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TRANSDISCIPLINARIDAD E, '"

CRIATIVIDADE E EDUCAÇAO
Fundamentos ontológicos e epistemológicos

Maria Cândida Moraes


Juan M iguel Batalloso Navas (colab.)

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PAPIRUS
TRANSDISCIPLINARIDADE,
CRIATIVIDADE E EDUCAÇÃO
Fundamentos ontológicos e epistemológicos

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Capa Fernando Cornacchia
Foto de capa Rennato Testa
Coordenação Ana Carolina Freitas
Copidesque Julio Cesar Camillo Dias Filho
Diagramação
Revisão
DPG Editora
Ana Carolina Freitas, Cristiane Rufeisen Scanavini SUMÁRIO
e Isabel Petronilha Costa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Moraes, Maria Cândida PREFÁCIO 7


Transdisciplinaridade, criatividade e educação: Fundamentos
ontológicos e epistemológicos/Maria Cândida Moraes, colaboração
de Juan Miguel Batalloso Navas. - Campinas, SP: Papirus. 2015. I. EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 13
(Coleção Práxis)
Dialogando com a realidade 13
Bibliografia.
ISBN 978·85-449-0125-0 Mudança de sentido e o sentido da mudança em educação 18
1. Abordagem interdisciplinar do conhecimento na educação Desvelando o caminho trilhado ··.· 22
2. Criatividade (Educação) 3. Educação - Finalidades e objetivos
4. Interdisciplinaridade e conhecimento I. Batalloso Navas, Juan Por que trabalhar a transdisciplinaridade em educação? 30
Miguel. 11. Titulo. 111. Série.

15·07753 CDD-370.1 2. REFERÊNCIAS TEÓRICAS E EPISTEMOLÓGICAS


DA COMPLEXIDADE E DA TRANSDISCIPLINARlDADE.. 35
índices para catálogo sistemático:

1. Educação e transdisciplinaridade 370.1


Conceituando a complexidade 39
2. Transdisciplinaridade e educação 370.1
A complexidade do ser e da real idade 46
Características da complexidade 48
Operadores cognitivos para um pensar complexo 51

l' Edição - 2015


O pensar complexo em educação: Coerência, rigor e
abertura epistemológica 59
Exceto no caso Proibida a reprodução total ou parcial da obra de acordo com a lei 9.61 0/98.
de citações, a Editora afiliada à Associação Brasileira dos Direitos Reprográficos (ABDR). Da ontologia e da epistemologia complexa à metodologia
grafia deste livro
está atualizada
transdisciplinar 63
segundo o Acordo DIREITOS RESERVADOS PARA A LíNGUA PORTUGUESA:
© M.R. Cornacchia Livraria e Editora LIda. - Papirus Editora
Conceituando a transdisciplinaridade 69
Ortográfico da
Língua Portuguesa R. Dr. Gabriel Penteado, 253 - CEP 13041-305 - Vila João Jorge
Resumindo e concluindo provisoriamente 85
adotado no Brasil Fone/fax: (19) 3790-1300 - Campinas - São Paulo - Brasil
a partir de 2009. E-mail: editora@papirus.com.br - www.papirus.com.br
1
EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS

Dialogando com a realidade

Vivemos em um mundo incerto, mutante, complexo e indeterminado,


sujeito ao imprevisto e ao inesperado, o que já não é novidade para mais
ninguém. Um mundo sujeito às várias emergências e necessidades de
transcendência para as quais, como humanidade, não estam os, todavia,
preparados. O despreparo é grande diante das situações complexas e
imprevistas que acontecem no cotidiano da vida, desde o mais simples
e corriqueiro incidente de trânsito em uma cidade qualquer, até aquelas
situações extremamente complexas relacionadas às mudanças climáticas
que ameaçam a vida no planeta Terra. O que se observa é a grande
dificuldade que temos, tanto como indivíduo quanto como espécie, de
encontrar soluções compatíveis com a magnitude dos nossos problemas.
E sabemos que já não podemos continuar ignorando tudo isso,
pois as consequências, tanto locais como globais, serão absolutamente
imprevisíveis, com graves repercussões para as próximas gerações, já que
tudo que nos afeta repercute de modo significativo nos demais sistemas

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biológicos, físicos e sociais, assim como nos sistemas econômicos e econômico, pelo triunfo da tecnologia e da ciência, em detrimento do
culturais. É só lembrarmo-nos da grave crise provocada pela falta de água lado humano da humanidade e das relações entre os diversos elementos
que ameaça a população da cidade de São Paulo e que nos adverte que o constitutivos do triângulo da vida (indivíduo/sociedade/natureza). Dentre
problema da seca já não mais se restringe apenas ao sertão nordestino os graves problemas mundiais de nossa atualidade, destacamos:
mas se espraia por várias regiões do país e do mundo. Ecologicament~
falando, o que é que estam os deixando para as próximas gerações?
1) A globalização competitiva decorrente de uma visão uni lateral
Como sociedade, será que estarnos dando conta de resolver a
de desenvolvimento, a qual, apesar de ter desenhado a
maioria dos problemas socioarnbientais que nos afligem? Quais são os
infraestrutura de uma sociedade-mundo, ainda não foi capaz de
principais problemas ou inquietudes que nos angustiam? As questões
criar, ou de perceber, que somos uma comunidade de destino;
relacionadas à moradia, à fome, ao saneamento básico, com certeza
querendo ou não, temos um destino comum.
muito nos incomoda, mas a baixa qualidade da educação certamente
lidera todas as nossas aflições e preocupações, associada à questão da 2) Um consumismo exacerbado moldando desejos imaginários,
insustentabilidade da vida humana no planeta, porque, a curto e médio vontades insatisfeitas e relações humanas debilitadas, ao mesmo
prazos, pouco se pode fazer para reverter essa gravíssima situação. tempo em que se agravam o egocentrismo e as desigualdades
sociais, disseminando as sementes da violência e o aumento
E mais: que tipo de lógica está sendo utilizada para resolver os
da corrupção.
problemas? Será que a lógica tradicional, binária, do certo ou errado,
vem dando conta de resolver nossos problemas atuais? Ela é suficiente 3) Um desenvolvimento científico e tecnológico inquestionável,
ou insuficiente? Não seria preciso colocar para funcionar um outro mas do qual poucos são aqueles que verdadeiramente
tipo de pensamento, capaz de abarcar o problema em sua dinâmica desfrutam. Além de trazer consigo outras mazelas, como a
complexa? Um pensamento que vá além do conhecimento disciplinar, destruição do ritmo natural da vida, trouxe também a produção
rnultidisciplinar ou interdisciplinar, capaz de abarcar aspectos mais intensiva de armas químicas e nucleares, o esgotamento dos
globais e complexos de uma problemática que se manifesta? Sabemos recursos naturais não renováveis, o envenenamento do ar, da
que não será qualquer solução e muito menos a maneira reducionista terra e da água, revelando o quanto a espécie humana é também
de enfocar os problemas que serão capazes de superar a fragmentação perigosa para a saúde global do planeta.
do conhecimento humano e sua incapacidade para compreender as 4) A existência de uma civilização mundial insensível ao problema
complexas realidades constitutivas da problemática que nos afeta. da fome e das guerras,já que a geografia da pobreza, da miséria
Por outro lado, sabemos que não é preciso perder muito tempo com e da intolerância ética e religiosa expande-se cada vez mais. De
a contextualização da problemática que tanto nos aflige, pois estamos um modo geral, estarnos ficando, a cada dia, mais insensíveis
cansados de ouvir falar das crises que pairam sobre nós. Da mesma em relação ao sofrimento humano e nos acostumamos,
forma, sempre escutamos que a educação está em crise ... Na verdade, muito rapidamente, com o aumento da violência, com a face
acreditamos que ela sempre estará. Concordam? E por quê? destruidora da corrupção dos bons costumes e a falta da ética.

Em realidade, o que mais nos assusta é o reconhecimento da


existência de uma policrise de dimensões planetárias, uma crise de Em relação ao nosso cotidiano educacional, destacamos também
múltiplas faces, provocada por um dinamismo técnico, científico e alguns problemas que estão afligindo o nosso contexto educativo, ao

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mesmo tempo em que vem arrefecendo nossa capacidade de indignação sérios problemas como, por exemplo, aquele provocado pela obsessão de
e de luta em prol de uma educação de qualidade comprometida com o crianças e adolescentes pela tecnologia de infonnática, pelos videogames,
bem-estar comum. Embora ainda não tenhamos superado os velhos e sem saber suas consequências neurológicas e emocionais nos futuros
antigos problemas relacionados à evasão, à alfabetização, à deficiência adultos. Pesquisas na área da neurociência (Small 2009) informam que
na qualidade da formação docente, outras demandas vêm, há tempos, essa obsessão está atrofiando o desenvolvimento do lóbulo frontal de
disputando espaço e atenção do poder público e da sociedade em geral. muitos adolescentes que se ressentem de habilidades sociais, emocionais
Dentre elas, destacamos a indiferença do poder público em relação e de raciocínio crítico. Possivelmente, essa geração terá sua maturidade
ao agravamento dos problemas docentes e discentes, em especial o afetada, apresentando-se emocionalmente imatura na fase adulta e muito
agravamento do estresse docente, associado a um sofrimento discente voltada a si mesmo. Todos querem recompensas imediatas e instantâneas,
diante da oferta de uma educação de baixa qualidade que ignora suas já que seus lóbulos frontais não se desenvolveram por completo e sua
necessidades vitais mais prementes e suas respectivas histórias de vida. capacidade de raciocínio encontra-se comprometida. São pessoas que
Dados alarmantes e estarrecedores estão surgindo toda semana; apresentam baixa resistência às frustrações.
é só pesquisar na internet para perceber o aumento do adoecimento De certa forma, estamos nos esquecendo de que nosso mundo
docente a taxas anteriormente inimagináveis. Tudo isso revela que funciona em rede e de que essa dinâmica operacional está presente em
estamos vivendo uma situação caótica em educação e que os docentes todas as dimensões da vida. O problema é que continuamos mergulhados na
dela também participam como vítimas. O que leva um trabalho tão fragmentação e na separatividade herdadas da modernidade, esquecendo-
meritório a ser desgastante e sofrido? É a pergunta que não quer calar. nos de que também somos responsáveis pela criação de uma cultura escolar
que não está apenas atingindo o aluno em seu processo de formação, mas
Além disso, sabemos que o nosso desenvolvimento científico-
tecnológico, apesar de seus inúmeros benefícios, vem também gerando também o professor, dificultando os processos de ensino-aprendizagem
e comprometendo o acoplamento estrutural do sujeito à sua realidade, ao
outros graves problemas sociais. É o caso, por exemplo, da exclusão
contexto em que vive. Seu processo de desenvolvimento integral encontra-
digital, a mais nova modalidade de exclusão social a ser evitada. Por
se cada vez mais comprometido. Tais dificuldades vêm provocando
outro lado, a inclusão digital, a cada dia mais importante e fundamental
sofrimento no aluno ao atingir o âmago de seu processo de conhecer, algo,
para que os indivíduos possam participar do mundo globalizado e exercer
sua cidadania, vem também ocasionando vários outros problemas nas por sua vez, inseparável do ser e dofazer, do viver/conviver.
escolas e nas famílias, como, por exemplo, o cyberbulliyng e outros Todos esses aspectos revelam a existência de uma patologia na
tipos de ciberviolência que, até então, nós, professores, não tínhamos a escola, de uma cultura que, ao excluir o sujeito privilegiando apenas os
menor noção de que poderiam ocorrer. A dificuldade maior é que ainda conteúdos, não reconhece a complexidade presente nos processos de
não sabemos como enfrentá-Ios de modo competente e oportuno. Será ensino e aprendizagem e nas demais relações humanas. Uma patologia
que nossos alunos estão percebendo o quanto estão ficando cada ve que fragmenta o ser humano ao negar suas emoções', seus desejos,
mais expostos às redes sociais? Será que eles têm consciência a respeito seus sentimentos e afetos, suas dimensões globais constitutivas do
das implicações de seus atos inconsequentes em um futuro próximo? operar de cada ser aprendente. Ao conceber um mundo sem sujeito, ao
excluir a subjetividade humana priorizando apenas os conteúdos, ao
Associados a essa problemática, surgem também novos transtornos
não reconhecer a inteireza do ser presente no ato de aprender, estamos
de ansiedade e ataques de pânico, além de que novos adictos às
apoiando o ato didático apenas em uma única visão ou dimensão da
tecnologias e às suas redes estão surgindo e trazendo consigo outros

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realidade, em uma realidade falsamente objetiva e independente do ser necessitamos de novas ferramentas intelectuais que nos ajudem a criar
do viver/conviver nos espaços educacionais. ' novas perspectivas civilizatórias capazes de iluminar novos caminhos
Tais concepções equivocadas dos processos de conhecer e para a humanidade.
aprender, que privilegiam apenas um dos elementos estruturantes do Entretanto, já não basta denunciar! É preciso anunciar novos
ato didático, trazem consigo concepções pedagógicas equivocadas caminhos, novas propostas, novas direções, novas vias civilizatórias.
geradoras de um ensino defeituoso, comprometido com uma prátic~ Anunciar, se possível, uma plural idade de caminhos capazes de
pedagógica esquizofrênica que separa quem aprende daquilo que se instaurar uma nova educação nutridora de uma nova cosmovisão,
aprende, cindindo o belo discurso oficial da escola e o que ela realmente que reconheça a conformação dos fenômenos sociais como sistemas
pratica. É uma prática docente fragmentada e fragmentadora da complexos e interdependentes e que nos ajude a conceber um outro futuro
realidade educativa que nega as emoções, desejos e afetos, bem como civilizacional, capaz de revitalizar a convivência humana, de regenerar a
os estados internos perturbadores ao não valorizar o autoconhecimento ética da solidariedade e da responsabilidade social, mediante a instauração
e os processos autoeco-organizadores dos sujeitos aprendentes. É uma de um pensamento ecologizante, mais humanizado e humanizante. A
prática equivocada que se manifesta pela ausência do cuidado, do afeto, educação é, sem dúvida, um dos caminhos possíveis para a construção
da solidariedade e da sensibilidade em relação aos vínculos escolares, de uma nova via civilizatória, um dos instrumentos capazes de regenerar
provocando, assim, a emergência do individualismo, da cultura do valores, de promover a ética da diversidade e do compromisso com a
medo, da cobrança equivocada, da baixa autoestima, da insegurança justiça social. Educação concebida como processo permanente de ação
em relação aos projetos de vida ... Com isso queremos destacar quanto transformadora, tanto individual quanto coletiva, como instrumento
nossas crises paradigmáticas afetam as relações do indivíduo consigo capaz de resgatar a dignidade de todo ser humano, qualquer que ele seja,
mesmo, com a sociedade e a natureza, ou seja, provocam crises de esteja onde estiver.
natureza antropológica ao revelar a existência de um nó górdio entre o Educação como meta estratégia humanizadora, capaz de ampliar a
ser, o conhecer e o fazer, entre o sentir, o pensar e o agir.
consciência dos sujeitos aprendentes, em direção a uma maior integração
e maturação das relações humanas. Uma educação que assuma novas
visões conceituais, éticas e paradigmáticas, pautadas nas relevantes
Mudança de sentido e o sentido da mudança em educação descobertas da ciência do século XX, apoiadas em novas estratégias
pedagógicas, curriculares, metodológicas e organizacionais, mais
Todos esses problemas levam-nos a exigir novos fundamentos coerentes e eficazes no sentido de melhor atender às necessidades atuais.
teóricos e metodológicos capazes de provocar mudanças paradigmáticas,
Na realidade, precisamos de uma política de educação integral
programáticas e também pragmáticas em educação. Levam-nos também
de natureza complexa e transdisciplinar e de uma prática pedagógica
a reconhecer a importância de construir novas estruturas de pensamento,
correspondente, capaz de promover uma educação com um duplo
novas ferramentas intelectuais que nos ajudem a pensar bem e melhor,
compromisso. De um lado, requer-se uma nova proposta educacional
a problematizar o real, a tecnologia, o mundo e a realidade vivida; a
capaz de colaborar para que o sujeito aprendente supere e transforme
perceber a interdependência dos processos para melhor dialogar com a
as condições materiais de sua existência, condições essas que impedem
vida, reconhecendo os diálogos criativos entre educação e vida, ensino
seu pleno desenvolvimento como seres acoplados a um contexto,
e aprendizagem, indivíduo e contexto, educador e educando. Enfim,
a uma realidade sociocultural que o engloba e, ao mesmo tempo,

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o restringe. Uma educação que atue, portanto, no âmbito do estar teoria e prática docente. Uma educação que resgate o diálogo entre os
para que ele possa sair da opressão em que vive. E de outro lado' elementos integrantes do triângulo da vida, constituído pelas relações
necessitamos de uma educação que seja transformadora de suas condiçõe~ indivíduo/sociedade/natureza; que resgate e valorize a vida no seu
psicológicas, cognitivas, afetivas e espirituais e que favoreça seu pleno sentido mais amplo e, em especial, a reconheça nos ambientes de ensino
desenvolvimento humano, atuando, portanto, no âmbito do ser. I Ambas e aprendizagem, percebendo-a como obra sempre aberta que se auto eco-
as dimensões são inseparáveis e complementares na natureza complexa organiza sempre que necessário.
da condição humana, precisando ser trabalhadas simultaneamente, para
Isso significa pensar a educação em sua dinâmica complexa,
melhor compreendê-Ias em sua dinâmica operacional, a partir de uma
ecossistêmica, global, reconhecendo a existência e a complementaridade
pedagogia social, política, ecológica, ou seja, de uma ecopedagogia, que
do que acontece em outros espaços de aprendizagem. Esta não
cuide tanto da ecologia natural e social exterior quanto da ecologia pessoal
ocorre somente ao redor de quatro paredes. Ela se dá nas mais
interior que se expressa e se materializa como pedagogia do cuidado,
diferentes situações, condições e possibilidades de conversações que
da ternura, da sensibilidade ... Pedagogia como processo de diálogo e de
acontecem na própria dinâmica da vida. Apesar de não percebermos
leitura pessoal e coletiva do mundo interior/exterior.
ou não valorizarmos a aprendizagem natural intrínseca ao nosso viver/
Tudo isso nada mais é do que a materialização de uma pedagogia conviver, ela está presente em nossas memórias, em nossos processos
da condição humana que busca o desenvolvimento de uma consciência autoformativos, heteroformativos ou ecoformativos conscientes ou
integral transdisciplinar, onde o ser e o estar estão imbricados, bem como inconscientes, presentes em nossas experiências de vida, a maioria
o ser, o conhecer e o fazer, o sentir, o pensar e o agir. Almejamos, assim, delas não reconhecidas ou não integradas aos processos formais de
uma educação e um processo de formação que integrem as dimensões educação. Tais aprendizagens influenciam e, muitas vezes, direcionam
corporais, psicológicas, sentimentais e espirituais do ser humano, com as os processos de formação do sujeito aprendente, já que não é possível
dimensões sociais, econômicas, tecnológicas e culturais oferecidas pelo controlar todos os aspectos da formação humana. Aprendizagem implica
contexto em que se vive, lembrando, entretanto, que, para humanizar a processos de natureza complexa, na maioria das vezes absolutamente
educação, é necessária, antes de tudo, uma educação de qualidade, sem a ignorados. Há sempre uma ligação entre o que produz a aprendizagem,
qual pouco podemos fazer para resgatar a inteireza humana e a qualidade o que potencializa a experiência e o que dá sentido a ela.
de sua consciência em processo de evolução. Assim, é preciso pensar uma nova proposta educacional capaz
Assim, necessitamos de uma educação integral transdisciplinar de promover ou incorporar estratégias didáticas criativas, inovadoras,
nutrida por novas visões conceituais capazes de promoverem um enriquecedoras, que favoreçam a integração do conhecimento experiencial
pensamento que não mais fragmente, reduza ou dissocie a realidade. que o aluno traz consigo na gestação das diversas aprendizagens. Proposta
Uma nova proposta educacional que evite a dissonância cognitivo- que exige também a articulação das diferentes percepções, emoções,
afetiva, capaz de integrar pensamento e sentimento, educação e vida, intuições com a razão, condição fundamental 'para a compreensão da
multidimensionalidade humana, da nossa condição sapiens e demens,
já que somos feitos de poesia e de prosa, de intuição, razão, emoção e
sentimento, integrando corpo, mente e espírito. É preciso pensar em
I. Para aprofundar sobre as características, dimensões e impacto da "crise do estar"
e da "crise do ser" de nosso tempo recomendo a consulta a Batalloso (2012) e novas estratégias educativas que não estejam apenas preocupadas em
Batalloso (2013). desenvolver a aprendizagem dos fatos e eventos externos ao indivíduo,

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Transdisciplinaridade, criatividade e educação 21
mas que também promovam o autoconhecimento, o reconhecimento
viabilizar propostas pedagógicas inovadoras e criativas, fundamentadas
do outro, o desenvolvimento da sensibilidade, da escuta-sensível e da
nos noVOS paradigmas da ciência atual. Pesquisando e refletindo sobre
autoestima. Uma educação fundada, portanto, em uma racionalidade
os conhecimentos construídos, fomos percebendo o potencial criativo
aberta iluminada pelas emoções e sentimentos, nutrida pelo amor, pela
e transformador inerente aos pressupostos e fundamentos relacionados
ética e pela estética do pensamento, pelo princípio da não separatividade
, aos conceitos da complexidade e transdisciplinaridade. Tais processos
que traz consigo a responsabilidade e a solidariedade como elementos
transformadores foram sendo observados tanto em sala de aula dos
fundantes de uma nova pedagogia da condição humana, tão urgente e
necessária. cursos de pós-graduação em educação, ministrados na Universidade
Católica de Brasília, quanto em pesquisas que foram sendo realizadas
Essa nova visão educacional, para ser materializada, requer, por pelos membros do grupo de Ecotransd/LlCfl/Cbll'q? a partir do Projeto
outro lado, uma nova política civilizacional baseada não apenas na Docência Transdisciplinar.
racional idade técnica e no aparato tecnológico, mas também no ''pathas'',
O fato de se desenvolver uma ação docente congruente com os
ou seja, na sensibilidade, na estética do pensamento e na responsabilidade
fundamentos professados, como certamente não poderia deixar de ser,
social. Uma política capaz de complexificar o pensamento político e
pautada na criação de cenários transdisciplinares e em vivências aliadas
pedagógico mas aprisionado pelas jaulas epistemológicas da escola
à reflexão e ao diálogo como estratégias integradoras, iluminadas pelos
tradicional, pelas rotinas pedagógicas e burocracias institucionais.
operadores cognitivos para um pensar complexo em educação, aos
Burocracias que impedem o desenvolvimento de novas propostas
poucos, foi catalisando algumas mudanças significativas nos alunos,
comprometidas com a responsabilidade social da educação e com sua
tanto em sua maneira de pensar e de ser como em seu fazer/promover
missão transcendental voltada para a ampliação do nível de consciência
as atividades pedagógicas relatadas.
do sujeito aprendente em relação à dinâmica operacional de sua própria
vida. Tínhamos como preocupação inicial o aprender como operar
a passagem de uma educação baseada no paradigma tradicional da
ciência, pautada na disjunção do saber e da vida, para uma formação
Desvelando o caminho trilhado baseada na interdependência complexa entre o sujeito cognoscente e
os diversos saberes teóricos, práticos e existenciais. Essa preocupação
guiava nossas práticas pedagógicas em sala de aula, iluminando todo o
Para Basarab Nicolescu, em palestra realizada em San José de
Costa Rica, em fevereiro de 20 10, o ceme da transdisciplinaridade está, processo educacional desenvolvido.

de fato, na relação sujeit%bjeto, denotando, assim, que, na sua essência, Aos poucos, fomos percebendo que ao se propugnar e praticar
estão as relações epistemológicas e metodológicas, com suas implicações, uma docência pautada em uma ciência da inteireza se estava igualmente
suas derivações, seus desdobramentos e suas consequências, em função lançando as bases de uma educação que facilitava o encontro com a
do paradigma científico professado.

Ao reconhecermos e concordannos com essa afirmação, novas pistas


para trabalhar a transdisciplinaridade em educação foram aparecendo e 2. Ecotransd é a sigla do grupo de pesquisa intitulado Ecologia dos Saberes,
se frutificando, algo que certamente muito nos animou a seguir adiante Transdisciplinaridade e Educação, reconhecido pelo CNPq e integrante do
nessa construção teórica, no sentido de conseguir materializar ou Programa de Pós-graduação da Universidade Católica de Brasília, coordenado por
Maria Cândida Moraes.
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Transdisciplinaridade, criatividade P. educação 23
essência de cada ser humano ali presente, o reencontro com sua alma com as experiências de vida, vários depoimentos e narrativas grávidas
docente, com o sentido de sua vida, com seu profundo desejo de mudança de sentidos e de significados, relatando as vivências ocorridas com base
e transformação. O professor que ama sua profissão é profundamente nas teorias professadas, foram surgindo em nossa sala de aula. Muitos
idealista. Muitas vezes, as agruras da lida diária da profissão e de desses depoimentos acabaram sendo transformados em material de
alguns períodos difíceis da vida os impedem de perceber esse amor teses e dissertações que se materializaram em relatórios de pesquisa
subjacente à escolha profissional realizada, que fica ali adormecido. apresentados.
Assim, o reencontro com sua própria essência, a partir de processos de Machado (2014, p. 25), em sua tese de doutorado, ao descrever o
autoformação e de autorrealização desenvolvidos, fez com que esse amor
seu processo, assim se expressou:
pela profissão docente escolhida aflorasse novamente, dando um novo
sentido às suas escolhas profissionais e existenciais.
Nessa altura, experienciei um verdadeiro processo metamórfico,
De certa forma, percebemos que tínhamos uma construção teórica concebido como um processo complexo que envolve momento de
que resgatava o sujeito em seu processo de formação e lhe oferecia crises, recuos, avanços, descontinuidades e relativas instabilidades.
instrumentos teóricos para pensar sobre o seu pensar e refletir sobre o seu (...) A partir de então, passei a perceber que estava participando de
projeto de vida, o que favorecia o encontro do sujeito consigo mesmo, um processo crucial de desenvolvimento da consciência humana.
Algo novo estava emergindo, podia sentir no ar, na busca de novas
com sua própria essência, o reencontro com seu mundo interno e externo,
respostas, no interesse por temas relacionados ao sentido do viver, das
que lhe possibilitava o questionamento de sua perspectiva existencial crises pessoais de que intui a necessidade da plenitude, de relações
e abria espaços para o desenvolvimento de sua consciência formadora de colaboração, confiança, empatia, serviço e criatividade. Minha
que emergia a partir de processos de autoformação desencadeados. alma estava sedenta, ainda que fosse em forma de crises, infelicidade,
Iniciava-se, assim, um processo vital e permanente de morfogênese e estresse, depressão insatisfação.
de metamorfose que emergia das interações ocorrentes nos ambientes
de ensino e aprendizagem criados.
Essa mesma aluna continuava dizendo:
Assim, mediante o uso de determinadas estratégias metodológicas
pautadas no resgate das histórias de vida docentes e/ou discentes, na
Posso afirmar que, ao longo desse um ano e meio de formação com
ressignificação das experiências vividas e no desenvolvimento de uma embasamento transdisciplinar, vivenciei uma prática educativa em
consciência reflexiva dialogada sobre as experiências existenciais de que de fato houve um empoderarnento de minha parte e de meus
nossos alunos, criávamos os espaços necessários para a emergência colegas de turma em relação ao próprio processo de aprendizagem,
de contextos de autoformação, por meio dos quais os alunos tomavam integrando-nos ao contexto e ao objeto do conhecimento. Nós,
estudantes, tomamos uma atitude no sentido de produção e de
consciência de seus processos existenciais de natureza complexa. Dessa
construção do próprio conhecimento, caracterizada, inclusive, por
forma, ficava mais fácil de perceber quanto as dimensões teóricas,
espaços constantes de evocação de nossas autobiografias. Nesse
práticas, existenciais e éticas estavam absolutamente imbricadas e processo, o sujeito modifica-se, e essa mudança produz um novo
articuladas nos espaços educativos criados, revelando a existência de um mundo. Realidade e sujeito passam a ser tão integrados que participam
nó górdio entre epistemologia, metodologia e antropologia. continuamente de um processo de autoprodução, de autoformação,
implicando modificações e responsabilizações mútuas. (lbidem, p. 26)
Ao combinar e articular adequadamente as dimensões teóricas,
advindas dos conhecimentos da transdisciplinaridade e da complexidade,

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Transdisciplinaridade, criatividade e educação 25
Além disso, essa mesma doutoranda ainda observou: Outro aluno, Fabricio de Oliveira Ribeiro, em seu trabalho final
da disciplina de docência disciplinar, realizada no segundo semestre de

Mais importante do que técnicas, materiais, métodos para uma aula 2011, assim se expressou:
ser dinâmica, quer presencial, quer virtual, percebi que o essencial é
a percepção de que uma formação deve estar a serviço da curiosidade Saí desta disciplina com esperanças e sonhos renovados' Sobretudo
do ser humano e de sua transformação e evolução. É essa curiosidade porque as técnicas e o fazer pedagógico/andragógico foram
e esse desejo que nos fazem perguntar, conhecer, atuar. (Machado demonstrados, operacionalizados e vividos nas aulas ministradas,
2014, p. 26) revelando a docência transdisciplinar na prática. Em outras palavras,
posso afirmar, categoricamente, que um docente pode efetivamente
praticar os princípios, conceitos, pressupostos e fundamentos teóricos
Outro depoimento importante relatado por uma aluna de mestrado da docência transdisciplinar. Sem intenção de traduzir, inferir ou
ratifica nossas observações anteriores. Olzeni L.c. Ribeiro (2011, pp. reduzir o perfil docente que presenciei, minha experiência discente
40-43), em sua dissertação de mestrado, destaca: permite afirmar que uma das suas principais características seja
a legítima coerência em relação aos seus ideais e ao paradigma
educacional que defende em suas obras e falas. Esse é apenas um dos
A vivência na disciplina ministrada pela professora Maria Cândida muitos outros exemplos que vi e senti "ao vivo e em cores" na conduta
Moraes ( ... ) me possibilitou, pela primeira vez, na condição de revelada em sua prática docente, cujo colorido fica mais bonito porque
estudante, ser elemento vivo de materialização de uma teoria. Refiro- a teoria é vista na realidade prática, mostrando que é possível aplicar
me à Teoria do Fluxo de Mihaly Csikszentmihalyi, em 1975, definida a "didática da coerência" pregada pela docência transdisciplinar, pelo
como uma sensação holística, onde há um envolvirnento tão intenso exemplo coerente e profundo comprometimento com o processo de
com a tarefa que a sua realização promove grande satisfação. ( ...) O ensino e aprendizagem. (F. de O. Ribeiro 2011, s.p.)
que [Mihaly] chama de 'experiência ótima' ou 'fluxo' assemelha-se
ao que vivenciei a partir do momento em que me percebi totalmente
reprimida diante de um desafio que, em princípio, foi apreendido Em sua reflexão, esse mesmo aluno continuou afirmando:
como superior à minha capacidade de compreensão dos conceitos
envolvidos. No entanto, o efeito positivo da mediação transdisciplinar
Inúmeras outras competências poderiam ser descritas a respeito de
da profa. Maria Cândida Moraes ( ...) me permitiu amenizar a aflição
minha percepção discente quanto à conduta de um educador sob a
e refinar minha visão para perceber que, sim, era possível superar
aquela sensação de pânico inicial. ótica transdiscipl inar presenciada: (1) sua capacidade de realizar uma
escuta sensível, revelada no acolhimento e na aceitação do outro
( ...)
no seu legítimo outro; (2) sua abertura para aceitação de sugestões;
Aponto a habilidade docente e a mediação transdisciplinar da
(3) sua flexibilidade diante do desconhecido, das incertezas do
professora Maria Cândida Moraes ( ...) como fatores que agiram na
conhecimento e da realidade; (4) sua habilidade de comunicação pelo
articulação de três aspectos: o grau de ansiedade diante da tarefa; o
diálogo, pela promoção da conexão, interação e integração com/entre
desafio de lançar um olhar investigativo sobre a criatividade à luz
os alunos; (5) sua constante preocupação e responsabilidade pelo
dos operadores da complexidade, vertente pouco explorada, e, em
resgate da "alma docente" de seus alunos, revelando um profundo
fazer com que a aflição inicial se tornasse um desafio o qual desaguou
e sincero compromisso com o paradigma educacional emergente.
nesta pesquisa de mestrado. ( ...) Deparar-me com a possibilidade
de investigar, anos depois, uma questão que nasceu nos primeiros (Ibidem)
momentos de minha trajetória profissional foi o real encontro com a
felicidade acadêmica e a autorrealização.

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epistemologia mais coerente com tais fundamentos e com a nossa
Aos poucos, fomos percebendo que uma ciência da inteireza
missão educadora a partir das descobertas científicas do século XX,
pautada na complexidade e na transdisciplinaridade, ampliava os
provocadoras de uma grande mutação no estatuto ontológico do sujeito
horizontes pedagógicos e educacionais dos nossos alunos que também
e, conscquentemente, no paradigma científico até então professado.
eram professores em sua vida profissional, ao mesmo tempo em que
De imediato, percebíamos que surgia uma nova epistemologia que nos
ativava um processo de autofonnação dos sujeitos até então desconhecido ,
obrigava a substituir a noção de objeto fixo e imutável pelo conceito de
resgatando, simultaneamente, sua vocação docente e seu compromisso
relação, interação, interconexão, reconhecendo que tudo se encontra em
maior com a educação, como profissão escolhida. Ao vivenciar tais
movimento, em processo de construção, desconstrução e reconstrução
processos, percebíamos que ali estava, sem dúvida, uma reformulação
do conhecimento científico e pedagógico em bases transdisciplinares (Moraes 1997).
e complexas, nutridoras de uma educação transformadora, capaz de Tal compreensão, ao longo dos anos, levou-nos a buscar um novo
ampliar os níveis de consciência individuais e coletivos, em direção a paradigma educacional, inicialmente reconhecido como emergente
uma maior integração e maturação das relações humanas em prol de um (ibidem). E assim fomos construindo, passo a passo, nosso itinerário
novo projeto civilizacional. O reconhecimento e a compreensão de todos teórico e protagonismo acadêmico, exercitando o nosso pensar,
esses aspectos levaram-nos a aprofundar nossos estudos nas temáticas reativando ou configurando uma estrutura cognitiva de múltiplas e
abordadas, tentando descobrir e/ou construir novos caminhos e auferir complexas entradas teóricas, alimentadas por renomados autores, como
novas respostas aos objetivos almejados. Ilya Prigogine, David Bõhm, Basarab Nicolescu, Humberto Maturana,
Francisco Varela, Edgar Morin, dentre um sem-número de outros. Nessa
Em silêncio, reiteradamente, nos perguntávamos: Como levar
nova e multifocal rede cognitiva arquitetada e mediante sucessivos
à prática da sala de aula os fundamentos da complexidade e da
processos de auto-organização e reorganização do pensamento, do
transdisciplinaridade, fazendo com que os educadores ali presentes
conhecimento, durante anos, fomos transformando o nosso pensamento
pudessem se inspirar e conspirar conosco? Basarab Nicolescu e Edgar
científico, promovendo novas alianças teóricas, alimentando novas bases
Morin, além de Humberto Maturana e Francisco Varela, Patrick
epistemológicas nutridoras de um novo pensar em educação, na tentativa
Paul e Gastón Pineau, passaram a nos inspirar, iluminando nossos
de fomentar e concretizar a mudança paradigmática pretendida.
caminhos de pesquisa e de formação docente. Dialogando com esses
autores, percebíamos que um novo estilo de ciência e de docência Iniciamos tal processo tentando compreender os fundamentos
estava emergindo e que a mudança paradigmática desejada deveria ontológicos explicativos da complexidade inerente ao ser e à realidade.
estar fundamentada em novas bases ontológicas, epistemológicas e Para tanto, fomos descobrindo, em nossas práticas docentes, a existência
metodológicas da complexidade e da transdisciplinaridade, ou seja, em de um nó górdio entre os conceitos de ontologia, epistemologia e
novas maneiras de compreender o ser e a realidade, o conhecer e o fazer, metodologia e percebendo o imbricamento complexo do ser, do conhecer
reconhecendo a existência de um nó górdio ligando o antropológico, e do fazer. '
o epistemológico e o metodológico, bem como o psicoespiritual, o Pouco a pouco, o caminho em busca de uma nova formulação
psicossocial e o sociopolítico, além do corporal, ecológico e planetário. ontológica e epistemológica foi se desvelando ao se transitar pela
Aos poucos, a ponta do iceberg foi surgindo e o quebra-cabeça biologia, pela física, pela teoria de sistemas, pela educação e por outros
foi sendo montado em meio à efervescência de ideias, teorias, vivências domínios da ciência, exercitando um pensamento transdisciplinar, na
e tensões acadêmicas. Vivenciávamos, assim, a busca por uma nova tentativa de encontrar os fundamentos de que necessitávamos para essa

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construção teórica. Compreender a existência de um nó górdio entre mais diferentes níveis de material idade do objeto, seja ele de
ocorre nos . . . ,.
ontologia/epistemologia e metodologia foi então fundamental para que za física biológica SOCIal,seja de natureza cultural, psicológica
nature , '
chegássemos à compreensão do que entendemos por antologia complexa
e espiritual.
e, consequentemente, por uma epistemologia da complexidade, nutridora
Acreditamos, sim, que a epistemologia da complexidade, nutridora
de uma metodologia de natureza transdisciplinar do conhecimento.
de uma metodologia transdisciplinar, pode se transformar em um fio
condutor de uma nova proposta de educação que promova o encontro
entre as perspectivas intercultural e intercrítica capazes de reconhecer,
Por que trabalhar a transdisciplinaridade em educação? compreender e valorizar a diversidade humana, as relações culturais que
nela se constituem e a necessária reciprocidade crítica, aspectos estes
Porque, como educadores, necessitamos começar a praticar uma fundamentais para que possamos enfrentar os principais desafios vividos
ética da e para a vida capaz de reintegrar o cosmo, a matéria, o ser no mundo contemporâneo, bem como os diversos dilemas educacionais
humano e a vida, no sentido de resgatar o espírito de solidariedade, de
que tanto nos afligem.
respeito, de gratidão e de reverência pela vida e por todos aqueles seres
Poderá também se constituir em um fio condutor de uma nova
que compartilham nosso destino comum. Hoje essa nova cosmovisão
proposta de educação integral, capaz de oferecer respostas aos desafios
gerada pelos avanços da ciência convoca-nos a buscar novas maneiras
éticos, políticos, socioculturais tão urgentes e necessários ao mundo em
de ser, de viver/conviver em sociedade e com a natureza, a criar
que vivemos. Uma nova proposta que, certamente, nos ajudará nessa
conjuntamente uma nova política de civilização, uma nova política
travessia, nessa busca incessante por uma nova educação iluminada
de humanidade que assuma, de acordo com Edgar Morin (2012), os
por novas práticas pedagógicas que nos levem a promover a reforma
princípios éticos das grandes religiões: a compaixão do Buda diante do
do pensamento tão desejada por Edgar Morin: para que possamos
sofrimento, o amor ao próximo e o perdão do Evangelho, a clemência
curar o mundo é preciso antes curar o ser humano, com base na cura
e a misericórdia do Alcorão, nutridos pelos princípios da igualdade, da
socioemocional e espiritual de cada um de nós. Essa é a condição
liberdade e da fraternidade, em busca da realização humana, da melhoria
necessária para se recuperar a capacidade amorosa natural de cada ser
das relações sociais e da fraternidade comunitária e planetária.
humano, para extirpar a violência que ronda a vida de cada cidadão/
Daí a importância da transdisciplinaridade nutrida por uma visão cidadã, para diminuir as desigualdades sociais e combater os diversos
complexa da realidade como atitude epistemológica, como princípio fundamentalismos que tanto sofrimento vêm trazendo à humanidade.
e como metodologia aberta de construção do conhecimento, como
Mas, antes, será preciso curar o interior do sujeito aprendente,
ferramenta capaz de assegurar o espaço de interconexão disciplinar, de
aprender a olhar mais atentamente para o que ocorre dentro de cada um,
uma educação intercrítica e intercultural, nutrida por uma pluralidade
no sentido de reconhecer a sua alma em processo de desenvolvimento
de olhares, linguagens, compreensões e percepções da realidade que
e evolução, de promover o contato com sua própria essência, com seus
destroem todo e qualquer dogmatismo, fundamentalismo e pensamento
desejos mais profundos, resgatar o autoconhecimento e o reconhecimento
unívoco. Algo que nos ajuda a compreender não só que o ser humano, em
do outro, bem como o desenvolvimento de sua autoestima e da dimensão
sua multidimensionalidade, escapa a todo recorte de natureza disciplinar,
espiritual da vida. Será preciso também instrumentalizá-lo melhor,
mas também que a educação, como ação transformadora das diversas
para que se conheça e se reconheça em suas experiências de vida, em
dimensões constitutivas da vida, acontece a partir da integração do que
sua inteireza e plenitude, para que se compreenda como fruto de sua

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Transdisciplinaridade, criatividade e educação 31

III
realidade e do contexto onde vive.lnstrumentalizá-Io para que seja capaz Em realidade, somos nós, educadores, que temos que plantar as
de questionar seus padrões de conduta destrutivos, suas intolerâncias e sementes férteis da esperança, dajustiça, da solidariedade, da sabedoria,
animosidades, levando-o, se possível, a compreender que o ser humano é da fé e do amor no coração de cada ser aprendente que conosco conviva.
presença e que a sua qualidade de energia é o amor. Amor como emoção Somo~ nós, educadores, que temos que saber despertar, cultivar e polinizar
central da história evolutiva humana, como fundamento biológico do as sementes da fé e da esperança nos novos ambientes educacionais,
fenômeno social (Maturana 2000), como modo de viver no respeito percebendo-os e concebendo-os como espaços de cruzamentos de
mútuo, najustiça e na solidariedade. diversos saberes, linguagens, culturas, metodologias e representações
Ao falar da sabedoria do amor, como energia e presença, é preciso voltadas para a expressão do conhecimento humano, da criatividade, da
relembrar as palavras de nosso querido Edgar Morin (2007b, p. 37), ao sustentabilidade e da responsabilidade social. Essa condição é necessária
observar que "é na ressurreição trinitária do amor, da missão e da fé que para que as novas gerações possam resgatar o sopro criativo gerador do
poderemos formar os cidadãos e as cidadãs do III Milênio". Isso porque sentido da mudança paradigmática requerida e a finalidade maior de
a ressurreição de nossa missão educadora inclui, certamente, o cultivo do sua existência.
amor e do cuidado, a ressurreição da fé e o resgate da esperança. Fé, não Entretanto, reconhecemos que os educadores não são apenas os
apenas nos atos curriculares e pedagógicos praticados em nosso trabalho docentes e profissionais do ensino, já que a educação é um problema
cotidiano, mas, sobretudo, no valor inquebrantável do ser humano e na da sociedade inteira e de todas as instituições nos mais diversos
sua capacidade intrínseca de auto-organização, de autotransformação de âmbitos, assim como de todos os cidadãos/cidadãs e, especialmente, de
sua consciência e de renovação da própria vida. Somente pautados pelo responsabilidade das famílias. Em nossa compreensão, todos também
amor e pela confiança em nossa profissão, renovados cotidianamente têm o dever e a responsabilidade social de educar de forma coerente com
pela fé e esperança no renascimento de uma nova civilização, é que as necessidades humanas e planetárias atuais.
poderemos colaborar para que a educação prepare melhor as novas gerações
vindouras, reconhecidas por Edgar Morin como a "geração da religação".
Religação consigo mesmo, com o outro e com a natureza, a partir do
desenvolvimento de uma consciência menos fragmentada, mais solidária,
fraterna, socialmente responsável e vitalmente mais comprometida.
A civilização da religação será aquela capaz de perceber, com
mais clareza e depurada sintonia, que a força da vida está nas relações,
nos enlaces, nos processos de interdependência, nos diálogos e nas
autênticas parcerias. Está também nos processos de cooperação e de
comunhão nutridos pelas relações éticas constitutivas da grande teia
da vida, operacionalmente teci da e renovada a cada instante. É uma
civilização sintonizada com a sinergia da complementaridade dos
processos, da solidariedade, da sustentabilidade e da revalorização da
vida, que reconhece a inseparabilidade entre ser humano e natureza,
espírito e matéria, pois energia e vida já não mais se separam.

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