Você está na página 1de 88

_

R1111111� do fi,11,mn·110/ogio 11() /Jnl'·il


_;..:,__ _____
_;_:__.:.__:__:.:.._:.:..__,,:,__;,_:_:.:.._:_ --·- -
l.11is t:·d11anln l·nmpio Jurclim

um esforço para a apropriação de um n· >do de pensar e de uma ocupamos delas com a m:1ior intcnc;idadc posc;ível."1
concepção de homem absolutamente diversa das habituais na psi­ Ao longo da minha cxpcríG11ci:1 como prnl'cssor e super­
cologia e na filosofia tradicional, bem como na prálíca cotidiana. visor clínico de fenomenologia. e também 110� cursos c grnros de
A aproximação corn a fenomenologia para aquele que se dedica a estudos ministrados, pude observar algumas noçúcs da l'c110111cno­
estudá-la é algo que pede cm si urna permanência. um demorar­ logia cujo sentido o estudante parece encontrar m,1ior di liculdade
se nos estudos para que a fenomenologia mesma possa se mos­ de compreender. Essas noções são como /HIii/os C'l'Íticos do ensí no
trar por si. A compreensão da fenomenologia caminha lado a lado da reno111enologia ror ca1Tegarern cm si uma complexidade ou urna
com o colocar-se cm uma postura fenomenológica, de modo que grande diferença conceituai cm relação à tradição do conhecimento.
tnmbém o aprent.li:ado dufenornenologio acuntece agindo-se/e­ A dificuldade de alcançar urna adequada compreensão dc noções
nomenologicomente. centrais da tcnornenologia mostra-se como mais uma barr eira pa­
A própria fenomenologia nos oricnta para a necessidade ra que o estudioso vindo da área da Psicologia consiga estabelecer
de deixar que a coisa se mostre, deixá-la ser tal como ela é, e isso uma relé!ção desse conhcci1rn:nto com a prática clínica.
implica um ater-se, um demorar-se junto a aquilo que está dian­ Em diversos sentidos, o pensamento fenomenológico se
te de si. Para Mar tin Heidegger, '·ser junto a ... , permanecer junto dilerc de como estamos cotidianamenk habituados a pensar e
a... caracterizam inicialmente um modo, em conformidade com não pode ser (!xplicado com base nas rclerências Lradicionais do
o qual nós, os homens, somos." 1 No permanecer junto a ... feno­ pensamento. Assim corno ocorre nas modalidades tradicionais de
menologia, ela pode se mostrar a partir dela mesma, abrindo-se a conhecimento, a fenomenologia também se estrutura ulilizando
possibilidade de compreendê-la fenornerwlogicarnente. termos próprios que carregam significações condizentes com seu
Para o psicólogo e estudante de Psicologia, o aprendiza­ modo específico de pensar.
do da fenomenologia exige não apenas demorar-se nas leituras, Com certa frequência, percebe-se no estudante a tentativa
Jn3S também exige dedicação de tempo a discussões e comp ar­ de alcançar um maior entendimento quanto ao significado de algu­
tilhamento do aprendizado cm grupos de estudos e supcrvisões ma noção da fenomenologia referenciada em conceitos consolida­
clínicas. É também no dia a dia da prática clínica, no exercício dos da Psicologia tradicional, como unia mera 111udança Lerminoló­
da fenomenologia na escuta do outro, que a fenomenologia po­ gica. Essa tentativa resulta em confusões e falta de clareza quanto à
de ser tal como ela é. E, gradualmente, ela pode ser apropriada e especificidade do pensamento fonomcnológico. Quando se trata de
constantemente reaprendida, ao se constituir como um modo de fenomenologia, é necessário que a concepção do pensamento feno­
pensar e de compreender. "Deixamos as coisas serem como elas menológico também parta de um lugar que lhe seja próprio.
são, entregamo-las a elas mesmas, mesmo se e justamente se nos Foi com base na constatação dessas dificuldades que sur-

M. Heidegg.cr. l111roú11rlio ú Fíln<t?fia, p,74. ld.:111. p.107

47
, ,

Rumos da.fenomenologia 110 Brmil /.11i.1· l:.'duardo Fmnç<io Jardim

giu a ideia da elaboração deste artigo. Neste texto, pretende-se Logo, o objetivo deste artigo, além de explicitar o signi­
analisar alguns desses pontos críticos que, para estudantes e jo­ ficado da noção de compreensão para a fenomenologia, consiste
vens terapeutas iniciando seu aprendizado na área, refletem obstá­ em discutir a articulação entre compreensão e ação e seus desdo­
culos e equívocos no caminho da construção de uma compreensão bramentos para a prática clínica. É importante ressaltar que o ca­
da fenomenologia. minho a ser percorrido neste artigo está atravessado pelo contexto
Dentro dos limites da proposta deste texto, decidiu-se do atendimento clínico fenomenológico. O foco parte do olhar da
abordar, como dois desses chamados pontos críticos, as noções prática do terapeuta para pensar os desdobramentos da compreen­
de comJJreensiio e açiio. Pretende-se nas próximas linhas escla­ são e da ação para o paciente, isto é, como esses desdobramentos
recer o significado dos conceitos de compreensão e de ação. bem são experienciados pelo paciente.
como explicitar a relação fundamental que há entre um e outro Antes de iniciar o caminho da devida explicitação da com­
no âmbito da prática clínica. No entanto, cabe antes esclarecer os preensão e de sua relação com a ação no contexto da prática clínica,
critérios cm jogo na escolha por debruçar-se sobre esses pontos, é importante que seja feito um esclarecimento prévio sobre a funda­
dentre tantos outros de fundamental importância. mentação fenomenológica que sustenta a articulação proposta.
Primeiramente, a escolha por abordar compreensão e ação Até este 1nomenlo, o tenno "Jenomenologia" foi aqui utili­
deve-se às características bastante próprias do modo como ambas zado de modo indiscriminado. Entretanto, a fenomenologia não po­
são pensadas pela fenomenologia. O adequado entendimento do de ser vista de modo genérico e descuidado como um apanhado de
modo como a fenomenologia acessa esses dois aspectos aprox i­ diversos autores que, supostamente, pensariam de modo semelhante.
ma o leitor de urna visão mais ampla do panorama geral da fe­ Frequentemente, nas graduações de Psicologia, a fenome­
nomenologia. Em segundo lugar, esta escolha se deu baseada na nologia é apresentada sob a perspectiva de um conjunto de auto­
importância fundamental que ambos os aspectos sustentam no co­ res de grande relevância cujo olhar é perpassado por esse pensa­
tidiano da prática clínica. O dia a dia da clínica fenomenológica é mento, porém muitas confusões surgem com isso. É fundamental
constituído de modo essencial pela compreensão e pela ação. Isso ressaltar que o pensamento de cada um deles carrega suas caracte­
as torna mais próximas ao interesse do estudante que inicia sua rísticas próprias e que eles não podem ser vistos como um "bloco
prática clínica fenomenológica e amplia a importância do seu ade­ fenomenológico". Os autores da fenomenologia não dizem todos
quado entendimento. E, por fim, a escolha baseia-se na existência a mesma coisa e tampouco do mesmo modo. Se fosse traçado um
dentro do contexto clínico de uma íntima relação que liga a ação paralelo com a psicanálise, geralmente mais conhecida do estu­
à compreensão. Essa ligação costuma ser negligenciada no ensino dante de Psicologia, esta confusão seria o equivalente a dizer que
acadêmico da fenomenologia e raras vezes é abordada. Na prática os psicanalistas Freud, Lacan, Klein, Bion e Winnicott pensam a
clínica fenomenológica, a compreensão e a possibilidade do agir psicanálise do mesmo modo. O que obviamente não é verdade.
estão relacionadas entre si de modo indissociável, corno apresen­ Muito embora seja compreensível que essa dificuldade
taremos mais adiante. permaneça - dado que o reduzido espaço destinado à fenomeno-

49
Rw110.1· d11.fi•110me11r,/og1a 110 FJrasil
-----------------------
l.11is l:"d11ordo /-'runç-,111 J11nli111

logia na maioria dos cursos de graduação nem sempre permile se no dia a dia o paciente tem que lidar com situações concretas.
maiores aproíunda1m:ntos -, a diterenciação das caracte r ísticas do lern que resolver problemas, tomar decisfü:s, ullrarassa r dificul­
pensamento dos filósofos da fenomenologia é um aspecto ímpor- dades, isto é. se ele tem que agir'? Arenas compreender, enquanto
1.ante, que não pode ser negligenciado. o mundo eslá caindo ao redor, não seria muito poc;fico'! Para que
Nesse sentido, cab1; esclarecer que as articulações ar r e- compreender'1 Qual relação existe entre a rcf'crida comrreensão
sentadas neste texto eslão orientadas e fundamentadas primordial­ clínica e as ações necessárias do dia-a-dia?
mente na fenomenologia hermenêutica, tal como ela se mani lesta O mais das vezes, esses qucstionarncnlos são negligencia­
1! no pensamento do tilósofo alemão Martin Heidegger. ão cabe dos no ensino da fenomenologia em Psicologia. E, nesse sentido,
1 ao propósito deste artigo uma vasta exploração do pensamento corrobora com a impressão equivocada de que a prática clínica da
heideggeriano: no entanto. articulado com a prática clínica, será Daseinsana/y.,·e seria urna mera "contemplação poética" do discu r­
o seu modo de pensar que atravessará o desenvolvimento de to­ so que o paciente traz ao consultório, uma divagação abstrata sobre
do o texto. A prática clínica realizada com base no pensamento o existir do paciente, e nada leria a ver com o cotidiano para além
heideggeriano é denominada Daseinsona(vse. A partir d<1 segunda da porta do consultório. Essa dúvida-engano sobre a fenomenologia
mt:tade do texto, serão apresentadas importantes eontrihuiçõcs do acontece também, com certa frequência, entre psicoterapeutas de
pensamento de I lannah /\n.:ncH sobre a a�·iio. de modo a esclarecer outras abordagens quando falnm sobre fenomenologia.
frequentes equívocos e dúvidas do estudante quanto a sua articu­ A compreensão é um aspecto fundamental do existir hu­
lação na ótica da Daseinsanalys<!. mano, conslituti vo da abertura (Erschlos.,;enheit 3) que nós mes­
mos somos na condição de ser-no-mundo. A todo o momento
t. A prática clínica: como compreender e compreender como em nosso comportamento, nos mantemos em uma compreensão
Nos primeiros passos do estudo da Dasein.rnnol,1•s('. aprende-se do ser dos entes - daqueles entes que nós mesmos não somos e
de modo super/iciol, e às vei'.es equivocado, que na prática clini­ daquele que somos como existentes." ós nos mantemos e nos
ca fenomenológica o terapeuta e o pacienlc reali2<1m um exercí­ movimenlamos constantemente em tal compreensão daquilo que
cio de compreenscio do existir do paciente. Em outras palavras. significa 'ser'.''4
essa prática clínica, diferentemente das teorias psicodinàmicas, Mas o que isso significa? Para l lcidegger5, ser-aí (Dusein)
não estaria pautada em intervenções transformativas e consisti­
ria, muito antes, na "compreensão dos fenômenos que se dão no
3 A abcnura (t.:r.w·l,/o.1·senheit) lambt:rn pode ser cnco111ra<la cm algumos
1::xistir dos pacientes". lraduçõcs para o ponuguês ,omo tf,,s,·err<1fl1''1//o .

.1 A escuta apressada da sentença inicial pode conduzir a 4


5
M. 1 lcidcgg,�r. A E.'-l<!llcm ,Ja liherdode. [J.59.
M. Heide�er, Ser<: Tempo, �9. Opiou-se [JOí fo7.er modilicaçiks cm todas
urna série de equívocos e rnal-enlendidos sobre o que aqui signi­ us cilat;iics da versão hrnsileira de Ser e tempo utiliz,m<lo n lermo .\l'r-oi e ai, ao invés
fica cumpr<!ensào. Esta confusão traz questionamentos frequentes de pre-.1e11r11 c fln! com o inluilO de cvi1ar tlislor.;õcs de sentido. /\s modifícm;ões
!(iram hascatlas no 1exto original Sein 1111d /.eit. em hora 1,·nha ,ido numl id� a [Jagina.;�o
por parte dos estudantes: o que adianta ''ficar compreendendo'', ,la versão hrasilcirn [JHra o viahilizar o acesso ao lcl\or.

50 51

Você também pode gostar