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Resumo: O objetivo do presente trabalho é esclarecer ao leitor sobre o instituto que começa
a fazer parte da realidade global de uma maneira mais incisiva e ainda pouco conhecida:
as chamadas empresas militares privadas (EMPs). Este trabalho é dedicado a expor os
instrumentos legais direcionados às EMPs na tentativa de definir e regular suas atividades.
Para isso, foi necessária uma breve incursão histórica ao plano em que elas atuam, qual
seja, a indústria da guerra, seguida pela questão de qual seria a jurisdição responsável
para julgamento dos crimes cometidos em sede de guerra ou conflitos armados. Para
auxiliar a compreensão, abordou-se outro instituto – as Forças Armadas – de modo que,
por meio de comparação, é possível ter uma maior noção das atividades das EMPs. Ainda,
uma das questões mais controversas: se as EMPs são capazes de figurar no polo passivo
das jurisdições disponíveis; se não elas, quem, e sabendo quem, como seria a aceitação
dessa jurisdição.
Palavras-chave: privatização da guerra; soldados contratados; Forças Armadas;
responsabilidade internacional; mercenários; empresas militares privadas.
Abstract: The goal of the present paper is to enlighten the reader about a rising institute in
a global scenario, in a much more incisive way and not very known: the so called Private
Military Companies (PMCs). This paper is dedicated to exposing legal tools directed to
PMCs, in attempt to define and control it’s activities. For that, it necessary a brief history
about where they act, that being the industry of war, followed by the question: which
jurisdiction is responsible for judging crimes committed in wars or armed conflicts. To make
it easier, a comparison between PMCs, armies and mercenaries was made. There are, still,
controversial issues about PMCs; as in are they able to be a defendant at an international
court; if not, who would be in their places, and, knowing who, how would this jurisdiction
be accepted.
Keywords: privatization of war; hired guns; armed forces; international responsability;
mercenaries; private military companies.
1
Acadêmica do curso de Direito da Univille.
2
Professora do departamento de Direito da Univille. Coordenadora da Clínica de Direitos Humanos, orientadora.
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A responsabilidade internacional das empresas militares privadas (EMPs)
Internacional, Penal, Humanitário e pelos Este artigo traz a definição das EMPs e
direitos humanos. As ameaças existentes à paz suas semelhanças e divergências em relação aos
e à segurança internacionais, a consolidação mercenários. Em um segundo momento, trata
de novos sujeitos de direito internacional, a de quem seria a responsabilidade pela violação
atual geopolítica mundial e as novas formas dos direitos das pessoas em um caso de conflito
de fazer uma guerra são alguns dos desafios causado por uma EMP, apresentando assim
encontrados durante a pesquisa para analisar algumas experiências práticas e, também, quais
esse assunto. são as propostas de regulamentação existentes
É importante ressaltar que o tema das atualmente.
EMPs não aborda apenas a área de Direito
Internacional Público, mas também as relações
internacionais. A área de conhecimento destas
tem como principal objeto o estudo das relações
FORÇAS ARMADAS
políticas, econômicas, culturais, entre outras.
Percebe-se assim que o Direito passa a ser um Para garantir que um Estado tenha sua
dos instrumentos de estudo, e não apenas o segurança e integridade intocadas, é necessário
único (VARELLA, 2009, p. 2). “Enfim, as relações que ele tome medidas para prevenir e repelir
internacionais envolvem-se com as relações da qualquer tipo de ameaça, por meio de um
realidade da sociedade internacional, vista sob instituto chamado Forças Armadas, que
a perspectiva mundial” (OLIVEIRA, 2001, p. 69). engloba, basicamente, as forças naval, aérea e
Não há como falar de guerras e intervenções terrestre de um Estado.
militares sem uma análise mais conjuntural das Essas três forças, combinadas, defendem
relações internacionais. o Estado de toda e qualquer ameaça que
Para tratar a questão da responsabilidade possa surgir, sejam elas externas ou internas.
internacional, mister se faz verificar quem são É a política de defesa nacional que define a
os atores internacionais passíveis de serem segurança como
responsabilizados. Segundo Varella (2009, p.
3), atores internacionais são todos aqueles que condição que permite ao país a preservação
participam de alguma maneira das relações da soberania e da integridade territorial,
jurídicas e políticas internacionais. Logo, tal a realização dos seus interesses nacionais,
expressão é muito mais ampla do que sujeitos de livre de pressões e ameaças de qualquer
direito internacional, pois como sujeitos apenas natureza, e a garantia aos cidadãos
do exercício dos direitos e deveres
são reconhecidos, de acordo com a maioria dos
constitucionais (VARELLA, 2009).
doutrinadores, os Estados e as organizações
internacionais. Aqui já fica demonstrado o
desafio de tratar as EMPs como uma instituição O caso mais grave em que se vê a
passível de responsabilidade internacional, não intervenção das Forças Armadas é em uma
sendo considerada um sujeito clássico de direito guerra. Seja ela civil ou interestatal, as Forças
internacional público. Armadas são chamadas para garantir a ordem
Os atores internacionais atuais, como nacional e transnacional. Elas estão vinculadas
Estados, organizações internacionais, ao Poder Executivo e, portanto, é de sua
organizações não governamentais (ONGs), responsabilidade perante o Estado cumprir
empresas transnacionais, entre outros, são as missões para as quais sejam designadas,
muito mais abrangentes do que os sujeitos de de maneira honrosa e em consonância com os
direito internacional público. Sendo assim, como princípios de seu Estado.
responsabilizar algum agente que não seja um As Forças Armadas lutam por um ideal
Estado ou uma organização internacional? mantido como padrão no Estado e recrutam
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A responsabilidade internacional das empresas militares privadas (EMPs)
patriotas e honrosos para fazer parte de seus O desenvolvimento mais visível das EMPs
contingentes nacionais. ocorreu no fim dos anos 1980, marco histórico
Paralelamente às Forças Armadas, há mundial ilustrado pela queda do muro de
também os conhecidos como soldados da Berlim e conhecido como o fim da Guerra Fria.
fortuna, legionários, armas contratadas, Conforme Barrinha (2007, p. 1), sem a ameaça
assassinos de aluguel, guerreiros corporativos de uma guerra iminente, os Estados viram-se
ou mais comumente chamados de mercenários impelidos a investir em outros departamentos
(LANNING, 2005, p. 7). de interesse público.
Após o término da Guerra Fria o cenário
internacional mudou, e tal fato refletiu na
EMPRESAS MILITARES PRIVADAS (EMPS) estrutura de cada Estado: a realidade que exigia
um contingente repleto de soldados dentro das
Os registros sobre os primeiros soldados Forças Armadas não mais existia.
contratados datam de 3000 a.C., na região do Portanto, não se justificava um número
Egito. O início desse tipo de serviço deu-se tão alto de militares, razão pela qual muitos
em razão da vontade dos homens egípcios foram dispensados dos serviços, permanecendo
de desfrutarem as riquezas que haviam alistados na Reserva.
conquistado ao longo do tempo. Singer (2003)5 aponta esse fator como
Em meados do século XIV, o fim da o responsável pelo aumento de militares
Guerra dos Cem Anos3 repercutiu no âmbito desempregados por seus governos. Contudo,
dos soldados contratados, pois gerou um apesar de a Guerra Fria não mais existir, assim
grande número de soldados que perderam seus afirma Hobsbawm (2007, p. 28):
empregos.
Unidos por suas habilidades, porém sem Os conflitos armados dentro dos países
ter onde utilizá-las, muitos deles começaram a tornaram-se mais sérios e podem
prosseguir durante décadas sem
se organizar em grupos com todos os tipos de
perspectivas reais de vitória ou solução:
especialidade, para atender a toda e qualquer
Caxemira, Angola, Sri Lanka, Chechênia,
necessidade a qualquer tempo. Colômbia. Em casos extremos, como em
Surgiram, então, inúmeras companhias algumas regiões da África, o Estado pode
especializadas em combate, apenas esperando virtualmente deixar de existir; ou, como na
por um momento oportuno para oferecerem Colômbia, deixar de exercer o poder sobre
seus serviços em troca de dinheiro. Alguns uma parte do território do país.
desses soldados formaram, então, a Guarda
Suíça, que é, até os dias atuais, responsável pela Em parte pelo histórico já mencionado, e
segurança de uma das figuras mais imponentes em outra pela fama disseminada nos anos 1990,
e influentes do mundo, a Sua Santidade, o as EMPs foram definidas popularmente como
Papa4. se seus colaboradores fossem mercenários, ou
3
Guerra travada entre a Grã-Bretanha e a França. Ocorreu em razão da ausência de um descendente direto para
ascender ao trono da França, gerando uma oportunidade para o rei britânico Eduardo III, neto do monarca Felipe, o
Belo (1285-1314), reivindicar o trono na tentativa de unificar as coroas francesa e britânica.
4
O Papa atual foi eleito no conclave de 19 de abril de 2005 após a morte do Papa João Paulo II, sendo o 266.º papa
(SINGER, 2003, p. 34).
5
Peter Warren Singer é membro do Programa de Estudos de Política Externa sobre Segurança Nacional na Instituição
Brookings e diretor do Projeto Brookings sobre a política americana em relação ao mundo islâmico. Serviu também na
base do secretário da Defesa dos Estados Unidos na força-tarefa dos Bálcãs.
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Estima-se que foi gasto, só nos Estados Unidos da América, no ano de 2007, mais de US$ 1 bilhão nesse ramo de
investimento (FAINARU, 2007).
7
Definição atribuída pelo Centro para o Controle Democrático das Forças Armadas, de Genebra, em sua ficha sobre
segurança e EMPs.
8
Seals são oficiais do sexo masculino que fazem parte de operações especiais da Marinha dos Estados Unidos. A sigla
é uma junção das palavras mar, ar e terra no inglês, decorrente de sua habilidade de atuar em todos os terrenos
com excelência.
9
Fundada em 1996 por Erik Prince, atualmente atende pelo nome de Xe.
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Brocardo jurídico que significa: não há crime, nem pena, sem lei que o anteceda.
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com objeto lícito e juridicamente possível, em Além desse caso, as EMPs estão envolvidas
função de já possuírem uma regulamentação em incontáveis casos de assassinatos de civis
interna. por, aparentemente, nenhum motivo plausível
Por outro lado, como já falado, Singer (2003, ou comprovado. Uesseler (2009) acrescenta mais
p. 47) expõe que “mercenários operam em uma uma violação cometida pelas EMPs no decorrer
esfera completamente alienada à legalidade, o de conflitos: a denúncia de que colaboradores
que ocasiona uma fuga constante perante a lei, das EMPs mantinham escravas sexuais durante
burlando-a a todo tempo”. Tem-se, portanto, o conflito nos Bálcãs.
em uma análise superficial, a legalidade das Por causa do abuso do exercício da força
EMPs em relação à ilegalidade das atividades ocorrem as violações aos direitos humanos; as
mercenárias em vigor atualmente. pessoas que se encontram em meio a um conflito
Contudo, apesar de possível a distinção entre estão protegidas pelo Direito Humanitário,
mercenários e EMPs, fica claro que ainda não existente para garantir condições mínimas
há uma definição que atenda aos requisitos da justamente nos casos de guerras e conflitos
elaboração de um documento formal de âmbito armados.
internacional para regular a ação das EMPs. Quando se fala de violações como as
Isso significa dizer que, apesar das legislações supradescritas, o primeiro pensamento é
internas pertinentes à atuação das EMPs, elas unânime: punição aos culpados. No entanto
ainda se encontram sem regulamentação alguma desse pensamento surge uma outra questão de
na esfera internacional. suma importância no Direito, qual seja, a da
O foco que parece surgir aos poucos nos jurisdição competente para processar e julgar os
questionamentos da sociedade civil perante casos de violações ocorridas em solo estrangeiro
os órgãos internacionais é bem nítido: como por membros colaboradores das EMPs.
responsabilizar uma empresa pelas violações Tratando-se especificamente do caso da
que as EMPs cometem? Blackwater no Iraque, pode-se citar a Ordem 17 do
Iraque, que concedia aos membros colaboradores
das EMPs imunidade diplomática, de modo
CASOS PRÁTICOS que qualquer ilícito cometido não os alcançaria
(SCAHILL, 2008, p. 31).
As EMPs ficaram conhecidas mundialmente
Ainda que nessa circunstância específica
há cerca de 10 anos, e, ao contrário do que possa
esteja definida a jurisdição competente para
parecer, não foi em razão do ótimo serviço que
processar e julgar situações de violações de
elas prestam, mas sim das inúmeras violações
direitos humanos, não parece ser tão simples
que envolviam seus nomes em incidentes
assim em casos similares ao da Blackwater.
constrangedores e com um requinte de
crueldade.
Um dos exemplos de escândalos
relacionados às EMPs está no caso da descoberta LIMBO JURÍDICO DAS EMPS E SUA
de presos sendo torturados na prisão de FORMA DE RESPONSABILIZAÇÃO
Abu Ghraib11 por oficiais das tropas norte-
americanas, referindo-se também aos membros Uesseler (2009, p. 164) traz a situação
colaboradores das EMPs. jurídica em que estão as atuais EMPs:
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Cidade iraquiana, a 32 km a oeste de Bagdá, construída por britânicos enquanto da sua ocupação no Iraque.
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que modo as atividades das EMPs estão sujeitas pode acabar sendo questionada, no entanto a
ao controle do Executivo, do Legislativo e do criação de padrões tem a vantagem de confiar
Judiciário. às autoridades nacionais a regulação de suas
próprias EMPs.
É preciso ressaltar que a mídia e a própria
PROPOSTAS DE REGULAMENTAÇÃO sociedade civil já constituem importantes
instâncias de controle das atividades das EMPs,
Para distinguir com exatidão quem são e isso contribui imensamente para pressionar
as EMPs e quem são os mercenários, sua as empresas a agir de maneira mais consciente
atividade e seu alcance, deve ser organizado para que evitem flagrantes violações de normas
um documento internacional que contenha nacionais e internacionais.
requisitos mínimos para a sua aprovação. Por derradeiro, cogita-se autorregulamentar
Sem analisar seus benefícios ou malefícios, as EMPs por meio de códigos de conduta, como
é necessária a regulamentação desse instituto, faz, por exemplo, a Associação para Operações
pois como dito antes as EMPs têm como objetivo Internacionais de Paz (AOIP)12. Mas isso
primordial o lucro, tornando-as muito eficazes, também não substitui a criação de uma norma
mas potencialmente desestabilizadoras, se isso que regulamente por completo as EMPs.
for seu fim. Como visto, as EMPs não parecem estar
No que diz respeito a propostas, algumas perto de sua extinção, por serem um negócio
tramitam no âmbito de discussão durante as altamente lucrativo e necessário para auxiliar
sessões da Comissão de Direito Internacional os Estados nas soluções de controvérsias. Se
da ONU. Algumas serão explicadas a seguir. continuarem a existir na esfera da segurança
Primeiramente, cogitou-se a possibilidade internacional, é preciso lidar com alguma forma
de proibir, assim como aos mercenários, o de regulamentação, tanto no âmbito nacional
recrutamento, a utilização, o financiamento quanto no internacional.
e treinamento das EMPs. Contudo os críticos É importante sua regulamentação, pois o
dessa posição apontam que as EMPs possuem crescimento desenfreado dessa indústria gera
um papel importante na ajuda de soluções para uma preocupação grande no que diz respeito
controvérsias nas quais o Estado já não consegue à relação das autoridades públicas e ao aparato
mais atuar, de modo que suas atividades são militar. A grande preocupação surge em razão
ineficazes sem o auxílio das EMPs. de as EMPs serem contratadas também por
Cogita-se, também, a criação de uma governos ditatoriais, exércitos rebeldes, grupos
instituição internacional de controle para terroristas e até mesmo pelos cartéis de drogas
monitorar as EMPs. Tal decisão, porém, (SINGER, 2004, p. 523).
traz consequências muito relevantes para os Conclui-se, portanto, que as EMPs não
Estados, pois implica renúncia por sua parte são nem os salvadores do mundo nem os
do tradicional monopólio da exportação de mercenários desregrados do passado. São, na
produtos militares, o que torna praticamente verdade, uma realidade que tomou forma com
impossível a aprovação internacional desse o fim da Guerra Fria e com a globalização e que
instrumento. necessitam de regulamentação internacional
Outra possibilidade seria fazer uma para limitar seu uso desregrado e manter,
convenção que disponha sobre standards assim, um controle de suas atividades para
mínimos de controle. A execução de tais regras que nenhuma violação ocorra sem a previsão
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Sugestão firmada pelo Centro para o Controle Democrático das Forças Armadas, de Genebra, em sua ficha sobre
segurança e EMPs.
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