as de utilidade pública e posteriormente, com a Constituição de 1946, surgiu a
desapropriação por interesse social.

Assim, apenas diferenciam-se os casos de necessidade ou utilidade com os de


interesse social. E, nesse aspecto, a diferença encontra-se na legislação: O Decreto-lei n.

137 Era esta a antiga redação do art. 590: “Também se perde a propriedade imóvel mediante desapropriação

por necessidade ou utilidade pública. § 1º. – Consideram-se casos de necessidade pública: I- a defesa do
território nacional; II- a segurança pública; III- os socorros públicos, nos casos de calamidade; IV- a
salubridade pública. § 2º. – Consideram-se casos de utilidade pública: I- a fundação de povoações e de
estabelecimentos de assistência, educação ou instrução pública; II- a abertura, alargamento ou prolongamento
de ruas, praças, canais, estradas de ferro e, em geral, de quaisquer vias públicas; III- a construção de obras, ou
estabelecimentos destinados ao bem geral de uma localidade, sua decoração e higiene; IV- a exploração de
minas.

170
3.365/41, trata dos casos de desapropriação por necessidade e utilidade pública e a Lei
4.132/62 trata dos casos de desapropriação por interesse social.

A desapropriação por interesse social surge inspirada pelo princípio da função social
da propriedade, constante da Constituição de 1946.

A CF de 1988 amplia esse rol e permite ao município desapropriar por


descumprimento da função social, art. 182, §4º, III, CF (adequado aproveitamento do solo
urbano).

A desapropriação por interesse social está ligada ao descumprimento da função


social da propriedade e o seu pagamento, como veremos, ocorrerá em títulos da dívida
pública, enquanto na desapropriação por necessidade e utilidade pública o pagamento é
prévio e em dinheiro.

Há, aqui uma espécie de sanção do legislador a esse proprietário, que permite ao
Poder Público desapropriar um bem sem ter que utilizá-lo, apenas para retirar a propriedade
daquele que, por não ter cumprido a função social, não pode ser proprietário.

5.5.2 Legitimidade para desapropriar (quem pode desapropriar?)

A legitimidade para desapropriar, ou seja, o sujeito ativo da desapropriação, é


estabelecido em lei, e aqui temos que fazer uma diferenciação entre a desapropriação por
utilidade e necessidade pública e a desapropriação por interesse social.

Desapropriação por necessidade e utilidade pública:

- art. 2º, Decreto-lei 3.365/41: União, Estados, Municípios, Distrito Federal e


Territórios.

Desapropriação por interesse social:

- art. 5º, Lei n. 4.132/62: União, Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios;

- art. 182, § 4º, CF: Competência exclusiva do Município.

A competência, como visto acima, é sempre do Poder Executivo, mas há também a


possibilidade do Legislativo desapropriar, conforme art. 8º, Decreto-lei 3.365/41. Trata-se,
por evidente, de uma situação bem mais rara e há até quem discorde, como Hely Lopes

171
Meirelles, para quem essa desapropriação é anomalia em nossa legislação, por ser tal ato
caracteristicamente de administração.138

São ainda competentes para desapropriar as Concessionárias de Serviço Público e


Estabelecimentos de Caráter Público (art. 3º, Decreto-lei, 3.365/41).

5.5.3 Legitimidade para ser desapropriado (quem pode ser desapropriado?)

Do outro lado da ação encontra-se o desapropriado, aquele que sofrerá a


desapropriação; então agora devemos responder quem pode sofrer desapropriação?

Para começar, o particular ou os bens dos particulares.

A desapropriação por necessidade ou utilidade pública pode ocorrer sobre qualquer


bem do particular, esteja ou não sendo utilizado, sendo ou não habitado, cumprindo ou não
a sua função social.

Nesta modalidade de desapropriação o que importa é se para o desapropriante há


necessidade ou utilidade pública sobre aquele bem: se ele é necessário para construir um
metrô, alargar a rua, construir um hospital, uma escola etc. Não se investiga aqui a função
que o bem exerce.,mas a função que ele irá exercer para o objetivo da desapropriação
ocorrida.

Já na modalidade de desapropriação por interesse social, a princípio devemos


responder que todos os bens particulares podem ser desapropriados, desde que não estejam
cumprindo sua função social. Ou seja, nesta modalidade de desapropriação importa a
função que o bem está exercendo e não a que ele irá exercer.

E quanto ao bem público, pode haver desapropriação?

A resposta é positiva, os bens públicos podem ser desapropriados, mas obedecendo


a uma hierarquia legal. Assim os bens do Município podem ser desapropriados pelo Estado,
Distrito Federal, Território e União. Os bens dos Estados podem ser desapropriados pela
União. E os bens da União não podem ser desapropriados pelas outras esferas executivas. É
o que determina o art. 2º, §2º, do Decreto-lei 3.365/41.

138 xxx

172
5.5.4 Objeto da desapropriação

Qual o objeto da desapropriação, ou seja, qual bem pode ser desapropriado?

Aqui estamos a nos referir à espécie de bem, qual bem pode sofrer desapropriação.

O bem imóvel é o primeiro que respondemos, afinal é o mais comum e também o de


que mais temos conhecimento.

Mas não são só os bens imóveis que podem ser desapropriados; também os bens
móveis e também os bens imateriais.

Esta é a redação do art. 2º do Decreto-lei n 3.365/41: “Mediante declaração de


utilidade pública, todos os bens poderão ser desapropriados, pela União, pelos Estados,
Municípios, Distrito Federal e Territórios”.

É nesse sentido que entendem os Tribunais que a posse também deve ser indenizada
na desapropriação, recebendo também o possuidor pelo valor da indenização.139

5.5.5 Retrocessão

A retrocessão é instituto de aplicação bastante controversa na desapropriação.

É definido como o direito que tem o expropriado de exigir de volta o seu imóvel
caso o mesmo não tenha o destino para que se desapropriou. 140

No CC encontra-se estabelecido no art. 519, porém não com esta denominação e


sim como uma hipótese de preferência na venda do bem no capítulo de compra e venda: Se
a coisa expropriada para fins de necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social,
não tiver o destino para que se desapropriou, ou não for utilizada em obras ou serviços
públicos, caberá ao expropriado direito de preferência, pelo preço atual da coisa.

139 Decidiu o STJ em 08/05/2007 em Recurso Especial (769731/PR) que o possuidor também tem direito à
desapropriação não sendo motivo neste caso para aplicação do depósito do art. 34 da Lei 3365/41. No que
concerne ao direito do possuidor pela indenização extrai-se aqui os principais trechos do julgado:“A
desapropriação atinge bens e direitos mobiliários e imobiliários, corpóreos e incorpóreos, desde que sejam
passíveis de apossamento e comerciabilidade, tenham valor econômico ou patrimonial e interessem à
consecução dos fins do Estado. Consoante jurisprudência do E. Supremo Tribunal Federal, verbis: “ Tem
direito à indenização não só o titular do domínio do bem expropriado, mas também, o que tenha sobre ele
direito real limitado bem como direito de posse” (...) “ A posse, conquanto imaterial em sua conceituação, é
um fato jurígeno, sinal exterior da propriedade. É; portanto, um bem jurídico e, como tal, suscetível de
proteção. Daí por que a posse é indenizável, como todo e qualquer bem.”
140 Di Pietro, Direito administrativo, p. 179.

173
A definição que trouxemos e a redação do art. 519 do CC já são contraditórias e nos
levam a 2 entendimentos: a retrocessão é o direito de exigir o bem caso o poder público não
dê a ele o destino para o qual foi desapropriado ou a retrocessão é somente o direito de
obter preferência quando da venda do bem que outrora foi desapropriado?

Esses entendimento também são responsáveis pela divergência da aplicação do


instituto na desapropriação, pois, se entendermos conforme o primeiro, a retrocessão é um
instituto de natureza real, pois gera o direito de seqüela de exigir o bem de volta. Mas se
entendermos conforme o segundo pensamento, a retrocessão é um instituto de natureza
pessoal, pois somente permite a preferência quando da venda do bem desapropriado.

Maria Sylvia Di Pietro resume bem esta questão ao apontar as 3 correntes que se
formaram em torno desses entendimentos:

1- Para esta corrente, a retrocessão é um instituto de natureza pessoal, por força do art. 35
do Decreto-lei 3.365/41 e do atual art. 519 do CC (antigo 1.150), pois qualquer ação sobre
o imóvel desapropriado resolver-se-á em perdas e danos, restando somente a possibilidade
de preferência quando da venda do bem. É o entendimento de Hely Lopes Meirelles, Celso
Antônio Bandeira de Mello, Clóvis Bevilácqua e Erbert Chamon. Poderíamos chamá-la de
TEORIA DO DIREITO PESSOAL;

2- Para esta corrente, subsiste o entendimento de que a retrocessão é um instituto de direito


real, permitindo ao proprietário do bem desapropriado exigi-lo de volta, caso não tenha sido
utilizado para a finalidade pública para o qual se desapropriou. Fundamentam esse
pensamento no direito de propriedade e também de que a norma do art. 35 do Decreto-lei
3.365/41 só é aplicável se a desapropriação atendeu aos requisitos constitucionais. É o
pensamento de Seabra Fagundes, José Cretella Júnior, Pontes de Miranda e Moreira Alves.
Poderíamos chamá-la de TEORIA DO DIREITO REAL;

3- Esta última corrente, vê na retrocessão, um instituto misto de direito pessoal e real,


cabendo ao expropriado a ação de preempção ou de perdas e danos. É o entendimento de
Roberto Barcelos de Magalhães. Podemos chamá-la de TEORIA MISTA.141

141 O resumo desses entendimentos foram extraídos da obra Direito Administrativo, p. 179.

174
A corrente que tem prevalecido atualmente é a primeira; assim a retrocessão é vista
como um direito pessoal de obter perdas e danos quando a administração não aplica ao bem
a finalidade para o qual foi desapropriado.

Assim, com relação ao bem expropriado podem ocorrer as seguintes situações: não
ser utilizado; ter destinação pública diversa; ter uma destinação privada, com as seguintes
soluções:

Com relação à primeira hipótese, não ser o bem expropriado utilizado, há


divergência sobre ser ou não possível a retrocessão. Para uns é possível falar
em retrocessão quando o bem não foi utilizado e para outros isso não é
possível pois a lei não estabelece prazo.

Com relação à segunda hipótese, ter o bem expropriado destinação pública


diversa, é pacífica a orientação do STJ de que, tendo uma outra destinação,
porém também de natureza pública, não há que se falar em retrocessão.142
Chama-se a isso de TREDESTINAÇÃO.

Já na última hipótese, ter o bem expropriado destinação privada,, cabe falar


em retrocessão. E é justamente essa a hipótese discutida anteriormente,
quando resumimos as 3 opiniões existentes sobre esse fato. 143 A discussão
de opinião dá-se quando o bem tem uma destinação ilícita, entendendo-se
esta como uma destinação não-pública. É aqui que divergem sobre a
aplicação do instituto da retrocessão.

142 São várias as jurisprudências nesse sentido como o REsp 847092 julgado pela 1ª T em 17/08/2006
“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA. AÇÃO
DE RETROCESSÃO. DESTINAÇÃO DIVERSA DO IMÓVEL. PRESERVAÇÃO DA FINALIDADE
PÚBICA. TREDESTINAÇÃO LÍCITA. 1. Não há falar em retrocessão se ao bem expropriado for dada
destinação que atende ao interesse público, ainda que diversa da inicialmente prevista no decreto
expropriatório.”
143 Dentro da posição dominante REsp 647340/SC, 1ª T., j. 06/04/2006: “ADMINISTRATIVO.
RETROCESSÃO. DESTINAÇÃO DE PARTE DO IMÓVEL DESAPROPRIADO À CONSTRUÇÃO DA
SEDE DA ASSOCIAÇÃO DOS SERVIDORES DO ENTE EXPROPRIANTE. TREDESTINAÇÃO
ILÍCITA. AUSÊNCIA DE UTILIDADE PÚBLICA. INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS. 1. A
utilização de parte do imóvel desapropriado como sede da associação dos servidores do ente expropriante,
reservada à recreação e lazer de seus associados, constitui tredestinação ilícita que torna cabível a retrocessão
diante da ausência de utilidade pública da desapropriação. 2. Conquanto seja a retrocessão um direito real,
havendo pedido alternativo de restituição do imóvel ou de indenização por perdas e danos, esta é a melhor
solução nessa fase recursal, em que é inviável o conhecimento da atual situação do bem. Precedente. 3.
Recurso especial provido.”

175
O particular foi alijado do seu bem, indenizado, mas teve que se submeter à
prevalência do direito coletivo sobre o seu individual e ao final não vê o bem sendo
utilizado para a finalidade pública e mesmo assim não pode exigi-lo de volta. Concordamos
com a corrente que entende ser a retrocessão um direito real de exigir de volta o bem, pois a
consideramos mais justa. Pensar desta forma é exigir maior responsabilidade dos
administradores públicos na condução de suas políticas.

Mas qual seria então o prazo prescricional para a utilização pública do bem?
Quando que o particular poderia exigir o bem de volta para quem entende ser isso possível,
ou então requerer indenização?

Não são um, mas vários os prazos a que temos que nos referir, dependendo da
modalidade de desapropriação:

Desapropriação por utilidade pública (Decreto-lei 3.365/41): entende ser de 5


anos, por aplicação do art. 10 do Decreto, o prazo para que o expropriante utilize o
bem, e para outros não haveria prazo;

Desapropriação por interesse social (Lei 4.132/62): de acordo com o art. 3º o


prazo é de 2 anos tanto para que se promova a desapropriação como para que se
adotem providências de aproveitamento do bem expropriado;

Desapropriação por interesse social da propriedade rural para reforma


agrária (art. 184, CF, Lei 8.629/93): de acordo com o art. 16 o prazo é de 3 anos a
contar do registro do título translativo de domínio para que o expropriante destine a
área aos beneficiários da reforma agrária;

Desapropriação por interesse social da propriedade urbana (art. 182, p. 4, III,


Lei 10.257/01): de acordo com o art. 8º da lei, o Município tem o prazo de 5 anos
para proceder ao adequado aproveitamento do imóvel.

De acordo com esses prazos, o poder expropriante deve dentro deles realizar a
utilização pública do bem. Caso não o faça, surgirá para o expropriado o direito de requerer

176
a retrocessão. O prazo para requerer a retrocessão é de 10 anos.144 Sendo assim,
ultrapassados esses prazos acima começaria a correr o prazo de 10 anos da retrocessão.

E quando o bem expropriado viesse a ter uma utilização privada, qual seria o prazo
para requerer a retrocessão? Também de 10 anos, só que desta vez se contaria a partir da
utilização privada do bem. Imaginemos o seguinte exemplo: desapropriação por utilidade
pública para construção de uma escola. Após 2 anos da desapropriação o poder
expropriante constrói uma associação recreativa para seus servidores públicos. A partir
desta data, conta-se o prazo de 10 anos para se requerer a retrocessão do bem.

Uma outra questão que podemos colocar é se a retrocessão se aplica da mesma


forma sendo a desapropriação por necessidade/utilidade pública ou por interesse social?

Isso porque na primeira modalidade de desapropriação há uma finalidade buscada


com a desapropriação (construir escolar, alargar rua...) mas na desapropriação por interesse
social não há uma finalidade buscada com a desapropriação, apenas essa ocorre por causa
do proprietário que não cumpre a função social.

A resposta é sim. Pois, da mesma forma que a desapropriação por utilidade pública,
a por interesse social também visa a um fim, mesmo que a causa não tenha sido esse fim.
Explico: na desapropriação por utilidade pública, a causa coincide com o fim, o bem é
desapropriado para construção de uma escola (causa) e o fim deve ser a construção dessa
escola. Já na desapropriação por utilidade pública, a causa é o descumprimento da função
social, mas o fim deve ser ou a reforma agrária ou o aproveitamento do bem, por qualquer
uma de suas formas; esse é o seu fim, não podendo o imóvel ser desapropriado para nada
ser feito.

5.5.6 Processo Expropriatório

A desapropriação ocorre por meio de um processo que compreende duas fases: a


declaratória e a executiva e esta, por sua vez, divide-se em administrativa ou judicial.145

Resumidamente, exporemos abaixo esse procedimento:

144 Esse é o entendimento da prof. Di Pietro, Direito administrativo, p. 181.


145 Di Pietro, Direito administrativo, p. 157.

177
FASE DECLARATÓRIA:

1- Declaração expropriatória: que pode ser decreto (quando é realizada pelo poder
executivo) ou lei (quando realizada pelo legislativo);

Efeitos da declaração expropriatória: a) submete o bem à força expropriatória do Estado; b)


fixa o estado do bem, isto é, suas condições, melhoramentos, benfeitorias existentes; c)
confere ao Poder Público o direito de penetrar no bem a fim de fazer verificações e
medições, desde que as autoridades administrativas atuem com moderação e sem excesso
de poder; d) dá início ao prazo de caducidade da declaração.146

FASE EXECUTÓRIA

ADMINISTRATIVA: quando houver acordo entre expropriante e expropriado a respeito da


indenização.

JUDICIAL: quando não houver acordo entre expropriante e expropriado ou quando não se
souber quem seja o proprietário.

2- Art. 11 a 30 do Decreto-lei 3.365/41

3- Petição inicial acompanhada do decreto de desapropriação

4- Imissão provisória na posse (art. 15)

5- Matéria da contestação (art. 20)

6- Laudo pericial quando houver discordância do preço (art. 23)

7- Pagamento prévio e em dinheiro (art. 32)

8- Corre durante as férias forenses

9- Não há apreciação do mérito pelo Poder Judiciário (art. 9º, Decreto-lei, 3.365/41)

5.5.7 Desapropriação e função social da propriedade (Desapropriação sancionatória)

146 Bandeira de Mello, p. 507.

178
A desapropriação é um importante instrumento da função social da propriedade. Isto
porque o desatendimento da função social da propriedade autoriza a desapropriação, que
nesse caso vem recebendo da doutrina o nome de desapropriação sancionatória.

Existem duas modalidades de desapropriação por descumprimento da função social


da propriedade: o da propriedade urbana e o da propriedade rural.

A propriedade urbana de acordo com o art. 182 da CF, regulamentado pela Lei
10.257/01, pode sofrer desapropriação quando não cumprir a função social.

E a propriedade rural, de acordo com o art. 184, regulamentado pela Lei


Complementar 76/93, pode ser desapropriada por não cumprir a função social para fins de
reforma agrária.

DESAPROPRIAÇÃO PROPRIEDADE URBANA PROPRIEDADE RURAL


SANCIONATÓRIA

Previsão legal Art. 182, § 4°, III e Lei Art. 184, caput, e Lei
10.257/01 complementar 76/93

Função social Art. 182 Art. 186

Sujeito ativo Município União

Pagamento Títulos da dívida pública de Títulos da dívida agrária, com


emissão previamente aprovada cláusula de preservação do
pelo Senado Federal, com prazo valor real, resgatáveis no prazo
de resgate de até 10 anos, em
de até 20 anos, a partir do
parcelas anuais, iguais e
segundo ano de sua emissão, e
sucessivas, assegurados o valor
cuja utilização será definida
real da indenização e os juros
em lei (art. 184, caput)
legais (art. 182, p. 4, III)

Abaixo um quadro-resumo com as formas de perda da propriedade estabelecendo


uma relação entre a propriedade imóvel X propriedade móvel, naquilo que são comum e
naquilo que os diferencia.

179
QUADRO-RESUMO DA PERDA DA PROPRIEDADE:

PROPRIEDADE MÓVEL PROPRIEDADE IMÓVEL


ALIENAÇÃO A perda da propriedade com A perda da propriedade com
a alienação só ocorre com a a alienação só ocorre com o
tradição. registro.
RENÚNCIA A lei não exige nenhum ato Para se efetivar é necessário
formal para a renúncia da o registro do ato
propriedade móvel, o que a renunciativo do direito de
faz coincidir com o propriedade.
abandono.
ABANDONO Equivale à renúncia Caracteriza-se por atos que
demonstrem a intenção de
abandonar pelo proprietário.
O Município/Distrito
Federal ou União poderá
arrecadar o bem como bem
vago e após 3 anos adquirir
sua propriedade.
PERECIMENTO DA Perece o bem móvel, assim Perece o bem imóvel, assim
COISA como o imóvel, pela sua como o móvel, pela sua
impossibilidade material ou impossibilidade material ou
jurídica jurídica
DESAPROPRIAÇÃO É possível a desapropriação É o objeto mais comum de
de qualquer bem, inclusive, desapropriação.
móvel.

180
VI DEFESA DA PROPRIEDADE

SUMÁRIO: 6.0 Considerações gerais; 6.1 Ação reivindicatória; 6.1.1 Processo e


procedimento da ação reivindicatória

6.0 Considerações gerais

Quando se fala em defesa da propriedade pensa-se naquelas ações que tem a


propriedade como fundamento, ou seja, a propriedade é a causa de pedir, são estas também
chamadas ações petitórias.

A diferença destas para as ações possessórias está justamente na causa de pedir,


enquanto naquela a causa de pedir é a propriedade nesta a causa de pedir é a posse. O
pedido é sempre a posse, requer-se a posse em uma, porque se é proprietário e na outra
porque se é possuidor.

O direito de defesa da propriedade faz parte do seu próprio conceito, é um de seus


elementos constitutivos, assim diz o art. 1228 que “O proprietário tem a faculdade de usar,
gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a
possua ou detenha”.

A este direito de reivindicar a coisa, rei vindicatio para os romanos, é que traduz-se
o direito de defesa da propriedade.

Tradicionalmente tem-se na ação reivindicatória a principal defesa da propriedade,


reivindicá-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha, diz o art.
1.228. Este direito é correlato ao de seqüela, que permite ao proprietário perseguir a coisa
onde quer que se encontre.

Mas não é só a ação reivindicatória que permite a defesa da propriedade, outras


ações também recebem este título, petitórias, porque buscam a posse, com base na
propriedade poderíamos citar a ação negatória, a ação publiciana, a ação ex empto. Mas
nesse trabalho nos restringiremos à abordagem da ação reivindicatória.

6.1 Ação Reivindicatória

181
Diz-se que a ação reivindicatória é a ação do proprietário não-possuidor contra o
possuidor não-proprietário.

A sua causa de pedir é a propriedade do autor e a posse injusta do réu (...reavê-la do


poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha). Mas essa posse injusta tem
uma extensão muito maior do que aquela do art. 1.200, pois traduz-se não só pela violência,
clandestinidade e precariedade, como também em toda posse que não tenha sido autorizada
pelo proprietário.

Diz-se então que são 3 os seus requisitos: 1) a titularidade do domínio; 2) a


individuação da coisa e 3) a posse injusta do réu.147

Para se provar a titularidade exigida é necessário, com a inicial, o documento que


comprove o registro imobiliário sob pena de indeferimento (art. 283, CPC). Situação
comum é a do comprador que não registrou a propriedade, neste caso não pode ser autor
desta ação, deverá diante da posse injusta do réu ajuizar uma ação possessória.

O segundo requisito é o da individuação da coisa. Deve o autor delimitar os


contornos de sua propriedade, para precisar a sua localização. É certo que tudo isso vem
descrito no documento de propriedade, mas deve o autor também fazê-lo na inicial.

O terceiro requisito é a posse injusta do réu. E aqui como dissemos anteriormente o


conceito guarda uma extensão muito maior do que a mera violência, clandestinidade e
precariedade, é injusta toda posse que não for autorizada pelo proprietário, ou também
como se diz, a posse sem título, sem causa jurídica.148 É réu desta ação aquele que, mesmo
sem ter agido com violência, clandestinidade ou precariedade ocupe o bem do autor. Caso
não se desse essa interpretação à qualidade do possuidor injusto para a reivindicatória, a

147 Carlos Gonçalves, p. 209 e STJ no julgamento do REsp 691963/RS: “ CIVIL E PROCESSO CIVIL.

AÇÃO DE REIVINDICAÇÃI DE IMÓVEL. PROVA DO DOMÍNIO. AUSÊNCIA. IMPROCEDÊNCIA


DO PEDIDO. ALEGAÇÃO DE PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS PARA O ACOLHIMENTO DA
AÇÃO REIVINDICATÓRIA. NECESSIDADE DE REEXAME DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE.
SÚMULA 07/STJ. 1- Nos termos da jurisprudência desta Corte, “a admissibilidade da ação reivindicatória,
que compete ao proprietário não –possuidor contra o possuidor não-proprietário, depende da prova da
titularidade do domínio, da individuação da coisa e da ‘posse injusta’ pelo réu, a teor do art. 524 do Código
Civil. (c.f. REsp 195.476/MS, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 15/04/2002. 2- Assentada pelas
instâncias ordinárias a ausência sequer de comprovação do requisito da titularidade do domínio da coisa
reivindicada, o reexame do tema, apresenta-se vedado (Súmula 07/STJ). 3- Recurso não conhecido. Rel. Min.
Jorge Scartezzini, j. em 25/04/2006”
148 Ib. idem, p. 211.

182
propriedade cederia facilmente frente à posse, pois bastaria uma ocupação sem violência,
clandestinidade ou precariedade para ceder o direito de propriedade.149

Como a propriedade não se extingue pelo não-uso, diz-se que a ação reivindicatória
é imprescritível. Pois desde que o possuidor não a tenha adquirido por usucapião, pode a
qualquer tempo o proprietário reivindicá-la.

6.1.1 Processo e procedimento da ação reivindicatória

A ação reivindicatória é uma ação de natureza real e aqui já surgem duas regras
processuais, primeiro, a de que ela é ajuizada no local do imóvel (art. 95 do CPC) e
segundo, a de que para ajuizá-la tem-se que ter autorização do cônjuge, bem como, deve
este também ser citado para a ação, como determina o art. 10 do CPC.

Tem legitimidade ativa para esta ação como vimos o proprietário, mas também já
entendeu nossos tribunais que o promissário comprador do bem possui esta legitimidade.

O rito desta ação é o ordinário, não possui, como as ações possessórias, um


procedimento especial.

É possível, pelo autor, o pedido de tutela antecipada, desde que caracterizados os


requisitos do art. 273.

Poderá por sua vez o réu alegar em defesa toda matéria de direito, atacando desde o
fato constitutivo do direito do autor até apresentar fatos modificativos, extintivos e
impeditivos do direito do autor. Poderá então alegar que não é possuidor injusto, que a sua
posse tem causa jurídica e poderá também alegar que pelo tempo que possui já adquiriu a
propriedade por usucapião.

A alegação de usucapião é uma defesa comum na ação reivindicatória, porém ao ser


reconhecida não se declara a propriedade para o réu, apenas julga-se improcedente o pedido
do autor. Para obter o efeito declaratório desta ação com o subseqüente registro, deverá o
réu ingressar com a ação própria de usucapião.

E isto porque a análise desta alegação em defesa é limitada em comparação com a


ação de usucapião, que exige a citação dos confrontantes, a citação das Fazendas,

149 Como diz Carlos Gonçalves, não fosse assim, o domínio estaria praticamente extinto ante o fato da posse,

Direito Civil, p. 211.

183
municipal, estadual e federal, a citação dos réus incertos e eventuais interessados e a
participação obrigatória do Ministério Público.

Exceção expressa a essa regra é a do usucapião especial rural e urbano, que se


alegado em defesa permite o registro da propriedade para o usucapiente, conforme art. 7º da
Lei 6.969/81 e art. 13 do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01)

Como o usucapião é uma matéria de defesa já entendeu nossos tribunais que, se não
alegado, preclui essa oportunidade, só podendo o réu alegar posse posterior à ação
reivindicatória:

“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE USUCAPIÃO. EXISTÊNCIA DE


SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO QUE JULGOU PROCEDENTE
REIVINDICATÓRIA MOVIDA PELOS RECORRIDOS CONTRA OS RECORRENTES.
EXISTÊNCIA DE COISA JULGADA COM BASE NO ART. 474 DO CPC. 1. O art. 474
do CPC sujeita aos efeitos da coisa julgada todas as alegações que poderiam ser argüidas
como matéria de defesa. 2. A sentença de procedência do pedido reivindicatório faz coisa
julgada material e impede que em futura ação se declare usucapião em favor do réu,
assentado em posse anterior à ação reivindicatória. ( REsp 332880/DF, rel. Min. Humberto
Gomes de Barros, T3, j. em 05/10/2006.”

Cabe ainda ao réu a alegação de acessões e benfeitorias e seu conseqüente pedido de


indenização, que deve ser feito em reconvenção, e também o pedido de retenção por estas.

Por último a sentença de procedência da ação reivindicatória é condenatória,


condenando o réu à entrega da coisa, aplicando-se ao seu cumprimento o art. 461-A do
CPC, sendo este somente uma fase neste processo de conhecimento, não necessitando mais,
como outrora, de um processo de execução autônomo. O juiz na sentença estabelecerá
prazo para a entrega do bem, expedindo mandado de busca e apreensão (para coisa móvel)
ou imissão na posse (para coisa imóvel) caso este não seja entregue.

E a sentença de improcedência é declaratória negativa, ou seja, declara que não


procede as alegações do autor, mas não quer dizer com isso, que julgando improcedente a
ação para o autor, declare a propriedade para o réu, este se quiser ter esta declarada deverá
em ação própria pleitea-la, salvo, como vimos, a alegação de usucapião especial, rural e
urbano em defesa.

Tem-se abaixo um organograma do procedimento da ação reivindicatória:

184
ORGANOGRAMA DA AÇÃO REIVINDICATÓRIA

Petição inicial

Citação do réu (15 dias)

Não contesta Contesta

Sentença de procedência

185
186
VII CONDOMÍNIO

SUMÁRIO: 7.0 Condomínio; 7.1 Classificação; 7.2 Condomínio geral; 7.2.1


Condomínio voluntário; 7.2.1.1 Direitos e deveres dos condôminos; 7.2.1.2 Extinção do
condomínio; 7.2.1.2.1 Divisão da coisa divisível; 7.2.1.2.2 Alienação da coisa
indivisível; 7.2.1.3 Administração do condomínio; 7.2.1.4 Renúncia do condomínio;
7.2.2 Condomínio necessário; 7.3 Condomínio edilício; 7.3.1 Natureza jurídica do
condomínio edilício; 7.3.2 Instituição, Constituição e Regulamento do condomínio;
7.3.3 Estrutura interna do condomínio; 7.3.4 Direitos e deveres dos condôminos;
7.3.4.1 Deveres dos condôminos; 7.3.4.2 Direitos dos condôminos; 7.3.5 Administração
do condomínio; 7.3.6 Extinção do condomínio

7.0 Condomínio

É comum dois ou mais sujeitos serem titulares do mesmo direito sobre o mesmo
objeto. Assim, vemos dois credores do mesmo crédito, marido e mulher titulares dos
mesmos direitos, herdeiros titulares dos mesmos bens. Quando o objeto desta comunhão é a
propriedade, é chamado de condomínio.

Já debateram os autores para explicar o condomínio em face do caráter exclusivo do


direito de propriedade.150 Porém, podemos dizer que hoje isso é uma questão superada,
ninguém discute sobre ser ou não possível esse direito e como defendê-lo.

Acostumamo-nos costumeiramente a lidar com essa situação, morando em edifícios,


comprando bens em sociedade, sendo proprietários por herança da mesma casa, sendo
proprietários por casamento dos mesmos bens, adquirindo salas comerciais em edifícios,
lojas em shopping centers, enfim, o condomínio faz parte da nossa vida moderna.

Washington de Barros Monteiro realiza uma importante classificação sobre as


espécies de comunhão:

Quanto à origem: voluntário ou convencional, eventual ou acidental e legal

Quanto ao objeto: universal e particular

Quanto à sua forma: pro diviso e pro indiviso

150 Analisa bem esta questão Fábio Ulhôa quando observa que “Dois ou mais sujeitos podem simultaneamente

titular o mesmo direito sobre um único objeto. No campo do direito obrigacional, nunca se problematizou
essa hipótese (...) No direito das coisas, porém, a pluralidade subjetiva ou a simultaneidade de direitos iguais
sobre o mesmo objeto desperta por vezes na tecnologia civilista brasileira, certa resistência. Como admitir que
o direito de propriedade, por essência excludente, pode ser partilhado?” (Curso, p. 121).

187
O condomínio é voluntário ou convencional quando surge do acordo de vontade dos
condôminos. É eventual ou acidental quando surge por causa estranha à vontade dos
condôminos, como na sucessão. É legal quando decorre da lei, como é o caso do
condomínio de cercas e muros, art. 1.327 CC. É universal quando abrange a totalidade da
coisa, inclusive frutos e rendimentos e particular, quando se restringe a determinadas coisas
ou efeitos. É pro diviso, como explica o autor, a comunhão que existe de direito, mas não
de fato, uma vez que cada condômino já se localiza numa parte certa e determinada da
coisa. E é pro indiviso a comunhão que perdura de fato e de direito.151

Mas, a classificação mais importante, sem dúvida, é quanto à forma, que divide o
condomínio em pro diviso e pro indiviso. Veremos mais à frente que é esta a que mais
repercussões traz do ponto de vista jurisprudencial.

7.1 Classificação

Classifica-se o condomínio, de acordo com o CC, em geral e edilício. E aquele, por


sua vez, ainda se classifica em voluntário e necessário ou legal.

O condomínio edilício não constava do código civil anterior; era regulado apenas
pela lei 4.591/64 que tratava das incorporações imobiliárias.

151 Washington de Barros Monteiro, Curso, p. 206.

188
VOLUNTÁRIO (art. 1.314)

GERAL

NECESSÁRIO OU LEGAL (art. 1.327)

CONDOMÍNIO

EDILÍCIO (art. 1.331)

7.2 Condomínio Geral

Sob o título condomínio geral, classificou o legislador duas situações: o condomínio


voluntário e o condomínio necessário. Há uma quase identificação com a classificação do
condomínio quanto à origem. Faltou o condomínio eventual. Porém, esta classificação trata
apenas de investigar a origem na formação do condomínio, pois, com relação às normas,
essas são as mesmas para o condomínio voluntário e eventual.

Iniciemos, então, pelo condomínio voluntário.

7.2.1 Condomínio Voluntário

Como vimos, sob o título condomínio geral, trata o legislador da relação entre os
proprietários e a coisa. Assim, quando se fala de uma casa que pertencem a dois
proprietários, está se falando, na linguagem do nosso legislador, de um condomínio geral.
Mas, quando se fala de um apartamento em um prédio, estamos nos referindo ao
condomínio edilício. Em um apartamento de um prédio pode haver condomínio, por
exemplo, quando duas pessoas titularem a sua propriedade e, nesse caso, estamos nos

189
referindo ao condomínio geral-voluntário. O condomínio edilício irá dizer respeito a essa
propriedade exclusiva convivendo ao lado de propriedades conjuntas.

Estabelecem as suas normas os arts. 1.314 a 1.326, dividindo-a em duas subseções –


dos direitos e deveres e da administração do condomínio.

Façamos como o legislador e iniciemos pelos direitos e deveres dos condôminos.

7.2.1.1 Direitos e deveres dos condôminos

Estabelece o art. 1.314 que cada condômino pode usar da coisa conforme sua
destinação, sobre ela exercer todos os direitos compatíveis com a indivisão, reivindicá-la de
terceiro, defender a sua posse e alhear a respectiva parte ideal ou gravá-la.

O art. 1.314 compreende uma série de poderes e deveres dos condôminos sobre a
propriedade co-dividida, configurando a própria compreensão da idéia de condomínio.

Investiguemos essas expressões, dividindo o artigo em 4 partes:

a) USAR DA COISA CONFORME SUA DESTINAÇÃO; SOBRE ELA


EXERCER TODOS OS DIREITOS COMPATÍVEIS COM A INDIVISÃO:

Em primeiro lugar, corrige o legislador a expressão equivocada que utilizava no


código anterior – destino – para corretamente referir-se à destinação.

Em que sentido deve ser compreendida essa expressão?

Para compreendê-la, vamos também dividi-la: exercer todos os direitos compatíveis


com a indivisão é não impedir que os demais condôminos também se utilizem
desses direitos e usá-la conforme sua destinação é usa-la conforme o uso a que
serve. Assim, por exemplo, se o imóvel é residencial, todos os condôminos têm o
direito de nele residir ou então alugá-lo dividindo o aluguel.

Dessa afirmação, surgem principalmente as seguintes indagações:

• Na defesa de seus direitos, pode recorrer aos interditos possessórios, até mesmo
contra os demais condôminos? E reivindicatória?152

152Pode se utilizar de ações possessórias mas não de ação reivindicatória, pois não poderia opor a sua
propriedade à propriedade do outro.

190
• Pode ocupar o prédio para sua moradia? Deveria, então, aluguel aos outros
condôminos?153

• Se o prédio se encontra alugado a terceira pessoa, pode o condômino pedi-lo para


uso próprio, promovendo o despejo do inquilino? Dependerá para isso da
anuência dos demais condôminos?154

• Pode o condômino exigir que o vizinho faça determinada obra de reparação em


seu prédio?

• Pode o condômino dar posse, uso ou gozo da propriedade a estranhos sem prévio
consenso dos demais?155

• Não pode o condômino alterar a destinação da coisa sem o consenso dos outros
(art. 1.314)

b) REIVINDICÁ-LA DE TERCEIRO (Reivindicar a coisa comum)

Dispõe também o art. 1.314 que o condômino pode reivindicá-la de terceiro. E o


pode individualmente. Pois determina inicialmente o artigo que cada condômino
pode, logo, cada condômino pode reivindicá-la de terceiro e para isso não depende
de autorização de nenhum dos outros condôminos.

Forma-se no processo um litisconsórcio facultativo unitário, já que todos eles


podem facultativamente ingressar sozinhos com a ação; porém, a sentença deste
processo atingirá todos os outros condôminos, mesmo não tendo feito parte da
relação processual. É o exemplo de uma sentença ultra partes.

153Sim, mas deve pagar aluguel, pela interpretação do art. 1.319. A questão trazida por Carlos Roberto
Gonçalves é quanto ao termo inicial desta obrigação (pagamento do aluguel). Cita entendimento
jurisprudencial que entende ser o da citação do condômino, uma vez que o período anterior ao reclamo tem
natureza equiparada ao comodato. Cita ainda o autor outra questão interessante decidida pelos Tribunais
quanto à impossibilidade do cônjuge cobrar, quando ainda não separado judicialmente, mas apenas de fato,
aluguel da mulher que permanece residindo no imóvel com os filhos, pois enquanto ainda não separado o que
há é comunhão e não condomínio, irrelevante que seja aquele proprietário exclusivo do imóvel em questão.
Direito Civil Brasileiro, p. 358-359.
154Poderá promover ação de despejo, pois se pode reivindicar sem anuência prévia dos demais, pode propor
ação de despejo (O raciocínio é aquele de sempre: quem pode o mais pode o menos).
155A resposta é negativa conforme art. 1.314.

191
E, por sua vez, o terceiro reclamado não pode opor-lhe em exceção o caráter parcial
do seu direito.

c) DEFENDER A SUA POSSE

Na terceira parte, determina o legislador que cada condômino pode defender a sua
posse. Trata-se de direito correlato ao anterior, que era a defesa da propriedade por
meio da ação reivindicatória. Mas, para ser legitimado a fazer uso das ações
possessórias, é necessário que o condômino seja também possuidor.

A ação possessória pode também, como vimos, ser ajuizada contra o outro
condômino que impedir a posse do co-proprietário.

d) ALHEAR A RESPECTIVA PARTE IDEAL OU GRAVÁ-LA

Por último, determina o art. 1.314 que cada condômino pode alhear a respectiva
parte ideal ou gravá-la.

Surge também, como direito dos condôminos a todo momento, alienar a parte que
lhes cabe nesta comunhão. Alienando-a, deverão dar preferência na compra aos
demais condôminos com relação a terceiros, conforme determina o art. 504 do CC.
Caso os outros condôminos não tenham condições de comprar, deverá ser dividida a
coisa comum (art. 1.320 CC).

É também possível ao herdeiro, no condomínio formado com a sucessão, alienar a


sua cota herdada, porém esta alienação, conforme art. 1.793, §2º, só é válida
individualizada e se corresponder na divisão futura ao quinhão atribuído ao
vendedor-herdeiro.

Quanto à possibilidade de oneração do bem, aplica-se o art. 1.420, §2º, que


estabelece: “A coisa comum a dois ou mais proprietários não pode ser dada em
garantia real, na sua totalidade, sem o consentimento de todos; mas cada um pode
individualmente dar em garantia real a parte que tiver”.

7.2.1.2 Extinção do condomínio

192
A regra é a de que, a todo momento, é possível extinguir o condomínio, adquirindo
um condômino a quota-parte de todos os outros ou então dividindo a coisa comum (art.
1.320 CC). Sendo assim, podemos afirmar que é da própria essência do condomínio a sua
temporariedade (não se aplicando essa regra ao condomínio edilício).

Mas, é possível aos condôminos estabelecerem um pacto de não dividir a


propriedade, durante determinado período, que, nesse caso, não poderá ultrapassar 5 anos
(§1º, 1320). É possível também ao doador ou testador estabelecer regra idêntica (§ 2º,
1.320).

Não sendo possível a compra por um condômino da outra, ou outras cotas partes, a
propriedade deverá ser dividida. E, aqui, teremos dois procedimentos: a divisão da coisa
divisível e a divisão da coisa indivisível.

7.2.1.2.1 Divisão da coisa divisível

Estabelece o art. 1.321 que aplica-se à divisão do condomínio, no que couber, as


regras de partilha de herança (arts. 2.013 a 2.022).

Sendo o condomínio sobre coisa divisível (p. ex. uma fazenda) o procedimento para
extingui-lo, caso um condômino não adquira a propriedade dos demais é a divisão. E esta
por sua vez pode ser amigável, cabendo ao juiz apenas a sua homologação, ou litigiosa,
quando os condôminos divergirem ou quando houver menor. Isso porque se aplica nesse
caso o art. 2.015 CC da partilha (“Se os herdeiros forem capazes, poderão fazer partilha
amigável, por escritura pública, termo nos autos do inventário, ou escrito particular,
homologado pelo juiz”).

A ação de divisão é estabelecida no art. 946, II, do CPC. O seu procedimento é


regulado pelos arts. 967 a 981 do CPC.

E, sendo amigável ou litigiosa, a sentença da divisão será levada a registro (art. 167,
nº. 23, L. 6.015/73).

7.2.1.2.2 Alienação da coisa indivisível

193
Recaindo o condomínio sobre coisa indivisível (p. ex. uma casa, um carro) a sua
extinção ocorrerá com a venda judicial, quando um condômino não adquirir dos demais a
propriedade. É o que estabelece o art. 1.322 do CC.

Se todos decidem por vender o bem, não há qualquer problema: faz-se a venda e
divide-se o valor obtido entre os condôminos, de acordo com as suas frações.

Mas, se houver litígio entre os condôminos acerca da venda, ou do valor, o bem


deve ser vendido judicialmente por meio do procedimento de jurisdição voluntária da
alienação judicial, conforme o art.1.118, II do CPC.

Na venda judicial, deve se dar preferência ao condômino com relação a terceiro,


como determina o art. 1.322 e 504 do CC e o art. 1.118, I do CPC. E, entre os condôminos,
àquele que tiver benfeitorias de maior valor e caso não haja benfeitorias, a preferência entre
os condôminos é daquele que tiver maior quinhão (art. 1.118 CPC).

Mas, também prevê uma rara situação o p. único do art. 1.322 CC: quando os
condôminos tiverem interesse na aquisição, não havendo benfeitorias e nem quinhão de
maior valor, deve se proceder, na hasta pública, uma licitação daquele que oferecer maior
lanço, em preferência ao estranho.

Levar o bem à venda em hasta pública é sempre uma situação desvantajosa frente à
venda particular. É por isso que há decisões, como nos informa Carlos Roberto Gonçalves,
que, em se tratando de condomínio formado por menor, autoriza-se a venda por corretor ao
invés da hasta pública do procedimento de alienação judicial. Isso para garantir um valor
mais vantajoso, que, como sabemos, dificilmente se obtém em um procedimento judicial.156

7.2.1.3 Administração do condomínio

Os condôminos podem usar a coisa comum pessoalmente, podem escolher um


dentre eles para administrá-la (p. ex. alugá-la, receber os aluguéis, pagar os impostos...) ou
podem resolver que seja administrada por um administrador (art. 1.323).

156“Condomínio. Extinção. Procedimento de jurisdição voluntária. Pretendida autorização para que a venda
do bem se dê por intermédio de corretores de imóveis em vez do leilão público. Admissibilidade, ainda que
presente o interesse de incapazes no espólio de um dos condôminos ou que a solicitação tenha tido
discordância da minoria dos condôminos (RT, 767/238)”, jurisprudência também citada pelo autor em sua
obra Direito Civil Brasileiro, p. 365.

194
Quando o condômino administrar sem oposição dos demais, presume-se
representante comum (art. 1.324). A representação presumida, neste caso, dificulta a que o
condômino possa alegar posteriormente usucapião, pois facilmente se contra-argumentará
que a utilização, mesmo exclusiva do bem, se deu por representação e sem animus domini.

As deliberações devem ser tomadas por maioria absoluta (§1º, art. 1.325), calculada
pelo valor dos quinhões.

O condômino que contrair dívida em proveito da comunhão fica obrigado a ela, mas
tem ação regressiva contra os demais.

Se todos os condôminos contraírem dívida sem se estabelecer a parte de cada um,


ou a solidariedade, presume-se que estão obrigados proporcionalmente ao quinhão.

E cada condômino responde aos outros pelos frutos que percebeu da coisa e pelo
dano que lhe causou.

7.2.1.4 Renúncia

Inovou o legislador ao estabelecer a possibilidade de renúncia pelo condômino da


sua parte ideal, quando não puder ou não quiser arcar com o pagamento das despesas e
dívidas.

É o que estabelece o art. 1.316 “pode o condômino eximir-se do pagamento das


despesas e dívidas, renunciando à parte ideal”.

A esta renúncia poderá ocorrer duas conseqüências: 1. os demais condôminos


assumem as despesas e dívidas e a renúncia lhes aproveita adquirindo a parte ideal, na
proporção dos pagamentos que fizerem; 2. Não havendo condômino que faça os
pagamentos, a coisa terá que ser dividida (se divisível) ou alienada (se indivisível). E, aqui,
evidentemente, se aplicará a regra da obrigação segundo o quinhão, inclusive daquele que
pretende renunciar (art. 1.315).

7.2.2 Condomínio Necessário

Condomínio necessário é o formado pela meação de paredes, cercas, muros e valas


(art. 1.327 CC).

195
Aplica-se a este as regras do direito de vizinhança, pois se trata muito mais de uma
relação entre vizinhos que de um condomínio em si.

Porém, as suas principais regras podem ser assim resumidas: o proprietário tem o
direito de estremar a sua propriedade com a do vizinho com cercas, muros ou valas. As
cercas, muros e valas firmam um condomínio necessário e por isso tem o proprietário que
as fez o direito de receber metade do valor da obra. Caso haja divergência sobre esse valor,
tal deverá ser decidido por perito.

7.3 Condomínio Edilício

No Brasil, o primeiro diploma que tratou da propriedade horizontal (como antes era
chamada) foi o Decreto-Lei nº. 5.481, de 25.6.1928, modificado pelo Decreto-Lei 5.234,
8.2.43 e pela Lei nº. 285, 5.6.1948. Com a lei nº. 4.591, 16.12.1964, a propriedade
horizontal passou a ser regulada expressamente. Esse diploma, dividido em duas partes,
tratava na primeira do condomínio e na segunda das incorporações imobiliárias.157

O CC anterior nada trazia sobre essa forma de condomínio.

Por isso, inova o legislador atual ao regular esse condomínio.

O legislador também inovou no nome: até então esse condomínio era conhecido
como condomínio horizontal; o termo condomínio edilício surge pela primeira vez nesse
código.158

A Lei n. 4.591/64 continua em vigor, mas deve ser aplicada apenas de forma
subsidiária.159

O condomínio edilício é regulado pelo CC nos arts. 1.331 a 1.358.

157 Dados trazidos pelo prof. Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil Brasileiro, p. 370.
158Informa-nos Eduardo Cambi que a exposição de motivos do projeto do Código Civil, justifica essa escolha,
porque tal condomínio se constitui, objetivamente, como resultado do ato de edificação, sendo por tais
motivos, denominado de “edilício”. Ainda conforme a exposição, esta palavra vem do latim aedilici, que não
se refere apenas a edil, mas também às suas atribuições, entre as quais sobreleva a de fiscalizar construções
públicas e particulares”, Algumas inovações..., p. 40.
159Esse é o entendimento da maioria dos autores, dentre estes Sílvio Rodrigues (Direito Civil, p. 205), Carlos
Roberto Gonçalves (Direito Civil, p. 370 ), mas há quem entenda, como Fábio Ulhoa, que a lei foi revogada
(Curso, p. 138).

196
O art. 1.331 define bem esse condomínio: “pode haver, em edificações, partes que
são propriedade exclusiva, e partes que são propriedade comum dos condôminos”.

Caracteriza-se o condomínio edilício pela apresentação de uma propriedade comum


ao lado de uma propriedade privativa. Cada condômino é titular, com exclusividade, da
unidade autônoma e titular de partes ideais das áreas comuns.160

A unidade autônoma pode ser o apartamento, a sala comercial, a vaga de garagem


nos edifícios-garagem, a loja em um shopping center, a casa em um condomínio fechado (§
1º, do art. 1.331).

As áreas comuns são o hall de entrada, os elevadores, a portaria, o jardim, a piscina,


a quadra de esporte e todos os outros que são de utilização comum dos condôminos (§ 2º,
art. 1.331).

O condomínio, por si só, é um potencial gerador de conflitos, mas, no caso do


condomínio edilício, essa potencialidade aumenta, pois aqui a convivência é forçada, ou
seja, não se decide por dividir a propriedade como no condomínio geral, ao adquirir um
apartamento essa divisão é obrigatória. É por isso que Fábio Ulhoa define essa situação da
seguinte forma: no condomínio geral porque as pessoas se conhecem se tornam
condôminas, no condomínio edilício, as pessoas se conhecem porque se tornaram
condôminas.161

Cada condômino é titular de fração ideal no solo e nas outras partes comuns que são
identificadas em fração decimal. É por isso que quando se compra um apartamento o
registro indica a propriedade de 17, 333% da propriedade (§. 3º, art. 1.331, CC).

7.3.1 Natureza jurídica do condomínio edilício

Discute-se também qual a natureza jurídica do condomínio edilício: seria este uma
pessoa jurídica? A lei não o trata desta forma e na doutrina ele é reconhecido como um ente
sem personalidade jurídica, como o espólio e a massa falida. Porém, tem legitimidade para
atuar em juízo representado pelo síndico (art. 12, IX, CPC). Isso quer dizer que pode

160 Carlos Roberto Gonçalves, p. 370.


161 Curso, p. 137.

197
demandar e ser demandado, mas por não ser uma pessoa não pode realizar atos
exclusivamente civis, como comprar, contratar, vender etc. Entretanto, sabemos que o
condomínio tudo isso faz, contrata seus empregados, contrata uma empresa imobiliária para
lhe prestar serviços etc. E, então, como entender isso?

Sílvio Venosa entende que o condomínio edilício possui uma personalidade


anômala, isso porque pode realizar atos civis, além dos processuais autorizados.162

Mas, para isso seria necessário algum registro?

Eduardo Cambi nos traz a notícia, em seu artigo, de que, em congresso promovido
pelo STJ, concluiu-se que ao condomínio edilício deve ser reconhecida personalidade
jurídica, nas relações inerentes às atividades de seu peculiar interesse.163Logo, em sendo
assim, para realizar os atos civis inerentes à sua atividade, como contratar empregado,
empresa para administrar etc, ele teria legitimidade, independente de registro próprio,
constituindo-se como tal com o registro de seu ato constitutivo.

7.3.2 Instituição, Constituição e Regulamento do Condomínio

Todo condomínio em edificações deve ter, obrigatoriamente, o ato de Instituição, a


Convenção de Condomínio e o Regulamento (Regimento Interno).

O primeiro documento do condomínio edilício é o seu ato de instituição. Este pode


ocorrer por:

a) destinação do proprietário do edifício;

b) incorporação;

c) testamento

O instrumento de instituição do condomínio edilício deve ser registrado no Cartório


de Registro de Imóveis (art. 1.332 CC e art. 167, I, nº. 17, Lei 6.015/73).

162 “O condomínio edilício tem personalidade anômala, pois compra, vende, empresta, presta serviços,
emprega, recolhe tributos etc, além de poder ser proprietário de unidades autônomas, lojas no térreo ou
garagens, bem como locar lojas ou estacionamento no condomínio e auferir renda. Com efeito, o condomínio
age tal qual uma pessoa jurídica, embora entre os condôminos não haja affectio societas”, Direito Civil,
p.321-322.
163 Algumas inovações..., p. 44.

198
Como explica Sílvio Rodrigues, o ato de instituição do condomínio pode ser
realizado sobre prédio por construir ou sobre prédio já construído. No primeiro caso, é
quando ocorre a incorporação, que nada mais é que o empreendimento que consiste em
obter o capital necessário à construção do edifício, geralmente mediante a venda, por
antecipação, dos apartamentos de que se constituirá. E o segundo caso, o de prédio já
construído, ocorrerá geralmente por destinação do proprietário ou por testamento.

E deve conter obrigatoriamente (art. 1.332 CC):

I- a discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva,


estremadas uma das outras e das partes comuns;
II- a determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, relativamente ao terreno
e partes comuns;
III- o fim a que as unidades se destinam.

Mas, esse é o conteúdo mínimo exigido pela lei, outros poderão ser contidos nesse
ato de instituição.

O segundo documento do condomínio edilício é a sua convenção (art. 1.333).

A convenção do condomínio é o ato de constituição do condomínio, um documento


escrito no qual se estipulam os direitos e deveres de cada condômino, e deve ser subscrita
pelos titulares de, no mínimo, dois terços das frações-ideais.

Tem um caráter estatutário ou institucional, pois não obriga somente as partes, mas
sujeita todos os titulares de direitos sobre as unidades, ou quantos sobre elas tenham posse
ou detenção, atuais ou futuros (os seus efeitos atingem qualquer indivíduo que penetre na
esfera jurídica de irradiação de suas normas).164

O art. 1.334 determina o conteúdo obrigatório da Convenção:

I- a quota proporcional e o modo de pagamento das contribuições dos condôminos


para atender às despesas ordinárias e extraordinárias do condomínio;
II- sua forma de administração;

164Segundo João Batista Lopes, seu caráter normativo e institucional ressalta claro da circunstância de que ela
alcança não só os signatários, mas todos aqueles que ingressam no universo do condomínio. (...) A convenção
apresenta traços que a assemelham à lei. Em verdade, ela pode ser considerada a “lei interna do condomínio”.
Natureza jurídica da convenção de condomínio, p. 382.

199
III- a competência das assembléias, forma de sua convocação e ‘quorum’ exigido
para as deliberações;
IV- as sanções a que estão sujeitos os condôminos, ou possuidores;
V- o regimento interno.

Qualquer alteração posterior reclama o quorum de dois terços das frações ideais, e
outras ainda exigem a unanimidade, como a mudança da destinação originária das unidades
autônomas; mudanças na fachada do prédio (art. 10, §2º, L. 4.591), nas frações ideais, nas
áreas de uso comum, construção de outro pavimento ou outro edifício no solo comum (art.
1.343, CC).

A Convenção é um documento portador de inúmeras normas que regula e disciplina


a vida em condomínio. Mas, apesar de ter um caráter normativo, não está acima da lei.
Deve a ela obediência, principalmente aos seus princípios. Um dos principais conflitos
gerados pela convenção diz respeito às restrições de direitos. Se a vida em sociedade já nos
impõe uma série de restrições, a vida em condomínio edilício impõe muito mais. Porém,
essas restrições não podem ir além do necessário à convivência comum. Tem que se cuidar
para que restrições de convivência comum não se transformem em violações de direito. 165

Algumas violações já chegaram a afrontar princípios tornando necessária a


intervenção estatal para estabelecer regras, como a Lei Municipal Paulista nº. 11.995/96,
que proíbe discriminação nos elevadores dos edifícios.

Ainda sobre a convenção, faculta a lei o seu registro “para ser oponível contra
terceiros, a convenção de condomínio deverá ser registrada no Cartório de Registro de
Imóveis (p. único, 1.333).” Esses terceiros não são os futuros moradores do edifício que
não participaram da votação da convenção, pois, esses, como vimos, também são atingidos
pela convenção dado o seu caráter normativo.

Os terceiros que aqui se refere são aqueles que estão fora da órbita do condomínio,
mas são atingidos por ela.

165 Alguns julgados explicam bem esse conflito entre restrições x violações: “Convenção condominial que
proíbe que o proprietário de unidade autônoma a alugue para estudantes. Inadmissibilidade. Discriminação
que atenta direitos, e assim é ineficaz, porque ilegal (RT, 779/277)”; “Garagem. Condômino que deverá
cadastrar seu veículo, para só ele ser colocado na vaga a que tem direito. Inadmissibilidade. Garagem que
pode ser utilizada por qualquer carro do condômino, seja o seu, emprestado ou alugado ( RT, 785/287)”.

200
Por último, o Regimento Interno complementa a convenção, é o ato interna corporis
que regula o uso e o funcionamento do edifício. Reúne aquelas regras relativas ao dia-a-dia
da vida condominial (ex. horário de funcionamento da piscina, horário de mudança,
utilização dos elevadores).

7.3.3 Direitos e deveres dos condôminos

Cuida o legislador de especificar os direitos e deveres dos condôminos, para


proporcionar uma divisão harmoniosa, como também para evitar a desnaturação do
condomínio. Logo, nem todas as normas a que estão sujeitos os condôminos advêm da
convenção; muitas delas, aqui veremos, já estão disciplinas no código.

Comecemos então com os direitos.

7.3.3.1 Direitos dos condôminos (art. 1.335)

Usar, fruir e livremente dispor de suas unidades:

• Como proprietário da unidade autônoma, pode exercer em relação a ela todos os


poderes de domínio, morando, vendendo, alugando, cedendo-a, deixando de
ocupá-la, etc.

• Mas, como em todo o direito de propriedade, também poderá sofrer restrições


em seu exercício pela Convenção de Condomínio, que poderá, por exemplo,
proibir o aluguel de loja para determinado fim, ou salas comerciais, ou aluguel
da vaga de garagem para não-condôminos etc.

• Ao dispor de sua unidade alienando-a não é obrigado a dar preferência a


nenhum condômino, a não ser que a propriedade de sua unidade autônoma seja
em condomínio, aí deverá dar preferência em razão do condomínio geral
voluntário e não do edilício.

• Também poderá alienar parte acessória de sua unidade imobiliária, como a vaga
de garagem do apartamento, por exemplo, mas nesse caso poderá sofrer
restrições pela convenção sendo impedido de vender a terceiros (§ 2º, art. 1.339,
CC)

201
Usar das partes comuns, conforme a sua destinação, e contanto que não exclua
a utilização dos demais possuidores:

• Como bem acentua Carlos Roberto Gonçalves, uma das características mais
marcantes do condomínio edilício é a vedação do uso exclusivo das partes
comuns. Logo, não podem os corredores ser utilizados como áreas de lazer, as
vagas de garagem ser transformadas em depósito ou o salão de festas ser usado
como escritório particular de condômino.166

Votar nas deliberações da assembléia e delas participar, estando quite.

• A exigência da quitação dos pagamentos foi trazida pelo novo legislador;

• A importância da pontualidade dos pagamentos é também um mecanismo de


pressão para a quitação, compensando, talvez, a diminuição da multa por
atraso.167

7.3.3.2 Deveres dos condôminos

Contribuir para as despesas do condomínio, na proporção de suas frações


ideais, salvo disposição em contrário na convenção:

• A contribuição condominial é definida como uma obrigação propter rem (uma


vez que deve ser suportada por quem tiver a coisa em seu domínio). O encargo
grava o próprio bem. É por isso que define o art. 1.345 que “o adquirente de
unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio,
inclusive multas e juros moratórios”;

• “Cada condômino concorrerá nas despesas do condomínio, recolhendo, nos


prazos previstos na Convenção, a quota-parte que lhe couber no rateio” (art.
12, Lei 4.591/64);

166 Direito Civil Brasileiro, p. 389.


167 Que foi reduzida de 20% para 2%.

202
• §2º, art. 1.334: “São equiparados aos proprietários, para fins deste artigo,
salvo disposição em contrário, os promitentes compradores e os cessionários
de direitos relativos às unidades autônomas”;

• salvo disposição em contrário (expressão introduzida pela Lei 10.931/2004):


Com essa alteração pode agora a convenção de condomínio fixar a contribuição
para as despesas condominiais em valor que não seja proporcional à fração
ideal. Tal alteração permite que a contribuição do condômino seja fixada, por
exemplo, com base no número de pessoas que utilizam a unidade ou mesmo no
seu valor de mercado, onerando mais as unidades habitadas por mais pessoas
ou de maior valor por estar em andar mais alto, ou mesmo mais baixo.”;168

• A contribuição condominial também pode ser diferente entre os condôminos


em razão da utilização das áreas comuns, pois, conforme o art. 1.340, as
despesas relativas às partes comuns de uso exclusivo de um condômino ou de
alguns deles, incumbem a quem delas se serve;

• E, por sua vez, conforme o §1º deste artigo, “o condômino que não pagar a sua
contribuição ficará sujeito aos juros moratórios convencionados ou, não sendo
previstos, os de um por cento ao mês e multa de até dois por cento sobre o
débito.”;

• Na lei 4.591/64, a multa por impontualidade era de 20%;169

• Como aplicar essa nova multa aos condomínios? Temos 3 possibilidades de


interpretação: 1ª- A multa de 2% só tem aplicação nos condomínios
constituídos na vigência do CC/2002 (logo, se o condomínio foi constituído
antes do CC/2002, aplica-se a multa de 20%); 2ª- Se o condomínio foi
constituído após a entrada em vigor no novo Código aplica-se a multa neste
regulada; 3ª- Somente às prestações vencidas durante a vigência da Lei
4.591/64, ou seja, antes da entrada em vigor do CC/2002, é que cabem os 20%;

168 Direito Civil Brasileiro, p. 382.


169Esse foi um dos principais pontos polêmicos do novo CC, argumenta-se que isso facilitará a inadimplência
nos condomínios dificultando a sua administração e sobrecarregando os condôminos pontuais.

203
às prestações vencidas após a vigência no novo código se aplica a multa de
2%.170

Proibição de o condômino realizar obras que possam comprometer a


segurança da edificação:

• Trata-se de uma obrigação negativa imposta aos condôminos;

• Trata-se de obra em sua unidade autônoma, pelo qual não depende de qualquer
autorização para realizá-la, mas fica impedido e responsável, caso esta
comprometa a segurança da edificação.

Não modificar a forma nem a cor da fachada das partes e esquadrias externas:

• Esta norma visa a não desnaturar o condomínio, pois este no todo é identificado
como uma unidade;

• É admitida a colocação de redes protetoras na varanda, vidros, fechamento do


terraço por envidraçamento.

Dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar
de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou
aos bons costumes:

• A primeira parte deste inciso - dar às suas partes a mesma destinação que tem a
edificação – reproduz a regra do art. 1.314 (Cada condômino pode usar da coisa
conforme sua destinação...);

• Logo, não pode o condômino usar da coisa alterando a sua destinação;

• O síndico pode tomar providências contra o condômino infrator – que usa de seu
imóvel residencial para fins comerciais, transformando-o, por exemplo, em um
escritório;

• Reprodução de norma já constante no art. 10, III, e 19 da Lei 4.591/64;

170“Estando previsto no novo CC o patamar de 2%, deve ele ser aplicado mesmo se a convenção for anterior
à data em que entrou em vigor a nova lei, ou seja, 11 de janeiro de 2003. Para as prestações devidas antes da
entrada em vigor, aplica-se sobre o débito a multa de 20%, como previsto na legislação de regência da época.
Todavia, para as prestações devidas após a entrada em vigor, aplica-se a multa de 2% prevista no art. 1.336 do
novo Código ( Min. Carlos Alberto Menezes Direito, Resp 722.904, 3ª T.)”.

204
• A segunda parte do artigo - não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego,
salubridade e segurança dos possuidores – veda o chamado USO ANORMAL
DA PROPRIEDADE (art. 1.277 CC);

• Porém, não deixa de ser em parte subjetiva essa expressão, pois, por exemplo, a
presença de animais prejudica o sossego e a segurança dos condôminos? Pode
ser que sim, pode ser que não. E, por isso, entendemos que tal norma pode ser
objeto de convenção.

• Entretanto, de todas as expressões a mais subjetiva é sem dúvida ‘bons


costumes’ que não deixa de ser uma expressão perigosa que pode permitir
abusos em virtude de preconceitos;171

• Sentindo-se ameaçado, pode o condômino, entendemos, se utilizar do interdito


proibitório.

Sanções pelo descumprimento dos deveres

• Pelo descumprimento dos deveres impostos nos incisos II a IV do art. 1.336 –


caberá multa de até 5 vezes o valor da contribuição;

• Pela infração reiterada dos deveres, poderá por deliberação de ¾ dos


condôminos, pagar multa de até 5 X o valor da contribuição (não se trata da
mesma multa anterior, mas de uma cumulação daquela);

• E, pelo reiterado comportamento anti-social, poderá pagar multa de até 10


vezes o valor da contribuição;

• A lei só prevê como sanção a pecuniária, não pode o condômino ser punido
quanto ao uso de partes comuns (ficar, por exemplo, proibido de usar a piscina

171 Nesse sentido e também preocupado com as repercussões que esta norma possa causar, é que o prof.
Carlos Roberto Gonçalves afirma que “Não podem, com efeito, os donos dos outros apartamentos alegar que
a pessoa que mora no edifício não é casada, ou que tem amante, ou que o homem que habita algum dos
apartamentos recebe amante. Não havendo violação das regras de convivência social, pode o morador receber
as visitas que entender. Nada impede que o proprietário de apartamento ali mantenha amante ou receba visitas
para prazeres fugazes, desde que se ressalve o decoro, não se provoque escândalos ou algazarras. O que se
proíbe é o uso do apartamento como casa de tolerância, porque o dever implícito de moralidade repele a
aludida destinação. Tudo depende do caso concreto, em que o ocupante de apartamento ultrapassa os limites
do razoável”, Direito Civil Brasileiro, p. 387.

205
porque a usou fora do horário) e nem com a imposição de saída do
condomínio.172

7.3.4 Da administração do condomínio

A administração do condomínio é exercida por um síndico, que pode ou não ser


condômino, conforme o art. 1.347.

A duração do seu mandato é de 2 anos, podendo renovar-se. Porém, não diz a lei se
se permite somente uma reeleição ou se esta pode ocorrer indefinidamente.

O síndico também pode ser assessorado por um Conselho Consultivo, eleito pela
assembléia dos condôminos.

- Atribuições do síndico (art. 1.348):

1- convocar a assembléia dos condôminos;


2- representar, ativa e passivamente, o condomínio, praticando, em juízo ou fora dele,
os atos necessários à defesa dos interesses comuns;
3- dar imediato conhecimento à assembléia da existência de procedimento judicial ou
administrativo, de interesse do condomínio;
4- cumprir e fazer cumprir a convenção, o regimento interno e as determinações da
assembléia;
5- diligenciar a conservação e a guarda das partes comuns e zelar pela prestação dos
serviços que interessem aos possuidores;
6- elaborar o orçamento da receita e da despesa condominial relativa a cada ano;
7- cobrar dos condôminos as suas contribuições, bem como impor e cobrar as multas
devidas;
8- prestar contas à assembléia, anualmente e quando exigidas;
9- realizar o seguro de edificação.

172 Tal proibição é inclusive questionada por alguns autores como Eduardo Cambi, para quem o novo código
civil deve ser criticado por não prever a possibilidade de se impedir que determinado condômino ou possuidor
seja impedido de residir ou ingressar no edifício (por exemplo, locatário ou condômino baderneiro ou
traficante de drogas), embora a doutrina não descarte esta possibilidade, mediante decisão da assembléia
geral, com prévia observância da garantia da ampla defesa uma vez que, para alguns condôminos de alto
poder aquisitivo, a multa não servirá de meio de coerção suficiente para reprimir o comportamento
indesejado. Algumas inovações..., p. 42.

206
- Exige o Código que a assembléia deve ser convocada ao menos uma vez por ano
(art. 1.350)

- Também poderá a administração do condomínio ser repartida entre o síndico, e


outra pessoa designada para representar o condomínio e dividir com aquele às funções
administrativas: § 1º e §2º art. 1.348, CC.

- Pode haver no condomínio um conselho fiscal, composto de 3 condôminos, eleitos


pela assembléia, com prazo não superior a 2 anos, a quem compete dar parecer sobre as
contas do síndico.

Para se destituir o síndico, são necessários os votos da maioria absoluta dos


condôminos (art. 1.349). Prevê o Código a destituição do síndico nas seguintes hipóteses:

a) prática de irregularidades;

b) falta de prestação de contas;

c) administração não conveniente.

DELIBERAÇÃO DA ASSEMBLÉIA DOS CONDÔMINOS:

VOTO OBJETO DA DELIBERAÇÃO

NÃO É NECESSÁRIO OBRAS OU REPARAÇÕES


NECESSÁRIAS

MAIORIA REALIZAÇÃO DE OBRAS ÚTEIS (ART.


1341, II)

MAIORIA DE VOTOS DOS DELIBERAÇÕES DA ASSEMBLÉIA


CONDÔMINOS PRESENTES (SALVO QUANDO SE EXIGE QUORUM
REPRESENTANDO PELO MENOS ESPECIAL)
METADE DAS FRAÇÕES IDEIAIS

MAIORIA ABSOLUTA DESTITUIR O SÍNDICO QUE PRATICAR


IRREGULARIDADES (ART. 1.349)

2/3 ALTERAÇÃO DA CONVENÇÃO (ART.

207
1.351)

2/3 COBRANÇA DE MULTA DO §2º ART.


1.336 (QUANDO JÁ NÃO HOUVER
DISPOSIÇÃO EXPRESSA NA
CONVENÇÃO)

2/3 REALIZAÇÃO DE OBRAS


VOLUPTUÁRIAS (ART. 1.341, I)

2/3 REALIZAÇÃO DE OBRAS NAS PARTES


COMUNS EM ACRÉSCIMOS ÀS JÁ
EXISTENTES (ART. 1.342)

¾ DESCUMPRIMENTO REITERADO DOS


DEVERES: MULTA 5XCONTRIBUIÇÃO
(ART. 1.337)

UNANIMIDADE MUDANÇA DA DESTINAÇÃO DO


EDIFÍCIO OU DA UNIDADE
IMOBILIÁRIA (ART. 1.351)

UNANIMIDADE CONSTRUÇÃO DE OUTRO


PAVIMENTO NO SOLO COMUM (ART.
1.343)

7.3.5 Extinção do condomínio

A extinção do condomínio é regulada pelos arts. 1357 a 1358 do CC. E conforme


este pode ocorrer nas seguintes hipóteses:

destruição
demolição
desapropriação
confusão

208
Na primeira hipótese prevista – destruição – se a maioria dos proprietários não
aceitar a reconstrução, este deixará de ser um condomínio edilício para ser um condomínio
geral, devendo, então, como a regra deste, ser vendido ou adjudicado por um dos
proprietários.

Também poderá o condomínio ser extinto pela desapropriação do imóvel, seja


edifício, casas, shopping etc.

E, por último, também se extinguirá o condomínio edilício quando ocorrer


confusão, que seria a hipótese de um proprietário tornar-se dono de todas as unidades, não
existindo mais a figura das propriedades particulares também não existirá mais o
condomínio.

209
VIII PROPRIEDADE RESOLÚVEL E PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA

SUMÁRIO: 8.0 Considerações gerais; 8.1 Propriedade resolúvel; 8.1.1 Advento de


condição ou termo; 8.1.2 Surgimento de causa superveniente; 8.2 Propriedade
fiduciária; 8.2.1 Decreto-lei 911/69 (alienação fiduciária em garantia)

8.0 Considerações gerais

Trata o legislador nos dois últimos capítulos do Título da Propriedade da


propriedade resolúvel e fiduciária, fazendo assim uma opção por considerá-las formas
especiais desse direito e não somente um caso de aplicação das regras gerais relativas à
condição e ao termo.173

Propriedade resolúvel, conforme Carlos Gonçalves, é quando o título de aquisição


está subordinado a uma condição resolutiva ou ao advento do termo.174

Na definição de Clóvis Beviláqua, é aquela que no próprio título de sua aquisição


encerra o princípio que a tem de extinguir, realizada a condição resolutória, ou vindo o
termo extintivo, seja por força da declaração, seja por determinação da lei.175

Condição e termo são elementos acidentais do negócio jurídico. O negócio jurídico


pode ter a sua eficácia submetida, ao acontecimento desses elementos. A condição é a
submissão do efeito do negócio jurídico a um evento futuro e incerto, o termo a um evento
futuro e certo. A condição ainda pode ser resolutiva ou suspensiva. Suspensiva é aquela
cuja produção dos efeitos depende de sua ocorrência. Ocorrido o evento (futuro e incerto)
iniciam-se os efeitos do negócio jurídico. E resolutiva é aquela cuja ocorrência provoca a
extinção do negócio, deixando de produzir efeitos. Tenha o seguinte exemplo: um pai diz
para seu filho, até você se formar te darei uma mesada – condição resolutiva, quando o
filho se formar (condição) o efeito do negócio jurídico cessa (mesada); ou então, quando
você se formar, te darei um carro – condição suspensiva, quando o filho se formar
(condição) o efeito do negócio se inicia (entrega do carro).

173 Gonçalves, p. 397.


174 Ib. idem, p. 397.
175 Clóvis Beviláqua apud Gonçalves, p. 397

210
A propriedade resolúvel está subordinada a uma condição resolutiva e também ao
advento de um termo.

A propriedade fiduciária, por sua vez, é também uma propriedade resolúvel, pois
como define o art. 1.361 “Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel
infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor”.

Mas é uma propriedade resolúvel específica, ou seja, uma espécie do gênero


propriedade resolúvel, em que a transferência da propriedade de um bem móvel se dá a
título de garantia de empréstimo para aquisição do mesmo.

Começaremos por tratar da propriedade resolúvel e depois abordaremos a


propriedade fiduciária, que retrata um negócio jurídico extremamente comum e com
freqüência problemático.

8.1 Propriedade resolúvel

A propriedade resolúvel está estabelecida em dois artigos do CC, 1.359 e 1.360.

Opera-se a propriedade resolúvel pelo advento de uma condição, de um termo ou de


uma causa superveniente.

O advento da condição, termo ou da causa superveniente extingue a propriedade


para aquele que a adquiriu, nos dois primeiros (condição ou termo) a resolução encontrava-
se no próprio título de aquisição, no segundo (causa superveniente) a resolução advém de
um fato superveniente.

São exemplos de propriedade resolúvel em nosso código:

- pacto de retrovenda (art. 505 CC);

- venda a estranho pelo condômino sem respeito ao direito de preferência (art. 504
CC);

- venda com reserva de domínio (art. 521 CC);

- doação com cláusula de reversão (art. 547 CC);

- venda a contento (art. 509 CC);

- alienação fiduciária em garantia.

211
Fiquemos com o exemplo do pacto de retrovenda.

Ao adquirir uma propriedade com esta condição – a retrovenda – submete-se o


adquirente à possibilidade do vendedor recobrá-la dentro do período de 3 anos e ao exercer
esse direito previsto em título, resolve-se, ou seja, extingue-se a propriedade para o
adquirente, que teve no ato de aquisição a própria causa de sua extinção.

8.1.1 Advento da condição ou termo

Como dissemos, a propriedade resolúvel pode estar submetida a causas


contemporâneas do próprio título de sua aquisição, que são a condição e o termo.

Dispõe o art. 1.359 do CC que “Resolvida a propriedade pelo implemento da


condição ou pelo advento do termo, entendem-se também resolvidos os direitos reais
concedidos na sua pendência e o proprietário, em cujo favor se opera a resolução, pode
reivindicar a coisa do poder de quem a possua ou detenha”.

Condição é a subordinação do efeito do negócio jurídico a um evento futuro e


incerto e termo a um evento futuro e certo.

São exemplos de propriedade resolúvel submetida a uma condição: o pacto de


retrovenda, a doação com cláusula de reversão; venda a estranho pelo condômino; venda
com reserva de domínio e alienação fiduciária em garantia.

Todas estas propriedades estão submetidas a uma condição resolutiva, pois com o
advento do evento futuro e incerto (resgate da propriedade; morte do donatário; exercício
do direito de anulação da venda; pagamento do preço), extinguirá a propriedade para aquele
que a adquiriu sujeita a esta condição.

São exemplos de propriedade resolúvel submetida a um termo todas aquelas em que


o adquirente está sujeito a, diante de um prazo, resolver a propriedade. Uma doação de um
bem até que o donatário complete a maioridade é uma propriedade resolúvel sujeita a
termo. Pode parecer que a venda com reserva de domínio e a alienação fiduciária em
garantia sejam também sujeitas a termo, porém o pagamento em prestações cuja quitação
resolve a propriedade, pode não ocorrer, ou seja, trata-se de um evento futuro e incerto.

8.1.2 Advento da causa superveniente

212
Também resolve-se a propriedade pelo advento de uma causa superveniente. Neste
caso não se trata de uma causa que se encontra no título constitutivo da propriedade, mas
conforme seu próprio termo é superveniente a este, resultando em surpresa para o
adquirente, que se de boa-fé deve ser protegido contra essa resolução.

Exemplo utilizado pela doutrina é o do donatário que recebe um imóvel em doação e


depois o aliena, o adquirente será considerado proprietário perfeito se, posteriormente, o
doador resolver revogar a doação por ingratidão do donatário. Como o adquirente é um
terceiro de boa-fé, não pode ser prejudicado com a resolução da propriedade, até porque
não podia prevê-la. Assim o doador deverá cobrar do donatário o valor da coisa. Se o
donatário não tivesse alienado o bem resolveria-se para o donatário diante da causa
superveninte, que foi nesse caso a ingratidão.176

É isto o que diz o art. 1.360, Se a propriedade se resolver por outra causa
superveniente, o possuidor, que a tiver adquirido por título anterior à sua resolução, será
considerado proprietário perfeito, restando à pessoa, em cujo benefício houve a resolução,
ação contra aquele cuja propriedade se resolveu para haver a própria coisa ou o seu
valor.

8.2 Propriedade Fiduciária

A propriedade fiduciária é uma espécie de propriedade resolúvel, apesar do


legislador tê-la tratado em capítulo distinto como se fosse instituto diferente. Configura-se
uma disciplina nova em nosso código, pois não a tinha o anterior. Mas não se quer com isso
dizer que se trata de um instituto novo, pois não o é, haja vista ter surgido entre nós pela
Lei 4.728/65 que regulando o mercado de capitais introduziu a “alienação fiduciária em
garantia”.

Representa um novo instrumento de garantia, e sendo a propriedade resolúvel uma


espécie de propriedade, estamos diante de um novo direito real de garantia.

Assim, dispõe o CC no art. 1.361 que “Considera-se fiduciária a propriedade


resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao
credor”.
176 Exemplo extraído da obra de Carlos Roberto Gonçalves, p. 400.

213
Como se vê a propriedade fiduciária estabelecida no art. 1.361 tem o escopo de
garantia, e é desta que trataremos, mas também pode a propriedade fiduciária ter o escopo
de administração. Ou seja, o negócio fiduciário, que dá origem à propriedade fiduciária
pode ser realizado com o objetivo de administração de bens ou com o objetivo de garantia.

Com o objetivo de administração, uma pessoa (FIDUCIANTE) pode transferir seus


bens móveis ou imóveis a outra (FIDUCIÁRIO) para administrá-los em benefício do
fiduciante ou de um terceiro. Cessando o prazo deste contrato deverá, conforme pactuado,
os bens serem revertidos ao patrimônio do fiduciante ou então do terceiro designado. A
propriedade do fiduciário é uma propriedade resolúvel, pois findo o prazo estabelecido ela
se extinguirá. Trata-se do contrato de fidúcia.

Também se coloca como propriedade fiduciária com escopo de administração o


fideicomisso. Instituto do direito das sucessões, trata-se de uma substituição testamentária.
Assim A, o testador (FIDUCIANTE) deixa para B (FIDUCIÁRIO) um bem, que por
ocasião de sua morte ou de certa condição, deve passar para C (FIDEICOMISSÁRIO). A
propriedade de B é uma propriedade resolúvel, pois ocorrendo a condição, esta se resolve
em favor do fideicomissário. Por exemplo, deixo um bem para Taís, mas caso venha a ter
um filho, o bem passará para este. Esta propriedade fiduciária tem o escopo de
administração, pois até que aconteça a condição estabelecida, a propriedade do fiduciário
não existiu para garantir uma dívida, mas para administrar o bem em favor de um terceiro.

Porém a propriedade fiduciária estabelecida nos arts. 1.361 a 1.368-A tem o escopo
de garantia

Nesta propriedade fiduciária ocorre a transferência do domínio do bem móvel ao


credor, denominado fiduciário (em geral, uma financeira, que forneceu o numerário para a
aquisição), em garantia do pagamento, permanecendo o devedor (fiduciante) com a posse
direta da coisa.177

Imaginemos, para entender a propriedade fiduciária, a compra de um carro, que


talvez seja uma das práticas mais comum de estabelecimento desta modalidade de
propriedade: Querendo adquirir um carro o COMPRADOR dirige-se a uma revendedora e
adquire o bem do VENDEDOR, porém como não tem condições ou não prefere pagar à

177 Gonçalves, p. 402.

214
vista financia o pagamento. Surge aqui a figura do terceiro que é a instituição financeira,
CREDORA. Esta financia para o COMPRADOR a aquisição do bem com o empréstimo da
quantia necessária que será paga conforme pacto entre as partes, mas como garantia do
pagamento tem o bem adquirido pelo COMPRADOR alienado para si e então se torna
CREDORA-PROPRIETÁRIA do bem, com uma propriedade resolúvel. O COMPRADOR
se torna COMPRADOR-DEVEDOR e após o pagamento do empréstimo readquire a
propriedade automaticamente. O comprador é o fiduciante e o credor é o fiduciário.

VENDEDOR → COMPRADOR→ CREDOR


(vende o carro para o comprador) (compra o carro, mas aliena para o (adquire a propriedade

credor como garantia do resolúvel, pois com o

empréstimo, pagamento, esta se

para sua aquisição) extinguirá)

Não é sempre necessário a presença destas 3 partes vendedor →comprador→credor,


assim é que comumente ela se realiza quando se trata da alienação fiduciária sobre
veículos, mas também é permitida a alienação fiduciária de bem que já integre o patrimônio
do devedor, ou seja, pode se transferir a propriedade de um bem particular como garantia
de pagamento de um empréstimo, estabelecendo sobre ele uma propriedade resolúvel. É o
que dispõe a súmula 28 do STJ (“O contrato de alienação fiduciária em garantia pode ter
por objeto bem que já integrava o patrimônio do devedor”).

Esse negócio deve ser celebrado por instrumento público ou particular e registrado
no Cartório de Registro de Títulos e Documentos ou, em se tratando de veículo, na
repartição competente, que entre nós é o DETRAN (§1°, art. 1.361).178

Caso não tenha sido registrado não poderá ser oponível a terceiros de acordo com a
súmula 92 do STJ (“A terceiro de boa-fé não é oponível a alienação fiduciária não anotada
no Certificado de Registro do veículo automotor”).

É necessário que o contrato que serve de título à propriedade fiduciária contenha: I-


o total da dívida ou sua estimativa; II- o prazo ou a época do pagamento; III- a taxa de

178 Art. 121 CTB

215
juros, se houver; IV- a descrição da coisa objeto de transferência com os elementos
indispensáveis à sua identificação (art. 1.362).

São elementos do contrato de alienação fiduciária a coisa (res), o consenso, a


condição resolutiva e o contrato principal.179

A coisa pode ser um bem móvel infungível, pelo CC, mas também um bem imóvel,
pela Lei 9.514/97 e direitos, pela Lei 4.728/65. E além do consenso das partes e da
condição resolutiva, é necessário o contrato principal, que não se confunde com o contrato
de alienação fiduciária. Naquele nosso exemplo da compra do carro, o contrato principal é
o empréstimo para sua aquisição. O estabelecimento da propriedade fiduciária garante o
pagamento deste empréstimo.

As partes deste negócio fiduciário devem ser de um lado como devedor-fiduciante,


pessoa física ou jurídica e de outro lado como credor-fiduciário, instituições financeiras
autorizadas pelo Banco Central, quando se tratar de bens móveis e pessoa física ou jurídica
quando se tratar de imóvel.

Estabeleceremos nesse quadro os principais aspectos da relação entre fiduciário e


fiduciante:

FIDUCIÁRIO (CREDOR) FIDUCIANTE (DEVEDOR)

possuidor indireto (§2°, 1.361) possuidor direto (§2°, 1.361)

Adquire a posse fictamente pelo constituto transmite a posse fictamente pelo constituto
possessório possessório

o domínio e a posse lhe é transmitida em torna-se depositário (art. 1.363)


garantia do pagamento da dívida

Adquire uma propriedade resolúvel transfere a propriedade em garantia

com o pagamento da última parcela resolve- readquire automaticamente a propriedade


se automaticamente em com o pagamento da dívida
favor do devedor a propriedade

179 Fiúza, p. 843.

216
Como estabelecido neste quadro com a propriedade fiduciária dá-se o
desdobramento da posse, o credor-fiduciante se torna possuidor indireto e o devedor-
fiduciário se torna possuidor-direto, e tem a posse a título de depositário devendo de acordo
com o art. 1.363 empregar na guarda da coisa a diligência exigida por sua natureza e
entregá-la ao credor, se a dívida não for paga no vencimento (I e II).

A matéria referente à qualidade de depositário do fiduciário é bastante problemática.


Questiona-se se seria cabível a sua prisão quando seja declarado depositário infiel. A
matéria é controversa. Há posições de nossos tribunais nos dois sentidos.180

O objeto da alienação fiduciária é bem móvel alienável.

Veda a lei o pacto comissório, que seria a possibilidade do credor ficar com o bem
em pagamento da dívida, mas o CC atual atenuou essa regra permitindo no parágrafo único
do art. 1.365 que o devedor dê seu direito eventual à coisa em pagamento da dívida quando
haja acordo entre a as partes.

8.2.1 Procedimento da ação de busca e apreensão (Decreto-lei 911/69)

O Decreto-lei 911/69 ainda é norma válida para regular a matéria processual da


alienação fiduciária, estando revogado apenas naquilo que conflita com as disposições
materiais do CC.181

Estabelece o Decreto-Lei o procedimento da ação de busca e apreensão como


processo autônomo para recuperar o bem diante da mora ou inadimplemento do devedor
(§8º, art. 3º).

É necessário como procedimento preparatório ao ajuizamento da ação de busca e


apreensão a constituição do devedor em mora, que poderá ser feito por protesto do título ou

180Decidiu o STJ no HC 74458 j. em 30/01/2007 com voto do Ministro Peçanha Martins pelo não-cabimento
da prisão civil em casos de alienação fiduciária em garantia, uma vez que não se equipara o devedor
fiduciante ao depositário infiel. Mas também entende Nelson Nery nos comentários do art. 1.363 que a prisão
de quem foi declarado, por decisão judicial, como depositário infiel é constitucional, seja quanto ao depósito
regulamentado no CC [1916] como no caso de alienação protegida pela cláusula fiduciária. Também comunga
desta opinião Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil, p. 407.
181O mencionado Decreto-Lei n. 911/69 aplica-se, com efeito, apenas, no que couber, às questões de natureza
processual, estando revogado naquilo que respeita ao direito material, é opinião de Carlos Gonçalves, Direito
Civil, p. 402.

217
carta registrada (§2º, art. 2º), mas poderá o credor considerar antecipadas todas as
prestações vincendas e não precisará indicar na notificação moratória o valor do débito.182

ORGANOGRAMA DA AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO

Notificação do devedor fiduciante

Ação de busca e apreensão

Expedição de mandado liminar de Liminar


busca e apreensão

Execução da liminar Bem não encontrado

5 dias para pagar 15 dias para contestar Conversão em depósito

Procedência Inprocedência

Possibilidade do credor vender o bem Condenação do credor ao pagamento de


multa em 50% do valor financiado

182 Súmula 72 STJ (“A comprovação da mora é imprescindível à busca e apreensão do bem alienado
fiduciariamente”) e Súmula 245 STJ (“A notificação destinada a mora nas dívidas garantidas por alienação
fiduciária dispensa a indicação do valor do débito”).

218
IX LIMITAÇÕES AO DIREITO DE PROPRIEDADE

SUMÁRIO: 9.0 A limitação ao direito de propriedade; 9.1 As principais limitações ao


direito de propriedade; 9.1.1 Limitações decorrentes do direito de vizinhança; 9.1.1.1
Uso anormal da propriedade; 9.1.1.2 Árvores limítrofes; Passagem de cabos e
tubulações; Limites entre prédios e direito de tapagem; 9.1.1.3 Passagem forçada;
9.1.1.4 Águas; 9.1.1.5 Direito de construir; 9.1.2 Limitações por tombamento; 9.1.3
Limitações voluntárias; 9.1.3.1 Limitações convencionais; 9.1.3.2 Limitações reais;
9.1.4 Limitações pela preservação do meio ambiente; 9.2 A função social da
propriedade; 9.2.1 Usucapião e desapropriação pela função social

9.0 A limitação ao direito de propriedade

Qui dominus est soli dominus est usque ad coelos et usque ad inferos, quem é dono
do solo é também dono até o céu e até o inferno, diziam os romanos para ressaltar o caráter
absoluto do direito de propriedade.

O céu representaria o espaço aéreo e o inferno o subsolo, numa bem bolada


metáfora sobre a extensão desse direito, que era como se vê infinita.

Porém todos sabemos que a propriedade não assume mais esse caráter absoluto,
afinal quando ouço o barulho de um avião cortando os céus sei que não recebo um centavo
pela utilização de “meu” espaço aéreo, assim também como nada recebo pela utilização do
“meu” subsolo quando nele passam toda a encanação de gás canalizado.

A extensão do direito de propriedade é determinado por um critério de utilidade


conforme dispõe o legislador ao estabelecer que a propriedade do solo abrange a do
espaço aéreo e subsolo correspondentes, em altura e profundidade úteis ao seu exercício,
não podendo o proprietário opor-se a atividades que sejam realizadas, por terceiros, a
uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse legítimo em impedi-las (art.
1.229)

Daí já se vê que a propriedade não vai até o céu e nem até o inferno, vai até onde o
legislador determina, e vai até onde não causar dano à propriedade vizinha, já que mesmo
não sendo proibido não se pode utilizar da propriedade para causar dano a outrem, sem
auferir nenhum benefício (essa é a regra do §2º do art. 1.228, são defesos os atos que não
trazem ao proprietário qualquer comodidade,ou utilidade, e sejam animados pela intenção
de prejudicar outrem, que traz para o Código Civil a proteção contra o abuso de direito).

219
Um dos casos pioneiros da restrição ao direito de propriedade foi julgado pelos
tribunais franceses ainda no séc. XIX, quando este decidiu que a colocação de estacas em
um terreno prejudicando o proprietário vizinho que praticava balonismo não podia ser
admitida, pois estas não visavam nenhuma vantagem para o proprietário, mas apenas
prejudicar o outro.

No Brasil uma de nossas primeiras limitações surgiu com o Código de Minas, de


1934, que dispôs ser a jazida um bem imóvel distinto do solo e do subsolo e pertencente à
União.

Assim a propriedade abrange a do solo e do subsolo, mas não abrange as jazidas


nele encontradas, seja de petróleo ou gases, nem as minas e demais recursos minerais, nem
os potenciais de energia hidráulica, nem os monumentos arqueológicos (art. 1.230 CC).

E de lá para cá a propriedade veio encontrando uma série de limitações, ditadas pela


Constituição, que determina que a propriedade deve atender a uma função social; pelo
Direito Administrativo, pois se uma casa constituir um bem histórico ela poderá ser
tombada, e apesar de continuar sendo do proprietário, nela não se poderá realizar nenhuma
modificação; ditadas pelo Direto de Vizinhança, que impedem o proprietário de prejudicar
o sossego dos seus vizinhos; ditada por normas sobre o Meio Ambiente, pois se uma
fazenda estiver em área de proteção ambiental, é melhor que o proprietário esqueça aquela
intenção de transformá-la em pasto para criar gado, nesse caso é melhor abrir uma
pousada!; ditadas por normas eleitorais, afinal as eleições devem ocorrer e qualquer imóvel
pode ser utilizado para zona eleitoral; ditadas também por normas penais, pois se o Brasil
declarar guerra, nosso imóvel poderá ser utilizado para defesa da Nação; por normas de
Direito Civil, como as que estabelecem as limitações ao direito de vizinhança.

O número de limitações não pára de crescer, seja na Constituição, no Direito


Administrativo, no Direito Civil, no Estatuto da Cidade, nos Planos Diretor Urbano (PDU),
etc.

Resta saber se também cresce a consciência do proprietário de que a sua propriedade


não é absoluta? De que o seu direito não é ilimitado? De que o poder atribuído ao
proprietário de usar, gozar e dispor do seu bem tem que estar em consonância com o espaço
ocupado por aquela propriedade na Cidade, na Zona Rural, com a função que ela exerce,
com o respeito a um crescimento sustentável das cidades, com o desenvolvimento social,

220
com o desenvolvimento humano, já que a propriedade é geradora de riquezas, entendendo-
se esta riqueza como moradia, habitação, plantação, colheita, emprego.

Será que todos os proprietários estão preparados para aceitar limitações


administrativas à sua propriedade? Como receberiam uma notificação do Município
determinando que aquele terreno que não ocupa fosse conservado, murado, cuidado ou uma
notificação determinando que explicasse porque há tanto tempo o imóvel não vem sendo
ocupado (pois se nada se faz com ele, também não se gera riquezas).

Será que aquele proprietário da zona rural está preparado para justificar o porquê da
sua propriedade não ser produtiva?

Essa idéia de que “sou proprietário, o imóvel é meu, faço o que quero e ninguém
tem nada a ver com isso”, faz parte do passado, de um velho passado, que não retornará,
pois como dissemos cada vez mais se aumentam as limitações e as exigências ao
proprietário.

O Estado não só tem a ver com isso, como pode impor que se faça isso ou muito
mais.

Pois a propriedade diz o CC deve ser exercida em consonância com as suas


finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o
estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o
patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas (art. 1.228,
§1º).

E a Constituição acima disso dirá que a propriedade atenderá a função social, logo
só pode ser proprietário quem atende a esta função social que a propriedade deve exercer.

Pois a propriedade não é um direito desprovido de conteúdo. Para ser proprietário


não basta ter um registro imobiliário, é necessário cumprir com sua função social e com
todas as imposições legais a seu exercício, caso contrário não haverá propriedade e nem
proprietário.

9.1 As principais limitações ao direito de propriedade

221
Como dissemos anteriormente a propriedade é limitada por diversas disposições e
em diversas áreas. Trataremos a seguir daquelas que consideramos serem as principais
limitações ao exercício do direito de propriedade bem como as que mais explicam não só
essas limitações, mas também a própria transformação porque passou e passa o direito de
propriedade.

São essas: 1- limitações oriundas do direito de vizinhança; 2- limitações por


tombamento; 3- limitações voluntárias; 4- limitações pela preservação do meio ambiente;
5- função social da propriedade.

Claro que há autores que trazem um rol muito mais extenso de limitações, mas
preferimos concentrá-las nessas que entendemos serem as principais, do qual muitas das
outras decorrem.

Comecemos então pelas limitações do direito de vizinhança.

9.1.1 Limitações do direito de vizinhança

O direito de vizinhança é um capítulo dentro do direito das coisas, tratada logo após
a perda da propriedade. E este por sua vez é dividido em sete seções, que abordam o uso
anormal da propriedade, as árvores limítrofes, a passagem forçada, a passagem de cabos e
tubulações, as águas, os limites entre prédios e o direito de tapagem e o direito de construir.
É um capítulo bastante extenso que vai do art. 1.277 ao 1.313.

Mas nota-se claramente em suas disposições o caráter limitatório do direito de


propriedade. Percebe-se que por trás de todas suas disposições o que fica expresso é o
estabelecimento de regras que visam disciplinar a relação entre vizinhos através de
limitações ao exercício do direito de propriedade.

Por isso, como já tínhamos explicado na introdução, preferimos abordar o direito de


vizinhança dentro das limitações ao direito de propriedade.

9.1.1.1 Uso anormal da propriedade

As primeiras regras sobre essa limitação vêem do uso anormal da propriedade.

222
Estabelece o art. 1.227 que “O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o
direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos
que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha”.

Quase todas as normas de direito de vizinhança poderiam ser resumidas nesta única
disposição que é bastante abrangente para regular todos os comportamentos pretendidos
pelo legislador nesta esfera privada de relações.

Nas relações de vizinhança se aplica bem aquele brocardo popular “de que o meu
direito vai até onde inicia o direito do outro”.

Aponta Washington de Barros Monteiro que o uso abusivo pode exteriorizar-se de


três formas: ofensa à segurança pessoal ou dos bens, ofensa ao sossego e ofensa à saúde.183

É uma ofensa à segurança pessoal ou dos bens atitudes como a exploração de uma
indústria de explosivos, ou uma obra que provoca trepidações excessivas, ou o depósito de
materiais perigosos e nocivos. É uma ofensa ao sossego atitudes da vizinhança que causem
ruído exagerado. E, por último, é uma ofensa à saúde atitudes da vizinhança que
provoquem emanações de gases tóxicos, águas paradas que aumentam o risco de dengue,
etc.184

Proíbe o legislador o chamado uso anormal da propriedade ou uso irregular. Mas


uma questão interessante que devemos refletir é se o próprio uso regular, lícito da
propriedade também pode sofrer restrições. E a resposta a essa reflexão deve ser sim.
Também o uso lícito, desde que prejudicial pelo seu exagero, pela sua deformação, vindo
assim a causar malefícios, incide na proibição legal.185

É por isso que o §único, do art. 1.277 irá dizer que proíbem-se as interferências
considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que
distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da
vizinhança.

Isso porque um grau de tolerância todos devemos ter. A construção no terreno ao


lado do meu, causa um desassossego, pelos ruídos, pela movimentação de empregados,

183 Curso, p. 135.


184 Ib. idem, p. 136.
185 Op. cit., p. 136.

223
poeira, etc, mas devo tolerar, afinal o proprietário também tem o direito de construir em seu
terreno, porém mesmo que a construção seja um uso lícito da propriedade, esta pode causar
danos, pelo excesso de ruído, de sujeira, pelo descumprimento de normas urbanas.

A regra do §único do 1.277 tenta estabelecer que algum grau de tolerância devemos
ter, afinal morando em cidades, em grandes centros urbanos há muitos ruídos que
interferem em nossa segurança, em nosso sossego e em nossa saúde, proibi-los de maneira
absoluta é impossível, senão imaginemos, nem carro poderíamos usar, pois também a sua
fumaça é prejudicial à saúde, a questão é buscar o grau de tolerabilidade e este deve ser
definido segundo as regras deste parágrafo, levando em consideração a natureza da
utilização, a localização do prédio (fará diferença, por exemplo, para estabelecer esse grau
de tolerância se a propriedade é urbana ou rural), as normas de edificações (deverá se
buscar no PDU da cidade as normas que regulam, construção, zoneamento,etc) e quais os
limites já existentes de tolerância naquela vizinhança.

É por isso que completando essa idéia dirá o legislador no art. 1.278 que ainda que
por decisão judicial devam ser toleradas as interferências, poderá o vizinho exigir a sua
redução, ou eliminação, quando estas se tornarem possíveis.

Por último ainda estabelecerá o legislador nesta seção do uso anormal da


propriedade a possibilidade de se requerer a demolição ou reparação de propriedade vizinha
que ameace ruína, fundamento em direito processual para a ação de dano infecto e também
a possibilidade de se requerer garantias de quem constrói para evitar eventual prejuízo.

9.1.1.2 Árvores limítrofes; Passagem de cabos e tubulações;


Limites entre prédios e o direito de tapagem

Muitas regras no direito de propriedade poderiam ser resolvidas com bom senso sem
necessidade de uma disciplina legislativa. Mas como nem sempre este ocorre e para quando
este não ocorrer regula o legislador uma série de normas referentes às principais questões
envolvendo vizinhos. Todas por mais simples que possam parecer já chegaram aos nossos
tribunais.

Chamaremos aqui a atenção dos aspectos mais importantes dessas normas evitando
a citação de artigos, na maioria das vezes auto-explicáveis.

224
Sobre as árvores limítrofes a principal regra é a de que se o tronco da árvore estiver
na linha divisória pertence aos seus proprietários (art. 1.282). É também autorizado ao
proprietário cortar os galhos e raízes da árvore vizinha que ultrapasse sua propriedade (art.
1.283), mas não pode por isso colher os frutos, pois não lhe pertencem, apenas pode colher
os frutos caídos, que passam a lhe pertencer (1.284). Mas caso esses frutos caiam em
propriedade pública, pertence ao dono da árvore.

Sobre a passagem de cabos e tubulações a regra principal é a da indenização ao


proprietário vizinho caso haja necessidade de se utilizar de sua propriedade para passá-los
(art. 1.286). Também poderá o proprietário exigir garantia na realização das obras (art.
1.287).

Já sobre os limites entre prédios e do direito de tapagem estabelece o legislador o


direito do proprietário de cercar, murar, valar ou tapar o seu prédio e constranger o
confinante a repartir proporcionalmente as despesas.

9.1.1.3 Passagem forçada

Outra regra é a da passagem forçada que implica no direito do proprietário de um


imóvel encravado, sem acesso à via pública, nascente ou porto, de constranger seu vizinho
a lhe dar passagem. Esta deverá ser dada pelo imóvel vizinho que mais natural e facilmente
sirva a esta passagem, devendo por isso este proprietário receber indenização cabal do
proprietário que se presta do seu bem.

É necessário que o encravamento seja absoluto, ou seja, não se admite a passagem


forçada quando há acesso à via pública, mesmo que este seja distante e íngreme.

É necessário que o proprietário do imóvel utilizado seja indenizado, fala o código


em ‘indenização cabal’, e por esse aspecto alguns autores assemelham a passagem forçada
como uma espécie de desapropriação compulsória.

Mas qual o sentido da expressão indenização cabal?

Mas não poderá se valer desse direito o proprietário que vende parte de seu imóvel,
tornando a outra parte encravada. Nesse caso a passagem deverá ser realizada na parte da
propriedade vendida, pois o encravamento deve ser natural (§2°, 1.285).

Há alguma semelhança entre a passagem forçada e a servidão de passagem ou de


caminho, mas não devem ser estas confundidas. A principal diferença é que na passagem

225
forçada se usa da propriedade alheia quando não há acesso à via pública, enquanto na
servidão de passagem se estabelece um direito real de uso sobre a propriedade alheia
mesmo que se tenha acesso à via pública. Visa-se na servidão de passagem a uma maior
comodidade na passagem. Esse direito é estabelecido em comum acordo entre as partes,
mediante pagamento e levado a registro no cartório de registro de imóveis. Por ser um
direito real adere ao bem e o novo titular da propriedade a adquirirá com essa limitação à
sua propriedade imposta pela servidão instituída pelo antigo-proprietário.

Abaixo quadro-comparativo da passagem forçada com a servidão de passagem:

PASSAGEM FORÇADA SERVIDÃO DE


PASSAGEM OU DE
TRÂNSITO

Definição Direito que decorre da lei Direito real estabelecido


quando um prédio não tiver através de negócio jurídico ou
acesso à via pública, de testamento, que grava no
constranger seu vizinho a lhe prédio serviente a passagem
dar passagem para o prédio dominante

Disposição legal art. 1.285 art. 1.378

Legitimidade Dono do prédio que não tiver Proprietário vizinho que queira
acesso à via pública utilizar o imóvel serviente
como passagem

Extinção Cessação do encravamento do Cancelamento judicial


prédio (art. 1.388);
Reunião dos dos dois
prédios no domínio da
mesma pessoa (art.
1.389, I);
Supressão das obras
estabelecidas no
contrato (1.389, II);
Pelo não-uso por 10
anos (1.389, III).

226
9.1.1.4 Águas

A água já foi um tema restrito ao direito civil, até o homem compreender a sua
importância, a possibilidade de seu esgotamento e o prejuízo de sua má-utilização.

O Código Civil regula alguns aspectos da água no que diz respeito à relação entre
vizinhos. E não as suas questões ambientais que envolve disciplina de direito público. Trata
da água doce. Pois a água salgada dos mares, não é de propriedade particular. E trata das
águas provenientes de rios particulares, pois a de rios navegáveis são públicas. Enfim, trata
da água, de rio particular, de córrego formado pela chuva, de lago, etc.

Não cuidou o código, como dissemos, das questões ambientais envolvendo essas
águas particulares, mas não que se despreocupou com isso o legislador civil, tanto que no
§1° do art. 1.228 estabeleceu que no exercício do direito de propriedade deve ser evitada a
poluição do ar e das águas.

São quatro os direitos de vizinhança em relação às águas com bem sintetiza Fábio
Ulhoa: a) direito de conservação; b) direito de aproveitamento; c) direito de represar; d)
direito de aqueduto.186

O primeiro destes, direito de conservação, trata da conservação do estado natural


das águas. Nesse sentido estabelece o art. 1.288 que o dono ou possuidor do prédio inferior
é obrigado a receber as águas que correm naturalmente do superior. Não poderá o prédio
inferior embaraçar o seu fluxo, construindo, por exemplo, um muro, para barrar a passagem
da água, represando-a no prédio superior. Mas também não poderá o prédio superior que
artificialmente colhe as águas criar um fluxo prejudicial ao imóvel inferior, nesse caso
poderá o dono deste reclamar que se desviem ou se lhe indenize (art. 1.289).

Com relação ao segundo destes direitos, direito de aproveitamento, estabelece o CC


no art. 1.290 que o proprietário de nascente, ou do solo onde caem águas pluviais,
satisfeitas as necessidades de seu consumo, não pode impedir ou desviar o curso natural das
águas remanescentes pelos prédios inferiores e também não poderá poluí-las fazendo com
que se torne imprestável aos moradores dos prédios inferiores (art. 1.291).

186 Curso, p. 175.

227
O terceiro desses direitos, direito de represar, assegura ao proprietário o direito de
represar águas de sua propriedade. Estabelece o art. 1.292 que “O proprietário tem direito
de construir barragens, açudes ou outras obras para represamento de água em seu prédio; se
as águas represadas invadirem prédio alheio, será o seu proprietário indenizado pelo dano
sofrido, deduzido o valor do benefício obtido”. Claro que tal direito deve ser exercido em
consonância com os anteriores. Não poderá o proprietário represar um rio obstando o seu
fluxo natural.

Por último estabelece o legislador nos arts. 1.293 a 1.296 o direito à construção de
aquedutos. Aquedutos são canais, geralmente subterrâneos, utilizados para captar água ou
para escoá-las. Autoriza o legislador que os proprietários e possuidores possam construir
esses canais através de imóveis alheios para receber as águas a que tenham direito bem
como para escoar as águas supérfluas (art. 1.293). Tal direito é exercido mediante
indenização aos proprietários dos terrenos utilizados, pelo qual podem exigir que o
aqueduto seja subterrâneo (§2°, 1.293) e que seja construído da maneira menos prejudicial
(§3°, 1.293).

9.1.1.5 Direito de construir

A última das limitações do direito de vizinhança são as normas sobre o direito de


construir. São estas estabelecidas nos arts. 1.299 a 1.313.

Parte o legislador do direito de construir “o proprietário pode levantar em seu


terreno as construções que lhe aprouver”, para a partir daí estabelecer suas limitações
“salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos”.

As limitações ao direito de construir não se restringem ao CC, são estabelecidas em


normas administrativas, como o PDU (plano diretor urbano). Esta hoje é a principal norma
referente à construção e zoneamento da cidade, é ele e não o CC que estabelece que
determinada área é residencial, que os edifícios não podem ultrapassar determina
metragem, etc . O CC é até pequeno frente a vastidão destas normas.

Mas cuida o legislador de estabelecer normas para aqueles que talvez seriam os
principais conflitos envolvendo uma construção para os vizinhos.

São estas na suscinta enumeração de Fábio Ulhoa: a) o prédio não pode despejar
águas diretamente sobre o vizinho (art. 1.300); b) as janelas, terraços ou varandas não

228
podem distar menos de metro e meio da divisa (art. 1.301); c) na zona rural, a distância
mínima do prédio em relação ao terreno vizinho é de 3 metros (art. 1.303); d) o confinante
que primeiro construir a parede divisória pode assentá-la até meia espessura no outro
imóvel e tem direito de cobrar do outro confinante metade de se valor, quando o vizinho
assentar as vigas (travejar) de sua construção na parede-meia (art. 1.305); e) a construção
não pode acarretar poluição ou inutilização de água de poço ou nascente alheia preexistente
(art. 1.309), nem lhe suprimir o conteúdo de forma a privar outrem do indispensável às suas
necessidades normais (art. 1.310); f) nenhuma obra pode importar o desmoronamento ou
deslocação de terra de imóvel vizinho ou colocar, de qualquer modo, em risco sua
segurança, devendo o proprietário construtor providenciar obras acautelatórias (art.
1.311).187

Porém todas essas normas estabelecendo minuciosamente regras de construção não


olvidam da regra principal sobre o uso anormal da propriedade. É com esta que se começa e
que se termina as limitações ao direito de vizinhança.

9.1.2 Limitações por tombamento

A segunda limitação à propriedade que aqui trataremos é a advinda do tombamento.


É este um instituto que tem por finalidade a proteção do patrimônio histórico e artístico
nacional. Estabelece o §1º do art. 216 da CF que “O Poder Público, com a colaboração da
comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de
inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação”.

Vê-se então que o tombamento é também um dos instrumentos de que o poder


público se vale para exercer essa proteção.

Discutem os autores acerca da natureza jurídica do tombamento, uns vêem nesta


uma limitação ao direito de propriedade, outros uma servidão e ainda outros vêem um
particular regime público sobre os bens particulares.

Mas independente da discussão acerca de sua natureza jurídica o certo é que há uma
limitação, pois ao bem tombado impõe-se uma série de restrições como a de não vender

187 Curso, p. 179-180.

229
sem dar preferência ao poder público, de não modificar o bem, de não pintar de outra cor
senão a original, restrições à vizinhança do bem tombado, etc.

O termo tombamento é utilizado no sentido de registro e apesar de sua etimologia


ser discutida parece originar-se do direito português onde a expressão tombar foi utilizada
para designar os registros que eram guardados na Torre do Tombo.

Divergem também os autores sobre o cabimento ou não da indenização no


tombamento. São 3 as posições como resume Carlos Alberto D. Maluf: a) a que defende a
gratuidade do tombamento; b) a que defende que o tombamento deve ser indenizado; c)
uma intermediária, que defende que não cabe indenização se o tombamento tiver alcance
geral, como, por exemplo, em Ouro Preto e Olinda, cabendo porém indenização se o
tombamento recair sobre imóvel isolado, desde que demonstrado prejuízo direto e
material.188

Tem por objeto o tombamento o patrimônio cultural brasileiro sendo este


considerado os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I- as formas de expressão; II- os
modos de criar, fazer e viver; III- as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV- as
obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações
artístico-culturais; V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (art. 216 da CF).189

Assim, o patrimônio cultural é material ou imaterial. 190

O órgão nacional competente pelo tombamento é o IPHAN, que é uma autarquia


federal, o órgão no estado de São Paulo é o CONDEPHAAT e no município de São Paulo é
o CONPRESP.

188Limitações ao direito de propriedade, p. 136.


189O art. 1º do Decreto-Lei 25/37, define patrimônio histórico e artístico nacional como o conjunto dos bens
móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a
fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico,
bibliográfico ou artístico.
190Já estão registrados como patrimônio imaterial no Brasil, conforme informação do IPHAN em seu site, os
seguintes bens brasileiros: Arte Kusiwa dos Índios Wajãpi; Ofício das Paneleiras de Goiabeiras; Samba de
Roda no Recôncavo Baiano; Círio de Nossa Senhora de Nazaré; Ofício das Baianas de Acarajé; Viola-de-
cocho e, mais recentemente, o Jongo. (www. Iphan.go.br)

230
O tombamento ocorre por um processo administrativo que pode ser de ofício quando
se trata de bens públicos (art. 5º, Decreto-lei 25/37) e voluntário ou compulsoriamente
quando se trata de bens particulares (art. 6º, De.lei, 25/37).

O procedimento do tombamento de ofício é o mais simples, após a manifestação do


órgão técnico, a autoridade administrativa notifica a pessoa jurídica de direito público
inscrevendo o bem no livro do tombo (art. 5º, Dec.lei 25/37).

O tombamento voluntário ocorre ou por iniciativa do proprietário do bem que requer


o tombamento ou quando notificado pelo órgão técnico competente anuir por escrito (art.
7º, Dec. Lei 25/37).

O tombamento será compulsório quando o proprietário do bem não anuir com a


notificação que lhe fizer o órgão técnico para inscrever o bem como tombado. O
procedimento no caso de tombamento compulsório é descrito no art. 9º do Dec. Lei 25/37,
o que também não impede de haver uma ação judicial por parte do proprietário. Mas a
principal defesa que se pautará é discutir se se trata de um bem de valor histórico ou
artístico.

O bem tombado é inscrito em um dos quatro livros do tombo previstos no Dec. Lei
25/37: 1) Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; 2) Livro do Tombo
Histórico; 3) Livro do Tombo das Belas Artes; 4) Livro do Tombo das Artes Aplicadas.191

Em se tratando de imóvel particular tombado além do registro no livro do Tombo


deverá ser realizada a averbação no registro de imóveis (art. 13, Dec. Lei 25/37).

São vários os efeitos do tombamento, implicando é claro em uma limitação ao


direito de propriedade. Mas essa limitação não anula o direito de propriedade, pois se isso
ocorresse deveria haver desapropriação e não tombamento. Se o bem for público se tornará
inalienável, só podendo haver a transferência de uma para outra pessoa jurídica (art. 10,
Dec. Lei 25/37).

191Para o tombamento de bens imateriais existem outros 4 livros: Livro de Registro dos Saberes, para os
conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; Livro de Registro de Celebrações,
para os rituais e festas que marcam vivência coletiva, religiosidade, entretenimento e outras práticas da vida
social; Livro de Registros das Formas de Expressão, para as manifestações artísticas em geral; e Livro de
Registro dos Lugares, para mercados, feiras, santuários, praças onde são concentradas ou reproduzidas
práticas culturais coletivas. (informação do site do IPHAN, www.iphan.gov.br)

231
Se o bem tombado for de propriedade particular o seu proprietário continuará dele
dono, mas para alienar deverá dar preferência às pessoas jurídicas de direito público (art.
22), havendo transferência mesmo causa mortis deverá ser informado o órgão competente
(§1º, art. 13), também não poderão as coisas tombadas serem destruídas, demolidas,
mutiladas, e para serem reparadas, pintadas ou restauradas deverá haver prévia autorização
do órgão competente (art. 17), se a coisa for móvel não poderá ser deslocada sem
comunicação ao órgão competente (§2º, art. 13), também não poderá sair do país sem essa
informação e ainda só poderá ocorrer por curto prazo para fim de intercâmbio cultural (art.
14).

O tombamento ainda provoca uma restrição na vizinhança do bem tombado, pois


esta não poderá fazer construção que impeça ou reduza a visibilidade, nem poderá colocar
anúncios ou cartazes (art. 18, Dec. Lei 25/37).

Considera-se essa restrição à vizinhança uma servidão, onde o bem tombado seria o
dominante e os imóveis vizinhos os servientes. 192

É aqui também, nesta restrição à vizinhança, onde se encontram muitas polêmicas


do tombamento. Volta e meia assistimos aos órgãos do patrimônio atuando para retirar
cartazes, outdoors, que impedem ou denigrem a imagem do bem tombado. Mas com certeza
um dos principais problemas que surgem com relação a isso é quanto a construção na
vizinhança do bem tombado. Como o alvará de construção é expedido pela Prefeitura,
ocorre deste ser concedido e depois, obra iniciada, o órgão do patrimônio manifestar-se
pela paralisação da obra, considerando, por exemplo, que esta afetará a visibilidade do bem
tombado.

É questão polêmica e de difícil resposta, pois afinal quem arcará agora com os
prejuízos? O proprietário deverá paralisar a obra, depois de ter sido autorizado pela
prefeitura? E se tiver quem lhe deverá indenização, já que realizou um ato lícito?193

Por tudo isso vê-se que o tombamento independentemente da discussão sobre sua
natureza jurídica, provoca uma restrição à propriedade, que por vezes é vantajosa ao

192 Na posição da profª Maria Sylvia Di Pietro, “È servidão que resulta automaticamente do ato do
tombamento e impõe aos proprietários dos prédios servientes obrigação negativa de não fazer construção que
impeça ou reduza a visibilidade da coisa tombada e de não colocar cartazes ou anúncios; a esse encargo não
corresponde qualquer indenização”, in Direito Administrativo, p. 139.
193 JURISPRUDÊNCIA

232
proprietário e outras não, causando por isso alguns conflitos, mas se trata de um ato que
visa a proteção de um direito difuso, que é o patrimônio histórico e artístico, não ocorrendo
para agradar ou desagradar seus proprietários mas visando a proteção de um bem público
que é o patrimônio nacional.

9.1.3 Limitações voluntárias

Diz-se limitações voluntárias aquelas que resultam da própria vontade do


proprietário.194

As limitações voluntárias correspondem por vez à instituição de outro direito real,


como ocorre, por exemplo, com o usufruto. Ao ser estabelecido pelo proprietário priva-se
do uso e gozo do bem em favor daquele a quem foi estabelecido, o usufrutuário.

Mas além da instituição de um direito real limitativo da propriedade poderá o


proprietário limitar a transferibilidade do bem, tornando-o inalienável, como também
poderá determinar a incomunicabilidade do bem, ou poderá estabelecer um encargo no
exercício do direito de propriedade.

Essas limitações são estabelecidas principalmente no testamento, na doação e na


compra e venda. Através de cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e
impenhorabilidade e também por encargos na doação.

Chamaremos estas de limitações convencionais e aquelas, onde se estabelece um


outro direito real limitado, de limitações reais.195

9.1.3.1 Limitações convencionais

São limitações convencionais, ou voluntárias como por vezes é designada, as


cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade estabelecidas em
doações e testamentos, limitando nesse sentido a propriedade daquele que a recebe.

194Carlos Alberto Dabus Maluf, in Limitações, p. 150.


195Fábio Ulhoa define essas limitações como limitações negociais e as divide em limitações reais, limitações
convencionais e limitações-encargos. Para o autor, reais são as que criam um direito real, como o usufruto e a
servidão; convencionais as que as partes assumem obrigações que correspondem a restrições no exercício do
direito de propriedade, como quando o locador dá em locação o seu bem, perdendo então o uso e encargo as
que estabelecem as cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade (Curso, p. 72).
Utilizaremos aqui a denominação reais no sentido trazido pelo autor, mas designaremos por convencionais a
que o autor denominou por encargo.

233
A inalienabilidade implica para aquele que recebe a propriedade a impossibilidade
de aliená-la, a título gratuito ou oneroso, a incomunicabilidade impede a comunicação do
bem para aquele que recebe ao seu cônjuge e a impenhorabilidade torna o bem
impenhorável não podendo por isso ser tomado para pagamento de dívida do seu
proprietário.

Tais cláusulas só podem ser estabelecidas em negócios gratuitos como o testamento


e a doação. E não podem ser estabelecidas pelo próprio proprietário sobre seus bens.

Também não permite o legislador que possam ser estabelecidas ao bel prazer do
testador ou doador, exige-se justa causa.196 Porque afinal a limitação imposta por elas
engessa o direito do proprietário, imagine receber um bem de herança e nunca poder aliená-
lo, mesmo tendo necessidade de fazê-lo, para, por exemplo, saldar dívidas, investir,
financiar projetos de vida, como viajar para o exterior, morar fora do país, financiar o
estudo de um filho, etc.

Pela quantidade de problemas que surgiam com a imposição destas cláusulas


preferiu o legislador atual restringir a sua possibilidade, dispondo no art. 1.848 que “Salvo
se houver justa causa, declarada no testamento não pode o testador estabelecer cláusula de
inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima.”

O legislador de 1916 não previa essa justificativa para imposição destas cláusulas.
Também era mais abrangente, pois tratava do testamento e da doação. Estabelecia no art.
1.676 que “A cláusula de inalienabilidade temporária, ou vitalícia, imposta aos bens pelos
testadores ou doadores, não poderá, em caso algum, salvo os de expropriação por
necessidade ou utilidade pública, e de execução por dívidas provenientes de impostos
relativos aos respectivos imóveis, ser invalidada ou dispensada por atos judiciais de
qualquer espécie, sob pena de nulidade”.

A restrição atual impõe a necessidade de justificativa (justa causa) para o


estabelecimento destas cláusulas quanto aos bens da legítima, ou seja, quanto àqueles bens
que já cabem de direito aos herdeiros. Quanto aos outros, a parte disponível da herança, não
há exigência de justificativa, logo para estes poderá o testador limitá-los sem necessidade
de justificativa.

196Refere-se a justa causa o legislador no Livro das Sucessões, estabelecendo no art. 1.848 “Salvo se houver
justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade,
impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima”.

234
Quando a restrição vier do testamento constará do próprio ato a justificativa, como
exige o art. 1.848 (declarada no testamento).

No CC anterior havia referência expressa à doação, o atual art. 1.848 somente se


refere ao testamento. Haverá então necessidade de justificativa quando a limitação for
imposta por doação? Entendemos que sim, mesmo que se trate de um contrato, de um
acordo de vontades, a doação muitas vezes se caracteriza como um adiantamento de
legítima e até para que terceiros não a contestem faz-se necessário essa justificativa.

Em que importa a inalienabilidade? Na impossibilidade de alienação do bem, seja a


título oneroso ou gratuito. Logo não poderá o bem clausulado ser vendido, doado, gravado,
permutado ou dado em pagamento (dação em pagamento). Não se admitirá nem mesmo a
gravação por hipoteca ou penhor, pois estas garantias já propiciam um início de
alienação.197

O bem clausulado por inalienabilidade pode ser alienado, quando também houver
justa causa, porém haverá a sub-rogação nos outros bens em que se converteu a alienação
(§2°, 1.848. Mediante autorização judicial e havendo justa causa, podem ser alienados os
bens gravados, convertendo-se o produto em outros bens, que ficarão sub-rogados nos
ônus dos primeiros).

A cláusula de inalienabilidade por sua vez implica também a de impenhorabilidade e


incomunicabilidade como estabelece o art. 1.911.

Logo, mesmo omisso o testador ou doador quanto as outras duas cláusulas, essas
também importarão naquela.

A incomunicabilidade como resumidamente dito acima importa na impossibilidade


de comunicação ao cônjuge do bem clausulado. Pode um pai temendo um casamento
desastroso de um filho doar-lhe um bem com esta cláusula, assim ao seu cônjuge, qualquer
que seja o regime, não se comunicará o bem.

O estabelecimento da cláusula de incomunicabilidade não presume a de


inalienabilidade, o que ocorre a contrário sensu (a de inalienabilidade presume a
incomunicabilidade). Mas havendo a alienação, pelo que dispõe o §2° do art. 1.848 haverá
a sub-rogação nos bens adquiridos.

197 Venosa, Direito Civil, p. 159.

235
Já a cláusula de impenhorabilidade estabelece a impenhorabilidade voluntária do
bem clausulado, isto quer dizer, que não poderá sofrer constrições judiciais para
pagamentos de dívidas pelo beneficiado. Não se pode estabelecer a cláusula em proveito
próprio, apenas se poderá fazê-lo por testamento ou doação.

A impenhorabilidade não pode servir para lesar credores.

9.1.3.2 Limitações reais

São limitações reais as que estabelecem uma limitação à propriedade através da


constituição de um outro direito real, direito real sobre coisa alheia, tornando a propriedade
antes plena, limitada.

Todos os outros direitos reais além da propriedade são direitos reais sobre coisas
alheias – superfície, servidão, usufruto, uso, habitação, direito do promitente comprador do
imóvel, penhor, hipoteca e anticrese, - que limitam a plenitude da propriedade, tornando-a
assim uma propriedade limitada.

Por esse aspecto deveríamos comentar todos os direitos reais sobre coisas alheias,
pois como dissemos, todos limitam a propriedade. Porém nos restringiremos a uma análise
geral, senão tomaremos aqui nesta obra o lugar de uma outra que pretende tratar dos
direitos reais sobre coisas alheias.

O primeiro direito real sobre coisa alheia é a superfície. Trata-se de um novo direito
real, se bem que já existiu em nossas ordenações, estabelecido pelo atual legislador. Trata
da possibilidade do proprietário conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em
seu terreno. Este torna-se o superficiário e o outro o proprietário ou nu-proprietário, já que
terá uma propriedade nua, destituída do poder de uso e gozo, pois este caberá ao
superficiário.

O segundo direito real sobre coisa alheia é a servidão. A servidão é uma restrição
imposta a um prédio para uso e utilidade de outro prédio. Aquele chama-se serviente e este
dominante (art. 1.378). Aqui fica mais caracterizada a limitação do que na superfície, pois o
proprietário do prédio serviente não perde o uso e gozo, apenas, por convenção, é obrigado
a suportar o uso do seu prédio pelo prédio serviente, como por exemplo, na servidão de
passagem ou de aquedutos.

236
O próximo direito real sobre coisa alheia é o usufruto. É este o direito real conferido
a uma pessoa, durante certo tempo, que a autoriza a retirar da coisa alheia os frutos e
utilidades que produz.198 Estabelecido o usufruto o usufrutuário tem o direito de uso e gozo
do bem. O proprietário neste caso, também é um nu-proprietário, pois com o usufruto
retira-se-lhe todos os poderes de uso e gozo, ficando somente com a nua propriedade,
poderá dispor, mas não poderá usá-la e nem dela fruir.199 Os próximos direitos reais sobre
coisa alheia, uso e habitação, nada mais são que espécies de usufruto limitados ao uso ou a
habitação.

O próximo direito é o direito do promitente comprador do imóvel. Este, assim como


a superfície são direitos novos deste código, porém diferente daquela, que é um resgate de
um instituto do passado, este é fruto da vitória da jurisprudência no entendimento desta
relação. Ao ser estabelecido pelo proprietário uma promessa de compra e venda, o
promitente comprador adquire um direito real de aquisição da propriedade. Assim
terminado de pagar o preço poderá, caso esta não lhe seja concedida, exigir do proprietário
ou de terceiros a outorga da escritura de compra e venda (art. 1.417 e 1.418). A relação
obrigacional descumprida (pelo proprietário que não outorgou a escritura) não mais se
resolve em perdas e danos, mas no direito do comprador de obter a propriedade do
bem.200A limitação à propriedade ocorre aqui com relação à disposição, pois enquanto
perdurar a promessa, o proprietário poderá usar e gozar do bem, porém não poderá dispor,
pois é do promissário o direito a essa propriedade.

Os últimos direitos reais são os direitos reais de garantia: penhor, hipoteca e


anticrese. Não limitam estes o uso e gozo apenas estabelecem a propriedade como garantia
de pagamento de um crédito. No caso do penhor esta garantia incidirá sobre um bem
móvel, na hipoteca sobre um bem imóvel e na anticrese sobre os rendimentos de um bem.
Caso o crédito constituído pelo proprietário não seja pago, se a garantia estabelecida for o
penhor ou a hipoteca esse bem será vendido e com o produto da venda pagará o credor, se a

198 Clóvis Bevilácqua apud Washington de Barros Monteiro in Curso, p. 293.


199 Pensa-se aqui no usufruto pleno, aquele que é mais comum, pois quando for restrito, limitado por exemplo

à moradia, será habitação e se limitado ao uso, sem moradia, será o direito real de uso.
200 Já era esse o entendimento de nossa jurisprudência para os contratos de compra e venda a prazo (promessa

ou compromisso de compra e venda). Exige o legislador no art. 1.417 que as partes não tenham estabelecido o
direito de arrependimento e que este contrato seja registrado no cartório de registro de imóvel.

237
garantia estabelecida for a anticrese, o credor poderá usar o bem e dele extrair os frutos
necessários para o pagamento do crédito.

9.1.4 Limitações pela preservação do meio-ambiente

Estabelece o §1° do art. 1.228 que “O direito de propriedade deve ser exercido em
consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam
preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as
belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como
evitada a poluição do ar e das águas”.

Cuidou o nosso legislador de elaborar um dispositivo preocupado com o reflexo da


questão ambiental sobre o direito de propriedade. Não havia tal dispositivo no código
passado, até porque tal preocupação ainda era muito incipiente.

Em outras palavras quer dizer o artigo que se o direito de propriedade deve ser
exercido preservando a flora, fauna, etc, significa que para preservar a flora, fauna, belezas
naturais, equilíbrio ecológico patrimônio histórico e artístico, e a poluição do ar e das
águas, poderá a propriedade sofrer limitações.

Essas limitações surgem em leis especiais mas também pela própria interpretação da
norma que é uma cláusula geral.

A expressão meio ambiente é usada para designar o meio ambiente natural (solo,
água, ar, flora e fauna), o meio ambiente cultural (patrimônio histórico, artístico e
arqueológico) e o meio ambiente artificial (edifícios, equipamentos urbanos, comunitários).
Vê-se nesse sentido que o próprio instituto do tombamento é um instrumento de proteção
ambiental. Nesse sentido o ‘velho’ direito de vizinhança também tem esse fim, pois quem
primeiro sofre os danos ambientais são os vizinhos, assim quando o art. 1.277 diz que “O
proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências
prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela
utilização da propriedade vizinha” é este também um instrumento de proteção ambiental.

Os instrumentos de proteção ambiental

A responsabilidade pelo dano ambiental é objetiva.

238
Os principais instrumentos jurídicos da tutela ambiental são a CF que lhe dedica um
capítulo (art. 225 ), a Lei 6.938/81, que estabelece a política nacional do meio ambiente.

9.2 Função social da propriedade

Não há nada que se comente mais ao longo dos últimos anos em relação à
propriedade do que a sua função social.

Há dúvida sobre quando e por quem surgiu esse conceito. Entre nós prepondera a
idéia de Leon Duguit.

No direito brasileiro tal expressão surgiu na CF/1988, se bem que esta visão de uma
funcionalidade já existia desde a CF/34 que no art. 113, n. 17 estabelecia que “o direito de
propriedade não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo”.

O quadro evolutivo do direito de propriedade em nossas Constituições apresenta-se


da seguinte forma:

CF 1824 1891 1934 1946 1967 1988

Arts. Art. 179, Art. 72, §17 Art. 113, Art. 147 Art. 157, III Art. 5°,
XXII n. 17 XXIII.

PROPRIEDADE “É garantido “O direito de “O direito “O uso da “A ordem “a


o direito de propriedade de propriedade econômica propriedade
propriedade mantem-se em propriedade será tem por fim atenderá a
em toda a toda a não poderá condicionado realizar a sua função
sua plenitude, ser ao bem-estar justiça social, social”
plenitude. salva a exercido social” com base nos
Se o bem desapropriação contra o seguintes
publico por interesse princípios:
legalmente necessidade ou social ou III – função
verificado utilidade collectivo” social da
exigir o uso, publica, propriedade”.
e emprego mediante
da indemnização
propriedade prévia. As
do Cidadão minas

239
será elie pertencem aos
préviamente proprietários
indemnisado do solo, salvas
do valor as limitações
della”. que forem
estabelecidas
por lei a bem
da exploração
deste ramo de
industria”

Apesar de toda essa evolução impressa ao longo dos anos o conceito de propriedade
no CC atual em nada foi alterado em relação ao anterior. Estabelecia o art. 524 do CC/16
que “A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de
reavê-los de quem quer que injustamente os possua”. O CC/02 estabelece que “O
proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do
poder de quem injustamente a possua ou detenha”. Não houve evolução e nem
aperfeiçoamento do conceito e continua-se definindo a propriedade pelo seu conceito.201

A CF atual tratou da função social em vários dispositivos e para ela estabeleceu


vários instrumentos. O primeiro destes é o art. 5°, XXIII, que logo após ter estabelecido que
é garantido o direito de propriedade, determina o legislador que essa atenda a sua função
social. Também estabelece o legislador como princípio da ordem econômica a função
social da propriedade (art. 170, III). Na política urbana dirá que esta tem por objetivo
ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade (art. 182, caput). Também
na política urbana estabelecerá que a propriedade urbana cumpre sua função social quando
atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor (§2°,
art. 182). E no capítulo da política agrícola e fundiária e da reforma agrária foi onde mais
detalhadamente tratou o legislador da função social. Primeiro estabeleceu que o imóvel
rural que não esteja cumprindo sua função social poderá ser desapropriado (art. 184). No
art. 186 estabeleceu critérios para se definir quando cumpre a propriedade sua função

201 Guedes, Jefferson Carús. Função social das “propriedades”...in Aspectos controvertidos do novo código
civil, p. 345.

240
social.202 E prescreveu no art. 185 que a pequena e média propriedade assim como a
propriedade produtiva não serão desapropriadas para reforma agrária.

Tudo isso não define e não definirá o que seja função social da propriedade, esta
sempre permanecerá sendo um conceito jurídico indeterminado, preenchido pela própria
evolução da propriedade e da sociedade.

Mas em si a noção de função social traz consigo a idéia de um direito não absoluto,
da utilidade no exercício desse direito, do atendimento de uma função a ser exercida por
aquele instituto na coletividade, a noção da função econômica que este representa como
fonte geradora de riquezas, que só é cumprida quando há um uso do bem e um uso voltado
a essas funções.

9.2.1 Usucapião e desapropriação: instrumentos da função social da


propriedade

A usucapião e a desapropriação são institutos de que se vale o legislador em


determinadas situações para atingir a função social da propriedade, pois o proprietário por
não atender a esta função pode perder o seu bem por desapropriação, bem como por
usucapião pode o possuidor adquirir um bem em modalidades de prazo mais reduzidas
privilegiando a função social do bem que este atinge quando nele mora e produz.

Não se está dizendo que esses dois institutos são destinados à função social da
propriedade, são estes institutos autônomos cuja função é definida em lei, mas de que se
vale o legislador para por eles, buscar o cumprimento da função social da propriedade.

No primeiro, desapropriação, ‘pune-se’203 o proprietário que não cumpriu a função


social com a perda do bem, e no segundo, usucapião, privilegia-se o possuidor que atinge a
função social do bem com redução de prazo prescritivo.

Este caráter sancionatório da desapropriação, criticado pela doutrina, nota-se


também com relação à indenização do proprietário. Na desapropriação para atendimento de

202 “Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo

critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I- aproveitamento racional e
adequado; II- utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III-
observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV- exploração que favoreça o bem-estar
dos proprietários e dos trabalhadores”.
203 Usa-se aqui a expressão punir de forma licenciosa, mais como um recurso lingüístico a reforçar a idéia da

perda de um direito (direito de propriedade) do que como uma terminologia técnica.

241
uma utilidade pública, o pagamento é prévio e em dinheiro (art. 5°, XXIV), já nas
desapropriações por desatendimento da função social o pagamento não é em dinheiro,
paga-se com títulos da dívida pública resgatáveis no prazo de até 10 e até 20 anos.

Já com relação a usucapião o CC/2002 reforçou ainda mais esta idéia de um


privilégio ao possuidor que cumpre a função social do bem, quando trouxe mais duas
modalidades que tem seu prazo reduzido pelo atingimento desta função social. Foram estes
o §único do art. 1.238 e o §único do 1.242. Também dentro desta política incluiu o
legislador uma nova hipótese de perda da propriedade no §4° do art. 1.228, privilegiando
também o cumprimento da função social da propriedade.

Assim, resumiríamos nesse quadro as principais hipóteses legais que visam através
da usucapião e da desapropriação buscar o cumprimento da função social da propriedade,
ora sancionando ora beneficiando quem a cumpre:

DESAPROPRIAÇÃO USUCAPIÃO

Art. 182, §4°: “È facultado ao Poder Público Art. 183. Aquele que possuir como sua área
municipal, mediante lei específica para área urbana de até duzentos e cinqüenta metros
incluída no plano diretor, exigir, nos termos da quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e
lei federal, do proprietário do solo urbano não sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou
edificado, subutilizado ou não utilizado, que de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde
promova seu adequado aproveitamento, sob que não seja proprietário de outro imóvel
pena, sucessivamente, de: III- desapropriação urbano ou rural.
com pagamento mediante títulos da dívida
(USUCAPIÃO PRO HABITATIONE)
pública de emissão previamente aprovada pelo
Senado Federal, com prazo de resgate de até dez
anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas,
assegurados o valor real da indenização e os
juros legais”.

Art. 184. “Compete à União desapropriar por Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de
interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural ou urbano, possua como seu, por
imóvel rural que não esteja cumprindo sua cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de
função social, mediante prévia e justa terra, em zona rural, não superior a cinqüenta
indenização em títulos da dívida agrária, com hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho
cláusula de preservação do valor real, ou de sua família, tendo nela sua moradia,

242
resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir adquirir-lhe-á a propriedade.
do segundo ano de sua emissão, e cuja
(USUCAPIÃO PRO LABORE)
utilização será definida em lei”.

§4°,1.228. O proprietário também pode ser § único, 1.238. O prazo estabelecido neste
privado da coisa se o imóvel reivindicado artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor
consistir em extensa área, na posse ininterrupta houver estabelecido no imóvel a sua moradia
e de boa-fé, por mais de cinco anos, de habitual, ou nele realizado obras ou serviços de
considerável número de pessoas, e estas nela caráter produtivo.
houverem realizado, em conjunto ou
(FORMA ESPECIAL DO USUCAPIÃO
separadamente, obras e serviços considerados
EXTRAORDINÁRIO)
pelo juiz de interesse social e econômico
relevante.

§5°, 1.228. No caso do parágrafo antecedente, o


juiz fixará a justa indenização devida ao
proprietário; pago o preço, valerá a sentença
como título para o registro do imóvel em nome
dos possuidores.204

§ único, 1.242. Será de cinco anos o prazo


previsto neste artigo se o imóvel houver sido
adquirido, onerosamente, com base no registro
constante do respectivo cartório, cancelada
posteriormente, desde que os possuidores nele
tiverem estabelecido a sua moradia, ou
realizado investimentos de interesse social e
econômico.

(FORMA ESPECIAL DO USUCAPIÃO


ORDINÁRIO)

204 Para alguns autores trata-se esta espécie de uma desapropriação judicial,

243
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