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JÚLIA BAPTISTA

LUÍZA OLIVEIRA

Relatório de Pesquisa do Trabalho de Conclusão de Curso

Religião e Política: Uma Análise das Relações e Contradições


na Arábia Saudita

Rio de Janeiro

2020

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Sumário
1. Apresentação ................................................................................................................... 3
2. Objetivos.......................................................................................................................... 4
2.1 Objetivo primário...................................................................................................... 4
2.2 Objetivos específicos ................................................................................................ 4
3. Pergunta de pesquisa ....................................................................................................... 5
4. Marco teórico de referência ............................................................................................. 5
5. Considerações Metodológicas ......................................................................................... 8
6. Resultados........................................................................................................................ 8
6.1. A multiplicidade e os díspares intraislâmicos. ........................................................ 8
6.1.1 A fragmentação do Islã ....................................................................................... 9
6.1.2 A especificidade do Islã saudita-wahabita ........................................................ 10
6.1.3 A disseminação da vertente wahabita na década de 1970 ................................ 11
6.2 O regimento interno da Arábia Saudita e as participações internacionais. ............. 12
6.2.1 Norteamento doméstico estatal ......................................................................... 12
6.2.2 As participações em âmbito internacional e os contrastes ................................ 14
6.3 As relações sauditas com Irã, Iraque, Iêmen e os Estados Unidos. ........................ 17
6.3.1 Arábia Saudita e a Aliança Norte-Americana................................................... 17
6.3.2 A Revolução Islâmica e as relações com o Irã ................................................. 18
6.3.3 As Guerras do Golfo e as relações com o Iraque .............................................. 20
6.3.5 As guerras por procuração no Iêmen ................................................................ 23
6.4 As transformações da Dinastia Saudita nas políticas interna e externa .................. 24
6.4.1 Faisal Al-Saud (1964–1975) ............................................................................. 25
6.4.2 Khalid Al-Saud (1975–1982)............................................................................ 25
6.4.3 Fahd Al-Saud (1982–2005) .............................................................................. 26
6.4.4 Abdullah Al-Saud (2005–2015)........................................................................ 27
6.4.5 Salman Al-Saud (2015 – vigente) e Mohammed Bin Salman .......................... 28
7. Discussão e Análise ....................................................................................................... 30
8. Considerações Finais ..................................................................................................... 33
9. Referências bibliográficas ............................................................................................. 35

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Religião e Política: Uma Análise das Relações e Contradições na Arábia Saudita

Júlia Baptista¹
Luíza Oliveira²

1. Apresentação

No presente trabalho, será analisada a religião como fator de grande importância para a
estratégia na política internacional e nas ações internas estatais, bem como para episódios
internacionais históricos. Nas Relações Internacionais, pouco é estudada a questão dos sistemas
religiosos e seus desencadeamentos em rede global, e a isso muito se deve ao contexto da Paz
de Westphalia (1648), que deu fim às guerras religiosas da época e inseriu uma nova ordem
mundial e nova lógica interna, em que foi anulado o envolvimento da igreja e da fé em assuntos
político-estratégicos em âmbito externo, já que pela primeira vez, uma negociação entre nações
foi feita a partir de Estados somente, sem envolvimentos religiosos.

O novo conceito de “Múltiplas Independências” concebido junto a Westphalia após a


Guerra dos Trinta Anos trouxe então, a soberania e a não-intervenção como elementos guia
para as relações entre os Estados, porém tais mudanças não significam que houve uma ruptura
total da religião a partir do norteamento das relações internacionais: instituições religiosas
poderosas, como o Vaticano por exemplo, continuaram a ter um papel relevante na estrutura
internacional.

Ao analisar o fenômeno da religião em alguns casos, se pode perceber a identidade nacional


do país e a razão de ações individuais da população, já que está imersa em valores culturais e
costumes, o que pode levar a compreensão de como e por que o Estado se comporta de tal
maneira tanto interna quanto externamente. É de máxima valia entender a relevância dessa
questão ao examinar um país que possui um pilar extremamente acentuado e consolidado na
vertente religiosa. Além disso, o tema em questão pode contribuir na análise das políticas
externas estatais, do surgimento e conduta de grupos radicais religiosos e de cenários
prospectivos no sistema global.

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O objeto de estudo deste artigo é a Arábia Saudita, país localizado na Península Arábica,
banhado pelo Mar Vermelho e conhecido como o local de nascimento do Islã. É um Estado de
extrema riqueza, derivada das enormes reservas de petróleo que se encontram em seu território,
e que detém uma posição chave na economia internacional como maior exportador do recurso
do Oriente Médio. A cultura neste país está intrinsecamente ligada ao wahabismo, uma vertente
da religião Islã, que norteia de forma assertiva os costumes e as ações individuais da sociedade.
Na atualidade, o Islã encabeça o ranking da religião que mais se expande no mundo, e de acordo
com uma pesquisa conduzida pelo Pew Research Center (2015), ao considerar a previsão até o
final do século, ultrapassará o número de cristãos existentes no planeta. Esses dados justificam
o estudo e entendimento dessa doutrina religiosa, já que estamos falando da crença e das
respectivas individualidades, comportamentos e consciências de parte significativa da
população mundial.

Dessa forma, analisar o comportamento de Riad é fundamental para entender a geopolítica


do Oriente Médio, visto que é um dos Estados mais importantes da região. A dinâmica da área
é essencialmente influenciada em como é projetado externamente seus objetivos estratégicos,
militares, políticos e religiosos, e de duas décadas para cá, também em como os adoradores do
islã mais radical reagem a essas tratativas a partir da análise da ascensão de grupos terroristas
que são contra o posicionamento da Casa de Saud, discordância essa que gerou uma das
fatalidades mais conhecidas no mundo, o 11 de Setembro, e que levou o terror a uma escala
global.

2. Objetivos

2.1 Objetivo primário

Compreender como o vetor religioso é projetado nas políticas externas e internas da Arábia
Saudita, a partir da década de 1970.

2.2 Objetivos específicos

I. Compreender a multiplicidade e os díspares intraislâmicos, bem como a disseminação


da vertente do islã wahabita a partir do primeiro choque de petróleo, em 1973.
II. Analisar o regimento interno estatal da Arábia Saudita, contrastando ao mesmo tempo,
suas participações em regimes e organizações internacionais em âmbito externo.
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III. Apresentar a desenvoltura do histórica das relações sauditas com outros Estados do
Oriente Médio (Iêmen, Irã e Iraque) e os Estados Unidos.
IV. Observar a Dinastia saudita no que tange às transformações políticas interna e externa,
de 1973 até a conjuntura atual.

3. Pergunta de pesquisa

Como se verifica a relação entre o vetor religioso e as políticas externa e interna da Arábia
Saudita, a partir da década de 1970?

4. Marco teórico de referência

A teoria usada para guiar o estudo é a Construtivista, esta que apresenta ênfase na realidade
intrínseca dos Estados, e de cada uma de suas naturezas e contextos particulares e individuais,
nas implicações intersubjetivas, estruturais e epistemológicas do Sistema Internacional. “O
Construtivismo é a perspectiva segundo a qual o modo pelo qual o mundo material forma a, e
é formado pela, ação e interação humana depende de interpretações normativas e epistêmicas
dinâmicas do mundo material” (Adler, 1999, on-line).

Para melhor esclarecimento, a teoria construtivista alega que o que rege as relações entre os
Estados não são elementos pré-estabelecidos ou previsíveis, mas sim elementos mutáveis e
alternantes, construídos historicamente ao longo do tempo. Por que, por exemplo, a Arábia
Saudita apresenta uma postura hostil frente ao programa nuclear iraniano, enxergando-o como
grave ameaça, porém não assumem a mesma colocação no que concerne ao programa
paquistanês? Por que governos como o da Venezuela e de Cuba são constantemente apontados
como ditatoriais e violadores de direitos humanos por parte de potências hegemônicas e outros
Estados do sistema internacional, e analogamente, o regime saudita, sendo extremamente
repressor e sanguinário em âmbitos internos e externos, é apoiado e incluído nas boas relações
diplomáticas desses mesmos atores críticos?

Emanuel Adler (1999 apud Waldrop 1992), elucida esses questionamentos diante de uma
metáfora simples, mas esclarecedora:

Suponha que você arremesse uma pedra ao ar. Ela pode ter apenas uma resposta às
forças físicas externas que agem sobre ela. Porém, se você arremessar um pássaro ao
ar, ele pode voar para uma árvore. Embora as mesmas forças físicas ajam sobre o

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pássaro e a pedra, uma quantidade massiva de processamento interno de informação
afeta o comportamento do pássaro.

O mesmo pensamento pode ser alocado à lógica das relações entre os Estados, uma vez que
ações tomadas por parte de um ator podem gerar diferentes consequências e reações de acordo
com quem está lidando com ele ou o analisando. O modo como cada player é recebido pelo
outro, é constantemente fruto de imagens e de cenários construídos ao longo de desdobramentos
coletivos ou individuais, além de interesses próprios dos Estados que regem o sistema
internacional em todos os âmbitos.

Dentro da vertente Construtivista, o que importa são as identidades, as culturas, os valores


e princípios; é a análise de padrão de relacionamento entre os Estados, o vínculo social
construído através de interesses estruturais. Nesse contexto, se pode dizer que apesar de
ideologias estatais totalmente diferentes, a relação histórica entre a Arábia Saudita e os Estados
Unidos se dá pela construção de interesses complementares, visto que os estadunidenses, desde
o princípio da história contemporânea cobiçam os recursos naturais que se encontram em
território saudita, principalmente o petróleo, e pelo outro lado, o Reino visa receber suporte
norte-americano em questões securitárias e manutenção de seu território nacional, além de
movimentar as economias ao gastar bilhões em compras de recursos militares estadunidenses.

Sobre construção de identidades, a religião pode ser vista como mais um vetor, uma vez
que pode influenciar nas políticas Estatais, como citado por Jesus (2009, p. 220):

As perspectivas construtivistas assumem que o mundo é socialmente constituído a


partir da interação intersubjetiva, de forma que fatores ideacionais como as normas,
as identidades e as ideias são centrais para a dinâmica da política mundial. Alguns
construtivistas confiam pesadamente na relação causal e constitutiva entre identidades
e interesses, o que permite acomodar o impacto ideacional e simbólico da religião
como uma série de práticas e rituais, um conjunto formal ou informal de doutrinas ou
uma visão de mundo e/ou um sistema ético e político.

Nesse mesmo sentido, Nicholas Onuf é um dos principais teóricos construtivistas, tendo
sido o primeiro a apresentar um estudo formulado através da perspectiva desta corrente de
pensamento nas relações internacionais. Ele buscou estabelecer uma teoria social que desse
conta e abordasse o cunho político do sistema internacional, baseando-se na ideia de construção
e co-constituição de pessoas e sociedade, finalmente apontando que o fator da construção em
si é o que monta toda a conjuntura das relações internacionais. Ainda, Onuf (1989) utiliza
recursos de lei e jurisprudência internacional para mostrar o impacto das relações internacionais
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nos modos de raciocínio e persuasão, e no comportamento guiado por regras. Essa perspectiva
muda “explicitamente o foco para uma epistemologia não-positivista, enfatizando o ponto de
que 'mudanças históricas de longo curso não podem ser explicadas em termos de um ou mesmo
vários fatores causais, mas através de análises de conjunturas'". (ADLER, 1999, on-line apud
LYNCK e KLOTZ, 1996, p.6).

Alexander Wendt elaborou uma teoria sistêmica, realizando críticas ao Neorrealismo no


que concerne às características da anarquia. Para Wendt (1992), “A anarquia é o que os Estados
fazem dela”. Ou seja, o sistema pode ser anárquico e os atores egoístas, porém, em certos
momentos há cooperação entre esses egoístas e as identidades desses atores são passíveis de
transformações. Haveria então, 3 diferentes vertentes na chamada “cultura da anarquia”: a
primeira, hobbesiana; a segunda, lockeana; e a última seria em torno de uma lógica kantiana.

Esta pesquisa terá um foco mais direto nas identidades hobbesiana e lockeana, esta
última que visualiza a soberania como elemento transformador de um sistema hobbesiano –
onde o homem é o lobo do homem, todos são inimigos e não há muita possibilidade de
cooperação. A soberania reduziria o medo que os Estados possuem de ter o que é de propriedade
deles confiscada por terceiros, bem como abre espaço para ambientes de mais propícias
cooperações, mesmo havendo rivalidade e falta de compatibilidade ideológica entre as partes.

Como pontuado por Lehmann (2003), Wendt argumenta que as dinâmicas das relações
internacionais são determinadas pelas crenças e expectativas que os Estados possuem uns sobre
os outros, e estas seriam constituídas por estruturas sociais majoritariamente, não por estruturas
materiais. Essa afirmação não significa que o poder material e os interesses variantes são
irrelevantes, mas que estes dependem da estrutura social vigente no sistema e da “cultura da
anarquia” dominante. Ainda como interpreta Lehmann (2003), as culturas que interessam são
do sistema de Estados; portanto, vai de encontro ao que afirma Wendt (1999, p. 257) “[...]
mesmo que as culturas domésticas tenham pouco em comum, como no 'choque de civilizações'
de Huntington, o sistema de estados ainda pode ter uma só cultura que afeta o comportamento
de seus elementos”.

No que concerne ao presente estudo, a teoria construtivista será usada para demonstrar de
que maneira se dão as relações da Arábia Saudita com outros Estados, tendo em vista o elemento
religioso que está imerso nessas relações; e quais são as contradições encontradas nos mesmos
ambientes, fazendo uma correlação entre imagens construídas no sistema internacional, interno
e comportamentos históricos.
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5. Considerações Metodológicas

O objetivo da pesquisa é trazer um estudo através do método interpretativo, redigindo e


descrevendo os acontecimentos e com isso, seguir o processo de interpretações e apresentar os
resultados a partir da construção de conhecimento advindo das informações produzidas. A
pesquisa é feita com base em dados qualitativos, ou seja, através de levantamento de
informações sobre os assuntos abordados, com o objetivo de interpretá-los, com caráter
subjetivo.

Vale ressaltar que no método do presente trabalho, as informações estão sendo coletadas a
partir de pesquisas em livros, artigos científicos, jornais e periódicos que englobam os temas
do sistema religioso do Islã, políticas externa e interna sauditas e conflitos globais. Isto é, serão
analisados fatos concretos discorridos durante a história, o comportamento dos Estados em
relação a esses acontecimentos e o desembaraço dessas ocasiões no Sistema Internacional, com
o objetivo de que ao final da pesquisa, seja possível explorar e interpretar como se dá a relação
entre a religião e a política no Reino da Arábia Saudita.

6. Resultados

6.1. A multiplicidade e os díspares intraislâmicos.

Por uma ótica ocidental e vulgarmente distorcida, o Islã é compreendido em preponderância


como uma vertente unitária que possui uma só corrente ideológica. No entanto, a realidade é
efetivamente oposta, já que existem variadas interpretações da mesma. Da mesma forma, as
comunidades mulçumanas muitas vezes são entendidas como árabes – o que é um equívoco,
posto que, por exemplo, Índia, Paquistão e Indonésia são Estados não árabes localizados no
continente asiático, mas representam os países com o maior número de mulçumanos em seu
território (Marques, 2015, p. 8). Historicamente, essas perspectivas são facilmente refutadas
quando são analisadas as dimensões do islã.

Para compreensão das relações sauditas com outros Estados, principalmente com os do
Oriente Médio, é necessário apontar de antemão que não é em juízo de os países declarem sua

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fé à mesma religião, que automaticamente estão alinhados às mesmas pretensões e convicções,
política e ideologicamente. Apesar do Islã ser fundamentado e originado nas revelações de
Maomé, uma vez que é passivo de interpretações, existem díspares e hostilidades dentro da
própria doutrina que perduram durante séculos, alguns dos quais serão objetos de estudo deste
artigo, como as recentes relações entre Arábia Saudita – predominantemente sunita –, com Irã,
Iêmen e Iraque. Tais diferenciações justificam-se nas suas origens, características e interesses
que se deram a partir de distintos processos de formação e identificação de comunidades.

6.1.1 A fragmentação do Islã

O Islã é dividido, majoritariamente, em duas vertentes: sunismo e xiismo. O primeiro destes


desdobramentos ocorreu após o falecimento do Profeta Fundador da doutrina – Maomé, em
Medina, no ano de 632. Na época, o profeta ocupava uma posição dominante não somente como
líder religioso, mas também político. Após a sua morte, discordâncias foram geradas sobre a
temática de quem seria pertinente a sucessão do poder, já que a única descendente em vida era
uma filha mulher, Fátima. Como não possuía nenhum sucessor homem direto, a comunidade se
fragmentou meio a uma guerra civil quanto a quem deveria exercer essa função tão estimada.

Na contemporaneidade, conhecido como o grupo xiita – atado essencialmente a liderança


no campo religioso, inferia que o sucessor deveria estar ligado à linhagem sanguínea de Maomé,
portanto, seu primo e genro Ali quem deveria assumir a posição. Por outro lado, o
posteriormente nomeado grupo sunita, acreditava que o sucessor deveria ser aquele que melhor
representasse as “normas da tradição das lideranças tribais” (Palazzo, 2014, p. 163), exercendo
a liderança político-militar; não ocupando o lugar de Maomé na fé, designando Abu Baquir,
seu sogro. Os sunitas saíram vitoriosos desse embate, e os xiitas, “derrotados, não apenas eram
vistos como contestadores da ordem vigente, mas tornaram-se também suspeitos de conspirar
contra o poder.” (Palazzo, 2008, p. 11).

Diante do exposto, foi formado o "Califado Rashidun", que se refere aos quatro primeiros
sucessores que eram demasiadamente próximos de Maomé, conhecidos como os “califas bem
guiados”, império árabe-islâmico que se expandiu e conquistou muitos territórios. Em ordem
de sucessão em liderança, Abu Bakr; Omar al-Khattab; Osman Affan; e por fim, Ali –
assassinado na cidade de Kufa em 661, fato que levou a fragmentação definitiva da comunidade
muçulmana entre os grupos sunitas e xiitas (Marques, 2015). É importante pontuar que durante
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a constituição e expansão do Califado, a minoria xiita sofreu diversas perseguições e
assassinatos por séculos, e até os dias atuais são oprimidos e marginalizados, além de
corresponderem a parcela mais pobre da comunidade árabe.

Os principais díspares entre as duas vertentes são nas esferas políticas e religiosas. Nesses
âmbitos, o sunismo foi construído na lógica da autoridade político-militar Estatal para garantir
a supremacia dos interesses religiosos baseados no Alcorão e na Sunnah. Como sublinha
Palazzo (2014, p. 165) “ao governante, então, não caberia a atividade de criar leis, mas sim
cuidar para que elas fossem aplicadas e, no caso do Islã, sempre de acordo com a lei divina, a
shari’a.” Ou seja, não há autoridade religiosa que substitua Maomé, mas sim autoridade para
sobrepor os ensinamentos do profeta jurídica e politicamente. Atualmente, para esse grupo, o
Estado e a religião deveriam ser uma única força. Já o xiismo desde seus primórdios, foi
afastado e reprimido do poder político por conta da influência do califado sunita. Em termos de
fé, passa a ser caracterizado por possuir um líder religioso supremo (Imã), altamente respeitado
nessa vertente, pois essa figura é responsável por repassar os ensinamentos da palavra divina;
bastante divergente do sunismo.

Com o passar dos séculos, diante de conflitos e guerras, as duas vertentes foram se afastando
cada vez mais e suas diferenças acentuadas. Atualmente, a maioria sunita representa entre 86%
a 90% de toda comunidade muçulmana no mundo e habitam em grande número de países como
Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Iêmen. Já os xiitas, em sua minoria entre 10% a
14%, possuem a maior parte de sua população, por exemplo, nos Estados Irã, Iraque, Bahrein
e Azerbaijão.

6.1.2 A especificidade do Islã saudita-wahabita

No que concerne ao Reino da Arábia Saudita, é verificado a existência de uma vertente do


sunismo especifica proeminente: o wahabismo. Wahhabi é o termo designado – normalmente
por não muçulmanos e opositores, aos seguidores de Muhammad ibn Abd al-Wahhab; pregador
ultra puritano da Península Arábica, que viveu entre os anos 1703–1792 e foi autor do Kitab
at-tawḥid (Livro da Unidade), principal escrito da doutrina wahhabi.

Al-Wahhab foi o fundador do wahabismo e seu objetivo era de atentar em prol de uma volta
aos “verdadeiros princípios do islã”, remontando à era inicial da religião islâmica – isto é,

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associada aos valores morais, culturais e religiosos do século VII de Maomé. Ele era totalmente
contra a bid’a (inovação na teologia), por acreditar que inovações na fé islâmica eram nocivas
e, portanto, um retorno aos princípios enunciados pelo Profeta traria novamente a original
grandeza intrínseca ao Islã. Para mais, as doutrinas wahhabi não permitem uma intermediação
entre fiel e Allah, bem como condenam práticas politeístas. A disseminação dessa vertente se
originou da aliança formada entre Abd al-Wahhab e o primeiro monarca saudita, Ibn Saud.
Estes dois iniciaram uma campanha de conquista mais tarde estendida a seus herdeiros, fazendo
com que o wahabismo fosse a força dominante na Arábia desde 1800 (Encyclopedia Britannica,
2020).

Quando formado o Reino da Arábia Saduita em 1932, não havia a presença de um


sentimento de unidade nacional e identidade em comum, portanto, para assegurar seu projeto
político, Al-Saud tomou algumas medidas que geraram inúmeros reflexos em cadeia. O rei
estabeleceu uma aliança com os religiosos wahhabis e realizou diversos casamentos intertribais
com o intuito de expandir seu reconhecimento e poder. O uso da religião como mecanismo de
poder serviu para consolidar a legitimidade do novo governo e a retórica islâmica foi usada para
garantir o afastamento de dissidências uma vez que, dissidências contra o reino seriam
consideradas como dissidências contra o próprio Deus. Esse uso da fé como um instrumento de
governo perdurou durante todas as décadas seguintes, em que pode ser claramente observado o
misto político-religioso.

6.1.3 A disseminação da vertente wahabita na década de 1970

Em 1973, essa disseminação adquiriu novos episódios. Neste ano ocorreu o primeiro
choque do petróleo, episódio que afetou diretamente a economia de alguns Estados europeus,
dos Estados Unidos e de Israel. Os países árabes – muitos sendo integrantes da OPEP
(Organização dos Países Exportadores de Petróleo) que possuíam extrema importância no
tocante do controle de petróleo – resolveram punir aqueles que apoiaram Israel na Guerra do
Yom Kippur (1973). Como uma estratégia de retaliação, a produção de petróleo sofreu uma
drástica queda e o preço do barril se tornou consideravelmente mais caro entre 1973 do que era
anteriormente no mesmo ano, ao passar de U$ 3,00 para U$ 12,00, o que levou a primeira crise
mundial do setor. O recurso praticamente desapareceu dos postos de combustíveis dos Estados
Unidos e da Europa, o que levou a uma desestabilização econômica global.

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Após o choque do petróleo, a Arábia Saudita se tornou extremamente rica e conseguiu de
maneira exorbitante ampliar sua influência religiosa e intensificar o fundamentalismo islâmico
ao redor do mundo. Para alcançar apoio e poder no plano internacional, os sauditas começaram
a financiar centros de estudo e escolas (conhecidos como Madrasas) em diversas regiões do
Oriente Médio que careciam de estruturas, propagando ainda mais assim, a mais conservadora
vertente do Islã, o wahabismo.

A expansão da vertente saudita gerou diversas consequências irreversíveis no Sistema


Internacional; provocou a ascensão e levou a uma ebulição de movimentos e grupos radicais
islâmicos como Estado Islâmico, Talibã e Al-Qaeda – estes que possuem como forte base
ideológica o wahabismo. No ano de 1988, na Palestina, justamente devido ao impedimento da
criação de um Estado palestino e das derrotas árabes frente a Israel, emergiu um grupo
radicalizado nas essências oriundas da Arábia Saudita, o Hamas.

Diante das questões levantadas, o Reino já foi acusado diversas vezes de possuir relações
com grupos ou atividades terroristas. Segundo Schossler (2017, on-line), “ao apoiar
financeiramente a disseminação do Wahabismo, a um custo estimado de cem bilhões de dólares
ao longo de décadas, o reino teria apoiado indiretamente também o terrorismo (...)”.

6.2 O regimento interno da Arábia Saudita e o contraste com as suas participações em


regimes e organizações internacionais.

Para desenvolver uma análise assertiva em torno das políticas internas e externas do Reino da
Arábia Saudita sob a ótica do direito internacional, é preciso compreender o posicionamento
em suas duas esferas de atuação.

6.2.1 Norteamento doméstico estatal

O Reino da Arábia Saudita pauta seu sistema de governo em uma monarquia, onde o rei é
o chefe de Estado e chefe de governo. Além disso, funciona como uma propriedade privada dos
membros da Dinastia Saud, que detém abundante riqueza dos recursos sauditas e também os
usam para servir aos seus interesses individuais. O regimento interno legal é dominado pela Lei
Sharia, esta que se evidencia nas doutrinas, crenças, costumes e padrões de comportamentos
interpretados no Alcorão, livro sagrado do Islã, considerado por muitos uma espécie de guia
12
para a vida dos muçulmanos; e na Sunnah, que por sua vez, é um livro que retrata os
ensinamentos do Profeta fundador e mais respeitado da religião, Maomé. Diante de tais
características, se verifica a existência de uma monarquia absolutista teocrática; isto é, há poder
político absoluto exercido a partir da figura do monarca, e difundido em temas religiosos, uma
vez que sua estrutura está fundamentada nas interpretadas doutrinas e pensamentos do Islã.

Na década de 1990, Fahd Al-Saud, à época rei da Arábia Saudita, deu origem a uma espécie
de Carta Magna, chamada “Lei Básica de Governança de 1992”1, que simplesmente ratifica o
que os costumes e tradições já reconheciam há muito tempo. Logo em seu artigo primeiro,
declara que a constituição do país é o Alcorão e a Sunnah, o primeiro descrito como “Livro de
Deus Todo-Poderoso” e o segundo como “Livro de seu Mensageiro”, que se refere a Maomé.
Ainda, no artigo sétimo, alega que as leis governantes do sistema do Reino derivam sua
autoridade desses dois livros sagrados. Isto é, foi uma validação da Sharia e das interpretações
sauditas dos registros sagrados como instrumento de governo. A mesma Lei Básica de
Governança, deu origem a um “sistema básico consultor”, ou seja, algo semelhante a um
“ministério” e que tem como função somente a consultoria ao monarca, sem, contudo, exercer
ou criar leis (LUZ, 2019).

Outro fator importante a ser observado no que tange às questões governamentais no


Reino são os ulemás, que em poucas palavras, são estudiosos do islã que tem a responsabilidade
de interpretar a Sharia; se assemelham a juristas islâmicos, responsáveis pelo legislativo. Desde
a segunda metade do século XX as relações de poder dos ulemás mudaram ao passo que os
mesmos foram incorporados aos aparatos estatais, movimentação esta que começou com o
establishment da primeira instituição estatal: o “Instituto para Emissão de Opinião Religio-
Legal e Supervisão de Assuntos Religiosos” (IFTA), sob presidência do Grand Mufti (legista
perito na sharia e oficialmente qualificado para enunciar regras religiosas). O IFTA foi
reconhecido em 1971 em duas principais agências religiosas: a Board Senior Ulama e Council
for Scientific Research and Legal Opinions (CRLO).

No entanto, não há de fato um consenso quanto a configuração política saudita entre


divinos e governantes, e no meio desta ambiguidade, duas visões emergiram: uma afirma que
os ulemás deixaram de ter autonomia, porém ainda possuem certa influência frente a decisões
de políticas do reino, enquanto por outro lado, alega-se que os ulemás perderam seu poder tanto

1
Website Oficial Governo da Arábia Saudita. Disponível em:
<https://www.my.gov.sa/wps/portal/snp/aboutksa/rulesandRegulations> Acesso em: 01 de abr 2020.
13
na esfera política quanto na religiosa. Segundo al-Atawneh (2009), o cientista político Ayman
al-Yassini afirma que os ulemás nunca agiram como centro autônomo de poder, e que os
mesmos perderam muitas de suas tradicionais funções, se tornando apenas um grupo de pressão
limitado a exercer influência sob políticas e atividades governamentais. Por outro lado, o autor
polonês Aharon Layish argumenta que os ulemás sauditas modernos deixaram de ser um dos
focos de poder ao lado dos governantes, embora ainda pertençam à elite política e possuam um
papel importante, especialmente em épocas de crise.

Apesar de ser bastante influente, o clero wahhabi possui um papel secundário na política
e governança dentro do Estado saudita; isso se verifica em uma lógica de que sempre dividiram
o exercício de poder e possuíram o papel de interpretar a sharia para assim aconselhar os
governantes. De qualquer forma, é errôneo descrever as exatas influências dos ulemás, uma vez
que tanto na política quanto no ambiente social religioso as dinâmicas são passíveis de
mudanças conforme os detentores de poder.

6.2.2 As participações em âmbito internacional e os contrastes

Para dar início, é viável introduzir a partir da questão dos direitos humanos e fundamentais.
De maneira simplificada, ao elucidar a diferença entre os dois conceitos, se pode dizer que o
primeiro está ligado a um princípio comum inerente a todos os povos, ou seja, é ligado ao plano
internacional; ao passo que, o segundo, está intrinsicamente ligado ao regimento interno de cada
país. Ambos os conceitos têm ligação com os direitos básicos de todos os seres humanos.

No ano de 1945, o Estado Saudita foi um dos membros fundadores que assinou e ratificou
internamente a Carta das Nações Unidas em 1945, esta que constitui a Organização das Nações
Unidas (ONU) uma facilitadora da cooperação do Direito Internacional. A Carta em seu artigo
primeiro, descreve deliberadamente as funções e objetivos da organização, em especial, ao
aludir a questão dos direitos fundamentais inerentes a dignidade humana em promover a paz
universal, que baseia-se no, segundo o Tratado (1945)2, “[...] respeito ao princípio de igualdade
de direitos e de autodeterminação dos povos [...]”, com o objetivo de “[...] promover e estimular
o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça,

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Website Oficial Nações Unidas Brasil. Disponível em: < https://nacoesunidas.org/carta/cap1/> Acesso em: 01
de abr 2020
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sexo, língua ou religião.” Neste primeiro momento, o instrumento estabelece a normatização
dos Direitos Humanos para a organização.

Três anos depois, a Declaração Universal de Diretos Humanos (DUDH) de 19483, elaborada
por representantes de todas as partes do mundo, delimitou 30 princípios sobre o que são os
Direitos Humanos para a organização, e segundo o seu próprio preâmbulo, considera que os
Estados membros se comprometem a promover e a cooperar com a Declaração.

A DUDH, inspirou em direitos fundamentais constituições de diversos Estados e


democracias atuais, podendo-se exemplificar o Brasil como um destes. Em contraste, o Reino
da Arábia Saudita tem seu sistema interno de governo nas mãos da Casa de Saud e possui como
Carta Magna, a Lei Sharia, esta que dispõe de doutrinas e culturas específicas da fé islâmica
wahabita, tais quais muito divergem dos direitos básicos descritos na declaração. O poder
religioso nesse caso, rege a monarquia Saudita – a família Saud, que por sua vez tem sob seu
domínio o poder político, ou seja, a religião está intrinsicamente ligada ao pilar político da
sociedade. Sobre essa temática, existe uma significativa relação entre Constituição e valores,
culturas, identidades e sociedade, e Leal (2019, p. 4), estrutura que:

O termo “Constituição” pode ser entendido, a princípio, como “o modo de ser de uma
comunidade, sociedade ou Estado”. Isso porque a Carta Magna de um país é, entre
vários elementos, formada por três basilares: a) identidade: noção de pertencimento
de um povo a um Estado, gerando o status de cidadão; b) organização social: a forma
de organização do poder estatal; c) valores subjacentes: valores ou noções pré-
existentes na sociedade que permitiram um acordo e, por conseguinte, a formação da
própria identidade e Constituição. (LEAL, 2019, pág. 4)

Isto é, o Estado é formado a partir de suas próprias particularidades e conjuntos


específicos onde sua realidade está inserida. A título de exemplificação, dentre os 30 princípios
supramencionados que compõem a DUDH é relevante apontar diversos direitos garantidos por
esta, dentre eles, o direito à vida, à liberdade, a igualdade de direitos entre homens e mulheres,
à liberdade de culto, e segundo o 18° artigo da Declaração Universal de Direitos Humanos
(1948, p. 4), à religião:

Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião;


este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a

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Website Oficial Nações Unidas Brasil. Disponível em:
<https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/declaracao/> Acesso em: 01 de abr 2020.

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liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em
público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.

A Arábia Saudita adotou a Sharia como um sistema de leis que rege todos os aspectos
da vida de seus cidadãos, inclusive as liberdades individuais. O país possui o Islã como religião
oficial e única, sendo quaisquer outras reprimidas severamente; em seu território, não existe a
liberdade de culto em outras crenças, principalmente em locais públicos. Como verifica Peter
Demands, (2004, p. 193), há algumas explicações para a expansão do islã e a obediência
rigorosa dos fiéis, entre elas, o fato de que “os muçulmanos são quase inacessíveis a conversão
para outras religiões. Abandonar o islã é considerado apostasia, um crime teoricamente passível
de morte.” Além disso, o país possui os dois santuários mais sagrados de sua crença, Meca e
Medina, – onde é proibida a entrada de não mulçumanos nas cidades. Fato esse considerado
pelo falecido monarca saudita Abdullah bin Abdul Aziz Al-Saud, o maior obstáculo de
mudanças relacionadas a intolerâncias religiosas.

Quanto às relações transnacionais, foi observado uma crescente iniciativa saudita em


termos de cooperação ou intuito de exercer influência no exterior. A título de exemplificação,
a formação do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) em 1981, que possui sede no país
saudita, existente até os dias atuais; e também no final da década de 1990, quando a Arábia
Saudita se tornou integrante do G20. O grupo é composto pelas maiores economias do mundo
entre países desenvolvidos e emergentes, e possui uma função central em discussões globais
acerca de temas como economia e desenvolvimento sustentável. Esses foram alguns passos para
ampliar sua zona de influência na agenda internacional e se fazer cada vez mais presente como
um globalplayer, ao mesmo tempo que se mostra mais integrado às potências ocidentais.

No que concerne o debate entre choques de culturas ocidentais e orientais, no mundo


muçulmano, são verificadas diversas posturas diferentes por parte de estudiosos muçulmanos
no que diz respeito à democracia ocidental, e se ela é de fato ou não; e se sim, até que ponto;
compatível com a lei Islâmica. Raghid El-Solh (1993) dividiu essas visões em torno da
democracia em 3 grupos, sendo o primeiro apontado para aqueles que rejeitam a democracia,
pois a acusam de ser um conceito imposto por ocidentalizadores e reformistas seculares nas
sociedades muçulmanas. Ainda de acordo com o El-Solh, este primeiro grupo se mantém
distante das dinâmicas políticas de suas sociedades, se limitando apenas a participações em
debates intelectuais na mídia. Já o segundo grupo acredita que o verdadeiro Islã e a democracia
são compatíveis, pois aquele seria inerentemente democrático, logo a democratização e

16
islamização seriam o mesmo processo. O terceiro e último grupo é caracterizado por acreditar
na possibilidade de democratização na sociedade islâmica.

6.3 A desenvoltura das relações sauditas com Irã, Iraque, Iêmen e os Estados Unidos.

6.3.1 Arábia Saudita e a Aliança Norte-Americana

As relações norte americanas-sauditas se estreitaram a partir da década de 1930, quando


o petróleo foi descoberto na região controlada pela Dinastia Al-Saud. Diante disso, os Estados
Unidos desenvolveram interesses geopolíticos mais acentuados pela região, visto a riqueza do
recurso tão valorizado. Em contrapartida, à época, a Arábia Saudita já carecia de exército de
defesa para proteger o que tinha de maior e vital importância: seu território. Depois da
descoberta petrolífera, o país passou a ser a maior reserva de petróleo do Oriente Médio, o que
agravou ainda mais a necessidade de proteção. Como efeito, os interesses entre os dois Estados
passaram a ser complementares e uma aliança floresceu, os EUA passaram a ter influência sob
assuntos regionais do Oriente Médio, além de uma rede de suprimento confiável de petróleo, e
a Arábia Saudita obteve o respaldo para defesa de seu território e um apoio de peso sobre seus
interesses de uma grande potência ocidental.

Essa moeda de troca entre os dois países é vista até os dias atuais. Citando fatos
análogos, os Estados Unidos detêm significativa influência sobre assuntos no quesito petróleo
quando se trata dos recursos sauditas – a principal empresa petrolífera estatal da Arábia Saudita,
a Saudi Arabian Oil Company (ARAMCO), maior companhia do mundo em termos de reservas
de óleo e produção, tem boa parte dela controlada por empresas americanas. No mais, o país
norte-americano com sua aliança, continua fortalecendo a Riad no que se diz respeito a um forte
parceiro externo ocidental, além das vendas de armamentos militares, usadas para defesa
territorial e fomentar conflitos.

No desenrolar das décadas seguintes, o Estado norte-americano se mostrou grande


aliado dos interesses sauditas, principalmente ao que concerne o fortalecimento e a influência
do cúmplice na região, apesar de discordâncias em alguns momentos. A partir dos estudos nos
próximos tópicos, é possível compreender de que forma essa “fidelidade” vem sendo exercida
durante os anos e os interesses por trás disso.

17
6.3.2 A Revolução Islâmica e as relações com o Irã

O grande paradigma atual do que se diz respeito à geopolítica das tensões intraislâmicas
e políticas entre o Reino da Arábia Saudita e a República Islâmica do Irã e seus desembaraços
no Oriente Médio, teve início com a conquistada Revolução Iraniana de 1979. No período, o
país sofria de muitas desigualdades sociais e já apresentava insatisfação face ao governo do
então monarca autoritário xá Reza Pahlavi, que tinha o poder concentrado em seu círculo
interno de aliados, além de apresentar grande afinidade com o Ocidente – fato que gerava ainda
mais críticas dos opositores religiosos, uma associação impura diante da crença islã. Em
consequência, o maior opositor do governo à época, Ruhollah Khomeini, assumiu a posição de
líder supremo com o cargo chefe religioso e governante. Quando assumiu o poder em 1979,
Khomeini trouxe consigo para o poder um forte domínio na região Arábica, a vertente radical
xiita duodecimano – aquela que reivindicava que os sucessores de Maomé deveriam estar
ligados a linhagem sanguínea do maior profeta do Islã.

A Revolução Iraniana da década de 90 trouxe consigo não só transformações internas


políticas, sociais e culturais, mas um protesto incisivo e um brusco rompimento de suas relações
com potências ocidentais – em especial, com os Estados Unidos, fato que se degringolou
explícito quando imediatamente após a troca de poder no Estado iraniano, a embaixada norte-
americana na capital Teerã foi invadida e os diplomatas e cidadãos americanos feitos de reféns
por mais de um ano sob terror, uma provocação aberta ao país ocidental – e principalmente,
uma guinada significativa dentro do contexto das relações interestatais no Oriente Médio.

Nesse sentido, como verifica Marques (2015, p. 65), “O establishment sunita do Golfo
reconheceu no cunho revolucionário e teocrático dos clérigos xiitas iraquianos uma seriíssima
ameaça ao status quo regional e à organização política e interna dos seus países.”. De fato, o
novo modelo iraniano intencionava se impor ao mundo como uma nova alternativa ao
capitalismo e comunismo que à época – período de Guerra Fria, tanto se digladiavam e tentavam
expandir suas zonas de influência, inclusive sob o Oriente Médio. Complementar a isso, o
Estado Iraniano ainda ambicionou que, citado por Marques:

“Se a Revolução Francesa se viu a si mesma como um vector universalista de


propagação da liberdade, a Revolução Russa como ponto de partida para um
socialismo internacionalista, a Revolução (Islâmica) Iraniana almejou ser o referente
teológico e ideológico de um Islão global.”

18
Diante do explicitado, o Estado de origens persas e raízes xiitas, passou a ser visto como
uma forte ameaça tanto ao Ocidente – com posturas hostis e desenvolvimento de energia nuclear
–, tanto quanto para seus próprios vizinhos de regimes mais conservadores, que veem o
nascimento desse movimento como algo nocivo à hegemonia árabe/sunita na Península
Arábica. Ora, o ato revolucionário vinha de um povo que sofreu discriminações seculares,
muitas vezes obrigadas a esconder suas crenças em meio a regimes radicais, e agora tinha como
um dos objetivos a “união” dos povos mulçumanos através da vertente duodecimana. Até que
ponto essa revolução, em um Estado de peso considerável no Oriente Médio, poderia chegar no
que diz respeito a influências de crenças religiosas e atos políticos arábicos regionais?

Como um meio de contrapor essa ameaça local, a Arábia Saudita no momento sob
reinado de Khalid bin Abdulaziz Al-Saud, reagiu reforçando e disseminando ainda mais a
vertente religiosa de seu país, o ultraconservador islã wahabita. Segundo Kersten Knipp (2019,
on-line), durante anos foram promulgadas com intensa frequência novas leis religiosas,
intencionando “direcionar a atenção dos fiéis para a prática correta da fé, de forma que eles não
tivessem nem tempo nem energia para a política – muito menos para a política revolucionária.”.

Um ano após a Revolução, em 1980, por razões econômicas e disputas ideológicas e


políticas, o Iraque de Saddam Hussein invadiu o Irã – impulsionado também pelo temor de uma
inflamação dos ânimos da maioria xiita iraquiana frente às transformações do país vizinho;
maioria essa que não era representada no regime Baath, que detinha a supremacia sunita. Como
previsto, a invasão de Bagdade foi apoiada financeiramente por países do Golfo – inclusive a
Arábia Saudita, que embora tenha declarado neutralidade no embate entre os dois países,
concedeu bilhões em empréstimos e doações a juros baixos –, além de armamentos e tecnologia
por Estados ocidentais, URSS e os Estados Unidos.

Após 8 anos de desgaste mútuo entre os dois países – os ataques iraquianos e as


resistências iranianas –, o conflito se dissipou, e apesar dos apoiadores de peso ao lado de
Hussein, a guerra acabou sem um vencedor declarado e sem mudanças territoriais. Ambos
saíram com perdas significativas econômicas – a estrutura de produção petrolífera das partes se
encontrou bastante afetada – militares e até relativas a apoios sociais. Porém, para a novata
República Iraniana que tanto resistiu às ofensivas, significou mais do que isso. O fato de não
sair em constrangimento de derrota trouxe ao Estado de origens persas reafirmação de seu

19
espaço como um novo globalplayer, garantiu a proteção de suas ideologias na região e esculpiu
a internacionalização de um modelo xiita revolucionário influenciador no Oriente Médio.

Um outro episódio importante ocorrido durante a guerra, foi a formação do Conselho


de Cooperação do Golfo (CCG) em 1981, ainda vigente. O conselho possui uma ideologia pan-
arabista, criada com o objetivo de fortalecer as políticas sociais, econômicas e securitárias, além
de estimular a cooperação através de uma aliança entre Arábia Saudita, Bahrein, Qatar,
Emirados Árabes Unidos, Kuwait e Omã, em detrimento de outros Estados. Consoante a
Brocker (2016), foi uma reação política de defesa do status quo regional aos desdobramentos
na península arábica, com a ascensão de Aiatolá Khomeini no Irã e Saddam Hussein no Iraque
– que indicava que mesmo com os apoios financeiros sauditas ao Estado iraquiano na guerra,
ainda era visto como algum tipo de ameaça ao reinado.

No que tange os embates iranianos-sauditas, além de disputas religiosas – como as


tensões intraislâmicas seculares entre xiitas e sunitas – e consequentemente ideológicas, os dois
buscam uma liderança regional, o que faz as questões geoestratégicas se ressaltarem,
principalmente quando se trata de assuntos petrolíferos e do Golfo Pérsico; o Irã, política e
militarmente, é o maior rival da Arábia Saudita no Oriente Médio. Entretanto, não há um
conflito aberto entre iranianos e sauditas, ambos atuam entre si a partir do soft power,
influenciando o comportamento e interesses de outros players da região, como facções e
governos rivais às suas causas, além de guerras por procuração – como vem acontecendo no
Iêmen, numa estratégia semelhante à da Guerra Fria. Já os embates iraquianos-sauditas,
começaram a desabrochar a partir do primeiro ano da década de 1990, quando o Iraque deu
início à Guerra do Golfo.

6.3.3 As Guerras do Golfo e as relações com o Iraque

A sucessão de eventos que ocorreram após a Guerra Irã-Iraque são de necessário


conhecimento para entender as relações com a Arábia Saudita na conjuntura atual. Em 1990,
depois da guerra Irã-Iraque ter tido um fim, a economia iraquiana estava excepcionalmente
comprometida. Como um meio de atravessar de aumentar a arrecadação do país, Saddam
precisava vender barris de petróleo a preços mais altos, porém, encontrou um empecilho
regional: o Kuwait; este exercia uma super-extração petrolífera, o que causava a redução das
cotas estabelecidas pela OPEP. Além disso, o Kuwait passou a cobrar a devolução dos
20
empréstimos que financiou durante a guerra, sendo este mais um dos motivos que levou Saddam
Hussein a adotar uma postura hostil e agressiva em relação ao país vizinho e que o conduziu a
dar início, em agosto de 1990, a invasão que tomaria posse de parte do Kuwait durante poucos
meses.

Após a invasão ao território kuwaitiano, houve um rompimento das relações


diplomáticas entre o Iraque e a Arábia Saudita, que fechou as portas de sua embaixada em
Bagdá. Ainda assim, Saddam Hussein não considerava que fatores externos mais relevantes
poderiam interferir naquele contexto, porém, não era de interesse para outros Estados do
Oriente Médio que o Iraque se tornasse um dos países com maior reserva petrolífera do mundo
e exercer demasiada influência, assim como os Estados Unidos. Além disso, com a ofensiva, o
Iraque começou a ameaçar a soberania Saudita na região, afinal, havia a existência de rumores
que o país poderia estar planejando uma invasão ao território da Casa de Saud, visto que a
mesma, assim como o Kuwait, cobrava as dívidas do financiamento da guerra que o Iraque
protagonizou. Hussein não aceitava esses posicionamentos, e alegava que havia feito um
“favor” em prol de toda a região. Após a muito bem-sucedida “Operação Tempestade do
Deserto”, os Estados Unidos, a Arábia Saudita e os países aliados derrotaram e auferiram a
remoção das tropas iraquianas do território kuwaitiano.

O fim da Primeira Guerra do Golfo teve muitos efeitos, e apesar de que os Estados
Unidos da América se uniram em benefício também da fixação da Arábia Saudita como
principal ator regional do Oriente Médio, trouxe graves consequências internas para os
religiosos sauditas. Durante a guerra, a monarquia Saudita abriu as portas de seu território para
que tropas americanas atravessassem com o intuito de avançar para o conflito, o que gerou forte
ressentimento por parte da população conservadora que considerava o berço de Maomé um
território sagrado, já que havia uma potência ocidental tida como “impura e pecadora”
transpassando suas terras, algo imperdoável para radicais do wahabismo sunita.

Como uma das consequências do posicionamento da Dinastia Al-Saud, o grupo de


terroristas que realizou os atentados de 11 de Setembro contra os EUA, “fazia parte de uma
rede global que tinha como principal objetivo derrubar a monarquia saudita pró-americana do
poder, visando instaurar um governo Islâmico em seu lugar.” (EBRAICO, 2005, p. 11). Mais
tarde naquele ano, foi constatado que dos 19 envolvidos na ação, 15 eram sauditas, e a Al-
Qaeda assumiu a autoria dos atentados diante da insatisfação da aliança norte-americana-
saudita e da liderança estadunidense nos assuntos da região. O ressentimento dos jihadistas da
21
Al-Qaeda era voltado para o discurso de que o povo mulçumano sofria opressões ocidentais,
que a pobreza em que vive parte dele é derivada dessas interferências, a maioria delas
especialmente advindas do Estado norte-americano, e sobretudo, uma ofensa e transgressão
diante de algo que jamais poderia ser negociado: a religião.

Após os atentados de 2001, os Estados Unidos declararam a “Guerra ao Terror”,


alegando que defenderiam a paz no sistema internacional ao lutar contra o terrorismo e os
“governos tiranos”, definidos como “eixo do mal” (Iraque, Irã e Coréia do Norte). Apesar do
fato da maioria dos envolvidos no ataque de 11 de Setembro serem sauditas, nenhum deles
estava diretamente ligado ao governo. Não houve qualquer tipo de mudança nas relações entre
Washington e a guardiã dos locais sagrados do Islã – que inclusive, foi uma grande parceira do
país norte-americano na Guerra ao Terror.

No mesmo ano, o país norte-americano conduziu a invasão ao Afeganistão onde se


instaurava Osama Bin Landen, e em 2003, invadiu o Iraque objetivando a retirada do Saddam
Hussein do poder, considerado pelos EUA um governo tirano. A lógica disseminada era de se
prevenir de um provável futuro ataque, ou que um inimigo se armasse contra eles, as chamadas
“Guerra Preventivas”. Dessa forma, se deu início a Segunda Guerra do Golfo, que tinha seu
grande alvo a queda de Hussein, além da derrubada de toda a influência de seu partido, o baath.
Durante os anos que Saddam Hussein estava sendo procurando, os Estados Unidos e governo
xiita posterior começaram o processo de retirar todos os seus vestígios e de seu partido da vida
pública iraquiana, onde se começa o processo de “desbaathificação”.

Essa série de acontecimentos no Estado iraquiano no ano de 2003, deu origem ao


chamado Estado Islâmico. O foco se tornou a expansão territorial, e chegaram a tomar em 2014
a terceira maior cidade do Iraque, Mossul. Durante esses anos houve uma série de promoções
de diversas guerras civis, além de ofensivas militares internas e externas para afastar o Estado
Islâmico, levando a destruição parcial da cidade.

O Irã viu nesses desenrolares, desde a destituição de Saddam em 2003, uma grande
oportunidade de expandir sua revolução islâmica, já que o ex-presidente era o principal
inconveniente para o seu objetivo e o responsável pela perseguição da maioria xiita existente
no seu território, que iniciou uma represaria de ataques violentos contra os sunitas (ALSAMH,
2017). O Estado iraniano apoiou todo o processo de desbaathificação, e como uma tentativa de
disseminar sua zona de influência no Oriente Médio, enviou conselheiros políticos e militares
para o Iraque, além da caça ao ditador junto aos norte-americanos, que foi capturado no ano de
22
2006, e no mesmo ano, julgado e executado por crimes contra a humanidade. Por anos, o Irã
vem aproveitando-se das instabilidades iranianas para exercer sua teia de influência
revolucionária e boa parte dela também se dá em ajudas financeiras para o país.

Ao mesmo tempo, a política estadunidense no Iraque se tornou desvantajosa para a


Arábia Saudita. No pós-guerra, se concentrou em diferentes maneiras de conter possíveis
ameaças iraquianas ao reino e à região, visto o novo governo e a insurgência de rebeliões de
grupos xiitas no país fronteiriço. Nesse período, centenas de jovens sauditas comovidos pela
situação de grupos sunitas foram lutar no Iraque contra as forças xiitas do governo local
(ALSAMH, 2017). As relações diplomáticas iraquiano-sauditas continuaram rompidas desde a
Primeira Guerra do Golfo, mas durante os anos, a Arábia Saudita pôde observar cada vez mais
a influência iraniana sob seu vizinho, fato que aos poucos a levou a reconsiderar essa postura
de distanciamento e reconhecer que deveria investir numa possível reconciliação, visto que a
falta de envolvimento no Iraque conduzia ao resultado mais desastroso para os sauditas: um
Estado totalmente vinculado às ideologias iranianas.

Após 24 anos de rompimento das relações diplomáticas, em 2014 a Arábia Saudita


reabriu a embaixada em Bagdá, em uma tentativa de reaproximação. Alguns anos depois, os
sauditas estreitaram mais os laços com os iranianos anunciando que ajudariam financeiramente
na reconstrução de Mossul, além de querer investir em outros projetos no país, um passo
estratégico inteligente. Para os iraquianos, a reaproximação com o Reino é conveniente, posto
que precisa de maior apoio regional para se reconstruir, além de balancear a influência iraniana
em seu território e retomar um pouco de controle de seu espaço. Simultaneamente, é
fundamental para o Iraque no momento não tomar partido de nenhum dos lados, pois em ambas
as escolhas teria muito a perder.

6.3.5 As guerras por procuração no Iêmen

Um outro vizinho com o qual a Arábia Saudita possui contenciosos é o Iêmen, país
localizado na Península Arábica e que passa pela pior crise humanitária do mundo. Com as
desavenças da Primavera Árabe em 2011, o sunita Abd Rabbuh Mansur al-Hadi assumiu o
poder, fazendo com que emergisse uma convulsão violenta por parte dos Houthis (grupo xiita
Zaidita), que começaram uma série de protestos contra o novo governo.

23
Dentro do contexto em que a Arábia Saudita é a líder regional dos sunitas, ao passo que
o Irã exerce liderança sobre os xiitas, com a ascensão de al-Hadi, os rebeldes Houthis passaram
a obter auxílio dos iranianos para atingir o objetivo de alcançar uma preponderância dentro do
território iemenita. Essas movimentações no tabuleiro do Oriente Médio significaram uma
extrema ameaça aos sauditas, visto que uma provável crescente influência do xiita Irã estava se
instalando logo ao lado.

Para além da complexa questão religiosa, o elemento geopolítico também gira em torno
desses embates entre os players, uma vez que passa pelo Iêmen o cobiçadíssimo estreito e rota
petrolífera Bab al-Mandab. Portanto, é de extrema importância para os sauditas – além da
integridade de seu próprio território – manter o Iêmen longe de influências inimigas. Nesse
sentido, desde 2015 há uma guerra em curso na região, onde de um lado a coalizão internacional
liderada pela Arábia Saudita ataca terras iemenitas com o intuito de frustrar as ambições dos
Houthis, ao passo que o Irã vem armando e auxiliando seus irmãos xiitas para combater os
opositores.

Podemos observar que como aliados da Arábia Saudita na Guerra do Iêmen há a presença
não só de países próximos de maioria sunita, porém também de grandes potências ocidentais
como a Inglaterra e os Estados Unidos. Os EUA são responsáveis por enorme parte do material
militar fornecido aos sauditas, além da ajuda logística e também material oferecida pelos
ingleses, o que nos mostra mais uma vez que, apesar de radicais diferenças ideológicas e
religiosas no que concerne ao intensamente religioso Reino da Arábia Saudita, quando se trata
de segurança internacional e poder, questões geopolíticas também exercem um papel
fundamental.

6.4 As transformações da Dinastia Saudita nas políticas interna e externa desde 1973.

Para analisar de forma concisa o vetor religioso e as políticas interna e externa do Reino da
Arábia Saudita a partir do ano de 1973 até a conjuntura atual, é necessário antes observar as
sucessões dinásticas que a monarquia teve durante essas décadas e suas particularidades
específicas. Na monarquia saudita, o monarca representa o chefe de Estado e também o chefe
de governo. Além disso, é importante ressaltar que como tradição, todos os reis citados
desempenharam importantes papéis políticos na dinastia Al-Saud em outras funções políticas
antes mesmo de assumirem o trono.

24
6.4.1 Faisal Al-Saud (1964–1975)

Durante o primeiro choque de petróleo na década de 1970, o monarca absoluto era o rei
Faisal bin Abdulaziz Al-Saud. Faisal criou um sistema judicial, permitiu que mulheres e
meninas tivessem acesso à educação, construiu universidades e foi responsável pela significante
abolição da escravatura. Teve seu foco na melhoria das finanças e economia do país, e foi
durante seu reinado que a Arábia Saudita se tornou um dos países mais ricos do mundo, graças
à sua decisão de supervalorização do petróleo.

No tocante às políticas transnacionais, manteve forte aliança com o Estado norte-


americano, confiava bastante em Washington para armar e reinar as forças sauditas. Era
estritamente contra o comunismo que tentava ampliar suas zonas de influência durante a Guerra
Fria, recusando qualquer tipo de laço político com a União Soviética, e também avesso ao
sionismo, ao abominar Israel. Faisal também apoiou movimentos monarquistas e conservadores
no mundo árabe. Para esse fim, ele pediu o estabelecimento da Liga Mundial Muçulmana,
visitando países muçulmanos para defender a ideologia. As novas receitas do petróleo
permitiram o Estado saudita a aumentar muito a ajuda e os subsídios a países mulçumanos como
Egito, Síria e Palestina após a Guerra Árabe-Israelense de 1967.

Segundo Yamani (2008), Faisal tinha uma política nacional bem-sucedida de


integração, visto que demonstrava ser compreensivo e pluralista, e reconhecia a diversidade
cultural e religiosa de seu país, como por exemplo, a minoria xiita no leste do Estado, tribos
ismaelitas e outras minorias em seu território. No mais, rei Faisal teve seu governo frisado por
uma ótima reputação econômica, e durou até 1975, quando foi assassinado por um de seus
sobrinhos, como retaliação a morte de seu irmão por forças sauditas durante uma manifestação
dez anos antes.

6.4.2 Khalid Al-Saud (1975–1982)

Depois da morte de Faisal, a ascensão de Khalid bin Abdulaziz Al-Saud ao trono em


1975 o tornou o quarto monarca da Arábia Saudita, que foi protagonista na nova agenda de
interesses do Médio Oriente como parte de uma resposta aos eventos que transcorreram na
região. Deu grande ênfase no progresso do Reino com reformas econômicas e sociais, prestou

25
particular atenção ao desenvolvimento da agricultura, educação e na infraestrutura física do
Estado.

Durante seu reinado foi quando as dinâmicas no Oriente Médio mudaram drasticamente,
a partir do ano de 1979. Pelo fato de querer defender os interesses próprios estatais e o
predomínio saudita em sua região, Khalid cortou laços com as que foram reconhecidas como
diversidades multiculturais ou religiosas por Faisal, afinal, não havia mais lugar para divisões
ou desarmonias enquanto uma revolução insurgia e poderia bater em sua porta. O país começou
as intensificações do islã wahabita, justamente para tentar combater a insurgência de ânimos
iranianos dentro de seu território, além de fazer uso incisivo do autoritarismo. De acordo com
Yamani (2008), o quarto monarca seguiu a doutrina ancestral de discriminação baseada em
seita, vertente do islã, tribo e região, que voltaram a ser fortes pautas governamentais, e tais
diferenças marcadas pela intolerância foram acentuadas por seus sucessores – não mais
toleráveis como no reinado anterior –, que começaram a organizar o domínio completo da
sociedade através da força de poder do Estado.

Ainda sobre relações transnacionais, o rei Khalid estreitou mais suas alianças com
Washington. No tocante a essas relações na região do Oriente Médio, em 1981 teve a iniciativa
da criação do Conselho de Cooperação do Golfo, em prol do pan-arabismo com Estados de
interesse, excluindo o Irã e Iraque.

O governo de Khalid foi relativamente curto, findado com seu falecimento em 1982,
apenas sete anos após sua coroação. Marcado por uma ânsia de reafirmação no Oriente Médio
com a reviravolta Iraniana, por um abundante crescimento econômico e desenvolvimento
infraestrutural e por uma estarrecedora ampliação na violação dos direitos humanos.

6.4.3 Fahd Al-Saud (1982–2005)

Fahd bin Abdul Aziz Al-Saud foi o quinto governante e que ficou mais tempo no trono
soberano saudita. Concedeu às mulheres a permissão para emitir documentos de identidade,
assim como deu continuidade ao desenvolvimento da infraestrutura do reino, dando origem a
gigantes metrópoles na paisagem desértica do país. Em termos de ideologia e política, foi sem
dúvidas, um dos governantes árabes mais pró-ocidentais, o que levantou inúmeras críticas por
parte de conservadores do islã e graves consequências posteriormente que ecoaram mundo a
fora diante dessa percepção. Ao mesmo tempo que durante seu reinado continuou a manter
26
relações amistosas com Washington mesmo com as trocas de governo norte-americana, sempre
mantendo forte traço de simpatia ocidental, também era criticado pelos mesmos diante de
graves acusações de violação de direitos humanos. Foi no período de seu reinado também, que
a Arábia Saudita passou a fazer parte do G20.

O então vigente monarca foi o responsável pela decisão que despertou ira profunda de
grupos jihadistas, ao autorizar a entrada de tropas ocidentais em seu território durante a Guerra
do Golfo de 1991. A partir dessa decisão, a Arábia Saudita começou a ser alvo de atentados
terroristas. Um desses opositores radicais contra as ações do rei foi o Osama Bin Laden, que
fez incisivas declarações públicas contra o governo, e como consequência, teve sua
nacionalidade saudita cancelada. No que tange o assunto terrorismo, o governo afirmou que a
violenta campanha travada pós ataques 11 de Setembro contra o Reino na mídia ocidental era
direcionada ao ódio contra o Islã, e que esses assuntos não deveriam ser confundidos. Foi no
seu reinado também que a conhecida “Lei Básica de Governança de 1992” foi implantada, que
salientou os deveres e responsabilidades do Rei para com seu povo.

Em 1996, Fahd sofreu um derrame grave que o afastou das tomadas decisórias
governamentais, papel regente que começou a ser desempenhado no mesmo ano pelo príncipe
herdeiro Abdullah, até a morte do até então rei e também seu meio-irmão dez anos depois, em
2005.

6.4.4 Abdullah Al-Saud (2005–2015)

O mais novo sucessor da dinastia, foi Abdullah bin Abdul Aziz Al-Saud. O
posicionamento do rei, no que diz respeito a políticas internacionais, continuou a tecer relações
estreitas com potências ocidentais, principalmente com os Estados Unidos, com quem manteve
vínculos próximos e frequentes visitas. Investiu pesadamente em questões securitárias de seu
território, na compra de armamentos de defesa do país norte-americano e do Reino Unido,
chegando à marca dos bilhões. Sobre atuações jihadistas, o rei Abdullah condenava com vigor
o terrorismo internacional, ao afirmar diversas vezes publicamente que era uma abominação, e
que o Islã condena tais condutas.

No entanto, como forte opositor de Israel, as relações com o ocidente chegaram a


estremecer por conta das crises israelo-palestinas, e também pelo acordo nuclear assinado por
Barack Obama com Irã, que se sentiu ameaçada por questões securitárias e ideológicas. Foi um
27
grande adepto do pan-arabismo, e acreditava que somente a solidariedade entre os países árabes
poderia minar as influências ocidentais no Oriente Médio, fomentou profundas relações de
cooperação com o Paquistão.

Por conta das pressões ocidentais, implementou uma série de reformas significativas na
Arábia Saudita, concedeu às mulheres o direito ao voto, assim como a candidatura, além de
também permitir que participassem de competições nas Olimpíadas.

Na pauta religiosa, Abdullah era considerado por analistas ocidentais como um


governante “moderado”. Contudo, as escolas na Arábia Saudita continuam a ensinar o
antissemitismo, disseminando repugnância contra judeus, além do contínuo financiamento das
Madrasas. que propagam um Islã ultraconservador, acusado de dar origens a interpretações
ainda mais extremistas. O rei Abdullah faleceu em 2015 por problemas de saúde, mas três anos
antes havia indicado seu meio-irmão, Salman, como príncipe herdeiro.

6.4.5 Salman Al-Saud (2015 – vigente) e Mohammed Bin Salman

Salman bin Abdulaziz Al-Saud é o vigente monarca da Arábia Saudita, que já ascendeu
ao trono com problemas de saúde. Em 2017, nomeou Mohammed Bin Salman como príncipe
herdeiro regente, após decidir de remover Mohammed bin Nayef da posição, gerando alguns
conflitos internos na família real.

Nos últimos anos, com a ascensão do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman – que
ocupava anteriormente o cargo de ministro da defesa –, a Arábia Saudita vem vivenciando
rápidas transformações, uma vez que bin Salman é um claro modernizador e visa afastar o Reino
de sua dependência do petróleo e dos wahhabis, e sendo grande aliado dos americanos. Ele
construiu sua reputação muito em torno de uma agenda de política externa agressiva com o
objetivo de frustrar influências iranianas na região e transformar a Arábia Saudita em uma
potência regional. MBS, no entanto, é visto como uma figura ambígua e é até mesmo chamado
de nomes como “revolucionário”, “linha-dura”, “maquiavélico” e “príncipe do caos”, entre
outros, devido a seu papel duvidoso na condução do Estado saudita e os seus desencadeamentos.

Os feitos do atual príncipe herdeiro abrangem elementos tais quais a abertura do país ao
turismo, suspensão do banimento de cinemas, criação de novas ferramentas de entretenimento
para a população, permissão para mulheres dirigirem e viajarem ao exterior sem necessidade

28
de autorização masculina, e abertura para investimentos estrangeiros em território saudita.
Como mencionado anteriormente, bin Salman tem de certa forma afastado a influência dos
wahhabis no que concerne ao poder e governança e, seguindo esse caminho, como aponta
Simon Mabon, MBS corre riscos de gerar sérios cismas no “coração do contrato social saudita”
(MABON, 2018).

Dentro de um ano ocupando o cargo de príncipe herdeiro, MBS ordenou uma série de
prisões supostamente com o intuito de reprimir a corrupção presente no Reino. Para alguns,
essas prisões foram vistas como positivas para o Reino em si e para a economia, porém para
outros representou apenas uma demonstração desesperada para assegurar sua posição na
sucessão de poder. Apesar de ter demonstrado consciência nos problemas socioeconômicos que
assolam a Arábia Saudita – provenientes do limite do suprimento de petróleo, do crescente
boom de jovens, e de altos níveis de emprego no setor público – bin Salman é frequentemente
questionado por seus gastos exorbitantes e apontado como corrupto, em um reino extremamente
burocrático, no qual quem exerce poder constantemente recebe pesados recursos financeiros
como financiamento.

O príncipe herdeiro também tem sido muito criticado ao que se refere o aumento das
repressões no Reino. Em 2018, ocorreu um fato veiculado ao redor de todo o mundo: o jornalista
saudita do Washington Post, Jamal Khashoggi, que se manifestava abertamente contra as ações
repressivas da monarquia – um crítico do governo de MBS – e que desde 2017 se autoexilava
do país, foi morto dentro da embaixada da Arábia Saudita em Istambul, Turquia. Apesar de
negar, segundo investigações da Central Intelligence Agency (CIA) e da ONU, é provável que
o príncipe tenha sido o mandante do assassinato de Jamal (CORBIN, 2019). O foco de bin
Salman na manutenção do poder sem precedentes parece abranger inclusive a família real, da
qual ordenou a detenção de três membros que suspeitou estarem conspirando contra seu
governo, em março de 2020.

Em termos de planejamento político-financeiro, Mohammed bin Salman estabeleceu a


chamada “Visão 2030”, programa para transformar e melhorar a economia em um designado
“mundo pós-petróleo”, onde foi prometido uma menor dependência do recurso, que pode se
esgotar a qualquer momento. Sua política externa assertiva, no entanto, se delineou para destruir
reminiscências de manipulação do Irã e se afundou numa violenta guerra no Iêmen.
Domesticamente, de maneira custosa, Bin Salman trouxe o descontentamento de parcelas da

29
população, uma vez que realizou corte de orçamentos, diminuiu salários e implementou
medidas de austeridade seguidas da queda do preço de petróleo.

7. Discussão e Análise

Para os construtivistas, a identidade do Estado é uma parte imprescindível para entender a


estrutura do sistema em que os atores estão inseridos e as quais se relacionam. Particularmente,
no caso da Arábia Saudita, a identidade é muito forte no que diz respeito o laço entre Estado e
religião, já que a mesma possui profundas raízes religiosas, também devido ao fato de ser
considerada o berço do Islã. Como apontado anteriormente, essa ligação acentuada foi
estabelecida logo no surgimento do Reino da dinastia Saud em 1932. Naquele momento, Ibn
al-Saud precisava consolidar seu projeto político em um ambiente que não havia consolidação
nacional, pois os sentimentos de identidade e história em comum – elementos essenciais para
estabilidade de um novo Estado – não eram encontrados no povo. Portanto, alianças com os
ulemás wahhabis foram lançadas e o wahabismo se tornou a religião oficial do Reino, com o
intuito de legitimar o poder do novo governo e afastar dissidências, às custas de uma inabalável
retórica religiosa islâmica. Isto é, aplicando o pensamento teórico no caso, havia um interesse
de formar uma nação, e uma identidade era necessária ser criada para que o acontecesse; esse
elemento junto ao interesse do monarca Ibn, caracterizado pelo interesse de Estado, formaram
uma política estabelecida em uma vertente ultraconservadora do Islã (wahabismo); moldando
esse junção não somente uma noção de pertencimento, costumes e tradições do povo em si, mas
agindo o Estado junto com povo nessas tradições religiosas. O envolvimento desses elementos
foi tão difundido e levado através de gerações, que ações estatais sauditas podem se tornar
graves ofensas e condenações pelos fiéis wahabitas – como por exemplo, o atentado de 11 de
Setembro, que foi nada menos do que uma ofensiva jihadista contra os Estados Unidos e um
protesto contra a Arábia Saudita devido ao seu envolvimento com um Estado ocidental, que
com suas intensas interferências no Oriente Médio, fere os valores do mais tradicional Islã.

No tocante das questões de norteamento doméstico estatal e os contrastes do


posicionamento externo, a Arábia Saudita como membro fundador da ONU, deveria ser um
Estado “garantidor” e “positivador” dos direitos humanos em âmbito interno, mas ao mesmo
tempo, os direitos fundamentais do país são baseados na Lei Sharia. Enquanto a primeira
defende e reafirma a liberdade de expressão e de escolha em todos as esferas na vida do
indivíduo, a segunda é basicamente um manual de como um cidadão saudita deve se portar
30
diante a sociedade – e até mesmo na sua própria individualidade, valores esses
ultraconservadores perpassados culturalmente durante séculos. Esses dois fatos que deveriam
ser complementares, são de longe antagônicos e incompatíveis entre si.

Portanto, ao analisar essa questão diante de uma ótica construtivista, se compreende duas
identidades distintas formadas a partir de diferentes estruturas de identidades e interesses. Ao
analisar a primeira em âmbito interno, se verifica um país fundamentado na vertente sunita
wahabita, que utiliza da religião como um instrumento de governo e da manutenção da ordem
social ao determinar as ações de seu povo até mesmo em sua individualidade; a segunda, foi
assumida uma identidade de globalplayer, uma estratégia para participar no processo de tomada
de decisões internacionais e para, de alguma forma, conseguir exercer seus próprios interesses
em escala global, e principalmente, regional – para isso, é preciso ter cooperações externas e
participações mais ativas em fóruns multilaterais e organizações internacionais para que essa
predominância aconteça, e ser um membro da ONU é claramente um facilitador desse objetivo,
desde que não exerça custos consideráveis internos. Logo, essas contrariedades se justificam
no construtivismo a partir da relatividade intrínseca das duas em esferas distintas de ações
políticas.

Da mesma forma, essas contradições em termos de múltiplas facetas de identidades podem


ser aplicadas sob todos os Estados, fundamentando assim, em uma ótica construtivista, esses
posicionamentos contraditórios. Vejamos em termos geopolítico-econômicos, apesar de vários
recursos naturais ao longo da história terem sido necessários para prover sustento às sociedades
industriais modernas, o petróleo foi o único visto como uma questão de segurança nacional por
diversas potências, para manutenção de seus espaços vitais. Os fatos de a Arábia Saudita ser
um ator primordial em termos de petróleo no Oriente Médio e um dos maiores compradores de
recursos militares, são alguns dos motivos que levam potências ocidentais a ainda a apoiarem
e manterem relações tão estreitas com um Estado, violador sistemático de direitos humanos. O
relacionamento com os Estados Unidos é um reflexo desse argumento, simultaneamente que os
norte-americanos enfatizam a questão de direitos humanos e se vendem como um ator que
“defende a paz no sistema internacional”, são os maiores provedores do arsenal militar saudita,
armamentos esses também utilizados para fomentar conflitos no Iêmen, que passa pela mais
grave crise humanitária do mundo.

No que concerne às culturas da anarquia de Wendt (1999), estas vão sendo alteradas na
medida em que as identidades e as estruturas sistêmicas vão se delineando ao fluxo das relações
31
e comportamentos moldados pelos players que compõem as dinâmicas internacionais. No caso
do Reino, as culturas anárquicas historicamente se alternaram em concordância com episódios
internacionais e mudanças de estratégias internas, como foi analisado no antes e depois das
relações externas sauditas-iranianas, que anterior a 1979 conviviam numa lógica de
coexistência mais amena e cooperativa (lockiana), e depois extremamente conflituosa
(hobbesiana).

Diante disso, fica fácil compreender que as relações entre os Estados vão mudando e se
moldando de acordo com acontecimentos históricos ao longo do tempo, ou seja, nenhuma
relação é imutável ou definida por ideologias, mas é sim passível de transformações frente a
novos cenários, como traumas coletivos ou até mesmo interpretações na agenda internacional,
e essas modificações podem causar impactos internos.

Analogamente em contexto interno, durante o reinado de Faisal Al-Saud que perdurou até
1975, existia um certo reconhecimento de pluralidades culturais e religiosas divergentes das
sauditas. No entanto, a Revolução Islâmica liderada pelo Irã no ano de 1979, obteve
reverberações internas dentro do Estado, que durante o reinado de Khalid Al-Saud, passou a ter
uma postura de repressões perante essas minorias, e intensificou a disseminação e reafirmação
da vertente wahabita como forma de controle estatal; houve uma mudança de interpretações de
governo. Essa mudança de postura veio por meio de um novo cenário, o que prova que o Estado
muda de posições de acordo com a realidade que está inserida, e também de seus interesses.

As realidades podem ser modificadas de maneiras sutis e aos poucos, ou de maneiras


drásticas, como ocorreu quando o Iraque invadiu o Kuwait em 1990, e houve um rompimento
de 24 anos nas relações diplomáticas entre o Estado iraquiano e a Arábia Saudita. De um
período para o outro, deixou de ser um “aliado” contra o Irã, em que possuía uma identidade
lockiana como argumentado por Wendt (1992), e passou a ser uma ameaça a soberania estatal
saudita, com risco de invadir seu território, e adquiriu uma identidade hobbesiana, em que se
avistam como inimigos e não há nenhum tipo de cooperação.

Dessa forma, é possível afirmar que conforme novas relações se constroem e outras se
deterioram, o comportamento e a visão dos Estados em relação aos outros podem se
transformar. Como ilustração para o enunciado, se pode mencionar a queda de Saddam Hussein
do poder em 2003. Mais uma vez, o acontecimento estremeceu a balança de poder vigente no
Oriente Médio, quando o Irã identificou na queda de um de seus maiores rivais na região – com
quem teve um passado sangrento de conflagrações, uma oportunidade para exercer sua zona de
32
influência e disseminar suas ideologias religiosas e políticas no território iraquiano, em
detrimento não somente do Reino da Arábia Saudita, mas também os interesses de potência
ocidentais na região.

Por fim, sobre a questão de diferentes identidades na Arábia Saudita, enquanto


internacionalmente o Estado busca poder e segurança em detrimento de outros temas,
domesticamente há um protagonismo de providência de bem-estar jurídico e social. Segundo
Muhammad al-Atawneh (2009), a antropóloga Madawi al-Rasheed definiu a atual monarquia
saudita como “politicamente secular e socialmente religiosa”. Ela enfatiza que considerar a
Arábia Saudita unicamente como Estado teocrático - como muitos estudiosos de gerações
anteriores fazem – é enganoso, e ainda argumenta que a verdadeira separação entre religião e
política nesta esfera pública, que por um lado é altamente islamizada, se deu ao passo que os
oficiais estudiosos religiosos, ou “ulama” wahhabi, os ulemás, tomaram o papel de guardiões
da ordem social, mas ao mesmo tempo renunciam qualquer autoridade política à família
governante saudita (AL-ATAWNEH, 2009). No entanto, ao seguir a linha de pensamento das
teorias construtivistas, é verificado que a estrutura social saudita e a maneira como o Estado se
projeta e é interpretado por outros atores no sistema internacional vivem em constante
transformações, ao passo que os interesses e as figuras de poder vão sendo mudadas, fazendo
jus à afirmação de que “a anarquia é o que os Estados fazem dela”, em que podem ser formados
ambientes conflituosos, cooperativos, ou a mescla dos dois.

8. Considerações Finais

Pode-se concluir a partir da convergência da teoria construtivista e das análises históricas


apresentadas, que o Estado saudita cria identidades com diferentes objetivos e interesses a partir
da estrutura onde as circunstâncias analisadas estão inseridas, e age conforme suas próprias
interpretações. No que tange às peculiaridades religiosas, os papéis internos e externos também
possuem múltiplas facetas.

No âmbito externo, se trata mais de uma questão de influência geopolítica, securitária,


econômica e de interesses exclusivos - com questões territoriais e petrolíferas - do que
ideológica, em que o ponto central é manter uma espécie de predominância, principalmente
entre os países do Oriente Médio; e também ambiciona projetar seus interesses em escala global
com participação nas tomadas de decisões internacionais; analogamente se dá a rivalidade de
33
disputas com o Irã, as atuações cada vez maiores como um globalplayer, além de uma maior
interação em cooperações internacionais com Estados ocidentais.

Já no âmbito interno, o uso da religião se verifica desde o surgimento do Reino como


instrumento de governo, sendo fortemente guiado por raízes religiosas islâmicas pautado na
manutenção da ordem pública a partir da estimulação de pertencimento das práticas
ultraconservadoras do Islã desde o berço, o que constitui a legitimação de apoio social. No
entanto, essa lógica interna tem gerado contestações e conflitos intensos domésticos e externos
de alguns anos até a conjuntura atual. Primeiro, com as "modernizações" naturalmente não
apoiadas por conservadores religiosos wahabitas sauditas; segundo, com o alinhamento com
potências ocidentais, caracterizadas como "pecadoras" e "impuras", e uma ofensa profunda pelo
islã; e terceiro, ao dar origem ao nascimento e proliferação de grupos extremistas, provocando
impacto em toda a rede global.

Finalmente, para melhor compreender as relações internacionais, se deve avistar os Estados


não apenas como meros indivíduos – o que é uma armadilha –, mas sim como um conjunto de
elementos complexos, com identidades distintas e passíveis de constantes mutações.

34
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