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Título original: Minha Última Pessoa Favorita.

Copyright © 2022 L.S Englantine.

Texto de acordo com as novas regras ortográficas da Língua


Portuguesa. 1ª edição 2022. Todos os direitos reservados. Nenhuma
parte dessa obra pode ser reproduzida ou usada de qualquer
maneira ou por qualquer meio, eletrônico ou físico, inclusive
fotocópias, gravações, ou sistema de armazenamento em banco de
dados, sem permissão por escrito, com exceção de citações curtas
utilizadas em resenhas críticas, artigos ou divulgação em mídias
sociais. Esta é uma obra de ficção. Todos os personagens,
localidades e acontecimentos históricos e/ou atuais retratados neste
romance são produtos da imaginação da autora e utilizados de
modo fictício, sem qualquer referência à realidade. Créditos de
imagem à Plataforma Digital Canva.

Revisão: Dayane Borges e Raianne Viana


Leitura Beta: Luiza Carvalho, Isis Casemiro e Luany Cardoso
Leitura Sensível: Maria Clara Ronda e Dayane Borges
Capa: Alycia Carvalho
Diagramação: Lara Silva
Arte de diagramação: Arda Works
Arte: Gabi Heifer
Para a minha primeira e última pessoa favorita.
Depois de seis anos, tudo ainda é sobre você.
playlist:
O livro contém uma playlist oficial no Spotify, chamada “Minha
Última Playlist Favorita”:
notas & avisos:
Olá!
Você está prestes a conhecer Georgia e Mika e precisa saber
algumas coisinhas; Madre Rita é uma cidade fictícia aqui no Brasil,
ela fica – ou ficaria – localizada na régio norte no litoral de São
Paulo. As demais invenções são; a banda Desvio, a emissora Farol e
o bistrô da Georgia, tudo isso fluindo diretamente da minha mente
para a composição deste livro.
Outra coisa que vocês precisam saber é que a Georgia, assim
como eu, esta autora que vós fala, é portadora de uma doença
crônica chamada Síndrome de Meniere e de perda de audição
flutuante. Não é uma doença terminal, tampouco perigosamente
mortal, é apenas um relato de uma pessoa que foi diagnosticada
repentinamente com algo que mudou completamente sua vida.
Georgia não é a minha primeira personagem a trazer esta vivência –
e nem será a última.
As páginas desta obra se seguem como uma comédia romântica,
por este motivo, foi feito para ser um comfort book, um livro que te
fará sorrir, aquela obra que pegamos apenas para relaxar e não
precisar gastar muito neurônios.
Espero que goste.
Boa leitura!
mika & georgia:
I:

Os ingredientes exigidos.

“Hoje o tempo voa, amor.”


Tempos Modernos – Lulu Santos.
prólogo
maria mole

INGREDIENTES: Gelatina em pó sem sabor, açúcar, água fervente, coco ralado.

Em 1939, a circense francesa Kelly Petit percebeu que não


suportava seu colega de show e trapézio, Jonathan Mártin. Ela
estava decidida que, se continuasse com sua total aversão a ele, o
mataria sem piedade. Seu plano estava posto; quando o circo do
qual fazia parte chegasse em Praga, na República Checa, ela o
levaria para fora do terreno, eles andariam pela cidade e Jonathan
seria golpeado por um policial que Kelly conheceu na última vez que
esteve no país.
O crime seria perfeito, porque a “lei” estaria ao lado de Kelly e
ela estaria livre de seu rival.
Contudo, antes que pudesse colocar um por cento do plano
em prática, sua melhor amiga, Désirée Lavence, convenceu Kelly a
ficar acorrentada a Jonathan por uma semana. Se vencesse aquele
pequeno e ordinário desafio, ela mesma pagaria pela morte
encomendada por Kelly. Se perdesse e acabasse por gostar do
colega de trabalho apenas um pouco, teria que esquecer daquela
ideia macabra.
Kelly, convencida de que iria ganhar, decidiu apresentar a
proposta para Jonathan que, sem titubear, aceitou. Eles usaram
algemas para se amarrarem um ao outro por apenas cinco dias. O
suficiente para Kelly se apaixonar por Jonathan e ele propor
casamento no dia seguinte ao fim do acordo.
Sempre que leio a história de Kelly, fico me perguntando se
alguém poderia me explicar exatamente o que aconteceu.
Uns dizem que Kelly sempre o amou, mas não sabia lidar com
o “ódio” que os dois emanavam. Há quem diga que ela aprendeu a
lidar com as diferenças. E, também, os mais corajosos afirmam que
Jonathan também estava pensando em matá-la.
O que eu sei, é que não suportaria ficar perto de alguém que
odeio por muito tempo. Como poderia beijá-lo se o odeio?
Como ficaria um segundo perto se detesto sua presença?
Amor e ódio realmente fazem sentido?
Ou desde o princípio sempre existiu um interesse mútuo, mas
pouco estimulado?
Talvez a história seja sobre obsessão e violência, e não sobre
amor. Não é isso o que ele deveria causar. Talvez a lenda de Kelly e
Jonathan sirva como uma narrativa entusiasmante do que não fazer
a um inimigo; se acorrentar a ele.
É provável que eu nunca saiba a verdade. O diário de Kelly
Petit foi enterrado com ela. Objeto e pessoa. Dizem que o caderno
de couro foi posto em sua barriga e moldaram Kelly, já morta, como
se estivesse abraçando seu pertence mais precioso e pessoal.
Dois dias depois, Jonathan faleceu.
De toda a forma, tenho certeza que nunca saberei como é
ficar tão perto de alguém que me causa um sentimento tão feio.
Amor e ódio jamais andaram lado a lado.
Nunca.
1: brioche amanteigado
INGREDIENTES: farinha de trigo, açúcar, fermento de padaria, ovos, leite,
sal, manteiga.

PAI (ANTENOR):
nao importa o que aconteça... voçe sabe o que estah
fazendo!

Sorrio apenas um pouco para a mensagem que brilha na tela


do meu celular, mas escondo o aparelho dela.
As pessoas não avisam, mas quando você as decepciona,
não propositalmente, elas começam a te enxergar de uma maneira
diferente. E, acredite, você consegue magoá-las facilmente quando
decide viver sua própria vida, indo contra a tudo o que elas,
secretamente, acreditam.
Desde que anunciei a minha saída expressa da emissora que
me tem no catálogo desde os meus cinco anos, as pessoas me
olham com uma certa desconfiança que não é lá muito discreta. Me
julgando, para falar a verdade. A minha agente até tenta reconhecer
que a escolha é minha, e até tenta me dizer que não estou fazendo
uma burrada, mas ela não quer usar essas palavras.
Primeiro, ela quer dar o meu espaço, meu tempo — se é que
existe mais do que eu quero — para tentar digerir a informação. E,
em segundo, uma outra alternativa, um acordo entre a vida que eu
quero e a vida que eu escolhi.
Acontece que toda a imprensa já sabe como será tudo daqui
para frente e há certas coisas que não podemos esconder para
sempre. Elas sempre vêm à tona — você querendo ou não.
Estou sentada confortavelmente em uma poltrona que eu
mesma garimpei em um brechó aqui perto. Fiz questão de escolher
um assento confortável, porque quero montar um escritório somente
para mim, igualmente a uma girlboss. Comecei a arrumá-lo primeiro
e já posso dizer que está a minha cara.
A equipe de uma revista local de Madre Rita — não consigo
me lembrar do nome dela — está em peso em um pequeno
estabelecimento que comprei há seis meses. Ele não é maior do
que um restaurante fast-food, mas tem o tamanho ideal para o que
eu penso e o que eu quero.
Ao meu lado, há um jornal em inglês que Ivone Telesco
trouxe para mim de Londres; contém uma matéria que me deixa
com um sorriso no rosto, mas tento disfarçar com indiferença na
presença deles. De vez em quando, gosto de continuar com a fama
de “reservada e distante”.
— Já tem um nome? — Uma das fotógrafas pergunta, se
ajoelhando de frente para um balcão muito empoeirado e tirando
uma foto do que quer que tenha chamado sua atenção.
— Não — Ivone responde com seu sotaque inglês carregado.
Até mesmo falando uma simples palavra, ela revela-se uma legítima
gringa.
Mas para confirmar que revelou uma informação certa, ela
me encara por cima dos ombros, procurando minha afirmação. Faço
um sinal com o queixo. Quando consegue a aprovação, ela sorri,
muito elegante, para a equipe que vasculha todo o ambiente com
muita curiosidade.
Em poucos instantes, todo o material é coletado e a equipe
se despede de Ivone — e de mim — agradecendo pela
oportunidade. Minha agente se agita para levá-los até a porta e eu
me afundo na poltrona, suspirando alto. Talvez a minha fama de
séria e taciturna nunca realmente mude.
Puxo o jornal para mais perto e traduzo o título, passando do
inglês para o português.

RADDEN WEST:
O que ela pode te ensinar?

A matéria contém poucas, mas boas informações sobre uma


doença crônica chamada Síndrome de Meniere. A mesma que eu
tenho.
— Não tem nome? — Ivone volta, batendo seus saltos altos
no piso. Ela está séria, porque não concorda comigo. Em nada, para
ser exata.
Seus olhos julgadores me atingem de todos os lados.
Ela ainda não consegue compreender exatamente meu mais
antigo sonho e objetivo; deixar a atuação de lado e investir em um
bistrô focado nas mais variadas sobremesas possíveis que eu
consiga pensar, imaginar e, é claro, estudar. O sonho parece algo
pequeno e pretensioso demais para Ivone Telesco... E, bem, eu
meio que a entendo.
Quem deixaria de lado uma carreira célebre como atriz para
comandar uma confeitaria em troca do doce sabor do anonimato?
— Ainda não. — Continuo a ler a matéria, mas não consigo
me concentrar em nenhuma palavra, porque sei que estou sendo
observada. — Não consegui focar em nada, primeiro quero pensar
no cardápio. Metade dele está pronto... Bom, pelo menos na minha
cabeça. Depois, penso no nome, na programação, na inauguração e
essas coisas.
— Essas coisas? — Ivone meneia a cabeça para o lado,
confusa.
É meigo assistir uma agente linha-dura se tornar um bichinho
fofo nas suas mãos porque simplesmente não domina muito bem o
português.
— Significa que eu tenho muito tempo ainda para decidir
tudo, mas vou procrastinar.
— Procras... — repete, ainda muito confusa.
— Vou... — Sorrio, me sentando na ponta da cadeira e
tentando gesticular. — Significa que estou com preguiça agora.
Melhor?
Ivone, mais conhecida como Ivy, sacode a cabeça e a mão,
começando a ficar irritada com tantas informações e palavras que
ela acabou por esquecer em algum momento na vida.
Quando nos conhecemos, ela me disse que estudou
português por dez anos, mas que ainda sentia dificuldade em frases
mais elaboradas. Ditados populares não fazem sentido nenhum
para ela. Nem gírias, dizeres regionais e muito menos figuras de
linguagem.
Ela me avalia por um instante, amaciando a ponta do dedo
esquerdo, na palma da mão direita. Ivone tem opiniões ácidas e
olhares gelados que seriam capazes de deixar qualquer cerveja
trincando, mas não é muito bom ser o alvo deles. Especialmente
quando ela discorda veemente de alguma coisa. O que não é muito
difícil de acontecer, confesso.
Ela puxa uma cadeira qualquer, ficando de frente para mim.
Observo-a de perto. Ela passou uma temporada inteira na
Espanha, ao lado do seu outro ator agenciado, Hinsel Duncov. Sua
pele naturalmente pálida está queimada em muitos focos, o que
denuncia que Ivy quase — eu disse quase — se divertiu.
— Tem certeza que fará isso?
— Você conjugou o “fará” certinho, Ivone — elogio, fingindo
bater palmas silenciosas. Ela ergue as sobrancelhas ruivas em
reprovação. Respiro fundo, deixando o jornal de lado. — Sim. Eu já
disse que farei isso. Não tem como eu voltar atrás.
Ivy confia em mim. Mais do que qualquer outra pessoa já
confiou.
Tanto, que seu trabalho era feito à distância. Presumo que
era um dos mais fáceis, por assim dizer. Nunca fui de me envolver
em polêmicas, meu Instagram é misterioso e possui mais fotos de
bichinhos e de paisagens do que selfies. Me considero uma pessoa
discreta e calma, não apareço muito em festas e meu círculo social
é composto por outros atores tão afastados da mídia quanto eu.
Claro que toda essa privacidade causa muita curiosidade nas
revistas. Em outras palavras, eles não tiram o meu nome da boca.
O que a fez voar da Espanha, mais especificamente Ibiza,
pra cá, foi meu anúncio público de que Destino Inteiro, a minha mais
nova novela, também será a última.
Ivone não foi agraciada com a novidade, porque eu sabia que
ela faria de tudo para me fazer mudar de ideia. Minha carreira está
alcançando níveis extraordinários e ela tinha planos bastante
concretos de me conseguir pontas em filmes, participações
especiais em séries e qualquer outra coisa que conseguisse fora do
Brasil.
Mas minha carreira é ótima e grandiosa aqui, não preciso de
mais nada.
Aliás, sim... Preciso.
— Mas tem certeza? — ela insiste. Vejo as linhas de
preocupação no rosto de Ivone Telesco e admito que ela tem razão.
Ela não pensa em coragem, ela pensa em possibilidades. E se eu
desistir da vida comum e monótona que tanto quero, e decidir voltar
a atuar em algum momento? Será difícil e complicado? Podem
acabar me colocando nos piores papéis? — Nada pode te fazerá
mudar de ideia?
— Fazer — corrijo, mas apenas porque ela já pediu que
fizesse isso sempre que houvesse algum errinho parecido. —
Acredito que não. Gosto de pensar em uma última novela. Deixa os
meus próximos passos misteriosos. Não acha?
— Acho? — Ela franze a testa genuinamente. — Não sei!
Não acho nada! O que eu penso é bem diferente do que você quer.
Dou risada, cruzando os braços.
— E eu não deixarei de ser famosa do dia para a noite —
relembro, mesmo não sendo esta a questão.
Não quando uma leva intensa de jornalistas está interessada
no que eu como, no que eu visto, no que eu penso e,
especialmente, com quem namoro. Há pelo menos duas semanas,
eles andam testando a minha paciência, vazando notícias falsas
para conseguirem encontrar uma revelação fresquinha. Nunca
namorei publicamente e isso os deixa fervendo de curiosidade.
Agora, então, sendo anunciada como Marina na principal novela de
uma emissora, estou no olho do furacão.
— Eles não vão deixar que eu caia no esquecimento, Ivone
— provoco. — Não se eu depender de um relacionamento.
— E por que você não tenta um namoro de aparências? —
opina, fazendo um gesto com a cabeça. — Não seria a primeira vez
que eu veria uma coisa como essa. Para terminar um boato, você
pode apresentar um fato.
— Deveria rimar? — ironizo, estreitando os olhos.
— Pense o que quiser — define. — Mas uma mentira às
vezes pode te deixar... Sossegada. É assim a palavra? — questiona.
Concordo com o queixo. — Pense na publicidade. O seu primeiro
namoro... Seria uma sensação.
— Se eu quero mesmo sair do ramo da atuação, por que faria
isso justamente agora?
A pergunta a deixa um pouco irritada.
Quando contei aos meus pais que não iria mais atuar, eles
não entenderam muito bem. As artes cênicas me fizeram falar
abertamente sobre meus sentimentos quando ainda era uma
criança, me ajudaram a não me esconder em pensamentos, ainda
que eu demore bastante para fazer amizades. O teatro foi capaz de
me reencontrar e me fez uma pessoa criativa e poética, mas não
posso continuar em um lugar apenas porque esperam isso de mim.
— Bom... — Ivone se levanta da cadeira, amaciando as
mãos. Ela está cansada, consigo reparar perfeitamente nas bolsas
abaixo dos seus olhos. — Tenho certeza que ninguém quer que
você pare de atuar. Eles mudaram a locação das filmagens apenas
para você ficar perto desse... Negócio.
— Vou preferir ficar com a hipótese de que você falou
“negócio” de comércio, do que “negócio” de “coisa feia” — alfineto,
semicerrando meus olhos.
— Pense o que quiser, darling — Ivone dá de ombros, como
se não se importasse nem ao menos um pouco com a minha
percepção. — Acontece que a Farol toda está aqui, apenas por
você.
Farol é a emissora em que eu trabalho desde criança. Uma
das maiores do Brasil — se não for a maior, atualmente.
— Eu não pedi que eles mudassem os planos. Se as
gravações fossem em São Paulo, eu ainda conseguiria trabalhar no
projeto do bistrô de lado — simplifico. Eles não merecem uma salva
de palmas vinda de mim, fizeram isso para poderem me mimar.
Uma tentativa de me fazer ficar. Ivone bufa, encerrando este
assunto de uma vez. — Vou agradecer um por um no final de tudo
isso — provoco uma última vez, apenas para receber qualquer
reação em troca.
Ivone fecha rapidamente os olhos e posso imaginar que
esteja contando até dez.
Será que ela lida demais com atores e seus egos de Sabe-
Tudo?
Confesso que sou um pouco assim. Depois que tomo uma
decisão, ninguém consegue me parar. Mesmo que insistam
bastante, é claro.
— Eu vou embora — avisa, caminhando delicadamente até
sua bolsa de grife posta em cima de uma mesa qualquer. Quando
pega, ela enlaça a bolsa no braço e ergue uma sobrancelha. — Não
se esqueça, amanhã você vai conhecer o ator que irá contracenar
com você. Às três tem coletiva de imprensa, fotos oficiais às cinco e
um jantar de iniciação às oito!
— Pode deixar! — faço um sinal com os dedos.
Ivone revira graciosamente os olhos e passa por mim, se
despedindo com apenas um breve acenar. Com o celular enorme
nas mãos, ela chama seu motorista particular e avisa que quer ir
para o hotel onde está — tudo em inglês. Seu último aviso, também
em sua língua nativa, é uma recomendação que eu não fique aqui
até muito tarde, porque terei um dia cheio amanhã.
Por entre o vidro do que, futuramente, será um bistrô, vejo
Ivone atendendo uma ligação e entrando no carro preto, fechando a
porta em um baque bastante audível. Sozinha, suspiro muito alto,
fechando e abrindo meus olhos e massageando minhas têmporas.
Pego uma mecha do meu cabelo e arfo novamente, tentando
me acostumar com o novo visual.
Sempre me entreguei de corpo e alma para cada papel e este
não foi diferente. Minha personagem, Marina, é a filha de um ricaço
poderoso na cidade de São Paulo, seu cabelo é azul e comprido,
então me caracterizei à altura. Busquei por um tom de azul feroz há
três meses, encontrando um, finalmente, há apenas alguns dias.
Minha personagem é a protagonista, a mocinha. Eu li o
roteiro algumas vezes e sua evolução será interessante, apesar de
não ser muito original.
Novelas possuem um formato próprio. Ao mesmo tempo que
pensamos “Uau, posso adivinhar para onde essa trama vai, sem
nem precisar assistir”, também podemos declarar “Preciso ver isso
para entender!”.
Isso resume bem Destino Inteiro.
Me levanto preguiçosamente da poltrona, me encaminhando
para a porta, e a tranco. Decido, tardiamente, que vou passar a
noite aqui. O escritório ainda serve como um quarto e as paredes
foram pintadas de laranja. A minha cor favorita.
Posso acordar cedo e ir para o Hotel Prudência sem Ivone
saber. É quase impossível ela não rastrear meus passos, mas
preciso estar na nova sede da Farol antes que ela repare no meu
desânimo.
Fecho uma das persianas e apago a luz do salão principal,
me direcionando para o escritório, nos fundos, onde tem uma TV
que instalei na semana passada e um frigobar. Estou salivando por
um chá gelado de pêssego e, com certeza, vou assistir um filme
nada conceitual antes de dormir. “Vestida Para Casar” é o escolhido.
Puxo o jornal para perto de mim e o enrolo, o mantendo contra o
meu busto.
Antes de me trancar no escritório, as janelas principais da
frente do bistrô tremem alto, quase fazendo com que o prédio inteiro
mergulhe em um leve terremoto cinematográfico. É então que
percebo que começará a chover.
E muito.
2: sonho de creme
INGREDIENTES: farinha de trigo, fermento para pão, ovo, açúcar, sal, óleo,
leite morno, gema, maisena, leite condensado.

Demorei tanto para escutar uma goteira no corredor, que levo


um escorregão digno de uma plateia quando saio do meu escritório,
às duas da manhã. Meu cotovelo bate de encontro ao piso de
madeira e as minhas costas tensionam.
As gotinhas, intrusas e irritantes, caem direto na minha testa,
como se rissem da minha cara e da minha queda.
O chão do corredor principal está quase totalmente revestido
em água gelada. Preciso de um momento para assimilar todas as
informações, porque uma breve e passageira vertigem começa. Os
rastros do Meniere me irritam, mas não vão vencer.
Pelo menos, não hoje.
Me levanto, encarando a goteira como a minha pior inimiga.
Ótimo. Isso quer dizer que a confeitaria passará por uma reforma.
Eu sei, eu sei.
Se a minha mãe, Julia Pessoa, me visse agora, ela estaria
com as mãos na cintura, pensando “Você comprou um comércio
abandonado, em outra cidade e não verificou se todas as paredes
estão inteiras? Pelo amor de Deus, Georgia!”. Aliás, sua voz é tão
estridente na minha memória que até parece que ela está por perto.
E como eu não quero que a minha mãe apareça a qualquer
momento, saio de perto da rachadura no teto, em busca de um
balde e um rodo. Acendo as luzes do salão principal e vasculho por
ali, qualquer que seja o recipiente.
Suspiro, como se Ivone e minha mãe estivessem me julgando
secretamente pelo vacilo. Pego o primeiro balde que encontro e o
arrasto para o corredor, no exato ponto em que as minhas pegadas
descalças e úmidas se fincaram. Limpo os meus pés em um pano
de chão que encontro na lavanderia dos fundos e seco o piso ao
menos um pouco.
Consigo conter a primeira goteira, então, reparo na segunda.
Bem em cima do balcão de acesso, onde, futuramente, colocarei
livros e quadrinhos.
— Cacete.... — arfo.
Sonhos possuem goteiras?
Dou risada da minha piadinha mais do que sem graça e
encontro o segundo balde, para a segunda goteira. Coloco bem
abaixo da cavidade que vaza e reparo em tudo, antes de voltar para
o escritório.
As poucas mesas continuam abaixo dos lençóis, ok. As
cadeiras estão apoiadas e empilhadas em um canto, ok. As paredes
não possuem mofo, ok. Mas a chuva continua muito forte do outro
lado.
Os raios colorem o céu rosa-escuro, ajudando o cenário
fantasmagórico a se concretizar. Venta mais do que chove e isso é o
que mais me assusta. Fico por um tempo, apenas analisando a rua
deserta e, quando me dou conta de que pareço um fantasma,
escuto outra goteira. Dessa vez, não muito longe de mim.
— Cacete! — falo de novo, me abaixando para pescar o
próximo balde.
Contudo, o que chama a minha atenção é que pareço não
estar sozinha na rua. Um carro acaba de virar a esquina, com os
faróis altos iluminando todo o pequeno recinto onde estou. A
tempestade acirrada faz com que sua velocidade diminua, o que
revela que a pessoa está tomando cuidado. Ou nem tanto, é
arriscado demais dirigir em um temporal como este. Graças às
luzes, todos os objetos ganham sombras nas paredes brancas, igual
a um teatro infantil. Vejo que o carro para e estaciona não muito
longe daqui. A chuva aumenta consideravelmente e agora o barulho
do vento é um assobio sinistro por entre as frestas das janelas de
vidro.
— Ei, você!
Levo um tremendo susto com a voz grossa e até mesmo
raivosa do outro lado da porta. O balde voa da minha mão, batendo
ferozmente contra o chão. O zumbido irritante do meu ouvido direito
chia, me avisando a possível dor de cabeça que terei pela manhã.
Meu coração bate forte e meu sangue gela.
Não é um monstro, nem um zumbi, tampouco um vampiro
que saiu das páginas de um livro de terror, é apenas um cara,
praticamente encharcado, me encarando da maior vidraça da
confeitaria. Seus cabelos molhados grudam no rosto, seus óculos
redondos possuem gotículas de água em toda a parte e suas roupas
estão detonadas pela tempestade.
— Você pode me deixar entrar? — berra. — As ruas ao redor
estão alagadas! — suplica, batendo com o punho fechado na janela.
— Prometo que é o tempo de esperar a chuva passar. Prometo
mesmo!
— Eu nem te conheço! — grito de volta.
— E o que eu posso fazer se São Pedro decidiu limpar a
casa dele agora, hein?! — Sua pergunta é acompanhada com um
trovão capaz de fazer a terra abaixo de mim oscilar. — Por favor...
Tem... Também... — Ele retoma o fôlego. — Tem algumas pessoas
me seguindo!
Subo as sobrancelhas, sentindo um arrepio pelo meu corpo.
— Se queria me convencer, agora mesmo que eu chamo a
polícia! — Me aproximo com cautela, pegando o balde do chão e o
abraço, como se fosse a minha proteção mais oportuna. — Que tipo
de pessoas?
— Só gente filha da puta! — responde, revirando os olhos e
retirando os óculos como se pudesse melhorar sua visão. — É sério.
Por favor! Você será recompensada!
— Não sabia que estávamos na Idade Média. — Dou de
ombros. — Bom saber! — Ao ouvir o que acabo de dizer, o homem
revira os olhos novamente, respirando fundo e buscando paciência.
Agora seu desespero é completamente nítido. — Que tipo de
pessoas? — indago, um pouco vacilante.
Não é certo deixar um desconhecido na chuva, mas também
não consigo encontrar vantagens em deixá-lo entrar. Afinal, estou
completamente sozinha e ilhada.
Estou perto o suficiente do vidro para não precisar gritar.
— Se eu falar... — Ele faz uma pausa, irritado. — Você me
deixa entrar? — retruca, negociando. — Eu te contaria a verdade e
você colocaria um voto de confiança em mim.
Nem sequer cogito responder, apenas continuo o encarando
normalmente. Ele, impaciente, fecha os dedos contra a palma da
mão, visivelmente furioso. Está pronto para implorar ou, quem sabe,
arquitetar seu próximo plano. Seja correr até outro comércio mais
próximo ou voltar para o seu carro.
— Paparazzis! — brada alto, com muito fôlego. — Vieram me
seguindo desde o hotel. Estão na minha cola. Se eles virarem a
esquina, vão me ver. E eu não quero isso!
Ao ouvir a menção aos fotógrafos que importunam a vida das
demais pessoas que conheço, relaxo meu corpo quase que
totalmente. Se ele está fugindo de paparazzis, ele deve ser alguém
famoso. Não é?
Me aproximo quase que totalmente do vidro, analisando
muito bem o seu rosto simétrico.
Por baixo da camada dos cabelos selvagens, da roupa
destruída e dos óculos detonados, está Mikael Devante. O meu par
romântico na novela.
O que ele está fazendo aqui?
A surpresa não me dá muito tempo, porque apenas aponto
para a porta e giro a chave de uma vez, abrindo-a. Recebo, em
troca, uma rajada de vento gelado e intenso, e muitas gotas grossas
de chuva molham o tapete da entrada. Mikael rapidamente corre até
mim, se jogando no chão como se eu fosse sua mais nova heroína
favorita.
Com as costas contra o piso, ele olha para cima, tentando
buscar sua respiração. Deixa os óculos de lado, fechando os olhos
totalmente, apertando-os. Tranco a porta, passando a cortina fina e
delicada para o lado. Retiro a chave da fechadura, colocando-a no
meu sutiã. Meus pés estão molhados graças a ele e a tempestade,
e a barra da calça do meu pijama de inverno também.
— Obrigado! — Mikael agradece com um suspiro alto,
ofegante. — De verdade. Muito obrigado. Você salvou a minha vida!
— declara. — Quando a chuva passar, falarei com a minha agente
para te dar dois ingressos para o meu próximo show.
Olho para ele com atenção; para aquela figura tão influente
no nosso país.
Mikael Devante tem vinte e cinco anos, é cantor e ator desde
os treze, fez algumas minisséries e filmes ali e aqui, mas se
consolidou na música aos dezesseis. Sua banda de rock é muito
conhecida, amada e altamente idolatrada por onde passa. Com a
mais nova turnê internacional, a Malévola, há quatro meses, eles se
tornaram os queridinhos do público, conquistando ainda mais fãs
pelo país — e ao redor do mundo.
A Desvio é boa; curto algumas músicas, mas não sou fã
deles.
Não quando o vocalista é Mikael.
Nos conhecemos desde que eu tinha dezoito, mas ele
sempre se esquece. Sempre se apresenta para mim como se eu
fosse uma novidade. Vivemos em um looping. É por este motivo —
graças a sua pequena e falha memória de estrela do rock — que
Ivone disse que preciso conhecê-lo hoje de manhã. Ainda que eu já
tenha sido apresentada a ele — diversas vezes, inclusive.
Respiro fundo, não respondendo mais nada.
No meu ponto de vista, ele não se parece nada com o astro
da música nacional.
Ao ouvir minha lufada de ar, ele está pronto para reagir.
— Não quer os ingressos? — Ele se senta no chão, coçando
os olhos e empurrando os cachos rebeldes e molhados para trás.
Está confuso. Muito. — Um autógrafo, então? — sugere, descarado.
Entorto a cabeça para o lado, sem vontade alguma de proferir
nenhuma palavra. — Uma foto? — Ele franze a testa levemente. —
Ok, pode ser uma foto. Mas precisa saber que meu celular morreu
graças a essa chuva, se for no seu, melhor. Me marca que eu te
reposto! — Enrugo a boca. — Você sabe quem eu sou, não é?
Ah.
Essa é a sua forma de agradecer?
Um autógrafo, uma selfie ou ingressos.
Espera um pouco... Essa é a forma que ele trata uma fã
normalmente?
Céus...
Dou de ombros, abraçando o balde contra o peito e
caminhando para longe dele. Ouço quando Mikael me chama, ainda
desesperado, mas certamente ainda não sabe quem eu sou. E, se
for para apostar, ele não irá me reconhecer a menos que eu diga.
Deixo o balde abaixo da maldita goteira e caminho para os
fundos, pego uma das minhas toalhas da minha seleção e retorno
para perto de Mikael Devante. Ele está sentado em uma cadeira
agora, tirou os tênis e a camisa de flanela vermelha. Está usando
apenas uma calça preta jeans e uma camiseta da mesma cor, mas
que torneia seu corpo graças a quantidade de água da chuva.
Jogo a toalha nele, acertando sua barriga em cheio.
— Ei! — Mikael reclama, pegando a toalha limpa e felpuda na
mesma hora. — Obrigado?! — arrisca, arregalando os olhos. Ele se
encolhe, ainda trêmulo para abrir a toalha, e se cobre com ela, como
se fosse um cobertor. — Valeu mesmo!
Não respondo de novo.
É notável que ele fica um pouco sem jeito com o meu
silêncio, porque ele não é o tipo de pessoa que sossega. Se bem o
conheço, Mikael irá tentar emendar assunto atrás de assunto.
— Te conheço de algum lugar? — questiona, juntando as
sobrancelhas. — Você não é estranha.
Dou as costas para ele, caminhando até a geladeira, atrás do
balcão, e puxando duas latinhas de refrigerante. Soda para mim,
Coca-Cola para ele.
— Não quero beber nada ainda! — ressalva. — Quero algo
quente, tem? Se não for incômodo.
É, sim.
Devolvo as latinhas para a geladeira. Do armário, que ainda
não tem muita coisa — para falar a verdade, não tem quase nada —
retiro um pacote de macarrão instantâneo. Ofereço um para ele,
sabor tomate. Por cima dos ombros, ofereço a comida, como quem
diz “Pode ser?”, e Mikael concorda.
Vou para os fundos, preparar o macarrão no micro-ondas que
está onde deveria ser o meu escritório. Eu estava acordada,
sentada na poltrona que comprei num brechó, “Vestida Para Casar”
está na metade. O filme pausado no meu notebook me faz suspirar,
porque eu estava muito bem sozinha. O fato de eu ainda não ter
dormido implicará em uma consequência pela manhã. Tenho
certeza disso.
Da janela, consigo ver que metade de Madre Rita está sem
luz, enquanto a outra metade está quase por um triz. Pego meu
celular, checando as mensagens, e o coloco no bolso da calça do
pijama. Volto para a frente, com o macarrão no próprio recipiente da
embalagem e lhe dou um garfo conjuntamente.
Ainda embrulhado na toalha, Mikael se farta do macarrão,
comendo rapidamente, enchendo a boca e mastigando com prazer.
Puxo uma cadeira, mas me mantenho consideravelmente longe.
— Valeu... — diz, com a boca cheia. — Você salvou a minha
vida! Você é a melhor fã do mundo...
Ok, agora ele me ofendeu.
— Quem disse que sou sua fã?
Mikael engole lentamente, sorrindo logo em seguida. Seus
olhos sobem por alguns segundos na minha direção, em uma
expressão prazerosa de provocação nítida.
— Sabia que se eu dissesse uma coisa absurda você falaria
algo! — canta vitória, segurando o garfo entre os dedos longos e
grandes.
Seu sorriso continua intocável.
Não esboço nenhuma reação — pelo menos, não uma que
dará a Mikael Devante algum gostinho de poder sobre mim. Ele é
um cara “problema”, gosta de ser o centro das atenções e presumo
que adoeça quando alguma garota não lhe dá bola o suficiente.
Qualquer chance que ele tenha de conquistar um sorriso, ele pegará
para si como se sua vida dependesse disso. Todas as vezes em que
nos “conhecemos” foi um completo desastre.
Ele é um espertinho, e espertinhos gostam de estar sempre
por cima.
Ele não diz mais nada, porque não consegue se livrar da
fome. Está devorando o miojo rapidamente, uma garfada atrás da
outra. Fico me perguntando onde ele estava. Será que está fugindo
de outras pessoas além de paparazzis?
Realmente me importo?
Retiro meus olhos dele e continuo a encarar a chuva.
Pelo visto, o cantor conseguiu limpar os óculos e já os
colocou de volta.
— Como sabia que eu não era sua fã? — pergunto, já
sabendo a resposta. Viro meu rosto novamente para enxergá-lo.
Mikael continua debruçado sobre o macarrão, mastigando.
— Você não gritou quando eu entrei e nem me abraçou sem
permissão! — conta, tranquilo. — Por um lado, confesso que fiquei
ofendido. Afinal de contas, eu sou bem gostoso de abraçar, deveria
experimentar qualquer dia desses. — Pisca. — Com roupas secas,
de preferência — aconselha. — E, por outro, agradeço que não
tenha dado um escândalo.
— Claro... — murmuro. — Porque Mikael Devante é a pessoa
mais irresistível do mundo!
— Obrigado! — agradece honestamente. — Já ouvi muitos
elogios, mas este é o primeiro deste tipo! — Ele dá a última garfada
no macarrão, lambendo o molho do garfo e se recostando na
cadeira. Satisfeito, ele repousa as mãos na barriga. — Costumam
me chamar de gato, bonito, lindo... Essas coisas, sabe? Incrível,
sensacional, mas “a pessoa mais irresistível do mundo” é a primeira
vez!
Ergo uma sobrancelha, sem a mínima vontade de continuar
essa conversa.
— Obrigado pelo miojo, a propósito. — Mikael aponta para a
embalagem suja. — Me sinto um pouco mais quente... E
confortável. — Ele me analisa, me achando uma pessoa curiosa e
intrigante. O que é uma lástima, adoraria que ele não me olhasse e
nem reparasse em mim. — Eu... só quero pedir uma coisa... algo
que não seja tão... tão incômodo.
— Mais do que me acordar no meio da madrugada para te
salvar?
— Você já estava acordada! — ele se defende, contrariado.
— E eu só quero saber se posso tomar banho e trocar de roupa.
— Acha que eu moro aqui, é?
— Eu sei lá? — Mikael dá de ombros. — Não sei nada sobre
você.
— Só tem um pijama desse tipo... — Aponto para o meu
corpo. — E o chuveiro é muito suspeito. Não recomendaria, mas...
Você não tem opção. — Me levanto da cadeira em um salto. — Vem
— sibilo baixo, mas ele consegue me escutar, porque se anima.
Apago a luz do salão principal e recolho a sujeira de Mikael
— porque ele não se dá ao trabalho de fazer isso. Ele me segue
como uma sombra, como se fizéssemos parte do filme do Peter
Pan.
Ele analisa com atenção meu cabelo azul, mas não diz nada.
O que é bom. Ele poderia continuar assim, a meu ver.
Pego o embrulho, o pijama que Allura me deu e que pode
servir nele.
Espero.
— Toma. — Jogo em seus braços. — O banheiro é no final
do corredor. Só toma cuidado, porque estamos passando por uma
tempestade, então se você for eletrocutado lá dentro, não é minha
culpa. Ok?
Mikael sorri timidamente, achando meu tom de voz
engraçado.
— Pode deixar — diz suavemente. — A propósito, posso
saber seu nome?
Ele dá um passo em direção ao banheiro, dando a entender
que entrará no ambiente a qualquer momento. Sua altura é
considerável, porque passa dos meus um metro e setenta e quatro.
Seus ombros são largos e grossos, o que apenas condiz com as
fotos de seus músculos na internet. Seu cabelo é preto, de um tom
natural e escuro. Os olhos são castanhos e possuem filetes de
castanho-mel por entre as íris. A pupila, no entanto, é um vácuo
escuro e poderoso.
Seu sorriso é torto, pende para o lado, o que forma sua única
covinha do lado direito. Mikael é o tipo de pessoa que sabe que é
bonita e interessante e sempre usará isso ao seu favor.
Gosto de pessoas confiantes, mas não de pessoas
arrogantes.
E Mikael é e sempre foi a última opção.
— Georgia Pessoa — falo prazerosamente, apreciando cada
vez mais o seu rosto tomar ciência de quem eu sou, até seu sorriso
mesquinho desaparecer totalmente.
3: mousse de maracujá
INGREDIENTES: leite condensado, suco de maracujá, creme de leite sem
soro.

Faz vinte minutos que a tempestade parou.


Na rua, de frente ao comércio, há galhos que foram
arrancados das árvores. Folhas distribuídas e caídas no meio do
caminho. Com o asfalto e a calçada úmidos, é praticamente
indesejado sair para caminhar. Não que alguém queira, porque o
relógio baterá três da manhã em breve.
Também faz meia hora que Mikael se trancou no banheiro,
então ele pode ter sido eletrocutado ou apenas pode gostar de
gastar água.
Babaca.
Me concentro em continuar com a minha pesquisa.
De acordo com o Google, Mikael está em Madre Rita há três
dias. Está hospedado no hotel mais caro da região, porque
procurará um apartamento em breve, para quando as filmagens
começarem oficialmente. Ele é natural de São Paulo,
especificamente, da Mooca. Está em um relacionamento duradouro
com Amanda Olivêncio há dois anos. Ela também é atriz e faz parte
de uma série de comédia romântica, em um streaming nacional.
Assisti poucas vezes Doces Sonhos, mas não gostei, apesar
de conhecer Amanda pessoalmente. Ela é um pouco distante, mas
é muito educada, mesmo sendo o terror dos maquiadores. Dizem
que é exigente demais, mas outros afirmam que ela é um amor. Não
sei em qual dos dois devo acreditar.
Além de atriz, Amanda também é dubladora e passa seu
tempo livre estudando a arte de grafitar paredes e muros.
Nas entrelinhas, alguns fãs especulam que Mikael e Amanda
não estão mais namorando há meses, desde que ele chegou da
França. Interessante. Eles não postam fotos juntos e não comentam
nada nas fotos um do outro. O que, para falar a verdade, é muita
coisa.
Mikael é muito diferente de mim. Enquanto meus perfis são
teorizados em apenas um feed limpo e organizado, o dele é uma
explosão de cores, informações e desordem. Sei que polêmicas são
sensacionalistas, mas fofocas não perdem o glamour nunca.
Passando as notícias, encontro uma que diz que Mikael,
Bernardo, Gael e Pedro são melhores amigos desde sempre,
formando a Desvio. Mikael é o vocalista e principal guitarrista,
enquanto Gael é o segundo guitarrista, Pedro, o baterista e
Bernardo, o baixista. Todas as fotos em que eles aparecem, sempre
estão rindo, dançando, fazendo graça para os fãs e sempre
oferecendo um sorriso charmoso para conquistar todos os corações
de uma vez só.
A foto que estou encarando é uma do Grammy Latino.
Mikael está segurando Bernardo no colo, enquanto o amigo
morde sua orelha. Esbanjando irmandade. Todos ao redor estão
rindo, contagiados pela amizade verdadeira de anos.
— Eu gosto dessa foto, mas não tanto desse dia.
Me assusto novamente, jogando meu celular para longe.
Solto um gritinho, tendo certeza que meu coração ressoou forte
contra o peito.
Mikael sorri de lado, pegando meu celular antes que o
aparelho atinja o chão, como é o esperado. Seu sorriso cresce um
pouco, como se tivesse super poderes de reflexo. Ele me estende o
telefone com uma expressão superiormente cômica no rosto, mas
sabe que não ouvirá um obrigado.
— Agora me sinto honrado — debocha. — Você,
pesquisando sobre mim!
Ele dá a volta pelo meu corpo, se sentando na cadeira mais
próxima na mesa em que estou. Graças às janelas, não preciso
acender as luzes do ambiente, não quando os postes de luz
voltaram a funcionar.
A toalha está ao redor do seu pescoço, caindo por seu busto.
Ele usa a calça do pijama, mas não vestiu a camiseta.
— Só queria ver se já tinham fotos suas na internet —
desconverso. — Já que estava fugindo de paparazzis.
Mikael e eu sabemos que é uma mentira. Uma mentira
imensa e hedionda, porque eu só estava curiosa mesmo.
Mas agradeço silenciosamente por ele ter escolhido a opção
mais fácil; ignorar a minha farsa e ser legal comigo.
— Não te reconheci, Georgia Pessoa. — Ele faz questão de
pronunciar meu nome inteiro. Seus óculos redondos já estão a
postos em seu rosto, emoldurando-o. — Está diferente.
— Pintei o cabelo — retruco, firme.
— Azul combina com você!
Seu elogio é sincero, mas não o agradeço.
— Achei que tinha esquecido que já nos conhecemos,
normalmente você sempre se apresenta.
— Não posso esquecer a minha Marina.
Faço uma careta em sua direção, nada convencida com sua
simpatia.
Quando foi anunciado como Germano, em Destino Inteiro,
muitas pessoas ficaram realmente animadas, porque faz anos que
Mikael está longe da TV e do cinema. Com um nome grande, a
Farol está contando com uma audiência explosiva. O elenco todo
em si é ótimo, mas tenho certeza que muitas pessoas estão
colocando muita fé nesta nova produção.
— Nem começa — peço, com a mão levantada. — Sério.
Não precisamos fingir que somos amigos.
— Mas podemos.
— Não estou interessada — falo francamente. — E nem
você.
— Tem razão — ele assume. — Por que eu seria amigo de
alguém tão desagradável?
— Não seja tão duro consigo mesmo, Mikael! — Lamento
falsamente, faço beicinho. — Para tudo há uma solução. Você pode
e merece ser amigo de você mesmo... Embora seja desagradável.
Mikael escolhe fingir que eu não existo, me ignorando em
seguida. O cara animado e educado que estava lidando com uma
suposta fã finalmente deu lugar ao cara amargo e de expressão
longínqua que conheço. Ele encara a janela com bastante atenção,
talvez pensando nos fotógrafos que despistou. Respira fundo e se
levanta, buscando a Coca-Cola que recusou há alguns minutos.
Ele abre a latinha e eu bloqueio meu celular, desistindo das
pesquisas por hoje.
A tela acende do nada, me avisando que são três horas da
manhã. Na foto de bloqueio, estou abraçada com a minha melhor
amiga, Allura Guispe. Eu tinha acabado de atingir a cor azul perfeita
para o meu cabelo, um estilo do turquesa bem bonito e brilhante, e
ela me buscou no salão de beleza. Fizemos um piquenique em um
parque e depois cada uma seguiu para uma parte do país.
Analiso a foto; eu estava muito feliz naquele dia.
O azul combinou com o tom negro-claro da minha pele e fez
meus olhos castanho-escuros se intensificarem.
Deixo o celular de lado quando a tela se apaga novamente.
— Então, é verdade? — Mikael puxa assunto, se sentando na
cadeira à minha frente. Ele tem uma libélula tatuada abaixo do peito
e alguns pregos nos ombros, estilo old school. Sua pele pálida não
combina com sua estética, mas acaba ornando com seu estilo de
vida. — Que você vai se aposentar e abrir um restaurante?!
É estranho admitir, mas eu não gosto de falar.
Prefiro mil vezes escutar do que oferecer a minha opinião.
Allura já se acostumou, às vezes estamos falando sobre algo
muito interessante e eu simplesmente paro de contribuir com a
conversa, porque adoro ouvi-la falar, não importa sobre o que seja.
Ela ainda fica me incentivando a dizer o que penso, mas sempre
deixo que a rédea da situação seja dela. Obviamente, quando estou
em um diálogo preciso me concentrar bastante para não ser tão
direta ou sucinta. Já fui acusada tantas vezes de ser mal educada
que perdi as contas. Quando, na realidade, apenas aprecio o
silêncio e como a minha cabeça funciona.
Adoraria que as pessoas soubessem ler expressões ou
mentes, isso me pouparia muito tempo.
É claro que isso implica diretamente na minha vida social.
Não sou boa em fazer amigos, porque as pessoas pensam que me
canso delas, mas não é exatamente isso. Talvez eu tenha uma
bateria social muito pequena, ou às vezes não tenha nenhuma.
Também é certo que meus enlaces românticos tenham fracassado
por este motivo. Falta de diálogo.
— É — resumo um grande discurso em apenas uma letra.
Um som qualquer.
Já Mikael é meu extremo oposto, dá para perceber sua
agonia em ficar no silêncio absoluto.
— Quantas pessoas cabem aqui? — pergunta muito, muito
curioso. Analisando o espaço. — Umas vinte? Trinta?!
Subo e desço meus ombros. Deve ser, não parei para pensar
nisso.
Então, sem antes perceber, reparo no corte acima da sua
sobrancelha direita. Não estava ali antes. Ou estava? O sangue
brilha timidamente do machucado, como se tivesse despertado
apenas agora.
Ao perceber meu olhar rígido em sua direção, Mikael leva os
dedos gelados até a sobrancelha, se retraindo.
— Não foi nada — garante, o som de sua voz saindo apenas
como um sussurro.
Fito-o seriamente, sem lhe dar chance de uma tréplica. Busco
a caixa de primeiros-socorros em poucos segundos. Ele claramente
se meteu em uma briga.
— Não é o que você está pensando. — Mesmo recusando-se
a reconhecer o ferimento, ele ergue o rosto na minha direção,
colaborando com a limpeza da sobrancelha.
— Não pensei em nada — confidencio.
É a primeira vez que Mikael Devante parece perceber que
não falarei mais nada e se contenta com isso. Ele me deixa ajudá-lo,
mesmo que seu corpo esteja carregado de tensão. Bem perto dele,
bem perto mesmo, reparo na cicatriz que as pessoas julgam como
sexy e bruta — incluindo Allura. Em sua bochecha, há uma marca
fosca, branca e em alto relevo. É um corte que foi profundo e grave,
dá para notar que deve ter doído. Ninguém nunca soube o que
realmente aconteceu, porque ele nunca disse. Mas contribui para
ser uma das suas características marcantes de guitarrista.
Cabelos rebeldes, tatuagens, má fama e uma cicatriz.
A única coisa que parece original são seus óculos redondos,
que ele também nunca tira. As lentes não são profundas, o que
pode denunciar poucos graus de miopia.
Quando termino o curativo, ele respira com mais facilidade.
— Seus amigos não ficam por aqui?
Guardo os curativos com cuidado, um por um, sem colocar
meus olhos em Mikael.
— Não tenho muitos amigos — revelo.
É a verdade. É difícil me sentir realmente confortável com
uma pessoa, não quando tantas já se aproximaram de mim
querendo alguma coisa em especial. Crescer na carreira,
seguidores a mais para colecionar no Instagram, conseguir algumas
publis ou simplesmente passe-livre para festas em locais
impressionantes. Os poucos que tenho me conhecem há anos.
Possivelmente, Ivone tenha sido a última amiga que eu fiz —
mesmo sendo minha agente na maior parte do tempo.
Mikael me lança um olhar divertido por entre as lentes dos
óculos.
— E pelo visto não é de falar muito também, não é? — Sorri,
esticando as pernas em outra cadeira, já se sentindo em casa.
Folgado.
— Não com quem não gosto.
A frase queima os poucos miolos que Mikael ainda tem. Dá
para perceber que ele precisa de bons instantes para reparar que,
indiretamente, acabei de dizer que não gosto dele.
— Eu também não gosto de você — diz, prepotente e firme.
— Só estou aqui porque realmente preciso.
— E porque eu sou muito caridosa! — amacio o meu tom de
voz, cruzando os meus braços.
— Caridosa não é bem a palavra que eu escolheria, mas
posso deixar você viver com essa ideia. — Ele termina de beber a
Coca-Cola e, sem esperar por qualquer pedido, vai até a geladeira
pegar outra latinha. — Você disse que sempre esqueci de você, mas
é mentira. Me lembro muito bem de tudo, Georgia. É que você
sempre foi tão chatinha comigo, que te apagava da memória em
dois passes! — Ele estala os dedos, demonstrando sonoramente.
A provocação não me ofende.
— Então, eu tenho razão. Se você me apagava da memória,
isso quer dizer que você me esqueceu — recito calmamente. —
Você está se contradizendo, Mikael! — Sorrio, mas ele não diz mais
nada. Estica novamente as pernas e respira fundo. — Por que você
estava fugindo dos paparazzis?
— Agora você quer falar comigo?
— Sou curiosa — me defendo, tranquila. — E eu tenho o
direito de saber, afinal, você está bebendo o estoque de Coca-Cola
da minha agente.
A minha pergunta atinge muito forte Mikael, ele não tem nem
um sorriso para me oferecer e nem uma resposta infantilmente
atravessada. Pelo contrário, ao ouvir a pergunta, ele parece se dar
conta que, fora desse pequeno restaurante, existe uma vida para
encarar.
— Eu me meti em uma briga com o Bernardo — simplifica. É
uma resposta genérica e a contragosto, mas não é uma mentira. —
Saí de lá puto da vida e não queria que tirassem fotos desse
momento. Já está sendo horrível o suficiente, ter fotos para marcar
este dia só piora tudo.
— Foi uma briga muito feia — noto. Mikael assente. —
Espero que tenha presenteado Bernardo com um olho roxo, não é
justo que apenas você tenha se machucado.
A frase o faz rir e eu me sinto um pouco — só um pouco —
bem com isso. Brigas já são um território odioso, imagina então
dentro de uma banda. O duelo de ignorância deve ser alto.
— Acho que sim. Não fiquei para ver o estrago — Mikael
emenda, perdendo seu olhar em algum ponto da sua calça do
pijama. — E nem me importo, mesmo. Vou focar na novela. Tem
apenas um show com a Desvio nesse mês e depois é cada um para
o seu lado.
— Vocês vão se separar? — pergunto, surpresa. Não por
mim, mas por todas as pessoas que conheço. Allura ouve a Desvio
o tempo todo. Também consigo imaginar o quanto os fãs ficarão
devastados, nenhuma separação de banda é boa de se assistir.
— Não... — nega, pacífico. — Eu vou sair.
Só piorou.
— Foi tão grave assim? — questiono. — Porque se ele
comeu alguma coisa que não deveria, é só comprar mais. Ou ele te
xingou? Ele te ofendeu? Ofende esse babaca de volta! — esbravejo.
Mikael sorri de lado, me analisando falar com tanto fervor. — Não
pode deixar a banda nas mãos dele.
— Conhece o Bernardo?
— Não, só estou te dando apoio moral!
Mikael ergue as sobrancelhas.
— Não, ele não me xingou. Eu acho... — Ele junta as mãos
perto do jeans e suspira. — Ele está saindo com a minha namorada.
Ex-namorada, na verdade. — Despeja tudo de uma vez. —
Bernardo e Amanda estão juntos há meses.
O sorriso de Mikael é agressivo, amargo e áspero. Parece
feri-lo. Ele quer se comportar como quem não dá a mínima, mas se
importa bastante com toda a situação.
Quero falar alguma coisa, mas costumo pensar tanto antes
de discorrer qualquer palavra, que acabo não dizendo nada.
— Ele era o meu melhor amigo — Mikael continua. — Enfim,
eu tô puto pra caralho!
Não sei muito bem o que dizer.
— Foi mal — sibilo baixo.
— De boa. — Ele dá de ombros — Você não pode consertar
nada. Nem poderia se quisesse.
— Mas posso te dar mais Coca-Cola, deve servir.
— Um coração partido é rapidamente curado com
refrigerante?
— Quem sabe? Esse negócio tem tanto açúcar que podemos
tentar.
Mikael ri pelo nariz, concordando várias vezes com a cabeça.
— É? Quem sabe, não é?
4: torta de morango
INGREDIENTES: farinha de trigo, gema batida, manteiga sem sal, açúcar,
fermento em pó, leite, amido de milho, leite condensado, morango, gelatina de
morango.

O zumbido do meu ouvido direito amanhece muito alto, me


presenteando com uma pontada latejante no meio da minha testa.
Hoje será um dia cheio, terrivelmente cheio. Mas eu sabia das
consequências que uma noite em claro poderia me trazer. Também
consigo pressentir que levarei uma bronca — com razão — de Ivy.
Preciso dormir bem e isso não é discutível. O chiado é alto e me
deixa irritada, então, sem mais e nem menos, estou declaradamente
de mau humor.
São sete da manhã agora e eu acabei de vestir as minhas
roupas normais e casuais para voltar para o meu hotel. Mikael está
dormindo na cadeira, colocou duas lado a lado para tentar esticar o
corpo, mas ainda parece extremamente desconfortável. Com
certeza, acordará com dor na coluna e no pescoço.
Analiso rapidamente seu sono. Seu peito sobe e desce, as
pálpebras continuam seladas, adornando seu sono pesado e até
que “merecido”. Dá para notar como Mikael Devante está cansado.
No entanto, eu não tenho nada a ver com isso. Se ele precisa de
uma cama, que volte para o hotel de onde veio. Ele ainda não me
contou detalhes sobre Bernardo e Amanda e presumo que nunca
contará. É pessoal demais e eu não sou a melhor pessoa para
desabafar.
Deixo a minha mochila cair propositalmente no chão, o
acordando com um tremendo de um susto. Mikael quase cai da
cadeira, mas os móveis apenas sacodem com o seu peso.
— Acorda — decreto, caminhando para a mesa mais próxima
de mim.
Ele coça a testa, amassando a mão contra o rosto.
— Isso é jeito de acordar alguém, porra?
— Esperava um café da manhã na cama? — rebato, sabendo
que estou sendo muito boba e infantil. Pego minha mochila do chão
e coloco nas minhas costas. — Por enquanto, ainda não abri um
hotel, mas vou colocar na minha lista de desejos. — Lanço um
sorriso categórico para ele. — Anda, precisamos ir embora. Seus
amigos precisam saber que você está vivo. Temos um dia cheio
hoje. Está lembrado que faz parte do elenco de uma novela, não é?
O cantor boceja enquanto revira os olhos.
— E eu poderia esquecer?
— Você esquece de muitas coisas, Mikael.
Ele respira fundo e coça os olhos, afastando os cabelos para
trás. O que não ajuda em nada, porque os fios voltam para perto de
sua testa novamente.
— Não me chame de Mikael, parece que está brigando
comigo. Pode me chamar de Mika... — sugere, mas não me dá
chances de responder, porque completa: — Ou não me chama. É
melhor não me dirigir a palavra nunca. — Dá de ombros, bocejando
longamente.
— Melhor — concordo sinceramente, murchando os meus
lábios.
— Cadê as minhas roupas? — Ele pergunta ainda bastante
sonolento.
Fomos “dormir” às cinco da manhã, somente quando terminei
de assistir ao meu filme e Mikael deu-se por convencido, avisando
que estava bem e seguro, para Não-Sei-Quem pelo meu celular.
Sua ligação demorou muitos minutos, fazendo com que a bateria
dele acabasse de uma vez.
— Como eu vou saber? — resmungo. — As roupas são suas.
— Você não colocou para secar? — pergunta pausadamente,
muito ofendido e subindo as sobrancelhas. — Tipo... Nem deixou no
varal?
Pisco meus olhos algumas vezes. Olho para ele e para os
fundos do comércio duas vezes antes de decidir ignorá-lo.
— Vou fingir que não ouvi isso — decreto, vasculhando os
meus pertences na mochila, até me dar conta de que não esqueci
nada. — Anda logo. — Apresso novamente. — Ou eu te tranco aqui
com os ratos.
— Aqui tem ratos?
— Deve ter — enfatizo, fazendo um sinal de relógio no meu
pulso, mesmo não tendo nenhum, apenas para provocá-lo.
Mikael bufa alto, completamente contrariado. O sol da manhã
invade os pequenos pontos distribuídos pelas vidraças. É uma
manhã linda, com céu azul e as nuvens brancas pontuando o
restante da imensidão. Não parece que uma tempestade varreu a
cidade pela madrugada, é quase um ultraje um dia ser tão bonito
assim.
Meu momento de admiração é rapidamente encerrado
quando ele aparece ao meu lado. Segura seus tênis e sua camisa
de flanela.
— Está tudo molhado, Georgia! — Seu tom de voz é
venenoso e rancoroso.
E eu não poderia me importar menos.
— Uma lástima — decreto. — Fica com o meu pijama. Pode
levar, não precisa devolver. Só vamos logo, ok?
Seus olhos se semicerram na minha direção e ele vai em
busca de seus óculos. Ainda sem camiseta, apenas com o abdômen
de fora e as tatuagens dando o ar da graça em sua pele branca-
pálida, Mikael pega as chaves do seu carro do bolso da calça jeans
ainda bastante úmida. Arruma uma ou duas cadeiras no lugar —
mas não todas — e assume que está pronto para ir embora.
Não faço ideia de como será vê-lo quase todos os dias no set
de filmagem.
Não fizeram um teste de química entre nós.
Apenas decidiram que seríamos um casal. Quiseram alguém
com um nome grande e poderoso. Com a estreia de séries e filmes
originais em grandes plataformas, todos sentem que as novelas
estão sendo prejudicadas em algum ponto. Novelas são o ponto alto
de uma dramaturgia brasileira, você gostando ou não, consegue se
lembrar de uma, pelo menos, que marcou algum ano da sua vida.
Você assistindo esporadicamente ou não.
Me recordo de muitas, inclusive.
Apresentar nomes de peso foi a estratégia de Claudia, a
nossa chefe.
Quando ele finalmente está pronto para ir, saio em disparada
para a porta. O clima do lado de fora é fresco e minha barriga ronca.
Talvez eu faça algo para comer no café da manhã. Provavelmente
Allura já chegou em Madre Rita e preciso vê-la o quanto antes.
Do lado de fora, identifico o carro de Mikael sendo um
vermelho, enquanto o meu é preto, comum e popular.
Ele sai logo atrás de mim e me deixa trancar o meu futuro
bistrô.
— Quer uma carona? — Mikael oferece as chaves tilintando
em sua mão.
— Não — nego. — Valeu. Tchau. — Dou meia volta nos
calcanhares, fazendo um sinal com as mãos. Porém, ele brada
“Espera!” com uma rapidez impressionante e consegue me
contornar pela calçada. — O que você quer agora?
— Agradecer — simplifica e abre os braços. — Posso? As
pessoas ainda fazem isso, sabia? — Mikael cruza os braços,
desafiador. — Georgia Pessoa, você definitivamente não é a minha
pessoa favorita no mundo...
— Temos algo em comum — vibro, venenosa.
— Enfim... Mas obrigado por ter me deixado ficar. Mesmo que
por uma noite bem mal dormida — agradece, do seu próprio jeito. —
Se vai mesmo abrir um restaurante nessa espelunca, te aconselho a
mudar completamente essas cadeiras. São duras e ordinárias, eu
mesmo vou avaliar seu bistrô com apenas uma estrela se você não
fizer nada a respeito.
— As cadeiras foram presentes da minha avó — digo,
respirando com firmeza. — Esse sempre foi o sonho dela. Abrir um
bistrô.
Mikael engole em seco, começando a descruzar os braços.
— Brincadeira — assumo, sorrindo apenas um pouco. Suas
narinas inflam, pego desprevenido. — Só queria te fazer se sentir
mal. Não dou a mínima para a sua opinião. — Pisco. — Até mais.
— Eu ia falar para tentarmos uma trégua. — Mikael não me
deixa ir embora, ele estufa seu peito delineado pela tinta preta das
tatuagens e ergue uma sobrancelha. Ele está falando com
propriedade e mantém a expressão séria. — O que me diz? Não
pelo nosso bem, mas pelo bem da novela e dos nossos
personagens. Pode voltar a ser essa metidinha de nariz em pé
assim que terminarmos nossos deveres.
— Tanto faz — gesticulo. — Trégua — digo, sem acreditar
muito bem nas minhas próprias palavras. Mas Mikael insiste,
estendendo sua mão na minha direção, para selarmos o acordo. —
Sério? — Franzo os lábios. Ele sacode a mão no ar, esperando por
mim. — Ok. Trégua, então.
Toco sua mão rapidamente, apenas fazendo um movimento
ético para cima e para baixo. Deixo os seus dedos de lado e desvio
dele na calçada, sem esperar por mais nada. Caminho em direção
ao meu carro, sem olhar para trás, antes que ele fale que seu carro
está com algum defeito. Ele anda tão azarado ultimamente que não
ficaria surpresa se até isso acontecesse.
Quero que esses próximos meses sejam tranquilos, nada
turbulentos.
E quanto mais Mikael se manter longe, sem cruzar seu
caminho com o meu, melhor.
5: pão doce
INGREDIENTES: leite, ovos, margarina, sal, óleo de soja, açúcar, fermento.

— Como você está se sentindo?


A escova que seguro está fazendo um ótimo trabalho em
manter meu mais novo cabelo azul-turquesa macio e fofinho. Ele
chega até o começo da minha cintura e me sinto como uma sereia.
Ivy está no meu camarim, segurando um protótipo da minha agenda
do dia. Ela sabe que dormi mal, porque minhas olheiras não foram
fáceis de esconder.
Aliás, o que Ivy não sabe?
— O zumbido está muito alto — reclamo. — Só quero
descansar.
— Vou marcar uma consulta de rotina para você ainda essa
semana — avisa, mas já começa a digitar em seu tablet. — Está
sentindo mais alguma coisa?
— Cabeça aérea, tudo normal.
Quer dizer, o meu normal.
— Tomou seus remédios no horário? — questiona, ainda
dando uma olhada atenta na sua checklist.
— Sim. Os comprimidos e as vitaminas — subo e desço o
meu queixo com muita prática.
Me encaro no espelho, especificamente, o lado da minha
orelha esquerda.
Fui diagnosticada com Síndrome de Meniere aos dezessete
anos. O que significa que me mantive afastada dos palcos e das
filmagens durante seis meses até conseguir me informar o bastante
sobre a doença crônica. O básico que sempre me recordo: não tem
cura. Não é nada terminal, mas prejudica a minha saúde como um
todo.
É rara. Atualmente, atinge menos de cento e quarenta mil
brasileiros.
Tenho perda auditiva flutuante no lado direito, graças ao
Meniere. Possuo crises de vertigens violentas que podem aparecer
de um dia para o outro e um zumbido irritante no meu ouvido, que
faz moradia em mim vinte e quatro horas por dia. E, quando ele está
alto, é quase insuportável me manter ativa e energizada. Às vezes
sinto vontade de ficar o dia inteiro na cama, mas não posso. E nem
quero.
— Ao menos é a mesma doença da Jessie J — Allura me
disse uma vez, tentando melhorar as coisas.
Gosto de ver por esse lado. Isso significa que qualquer
pessoa pode estar à mercê de uma coisa tão irritante e
inconveniente quanto a Síndrome de Meniere. A matéria que Ivone
me deu, sobre Radden West, fala sobre toda a sua dolorosa
redescoberta de vida e como precisou se reeducar para conseguir
manter uma vida saudável, comum e promissora.
Ela tem praticamente a minha idade, somos uma perspectiva
nova, mas nem tão incomum para Meniere.
Pelo menos, é “reconfortante” saber que Radden sente o
mesmo que eu sinto. E outras pessoas ao redor do mundo.
Justamente uma pessoa do outro lado do mundo, que possui
características e uma vida tão diferente da minha, divide algo em
que possamos nos apegar. Ao menos... Ajuda.
Hoje em dia, as crises estão controladas, faço atividades
físicas que não exijam muito de mim e sei reconhecer os sinais que
o meu corpo emana. Mas não há um dia que eu não sinta falta de
uma Georgia sem os episódios de crise. A doença não sou eu, ela
precisa de mim, não ao contrário.
Não sou grata a essa Síndrome.
Ela não me ensinou nada.
E nem nunca ensinará.
Acontece que não importa qual seja a doença, seja ela fraca,
inofensiva ou passageira, sempre é solitário ser diagnosticado com
algo.
— Melhor. — Ivy dá pequenas batidinhas nas minhas costas.
— Vamos? A coletiva de imprensa vai começará daqui poucos
minutos.
Não corrijo Ivy, apenas concordo.
Estou ansiosa para ver Allura, mas sei que seremos liberadas
apenas quando estivermos na frente da mídia. Eles vão adorar
capturar nosso abraço cheio de saudade. Minha melhor amiga
estava gravando um álbum visual para uma cantora norueguesa na
França, passou quase dois meses apenas focada na preparação de
uma das oportunidades mais fantásticas da vida. Estou ansiosa para
contar como passei uma noite ao lado de Mikael e rir das suas
suposições fantasiosas.
Mas, antes de sair do meu camarim, alguém bate na porta.
Ivy se oferece para atender, indicando que eu dê uma última
olhada no meu figurino. Normalmente, a Farol exige que estejamos
com as roupas de nossos personagens e como Marina é uma
rebelde sem causa, estou usando coturnos com salto alto, uma saia
preta jeans e uma meia-arrastão completamente desfiada. É claro
que uma filha de um ricaço e de língua afiada teria cabelo colorido e
usaria coturnos.
É uma ótima receita — e às vezes não falha.
Do corredor, uma assistente de RP aparece. Reconheço
rapidamente Teresa Pêra de onde estou. Seus cabelos castanhos
caem conjuntamente com os fios lisos até o busto e ela parece
assustada. O que é, na verdade, sua expressão diária.
Especialmente quando Ivy está no Brasil, ela morre de medo da
minha agente.
Talvez pelo seu trabalho estressante — e Ivy ser estressante
por natureza.
— Sim, darling? — Ivy pergunta com uma paciência
ensaiada.
— Não seja malvada, Ivone — peço, amaciando o tecido da
minha saia.
Definitivamente, o guarda-roupa de Marina é extravagante.
Vou me divertir com certeza.
— O-Oi, dona Ivone — Teresa gagueja, abraçando sua
prancheta contra o busto. Ela já está com as bochechas
avermelhadas por cima da pele negra-clara. Tenho vontade de dizer
a Teresa que Ivy não é como as outras agentes por aí, que ela é
confiável e leal, mas não consigo proferir nada pelo cansaço que o
chiado me causa. — A coletiva de imprensa vai atrasar um
pouquinho.
— O que isso significa? — Ivy troveja para mim,
desacreditada.
Seu hábito inglês de ser pontual deve ser ferido todos os dias
aqui no Brasil.
— Por quê? — Me viro do espelho para enxergar Teresa
melhor. — Mais algum convidado especial de última hora?!
Teresa nega com a cabeça, de um lado e para o outro.
— E então? — Ivy apressa, impaciente. — Simplesmente vai
atrasar?
— Ah... — Teresa engole em seco, olhando de mim para
Ivone muitas vezes. Quando decide falar, o corredor atrás dela
mostra-se um caos. Diversos funcionários correndo de um lado para
o outro, fazendo de tudo para a apresentação do elenco de Destino
Inteiro ser um fenômeno. — Por causa das fotos. Vocês não viram?
— Fotos? — repito.
— Do seu... quero dizer... do seu...
— Do meu?
Teresa perde a paciência consigo mesma e, com um som
estranho que salta entre os lábios, ela pega seu próprio celular,
digitando rapidamente uma breve pesquisa no Google. Ela me
mostra os resultados e Ivone junta a cabeça com a minha, para
enxergarmos melhor e ao mesmo tempo.
Teresa pesquisou pelo meu nome. Ele aparece grifado e em
roxo-escuro, o que denuncia que a assistente fez isso antes mesmo
de chegar até aqui.
Nas fotos, apareço ao lado de Mikael Devante e meu coração
salta na mesma hora. Envergonhada, me afasto dela, puxando
Teresa para o camarim e a trancando conosco. Ivy, com cuidado,
tira o celular da mão de Teresa, começando a analisar as imagens
por conta própria. Minhas mãos suam e minhas roupas ficam
abafadas no meu corpo.
Pesco meu celular do bolso da saia, digitando meu próprio
nome.
Todas as notícias são de meia hora atrás, o suficiente para
instalar o desespero em todas as pessoas possíveis. As imagens
são uma vasta coleção de uma madrugada interessante entre mim e
Mikael. Mostra perfeitamente nós dois conversando no salão
principal do bistrô, enquanto ele come macarrão e se mantém
dentro da toalha. Todas as fotos dos momentos em que a chuva
parou.
A última da sequência, no entanto, traz Mikael e eu, hoje de
manhã, trocando um amistoso aperto de mão.
Aquele mesmo que selou a nossa trégua.
— A notícia é que vocês estão namorando! — Teresa
acrescenta, insegura.
— O quê?!
Busco pela palavra-chave, sabendo que Ivy me encara e me
vigia de perto. Quando encontro a palavra “namoro” associada à
uma foto nossa, clico na notícia sem pensar duas vezes.

GEORGIA PESSOA E MIKAEL DEVANTE SÃO VISTOS


JUNTOS:
ATOR CONFIRMA ENVOLVIMENTO

Nesta quarta-feira, o país foi presenteado com as novíssimas


fotos de Georgia Pessoa (24) ao lado do cantor Mikael Devante
(25), seu futuro galã na próxima novela da Farol.
As fotos, recentes, tiradas hoje de manhã, trazem o suposto
casal em um clima íntimo de conversa e conhecimento. Ao ser
questionado no Twitter sobre o vazamento das imagens, Mikael
confirmou o envolvimento com Georgia: “Duas pessoas não podem
mais namorar em paz?”.
Em seguida, o vocalista da banda Desvio apagou o tweet,
mas não rápido o suficiente. O print corre pela internet e pelos sites
de fofocas.
Os dois foram pegos!
*Até o momento, Georgia Pessoa não se pronunciou sobre o
novo relacionamento.

Bloqueio meu celular, sentindo meu ouvido apitar e minha


mente voar. Detesto aparecer em público, detesto ter meu nome
envolvido com outro. Odeio mal entendidos e odeio que me façam
de idiota para me enganar depois com muita facilidade. Odeio, mais
ainda, Mikael.
— Você está namorando? — A minha agente quer saber,
com aquela mesma expressão de frieza no rosto.
— Nem eu sabia que estava. — Contenho a minha irritação.
Teresa não merece esbarrar no meu nervosismo. — Quantas
pessoas viram isso?
— Todo mundo?! — Teresa retruca. Ergo as sobrancelhas. —
Georgia, vocês serão os novos protagonistas. Isso fermentou ainda
mais as expectativas para a novela. Ainda mais com o término de
Mika com a Amanda.
Ivy massageia as têmporas, se sentando no sofá mais
próximo.
— Para uma agenciada que nunca deu trabalho, você está
me dando o dobro ultimamente, Georgia — comenta, cruzando as
pernas e fechando os olhos.
— Onde fica o camarim desse babaca?
Teresa se assusta um pouco com as minhas palavras. Ela
confere em uma velocidade impressionante os números que
decoram sua prancheta e me dá apenas um número.
Trezentos e trinta.
Agora eu sei porque ele queria tanto uma trégua.
6: cubinhos de caramelo
INGREDIENTES: leite condensado, açúcar cristal, manteiga sem sal, chá de
sal, glucose de milho.

— Parabéns, Georgia!
— Felicidades, Georgia!
— Vi a notícia, fico feliz por vocês!
Agradeço com um sorriso e alguns acenos enquanto
atravesso a Farol em busca de Mikael. Deixei Ivy na companhia de
Teresa e prometi que iria resolver tudo com as minhas próprias
mãos. Tenho vinte e quatro anos de idade e dezenove de carreira. E
é a primeira vez que isso acontece.
Meu nome sempre é assimilado com a tranquilidade de uma
vida pacífica, especialmente por eu não gostar de me expor em
nenhum momento. As poucas vezes em que estive em grandes
matérias foram para anunciar o meu diagnóstico, minha amizade
com uma cantora que realmente não deu certo e a minha mais nova
aposentadoria. E essa última já me deixa com os nervos sensíveis o
suficiente.
Recebo mensagens diárias de fãs, me contando o quanto
estão decepcionados comigo. Que eles torcem para o meu bem,
mas suplicam violentamente que não abandone a emissora — e
nem eles. E isso é o bastante para me fazer sentir a pior pessoa do
mundo. É invasivo precisar provar algo a alguém ou ficar em um
determinado espaço apenas porque os outros querem.
Sempre foi constante o desejo da mídia de saber com quem
ando saindo — e nunca dei esse gostinho a eles. Não será Mikael
que enviará tudo para o espaço.
Não vou ser grosseira ou rude com as pessoas que esbarram
em mim pelos corredores da Farol, e desejam que eu seja feliz ao
lado de Mikael. Por um lado, é fofo saber que sou querida ao ponto
de eles estarem torcendo genuinamente por mim, mas, por outro,
me sinto extremamente exposta. É como se eu estivesse usando
uma blusa terrivelmente fina no inverno tenebroso da Antártica.
Minha busca pelo camarim trezentos e trinta é quase
insuportável.
Todos os olhos estão voltados para mim — e não é porque
sou a Marina. Até mesmo a Dona Safira, a senhora gentil que
comanda o carrinho do café, está com a fofoca quentinha na ponta
da língua.
Tento ser o mais educada possível.
— Parabéns, Georgia! — Uma garota grita para mim,
enquanto eu praticamente corro por um corredor, quase chegando
ao que deve ser a ala C da emissora.
— Obrigada — murmuro, acenando na sua direção e lhe
lançando um sorriso casual.
Ela fica animada e pula no lugar, e logo entra em uma sala
particular. Deve ter entre quinze ou dezesseis anos, e aposto que
está aqui para participar da coletiva de imprensa.
Sigo os números destacados na porta, sem parar por nem um
segundo.
Trezentos e nove.
Trezentos e dez.
Não ter controle sobre minha própria vida me deixa estática e
muito furiosa. As pessoas invadem a minha privacidade como se eu
não merecesse uma vida sossegada. Já reclamei sobre esse
quesito com algumas pessoas e as respostas que recebi não foram
as melhores do mundo.
“Você quis ser famosa. Esperava o quê?”
“E daí? Você é conhecida!”
“Você já sabia disso quando quis ser atriz, não adianta
reclamar agora. É um preço que se paga!”
“Sua vida é pública! Nós merecemos saber o que acontece
nela!”
Merecem?
Todos os detalhes, mesmo?
Trezentos e vinte.
Trezentos e vinte e um.
Viro em um corredor deserto, diminuindo meus passos, mas
continuo muito atenta às portas. O camarim de Mikael é indicado
como o último de um corredor sem saídas e, para a minha surpresa,
ele está lá quando chego. Está conversando com uma assistente de
produção que recua um passo quando me vê.
Mikael está usando o figurino de Germano; uma camisa jeans
e uma calça jeans verde-musgo que, com certeza, faria parte do seu
guarda-roupa. Não parece muito caracterizado, mas posso imaginar
que as tatuagens foram escondidas com maquiagem.
— Georgia, oi. — A assistente me cumprimenta, abaixando o
olhar. — Eu vou indo, Mikael. Obrigada!
Cumprimento-a quando ela passa por mim, totalmente
apressada e ansiosa para nos deixar a sós. Pelo seu sorrisinho,
posso imaginar que também adorou a ideia de saber que Mikael e
eu “estamos juntos”.
Porra.
Sozinhos no corredor, sinto meu sangue ferver todo
novamente. Minhas bochechas já estão latejantes de tanta fúria,
mas todas as emoções simplesmente se fundem ao me deparar
com a expressão descarada em seu rosto.
— Eu posso explicar! — Mikael ergue a mão na minha
direção.
— Não precisa. Eu li o suficiente... — Me aproximo dele,
ficando frente a frente. — Você vai desmanchar isso e falar que foi
um mal entendido. Que foi hackeado, que foi... Sei lá. Só conserta
esse negócio e nunca mais fala comigo, por favor.
— Georgia... — Ele pede, ao suspirar. Suas mãos
escorregam para o bolso da calça jeans. — Não posso.
Eu ouvi bem?
— Não pode? Como não pode?
— Quer entrar? — Ele aponta para o camarim ao seu lado
esquerdo. — Podemos conversar melhor.
— Não, não podemos. Não quero conversar com você. Quero
que resolva essa confusão inteira!
— Georgia...
— Mikael! — brado. — Não pode simplesmente achar que as
coisas são apenas do seu jeito! Eu não quero ter meu nome
associado ao seu!
Nem todas as ofensas do mundo seriam capazes de fazer o
ego de Mikael Devante desinflar — nem que fosse apenas um
pouco. Então, todas as palavras que jorram da minha boca não são
suficientes para fazê-lo pensar ou refletir.
Ele revira os olhos rapidamente, se aproximando de mim.
Sem avisar, ele agacha, me pegando pelas pernas. Me coloca em
seus ombros sem muito esforço. Não me debato, porque daria um
gostinho de vitória a ele, então simplesmente me deixo ser
carregada pela pessoa mais detestável que já conheci. E olha que
precisou menos de vinte e quatro horas para contestar o que eu já
suspeitava há anos.
Mikael chuta a porta de seu camarim suavemente, apenas
para abri-la. Passa pela entrada, fechando a porta com as costas e
me coloca no chão apenas quando nos tranca no mesmo ambiente.
— Ah — solta. — Belas pernas.
— Cala a boca.
Bufo, arrumando meu cabelo automaticamente.
Me afasto dele sem precisar escutar mais nada e me
surpreendo pelo tamanho de seu camarim. E pela decoração
moderna e automatizada. Ele possui sofás, frigobar, uma cama,
guarda-roupa e uma penteadeira enorme. Sem contar na janela de
vista privilegiada para o litoral de Madre Rita e para o estádio de
futebol no próximo quarteirão.
Estou pensando em começar a chantagear a Farol para
conseguir trocar de camarim.
Com o corpo tenso, cruzo os meus braços, me afastando ao
máximo dele e me aproximando da janela.
— Quer beber alguma coisa? — Mikael indaga,
provavelmente caminhando em direção ao frigobar. — Refrigerante?
Suco? Água?
Ele me dá espaço suficiente para receber uma resposta
minha, mas não digo nada. O que lhe causa uma enxurrada de
palavrões. Ouço o som característico de alguém sentando-se no
sofá mais próximo e Mikael tenta contato novamente.
— Não se preocupe, ninguém pode te ver lá debaixo. É um
daqueles vidros filmados por fora. Algo assim...
Impressionante.
— De repente, você não vai mais falar nada? — desafia,
curioso.
— O que eu tinha para falar, eu já disse. — Me viro na sua
direção, erguendo minhas sobrancelhas. — Quero um resultado.
Quero que meu nome seja dissociado com o seu. Já basta oito
meses gravando ao seu lado!
— Georgia...
— Foi por isso que você ficou insistindo para conversar
comigo, não foi? — o interrompo. — Na frente do bistrô? Para
alguém tirar uma foto nossa e você ganhar uma namorada?
Mikael franze completamente o rosto, puxa um maço de
cigarro do bolso e paralisa o movimento.
— Acha que eu armei para cima de você, Georgia Pessoa?
— quer saber, desacreditado. — Quantos anos você acha que eu
tenho? Quinze? Não estamos no ensino médio e nem em um filme.
— O que eu acho, Mikael Devante, é que para você, essa
reputação é bem mais benéfica do para mim — discorro firme. —
Afinal, você passou de um cara melancólico e traído, para um galã
de namorada nova.
— Eu não pensei muito bem quando fiz aquilo, ok? — Mikael
abre os braços, colocando o cigarro entre os lábios. Ele amacia a
jaqueta jeans, tentando procurar o isqueiro.
— E você lá pensa? — retruco. — Se pensasse, teria seguido
sua vida normalmente.
— O que você precisa saber, Georgia, é que eu não paguei
nenhum paparazzi para nos fotografar. Eles nos acharam e nos
colocaram nesse cargo de namorados. Porque acredite... — Ele
acende o cigarro. — Não é legal ser seu namorado de mentira, não.
Desço os meus ombros com cansaço; ele realmente não
entende.
Toda a sua prepotência é banhada com o maldito cigarro que
ele está fumando e toda a sua paz em continuar sua vida. Em um
grande currículo amoroso, eu sou apenas mais uma vez para a
mídia, alguém a quem perseguir e recorrer caso Mikael entre de
cabeça em mais uma polêmica. Ele alimenta as fofocas, porque
adora o que elas podem causar em sua vida.
Para sua má reputação, é apenas mais um capítulo de sua
carreira.
— Pode ser que você não entenda, de fato, não pediria para
entender nada. Você é egoísta e só pensa em si mesmo, já tinha
notado isso antes — confesso, elevando o meu tom de voz. — Mas
os últimos meses serão decisivos para mim, quero me despedir
desta emissora com calma, Mikael, e não tendo que suportar um
mimadinho metido a besta que não sabe lidar com o fim de um
namoro!
— Eu não sei o motivo de ter feito aquilo, Georgia! — Ele se
levanta do sofá, para começar a se defender. Apaga o cigarro
recém-aceso no cinzeiro e dá alguns passos para longe de mim. —
Quando vi, já tinha feito. Me desculpa, tá legal? — troveja. — Eu
voltei para o hotel e o meu amigo já estava me esperando com um
novo celular, no meio das configurações, eu vi quando vazaram as
fotos. E aquilo me deixou feliz, parecia que eu seria desejável
novamente um dia e não completamente magoado. Sim, postei
aquela frase dando a entender que estávamos juntos, mas apaguei
uns três segundos depois, porque sabia que seria impossível de
acontecer. Foi uma madrugada turbulenta e horrível, e eu não quis
contribuir para nada disso. Não dou a mínima para a sua
aposentadoria, mas respeito sua decisão de ter uma vida longe dos
holofotes, mesmo sendo a Georgia Pessoa. A famosa, a queridinha,
uma das atrizes mais rentáveis dos últimos tempos. Me desculpe!
— Mas fez! — concretizo. — Como pensa em consertar tudo
isso?
Mikael afasta os fios para trás, em uma leva de fios
ondulados que voltam saltitantes para a frente do seu rosto. Ele me
fita com uma indecisão denunciante, que faz com que suas
bochechas fiquem levemente rosadas de irritação.
— Ah, não — anuncio sem humor, sacudindo minha cabeça
negativamente. — Nem pensar!
— Você ainda nem me escutou!
— Mas já consigo imaginar aonde isso irá chegar!
Mikael hesita, mas se aproxima novamente, não faz nada
além de se sentar. Ele aponta para que eu me acomode também.
Me sinto tão extasiada, frenética e inquieta, que não consigo me
imaginar ficando parada.
— Eu estava chegando de uma festa quando vi o Bernardo
com a Amanda.
— Agora que é a hora que você começa a contar a história
triste? — indago retoricamente. — Porque se for, minha resposta
ainda é não.
Ele me fuzila com os olhos castanhos com filetes da cor mel,
mas decide não me rebater.
— Não foi nada característico. Eles estavam se beijando na
varanda do quarto quando cheguei — conta, juntando as pernas.
Sua chateação e seu desprezo começam a crescer em seu tom de
voz. — Fazia meses que a Amanda tinha parado de responder às
minhas mensagens. Apenas dei o espaço dela, porque eu sabia que
ela não estava mais apaixonada por mim havia semanas... —
continua. Me dou um pouco por convencida e decido me sentar na
poltrona vaga, mas ainda mantendo distância. — Então, quando ela
voltou de viagem, o Bernardo me aconselhou a terminar com ela.
Ele insistiu tanto, mas tanto, que pensei que ele só queria uma
noitada de solteiro comigo. Nós decidimos terminar em conjunto,
mas não anunciamos para ninguém. Seria péssimo as notícias no
dia seguinte...
— Realmente, imagina que horrível ter seu nome em todas
as manchetes por algo que você detesta! — acrescento.
— Desculpa, tá bom? — pede novamente, áspero. — Já
disse que fiz merda. Só estou explicando que eu quis sair por cima.
Quis provar a eles que não fiquei nem um pouco ressentido.
— Mas ficou... — assumo. — E não há problema nisso.
Mikael sorri, amargo.
— Diga por você, senhora perfeitinha — debocha. — Não é
fácil lidar com isso apenas porque você quer.
— Não quero, mas você é um artista. — Dou de ombros. —
Transforme essa dor em arte, escreva músicas, venda bastante
álbuns e fique rico!
Impressionantemente, ele consegue rir, por mais que tenha
revirado os olhos mais uma vez.
Com os ânimos um pouco mais controlados, posso notar o
quão magoado ele está. Não que Mikael tenha razão no que fez,
ainda foi realmente uma reação estúpida, mas consigo entendê-lo
um pouco. Só um pouco. Há quem faça de tudo para não dar o
braço a torcer. Ser vulnerável, demonstrar sentimentos, é quase
como um sinônimo de fraqueza para muitas pessoas. Elas preferem
magoar, do que serem magoadas. Preferem se afastar, do que
assistirem os amores de suas vidas irem embora. Escolhem o lado
mais difícil do orgulho, apenas para provar o gostinho da
estabilidade de ser superior.
No entanto, no final, elas sofrem mais. Muito mais.
— Você ainda gosta da Amanda? — pergunto sinceramente e
meneio a cabeça para o lado.
— Deveria?
— Não respondeu à minha pergunta.
— Não — confidencia de imediato. Sem pensar por mais de
dois segundos. — Mas ainda dói, porque eles estiveram se
encontrando bem debaixo do meu nariz.
— Eles disseram isso? Com todas as letras?
Mikael assente em silêncio e posso jurar que sua voz
embargou.
— Mais ou menos. Me explicaram rapidamente o que
aconteceu. Disseram que “aconteceu”, que iam me contar o mais
rápido possível e que esperavam que eu entendesse. Que não foi
sacanagem, nem fizeram por mal. Apenas se apaixonaram. — Ele ri
pelo nariz, não acreditando nas próprias palavras. — Babacas.
— E como me namorar pode ajudar? — quero saber. — Não
será apenas mais uma página dos sentimentos que você não quer
encarar?
— Olha, depois que as fotos foram vazadas, a procura pela
nossa novela triplicou de número — Mikael diz orgulhosamente. —
A coletiva de imprensa teve seus números de mídia esgotados,
porque muitos jornais e revistas confirmaram presença hoje. E eu
sei que a imprensa anda pegando pesado com você ultimamente.
Com esse boato, eles podem focar apenas em mim, do que associar
seu nome a qualquer um. Você ganhou mais de duzentos mil
seguidores nas últimas horas...
— Espera... — Franzo a testa. — Como você sabe?
— Andei pesquisando e analisando a situação de perto. —
Mikael dá de ombros. — As pessoas gostam de namoros que
nascem dentro de um set de filmagem. É romântico. Eles não
cansam dessa fórmula, porque vende e faz sucesso. — Mikael se
apoia nos joelhos, me encarando de perto. — Paolo Cazano e
Julieta Benencio, Ricardo Manuel e Arthur Padilha, Flora Menezes e
Giulia Macedo. Os nomes são infinitos.
— E quase todos esses casais se divorciaram e possuem
acordos milionários para não voarem no pescoço um do outro —
completo.
— Mas não muda o fato de que, mesmo com a receita para
dar tudo errado, eles conquistaram os corações das pessoas. — O
cantor evidencia. — Se você parar para pensar, todo mundo tem um
casal queridinho das telas. Podemos ser os próximos.
— Não, não podemos.
— Não só apenas pelo bem da novela, Georgia — Mikael
sustenta seu argumento com seriedade. — Bernardo e Amanda
veriam que eu estou muito bem sem eles.
— Mas você não está! Apenas finge que está.
Ele resmunga baixo.
— E isso importa? — protesta.
— Deveria! — suspiro. — Ainda parece bastante benéfico
para você.
Há uma grandiosa parte benéfica para mim também; a
calmaria de poder simplesmente viver em paz, sem colocarem a
minha capacidade à prova apenas pela narrativa de um
relacionamento. Eles poderiam pensar o que quiserem e eu não
seria mais notícia. Não com dizeres maléficos a meu respeito, por
exemplo.
— Se quiser, você pode terminar comigo! — Mikael sugere,
alto. — Pode ser em público. As pessoas veriam o quanto sou podre
por dentro e você teria sua aposentadoria longe de mim e de todos.
— Faria isso? — me surpreendo. — Te encheriam a
paciência por meses!
— Faria. — Ele se recosta no sofá, confortavelmente. — Não
me importo com o que as pessoas dizem de mim. Não é verdade.
Nem tudo o que você lê é verídico. Se querem me julgar, me
julguem!
— Apesar de ser tentador imaginar te dar um fora
publicamente e ver sua cara estampada nas revistas como um
otário, vou recusar. — Me levanto da poltrona, arrumando a minha
saia. — É um plano genial e muito bom. Com certeza, a Farol ficaria
satisfeita com a audiência e as vendas… Só que eu ainda tenho um
plano de encerrar meu contrato sem me envolver demais com
pessoas como você. — Sorrio, fazendo um sinal com a cabeça. —
Não quero saber. Não quero ser usada para fazer ciúmes em
ninguém!
— Não estou querendo fazer ciúmes em ninguém! — afirma.
— Não quero te usar e te descartar como se não fosse nada. Só
não quero que pensem exclusivamente em mim como um pobre
coitado.
Suas palavras são verdadeiras e éticas. Não posso ser
apenas uma pessoa racializada mantida como um objeto e, ao
menos, ele tem noção disso.
Vou em direção à sua penteadeira, pegando um creme
hidratante de uma marca muito cara e boa.
— Vou ficar com isso aqui! — aviso, erguendo o tubo. — Eu
mereço pelas próximas horas. Afinal, serei confundida com a sua
namorada. As pessoas devem pensar que eu tenho muito mau
gosto, mesmo. — Abraço o creme, indo em direção à porta. — Sinto
muito pelo o que passou, Mikael. Não desejo o sentimento de
coração partido nem para o meu pior inimigo, no caso, você. Mas
nem tudo se resolve com outra mentira. — Seguro a maçaneta,
medindo meus olhos nele. — Resolve essa merda logo —
aconselho.
E saio sem olhar para trás.
7: torta de limão
INGREDIENTES: biscoito de maisena, margarina, leite condensado, creme de
leite, suco de limão, ovo, açúcar, raspas de limão.

Respondi todas as perguntas da coletiva de imprensa com a


cabeça nas nuvens. Brincando com os anéis dos meus dedos, por
baixo da mesa, sem que ninguém realmente notasse.
Definitivamente, não sentirei falta de responder perguntas mal
pensadas e refletir sobre um futuro tão incerto. Talvez eu sinta o
mesmo frenesi de sempre para finalmente começar as gravações,
mas isso passa longe da minha real vontade em ser encarada por
tanta gente.
Se pareci fria ou retraída quando cheguei ao Teatro Farol,
realmente não notei.
Apenas me senti um pouco confortável quando abracei Allura
Quispe na frente das câmeras. Foi maravilhoso reencontrar a minha
amiga, principalmente com seu novo visual selecionado
especialmente para a novela. Cabelos arruivados, escuros como o
cobre, que fizeram um ótimo destaque na sua pele marrom-escura e
em seus olhos pequenos e estreitos.
Allura será a vilã de Destino Inteiro; uma rival de Marina,
chamada Élia. Elas eram amigas no passado, mas quando Marina
ficou milionária de uma hora para outra, elas tiveram um afastamento
dramático. Tudo realmente apenas piorou com a chegada de
Germano, que será o principal empecilho para que Marina e Élia
finalmente se deem bem.
Allura e eu temos uma teoria que, na verdade, as duas
descobrirão que são meias-irmãs até o fim da novela, porém não
lemos o roteiro inteiro ainda.
Por debaixo da mesa em que estamos sentadas, Allura
segura o meu joelho, para chamar a minha atenção. Seus olhos,
atentos como os de uma melhor amiga, deixam transparecer sua
preocupação, mesmo que consiga disfarçar muito bem. Manoel
Francisco, o ator que será o meu pai na novela, está respondendo
uma pergunta feita por uma revista neste momento, então todos os
olhos estão voltados para ele.
— Está tudo bem? — Allura pergunta enquanto sussurra, com
as sobrancelhas também tingidas de vermelho, erguidas.
Allura está usando um terninho Valentino, está impecável e
deslumbrante. Aposto que sua personagem será incrivelmente
declarada como um fashionista.
Eu gostaria que nosso encontro tivesse sido diferente.
Há câmeras em todos os lugares e quero muito ter um
momento a sós com Allura, o que só acontecerá hoje de noite.
— Sim — respondo apenas para deixá-la mais tranquila,
apesar de não ser verdade.
Quero falar sobre Marina e meu papel, mas não há uma
quantidade agradável de pessoas interessadas nisso. Muitos dos
repórteres estão se coçando para perguntarem sobre o meu
“relacionamento” com Mikael e isso me deixa muito aérea.
Mikael está do meu lado. Sorrindo para as fãs que foram
selecionadas para conhecerem em primeira mão o elenco. Está
sentado confortavelmente ao meu lado, recostado na cadeira e
acenando sempre que possível. Ele gosta e ama ser uma sensação.
Porém, tento ao máximo não ter que estabelecer um contato visual
entre nós. Evito olhar na sua direção, porque simplesmente sei que
ele me receberá com um sorriso ardiloso que facilmente me tirará do
sério. Da forma ruim, é claro.
Chequei algumas notícias antes de entrar na coletiva e alguns
fãs já fizeram um fã clube nosso. Para o nosso shipp.
MikaGeorgia.
É o que “somos”.
Os flashes me desestabilizam um pouco, mas consigo
observar como a plateia da Farol está cheia e concorrida. Há
pessoas em pé e ao redor das poltronas de teatro, embasbacadas
com os nomes confirmados na nova produção, sempre de olho em
qualquer contato que Mikael Devante e eu possamos ter. Por um
lado, é engraçado como um casal pode fazer tudo o que quiser e terá
todas as pessoas possíveis na palma da mão. Por outro, é
assustador.
Todos desejam desesperadamente uma narrativa de amor
para acompanhar.
O tempo todo.
Porém, o que realmente chama a minha atenção é que
Bernardo está aqui. E não somente ele, como Amanda Olivêncio.
Eles estão em lados opostos, mas trocam olhares poderosos um
para o outro. Não estão flertando, pelo contrário, parecem
ressentidos, mas não conseguem evitar querer algum tipo de
contato. Eles conversam silenciosamente. Bernardo está ao lado do
restante da banda Desvio, que veio dar apoio especialmente a
Mikael. O que é um ótimo marketing, eles não querem que
descubram que Mikael e Bernardo andam brigando. Não depois do
corte de Mikael ter sido disfarçado com um curativo no tom de sua
pele e ter fugido tarde da noite, aparecendo misteriosamente do
outro lado de Madre Rita.
Pela forma que os outros dois integrantes se comportam, dá
para notar que existe algum assunto mal resolvido entre eles, de
modo geral. Será que todos sabiam sobre Bernardo e Amanda? Ou
descobriram conjuntamente a Mikael?
Não posso resistir, fofocas são ótimas quando contadas
inteiramente.
Bernardo possui um olho roxo bastante aparente e não tem
vergonha alguma em mostrá-lo. Com sua marra de bad boy, deve
achar glamoroso.
Ao menos Mikael não é o único machucado aqui.
Ajeito a minha postura quando Mikael, ao meu lado esquerdo,
se aproxima do microfone posto à sua frente. Não ouvi a pergunta
que lhe fizeram.
Merda.
Porra.
Cacete.
Não posso me desligar.
Não agora.
— Primeiro, queria dizer que é uma honra ter sido convidado
para interpretar o Germano... — Mikael responde, e sua voz ressoa
por todo o teatro. Seus cabelos estão jogados para todos os lados e
reluzem, com certo charme. — Será difícil, disso eu tenho certeza,
porque...
Talvez a pergunta tenha sido “Como se sente voltando a
atuar?” deve ser isso.
Espero que seja isso.
Prego meus olhos no cantor, tão confiante e desenvolto com a
sua resposta na ponta da língua. Ele usa todos os atributos que tem
e pode oferecer; ele pisca, umedece os lábios enquanto fala,
gesticula com os dedos cheios de anéis, passa a mão pelo cabelo
selvagem e deixa que eles voltem para o mesmo lugar como
cascatas, tudo bastante natural. No entanto, sua voz falha uma ou
duas vezes, e é o momento que me deixa em alerta.
Seus olhos castanhos voam para todos os lados, porque ele
reparou na presença de Bernardo. E de Amanda.
Até o momento, julgo que Mikael sequer tinha notado que eles
estão aqui.
— Perdão... — pede, interrompendo sua fala bruscamente.
Ele pega uma garrafinha de água, começando a deslizar a
embalagem pela mesa, até pegá-la. Abre, dá um gole e seca a
umidade com a manga da jaqueta. — É... é muito bom... mesmo...
voltar, sabe? Porque...
As sobrancelhas se unem no centro da testa e ele aperta a
embalagem.
Procuro por Ivy na plateia e seus ombros sobem, intrigada.
Ela me encara com os lábios crispados em reprovação, ela está em
alerta. Qualquer falha que acontecer, precisamos pensar em algo.
Improvisar.
Todos os olhos estão voltados para o cantor, curiosos. Mikael
não consegue voltar à sua concentração nata, infelizmente. Até
mesmo sua autoconfiança foi embora, deixando apenas seus
sentimentos jogados e pintados à flor da pele. Ele só consegue
pensar no melhor amigo e nela. O tempo todo.
Preciso me lembrar que o acontecimento foi recente.
A madrugada em que conversamos ainda é bastante fresca
na minha mente — e possivelmente, na sua. Sinais de cansaço
estão por toda a parte, apesar da maquiagem muito bem feita ser a
principal responsável por esconder a maioria de suas mais novas
olheiras.
De relance, ele me encara, mas é apenas um segundo
bastante breve.
Ele deixa a garrafinha de lado e engole em seco.
— Sempre gostei de atuar, apesar de ter... de ter...
O silêncio na mesa é agoniante, porque todos os atores
esperam sua resposta terminar para finalmente encerrarmos a
sessão. Quero comemorar que ninguém invadiu o meu espaço
pessoal, mas não tem como não me sentir ansiosa com a sua pausa
repentina.
Por mais que eu não suporte Mikael Devante, não acho
prazeroso vê-lo tão magoado com duas pessoas que um dia ele
amou. Ou quem sabe, ainda ame. Não faço ideia do que é ser traída,
mas sei o que é ter o coração partido. Muitas vezes, pensei em
mudar o meu jeito e a minha maneira de enxergar a vida, apenas
para me encaixar naquilo que meus ex-namorados queriam. Não
namorei muito, me apaixonei apenas por dois caras. Vivi romances
passageiros, que começaram e terminaram de uma forma breve e
relaxante. Não sei ao certo como descrever essa parte do amor que
dói.
Meus poucos relacionamentos me serviram de algo.
E, vendo agora, foram suficientes.
Mikael me expôs e, com certeza, pagará caro por não ter
pensado com seus últimos dois neurônios, porque o ato realmente
me frustrou. Entretanto, é um alívio saber que não foi nada planejado
ou armado de sua parte — seria bem pior.
Sinto vontade de sair correndo, mas, ao invés disso, coloco
toda a minha frieza para fora. Penso superficial e profissionalmente.
Penso nas manchetes deixando a minha vida pessoal de lado — na
medida do possível. Penso nas vantagens que posso extrair dele e
de toda a proposta que ele deixou nas minhas mãos. Mikael pode
ficar com toda a parte midiática, se quiser, contanto que ele não me
exponha muito.
Porra.
Vamos lá...
Toco seus ombros, lhe passando apoio. Os fotógrafos reagem
na mesma hora e os flashes aumentam, envaidecidos. Mikael me
olha com as sobrancelhas erguidas, mas as abaixa quando eu
sinalizo para o microfone bem à sua frente.
— Ele está nervoso — brinco, arrancando risadinhas
uniformes e respeitosas. Mikael oscila com o meu toque, mas respira
fundo. — Espero falar pelo Mika que a Farol oferece tudo o que
queremos — digo, curvando o meu rosto na direção do microfone e
abrindo um sorriso mordaz. Continuo com a mão no ombro dele,
porque quero que todos vejam. — Enquanto eu estou saindo,
deixando o meu posto e pensando na aposentadoria, ele está
entrando. Quer um novo desafio e é um ótimo nome para integrar o
Time Farol. Acho que somos a dupla perfeita, não acham? —
questiono, brincalhona. A plateia urge em risadas, aplaudindo o
momento tão inesperado. — Eu o conheço desde os meus dezoito
anos e, apesar de não termos tido uma amizade convencional, ele
sempre amou atuar. É um prazer tê-lo na minha última novela, ainda
mais como o meu par romântico. Bem-vindo de volta, Mika! —
cantarolo.
Ouço mais aplausos, dessa vez, vindo diretamente da mesa
de elenco.
Allura também me aplaude, mas com a testa franzida
levemente. Ela é a minha melhor amiga há quase onze anos, me
conhece tão bem quanto se fosse da minha família. Ela,
definitivamente, não está entendendo nada.
E nem eu.
A imprensa está alimentada, porque conseguiu o que pode ser
um aviso prévio de que há algo entre ele e eu. Os conteúdos quase
românticos serão repetidos até todos enjoarem. E as expectativas
sobre nós aumentarão dia após dia. Todos adoram estes momentos
de “pessoa completa frase de pessoa”, porque acreditam que estão
encarando almas-gêmeas genuínas.
Ivy está mais do que satisfeita com o que acabara de ouvir,
então, ela apenas sorri na minha direção. O zumbido do meu ouvido
continua alto e desejo terminar este dia descansando e cozinhando
para Allura.
Agora é oficial, sem sossego para mim.
— O que foi aquilo?
Allura me abraça de lado, enquanto saímos do palco para a
coxia do teatro. A coletiva de imprensa acabou e precisamos correr
até o estúdio, do outro lado do prédio, para tirarmos as fotos
promocionais. Para banners, cartazes, pôsteres, comerciais e claro,
outdoors.
— Eu também quero saber! — resmungo, engolindo em seco.
Arfo com força, parando de andar, estabelecendo uma distância
ótima entre as demais pessoas.
O elenco de Destino Inteiro sai em peso do teatro, pelas
coxias. Eles falam alto e gesticulam, mas não quero que escutem a
minha conversa com Alli.
Ao meu canto direito, Mikael é o último a sair.
— Você deve ser a Allura Guispe... — Mikael sorri na direção
da minha amiga, com um sorriso galanteador a postos. — Eu sou o...
— Me espera aqui — peço pra Allura, segurando sua mão. —
Ainda vou recompensar pelo o tempo que não tivemos, me perdoa.
— Faço biquinho e a minha melhor amiga me dá pequenas
batidinhas na mão.
Assim que me vê, Mikael arregala os olhos, mas não
consegue terminar de se apresentar. Puxo seu pulso para longe,
para o outro lado das coxias mais escondidas. Mesmo que Allura
esteja presente, ela não conseguirá nos ouvir de onde estamos.
Apenas o solto quando paramos frente a frente, irritados.
— O que foi aquilo? — Mikael sussurra, totalmente perdido.
— Você recebendo o apoio da sua namorada — falo com
destreza, odiando a palavra “namorada” escorrendo por entre a
minha língua.
— Que... — O sorriso de Mikael vai se abrindo, a surpresa se
aproximando do seu rosto. — Isso quer dizer que você... Aceita?!
— Não te suporto, mas detesto ver gente babaca se dando
bem. Detesto muito mais do que odeio você — acrescento. — E
Bernardo e Amanda estavam aqui, então posso imaginar que isso
deve ter doído. De uma forma ou de outra. — Subo meu queixo. —
Este namoro não pode curar seu coração estilhaçado e nem seus
desentendimentos, mas pode te dar uma vantagem enquanto tenta
colocar a cabeça no lugar.
O sorriso de Mikael está firme no rosto.
— Então, me escute com atenção — peço, com o dedo em
riste. — Seremos discretos, vamos brincar com a imaginação deles.
Das pessoas. Mas não daremos o que elas querem — nego
veemente com as mãos. — Sem beijos, sem encontros, sem muitos
carinhos em público, sem flagras românticos. Apenas dicas e pistas.
— Faço uma pausa. Allura ainda está prestando atenção em nós,
mas não escuta nada. — E eu termino com você a hora que eu
quiser e em público. Estamos entendidos? — questiono seriamente.
Seu sorriso ainda não se desmanchou, ele me encara de cima a
baixo, com uma expressão valente e descabida, mas está satisfeito
com o acordo. — Ah, mais uma coisa. Você fará tudo o que eu quiser
durante essas semanas que seremos namorados. Tudo. O. Que. Eu.
Quiser. Sem discussões. Isso inclui participar diretamente da reforma
do meu bistrô, como pintar as paredes, mudar os móveis de lugar...
Enfim, você sabe. — Levanto os ombros. — Essas são as minhas
condições... O que me diz, Mikael?
— Sabe que pode me chamar de Mika, Georgia. — Ele
amacia o queixo, sorrindo de lado. — Aliás, foi ótimo ouvi-la me
chamando assim na frente de todos. — Ele se aproxima lentamente,
sorvendo o espaço entre nós. Sua cantada faz meu estômago revirar
de irritação. Já me arrependi. — Tô brincando, gata. Calma!
— O que me diz, Mikael? — insisto, impaciente.
— Aceito — concorda com a cabeça.
— Mikael?! — o chamo, insegura. — Você sabe mesmo o que
tá fazendo?
Seu sorriso se alastra como fogo; é perigosamente
desconfortável.
— Confia em mim, gata! — pede. — É tudo nosso, nada
deles!
A gíria me faz repensar todas as mil vezes em que pude
escolher uma profissão normal e comum, mas, movida a um desejo
desenfreado pelas minhas conquistas, optei por ser atriz. Todas
essas decisões me trouxeram a este dia. A este caótico dia.
— Posso ter condições? — pergunta, risonho.
Sorrio amargamente.
— Claro que não. — Bato em seu peito, afastando-o de leve.
Subo novamente até onde Allura Guispe está. Ela tenta
entender o que está acontecendo apenas pelo olhar, mas não
consegue compreender. Apenas pego seu antebraço e a empurro
para fora da coxia.
— Vamos embora!
— Ah — Mikael grita. — Foi um prazer te conhecer, Allura!
Ela sacode as mãos, sorridente.
— Ele é legal. — Ela acena para ele, por cima dos ombros.
Inspiro.
— Cala a boca, Allura — reclamo baixinho.
8.01: pavê de paçoca
INGREDIENTES: leite condensado, creme de leite, paçoca, amido de milho,
biscoito de maisena, leite.

Estima-se que sonhadores sejam pessoas avoadas, de mente


fértil, seres curiosos que não conseguem parar no lugar. Eu parto da
opinião que todas as pessoas no mundo são sonhadoras, não
importa como ou com o quê. Talvez todos nós precisemos de sonhos
para nos manter confiantes neste mundo, algo com o que possamos
fantasiar freneticamente, sem que a existência se transforme em
uma tarefa árdua.
Allura é a pessoa mais sonhadora que conheço — e a mais pé
no chão.
Estou aninhada na sua cama, enquanto ela desfaz as malas
coloridas. Ela praticamente saiu do avião e correu para os estúdios
da Farol para a coletiva de imprensa. Enquanto fala português, ela
tenta mediar com um sotaque francês nada charmoso e, sim,
bastante exagerado. Dependendo de sua atual fase, Allura Guispe
adota um estilo de vida que condiz exatamente com aquilo que ela
quer transparecer ao mundo. Segundo ela, o tempo é curto demais
para experimentarmos apenas um tipo de estilo.
No auge de seus vinte e seis anos, ela está vivendo em sua
fase colorida. Antes de embarcar para Paris, para participar do álbum
visual, eu pude contar na mão quantas peças extravagantes havia
em sua mala e eram apenas dez. Porque eram suas calcinhas.
Agora, ela é uma explosão de arco-íris. Parte porque ela
pesquisou bastante antes de aceitar o papel como Élia, parte porque
sempre quer tentar algo novo.
— Você quer isso? — Ela me oferece uma saia longa e preta.
A peça está amassada e Allura não irá guardá-la no armário. — Não
vou usar tão cedo.
— Sua fase Princesa Jujuba está interessante.
— Você é a Marceline — Allura confirma, piscando de lado. —
Ainda mais com esse cabelo azul. Parece algodão doce. Eu gostei!
— Levarei como elogio, porque todo mundo gosta de algodão
doce. — Pego a peça na minha mão, decidindo ficar com ela. Adoro
quando essas fases chegam, porque às vezes ganho roupas de
graça.
Jamais conheci uma pessoa tão desapegada quanto Allura;
apesar de seu estilo oscilar, sua personalidade continua a mesma.
Ela é animada, falante e uma pessoa completamente livre. Esbanja
do que pode e do que não pode. Não é discreta, ama alimentar seus
seguidores com sua rotina, gosta de ser comunicativa e, com
certeza, entre nós duas, é a que gosta de animar a festa.
Eu não. Gosto da minha própria companhia e não vejo mal em
me divertir apenas comigo mesma. Adoro estar perto de Allura,
porque isso quer dizer que as pessoas se concentrarão nela e
poderão entender um pouquinho do que eu sinto quando a vejo.
Apenas brilho, cor e festividade.
Quando termina de esvaziar sua mala, Allura desiste da
próxima.
Ela prende os cabelos arruivados em um coque desajeitado e
coloca a mão na cintura.
— Estou com fome — proclama. — E não é de alguma coisa
salgada.
— Sabia que ia dizer isso... — Deslizo para fora da cama,
sabendo perfeitamente o que isso quer dizer.
— Eu comprei todos os ingredientes no caminho para cá. —
Ela junta as mãos ao alto da boca, fazendo um biquinho. — Cozinha
pra mim, Georgia. Por favor!
— Nem precisa pedir.
Deixo a saia perto da minha mochila e saio do quarto primeiro,
ouvindo sua gargalhada tranquila me encher de paz.
Cozinhar me desestressa, e pelo dia cheio que tive, é melhor
começar a pensar em uma nova receita para inteirar o menu do
bistrô. Um bistrô ainda sem nome, devo dizer.
Como as gravações de Destino Inteiro mudaram
drasticamente de São Paulo para Madre Rita, muitos dos atores
principais estão hospedados no mesmo lugar, o Hotel Prudência, que
oferece moradia como apartamentos e casas mobiliadas para
estadias longas. A outra parte, como os atores coadjuvantes, viajam
quase todo o dia do Rio ou de São Paulo para cá, dando em média
duas a cinco horas de viagem, dependendo de onde você está.
Allura optou por um apartamento-hotel, mas alguns andares
abaixo do meu. Quando pedi que Ivy reservasse o meu, não pensei
que seria a cobertura, mas posso ignorar a extravagância de Ivone
apenas um pouco.
A decoração é padrão e minimalista. Não dou duas semanas
para Allura pendurar quadros e distribuir esculturas de artistas de rua
pelo apartamento todo.
Caminho até a cozinha, abrindo os armários abastecidos de
comida. Pego a caixa de paçoca, justamente a que Alli comprou no
mercado, e abro a geladeira, começando a juntar os ingredientes
necessários para preparar o pavê de paçoca. É a sobremesa favorita
dela e sempre precisa comer quando estamos juntas. Desta vez, vou
tentar algo novo; sigo um amante genuíno da culinária nas minhas
redes sociais e esses dias, ele postou uma dica excelente sobre
pavê de paçoca – além de nunca revelar a receita de sua pipoca
doce. Espero que Rafael Espinoza tenha acertado na dica.
Da cozinha aberta, que é facilmente acompanhada pela sala
de estar, consigo ver a varanda. Madre Rita está afundada na noite,
as luzes do centro da cidade se misturam como estrelas no céu, e
apenas uma parte continua em uma típica cor-negra; o mar. Vasto e
quase infinito.
— Terminei. — Allura volta, contente, de seu quarto. Está
descalça e usando uma camiseta larga demais, mas que esconde
sua virilha e o começo das coxas.
— Você terminou mesmo ou apenas jogou suas roupas de
qualquer jeito no armário?
— E isso importa? — Ela junta as sobrancelhas vermelhas no
centro da testa e se apoia no balcão. — Porque se importa, apenas
uma parte do que eu disse é verdade.
— Aposto que nem tirou as roupas das malas — comento,
abrindo a lata de leite condensado.
— Talvez você tenha razão. — Allura dá de ombros, roubando
uma paçoca em formato de rolha da embalagem. Ela leva até a boca
e mastiga de boca aberta. — Agora, me diz, você acha que isso dará
certo?
Franzo o rosto.
— O pavê? — indago. — Acho que sim. Já fiz milhares...
— Não. — Ela me interrompe, apressada. — O namoro falso.
No caminho para cá, depois que tiramos todas as possíveis
fotos oficiais, não me senti muito confortável em comparecer ao
jantar de elenco. Fiquei pouco e comi apenas um prato especial de
frango. E sei que fui fotografada deixando a festa mais cedo, o que
tornará tudo bastante... Dramático.
Por que Georgia Pessoa foi embora?
Problemas com Mikael?
Ela não gosta do elenco?
Posso listar todas as possíveis perguntas de cor, é claro.
Allura insistiu em voltar comigo e, no caminho, enquanto
dirigia, eu expliquei exatamente todos os pontos que me levaram a
entrar nessa mentira com Mikael. Ela me escutou com atenção,
mesmo achando tudo horripilantemente horrível. Imagina você deixar
o Brasil por quase três meses e quando volta, sua melhor amiga se
enfiou em um namoro de mentira com alguém que jurou detestar há
anos?
Não deve ser fácil ser Allura Guispe.
O pensamento me causa divertimento, mas não esboço
reação alguma.
Ela não me apoiou, mas também não discordou, apenas se
manteve neutra até o momento.
— Pra ele? — quero saber, lavando as minhas mãos na pia
novinha em folha. — Sim, com certeza. Tenho uma teoria que os
homens parecem mais atrativos quando estão dentro de um
relacionamento — discorro. Allura ergue as sobrancelhas. —
Homens famosos, não os comuns. Apesar de que parece que sou
uma pessoa suspeita agora, mas acho que você me entendeu. —
Mordo os lábios. — Entendeu?
— Acho que sim?! — Ela olha para o teto, pensativa. —
Quando o Drigo Menezes começou a sair com a Fátima Loures eu
pensei mesmo que ele estava mais atraente. Talvez... Eu te entendo,
mas preciso buscar mais exemplos.
— As pessoas querem o que não podem ter, então, Mikael
continuará desejável. — Começo a esfarelar as paçocas, dividindo-
as em um recipiente.
— Isso não se aplica a você? — Allura semicerra os olhos,
atrevida. — Se ele poderá se tornar um ícone irresistível, quem
garante que você não?
— Espero que não. — Suspiro. — Odeio receber atenção
demais.
— Você deve se aposentar, mesmo — Allura provoca.
— Não estou me colocando para baixo! — intervenho. — De
verdade, não é como se eu não me sentisse merecedora de atenção,
eu mereço. Sou linda, incrível, inteligente e ainda sou talentosa. Só
não gosto, essa é a diferença!
— Hm... — Allura junta os lábios, ainda na mesma posição. —
Certo, ok. Digamos que vocês levem esse negócio para frente. Como
será quando terminarem?
— Cada um para o seu lado. — Dou de ombros, abrindo a lata
de creme de leite. — Allura, sei que está preocupada, mas não existe
a menor possibilidade de eu sentir saudades de Mikael Devante.
— E se ele sentir a sua?
Sorrio.
— Duvido.
Se Alli pensa mais alguma coisa, ela não diz mais nada.
Apenas me fita seriamente, enquanto os lábios continuam na mesma
tonalidade de vermelho-bordô, porque não tirou sua maquiagem
direito.
— Além do mais... — acrescento, porque não gosto do seu
silêncio. Apoio as minhas duas mãos na bancada, fitando-a. — É
como se fosse... Um papel, entende? Estarei interpretando ser a
namorada dele. Simples assim.
Apenas uma sobrancelha dela se suspende.
— Certo, se você diz... — Ela se afasta do balcão, com as
mãos para cima, em forma de rendição e caminha de ré, se
direcionando para o sofá em forma de L de sua mais nova sala de
estar.
Ela pega o controle remoto e liga a TV, deixando no noticiário
qualquer.
Apesar de sermos água e óleo, Allura e eu temos algumas
coisas em comum. A maior delas é que não temos uma casa fixa. O
meu maior desejo, quando abandonar a carreira, é encontrar um
lugar que seja apenas meu. Um que eu possa decorar do jeito que
quiser. Talvez ter um cachorro. Ou um gato. Tanto faz.
Talvez mudar de país, ou continuar no mesmo.
As possibilidades são infinitas e estou ansiosa para colocá-las
todas em um papel. Mas ainda é cedo e, quando estou na presença
dela, evito pensar na vida que terei, porque ainda estou presente
nessa.
Alli também pensa em uma casa fixa — uma que não seja a
dos nossos pais —, mas não tem pressa para descobrir onde será.
Ela quer desbravar o máximo de países possíveis antes de pensar
em um lar.
Enquanto mexe no celular e sorri a cada vídeo engraçado que
encontra, continuo na preparação da sua sobremesa favorita, focada
inteiramente no seu paladar. Ela me conta algumas coisas sobre a
viagem, tagarelando bastante; os caras franceses que beijou, a
paixão pela música que se tornou cada vez mais forte, o desejo de
lançar um EP e como Paris lhe acolheu muitíssimo bem. Sobre as
festas que foi e como acordou em sofás de estranhos, como andou
por horas atrás de brechós e pagou uma mixaria em bolsas de grife,
como quer me levar para viajar na próxima estação e que ficou muito
animada quando descobriu sobre o meu possível bistrô.
Me desligo rapidamente, porque gosto que Allura continue
falando.
Sou assim com a maioria das pessoas, é claro.
Quando coloco o pavê na geladeira, para ficar com uma
aparência menos molenga e despreparada, me junto a Allura no
sofá. Ela pousa sua cabeça no meu colo e continua a digitar no
aparelho de última geração.
Na TV, no noticiário geral sobre Madre Rita, o âncora anuncia
que alguns moradores do litoral estão à procura de voluntários para
limpar a praia. Com a forte chuva de ontem à noite, muitos animais
aquáticos foram encontrados na baía e na areia, quase todos feridos.
Muitas ONG's da região conseguiram resgatar todos, mas a praia
continua suja e congestionada, porque vários resíduos de poluição
continuam aparecendo. Um grande mutirão de limpeza acontecerá
amanhã de manhã e me interesso na mesma hora, curiosa.
A informação me faz pegar meu celular do bolso da calça
jeans na mesma hora. Allura reclama da movimentação anormal,
mas continua a ficar em silêncio segundos depois. Checo a minha
agenda feita por Ivy; tenho apenas uma consulta on-line e de rotina,
por causa do meu ouvido, mas o dia está livre. Minha relação com
Ivy é a mais tranquila possível, temos total ciência de que
trabalhamos juntas. Mas eu sei que seu sonho é que um dia eu
coloque toda a minha carreira em suas mãos, para governá-la como
em uma monarquia.
Noto um espaço livre nos meus horários e decido o que fazer
prontamente. Preciso aproveitar cada segundo extra, porque as
filmagens começam semana que vem.
— Vamos ajudar na praia. Amanhã — aviso Allura, cutucando
sua testa. — Desmarque todos os compromissos ou leve mais gente.
— Pode deixar — ela confirma automaticamente.
Minha melhor amiga apenas aparenta que não me ouviu, mas
prestou atenção em cada palavra.
Abro meu Instagram, me surpreendendo com a nova leva de
seguidores, mesmo não atualizando nada de interessante há dias.
Na última foto que postei, eu estava em uma pista de boliche
ao lado de Gael Soares, o segundo guitarrista da Desvio. Nos
conhecemos em uma campanha publicitária que foi sediada no
boliche. E isso faz dois meses. Abro o ícone de stories e posto uma
foto tremida, mas recente, minha e de Allura, que foi tirada hoje pela
tarde. É o máximo que consigo fazer, mesmo sentindo que devo
fazer mais por quem me acompanha.
Na barra de buscas, procuro pelo user de Mikael e me
surpreendo ao ver que o cantor me segue. Ele tem o dobro de
seguidores do que eu, mas isso se deve pelo fato dele ser ativo nas
redes sociais. Sigo-o de volta, sabendo que esse pequeno ato
também será notícia pela manhã.
Sua foto de perfil é uma fotografia que ele tirou ao lado de
dezenas de fãs em um show em Portugal, ele está suado e feliz, e
parece realizado. A foto mais recente é uma em que Bernardo
aparece em um estúdio de tatuagem, acompanhando Mikael em sua
mais nova invenção. É apenas um coração riscado várias vezes, em
traço old school.
Desço o feed e a última foto que ele postou ao lado de
Amanda, consta como sete meses atrás. É uma habitual foto no
espelho, Mikael está com o queixo apoiado ao alto da cabeça de
Amanda, pela grande diferença de tamanho. Os dois sorriem, mas se
completam como um casal, dividindo o mesmo estilo clichê de
estrelas do rock, entre preto, branco e cinza.
Os fãs parecem que amaram acompanhar o casal, porque há
comentários feitos recentemente. Pedindo que Mikael volte com
Amanda, porque não combina comigo. Sei bem o que esta frase
significa. Isso me faz rir, ao mesmo tempo em que uma leva de
pessoas discorda.
Paro de bisbilhotar a minha própria vida e clico em “enviar
mensagem”. Não há nada no nosso chat, mas, enquanto digito, uma
mensagem de Mikael pipoca na mesma hora.

MIKAEL DEVANTE:
Finalmente me seguiu de volta, hein.
Achei que ia ter que pedir.
Ou implorar.

GEORGIA PESSOA:
Pensei mesmo em ignorar, mas sou boa demais.
Como pode ver.

MIKAEL DEVANTE:
Também não é pra tanto.

GEORGIA PESSOA:
Apenas segui porque namorados fazem isso, não é?
E porque queria dizer que você irá amanhã, na praia de
Concha Amarela, ajudar na limpeza da orla.

MIKAEL DEVANTE:
Vou?

GEORGIA PESSOA:
Sim.
Você fará tudo o que eu quiser.
Esqueceu?

MIKAEL DEVANTE:
E tem como esquecer?
Me sinto a Pequena Sereia, depois que assinou o contrato
com a Úrsula.
Uma perseguição diferente da outra.

A risada se prende na minha garganta e preciso de um


momento para me recuperar.

GEORGIA PESSOA:
Apenas vá.
E não se atrase, por favor.

MIKAEL DEVANTE:
Pode me passar seu número pelo menos?

GEORGIA PESSOA:
Não.

Bloqueio o aparelho, me concentrando no noticiário. Meu


celular treme na minha mão, avisando que mais uma mensagem
chegou, mas não clico na notificação.
— Mikael vai também — aviso.
— Por quê? — Allura se levanta do meu colo. Ela caminha até
a cozinha, faminta, dando uma olhada na geladeira. Deve estar
sedenta pela sobremesa. — Desde quando ele é altruísta ao ponto
de ir até a praia de Concha Amarela?
— Desde hoje. — Sorrio. — Eu mando nele agora. Se
esqueceu?
Allura gargalha alto, se acomodando.
— Enfim... Se isso é um namoro falso, você vai se importar se
eu quiser sair com ele?
Entorto a minha cabeça para o lado.
— Allura Guispe?
— Sim?
— Você se odeia?
Sua risada aumenta.
— Pelo contrário, eu me amo! — Ela cantarola.
— E então?
— Tenho uma queda por músicos e você sabe disso. — Ela
sobe o seu queixo. — Mikael nunca quer nada sério... depois do
suposto término com a Amanda, pelo menos, ele nunca mais parou
quieto. E nem eu. E vamos ficar em Madre Rita por meses. Quero
me divertir.
— Bom, levando em conta que Mikael também quer se
divertir, vocês serão uma dupla dinâmica charmosa demais —
assumo. — E não, não tem problema!
— Ótimo! — Allura sorri, erguendo os ombros. — Será que já
está pronto? — questiona sobre o pavê pela décima vez.
Nego com a cabeça, paciente.
Quero provar a sobremesa, mas como a pressão no meu
ouvido direito continua alta, vou me manter longe de doces por até
três dias. Uma crise é o que eu menos preciso agora. Aliás, é melhor
descansar, ter uma noite de sono de verdade, ao invés de me
acomodar em uma poltrona velha e usada.
Antes de me despedir de Allura para subir até o meu
apartamento, espio o meu celular, por pura e extensa curiosidade.

MIKAEL DEVANTE:
O que mais você vai querer?
Uma massagem no pé?
Um anel de diamante?

Rio pelo nariz.

GEORGIA PESSOA:
Um anel de diamante é demais.
Aceito apenas a massagem no pé.

Envio a mensagem e desfaço o pequeno sorriso aos poucos.


GEORGIA PESSOA SEGUE MIKAEL DEVANTE NO
INSTAGRAM!
Está mesmo acontecendo? É isso o que todos querem saber.
Na noite de ontem (08), Georgia Pessoa decidiu retribuir o
follow de seu suposto affair, após uma coletiva de imprensa pra lá de
animada.
Estamos de olho em #MikaGeorgia!
8.02: pavê de paçoca
— Que horas você volta? — Ivy Telesco pergunta do outro
lado da ligação.
— Depois do meio-dia. Ou meio-dia e meia espero estar em
casa.
— Meia? — Ivy pergunta, perdida. — O que uma meia tem a
ver com isso?
Dou risada, afundando o boné na minha cabeça e respirando
fundo. O dia está quente, abafado e a temperatura está nas alturas.
Consigo avistar boa parte dos voluntários na praia de Concha
Amarela passando protetor solar e se refrescando com uma
garrafinha de água bem gelada. O mar continua com sua beleza
estonteante, o problema é a areia, que contém diversos pontos sujos
e manchados, sem contar nas porcarias que podemos encontrar a
cada dez passos. Canudos, latinhas de refrigerante, longnecks de
cerveja, brinquedos de plástico e até mesmo roupas.
É impressionante, mas há tantas pessoas dispostas a ajudar,
que espero que façamos um ótimo trabalho.
— Meia vem de meia hora, e não a peça de roupa, Ivy —
explico pacientemente. Espero ouvir sua risada do outro lado da
linha, mas é bem raro Ivy rir, ainda mais de algo vindo dela mesma.
— Tudo bem. Vou fazer uma ligação agora para Londres,
estarei ocupada pela manhã inteira. Precisa de mim?
— Deve estar com saudade de falar inglês, não é?
— Um pouco, darling — admite, sofisticada. — E como foi a
consulta?
— O de sempre. O médico aconselhou que eu fique longe de
frituras e durma direito pelos próximos dias. Estou há seis meses
sem uma crise violenta, então não há motivos para ir contra o que
ele receitou.
— Ótimo. — ela concorda. — Se possível, poste alguma coisa
nas suas redes sociais. Enfim, se precisar de mim, me ligue mais
tarde. Bye.
Rio pelo nariz.
— Tchau, Ivy.
Desligo, sem falar nada sobre fotos. Porque não acho que
uma iniciativa tão nobre deva parar no meu Instagram. Mas o dia
está lindo e quanto mais divulgação, melhor. Então, apenas
compartilho uma imagem pronta, pedindo encarecidamente que a
população ao redor de Concha Amarela apareça para o mutirão de
limpeza.
Guardo o meu celular na mochila que eu trouxe comigo e
marcho na direção de Allura, que está conversando com uma
assistente de elenco da Farol, a Teresa, em uma das tendas oficiais
da principal ONG que organizou o movimento. Muitos dos atores de
Destino Inteiro estão presentes, movidos pela vontade de ajudar,
mas, é claro, há aqueles que aparecem apenas pela publicidade que
uma boa ação pode trazer. Há fotógrafos espalhados pela orla, no
entanto eles não chegam perto para não atrapalhar as demais
pessoas.
Há uma equipe de filmagem próxima de um píer e presumo
que seja a própria Farol. Se possível, irei me esconder e me esquivar
de futuras entrevistas.
Assim que me aproximo, Teresa se afasta pela lateral. Ela não
faz contato visual comigo, mas me cumprimenta apenas com um
aceno de cabeça. Devolvo o ato, sorrindo. Allura prendeu os fios
arruivados em um rabo de cavalo alto e estonteante, usando uma
viseira para se proteger dos raios solares. Também usa um shorts
estilo legging, igual ao meu. Sua pele marrom-escura se destaca
glamourosamente.
— Vieram muitas pessoas — Allura comemora, me passando
um colete verde-neon para vestir por cima da minha roupa. O colete
dela é laranja. — Todos foram divididos em equipes para ajudar em
pontos específicos da praia. Eu vou ficar com a orla, para saber se
alguns animais ficaram presos em alguns destroços de árvores e
folhagens.
— Isso é ótimo. É possível que terminemos tudo antes do pôr
do sol. — Visto meu colete, analisando o grupo que se prepara para
começar a caminhada.
— Ele vai vir, mesmo? — Allura quer saber, olhando para
todos os lados.
— Espero que sim, mas se não vier, é mais uma conclusão de
que ele é um babaca completo.
— Seu namorado. — Ela dá ênfase, me fazendo revirar os
olhos de propósito. — Mas não é preciso xingá-lo... Pelo menos, não
por isso. — Misteriosa, ela gira por cima dos calcanhares e pega três
coletes. Dois laranjas e um verde-neon. — Ele acabou de chegar. —
Ela aponta com o queixo, sorrindo por cima dos ombros.
Olho para a mesma direção para onde Allura aponta.
Saindo de um carro preto, na encosta da praia, Mikael
Devante vem acompanhado de Gael Soares e Pedro Honduras, o
baixista. Os três usam regatas pretas, mas apenas Mikael está
usando jeans.
Na praia.
O trio usa óculos escuros, intensificando a preguiça que
sentem em conjunto. Não preciso refletir por muito tempo até chegar
à conclusão que os três gênios estão de ressaca. Eles caminham na
frente, enquanto Bernardo Vicentino é o último a sair do carro. Para
mim, que conhece o que a Desvio está passando, é um grande alerta
de tensão. Para as demais pessoas, apenas significa que Bernardo
ficou para trás.
Os quatro conseguem arrancar olhares pelo caminho que
percorrem até chegarem à tenda onde estou. Como é um movimento
social, muitos voluntários estão se segurando para não pedir uma
foto — por um motivo maior e respeitoso, é claro. Mas consigo
imaginar que, quando terminarmos, eles se tornarão a sensação. Ao
meu lado, Allura pega mais um colete, dessa vez, vermelho.
Mikael está com os cabelos presos em um coque mal feito,
mas que exala conforto. Sua cicatriz na bochecha está muito
aparente pelo sol, e consigo vê-la melhor hoje. Já Gael Soares é o
mais sorridente, com sua pele branca bronzeada e os brincos que
preenchem as duas orelhas, ele esbanja confiança. Seu cabelo é
grande, na altura dos ombros. Ele acena na minha direção, feliz em
me ver. É a primeira vez que percebo que passei uma boa impressão
para Gael; e, normalmente, quando isso acontece, me sinto muito
bem. E também é a primeira vez que nos vemos desde a campanha
publicitária.
Os três estão carregando mochilas, menos Bernardo.
— E aí, gata! — Gael Soares me cumprimenta primeiro,
porque intensificou as passadas. — Quanto tempo, hein?!
— Oi, Gael! — Abro os braços, deixando que ele me abrace
rapidamente. Pelo calor, nossos corpos ficarão suados rápidos
demais. — E sim. Me desculpe, não sou muito boa mantendo
contato.
— Ficarei por perto... Agora que você e o Mika namoram. —
Gael pisca. E pelo seu tom de voz, ele sabe que tudo não passa de
uma mentira. Quando me solta, ele se vira na direção de Allura. — E
você é?
— Allura Guispe! — Ela estende sua mão na mesma hora,
sorrindo cordialmente. — A melhor amiga.
— Eu não conhecia você — Gael lamenta, enrugando o rosto.
— E por quê?
— Estava viajando a trabalho, mas se você se mantiver por
perto, pode ter certeza que eu também não te conhecia. —
Descarada, ela oferece o colete laranja para ele. — Essa cor
significa que vamos fazer a ronda pela praia. Se importa?
— Você vai junto? — dispara, interessado.
— Sim.
— Com certeza não me importo — Gael sorri de lado,
pegando o colete lentamente da mão dela.
O espaço se torna um pouco pequeno, porque eles estão
dando um em cima do outro de maneira explícita. Ao meu lado,
Mikael e Pedro acabaram de se aproximar.
— E aí — Mikael me cumprimenta friamente. Ele não está
usando seus óculos redondos.
— Oi — murmuro, sem emoção.
Pedro Honduras se materializa na minha frente; ele tem a pele
negra-escura, fosca. Seu cabelo é crespo, em um corte militar muito
bem manuseado. Assim como os amigos, ele também tem brincos
em ambas as orelhas. Com a sua vinda, percebo que Gael é o mais
baixo da banda. Porque Pedro é um dos mais musculosos da
Desvio.
— Engraçado conhecer a “namorada” do Mika logo aqui —
Pedro comenta, fazendo aspas com os dedos e se apresentando
com outro aperto de mão. — Pedro — informa, segurando a minha
mão. — Não deveríamos marcar um jantar? Para nos conhecermos?
— Eu também acho — Gael se intromete na conversa. —
Georgia agora é a nossa irmã, tal qual o Mika é nosso irmão.
— Vocês não cansam? — Mikael pergunta sinceramente,
franzindo a boca.
— O que podemos fazer? — Gael indaga. — Nós amamos
quem você ama. E se a Georgia te namora, ela pode muito bem nos
namorar.
A piada me faz rir alto, enquanto Pedro compartilha do mesmo
humor que Gael.
— Não sei se funciona desse jeito. — Franzo o nariz. —
Espero que não. Lidar com um astro já é difícil, imagina com três.
— Gata. — Gael me chama. — O que precisa saber é que o
Mikael tem o cérebro, mas não a beleza. O Pedro tem a beleza, mas
não o cérebro. E eu tenho os dois! — Gael pisca novamente, já
vestindo seu colete. — Escolheu errado, Georgia. Só digo isso!
— Cala a boca, Gael! — Mikael e Pedro pedem, ranzinzas.
Ao meio de risadas minhas e de Allura, o humor se cessa
rapidamente com a chegada de Bernardo Vincentino. Os três
assumem um silêncio desconfortável e gutural, mas é Pedro quem
se sente um pouco responsável em tentar manter as coisas
controladas.
— Oi — Bernardo diz na minha direção. — Bom te rever,
Georgia.
— Igualmente, Bernardo — digo, sorrindo sem mostrar os
dentes.
São nesses segundos que conseguimos ouvir as ondas
baterem contra a areia, quebrando-se naturalmente. Reparamos nas
vozes das pessoas, ansiosas para começarmos logo. É bastante
constrangedor presenciar este momento e, pela maneira que o
assunto morre, Bernardo não imagina que Mikael e eu somos
apenas uma farsa. E nem poderia saber, já que um dos motivos é
ele.
— Vamos começar? — Allura pergunta de repente. Ela
entrega os coletes que restam para os meninos. — Os coletes são
divididos em cores, para podermos entender as tarefas. Laranja é
vistoria, verde é manutenção e vermelho, lixo.
Bernardo está com o colete vermelho, o que significa que ele
participará do maior grupo da praia. Enquanto Allura, Pedro e Gael
ficarão no laranja.
E Mikael e eu no verde.
Penso que Bernardo se recusará a cooperar, mas ele apenas
veste o colete, agradece Allura superficialmente e se afasta de nós,
se aproximando de outros voluntários do seu grupo. Mas já é tarde
demais, o clima leve entre nós praticamente se esgotou e estamos
sem jeito, sem saber o que fazer. Principalmente Allura e eu.
— Vamos — informo Mikael, assim que o líder da equipe
verde, o Marcos, ressoa fortemente com um apito para chamar
nossa atenção. — Nós vamos andar pela praia, parando de quiosque
em quiosque para fazermos alguns reparos.
— Vamos logo — Mikael confirma, começando a caminhar
sem mim.
Fico alguns passos para trás, pensando em todas as maneiras
que poderei assassiná-lo sem ir para a prisão por isso.
— Você quem escolheu namorar ele — Gael provoca,
passando os braços musculosos por cima dos ombros de Pedro. —
Boa sorte.
— Ainda dá tempo de mudar de namorado de mentira e
escolher um de nós! — Pedro abre um sorriso esbelto.
Abro um sorriso, porque eles apenas querem que eu me sinta
à vontade. Mesmo que eu saiba, porventura, que Pedro tem um
relacionamento aberto com uma modelo muito famosa.
— Com certeza, vou pensar sobre isso!
Aceno para eles e mando um beijo para Allura, afirmando que
a encontrarei novamente aqui, na mesma tenda, daqui a duas horas.
Caminho seguindo o líder, um homem de estrutura alta e potente,
que não deve passar da casa dos quarenta anos. Todos os
voluntários de colete verde-neon fazem o mesmo, começando a
primeira caminhada.
Paramos no primeiro quiosque um quilômetro depois.
O comerciante, um vendedor de drinques e bebidas, não
conseguiu trabalhar ontem, porque a maior parte do teto do
estabelecimento desabou e isso lhe deu um prejuízo de um dia
inteiro sem trabalho.
A maioria dos voluntários está refazendo o teto do zero, com
madeiras novas, graças às doações de pessoas que não
conseguiram comparecer. A outra parte está fazendo pequenos
reparos na tintura do quiosque na parte de fora, enquanto Mikael e
eu estamos na de dentro, retocando o tom das paredes e das artes.
O quiosque é pequeno e concentrado, dentro dele há espaço apenas
para uma cozinha compacta, três janelas em diferentes focos e
quatro a seis mesas para clientes.
Estou muito concentrada pintando uma margarida amarela
desbotada, que ganhará sua cor e vivacidade novamente, enquanto
escuto um bocejar. Por entre meus ombros, consigo vê-lo atrás de
mim, costas com costas, fazendo sua parte.
Mikael está retocando uma flor azul, perto do micro-ondas.
— O jantar de elenco foi bom? — puxo assunto, apenas para
matar o tempo.
O calor é escaldante.
— Ótimo — simplifica. — Você deveria ter ficado.
— Não estava me sentindo muito bem.
E só, não dizemos mais nada.
Pela janela ao meu lado, a equipe vermelha passa recolhendo
resíduos de embalagens pela praia. Bernardo está excluído do
restante, talvez por escolha própria. Ele segura um saco de lixo
aberto e pega com suas próprias mãos tudo o que encontra.
Não esperava vê-lo hoje e, com certeza, não tão... Distante.
Quando Mikael me disse que Bernardo Vicentino era um
babaca, eu realmente acreditei. Porque a visão geral da mídia sobre
ele não mente. Um grande briguento, que se mete em discussões
superficiais e que nunca parou em um relacionamento na vida. Sai
com modelos, atrizes e cantoras, mas nunca sossega. Aparece em
colunas de revistas, constantemente. Seja por estar transando em
público ou saindo de boates caríssimas apenas de manhã.
Quando o conheci, há seis anos, Bernardo perguntou se eu
queria ir para o apartamento dele conversar melhor. Quando eu o
recusei, ele encarou a negativa como um “Insista, por favor” e me
enviou algumas mensagens me convidando para eventos, festas e
shows. Quando percebeu que eu jamais responderia, desistiu.
Pensei que hoje ele fosse me oferecer alguma piadinha de
mau gosto, ou que fosse debochar da iniciativa em geral, mas não. E
isso ainda está me deixando intrigada. Um babaca jamais perde a
oportunidade de ser um babaca.
— Não acha que ele parece sozinho? — pergunto
sinceramente, me apoiando na janela, enquanto seguro o pincel
entre os meus dedos.
Mikael faz uma pausa e se aproxima de mim, apoiando-se
ombro a ombro, no parapeito.
— Ele é um traidor — diz, rude. — É isso o que os traidores
merecem, Georgia.
— Não pensa em conversar com ele?
— Para ouvir o quê, exatamente? — Mikael me encara de
lado, começando a ficar irritado. — Sobre todos esses meses que ele
me enganou? Não, obrigado. — Ele se distancia da janela. — Estou
muito feliz sem ele por perto.
Mikael parece tudo, menos feliz.
— Se você diz... — finalizo a conversa, voltando para perto da
margarida.
— Vamos mudar de assunto — insiste, entredentes.
— Ok — debocho. — Que bom que me encontrou na praia.
Concha Amarela é enorme!
— E tem como não te encontrar? — rebate. — Seu cabelo é
azul.
Mikael termina de retocar a flor e bate com os dois dedos na
aba do meu boné, sorrindo sugestivamente. O ato, para ele, é
cômico e provocativo. Para mim, é irritante ao extremo, pois erro
prontamente as linhas da margarida.
— Filha da puta — sibilo, analisando a linha branca em
questão fugindo do círculo perfeito do desenho.
— Foi mal — solta, tremendo de rir.
Não sei explicar, mas decido que irei fazer algo. Seguro muito
bem a tinta na minha mão e mergulho o meu pincel na branquitude
da composição. Quando consigo o que quero, avanço em Mikael,
deixando sua regata em um estado de calamidade graças à tinta.
— Ah, não — Mikael aponta na minha direção.
— Você que começou! — Aponto o pincel para ele. — Não
ouse revidar!
— Foi apenas um traço, você estragou a camiseta inteira!
Cruzo os braços debochadamente.
— Allura costuma dizer que eu não sei brincar.
— Allura tem razão!
Mikael pega sua própria tinta, derramando na minha roupa
inteira, a começar pelo busto. A tinta fresca e azul mancha a minha
camiseta amarelo-escura e consigo sentir cada parte da minha
barriga entrar em contato com a temperatura baixa da tinta. A
mancha nunca sairá.
Nunca.
— É bom? — Ele se aproxima, sarcástico.
— Não sei... — continuo parada. Paralisada, basicamente, na
mesma posição. — Me diz você.
Derrubo a tinta branca em sua calça jeans. Com o restante,
faço questão de mergulhar os meus dedos no fundo da lata. Com as
mãos sobrecarregadas, me aproximo dele, até manchar todo o seu
rosto. Aperto meu punho em suas bochechas e em suas pálpebras,
tatuando temporariamente a minha palma em sua pele.
Não dou tempo de Mikael reagir e abro a lata seguinte, a
vermelha, derramando em seu cabelo, sem piedade. O coque se
desfaz, trazendo os fios para frente. Minha gargalhada é alta e
afetada, porque o prazer em contra-atacar é imenso. Destemido em
me conter, Mikael me agarra pela cintura, posicionando suas mãos
em lados opostos. Ele me prensa contra o balcão da cozinha e retira
a lata da minha mão. Sua perna, entre as minhas coxas, me deixa
imobilizada. Completamente. Ele afasta a cortina de fios vermelhos
do rosto e posso jurar que suas íris juram vingança.
A energia caótica que nossos olhos são capazes de transmitir
são responsáveis pelo nosso fuzilamento. Posso jurar que
poderíamos nos queimar apenas com esses olhares, mas não abaixo
a guarda. Apesar de sentir vontade de rir de como ele parece ridículo
neste momento, também estou furiosa pela sua mania desastrosa de
estragar absolutamente tudo.
Ele se estica por cima do meu corpo e pega a próxima tinta,
laranja para ser exata. Me debato e o empurro, mas ele me segura,
entre seus risos altos, continuando com a chuva de tinta contra a
minha pele quente. A maioria escorrega e desliza pelo meu busto,
mas a minha raiz é protegida pelo boné.
Grito alto, inconformada com sua força, e consigo o empurrar
para longe, piscando de mau jeito.
A guerra começa segundos depois, lata atrás de lata, pincéis
voando na direção um do outro, até que os nossos passos se
formem no piso do quiosque, causando um barulho gigantesco.
Quando consigo agarrar a camisa de Mikael, porque planejo
socá-lo no rosto, um grito me assusta por inteiro.
— O que está acontecendo aqui?
Assustada, tomo distância dele, tentando me recuperar.
Escorrego diretamente no chão, sentindo meu boné pesar graças à
tinta fresca que começará a secar em breve. Mikael se mantém em
pé apoiando-se na bancada, mas não parece contente.
Ao nosso redor, todos da equipe verde se espremem nas
janelas para enxergar o que está acontecendo. O líder, Marcos, está
com as mãos na cintura. Os olhos latejando de ódio e fúria.
Me levanto sozinha, me apoiando no balcão.
A vergonha estampa as nossas faces, mas não parece
adiantar de nada.
— Olha, eu... — Mikael começa.
Mas Marcos o interrompe com a mão erguida.
— Nem começa, garoto! — pede, feroz. — É exatamente o
que vocês são. Duas crianças! — Ele respira fundo. — Anda. Voltem
para suas tarefas! — grita com os demais.
Marcos anda apressadamente até as janelas e as fecha,
todas. Uma por uma. Para evitar que os bisbilhoteiros continuem por
perto.
— O que pensam que estavam fazendo? — quer saber.
Sussurrando assustadoramente. — Que coisa mais infantil e
imprudente. O homem dono deste comércio não trabalhou o dia
inteiro graças às chuvas, que destruíram o bem mais precioso dele.
E vocês o usaram para começar uma guerra estúpida de tinta?
Levo as mãos ao redor do meu corpo, sentindo todo o meu
corpo ficar quente de vergonha e receio. Não pensei em nada disso,
apenas em revidar, revidar e revidar, até vencer. O quê, exatamente?
Não sei explicar. Não pensei nem por um segundo. Se tivesse feito
isso, talvez não estivéssemos ouvindo Marcos despejar uma bronca
em nós.
Uma bronca necessária, lógico.
— Desculpe — Mikael pede, juntando as mãos na frente do
corpo. — Eu faço questão de pagar por tudo. Todos os recursos
usados...
— Claro — Marcos debocha. — Porque vocês, famosos,
acham que podem destruir tudo que quiserem e um cheque irá
resolver facilmente. É muito simples, mesmo! Como não pensei nisso
antes, hein?
Nem por um momento sinto raiva de Marcos, porque ele está
inteiramente certo. Se fosse eu no seu lugar, talvez eu falasse coisas
piores.
— Também faço questão de pagar — murmuro, colocando as
minhas mãos para trás. — Peço desculpa, Marcos. Isso não vai se
repetir!
— Claro que não... — brada, ainda mais irritado. — Claro que
não vai, porque...
Sua fala é interrompida, porque alguém abre a porta do
quiosque. É um homem de aparência cansada e ressentida. Sua
testa está molhada de suor e sua pele é bronzeada por inteiro, quase
danificada pela falta de cuidado. Ele tem entre quarenta a cinquenta
anos, e parece perdido. Marcos finge um sorriso cordial, tentando
esconder a ira. Pela maneira que eles se cumprimentam, entendo
rapidamente.
É o dono do ambiente.
Ele está usando roupas molhadas e surradas, demonstrando
que vem trabalhando duro há horas. Todo meu corpo fica abafado e
quero me desculpar na mesma hora.
Não sei onde estava com a cabeça e me sinto a pior pessoa
do mundo.
— O que aconteceu aqui? — Ele pergunta para Marcos. — As
tintas caíram na cabeça dos garotos?
Marcos ri sem humor.
— Quem me dera — Marcos resmunga. — Mikael, Georgia,
este é o Serafim, o dono do quiosque.
— As tintas estavam muito altas, filha? — Serafim questiona
diretamente para mim.
Sua ingenuidade me fere rapidamente.
— Não. Desculpe. Foi tudo culpa minha! — Me apresso,
dando alguns passos para frente. — Acabei... Brincando de guerra
de tinta. Me desculpe, seu Serafim. De verdade...
— Foi culpa minha também! — Mikael se adianta.
— Os passos... — Ele aponta para o chão. Os dedos
trêmulos.
— Seu Serafim... — tento.
— Eu gostei! — diz prontamente. Sorridente.
Marcos engasga, Mikael franze a testa e eu quase me apoio
na parede mais próxima.
— Parece que duas pessoas estavam dançando na cozinha.
Olha! — Ele aponta, rindo.
— Mas as flores... — Mikael dispara.
— Dá para consertar, mas deixem o chão assim. Eu gostei!
Foi ideia sua, Marcos? — questiona. Marcos, o líder, não sabe o que
dizer. — Enfim, não vim aqui por isso. Só preciso dar uma palavrinha
com o Marcos, licença!
Furioso com o acontecimento, Marcos diz:
— Não vou precisar mais do trabalho de vocês. Podem voltar
para a tenda! — decreta.
Mikael e eu assentimos ao mesmo tempo, sem coragem de
olhar um para o outro. Não me movo do lugar, porque não consigo.
Realmente não consigo.
Marcos e Serafim bloqueiam a passagem e conversam do
lado mais afastado do estabelecimento. Enquanto Serafim discorre
bastante, Marcos nos encara por cima dos ombros algumas vezes,
pensativo. Ele se comunica com alguém em um walkie talkie quando
Serafim termina de falar e o comerciante aparenta estar apreensivo.
Quando recebe uma resposta, Marcos pede licença para Seu
Serafim e retorna para perto de nós.
— Decidi o que farei com vocês — proclama. — Vão se lavar
no mar. Vou colocá-los em outra missão! — avisa prontamente. —
Se vocês destruírem tudo novamente, podem ter certeza que nunca
mais pisarão nessa ONG. Não me importo se vocês são famosos,
ricos e bem-sucedidos, não se brinca com o que é de outra pessoa
como se não fosse nada. — Marcos olha para cada um de nós com
atenção. — Estão avisados?!
— Sim, senhor. — Mikael e eu falamos em uníssono.
— Anda. Vão se lavar, sairemos daqui cinco minutos.
Ele sai em disparada, descendo os degraus da escada da
saída às pressas. Seu Serafim volta para perto de nós, intrigado. Ele
nota que apenas a margarida foi danificada e alguns respingos de
tinta decaíram na pia, mas não parece se importar.
— Agradeço a ajuda de vocês — emenda. — Mas espero que
me ajudem um pouquinho mais!
9: iogurte natural
INGREDIENTES: leite integral, fermento.

Estou tão envergonhada que mal consigo olhar para Mikael.


Na realidade, evito pensar em olhar para o meu próprio rosto. Não
sou uma pessoa má, mas me sinto terrível. Por mais que o próprio
Serafim tenha gostado, não estou aqui para me divertir e agir como
uma celebridade de mente vazia que acha que o mundo inteiro gira
ao seu redor. Não sou esse tipo de pessoa, então preciso me portar
como realmente quero ser.
Estou tão furiosa que a minha garganta está seca. Mal
consigo ouvir a voz de Mikael sem antes desejar pular no seu
pescoço. Ele pensa o mesmo, porque sua expressão de morte é
capaz de me irritar mais ainda.
Com todo o meu ser, eu o odeio. O odeio por ter
simplesmente me feito entrar em uma guerra estúpida de tinta. Odeio
tudo daquele momento. Odeio como ele está em silêncio. Odeio
como esquecemos aonde estávamos.
Odeio, odeio, odeio, odeio.
Quando consigo sair de perto de Marcos, desato a andar pela
areia, chutando os pequeninos grãos para todos os lados,
extremamente focada em chegar à beira do mar logo. Todo o meu
corpo cheira à tinta e é quase inevitável saber que ficarei suja pelo
restante do dia.
Atravesso o caminho até o mar pisando firme. As pessoas ao
redor estão fingindo que estão concluindo suas tarefas, mas estão
fascinadas pela guerra ocasionada “pelo amor”. Tudo isso me frustra
e só penso em afogar Mikael na água com as minhas próprias mãos.
Os fotógrafos que contornam a rua, a poucos metros, acabaram de
chegar, então apenas tiram fotos nossas, sujos de tinta, dos pés à
cabeça. Não me importo com nenhum deles.
À beira das ondas, estou frustrada o suficiente para desejar
me livrar logo de todos os vestígios daquele momento. Retiro meu
colete, meu boné, meus chinelos e minha mochila, os deixando na
areia. Deixo que a água chegue até os meus tornozelos
primeiramente e só depois decido me aprofundar, caminhando até as
ondas maiores.
Mergulho na água salgada, sentindo a tinta se desprender do
meu corpo facilmente. Uma poça de água colorida se firma ao meu
redor quando retorno para a superfície. Com certeza, a tintura
azulada dos meus fios está danificada de algum jeito. Então terei que
retocar cedo ou tarde.
Mikael ainda não entrou no mar, mas está se livrando da
regata, jogando-a de qualquer jeito em sua mochila. Ele retira os
jeans e fica de cueca, jogando-se nas ondas em seguida. Me
encolho por um momento, sentindo a brisa calorosa e gostosa de
mais um dia da primavera. E, quando o cantor emerge, ele está na
minha frente. Alguns pontos de vermelho ainda brincam em seus
cílios, mas ele rapidamente os lava.
Nos fitamos por alguns segundos, o suficiente para cada um
de nós proferir diversos xingamentos mentalmente.
Só me afasto dele porque não quero mais confusão e,
definitivamente, não quero ter que relembrar que, para a maioria das
pessoas, ainda somos um casal.

Na frente do quiosque, um grupo eclético se mistura. Coletes


laranjas, vermelhos e verdes estão presentes, não todos, mas muitas
pessoas foram selecionadas para a próxima missão. Todos
misturados.
Segurando a minha mochila pelas alças, estou do lado de
uma garota que não para de sorrir para mim. Meu corpo está
secando-se naturalmente, graças ao vento da praia. Mikael está do
lado do grupo, de braços cruzados, prestando atenção nas
informações que Marcos despeja em nós como um general.
Ele está sem camisa, mas usa a calça jeans, já que a tinta
secou por inteiro.
— Vou explicar essa missão apenas uma vez — avisa. —
Alguns de vocês vão continuar aqui, outros vão me acompanhar até
o fim da praia. A casa do Seu Serafim também sofreu com a chuva.
Com as doações, conseguimos consertá-la até o fim do dia. Isso
quer dizer que passaremos o dia todo por lá. — Marcos anda de um
lado para o outro, ditando passo a passo. — É um momento sério e
delicado. Quero respeito, quero que possamos fazer de tudo para
ajudar a família dele. Qualquer brincadeirinha... — Ele me encara,
frio. — É corte na certa!
Seu Serafim está logo ao lado, esperando o momento de
poder guiar a nova leva de pessoas para o outro lado da praia.
Ao silêncio de todos, Marcos respira fundo.
— Vamos lá! — Bate palmas, indicando para seguirmos
Serafim.
A caminhada começa agitada, com as vozes se intercalando e
jorrando dúvidas sobre o que realmente aconteceu.
É somente me afastando o máximo possível, que entendo que
a maioria dos quiosques foram detonados com a chuva. Sempre que
passamos perto do comércio, um adorável grupo de voluntários já
está consertando tudo o que há de necessário.
Só paramos de andar quando a praia termina em uma trilha
particular por entre a mata e as rochas. É quando precisamos fazer
uma fila única e seguir andando. Leva mais ou menos cinco minutos
até chegarmos em uma propriedade grande e paradisíaca, bem perto
das rochas e da praia, quase beirando às ondas.
A casa é feita de tijolos e madeira e deve possuir dois
andares, muito bem distribuídos em diversos quartos e janelas. As
cores são misturadas, a casa não tem uma cor fixa e nem certeira;
são apenas remendos e remendos, até fazerem-na uma explosão de
opções. Tem um pequeno cercado onde há galinhas ciscando,
enquanto uma pequena trilha mais à frente indica um píer, o barco da
família de Seu Serafim e mais algumas rochas, onde duas crianças
estão saltando direto para o mar.
Os adultos presentes conversam sobre os estragos; uma das
paredes de madeira caiu e será substituída por uma de tijolos, a
tintura será refeita e os quartos precisam de uma grande vistoria.
Muitos dos pertences pessoais da família de Seu Serafim foram
perdidos e precisam de reposições. A chuva, desse lado, foi
extremamente cruel.
Marcos divide as tarefas; a maioria ficará encarregada de
consertar o buraco que o telhado causou na cozinha da família,
enquanto a outra metade pode se dividir por contra própria,
buscando atender as necessidades expostas.
De primeira, eu ajudo a enxugar o piso do segundo andar, de
cada quarto. Uso rodos e baldes e me surpreendo por haver mais de
dez quartos na casa. Todos ocupados, com decorações intimistas e
coloridas. Todos possuem um quadro pintado à mão, de cada
membro da família. Conserto os brinquedos das crianças e devolvo
os livros para as prateleiras dos adolescentes. O aroma da maresia
bate de frente contra o meu nariz, é impressionante como o ambiente
marítimo é espetacular. Longe das nuvens cinzentas, Madre Rita é
uma cidade encantadora. E até mesmo com o clima tempestuoso,
consegue ser encantadora.
No último quarto, do último adolescente da casa, recolho os
gibis do chão, me aproximando da janela mais próxima. As crianças
se multiplicaram, esbanjando a inocência da idade, se atirando das
rochas diretamente para o mar. Algumas usam roupas comuns,
outras trajes de banho e duas, uniformes de uma escola.
Limpo uma gotícula de suor da minha testa, respirando fundo.
Até agora o trabalho foi redobrado. Graças às árvores ao redor, a
casa não está afundada pelo calor. Muito pelo contrário, ela é fresca
e arejada. Termino a vistoria no quarto de um garoto chamado Lucas
e fecho sua porta. A correria na casa é universal, todos ajudam no
que podem.
Ao final do segundo andar, bem perto de uma pequena sala
de convivência, há um buraco enorme no teto. Nessa altura do
tempo, deve ser entre três a quatro horas da tarde, o sol deve estar
no seu auge. Consigo ouvir perfeitamente bem as instruções de
Serafim, no teto, enquanto dispõe algumas telhas para cobrir o
buraco.
O sol invade pela fresta nada discreta e eu subo meu olhar, a
tempo de ver Mikael apoiado em uma das telhas.
Ele está sem camisa e amarrou a regata ao redor da testa,
para se livrar dos fios teimosos e que devem ter grudado na pele no
primeiro índice de transpiração. Suas tatuagens ganham bastante
destaque e sua pele branca já está queimada. O que me impressiona
é que Mikael está rindo; se divertindo ao ouvir uma história vinda do
próprio Serafim.
— Vou começar a cobrar por ficar me espiando — ele diz,
sorrindo para ninguém em especial, mas não é para mim.
Ele coloca as mãos na cintura e olha para baixo, para dentro
da casa.
— Não, obrigada. Foi apenas uma amostra grátis.
Minha resposta é capaz de selar uma paz passageira entre
nós. Ele está cansado e feliz em ajudar verdadeiramente. E eu
igualmente.
— Água? — ofereço, pegando uma garrafinha de água extra
que me deram há poucos minutos, em uma das vistorias gerais. —
Aí em cima não deve ser fácil.
— Água — garante, apenas repetindo a palavra.
Pego a garrafa gelada da minha mochila e atiro para cima.
Mikael pega com as duas mãos, se equilibrando para não cair do
buraco. Abre a garrafa e bebe da forma mais desajeitada possível,
fazendo o líquido cair pelo seu corpo, acentuando os músculos. Ele
agradece com uma piscadela.
Faz algum tempinho que Mikael retirou o curativo da sua
sobrancelha, mas ainda resta um pontinho avermelhado que precisa
cicatrizar. Ao menos a marca da violenta briga com Bernardo está
indo embora.
— Ei, vocês dois! — Marcos aparece, vindo contra mim. Ele
está segurando sua prancheta e já está nitidamente exausto pelo dia.
Ao escutar sua voz, fico em alerta.
Eu não fiz nada!
— As pessoas que vieram com a gente pela manhã estão indo
embora. O turno delas acabou. — Marcos arqueia a sobrancelha. —
Vocês vão ficar ou dar lugar a outro voluntário? — Seu tom deixa
explícito que, se fôssemos embora, ele não iria se importar.
— Não, vou ficar — anuncio. Penso na cozinha, como há uma
leva de voluntários preparando lanchinhos para os que estão
pegando o trabalho braçal. Também penso nas paredes que
precisam ser pintadas e nos remendos em algumas roupas. — Não
há problema.
Marcos enruga a boca.
— E você? — Ele sobe o olhar para Mikael. — Fica ou vaza?
— Fico — Mikael responde apressadamente. — Aqui está
legal.
— Legal? — Marcos pergunta em dúvida e, ao mesmo tempo,
muito desconfiado. — Acha divertido...
— Não foi isso o que eu quis dizer, senhor... — Mikael dispara,
tentando consertar sua fala. — Só estou dizendo que não me importo
em ficar. Eu quero ficar!
A resposta o agrada, mas não por muito tempo.
— Ainda estou de olho em vocês dois, Devante e Pessoa —
avisa, pegando seu walkie talkie do bolso lateral. — Sandra, eles vão
ficar...
Marcos passa por cima sem desviar, então sou eu quem
preciso me afastar dele.
— O cara é sinistro — Mikael diz do teto.
— Não acho. — Coloco meus olhos no astro da música
brasileira novamente. — Tenho certeza que ele quer garantir que as
coisas saiam da melhor forma possível. E isso significa nos manter
longe um do outro.
— Acha que somos a receita do desastre? — Ele arrasta seu
sorriso lentamente, gostando da ideia. O ressentimento pela guerra
pela manhã não cruza mais sua face.
Dou de ombros.
— Eu certamente te empurraria desse telhado sem remorso
algum.
Ele sorri mais ainda, inflando os pulmões para retrucar, mas
desato a andar para o outro lado da residência, retornando de onde
vim.
Na escada principal, encontro algumas pessoas consertando
os degraus. Peço licença, passando perto de cada uma delas.
Uso essa “pausa” para checar meu celular e apenas constato
o que já sei.
Uma Ivy frenética atrás de mim.

26 LIGAÇÕES PERDIDAS DE IVONE TELESCO

Apenas lhe envio uma mensagem garantindo que estou bem e


decido tomar a minha última vitamina do dia. Assim que engulo a
pequena cápsula verde-escura com a pouca água que ainda me
resta, decido ajudar na cozinha. Os voluntários estão fazendo
sanduíches em forma de peixe para as crianças.
É somente naquele momento que entendo que o ato de
cooperar não é apenas estar ali e seguir as ordens de Marcos, é
cuidar de cada pessoa que ali reside e espera com paciência que a
casa esteja nova em folha pela noite. A cozinha é festiva e animada,
mas tenho certeza que nem todos os mutirões são parecidos.
Enquanto sirvo a mesa das crianças, e elas chegam do mar,
enroladas em toalhas e famintas, algumas voluntárias apontam na
minha direção e sorriem, cochichando entre si. Apenas quando
termino de pôr à mesa o último prato, é que uma delas vem falar
comigo.
Ambas cheiram a protetor solar e são adolescentes. Parecem
irmãs.
— Georgia? — indaga a mais velha. — Será que pode tirar
uma foto com a gente?
— Sim, com certeza — murmuro educadamente.
Minhas mãos sempre ficam frias quando me pedem uma foto,
porque tento transparecer que isso não é problema algum. Sempre
quero demonstrar que sou tranquila e paciente, e não fria e distante
como costumam pensar. Sempre quero tratar as pessoas da melhor
forma possível, mesmo que isso, às vezes, nem sempre seja
possível.
Elas se aproximam de mim, tímidas e encolhidas, erguendo a
câmera frontal de um celular. Elas sorriem grandiosamente e eu faço
o mesmo, me abaixando um pouco por ser mais alta.
— Pronto! — a mais nova, de cabelo louro, comemora. —
Obrigada!
— Nós tiramos uma foto com o Mika também! — A mais velha
acrescenta. — Vocês dois formam um casal muito bonito. Não ligue
para os comentários!
Sua ingenuidade me comove e eu fico grata.
Claro.
Aqueles comentários.
Sobre a minha aparência, minha idade, minha carreira, minha
auto disposição em ser uma segunda versão de alguém que eles
querem ver ao lado de Mikael. Sobre como “terei” que substituir
Amanda Olivêncio grandiosamente antes de me sentir parte de
alguma coisa.
E, especialmente, sobre a cor da minha pele.
— Obrigada — agradeço. Mesmo sendo uma frase vaga,
ainda vem de duas adolescentes, então, não me alongo. — Sim,
também acho. — Sorrio largamente, oferecendo aquilo o que elas
querem.

Às sete e quinze da noite, mais uma leva de voluntários se


aproxima.
Nós, os que ficamos, oferecemos uma salva de palmas para
aqueles que foram embora, em forma de homenagem.
Na nova equipe, consigo identificar Allura, Gael e Pedro. Mas
sem sinal de Bernardo.
Minha melhor amiga se aproxima, acenando bastante, ainda
com o colete laranja por cima das vestes. Com a noite posta, a brisa
fresca do mar bate de encontro às árvores e as luzes intensas vindas
das casas, finaliza o cenário aconchegante de resort.
— Fiquei o dia todo aqui — aviso Allura, assim que ela saltita
na minha direção. — Minhas costas doem e os meus ossos estão
moídos. Mas vou ficar aqui até o final!
— Não estou tão diferente de você! — Allura esclarece. —
Nós andamos por quilômetros e conseguimos avistar uma tartaruga.
Ela estava ferida, é claro. Então acionamos o resgate. Também
encontramos dois cachorros perdidos e pássaros feridos.
— Me fala que os cachorros encontraram um lar?!
— Nós devolvemos aos donos, se é isso o que está
perguntando. — Alli me tranquiliza. — E os pássaros foram para o
veterinário.
Pedro pula nas costas de Mikael, que cai em seguida, talvez
fraco pelo cansaço. Os dois dão risada um do outro e Gael finaliza o
montinho, abrindo seus braços para que Mikael fungue sua axila.
— E como foi tomar conta de uma parte da Desvio? — Puxo
Allura para um canto, antes que Marcos designe nossas próximas
tarefas. — Eles deram muito trabalho ou são os tipos de caras que
se tornam crianções apenas quando estão juntos?
— Foi... — Allura olha para os três músicos que estão dando
muita risada. — Interessante. — E me encara, com as íris brilhantes.
— Defina — peço.
— Definitivamente, Pedro e Gael são os engraçados, mas se
focaram muito em cada missão. Algumas fãs vieram ajudar e eles
foram muito atenciosos com cada uma delas.
Muitos dos meus seguidores locais também apareceram e
isso, com certeza, me faz me sentir útil. Afinal, a fama deve ser
usada para causas nobres.
— Depois eu conversei com o Pedro e disse que quero sair
com o ex dele. Algo causal e...
— Que ex? — interrompo Alli.
— O Mikael, ué.
— Mikael e Pedro foram namorados?!
Allura Guispe me encara seriamente. Ela cruza os braços,
desacreditada.
— Cara — diz pausadamente. — Essa foi a fofoca do século
na época. Foi bem no início do sucesso deles. Lá em 2013 eles
começaram a namorar. Durou apenas um ano. Eles eram fofos e
incríveis juntos — Alli conta com muita atenção. — Depois, eles
terminaram pacificamente e Mikael começou a sair com a Amanda. E
o Pedro começou a namorar a modelo canadense-brasileira, Beatriz
Mafra. Aliás, eles estão prestes a se casar a qualquer momento!
— Como você sabe de tudo isso? — Me espanto.
— Como você não sabe? — Allura rebate.
— Meu Deus? Preciso me atualizar nas fofocas.
— Pedro e Mikael são muito amigos e não há outro
sentimento, não mais. — Ela dá uma espiada nos garotos
novamente e me encara. — Enfim, mas também passei tanto tempo
com eles, que acabei de decidir que não quero mais o Mikael e sim,
o Gael.
— Cacete — praguejo, lamentando em seguida. — Achei que
ia me livrar do Mikael.
Allura dá pequenas batidas nos meus ombros.
— Sinto muito — deseja falsamente. — Porque na minha
concepção, posso até mesmo ficar com o Pedro sem problemas.
Nós rimos alto, fazendo uma piada atrás da outra. É o
suficiente para Marcos nos encontrar e fechar a cara.
— Guispe! — grita. — Pessoa — troveja, cada vez mais alto.
— Vocês ficam com as pinturas do andar de cima. Andem!

O tom de amarelo no quarto dos gêmeos é fantástico.


O teto foi consertado e a casa está passando por seus últimos
ajustes. Allura está no quarto da frente, cantando a todo vapor um
dos sucessos da Desvio, chamada “Garota Internacional”.

Você me encanta
Quando seu corpo arranha
Garota internacional
Mergulhada em um desejo colossal

A música não é das melhores, mas na voz de Allura me faz rir


muito.

Tudo o que eu quero


É você
Ah, amor
Com as intenções que eu tenho
Você saberá que sou o tal
Garota internacional

— Está ficando ótimo!


Levo um susto por ver Seu Serafim no quarto dos gêmeos.
Preciso de um momento para rir e perceber que Allura não está mais
cantando.
Ele está com as mãos na cintura, olhando ao redor. Está
cansado, com sono e suas roupas estão sujas de areia, lama e tinta,
de diferentes cores. Mas não parece disposto a parar por nem um
segundo.
— Sim, vou passar apenas algumas mãos no rodapé e já
posso entregar o quarto finalizado.
— Obrigado, Georgia — pondera. — Posso te chamar assim?
— Claro, Seu Serafim. Com certeza!
Ele dá um passo à frente, analisando todos os detalhes do
quarto. Os berços postos lado a lado, os quadros de cada bebê, bem
pertinho de suas respectivas camas.
— Eles são seus filhos? — Puxo assunto, me sentando no
piso de assoalho.
— Netos — corrige, com graciosidade. — Eu só tenho dois
filhos. O Tadeu, que ajuda na pesca. E a Priscila, que mora na
cidade. Estuda enfermagem, toda chique. Você tem que ver! — fala,
feliz. — E os gêmeos são do Tadeu. A Priscila não tem filhos ainda.
— Ele para de frente pros quadros. — Aqui moram muitas famílias.
Minha irmã, minha cunhada e a minha família. Sempre cabe mais
um.
— Sua casa é linda, Seu Serafim. E está ficando mais ainda!
— Obrigado de novo! — diz, rapidamente. — A chuva foi cruel
com a gente.
— E o novo teto? É firme?
— Firme, sim! — Ele se anima. — Pode vir um furacão que eu
duvido que vai cair de novo!
— Espero que não venha nada disso — comento, risonha. Ele
também ri. — E foi o senhor que pintou todos os quadros da casa?
— questiono. — Eu reparei. Em cada um deles...
Neste momento, não estou mais pintando, apenas prestando
atenção nele.
— Fui eu sim, cada um deles! — Se orgulha. — Gosto de
pintar desde moço. Fiz vários desses quadros para a minha esposa.
A Priscila tem um monte, diz que eu preciso mostrar em algum
museu... Mas... — Ele suspira. — Não é mais meu tempo, não.
— Por que não? — Franzo a testa. — Eles são ótimos!
— Porque preciso trabalhar — responde. — E a arte não é
vista como trabalho sério. Não como as pessoas que tem um
emprego de terno e gravata são. Nós somos os vagabundos,
preguiçosos... Ou outras coisas piores.
— Mas...
— Eles não investem em nós, Georgia. — Seu Serafim dá uns
passos para trás, começando a sair do quarto. — Eles querem nos
esquecer, preferem acreditar que o talento vem da cidade grande.
Mas eu digo que não, já vi muita gente talentosa precisando escolher
entre comer ou fazer o que ama. E, às vezes, fazer o que nós
amamos não alimenta uma família.
O gosto amargo da realidade me atinge rapidamente.
Seu Serafim está conformado com o que diz, seu
ressentimento banha todas as suas palavras, mas não parece querer
fazer nada a respeito. Ao contrário de mim, que está quase
montando uma revolução apenas para deixá-lo no topo, mas entendo
cada sílaba que ele dispõe ao meu redor.
Os objetivos podem ser os mesmos, mas não as
oportunidades. Tampouco os privilégios. Para uma garota negra,
estar onde eu estou significa muita coisa, é saber que a minha voz
será ouvida — e silenciada. É saber que muitos dos personagens
que me oferecerão serão caricatos, mal desenvolvidos e, muitas das
vezes, irrelevantes para uma trama de qualidade. É uma montanha-
russa de extensas emoções, mas sei que não posso usar minha
fama e meu nome de má fé. Apenas um errinho meu será capaz de
me acompanhar uma vida inteira.
Um erro vindo de Mikael, por exemplo, ocasionará em milhões
de seguidores sedentos por mais capítulos de sua trama impessoal.
Sou de um bairro comum de São Paulo, nem muito perigoso,
nem muito pacífico. Meus pais trabalharam duro como professores
na rede pública para pagarem aulas de teatro quando notaram que
eu estava realmente muito tímida e retraída na nova escola. Uma
diretora de elenco que ofereceu uma oficina de exercícios me
convidou para fazer um teste em outro bairro, no Brooklin. Quase
uma viagem de quarenta minutos de onde eu morava.
O papel era pequeno, mas com um destaque relevante em
filme feito para a televisão, diretamente dos estúdios Farol. Eu seria
a filha caçula de um banqueiro, a versão infantil da protagonista.
Meus pais trabalhavam o dia todo, em três escolas diferentes
cada.
Mas conseguiram que a vizinha me levasse. Eles pagaram a
gasolina e ela dirigiu seu Corsa 99 pelas ruas de São Paulo,
cantando Rita Lee a todos os pulmões e me desejando sorte. Não foi
necessariamente um privilégio, mas definitivamente foi uma
oportunidade que Seu Serafim jamais teve. Mesmo com apenas
cinco anos, meus pais acreditaram em mim e moveram céus e terra
para que eu fosse até o teste.
O apoio para a arte também começa dentro de casa e, às
vezes, é o único que temos.
— Seu Serafim... — o chamo. — Quero pedir desculpas
novamente sobre o seu quiosque. Mesmo você gostando do que
fizemos, ainda não é desculpa.
— Tudo bem, Georgia! — Ele me acalma gesticulando com as
mãos. — Só pelo fato de você estar aqui... Ainda estar aqui, já diz
muita coisa da sua índole. Quando alguém erra e sequer reconhece
o que fez, essa pessoa ainda não está nem preparada para receber
um perdão. Quem dirá fazer algo a respeito.
— Obrigada — falo, suavemente. — E você ainda pinta? —
Cruzo as minhas pernas, em posição de yoga, muito atenta ao que
ele diz.
Ele sorri, saindo no corredor.
— Todos os dias! — decreta, orgulhoso. — Ainda mais
quando tem um novo membro na família. Todos merecem se
reconhecer na arte!
10: panqueca doce
INGREDIENTES: farinha de trigo, leite, manteiga, açúcar, fermento, ovo, sal.

Às nove em ponto da noite, estou limpando minha testa do


suor que se acumula da churrasqueira. Terminei tudo o que tinha
para fazer, absolutamente tudo.
Os demais voluntários estão sentados ao redor de uma mesa
quilométrica e distribuídos em outras, como se estivéssemos em
uma festa. A noite está cada vez mais feroz e a mata se afunda na
escuridão total. Lamparinas e lâmpadas foram penduradas na área
de lazer da casa da Família Leão. A maioria das crianças foram
dormir e agora é um momento de descontração total.
Até mesmo Marcos está sorrindo; ele está sentado à maior
mesa, desfrutando de uma cerveja gelada longneck, enquanto come
peixe fresco e frito. Assim como todos, ele não vê a hora de chegar
em casa e tomar um longo banho, mas, antes disso, ficará no jantar
que Serafim Leão está oferecendo como forma de agradecimento.
Poucos voluntários estão aqui, em comparação a todos que
estiveram ajudando nas últimas horas. Eu diria que estamos entre
quinze voluntários, contando comigo.
Minha barriga ronca muito, avisando que estou faminta.
Minha última refeição foi um sanduíche de queijo com
presunto, às duas horas. Agora, meu corpo todo pede por um
alimento.
Pego um prato de plástico, aqueles típicos de churrasco, e
entro na fila para pegar a carne que cheira deliciosamente bem. Seu
Serafim, que comanda a churrasqueira, coloca alguns pedaços de
carne no meu prato, mas insiste que eu coma o peixe frito, que é
especialidade da sua mulher, Telma. Não recuso nada e até deixo
Telma me servir com bastante arroz branco.
Me acomodo em uma mesa isolada e vazia, nos fundos,
porque quero descansar a minha mente. E também porque quero
que Marcos e os outros se sintam à vontade. A música que toca é
apenas ambiente, porque a algazarra e as conversas generalizadas
fazem o suficiente para nos deixar em um clima gostoso.
Minha cabeça está leve e área, consequências diretas do
Meniere e de tantas horas sem comer nada. Me sinto mais fraca que
o habitual, mas a sensação começa a passar quando mordo o
primeiro pedaço do peixe.
— Posso me sentar aqui? — Mikael se aproxima. Ele
também segura seu prato de jantar e está com o corpo todo
bronzeado pelo sol. O que é uma sorte, pensei que ele ficaria
parecendo um camarão tostado. — Ou não quer companhia?
— Promete que vai comer em silêncio? — pergunto, subindo
meus olhos para ele.
— Não prometo nada. — Mikael dá a volta na mesa,
sentando-se no banco ao meu lado.
A mesa é feita propositalmente para abrigar um piquenique, é
uma sorte estar vazia. Mas não entendo por que ele escolhe se
sentar justamente do meu lado. Seu prato se junta ao meu em cima
da madeira e ele passa as pernas pelo assento, se aninhando
confortavelmente.
— Eles cozinham pra caramba! — Mikael elogia o churrasco
e o peixe, comendo tudo ao mesmo tempo. — Vou repetir com
certeza!
Como em silêncio, me concentrando para não deixar a
Síndrome se manifestar. Não que eu tenha controle de alguma
coisa, de fato, não tenho. Mas não quero passar mal aqui. Não aqui
e não agora.
Mikael continua a tagarelar, sem se importar com a minha
falta de interesse — e de fala.
Demora apenas cinco minutos para eu me sentir melhor e
começar a comer com mais propriedade. É o momento em que vejo
Allura, Pedro e Gael na fila para pegarem seus respectivos jantares.
— Como eu não sabia que você já foi namorado do Pedro?
Mikael estava falando sobre escrever uma música nova,
então a mudança de assunto o faz enrugar a testa. Ele para de
mastigar, surpreso pela abordagem e olha para mim e para Pedro
duas vezes, antes de voltar a mastigar e enfiar um pedaço de carne
deliciosamente tostada na boca.
— E isso nem segredo é — diz, mergulhando o garfo no arroz
branco. — Tem fã que até hoje pede para que voltemos.
— Achei fofo, só. É muito legal saber que vocês são amigos.
— Melhores amigos — Mikael me corrige, apontando a faca
na minha direção. — Sempre fomos os melhores. A minha avó é a
melhor amiga da avó dele. Crescemos juntos. E, quando
percebemos que estávamos apaixonados, só foi uma extensão
desse amor.
— Uau. — Me surpreendo, indo um pouco para trás. — Isso
foi legal demais vindo de você.
— Eu sou legal, Georgia! — Ele sobe os ombros. — Não com
você, é claro. Mas com as outras pessoas, sim.
— E depois? — Corto o peixe e levo até a boca. — Por que
terminaram?
— Não terminamos. O amor não termina. — Mikael olha para
Pedro, que ainda está na fila. — Nós apenas nos separamos.
Tivemos uma conversa franca sobre tudo o que queríamos para o
futuro... Depois disso, nossa relação apenas melhorou.
— Acho... Inspirador. E maduro — confesso. — Às vezes,
todo mundo pensa que términos precisam doer.
— Doeu, com certeza. Mas faz tanto tempo que, hoje em dia,
Pedro e eu apenas nos recordamos do momento com muito carinho.
— Ele dá de ombros, mastigando e falando ao mesmo tempo. —
Aliás, o cara é incrível!
— É, mesmo. — Termino de comer todo o meu arroz. Agora,
só resta a carne. — A Allura está interessada no Gael, a propósito.
— Está? — Mikael sorri de lado, adorando a informação. — E
você?
— Se eu estou interessada na Allura? — me faço de
desentendida, porque ele revira os olhos na mesma hora. — Não,
não. Ela está totalmente gamada no Gael. E ela não faz o meu tipo.
— Qual é o seu tipo, então?
— Pessoas silenciosas — cantarolo. — E Allura é ao
contrário disso.
— Pessoas? — Mikael pergunta interessado, a sobrancelha
torneada e bagunçada se erguendo com lentidão.
— Pessoas — confirmo seu pensamento.
Mikael gosta do que ouve, afirmando com a cabeça repetidas
vezes. Nosso contato é apenas quebrado quando uma voz nos
chama. Serafim caminha na nossa direção, no instante em que
ficamos em silêncio para comer mais.
— Cerveja? — Serafim oferece, já colocando duas longnecks
em cada lado dos pratos.
— Obrigada. — Sorrio, agradecendo.
Ele pisca e se afasta, continuando a servir as demais
pessoas.
Mikael geme pela felicidade em comer e abrir uma bebida
alcoólica. Ele arranca fora a tampa da longneck e dá um gole
demorado o bastante para terminar de uma vez por todas com a
cerveja.
— Não vai beber a sua? — pergunta, já de olho na garrafa
que já transpira pela temperatura baixíssima.
— Não. — Deslizo-a para o seu lado. — Pode beber.
Ele fica sem entender muito bem, mas não quero explicar o
motivo de não beber. Não hoje e não agora. Não é o meu assunto
favorito e pouquíssimas pessoas sabem — além das matérias que
vazaram por toda a imprensa, é claro.
— Me fala mais da Allura — pede, deixando a cerveja de lado
e roubando um pedaço de peixe do meu prato. Dou um tapa em sua
mão, mas Mikael apenas sorri sem remorso.
— Ela é divertida, engraçada, espontânea e sempre está
experimentando algo novo. Ela nasceu na Bolívia e veio para cá aos
dez anos, quando fizeram outra versão de Chiquititas...
— Chiquititas — dispara. — Um ícone latino-americano.
— Exatamente! — brado. — Ela é a minha melhor amiga.
Somos inseparáveis desde os treze anos. Ela é a minha pessoa
favorita no mundo. E acho que posso afirmar que eu sou a dela.
— E quais outras amigas você tem?
A pergunta me faz esboçar uma careta, porque só penso em
Ivy, e ela não é necessariamente minha amiga. Ela não foi
contratada para ser uma leal confidente e sim, uma agente. As
amizades que fiz ao longo dos anos se perderam com os trabalhos
e os papéis dos quais peguei. Os poucos que restaram não são
muito presentes por circunstâncias óbvias e plausíveis. Tem Pierre
Monteiro, o modelo, mas ele mora na Irlanda há cincos anos e
apenas nos falamos de vez em quando.
Tem Stella Almeida, a cantora, ela é incrível, mas vive na
China há três anos e não somos as melhores pessoas quando o
assunto são celulares. Todas as minhas amizades possuem anos de
convivência. Claro, apenas coleciono essas amizades porque eles
falam a maior parte do tempo.
Tem Téo Farol, mas ele vive viajando. E apesar de envolver
alguns flertes, somos realmente amigos. Muitas pessoas
desconfiam que já nos envolvemos, mas não passa apenas de um
boato bastante descabido. Ele é péssimo em manter contato, mas
sei que quando está no Brasil, sempre me visita.
E tem Allura e ela sempre fica perto de mim, pois é quase
uma tradição estarmos na mesma novela ou série.
— Não sei — respondo sinceramente, juntando as minhas
mãos no centro do colo.
— Qual é a sua última pessoa favorita, então?
— Talvez o Gael?! — arrisco. — Nos conhecemos quando
fizemos um comercial, mas...
— O que tem eu?
Gael Soares se aproxima com um sorriso enorme.
Ele se senta à minha frente, colocando seu prato cheio de
carne e peixe no centro, afirmando que podemos dividir. Na outra
mão, há apenas um pratinho com arroz e salada de alface. Poucas
pessoas sabem a minha relação com a comida. Alguns pensam que
sou apenas uma pessoa entediada, que está pensando em abrir um
restaurante para ocupar a mente vaga, mas é mentira, toda a
composição de uma receita me fascina de verdade. E esse peixe é,
com toda a certeza, um dos mais deliciosos que já comi na vida.
— Georgia estava me dizendo o quanto você é incrível —
Mikael provoca, me encarando de lado.
— E por que a Georgia diria uma coisa dessas? — Pedro
Honduras se aproxima, sentando-se ao lado direito de Gael. A pele
negra-escura brilhando de suor. — Ela por acaso já passou um
tempo com ele e as meias fedorentas que ele larga pelos hotéis?
— Não, e nem vai! — Gael avisa. — Se a Georgia disse que
sou incrível, quem irá dizer o contrário?
Os dois se explodem em risadas, oferecendo xingamentos
em seguida.
— Ei, casal! — Allura se aproxima, com apenas peixe frito em
seu prato. Ela se senta ao lado de Pedro, mas mantém os olhos em
mim. — Nós estávamos conversando e vocês precisam reagir.
— Nós quem? — Mikael pergunta sem humor. — O Tico e o
Teco aí? — debocha de Gael e Pedro.
— Nós. Pedro, Gael e eu. — Allura sorri. — E nós achamos
que vocês precisam começar a plantar alguma indireta na mídia de
que estão juntos, antes que esqueçam de vocês.
— Não estamos juntos — retruco. — Adoraria que
esquecessem!
— Deveria ter pensado nisso antes — Pedro aconselha
falsamente. — A questão é que vocês podem começar a sair juntos
e plantar pistas ali e aqui...
— Georgia já me disse que não quer ser vista comigo —
Mikael assume, diretamente para os nossos amigos. Apenas fico o
olhando, fechando a minha expressão aos poucos. — Suas regras
foram bem específicas.
— É, mas se vocês querem enganar Bernardo e Amanda e o
restante da Farol, precisarão de mais do que olhadas de canto e
mãos unidas em público! — Allura recita tudo apressadamente. — A
Farol está muito feliz com o que pode ser o namoro de vocês e a
visibilidade da novela aumentou em trinta por cento. Então, é melhor
vocês começarem a jogar pra valer!
Olho para Mikael e sinto vontade de sair correndo.
Não que ele seja feio, Mikael é facilmente uma das pessoas
mais bonitas que já conheci. Isso inclui Allura, Pedro e Gael, que
são três pessoas interessantes igualmente.
A questão é que não consigo me imaginar em um clima de
romance com ele. Somente, é claro, quando eu for Marina e ele,
Germano.
— Será que tem alguma sósia minha por aí? — pergunto,
curiosa. — Mikael pode sair com ela.
— Sou tão ruim assim?
— Desastroso é a palavra certa. — Sorrio sarcasticamente e
Mikael me mostra o dedo do meio. Me volto para Pedro Honduras.
— Não quero polêmicas e confusões. Não quero dor de cabeça,
então... Um relacionamento longe das câmeras e mais reservado é
o meu ideal.
— E quem disse que precisa de uma câmera? — Allura
rebate. — Só precisamos de poucos elementos. — Ela bate os
cílios, inocentemente. — Por exemplo... Mikael? — diz. — Me
empresta seu celular desbloqueado, por favor.
Ela estende sua mão na direção do cantor, que apenas retira
o aparelho de sua mochila e o pousa entre os dedos de Alli.
Sorrindo vitoriosa para mim, ela digita alguma coisa na tela, fazendo
com que Gael e Pedro se espremam para enxergar melhor o que
ela faz.
— Certo, ok. — Allura olha para cada um de nós. — Vamos
fazer um simples storie — anuncia. — Mikael vai tirar a foto. Ele vai
mirar na mão dele e na de Georgia, gerando um clima de romance e
interesse. Vai marcá-la na foto, mas em um ícone bem pequeno.
Assim as pessoas terão que se esforçar para ler e, quando
perceberem que se trata de Georgia Pessoa, ficarão empolgados!
— Caramba! — Gael murcha os lábios. — Isso é bom!
— Sim, eu sei! — Ela se vangloria. — Toma!
Ela coloca o celular na frente de Mikael, que encara o
telefone com certa dúvida. Seus olhos castanhos passam por mim
rapidamente. A cicatriz da sua bochecha está aparente esta noite e
posso notar que é áspera.
— Vamos logo com isso — anuncio, mal-humorada.
— Vamos — resmunga.
Mikael firma seu ombro ao lado do meu, deixando que as
costas de sua mão encostem na minha. Ele tira a foto em um filtro
digitalmente vintage e me mostra, passando por uma supervisão de
Allura, que pede que nos aproximemos ainda mais. Gemo
negativamente, coçando as minhas têmporas.
Dessa vez, me aproximo de Mikael o suficiente para que
nossos joelhos se encostem e nossas mãos se entrelacem,
desajeitadas. Ele mira a câmera em nossas peles expostas e
demora mais do que o esperado para tirar a mísera foto. É uma
alegria que as pessoas ao nosso redor não estejam escutando a
nossa conversa porque, com certeza, teriam nos desmascarado.
Mikael finalmente consegue a foto perfeita aos olhos de
Allura. Espio a fotografia; nossos dedos estão postos um entre o
outro, sem firmeza alguma, soltos, sem interesse. As luzes das
lâmpadas dão a impressão de ser um jantar romântico e um
momento íntimo. A marcação de Mikael é praticamente minúscula, o
que fará muitos dos nossos seguidores precisarem de um
screenshot para ver melhor.
Solto a minha mão da dele rapidamente, sentindo minha pele
esquentar. Meu peito sobe e desce. Decido, prontamente, que ainda
estou com fome. Então, enquanto ele edita a foto com a ajuda dos
nossos amigos, me afasto para buscar mais arroz e peixe.
Quando volto, meu celular vibra na minha mochila, me
avisando que é a notificação de Mikael, mas não sinto vontade de
pegá-lo.
— Não se preocupem! — Pedro diz, com muito prazer na
voz. — Nós seremos o Esquadrão do Namoro Falso e vamos ajudá-
los em tudo!
11: bomba de doce de leite
INGREDIENTES: margarina, sal, açúcar, água, farinha de trigo, ovos, doce de
leite.

JUNTINHOS NA PRAIA!
Georgia Pessoa e Mikael Devante foram clicados em clima
íntimo na última tarde. Quem estava no local garante que os dois
estavam falantes, sempre perto um do outro.
Mikael ainda publicou uma foto enigmática ao lado da atriz.
Será que tá rolando?

Falar nunca foi a minha prioridade.


Escutar sempre foi o que eu mais gosto de fazer, o que se
torna muito irônico se levarmos em conta que tenho perda de
audição flutuante e preciso me esforçar um pouco para me
estabelecer em uma conversa, principalmente se a pessoa não fala
muito alto. Conversas com desconhecidos acabam se tornando
estranhas e desconfortáveis. Desde quando as pessoas começaram
a falar tão baixo?
Às vezes me sinto constrangida, porque perguntar novamente
o que uma determinada pessoa falou acaba se tornando um ato de
indelicadeza. Porém, mesmo que seja terrivelmente sarcástico
possuir um traço de personalidade tão inusitado, também posso dizer
que adoro observar.
Gosto de notar como Allura rói as unhas quando está animada
e entretida com algo, como Ivy se torna silenciosa enquanto reflete
na carreira num geral. Gosto de reparar na vida ao redor, mesmo que
não faça muito sentido na maior parte do tempo, é claro.
— Segunda as gravações começam — Ivy anuncia, lendo seu
cronograma direto do celular. Ela está usando uma calça jeans e
uma regata branca, algo bem simples e modesto. Ela deve detestar o
clima tropical do país. Principalmente quando precisa trabalhar. —
Isso quer dizer que você ficará no estúdio das dez da manhã às
cinco da tarde. Então, uma audiometria às sete. E você começará na
academia às nove. A revista Madre Rita Em Foco publicará a matéria
sobre o seu bistrô mês que vem, fique atenta para soltar uma nota de
agradecimento em breve.
Seu corpo magro está acomodado em uma das banquetas
laranjas que ficarão no balcão principal do bistrô. Elas acabaram de
chegar da loja e são os primeiros artigos marcantes do meu mais
novo negócio. A maioria delas ainda está envolvida em plástico
bolha, mas a que Ivy está sentada parece bastante confortável.
— Academia às nove — repito, saindo de perto da janela e
fechando as cortinas. — Estarei morta até lá.
— Recomendação médica, darling — suspira Ivy, não muito
preocupada com a minha opinião.
— Certo. E o que mais?
Allura está sentada em cima de uma mesa, as pernas
reunidas, enquanto faz um outro cronograma para mim, dentro de
seu IPad. Seu cabelo ruivo está um tom mais escuro, mas lhe dá a
mesma elegância buscada para viver Élia. Usa meias extravagantes
roxas e está empenhada em conseguir o melhor plano para o fim de
semana.
— E hoje, é claro... Elenco festa.
— Festa de elenco — Allura e eu falamos juntas, corrigindo-a.
— Isso. Obrigada! — Ivy anota alguma coisa no celular e me
encara. — O que usará? Encontrou um estilista? Grife?
— Nada de marcas famosas — anuncio. Puxo uma cadeira
para me sentar, bem perto de Alli. — Vou usar um modelo de
macacão dos anos 90, de uma estilista que encontrei no Instagram.
A marca é independente e ela não tem nem mil seguidores. Me
apaixonei pela peça quando vi!
Ivy me encara sem expressão alguma.
— Há alguma coisa de errado com Prada? Valentino? — Ela
quer saber, fitando nós duas. — Moschino?
— Nada de errado, mas quero tentar algo novo. — Sorrio,
mesmo sabendo que isso pode irritá-la até seu último fio de cabelo
louro-arruivado. — Isso é dar voz, sabia?
Ela arfa profundamente.
— Como quiser, Georgia — admite.
Meu nome com seu sotaque inglês é muito admirável de se
ouvir. É algo como “Djorgia” dito rapidamente, sem qualquer pausa.
— Certo, e qual o nome da garota para eu poder divulgar na
imprensa?
Recito o nome de Lívia, com sua marca ViVia. Ivy assume um
tom ainda mais distante, quando começa a trabalhar silenciosamente
sozinha. Allura, no entanto, está cada vez mais mais centrada no seu
plano especial e perfeito. Depois que saímos da casa de Serafim
Leão às duas da manhã, ela me prometeu que me ofereceria um
passo a passo de como tornar meu relacionamento de fechada com
Mikael Devante algo aceitável e suportável.
Ela, Pedro e Gael, quero dizer.
— E posso imaginar que seu par será o sr. Mikael Devante.
— Ivy — Allura a chama. — Não precisa ser tão cordial assim.
Estamos no Brasil.
Disfarço meu sorriso.
— Não sou cordial, srta. Guispe. — Ivone suspira. — Sou
inglesa.
— Sim — respondo rápido, para tirar a atenção das duas ao
mesmo tempo. — Vou com ele.
— Não vai, não! — Allura troveja com destreza. — Isso será
entregar os pontos demais. Depois da foto que ele postou, as
pessoas ficaram ainda mais sedentas por qualquer migalha vinda de
vocês. Quando você chegar ao red carpet da novela, você estará
sozinha. Todos ficarão pensando “Cadê ele?”. Quando Mikael
chegar, vocês irão fingir que vão se encontrar no tapete. E todo
mundo ficará fascinado pela química de vocês dois. Nem Marina e
Germano poderão competir com Georgia e Mikael.
— Você leu fanfic demais da One Direction — acuso.
— Se você reconheceu uma fã de fanfic, certamente você é
uma! — Alli provoca de volta.
— Isso não vem ao caso — desconverso.
Ivone nos encara com bastante atenção e posso imaginar o
que ela está pensando “Não deveria ter abandonado as minhas
férias em Ibiza para estar aqui. Não mesmo”.
— Enfim — pontua, começando a ficar irritada. — Você vai
aparecer com o Mikael de qualquer forma, então haverá uma
aparição do casal favorito do momento. — Seu tom é ácido e
sugestivo.
— Planejei tudo para vocês...
Allura faz questão de colocar a tela do IPad na minha cara,
mostrando como suas notas pessoais são arriscadas e atrevidas. Há
uma coletânea de primeiros passos para seguir com toda a farsa e
ela está, com toda a certeza, mais animada do que eu.
O som de alguém batendo na porta do bistrô me chama a
atenção e eu me sinto salva. Completamente. Levanto, empurrando
delicadamente o IPad de lado.
Afasto as cortinas apenas um pouco, me deparando com
Mikael Devante segurando uma sacola plástica. Ele está usando
uma camiseta branca, enquanto uma jaqueta de couro está jogada
por cima dos seus ombros. Calça preta rasgada nos joelhos e
coturnos. Óculos de sol redondos completam o visual.
Ele me lança um sorriso petulante, mas não devolvo o
cumprimento.
Apenas abro a porta para ele, espero seu corpo imponente
passar por mim e fecho a abertura principal do restaurante.
Mikael cumprimenta Allura com um beijinho displicente na
bochecha e garante seu status de galã ao beijar o dorso da mão
direita de Ivy.
— Vou até os fundos continuar com o orçamento da reforma
— Ivone avisa, abraçando sua pasta e convidando Allura para se
juntar a ela.
Minha amiga pisca na minha direção e pula de cima da mesa,
seguindo Ivone até os fundos e desaparecendo por lá.
— Trouxe o que eu pedi? — pergunto, sacudindo a sacola em
suas mãos.
— Está tudo aí. — Ele me entrega o pedido. — Já posso ir
embora?
Mikael dá a volta nos calcanhares, pronto para pegar seu
carro e sair de perto de mim, mas o impeço.
— Ainda não — aviso, ouvindo seu corpo recuar e bufar em
seguida. — Preciso ver tudo primeiro.
Ele enfia as mãos nos bolsos da calça jeans, rabugento.
Mando um beijinho pelo ar que ele faz questão de desviar, bastante
infantil. Apoio o conteúdo da sacola em cima do balcão principal,
abrindo com cuidado. Mikael me segue, ficando por perto.
Quando abro a embalagem, vejo cada uma das paletas de
cores concentradas em amostras de tintas amadoras. Tudo está
entre branco, marrom e azul-marinho, e nada me atrai.
— Volte na loja e pegue mais! — Empurro a sacola para o seu
peito, causando um grande baque.
— O quê?! — Mikael ruge. — Acha que eu tenho o dia todo
livre para você, Georgia? Faça-me o favor!
— Não estou lembrada do nosso acordo. — Cruzo os braços,
venenosa. — Qual é mesmo a maior condição?
— Que você é um pesadelo vivo?
— Não, a outra condição — incentivo. — Vamos lá, docinho.
Você sabe do que estou falando.
Mikael fecha os olhos lentamente, deixando a sacola plástica
de lado, em cima de um banco qualquer e se concentrando para não
me insultar.
— Que eu farei tudo o que você quiser — responde com tédio.
— Exatamente. — Aplaudo. — E o que eu quero são novas
amostras de tintas e combinações que façam sentido. Será um
bistrô, não um consultório médico — explico, árdua. — Então, volte
até a loja e me traga mais opções!
— Se liga, Georgia! — pede, resmungando. — A loja é do
outro lado de Madre Rita. Demora uma hora, ida e volta. Hoje é a
festa do elenco, preciso estar no hotel até às cinco.
— Não é problema meu. — Levanto as mãos. — Você me
aceitou como sua namorada com a regra de que faria tudo o que eu
quisesse.
— E não posso fazer isso amanhã? Ou domingo?
— Não, porque eu quero agora.
Se o ódio e o amor andam juntos eu não sei, mas que o ódio
anda de mãos dadas com a infantilidade, isso é uma verdade
complicada de engolir.
— Quer saber? — Mikael sorri amargamente. — Fica de boa.
Não preciso mais da sua ajuda... Não precisa ser mais a minha
namorada.
Ele faz um sinal com as mãos, avisando que está indo embora
sem remorso algum.
— Tudo bem! — canto, sem me importar. — Hoje à noite,
quando perguntarem do nosso afastamento repentino, não se
esqueça de explicar como terminou seu último relacionamento.
Mikael trava no meio do caminho, relaxando os ombros.
Não foi uma coisa legal de se dizer, mas não me sinto
exatamente bem quando estou perto dele. Apenas quero bater de
frente, até não restar nada.
— Garota chata. — Mikael volta, ficando novamente frente a
frente comigo. Impressionantemente, não está magoado com o que
eu disse, o que faz a minha guarda voltar a ficar firme. Não me
orgulho do que falei, mas não posso deixá-lo notar isso. — Dá aqui!
— Ele pega a sacola de volta. — Que tipo de cores você quer dessa
vez então, namorada querida?
— Pode buscar uma paleta envolvendo rosa e laranja, por
favor.
Ele solta um riso debochado.
— Que tipo de cafonice é essa? — Enruga o rosto. — Eu
prefiro as cores que estão aqui!
— Você é o dono, por algum acaso? — rebato. — Não.
Apenas quero ver o rosa e o laranja.
— Tem algum motivo ou você só quer me enlouquecer até o
final do dia?
— Rosa significa afeto e emoções. Quero que as pessoas se
sintam bem energeticamente ao estarem aqui — começo a explicar,
inflando meu peito e arqueando meus ombros. — Laranja é alegria.
Um certo tipo de vitalidade. Quero que as pessoas entrem nesse
bistrô e saibam que pode ser o lugar favorito delas no mundo!
Mikael fica em silêncio, assentindo com o queixo. Ele sobe os
óculos escuros, levando até o topo dos cabelos.
— Rosa e laranja, então! — repete, irritado. — Certo, ok. Mais
alguma coisa, madame? Porque se quiser, é melhor dizer agora.
— Acho que não.
— Acha?
— Se eu tiver alguma outra ideia te aviso. Assim você volta lá!
— Faço biquinho segurando corajosamente seu queixo para irritá-lo.
— Não é?
— Vou revisar as regras qualquer dia desses — avisa,
retirando minha mão de perto de seu queixo.
Acompanho Mikael até a porta, colocando meus braços para
trás, fingindo ingenuidade. Tudo para arrancar o restante da sua real
sanidade. Antes de sair, me lembro abruptamente sobre como o
cantor vem se sentindo. Ele pode ser um porre, mas ainda me
preocupo com as pessoas e seus corações.
— Você está melhor? — pergunto, segurando a maçaneta,
mas não girando a chave. — Sobre o Bernardo?
Mikael limpa a garganta; ele não quer me responder.
— Quem sabe eu fale disso hoje à noite, hein?
É mentira.
Ele apenas irá me enrolar o máximo que conseguir. Hoje
seremos os astros da Farol, o centro das atenções, não acontecerá
nada que nos deixe a sós. Não o suficiente para entender seu
conflito com Bernardo Vicentino.
— Certo, como quiser... — Não insisto. Nunca é bom insistir.
— Obrigada — agradeço, girando a chave. Mas não abro a porta
totalmente.
— E esse bistrô? — Mikael puxa assunto. — Quando vai me
contar mais sobre ele?
Sorrio, misteriosa.
— Quem sabe hoje à noite?
— Nós dois sabemos que isso é mentira.
— É assim que jogamos, então.
Ele sobe e desce os ombros, concordando. Abro a porta,
deixando que ele passe. Mikael abaixa os óculos redondos até a
altura dos olhos e está pronto para ir, quando avistamos dois
paparazzis escondidos atrás de dois veículos escolares. Eles são
descarados e ousados e, se revidarmos, será pior.
— Bando de merdinhas — acusa, entredentes.
— Dirija com cuidado, não quero que Germano apareça sem
um dente.
Mikael consegue rir um pouco, apesar de estar furioso.
— Seria uma lástima — emenda. — Todas as TV’s hoje em
dia possuem 4K de definição, eles veriam tudo.
As fotos e os flashes continuam, dilacerantes. Eles não se
importam com nada, estão felizes em terem flagrado uma conversa
nossa. Certamente as fotos estarão na internet até o final da tarde.
Mikael aperta os punhos, pensativo. Se ele socar os
fotógrafos terei que ser firme, porque certamente adoraria ajudar.
— Ei. — Me chama de repente, retirando seus olhos deles. —
Quer dar a volta por cima?
— Como assim?
Mikael abre um sorriso cintilante.
— Essas fotos serão vendidas daqui a pouco. Por mil ou até
mesmo cinco mil reais, depende do quanto nos querem — conta,
ansioso. — E se postarmos uma foto antes deles? Isso tiraria toda a
credibilidade do flagrante.
— Postar uma foto vai contra tudo o que o Esquadrão do
Namoro Falso quer.
— Depois nos resolvemos com eles. — Gesticula, dando um
tapinha no vento. — O que me diz?
— Topo.
Não preciso pensar muito, porque a ideia de competir com
pessoas que tirem a minha paz é ótima.
Mikael se aconchega para perto de mim, ergue seus óculos
novamente e puxa o celular do bolso. A câmera é acionada em
poucos segundos. Ele pede permissão e, quando recebe, passa o
braço longo por cima dos meus ombros, me trazendo para mais
perto. É o momento que sinto a fragrância da sua colônia, mas não
me apego aos detalhes.
A foto é rápida e mal tirada, mas vale à pena, porque nossos
sorrisos são destemidos em acabar com a festa de paparazzis de
merda.
Mas as pessoas pensarão que se trata de dois atores recém-
apaixonados, que adoram fotografias e recordar cada segundo do
momento em que passam juntos.
Sem edição, ele publica a foto em todas as redes sociais,
usando apenas um aplicativo.
— Feito! — Mikael anuncia, me mostrando a imagem.
Meu cabelo azul está lindo e comprido. Meu sorriso é aberto e
preciso admitir que entendo por que as pessoas dizem que fazemos
um casal bonito. Porque feios não somos.
Leio a legenda com atenção, enquanto ele sorri.

“Ansioso para a festa de hoje à noite. Minha amora mio e eu


estamos esperando por vocês!”

Enrugo o nariz:
— Tem um erro de digitação bem aqui — aponto para as
letras pequenas e pretas. — Amora mio.
Mikael guarda o celular.
— Não, não é um erro — Mikael reponde com convicção. — É
um trocadilho — frisa. Ele me encara por poucos segundos. — Seu
cabelo me lembra uma amora azul. Amore mio é o jeito mais
carinhoso que um italiano pode tratar sua amada. Amora mio.
Amora. Mio. Entendeu?
— Você não é italiano.
— Nem você é a minha amada.
Fito-o de volta, sorrindo ao semicerrar os olhos.
— Justo.
12: bolo de laranja
INGREDIENTES: ovos, suco de laranja, óleo, farinha de trigo, açúcar, fermento,
raspas de laranja, leite.

Allura me abraça com ternura, espremendo seu rosto ao lado


do meu com bastante amor e carinho. A mídia reage com
entusiasmo, adorando cada parte da nossa amizade duradoura. Ela
cheira a flores frescas, algum perfume que deve focar em um cenário
campestre e deliciosamente envolvente. Usa um vestido roxo-escuro,
longo, com alças finas que deixam evidente a personalidade da sua
primeira vilã na TV, Élia.
Sua maquiagem forte e delineado poderoso destacam seus
olhos pequenos e estreitos. Sua pele marrom-escura está brilhante,
porque pequenas partículas de glitter foram dispostas antes de sair
do hotel.
— Allura, Allura! — Um dos fotógrafos grita. — Aqui, aqui!
O macacão que visto é uma extensão firme e popular dos
anos 90, preto de ponto a ponta. Com mangas longas, ele vai até os
meus cotovelos. Ostento um decote V profundo, que separa os meus
seios médios do vale. Meus cabelos azuis foram penteados para trás
e pouca maquiagem finaliza o que eu chamo de um visual Marina de
ser.
Allura passa a mão pelas minhas costas, por trás, pousando
para mais uma foto. Seus dedos tremem um pouco e sei que ela está
nervosa, apesar de vestir uma fantasia confiante quase todos os dias
da sua vida. Na nossa primeira estreia juntas, eu tinha quinze anos e
Allura, dezessete. Estávamos ansiosas, porque se tratava de uma
série juvenil, chamada Coração do Mar, éramos melhores amigas,
que acabavam se unindo em uma colônia de férias, para tentar
passar por toda a fase da adolescência da melhor maneira possível.
Éramos muito jovens e a noite foi uma das melhores das nossas
vidas.
De vez em quando, ela ainda me encara como se tivesse
dezessete anos novamente.
— Certo... — Ela sussurra para mim. — Vou responder
algumas perguntas. Mikael acabou de chegar — me avisa
rapidamente, tudo para que ninguém leia nossos lábios.
Sempre que penso na possibilidade de ficar na Farol por um
ou dois anos, ela é facilmente destruída pelas noites de estreia. Os
flashes me irritam, as festas quase nunca são originais e elas
sempre acontecem tarde da noite. Essa é a festa de iniciação das
gravações e haverá uma, daqui a poucas semanas, que anunciará a
estreia de Destino Inteiro na TV aberta. Elas são cansativas e
assustadoras. Cansativas, porque são iguais a todas as outras.
Assustadoras, porque presenciei lados obscuros da fama, que
tiraram o meu sono por muitas noites.
E ainda que eu pense seriamente em mudar de ideia, cada dia
que passa me torno ainda mais confiante na minha decisão.
Coloco a mão na cintura, sorrindo para mais uma leva de
fotos.
Até ouvir os gritos com a chegada da Desvio. Posso respirar
aliviada um pouco, ajeitando e amaciando o tecido confortável do
macacão. Reparo que Pedro é o primeiro a chegar; ele usa um terno
inteiramente vermelho-escuro, com delineado da mesma cor nos
olhos e usa coturnos que brilham contra a luz.
A Desvio estabeleceu um padrão. Pedro e Bernardo de
vermelho, Mikael e Gael de preto. A estética vampiresca é agradável
aos olhos e muito, muito interessante.
Mikael usa apenas uma calça de alfaiataria preta, com um
blazer por cima do abdômen nu, exibindo as tatuagens pelo peitoral
e pela barriga. Seu cabelo está cortado nas laterais, mas os cachos
ainda são o principal foco. A maquiagem é misturada com delineado
preto e vermelho, com brincos compridos de correntes.
Primeiro, os quatros posam juntos, como uma banda
verdadeira. Ostentando a harmonia que sempre tiveram, mesmo que
Bernardo continue com sua expressão típica de poucos amigos.
Os três passam por mim, me cumprimentando, mas abrem
espaço para Mikael passar.
— Você está linda! — Ele abre um sorriso generoso e fico
brevemente confusa. Ele está me elogiando ou está elogiando a sua
namorada? — Não consigo tirar meus olhos de você!
A plateia, a grande mídia, solta burburinhos carregados de
fanatismo, adorando a nossa interação.
Também assumo um sorriso confiante e faço uma pose
cômica, revelando que o elogio me deixou satisfeita. Quero dizer,
deixou a “namorada” em mim feliz. Mikael se aproxima, estudando
todos os seus passos, com os olhos bem presos no meu rosto. O
sorriso é estonteantemente provocativo e ninguém retira os olhos de
nós, nem por um segundo. Ele escolhe me abraçar levemente,
pousando uma das mãos nas minhas costas.
— Aqui, aqui, aqui! — pedem, embebedados por nosso
suposto relacionamento.
— Você não está nada mal, também! — assumo, baixo.
— Estou incrível pra caralho! — brada. — Se eu pudesse me
namorar, com certeza já estaria casado comigo mesmo.
— A história de Narciso explica — sussurro, ironizando sua
fala.
Mikael ri, estremecendo o corpo ao meu lado, o que apenas
faz com que a imprensa se exploda em risadinhas, sobre os novos
“amantes” apaixonados da televisão. Mikael me abraça de lado,
agora olhando para mim com as íris brilhantes de orgulho.
Certamente, essa será a foto que estampará os jornais e as revistas
pela manhã.
Ele faz o sinal, gesticulando como “chega de fotos” e dá um
passo para frente, fitando-me furtivamente.
— Vamos? — indaga. — Amora mio?

As mãos de Mikael estão longe de mim agora, porque ele


segura uma taça de espumante, enquanto sorri na direção de uma
câmera. Além de nos paparicarem até o último segundo, há uma
equipe de filmagem dentro da festa, exclusiva da Farol, para
oferecermos entrevistas.
A repórter, branca e de cabelos encaracolados da cor mel,
está adorando cada partezinha em poder entrevistar o cantor, ator e
modelo, Mikael Devante. Ela não deve ser tão mais velha do que
nós, mas se mostra verdadeiramente encantada por estar na
presença dele. E apenas dele.
— Vocês estão animados? — pergunta, olhando para mim
apenas por um instante passageiro. A luz magnética do cameraman
está bem à nossa frente e me incomoda. — Como é trabalhar com a
Georgia?
— Ela é uma atriz incrível! — Mikael me elogia sem pensar
duas vezes. Trocamos um largo sorriso um com o outro. — Está
sendo uma experiência... Indescritível. Ainda é cedo para dizer se
vamos brigar, porque as gravações começam apenas segunda-feira.
Mas fico feliz que ela seja meu par romântico, não teria escolhido
ninguém diferente!
Cacete?
Ele é bom.
— E você, Georgia? — Ela quer saber, muito empolgada. —
Mikael merece os mesmos elogios?
Não.
— Pode apostar que merece mais! — Dou uma risadinha. —
Ele é muito aplicado e dedicado. Dá para notar que essa
oportunidade como Germano fará muito bem a ele.
— Ótimo! — Ela leva o microfone até a boca. A repórter usa
dessa pausa para respirar. A festa atrás de nós está a todo o vapor,
o ambiente é escuro e projetado para se parecer com uma boate. E
eu quero muito, muito, muito mesmo, voltar para o Hotel Prudência.
— E vocês podem comentar sobre os boatos recentes? Vocês foram
vistos juntos diversas vezes. Além das fotos... Suspeitas que andam
postando. Será que podem nos contar com exclusividade?
A pergunta é destemida, mas já esperava algo parecido. Os
tabloides lutam uns com os outros com unhas e dentes para
conseguirem o melhor furo de reportagem.
— Nos conhecemos há seis... — começo a dizer, colocando
as minhas mãos para trás. Preciso pensar na mentira perfeita. —
Então, temos uma amizade que veio se concretizando ao longo dos
anos. Mikael é ótimo. É o que eu posso dizer!
Dar uma resposta misteriosa é o suficiente. Se ela for analisar
palavra por palavra, perceberá que sequer respondi à pergunta de
verdade. Apenas enrolei. A sobrancelha dele está totalmente curada,
longe de qualquer marca ou ferimento.
Gosto de não pensar sobre as nossas fotos vazadas. Mesmo
que tenhamos postado uma imagem que fez a alegria das pessoas,
uma ou duas fotos foram publicadas, alegando que estávamos em
clima de romance.
Enquanto Mikael responde, reparo em um grupo poderoso
conversando mais à frente. A ala dos investidores e dos donos da
Farol é quase proibida, é um camarote suspenso onde apenas os
mais conhecidos e respeitados podem ficar. Às vezes me sinto em
uma corrida de cavalos, enquanto milionários entediados apostam
em nós e brincam com nossas vidas. Mas apenas os encaro, porque
estou sendo observada primeiro.
Ricardo Farol, o vice-presidente da emissora, está me
oferecendo uma taça de bebida ao alto. Ele está brindando para
mim, como se estivesse muito feliz pelo meu mais novo
relacionamento – e todos os benefícios que ele vem trazendo para
nós.
À minha direita, sua irmã, Claudia Farol, a herdeira da
emissora, conversa distraidamente com seu marido. Ele está de
costas para mim, enquanto a mulher me encara por cima dos
ombros.
Claudia tem cabelos louros e quebradiços, é a mais velha dos
filhos de Ana Jabour Farol, a dona de tudo. Deve ter sessenta anos,
de estrutura baixa e fria, ela não é educada. Nunca foi. Por alguma
razão, seu olhar peculiar paralisado em mim não é de admiração.
De alguma forma — não sei como — Claudia sabe que estou
mentindo.
Ela sabe.
Sustento um sorriso ardiloso e confiante na sua direção. Se
ela descobrir ou deixarmos alguém descobrir sobre o namoro falso,
uma enxurrada de críticas negativas pode decair na novela. E
consequentemente na emissora. A mesma que está fazendo
exatamente tudo o que eu quero, para garantir que eu fique ou que
tenha um último ano memorável.
O público espera assistir a um romance, ele sendo verídico ou
não. Mas só de haver uma inclinação para o “falso”, é como
presenciar uma catástrofe. Ninguém quer acompanhar um
relacionamento de mentira.
Tampouco Claudia Farol.
— ... só finalizando. — Perco toda a resposta de Mikael e
preciso me concentrar novamente na entrevista. — Afinal, a Georgia
é minha amora mio. O que isso significa? Vocês podem pensar o que
quiserem.

A fama tem suas vantagens.


Uma delas é que sempre posso contar com a ajuda de
alguém, basta sorrir e pedir com jeitinho. No momento, estou sozinha
na sala de projeção de slides, comendo e bebendo sem me
preocupar com nada que acontece lá embaixo. Em São Paulo, na
maior sede da emissora, as festas aconteciam no Jardim Farol, um
espaço muito parecido com esse. Normalmente, eu oferecia cem
reais para Xavier, um estudante de audiovisual que me deixava
trancada em seu escritório, apenas comendo doce e assistindo
televisão.
Como estamos em Madre Rita, pedi um favor a um cara
chamado Miguel. Ofereci cem reais, mas ele recusou. Ele só me
deixou ficar na sala de projeção se eu não contasse ao seu chefe
que ele estaria dançando na festa e que era para eu apertar um
botão específico para que os slides passassem na grande tela
branca, centralizada no palco da boate.
O buffet da festa é free pizza, então há fatias de queijo,
calabresa e de frango em três pratos diferentes. Estou sem meus
saltos e observo a festa de cima, analisando cada rosto.
Os celulares são proibidos para os demais funcionários e
liberados para os agentes e atores.
Daqui consigo ver a mesa Farol; eles comem outro tipo de
comida, como se, de repente, pizza fosse inferior demais para eles.
As melhores garrafas de champanhe estão decorando a mesa deles
e todos emanam uma péssima vibração. No meio de tudo, há a pista
de dança, onde vejo Miguel dançar desenfreadamente.
Identifico Allura também. Ela está dançando com Pedro,
batendo os cabelos para os lados, sendo o espírito livre que ela é.
Gael está orbitando ao redor dela, impondo que está por perto. Claro
que Alli fará um charme antes de colocar todas as cartas na mesa,
enquanto isso, ela apenas utiliza sorrisos de canto e olhares sagazes
para deixar a mente de Gael Soares fértil.
Também há os atores que bebem mais do que devem e suas
carreiras de cocaína bem perto de suas mesas. É quase como uma
ala proibida e quase ultrassecreta. Nós não falamos sobre isso,
apesar de sabermos toda a problemática. Quem fala, é rapidamente
considerado um “traidor” e não consigo entender o porquê.
Também encontro Mikael em um camarote, rodeado por fãs e
outras pessoas. Há muitas garotas que o paparicam, colocando suas
mãos estrategicamente em seus braços. Ele sorri para cada uma
delas, garantindo que todas são especiais. Em um canto, bem
próximo ao bar, está Bernardo Vicentino, bebendo sozinho.
Ele roda o gelo no copo com os dedos, totalmente
desanimado. Suas costas estão curvadas e ele está inconsolável.
Não parece o babaca de sempre, e não parece uma pessoa que está
se vangloriando por ter beijado a ex-namorada do melhor amigo. Na
realidade, Bernardo parece muito ressentido. E deprimido.
Mordo a pizza de queijo, franzindo o cenho.
A conta não bate.
Se Bernardo realmente apunhalou Mikael pelas costas, sua
conduta não deveria ser diferente?
Recoloco meus olhos na pista de dança. Allura está dançando
bem próxima de Gael, enquanto Pedro foi buscar algo para beber.
Os dois possuem uma química quase que constrangedora, porque
está explícito que ambos querem ir para um lugar reservado. Os
músculos de Gael recobrem o corpo de Allura, enquanto seu cabelo
rebelde e ruivo é ordenado pela selvageria da música. Ela está tão
pensativa e nervosa quanto na segunda-feira, mas não quer
conversar. Alli prefere curtir uma festa inteira do que oferecer um
diálogo sério.
É melhor deixá-la em paz.
Suspirando e comendo, volto a olhar para a área VIP de
Mikael, mas ele não está mais lá. Todas as garotas parecem
chateadas, porque não conversam entre si. Até me aproximo da
janela da sala de projeção.
Para onde ele foi?
Uma batida na porta me assusta.
Não sei o motivo, mas cuspo o pedaço de pizza de queijo no
prato, limpando a minha boca.
Que não seja Ivy.
Que não seja Ivy.
Que não seja Ivy.
Que não seja Ivy.
Me levanto, arrumando meu macacão no corpo e caminhando
até a porta. Destranco-a, abrindo-a em seguida.
— Ah, é você. — Relaxo os meus ombros ao ver Mikael. — O
que quer?
— Está se pegando com alguém ou posso entrar?
Não respondo, apenas o puxo pelo pulso de uma vez e nos
tranco na sala. Volto para a minha cadeira, jogo fora o pedaço
perdido e seguro a pizza entre os dedos.
— Todo o buffet está aqui dentro? — provoca. — Não sabia
que ainda fazia isso.
— Claro que faço. Detesto as festas da Farol. É sempre a
mesma merda. — Estico as minhas pernas nos botões desativados
do painel de controle. — O que eu não sabia era que você ainda
lembrava disso.
Mikael pega uma cadeira do canto superior e se senta ao meu
lado, esticando as pernas em cima de um frigobar desativado.
— E tem como esquecer? — murmura. — Foi assim que nos
desentendemos pela primeira vez.
Esboço uma risada áspera, meneando o rosto. Antes de fingir
que me esquecia, Mikael tinha um real interesse em me conhecer. E
era recíproco.
Quando eu tinha dezoito anos e Mikael dezenove, a Desvio
era a nova sensação, uma novidade que emplacou muito rápido. Os
quatro garotos eram — e ainda são — bonitos, educados e
simpáticos. Tocavam e cantavam perfeitamente, eram carinhosos
com os fãs e possuíam química e harmonia no palco. Um combo
perfeito.
Eu participaria de um programa de arrecadação de fundos
para a caridade e a Desvio estava no mesmo camarim que o meu.
Fomos apresentados. Bernardo foi um babaca e os outros foram
agradáveis, apesar de não me lembrar exatamente como foi. Ao
final, fomos para mais uma festa no Jardim Farol e Mikael me flagrou
pagando um outro estudante de audiovisual, na época era o Caio.
Ele disse que tinha esquecido o meu nome e eu tive que me
apresentar de novo.
Foi então que ele me perguntou o porquê estava me
escondendo de todos. Respondi exatamente o que sentia e Mikael
disse:
— Bonita e estranha.
Apenas isso.
Era para ser um elogio? Não sei.
Era para ser uma ofensa? Não sei.
Apenas sei que Mikael disse aquilo, então, comecei a tratá-lo
com indiferença. Não me leve a mal, não fui rude. Somente era
sucinta e rápida nas minhas palavras, o que gerou uma inimizade
generalizada entre nós. Ele não suportava o fato de eu não ser uma
fã encubada dele, e eu não suportava o fato da falta de senso dele.
Ainda não suporto.
Às vezes uma coisa pequena como uma frase mal dita pode
gerar uma grande e desenfreada relação conturbada. Bem, é o que
penso, enquanto tento me concentrar na próxima música. A
reconheço de imediato, liberando um sorriso de lado.
É “Poker Face”, da Lady Gaga.

No, he can't read my poker face


(She’s got me like nobody)
(She’s got me like nobody)
(She’s got me like nobody)
Não, ele não consegue decifrar a minha cara de blefe
(Ela me tem como ninguém)
(Ela me tem como ninguém)
(Ela me tem como ninguém)

— Bonita e estranha — ele repete ao meu lado, cruzando os


braços. — Foi o que eu disse quando você me explicou porque fugia.
— Exato. — Olho para frente, mordendo o último pedaço da
pizza de queijo.
— Porra. — Mikael massageia a nuca. — Eu era um babaca.
Não faço ideia do porquê disse aquilo.
— Era? — Me viro para ele. — Ou é?
— Está aberto a qualquer tipo de interpretação. — Ele dá de
ombros. — Mas acho que sei o motivo...
— Pode me dizer? — indago. — Seria interessante entender
de onde tudo começou. Principalmente, os xingamentos. E todas as
vezes que nos encontramos, porque todas foram desagradáveis.
— Todas, amora mio? — Ele faz biquinho. — Até aquela vez
na chuva?
— Qual... — Paro de falar quando lembro.
Provavelmente a lembrança estava confinada em uma parte
muito longe do meu cérebro. Mikael se afunda na cadeira, risonho.
Foi há dois ou três anos.
Eu estava saindo de um desfile de moda; eu não lembro
exatamente o motivo, mas estava cansada e decidi ir embora mais
cedo. Pedi um táxi por aplicativo de celular, o visor anunciou que ele
apareceria em cinco minutos, mas foi o tempo exato de uma chuva
ameaçadora começar em São Paulo. Ele cancelou na mesma hora.
Até que Mikael apareceu e ofereceu uma carona
naturalmente, como se não estivesse acontecendo a tempestade do
século. Recusei prontamente, mas ele insistiu, afirmando que eu
ficaria horas esperando. Quando aceitei, ele disse que teríamos que
correr até o carro, o que foi uma péssima ideia.
Meus sapatos deslizaram no asfalto do estacionamento, e eu
caí, o levando junto. Nós ficamos ensopados e detonamos o
estofado do carro dele. Não conseguimos sair do estacionamento,
porque ficamos ilhados, então ficamos mais de três horas,
confinados e molhados, dentro de um carro abafado. Foi péssimo,
mas ao menos ninguém nunca descobriu.
Seria um escândalo, e ele já estava namorando Amanda
naquela época.
Ninguém acreditaria que éramos apenas arqui-inimigos.
— Principalmente essa! — confirmo. — Meu celular foi
destruído. — Mikael não se abala e apenas ri alto. — Não me
respondeu. Pode me dizer o porquê disse aquilo?

(She’s got me like nobody)


(Ela me tem como ninguém)

Mikael pigarreia. Gira o rosto na minha direção e semicerra os


olhos.
— Quem sabe um dia? — Suspira, metódico.
— Claro — debocho. — Porque sempre é tudo um mistério.
— O que quer fazer? — Ele muda de assunto. — Já que estou
na mesma.
— Não quer participar da festa? — Me impressiono. — Elas
pareciam animadas por estarem com você, Mikael. — Aponto para a
área VIP.
Ele sorri maliciosamente, mas não dura por muito tempo.
— Não posso te trair — define. — Já pensou? Isso seria
péssimo.
— Conta a verdade — peço. — Não é por isso.
Ele não diz nada, abaixa a cabeça e começa a brincar com
um fiapo de linha do blazer. Sei que está triste e que sente falta do
amigo. Uma banda desmembrada não consegue se divertir da
mesma forma e é isso o que Mikael quer: que tudo volte ao normal.
Ainda que eu suspeite que nada nunca mais será como era antes.
Pode ser melhor ou pior.
E apenas o tempo dirá.
— Parece que Gael e Alli estão se dando bem — comenta,
mudando drasticamente de assunto. — Não acha?
— Eles combinam — falo qualquer coisa, mas continuo com
os meus olhos nele. — Quer fazer o quê? Julgar a vida dos outros?
Falar besteira?
Ele afasta um pouco o rosto, deixando o delineador vermelho
brilhar.
— Por que não vamos embora?
— Não posso, apesar de querer. — Suspiro. — Ivy, quando
está no Brasil, sempre me dá um limite de festa. Eu posso fazer tudo
o que eu quiser, desde que eu esteja no prédio onde acontece a
festa por pelo menos duas horas. Ainda falta meia hora para o
acordo acabar.
— E por que isso? — Ele entorta a boca, desaprovando.
— É uma forma que ela tem de me fazer ser “vista” — Faço
aspas com os dedos. — Se precisar de mim, estou aqui. Se ela
quiser me apresentar para investidores e empresários, preciso estar
aqui. Então, ela me dá esse espaço, desde que eu seja profissional.
— Nossa, que merda.
— Nem me diga.
Como estamos desanimados, acabamos por arfar ao mesmo
tempo.
Deixo a pizza de lado, respirando fundo e deixando que a
música invada cada parte da sala. É “7 Rings”, da Ariana Grande.
— Ok — declama. — Já que você está me deixando ficar
aqui, vou te mostrar o que mais gosto de fazer para passar o tempo.
— Mikael retira seu celular do bolso e coloca sua cadeira para mais
perto de mim, estica novamente suas pernas em cima do frigobar e
mostra um site laranja, que não consigo entender muito bem o que é.
— Wattpad.
— Sim?!
— Vamos ler fanfics!
— Sério? — Murcho os lábios, rindo em seguida. — Eu lia em
outro site. Deve ter sido extinto.
— Mas não vamos ler fanfics qualquer, vamos ler fanfics sobre
nós! — decreta, animado, passando o feed para baixo após
pesquisar nossos nomes.
— Espera aí... — peço com as mãos. — Já tem?
— Claro! — troveja. — No mesmo dia que vazaram as fotos,
já tinha um monte.
— Então, você leu?
— Digamos que eu passei o olho em algumas... — responde
baixo, fazendo graça. — Mas isso vai te animar, tem algumas
fantásticas...
Mikael continua a vagar pela coletânea de histórias
concentradas no site e, quando acha uma, limpa a garganta para ler
em voz alta.
— Que tal essa?! — diz. — “Diga Sim ao Duque”, status...
finalizada. Escrita por Maria082Jackson. Vinte capítulos... e... uau...
— Ele se anima. — Conteúdo adulto...
Ele sobe e desce suas sobrancelhas, me fazendo rir um
pouco.
Só um pouco.
— Sinopse?
Seu sorriso se alastra.
— Vamos lá. Pronta, Pessoa?
— Pronta, Devante!
Ele ri de lado, negando com a cabeça várias vezes.
— Georgia Pessoa foi prometida para se casar com o duque,
Gael Soares...
— Colocaram até o Gael nessa? — interrompo, extremamente
surpresa. — O maravilhoso mundo da criatividade.
— Descobri que o Gael é o maior vilão das minhas fanfics.
Sempre colocam ele como o malvado... Uma vez ele leu e pediu para
as fãs fazerem alguma coisa! Ele repetia “Por favor, me façam
bonzinho!”. Foi muito engraçado! — Mikael conta, rindo. — Ele
estava bêbado também, porque nós viajamos com a família do
Bernardo e...
Sua risada vai sumindo aos poucos e seus lábios oscilam. Ele
se remexe na cadeira, desconfortável.
— Continua — sugiro. — A fanfic.
— Ok. — Ele leva alguns segundos para retornar de onde
parou, mas quando consegue, continua sem interrupções. — Ser
prometida ao duque era o que ela menos queria. Gael era arrogante
e libertino e Georgia o detestava. No entanto, o primo do duque
Soares era pior ainda. Mikael Devante era o sinônimo de tudo o que
Georgia gostaria de fugir, mas também sua única chance de destruir
o matrimônio indesejado.
— Deixa eu adivinhar — digo. — Georgia e Mikael se
apaixonam e acabam se casando?
— Deve ser. — Mikael ri pelo nariz. — Mas pelo menos ela se
livrou do duque. — Rimos ao mesmo tempo, analisando a capa
muito bem feita com uma montagem nossa. Meu cabelo foi colorido
em preto sem o azul-turquesa dessa vez. Uso um chapéu antigo e
vitoriano. Está excelente. — Continuo a ler?
Pela trégua temporária e por estarmos dividindo a infelicidade
de convivermos nessa festa, assinto rapidamente.
— Você tem meia hora. — Sorrio.
13: pudim
INGREDIENTES: açúcar, leite condensado, leite, ovos.

É FESTA!
Os atores queridinhos do momento, Georgia Pessoa e
Mikael Devante, abalaram na festa promocional oferecida pela
emissora Farol, ontem à noite. O suposto casal não chegou junto,
mas fez questão de tirar fotos coladinhos no tapete vermelho além
de atenderem alguns fãs!
#MikaGeorgia está cada vez mais real!

As mãos reunidas nas minhas pernas me lembram vagamente


do meu primeiro exame de rotina.
Eu tinha dezessete anos e estava muito assustada com uma
crise de vertigem que tive ao pousar em um aeroporto. Pensei que
estava caindo, declinando e nunca fosse voltar ao normal. Foi
assustador e desesperador, porque ninguém entendia o que estava
acontecendo, por mais que eu tentasse explicar. Até hoje não sei
dizer se as pessoas realmente me entendem ou só imaginam que
sim. Apesar de desconfiar que apenas outras pessoas iguais a mim
podem compreender totalmente.
No dia, ainda assustada, eu tentei ao máximo me manter
tranquila. Uma vertigem daquela magnitude nunca tinha acontecido
anteriormente, e eu queria me manter esperançosa, ainda que
sentisse que algo muito ruim estava prestes a acontecer. Todos os
exames não detectaram quase nenhuma anormalidade. Somente
meu ouvido direito que parecia levemente inchado e inflamado.
Talvez entupido, mas nada tão grave.
Até que as crises continuaram. Começaram como uma rotina
nada confortável; veio a má disposição, o sono, a preguiça e, claro,
os enjoos. Lembro até hoje que a minha madrinha sugeriu que eu
estava grávida, o que seria interessante, levando em consideração
que meu relacionamento havia acabado há cinco meses. Seria
impossível.
Voltei ao médico, viajei para outros estados e finalmente
descobri o que estava acontecendo comigo. Uma doença rara e
crônica, chamada Síndrome de Meniere, que me dava a grande
possibilidade de perder a audição de apenas um lado como garantia
de uma vida não-saudável.
Ainda é um mistério saber como desenvolvi a doença e, às
vezes, eu realmente não quero saber como.
Abaixo meu olhar apenas alguns centímetros, porque meu
celular está vibrando sem parar com a chegada de muitas
mensagens.

PEDRO: bom dia, gêgê :p Tudo certo aí?

GAEL: Deixa ela em paz!!!!!!! Dá um tempo!

ALLURA: Vocês falam demais!

Sorrio apenas para mim mesma, porque me lembro que


fizemos um grupo apenas com Gael, Pedro, Alli e eu. Pedro me
envia “bom dia” todos os dias, e é um ótimo adorador de vídeos fofos
de filhotes. Preciso andar esperta é com o Gael, que sempre me
envia algum tipo de vídeo falso com um gemido muito, muito alto.
Maldito.
Rir dos dois alivia um pouco a minha tensão muscular, mas é
apenas analisar o profissional diante de mim, que me sinto imersa
em uma nuvem de sentimentos muito complexos. E nada
confortáveis.
O médico está analisando um exame recente. Há apenas nós
dois no consultório, porque ele está fazendo a gentileza de me
atender às nove horas da noite, em uma clínica particular. As
gravações terminaram muito tempo depois do previsto e estou
exausta.
Ainda preciso passar na academia, mas estou cogitando a
possibilidade de burlar a agenda programada de Ivy. Pelo menos, por
hoje.
— Sua última audiometria foi quando? — Ele pergunta, sem
botar os olhos em mim.
— Há três meses — sibilo.
Ah, uma coisa interessante sobre Síndrome de Meniere: não
tem cura.
— Você apresentou baixa — informa, me passando todos os
exames anteriores, presos em uma pasta. — Há três meses, houve
uma melhora controlada da sua audição, mas agora, piorou apenas
um pouco.
— Isso quer dizer que posso tentar recuperar?
— Creio que sim. — Sua resposta vaga não me anima e nem
me dá esperança. — É perda auditiva flutuante, os resultados podem
variar. O que indico, é claro, é que continue com sua alimentação
regulada e que evite ter crises de tontura. Quanto mais crises, mais
sua audição é corrompida. Precisamos evitá-las.
Assinto, sem dizer mais nada.
Nunca sei o que dizer exatamente.
O que esperam que eu diga?
Na minha memória, há uma Georgia sem qualquer doença.
E ela era muito boa.

O primeiro dia de filmagens me fez lembrar abruptamente da


rotina massacrante de construir uma novela. Nós temos workshops,
entrevistas, ensaios, scripts, roteiros e uma roda de conversa onde
podemos experimentar ouvir uns aos outros antes de gravarmos
cenas mais íntimas.
Ainda não tive nenhuma cena com Mikael — Germano — ,
mas já estou gravando no núcleo de Marina. Baladas por “São
Paulo”, muita rebeldia, porque ela quer apenas a atenção do pai, um
ricaço que adora trocar de esposa. Recebi diversas flores, meu
camarim parece uma floricultura. Muitos colegas de elenco me
desejaram felicitações e recebi uma salva de palmas da diretora da
novela, Ellen Mavidá, quando começamos a filmar a minha primeira
cena.
Ainda é peculiar notar que a Farol se recusa a acreditar que
vou embora, mas é libertador saber que é meu último ano e a minha
última novela.
Chego ao apartamento-hotel às dez e meia da noite, depois
da consulta. Todos os meus exames, prontuários e receitas médicas
estão postos dentro de uma pasta plástica. Contém tudo o que eu
possa precisar em uma consulta, e isso se dá há sete anos. Então,
quando chego em “casa”, estou prontamente desanimada com a
vida. É o que sempre acontece após uma consulta.
Quero tomar banho, ficar no escuro e dormir uma noite inteira,
sem pausas.
Ao fechar a porta, jogo a minha pasta em um móvel perto da
entrada, retiro meus sapatos e acendo a luz, encostando meus
dedos no interruptor da sala. O apartamento está vazio e eu preciso
subir as escadas para poder chegar ao meu mais novo quarto.
Não há nada na decoração que se pareça comigo ou com o
que eu realmente quero, mas com o tempo as coisas vão se
ajeitando.
Subo os degraus, molenga de cansaço e sono. Desprendo
meus cabelos do coque desarrumado e começo a retirar a minha
camisa, deixando a peça em qualquer canto do corrimão. Pego meu
celular do bolso, vasculhando algo de interessante nas notificações.
Há mensagens de Gael e de Pedro.
E, impressionantemente, de Mikael. Pedindo meu número de
telefone pela milésima vez.
Uma notícia chama a minha atenção, contudo.

MIKAEL DEVANTE SE MUDA PARA O MESMO HOTEL DE


GEORGIA PESSOA; indícios do envolvimento amoroso
aumentam a cada dia
Pedro Honduras (27) e Gael Soares (24), os membros da
banda Desvio, também estão morando temporariamente com o
vocalista, enquanto o último show da turnê nacional se aproxima. O
Hotel Prudência é sinônimo de sofisticação e conforto.

Reviro os olhos, bloqueando meu celular.


De sutiã e de calça jeans, noto que há alguém no meu quarto.
Assistindo TV, possivelmente. Abro a porta destrancada com cautela,
me deparando com Allura Guispe sentada no meio da cama de
casal, king-size. Ela está usando um pijama de cetim, enquanto seu
cabelo está preso em um rabo de cavalo e usa seus óculos com
orelhas de gatinho, especialmente para a leitura.
— Como conseguiu entrar aqui? — disparo, enrugando a
testa. Ela está assistindo a mais um episódio de Modern Family, a
série que é seu conforto televiso.
— Ivy — diz, sem tirar os olhos do script. Ela destaca suas
principais falas com marca-texto verde-neon. — Eu estou triste o
suficiente para querer ficar sozinha, então fiquei te esperando. — Ela
sorri na minha direção, mas logo volta a se concentrar. — Se ainda
não percebeu, vou dormir com você hoje, Gê.
Ainda bem, era tudo o que eu precisava.
— Também estou triste — confesso, melancólica, mas feliz
por sua vinda inesperada.
Não preciso dizer o motivo porque Allura sabe e isso facilita
muito as coisas entre nós.
Me sento na beirada da cama, dando espaço a ela.
Depois da festa, na sexta-feira, Allura passou a madrugada
toda dançando, comendo e bebendo. Foi para um after na casa de
Rodrigo Oliver, um dos atores do elenco, e voltou apenas às oito
horas da manhã. Dormiu o sábado inteiro, apareceu para assaltar a
minha geladeira e voltou a dormir. No domingo, mal nos vimos,
porque fiquei pesquisando mesas e cadeiras novas para o Bistrô-
Ainda-Sem-Nome e trabalhando no orçamento da reforma — que se
mostrou mais cara do que pensei.
Este é o único momento em que podemos conversar.
— Que episódio é esse? — pergunto, fitando a TV.
— O dia que a Lily aprende um palavrão e o Cam não
consegue parar de rir, mesmo sabendo que é errado.
— Um dos melhores — começo a puxar assunto. Disfarço que
estou apenas assistindo e, então, começo a olhá-la. — Animada para
suas primeiras cenas como Élia?
Se bem conheço Allura Guispe ela tentará responder de
qualquer jeito; sua felicidade nunca é passageira, é duradoura e
bonita. Isso não quer dizer que a insegurança não apareça.
Se fosse qualquer pessoa perguntando, Alli colocaria um
sorriso no rosto e tentaria fingir que é imbatível e completamente
inabalável. Que ela nasceu pronta para viver Élia e que é o papel da
sua vida, mas a realidade é bem diferente do que realmente
mostramos para as outras pessoas.
— Não — confessa. Ela deixa o marca-texto de lado e suspira
alto. — Tentei de todas as formas encontrar uma motivação para a
personagem e não consigo. Ellen disse que posso pesquisar sobre
Abelhas Rainhas — desata a falar — , como Regina George, Blair
Waldorf, Sharpay Evans. Mas isso não faz sentido! E é o que mais
me incomoda. Sabemos a história da Marina, mas Élia ainda parece
um mistério.
— Talvez ela simplesmente seja má — concluo. — E tenha
inveja da Marina, de alguma forma. Porque vai descobrir que é filha
de um milionário, então a Élia se tornará malvada da noite pro dia ou
ela sempre escondeu esse lado podre?
— Eu não sei! — Allura arregala os olhos. — E é isso que me
deixa puta da cara! — Ela retira os óculos, enfiando o rosto entre as
mãos. — Élia é a minha primeira vilã e eu simplesmente não consigo
me conectar a ela.
— Allura... — Me aproximo dela, colocando minha mão no seu
joelho. — Se tem uma pessoa perfeita para viver Élia, é você — digo.
— Você experimentou todos os estilos do mundo e ficou fantástica
em todos. Lembra quando seu cabelo era totalmente platinado? —
pergunto, e ela assente, começando a ficar chorosa. — As pessoas
te copiaram por semanas e você ainda é mencionada quando o estilo
retorna!
— Sim, mas os estilos diferentes sou eu... Quem é a Élia?
Dou de ombros.
— Às vezes um vilão não precisa necessariamente de uma
motivação. Ele precisa ser mau e apenas isso — completo. — E
espero que tenha algo mais profundo no roteiro. Espero mesmo que
Élia e Marina sejam irmãs no final disso tudo.
Ela fica em silêncio, ainda bastante insegura e receosa.
— E se eu for aquela atriz que não consegue deixar de
interpretar mocinhas? — sugere, me fazendo rir fracamente. —
Como o Adam Sandler, por exemplo. Se ele fizer algo além de
comédia, pode causar uma enorme falha na Matrix, abrindo o
multiverso!
Entorto a minha cabeça.
— Você assistiu filmes demais. — Me aproximo dela. — Ele
tem um filme de drama muito bom. Eu adorava um chamado
Espanglês... Aliás, não sei se deveria amar esse filme, mas é
complexo. Enfim... — Arfo. — O que eu quero dizer, é que você vai
se sair bem, Allura. Não pode ficar pensando em outras opiniões.
Você é uma atriz talentosa e tenho certeza que a Élia vai completar
brilhantemente a sua carreira.
Allura acredita nas minhas palavras, mas é complicado
assumir em voz alta. Ela tem medo de começar a acreditar em si
mesma e, em seguida, falhar. O que realmente importa, é que ela
ouviu o que queria vindo da melhor amiga — eu — e que dará todo o
seu talento em troca de um bom destaque como sua primeira vilã.
— Sem contar que você vai estar cheia de marcas de roupas
correndo atrás de você... — Faço pequenas cócegas na sua barriga.
— Vai se divertir atrapalhando a vida da Marina e ainda vai beijar o
Germano várias vezes.
Ela ri verdadeiramente, dando alguns tapinhas para que eu
me afaste totalmente dela.
— Quando eu terminar essa novela, vou viajar para a Bolívia,
por dois meses — decreta firmemente, quase como se estivesse
irritada. — Passar alguns dias reclusa com a minha família e depois
viajar o mundo antes de aceitar algo parecido.
— Assim que se fala!
— Agora vai tomar banho, não consigo me concentrar com
você usando apenas um sutiã de renda! — ordena, recolocando os
óculos e voltando a ler.
Gargalho alto, me dando conta que estou tendo uma conversa
seríssima com Alli usando jeans e sutiã. Me escondo dela, fazendo
graça e afirmo que tomarei o banho mais longo de toda a minha vida.
Pego uma toalha limpa e a penduro no meu ombro. Antes de eu
entrar no banheiro, Allura diz:
— Ei... — chama. — Obrigada — diz suavemente. — Não
tinha ninguém parecido com você em Paris. Fico feliz de estarmos
juntas novamente.
— Eu que agradeço, Allura.
14: torta de banana com doce de
leite
INGREDIENTES: bolacha maisena triturada, manteiga sem sal, bananas nanicas,
leite condensado cozido, claras, açúcar, água, essência de baunilha.

MARINA: Não pretendo viajar tão cedo, pai.


HUMBERTO: Mas eu planejei por você. Assim podemos nos
conhecer melhor, filha. Nós vamos para Porto Seguro. Lá... Meu
melhor amigo estará nos esperando. Ele tem um filho da sua idade.
O Germano.
MARINA: Praia não combina comigo.
Marina se afasta de Humberto, caminhando em direção às
escadas.

O primeiro encontro de Marina e Germano está se


aproximando, dois nichos da novela que finalmente terão suas
histórias interligadas. Estou repetindo e ensaiando as minhas falas,
enquanto continuo na cama.
Os últimos dias foram essenciais para me manter focada no
papel. Minha personagem já descobriu que é rica o suficiente para
nunca mais pensar em nenhuma dificuldade financeira, mas ainda
está sendo relutante em conhecer melhor o pai, Humberto.
A Farol está começando a soltar alguns spoilers sobre Destino
Inteiro, que estão fazendo os telespectadores baterem pontos de
audiência sempre que surge alguma novidade. O tema de abertura
da novela será feito pela Desvio, com uma música inédita.
Ainda estou na cama, comendo pão de queijo enquanto bebo
suco de laranja. A TV está ligada novamente em Modern Family e
vou trabalhar apenas às onze. Faz pouco mais de uma ou duas
semanas que não vejo direito Allura ou Mikael. Eles possuem
histórias paralelas, então apenas gravei um pouco com Allura, que
sempre sai cedo da Farol para poder se encontrar com Gael, sem
que ninguém possa saber.
Alguns tabloides já estão de olho nos dois, especialmente
porque ela adora comentar em suas fotos. O que é bom, assim a
mídia dá um desconto para mim.
Às dez e quinze, decido me levantar totalmente, deixando o
material de estudo de lado. Pego meu celular do móvel ao lado da
cama e reparo nas mensagens.

ALLURA: bom dia peituda metida


ALLURA: acho que vou sair com o Gael de novo hoje mas
estou pensando em sairmos no final de semana (eu e vc). Já preciso
de folga bjs bjs bjs
GEORGIA: bom dia.
GEORGIA: o que tem em mente?????
GEORGIA: entre mim e Gael, prefiro que vc saia com ele!!!!!!

Envio uma mensagem para Ivy, avisando que acordei


também. Mas, uma em especial, é de Mikael. No Instagram.

MIKAEL DEVANTE:
Nossa cena está chegando.
Ansiosa?

GEORGIA PESSOA:
Hoje não.
Estou sem paciência.

MIKAEL DEVANTE:
E quando é que você tem?

Apenas rio pelo nariz, bloqueando o aparelho e me sentindo


estranha rapidamente.
Minha cabeça está aérea, meus olhos estão pesados, a
pressão no meu ouvido aumentou e o chiado está insuportável. Em
poucos segundos, sinto a sensação da vertigem se fazer presente
em cada parte do meu corpo. Meus dedos ficam frágeis, minha
mente voa, meus olhos não se focam em apenas um lugar e meu
equilíbrio é praticamente nulo. Começo a suar frio e solto meu
celular, sabendo que ele acabou de cair no chão. Continuo sentada
na ponta da cama, usando minhas mãos vagas para me apoiar no
colchão.
A crise de vertigem dura alguns segundos, mas é o suficiente
para ditar o restante do meu dia, assim como vem ditando muito do
meu tempo há sete anos; ficarei reclusa.

Ellen, a diretora, me deu um dia de folga, mas me fez


prometer que iria repor as cenas não filmadas no sábado e no
domingo, então nada de final de semana livre para mim. Mas tudo
bem, ao menos ela entende.
Ou finge entender.
Posso pedir tudo o que eu quiser que a Farol me dará, apenas
para continuar esse jogo bajulador para garantir que eu fique. Porém,
quero acreditar no bom senso de Ellen, principalmente porque não
estou mentindo. Ivy me disse que passará aqui à noite e Allura está
presa na emissora, porque com a minha falta, todos os horários
foram adiantados.
Ela está preocupada, mas sabe que eu quero ficar sozinha.
Depois da tontura, tomei banho e coloquei outro pijama. Mas
não tive mais nada, foi apenas algo fraco e passageiro. Contudo,
meus olhos continuam pesados e a fome não me atiça mais tanto
quanto deveria.
Durmo o resto da manhã e apenas desperto às quatro horas
da tarde. O céu já ganhou aquele tom alaranjado e carmesim. Ainda
me sinto muito deprimida pela vertigem de mais cedo, mas o
importante é que a fome voltou. Escovo meus dentes e só depois
desço as escadas, descalça.
Antes de chegar à cozinha, decido que prepararei macarrão
com queijo e que mereço uma sobremesa. Quem sabe pastéis
doces?
Minha barriga ronca e escancaro os armários, pensando em
todas as possibilidades. Faz dias que não cozinho para mim e isso é
o que realmente me desestressa.
A campainha toca, ecoando por todo o apartamento estilo
cobertura. Grito para Allura entrar, mas não recebo resposta alguma,
apenas a campainha que é tocada mais uma vez. Separo as
panelas, o macarrão e os queijos, antes de caminhar em direção à
porta.
— Allura, já disse que pode entrar! — grito, abrindo a porta.
Mas não é Allura. É Mikael.
Até me surpreendo em vê-lo, especialmente por estar usando
seus habituais óculos redondos.
— E aí — me cumprimenta.
— Mikael, tô sem paciência para você hoje. Volta outra hora...
— Empurro a minha porta com apenas um toque de mão,
começando a me afastar.
Mas não escuto o baque da porta contra o batente, pelo
contrário, Mikael a impede de fechar, porque segura a madeira. Ele a
abre, entrando no hall principal do meu apartamento.
— Calma, amora mio! — pede, com as mãos erguidas. —
Allura me disse que você não estava se sentindo bem e vim conferir
se você precisava de algo.
Cruzo meus braços, desconfiada.
Desde quando ele é tão prestativo assim?
— E cadê a Alli?
— Adiantando algumas cenas — rebate, sem rodeios. —
Estou falando sério. Apenas nos vimos em uma cena ou outra e ela
me falou. Está tudo bem? — pergunta, descendo o olhar até mim.
Mikael é um cara bonito, mas ele fica melhor usando óculos. Como
não respondo nada, ele fecha a porta com cuidado e garante: — Vim
em paz. Pelo menos hoje. O que houve?
Remexo meus lábios para todos os lados; não adianta brigar
hoje, ainda mais sabendo que não vou vencer.
— Vem — dito, dando as costas para ele e caminhando de
volta para a cozinha. — Vou fazer o meu almoço.
— Às quatro horas? — enfatiza. Fuzilo-o com o olhar. — Ok,
ok. Estou brincando, você faz o que quiser!
Na cozinha, me apego novamente ao balcão, começando a
ferver a água.
— Você quer saber o que aconteceu ou não se lembra?
— Não me lembro! — responde sem remorso algum. —
Refresque a minha memória.
Ele se senta na cadeira, o que é bom, porque não gosto de
ajuda para cozinhar. E pretendo fazer nosso almoço/jantar de
qualquer forma.
Enquanto cozinho, conto a Mikael exatamente como descobri
a Síndrome de Meniere e como ela é a coisa mais chata de toda a
minha vida, deixando pontuado que “chata” ainda é uma forma
bonitinha de me referir a ela. Explico os exames de rotina, as
audiometrias, as consultas noturnas e sobre meus remédios. Falo
sobre a audição flutuante e como é chato precisar fazer um esforço
surreal para ouvir sussurros ou palavras mal ditas. Falo sobre os
comprimidos que tomo duas vezes ao dia e as vitaminas que servem
como um grande reforço. E como é doloroso perceber que um
avanço de seis meses sem sofrer nada, é facilmente zerado quando
uma nova crise começa. É questão de lidar, dia após dia, como uma
casa feita de tijolos.
Ou um castelo de cartas, quando alguém assopra de longe e
tudo desmorona.
Quando termino de narrar toda a história — sem receber nem
uma palavra vinda dele — , já estou servindo o macarrão com molho
de quatro queijos. Mikael pega chá gelado de pêssego na geladeira e
se prepara para experimentar a minha comida. Ele está quieto e
preocupado e essas duas descrições não combinam com ele. Não
quero que ele sinta pena de mim e fico agradecida que o sentimento
sequer traça o seu rosto.
Ele se senta à minha frente, à mesa, me servindo com o chá.
— Eu...
— Não quero que diga nada — o interrompo, mas com
paciência. Não estou sendo rude e nem hostil, apenas preservo o
seu silêncio. — Não tem cura, a doença... Se quer saber. E às vezes
palavras não curam nada, prefiro conversar sobre qualquer outra
coisa.
Paciente, ele engole o que ia proferir e assente lentamente
com o rosto.
— Está bem, ok — concorda, separando o garfo da faca e
mergulhando no macarrão de uma vez. Ele corta as peças e leva até
a boca, mastigando de olhos fechados. — Cacete, Georgia! Isso aqui
está ótimo!
— Verdade? — Olho para o meu prato, indecisa. Parece
apetitoso, porém não é o melhor macarrão que eu já fiz. — Eu vou
ficar muito puta se você estiver mentindo apenas porque estou de
repouso!
— Eu não minto — diz, de boca cheia. — Se estivesse
horrível, eu já teria ido embora, mas isso aqui... — Ele aponta várias
vezes para a comida. — Está bom pra caralho!
— Ok, aceito o elogio!
— Agora entendi por que você quer abrir um restaurante! —
soluciona. — Posso pegar mais? — Mikael arregala os olhos.
— Você nem terminou de comer ainda!
— E daí? Já quero mais! — Mikael se levanta, caminhando
até a panela fervente e se servindo generosamente com o molho e
com o macarrão. Experimento a minha comida e, apesar de estar
deliciosa, meu ego já está completamente inflado com seus elogios.
E suas caras e bocas. — Se sobrar, posso levar uma marmita?
— Mikael?!
— Pro Pedro e pro Gael, caramba! — Ele volta a se sentar. —
Eles merecem provar isso aqui!
— Enfim... — Desmancho meu sorriso, começando a comer.
— Claro que pode.
— Vou parar de pedir o cardápio do hotel, vou vir jantar aqui
todos os dias! — Se convida na cara de pau. — Só quando você for
cozinhar, é claro!
— Tudo bem, eu acho — murmuro. — Cozinhar me ajuda
bastante. Allura adora as minhas sobremesas.
— Quero experimentar. Se rolar ainda hoje, fico por aqui.
— Posso fazer torta de banana com doce de leite.
— Aceito! — brada. — Aceito mil vezes!
O riso que se esvai da minha garganta me surpreende, então,
decido desmanchá-lo novamente. Abaixo a minha cabeça e começo
a comer. Fico totalmente em silêncio, apenas sacudindo o queixo
positivamente quando ele me pergunta se sei cozinhar mais alguma
coisa.
Depois que saímos da festa de começo das filmagens, cada
um seguiu para um lado. Mas a fanfic foi capaz de nos manter
entretidos — e sem brigar — por aquela meia hora restante. Fotos
nossas estão circulando por toda a parte, e os fãs esperam
ansiosamente uma confirmação.
Reúno as minhas mãos no centro do colo, pensando em como
nossa estética poderia combinar, se fizéssemos tudo com
propriedade. Nem mesmo o Esquadrão do Namoro Falso arranjou
tempo para nos reunirmos.
Quando termina de comer tudo, Mikael se recosta na cadeira
e fica me vigiando comer, quieto.
— Não quero voltar ao assunto — diz, com uma seriedade
que me faz ficar em alerta. — Mas eu só ia dizer que pode contar
comigo. Sei que você me odeia e acredite, você é insuportável, mas
vou abaixar as minhas armas em todas essas ocasiões. Pode contar
comigo, se quiser — evidencia. — Se quiser desabafar sobre essa
coisa, essa doença, estou aqui também, Georgia.
Confirmo com a cabeça, processando todas as suas palavras.
— Obrigada, Mikael — agradeço sinceramente. — Mas não
quero falar disso. Nem com você e nem com ninguém. Não é
pessoal, não quero que pense nisso. Só não quero!
— Ok — ele concorda, sem se sentir ofendido. — Então,
vamos ficar em silêncio juntos.
Dessa vez, não consigo controlar meu sorriso.
15: merengue
INGREDIENTES: cream cheese, requeijão, creme de leite, leite condensado,
gelatina incolor, bolacha maisena, amora, morango, framboesa, açúcar.
— Onde você esteve nesses últimos dois dias? — A pergunta
de Allura é acompanhada com certa incredibilidade, enquanto
sustenta um olhar desconfiado, mas não posso culpá-la.
Não quando tudo está acontecendo ao mesmo tempo.
Quero dizer, não quando tudo resolveu acontecer em apenas
um final de semana.
— Trabalhando — resumo. Ellen me deu um dia inteiro de
folga graças à crise, então, foi um acordo justo que eu trabalhasse
redobrado o sábado e o domingo para repor cenas, estudar roteiro e
script. Agora já é segunda-feira novamente e a Farol está
mergulhada em fofocas quentinhas para começar o dia bem. — E
assistindo Glee. Vi o final de semana inteiro. Cheguei em casa, não
mexi em nada e apenas dormi, comi e assisti.
E claro, antes disso, Mikael me visitou. A lembrança se refaz
na minha mente.
Foi muito bom ficar em silêncio com Mikael. Ele apenas
tagarelou por horas sobre seu time de futebol favorito e como adorou
viajar para a Argentina quando tinha quinze anos. O resto, eu
esqueci, porque ele fala muito quando quer. Ao mesmo tempo em
que ainda não sei muitas coisas sobre ele. Mas reparei que ele é
apaixonado pelo o que faz, e sua decisão em sair da banda não
condiz com a verdadeira realidade.
Alli pisca as pálpebras, erguendo uma sobrancelha, como
quem diz “Você precisa se atualizar mais”.
— Bom... — Allura se serve com café expresso em um copo
de papel e coloca a sua tampa. Estamos paradas em um dos
corredores da Farol, no carrinho de café da manhã da Dona Safira, a
pessoa mais fofoqueira que conheço, tirando Allura Guispe. — Justo.
Glee é realmente ótimo, porém, muita coisa aconteceu! Tipo assim...
Muita, Gê!
Estou usando roupas largas e velhas, porque meu cabelo está
sustentando uma touca capilar para retocar a raiz e o tom de azul-
turquesa do meu cabelo, e tinta azul mancha mais do que qualquer
outra. Tenho uma maratona de cenas para gravar e parece que
estive fora ou isolada do país por um ano. Os corredores da
emissora estão fervorosos e todos parecem cochichar por todos os
cantos possíveis. Incluindo, é claro, no carrinho de Dona Safira, o
point ideal para saber as últimas novidades.
Ivy está em Londres, lidando com seus outros atores
agenciados, mas disse que retorna na semana que vem, totalmente
livre para acompanhar minha carreira de perto.
Para falar a verdade, desde sábado estou vivendo no modo
automático. Não tive nenhuma conversa significativa desde que o dia
começou, porque todas as pessoas parecem que estão embolando
um assunto no outro, dispostas a descobrirem mais e mais sobre a
vida de seus famosos favoritos.
— Quer um bolinho de chocolate, meu amor? — Dona Safira
oferece, delicada e amorosa como sempre.
Ela é dona de uma confeitaria no centro do Rio de Janeiro. E
como seus bolinhos ganharam um concurso municipal há três anos,
Safira chamou a atenção de um dos herdeiros da Farol, que decidiu
contratá-la prontamente. Há uma franquia de Safi & Safi onde quer
que eu vá. A de São Paulo é enorme e decorada com o tema de
coelhinhos. A de Madre Rita é no centro e é apenas uma portinhola
que trabalha com entregas. Sem contar na filial dentro da emissora.
E como ela é uma sensação aonde quer que vá, não foi
novidade quando descobri que ela traria seu carrinho de café da
manhã para Madre Rita.
— Não, obrigada. Vou ficar com esse de baunilha — pego um
dos bolinhos fofinhos da cesta principal e sorrio. Dona Safira sempre
me oferece um bolinho de chocolate, ela ainda não descobriu que
simplesmente não como esse doce em específico, mas não tenho
coragem de contar. Ela sempre parece tão dedicada e ansiosa
quando me oferece, que ainda não cheguei ao momento de
confidenciar a verdade. — E suco de laranja!
Ela também ainda não reparou que simplesmente não bebo
café, mas é atenciosa comigo. Sua pele é branca, marcada pela
idade com pintinhas amarelas e vermelhas, seu cabelo é branco e
pomposo e Safira parece uma doce vovózinha.
— Mas eu vou querer o de chocolate belga. Dois para viagem!
Apesar do dia estar carregado de informações, há apenas
Allura e eu no carrinho de Dona Safira. O que só pode significar uma
coisa; uma das fofocas me envolve.
— Vish — Safira brada, surpresa. — Não tem mais o de
chocolate belga. Vou buscar na praça de alimentação, espera um
pouco, meu bem!
— Claro, Dona Safira! — Allura sorri, deixando que ela dê a
volta pelo carrinho e siga seu caminho a passos lentos. — Enfim,
agora que a velha fofoqueira se foi, posso falar!
— Allura! — repreendo.
— Que foi? — indaga sinceramente. Ela segura o copo de
café com força, parecendo uma patricinha saída de um filme
adolescente. — Eu adoro a Dona Safira, mas não posso falar nada
perto dela. Com certeza, se vazar uma informação aqui, a Farol
inteira vai saber em menos de um dia.
— Ok. — Dou risada baixinho. — Me conta tudo. — Mordo um
pedacinho do meu bolo.
— Enquanto você estava assistindo Glee, muita coisa
aconteceu. Especialmente com os meninos da Desvio... Todos eles
saíram na mídia! — Allura confirma. — Você não sabe de nada,
mesmo?
— Nada. Nadica de nada. — Dou de ombros. — Me conta
logo!
— Vamos começar pelas partes... Boas?! — inicia, confusa. —
Pedro está fora do país por apenas cinco dias. Ele foi buscar a
Beatriz em Nova York, para ela poder assistir o último show da
Desvio antes da turnê Malévola se encerrar.
— Fofo — decreto. Subo meus ombros. — O que tem de mais
nisso?
— Eles estão noivos! — Ela solta, erguendo as sobrancelhas,
ao mesmo tempo em que meu queixo cai. — Beatriz simplesmente
postou uma foto com um anel enorme. Os dois estão emocionados
na foto. Então, depois que a turnê se encerrar oficialmente, Pedro se
casará!
— Uou!
— Sim! — troveja, animada. — Todos estão muito felizes.
Sério. Gael só faltava pular de alegria quando saímos... Quase
pegou o primeiro voo. — Ela perde seu olhar na parede mais
próxima, apenas sorrindo feito boba. — Enfim, a segunda fofoca é
sobre mim. — Ela desperta do transe da paixonite e me encara. —
Gael e eu fomos flagrados aos beijos em uma festa. A minha
assessoria já publicou uma nota dizendo que estamos nos
conhecendo melhor e ficou por isso mesmo. Porém, já estão pirando.
Shippando, declarando torcida... Essas coisas invasivas de sempre.
— Você não me contou isso... — Toco o ombro de Allura. —
Está tudo bem?
— Está! — confirma. E não está mentindo, conheço Alli bem o
suficiente para saber quando está concordando apenas por
concordar. — Por incrível que pareça, estou bem. Gael é ótimo e
sempre estamos conversando. Nós sabemos que não queremos um
relacionamento agora e “Conhecendo melhor” é um ótimo meio de
dizer “Estamos transando, mas não temos a intenção de casar”.
Murcho os olhos.
— Intenso — comento, retirando minha mão de seu ombro. —
E o que mais?
— Bernardo — pontua. Ela faz uma pausa, bebendo um gole
do café, porque duas assistentes de elenco acabam de passar por
nós. Sussurrando entre si, é claro. Apenas quando desaparecem na
curva do corredor seguinte, Alli me encara. — Bernardo e Amanda
foram vistos na praia de Concha Amarela ontem à tarde. Os dois
estavam abraçados e... Chorando?! Foi difícil entender a foto, mas
os dois não pareciam felizes. Estavam preocupados, como se
estivessem passando apoio um para o outro.
Engulo em seco, mantendo meus olhos atentos a tudo o que
ela diz.
O que isso significa?
Eles estão juntos? Eles terminaram? Tiveram uma briga?
Ela pega seu celular, abrindo na foto dos dois. Amanda está
chorosa, com a cabeça apoiada no ombro de Bernardo, que faz
carinho nos fios castanho-cobre dela. Ambos estão usando roupas
comuns. Não parecem celebridades antenadas na moda vinte e
quatro horas por dia. Vendo assim, podem até se misturar em uma
multidão e acabar passando por pessoas anônimas.
— O que isso significa? — pergunto, olhando dela e pro
celular algumas vezes.
— Não sei — Alli suspira, cansada. — O que eu sei, é que
está na cara que eles estão juntos. E as pessoas não estão deixando
barato. Acusando Amanda de traição e xingando o Bernardo. Os dois
desativaram as redes sociais e pediram um tempo para assimilar
tudo e prometeram que, quando voltarem, farão questão de contar
exatamente o que está acontecendo.
— Meu Deus — murmuro, estática. — E eu estava ocupada
me emocionando com o Blaine cantando Teenage Dream para o Kurt
pela décima vez na vida — solto. — Não que eu me arrependa.
Aquela cena é maravilhosa!
Alli ri da minha piada, gostando do tom leve.
Mas preciso dizer que estou terrivelmente preocupada com
Amanda. E com Bernardo. Pelas fotos, eles não parecem o casal
feliz e desencanados com a vida do qual Mikael tanto me falou.
— Ok... — digo, apreensiva. Deixo meu suco e meu bolinho
em cima do carrinho. Perdi um pouco a fome. — Você disse que
todos da banda possuíam fofocas próprias. Qual a última?
— Mikael — enfatiza, revirando glamourosamente os olhos. —
Foi visto saindo de uma balada de mãos dadas com a Sofia Balloi,
sabe? — pergunta, sendo retórica. Faço um sinal com a boca,
dizendo que não. — Ela é uma blogueira de moda sustentável, sócia
de um centro de adoção de animais domésticos. É filha do Sérgio
Balloi, aquele político que sempre é desmascarado traindo a esposa.
— Certo. E daí?
Alli franze a boca.
— Você é namorada dele!
A frase me desperta o que ainda não tinha analisado; se
Mikael aparece com outra pessoa, é claro que meu nome será
rapidamente vinculado ao dele. E se meu nome está rodando por aí,
eu não tenho justamente o que pedi.
Paz.
Ainda com o cabelo cheirando à tinta capilar, aproveito o
tempo em que a química não age nos meus fios para cruzar a Farol
atrás do babaca que é meu namorado de mentira.
A parte ruim é que seu camarim fica do outro lado da Farol,
então as pessoas podem especular que estou a caminho de uma
briga extensa sobre fidelidade ou até mesmo buscando um
compromisso, mas só quero dizer em sua cara o quanto ele é
mentiroso. E que não consegue se manter longe de uma garota por
dois segundos.
Sim, ele pode fazer o que quiser. Ele é solteiro, mas eu só
pedi discrição, porque sabia que isso iria acontecer.
Os olhares curiosos me acompanham por onde eu passo,
porque o caminho que faço é sempre o mesmo. Sorrio na direção
das pessoas que conheço, indicando que estou muito bem e de bom
humor — apesar de estar usando roupas rasgadas e ter alumínio por
toda a parte de um cabelo azul.
Só paro de andar quando noto que duas pessoas vêm na
minha direção. Elas ainda não me viram, porque estão conversando
com uma terceira pessoa, uma assistente particular. Elas são as
últimas pessoas que quero ver no momento, e a única oportunidade
que tenho de fugir é me enfiando em alguma sala. Tenho que pensar
rápido antes que elas, as pessoas, me vejam.
Mas não sou muito rápida, porque os irmãos Farol reparam
em mim com muita facilidade.
Eles se interessam pela minha presença e vejo como o rosto
deles se enche de reconhecimento. Depois que recitam algumas
informações para a assistente, Claudia sorri friamente para mim,
levantando um dedo, pedindo para que eu a espere. Ricardo, no
entanto, pede que a assistente lhe acompanhe.
— Georgia, oi! — Ricardo me cumprimenta. Um sorriso frio e
sem intensidade preenche seus lábios finos. — Está tudo bem?
Queria que eles tivessem me ignorado.
A herdeira da emissora caminha, sútil, até onde eu estou.
Seus saltos baixos fazem um barulho costumeiro contra o piso e seu
sorriso falso, vai apenas se alargando em uma careta que mais
parece de dor do que de simpatia.
— Ah, oi... Ricardo. — Tento ignorar Claudia tão perto de mim.
Ela está me analisando enquanto converso com seu irmão mais
velho. É desconfortável me sentir observada. — Estou bem, sim...
apenas... estou... caminhando.
— Sei. — Ricardo Farol está desconfiado, mas não tem muito
o que dizer. Não quando estou com meu cabelo inteiramente
bagunçado. — Bem, eu vou indo, Claudia . Te encontro mais tarde?
— Claro, claro! — Claudia gesticula com as mãos e se
despede do irmão e da assistente. Trocamos mais uma leva de
sorrisos robóticos. Quando estamos sozinhas, ela infla o peito e diz:
— Georgia! — vibra, abrindo os braços, mas não chega a me
abraçar. — Eu estava mesmo pensando em ir até seu camarim... Dar
uma passada, dizer um “oi.”
— É? — sibilo juntando as minhas mãos. — Podia ter
passado, claro.
Ela morde os lábios, pensativa e sacode o rosto
positivamente.
— Sim, sim. Mas ainda não tive tempo... Sabe como é.
— Ah, sim. Sei.
Seus olhos, sagazes, se fixam na tinta no alto do meu couro
cabeludo. Ela deve estar pensando aonde eu vou com tanta pressa.
Já que deveria estar reclusa no meu próprio camarim, esperando os
últimos retoques do meu cabeleireiro. Ela me trata assim, desse jeito
peculiarmente intimidador, desde o dia que começou a desconfiar de
que eu estava namorando com seu adorado filho mais velho, Téo.
Ele é aquela pessoa nascida em berço de ouro que, para a mãe,
nenhuma garota é suficiente para agradá-la. Nem uma.
Claro que nada aconteceu entre nós, mas ela convive com
essa dúvida.
— E como vai o Mika? — pergunta, fingindo honestidade. Seu
tom é ácido, quase como uma alfinetada. — Soube que vocês estão
se... Conhecendo melhor?!
As fofocas.
As fotos.
Os boatos.
Porra. Ela sabe.
— Sim... Somos apenas amigos. Mas somos carinhosos um
com o outro, sabe? — pergunto retoricamente. Não posso engolir em
seco. — Mikael deve estar bem. Andamos muito ocupados
ultimamente.
— Algo aconteceu? — quer saber, sendo uma falsa solidária.
— Porque acho que ele não está tão ocupado assim, Georgia. Se me
permite dizer, ele parece com muito tempo livre. Se estivesse
preocupado com alguma coisa, suponho que não teria saído com a
Sofia Balloi no final de semana.
Cacete.
Cacete
Cacete.
— Vocês brigaram? — questiona, frisando outro assunto. —
Porque se sim, é melhor resolverem. Não gosto de conflitos entre os
atores principais de uma novela que mal estreou.
— Não, não brigamos. Mas... Como ainda estamos na fase de
amigos, podemos sair com quem quisermos — explico, ajustando a
minha postura. — Porque, afinal, o que conta mesmo é o que
sentimos. Fofocas são malvadas em sua maioria, não é legal
acreditar em tudo o que vemos. Não acha?
Meu tom é petulante e ela o reconhece na mesma hora, mas
não quer ser conhecida como a “herdeira que acredita em
suposições da mídia”, não quando ela mesma sofre constantemente
com as opiniões distorcidas da imprensa.
— Realmente. Tem razão... — assume, cordial. Ela me analisa
um pouco, os olhos levemente semicerrados, enfatizando que
estamos com toda a sua atenção. Mikael e eu. — Georgia, se eu
pudesse te dar um conselho, sinceramente, de amiga para amiga, eu
diria para tomar cuidado.
Pisco algumas vezes, perdida em suas palavras.
— Com o que, especialmente?
Ela sorri, soltando um riso mais parecido com um uivo. Ela
toca nos lábios preenchidos por uma cor sem graça de rosa e se
aproxima de mim. Claudia Farol segura minha mão esquerda,
envolvendo-a entre seus dedos.
— A novela mal estreou e vocês estão... Juntos. Quero dizer...
Talvez estejam mentindo que se amam... Mas alguma coisa está
acontecendo, e o público está amando, minha querida! — Ela bate
no dorso da minha mão. Seus anéis estão em uma temperatura
baixíssima contra a minha pele. — A publicidade é positiva. Seu
último trabalho, a volta de Mikael para a TV. Vocês são os
queridinhos do momento, e todos os olhos estão voltados para
vocês. Inclusive os meus! — Ela pisca, divertida. — Isso quer dizer
que demorará meses até as pessoas se cansarem de vocês.
— Sim?!
— Georgia. — Claudia suspira novamente. — Não seja boba.
Uma publicidade negativa fará com que a novela seja mal vista e eu
não posso deixar que isso aconteça. Na realidade, Ricardo e eu não
podemos deixar. Não debaixo dos nossos narizes... Se fosse uma
situação desenfreada, eu entenderia — recita. — Mas algo me diz
que você e o Mika possuem tudo sob controle. Estou errada?
Não respondo, não esboço reação alguma.
— Se alguma coisa acontecer, e você acabar se prejudicando,
demorará algum tempo até que tenha a mesma credibilidade de
antes. Consegue me entender? — Claudia tomba a cabeça para o
lado. — Mas... A Farol sempre estará com as portas abertas para
você. Sempre.
A ameaça é passiva-agressiva. É quase como “Você não quer
ficar mais um ano aqui, quer?”.
E se a minha carreira não for mais a mesma, a Farol terá um
“prazer” inconfundível em me manter no catálogo de atores.
— Eu te conheço desde que tinha cinco anos. É uma das
pessoas mais inteligentes que tenho o prazer de ter por perto. — Ela
dá pequenas batidas nos meus dedos e me solta, sorrindo
rudemente. — Tenho certeza que saberá o que fazer. Não é?
Assinto, preferindo entender suas palavras antes de reagir.
— Ótimo — confirma. — Eu sou velha nesta emissora. Assisti
dezenas de casais se formando... Ao mesmo tempo em que os vi
ruindo. Seria uma pena se acontecesse isso com vocês — lamenta,
ao piscar, inocente, para mim. — Bom trabalho, meu bem. Estou
ansiosa para a estreia!
Sem esperar pela minha réplica, Claudia Farol segue seu
caminho pelos corredores, me deixando sozinha, apenas com a
companhia dos meus pensamentos mais cansativos.
16: suspiro rosa
INGREDIENTES: corante, claras, açúcar.

Provavelmente, a pior parte em confiar em alguém que você


não deveria, é que acaba se dando mal — exatamente da forma que
você julgou que se daria. E acaba se sentindo uma idiota, porque é
quase predestinado que aquela pessoa trate a vida como uma
enorme festa, sem hora para terminar.
Depois da maravilhosa conversa com Claudia Farol, meus
pensamentos desconectados me guiam para o lugar onde já deveria
ter chegado. Não sei o motivo, mas suas palavras fazem uma
retrospectiva de acontecimentos na minha vida e percebo que tudo é
bem mais frágil pro meu lado. Sempre foi — e, sinceramente, espero
que um dia isso mude.
Entro na habitual entrada do corredor sem saída que tanto
conheço e paro na frente do camarim de Mikael. Porta trezentos e
trinta. Inflo meu peito, respirando fundo, como se a porta fosse seu
próprio rostinho cínico de merda. Com a coragem retomada, bato na
porta duas vezes, chamando pelo seu nome. Ácida e determinada.
Mas não recebo resposta alguma.
Deveria ter olhado na escala de atores.
Ele veio hoje?
Aposto que sim.
— Mikael! — Fecho minhas mãos em dois punhos, batendo
com força. Quanto mais seu silêncio é mantido, mas irritada fico. —
Mikael! — tento. Então, paro abruptamente. Usar uma porta como
sacos de pancadas não vai funcionar.
Forço a maçaneta a girar, estancando meus gritos pela minha
garganta. A passagem está destrancada, então posso esperar o
cantor em seu próprio camarim. Esperá-lo voltar de sei-lá-onde-ele-
foi. Entro rapidamente, segurando-a e a fechando com um baque
alto.
Porém, é assim que descubro o motivo de seu total silêncio.
Mikael está entrelaçado junto ao corpo de uma garota, com
aparentemente nossa idade, no sofá principal. A saia dela, de grife e
de seda, está embolada na altura da cintura, sua calcinha rendada é
visível, assim como parte de sua bunda. Mikael está sem roupa,
contendo apenas uma cueca escondendo sua virilha da dela. Os
lábios de ambos estão inchados e avermelhados, porque posso
imaginar que trocaram muitos beijos — ou que estão aqui há horas.
O choque traça o rosto da garota imediatamente, empurrando
Mikael para longe. Ela está sem a parte de cima também, usando um
sutiã muito bonito decorado com corações. Seu cabelo é liso e preto,
e seu rosto oval destaca sua beleza. Natural e jovial.
— Primeira regra para o sexo — ergo meu dedo. — Tranque a
porta, gênio!
— Olá, amora mio! — Mikael me lança um sorriso mordaz e
completamente áspero. Ele está achando engraçado o flagra, ao
mesmo tempo em que gostaria de estar fodendo ao lado da garota
misteriosa. — Ao que devo a visita? — Ele se estica para pegar os
óculos na mesinha de centro e se recosta no assento, colocando as
mãos para trás da nuca. — Por que você parece que saiu de um
desenho animado?
Forjo um sorriso.
— Posso conversar com ele a sós? — ignoro-o, encarando a
garota. Seu batom está borrado e o rímel derretido em sua face. — É
coisa rápida. Depois vocês continuam o que pararam.
— Ah, claro. Desculpe! — Ela pede educadamente,
começando a juntar as peças do chão. Pega os saltos, o restante da
camiseta e veste tudo em poucos instantes. Ajeita o cabelo cheio de
nós com o dedo e pega sua bolsa. — Melhor. Eu vou embora...
Depois... — Ela se volta para Mikael. — Depois te ligo.
— Ok. — Mikael pisca. — Vou esperar.
Com a cabeça baixa, ela passa perto de mim, com os dedos
esticados para pegar a maçaneta.
— Sei que pode soar estranho... — A garota diz para mim,
tímida. — Mas será que posso tirar uma foto com você? —
questiona, inocente. — Sou sua fã.
Tá de brincadeira?
— Acho que vamos nos encontrar mais vezes — garanto,
escolhendo as minhas palavras e sorrindo. — E então, peça a foto.
Não quero sair assim, enquanto retoco a minha raiz!
— Ah... — Ela fita meu couro cabeludo, como se só tivesse
reparado agora na curiosa situação em que estou. — Claro. Claro...
Me desculpe... Enfim, tchau!
Envergonhada, ela desaparece pela porta, e é o momento que
utilizo para me trancar ao lado de Mikael. Ao ouvir a chave passando
pela fechadura, Mikael sorri, ainda sem um pingo de vontade de
vestir alguma roupa.
— Sofia. — Ele aponta para a porta. — Sofia Balloi. Conhece?
— Não, mas não queria ter visto o que vi — retruco. — Enfim,
você deve saber porque estou aqui.
— Porque eu vacilei?
— Obviamente, se tivesse feito algo decente eu estaria
cuidando da minha vida e não garantindo que meu nome seja
associado ao seu mais uma vez!
Mikael faz uma careta, puxando um maço de cigarros da
mesa de centro ao se levantar.
— Seus pais não te deram educação, não? — praguejo.
— Eles tentaram... — Mikael ri pelo nariz e abafa o som. —
Antes do esporro, quer beber alguma coisa? — pergunta,
caminhando em direção ao frigobar e pegando suas garrafinhas de
água gelada. Uma para mim, uma para ele. — Tem suco também, se
quiser.
— Ah, não. Não vim aqui te dar um esporro. — Nego com a
cabeça e com os dedos.
Mikael para no lugar, extremamente confuso. Com os olhos
presos em mim, ele acende o primeiro cigarro, abrindo a garrafa e se
sentando no sofá. Suas sobrancelhas grossas se mantêm juntas no
centro da testa e ele procura algum tipo de explicação pela minha
vinda.
— E então? — incentiva a minha fala.
— Claudia Farol me parou no corredor — começo a falar,
andando pelo seu camarim e tocando em objetos aleatórios. — Por
um triz, não se tornou uma conversa entre eu, ela e o Ricardo. – Me
aproximo de sua escova de cabelo favorita apoiada na penteadeira e
suas maquiagens. Há certas cores de delineador que nem eu mesma
tenho. — E sabe o que ela disse?
— Que você é linda? — sugere.
— Quase. — Me encaro no espelho, fingindo ajeitar o meu
cabelo bagunçado. — Disse que está de olho em nós — disparo,
suavemente. Ou ao menos, tentando. — Ela não disse exatamente
com essas palavras, mas imagino que sim.
— E o que isso significa?
Me viro na sua direção, me apoiando no encosto do sofá de
frente para ele.
— Significa que, se estragarmos tudo, com essa merda de
namoro falso, a estreia positiva da novela, eu terei que ficar aqui por
mais um ano — resumo. — E que se você fizer algo que estrague a
imagem de “casal perfeito” que estamos tentando vender, pode ter
certeza que teremos contas a prestar a ela. E a Farol, com certeza.
— Ninguém sabe que eu estou ficando com a Sofia.
— Além do Brasil inteiro... — alfineto.
— Nas fotos estamos de mãos dadas — retruca. — Amigos
andam de mãos dadas.
— Você se faz de besta, não é? — pergunto retoricamente. —
Uma fofoca não funciona com racionalidade. Ela funciona com aquilo
que as pessoas podem e querem enxergar. — Respiro fundo.
Mikael não responde, apenas continua fumando. Não
confiante, não sendo um babaca sem escrúpulos, apenas continua a
tarefa que está fazendo. De cueca, sem camisa, com os fios
bagunçados, esboçando a selvageria que ele tanto ama e idolatra.
— E sabe por que não vou te dar um esporro, Mikael? Porque
você sabe de tudo. — Dou de ombros. — Sabe que é importante
para mim a minha aposentadoria, sabe que não quero mais trabalhar
aqui. Sabe que meu novo objetivo é meu bistrô. Você sabe. Sabe
que Sofia é uma garota legal e que pode, eventualmente, gostar de
você de verdade. Sabe que sente falta da amizade de Bernardo
todos os dias, e tudo o que você faz para magoar seu melhor amigo
apenas volta contra você. Então, você entra em um espiral de
chateação e mágoa, completamente viciado em fazer o que puder
para provar ao mundo que você não dá a mínima para nada, quando
nitidamente se importa.
— É que...
— Ama a Desvio, mas está pensando em sair, mesmo não
querendo. Porque você ama essa construção fantasiosa de que é
importante o suficiente para fazer um buraco na banda — falo
teatralmente. — Quem sentirá mais falta de Desvio é você. Dos
shows, dos fãs, das viagens. Mas não, como está terrivelmente
chateado, quer jogar tudo para o alto porque não sabe encarar os
próprios sentimentos. Suas emoções movem suas ações, e isso te
frustra.
— Georgia, eu...
— Você é inteligente e é preocupado — o interrompo
novamente. — E agora, consigo perceber que você é um cara legal!
— Sou? — Se surpreende, deixando o rosto oscilar.
— Sim, você é — assumo francamente. — Mas sua armadura
de cara mau é bem maior do que a sua bondade, então complica.
Não quer que as pessoas te vejam como é, porque tem medo de
sofrer. Ama, mas com cautela. Cuida com frequência, mas não quer
ser cuidado. Prefere magoar primeiro, do que ser magoado. Acredita
no amor, mas não acha que seja merecedor dele. É sincero, mas não
com você mesmo. E, principalmente, tem ciência do mundo que
vivemos, mas que finge que não. — Cruzo meus braços. —
Acontece, Mikael, que um deslize meu é apenas o começo do meu
fim. Meus pais lutaram para que as minhas aulas fossem quitadas.
Enquanto... Posso presumir que você tenha sido descoberto
magicamente. Seus erros geram fofoca, adrenalina, idolatria. Os
meus são duros, fortes, me acompanharão para onde quer que eu vá
e nem sempre terei a oportunidade de pedir desculpas.
Dou a volta no sofá, retirando o seu cigarro da sua boca e o
colocando entre meus dedos.
— Você é aquela pessoa que todos darão mil chances para
tentar acertar. Eu sou a pessoa que, se errar uma vez, posso me
despedir de tudo o que conheço. — Me encaro no espelho
novamente. Pelo menos, se eu fumasse, eu ficaria linda. — E sabe o
que é o pior? — me viro para ele, estática. — Que você sabe de tudo
isso. Você se importa comigo. E a única coisa que pedi a você foi...
Que eu tivesse paz na minha saída. Que eu o ajudaria... E sabe o
que você faz? Não se importa em ser visto com outra pessoa,
sabendo que poderia cair nas minhas costas. E porra, Mikael? —
Reviro os olhos, apagando seu cigarro no cinzeiro mais próximo. —
Não quero ser a coitadinha. Aliás, nem sua namorada eu quero ser!
Me aproximo dele, me sentando no sofá à sua frente. Ele me
olha com coragem, apesar de estar totalmente abalado com o que eu
digo.
— Então, você finge. Sai por aí, ligando o foda-se. Achando
que o mundo é seu, porque as pessoas te fizeram acreditar que você
é dono de tudo. Tendo um acordo sério comigo e depois esquecendo
por alguns segundos... — Me recosto no móvel, esticando as minhas
pernas. — É inconsequente, imaturo e está chateado. E não
consegue reservar um tempo para si mesmo, porque uma vingança
pessoal é bem mais importante. Não é?
Finjo gargalhar.
— E sabe qual é o mais curioso? — solto. — Eu pensei em
você. Pensei nos seus sentimentos. Pensei em como poderia ajudar
a novela, como poderia te privar de algumas questões. Você só
pensa em você e eu deveria pensar mais em mim. — Sorrio de lado.
— Mas... Não levo jeito para babá, Mikael — gesticulo, fazendo um
sinal próximo do meu pescoço. — Muito menos de uma pessoa de
vinte e cinco anos.
Apoio meu rosto no meu queixo, esperando uma resposta
sincera vindo dele.
— Eu nem te conheço — acrescento, apenas para finalizar. —
E você não me conhece.
Envergonhado, ele não consegue dizer nada. É a primeira
vez, fora a festa de estreia, que consigo perceber sua camada de
proteção se desfazendo diante de mim, como um passe de mágica.
Mikael Devante coça sua cicatriz e com as mãos tamborilando no
joelho, ele se levanta.
De costas para mim, ele puxa uma camiseta qualquer da
arara de roupas, veste abruptamente. Depois, pega uma calça jeans
e a veste, ambas as peças estão amassadas, mas ele não se
importa. Ele ajeita os óculos no rosto e volta para perto de mim, se
sentando à minha frente. Junta as mãos nos joelhos, entrelaçando os
dedos, ao ficar pensativo.
— Desculpa — pede, em um fio de voz.
Não respondo. Não tem o que responder. Palavras são
bonitas e servem como um consolo quando queremos e estamos
dispostas a ouvi-las, mas são atos que fazem a verdadeira diferença.
Nem me dou ao trabalho de replicá-lo, não quando me sinto tão
baqueada.
— Eu vou atrás da Sofia — me avisa. — Pedir para ela não
contar a ninguém sobre... Nós — especifica. Continuo em silêncio. —
Me desculpa, Georgia. Eu não pensei em nada... Me desculpa. Eu
tinha prometido para você que a sua aposentadoria seria tranquila.
— Nunca seria. — Dou de ombros. — Não com você por
perto.
— Me desculpa — fala novamente. — Você tem razão. Em
tudo... Deveria estar reservando um tempo para te conhecer, porque
você está me ajudando mesmo com todo o nosso histórico. E eu
ainda não fiz isso.
Não estou comovida.
Sei que ele está falando a verdade, sei que o Mikael que
encontrei há alguns minutos é diferente desse que me fita com
seriedade, mas não estou abalada ou ressentida para aceitar. Quero
ver para crer e não sinto que estou errada.
— Se você quiser, eu fico aqui pedindo desculpa mil vezes! —
confessa. Faço uma careta. — Te dou um presente. Qualquer coisa.
Só me desculpa... — sugere, se aproximando um pouco de mim. —
Anda, amora mio. Me responde.
— Fará o que eu quiser? — pergunto maliciosa, cruzando
lentamente os meus braços. — Tipo... Qualquer coisa?
— Sim! — brada prontamente.
— Preciso trocar as vidraças do bistrô. O orçamento ficou
mais alto do que eu pensava... Eu tenho dinheiro, logicamente. Mas
você está insistindo tanto para me dar um presente, que aceito
vidraças novas! — Sorrio abertamente, fingindo felicidade.
— Claro, claro! — Mikael junta as mãos. — Vidraças, então.
São suas!
— Obrigada — cantarolo.
Nós ficamos em silêncio; hoje o dia em Madre Rita está
bonito, mas a ameaça de chuva é constante. Fico pensando em
Serafim, porém, espero que a tarde apresente apenas uma típica
tempestade de verão e nada mais que isso.
— E o que vamos fazer? — Mikael pergunta cautelosamente.
— Vamos dar um tempo... — ofereço a minha sugestão. —
Vamos fazer esse mistério de “O que está acontecendo?” e
oferecendo pistas de que estamos juntos. Curtidas em fotos,
comentários misteriosos, piadas internas. Não vamos nos deixar
abalar com as fotos, justamente porque não quero criar um péssimo
lugar para Sofia viver na internet. Nem para ela, nem para a
Amanda. — Arfo, não acreditando no que vou dizer a seguir. —
Quando a poeira abaixar, nós assumiremos o namoro. Isso deixará
Claudia feliz, e você disponível para pegar quem quiser, quando
quiser, mas não publicamente.
— Publicamente, deixará o Bernardo pensativo...
— Isso nunca foi sobre o Bernardo ou a Amanda — rio pelo
nariz. — Sempre foi sobre você!
Novamente, ele não tem o que responder.
— E se Bernardo fosse um pouquinho mais inteligente, ele
teria notado alguma coisa estranha. Já que eu e você nunca nos
demos bem... Enfim. — Me levanto. — Preciso tirar esse troço do
cabelo antes que meus fios derretam. Quando estivermos com
tempo livre, nós vamos nos reunir para decidir sobre o namoro
público.
— Sim, ok. — Mikael se levanta também, para me
acompanhar até a porta. Contudo, estou parada no espelho, me
admirando. O dele é três vezes maior que o meu e seu camarim
ainda dá para colocar uma cama. — O que está fazendo?
— Pensando se as minhas coisas cabem aqui — retruco no
mesmo instante.
— Como assim?
Me viro repentinamente até ele; meu peito se choca contra o
seu e uso a oportunidade para pousar a minha mão em seu
abdômen, cinicamente. Subo os dedos até atingir seu peito direito e
estufado.
— Você disse que faria o que eu quiser. Disse quando
fechamos o acordo e hoje. — Aumento meu sorriso. — E eu quero
trocar de camarim. O seu é enorme. E eu mereço!
— Você disse que tinha me desculpado! — se defende,
atônito.
— Não. — Nego com o dedo anelar da outra mão. — Eu disse
“obrigada”. O que é bem diferente de te desculpar... Quero as
vidraças e o camarim. E o que mais eu decidir!
Não sei por que ele ainda não tirou a minha mão de seu
peitoral, também não sei explicar por que eu mesma não faço isso.
— Claro... — diz, cansado. — O camarim é seu. Pode ficar
com ele.
— Ainda te odeio — ressalto.
— Não peço para que me ame — afirma, sério.
Sacudo a cabeça, em positivo.
— Obrigada. — Retiro a minha mão com cuidado. — Quando
a Ivy voltar de viagem, entre em contato com ela, para acertarmos o
orçamento das vidraças. Até lá... — aconselho. — Não apareça no
meu caminho novamente.
Mikael confirma com o queixo, abrindo a porta para eu poder
passar e ir, definitivamente, embora.

TÁ ROLANDO?
Mikael Devante e Sofia Balloi?
Estamos tontos e perdidos ao noticiar que o astro da música
brasileira andou se engraçando com nossa blogueira favorita!
Será que isso quer dizer que #MikaGeorgia já era?
17: bolo gelado de romeu e julieta
INGREDIENTES: açúcar, margarina, farinha de trigo, leite, fermento em pó,
chá de goiabada, leite condensado, coco ralado, queijo parmesão.

Em quase nove anos de agenciamento, Ivy só me deu três


broncas.
A primeira foi quando eu tinha dezesseis anos e caí enquanto
andava de skate. Quebrei a clavícula e torci o tornozelo dois dias
antes de viajarmos para a Guiana Francesa, onde um olheiro estava
ansioso para me conhecer. Ele queria que eu assinasse um contrato
gigantesco, afirmando que eu poderia sair da Farol para participar de
uma novela teen, visando a construção de uma girlband após
algumas temporadas.
Aquela era uma chance de ouro e Ivy fez questão de dizer o
quanto fui imatura, desmiolada e irresponsável. Ela disse outras
coisas em inglês também, mas como eu estava começando as
minhas aulas particulares, não entendi muita coisa. Ela deve ter me
chamado de coisas piores.
Aos dezenove, eu "sumi" por cincos dias, no Chile. Esqueci de
avisá-la que aquela seria a minha maior travessura em anos, quando
simplesmente decidi pegar um voo da Bolívia — onde visitei a família
de Allura — para o Chile, para conhecermos os alpes nevados. Ela
ficou furiosa comigo pela falta de informação e disse que não tinha
mais idade para aquilo. E sendo justa com Ivy, ela apenas faz o
trabalho dela.
E a terceira, quando meu nome voltou a estampar as notícias,
confirmando que eu estava sendo traída por Mikael. E ela precisou
voltar às pressas para o Brasil, para tentar dar um jeito em tudo.
Muitos dos nossos fãs já acreditam fielmente no nosso
envolvimento, e vê-lo ao lado de Sofia Balloi só contribuiu para que
as coisas esquentassem no mundo da internet — de uma forma
ruim, é claro. Há quem o defenda, afirmando que Mikael, até
segundas ordens, é solteiro. Há quem diga que preciso sair correndo
desse relacionamento que já começou fracassado e há as pessoas
que pedem desesperadamente para que Mikael e Amanda voltem
logo a namorar.
A bronca foi extensa e dolorosa, porque ela precisou entrar
em contato com a empresária da banda Desvio, para saber o que
fazer quanto às manchetes. Lola Santos deixou extremamente
pontuado que não concorda com namoro falso algum, mas que
precisam agir antes que as coisas se desgovernem. Estar na mira de
Claudia é a última coisa que as duas querem.
Tudo só piorou quando uma revista afirmou que o clima nos
bastidores da novela estava se tornando insuportável, porque Mikael
e eu não parávamos de brigar e que eu havia sido flagrada chorando
diversas vezes. O que é uma clara mentira, porque apesar de odiá-
lo, sempre fui muito boa escondendo isso.
Para acalmar os nervos, Ivy pediu — na verdade, ela exigiu —
que eu seja vista com Mikael depois de alguns dias após as notícias
falsas. Sem fazer qualquer anúncio na mídia ou post nas redes
sociais. Optou pelas atitudes, ao invés das palavras. Nossa resposta
para a mídia será visual e silenciosa.
Estou sentada no banco de trás de um carro, enquanto Ivy,
severa, está ao meu lado. Minhas roupas são comuns, estilo verão.
Meu cabelo está preso em um rabo de cavalo e a minha pele negra-
clara cheira a protetor solar.
O plano é simples; Mikael e eu vamos até um café, daqui a
poucas quadras, andaremos a pé e depois vamos passear na orla da
praia de Sereia Encantada, para sermos vistos, paparicados e
flagrados. Exatamente tudo o que nossos apoiadores querem e
desejam.
— Paguei três paparazzis — Ivy me informa, muito séria e
centrada. — E como eles são... Como vocês dizem?
— Encrenqueiros? — emendo.
— Ainda não é a palavra... é... Fofos? Fofoqueiros... Acho que
é isso. — Confusa, ela abana as mãos, não dando a mínima para o
erro. Abro um pequeno sorriso. — Enfim... Eles são essa palavra. E
vão acabar falando para os demais. Será um grande número até o
fim da tarde, tenho certeza que vocês serão vistos juntos, de bem,
com sorrisos. Nada de clima estranho. Me entendeu? — pergunta,
me encarando de lado. — Depois disso... Vocês podem pensar em
assumir o relacionamento, mas só quando a poeira baixar. Sofia está
se aproveitando da fama de qualquer forma, apesar de dizer que te
adora.
Ouço tudo com bastante atenção, concordando simplesmente.
Ivy e Lola fizeram uma reunião de emergência para poderem debater
sobre a limpeza da nossa imagem e do nosso nome. E Sofia não
parece que anda cooperando com isso; ela fez alguns vídeos,
afirmando que é apenas amiga de Mikael Devante, que nada
aconteceu entre eles. O que chama atenção, porém, é a maneira
divertida que ela responde todas as perguntas.
E não é a primeira vez que fotógrafos são pagos para estarem
no lugar certo, flagrando um casal lindo e apaixonado. Também não
vou ficar surpresa se Lola acabar pagando mais cinco ou seis
paparazzis.
— Ok, certo. — Dou de ombros. — Não vai ser difícil... Já que
eles vão dar com a língua nos dentes.
— O quê?
— Esquece — digo rindo, avistando o carro de Lola, a
empresária dele, se aproximando do outro lado da rua. — Vou me
encontrar com ele naquela banca de jornal e seguimos juntos para o
café. É isso?
— Sim. — Ivy espia pela sua janela e cruza as pernas. —
Espero que dê certo, senão, pensaremos em uma estratégia para te
tirar de perto dele. — Ela me encara com seriedade. — Se não é
bom para você, não será para ninguém!
Sorrio, assentindo rapidamente. Pego o boné que deixei
largado no banco ao meu lado e o coloco na cabeça, passando o
rabo de cavalo pela abertura traseira.
— Georgia? — Ela me chama, séria. Coloco a mão na
maçaneta da porta, pronta para seguir meu caminho. Ela pronunciou
o meu nome com aquele sotaque divino inglês, onde as letras não
formam sílabas, se tornando únicas e mescladas. — Não se
apaixone por ele. Isso é apenas negócios, um acordo em comum...
Não se apaixone, darling.
Sorrio largamente.
Isso, com certeza, nunca vai acontecer.
Jamais vou me apaixonar por Mikael. Não preciso nem
prometer, porque não há chances de eu estar errada algum dia.
— Pode deixar, dona Ivone — brinco com o perigo, abrindo a
porta antes que ela tenha a intenção de me xingar.
Agradeço o motorista por ter me buscado e fecho a porta,
dando uma boa olhada ao redor.
Estamos no Bairro de Pedreira, um dos mais famosos de
Madre Rita, por ser extravagante e sediar diversos pontos chiques e
caros. A praia de Sereia Encantada é a mais solicitada,
provavelmente por ser quase inteiramente frequentada por
celebridades e ricaços da região.
Estou usando um shorts jeans, uma camiseta que encontrei
no fundo das minhas malas e um chinelo branco. Comum e casual.
Apenas um passeio em uma cidade litorânea.
Mikael sai do carro de Lola, a alguns metros. Ele está
inteiramente de preto, mesmo que o calor seja infernal. Usa óculos
escuros e os cabelos estão soltos, rebeldes como sempre. Nós
viemos de caminhos divergentes, mas seguimos na mesma direção
para nos encontrarmos. Há uma banca de jornal na esquina mais
próxima de nós, onde pararemos. O Calçadão de Sereia Encantada
fica a alguns passos de distância. Ao contrário do que se espera, não
procuro pelos fotógrafos, entro na encenação de uma namorada
perfeita no exato segundo que ele para à minha frente, tentando
sorrir.
Depois de tudo o que falei para Mikael, o clima realmente
piorou entre nós. Já era complexo, agora, é difícil ver seu rostinho
desenhado sem desejar chutá-lo e socá-lo. Antes eu queria apenas
socá-lo, agora já adicionei outro tipo de murro.
Viu só? Como as coisas podem ficar péssimas?
— Oi — murmura bem baixo, desanimado.
Ele ergue os óculos para o alto da testa, usando como uma
tiara para afastar os fios dos olhos.
— E aí — devolvo. Tenho certeza que Ivy e Lola estão nos
supervisando de longe. E se somos um casal, precisamos agir. —
Anda. Pega a minha mão. — Estico-a, sacudindo levemente no ar.
Mikael analisa meus dedos por um instante, entrelaçando
seus dedos aos meus no segundo seguinte. Ele fica ao meu lado
esquerdo, ombro a ombro.
— Tem um restaurante incrível... De frutos do mar... — diz,
apontando para a rua cheia. — Cinco minutos de caminhada.
— Não vamos a um restaurante — corto sua fala. — Ivy me
falou que vamos a um café, logo ali perto do porto central. Disse que
é famosa e movimentada.
— A Lola disse...
— Não quero saber o que a Lola disse, sinceramente —
resmungo. — Mas você não vai querer entrar em problemas com a
Ivy. Vai? Ela é inglesa.
— E o que isso tem a ver? — Enruga a testa. O que é
péssimo, péssimo, péssimo. Se um fotógrafo estiver nos vendo, pode
parecer que é uma briga. — Não estou nem aí. Eu nem almocei!
— Problema é seu! — acuso. — Não se pode comer em um
café?
— Não o que eu quero!
— Eu até poderia ceder — confesso. — Mas como sei que
você quer ir muito nesse restaurante, nós vamos em outro lugar. Fim
de papo! — reclamo, apertando minha mão contra a sua. — Agora...
Vamos mudar de expressão — ordeno, passando por entre algumas
pessoas que começam a nos reconhecer. Eles param de andar
lentamente, confusos, coçando as nucas e sorrindo em dúvida. —
Ou vamos parecer duas pessoas infelizes em um relacionamento.
— Nós somos duas pessoas infelizes em um relacionamento!
— Mikael responde no automático.
— Sim, eu sei! — brado, convicta. — Mas ninguém pode
saber disso — sussurro, quando uma família que acabou de sair da
praia, aponta para nós sem discrição nenhuma. — E se você quer
tanto se desculpar comigo, é melhor provar.
Ele suspira.
— Tá — fala, manhoso. — Vamos nesse tal café.
— Ótimo, docinho — brinco, piscando um dos olhos.
Mikael ri um pouco — e espero que alguém tenha captado
esse momento.
Nós começamos a chamar a atenção, e as pessoas mais
categóricas fingem que não estão nos vendo. Algumas, apontam
seus celulares descaradamente na nossa direção. Não estamos
fazendo muita coisa, apenas fingindo que estamos rindo, apontando
para a praia, como se fosse uma verdadeira felicidade partilhar o fim
do dia um com o outro.
O Café Na’Lia não está em seu horário de pico quando
chegamos. Ainda de mãos dadas.
Ivy o escolheu porque ele pertence a um cantor muito famoso
do país, então ela achou interessante para a minha futura
publicidade envolvendo o meu bistrô, frequentar lugares como esse.
Ele é decorado em um estilo fantástico e célebre de São Paulo nos
anos 20, com a estrutura feita em preto e branco, além das fotos
antigas estarem muito bem conservadas. “Terra da Garoa” é a faixa
que está estendida no meio do restaurante, anunciando que é a
quinta filial do café pelo estado.
Sendo a principal, é claro, na capital.
Estou preocupada em captar cada detalhe da decoração,
tentando entender se ela faz parte da personalidade dos donos, ou
se foi apenas um tema. Mas Mikael está me arrastando pela mão,
andando com muita pressa. Retiro meu boné com apenas um toque,
adorando o clima histórico do lugar. Ele escolhe uma mesa no
segundo andar, de canto, perto da janela com cadeiras estofadas.
Envio uma mensagem para Ivy afirmando nossa localização e ela
afirma que um fotógrafo já está por perto.
Mikael se senta à minha frente, deixando que nossos pulsos
se toquem por cima da mesa de madeira.
— Vai pedir o quê? — pergunta, ansioso.
— Não sei. — Abro o cardápio, me deparando, é claro, com
opções que não posso beber. — Um suco? Sei lá...
Ele ri, inconformado.
— Quem bebe suco quando vem a um café? — Ele ergue
apenas uma mão, chamando a atenção do garçom mais próximo.
— Eu — assumo. — Porque não bebo café, ou seja, a maioria
das bebidas que servem aqui. — Ele abre a boca para retrucar, mas
não consegue argumentar. — Nunca bebi café. Nunca gostei —
informo. — E também porque ele pode me causar gatilhos das
crises... De vertigem, sabe? Meus médicos me falaram que devo
evitar cafeína e cacau. Então, como sempre passei muito mal, decidi
cortar essas duas esferas da minha dieta. Obviamente, apenas pelo
meu bem-estar, não é por nada estético.
Surpreso, ele aperta os cardápios entre os dedos.
— Então... Você não come chocolate?
— Só o branco. — Passo meus olhos pela seleção de porções
da seção de salgados. — Mas ele não é chocolate de verdade,
então...
— Nossa — dispara. — Eu não conseguiria ficar sem comer
chocolate.
— Ainda bem. — Sorrio. — Porque não estamos falando de
você. Estamos falando de mim... — Abaixo o cardápio quando o
garçom está a apenas alguns segundos de se aproximar. — E eu
parei porque me fazia muito mal. Não desejo essa merda de
síndrome pra ninguém...
Mikael concorda, mas revira os olhos de qualquer jeito.
Quando um homem senta a poucos metros de nós, percebo
que o show tem que continuar.
E eu preciso parecer apaixonada por esse palerma.

Mikael pediu dois hambúrgueres com muito cheddar,


refrigerante, cerveja e uma porção de batatas fritas com bacon com
requeijão, com muita farofa de bacon por cima. Confesso que
pesquei uma ou duas, porque pareciam deliciosas. Me contentei com
um sanduíche de carne moída com manjericão, suco de laranja e um
pedaço de bolo gelado de Romeu e Julieta.
Nós comemos em silêncio, o que é muito agradável no meu
ponto de vista. Não encontramos nenhum assunto e, para falar a
verdade, ele parece um pouco aflito com isso. De vez em quando,
consigo identificar alguns olhares furtivos para o meu lado, mas o
cantor não diz nada. Algumas fãs já se aproximaram e tiraram fotos,
dizendo que adoram nosso trabalho. Elas soltaram aqueles
sorrisinhos sem jeito, do tipo “Vocês são tão fofos!” e isso nos ajudou
a continuar com o show em público.
Meu celular treme quando Mikael está finalizando o último
hambúrguer — ele arrota sem escrúpulos também.
É uma mensagem de Pedro.
Leio pelo visor:

PEDRO:
Vocês já são o assunto mais falado do momento
As fotos estão boas
Só falta um sorriso ;p

Dou risada baixo.


— As fotos já vazaram — aviso. A primeira coisa que um de
nós diz em meia hora de silêncio. — O Pedro que disse.
Mikael franze as sobrancelhas.
— E como você está falando com o Pedro?
Sorrio.
— Nós nos falamos todos os dias — informo, subindo meus
ombros. — Tenho o número do Gael também... ele vive me
mandando o vídeo do gemidão. Pede pra ele parar, por favor!
Mikael ri de mim.
— Até o Pedro e o Gael têm o seu número? — acusa,
frenético. — E eu não? Até o Pedro?! Que quase não vive com o
celular na mão?!
— Isso — respondo sem remorso algum. — Ele é uma ótima
pessoa!
— Ele é a sua última pessoa favorita? — brinca.
— Sim, ele é. — Estreito os meus olhos. — Por que você fica
perguntando quem é a minha última pessoa favorita?
Ele morde com vontade o hambúrguer, enchendo a boca de
carne e queijo. Ele mastiga com certa dificuldade, mas não parece
interessado em me responder.
— Curiosidade — define. — Posso?
Não respondo, apenas o analiso comer. Estou satisfeita, mas
ansiosa para andarmos na praia. Faz tempo que não tenho um dia
de apenas fazer bobeira — mesmo que seja ao seu lado. Apoio o
rosto entre as minhas mãos e mordo os lábios.
— Você namorou bastante — começo a puxar assunto. Mikael
pesca três batatas de uma vez, levando até a boca. — Com o Pedro,
com a Amanda... Com os dois, você ficou por um bom tempo. Não
pensa em ficar sozinho?
— Eu estou sozinho. — Mikael afirma. Suspendo uma
sobrancelha. — Com a Sofia foram apenas amassos e ela sabe
disso. Mas emocionalmente, estou sozinho há meses — pontua. — E
você?
— Sempre — respondo. — Não é porque quero bancar a
desapegada, mas realmente faz tempo que não namoro. O último
cara com quem me envolvi, nós apenas estabelecemos uma
amizade colorida.
— Pensa em se casar? — questiona, se aproximando um
pouco da mesa. Não respondo, apenas entorto os lábios, enquanto
reflito. — Eu penso. Sempre quis me casar... Sempre foi um sonho. E
acho que isso afastou um pouco o Pedro quando namoramos.
— Você queria se casar com ele?
— Não. Esse é o problema, eu queria me casar. Não
importava com quem fosse... E ele me fez enxergar que não seria
tão fácil entrarmos em um relacionamento sério apenas porque eu
queria. Nós conversamos e decidimos seguir caminhos diferentes. —
Mikael se recosta na cadeira, finalmente satisfeito. Restam algumas
batatas na travessa, então decido comê-las. — Estou feliz pra
caralho que ele vai se casar com a Beatriz, ela é foda. E eles se
amam! — Suas palavras contêm muita sinceridade. — Com a
Amanda, eu sabia que ela não tinha planos de se casar, então... Eu
tentei mudar a minha cabeça, até perceber que ela não era malvada
por não querer o matrimônio. Isso foi um dos motivos, é claro.
Assinto com a cabeça, com atenção.
— É antiquado? — questiona, honestamente.
— Querer se casar? — pergunto. Ele confirma com o queixo.
— Não acho. Todas as fotos no Pinterest nessa aba são lindas! — O
faço rir alto, chamando a atenção de algumas pessoas ao redor. — O
conceito de antiquado vai variar... Depende para quem você está
perguntando. Para mim? Não é. Mas eu tenho certeza de que não
vou me casar.
— E por quê?
— Porque primeiro eu aprendi a ser sozinha, antes que eu me
decepcione — brinco com as batatas murchas na travessa. — Se eu
for colocar toda a minha energia em um desejo, e ele não se realizar,
ficarei muito frustrada. Então, gosto de pensar que estarei sozinha,
não que seja um problema. Mas é uma forma de ver a vida —
comento. — E talvez eu tenha um cachorro. Porque nunca tive um!
Nós rimos ao mesmo tempo, abaixando o olhar em seguida.
— Vamos? — Ele me convida. — Quero andar na praia pra
fazer a digestão.
— Sim — concordo. — E pague a conta. Não trouxe a minha
carteira de propósito.
E, novamente, nossa paz cai por terra.

Impressionantemente, seus dedos não estão suados nos


meus. De lado, nós seguramos nossos chinelos, para sentirmos a
areia fofinha por entre nossos dedos do pé e a nossas solas. De
outro, estamos de mãos dadas, andando na praia, no finzinho de um
dia. Muitas pessoas nos cercaram na saída do café, mas foram
gentis em tirarem selfies rápidas com a gente.
A praia está um pouco deserta no momento, e estamos
caminhando na direção de uma concentração de pessoas perto de
uma orla. E como somos curiosos, queremos saber o que é.
Um garotinho, a poucos metros de nós, chuta a bola muito
longe, enquanto joga com seu pai. A bola colorida vem até nós e
Mikael a devolve, acenando para a família, que parece encantada
com a nossa presença. Os paparazzis estão discretamente na nossa
cola.
Agora, estamos mais próximos da multidão e entendemos o
que é. Ironicamente, é um casamento. À beira do mar. O casal está
ouvindo as preces do mestre de cerimônia, de mãos dadas. Ela com
um vestido de verão branco, e ele usando peças de linho. Mikael me
conduz para perto de uma pedra, uma rocha gigantesca no meio da
praia, para nos sentarmos. Dá para assistir o casamento e os
fotógrafos podem conseguir uma boa foto nossa.
Quietos, vemos um Golden Retriever entrar com as alianças,
feliz e sedento por carinho. Os noivos se beijam e a festa começa,
cheia de cor, alegria e luz.
— Acha que estamos conseguindo convencer as pessoas de
que estamos apaixonados? — Mikael pergunta, retirando seus olhos
da festa de casamento que acontece. Está tocando “L.O.V.E”, do
Frank Sinatra.
— Sim — respondo. — Com certeza. As pessoas compram
qualquer bugiganga hoje em dia.
— E você? Acha que consegue se convencer a estar
apaixonada por mim? — brinca, ardiloso.
— Nem nos meus piores pesadelos imaginei estar aqui... —
devolvo. Mas ele ri. — Acredito que tudo não passa de uma grande
Teoria de Kelly e Jonathan.
— Kelly e Jonathan?
— É um fato... Que aconteceu há muito tempo — explico,
sentindo a brisa contra o meu rosto. — Foram dois circenses que se
odiavam, então, eles se amarraram por cinco dias, a pedido de uma
aposta. Acabaram se apaixonando.
— Kelly Petit e Jonathan Mártin?
— Isso.
Mikael ri. Mas ele está rindo de mim.
— Georgia, não sei como te dizer isso, gata — diz, passando
o braço por cima do meu ombro. — Mas essa história é balela.
— Como?
— É uma lenda! — brada, firme.
— Como assim?! — Meu mundo está prestes a cair.
— O Circo Deluit criou essa lenda para atrair os casais para
Praga, queriam que os ingressos se vendessem sozinhos. E deu
certo. Depois de um tempo, eles começaram a recriar a história de
Kelly e Jonathan, como um teatro animado. Mas... — Ele ri alto. —
Isso nunca aconteceu!
Fico em silêncio; estática. A história de Kelly e Jonathan foi
meu objeto de estudo por meses. Acreditava fielmente que eles
precisavam de algum tipo de atenção. E, agora, simplesmente
descubro que eles não existem.
E ainda recebo a notícia do meu arqui-inimigo.
Que semana legal!
Mikael sorri de lado, tocando na minha bochecha. Ele tenta
me consolar, ainda gargalhando. Depois de alguns segundos, aponta
para um fotógrafo que está escondido perto de um carro, na avenida.
Uma legião deles está aglomerada em um restaurante de mariscos.
— Vem. — Salto da pedra até a areia macia. Estico minha
mão. — Vamos provar que somos apaixonantes, antes de irmos
embora.
Ele sorri lentamente, deslizando pela rocha. Mikael pega a
minha mão e entrelaça nossos dedos ao me puxar para perto de seu
corpo, aninhada ao seu peito. Nossos corpos se balançam no ritmo
da música romântica que vem do casamento. Apoio meu queixo em
seu ombro e inalo o cheiro da maresia. A melodia está um pouco
baixa, porque não estamos participando da festa, mas serve
perfeitamente para embalar o momento.
Suas mãos se firmam na minha cintura e Mikael conduz
nossos movimentos com graça, me deixando relaxada. É gostoso
estar dançando, em um final de tarde, com uma música incrível de
fundo e um pôr-do-sol encantador bem ao lado. É um daqueles
segundos, aqueles poucos instantes, que você sabe que a vida é
muito mais do que aquilo que conhecemos. É aquela vontade
selvagem de sair por aí, viajando por todos os polos, com uma
chama animalesca crescendo no peito.
Apenas sair.
Sem rumo.
Quando a música acaba, Mikael para de dançar comigo.
— Última coisa... — inicia. — Posso beijar a sua testa? Tenho
certeza que será a foto mais fofa do dia.
Em nome do namoro falso e do dia — até que agradável —
concordo.
Ele me segura com suas mãos, pela bochecha. Me traz para
perto e fecha os olhos no caminho, muito antes de seus lábios
encostarem na minha testa. O ato é singelo e rápido, mas promissor.
— Agora sim vamos convencer todo mundo — canto,
buscando meus chinelos e pronta para ir embora.
18: bolinho de chuva
INGREDIENTES: ovo, açúcar, leite, farinha de trigo, fermento em pó, canela,
óleo.

— Não acho que nenhum de vocês tenha o direito de apontar


o dedo na cara de ninguém. Vocês não são justiceiros e não me
conhecem como pensam. O que aconteceu entre Amanda Olivêncio
e eu, foi um lindo relacionamento de pouco mais de dois anos, e seu
fim se teve há alguns meses. Peço para que não tomem partido,
independente de quem vocês amam mais. Bernardo e ela não
merecem os ataques de ódio que vem sofrendo nas últimas horas,
especialmente porque vocês não sabem da história a metade... —
Allura Guispe segura bem firme seu celular diante dela, reunindo as
pernas entre os lençóis macios de sua cama. — Mikael Devante
ainda pede que os seguidores e fãs sejam sensatos. Ele repudia
qualquer ato contra Amanda e Bernardo e afirma que não oferecerá
nenhum comentário sobre os dois. Apenas que os defenderá.
Allura sobe os olhos na minha direção, depois de ter lido uma
matéria — entre as milhões que aconteceram hoje — sobre o
pronunciamento de Mikael. É claro que as pessoas não o deixariam
em paz, não quando estão chocados com o namoro de Amanda
com Bernardo. O baterista não é muito ativo nas redes sociais,
apesar de colecionar uma leva empenhada de seguidores. É
incomum vê-lo longe de brigas, porque ele é conhecido por
responder os haters à altura.
— Acha que ele mesmo escreveu esse texto, ou a
assessoria? — Minha melhor amiga pergunta sinceramente,
fechando seu script e o deixando de lado. Ela se recosta na
cabeceira de sua cama de casal e continua: — Se for a assessoria,
ele realmente está assinando o óbito de babaca.
— Olha... — Fecho o meu script também. A intenção era
ensaiar mais uma briga entre Élia e Marina, é por isso que estou no
apartamento de Allura, mas fofocar parece bem mais interessante
do que decorar falas. — Eu não quero defender o Mikael, longe
disso... Mas... — ergo o meu dedo em riste. — Quando ele não quer
fazer alguma coisa, ninguém pode convencê-lo do contrário. Então...
Quero acreditar que ele mesmo se importa com alguma integridade
que envolva a Amanda.
Allura concorda, porque sabe que, em qualquer rumor ou
boato odioso, a mulher é quem sai na pior. Sempre foi assim e temo
que demorará muito para mudar.
— Bom, pelo menos ele sabe que precisa acalmar os ânimos
do que simplesmente deixar que a fogueira aumente — comenta,
bocejando longamente. — É o mínimo.
Faço um sinal positivo com o rosto, analisando seu notebook,
aberto a poucos centímetros de mim, se acender. É uma chamada
de vídeo em conjunto, e Gael e Pedro estão nos ligando. Allura se
anima rapidamente, esquecendo de imediato a fofoca sobre Mikael,
Amanda e Bernardo, e puxando o aparelho para seu colo. Ela ajeita
a franja cacheada e arruivada para parecer perfeitamente rente às
sobrancelhas da mesma cor e atende à ligação.
Ela acena e sorri, muito alegre.
Me desligo um pouco do momento, levantando para buscar
algo para beber.
Há algumas regras que precisamos aprender ali ou aqui, para
ter uma boa convivência com o fato de que o país inteiro está de
olho em você. Uma dessas, é claro, é se manter longe das janelas.
Qualquer câmera ultra tecnológica pode te reconhecer a quilômetros
de distância e, assim, captar mais um flagra.
Mas, enquanto passo pela sala de estar de Allura — e
percebo que ela já decorou metade do ambiente, do mesmo jeito
que previ — me aproximo da janela. Faz dois dias que paparazzis
estão acampados na entrada do hotel. Alguns hóspedes
reclamaram que isso destoa a paz e impede que eles relaxem, mas
a administração não parece muito interessada nisso, principalmente
porque traz algum tipo de visibilidade.
Alguns tiram fotos de carros blindados e de janelas fechadas,
fervorosos para conseguirem a foto perfeita de mim ou de Mikael.
Todos ainda estão curiosos sobre nossos próximos passos — e se
isso envolverá Sofia Balloi.
Pego um pouco de suco de laranja na geladeira e volto para
o quarto de Allura, que está conversando com Gael e Pedro. O
último, por sua vez, ainda está em Nova York.
Me deito ao lado de Allura na cama, acenando para os dois.
Gael está deitado em uma cama, com os cabelos bagunçados e
grandes distribuídos no travesseiro, enquanto Pedro curte o sol de
uma varanda, de um prédio altíssimo.
— Pedro... — cantarolo, muito animada, vendo-o na tela
quadrada. — Parabéns pelo noivado!
— Valeu, Gêgê! — brinca, mostrando a língua. Ele ergue o
dedo, também ostentando um anel caríssimo. — Tô doido para
voltar!
— Ele precisa voltar logo, mesmo! — Gael diz, na tela
craquelada. — Precisamos organizar tudo direito!
Me abstraio um pouco da conversa, notando a mudança de
assunto. Eles estão falando sobre músicas originais e como Allura é
uma ótima compositora. Há anos Alli flerta com a possibilidade de
finalmente gravar alguma coisa, um EP ou um álbum completo. Ela
quer realmente nadar no raso no quesito musical, quer experimentar
tudo o que o mundo tem a lhe oferecer.
Quando éramos mais novas, ela tinha uma pasta inteira de
canções rabiscadas à mão. Com o tempo, foi passando cada uma
para o computador, reunindo documentos enormes sobre todos os
seus sentimentos. Da França, ela trouxe um diário recheado de
pensamentos que, com certeza, se tornará alguma letra daqui para
frente.
— Você já ouviu a Allura cantar? — Gael me pergunta,
levando o celular de propósito até seu nariz. — É como um anjo. E
ela precisa fazer um feat com a Desvio!
— Sua ideia é boa — Allura reconhece, mas não dá o braço a
torcer. — Mas não. A minha resposta é não, Gael. Isso é um passo
grande demais!
— Allura... — Pedro anuncia, chamando sua atenção. —
Além de sermos o Esquadrão do Namoro Falso, também somos os
Gurus da Música. Você será nossa pupila daqui para frente...
— Essa eu quero ver — debocho, ouvindo-os rir. — Não acha
que vocês têm empregos demais? Uma banda, um esquadrão, uma
organização de gurus...
— Falando assim até parece que somos uma máfia. — Gael
se sente ofendido, completamente teatral. Ele coloca a mão no peito
e franze a testa. — Se existisse uma máfia, com certeza seria sobre
a venda dos seus doces.
Dou risada, me afastando novamente da conversa e os
deixando à vontade.
Bebo todo o meu suco, analisando Allura se despedir de
Pedro — que vai arrumar suas malas para voltar ao Brasil ao lado
de Beatriz — e de Gael, que vai sair hoje à noite com Allura para
alguma balada pela cidade. Ela desliga a chamada e fecha a tampa
do notebook, suspirando alto, sonhadora.
— Você e o Gael — digo, cruzando as minhas pernas em
posição de yoga. Allura faz o mesmo, se virando para mim. Sua
cama está desarrumada, porque desde que acordamos apenas
comemos, assistimos Modern Family e decoramos pouquíssimas
falas. — É sério?
— Nunca é — Allura me garante, brincando com a minha
meia colorida. — Nós estamos apenas nos divertindo... E ele é
muito legal. Sempre me disseram que Gael é o mais engraçado da
banda, e é verdade.
A última vez que Allura se apaixonou, foi ano passado. Ela
estava caminhando para seu terceiro relacionamento em menos de
um ano. Era um cara comum, não era famoso, mas ele a fazia se
sentir nas nuvens. E quando percebeu que ficaria sério, Allura
decidiu que merecia um tempo para refletir. Conhecendo pessoas
novas sem compromisso, focando na sua carreira e nos seus
sonhos. Desde então, ela está solteira.
Mas realmente não sei se isso pode mudar com Gael.
E, se ela não quer me dizer nada, não vou insistir.
— Mudando de assunto... — Me aconchego para perto. —
Você vai mesmo aceitar a ajuda dos meninos? Quanto à sua
música?
— Eles são profissionais. — Allura se deita ao meu lado. — E
eles são fodas. Acho que sim, mas não quero tudo de mão beijada.
— Ela brinca com um fiapo do lençol. — Ao mesmo tempo em que
penso que o mercado musical merece alguma mudança. Ele é feito
para produzir uma bolha, sem deixá-la estourar. É uma chance e
tanto chegar lá e mostrar que posso, e que mereço cada pedacinho
de sucesso. Me entende?
— Sim, com certeza... — começo a brincar com o mesmo
fiapo. — Por que você não começa a compor para eles? Assim,
você pode conhecer um pouco mais desse mundo e fazer contatos.
Soube que é importante...
Não entendo nada sobre a indústria musical, mas reúno todo
o meu não-conhecimento para encontrar alguma solução para
Allura.
— Boa ideia — assume, assentindo para cima e para baixo.
— Hoje à noite vou dar essa ideia para o Gael. Vai demorar, com
certeza, porque a turnê Malévola será encerrada, mas para o
próximo disco. Quem sabe?
Ela já está com aquele olhar brilhante de esperança, tentando
conter suas expectativas, mesmo sabendo que está muito, muito
animada.
Em silêncio, nós apenas respiramos. Sei que ela quer ensaiar
— e sei que temos um trabalho pela frente — , mas a preguiça
realmente nos abraça com toda a sua força e reparo que estou com
fome de novo.
— Quer comer alguma coisa? — Me sento na cama, reunindo
as minhas pernas.
— Seria ótimo, tudo para fugir das falas. — Ela faz uma
careta expressiva, apontando para nossos scripts reunidos na
beirada da cama. — Quer pedir comida?
— Mais ou menos. — Sorrio. — Tenho algo melhor em
mente... — aviso, saindo da cama e deslizando para o chão. Pego
seu celular e o desbloqueio, porque a senha de Allura é a mesma há
quatro anos. — Pizza?
— Pizza! — confirma com o polegar, pescando o controle
remoto da bagunça de travesseiros e ligando a TV.
Entro na sua lista de contatos e saio para a varanda de seu
quarto, me apoiando no gradil feito de vidro. Os paparazzis
continuam amontoados do lado de fora, na entrada principal do
Hotel Prudência, mas parecem cansados — e prestes a desistir.
Seleciono o número de telefone que eu quero, no meio da
lista vasta de Allura, e grudo o celular na orelha, sendo paciente.
Ele toca algumas vezes, até Mikael atender.
— Fala, Allura do meu coração! — ele saúda, animado.
— Não é a Allura, mas bem que você queria que fosse —
provoco, ouvindo-o murchar do outro lado da linha.
— Georgia — define, desanimado. — O que você quer?
— Estou com fome! — brado alto, sendo superficial.
— E o que eu tenho a ver com isso? — reclama, indignado.
— Estou com fome — repito.
— E daí, Georgia?
Um hóspede qualquer acaba de sair pela porta da frente do
hotel, está segurando uma raquete de tênis e parece feliz em poder
se exercitar. Ele passa pelos paparazzis com cautela, mas nenhum
deles sequer se importa com sua presença.
Rio o suficiente para Mikael escutar — e bufar.
— Vou ser mais franca... — decido. — Estou com fome,
Mikael. O que você vai fazer a respeito disso?
— Sei lá?! — troveja. — Isso não é problema meu.
— É — confirmo. — Desde o dia que você disse que faria
tudo o que eu mandasse. Estou cansada de ficar te lembrando
disso, docinho — canto em seu ouvido. — Você já entendeu aonde
quero chegar. Não é?
— Não dá. Estou ocupado... — desconversa.
— Não me interessa — o interrompo. — Allura e eu estamos
com fome e você vai me trazer...
— Não pode cozinhar? — tenta. — Você cozinha, porra!
— Sim, mas não hoje — lamento, sendo muito falsa. Me
seguro para não rir. — Enfim, nós queremos pizza. Eu quero frango
com catupiry e ela quer dois queijos. Pode comprar uma para você
também... Vem logo — peço, falando tudo muito rápido. — Não
quero nada para beber, mas ela pode querer uma água tônica.
— Georgia... — Mikael faz uma pausa, respirando fundo.
— Você prometeu — argumento, calma. — Só estou fazendo
com que sua promessa valha à pena. Só isso...
— Há-há, olha só como ela é caridosa! — ironiza, ácido.
— Ok, obrigada, Mikael. Estou esperando a pizza! — afirmo.
— Beijos!
E desligo.
Posso imaginar que toda a sua paz foi corrompida, mas não
posso me importar menos.
Retorno para o quarto de Allura, fechando a porta de correr
que dá acesso à varanda.
— Nossa pizza está a caminho — anuncio, me deitando ao
seu lado e sorrindo.
Deixo seu celular onde o encontrei e me afundo nos lençóis,
me espreguiçando.
Vinte minutos depois, a campainha toca e Mikael realmente
trouxe as pizzas. De sabores completamente diferentes dos quais
eu pedi.
19: cheesecake de frutas vermelhas
INGREDIENTES: biscoitos maisena, margarina, leite condensado, creme de leite,
cream-cheese, framboesas, morangos, açúcar.

O PARAÍSO ESFRIOU?
Muitos de vocês repararam que os pombinhos andam
sumidos.
Será que algo de errado está acontecendo?
É o fim de #MikaGeorgia?

Destino Inteiro já tem um comercial próprio.


Uma chamada engenhosa que mostra como Marina e
Germano se conheceram. Eles estão na casa de praia dos pais de
Germano e se esbarram em um corredor. A princípio, eles ficam
encantados um com o outro, mas fingem que não se suportam. Para
o bem de Marina, que está tentando assimilar a nova vida ao lado do
pai, e para Germano, porque os pais querem que ele se case com
Élia.
Um triângulo amoroso acontecerá e, até agora, não tive
nenhuma cena de beijo com Mikael. No entanto, foi irônico dizer que
não queria mais vê-lo, sendo que todas as cenas nesta semana
foram conjuntas. Marina e Germano já estão apaixonados, mas não
querem admitir.
Hoje é sábado à noite; as notícias com Sofia Balloi esfriaram e
pela carranca de Mikael durante a semana, eles não vão mais se
encontrar. Atingi uma marca surpreendente de onze milhões de
seguidores no Instagram, ficando atrás de Mikael, que tem quase
vinte e cinco.
Estou enrolada em um cobertor fofinho, na varanda ampla da
cobertura em que estou hospedada, recebendo meus amigos para
uma noite de jogos e pizza. Beatriz Mafra, a noiva de Pedro, também
está presente. Seu português é ótimo e traz um sotaque canadense
gostoso de ouvir.
Os dois estão numa fase deliciosa de beijar as bochechas um
do outro a cada frase, sem contar, é claro, a paixão calorosa que os
deixa vidrados em se tocar o tempo todo. Gael e Allura estão
dividindo uma espreguiçadeira, abraçadinhos e usando pijamas
parecidos. Gael, neste momento, está colocando uma pipoca doce
na boca de Allura, enquanto ela ri e afunda o nariz na entrada de seu
pescoço.
Mikael e eu estamos em polos diferentes, cada um em sua
própria espreguiçadeira, enquanto os casais mais melosos do mundo
são nossos amigos.
É quase madrugada de domingo e Pedro venceu quase todos
os jogos. Uno, Banco Imobiliário, Jogo da Vida, Truco e Vinte e um.
Agora estamos naquele finalzinho da noite, aproveitando nossa
companhia para conversarmos.
— Quero a receita desse cheesecake, Gê! — Gael fala alto,
destruindo a última travessa da sobremesa.
— Você nem sabe cozinhar! — Pedro garante, abraçando
Beatriz apertado. Sua noiva ri, mas nem sabe o motivo de estar rindo
necessariamente. — O máximo que você vai fazer é pedir para
alguém cozinhar.
— Eu posso tentar! — Beatriz se oferece, erguendo as mãos.
Seu cabelo é castanho-claro e se arma em um lindo black power.
Sua pele é negra-escura, enquanto os olhos amendoados são claros.
Eles fazem um belo casal. — Sou um desastre, mas sou melhor do
que o Gael.
Abro um sorriso, rindo baixo. Esse é o meu momento favorito
em qualquer roda de amigos, apenas ficar em silêncio e observá-los
interagir. Aprendo muitas coisas assim. Agora eu sei que Pedro é o
responsável, mas se torna mil vezes mais categórico com a presença
de Beatriz. Gael ama ser o centro das atenções, mas é tímido em um
nível realmente fofo. Mikael é sério, mas suas piadas são pontuais
para nos arrancar risadas inesperadas. Beatriz é falante e
comunicativa, porém, não é sempre assim. Tem uma barreira de
sentimentos, e uma carga pesada de responsabilidades que a
deixam levemente distraída de vez em quando.
— Há-há, Bea. Muito engraçado. — Gael mostra a língua para
ela. — Posso aprender! — Gael se defende, arrancando uma
gargalhada de Allura.
— Quando? — Mikael franze a testa. — Você passa o dia todo
no estúdio. Quando vai arranjar tempo?
— Calma, Gael, nem se preocupa... — falo baixo, mas os
cinco me ouvem. — Posso fazer quando quiser. Gosto de cozinhar!
— A-há! — Gael ergue os braços, com sua conquista pessoal.
Ele passa as mãos pelo cabelo liso e esbanja um sorriso de vitória
para Pedro e Beatriz. — Mas sério, Georgia. Sua comida é dos
deuses!
— Concordo — Mikael comenta discretamente.
Impressionante como consigo ouvi-lo com perfeição.
— Claro, você comeu todo o macarrão com queijo que ela fez.
— Pedro revira os olhos, enquanto enrola os cabelos de Beatriz em
seus próprios dedos. — Ele disse que era para mim, mas comeu em
dois segundos.
— Tinha macarrão com queijo lá no nosso apê? — Gael
pergunta, estático. — E eu não sabia?!
Atordoado, o guitarrista me encara desesperado.
— Vocês podem ficar aqui! — Dou risada. — Amanhã faço na
hora do almoço. Pode ser?
— Pode! — Alli responde por todos.
Beatriz sorri mais uma vez.
— Agora falando sério... — Pedro se senta na
espreguiçadeira, agitado. — Como vocês vão assumir o namoro?
— Fake dating? — Beatriz indaga, sugestiva. — Já ouvi falar
disso. Interessante.
Olho para Mikael, curiosa.
Foram dias consideravelmente bons. Troquei de camarim, ele
cumpriu sua promessa quanto às vidraças e parece que tudo o que
lhe falei impregnou na sua mente, porque o cantor parece um pouco
mais reservado e reflexivo. Claro que suas piadinhas sem graça
sempre vão acompanhar seu humor, mas diferente ele está.
Tentei ao máximo me manter longe, mas desde segunda-feira,
Mikael parece que está fazendo de tudo para ter algum momento
perto de mim ou a sós. Pedro e Beatriz voltaram dos Estados Unidos
ontem à noite, então convidei os dois casais para fazermos uma
noite de jogos. Logicamente, ele apareceu, apesar do convite não ter
sido estendido para ele em nenhum momento.
— Sim — confirmo. — Não sei ainda — confidencio. —
Mikael?
— Redes sociais, lógico — responde, diretamente para mim.
— A poeira abaixou, as pessoas estão curiosas, então é um
bom momento para esquentar os ânimos. — Me espreguiço. — O
que vocês acham?
— Maneiro — Gael diz.
— Cada um pode assumir de uma forma que pareça mais
viável. A Gê é mais misteriosa e o Mikael, poético — Allura intervém.
— Pode ser a mesma foto, mas com uma legenda diferente.
— Justo — Pedro confirma. — Cada vez mais fácil ser parte
do Esquadrão do Namoro Falso.
Todos dão risada ao mesmo tempo, contudo, é aquela risada
fraca, divertida, mas não promissora. Quer dizer que todos estão
cansados e querem dormir. Gael e Allura ficarão nas
espreguiçadeiras, porque querem ver o sol nascer.
Pedro e Beatriz ficarão no quarto de hóspedes, isso se eles
não fugirem para o apartamento, para terem mais privacidade. E
Mikael no outro quarto que resta.
— Eu vou lavar a louça e depois dormir. — Recolho o meu
cobertor, abraçando-o. — Fiquem à vontade.
— Já estou! — Alli cantarola, abraçando Gael, apertado.
— Eu te ajudo. — Mikael também se levanta, enquanto os
casais apenas relaxam uns com os outros.
Recolho as travessas de sobremesas e as tigelas sujas.
Mikael, os talheres e os copos. E isso apenas concretiza a minha
teoria de que ele quer se mostrar prestativo, além de evidenciar que
quer continuar a conversar comigo o tempo todo.
Na cozinha, limpo o resto de cheesecake das tigelas, abrindo
a lava-louças.
O som no ambiente é configurado apenas pelo barulho da
água da torneira e os passos de Mikael, porque não há conversa.
Ouço a voz de Pedro vindo ao longe e as risadinhas apaixonadas de
Beatriz logo atrás. A modelo da grife Enemona é realmente muito
bonita e estonteante, dá para notar a maneira que os dois estão
perdidamente encantados um pelo outro.
Ele aparece na cozinha, risonho.
— Gê... — Pedro me chama, rindo de se acabar. — É verdade
que a cobertura tem academia particular?
— Sim... ?! — sibilo. — No final do corredor, à direita.
— Posso mostrar para a Beatriz?
— Pode. Claro.
Pedro Honduras sai às pressas, gargalhando, experimentando
o lado mais doce da vida. Enrugo o meu rosto, perdida na situação.
Devo ter deixado escapar alguma coisa.
Segurando um pano de prato e enxugando os copos recém-
limpos, Mikael também parece confuso.
— Eles vão... — Seu dedo aponta lentamente para a porta. —
Eles vão trepar na sua academia?
— Acho que sim — respondo lentamente. — Devem estar
apaixonados demais. Com o casamento, o anel... Ouvi dizer que há
noivos que não conseguem se controlar.
Volto a organizar os pratos na máquina e fecho sua tampa,
apoiando meu quadril no balcão.
— Você realmente escreveu aquele pronunciamento sobre a
Amanda? Nas suas redes sociais? — pergunto, neutra.
— Sim — retruca, na defensiva. — Quem mais seria?
— Inúmeras pessoas trabalham para você...
— Mas nenhuma delas realmente se importa. — Mikael abre
os braços, argumentando. — E não posso mandar uma pessoa fazer
o meu trabalho, não é assim que funciona. — Com sua fala, preciso
concordar. Há certos princípios que não podemos ignorar. — Então...
— Mikael começa, sem graça. — Que fotos vamos postar?
— Não temos muitas.
— Só aquelas... De quando me acharam no seu bistrô.
— Você ainda as tem? — surpreendo-me. — Poderia ter
apagado.
— Nunca se sabe quando precisarei delas. — Mikael dá um
passo para frente, esperando o momento certo de se aproximar. É
cômico saber que ele vem me rondando a semana inteira. — Quer
tirar outra?
— Pode ser — resmungo. — Como? Alguma no espelho?
Fazendo careta? Não namoro faz anos, nem me lembro mais como é
isso.
Ele sorri levemente, sem mostrar os dentes.
— Solta o seu cabelo — pede, fazendo um gesto para o
elástico que sustenta meu rabo de cavalo. — O tom ficou bom...
Depois do retoque.
— Eu sei — falo baixo. — Obrigada.
Não entendo o que ele quer, mas obedeço. Puxo o elástico de
uma vez, causando um efeito cortina em meus fios azuis. Enquanto
os arrumo, percebo que Mikael está com o celular apontado para
mim, a câmera focada diretamente no meu rosto.
— Não tirei foto nenhuma, calma — assegura, rindo de lado.
— Pode ser uma selfie simples.
Agora, consegue se aproximar. Ombro a ombro, colados.
Lado a lado. Ele abaixa um pouco o braço, mirando em nossos
rostos enquadrados. Estamos sem maquiagem, transpirando
intimidade, apenas um jovem casal passando uma noite de sábado
juntos, com os amigos.
— Eu vou tirar uma foto te olhando, ok? — sugere. — Isso
dará a impressão que não consigo tirar meus olhos de você. Pode
ser?
— Pode.
Ele me abraça de lado, virando o rosto lentamente na direção
da minha bochecha. A ponta do seu nariz esfrega-se sem querer na
lateral da minha testa, mas toma distância, apenas fitando-me, furtivo
e charmoso, ao tirar a primeira foto.
Tiramos outras duas, apenas fazendo caretas e expressões
exageradas. Ele me envia as fotos pelo Instagram e selecionamos a
mesma, para postar juntos, ao mesmo tempo.
Seus olhos fixos em mim podem enganar muitas pessoas,
porque até eu fico surpresa pelo fato de suas íris brilharem com tanta
facilidade. Não penso que deveria ser assim. Mas escolhemos
aquela em conjunto.
— Vou precisar de sorte para dormir. Beatriz e Pedro vão
estar gemendo a noite toda. — Mikael guarda o celular assim que
publica a imagem. — Espero que tenhamos um domingo cheio de
novidades, namorada.
— Se prepare para as notícias. — Aponto na sua direção. —
Namorado.
Ele pisca, batendo continência, e sai da cozinha, sonolento.
Minha legenda é simples, coloquei um coração vermelho com
os dizeres: “Ele. Num sábado à noite, quase de madrugada, me
obrigando a sorrir.” Antes de dormir, clico na notificação afirmando
que Mikael Devante me marcou em uma foto.
Para minha total surpresa, não é uma foto nossa.
É uma foto minha.
Pega desprevenida, desamarrando os cabelos, meu pijama
em evidência e meu rosto livre de maquiagem, demarcando as
poucas sardas que possuo na pele negra-clara. E sua legenda traz a
confirmação da nossa encenação:

“Ela.
O amor em português.
O sentimento em vários idiomas.
Cada dia mais parecida com minha verdadeira amora mio”
20.01: verrine de manga e kiwi
INGREDIENTES: kiwi, manga madura, iogurte natural, leite condensado, hortelã
fresca.

GEORGIA PESSOA E MIKAEL DEVANTE FINALMENTE


ASSUMEM O NAMORO:

Os novos astros da novela Destino Inteiro vivem em clima de


paquera. Fontes confiáveis afirmam que eles estão se conhecendo
melhor há meses. Os atores são amigos há, pelo menos, seis anos,
e acreditam que o envolvimento gerado tenha sido graças aos papéis
de Germano e Marina.
Os rumores surgiram logo após um momento entre os dois ter
vazado na mídia. Nas imagens, podemos ver Georgia e Mikael
saindo do futuro restaurante que a atriz irá comandar no centro
comercial mais badalado de Madre Rita. Além disso, Georgia foi
clicada usando um colar, com a palheta favorita e da sorte de Mikael!
Tá sério, hein?
Sendo um casal recente ou não, todos concordam que os dois
combinam muito e que juntos formam um dos pares mais
queridinhos do momento!
20.02: verrine de manga e kiwi
Meu pai costumava dizer que, quando nos apaixonamos por
um determinado trabalho, fazendo com que aquilo deixe de ser um
simples hobby, nós nunca, de fato, estaríamos trabalhando. Lembro
que eu perguntei se ele adorava ser professor de História e ele riu,
apertando bem forte a minha bochecha e falando “Não, eu queria
ser jogador de futebol. E a sua mãe queria ser cantora.” Eu tinha
seis anos e não entendia como Antenor Pessoa simplesmente não
conseguiu ser jogador de futebol. Ele poderia se quisesse. Não é?
Entendi tardiamente que existem aqueles que seguem os
seus sonhos e aqueles que precisam trabalhar, porque às vezes
sonhar não paga as contas. E nenhum deles pode ser julgado por
suas escolhas.
Sempre me lembro dessa história, toda vez que o meu pai,
Antenor, me envia uma foto sua, viajando Brasil afora ao lado da
minha mãe, Julia, dentro de um motorhome. Nesta foto, que encaro
com um sorriso enorme, os dois estão abraçados, usando roupas de
banho, bonés na cabeça e sorrindo para a câmera. Atrás deles,
estão os vastos e deslumbrantes Lençóis Maranhenses.
É realmente de tirar o fôlego, e a fotografia é tudo o que eu
queria para começar o dia bem.
Depois que meu nome se tornou consagrado na TV, eu
praticamente dei férias infinitas aos meus pais. Eles venderam
nossa casa em São Paulo, compraram um ônibus de rodovia e
reformaram em dois meses. Faz três anos que eles viajam pelo
Brasil e de vez em quando me encontram em algumas cidades.
Sempre bronzeados, sempre com um sorriso no rosto, animados e
curtindo a aposentadoria merecida.
Nós não nos falamos com frequência, às vezes o sinal deles
é péssimo e uma simples mensagem demora três dias para chegar,
mas o atual assunto é meu namorado — que meu pai quer
conhecer.

GEORGIA:
Não precisa conhecer.
Não vai durar.
É mídia :p

PAI (ANTENOR):
Tempos modernos.
Já diria Lulu Santos

GEORGIA:
Não acho que ele escreveu essa música para mim.
Boa viagem <3

Sorrio enquanto digito, em cima de um banquinho, tentando


me equilibrar para pendurar a primeira decoração oficial do bistrô;
um relógio de girafas, colorido o suficiente para estar presente na
construção árdua desse sonho. É o único objeto extravagante que
colore a cozinha industrial, que é mesclada entre branco e cinza-
escuro. Decidi que as cores oficiais da fachada e do interior serão
rosa e laranja. E que não haverá uma decoradora, porque quero
fazer tudo sozinha.
Estou acompanhada nesta tarde. Mikael está empoleirado em
uma cadeira, lendo o script dessa semana, seus óculos redondos
enfiados no rosto e um marca-texto amarelo entre os dedos. Ele
está tentando se redimir ultimamente. Faz gracinhas comigo, mas
não brinca com a sorte. Chega cedo todos os dias na emissora e
não reclamou até agora sobre a nossa troca de camarim. Opina em
diferentes cenas e anda sugerindo constantemente sobre
marcarmos ensaios.
Ele sentiu que outra barreira foi posta entre nós, a da
confiança. E para confiar nele mais uma vez, Mikael precisará
mostrar. E não apenas falar.
A notícia de que estamos juntos abalou as pessoas mais do
que eu pensei. Isso significa que constantemente nossa privacidade
está sendo invadida e ameaçada; querem saber o que eu como, o
que eu visto, do que ele gosta em mim e do que eu gosto nele.
Oferecem entrevistas e diversos presentes gratuitos, mas que na
verdade, são realmente caros se formos aceitar. Comerciais,
propagandas e publicidade nas redes sociais, isso com apenas três
dias de anúncio.
Somos o foco recente e todos estão falando de nós.
O tempo todo.
— Está rindo de quê? — Ouço a voz de Mikael perguntar e
tento notar se o relógio está bem posto ou não.
Meu bistrô está fechado, mas é um ótimo e tranquilo lugar
para ensaiarmos. A emissora está nos paparicando e sempre somos
interrompidos no meu apartamento. Aqui é o único lugar que
encontramos e que possuímos paz — até agora.
A cozinha industrial está toda enrolada em plástico bolha. O
teto e as goteiras foram consertados, o piso será trocado na semana
que vem, e depois posso começar os últimos ajustes.
— Flertando?! — provoca, entediado com o roteiro.
Daqui a poucos dias, talvez três, a novela estreia
oficialmente. E há revistas que especulam que vamos com roupas
combinando.
— Não, é apenas o meu pai querendo te conhecer. —
Guardo meu celular no bolso e salto do banquinho. — Mas não
esquenta, já disse que não vamos durar.
— Você tem pais?
— Sim?! — me viro na sua direção, incrédula. Com as mãos
na cintura. — O relógio ficou bom ou está torto?
— Torto — decreta sem rodeios. — Sei lá, você nunca fala
nada sobre eles.
— Não parece torto no meu ponto de vista — resmungo. —
Verdade. Não falo. Aliás, eu não falo de quase nada.
— Eu estou longe do relógio e consigo ver que as girafas
estão até pedindo socorro! — defende sua tese. — Eu sei, mas você
mesma disse que temos que nos conhecer melhor. Que tal me
contar sobre os seus pais?
— Bom, eu não acho que a merda do relógio tá torto, vai ficar
assim! — Retiro o banco de perto da parede e o uso para me sentar,
pegando meu próprio script. — Certo, ok. O que quer saber sobre os
meus pais?
— Georgia, se você não acredita em mim, pergunte a
qualquer pessoa sobre o relógio, então! — Ele aponta com a caneta
para o objeto. — Pode me contar o que quiser sobre eles.
— Não vou perguntar! — Me sinto uma criança de cinco anos
me recusando a receber ajuda, mas não consigo evitar. — Bem...
Meus pais são os meus heróis, resumindo. Eles têm aquele
casamento perfeito que as pessoas invejam. Aquele casal que as
pessoas torcem para ser... Ou não — explico rapidamente. — Pode
ser que seja um casamento defeituoso, no final das contas. Acredito
que eles tenham me privado de ouvir muita coisa. Escondido muita
merda para que eu crescesse bem...
— E o que mais? — incentiva, prestando atenção em mim.
— Eles são muito legais e muito divertidos — me animo,
cruzando as minhas pernas. — Eles adoram o Natal, adoram aquele
clima de esperança que pinta a cidade por toda a parte. Meu pai
sempre me incentivava a fazer uma cartinha para o Papai Noel. Eles
adoram churrasco também. Sempre param em rodízios pela estrada
quando estão viajando. — Abro um sorriso. — Eles não mexeram no
dinheiro que eu ganhei quando era criança, mesmo que a nossa
situação pudesse mudar drasticamente, colocaram tudo em um
banco. Não quiseram e não mexeram em nada. Agora vivem
viajando, de motorhome e tudo.
— Motorhome? — repete, incrédulo e surpreso, de um jeito
bom. Confirmo com a cabeça. — Que foda! Eles topam me levar
qualquer dia desses para Porto de Galinhas?
— Vou perguntar. — Continuo sorrindo, acabo de encontrar
um dos meus assuntos favoritos. — E os seus?
Mikael me lança uma encarada de lado, misteriosa e
cautelosa. Tudo ao mesmo tempo.
Ele bate seus dedos no meu script. Os anéis são com pedras
coloridas, e presumo que sejam joias caríssimas.
— Vamos ensaiar antes? — sugere, mudando de assunto. —
Prometo te responder tudo o que quiser, mas essa cena é para
amanhã e eu ainda não decorei nada direito.
— Claro, pode ser.
Pego meu script, só para ter certeza de qual é.
Marina e Germano querem aprofundar o relacionamento,
querem tentar uma amizade, mesmo que isso faça os dois sofrerem
com a tensão sexual crescendo cada vez mais. Germano está
pensando em terminar com Élia, enquanto a vilã finge uma gravidez
— típico.
Nos levantamos, respectivamente. Mikael deixa de lado suas
falas e eu as minhas.
— Eles estão segurando demais o beijo — relembra,
esticando os braços e se alongando. — Para uma novela, Marina e
Germano andam bem comportados.
— É para fazer o público querer mais e mais. Fazer a
audiência vibrar, como um gol no futebol. Não vão entregar isso tão
cedo. É como um charme, entende? — Dou um passo para frente,
trazendo meus cabelos para o busto. — Pronto? — questiono. Ele
confirma com o polegar. — Vamos lá... — Demoro alguns segundos
para me conectar com a cena e com os sentimentos de Marina.
Quando consigo, uso a minha respiração para contar o tempo. —
Tem certeza de que você não a ama? Não faz sentido, Germano.
Seus pais querem você com Élia o tempo todo. Há um casamento
marcado!
— Um casamento marcado muito antes de eu nascer, Marina.
Você sabe! — Mikael mergulha de cabeça em Germano. — Eles
têm essa ideia patética de que Élia e eu fomos feitos um para o
outro. E que isso manterá nossas famílias unidas... Mas... Quer
saber? Acho que me enganei por todos esses anos.
Sigo o que o roteiro pede, dando um passo em sua direção,
segurando a minha respiração de maneira uniforme.
— Está falando isso de verdade... Ou por que conheceu outra
pessoa? — Marina pergunta em um tom vacilante.
Acompanho Mikael com o olhar, sôfrega, dando à minha
personagem o que ela quer. Ele se aproxima sentimentalmente,
segurando a minha mão entre a sua e não deixa de fitar meus olhos
com suas emoções beijando sua pele. Ele embala meus dedos
unidos até seu peito, para que eu sinta seu coração.
— E se for os dois, Marina?
— Não sei o que dizer e não sei se posso aceitar isso. —
Fungo, como se estivesse prestes a derramar algumas lágrimas. —
Élia está grávida.
Marina tenta se desvencilhar de Germano, mas ele se
mantém segurando sua mão direita.
— Não precisa aceitar. Só o tempo dirá....
Mikael me encara com seriedade. Aqui, frente a frente, ele
não é o vocalista da Desvio, ele é Germano. O homem que minha
personagem conheceu de repente e, que agora, é seu verdadeiro
amor. Engolindo em seco, ele toma coragem de segurar o meu
queixo, para que nossos olhares se alinhem. Ele está perto demais
e posso imaginar que a cena segurará a audiência com a esperança
falha de um beijo acontecer. Com a mesma mão, Mikael traça um
caminho dedilhado e delicado pelo meu rosto, segurando uma
mecha azul do meu cabelo. A amora. Ele inspira fundo, controlando
o momento com uma tensão impressionante. Coloca alguns fios
atrás da minha orelha e desliza os dedos pelo comprimento do meu
cabelo.
Um arrepio inesperado beija a minha espinha dorsal e até
mesmo sinto que as minhas costelas reagem. Se mantivermos estes
segundos de silêncio, aposto que Ellen amará.
Depois de nossa pausa, Mikael continua seu caminho
deslizando seus dedos — respeitosamente — pelo meu corpo.
Passa pela minha barriga, até encontrar a outra mão vaga. Nossos
dedos se entrelaçam automaticamente e a minha barriga afunda. É
tão natural o ato, que sinto vontade de formar um vinco profundo na
minha testa. Mikael se prepara para continuar, mas engasga,
abrupto, com a vontade incontrolável de rir. Seu grunhido me
assusta de imediato, então nossas risadas preenchem a cozinha do
bistrô e perdemos totalmente o foco.
— Desculpa — pede entre as gargalhadas e soltando a
minha mão. — É que a porra do relógio está torto demais e olhei
sem querer!
O cantor faz um som esquisito ao rir, me causando outra crise
de risos — e eu olho para trás e constato que o relógio continua
perfeitamente reto. Cubro a minha boca com as mãos e é decidido,
sem avisos, que vamos tirar outra pausa.
— Marina e Germano são... — Arregalo os olhos, me
sentando no banco e não continuando a frase.
— Intensos? — opina, também se acomodando.
— Eu ia dizer chatos. — Subo o meu queixo. — Se eles
querem se beijar... Que se beijem!
— Eles são... Complexos. Porque sabem que muita coisa
está em jogo por apenas um beijo. — Mikael refuta, voltando a grifar
algumas frases de seu personagem. — Mas entendo, estou ansioso
para te beijar.
— Está?! — Sopro a pergunta, muito surpresa.
— Lógico. — Ele pisca. — Antes do nosso tão amado beijo,
faço questão de comer muita cebola.
— E eu vou engolir muita mostarda! — rebato, cruzando os
braços. — Será inesquecível, Mikael Devante. Se lembrará de mim
pela eternidade. O melhor e mais picante beijo da sua carreira de
ator!
— Pode deixar, estou contando os dias... — Ele junta as
mãos em cima da mesa e arrasta um sorriso malicioso pelos lábios.
— Então é assim com você?
— Assim como?
— Se você está entediada, você beija a pessoa logo?
O meu silêncio o faz rir ainda mais alto, esperando
ansiosamente pela resposta. Não sei muito bem o que dizer, porque
as minhas experiências com beijos, toques e a própria atração
foram peculiares. Para não dizer outra palavra.
— Acho que sim? Nas vezes em que deram certo...
Logicamente — comento, repensando todas as pessoas que beijei.
— Mas eu já disse, muitas perdiam o interesse por acharem que eu
não tinha mais interesse, quando, na realidade, eu só não sabia
dizer.
— Lógico, quando você decide não falar mais nada, eu fico
bem irritado — assume, coçando o queixo. — Mas na maioria das
vezes... É fascinante.
— Claro, porque sou sua ouvinte — alfineto.
— Sim, mas apenas do lado esquerdo.
A gargalhada que escorrega pela minha garganta é muito
alta, e eu me surpreendo por achar tão engraçado algo que
definitivamente me magoaria há anos. Mas hoje em dia é
engraçado, realmente muito engraçado. As piadas sobre a
Síndrome às vezes me ajudam a lidar com tudo isso.
— Desculpe — ele pede do mesmo jeito. — Mas não podia
perder a deixa.
— Foi engraçado. Você sabe que eu não teria rido se não
fosse.
— Sim, eu sei... — Ele arfa, se remexendo no banco. — E
como você está hoje?
— Bem. Se você quer ouvir a resposta padrão, estou bem.
Se quer ouvir a sincera, estou apenas seguindo em frente.
— Prefiro a sincera.
— Hoje é aquele dia que eu desejo não ser uma garota
doente — simplifico, recolhendo as minhas mãos. — Não consigo
enxergar o lado positivo de tudo isso.
— Talvez não tenha. Talvez o lado positivo seja criação de
outras pessoas que não tem coragem de enxergar a merda que
essa condição é.
Assinto com lentidão, entendendo o que ele quer me dizer.
Estou cansada também, porque minha vida mudou em decorrência
de muitos fatores. Eu é quem tive que me adaptar e não contrário —
mesmo que uma doença crônica não consiga ter essa consciência
humana, obviamente.
— Quer continuar? — Ele aponta com a cabeça. — Só falta a
parte final e acho que consigo gravar.
— Ainda não me falou sobre os seus pais.
— Vamos ensaiar, amora mio. Anda.
Mikael Devante se levanta primeiro, estendendo sua mão
infestada de joias para mim. Aceito o toque e me levanto com sua
ajuda. Ironicamente, ele não se afasta para que eu tenha espaço em
pé, e nossos corpos se esbarram, desajeitados. Ele sorri, piscando
um dos olhos como se tivesse feito de propósito, e dá um passo
para frente.
— Vamos trocar de lugar — ordena. — Não quero ter que
olhar para este relógio de novo.
Reviro os olhos, ao mesmo tempo em que giro nos
calcanhares.
Espio, por cima dos seus ombros, se o objeto realmente está
do jeito que tanto fala. Mas para mim parece perfeito e alinhado.
— Onde paramos? — pergunto, ajustando a minha postura.
— O tempo e blá blá blá... — resmunga, ranzinza. — Pronta?
— Ele diminui o espaço entre nós e volta a segurar a minha mão.
Confirmo com o queixo e Mikael abre e fecha os olhos. — Você diz
que Élia está grávida, mas o filho não pode ser meu.
Rio, sem humor algum.
— Você está desesperado, Germano. E isso te deixa cruel.
Acabo com o contato de nossas mãos com violência, gerando
distância entre nossos corpos. Meus lábios tremem e fico séria.
— A covardia não lhe cai bem, sabe disso — Marina
murmura. — E seu filho precisa de você. Assim como a sua futura
esposa.
Dou as costas para ele, fazendo questão que meu cabelo gire
por todo o espaço.
— Ser covarde é admitir a verdade? — Germano revida,
prepotente. — Ou está com medo de reconhecer que Élia te odeia?
Vocês se tornaram amigas e inimigas em pouco tempo...
Esqueço das minhas falas por breves segundos, porque não
me lembro se é agora que fujo, mas a presença de Mikael me faz
ficar. Ouço sua respiração muito perto e suas mãos me encurralam
ao agarrar meus antebraços. Seu nariz se finca ao alto da minha
nuca e seus dedos me apertam com nada além de uma paixão
devota de Germano.
— Então, por que você ainda está aqui, Marina? — Sua mão
direita se desfaz da minha pele, afastando meu cabelo do pescoço.
Ele o coloca para apenas um lado, o esquerdo, para ter acesso ao
meu rosto e a minha nuca. — Você ainda está aqui, porque quer
que eu faça algo. E eu estou aqui, porque quero fazer algo. Você
não entende?
Sua boca toca minha bochecha e desliza para a lateral da
minha testa.
Isso estava no roteiro? Eu não deveria ter fugido? Não
consigo me lembrar, na realidade. Todo o meu corpo está entrando
em transe, derretido, mole. Porque se for improviso, preciso pensar
em algo decente e não apenas curtir — em segredo — seu toque.
— Entendo — sibilo, me virando para ele. Mikael desce as
mãos dos meus braços para a minha cintura, me abraçando contra
o seu peito firme. — Mas ainda tenho consciência de que a paixão
não pode me tirar da razão, Germano.
Empurro-o para longe, discorrendo as minhas supostas falas,
entredentes. Mikael aceita ser jogado de lado e, quando penso que
ele fará mais alguma coisa, ele apenas bate palmas, murchando os
lábios e assentindo com a cabeça.
— Belo improviso — elogia descaradamente. — Acha que a
Ellen vai gostar? Porque eu pensei que Germano pudesse fazer
algo a mais do que só ver a Marina fugir pela mansão.
Caralho.
Foi improviso.
Continuo parada, em pé, confusa com as reações do meu
corpo, enquanto Mikael limpa a garganta e se senta novamente,
conferindo seu script. Faço o mesmo, lendo os últimos parágrafos,
me dando conta de que Marina apenas o deixaria falando sozinho.
— A propósito... — diz, erguendo as sobrancelhas. — Gostei
do seu perfume. Promete usar um desse quando formos gravar?
— Estava pensando em molho de alho — provoco. —
Perfume de rosas é fácil demais para você. Não acha?
— Não, não acho. — Ele apoia o rosto entre as mãos. —
Difícil foi manter a concentração.
— Mas foi um bom improviso — relato. Ele está me fitando de
um jeito diferente. O mesmo jeito em que esteve na minha cozinha
quando estava me recuperando de uma crise de Meniere. O mesmo
jeito de quando tirou a foto para assumirmos o namoro de mentira. É
algo como interesse e admiração. — Continue assim e será
promovido pela Ellen. Daqui a pouco será conhecido como o ator
que ama escrever as próprias falas e o autor da novela te punirá.
Certamente.
Não sei se foi um flerte, mas “Difícil foi manter a
concentração”, está azucrinando a minha mente como um sino
desesperado de igreja. E se foi, não fui muito boa em dar
continuidade a ele. Se Mikael realmente me acha fascinante, deve
ter mudado de ideia ao ouvir uma frase aleatória que meu cérebro
criou apenas para não ficarmos em silêncio.
Ele ri finalmente, bagunçando os cabelos e concordando com
a cabeça. Aposto que é uma bela hora para mudarmos de assunto.
Limpo a minha garganta, para chamar sua atenção.
— Agora me fala... — cutuco seu ombro. — Sobre os seus
pais. É justo. Já ensaiamos duas vezes!
Ele cruza os braços, semicerrando os olhos.
— O que você quer saber? Algo em especial? — Ele se vira
na minha direção, fechando o roteiro.
— Como eles te tratam? — jogo a primeira questão que me
vem à mente.
Mikael umedece os lábios muito bem desenhados e
torneados. Sei que ele olha para o relógio de girafas apenas para
me irritar, mas me mantenho firme.
— Sinceramente? — devolve a narrativa. — Não sei —
dispara, causalmente.
— Como não sabe?
— Porque eles morreram quando eu era um bebê. Não sei
como eles me tratavam e não sei como eles me tratariam hoje em
dia.
O clima mórbido toma conta da cozinha. Os móveis e os
eletrodomésticos parecem maiores agora, prestes a me esmagar,
um por um. O vento lá fora se torna frio e ameaçador e posso
imaginar que Mikael pode ouvir a minha respiração muito bem.
— Mikael, eu...
— Relaxa. — Ele me interrompe, com a mão erguida. — Eu
tenho mesmo essa marra de filhinho de papai, mas acho que sou o
netinho da vovó.
Sorrio minimamente, mas ainda me sinto estranha. E
espantosamente quente e gelada, ao mesmo tempo.
— Eles...
— Acidente de carro — simplifica. O cantor começa a brincar
com a pontinha da folha do roteiro. — O famoso e tenebroso
acidente de carro. Eu tinha apenas três meses e a minha avó ficou
comigo. Me criou lá na Mooca, em São Paulo. — Ele ri para si,
relembrando de sua vida. — Grande dona Elzira.
— Meus sentimentos.
— Obrigado. — Limpa a garganta, desconfortável. — Aposto
que eles iriam adorar essa porra toda. A minha fama, no caso. A
minha avó disse que o meu pai era muito fã de Barão Vermelho e
que a minha mãe ia para as baladas sempre que possível quando
era jovem. — Seu sorriso é delicado e nostálgico. — E não sei se
você acredita nessas coisas, amora mio, mas penso que eles estão
me assistindo de algum lugar.
— Acredito — falo com destreza.
— Só espero que não em todas as horas, não é? — brinca,
mordendo a pontinha da língua. — Tem certos momentos que
espero que eles se resguardem.
De primeira, não entendo o que ele quer dizer, até
compreender que se refere a sexo.
— Me desculpe — murmuro, envergonhada. — Quando
brigamos, eu perguntei se seus pais não te deram educação e você
disse... “Eles tentaram”. Agora entendi. Eu não sabia.
— É, você foi bem babaca mesmo! — Ele aperta a minha
bochecha, levando um tapa na mão. — Mas eu fui mais. Então... —
Mikael gesticula para eu esquecer a pauta. — Sem ressentimentos,
amora mio.
Estremeço meus ombros, ficando um pouco confortável.
— Ligou para a Sofia? — indago, porque quero mudar de
assunto o quanto antes.
— Não. Ela me bloqueou depois que comecei a namorar
você. É o que dizem... — debocha. — Você e eu somos o casal
perfeito agora.
Por um momento, nós ficamos em silêncio, nossas risadas
conjuntas morrem e resta apenas aquele instante constrangedor,
que vem logo depois de uma coisa séria ser dita.
— Vamos continuar? — aponto para as cenas. — Amanhã
gravamos às cinco da manhã.
— Verdade.... Espera um pouco. — Seu celular começa a
tocar do bolso, desengonçado. Ele não atende à ligação, apenas
checa o nome. — É o Gael. Nós vamos para o estúdio ensaiar e ele
vai passar aqui para me pegar. — Mikael digita uma rápida
mensagem para o melhor amigo. — Daqui a cinco minutos ele
chega. Então... Foi mal.
— Tudo bem, sem problemas.
Mikael assente, se levantando e dobrando o script como um
cone. O sigo a segundo plano, vendo-o pegar sua mochila apoiada
no balcão da frente e guardando o roteiro. Ao redor do meu
pescoço, estou usando um colar que ele me deu ontem à tarde. É
uma corrente fina, prata, e o pingente é a sua palheta favorita,
vermelha e branca. O vocalista disse que daria sorte, e se eu fosse
fotografada usando o artefato, os fãs pirariam. Como realmente está
acontecendo.
— Verdade... Isso me lembra que... — Ele remexe os bolsos
traseiros da mochila e retira um ingresso dourado, bem parecido
com o do Willy Wonka. — Show de encerramento da turnê
Malévola!
— Achei que não fosse me convidar — ironizo, pegando o
ingresso de sua mão e reparando que contém meu nome, além do
acesso exclusivo aos bastidores, ao camarim e ao meet and greet.
A data marca daqui dois dias, um dia antes da estreia da novela. —
Valeu. Posso levar a Alli?
— Allura já deve ter sido convidada — rebate. — Vai rolar um
espaço só para as namoradas dos caras da banda. Beatriz, Alli e
você estarão lá, imagino.
Ele não diz um nome e sei o motivo, mas relevo.
Ter Síndrome de Meniere e ir a um show não são as
melhores combinações. Dependendo de onde fica a caixa de som,
terei que me manter longe. Mas ele deve imaginar.
— Vai rolar um purple carpet antes do show e um after party
numa casa da praia também. Você vai, né?
— Vou pensar no seu caso... — faço charme.
E funciona, porque seu sorriso demonstra que ele quer
conquistar esses dois momentos.
Porra.
Estamos flertando?
— Vou levar como um “sim”. — Ele me ignora prontamente.
Estou agitada por alguma razão. Uso do tempo que Mikael
está digitando no celular, se divertindo em uma troca de mensagens,
para entender. É o último show da banda, isso significa um
encerramento, o ponto final de uma turnê enorme que rodou o
Brasil, a América Latina e alguns países da Europa.
Lembro de repente do motivo de me sentir assim, como um
estalo feroz e potente.
— Vai mesmo sair da banda?
Ao ouvir a minha voz e o que eu acabei de perguntar,
Devante bloqueia o celular e inspira.
— Por que quer saber? — resmunga, já na defensiva.
— Porque sou curiosa. — Subo e desço os meus ombros,
também ficando séria. — Vai ou não?
— Vou. — Ele engole em seco. A chateação ainda traça seus
orbes. — Aliás, vou contar hoje mesmo para o Gael que estou
vazando da banda até ano que vem.
— Mikael? — Não sei se devo dizer o que estou prestes a
falar. Não sei se outra briga se desencadeará, afinal, a escolha é
dele. Embora seja uma escolha burra, ainda é dele. — Quando
fomos àquela festa, juntos, eu reparei que o Bernardo estava
afastado de todos vocês. Estava triste e até parecia sozinho. Muito
deprimido. Depois, percebi que a Amanda desativou as redes
sociais... Não devemos fazer algo a respeito?
— Tipo o quê? — Seu tom é carregado de exaustão, como se
ele estivesse de saco cheio de escutar alguma coisa parecida como
esta conversa. — Eu pedi que as pessoas não a atacassem.
Tampouco ao Bernardo. Tenho nojo dessas pessoas que acham que
podem falar dos dois. Sim, estou puto pra caralho, mas não quero
que nenhum deles passe nada parecido. Não quero, mesmo.
Repudio toda essa merda. Há mais alguma coisa para fazer?
— Que tal ouvir o lado deles?
Ele está vestindo uma calça jeans que o deixa
fantasticamente atraente — e eu não vou admitir isso em voz alta.
Ele fez outra tatuagem, no braço, uma andorinha em old school, que
ainda reluz contra a luz pela tinta recente.
— O lado da traição, você quer dizer?
— Não, o lado de duas pessoas que podem tentar se
explicar. Se for uma armadilha sentimental, você saberá. Só estou
perguntando se não seria viável... Conversar com o Bernardo ou
com ela. Os dois parecem... — Respiro fundo, levando um susto.
Gael acabou de chegar e está buzinando freneticamente do outro
lado da rua. Há dezenas de paparazzis do lado de fora, mas eles
não conseguem nos ver. Quando eu abrir esta porta, será como se
eu tivesse invocado um portal fantasioso de um filme de terror. —
Sinto que os dois sentem a sua falta e estão sofrendo.
Ele coloca a mochila nas costas, se arrumando para ir
embora. Ajeita os óculos redondos e entorta a boca.
— Me chama de Mika. Eu insisto... — Ele passa por mim,
abrindo a porta por conta própria. — Eu fui feito de palhaço. Que
sofram, então! — proclama, fazendo um sinal com a cabeça. —
Nunca vou entender como um rostinho tão bonito quanto o seu pode
me irritar tanto, amora mio. — Ele toca a minha bochecha. — Até
amanhã, Georgia.
Ele abaixa a cabeça e segue seu caminho, colocando as
mãos na frente do rosto para que os paparazzis não tentem ferir
seus olhos. Quando atinge a calçada, os paparazzis o seguem de
perto, jorrando questões ofensivas e invasivas, mas sossegam
apenas quando Mikael entra definitivamente no carro de Gael.
Feliz e engraçado como sempre, Gael buzina na minha
direção e acena, mandando um monte de beijos para mim.
Algo ainda me incomoda nessa história toda.
Só não sei o quê.
21: quindim
INGREDIENTES: gemas de ovo, coco ralado, leite de coco, açúcar, manteiga,
açúcar.

A diretora está fazendo a marcação da cena.


Precisamos ficar parados, até as câmeras se posicionarem
corretamente e começarmos a gravar o primeiro frame do dia. Os
refletores estão ao alto do estúdio, e todos os funcionários que
presenciam o momento fingem que estão fazendo qualquer outra
coisa, mas Mikael e eu sabemos que todos não conseguem deixar
de nos olhar. Nem um segundo sequer.
Ele sugeriu a Ellen o improviso, de Germano segurando
Marina por trás e quase surgindo um beijo acidental entre eles. Ela
adorou a ideia e decidiu incluir o momento. Assim, estou encarando
Mikael, seus olhos nos meus e os meus nos seus. Me segurando
para não rir, porque comi um podrão com molho de alho e cebola de
propósito. Meu hálito está terrível e o dele não fica para trás.
Cheira à pimenta.
— Se esse é o quase beijo, imagina o beijo — Mikael
cochicha, sem movimentar os lábios, porque não podemos nos
mexer. Ele está caracterizado como Germano, usando roupas claras
e aparentes e sua clássica jaqueta jeans. — Você pegou pesado,
Georgia. Sabe disso, não sabe?
— Você também se preparou para a cena do seu jeito —
intimido, piscando os olhos algumas vezes. — Não faço ideia do
porquê engoliu pimenta, mas você não jogou limpo.
— Vai ser a pior cena de todos os tempos!
— O beijo vai ser pior ainda — prometo, piscando de lado.
Algumas pessoas suspiram com a nossa presença, julgando
que somos um casal lindamente apaixonado que não consegue
parar de falar um instante. Mas é bom que Mikael esteja
conversando comigo, porque Claudia Farol está assistindo as
gravações de hoje. Com aquele mesmo olhar de águia cruel, que
está pronta para destroçar carne quente e podre. Ricardo, seu irmão
mais velho, também está aqui, mas ele parece mais interessado no
celular do que em nós.
Ontem à noite, Mikael foi notícia. Ele insistiu que para que as
pessoas não atacassem Bernardo ou Amanda nas redes sociais. Fez
um longo discurso falando sobre um ódio gratuito. Apesar de ele
estar chateado, é bom que saiba separar as coisas.
Ainda melhor que ele não precisou me citar.
Ninguém precisa respeitar Amanda ou Bernardo pelo novo
relacionamento de Mikael, precisam respeitar simplesmente porque
eles não fazem parte dessa bagunça.
Paro de pensar nos dois, voltando a me concentrar na cena.
Aceno discretamente para Claudia ; porque não quero temer
sua presença e para deixá-la tranquila. Que estamos em sintonia e
que não faremos nenhum mal para a novela que estreia essa
semana. Ela devolve o gesto, com apenas um singelo toque de
queixo, com um meio sorriso que não significa absolutamente nada.
Mas na sua mente, deve ser algo como “Estou sendo educada, ok?”.
— Todos em posições? — Ellen confere, juntando as mãos ao
redor da boca e gritando. Com a confirmação da equipe, ela se
aproxima da primeira câmera, batendo uma única palma. —
Devante, Pessoa. Vocês seguirão do improviso, depois gravamos o
antes. — Ela se senta em uma cadeira qualquer, usando uma camisa
social folgada demais entre seus braços. — Tudo certo?
— Sim — respondemos juntos, sem retirar os olhos um do
outro.
Ellen está com o cabelo louro cor-de-mel bagunçado, às
vezes ela mal sai do estúdio da Farol para descansar. Sua pele
negra-ébano brilha pelo suor e ela boceja algumas vezes, mas, ainda
assim, está focada inteiramente em seu trabalho.
— Silêncio no estúdio — pede com uma voz melodiosa. —
Atenção na cena... Em todas as marcas... — pondera. — Gravando!
Me viro bruscamente contra Mikael, cruzando os meus braços
e semicerrando os olhos de fúria. Sinto suas grandes mãos ao redor
dos meus antebraços, mas não causa a mesma reação da primeira
vez — talvez porque eu esteja preparada para seu toque repentino.
Seus dedos sobem e descem em uma carícia sôfrega de um amante
eloquente.
Me seguro muito para não rir ao sentir o ar quente e pesado
da pimenta, que se esvai de sua boca. Recolho um pouco os
ombros, quase rindo e me desconcentrando, mas preciso reunir todo
o meu profissionalismo. Ele afasta meus cabelos e os coloca em
apenas um lado, repassando a pontinha do seu nariz na minha pele,
deixando que os lábios a toquem também.
Somente quando me viro, é que quase chegamos ao ponto de
iniciarmos uma crise de riso, mas isso faria Ellen ter um ataque e nós
não queremos que ela descarte a cena que Mikael improvisou tão
bem. Quando nossos lábios quase se tocam e Ellen grita “Perfeito,
corta!”. Nos separamos quase correndo.
Pimenta, alho e cebola se misturaram como uma enorme
salada e meus olhos agora estão lacrimejando.
— Porra... — Ele tosse. — Isso foi péssimo! — Fecha uma
das mãos em um punho, para tossir ainda mais. — Péssimo,
péssimo. Mudei de ideia, vamos escovar os dentes para a cena do
beijo... Quando acontecer.
— É?! — murmuro, fazendo beicinho. — Vou pensar.
Prometo!
Mikael ri pelo nariz, sendo chamado pela sua maquiadora.
O dia será cheio. A semana, quero dizer; o show de
encerramento é daqui a um dia, e a estreia, em dois dias.
— O estúdio me deu folga nesses próximos tempos, por
causa dos ensaios do show — diz, segurando a barra da minha
camiseta. — Te vejo no purple carpet?
— Acho que sim.
Ivy, no bastidor, já está me esperando para corrermos até o
outro estúdio. Também gravarei uma gigantesca briga entre Marina e
Élia, e Allura e eu estamos ansiosas.
— Então, até lá. — Mikael me garante, soltando a minha
camiseta com pesar e andando em ré.
Ele faz uma careta para mim, antes de se virar e sair correndo
na direção de sua funcionária. Ele não comenta sobre o assunto que
quase entramos ontem, mas presumo que seja melhor assim.
Acho.
Perdi o purple carpet do show por um motivo. Ou dois, se
formos levar em conta que foi de propósito.
Não sou a namorada de verdade de Mikael Devante, e o
encerramento devido da Malévola, acredito eu, seja estar ao lado de
pessoas especiais e que você realmente ama. Ele não gosta de mim,
estamos apenas nos suportando pelo nosso trabalho, então, supus
que me ter no tapete roxo do show não fosse uma boa ideia. Ele
poderia posar sozinho para os fãs, para os fotógrafos e para a
imprensa do jeito que tanto preza.
Também cheguei na metade do show, porque estava e ainda
estou me sentindo sensível.
Ivy me disse que chegando atrasada ocasionaria uma boa
impressão.
— Isso quer dizer que você estava trabalhando e passará a
mensagem que seu namoro com Mikael é discreto. E que você
prefere entrar pela porta dos fundos do estádio, do que pela frente.
— Ela disse, enquanto me ajudava a escolher uma roupa adequada
para o momento. — Darling, eu sei do que estou falando!
Agora eu estou aqui, cercada por cinco seguranças, que me
escoltam até o camarote. As fãs, nos corredores do Estádio
Municipal de Madre Rita, gritam meu nome, me aplaudem, me
elogiam e berram o quanto estou bonita. Poucas têm coragem de
discorrer ofensas e, felizmente, não encontro nenhuma delas.
O show está chegando em seu auge, o estádio está lotado, há
pessoas de todas as partes do Brasil. Consigo ouvir a voz de Mikael
pelos alto falantes presos ao alto das paredes e preciso confessar
que estou animada para assistir meu primeiro contato ao vivo com a
Desvio.
Ouço a voz de Ivy retumbar na minha mente: “Procure por
Lola Santos, a empresária deles. Ela te dará o acesso essencial. Já
avisei que você chegaria atrasada. Fale pouco e acene muito!”
Falar pouco é o que eu mais gosto de fazer, não será difícil.
Os seguranças me acompanham até o camarote, abrindo a
porta para mim e me desejando uma boa noite. Agradeço aos cinco,
girando a maçaneta e entrando no espaço. É grande, amplo e as
janelas são feitas de vidro. Teto ao chão. Há poltronas para os
convidados se sentarem, buffet, e tenho a teoria de que é open bar.
— Ah, aí está você!
Uma mulher de cabelo vermelho tingindo se materializa na
minha frente. Reconheço como a empresária dos meninos, Lola
Santos.
— Toma! — Ela me passa um crachá com uma fita ao redor.
— Coloque no seu pescoço. Isso te dá acesso a qualquer lugar
nesse estádio.
— Obrigada. — Pego o crachá de sua mão e o coloco,
exatamente como Lola pediu. Ou ordenou. — Oi, eu sou a Geor...
— Sim, eu sei quem você é!
Lola me lança um sorriso cruelmente gelado e se afasta às
pressas, falando com alguém pelo ponto em seu ouvido. Suspiro
alto, deixando o ar escapar pela boca. Vasculho o local com cuidado;
há algumas fãs que me reconhecem e apontam para mim, há um
bar, duas mesas recheadas de doces e hambúrgueres e uma
pequena varanda, onde há duas garotas dançando ao lado de outros
convidados.
Reconheço imediatamente Beatriz e Allura. Elas estão
vestidas iguais; saias de couro, tops estilo regatas e botas até os
joelhos, idênticas às dos anos 90. O cabelo de Beatriz contém uma
tiara de tranças enraizadas, deixando o black power solto na parte de
trás, e Alli apostou em dividir seu cabelo em duas tranças enormes,
que batem até a cintura, estilo boxeadora. Suas peles estão
preenchidas por dezenas de pontinhos cintilantes e ferozes, devem
ter mergulhado em uma piscina com glitter.
Estou usando um terninho preto, da ViVia, minha mais nova
marca favorita. Ele é aberto até quase o meu umbigo e faz jus ao
mesmo decote que usei na festa, algumas semanas atrás.
Me aproximo delas, acenando e cumprimentando pelo
caminho algumas pessoas. Quando me veem, Beatriz é a primeira a
me puxar, me abraçando com o corpo suado e quente.
— Você perdeu muita coisa! — grita a modelo, por cima da
música. — Eles vão fazer uma pausa daqui a pouco.
— Gê! — Allura se pendura em mim. — Você perdeu, sério! —
Ela intensifica o que Beatriz acabou de dizer. — Os meninos estão
ótimos. É hipnotizante!
O palco, bem abaixo de nós, é fantástico. Com elementos de
Circo dos Horrores para todos os lados, entre artistas circenses
vagando para todos os lados na infraestrutura. Todos maquiados,
fazendo releituras afiadas de morte, sangue e crimes. É colorido,
vibrante e hipnótico. Os meninos estão dando seu suor em troca de
um dia memorável. A vibração do encerramento não é triste, muito
pelo contrário. A noite está quente, aconchegante e sem nem uma
nuvem no céu. Os fãs lotam cada parte da arena, enquanto acendem
seus celulares na direção dos garotos.
A bateria tem um suporte apenas para Bernardo, que sustenta
muito bem o ritmo. A maquiagem de Gael é parecida com a de um
palhaço, mas sem o efeito caricato. Pedro usa um terno elegante,
com uma coroa de noiva, com direito a véu e grinalda, comemorando
o noivado do seu jeito. E Mikael um terno rendado entre vermelho e
dourado, aberto, sem conseguir fixar os botões.
Está suado, cansado, e adrenalina pura beija suas veias, lhe
dando combustível para seguir em frente. Ele está finalizando uma
das músicas mais famosas da Desvio, “Influente”. Fala sobre um
cara que muda completamente seu jeito de ser apenas para
conseguir um mísero “oi” de uma garota. É boa, mas ainda prefiro
“Garota Internacional”.
O público se despedaça em gritos quando o sample muda
drasticamente, emendando uma música na outra. Há explosões de
fogos de artifício pelas laterais do palco, exatamente no ritmo da
nova música.

I'm hot, you're cold


You go around, like you know
Who I am, but you don't
You got me on my toes.
Eu sou quente, você é fria
Você anda por aí, como se soubesse
Quem eu sou, mas você não sabe
Você me deixa tenso.
Eles estão tocando um cover, de uma música dos Jonas
Brothers, “Burnin’Up”. Fez parte da minha infância, então mal
percebo quando começo a gritar e a pular, animada demais por esse
momento. Não sabia que os garotos faziam covers — ainda mais de
um marco na música adolescente dos anos 2000. Mikael está
segurando o microfone entre os dedos, caminhando até o começo do
palco, onde prefere se ajoelhar para obter maior contato com as fãs
que se espremem na pista premium. Infelizmente, não usa os óculos
redondos, o que é uma pena. O prefiro com eles — não que ele vá
levar a minha opinião em conta. E, sem perceber, já começo a me
remexer no ritmo da música, sacudindo a minha cabeça para tentar
acompanhar Beatriz e Allura.
Com certeza, já sinto o ritmo eletrizante das pessoas ao meu
redor, especialmente por Alli, que está tendo um dos melhores dias
da semana. Acho que do mês ou do ano.

I'm slipping into the lava


And I'm trying keep from going under
Baby, who turned the temperature hotter?
'Cause I'm burnin' up
Burnin' up for you, baby.
Eu estou caindo na lava
E eu estou tentando não afundar
Gata, quem aumentou a temperatura?
Eu estou fervendo
Fervendo por você, gata.

— Senhoras e senhores! — Mikael anuncia empolgado,


ignorando a próxima estrofe da canção e pulando no lugar. A música
continua tocando, energética. — Com vocês, Georgia Pessoa. A
minha garota finalmente chegou!
O público vai ao delírio, gritando o meu nome com fervor. Não
faço ideia de como ele me enxergou daqui, mesmo o camarote não
sendo tão longe do palco. Na realidade, é mais perto do que pensei,
mas isso não importa. O que importa é que todos os holofotes estão
virados para mim esta noite, direcionados na “nova namorada”, a
pessoa que fisgou o coração de um bad boy, estrela da música
nacional. Ergo meus braços em direção ao céu, para mostrar que
estou feliz e curtindo o primeiro — e último? — show do meu
namorado de mentira.
Mas não estou me divertindo falsamente.
É a mais pura verdade que não consigo parar de sorrir e
dançar.
Ao menos isso é verdade.

Se as meninas do Leblon não olham mais para mim


Eu uso óculos
E volta e meia eu entro com o meu carro pela contramão
Eu tô sem óculos
Se eu tô alegre eu ponho os óculos e vejo tudo bem.

Depois desse último cover, a Desvio fará uma pausa, pelo o


que Beatriz Mafra me explicou. Uma outra banda cantará cinco ou
seis músicas para assim, a Desvio voltar e encerrar a Malévola com
grande estilo. Com os ânimos aflorados e já um pouco cansada,
sussurro no ouvido de Beatriz e Alli que vou buscar um pouco de
água. Minha mente parece dispersa e não me sinto mais tão
integrada quanto antes. Procuro as caixas de som pelo estádio, me
sentindo incomodada pela sua proximidade.
O que eu queria? É um show, resmungo comigo mesma.
Bem? O que eu queria? Curtir sem me preocupar com o
Meniere.
Não posso e nem consigo ficar muito tempo em lugares
barulhentos, então, quando o frenesi diminui e dá uma esfriada,
decido me afastar um pouco. Beber muita água e ir ao banheiro. Não
necessariamente nessa ordem. Me sinto devidamente estranha
quando me distancio de Beatriz e de Allura, porque elas parecem
dispostas a ficar em pé o tempo que for preciso.
Eles sabem que estou aqui, não é? Eles sabem que estou
dando meu apoio mesmo não curtindo cada parte da noite.
Não é?
Só sei que é o bastante para a minha expressão endurecer e
eu me sentir como uma péssima amiga. Posso me considerar amiga
de Pedro e Gael, especialmente. Engulo em seco, deixando a
varanda de acesso ao show a passos largos.
Mikael canta “Óculos”, do Paralamas do Sucesso. E, antes de
começar o cover, ele dedica a música para mim.

Mas se eu tô triste, eu tiro os óculos


Eu não vejo ninguém.

Antes de beber, decido seguir o caminho do banheiro


feminino, voltando a sentir meus sentidos cada vez mais aéreos.
Espero que eu tenha feito um bom papel em estar aqui, porque não
me sinto completamente bem. O centro da minha testa lateja e o
chiado dentro do meu ouvido direito está insuportável. E só consigo
notar que sua pressão aumentou ao me deparar com o silêncio
quase total do banheiro. Ainda consigo ouvir a voz de Mikael, mas é
baixa o suficiente para escutar meus próprios pensamentos. E os
sinais de alerta que meu corpo está me passando.
Estou suando frio quando chego à pia do banheiro, de apenas
duas cabines. O espelho é enorme e iluminado, e a parede de
ladrilhos me enjoa. Espalmo as minhas mãos no mármore da pia,
respirando fundo e contando. Se a minha ansiedade aumentar, o
refluxo se tornará frequente.
Preciso me controlar.
Preciso me controlar.
Preciso me controlar.
É uma sorte eu estar sozinha.
No espelho, me analiso; estou fantasticamente linda e
arrumada. Meus cabelos recaem pelo meu busto, o terninho combina
com cada parte acentuada do meu corpo e há muito glitter na minha
bochecha, graças às meninas. Apesar de pressentir que irei passar
mal, estou feliz de ter ao menos dançando quatro músicas.
Lavo as minhas mãos e passo um pouco de água gelada na
minha nuca.
É sozinha que aproveito para respirar pela boca, torcendo
para a vertigem não aparecer.
Por favor.
Por favor.
Por favor.
Minha imersão no desejo só me faz levar um grande susto
quando alguém entra no banheiro, deixando que a pesada porta
azul-petróleo bata contra o batente. Pelo meu reflexo, arregalo os
olhos, saltando pela presença repentina da garota, e ela também não
parece muito contente quando me vê.
Depois, seu rosto suaviza e ela fica sem graça. Talvez tenha
pensado que estaria sozinha aqui.
Demoro para entender seu rosto e sua expressão
melancólica. O rímel está borrado e escorre pela sua pele branca, ao
lado das lágrimas.
É Amanda.
Não a vi no camarote, não pensei que ela fosse aparecer,
ainda que seja óbvio. Ela é namorada do Bernardo agora.
— Desculpe — gagueja. — Eu vou embora.
— Não! — digo rápido. — Pode ficar, eu só estou lavando as
mãos.
Encolhida, ela assente com o queixo, sem dizer mais nada.
Seu cabelo castanho-cobre está preso em um coque
apertadíssimo, com apenas duas mechas caindo na lateral do rosto
angelical. Seus olhos já estão inchados, mas isso não a deixa menos
bonita. Seu vestido é curto e elegante, tudo na mesma medida e
proporção.
— Você... Está bem? — Ela me pergunta. A preocupação
preenche seu tom de voz.
Rio pelo nariz, dando as costas para o espelho e me apoiando
na pia.
— Irônico ouvir isso de quem está chorando — brinco. E
consigo fazê-la sorrir apenas um pouco. — E não, não estou. Vou
ficar pior que isso daqui a pouco. Questão de tempo. — Limpo a
minha garganta. — E você?
— A mesma coisa — discorre com firmeza, caminhando na
direção e também lavando as mãos. Ela funga deliberadamente
enquanto tenta arrumar o estrago do rímel. — Péssima escolha de
rímel. Se eu sabia que ia chorar, por que não passei um à prova
d’água?
— Talvez porque estamos em um show. Não é lugar de
chorar.
— Para mim... É... — Amanda pega um pequeno pedaço de
papel e limpa a maquiagem com violência. O local fica avermelhado
e não parece nada bom.
— Deixa. — Seguro sua mão por cima da sua pele. — Eu faço
isso. Senão daqui a pouco você vai chorar de dor, e não pelo outro
motivo.
Relutante, Amanda dá um passo para trás, confusa com o que
está acontecendo. Seus grandes olhos azuis deixam explícito que
ela tem muitas perguntas para me fazer. Eu não deveria odiá-la? Ela
não é uma traidora? Ela merece mesmo essa atenção? E este
cuidado?
— Você é… Mais legal do que as pessoas dizem — confessa,
me deixando limpá-la com mais cautela.
— Verdade. — Sorrio. — As pessoas não gostam muito de
mim. Tenho fama de antipática. Só porque não gosto muito de
conversar... — conto, tranquila. Enquanto troco de papel, Amanda
volta a derramar mais algumas lágrimas, fazendo um pouquinho de
rímel escorrer. — Desculpe perguntar, mas o que aconteceu?
Seus lábios tremem ferozmente. Suponho que a minha
pergunta tenha sido o estopim.
— Tudo?! — murmura, chorosa, engolindo o bolo que se
forma na sua garganta. — Mas mereço isso, afinal.
— Ninguém merece isso — reluto. — Ainda mais em um dia
de comemoração.
— Não sei... — diz sinceramente. — As pessoas estão
chateadas comigo. Não querem mais falar comigo e quando me
aproximo, elas vão embora. Nem o Bernardo anda feliz com o nosso
relacionamento...
— Não?
— Não, é claro que não. — Amanda se afasta um pouco de
mim, para respirar melhor. — Ele ama o Mikael com todo o seu ser.
Não consegue ficar bravo com o melhor amigo. Na realidade, ele
quer o melhor amigo de volta e acho que não posso suportar o cara
que eu amo desse jeito. Às vezes eu penso em me afastar, mudar de
país. Só para deixar a relação deles melhor. Porque eu tenho certeza
que estraguei tudo! — Ela desata a falar, embolando as palavras nas
outras. — Mikael e eu nos amamos por muito tempo, mas não íamos
durar. Nós dois sabíamos disso. Terminamos há meses, então...
Então... Nos tornamos amigos. Eu comecei a frequentar os shows
deles, mesmo que isso alimentasse o coração dos fãs. Bernardo
sempre foi muito legal comigo, parou de ser um babaca há anos.
Isso é bom de ouvir, pelo menos ela não largou um babaca
para amar outro.
— Então... — Seu rosto se contorce. — Aconteceu!
Simplesmente aconteceu. Nós começamos a conversar, a sair. Nos
beijamos... E Mikael entendeu tudo errado. Tudo! Eu já era solteira
quando decidi dar uma chance ao que meu coração estava sentindo!
— Ela se encolhe, reunindo seus braços com pesar. — Bernardo se
sentia péssimo enquanto não tínhamos coragem de contar a verdade
para o Mikael. Nós sabíamos que seria uma conversa difícil, mas ele
nos viu e entendeu tudo errado. Jamais aconteceu nada quando
estávamos namorando. Nada! — Ela aperta as pálpebras até fazer
uma grande marca ao redor dos olhos. — E eu só estou contando
isso para você, porque não tenho mais amigas. Todas as pessoas
com quem tentei desabafar viraram as costas para mim. Eles têm
certeza de que eu sou uma traidora!
Quando conheci Amanda, foi na estreia de sua série, Doces
Sonhos, em que ela é a protagonista. Além de ser conhecida pelas
telas e paredes que decora ao grafitar e desenhar. Nós nos falamos
pouco, mas ela carrega um ar hollywoodiano invejável de assistir.
Jamais pensei que a ouviria desabafar em um banheiro, enquanto
ouvimos a Desvio tocar um cover para mim.
— Se serve de consolo... — Me aproximo dela. — Eu também
não tenho muitos amigos. — Dou de ombros. — Agora... tenho um
grupo, mas não ter amigos, às vezes, não quer dizer muita coisa.
Principalmente se eles nunca honraram a palavra “amigo”. Se eles
não quiseram te escutar, acha mesmo que eles são alguma coisa?
— A carreira deles poderia ficar manchada...
— Mas ainda assim, seriam boas pessoas, focadas no seu
bem-estar — falo tudo com muita calma. — E que bom que você me
disse, eu estava suspeitando de que fosse um mal entendido.
— Estava? — Seus ombros se erguem na mesma hora, com
muita esperança. — Como assim?!
— Primeiro, deixa eu te limpar de novo. — Puxo sua mão,
para que ela fique quieta dessa vez. Amanda ri entre as últimas
lágrimas e assente, me deixando retirar todo o vestígio da
maquiagem. — Segundo, mal entendidos acontecem o tempo todo e
Mikael deve ter ficado chateado assim que viu vocês dois. A pior
coisa é sentir que foi feito de idiota. De otário.
— Eu entendo o sentimento dele.
— Eu também. — Ajusto seus cílios e suas bochechas,
secando o seu queixo. — Mas ele não pode ficar acreditando apenas
no que quer.
— Bernardo tenta conversar com ele o tempo todo!
— É um erro. Ele não vai ouvir, temos que esperar Mikael
digerir os próprios sentimentos e dar o braço a torcer.
— Temos?! — pergunta, surpresa. Totalmente.
— É... Eu prometi que não ia me meter nisso, mas como não
é uma história tão simples, talvez ele mereça uma ajudinha. Não que
ele vá me ouvir, parece um burro empacado na lama de tão teimoso!
— Ao ouvir a minha piada, Amanda ri, bem mais tranquila. — E eu
acredito em você. Ainda que o histórico do Bernardo seja duvidoso,
gosto de pensar que as pessoas ainda têm muito a oferecer, do que
apenas decepções. — Dou um passo para trás, analisando seu
rosto. — Pronto. Está limpa! Sem sinal de choro!
Amanda Olivêncio se vira lentamente em direção ao espelho,
tocando sua pele com delicadeza. A música continua a vir, abafada.

Por que você não olha para mim?


Me diz o que é que eu tenho de mal?
Por que você não olha para mim?
Por trás dessa lente tem um cara legal.

— Obrigada, Georgia! — agradece suntuosamente. — Não


quero parecer uma garota besta, mas preciso dizer que fico feliz que
o Mika esteja com uma pessoa que nem você!
Ah, é verdade. Somos namorados!
Me lembro do fato, sorrindo minimamente. Me esqueci
totalmente da farsa. Se Amanda fosse desagradável, seria mais fácil
ter uma imagem ruim dela.
— Ele tem sorte mesmo — evidencio, fazendo-a rir mais. —
Com certeza, ele é o sortudo!
— Obrigada por me ouvir, eu... eu... nem sei como agradecer.
— É melhor mesmo tirar um tempo para você... E quem sabe
pro Bernardo também — aconselho. — Se você realmente está me
contando a verdade, não se sinta culpada. Se aconteceu, se fugiu do
seu controle, não tem mais o que fazer, Amanda.
— Obrigada — fala novamente, encantada. — Será que posso
tirar uma foto com você? Sou muito fã das suas novelas, porém
nunca soube pedir.
— Sim, mas só se você colocar muito filtro, porque não estou
muito bem!
— Feito!
Amanda retira o celular do sutiã, abrindo na câmera frontal e
sorrindo o mais aberto que consegue — e acho que pela primeira
vez na noite. Tiramos mais de cinco fotos, algumas fazendo caretas
e rindo espontaneamente.
— E se quiser uma amiga. — Ergo o dedo. — Bernardo sabe
onde estou hospedada!
Ela solta um guincho emocionada e me abraça sem pedir
permissão. Ela me aperta com toda a sua força, dando pulinhos
animados com o que eu disse. Ela é um pouco mais baixa, então a
cena é realmente divertida.
— Claro, claro! — garante, animada. — Será que tem algo
que eu possa fazer por você?
A pergunta é acompanhada por uma vertigem que me faz
tremer dos pés à cabeça.
— Sim... — discorro com dificuldade. — Por favor, chame a
Allura.

O palco está sendo comandado pela outra banda, que se


chama The Misses. Eles são da Inglaterra e falam pouco português,
daquele jeito fofinho que me lembra Ivy. Estou com a cabeça apoiada
na parede, tentando firmar meu equilíbrio. Amanda voltou apenas
uma vez, afirmando que não encontrou Allura ou Beatriz em lugar
algum, porém, saiu correndo quando, novamente, eu insisti que
procurasse alguém.
Fecho meus olhos, me concentrando no meu corpo.
A vertigem passou.
Minhas mãos suam.
Meu corpo está gelado.
Meus olhos estão pesados de sono.
E eu quero ir pra casa.
Quando a porta se abre gentilmente, sei que é uma pessoa
conhecida. Ao ouvir os passos pesados atrás de mim, apenas estico
as mãos para que Allura me segure. Ela me puxa com cuidado
contra seu corpo, me abraçando pela cintura e rindo fraco, de
encontro à minha pele gelada.
Abro meus olhos lentamente, me apoiando em seu ombro no
automático.
— Você não é a Allura — enfatizo, me sentindo mais fraca do
que deveria.
Mikael Devante ri roucamente, bem perto do meu rosto. Ao
contrário de mim, ele está quente e aconchegante. E muito.
— É, vivem me falando isso, amora mio — debocha, me
sustentando em pé. — Foi aqui que pediram um Príncipe
Encantado?
Franzo a testa.
— Tá mais pro sapo — ironizo. — Cadê a Alli?
— Ela desceu lá pra baixo — Amanda explica, timidamente.
— Acabou que uns fãs reconheceram ela e a Bea, e elas foram
dançar na pista comum. Está difícil encontrar as duas!
— Elas foram pro povão, resumindo. — Mikael não afrouxa o
aperto ao redor da minha cintura e me olha com atenção. Seu terno
é ainda mais bonito pessoalmente, e seu corpo suado umedece o
meu. — Passou mal de novo?
— Não, eu gosto de ter vertigem. É engraçado e eu acho
divertido — reclamo. — O que você acha, hein?
— Nossa, mas consegue ser uma chatinha até quando estou
te ajudando!
Não respondo, apenas faço uma careta qualquer.
A vertigem deixa rastros. Preciso de um lugar para me sentar,
ventilado, e de muita, muita água.
— Quer ir pra casa ou eu te deixo no meu camarim? Ainda
preciso encerrar o show.
Sua preocupação me deixa espantada. Ele está mesmo
cogitando encerrar o show antes para se certificar que estou bem?
— Melhor ainda se tiver TV.
Quero ir para casa, mas também não quero ser responsável
pelo fim indigno de uma turnê. Os fãs não merecem isso, tampouco a
banda.
— Eu posso ajudar! — Amanda se oferece prontamente.
Mikael trava o maxilar, desconfortável.
— De boa, Amanda — desconversa. — Vai curtir o show.
Sem ter o que fazer, ela assente, se despedindo de mim com
um acenar entristecido. Mikael pergunta se posso andar
normalmente e eu digo que sim, mas intervenho.
— Mas, como você é meu namorado, me carrega até lá.
E ele obedece.
22: bem-casado
INGREDIENTES: ovos, açúcar, farinha de trigo, fermento em pó, doce de leite,
manteiga.

— Quando foi que vocês terminaram?


— Quando eu voltei da França.
— Ah, então o Google tá certo.
Mikael não dá risada, ele escolhe revirar os olhos e chutar
levemente a porta de seu camarim. Ela se abre perante ao seu toque
e me encaminha para o único sofá do recinto. O camarim está
quente, mas não em uma temperatura insuportável. Seu espelho é
bem menor em comparação ao que ele tinha no antigo da Farol, mas
é bonito e decorado com fotos de muitas fãs. Fotos essas que me
deixam feliz em saber que, nesse quesito — no âmbito profissional
— ele não é uma pessoa estúpida. E nem age como uma. Suas fãs
são sua verdadeira alegria e Mikael as valoriza muito.
Sentada no sofá fofo, fico ainda mais feliz ao notar que o
silêncio aqui é quase predominante. Há uma TV apoiada em um
móvel próximo de onde estou, um frigobar aparentemente cheio, e o
mais importante; ficarei sozinha.
— Está melhor? — Ele se apoia no encosto do sofá, ainda em
pé e do outro lado.
Meu corpo sempre fica mais sensível quando estou prestes a
ficar menstruada. Mas tenho certeza de uma coisa: estou andando
na linha no quesito alimentação e exercícios, é o mínimo que posso
fazer para controlar as crises à risca.
— Sim, mas vou ficar mais ainda — garanto, me
espreguiçando.
— Vai conseguir ir no after? — quer saber, amaciando o
queixo. Subo minhas sobrancelhas. — Vai ser animal! É na casa da
praia do Victor, vai perder mesmo?
— Quem diabos é Victor?
— Um amigo da banda. Victor Valares — Dá de ombros, ainda
no mesmo lugar. — Por mais chata que você seja. — Ele abre uma
mão, esticando os dedos e listando suas ofensas. — Irritante,
mandona, língua afiada, silenciosa, fofoqueira e muito, muito
reservada, ainda quero você lá.
— Uau, me descrevendo assim eu devo ser a garota dos
sonhos de qualquer pessoa! — Estico minhas pernas no sofá e
reúno a minha mão barriga. — Se eu não for, você vai chorar?
— A noite toda, amora mio.
Ele está flertando comigo!
Descaradamente, há dias!
— Eu vou — resmungo. Analiso sua expressão facial mudar,
deixando que um sorriso pequeno comece a ganhar espaço. — Mas
se eu me sentir mal, eu volto imediatamente. Entendeu?
— Faço questão de te levar até o hotel...
— O que você quer? — meneio a cabeça, desconfiada. —
Está sendo bem legal nesses últimos dias. Foi a bronca que te dei?
Ela fez efeito?
— Você já parou para pensar que eu estou sendo legal porque
você está deixando eu ser legal?
Mikael ainda continua muito perto; consigo ver muito bem sua
cicatriz, ela é profunda e cobre boa parte de sua bochecha. As
gotículas de suor continuam concentradas na testa e ele está feliz.
Radiante. Eufórico. Animado. Muito. Parece realizado pessoal e
profissionalmente.
— Não. — Corto nossos olhares e o fixo na TV desligada. —
Não deve ser isso... De qualquer forma, vou estar te assistindo
daqui.
— Beleza. — Ele ajeita a postura, se afastando do sofá e
alongando as mãos. — Tem água no frigobar e pode comer todas as
jujubas, são do Gael, mas ele não divide comigo. Então, detone tudo!
— aconselha, rodeios. — Te busco daqui a quatro músicas, amora
mio.
— Não precisa me chamar desse apelido ridículo. Não tem
ninguém aqui além de nós.
A provocação o faz voltar para a mesma posição, se
engalfinhando no sofá e abrindo um sorriso sugestivo.
— Você diz que é ridículo, mas deve amar quando eu te
chamo assim. — Ele toca no meu nariz, me fazendo grunhir de
irritação. — Você o adora, Georgia. No dia que aceitar isso, vai ser
melhor para você!
— Vai fazer seu trabalho! — desconverso, apontando para a
porta.
Ele não se move, nem um músculo. O castanho de seus olhos
está apagado, banhado em desafio. Mikael me escaneia com
cuidado. Os orbes passam pelo meu rosto, pescoço, busto, pernas e
pés e refazem o caminho. Quando volta a me fitar frente a frente, ele
não está mais sorrindo. Toda a seriedade toma conta de seu belo —
e irritante — rosto.
— Você está linda — elogia. A voz sai rouca e carregada. —
Estou te falando isso primeiro, porque não quero que pense que vou
te elogiar apenas quando estiverem de olho em nós.
— Obrigada. — Abaixo a minha guarda um pouco. Apenas um
pouco. — Você também. E isso é o máximo que vou dizer...
— Sei... — fala, sarcástico. — Você já me desculpou pelo o
que eu fiz?
— O que exatamente? — inspiro, cínica. — São tantas coisas!
— Sobre a Sofia.
— Não sei dizer... Vamos analisar os próximos dias! — Dou
pequenos tapinhas no seu rosto. — Por quê?
— Porque eu te dediquei uma música... uma não, várias. Mas
aquela do “Óculos" foi para você. — Espertinho, ele me garante que
está falando a verdade. — Por que você não olha para mim? Me diz
o que é que eu tenho de mal? Por trás dessa lente tem um cara
legal... — Ele sorri, passando os dentes pelos lábios manchados de
batom vermelho. Se o batom é dele ou de alguma outra pessoa,
prefiro não saber. — Posso te pedir uma coisa?
Subo meu olhar, me sentindo muito confortável.
— Pode.
— Posso te dar um selinho? — questiona, sútil. — Em sinal de
boa sorte.
— Como é? — Rio nervosamente. — Que tipo de cantada é
essa?
— Não é uma cantada! Eu juro! — Se defende com muita
pressa. — Nós, da banda, sempre pedimos selinhos para nos dar
sorte. Nós damos selinhos uns nos outros antes de entrarmos nos
shows e depois que saímos. É tradição!
— Não sabia que eu tinha entrado na Desvio!
— Podemos pedir para qualquer pessoa que possa transmitir
uma boa energia! — Ele se aproxima mais. — E sejamos francos,
Georgia, você não quer que eu vá mal no último show da turnê
Malévola. Quer?!
— História mal contada — canto. Apenas para aborrecê-lo.
A pior parte nesse diálogo todo é que meu estômago se
remexe, fazendo todo o meu corpo entrar em alerta. Porque não só
achei engraçado, como não vejo mal algum em lhe dar um maldito
selinho.
— Isso é um não? — sussurra.
— É... — Aperto meus lábios. — É um... Sim.
Ele não diz mais nada quando se aproxima, embargado no
momento. Seguro seus lábios avisando que é apenas um selinho —
e somente isso. Seu sorriso sacana o acompanha até os últimos
segundos que ele tem para quebrar a distância entre nós. E tenho
certeza que os instantes duram mais do que apenas um selar de
lábios. É rápido, mas demora um pouco mais. Difícil explicar; sinto
sua boca colada na minha, mas, tão cedo nos tocamos, tão cedo ele
se separa.
— Boa sorte — murmuro. Me encolhendo no sofá.
— Pode ter certeza que agora sou imbatível.

O fim do show foi sensacional. E posso dizer isso em base ao


fato de que nunca assisti nada envolvendo a Desvio. Os garotos
subiram ao palco e, antes de encerrarem, fizeram um discurso
agradecido por todos os fãs terem os acompanhado por anos e anos
a fio. Pediram desculpas por serem difíceis, mas afirmaram que cada
um estava iniciando uma fase colorida e intensa e convidaram todos
a participarem. Cada um deles dedicou uma música para uma
pessoa e a plateia cantou “Apenas eu e você” à capela, em
homenagem ao futuro casamento de Pedro Honduras com Beatriz
Mafra.
Quando o show terminou, Mikael chorou, emocionado no
último refrão, e a Desvio saiu do palco abraçada. Sério. Fiquei
arrepiada e aplaudi muito enquanto assistia pela TV.
Os garotos apareceram no camarim suados e sentimentais e
cada um precisou de um tempo para se recompor, antes de lembrar
da festa oferecida pelo tal Victor.
A casa de praia fica próxima de um condomínio em praias
particulares, no alto escalão de Madre Rita. Há algumas fãs na porta,
roucas de tanto gritar, com cartazes com os rostos dos meninos da
banda colados em diferentes extremidades do papel. Mikael e Gael
convidam todas para o after, conversando com cada uma delas.
Vim de carona com Mikael em seu carro, mas não fiquei no
banco da frente, porque Pedro insistiu que fôssemos todos juntos. E
Allura na garupa da moto de Gael, nos seguindo pela estrada.
Quando decidimos sair do Estádio Municipal de Madre Rita, para a
festa seguinte, já eram três horas da manhã. Nunca fiquei tanto
tempo fora de casa e me sinto incrivelmente bem. E animada.
Na casa, conheci o famoso Victor, que é um produtor de
música, bem jovem. Ele me passou uma latinha de cerveja que
Mikael rapidamente tirou da minha mão e bebeu em três goles.
Muitos convidados fizeram questão de aplaudir a Desvio, fazendo
deles os reis da festa.
Bernardo também esteve presente, mas ele apenas
cumprimentou as pessoas que mais lhe interessavam e foi embora
ao lado de Amanda. Eles ainda pareciam frios e distantes com o
resto das pessoas, mas posso jurar que quando eles foram embora,
ele e Amanda trocaram um sorriso cheio de sentimento. Algo como
“Vamos ficar bem”, e sei que aquilo foi o suficiente para ela.
— Você me desculpa mesmo? — Allura segura meu braço,
antes que eu entre na cozinha onde Mikael, Gael e Pedro estão
bebendo. Os três conversam amigavelmente, gesticulando bastante.
— Eu só desci até a arena, mas se eu soubesse eu tinha ficado lá.
— Alli, sossega. — Seguro sua mão na minha. — Está tudo
bem. Sério! Eu tive ajuda!
— É, foi bem legal da parte do Mika...
— Ah, não — comento. Ela retira seus olhos de Gael e me
encara, esperando por mais. — A Amanda me ajudou.
— Amanda? — repete. — Que Amanda?
— Olivêncio!
— Mentira!
Seu grito me faz rir e eu a acalmo.
— É — confirmo. — Mas depois a gente fala sobre isso. Não
aqui... Curte sua noite, porque você é a mais nova Primeira Dama da
Desvio! — Seguro suas bochechas para irritá-la, e Allura só se afasta
de mim quando garante que não estou chateada por ela não ter
ficado por perto.
Assim que recebe um sorriso meu em resposta, ela beija
minha testa e a minha bochecha, saltitando para perto de seu mais
novo namorado. Quero dizer, eles ainda não oficializaram, mas será
questão de tempo.
Eles se gostam muito.

Na cozinha, com o braço de Mikael ao redor do meu pescoço,


enquanto ele está fazendo várias piadas ao lado dos melhores
amigos, estou com um pouco de sono. Estamos numa roda de
casais, falando alto, dançando no ritmo da música, enquanto a ilha
de utensílios da cozinha nos separa.
— Foi a-ni-mal! — Gael Soares separa as sílabas, tendo
Allura sentada no seu colo. — Quando nós começamos a tocar
“Desejo Infinito” eu só conseguia pensar... Porra! Eu amo a minha
vida!
— Claro que ama! — Pedro debocha, piscando para mim,
porque com certeza, sou a primeira a rir. — Mas agora é sério... Na
próxima turnê, precisamos de um tema diferente. Circo foi incrível,
mas quero que todas sejam temáticas! E aquelas dançarinas se
pendurando do teto?! O fogo sendo manuseado?! Sensacional pra
porra!
Por uma fração de segundos, encaro Mikael, com as
sobrancelhas juntas. Ele não disse que contaria aos amigos que
sairia da banda? Antes mesmo dos ensaios finais? Se eles estão
fazendo planos, não parecem que sabem da verdade.
Mikael entende o meu olhar e apenas nega com a cabeça. Um
movimento quase imperceptível.
Ele ainda não contou.
— Nos perdemos quando fomos para a pista comum! — Alli
conta, com os olhos arregalados de empolgação. — Alguém puxou o
meu cabelo e eu nem me importei!
— Foi o melhor show da minha vida! — Beatriz beija a
bochecha do noivo. — Vocês estavam fantásticos!
— Obrigado, amor... — Pedro abraça Beatriz de lado. — Foi
incrível. Não vou me cansar de falar dessa noite tão cedo!
— E não parem! — Victor, o dono da casa aparece. Ele nos
recebeu assim que chegamos e se apresentou para mim, afirmando
que me roubaria de Mikael caso ele vacile comigo. Ele tem cabelo
verde, até a altura das orelhas, e pele marrom-clara. — A casa é de
vocês. Por favor. Se quiserem dormir aqui, tem quarto suficiente para
todos os casais!
— Valeu, irmão — Mikael agradece, erguendo sua longneck
na direção do produtor.
Victor passa seus olhos por todos nós, adorando nossa
interação e como não conseguimos ficar um minuto sem falar. Ele
para em mim, no entanto. Seu rosto se enruga e um vinco se forma
em seus lábios.
— Por que você não está bebendo nada? — questiona, forte.
Todos se calam, me encarando. — Alguém traga alguma coisa para
a Georgia beber. Uma atriz desse naipe não pode sair por aí
pensando que a minha casa não tem nada!
— Ela não bebe! — Mikael responde.
— Eu não b... — Não termino de falar, porque não preciso
mais. Porém, eu estou tão no automático, que mal reparei que Mikael
respondeu por mim.
— E como você sabe? — Alli revida, perdida.
— Eu andei... reparando nela... quando saímos... —
confidencia, arrumando os ombros. Ele continua com o braço ao
redor do meu pescoço. — E também percebi que o frigobar do
camarim dela sempre está cheio de água e suco. Assim como a
geladeira. Ela sempre recusa bebidas alcoólicas. Ela também evita
refrigerante, porque o forte teor de açúcar na composição pode ser
um gatilho para as crises de vertigem dela.
Uau?!
Notando que todos o encaram perplexos, Mikael continua.
— Ela também não bebe café, a cafeína impede que o
remédio dela faça efeito — emenda, confiante. — E nem come
chocolate preto, pelo mesmo motivo.
— Cara... — Gael sibila, impressionado. — Como você sabe
de tudo isso?
— Ela me disse algumas coisas, mas fiquei com insônia há
duas noites e andei pesquisando sobre a Síndrome de Meniere... —
responde, dividindo o peso entre os pés. — Doença chata pra
caralho, mas entendi muita coisa agora. É bom... Pesquisar, sabe?
Porque assim temos... Que saber o que fazer quando ela se sente
mal.
Mais silêncio, cada pessoa mais embasbacada do que a
outra.
— E outra coisa, pessoal... — Victor completa. — A mina é
namorada dele, não é? Ele tem que saber dessas coisas.
Todos, exceto Victor, sabem que é apenas um namoro de
mentira — tanto é que somos o Esquadrão do Namoro Falso — ,
mas talvez tenham achado fascinante e emocionante Mikael ter feito
um ato tão genuíno.
— É. — Ele concorda, agora engolindo em seco e forçando
um sorriso.
— Bom, eu vou dar mais atenção pros outros convidados.
Fiquem à vontade! E Georgia, aqui tem água, caso queira! — Victor
dá vários tapas nas costas de Gael e sorri para Allura, se
distanciando de nós e sumindo entre as pessoas que dançam e que
se beijam por toda a parte.
— Desde quando você sabe ler? — Pedro debocha.
— Cala a boca, Pedro. — O cantor ao meu lado rosna. — A
doença é realmente chata. E é rara também. Eu estava lendo que...
— Leu tanto que saiu do Google com um diploma de
otorrinolaringologia — Gael murmura discretamente, fingindo que
está bebendo um pouco da cerveja.
— Ah — resmunga. — Vão se foder. — Mikael termina uma
cerveja e já pega outra, dentro de um cooler. Nossos amigos se
explodem em risadas, mas cessam em questão de alguns minutos.
Cada um deles está imerso em seus mundinhos. — Quer sair aqui?
Dar uma volta pela casa?
— Sim, vamos. Eles vão começar a se engolir daqui a pouco...
— sussurro de volta, esticando meu braço para pegar uma garrafa
de água gelada.
Mikael retira seu braço do meu pescoço e desliza sua mão
pela extensão do meu braço inteiro, até encontrar os meus dedos e
me segurar pela mão esquerda. Gael e Allura não reparam que
estamos saindo da cozinha, tampouco Beatriz e Pedro. Os dois
casais muito hipnotizados e apaixonados. O tempo todo.
No coração da casa, os convidados dançam e bebem sem se
preocuparem com nada. Reconheço muitos atores, influencers,
blogueiras, youtubers, e claro, músicos. Aqui é mais um lugar onde
os celulares são proibidos, o que é só mais um jeitinho fofo de dizer
que não querem que vazem fotos e vídeos das drogas que rolam por
aqui. E sempre rola, não tem como falar que não.
Mikael me conduz pela casa, sendo a sensação que ele tanto
ama. Algumas pessoas mais corajosas nos param para falar com
ele, para elogiá-lo, para agradá-lo, para fazer qualquer coisa que lhe
arranque um sorriso. É impressionante que ele sempre esteja
mantendo nossas mãos unidas e é peculiar pensar que estamos
“juntos.” O grupo de fãs dança na pista de dança na área da piscina
e elas gritam que sou a mulher mais bonita do mundo. Aceno na
direção delas, enviando beijinhos para todas.
— Elas te amam — Mikael diz, feliz, me conduzindo para o
andar de cima, depois que notamos que o primeiro não tem nada de
mais. — Se elas te odiassem, eu ficaria puto.
— Não tem como não me amar — friso, fazendo aquele
mesmo charme de sempre. Algumas pessoas reparam que estamos
subindo e me fitam como se eu estivesse prestes a trepar em todos
os cômodos. — Mas os meus fãs te odeiam!
— É, eu sei — responde com tédio. — Eu andei pesquisando.
Um deles até fez uma thread no Twitter explicando como sou
problemático. Outro iniciou um abaixo-assinado pedindo para que
quem amasse Georgia Pessoa focasse naquela causa nobre. — No
segundo andar, ele para em frente à uma porta, ficando de frente
para mim. — Eles estão empenhados em nos ver separados.
— E eles estão errados?
— Não. — Sorri, sem mostrar os dentes. Ele abre a porta com
a mão vaga e entra primeiro, me guiando em seguida. É apenas
mais um quarto de hóspedes, mas a varanda é realmente muito
bonita.
Deve ser a maior da casa.
— Não gosta de festas? — Solto minha mão discretamente da
sua, sentindo meus dedos livres dos seus.
— Quero fumar — rebate, andando na frente, abrindo a porta
de vidro da sacada e sinalizando com a cabeça. Enquanto ando,
reparo que ele tira o maço de cigarros do bolso e puxa um. A
decoração do quarto é padrão e morna, em tons frios. — Eu até ia te
oferecer um, mas você não pode.
— Você pesquisou mesmo tudo aquilo? — Encosto meu
ombro no batente da porta, sem entrar totalmente na varanda. — Foi
bem legal da sua parte!
— Tô tentando te falar que sou legal há seis anos.
— Sério... — Ignoro sua brincadeira. — Isso evita que eu fale,
e eu odeio falar sobre o Meniere.
Ele traga o cigarro aceso mais uma vez, relaxando os ombros.
— Não precisa agradecer — esclarece. — Só devo imaginar
que seja uma barra.
— É. — Inspiro com força. — Há dias que são bem melhores
que outros. Hoje, especificamente, é um dia bom. Tive uma tontura e
estou bem. Há outros em que ela me derruba por horas. — Abaixo o
olhar para os meus pés. — Às vezes acho que ela é dona do meu
corpo e não ao contrário.
— Não tem nada o que eu possa fazer? — sugere, aflito. —
Para melhorar?
— Tipo o quê?
— Sei lá. Me formar em otorrinolaringologia?! — pontua.
Dou risada, caminhando em direção ao gradil e me apoiando
ali. Mikael fecha a porta atrás de nós e se junta a mim. Há pessoas
nadando sem roupa na piscina, bebendo no gramado e se agarrando
no jardim mais afastado.
— Por que não contou a eles que vai sair da banda? — Solto
de uma vez, analisando Pedro correr na direção de Gael e trocar um
selinho com o amigo.
Mikael grita “A-há, não te falei que trocamos Selinhos da
Sorte?”, e eu apenas rio baixo, para não dar esse gostinho a ele. O
gosto da razão e às vezes errar é amargo demais para experimentar.
— Sei lá. Vai que dá tudo errado? Sempre que um membro
sai, a banda decai. Mesmo que eles falem que vão seguir mesmo
assim, é questão de tempo até acabar com tudo!
— Foi por isso?!
O ouço respirar fundo.
— Sem querer ofender, amora mio, mas não quero falar sobre
isso. Pode ser?
A minha parte curiosa está se repartindo em dois, mas assinto
três vezes com a cabeça. Mikael se desfaz do cigarro e não fica mais
do meu lado, preferindo se acomodar na minha frente.
— Aproveite esse momento, porque eu soube que a festa de
estreia, na verdade, será um jantar de gala na Mansão Farol —
conta, sendo o verdadeiro fofoqueiro que tanto é.
— Por que não disse nada ainda sobre o fato da Amanda e eu
termos conversado? — disparo também, entortando a cabeça para o
lado.
Mikael ri, incrédulo, negando com a cabeça duas vezes.
Ele abre suas mãos e me segura pela cintura, me firmando no
chão e diante dele. Curva apenas um pouco o pescoço, para que
fiquemos cara a cara.
— Quando você não quer falar sobre um assunto, eu fico
insistindo? — pergunta, pausadamente.
— Sim — falo rápido. — É a pessoa mais sem tato e noção
que conheço.
— Ok, ok. Mas quando você não quer falar sobre o Meniere
eu insisto?
— Não.
Seus dedos tamborilam a minha cintura, no ritmo da música.
— Então... Não quero falar desses assuntos. Pode ser? Não
hoje. O dia tá foda pra caralho. — Ele ajeita sua postura, mas não
tira suas mãos do meu corpo.
Ele tem total razão, e controlo a minha língua para não
estragar sua noite. Ou o restante dela. O sol irá nascer em breve.
— Certo, desculpe.
— De boa. — Ele respira com força, a tensão se reformulando
em sua expressão. — Eu vou te abraçar agora, ok? Mas só porque a
Sofia não para de me fuzilar com os olhos.
Deixo uma risada imprudente escapar e, discretamente, tento
encontrar Sofia Balloi pela festa. Não somos invisíveis e qualquer
pessoa mais atenta consegue nos avistar conversando na sacada.
Sofia é uma delas; seu cabelo liso e preto está solto, enquanto ela
usa um biquíni amarelo-neon, com as pernas dentro da piscina, se
mantendo sentada na borda. Ela fuzila Mikael e apenas ele.
— Você quebra o coração de todas — resmungo, dando as
costas para ele, obrigando-o a me abraçar por trás. Seus braços me
envolvem na altura do pulmão, quase encostando nos meus seios.
— Inclusive daquelas que você joga limpo.
— Sempre joguei limpo — pontua. — E ela me bloqueou. Não
entendo a lógica de me querer longe e me querer por perto.
Sua virilha se aproxima da minha bunda e nosso abraço está
mais íntimo do que qualquer outra coisa.
— Não precisa entender...
Ele afasta meus cabelos novamente de um lado do meu
pescoço, o ajeitando em apenas uma curva. O toque é preciso e
calmo. Sua bochecha se encosta na minha e a sensação é tão boa
que quase fecho meus olhos para senti-la. Quase penso na
possibilidade de jogar tudo para o alto e o deixar agarrado a mim. Já
que somos “namorados” ninguém se importaria em nos ver tão
próximos e relaxados. Seria até realmente bom, porque perceberiam
que somos carinhosos e que adoramos tocar um ao outro.
Mas preciso me segurar bastante para não fazer nada do que
eu não vá me arrepender depois. Já basta o selinho que trocamos no
camarim ou o arrepio que ele causou quando improvisou a cena de
Germano dentro do bistrô. Na realidade, já basta muitas coisas.
O relevo de sua cicatriz repassa pela a minha pele. É gostoso,
relaxante e me arrepia, com uma lentidão quase que insuportável. É
um arrepio tão devagar, que a sensação começa no tornozelo e só
depois de alguns segundos, é que começa a subir pelas minhas
pernas, virilha, tronco, braços e, por fim, nuca. Forço a minha
respiração.
Ele deve estar curtindo tanto quanto eu.
— Como você ganhou a cicatriz? — finalmente pergunto,
fechando meus olhos. Foda-se. Foda-se. Foda-se. Só consigo
apreciar seu toque.
— Quer mesmo falar disso agora?
Porra.
A voz.
Me inebriando a segui-lo esse quarto afora.
Só consigo pensar besteira.
Ele me aperta ainda mais contra o seu corpo e resmunga algo
inaudível perto de mim. Não faço ideia se vamos nos beijar e a ideia
me irrita, na mesma proporção que me excita. Ele é terrivelmente
duvidoso, mas por que tinha que ser tão bonito?
Seria bem mais fácil se fosse feio.
Alguém se joga na piscina, fazendo com que metade da festa
se assuste com o baque. Inclusive nós.
Uso a deixa para me afastar e me recompor, voltando a
arrumar meus cabelos em volta do busto. Mikael checa, preocupado,
o que aconteceu, mas é apenas um engraçadinho que mergulhou de
roupa e tudo, e está gritando que ama a vida.
Agora é o melhor momento para fingir que nada aconteceu e
que não ficamos nos esfregando, com a desculpa de um abraço
inocente. Porque de ingênuo ele não teve nada.
— Quer descer? — sugere, mal humorado. Pelo susto e pela
interrupção.
— Sim, melhor. Mas... — Elevo o dedo. — Responda a minha
pergunta, Mikael.
— Só se você me chamar de Mika. Já insisti!
— É, mas se eu te chamar de Mika, significa alguma coisa e
nós não somos nada — alfineto, venenosa.
Seus ombros estremecem, porque está rindo.
— É um prazer ser um nada com você, amora mio.
Estranhamente, ele ainda está de costas para mim.
— Mas sem brincadeira... — Mikael limpa a garganta. — Um
cachorro me atacou quando eu era muito novo, essa é a versão
resumida. Ele estava com fome, cansado e com muita raiva. Ele
atacaria qualquer pessoa que passasse naquela rua. Ganhei uma
cicatriz para me lembrar daquele dia.
— Caralho. Desculpe, eu não...
— Relaxa. Eu não lembro de muita coisa, só dele correndo na
minha direção e nos pontos que levei no hospital. — Ri baixinho. —
Minha avó me deu muito sorvete naquele dia.
Fico em silêncio, ainda me sentindo relativamente quente.
— Se serve de consolo, a cicatriz te deixa um charme.
— Valeu — agradece francamente.
Por alguma razão, escolho sair da sacada primeiro.
Ou talvez eu saiba muito bem a razão, mas não queira
encará-la de frente.
23: sorvete de amora
INGREDIENTES: essência de baunilha, leite fervente, gemas peneiradas, açúcar,
creme de leite fresco e gelado, amoras.

AS GAROTAS DELES!
Beatriz Mafra, Allura Guispe, Amanda Olivêncio e Georgia
Pessoa. Esses são os poderosos nomes das garotas da banda
Desvio. As quatro foram flagradas curtindo o último show da turnê
Malévola, que contou com a presença ilustre de outros convidados
interessantes. Apesar das quatro não terem sido vistas juntas, fontes
confirmam que Amanda estava radiante. Tanto quanto Georgia.

Muito se especula o motivo de eu desejar com tanto afinco me


desligar da minha carreira como atriz. Falam sobre a possibilidade de
eu ter alguma briga enorme com alguém da Família Farol; alimentam
a ideia de que odeio algumas diretoras e que estou perdendo meu
talento de atuar. Às vezes, pensam que estou mentindo. Que sou
uma mentirosa nata e que, na verdade, possuo uma doença terminal.
Que meus últimos anos trabalhando na TV serão reconfortantes e
memoráveis, porque imaginam que eu tenha poucos meses de vida.
Seria uma trama inteligente para algum livro; a atriz que não
quer viver muito, porque não tem mais tempo.
Ainda que eu me divirta com todas as possíveis análises que
pairam sobre mim — e a minha vida — , ainda não respondi
publicamente sobre a verdadeira razão. Talvez seja pelo fato que
aprendi que a emissora me enxerga como um objeto, um artefato
muito valioso do qual eles não querem se desfazer. Minha atuação,
meu tempo, meu rosto, tudo o que me compõe, vale um preço. Sou
rentável e eles sabem disso.
Talvez seja a mania que a emissora tem de ditar muitas
regras. Como me vestir, como me portar, qual cor de unha usar,
quais pessoas evitar, quais lugares nunca ir e os papéis que preciso,
obrigatoriamente, aceitar.
Ou simplesmente podem pensar que estou cansada. Não me
importo.
Aos dezoito anos, foi quando o brilho de ser famosa me
deixou. Minha infância e minha adolescência não foram normais.
Sempre havia alguém para tirar uma foto minha. Quando aprendi a
andar de bicicleta, um enorme grupo de pessoas me seguiu por
horas em um parque. Quando entrei no ensino médio, meus colegas
de classe faziam de tudo para serem meus amigos, sem realmente
saberem quem eu era.
Notei que cada festa de estreia era igual. Nunca foi uma
comemoração para nós. Tudo que emana este momento, sempre
será sobre a Família Farol.
Quando eu recusei o papel de Marina, cometi o erro de dizer
que estava me mudando temporariamente para Madre Rita, uma
cidade litorânea de São Paulo. Ellen, a diretora, então disse que
mudaria a locação das filmagens, para que eu me sentisse à
vontade. Eles reformaram uma boa parte do prédio da emissora e
não viram problema nenhum em comprar uma residência enorme, no
alto de um penhasco.
Mais uma mansão para a coleção da Farol, é claro.
É um jantar de gala, especificamente. E toda a minha
animação para este momento é zero. Eles me enxergam como uma
mercadoria, e o que eu preciso fazer é apenas sorrir. E ficar duas
horas presente.
— Continuando a lista de quem estará na festa... — Ivy, ao
meu lado, no carro, está segurando uma caneta de controle para seu
mais novo cronograma. Seu vestido é carmim, longo, simples e
elegante. — Benedita Alonso...
— Quem é ela mesmo? — pergunto, mais para mim mesma
do que para Ivy. Me afundo no banco de trás, apoiando a minha
cabeça na janela.
— A estilista... — Ivy me responde, sem me encarar.
O sol está se pondo, cansado de mais um dia, e a imagem
que se revela à minha frente é fantástica. As pessoas na praia estão
jogando vôlei e futebol; as crianças correm e caem, mas dão
gargalhadas melodiosas para todos os lados. É injusto estar usando
um vestido de gala tão longo e esvoaçante em um dia tão quente.
O método europeu de sofisticação não combina com este
país.

Para variar, estou usando um modelo da ViVia, feito


exclusivamente para mim. O vestido é sem alças, preto, de seda,
longo o suficiente para esconder meus pés. Uso brincos de
diamantes e um colar que adorna meu pescoço com graciosidade.
Apostei em pouca maquiagem. E meu cabelo está solto, penteado
especialmente para se parecer com uma almofada fofinha. Igual a
um algodão doce.
Só estou sorrindo feito uma princesa, porque semana que
vem terei uma folga de sete dias. Uma semana inteira para os
produtores e roteiristas de Destino Inteiro estudarem sobre a
relevância da novela e a opinião do público a nosso respeito. É uma
semana decisiva, porque eles precisam compreender para quem o
público torce — se é realmente para mim ou para a vilã.
Normalmente, mudam o roteiro em pontos pequenos.
Se um personagem começa a se destacar, é uma boa ideia
começar a oferecer uma história diferente, desenvolvê-lo melhor e
lhe dar um tempo de tela decente. Confesso que o que me anima
são os sete dias livres; focando no bistrô, não fazendo nada, apenas
assistindo Glee pela sétima vez na vida e buscando um nome
agradável para o meu negócio.
— Quando o jantar vai ser servido, hein? — A minha melhor
amiga está segurando uma taça de vinho, também usando um
vestido de gala, só que amarelo. — Estou... Morrendo de fome.
Ricos demoram para comer e eu nunca vou entender o real
motivo.
Mas ela está diferente. Ansiosa é a palavra certa, porque não
faz nem quinze minutos que passamos pelo tapete vermelho da
estreia. A mansão é uma construção antiga, assinada por um escritor
holandês que teve a brilhante ideia de se afastar de todo o porto de
Madre Rita, vivendo isolado, com a esposa, os filhos e alguns
funcionários. Deixou a residência como herança, mas a família o
vendeu para a prefeitura da cidade. A casa foi leiloada e os Farol
levaram pelo melhor preço.
O que quer dizer que eles gastaram milhões como se fossem
centavos.
— Vamos comer daqui a pouco. — Me aproximo da mesa de
doces, beliscando um. Claro, vasculho pontualmente aquele que não
possui chocolate preto. — O que foi?! Por que está assim?
Allura não está me olhando; sua pele marrom-escura está
preenchida por diferentes focos de glitter de novo, o que garante que
Beatriz teve grande influência na sua composição de look desta
noite. Ela consegue fazer amizade mais rápido do que eu — e isso é
o que mais amo em Alli.
As íris ultrapassam forte pela multidão, procurando alguém.
Gael, talvez?
— Só fiquei pensando numa coisa que o Victor disse... Na
festa.
Sem ninguém notar, coloco meu dedo no glacê de um doce de
limão, experimentando sua composição rapidamente. Me seguro
para não grunhir de felicidade, pois é delicioso. Preciso lembrar de
encontrar a receita na internet depois.
— O que ele disse?
Ela suspira, como se estivesse cansada — não de mim — e
me encara. Seu semblante está sério e receoso.
Ah, como eu amo festas de estreia!
— Ele disse que a minha voz é linda e sugeriu que eu
pensasse na possibilidade de fazer um EP — recita, tudo de uma
vez. Esbugalho os meus olhos. — Depois que passei essas semanas
em contato com a música, faz muito sentido pensar nela. E eu até
compus uma canção esses dias... E estou pensando nisso demais!
— Meu Deus?! — murmuro, com a boca cheia de glacê. —
Isso é ótimo?! Qual é o problema?
— Nada! — garante, gesticulando com as mãos. Ela me
observa de perto, achando engraçado eu estar bisbilhotando as
mesas dos doces primeiro. — Só estou animada. Victor disse que me
encontraria aqui esta noite para falarmos mais sobre isso. Ele
entendeu que meu estilo musical não é muito comercial e aceitou me
dar algumas dicas.
— E Victor Valares é confiável? — pergunto, saboreando um
doce de açúcar mascavo. Allura me fita, não entendendo aonde
quero chegar. — Sabe quando os homens apenas nos oferecem
ajuda, mas na realidade não vão colaborar em nada?!
— Ah, sim. Certo. Verdade! — troveja. — Mas não, não. Foi
indicação de Gael e eu confio nele!
— Ótimo. Adoro o Gael — assumo. — Então... Tem todo o
meu apoio! Espero que dê tudo certo!
Ela se aconchega para um abraço saltitante e agradece no
meu ouvido, fazendo um carinho rápido nas minhas costas. Ela
também experimenta alguns doces, ainda agarrada a mim. Mas
passamos pouco tempo juntas; com a chegada de Victor, Allura entra
em uma maré de aflição bastante palpável. Claro que a chegada do
produtor musical não passa despercebida — ele tem cabelo verde,
afinal.
— Ele está ali! — grita, apertando meu pulso com muita força.
Seus dedos fazem a volta na minha pele e eu ralho, pedindo para
que me solte. — Desculpe. Eu vou até lá? Ou espero ele vir até
aqui?
Victor tem aproximadamente vinte e sete anos, não deve ter
trinta. Ele é muito bonito e legal, e não parece com alguns exemplos
mentirosos que conhecemos na indústria. Ele está na porta do
grande salão, estilo vitoriano, conversando educadamente com
alguns outros convidados. Há uma multidão entre nós, nos
separando, mas conseguimos acompanhar seus passos de longe.
Ele desaparece da nossa vista apenas por alguns segundos,
seguindo uma linha reta.
— Vou até lá! — decide. — Foda-se! Me deseje sorte!
— Quer um Selinho da Sorte?! — zombo, tentando escolher o
próximo doce que irei degustar.
— Claro!
Ela se aproxima de mim e gruda abruptamente seus lábios
nos meus. Allura pula no lugar e, saltitante, começa a seguir os
passos de Victor. Daqui consigo vê-la tocar no ombro dele,
charmosa. Os dois abrem um sorriso iluminado quando se
encontram e Victor a elogia de imediato — acho. Porque ele aponta
para a escolha audaciosa de Allura em vestir um modelito de gala
amarelo e minha amiga coloca a mecha do cabelo atrás da orelha.
— Gê! — Um ofegante e sofisticado Gael Soares aparece
alguns segundos depois. Parece que correu uma maratona, porque
está sem ar. Usa um belo terno de corte inglês, com listras vermelho-
escuras. — Te procurei por toda a parte. Você viu a Allura?
Como assim eles ainda não se viram?
— Ah... Oi, Gael! — Sorrio. — Vi. Vi, sim. Ela está...
Conversando com o Victor, logo ali na frente. — Aponto na direção
pela qual ela sumiu. Ele acompanha o movimento do meu braço. —
Você está muito bonito!
— Obrigado! — diz rápido, começando a se afastar. — Você
também!
É uma conversa breve, mas que me deixa levemente
angustiada.
Assisto Gael se aproximar de Victor e Allura. Ele passa as
mãos ao redor da cintura da minha amiga e beija sua testa. Victor
sustenta um sorriso apaixonado para o casal e Allura abraça Gael
com força.
Ok.
Deve ter sido coisa da minha cabeça.
— Gostou da nossa seleção de doces, Georgia?
Me surpreendo com a investida silenciosa de Ricardo; ele está
próximo e sorri, mas não quer se demorar. Em apenas dois
segundos, o vice-presidente está frisando que também está de olho
em mim — e em Mikael.
— Ah, sim. Não paro de experimentar! — falo, interpretando
minha felicidade genuína. — Ótima escolha!
— Certo... — Ele abre seu sorriso cada vez mais. — Fique à
vontade.
E se afasta com graciosidade, pulando de conversa em
conversa, como uma borboleta social.
Tento dispensar meus pensamentos intrusos. Prefiro ficar
perto da mesa de sobremesas.
— Me lembre de fazer suas compras do mês. — Alguém diz.
— Aposto que não comeu quando saiu de casa.
Mikael sorri incrédulo na minha direção. Ele enfia a mão vaga
no bolso, enquanto brinca com as bolhas de uma bebida alcoólica
que não sei o nome, em uma taça que segura com sutileza.
— Os doces são as minhas partes favoritas em uma festa, se
quer saber.
— Quero?!
— Deveria. Nós ainda estamos nos conhecendo, não está
lembrado?
Seu smoking é simples o bastante para passar despercebido,
e isso deve ter feito Mikael assumir um mau humor lascado. Simples
não é bem seu estilo favorito de roupas. O encaro de perto,
avistando sua empresária, Lola Santos, me direcionar uma fitada
carregada de cinismo, não muito longe de nós.
— Acho que a Lola não gosta muito de mim — comento,
adorando o sabor de alguns cajuzinhos.
— Ah — discorre, não muito interessado. — A Lola não gosta
de ninguém.
E finaliza a nossa conversa.
Um fotógrafo contratado pelos donos da festa se materializa
na nossa frente, ele aponta para a câmera em sua mão. Penso em
recusar educadamente a sugestão, mas Claudia está me encarando
de onde estou, muito sagaz. Então, decido me aninhar em Mikael,
deixando que ele me abrace de lado.
Ele sorri, passando a mão pela minha lombar e me apertando
contra o seu corpo quente. O tecido de seu smoking arranha um
pouco a minha pele nua, mas é gostoso de sentir. Nós sorrimos um
para o outro em determinado momento e o último flash pontua o fim
do momento. O fotógrafo agradece pela atenção e nos separamos
com delicadeza.
Ele volta para sua bebida e eu, para as sobremesas. Prefiro
que fiquemos em silêncio, porque ainda não sei reunir coragem o
suficiente para admitir que ando apreciando seus toques em mim.
Estou tão bem lidando com os novos doces que mal reparo
quando alguém pega um. É um bolinho quase minúsculo de amora,
com os confeitos de açúcar salpicados em seu interior. A construção
parece amadora e casual, mas é exatamente isso o que me chama a
atenção.
— Engraçado não te encontrar trancada na sala de projeção
— interfere. — Na verdade, seria uma novidade e tanto uma casa tão
velha assim ter uma sala de projeção.
Me viro lentamente, me deparando com Téo Farol. Ele segura
o pequeno bolo de amora entre os dedos e leva até a boca, com um
sorriso esbelto e travesso. Seu cabelo louro, igual ao da mãe,
Claudia, é dourado. Está cortado nas laterais, deixando a franja para
trás. Seus olhos pretos brilham de prazer em me ver e seu terno é de
veludo, verde-escuro.
— Téo! — vibro, abrindo os braços e o trazendo para perto.
Ele me abraça sem pensar duas vezes, me envolvendo pela cintura
e rindo, deliciosamente no meu ouvido. — Não sabia que estaria na
cidade!
— Você mente bem — elogia. — A Ivy deve ter falado.
Sempre que surge uma festa chata, você pede para ela fazer uma
lista de presença. Tal qual a Miranda Priestly, em O Diabo Veste
Prada.
— Verdade, esqueci que certas coisas não tem como ocultar
— entro na brincadeira. — Não com você por perto!
— E quem é ele? — Mikael pergunta, esnobe.
O cantor deixa a bebida na mesa atrás de mim, parando ao
meu lado com a expressão fechada. As sobrancelhas enrugadas, os
olhos decaindo em tédio e o peito inflado. Téo não se intimida, ele
apenas sorri divertidamente para Mikael e meneia a cabeça, rude.
— Um amigo — Téo responde ao dar de ombros. — E você
deve ser o namorado de mentira.
Tento discorrer que estamos juntos de verdade, mas as
palavras escapam da minha mente e da minha língua com muita
rapidez.
— Qual é — ironiza, gesticulando. — As pessoas acreditam
no que querem, mas eu conheço a minha Georgia. Ela não ficaria
com alguém como você, Mikael. Sem ofensas.
— Tem certeza de que você é um amigo tão importante assim
para ela? — Mikael abaixa o tom de voz, se aproximando dele. —
Deveria saber com quem ela está. Apenas uma dica... Claro, sem
ofensas.
— Vocês querem enganar quem? — Téo ergue os ombros. —
A minha mãe ou o meu tio, talvez. Porque eles compram qualquer
narrativa que faça bem aos olhos... mas... isso aí... — Ele aponta
para Mikael e eu. — Não vai durar!
— Profetizador? — Mikael debocha.
— Racional — Téo emenda, cerrando os lábios.
O embate entre eles é interessante, confesso, mas não sei
quem é o pior. Téo, com ciúme e me tratando como uma
propriedade, ou Mikael, que está evidentemente com ciúme —
também — de uma relação falsa.
— Acredite no que quiser, Téo — finalizo, me enroscando em
Mikael. Sem pensar, ele enlaça minha cintura em apenas um braço.
Claro, rever Téo é ótimo, no entanto, começo a enxergar os
diferentes pontos da nossa amizade. Apesar de legal, ele não é
confiável. — Foi bom te ver! Vai ficar por muito tempo?
— Apenas esta noite — responde, impaciente. — Depois volto
para a Argentina. Vim a pedido da minha mãe.
— Argentina? Da última vez que nos falamos, você estava na
Colômbia.
Por alguma razão, os dois ainda estão se encarando
friamente. O primeiro a ceder, leva um soco. Consigo entender as
entrelinhas.
— Pois é, mas novos ares são excelentes. Você deveria
experimentar — aconselha, alfinetando Mikael. — Enfim, vou
continuar cumprimentando os conhecidos. Até mais, minha amiga.
Ele faz um sinal educado com o queixo e vai embora, sem
olhar para trás. Sua presença é o suficiente para Mikael apertar os
dedos ao redor da minha cintura. E, merda, apesar de gostar do
conflito — isso mexe bastante no ego — , me afasto apenas um
pouco dele.
— Não me diga que você sai com esse cara? — Ele se coloca
à minha frente, apontando com o polegar o exato lugar onde Téo
esteve.
— Nunca saímos — corrijo-o. Me volto para a mesa de doces
novamente. — Todos pensam que sim e talvez Téo até queira algo a
mais. Mas somos apenas amigos.
— Amigos? — Ele ri pelo nariz. — Tô vendo como aquele cara
queria ser seu amigo. — Sua voz esganiça.
— Ciúme? — debocho, batendo minhas pálpebras. — Devo
fazer algo a respeito?
— Tipo? — desconversa, sem responder a minha primeira
pergunta.
— Transar, oras — rebato, na mesma hora. — Talvez eu deva
transar com ele. É o que as pessoas com tesão fazem.
— Mas tem que ser com ele?
— E o que você tem a ver com isso?
A resposta não vem, porque meu cérebro é invadido com as
lembranças do abraço que Mikael me deu, na festa de Victor, há um
dia. Ele esteve tão perto de mim, que conseguiu sentir meu corpo
todo vacilar, tenho certeza.
— Particularmente? Nada — inicia sua tese. — Publicamente?
Tudo.
— Relaxa um pouco, Mikael. — Pego um doce qualquer,
enfiando em sua mão. — Come isso. Sem estresse, não vou trepar
com ninguém esta noite... Infelizmente.
Ele respira fundo, comendo o docinho. É uma boa escolha,
porque ele prefere evitar flertar neste momento.
— Tem uma coisa que eu quero te pedir, aliás. — Ele dá um
passo à frente, pousando a mão na minha lombar.
— Aconteceu mais alguma coisa que eu não sei?
— Não. É pior... — ressalta. — É sobre a minha avó.

A estreia de Destino Inteiro conseguiu pegar o primeiro lugar


em audiência nacional, batendo três pontos acima da média
considerada “ótima” para a emissora, conseguindo uma nota
espetacular de primeiro momento. Assistimos às primeiras cenas em
um telão antes do jantar e alguns atores fizeram discursos curtos e
rápidos sobre a facilidade de começarmos mais uma etapa.
Agora, com duras horas presente na mansão, já estou
pensando na possibilidade de ir embora. Ivy me liberou e disse que
fiz um ótimo papel em não aparecer aborrecida.
Estou com as minhas costas apoiadas em uma parede de
pedras, em um corredor isolado que Mikael me arrastou para
conversarmos a sós. A sua gravata já está frouxa na composição do
pescoço e ele está cheirando a um drinque de frutas que Pedro o fez
beber três vezes.
Estou segurando uma tigela de sorvete de amora. Devo ter
comido uns quatro desde começaram a servir a sobremesa.
— Me explica isso de novo... — peço, enfiando a colher no
sorvete. — Sua avó quer me conhecer?
— Quer. E eu disse que nós vamos.
Olho para seu semblante com atenção, ele com as mãos na
cintura, preocupado com o problema em que se enfiou sozinho. Ao
nosso lado direito, conseguimos ver o enorme campo aberto e verde
onde a mansão se localiza. Há muitas pessoas jogando futebol,
usando suas roupas de gala, sem se importarem com nada.
Conseguimos ouvir seus gritos animados da colina rebaixada. A
maioria está descalça.
— Eu contei a verdade para os meus pais... Não é tão difícil.
— É, eu sei. Mas a minha avó é teimosa. E ela quer te
conhecer! — Mikael insiste, juntando as mãos. — Eu disse que era
mentira e ela não acreditou na minha palavra. Mesmo que eu insista,
ela não vai dar o braço a torcer. Não é assim que funciona com ela!
— Mikael, puta merda — resmungo. Nem o sorvete me deixa
mais calma. — E ela vem pra cá?
— Não — nega com o dedo indicador. — Eu disse que nós
vamos até São Paulo.
— Está se referindo aos sete dias que teremos de folga? —
pergunto pausadamente, desacreditada. — Eu fiz planos!
— Sei. Entre eles deve estar assistir Glee.
— Nunca mais conto nada pra Allura — comento.
Ele ri sugestivamente e apoia a mão na parede atrás mim. O
corredor é escuro e deserto, e consigo enxergar seu rosto apenas
porque a janela ao nosso lado reflete a luz do lado de fora.
— Ela só quer te conhecer! — diz. — Ela é a minha família.
Ela conheceu todas as minhas namoradas...
— Mas...
— Eu sei! — me interrompe. — Calma, papagaio. Já entendi...
Só estou falando que ela quer te conhecer. Ela insistiu bastante e
disse que se não formos até lá, ela mesma vem para Madre Rita.
Ou seja, de qualquer forma, terei que conhecer Elzira
Devante. Não quero mentir para mais uma pessoa, ela fingindo ou
não que não acredita na palavra de Mikael. Ainda mais na única
família que ele tem. Mas se ele está conversando comigo tão
abertamente, Mikael deve saber o que está fazendo. Porque a
tonalidade de seus orbes pontua com êxito que não é mais uma
brincadeira qualquer, é um pedido sério.
— Tá bom — cedo, relaxando todo o meu corpo e dando uma
colherada generosa no sorvete de amora. — Nós vamos. Você deve
estar com saudade dela!
— Valeu! — Ele comemora, fechando os punhos acima de sua
própria cabeça. — Tô morrendo de saudade daquela velha, você
nem tem ideia!
Deixo que um sorriso singelo cresça no meu rosto, com
tranquilidade. Preciso admitir que também estou curiosa para
conhecer a pessoa que o criou. Parte porque sou curiosa, parte
porque realmente quero ficar cara a cara com Elzira.
— E o que eu ganho com isso? — zombo, para vê-lo se irritar
aos poucos. Mas ao contrário do que eu penso, ele está disposto a
pagar um preço. — Posso pedir o que eu quiser?
— Você não pede. — E enfia as mãos nos bolsos. — Você
manda. E eu sempre obedeço, porque devo ser seu cachorrinho.
— Ainda não tem uma coleira.
Ele tomba a cabeça para trás.
— Anda — me apressa. — O que você quer?
— Não é uma ordem, nem um pedido. É uma sugestão... — O
acalmo, levantando apenas uma mão, em forma de rendição. —
Gostaria que conversasse com Amanda. E com o Bernardo.
Não sei como eu descobri, mas li em uma página de um fã
clube deles que sempre que Mikael faz uma tatuagem, Bernardo tem
que estar por perto e vice e versa. E desde sua grandiosa briga,
Mikael já fez duas tatuagens e não parece feliz com nenhuma. Pode
parecer bobo e passageiro, contudo, posso apostar que ele pensa no
amigo.
— Só para vocês terem um ponto final digno — acrescento,
falando baixo. — Ou... Pode parecer brega o que vou dizer, mas
quem sabe adicionar uma vírgula na história de vocês.
— Isso foi a coisa mais brega que você já me disse! — acusa,
sacudindo a cabeça. Fico em silêncio, sorrindo minimamente. — Tá
bom. Eu vou pensar... Nessa sua ideia. Ok? — indaga. — E só vou
pensar, porque não estou mais com raiva. E sim chateado pra
caralho. Mas se eu for marcar uma conversa com ele, você vai
comigo!
— Justo — proclamo.
A conversa se encerra, com Mikael perdendo seu olhar em
qualquer ponto fixo atrás de mim. Ele está muito pensativo.
— Agora vem cá... — começa. — Você diz que eu quebro
corações, mas o coração daquele cara lá, o babaca de cabelo louro,
parecia em pedaços. Não somos tão diferentes assim, Gê. Tô
começando a achar que somos muito, muito parecidos — acusa,
afiado. Enrugo o meu nariz ao rir. — Qual é a sua com aquele otário,
hein?
Meu sorvete termina e solto um muxoxo, decepcionada. Vou
pegar mais, com certeza. E adicionar ao cardápio do bistrô.
— Está falando de você mesmo em terceira pessoa?
— Tô falando do Téo Farol — esclarece. — Você gosta dele?
Com certeza não. Pelo menos, não do jeito que ele pensa.
Sentei ao lado de Mikael o jantar todo. Nós brigamos
discretamente por baixo da mesa, onde consegui beliscar sua pele
algumas vezes. Téo, é claro, ficou me olhando. Sorrindo para mim,
mandando beijos discretos e pontuando todo o seu charme e
carisma.
— Jamais. Ele só está assim porque não pode me ter... —
respondo, erguendo meus ombros. — A mãe dele surtaria se
ficássemos juntos, e eu tô sem paciência para drama familiar. Talvez
o Téo pense o mesmo, mas prefiro manter nossa amizade assim.
Somos distantes também... Assim basta. — Ao me ouvir, ele sacode
a cabeça em concordância. — E você? — devolvo. — Está gostando
de alguém?
— Não, não — sibila. — Quero ficar sozinho.
— A melhor escolha — finalizo.
— Como tradição... Preciso saber — anuncia. — Quem é a
sua última pessoa favorita?
— A Beatriz — respondo prontamente. Mikael faz uma careta.
— Ela é muito divertida e engraçada. Me ensinou alguns passos de
dança no show de encerramento da turnê Malévola.
Ele dá de ombros.
— Justo... — pondera.
— É.
Não entendo por que ficamos tanto tempo sem dizer nada.
Talvez porque não tenhamos coragem de falar sobre aquele
momento.
Eu apenas limpo a minha garganta, dando a entender que vou
voltar para o salão.
E Mikael me acompanha.

Estou na minha quinta taça de sorvete, analisando Mikael


jogar futebol contra o time de Téo. Eles estão vidrados um no outro,
em uma competividade nada saudável. Dará meia-noite daqui a
pouco e ainda estou numa festa.
Incrível.
Os dois se xingam e se ofendem sempre na primeira
oportunidade, arrancando gargalhadas dos outros membros do time,
mas nenhum deles parece estar brincando. Téo voltará para
Argentina amanhã de manhã, mas parece que está ansioso para se
meter em uma briga com Mikael.
— E aí.
O lado ao meu lado na escada de concreto é ocupado por
Gael, que se senta juntando as pernas e analisando o jogo com um
sorriso de lado.
— Oi, Gael — cumprimento. — Sorvete?
— Você pode comer tanto sorvete assim?
— Desde que não tenha café ou chocolate na receita... Sim —
explico. — Deveria comer nessa quantidade? Não, mas está
delicioso!
— Vou experimentar... — Ele promete.
Longe das demais pessoas, Gael é um cara pé no chão e
observador. É analítico e muitas vezes sério e desconfiado.
— Alguma coisa aconteceu, Gael? — pergunto. Porque se ele
não está perto de Allura, é um sinal de que algo aconteceu ou vai
acontecer.
Ele sorri, limpando as mãos na calça de alfaiataria.
— Não, mas vai... — Ele junta as mãos e umedece a boca.
Gael vira na minha direção. — Eu tô gostando demais da sua amiga,
Gê. E acho que vou fazer o pedido.
Seus olhos pretos brilham com a revelação. Sua pele branca-
bronzeada também está salpicada de glitter, o que denuncia que ele
andou se agarrando com Alli por aí.
Allura vem falando de Gael há semanas e eles não se
desgrudam há dias. Ele ficará por tempo indeterminado em Madre
Rita, por ela — e por Mikael, é claro.
— O que você acha que eu devo fazer?
Estou derretida com este momento.
— Você acha que ela vai aceitar? — questiono sinceramente.
— Porque acho melhor não fazer uma surpresa. Nada em público,
ela odeia. Mas se for algo íntimo e for o que vocês realmente
querem, será lindo, Gael!
— Ela disse que gosta muito de mim, que nunca conheceu
uma pessoa tão legal assim antes... — descreve, emocionado e
sorrindo, feliz demais para se conter. — E nós nos damos muito bem.
Conversamos todos os dias e nunca falta assunto.
— Isso é importante!
Allura não gosta de assumir, porém, é romântica. É uma das
pessoas mais românticas e devotas que conheço. Ela já me explicou
detalhadamente como será seu futuro casamento; na praia, ao
amanhecer, com todas as pessoas mais importantes da vida dela,
descalça e com uma coroa de girassóis na cabeça. Ela quer estar
grávida, para se casar com um barrigão à mostra, exibindo todo o
fruto do amor entre ela e a pessoa. Disse que quer renovar os votos
todos os anos — sem exceção — e que dará uma pausa na carreira
quando for mãe.
Mas ela também é livre. Ainda que adore Gael, ela ainda não
citou a palavra “amor”. Nem comentou sobre um namoro. Mas pela
forma que ela fica inquieta e falante perto dele, acredito que estejam
na mesma sintonia.
— Ela extrai o meu melhor lado e realmente tô apaixonado pra
caralho por aquela mulher! — gesticula, encantado. — Não quero
que me diga nada, porque você é a melhor amiga. Só quero que
saiba que eu gosto de verdade da Allura e não vou magoá-la!
— Manter o coração inteiro é o que eu prezo. — Apoio meu
rosto no seu ombro. — Então fico mais sossegada. E desejo,
obviamente, todo o amor do mundo para vocês. Sério!
— Valeu, Gê! Você é demais. — Ele deita sua cabeça por
cima da minha. — Mas, falando sério, chega de sorvete! —
Corajosamente, ele tira a tigela da minha mão, se levantando. — É
pro seu bem! — E encosta a grande mão no ombro.
— É... — concordo, a contragosto. — Tá na hora de parar!
— O que eles estão fazendo? — pergunta, se referindo ao
jogo.
O grandioso embate entre Mikael e Téo.
Suspiro.
Vou embora.
— Tentando matar um ao outro.
II:

A receita perfeita.

“Eu estava aqui o tempo todo


Só você não viu.”
Na Sua Estante – Pitty.
24.01: pavê de pêssego
INGREDIENTES: leite condensado, leite em pó, gemas, amido de milho, biscoito
de champanhe, calda de pêssego, pêssegos, raspas de chocolate branco.

Nada é tão agradável quanto mini férias merecidas.


Talvez sete dias de folga sejam realmente necessários para
recarregar as energias, então, na manhã de segunda-feira, logo após
a festa de estreia, decido fazer a minha tradição anual; tirar um dia
inteiro para mim. Sem pensar em trabalho, sem dar satisfação de
onde estou para Ivy, sem reviver o mundo da atriz Georgia Pessoa.
Nada. Absolutamente nada. Vou apenas pensar em mim.
Apenas eu e os filmes repetidos que vou assistir.
A cidade de Madre Rita acordou nublada e morna, preguiçosa,
exatamente como espero que seja a minha semana. Meu estômago
está forrado de pães de queijo que eu mesma fiz e assei, pois o meu
almoço será o que a rua estiver a fim de me oferecer.
Desço as escadas, usando uma calça jeans, um moletom
largo com capuz e sacudo meus óculos de sol para todos os lados.
Ambas as peças são pretas.
Ivy está sentada em uma banqueta no balcão da cozinha
enquanto lê algo. Seu cabelo está preso em um coque muito bem
penteado e sua postura impecável me faz corrigir a minha
automaticamente. Não sei o que ela está lendo. Talvez um
documento importante, porque Allura está muito elétrica ao seu lado,
não se contendo de animação — mas mantendo silêncio.
— Ivy? Alli? — Me aproximo das duas, me apoiando do outro
lado do balcão. — O que vocês estão fazendo?
— Victor me deu um termo de contrato, para a gravação do
meu projeto musical! — conta, completamente extrovertida e
entusiasmada. — Dei para a Ivy ler, porque a minha agente não quer
que eu pense em outra coisa além da novela... Enfim, burocracia. —
Revira os olhos.
— Sim... — Ivy retira os olhos do termo judicial rapidamente,
para me fitar. Quando nota o que estou vestindo, seu semblante
muda. — God... — murmura, boquiaberta. — O que está vestindo?
— quer saber, desaprovando. — Não me diga que...
— Exatamente — comemoro. — Dia da tradição. Eu sempre
faço isso na semana de folga.
— E achou um lugar aqui em Madre Rita? — Alli pergunta,
dando uma espiadinha no contrato, totalmente impaciente.
— Do outro lado da cidade... Vou passar o dia todo fora. Fiz a
minha mochila, coloquei meus remédios e espero me entupir de
comédias românticas até o final do dia, até enjoar! — Abro a
geladeira e pego uma garrafa de água. — Vou comer muita pipoca,
cachorro-quente... Não me esperem acordadas!
— Claro, realmente, porque é como se você estivesse indo
para alguma boate. — Allura me provoca, analisando meus
movimentos. — Nunca entendo porque não posso participar da
tradição.
— Você nunca tem paciência — relembro. — Sempre quer ver
outros filmes.
— Filmes atuais, você quer dizer...
— Enfim, tanto faz! — Dou de ombros. — Eu vou sair daqui a
pouco — anuncio, checando as horas no meu celular. — Vocês vão
estar aqui quando eu voltar?
— Não, darling. Tenho uma reunião com Ernest Vega às
seis... No horário de Paris, of course — diz, baixo e calmamente. Ela
resmunga alguma coisa em inglês e inspira, forte. — E só estou aqui
para avaliar seus números das últimas semanas.
— Como assim?
Ivy, que estava lendo o contrato, o deixa de lado novamente.
Ainda mais ansiosa e aflita pelo gesto, Allura bufa, dividindo o peso
entre os pés.
— Por exemplo, desde que foi anunciada na novela, seu
nome foi citado nos tabloides mais de vinte e cinco vezes. Mas
depois que começou a namorar o Mikael, dobrou para cinquenta e
oito — recita, tudo muito profissionalmente. — Você está ganhando
quinze por cento a mais de seguidores em todas as redes sociais, e
seu nome está cotado para grandes programas, apenas pela
sensação de ter você presente. Ao que me leva, que esse namoro é
uma grande jogada publicitária. E você não está ficando para trás.
Da queridinha, você se tornou “a perfeita” queridinha em pouco
tempo. — Ela sorri de lado. — Parabéns, Georgia. — Seu sotaque se
mostra presente no meu nome. Adoro quando Ivy o pronuncia. —
Pensei que fosse algum tipo de pegabinha...
Todo seu discurso vai por água abaixo, porque ainda é muito
fofo quando Ivy, a mulher de negócios mais séria que já conheci, erra
uma palavra em português.
— Pegadinha, Ivy — reforço. — E obrigada. Bom saber que
estou te dando menos trabalho.
Ela suspira, exausta.
— Ah, querida. Você é, de longe, a mais fácil de lidar. Ernest e
Hinsel é que são as “divas”. — Ela usa aspas, se referindo aos dois
atores que gerencia a carreira na Europa. Sei que Ivy costuma ser
rígida e distante, mas tenho certeza que ela nos ama. Lá no fundo,
como uma mãe severa, mas atenta. — E esses números me fazem
lembrar... Comece a confirmar presença em alguns eventos, você
precisa de contatos depois que abrir o bistrô...
— Ainda-Sem-Nome. — Alli e eu falamos juntas.
— Isso — confirma. Ela levanta seu dedo anelar. — Continue
se dando bem com o senhor Mikael Devante. Os resultados são
excelentes!
— Senhor. — Allura ri pelo nariz. — É tão engraçado quando
você nos chama assim.
Apenas minha amiga ri frouxamente, porque Ivy a fita, curiosa.
— Você nunca dá risada, Ivy? — Me aproximo dela. — Tipo
nunca?
— Dificilmente acho algo engraçado — avisa, abaixando o
olhar para começar a reler o contrato. Essa é a sua forma de
encerrar uma conversa da qual ela não quer participar. — Por quê?
— Não sei nada sobre você — confesso. — Nada mesmo.
Você nunca diz.
— Não sou paga para isso, senhorita Georgia. Sabe disso!
— Ah... — Allura faz uma careta, zombando da minha cara.
Decido que é uma boa hora para ir embora. Beijo a bochecha
de Allura e toco nos ombros de Ivy, que odeia tanto contato físico e
não consegue entender como conseguimos beijar e abraçar todas as
pessoas que conhecemos. Pego minha mochila, meu celular — que
está cheio de mensagens de Téo — e me despeço das duas, abrindo
a porta e saindo no corredor do hotel.
Téo voltou para Buenos Aires, não sem antes garantir que
quer me ver quando voltar, daqui a dois meses.
Não respondi nenhuma mensagem, porque sinto que ele quer
algum tipo de prova de que não estou com Mikael. Uma prova
concreta, mais do que suas analogias sobre quem eu
verdadeiramente sou. Não que ele esteja errado, mas sua percepção
sobre mim é meio possessiva. Um sentimento de posse que não me
deixa feliz. E se sua mãe está de olho em mim, eu é que não vou
vacilar me aproximando dele. Bloqueio a tela do meu celular e
continuo o meu caminho, andando até o elevador mais próximo.
Aperto para chamá-lo e espero, ansiosa.
Estou muito animada para reassistir parte dos meus filmes
favoritos. Faz semanas que não assisto nada além do convencional.
É bem difícil acompanhar ou iniciar uma série nova, prefiro revê-las.
Quando as portas de metal deslizam, separando-se, não entro
no elevador, porque Mikael sai primeiro. Ele sorri, como se fosse
uma surpresa me ver, mas depois sua expressão se transforma em
ironia pura.
— Por que você está vestida como uma sequestradora? —
pergunta, saindo do elevador e parando à minha frente. Penso em
deixá-lo plantado aqui, mas as portas se fecham com a minha
demora. — Tem algo seu que eu não saiba?
— Nunca te contei? — Coloco as mãos ao redor da minha
boca, teatral. — Sou uma espiã treinada. Preciso continuar na minha
missão, mesmo que a minha primeira vida seja bem diferente dessa.
— Imaginei — ressalta, concordando com a cabeça. — Bem
que eu senti que você estava meio estranha ultimamente.
— Pois é. — Bato meus dedos novamente no botão,
solicitando o elevador. Há três portas fechadas, mas nenhuma
disponível. — Foi um desprazer falar com você, agora preciso ir!
— Para onde?
— Sair.
— Para onde?
— Matar uma pessoa.
— Então, te ajudo a esconder o corpo.
Não quero rir, então seguro muito bem a minha risada na
garganta e me volto para ele, que apenas me encara do mesmo jeito
sem senso e discernimento, exatamente como sempre está. Depois
que quase feriu totalmente o pé jogando futebol com Téo, Mikael
definiu que o odeia — não que precisasse — e fez Pedro nos dar
uma carona até aqui. Veio se vangloriando que machucou um pouco
a sola, mas que seu time venceu no final das contas.
Seu cabelo cresceu consideravelmente nos últimos dias,
então ele consegue prender com um elástico simples. E usa seus
óculos redondos.
— Vou sair — resumo. — E como você parece um carrapato,
vou explicar logo.
— Nossa, você sente tanto amor por mim, amora mio.
— Eu tenho uma tradição que, sempre que eu tiro as férias da
semana de avalição da novela, eu tiro um dia só meu. Então, eu faço
o que mais amo fazer... Depois de cozinhar. Que é ir ao cinema
sozinha — explico. — Eu coloco uma roupa que não seja fácil me
identificar e saio. Normalmente funciona, porque até agora nunca me
pegaram!
— Como se fosse fácil esconder seu cabelo azul!
— Existe capuz para isso — falo com maciez. O elevador
chega, a duas portas de distância. Corro rapidamente até ele,
entrando em seu compartimento. Aperto o botão do térreo, mas
Mikael segura as portas. — O que é?
— Posso ir com você?
Há, pelo menos, um milhão de motivos para Mikael não ir
comigo. Porém, sua pergunta é tão singela, e genuinamente
verdadeira, que escondo a minha mania de auto defesa um pouco.
— Só vou assistir filmes antigos. E de romance — aviso,
suspendendo um dedo.
— Sem problemas — dispara.
— Vou ficar o dia todo fora!
— De boa.
Concordo com o queixo, cedendo por fim. Seu sorriso se
estica gradativamente.
— Me encontre no estacionamento, então — o empurro, para
que as portas deslizem. — E você vai dirigir!

É a segunda vez que estou no carro de Mikael e, pela


segunda vez, estou tentando me acostumar com o cheiro de novo.
Parece que ele tirou da loja agora mesmo, de tão surreal.
As nuvens ferozmente tempestuosas avançam pelo céu,
avisando que a segunda-feira será chuvosa, sem qualquer chance
da aparição do sol. Os termômetros também estão baixos, é uma
nata frente fria. Alguns pingos decoram o para-brisas de seu carro,
anunciando o início da garoa.
Mikael está usando uma calça preta, igual a minha. Um
moletom de zíper, azul-marinho e uma camiseta verde-clara, do
Cebolinha, da Turma da Mônica. Disse que são as roupas mais
comuns que ele possui no guarda-roupa, e que boa parte das suas
seleções possuem couro, glitter e vários tons de vermelho.
— E outra coisa — disse, enquanto analisava a minha careta,
ainda no estacionamento do hotel. — O Cebolinha é um clássico.
Todo mundo gosta dele!
Mesmo estando um pouco animada, ainda não consigo
entender por que ele quer sair comigo. Tento ao máximo listar os
defeitos de passar um dia comigo, mas Mikael sequer me dá
ouvidos. É a primeira vez que estamos saindo a sós e o clima dentro
do carro é peculiar.
Explico a ele que a programação do Cine Você no Passado é
“O Diário da Princesa” às uma da tarde, “Clube dos Cinco” às três e
meia, “As Patricinhas de Beverly Hills”, às seis em ponto. E, para
finalizar, “Desenrola”, uma comédia juvenil e nacional, às oito e
quarenta e cinco. E ele não se importa com nenhum dos títulos, pelo
contrário, apenas segura muito firme no volante e sorri para mim, no
primeiro semáforo:
— Já assisti todos — diz, me fitando furtivamente. — E quero
rever.
24.02: pavê de pêssego
Já está chovendo quando Mikael para o carro em uma vaga
no Estacionamento Fim do Mundo. É um pátio vazio, qualquer e
comum, feito de asfalto, com alguns carros agrupados em vagas
pintadas de amarelo-escuro.
Nós pegamos uma ficha na entrada, que nos garante uma
hora de graça para deixarmos o veículo. Todo o céu está cinza e a
chuva não está mais tímida. A garoa deu lugar ao começo de uma
tempestade, mas impressionantemente silenciosa, pois não há
trovões ou raios.
— Madre Rita costuma alagar? — Mikael sobe todos os vidros
do carro, se protegendo.
Os pára-brisas mal conseguem espantar a água corrente de
perto do vidro, tudo está embaçado. O Cine Você no Passado fica do
outro lado da rua, precisamos apenas correr até lá. Isso nos fará
perder o começo de “O Diário da Princesa”, porque o relógio bate
quase uma da tarde.
— Vamos descobrir isso hoje — respondo, de olho na janela
ao meu lado, que começa a ser tomada pela chuva. — Vamos correr
agora ou vamos esperar amenizar um pouco?
Mikael não sabe o que é pior, porque de qualquer forma,
vamos nos molhar. Mas é bom que ele tenha deixado seu
pessimismo de lado, porque apenas dá de ombros.
— É uma pena perder o começo... Gosto muito da dinâmica
da casa da Mia ser um antigo posto dos bombeiros.
Assinto, já ansiosa demais para o filme.
— Deveria ser crime começar o filme sem todas as pessoas
na sala — brinco.
— Vamos fazer um abaixo assinado.
Nós rimos fraco, cada um olhando para seu ponto específico
na janela. Se corrermos muito, muito rápido, talvez não molhe tanto.
Estou frenética pelo dia que irá se desenrolar. Pelo menos o clima já
é melhor do que há três anos, quando ele me ofereceu uma carona,
exatamente em um dia chuvoso como este.
— Cinco minutos — pondero. — A chuva tem cinco minutos
para ficar menos forte. Se ela não ficar, vamos arriscar tudo o que
temos.
— Fechado — concorda, esticando sua mão para trocarmos
um aperto.
O choque elétrico de nossas mãos é fantasticamente curioso,
mas me desvencilho dele, para que não haja mais nenhum momento
peculiar. É o que mais vem acontecendo entre nós nos últimos dias.
Os primeiros dois minutos são silenciosos, talvez porque a
ficha esteja caindo que estamos sozinhos.
— Hm... — começa a puxar assunto, sem jeito. — Já arranjou
um nome para o seu bistrô?
— Não, ainda não — sacudo a cabeça. — Quero que seja
perfeito e ainda não encontrei nada.
— Nunca te perguntei isso. — Ele se ajeita no banco do
motorista, ficando de lado, para me fitar melhor. — Mas qual é a do
seu restaurante, hein? Ele vai servir o quê?
Meneio a cabeça.
— Nunca te contei? — indago, surpresa.
— Nunca. Para falar a verdade, apenas disse que vai ter um
bistrô, de resto, não faço ideia do que você vai fazer lá.
Rio, colocando duas mechas teimosas para atrás das minhas
orelhas.
— Quando eu fui diagnosticada com Síndrome de Meniere, eu
entrei em uma dieta sem qualquer possibilidade de comer chocolate
preto. E eu fiquei tão... Triste?! — conto, relembrando aqueles
momentos agoniantes. — Sei que pode ser uma coisa pequena e
comum, mas se torna grandiosa quando você é privada de fazer
algo. Uma doença, que eu descobri do nada, simplesmente decidiu
que eu não comeria um dos melhores doces do mundo. Consegue
me entender?
— Um pouco — murmura. — Mas continue, por favor.
— Então... Eu cortei o cacau da minha alimentação. E a Allura
me ajudou a descobrir novos doces, novos sabores... Foi na época
que viajamos para a Argentina e eu me formei em um curso
gastronômico voltado para a confecção de sobremesas — me gabo,
feliz por aquela época. Mikael ergue as sobrancelhas,
completamente impressionado. — Pois é, eu não costumo falar de
mim mesma.
— Deveria — me interrompe. — Você é muito interessante.
— Tenho que concordar.
— Que bom! — brada. — De uma hora para outra, você é
apenas uma garota que está vestida como uma assassina de
aluguel, com um péssimo disfarce. Agora estou descobrindo que
você tem um diploma!
— Foi um curso de inverno — acrescento. — Allura foi para
me acompanhar e turistar, e eu fiquei estudando. Então, eu percebi
que nem todos os doces do mundo são bons apenas porque
possuem chocolate na composição. E fiquei pensando que adoraria
pensar em uma alternativa para que as pessoas busquem outros
tipos de sabores. — Limpo a minha garganta, para continuar. Mikael
me admira, em silêncio. — Quando eu percebi que não queria mais
atuar por um bom tempo, decidi que era hora de tirar meu sonho do
papel. Procurei um lugar bonito e que não fosse longe de São Paulo,
pesquisei pelos imóveis disponíveis e que se parecessem com um
bistrô. Comecei a montar o cardápio e posso dizer que todas as
receitas que o meu futuro restaurante servirá, não tem chocolate.
Nenhuma. Nem cafeína. Assim eu posso aproveitar sem me
preocupar em passar mal e as pessoas podem experimentar algo
novo. Sei que será estranho, porque todo mundo ama chocolate,
mas vou tentar.
— Cacete?! — solta. — Impressionante. Não pensei que seria
algo do tipo...
— Ainda tento me adaptar. Confesso que às vezes sinto
vontade de enfiar meu rosto numa panela de brigadeiro... mas... —
Me encolho. — Minhas crises vinham tão violentas... que
simplesmente decidi priorizar o que me fazia bem.
Prestando atenção em cada palavra que recito, Mikael
assente.
— Já que você está sendo tão legal e respondendo às minhas
perguntas... — alfineta, me fazendo revirar os olhos. — Me fala, por
que você quer deixar a atuação? Qual é o motivo?
Sorrio, misteriosa.
— Essa é a beleza da coisa — sussurro. — Nada — sibilo. —
Não há motivo, e falo sério! — Aprecio sua expressão se fixar na
descrença. — Todo mundo pensa que foi uma coisa muito grande,
mas, na verdade, um dia, eu simplesmente percebi que estava
cansada e pensei “Vou mudar de vida!” — concluo. — Eu tenho esse
privilégio de poder fazer o que quiser e não ficar presa em um
emprego para sempre. Não estou sendo mesquinha, é realmente um
privilégio poder almejar a liberdade.
— Quê?
— É isso mesmo o que você ouviu! — Bato palmas. —
Simplesmente quero.
— Tem todo um mistério rolando, garota! — Mikael troveja,
rindo ainda desacreditado. — As pessoas ficam vidradas no porquê
você está indo embora.
— Eu sei, isso me deixa no controle. Posso provar a elas que
sei mais do que elas pensam que sabem. — Pisco. — É uma
vantagem.
— Com certeza, isso foi muito foda... — assume.
Ele está me olhando daquele jeito de novo. O silêncio se
transformando em um clima decente e adequado.
— V-Vamos? — Tento não gaguejar. A chuva não parou e
nem melhorou, mas é um risco para sair desse momento. Porque, a
propósito, não faço ideia de como o encaro de volta. — Não somos
feitos de açúcar — brinco, desejando calar a minha boca de uma
vez.
— Vamos. — Mikael desvia o olhar de mim, retirando a chave
da ignição do carro.
— Eu também fico longe do meu celular! — Mudo de assunto,
erguendo meu aparelho e o jogando para o banco de trás. — Gosto
de ficar desligada de tudo.
Mikael ri de lado, retirando seu novo celular do bolso e
fazendo o mesmo, se desfazendo dele.
No meu ponto de vista, a água parece gelada e violenta, mas
estou disposta. Enfio algumas notas de dinheiro no fundo do meu
bolso e anuncio que vou sair primeiro. Abro a porta do carro, já
recebendo uma rajada de vento contra a minha face, mas metade do
meu corpo já está fora para desistir. Sinto minhas meias
encharcarem primeiro, pela poça de água ao lado da vaga. Fecho a
porta com um estampido, ouvindo outro idêntico logo em seguida. Os
óculos de Mikael são os primeiros a ficarem completamente
molhados, acumulando gotículas por toda a extremidade.
— Boa ideia — debocha.
— Vem. — Corro para a frente, enfiando meus cabelos dentro
do gorro.
Ele me segue, rindo por algum motivo. Daqui, de onde
estamos, a saída para o estacionamento parece infinita e, quando o
cantor passa por mim, correndo firme, entendo que estamos
apostando uma corrida imaginária. Abro a boca, gargalhando e
apertando meus passos, focando nas minhas pernas e seguindo em
frente. Empurro suas costas, para fazê-lo perder o foco e tomo
dianteira, sendo abraçada por trás.
Mikael nos gira no lugar, me colocando para trás, também
rindo por entre a tempestade fria que nos abraça com ternura. Sinto
que todo o meu corpo está completamente tomado pela água, mas é
um momento tão divertido, que simplesmente não me importo.

Nós afastamos a pesada porta do cinema juntos, ofegantes.


Meu capuz abaixou-se sozinho no meio da corrida e meu cabelo está
ensopado, assim como o restante das minhas roupas. A temperatura
dentro do Cine Você no Passado é aconchegante, porém, está
deserto. Não há nenhuma pessoa na bilheteria, nem nos corredores
esperando para entrar. Todo seu efeito vermelho, dourado e
castanho me dá um fervor nostálgico na barriga.
Um dos atendentes da lanchonete mal repara na nossa
presença, muito focado em seu jogo do Angry Birds.
Nessa altura do campeonato, não me importo se nos
reconhecerem.
— Vamos nos secar — Mikael sugere, dando um toque nos
meus ombros. — Ou tentar.
Nós seguimos juntos para o fim do corredor, entrando em
portas diferentes. Uso o secador de mãos para tentar consertar a
minha situação, levando quase meia hora. É, definitivamente, não é
hoje que verei Anne Hathaway no começo do filme.
Quando volto, Mikael está com os cabelos presos novamente,
com os óculos secos, mas as roupas extremamente úmidas.
Mesmo que tenhamos demorado muito tempo, não há
ninguém na fila. Na bilheteria, a atendente não diz nada, mesmo
arregalando os olhos um pouquinho quando nos vê. Ela dá todos os
ingressos que pedimos, além de um desconto na pipoca doce. A com
groselha. Também passamos despercebidos pelo atendente da
lanchonete, que só quer fazer seu trabalho o quanto antes.
Entramos na sessão de “O Diário da Princesa” segurando dois
baldes de pipoca e jujubas. Nos deparamos apenas com duas
garotas na primeira fileira, então, decidimos ficar com as poltronas
dos fundos. Apoiamos nossos pés nas cadeiras vazias da frente e
começamos a comer.
Mia acaba de passar por sua “transformação”, cena que
nunca me causou estranhamento. Atualmente, percebo como esse
momento envelheceu mal. Não tinha nada de errado com seu cabelo
crespo, não importa o que digam.
— Essa atriz foi o meu primeiro amor — Mikael fala, com a
boca cheia de pipoca.
— A Anne?
Ele nega, rindo e encarando a tela.
— Julie Andrews, lógico.
— Eu entendo — confesso, retirando meus olhos da tela. — A
Rainha Clarisse é tão elegante, calma... Também me casaria com ela
se tivesse a chance.
— Você gosta do segundo filme? — pergunta. — Com o Chris
Pine?
— Sim... — suspiro, encantada. — A cena dos dois se
beijando e depois caindo na fonte de água me causa coisas... Até
hoje — zombo, sabendo que ele irá rir.
— Somos dois!
Assistimos em silêncio toda a evolução pessoal de Mia, como
ela percebe que pode continuar sendo uma garota tímida e
desajeitada e ainda terá uma grande responsabilidade no futuro. Fico
feliz na cena em que ela beija — finalmente — Michael e tem seu
momento de filme. As luzes se acendem alguns segundos depois e
Mikael e eu disfarçamos, para que as meninas da primeira fileira
possam sair primeiro.
Pelo relógio no meu pulso. Ainda demorará meia hora para
“Clube dos Cinco” começar.
— O que quer fazer? — pergunto, jogando os baldes de
pipoca no lixo e me espreguiçando. Minhas roupas estão começando
a secar. — O outro filme começa só depois...
Mikael empurra a grande porta da sala de cinema, olhando
para os lados. E tudo continua ironicamente vazio. Chega a ser até
um pouco assustador, é como se tivessem fechado o ambiente
apenas para nós. Porém, é agradável. Tudo fica mais aconchegante
quando está chovendo lá fora.
Ele aponta para uma parte do corredor, algo que nos chama a
atenção. Uma música ambiente está sendo tocada também, nos alto
falantes. É “Mais Ninguém”, da Banda do Mar.

Mesmo que não venha mais ninguém


Ficamos só eu e você
Fazemos a festa
Somos do mundo
Sempre fomos bons de conversar

Escondo a vontade de rir, porque isso descreve muito bem


este momento.
— Uma máquina de fotos — murmuro. Me animo na mesma
hora, pegando em seu pulso e o arrastando para perto. Com duas
moedas de um real, teremos cópias das mesmas fotografias. —
Nunca mais encontrei uma dessas.
— Só vi uma em um casamento — conta. — E estava
quebrada.
— Vem...
Afasto a cortina para os lados, me abaixando para caber
naquele cubículo. Mikael bate a cabeça no topo da cabine,
massageando o local em seguida. Nossas pernas não cabem direito
no pequeno banco, então ele se aconchega nos meus joelhos,
sentado no meu colo.
Eu só espero que não venha mais ninguém
Aí eu tenho você só para mim
Roubo teu sono
Quero teu tudo
Se mais alguém vier, não vou notar.

Deslizo uma moeda por entre seus dedos, para ele acionar a
sequência de fotos. Dentro de três segundos, o flash nos pega
desprevenidos, tirando a primeira foto da fileira; uma completamente
espontânea, um flagra de um susto. Temos apenas mais três
segundos para decidirmos as próximas poses e apenas faço o
básico. Fecho os olhos e mostro a minha língua, enquanto sinto
Mikael me abraçar forte.
Nossas caretas são idênticas na última e terceira foto e, por
fim, a máquina desliga-se automaticamente.
— De novo. — Ele decide, retirando mais uma moeda. — Isso
foi ridículo. Eu nem estava pronto. — Antes de colocar o dinheiro no
compartimento, ele me avisa: — Vou me sentar no seu colo de novo,
esteja preparada. Um, dois, três... — Ele empurra a moeda para
dentro, passando o braço ao redor do meu pescoço. — Já!
De Banda do Mar reconheço a inconfundível melodia de
“Paper Rings”, da Taylor Swift.

I like shiny things, but I'd marry you with paper rings.
Eu gosto de coisas brilhantes, mas eu me casaria com você
com anéis de papel.

Faço a primeira careta que penso, me divertindo de imediato.


Somos ótimos tentando poses novas, porque não precisamos dizer
nada um para o outro, apenas nos olhamos e fazemos. Como a pose
de espiões, de beicinhos e mostrando o dedo do meio. Estou
simplesmente viciada nas fotos, por isso, decido pescar mais duas
moedas do meu bolso. Nossos cotovelos se esbarram e Mikael
despenca no banco, segurando a minha cintura junto.
Eu é quem estou sentada em seu colo agora.
Não mudo as posições, me apoio nos seus ombros e sinto seu
corpo estremecer de tensão.
— Vamos tentar essa... — diz, fingindo colocar um anel no
meu dedo, como se estivéssemos noivos.
Gargalho alto, aprovando a ideia e posando para a foto. Finjo
que estou emocionada pelo noivado no próximo clique, e a última é
apenas uma foto nossa e de nossos sorrisos alinhados. Dentes
perfeitos e retos.
— Não que eu queira te expulsar... — Ele passa a mão pela
minha cintura. — Mas o filme já vai começar — anuncia.
Assinto, sem palavras.
Ele está tão perto; a cicatriz logo à minha frente, os óculos e
os olhos castanhos me desvendando. As mãos em mim, uma na
cintura e a outra me segurando bem próximo da coxa. Um de seus
dedos sobe corajosamente pela minha virilha, chegando até o meu
pescoço.
— Você ainda está usando... — discorre, bem baixo. Ele toca
na corrente ao redor do meu pescoço, retirando o pingente de dentro
do moletom. Sua palheta favorita salta, combinando com o meu
visual. — Fica muito bem em você.
— Obrigada.
Ele continua com suas mãos postas em mim, sem sentir
vontade de retirá-las. Mas, quando uma voz mecânica sobrepõe a
graciosa melodia da Taylor Swift, avisando que a próxima sessão irá
começar, nos lembramos do filme.

— Caro senhor, Vernon... — digo baixo, ouvindo Mika rir ao


meu lado, baixinho.
— Você nos pediu para que fizéssemos uma carta... — ele
completa, mergulhado na última cena mais memorável que conheço.
Estamos sozinhos na sessão. Apenas nós.
No meio da sala, com as pernas apoiadas nas cadeiras,
comendo cachorro-quente. Minha barriga está cheia e meu coração
em poesia, porque o final de “Clube dos Cinco” sempre será o meu
favorito de toda a história do cinema.
— Um nerd... — começo, conjunta a Brian.
— Um atleta... — continua.
— Um caso perdido...
— Uma princesa...
— E um criminoso — finaliza.
Esperamos por um instante.
— Atenciosamente, Clube dos Cinco.
John Bender congela na cena, após colocar um dos brincos
de Claire. Ele está com o braço levantado, feliz e realizado. “Don’t
You Forget About Me”, do Simple Minds, começa.
As luzes se acendem e, preguiçosa, não penso em levantar.
Mika está olhando para frente, extasiado pelo filme.
— Próximo — cantarola, de repente.
Navegamos pela vida de Cher, em “As Patricinhas de Beverly
Hills” e terminamos com Priscila, em “Desenrola”, horas depois.
Cada momento em silêncio, sentindo toda a experiência mágica do
cinema me consumir. Deixamos uma boa gorjeta para todos os
atendentes que passaram por nós sem dizerem nada e apreciamos
seus gestos. No caminho de volta para o hotel, ele me deixa escolher
a música para seguirmos caminho e, não sei o motivo, decido por
“Paper Rings” novamente.
Chegamos às dez horas no hotel e Mika — estou tentando
uma coisa nova — insiste para me levar até a porta do meu
apartamento.
— Participei da tradição de Georgia Pessoa e ela não me
matou — diz, parando ao lado da minha porta. — Como se sente?
— Uma traidora — confidencio, como se fosse um segredo. —
Falhei na minha missão e estou envergonhada!
Ele ri, se apoiando na porta trancada. Está segurando uma
das nossas fotos em fileiras, enquanto eu continuo com outra.
— Quer compartilhar? — pergunto, erguendo a foto. — Com
os nossos seguidores? Eles vão morrer de amores quando virem
essas caretas... Parecemos... — Faço uma pausa. — Realmente
parecemos um casal visto assim.
— Acho que não — comenta. — Esse foi um momento de
verdade, não um de mentira. Eles não precisam saber que nos
divertimos de verdade hoje à tarde... — Ele abaixa a minha mão,
fazendo círculos na minha pele. — A menos que seja para fazer o
Téo Farol morrer de ciúme, se for nessa condição, eu mesmo posto!
— É... — murcho os lábios. — O Téo ficaria uma fera, mesmo.
— Eu posto assim que chegar ao meu apartamento. — Ele
brinca com as fotos nas minhas mãos. Mika abre a boca para falar
mais alguma, mas desiste. No entanto, volta atrás, acrescentando: —
“Clube dos Cinco” era o meu filme favorito. O Bernardo ia lá pra casa
e trazia em um DVD. A gente passava a tarde assistindo... E depois,
é claro, “De Volta Para o Futuro”, “Karatê Kid” e “Footloose” — E
sorri. — Ele que me apresentou Um Menino Muito Maluquinho e os
gibis da Mônica — conta, continuando a acariciar a minha pele. —
Ele era como um irmão mais velho... Ele sempre foi o meu irmão
mais velho. Bernardo sempre conseguia a atenção das pessoas e eu
achava isso irado demais. Quando ele fez a primeira tatuagem, a
mãe dele surtou, e a minha avó me deu uma bronca. Falando que se
eu fizesse uma, ela iria me deserdar. Mas eu achei aquilo tão legal,
tão autêntico, que eu fiquei pensando... “Cara, eu quero crescer
logo.” Temos apenas cinco anos de diferença, mas isso já nos
distanciou muitas vezes. Bernardo sempre tinha um sorriso no rosto,
porque ele queria dizer ao mundo que não dava a mínima para nada,
ele só queria ser feliz e... Foda-se?!
Ele faz uma pausa, abaixando o olhar.
— E a Amanda foi o meu primeiro amor correspondido depois
do Pedro, a pessoa que me achava interessante, mesmo sabendo o
meu gênio. Ela sempre estava interessada em ouvir o que eu tinha
para falar, mesmo que não fizesse sentido. Nunca me senti um idiota
perto dela... Me achava até muito inteligente — comenta, abrindo o
sorriso. — Então, quando colocamos um fim, eu simplesmente soube
que nunca mais seria interessante para ninguém. Que todo mundo
me enxergaria como um otário de merda, que ninguém teria
paciência em me conhecer. — Ele sorri, amargo. — Quando nós
terminamos, eu sabia que não teria coragem de contar para
ninguém. Porque quando somos famosos, esperam uma perfeição
na nossa vida que é quase inatingível. Dezenas de pessoas queriam
que eu me casasse com ela. Como eu contaria que estávamos...
Separados? Como eu teria coragem de estragar as expectativas
daquelas pessoas? Mesmo que não fosse diretamente a minha culpa
ou a da minha responsabilidade? — Ele entorta a boca. — Então,
quando eu vi os dois juntos, me senti extremamente enganado. Eu a
amo, mas não como antes. E eu o amo... Mas não como antes. Mas
vê-los... Simplesmente me fez me sentir um idiota. E foi a primeira
vez que pensei que, talvez, eu realmente fosse um.
Ele respira fundo, subindo os orbes até encontrar os meus.
— Eu pensei na sua sugestão... — me provoca, rindo um
pouco. — E quero ouvir o que eles têm para dizer.
Pisco. Faz um tempo que não falo com Amanda, mas posso
apostar que ela está ansiosa para esclarecer tudo com Mika.
— Mesmo?
— É. E você vai comigo... — relembra.
— Sem problemas — garanto.
Espero para ouvir se Mika tem mais alguma coisa para dizer,
mas parece que a tempestade interna continua na sua mente.
— Amanhã — decreto. — Pode ser?
— Pode. — Sorri, sem mostrar os dentes. — Te pego às oito.
— Combinado, então. — Coloco a minha mão na maçaneta.
Estou com duas perguntas entaladas na garganta. Uma delas é que
desejo saber se ele quer entrar e ficar um pouco. Também estou
ansiosa para guardar de recordação as fotos que tiramos, este é o
momento que desejo ansiosamente uma casa só minha. — Você
está bem? — Faço a segunda pergunta em mente.
— Estou — confirma, dando tapinhas nas minhas mãos e se
afastando. — Não é a primeira vez que o Bernardo gosta de uma
garota que eu gostei.
Subo as sobrancelhas, interessada.
— E quantas vezes ele fez isso?
— Duas — discorre, na hora.
— Desculpe perguntar... — destranco a minha porta. Depois
desse momento, vou perguntar se ele quer ficar um pouco. — Mas
quem era a primeira?
Mika ri, umedecendo os lábios e começando a andar para
longe, em ré, sem qualquer sinal de que entrará no meu
apartamento. Quando está um pouco longe, mas o suficiente para eu
escutá-lo, ele murmura:
— Você.
25.01: beijinho
INGREDIENTES: leite condensado, manteiga, coco ralado fresco, açúcar cristal,
cravos.

Quando comecei a tocar na Desvio, eu sabia que seríamos


grandes.
Ou grandes artistas ou grandíssimos filhos da puta.
Minha avó sempre me apoiou em todas as minhas escolhas,
por mais aleatórias que elas fossem. Ela me matriculou na aula de
desenho aos dez anos e deixou que eu fizesse um curso de atuação
no teatro do bairro. Ela me buscava sempre, todos os dias, em
ponto. Com as artes cênicas, consegui fazer alguns comerciais e
pontas em filmes, nada muito promissor ou de veracidade única. Ela
me deixava ficar com o dinheiro que eu mesmo ganhava.
Foi assim que comprei um skate e foi assim que conheci o
Bernardo.
Ele já fazia parte de uma banda antes, mas não levava a sério
— como tudo em sua vida. Ele sempre foi mais velho e mais maneiro
do que eu, e eu sempre tentei copiá-lo de algum jeito. Quando
percebi que podia ser eu mesmo, foi quando nossa amizade
realmente se aprofundou. Nós fundamos a Desvio quando eu tinha
treze, e ele dezoito. Dos comerciais, consegui papéis pequenos em
filmes e novelas, e foi com esse primeiro salário grandioso que
comprei a minha primeira guitarra.
E um violão desafinado de um brechó de rua.
Na época, o segundo baterista não era o Gael, era apenas um
garoto qualquer do bairro. No primeiro ano do ensino médio, foi
quando conheci um dos meus melhores amigos, o Gael. Também foi
quando reencontrei o Pedro, já que nossas avós sempre foram
amigas. Eles foram até um ensaio da Desvio e nós decidimos
continuar juntos. No começo, fazíamos apresentações na sala de
aula, nas Festas Juninas e em bares da região.
Aos quinze, eu estava perdidamente apaixonado por duas
coisas.
Pela música e pelo Pedro.
Eu sabia que ser jovem seria o auge de toda a minha vida,
porque tudo o que eu pensava, de repente, parecia a situação mais
importante do mundo. Porque eu me sentia o centro de todo o
universo. Aos dezesseis, foi quando conseguimos assinar com uma
gravadora de verdade, uma extensão da Farol. A Farol Records.
Dos poucos trocados que conseguíamos em uma noite, nós já
estávamos aparecendo em capas de revista. E eu confesso, a fama
sempre me caiu muito bem. Me mudei da Mooca para o mundo, saí
de São Paulo para desbravar cada pedacinho do país. Conheci
lugares que pensei que nunca colocaria meus pés. Saí com diversas
pessoas, comi e bebi deliberadamente por anos. Até perceber que
precisava de um segundo passo.
Quem sabe voltar a atuar?
Quando o papel de Germano foi colocado no meu colo, eu
estava passando por um momento transitório. Amanda estava
estranha e eu não conseguia desabafar sobre isso com Bernardo.
Sempre que eu puxava o assunto sobre o meu falho relacionamento,
ele fazia questão de sobrepor outro. Ele engolia em seco, ficava aflito
e agitado, mas nunca me dizia nada. Até pensei em pedir Amanda
em casamento quando atingimos o ápice do nosso namoro, mas ele
disse que me prender seria uma besteira e que o mundo está cheio
de outras pessoas para poder conhecer.
Depois, ele nunca mais disse isso.
Minha cabeça funciona bem diferente. Dou razão à emoção,
sou um merda impulsivo que prefere ver para crer, fazer para se
arrepender, do que planejar friamente os próximos passos. Não sou
a pessoa mais inteligente do mundo e levo muito tempo até perceber
que estou errado. Todos esses defeitos se misturam, como um
liquidificador no meu cérebro, e eu fico confuso pra caralho.
São quase oito horas em ponto e eu estou no corredor do
hotel-apartamento, esperando por Georgia Pessoa.
Minha mente está afundada em lembranças nostálgicas; a
primeira vez que toquei ao lado de Bernardo, a primeira vez em que
tocamos em um estádio lotado, meu primeiro beijo com Amanda, o
momento decisivo em que percebi que não a amava mais,
romanticamente falando.
O clima está carregado.
No apartamento que divido com os caras, eles estão
silenciosos, porque não sabem o que fazer. Até parece que somos
realmente unidos, mas eles sentem falta do Bernardo tanto quanto
eu. O baterista simplesmente decidiu tirar um tempo para si, está
aqui em Madre Rita, em um novo apartamento de frente para a praia.
Quando eu liguei para ele, para pedir um momento da sua atenção,
pensei que ele fosse me xingar, zombar de mim e desligar na minha
cara, mas ele apenas respirou fundo e disse que avisaria Amanda,
para que rolasse um jantar.
Simples assim. Parece que ele já esperava por isso.
Toco a campainha, enviando uma mensagem provocativa para
Georgia pelo Instagram. Ela ainda não me passou seu número de
celular e confesso que isso me deixa cada vez mais ansioso e
interessado em conquistá-lo.
Estou usando uma camiseta comum e um blazer por cima,
decidi colocar as minhas lentes de contato e deixar de lado meus
óculos por um momento. Meu cabelo continua na mesma ordem de
selvageria que tanto gosto e me sinto bonito. Bonito pra porra.
A porta se abre um minuto depois. É Allura.
Agora ela cortou uma franja cacheada e ruiva rente aos olhos.
Ela sorri, sem muito ânimo para mim. Está usando pijama e pantufas.
— Entra aí — diz pra mim, fazendo um movimento com a
mão.
— Está assim porque o Gael foi pra Floripa? — zombo,
entrando no seu campo de visão e ficando encarregado de fechar a
porta. Allura geme, cansada, caminhando em direção ao sofá e se
jogando de bruços. — Calma, Allura. Ele foi apenas visitar a família
dele, depois ele volta pra você.
— Esse é o problema — resmunga baixo. Tão baixo que
preciso me aproximar um pouco.
— O que você disse? — Me aproximo, curioso com suas
expressões faciais nada neutras.
— Não estou atrasada! — Georgia Pessoa aparece, descendo
as escadas do apartamento estilo cobertura. Em uma mão, está o
celular, aberto na nossa conversa, na outra, os sapatos pendurados
por entre seus dedos. Sua expressão está fechada e amarga, porque
detestou o que leu. — Eu disse oito horas e são quase oito!
Ela bate seus pés descalços contra o piso dos degraus,
furiosa com a minha tentativa de fazê-la parecer a melhor amiga de
um atraso. Enfio as minhas mãos no bolso, sorrindo apenas por
conseguir tirá-la do sério com tão pouco.
— Você anda muito estressada, amora mio — faço um bico.
— Precisa relaxar... Como uma massagem. Eu me ofereço para
fazer, mas irá custar caro. Já vou logo avisando!
— Cala a boca, Mikael — decide, passando por mim
velozmente. Seu perfume de flores fica pelo caminho, me dando uma
agradável amostra de como sua pele está macia. — Sério.
Georgia solta o peso em cima de uma poltrona, sentando-se e
colocando os pés dentro de saltos altos. Ela amarra a tira das
sandálias ao redor do tornozelo e fica em pé, dando pulinhos. Ela
está muito bonita dentro de um vestido de verão, marrom-escuro e
xadrez. As alças são finas e quase inexistentes. Seu cabelo está
solto e brilhante, o azul ganhando cada vez mais foco. A maquiagem
é leve, mas dedicada. E eu considero isso uma nata ameaça.
É uma tortura Georgia ser tão bonita assim.
Sempre foi.
Até mesmo quando ela apareceu no meu camarim, com papel
alumínio por toda a cabeça, ainda estava radiante.
— Que foi? — pergunta, de repente. Estou parado, no meio
da sala de estar, apenas a analisando feito um bobão. — Se você
não gostou da minha roupa, sinto muito. Vou com essa, mesmo!
— Eu detestei. — Faço uma careta, apenas para acompanhar
a mentira. Eu, na realidade, adorei esse maldito e delicioso vestido,
mas ela nunca saberá. — Às vezes eu acho que você se esforça
para vestir a coisa mais brega que encontra no armário. — Retiro
uma mão do bolso, fingindo encarar as minhas unhas. — Se você
quiser, posso te passar o número de algum estilista. O que você
acha?
— O que eu acho é que você deveria ficar quieto. — Georgia
resume, com um sorriso falso e de lado pintando seu rosto lindo. —
Vamos? — Ela puxa uma jaqueta jeans debaixo de uma almofada e
coloca sobre os ombros. Retirando os olhos de mim, ela os coloca
em Allura, que parece um zumbi criando raízes no seu sofá. Não
faço ideia se zumbis criam raízes, mas se criassem, seriam como
Alli. Georgia se agacha ao lado da melhor amiga. Suas pernas
brilham por causa do creme que contém glitter. Ela está divina, porra.
— Quer que eu fique?
Não!
Pelo amor de Deus, Allura. Ajuda aí.
— Claro que não. Já disse que estou bem... Anda. — Allura
dá tapinhas nas mãos de Georgia. — Vai comer de graça!
Georgia deixa escapar uma risada e preciso desviar o meu
olhar.
É magnético estar perto dela, fazê-la revirar os olhos ou
perder a paciência comigo. Qualquer interação vale.
Ela se levanta lentamente, beija a testa de Allura e me encara,
indicando a porta. Me despeço de Allura do mesmo jeito e ela afirma
que passará a madrugada toda assistindo Sex and City na TV.
Acompanho Georgia até o lado de fora e mantenho a minha
curiosidade muito bem guardada até chegarmos ao elevador.
— O que aconteceu? — sussurro. Não sei por quê. Não é
como se Allura Guispe fosse aparecer do nada. — Isso tudo é
saudade do Gael?
— Deve ser?! — Ela contrai todo o rosto. — Ela não me disse.
Acordou assim. A única coisa que me disse é que estaria no estúdio
do Victor às duas. Quando voltou, estava desanimada, disse que
passaria a noite comigo. — Georgia toma fôlego. — Depois pediu
para que eu não me preocupasse com ela, que é apenas exaustão.
— E acreditamos nela?
O elevador chega. Georgia entra primeiro.
— Não — solta.
O aroma de flores preenche cada mísera parte do meu carro.
É, com certeza, uma fragrância típica de Georgia, e isso me deixa
ainda mais nervoso. Desde ontem, quando disse o que disse, nós
ainda não tocamos no assunto. E nem vamos, pelo visto. Georgia
está quieta no banco ao meu lado e a minha mente voa em todos os
sentimentos que colecionei nos últimos tempos.
Fiquei arrasado quando vi Amanda beijando Bernardo. Pensei
que os odiasse, pensei que poderia atropelá-los e até inventei um
namoro falso para provar que posso ficar por cima de qualquer
situação. A verdade é que sou emotivo; que não sou frio como
gostaria de ser. Me surpreendi quando percebi que queria ouvir o
que os dois tinham para dizer.
A ideia de deixar a banda me abandonou na mesma noite em
que encerramos a Malévola. Como vou me separar disso? Como vou
conseguir conviver sabendo que as melhores noites da minha vida
acabarão?
Sei que um dia acabará, tudo se encerra. Nada é infinito, mas
se eu ainda posso desfrutar de cada parte daquilo que eu amo, por
que sair? Para permanecer na banda, no entanto, preciso garantir
que cada um faça seu trabalho direito. Pedro vai se casar, Gael está
interessado em focar nas composições de letras para outras bandas,
Bernardo parece que finalmente chegou na crise dos trinta e
percebeu que diversão sem qualquer responsabilidade também não
dura.
Com certeza entraremos em uma pausa, mas não posso
deixar que cada um vá para um lado. A Desvio é a nossa cola. E
estou disposto a escutar para assim, quem sabe, resolver todos os
pontos quebradiços da banda.

À porta do condomínio, uma leva de paparazzis se amontoa


para conseguir uma foto nossa. Georgia dispara um palavrão,
sentando melhor no banco da frente. Aviso Bernardo pelo celular que
cheguei e ele libera a minha passagem para o estacionamento, um
minuto depois. Os malditos conseguem diversas fotos, gritando
perguntas invasivas. Eles sabem que Bernardo está morando nesse
novo prédio e sabem que estamos afastados. Que a tensão entre
nós é alta, e que andamos brigando.
Meu nome e o dele não saem da boca do povo há semanas.
Direciono o carro até o estacionamento no subterrâneo e o
paro em uma vaga qualquer. Quero parecer confiante, demonstrar
para Georgia que não estou abalado com nada, mas ela sabe me ler.
Aprendeu a me observar durante esses anos e nos nossos péssimos
encontros casuais por diversos eventos. Ela toca no meu ombro e
sorri, abrindo a porta em seguida.
Saio também, fechando o carro.
Não sei o motivo, mas pego sua mão, entrelaçando nossos
dedos, como legítimos namorados. E também não encontro outros
motivos, mas Georgia deixa que o contato se prolongue até o
elevador. Se for por pena, espero que ela me solte neste exato
momento. Se for porque quer, espero que seja uma nova mania.
Fico em silêncio o tempo todo, até o andar quatro, que é onde
Bernardo me deu as coordenadas de onde está vivendo. Quando
saímos do elevador, é apenas um grande corredor com duas portas
pretas. Deve ser enorme.
Georgia intensifica o aperto entre nossos dedos e toma a
rédea da situação, tocando a campainha da porta mais próxima de
nós. Não demora nem dois segundos até ser aberta; e não é
exagero, parece que Amanda ficou de tocaia para a nossa chegada.
Ela sorri, mesmo que não esteja feliz.
Sempre gostei desse sorriso, mas faz algum tempo que não
sinto nada. E sinto tudo.
— Oi! — Ela tenta parecer animada, dando espaço para
entrarmos. — O jantar está pronto. Nós pedimos em um
restaurante...
Georgia não a cumprimenta com um beijo no rosto, ela
simplesmente abraça Amanda com animação e sorri. Vejo nos olhos
da minha ex-namorada que ela fica surpresa com a atitude, mas
adora esse contato, pois devolve o abraço assim que se acostuma
com ele.
Quando se afastam, apenas faço um gesto de cumprimento
com o rosto. Não sei muito bem como me portar.
O apartamento é espaçoso pra caralho. A decoração é pouca
e simples, o que revela que os dois querem fazer isso com cuidado,
mas já reconheço algumas telas pintadas pela própria Amanda, além
de uma parede branca reservada para seus futuros grafites. Claro
que machuca saber que a pessoa que você fazia planos, está
fazendo esses mesmos planos com seu melhor amigo, mas
chegamos em um ponto crucial. Não sinto nada por Amanda há
meses e o que sinto se corroer, acredito que seja um ego totalmente
remendado. E não quero esse sentimento dentro de mim.
Não éramos perfeitos, mas éramos felizes.
Mas não duraríamos.
Nós sempre soubemos disso.
Deixo as duas conversando, porque Amanda está nervosa e
treme bastante. Georgia a acalma, pedindo um tour pelo
apartamento. A minha ex-namorada se anima um pouco e as duas
caminham pelo corredor. Na sala de jantar, Bernardo está
terminando de colocar a mesa. Os sacos de papelão do restaurante
italiano estão em cima da mesa. Ele está tendo dificuldade em rasgar
o lacre e isso quase me faz rir.
Ele sempre foi o menos cuidadoso de nós quatro; pouca
paciência, poucas palavras, sempre estava faminto após os shows e
comia toda e qualquer besteira que via pela frente. Esse Bernardo
está usando roupas casuais em uma terça-feira à noite, ouvindo
música clássica ao fundo. Vê-lo tão distraído é que me faz ter
certeza que senti a sua falta.
E muita.
— E aí — digo, me encostando no batente da porta.
Bernardo leva um pequeno susto, porque não percebeu a
minha presença. Ele limpa as mãos na calça e xinga alto.
— Essa merda de embalagem não abre — reclama,
apontando para a comida ainda lacrada. — Só quero comer as
almôndegas logo.
Rio pelo nariz.
Me afasto da porta, seguindo na sua direção e abrindo todas
as quatro embalagens de comida sem nenhum esforço. Bernardo
revira os olhos, sentando-se à cabeceira da mesa posta.
Não consigo parar de olhar pra ele.
Porque está diferente. E muito.
— Vamos comer? — Amanda reaparece, ao lado de Georgia.
Eu e ela estamos arrumados demais para este momento. — Estou
com fome!
Bernardo sorri para Amanda; seus olhos brilham, seu rosto
cora um pouco e posso adivinhar que ele está quente.
— Vamos — concordo, pegando um lugar do outro lado da
mesa. Puxo uma das embalagens para mim e retiro a travessa de
macarrão com molho branco. Tem manjericão também, o que faz a
minha barriga roncar. — Quer esse? — ofereço para Georgia.
Ela se senta ao meu lado esquerdo, assentindo. Ela recusa a
cerveja que Bernardo oferece e começamos a comer, sem jeito.
Apenas os sons dos talheres batendo no fundo do prato, da avenida
movimentada e dos carros buzinando uns para os outros.
— Eu adorei o apartamento! — Georgia tenta, sorrindo.
Amanda assente, bem perto de Bernardo. — Vocês compraram
juntos?
Olho para os dois; porque não consigo fazer outra coisa além
de comer. Bernardo segura os dedos de Amanda com tanta
delicadeza, que fico me perguntando se ele já fez isso anteriormente.
Seus namoros eram relâmpagos, horríveis, desastrosos e ele
costumava encarar o amor como uma lenda urbana. Não gostava de
compromisso e sempre agia como se fosse inabalável.
Se as garotas queriam um problema, poderiam ir atrás de
Bernardo sem sombras de dúvidas.
Por que estou tão indiferente?
Por que não estou sentindo nada?
Não era para sentir? Afinal, montei uma mentira enorme
unicamente para me sentir bem.
E Georgia tinha razão quando disse que mentira nenhuma
poderia preencher os sentimentos raivosos que eu estava
emanando. Nem os sustentar.
Eu simplesmente não me importo com o casal à minha frente.
E ouvir o que eles têm para dizer não vai me machucar como achei
que iria. As feridas não estarão expostas e não me sinto vulnerável,
apesar de me sentir baqueado, orbitando ao redor da mesa, sem
realmente estar participando da conversa.
— Vamos acabar logo com isso? — pergunto, depois de
entrarmos em outro instante de silêncio profundo. — Eu vim até aqui
para ouvir o que vocês têm para me dizer. Então?
Georgia revira os olhos discretamente para mim, como quem
diz “Nossa, você realmente é chato, hein?”, e finalmente sinto algo.
Sinto vontade de fazer outra piadinha, de puxar sua cadeira
para mais perto, de afastar seu cabelo do pescoço e sentir a
fragrância de flores exclusivamente da sua pele. Sinto vontade de
conversar sobre o que eu disse ontem à noite e como nossa ida ao
cinema foi importante para esvaziar a mente. Ainda estou me
desculpando aos poucos com ela, mas posso tentar definir que
somos... amigos?
A nomenclatura não parece funcionar conosco, mas serve.
Finalmente sinto.
Amanda me encara com firmeza e vejo o quão feliz ela está.
Mesmo que haja certo ressentimento por toda a briga que
desencadeou nosso antigo grupo, dá para notar sua felicidade. E é
vasta.
— Ok, então... — Bernardo suspira, deixando de lado o garfo
e a faca. Ele limpa um pouco de molho ao redor dos seus lábios.
Georgia respira pela boca, tensa.
— Primeiro, você precisa saber que não estou entediado e
que eu gosto da Amanda de verdade. Não é brincadeira e eu não
quero magoá-la. Ok?
— Isso é um bom começo — assumo, colocando minhas
mãos em cima da mesa. — Pode continuar.
— Lembra quando você voltou da sua viagem? E você tinha
notado que vocês tinham se afastado? — Bernardo pergunta, mas é
uma questão retórica. Me lembro de tudo. — Você estava em São
Paulo... Vocês terminaram, foi uma conversa longa e você estava
muito, muito cansado. Você perguntou se eu poderia ir até o
apartamento de Amanda para buscar suas coisas e eu concordei.
— Sim?! — incentivo sua fala.
Ele troca um olhar rápido com ela e seus dedos se entrelaçam
por cima da mesa.
— Eu fui e nós conversamos. Não quero que pense que
aconteceu alguma coisa, cara. Porque não aconteceu! — avisa. —
Ela estava triste e um pouco... Confusa. Nós ficamos conversando e
percebi que nunca tinha realmente conhecido Amanda de verdade,
todos esses anos que vocês namoraram e ela esteve por perto —
continua. Ele engole em seco, falando tudo com cuidado. — Depois
disso, nós ficamos amigos. Lembra?
Com certeza.
Amanda continuou a me acompanhar em shows, a aparecer
nos camarins, a viajar para as mesmas cidades onde a turnê
Malévola passaria. Pensei que estávamos de boa, que éramos
amigos maduros e inseparáveis, mas talvez ela estivesse lá por outro
motivo. Ou por mim e por ele.
Nunca vi os dois tão próximos e às vezes, os pegava rindo de
piadas internas. Nunca realmente refleti que algo poderia estar
acontecendo, mesmo que Bernardo sempre tenha deixado claro sua
falta de comprometimento com todas as pessoas ao seu redor.
— Três semanas depois do show em Caldas Novas... Nós
ficamos — confidencia, enrugando os lábios. Tudo se torna tenso
novamente e, para a minha surpresa, não sinto nada. A confissão me
encheria de ódio se eu tivesse dado ouvidos a eles anteriormente. —
E preciso dizer, irmão, que eu gosto pra caralho dessa mulher!
Bernardo sempre disse que se aparecesse apaixonado,
certamente ele estaria com febre. Ardendo em trinta e nove graus.
Fugia dos relacionamentos, igualzinho ao Diabo que foge da cruz.
Não sentir nada está me incomodando; nós brigamos feio. De
sair no soco e tudo.
Ele se afastou, eu me afastei.
Mas agora, vê-los juntos é algo tão infinitamente pequeno,
que não me sinto à vontade com nada. Bernardo é um ótimo
mentiroso, mas Amanda é péssima. Ela fica vermelha com facilidade,
suas bochechas incham e ela começa a hiperventilar. Ele não. É
cínico, grosseiro e muito esperto. Quando mente, ele leva a farsa até
o fim, sem realmente nunca hesitar ou vacilar.
E ele está falando a verdade.
— Não te traí — fala novamente. — Tudo aconteceu quando
vocês dois estavam separados... E desculpa? Não consegui evitar.
Nós nos aproximamos, rolou uma química foda. Animal. E tô
apaixonado, cara! — Bernardo dá de ombros. Esse é seu jeito de se
declarar para ela. — Nunca levei nada a sério, mas você sempre foi
meu irmão caçula de consideração... Não costumo falar sobre o que
sinto, Mikael. Mas... — Ele respira fundo, soltando o ar com força. —
Tô com saudade, porra.
— E eu também! — Amanda acrescenta. — Éramos amigos.
Sempre fomos...
É tão confuso não conseguir reunir os pensamentos. Deveria
haver uma forma do cérebro separá-los, como gavetas em um
escritório enorme. Eles, de fato, não me traíram, então por que tenho
que ouvir tudo isso?
Eu realmente estou escutando-os no tempo certo?
Ou demorei demais?
Sou mesmo uma pessoa boa?
Porque passamos semanas sem trocar uma única palavra,
colocando Pedro e Gael em momentos complexos. Essa porra de
situação é tão complicada, que nem ao menos sei o que dizer.
— Você gostava dela? — pergunto baixo. — Quando ela
ainda namorava comigo?
— Não — responde, sem nem ao menos pensar.
— E você? — Olho para Amanda.
— Não.
As pessoas não são minhas.
Elas não possuem meu nome gravado em uma etiqueta na
sola do pé. Elas não são brinquedos.
Se eu realmente estava tão chateado, por que agora sinto que
as minhas emoções estão sendo invalidadas?
É muito bom saber que uma tramoia não estava acontecendo
bem debaixo do meu nariz, mas é triste saber que perdi tanto tempo
ao lado deles apenas porque não conseguia separar as coisas. Fui
um trouxa mimado do caralho, que não conseguiu se controlar.
Foquei em como as manchetes sairiam. O traído, o cara enganado, o
coitadinho. Não pensei nem por um segundo na coerência de
Amanda. E ela sempre foi justa.
Esse é o momento que seus defeitos dançam na sua cara,
com uma luz neon piscando sem parar, dizendo “Você não é a
pessoa perfeita que achou que seria, Mikael.”
— Quero fumar. — É o que eu digo, afastando a cadeira com
os pés e puxando um maço de cigarro por entre a minha jaqueta.
Ouço os passos de Georgia logo atrás de mim, que ouviu tudo
em silêncio, sendo a pessoa mais observadora que já conheci.
Caminho em direção à varanda, onde uma seleção de flores brancas
está posta. Por alguma razão, sorrio fracamente.
Até me lembrar.
Amanda me disse que quando morasse com uma pessoa, sua
família lhe daria flores brancas, em sinal de boa sorte. Isso queria
dizer que o relacionamento seria sério. Em todos esses anos, eles
nunca nos deram nada parecido com uma planta.
E vê-las ao meu lado, enquanto acendo o primeiro cigarro, é a
concretização de que eles sabem o que estão fazendo. Entendo um
dos meus sentimentos protetores, não quero que ele a machuque.
Mas tenho certeza que se algo acontecer, Amanda saberá se
defender.
Como sempre soube.
— E então? — Georgia aparece, cruzando os braços.
— Cigarro? — provoco, oferecendo o maço.
— Você sabe que não fumo — dispensa com um aceno de
rosto.
— Sei, mas não custa oferecer. Se chama educação. Já ouviu
falar nela?
— Já, com certeza. É você que não parece muito adepta a
ela... — Sorri, cínica. Nossos risos são fracos, frouxos e se perdem
pela noite. Georgia se aproxima mais, fechando a porta de vidro da
varanda. — Como está se sentindo?
— Um idiota — resumo. Rabugento, me apoio no gradil. — Me
sinto um merda que saiu por aí acreditando numa coisa, quando
poderia muito bem ter resolvido com uma conversa.
— Você não conversaria — Georgia acrescenta. — Você
estava sentindo demais, perdido na própria mente. Não estou te
defendendo, longe disso. Deus me livre de te defender algum dia! —
Ela ergue as mãos. — Mas se rolasse uma conversa parecida como
essa, semanas atrás, você sequer entenderia o ponto de Bernardo.
Ou da Amanda. Você não entenderia nada.
— Mas sinto que demorei demais para entender.
Georgia dá de ombros, murchando os lábios.
— Antes tarde do que nunca — zomba. Um sorriso áspero se
forma nos meus lábios. — É isso o que falam de próprio tempo. E dá
para consertar as coisas, você pode ter seus dois melhores amigos
de volta. Sua banda de volta... Isso se você, incluindo o Bernardo,
cooperarem.
— Como assim?
— Vocês podem agir como duas pessoas maduras e
perceberem que há começos e fins, e que ninguém pertence a
ninguém, ou ele pode simplesmente jogar na sua cara que Amanda
está com ele, como um prêmio. Se ele fizer isso, pode socá-lo —
define. — Se não fizer, é porque ele está interessado em mudar,
porque sabe que tem duas pessoas incríveis na vida dele. Como? Eu
não sei. Mas até as pessoas babacas são legais em certo ponto.
Um sorriso surpreso se estende pelo meu rosto, fazendo a
fumaça do cigarro se esvair, sútil.
— Você é a pessoa mais observadora do mundo, porra.
— Pode ser. — Ela se recosta no gradil ao meu lado. — Mas e
aí? Você entendeu o que quero dizer?
— Entendi. — Levo o cigarro por entre os meus lábios e
guardo o isqueiro. — E concordo.
— Sério? — Se espanta, dando um mínimo passo para trás.
— Nossa. Então, você deve estar prestes a pegar um resfriado!
— Tomara — profiro. — Assim quando tivermos que nos beijar
na frente das câmeras, te passarei todos os meus germes.
— Você tem uma mente maquiavélica — debocha, se
segurando para não revirar os olhos. Ela está prestes a mudar de
assunto, porque seus ombros estão tensionados. — Ainda vamos
para São Paulo?
Não disse?
— Sim... Na sexta.
Ela assente, silenciosa.
— Ok, então. — Ela olha para baixo, para seus pés dentro de
sandálias altas. Não sei o motivo de ela estar tão bonita hoje, não
precisava de toda essa produção. Mas adoro saber que meu segredo
mais do que secreto, é que sempre achei Georgia bonita em todas
as ocasiões. E ela nunca, nunca saberá disso. Com certeza pensará
que quero apenas conquistá-la, quando a realidade é bem diferente.
Já entendi que nunca terei chances com ela, não uma chance de
verdade. E quanto mais cedo eu reconhecer isso de novo, melhor. —
Quer voltar lá pra dentro? Eles estão te esperando!
— Melhor — confirmo.
A bituca está quase apagando entre meus dedos. Sigo a atriz
para dentro da sala principal, onde deixo o rastro do meu cigarro
morrer no cinzeiro. À sala de estar, Bernardo e Amanda estão
conversando, eles sorriem um para o outro, mas desmancham toda e
qualquer felicidade com a minha chegada. Não quero que isso
aconteça novamente.
O clima ainda é esquisito. Ainda há um elefante amarelo com
pintinhas laranjas no meio da sala, mas não quero que duas pessoas
deixem de ser felizes. Ainda mais duas pessoas que foram sinceras
comigo — finalmente.
— Seguinte... — digo, sem me sentar. — Ainda é estranho
saber que vocês esconderam isso de mim, porque se houvesse uma
conversa antes de eu ver o beijo de camarote, provavelmente eu
teria apoiado vocês. Ou não. Às vezes eu penso que fui mais um
merda do que um bom amigo — falo tudo com bastante cautela. —
Mas não quero mais ser um babaca que não escuta. E eu quero
ouvir vocês, porque quero tê-los em minha vida. Amo a Amanda,
somos amigos e quero nossa amizade de volta — conto. — E
Bernardo, você sabe que sempre foi o meu irmão mais velho. E
sempre será... — Coço a minha nuca, tentando ignorar que Bernardo
acabou de abrir um sorriso singelo. — Só quero mais tempo, ok?
Não para digerir nada, só para as coisas se ajeitarem. Vamos
conversando com calma e sobre tudo, ok? Pode ser assim? Estou
disposto...
— Eu tô disposto pra caralho em consertar tudo! — Bernardo
se levanta, apressado. — Claro, pode ser! Com certeza!
A primeira vez em que Bernardo apareceu com uma
namorada, a gente ainda frequentava um clube na Mooca. Nós
ficávamos na piscina o dia todo, chegando vermelhos de sol em
casa. Não me lembro o nome dela, mas ela tinha cabelos louros e
era muito legal. E aquilo foi muito adulto, a meu ver. Havia um
penhasco de cinco anos nos separando. Agora, somos apenas dois
caras praticamente com a mesma idade.
— Amanda? — Sorrio na direção dela. Parece que toneladas
foram retiradas de suas costas. — Me desculpe por ter desconfiado
de você.
— Também estou disposta — diz, abrindo um sorriso muito,
muito gentil.
— Ótimo — concluo. Respiro fundo, passando meu braço por
cima dos ombros de Georgia. — Esse foi o jantar mais estranho que
eu já fui na vida. Vou indo nessa. Ok? Já deu pra mim.
Eles riem, mas não de um jeito sem graça. Contém alívio e
perseverança.
Se não posso confiar na pessoa que um dia já chamei de
melhor amigo, então em quem?
Me aproximo de Bernardo e estendo a minha mão na sua
direção, nós trocamos um forte aperto, para cima e para baixo.
Teremos paciência para reconstruir a amizade que está muito
abalada, não quero dar um passo maior do que eu posso. Não mais.
Pedro e Gael ficarão felizes em saber disso — porque até eu me
sinto realmente realizado em ter chegado em uma conclusão. Sinto
vergonha do passado e da minha teimosia que chegou ao meu
ápice. Mas creio que Georgia tenha razão — mais uma vez.
Abraço Amanda com delicadeza, porém, é bem rápido. Me
despeço dos dois, segurando a mão de Georgia na minha. Eles
dizem que somos um casal realmente muito bonito, elogiando
nossas roupas que combinaram por um acaso.
No elevador, a caminho do estacionamento, ela não se
aguenta e diz:
— Quer ir para outro lugar?
E eu nem preciso consultar minha mente para saber que a
resposta é sim.
25:02: beijinho

— Isso pode te animar um pouco... — Georgia diz, retirando


as chaves do bistrô de sua pequena bolsa e balançando na altura
dos meus olhos. São onze horas da noite, o céu de Madre Rita está
banhado pela escuridão e a rua permanece deserta. Fomos embora
do apartamento deles, mesmo que tenhamos comido pouco. Minha
barriga não está tão forrada pelo jantar, mas também não sinto fome.
— Ou não, né. Depende do quanto você se importa...
Rio baixo, seguindo seus passos para dentro do ambiente.
Assim que abre a porta, Georgia esbarra as mãos pelo interruptor e o
salão principal do futuro bistrô se acende, gradativo.
As cadeiras ainda estão embrulhadas em papel celofane, mas
estão à postos. O balcão foi revestido em madeira polida e as
paredes pintadas entre laranja e rosa com desenhos geométricos
nada uniformes, é uma confusão de informação e cores que, no
fundo, faz total sentido. Uma das principais áreas de seu fabuloso
negócio está revestida com um papel de parede com dezenas de
tirinhas divertidas da Turma da Mônica, enquanto uma estante da
mesma madeira do balcão está apoiando poucos livros. A maioria
velhos e usados.
— Está quase pronto! — Ela se anima, fechando a porta atrás
de mim e abaixando as persianas. — Ainda faltam alguns consertos
ali e aqui... Coisa básica. Deixei uma parede em branco para a
Amanda, porque eu quero que ela grafite o espaço. Que deixe tudo
um pouco mais familiar, me entende? — pergunta com sinceridade,
apontando para uma parede à minha esquerda. — Mas não é isso o
que quero te mostrar — admite. — Vem... — E caminha rapidamente
para os fundos, sinalizando com as mãos.
Ela deixa a bolsa em cima do balcão enquanto anda.
Quando apareci, de repente, há quase dois meses, eu nem
imaginava que estaria me deparando com Georgia. Tudo estava
horrível naquele dia, meu desempenho em decorar as falas do
primeiro roteiro, minha relação esquisita com Bernardo, as
mensagens que Amanda deixou de responder abruptamente. Tudo.
Para falar a verdade, eu estava tão puto da cara e assustado
que nem a reconheci. Fazia quase um ano que eu não a via
pessoalmente, não assimilei nada com nada. Eu sabia que a veria
em algum momento e confesso que fiquei ansioso para revê-la.
Fiquei me perguntando se manteríamos a implicância solta como
sempre ou se seria pior. Georgia nunca teve cabelo azul, seus fios
sempre foram pretos, em um tom forte e poderoso. E, apesar de não
admitir quase nada com frequência, foi bom saber que foi ela quem
me atendeu, e não uma pessoa desconhecida.
— O que é? — pergunto, sarcástico. — Já arrumou aquele
relógio torto ou ele continua decadente, amora mio?
— O relógio não está torto, disso eu tenho certeza — grita, a
muitos passos de distância.
Ando devagar pelo piso de assoalho, sentindo meus anéis
apertarem os meus dedos ao serem enfiados no bolso da calça. Ela
está destrancando uma porta quando me aproximo, o espaço se
encurtando entre nós, restando poucos centímetros nos separando.
Eu não quis estar tão perto, mas calculei mal. À vista da minha breve
ironia, abro um sorriso sacana, porque sei que Georgia me olhará
feio assim que perceber a nossa aproximação repentina.
Quando a conheci, quis que ela me desse o mínimo de
atenção.
Eu tinha acabado de assistir ao seu primeiro filme nacional no
cinema e estava encantado por sua atuação. Quando Lola me disse
que eu seria apresentado pessoalmente para Georgia Pessoa, há
seis anos, em um programa de arrecadação de fundos beneficentes,
fiquei pensando naquilo por dias. Além de linda, era multi-talentosa.
Misteriosa, pois nunca publicava demais nas redes sociais. Um
serzinho cheio de enigmas que me atraía com precisão.
Ela estava usando uma roupa comum — jeans e camiseta.
Quando me apresentei, não sei realmente o motivo, mas agi feito um
idiota. Eu queria impressioná-la, mas sabia que um meio sorriso meu
não seria capaz de surtir o efeito que eu tanto queria. Como
realmente não surtiu. Georgia foi educada e sorriu de volta, mas não
me deu muita confiança. Depois, quando nossa participação acabou
e fomos para a festa, fiquei procurando-a pelo ambiente.
Queria me apresentar de novo, testar uma piada... Quem
sabe?
A encontrei perto da sala de projeção, pronta para entrar no
seu mundinho de acordo com sua agente. Ela não estava feliz em
me ver, mas respondeu à altura. Eu a chamei de “estranha e bonita”
e nossa inimizade nasceu, floresceu dali. Nunca escondi meu
interesse por ela, mas Georgia sequer nota isso.
Gosto de implicar, gosto de vê-la irritada, gosto de saber que
ela revira os orbes na minha direção. Adoro ouvir quando ela diz que
me odeia, mas não consegue se manter longe de mim.
Toda essa situação não foi planejada, eu realmente fui um
otário que respondeu um tweet sem se preocupar com as provas
concretas que a internet sempre arranja. Não pensei em nada,
apenas agi. Não vi as letras na minha frente, apenas digitei. Esqueci
totalmente de quem eu sou e que, para pessoas como nós, o peso
de uma frase mal dita tem um valor completamente diferente. Se as
pessoas querem entender o assunto A, elas entenderão, mesmo que
eu esteja falando de assunto B.
Injusto, não acha?
Agora, Georgia está me encarando com superioridade no
olhar, erguendo seu nariz e queixo, exibida.
Sim, ela realmente me tira do sério.
É teimosa, mimada, mandona, sabichona, acha que é dona do
mundo, é metida, mesquinha, porém, a cada vez que a faço
resmungar, é mais um motivo para continuar por perto.
Adoro ser inconveniente.
— Mas falando sério... O maldito relógio está quase caindo! —
E digo a verdade. Por mais que eu ame contrariá-la, dessa vez,
estou falando sério. Ele vai cair a qualquer momento. E tomara que
seja na cabeça dela, assim aprende de uma vez por todas a me
ouvir. — Não vai fazer nada a respeito?
Ela destranca a porta, colocando uma distância insuportável
entre nós.
— Sei o que estou fazendo. — Pisca, fazendo um sinal com a
cabeça para eu entrar.
A sala é, na verdade, um escritório. As luzes se acendem com
um sensor de movimento na parede, e Georgia arruma a postura,
orgulhosa. Entendo tardiamente que o escritório está pronto, talvez o
primeiro cômodo da pequena construção que está 100% finalizado.
Dou um passo grande para frente, me adaptando com o local. As
paredes também estão pintadas de rosa e laranja, com bordas
brancas, que lhe dão um ar de sofisticação. A mesa é grande e já
contém um computador desligado.
A atriz suspira, contente. Seu sorriso é largo, parece infinito no
rosto e sua felicidade é palpável.
Ela conseguiu.
— Ficou pronto hoje à tarde! — Ela abre os braços, andando
pelo espaço. Georgia dá a volta na mesa, sentando-se na poltrona.
— Eu vim aqui e fiquei apenas pensando. Em silêncio. E como você
visitou esse lugar e foi uma das primeiras pessoas a conhecê-lo,
achei que seria justo te mostrar. Foi justo?
— Mais do que justo.
— E te animou um pouco? — pergunta, ansiosa.
— Um pouco...
Satisfeita, ela se recosta totalmente, retirando a jaqueta por
cima dos ombros, revelando as alças finas e os ombros à mostra.
Ainda com as mãos nos bolsos, ando até poder apoiar meu
quadril em uma mesa perto da parede, provavelmente colocará
alguns livros ou bebidas para convidados de seu escritório. Apoio-me
ali, de frente para ela.
— Quando começará a contratar? — brinco. — Assim posso
enviar meu currículo pra cá. O que acha?
Ela sorri, comprimindo os lábios.
— Quer que eu mande em você? — A voz melodiosa me
atinge por instantes pecaminosos, fazendo minha barriga contorcer
de ansiedade. E interesse. E desejo. Tudo mais o que ela quiser de
mim. — Curioso...
— Teria diferença? — pergunto sinceramente. — Você já
manda em mim. E eu sou esperto o suficiente para obedecer.
Porra.
Nossos flertes são bons, só não vê quem não quer. Entro em
um delírio que, por muitas das vezes, me convenço de que ela quer
me beijar tanto quanto eu quero. Se Georgia pensa que eu esqueci
do momento em que a abracei por trás, ela está muito, muito
enganada.
Ela mexe nas próprias mãos, pensando em algo, talvez, muito
específico. Porque o seu sorriso se desmancha aos poucos e ela
deixa que um vinco generoso se forme no centro da testa lisa de
imperfeições.
— Por isso o Bernardo acreditou no nosso namoro falso, não
é? — começa. Ela me encara, serena. Me sinto tenso e o interesse
do momento evapora. — Porque você já gostou de mim.
Direta e reta.
— Sim. — A palavra vira chumbo na minha boca, pesada o
suficiente para arranhar. — Mas não se preocupe. Eu... Não gosto
mais.
É mentira.
É uma mentira tão desleixada que chega a ser ridícula. Se
Georgia reparasse um pouquinho em mim, já teria notado. Ou não,
nossas diferenças sempre estiveram em evidência e somos ótimos
brigando. Na porra do tempo todo.
— Não? — pergunta suave e calma. — Ah... Entendi. E o que
ele fez na época? Além de dar em cima de mim... Eu lembro disso.
— Ela me ouviu falando de você. — Dou de ombros, porque
não quero entrar em detalhes. Não para levar um fora, o que sei que
levarei. — Disse que você era bonita também. Aí disse... Que ia te
chamar pra sair. Me mostrou as mensagens que enviava para você.
Essas coisas de babaca que ele sempre gostou de fazer.
— E você ficou como?
— Como acha que eu fiquei? — rebato, temperamental. —
Fodido da cara. Mas não tinha o direito de sentir ciúme e nem nada,
já que você sequer me levava a sério. — Faço uma pausa. — Depois
comecei a namorar a Amanda e eu esqueci dessa paixonite.
— Esqueceu totalmente? — questiona, cada vez mais curiosa.
— Pergunta logo o que você quer saber, Georgia —
resmungo, retirando uma das mãos dos bolsos, impaciente.
Esfrego o espaço entre meus olhos e o nariz, aflito. Se ela vai
brincar comigo, preciso arranjar algo para me defender o quanto
antes.
— Não faz sentido — reclama, sacudindo a cabeça para os
dois lados. — Você sempre foi detestável comigo!
— Porque eu disse a coisa errada no momento errado e você
entrou na defensiva. — Ofereço a minha tese a ela, me
desencostando da mesa. — Se você me provocava, acha que eu
ficaria como? Lógico que ia revidar!
— E como se interessou por mim? — cantarola, divertida.
— Você deve estar amando isso tudo, não é? — acuso,
negando com a cabeça. Ela dá de ombros, falsa e inocente. — Foi
quando te assisti em Liberdade Esperada, no cinema. Te achei
incrível e pesquisei seu nome no Google. A Desvio estava
começando a ser ainda mais famosa e eu sabia que teria
oportunidade de te elogiar pessoalmente. Quando isso aconteceu,
simplesmente travei e não consegui dizer nada do que havia
planejado — conto, rindo sem qualquer humor. — Depois, quando
tomei coragem, disse a coisa errada novamente. E estou vivendo
nesse ciclo, falando e falando, sem realmente acertar o alvo.
— E o que você diria para mim? — Serenamente, ela se
levanta da poltrona, contornando a mesa e ficando à minha frente.
Ela deixa que os braços relaxem ao lado do corpo e sobe seu olhar
curioso até mim. — Se pudesse voltar no tempo, Mikael, o que diria
para mim naquela noite?
Não faço ideia, porque acho que travaria novamente.
O filme foi um drama muito aclamado na época; esteve no
Festival de Cannes, Festival de Cinema Brasileiro e ela foi indicada a
algumas categorias em premiações por toda a América Latina. Ela foi
fantástica fazendo o papel de uma aluna no ensino médio, que
perdeu toda a família graças à uma doença violenta, que atacava o
sistema respiratório. Sua personagem, Clarice, precisava enfrentar
uma vida que ela não merecia, foi obrigada a crescer e a
amadurecer. O filme é uma jornada angustiante de Clarice fazendo
de tudo — de tudo mesmo — para evitar que fosse despejada de sua
própria casa, onde morou de aluguel a vida inteira.
— Que você foi incrível como Clarice — murmuro, engolindo
em seco. Ela está muito perto.
— Só isso? — Georgia meneia a cabeça para o lado,
segurando a minha mão, a única que está fora do bolso da calça. Ela
brinca com o primeiro anel que vê, um lobo de prata que contém os
olhos em pedrinhas preciosas da cor vermelha, acomodado no meu
polegar direito. — Eu ouvi muitos elogios parecidos na época, não é
nada original.
Ela sabe que me tem na palma da mão e, por esse motivo,
sorrio. Sorrio lentamente, do jeito hipnotizante que pode ou não ser
uma armadilha. Se ela hesitar, talvez esteja pensando no mesmo
que eu.
Georgia não estremece. Nem por um segundo.
— Seu filme me marcou, amora mio — digo, dando um passo
à frente, vendo-a não recuar. — Não foi feito para mim, mas a
mensagem foi o suficiente para entender que eu estava assistindo o
talento mais puro da nossa televisão. Você mereceu todos os
prêmios que ganhou, e os que perdeu, tenho certeza que foi pura
trapaça.
— E o que mais?
— Que eu queria te conhecer, porque suas redes sociais não
me ofereceram nenhuma informação. Que você parece ser legal e
engraçada, porque apesar de não sair muito por aí, é alguém que se
importa em manter uma amizade verdadeira por perto. Allura está aí
para provar. — Pouso minha mão em sua cintura e ela deixa, sem
retirar seus olhos dos meus. — Diria que seria uma honra, um dia,
atuar do seu lado, porque sou seu fã, declaradamente. Diria que
fiquei falando de você e do seu filme por dias, convencendo cada um
da banda a assistir o filme comigo no cinema. Realmente te admirei,
não estava obcecado. Apenas... Um fã. Resumindo.
Ela assente com calma. Minha mão, ainda na sua cintura, é
embalada por seus dedos.
— Mais alguma coisa? — Sorri de lado, adorando cada parte
do que eu digo.
— Se eu pudesse voltar no tempo, eu ainda te chamaria de
"estranha e bonita” — ressalto, retirando a minha outra mão do bolso
e apoiando em sua cintura. — Mas eu também tentaria entender
seus motivos de se afastar de uma festa. Também apontaria todos os
pontos mais legais do filme. E te chamaria para sair.
Seu corpo se afasta um pouco pela surpresa, mas não sai do
lugar.
— É mesmo? — questiona, gargalhando frouxamente. —
Sério?
— Sim. Por que não? Eu entenderia se você dissesse “não”,
mas... Perguntar não ofende!?
Ela continua rindo, genuinamente, achando graça em tudo o
que eu digo, mas não de uma forma malvada ou sarcástica. É
apenas cômico.
— Amora mio? — Me aproximo mais, agora sentindo a ponta
de seus seios tocarem no meu peito. Seus braços deslizam até os
meus ombros, onde ela se firma. Minha respiração quente em suas
bochechas bloqueia qualquer possibilidade de o ar gelado passar por
entre nossos corpos unidos. — Eu quero muito te beijar agora.
— Por que eu sinto que isso vai mudar tudo? — indaga,
analisando bem de perto meus lábios.
— Não precisamos falar disso, se não quiser...
Ela não responde mais, porque a trago para perto, fechando
meus olhos e beijando-a.
É um selar límpido, igual ao selinho que trocamos no meu
camarim, no show. E mesmo sendo algo inocente, é capaz de fazer
todo o meu ser vibrar e arrepiar. Minha nuca reage na mesma hora e
aprofundo-me em sentir seu gosto. Nossas bocas se abrem ao
mesmo tempo, adivinhando o ritmo necessário para beijarmos com
tranquilidade. Sua língua se encosta na minha timidamente, apenas
conhecendo-se. Até que seu suspiro, alto e delicioso, alcança meus
ouvidos e ela me abraça pelo pescoço, pendurando-se em mim.
Enrosco meus braços em sua cintura, girando-a no lugar e
mordiscando seus lábios.
A coloco sentada em cima da mesa atrás de mim, abrindo
suas pernas para poder caber com perfeição no vale.
Sinto suas coxas travarem no meu quadril e Georgia me
segurar pelo rosto, usando suas mãos. Uma delas acaricia minha
cicatriz com ternura, enquanto a outra mantém meu queixo muito
reto, na direção que ela mais gosta.
Afago suas costas, enlouquecendo aos poucos com a
sensação de beijá-la. Se for um sonho, vou detonar o filha da puta no
soco se me acordarem. E se for realmente um sonho, espero que
não seja o Gael ou o Pedro que tentem me sacudir de um lado e
para o outro, senão vou acabar entrando em outra briga.
Mas não é um delírio, é a realidade.
E faz semanas que não tenho nenhum outro contato,
simplesmente estou fugindo de qualquer interação — sendo
realmente fiel ao meu namoro de mentira.
Fala a verdade, sou ou não sou para casar?
Georgia espalma suas mãos em mim, me distanciando alguns
centímetros. Abro os meus olhos aos poucos. Será que fiz algo de
errado? Minhas mãos continuam em sua cintura e não farei nada que
ela não queira. Ela abre as pálpebras em seguida, um pouco perdida
na situação. Seus lábios cheios já possuem um leve inchaço e isso
me faz investir novamente nela, trazendo-a para perto. Dou
pequenas lambidas em seu lábio inferior, fazendo-o oscilar.
Mas quando invisto novamente, para sentir sua língua na
minha, ela se esquiva.
— O que isso significa, exatamente? — Ela aponta de mim
para ela, duas vezes.
— Que gostamos de nos beijar? — tento. — Não precisamos
falar disso se não quiser, apenas lembrando. E outra coisa... —
Afasto uma mecha azul-turquesa de sua face. — Podemos nos
divertir apenas hoje à noite. Amanhã é outro dia...
Georgia ri, puxando-me para perto com suas pernas. Dessa
vez, deslizo uma das minhas mãos para sua coxa, apertando-a. Ela
geme, surpresa pelo ato e o aprovando na mesma medida. Seguro-a
pelo pescoço com a outra mão, me aproximando totalmente, até tê-la
novamente grudada aos meus lábios. As bocas se encaixam com
uma precisão absurda, que me faz suplicar para me aproximar cada
vez mais dela. Georgia infiltra seus dedos por minha camiseta,
conseguindo retirar a minha jaqueta com praticidade.
Ela ri dentro da minha boca e recomeçamos tudo novamente.
Não faço ideia do que acabei de prometer, mas
definitivamente não é um beijo que irei esquecer tão fácil.
E nem tão cedo.
26: sorvete de creme com goiabada
INGREDIENTES: calda de goiabada, leite condensado, ovo, leite, creme de leite.

TÉO: ainda está brincando de casinha com aquele bobão?


TÉO: estou sendo educado ao perguntar

Coloco a última calcinha na minha pequena mala, fechando-a


e selando-a com o zíper. Estico meu corpo com dificuldade, até
pegar meu celular e ler as inúmeras mensagens que Téo vem me
mandando há algum tempo. Ele não está interessado em ser
compreensivo e, na realidade, começo a entender como um fora
repentino pode magoar uma mente destinada a achar que todos te
devem alguma coisa.
Ser só meu amigo, de repente, não o bastou.
Decido bloquear o seu número de uma vez, porque não tenho
o menor interesse em manter nossa amizade em pé. Nunca mais,
para ser exata. Travo o meu celular em seguida, me levantando do
chão. Allura está aninhada na minha cama, abraçada a dois
travesseiros, enquanto marca uma reunião com Victor Valares. Os
dois andam conversando todos os dias desde a estreia da novela e
Allura está muito animada — e empenhada — nesse maravilhoso
passo que está dando na sua carreira. E está abatida também.
— Você está estranha — é o que eu digo, colocando a minha
mão na cintura. Vou viajar daqui a pouco para São Paulo, e o
máximo que Allura me disse desde a hora que acordou foi apenas
um mirrado e simplório “bom dia”. — O que houve?
— Quem era? — Ela muda de assunto, apontando para o meu
celular.
Sacudo a minha cabeça, gesticulando com os dedos.
— Ninguém — minto. — Você está estranha — enfatizo, me
aproximando dela.
— Não estou — me garante, mas não é nada sincero.
Tampouco verdadeiro. — Só estou cansada.
Me sento na beirada da cama, analisando seu rosto
inexpressivo analisar o feed do seu Instagram. Com a semana de
folga, nós nem ao menos nos demos o trabalho de sair do meu
apartamento. Usamos para dormir, fofocar, comer vários doces e
besteiras. Ela voltaria ontem para seu apartamento, aqui mesmo no
hotel, mas tive uma crise leve de vertigem e ela preferiu ficar mais
um pouco.
— Eu te conheço — brinco com o seu dedão do pé. Ela ri,
frouxa. — Há anos, aliás. Sei quando quer me afastar... Se não
quiser contar, ok. Mas se quiser, adio a minha viagem para São
Paulo e ficamos juntas no final de semana.
Não parece algo que Mika vá gostar de saber, mas é a minha
melhor amiga e independente do que sente, quero entendê-la.
— Nada disso! — Ela nega repetidas vezes com a cabeça. —
Pode ir. Estou curiosa para saber o quão desastrosa essa viagem vai
ser. — Allura sorri de lado, deixando seu celular descansar em sua
mão. — Eu vou ficar bem. Quando você voltar, a gente conversa.
Pode ser?
Então realmente alguma coisa está acontecendo.
Sempre tem.
Não estou muito convencida de que ela está realmente bem,
mas Allura é, às vezes, exatamente como eu e prefere ficar sozinha
de vez em quando. O que me resta é respeitar. Também quero evitar
pensar e ver Mika. Nos beijamos há alguns dias e cruzamos uma
linha perigosa. Nós combinamos que manteríamos o beijo como um
segredo, porque ele não pode — e nem vai — se repetir. Foi apenas
uma breve curiosidade, que foi cessada quando nos vimos a sós.
Mas não é tão fácil assim dizer “Esqueça isso”. E nem tudo o
que ele me disse.
Suponho que a “pior” parte nisso tudo, é que eu acredito em
Mika. Em nenhum momento passou pela minha cabeça que seria
mentira sobre seus reais sentimentos e intenções. O papel de Clarice
me encheu de insegurança na época, é muito bom saber que eu
tinha um admirador.
Depois de ouvir seus elogios, fiquei me perguntando como
tudo seria se nós tivéssemos nos dado bem de verdade, sem
deixarmos aquele grande mal entendido fazer com que nos
tornássemos inimigos. Em todos os momentos possíveis, fiquei me
perguntando como estaríamos hoje em dia — e a resposta realmente
me surpreendeu. Eu não quero esquecer o momento, mas vou.
Porque combinamos assim, não é?
Allura — e nem ninguém, espero — sabe do beijo. Não quero
opiniões e nem perguntas. Não tenho o orgulho tão imaculado ao
ponto de não saber dar o braço a torcer. E preciso reconhecer que
repetiria os toques novamente.
Mika e eu ainda não tocamos no assunto. E nem vamos, se
bem nos conheço.
Ainda não nos vimos desde aquela noite.
— Pode — murmuro, não muito feliz em ter uma conversa
adiada. — Mas não guarde por muito tempo. A Bea está por perto,
se precisar, saia com ela. Ou com o Gael...
À menção do nome de Gael, Allura fica ainda mais tensa,
comprimindo os lábios. É um bom momento para concretizar a minha
teoria de que o casal não anda mais tão unido ultimamente, mas ela
já parece estressada demais e não quero que haja motivos para
discutirmos.
— Ei. — Cutuco seu joelho, me curvando um pouco. — Que
tal você ler fanfic?
Ela ri, incrédula.
— Como assim?
— O Mikael, uma vez, quando eu estava meio pra baixo, me
fez ler uma fanfic nossa. — Não falo “Mika” porque isso seria uma
mudança sutil que com certeza Allura notaria. — Me encheu de
risadas... Os fãs são talentosos e criativos. Quem sabe isso não te
faça rir? — sugiro, dando de ombros. — Já vi dezenas de pessoas
shippando nós duas. — Pisco, provocativa.
— Com certeza vou me lembrar disso... — Ela se espreguiça.
— Agora vai. Ele deve estar aí embaixo já, mofando.
Ela me dá tapinhas nas mãos, me apressando. Mando um
beijo pelo ar, puxando o apoio da minha mala de rodinhas e
arrastando-a pelo quarto. Se bem a conheço, ela ficará enfurnada no
meu quarto pelos próximos dois dias.
No corredor, já consigo ver Mikael na sala de estar, em pé,
andando de um lado para o outro, conferindo o relógio de pulso com
fervor. Ele está usando seus óculos redondos e me sinto animada,
porque realmente considero que Mika fica melhor com eles. O
guitarrista não me vê, está ocupado demais resmungando e bufando,
possivelmente irá me acusar de atraso.
Nesses últimos dias, prometi a mim mesma que não o beijaria
novamente, mas só de olhá-lo, sinto vontade de puxá-lo pela gola da
blusa.
Pessoas odiosas não deveriam ser tão bonitas.
A maneira que eu descer as escadas, revelará como me sinto
perante à minha atração. Então, preciso ser certeira. Se eu sorrir,
nós ficaremos nesse ciclo de flerte quase que instigante, mas se eu
for exatamente como a Georgia de antes, quem sabe eu esqueça
essa ideia estúpida — e seja mais fácil.
Seguro o apoio da mala entre os meus dedos e respiro fundo.
Certo.
Hora de ser uma garota mimada e irritante.
— Quero um cartão de crédito! — anuncio, muito alto,
enquanto desço a escada principal do apartamento, fazendo questão
de bater minhas botas de saltos com força nos degraus.
Mika vira na minha direção, com a sobrancelha grossa e um
pouco bagunçada erguida. Ele usa um blazer casual com calças
jeans e está muito gostoso.
Ah, merda.
Ele olha para os dois lados, como se procurasse algo. Quando
desço todos os degraus que nos separam, deixo a minha mala ao
lado da sua.
— E nós estamos onde? — pergunta, inconformado. — Em
algum filme de patricinhas? Onde cartões de créditos são dados aos
montes, Georgia?
— Estou entediada — explico, superficial. — E como eu posso
pedir qualquer coisa, pensei em um cartão.
Mika enruga completamente a boca, detestando essa ideia, e
isso me alivia. Ótimo. Isso quer dizer que somos os mesmos, que
continuamos as mesmas pessoas difíceis que, definitivamente, não
vão se envolver.
E é um pouco frustrante, admito.
— Vou pensar. — Ele revira os olhos, respirando muito fundo.
— Só não muda de ideia quanto a essa viagem, por favor. Você pode
tirar a minha pele para fazer um churrasquinho, mas só quero ver a
minha avó em paz.
— Eu mal tiro a sua paz! — brinco, dando pequenos tapinhas
na sua bochecha e caminhando em direção à minha caixa discreta
de remédios. Pego-a, colocando na minha mochila em cima do sofá.
— E por que eu estragaria tudo?
— Você, não. — Ele aponta para mim. — Mas as outras
pessoas, sim. Com certeza.
— Do que você está falando?
Ele me encara por alguns instantes, completamente sério. Se
aproxima de mim, tirando o celular do bolso. Digita por poucos
segundos, até colocar o celular na frente dos meus olhos.

RUMOR:
Após assumirem o namoro há apenas um mês, Mikael
Devante e Georgia Pessoa podem estar em uma jogada de
marketing para fazer com que “Destino Inteiro” seja um grande
sucesso?
Fontes afirmam que os jovens atores de vinte e cinco e vinte e
quatro anos, respectivamente, não estão interpretando que são um
casal apaixonado apenas na frente das câmeras. O boato que corre
pelos corredores da emissora Farol é que os pombinhos, na verdade,
nem amigos são de verdade.
Postado por Fofocalândia, às 10:43 da manhã.

Pigarreio, me ajeitando no sofá. Faz três horas que a


manchete foi publicada.
Não me sinto tão acuada, mas tenho certeza que não é nada
bom. O mínimo de informação possível é capaz de fazer um alarde.
E claro que as pessoas não deixam de lado as teorias supérfluas.
Pode apenas ser uma estratégia para saberem um pouco mais sobre
nós, mas também pode ser uma pessoa empenhada em descobrir a
verdade. E muitas pessoas ao nosso redor sabem que estamos
fingindo.
Irônico pensar que aceitei fazer parte desse teatro todo
porque não queria que meu nome fosse vinculado a qualquer um e
que desejava o máximo de sossego possível sobre a minha
solteirice. E agora, a última coisa que eu tenho é sossego.
— Eles não mentiram — escolho ser cínica.
— Não, não mentiram. — Mika guarda o celular de volta, mal
humorado. — Mas isso pode ser péssimo, sabia? Um término seria
ainda mais interessante, porque as pessoas assistiriam a novela
torcendo para que reatássemos — inicia, sacudindo os cabelos. —
Mas é como você disse, o público odeia ser enganado. E se
desconfiarem ao menos um pouquinho que estamos em uma jogada
de publicidade, fodeu.
— Sim, fodeu — repito, encarando um ponto fixo no chão. À
essa altura, Ivy já deve estar sabendo dos boatos e me mandará
ficar quieta, sem rebater ou mandar indireta. Essa viagem a São
Paulo é uma grande oportunidade para deixarmos todo mundo ainda
mais encantado com esse relacionamento. — Mas... Como eles
sabem? Tipo... Essa revista?!
— Minha aposta é o Téo — Mika diz na mesma hora. — Mas
você acharia que eu estou exagerando.
— Não, não acho — assumo, o surpreendendo. — Ele seria
capaz, mas Téo não colocaria o nome dele junto ao nosso, ele
apenas pode ter sugerido para as pessoas certas. Comparecido em
festas, soltado a fofoca como quem não quer nada...
Mika me ouve com atenção, assentindo a cada palavra que
discorro.
— Então... — Ele se aproxima o suficiente, me obrigando a
levantar e olhá-lo de perto. — Seremos o casal mais apaixonado do
mundo. Me entendeu?
— Com certeza. — Selo nosso acordo.
PAI (ANTENOR):
Estamos em Fortaleza!
* anexo em foto *

Abro um sorriso muito grande, abrindo a foto dos meus pais


tomando uma cervejinha gelada em um copo plástico branco,
brindando em direção à câmera. Todas as notificações pulsam na
minha tela assim que chego em São Paulo, depois de um voo de
pouco menos de uma hora. Convenci Lola e Ivy a deixarem nós dois
voarmos em um avião comercial, deixando de lado o aluguel de um
jatinho.
Fomos flagrados no aeroporto de Madre Rita, comendo um
algodão doce que Mika custou a pagar para mim. Tiramos fotos com
todos que pediram e ouvimos todos os elogios possíveis. Desde a
cor do meu cabelo, até o fato de que combinamos demais.
Todo voo faz a pressão do meu ouvido aumentar, é sempre
uma montanha russa de sensações. Quando pousamos me senti
área por alguns instantes, porém não tão fraca como das outras
vezes.
Desembarcamos no aeroporto de Guarulhos e já me sentia
completamente realizada. Enquanto Mika pegava as nossas malas,
tirei uma foto para os meus pais, pedindo que eles adivinhassem
aonde estávamos indo. Não recebi a resposta de imediato, então
Mika se aproximou de mim, pegando minha mão e entrelaçando
nossos dedos para seguirmos até o estacionamento. O movimento
no aeroporto estava violentamente mais complexo do que em Madre
Rita; muitos fãs aglomeraram nas saídas principais, sendo
tranquilizados por alguns seguranças que a empresária da banda
enviou.
Eles gritavam nossos nomes, pulando no lugar e nos
implorando por um casamento.
Alguns já usavam camisetas com nossos rostos, a maioria
com os nomes de Marina e Germano gravados no peito. Mika
apertou seus dedos contra os meus e me levou até o carro que nos
espera não muito longe dali, tentando ignorar os flashes dos
paparazzis que nos seguem, sem qualquer remorso. Colocamos as
malas no carro e partimos, acenando apenas para quem foi gentil
conosco.
Agora, estamos presos no trânsito. Um motorista particular foi
designado para dirigir e nos acompanhar nesse final de semana.
Mika está preso no celular, de fones de ouvido, enquanto assiste
alguns vídeos divertidos. Eu estou um pouco ansiosa, porque essa
parte de São Paulo é a que eu conheço.
A Zona Leste da cidade é subestimada.
Os moradores das outras zonas não nos levam a sério. É
quase como se fosse uma cidade dentro de outra. Já ouvi muitas
pessoas que se recusavam a colocar seus pés aqui, fazem caretas,
torcem seus narizes e se sentem superiores de um jeito que jamais
vou entender. É claro que ficamos afastados de muitos pontos
turísticos interessantes, como o Parque do Ibirapuera que, de onde
eu morava, eu precisava pegar dois ônibus, demorando quase uma
hora e meia para chegar.
Não é uma coincidência, acho que o acesso a muitos lugares
daqui seja recluso, nada inclusivo, como se a população fosse se
esconder do restante mais carente.
Temos parques na Zona Leste também, como o Parque do
Carmo e o Parque Ecológico do Tietê e eu já fui, orgulhosamente,
nos dois. Também tem um, que às vezes me tira do sério de tão
pequeno que é, chamado CERET, entre o Anália Franco e o Tatuapé.
O tamanho dele me dá nervos, mas não sei explicar muito bem a
minha teoria.
Meu celular vibra finalmente, e é uma mensagem da minha
mãe no grupo da família.

MÃE (JULIA):
tem certeza que não devemos conhecer seu novo amigo?
Parece sério.
Todo mundo que conheci, só fala de vocês. Como um casal
* carinha pensativa *

PAI (ANTENOR):
É!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Rio pelo nariz, digitando rapidamente.

GEORGIA:
Não, não precisa.
Já disse que não vai durar.

Para minha total surpresa, o carro para de frente para um


condomínio de prédios, de três torres. A central, espelhada, parece
um verdadeiro hotel, as outras duas são as mais simplórias, sem
abandonar a elegância. Reconheço o bairro de cara. É o Carrão,
bem perto de onde eu morava antigamente. E o fato de eu conhecer
cada parte do bairro — e dos outros ao redor — me faz sorrir
aliviada.
— Pensei que você morasse na Mooca — falo, seguindo Mika
para dentro do elevador. Nossas malas estão aos nossos pés e não
há nenhum fotógrafo do lado de fora.
— Não, eu cresci e morei na Mooca, minha avó continua lá.
Mas eu moro aqui... No Carrão — explica, encostando-se nas
paredes do elevador. Deve ser quase seis horas agora.
— Achei que estivéssemos aqui para eu conhecer sua avó. —
Cruzo meus braços, sentindo minha barriga roncar. Estou sedenta
por uma pizza.
— E você vai — admite, calmo. — Minha avó está aqui...
Quando eu estou fora da cidade, ela vem pra cá. Cuidar do
apartamento, checar se tudo está em ordem. Quando eu disse que
estaria chegando, ela me avisou que está aqui desde o mês
passado, apenas jogando bingo e bebendo às minhas custas.
Concordo com a cabeça, preferindo ficar em silêncio. Não
conversamos muito nas últimas horas, mas é melhor mudarmos um
pouco isso. Porque estamos longe de Madre Rita e somos a única
companhia um do outro — tirando Elzira Devante, é claro.
Me surpreendo novamente, porque o elevador não segue até
a cobertura e sim para no nono andar do prédio, abrindo suas portas
serenamente. O corredor contém outras quatro portas idênticas e
Mika se agita para abrir uma delas, ao meu lado esquerdo. Puxo a
minha mala, sustentando a minha mochila em apenas um ombro.
Mika abre a porta usando sua chave, retirando os tênis com
pressa. Ele deixa os sapatos amontoados na entrada, largando suas
coisas de qualquer jeito. Sem olhar para trás, ele segue em linha
reta. Sozinha, me acostumo com o ambiente; é um apartamento
grande e otimizado. A decoração é uma verdadeira bagunça. Há
quadros coloridos e em preto e branco se misturando e não há uma
ordem exata para nada. O piso é de assoalho e faz aquele barulho
gostoso quando as pessoas andam.
Me encarrego de fechar a porta e trancá-la. A cozinha está
logo à minha frente e um cheiro delicioso de lasanha me atinge.
Reconheço porque os ingredientes ainda estão postos em cima da
mesa e a minha barriga reage na mesma hora.
Está tocando “Sina”, do Djavan, e ouço uma pessoa, mais
especificamente uma mulher, cantar a todos os pulmões. Dou uma
olhada no forno, tendo quase certeza que a lasanha está pronta, e
me direciono para o resto da casa. Passando pela sala de jantar, até
chegar na sala de estar, acoplada com uma varanda generosa com
uma churrasqueira embutida na parede.
Elzira Devante está dançando de olhos fechados, com um
cigarro preso entre seus dedos, enquanto Mika imita seus passos,
também de olhos fechados. Eles declaram a música como um
verdadeiro hino e dá para notar que os dois são melhores amigos.

O luar, a estrela do mar,


O sol e o dom,
Quiçá um dia a fúria desse front
Virá lapidar o sonho
Até gerar o som.

Eles estão descalços também, sacudindo a cabeça para todos


os lados, como se a música fosse, na verdade, um rock muito
pesado. Murmuro a melodia com os meus lábios crispados,
adorando cada parte da cena.
Elzira, uma mulher de meia idade com o cabelo louro-
dourado, abre os olhos apenas um pouco e sorri para mim, como se
me conhecesse de outras vidas. Ela não para de dançar e vem na
minha direção, balançando os ombros e me puxando pela mão, para
que eu me junte a eles. Ela usa uma combinação de roupas
extravagantes em tons de verde e seus lábios finos contém muito
batom vermelho.
Quando a música acaba, ela abraça Mika com muita força,
espremendo as suas costas e fazendo o cantor reclamar, mesmo
rindo.
— Eu que te criei, peste. — Ela dá um tapa nos ombros dele.
A diferença de altura dos dois é gigantesca e Elzira precisa olhar
para cima, com o pescoço ereto, para enxergar o neto. — Se eu não
puder te apertar, quem vai? — resmunga alto, inconformada.
Mika não responde, apenas mostra a língua para ela,
recebendo mais um tapa em cheio na sua nuca.
— Quem sabe... a namorada... — Elzira Devante canta o
termo para mim, enrugando o nariz ao perceber que está frente a
frente comigo. — Georgia? — Ela segura as minhas duas mãos,
abrindo meus braços para poder me analisar. — Você é mais bonita
pessoalmente! — Me elogia, feliz.
— Obrigada, dona Elzira — agradeço, sorrindo muito. — E
você é bem mais legal do que pensei.
— Sim, eu sou. — Ela pisca, apagando o cigarro no cinzeiro
mais próximo. — Está com fome? — pergunta só para mim,
colocando a mão na minha barriga como se pudesse sentir os fluídos
do meu estômago se revirando. — A lasanha já deve estar pronta.
— Tô morrendo de fome, velha. — Mika se intromete,
passando um braço por cima dos ombros da avó, que revira os olhos
cor-de-mel, injuriada. — Sonhei com a sua lasanha três noites
seguidas.
— Então vai pôr à mesa — manda a senhora, se
desvencilhando do aperto de Mika, que não para de rir em nenhum
momento. — Você come lasanha? — Ela pergunta docemente para
mim. — O Mi me deu uma lista de coisas que você não come. —
Elzira sorri na direção dele, feliz em vê-lo. — Como chocolate, o que
é uma pena, porque eu faço um brigadeiro de rum delicioso. E nem
beber, o que é ótimo, porque aí sobra mais cerveja para mim. — E
solta uma risadinha simpática e cômica, me fazendo rir sem pensar
muito.
— Eu quero tanto experimentar esse brigadeiro de rum agora!
— lamento, contorcendo o meu rosto. Maldito Meniere. — Mas não
posso.
— Tudo bem, tudo bem. — Ela me acalma. A avó de Mika
está me analisando, sempre sorrindo de lado para cada detalhe meu.
— Eu fiz outra sobremesa — assume. — Vamos comer? Fiquei
esperando vocês o dia todo!
Ela abraça Mika novamente, deixando que ele pouse sua
cabeça por cima da sua.
Eles caminham na frente, trocando ofensas e xingamentos.
E me sinto incrivelmente muito bem-vinda.
27: brigadeiro de leite em pó
INGREDIENTES: leite condensado, leite em pó, creme de leite, manteiga sem
sal.

Elzira é uma ex-diretora de escola pública que assumiu sua


identidade como uma dondoca socialite assim que Mika se tornou
um astro da música. Ela é uma mulher engraçada e espontânea,
gosta de falar tudo o que vem à sua mente. E suas unhas vermelhas
e longas são falsas. Ela me contou tudo isso enquanto me servia
dois pedaços de sua tão famosa lasanha, a mesma que Mika estava
devorando ao meu lado. Ela fez duas, uma de carne e uma de
frango. Preciso dizer que não sei escolher qual é a melhor. Não me
levantei desde o momento em que comecei a comer e me sinto
ótima.
Ela passa suas tardes lendo, participando de eventos dos
quais é convidada de última hora e morre de orgulho do neto. Disse
que conhece quase todos os seus fãs clubes e que possui redes
sociais badaladas, porque ela mesma possui seus próprios fãs e
admiradores. Não deixou de falar comigo nem por um segundo, me
colocando a par do assunto toda a hora. Mesmo que eu não
soubesse nada do que eles estavam falando.
E, admito, foi muito legal da parte de Mika ter avisado sua
avó sobre as minhas restrições alimentares.
— Vou repetir — anuncio, pegando mais um pedaço da
lasanha de frango que está pela metade. Mika comeu cinco pedaços
e esse é o meu terceiro. Elzira sorri, vitoriosa. O maior elogio do
mundo é comer sua comida com gosto e ainda repetir. — Você
precisa me passar a receita!
— A Georgia vai abrir um bistrô lá em Madre Rita, vó — Mika
fala de boca cheia, sem se importar com nada. Nem mesmo com o
olhar fuzilador da avó. — Só vai servir sobremesas. O cardápio foi
pensado em outros tipos de doces... Sem chocolate por perto.
Elzira arregala os olhos, interessada. Ela comeu pouco até
agora, está tomando um copo cheio de cerveja, enquanto seu
segundo pedaço de lasanha ainda esfria no prato de porcelana.
— Essa possibilidade existe? — Se espanta.
— Para mim, sim. Tive que me readaptar aos meus gostos...
Então, pensei em algo que fosse divertido para mim. Estudei e
pesquisei bastante até chegar no cardápio ideal... — conto, ainda
não ousando dar uma garfada, porque não quero falar de boca
cheia e nem que a comida voe por entre os meus lábios. — O Mika
sempre me ajuda... Mas ainda não concordamos sobre alguns
pontos.
Ele ri pelo nariz, divertido.
— Você tem que ver, velha. — Ele cutuca a avó, rindo. — Ela
tem um relógio de girafas nesse lugar. Está torto pra caramba e ela
nem me escuta. Como vai concordar comigo se nem ao menos leva
o que tenho para dizer a sério?
— Porque eu tenho certeza que o relógio não está torto!
— Você só quer ter razão! — Ele me encara, sério,
desmanchando o sorriso aos poucos. — Nem sempre você tem
certeza de algo, sabia disso?
— Não, não sabia. Nunca estou acostumada a perder ou a
estar errada.
A corrente de eletricidade que passa pelo meu corpo é
suficiente para me manter em alerta. Porque é a primeira vez que
estamos nos encarando dentro dos olhos desde que o dia começou.
— Vou na inauguração — Elzira diz, desconfiada. Ela me fita
com atenção, depois ao neto, que abaixa a cabeça para voltar a
comer. — Mas me conta, Georgia. De onde você é? É daqui de São
Paulo?
— Sim. — Me animo. — Da Vila Matilde.
— Logo aqui do lado! — Ela comemora. — De qual parte?
— No sentido Shopping Aricanduva — respondo com
orgulho. — Eu amo falar desse shopping, quando eu era criança eu
contava para todo mundo que ele é o maior da América Latina!
Simplesmente acho essa informação encantadora, mas é possível
que outras pessoas não concordem comigo. Nunca concordaram,
aliás. — Abro um sorriso tão grande que sinto que estou falando
com as minhas amigas da infância. Elzira e Mika também sorriem ao
notar o meu conforto com o assunto. — Mas enfim... Faz tempo que
me mudei.
— Eu amo essa cidade — confidencia. — Não me vejo
morando em nenhum outro lugar...
Sua frase me faz concordar, porque até os sete anos de
idade, eu pensava a mesma coisa. Depois fui apenas me
acostumando a viver na casa dos meus pais e em hotéis, sempre
viajando. E faz alguns dias que estou pensando em ficar em Madre
Rita. É uma cidade linda e não faz sentido viver longe do meu bistrô.
Continuo a comer, enquanto dou risada das piadas que Elzira
solta sem qualquer filtro. Ela provoca Mikael várias vezes, falando
que seu integrante favorito na Desvio é o Pedro. É claro que ele
revira os olhos, mas não deixa de importuná-la na mesma medida.
Quando o jantar acaba, Elzira faz questão de me servir
brigadeiro de leite em pó, de massa branca. Aquelas delícias me
fascinam na mesma medida, e eu lhe informo que estará no
cardápio do bistrô.
— Acertei! — comemora, apertando as mãos. — Pode comer
o quanto quiser. Eu fiz apenas para você!
— Bom saber que sou um nada — Mika dispara, incrédulo. —
Achei que me amasse!
— Às vezes sim, às vezes não — rebate, dando de ombros.
— Ainda estou me decidindo, peste.
— Mas eu sou a namorada aqui! — Entro na brincadeira,
pegando mais um brigadeiro. — Mereço ser paparicada!
— Tanto faz... — Ele revira os olhos, se recostando na
cadeira.
— Anda. — Elzira o apressa. — A louça é a sua. Quero
mostrar a casa para a Georgia!
— Eu é quem deveria estar fazendo isso...
— Sim, mas eu quero fazer!
Mikael se volta para mim, sorrindo, ardiloso.
— A Dona Elzira fica fingindo que manda na minha casa —
debocha, se levantando e abraçando a avó. Ele beija seu rosto,
fazendo questão de oferecer o beijo mais molhado e apertado do
mundo. — Vou lavar a louça — avisa. — Não mostre nada
vergonhoso para ela, por favor. Georgia é malvada, não se engane
pela carinha linda dela.
Sorrio, piscando as pálpebras, inocente.
— Quem você pensa que eu sou? — Elzira se ofende,
colocando a mão no peito.
Mika não responde, apenas se separa dela, recolhendo os
pratos, os copos e os talheres sujos, e caminhando em direção à
cozinha. De costas, preciso dizer que o encaro, dos ombros largos,
às costas durinhas e a bunda demarcada pela calça jeans. Elzira me
flagra olhando para seu neto e me lança um sorrisinho malicioso.
Pego o pote em que os brigadeiros gelados estão, e me apego a
ele. Prefiro mastigar do que reconhecer certas coisas.
Ela acena com suas mãos e me apressa para seguirmos pelo
corredor principal, de onde eu vim. Primeiro, ela me mostra um
quadro da Elza Soares pintado por uma artista independente, é uma
explosão de cores e ela parece muito orgulhosa de possuir o item
de colecionador pendurado na parede de Mika, o que revela que
essa parte da decoração é totalmente pensada nela. Depois ela
mostra a churrasqueira, onde costuma oferecer uns churrascos às
colegas do bingo — um segredo meu e dela, porque pede que eu
não conte nada a Mika.
Faz questão de me mostrar seu quarto, colorido em tons
rosa-pastel, e o terceiro quarto na casa, onde Mika guarda seus
instrumentos e algumas tralhas. Por último, ela me direciona para
um armário antigo, uma peça curiosa, feita de madeira e vidro, que
acomoda muitas fotos da família Devante. Algumas são em preto e
branco e outras coloridas, mas com os fundos amarelados.
— Esse é o nosso tesouro. — Ela suspira forte, feliz em
passar seus olhos por cada fotografia. Como é baixa, Dona Elzira
me cutuca para que eu pegue a foto que está no alto, à minha
direita. — Isso, essa mesmo. — Dou o porta-retrato em sua mão e
seus olhos se acendem. — Esse era o meu filho. O Benjamin. Pai
do Mi. — Ela me mostra a foto, mas sem deixar de segurá-la.
Benjamin Devante era apenas uma criança na imagem,
segurava uma bola de futebol debaixo do braço e tinha uma franja
estilo tigela, dentes faltando, e usava uma camiseta do Palmeiras.
Talvez estivesse animado para ir para a escolinha de futebol.
— Ele amava esse time, nunca vi igual... — comenta, feliz e
sentimental. Ela me devolve o porta-retrato e aponta para o outro,
também no alto. — Aquele, meu bem. Aquele da outra ponta... —
Devolvo Benjamin Devante Criança para seu devido lugar, não sem
antes notar como ele era uma criança fofa. Olho na direção do meu
lado direito, encontrando a foto, com a moldura colorida e com
desenhos de melancia. — Isso... — Ela alisa a fotografia. — Essa
foto foi tirada no dia do casamento deles. — Dona Elzira se
aproxima de mim, apontando para a noiva, de vestido curto, feito de
seda. — Lisandra. Ela era ótima, fazia o meu Ben sorrir demais.
Eles sempre estavam rindo!
— Imagino... — falo com cuidado, sorrindo para a imagem
que exala amor e felicidade. — Eles se casaram... Onde?
— Em um cruzeiro em Santos. Chique, né? — E se orgulha,
sacudindo os ombros. — Nunca tinha visto um casamento assim,
mas fazia sentido. Eles eram assim... diferentes. Depois... Veio o
meu Mika.
A próxima foto ela consegue pegar, ficando na ponta dos pés.
Mika deve ter entre quatro ou cinco anos, ele está no colo da
avó, abraçando-a com tanta força e carinho, que parece que nunca
mais vai soltá-la. Ele usa um uniforme escolar e seu rosto está
pintado como um Coelhinho da Páscoa.
— Ah, essas fotos são ótimas... — relembra com ternura,
dividindo a atenção entre o casamento e a Páscoa.
E, preciso admitir, elas são.
Fotos em escolas, em jogos de futebol, apresentações
infantis, comerciais. Até mesmo o primeiro dente de leite de Mika
está presente. Quando termina de arfar, triste, ela me devolve os
porta-retratos, para eu colocá-los no lugar.
Estou admirando uma foto em que Mikael aparece mostrando
o polegar, em um sinal positivo. Ele já está usando óculos e as
lentes mal cabem no seu rostinho de criança. Sorrio alto, achando
tudo muito fofo e divertido.
— Foi o primeiro dia na escola, logo após o ataque... — Dona
Elzira me conta. — Eu estava mais nervosa do que ele. Sabe? —
Começa a narrar. — O cachorro, tadinho, estava com fome, muita
fome. Os maus tratos o deixaram daquele jeito, violento e com raiva.
Quando chegou no veterinário, eu percebi que ele estava cheio de
feridas... Não sei como as pessoas conseguem fazer isso. Mas o
Mika estava na hora errada... Naquele dia, eu estava quase
desistindo de ter uma família — confidencia, bem baixo. — Meu
Bento morreu muito jovem, me deixando sozinha com o Ben. Ele
queria assim... Um filho que tivesse o nome parecido com o dele.
Fomos muito felizes nos poucos anos em que ele esteve vivo...
Depois veio o acidente com o Ben e a Lis. Fiquei estremecida
demais, deixaram o meu garoto sozinho. E com o ataque... Pensei o
pior.
“Mikael era tão pequeno. Nunca foi o mais alto da turma,
sempre ficava para trás quando brincava, era um pouco tímido, mas
falante quando se conhecia de verdade. Deve ter doído demais. Ele
diz que não se lembra, que tudo é um borrão na sua mente. Mas eu
vi tudo, tenho certeza que o meu garoto sofreu.
“Se tivesse sido mais grave, nem gosto de pensar, sabe? Não
mesmo. Quando fez os pontos, ele só queria saber de tomar
sorvete. Comprei todos os sabores possíveis. Ele comeu muito
sorvete naquelas férias, porque ficou mal acostumado. Porém, não
me importei. Ele estava bem, foi apenas uma pedra no caminho.
Entende?
“Mas o medo é estranho, Georgia. Posso te chamar assim?
Ou prefere Gê? Pode ser Gê? Georgia é um nome muito longo. E
por que você se chama assim? Nome bonito, mas meio difícil...
Enfim, eu estava falando do quê mesmo? Ah, sim. Do medo. Ele é
esquisito, parece ficar na espreita dos sentimentos. Quando nota
que nossa guarda está baixa, ele ataca. Não gosto de sentir medo,
porque isso significa que posso perder mais alguém. E não quero.
“Não mais.”
Ouço tudo sem fôlego, me sentindo pequenina, como uma
ervilha, em uma imensidão de emoções. Uma profundidade muito
intensa.
— E eu fico feliz que o Mika nem ligou para a cicatriz... Até
hoje nem se importa. — Ela se aproxima de mim, piscando. — Até
ficou mais gato, né?
— Sim, ele ficou — concluo, sussurrando de volta.
Temos outro segredo agora.
O amor na casa dos Devantes é realmente encantador, mas
também me preenche com a sensação de que a morte é injusta.
Porque, de fato, ela não quer saber se você tem uma pessoa
amada, ela simplesmente leva seu ente querido para longe — e
para sempre. Sem qualquer aviso de devolução. Nós é quem
precisamos nos readaptar, encontrar algo com o que levarmos a
vida, buscar um sentido finito que torne nossa passagem na Terra
menos devastadora.
Eu a entendo, mas apenas Elzira sabe o que realmente
sente.
Dona Elzira me cutuca novamente com gentileza, indicando
para seguimos até a outra parte do corredor. Ela parece cansada
agora, um pouco sonolenta. A avó de Mika anda até a próxima
porta, indicando com os dedos. O próprio Mikael aparece, sorrindo
de lado, sacana, um nato cafajeste, como se soubesse que é o
centro das atenções, finalmente.
— Não me olhe com essa cara — pede, segurando os meus
dedos. Não sei que expressão estou fazendo, mas sei que estou
baqueada. — Criei o Mika pro mundo. Estou bem aqui!
— Ela tem até um namorado... — Mika provoca, puxando a
bochecha da avó, somente para receber um tapa.
— Sim, eu tenho! — Ela comemora, arrumando a blusa. —
Preciso ligar para o Estevan, por falar nisso. Nós sempre assistimos
a TV juntos... — anuncia. — Bom... — Ela para com o tour. — Eu
vou começar a me recolher, porque a minha novelinha vai começar
daqui a pouco — informa, contente. Elzira abraça Mikael de lado. —
Adorei sua namorada, peste. Você realmente tem bom gosto!
— Sim. — Ele me olha. — Eu tenho, mesmo. Será que ela
tem?
— Já não posso dizer o mesmo! — retruca, rindo de se
acabar de sua piada. — Vocês vão dividir o quarto... Precisam de
mais travesseiros?
Até aquele momento eu não tinha parado para pensar na
viagem em si.
Eu conheceria Elzira, nós nos daríamos bem e ela entenderia
que Mikael está de namorada nova, esse era o plano inicial. Nós
passaríamos o sábado e o domingo na companhia dela, e
voltaríamos para Madre Rita segunda-feira de manhã. Até agora, eu
não tinha parado para pensar que, como “namorados”, nós vamos
ficar no mesmo quarto.
Ou seja...
Na mesma cama.
28: smoothie de morango
INGREDIENTES: leite em pó, morangos congelados, hortelã.

— Relaxa — Mikael avisa, jogando os travesseiros sem


fronhas do armário na cama. — Eu fico no sofá.
Estou sentada em sua cama, de banho tomado, penteando
os meus cabelos. Ajudei na organização da casa e vi Elzira
assistindo uma novela qualquer de época — e tirando cochilos a
cada comercial, é claro. O apartamento está silencioso e eu estou
cansada da viagem. Quero muito dormir e acordar apenas amanhã.
A cama de casal de Mika é o suficiente para nós e, ainda que
eu ache essa ideia um tanto quanto pecaminosa, não há motivo
para fazê-lo dormir no sofá. Não quando sua avó está crente que
namoramos de verdade. E não quando eu quero sua companhia. A
noite de estreia, o cinema, o escritório escuro são momentos bem
frescos na minha mente.
E eu quero que ele fique.
— Sua avó fará perguntas — é o que eu digo, fingindo não
me importar. — Quer que ela desconfie de nós?
Ele ri, estremecendo os ombros, ainda de costas para mim.
— Isso tudo é seu jeitinho de me convidar para dormir com
você, Georgia? — Ele sorri, sacana, por cima dos ombros. — Não
precisa fazer tanto rodeio, só dizer que me quer por perto.
Não respondo, apenas ergo o meu nariz, admitindo
silenciosamente que não vou me comprometer com nenhuma
resposta. Ele termina de jogar todos os travesseiros possíveis em
cima da cama king-size e fecha a porta do guarda-roupa enorme
embutido na parede. Ele me encara por alguns instantes, ainda
sorrindo de maneira sugestiva, mas diz:
— Vou tomar banho — anuncia. — Se quiser, pode dormir.
Prometo não fazer nenhum barulho. Tô morto da viagem... —
informa, ficando de pé à minha frente. Ótimo. Ainda nada sobre o
beijo. Então, Mika coloca a mão na cintura, prestes a aprontar
alguma coisa. — Quem é a sua última pessoa favorita? — quer
saber, trazendo nossa mais nova tradição para fora.
Sorrio.
— Elzira — profiro, mostrando meus dentes em um sorriso
perspicaz. — Quem mais seria?
Mika revira os olhos, mesmo sorrindo.
Me arrasto de costas na cama, até encontrar sua cabeceira e
eu me encostar nela. Meu pijama é curto — mais até do que me
lembro — e sei que seus olhos estão nas minhas pernas. Mas
desvia, buscando por uma toalha limpa e seca.
No móvel ao lado da cama, onde há um abajur apoiado,
consigo avistar mais um porta-retrato. É a Desvio inteira, abraçada.
E Amanda está na imagem, colada a Pedro, enquanto todos riem
para quem tira a foto. É uma ótima fotografia e me estico para pegá-
la. Mika é o centro dela, muito alegre. Pela forma que seu cabelo
está um pouco contido, julgo que seja uma memória antiga. Penso
em irritá-lo, mas ele já se trancou no banheiro — porque consigo
ouvir o chuveiro ligado daqui.
Aproveito sua ausência para começar a mexer em suas fotos.
Há fotos com fãs, com sua empresária, Lola Santos, que
descubro por um acaso que, na verdade, se chama Heloisa Santos.
Além do armário, que apenas contém roupas de camas e
cobertores, Mika tem um closet. Abro-o sem qualquer cerimônia,
ainda segurando o primeiro porta-retrato entre meus dedos.
Ele tem uma coleção de tênis e sapatos sociais, além de
jaquetas grafitadas que são realmente bonitas. Há um móvel
dedicado apenas para as joias, com um vidro de proteção que te
permite ter uma ideia do que há dentro, sem precisar abri-lo. O que
é ótimo.
Obrigada, Mikael, quero uma idêntica quando arranjar uma
casa.
Repasso meus dedos em suas jaquetas caras, brincando
com os paetês de outras peças. Dedilho suas camisetas largas e
folgadas, apreciando cada uma delas.
Moda. Ele também é antenado nela.
Sua coleção de delineador, no entanto, me faz ficar com uma
inveja genuína. Há cores e marcas impressionantes, e penso em
confiscar alguns.
— Ninguém te disse que é muito mal educado mexer nas
coisas dos outros? — Sua voz me cerca, atrás de mim. E não
preciso virar meu corpo para saber que ele está parado na porta do
closet. E nem que deve estar seminu. Mika e eu somos legítimos
provocadores, e quando queremos algo, não gostamos de assumir
primeiro. Um jogo de caça sempre é a melhor pedida. — Perdeu
alguma coisa aí?
— Não, só fiquei curiosa. — Subo meus ombros, enrolando
uma fita de cetim entre os dedos. É de um vestido. — Você sabe
que sou curiosa.
— Sei?
— Deveria saber, então.
Quando me viro, lentamente, quase sorrio, porque Mika está
com a toalha envolta da cintura, com as gotículas ainda quentes de
água deslizando sutilmente por seu corpo quase inteiramente
tatuado.
— Não peguei nada. — Mostro minhas mãos, ainda
segurando o quadro. — Mas sua coleção de delineador me atiça.
— Pegue o que quiser — define.
Ele caminha na minha direção, sacudindo os cabelos com os
dedos infiltrados nos fios úmidos. Mika se firma à minha frente, com
um sorriso mínimo brindando os lábios bonitos. Ele levanta o braço
e pega uma camiseta atrás de mim, colocando-a apoiada no ombro.
Pisca, malicioso, e me dá as costas.
Decido finalizar meu passeio por seu closet, saindo de perto
de suas roupas e fechando a porta. Devolvo a imagem para seu
devido lugar e decido me deitar, no lado da cama que fica bem perto
da janela. O cantor está seco agora, vestindo a camiseta às pressas
e ligando a TV — “Não durmo sem nada ligado”, é o que me diz.
Apaga a luz e o único foco iluminado vem da tela.
Me deito de costas para ele, sentindo seu peso afundar uma
parte do colchão, e o ouço suspirar.
Ele não parece estar assistindo nada, porque as vozes da
televisão estão baixas — e não fazem quase nenhum sentido.
— Sua avó é legal — puxo assunto, brincando com uma
parte do lençol.
— Aham — murmura. E agora consigo entender a dimensão
de onde ele está. É bem perto de mim. — Quer um cobertor só seu?
Ou podemos dividir?
— Podemos dividir — decido, sem pensar. — Você acha que
ela gostou de mim?
— Tenho certeza que nenhuma outra namorada terá chance
agora — brinca, me fazendo rir automaticamente.
Mika se cobre com o cobertor, passando-o por cima do meu
corpo. Me afundo ainda mais no travesseiro e me viro de frente para
ele, me ajeitando. Seu rosto está virado para o teto, suavemente.
Uma mão descansa na sua barriga e ele está sorrindo, por algum
motivo.
— Por que eu sinto que você está me observando? —
pergunta, baixo. — Ou é isso, ou serei morto. Qual das alternativas
é a certa?
— Ninguém pode saber... — sussurro. Ele abre a boca para
responder, mas eu o interrompo antes de dizer alguma asneira: —
Posso te pedir uma coisa?
Apoio meu rosto na mão, ficando de lado.
Mika se agita, ranzinza.
— Não vou te pegar água, já estou confortável aqui... —
avisa. — Mas pode. O que é?
— Quero que me beije.
Não me importo se vou “perder” alguma coisa, ou se acabei
de estragar nosso joguinho. Estou com tesão, estamos na mesma
cama, trancados, a muitos quilômetros de Madre Rita, reclusos em
um lugar muito confortável. Eu quero e vou beijar Mikael Devante.
— O quê? — Ele abre os olhos, os arregalando. — Tem
certeza? Porque eu também quero, e se for uma brincadeira, eu vou
chorar por cinco dias!
— Não é brincadeira. — Espalmo minha mão no seu peito,
subindo em seu colo, sem lhe dar qualquer outra chance. — Só
preciso saber se quer me beijar também.
— Essas coisas não precisa nem perguntar, Georgia. Não
para mim.
Mika pousa suas mãos na minha cintura, cada uma de um
lado. Uma delas sobe pelas minhas costas, me forçando para baixo.
Coloco meus cabelos para trás e me curvo na sua direção e...
— Mika! — Elzira grita do outro lado da porta.
Meus lábios congelam no meio do caminho e caio para trás,
segurando minha boca para não rir alto. Porque Mikael,
definitivamente, não parece estar achando nada engraçado.
— Oi, vó?! — berra de volta, apertando as mãos.
— Me ensina a passar um vídeo do Tiktok pra uma amiga
minha. Ela precisa ver isso! — E Dona Elzira desata a rir de um
barulho não muito padrão, o que denuncia o vídeo de humor.
— Tô indo... — avisa, revirando os olhos, mas se erguendo.
— Fica aí! — Ele me pede. — É coisa rápida, quando eu voltar, você
será minha!
Ele consegue me roubar um selinho, penteia os cabelos com
os dedos e sai do quarto, fechando a porta ao sair.
Continuo jogada na cama, rindo comigo mesma e me
sentindo como uma garota muito boba dentro de um roteiro, que
gosta de rir atoa e que anda flertando com o cara mais legal do
filme. Mas não quero pensar em nada, apenas em sua volta.
Permaneço na mesma posição esperando Mika retornar e,
quando volta, ele ainda está falando aos berros com a avó.
— Sim, vó. É só enviar para a Neide, apertando nesse botão,
ela vai receber na hora... É sério! Acredita em mim! Não tem
dificuldade! — Metade de seu corpo está dentro do quarto, enquanto
o rosto está para fora. — Ok, boa noite! — diz, entrando.
E, dessa vez, ao contrário da primeira, ele nos tranca.
Mikael se aproxima de mim, cobrindo meu corpo com o seu e
me aprisionando por entre seus braços. Nós sorrimos um para o
outro e não tem qualquer resquício de conversa, porque finalmente
nos beijamos.
É parecido com a primeira vez, me enche de ansiedade na
boca do estômago, causando cócegas e me fazendo rir a cada
virada de cabeça. Mas o ritmo não demora a se tornar explorador e
intenso, até eu me sentir quente e pulsante. Nossas bocas se
tornam preguiçosamente sensuais, e não quero que nos
desgrudemos tão rápido. Aliso seu peito e seus ombros, adorando a
sensação que é senti-lo tão de perto.
O aroma do sabonete ainda está presente na sua pele,
deixando tudo ainda mais confortável. Mikael me abraça, fazendo
com que as minhas pernas o enlacem pela cintura, dando um fecho
em seu quadril. Ele oscila ao meu toque, às minhas investidas e ao
sentir meus dedos nada tímidos brincarem em seus pontos fracos
no peitoral.
Seus beijos descem pela cavidade do meu pescoço,
encontrando o vale perfeito para distribuir pequenos chupões e
mordidas certeiras. Sorrio nervosamente, engrenhando minha mão
em seus fios bagunçados, que vivem desfiados e em sua nata
desordem. Com o conforto dos beijos descendo pelo pescoço,
chegando ao meu busto, decido tomar um pouco de controle. Uso a
força das minhas pernas para virá-lo de costas na cama e me sento
em seu colo.
Ele sorri, aprovando a atitude, e aperta minha cintura, depois
a minha coxa e, por último, sem retirar os olhos de mim, comprime a
minha bunda, mantendo seus olhos muito fixos nos meus. Ele não
quer perder nenhum segundo do nosso contato e aprecia cada
reação estratosférica que ofereço.
Me inclino, fazendo sua cabeça tombar no colchão, e
presenteio seu pescoço com os meus beijos. Mikael reage com
força a cada vez que a minha pele aflora a sua, provando que
realmente algo mudou entre nós.
Arranho fracamente sua barriga, encontrando um caminho
por debaixo da camiseta para os meus dedos ficarem. Gemo
baixinho, com a cabeça enfiada em seu pescoço pela sensação
maravilhosa de senti-lo estremecer e endurecer bem abaixo de mim.
Seguro seus cabelos com força, voltando a beijá-lo sem mais
nenhuma outra pausa.
Ele me afasta apenas um pouco, sem desgrudar sua boca da
minha, para começar a retirar sua camiseta. Me distancio apenas o
suficiente para a peça passar por seus ombros e ele me trazer para
perto, com um baque colossal de corpos.
Solto um grunhido pequeno, assustada pela força, e Mika
lidera um sorriso, beijando a ponta do meu nariz. Arranho seus
ombros e costas, levemente. Apenas para sua pele se arrepiar e
não para deixar marcas. Sua reação é escorregar sua mão por
baixo da minha camiseta dessa vez. E, com um sinal positivo,
informo que ele pode tirá-la.
Geralmente, durmo sem sutiã ou qualquer top que não me
deixe sufocada durante a noite, então, quando a peça cai no chão,
ao lado da sua, meus seios estão livres.
Abrupto, Mikael fica sem reação. É quando nos damos conta
do que estamos fazendo. Dando uns amassos, na sua cama, em
São Paulo, sem qualquer chance de pararmos agora. Não quero
interrupções e não quero que ele pense que estou arrependida.
Busco sua mão, encontrando-a na minha cintura, e a levo para o
meu seio direito, deixando que ele o pegue.
Ele aperta os lábios, adorando a sensação ao separá-los
depois, entreabrindo a boca, me convidando para beijá-lo
novamente. É o que eu faço, esfregando meus seios em sua pele,
sentindo-os enrijecer. Solto um pequeno choramingo sôfrego em
seu ouvido, porque não quero dar um show, quero que ele e apenas
ele, me escute.
Ele me solta por um instante, levando as duas mãos a cada
seio meu. Brincando e estimulando. Meus peitos são médios e
cabem em sua mão, deixando alguns centímetros sobrando. Abaixo
minha mão, apertando seu pau duro, descaradamente. Mikael arfa,
segurando-se para não grunhir alto. Um sorriso surpreso lhe atinge,
logo o tomando por destreza.
— Porra... — elucida. — Cacete.
— Faz quanto tempo que você não... — Não termino a frase,
porque ele suga e mordisca o meu lábio.
— Faz muito tempo que não fodo ninguém — fala, extasiado.
— Tempo pra caralho... E eu quero você.
Sorrio, rebolando um pouco em cima dele.
Mika umedece os lábios e afunda o rosto no vale do meu
busto, buscando o primeiro mamilo para se deliciar. Afundo a minha
virilha na sua, esfregando a minha cavidade inchada na sua. Ele
está muito duro e vibrante. Não nos vejo parando.
Fecho meus olhos, apenas curtindo e admirando toda a
sensação que banha meu corpo com sensibilidade. Uma de suas
mãos desce, invadindo meus shorts estilo pijama pela parte das
pernas. Ele me segura pelo pescoço, afiando seus dedos ao redor
da minha traqueia. Ele sussurra alguma coisa no meu ouvido direito
e preciso rir, colando nossas testas.
— O que foi? — questiona, risonho. — Disse algo errado?
— Não — tremo ao rir. — Eu não escuto mais sussurros. Não
no ouvido direito. É meio estranho, eu sei... Mas eu não ouvi nada
do que você disse!
Mika explode em rir, abaixando o rosto e me trazendo para
perto, agora, se aconchegando na orelha certa. A esquerda.
— Sendo assim... Eu repito, sem problema, amora mio —
sopra. — Quero muito te chupar, Georgia — assume, rouco de
prazer.
Sorrio ao morder meus lábios.
Mikael me segura, me retirando de seu colo e o colocando de
lado, o suficiente para precisar engatinhar em cima de mim. Sua
calça do pijama parece sofrida ao ponto de se tornar
insuportavelmente apertada na região do pau. Ele tem uma abertura
em V abaixo do umbigo, me convidando para despi-lo totalmente.
Mas Mika retira minha mão de perto de sua pele, beijando a
minha boca, depois minha garganta, meu pescoço e o vale entre os
meus seios. Distribui beijos na minha barriga, fazendo-me apoiar
nos cotovelos para enxergar o que ele está fazendo.
Seus dedos se enroscam no elástico do meu shorts e ele o
puxa, levando-o com a minha calcinha.
Estou totalmente pelada na sua frente, sem qualquer reação.
Se me contassem que estaria prestes a transar com Mikael Devante
eu iria rir tão alto, que a pessoa ficaria com vergonha de ter dito uma
asneira como essa. E, agora, olha onde estou.
Infelizmente, Mika ainda está de roupa.
Mikael se ajeita entre as minhas pernas, sorrindo
vitoriosamente, com a soberba fazendo seus orbes brilharem de
superioridade.
Antes de fazer o que realmente queremos, Mikael beija o
interior da minha coxa até, enfim, preencher sua língua por entre
meu centro. Me remexo um pouco, encontrando uma posição
perfeita para aproveitar todo esse momento. Fecho e aperto os
meus olhos, quase ouvindo quando todo o meu corpo relaxa,
afrouxando-se da tensão.
Sua língua e seus lábios fazem um ótimo trabalho em me
sugar, delineando o meu gosto úmido e afogando-se em todo o
prazer que estamos dividindo. Seus dedos trabalham na área que
lateja e formiga, estimulando meu clitóris. Com o polegar, ele
mantém o ritmo preguiçoso, com a língua, ele faz questão de manter
o meu sabor bem fresco para sua total degustação.
Abro meus olhos, segurando seus cabelos por entre meus
dedos e os firmando ao enroscar os fios nas minhas unhas.
Seus olhos me encontram, banhados em um objetivo muito
firme.
Eles o denunciam na mesma medida.
Quantas vezes ele quis fazer isso? Quantas vezes perdemos
tempo brigando? Deveríamos ter investido em sexo. É o máximo de
tempo que passamos sem brigar ou discutir.
Mas eu quero que continuemos nesse jogo absurdo de gato e
rato, porque isso me anima. E me atiça, porque não quero que
Mikael passe a concordar comigo o tempo todo. Na realidade, o
quero de muitas formas e espero que ele também me queira.
Posso morder a minha língua e rir de mim mesma.
Quero gemer, mas não quero que Elzira escute. Não quero
que ninguém ouça a não ser ele.
Guardo na lembrança que precisamos reprimir nossos
espasmos de prazer, porque quero um momento totalmente a sós
com Mika.
A sós de verdade.
29: charlotte de frutas
INGREDIENTES: biscoito champanhe, bolo de baunilha, leite condensado,
gemas, amido de milho, raspas de limão, leite, chantilly, suco de laranja, gelatina
incolor, água, morango, melão, limão, manga, kiwi.

#SAMPAILOVEYOU!
Alerta de flagrante!
Olha só quem estava a passeio pela capital paulistana? Isso
mesmo! Nosso casal!
Georgia e Mikael provaram mais uma vez que andam em
sintonia e que são responsáveis pelos nossos suspiros diários!

São Paulo me acolheu de novo, como se dissesse que estava


com saudade de mim.
Isso significa que eu comi cachorro-quente com muito purê de
batata, diretamente da Praça Sílvio Romero, que tomei sorvete em
uma praça na Vila Carrão e que comi, finalmente, uma pizza com
tudo o que eu tinha direito. Conheci a casa da Dona Elzira e ainda
peguei sua receita de brigadeiro com rum. Apenas para me certificar
e, quem sabe, fazer para Allura ou as outras pessoas ao meu redor
— como Mika.
Nadei na piscina de seu condomínio e atendi todos os fãs que
nos reconheceram nos shoppings. Andamos de mãos dadas e
dividimos um milkshake. Compramos livros e revistas, e ainda fomos
ao cinema apenas para curtir aquele último final de semana antes da
folga terminar.
Conheci o Estevan, o namorado de Dona Elzira, que é porteiro
na igreja onde ela joga bingo todos os domingos. Ele fez churrasco
para mim e me deixou pegar todas as carnes tostadas primeiro.
Apenas dois dias fora de Madre Rita, pareceram cinco.
E, claro, acordei e dormi por entre os lençóis de Mikael nas
últimas quarenta e oito horas. Nós fomos ótimos nos beijando e nos
chupando, e precisei me controlar por muito pouco, para não arrastá-
lo em qualquer lugar para não prolongarmos o tesão acumulado. Nós
não conversamos muito bem sobre o que está acontecendo, apenas
ressaltamos que estamos nos divertimos, que somos ótimos em sexo
oral e que não queremos que ninguém se intrometa na nossa
dinâmica. Ou seja, contar para nossos amigos — os declarados
Esquadrão do Namoro Falso — está completamente fora de
cogitação.
— Não precisa me levar até aqui — falo, colocando as minhas
mãos para trás, terminando de acomodar a minha mala e a minha
mochila na soleira da porta.
— Faço questão — Mika comenta, dando uma boa olhada no
corredor vazio. — Será que vai me convidar para entrar? — Seus
olhos intensificam o convite de que ele quer ficar perto de mim.
Como sua avó esteve sempre no quarto ao lado, não tive
coragem e nem consegui me concentrar em fazer qualquer outra
coisa. Nós transamos, fizemos sexo oral. Mas não fizemos
penetração e nem ficamos pelados totalmente um na frente do outro.
Sempre que eu pensava na possibilidade de cavalgar em Mikael, sua
avó sempre tinha uma pergunta bastante inusitada — e importante
— sobre vídeos. E como poderia fazer para enviar para suas amigas.
Então estamos um pouco reprimidos. Desejamos dar um
passo adiante, especialmente porque não paro de pensar em senti-
lo.
Não respondo Mika diretamente, porque destranco a porta
sem deixar de olhá-lo e a empurro para longe, enroscando meus
dedos em sua camiseta e o trazendo para perto. Mika me enlaça em
seus braços e eu pulo no seu colo, contornando e prendendo minhas
pernas ao redor do seu tronco. Estou um pouco mole pelo voo, a
pressão no meu ouvido está mais alta do que pensei que estaria,
mas amassos não é algo que vou recusar. Não quando passamos
todo o final de semana soltando risos doces e mãos bobas por
debaixo de qualquer mesa.
Ele fecha a porta com sua perna, jogando nossas bagagens
para qualquer lado no hall de entrada, com a boca selada na minha.
Línguas e dentes trilhando uma dança geniosa de poder e desejo,
mãos e braços se reconectando e vibrando finalmente uma
privacidade esperada. Não pensei muito na possibilidade de Ivy ou
Allura estarem por perto, mas só de ouvir o silêncio de uma das
coberturas do Hotel Prudência, tenho certeza de que estamos
sozinhos.
— Está tudo bem? — Mika nos interrompe, segurando meu
queixo para encontrar os meus olhos. — No voo você ficou tensa.
Está tudo bem?
— Sim — respondo, um pouco ofegante, ajustando meus
braços ao redor de seu pescoço. — Estou, sim. — Faço uma pausa
para tentar entender o meu corpo. Não terei uma crise de vertigem,
mas é bom ficar atenta. — Obrigada por perguntar.
— Não se acostume com isso... — Ele passa a ponta de seu
nariz por minha bochecha. — Pergunto apenas porque não quero
que nada dê errado com a minha namorada de mentira. — A
provocação me faz rolar as íris. — Outra coisa, tiramos muitas fotos
esse final de semana... — Suas mãos amaciam as minhas costas,
ainda me segurando em seu colo. — Vamos postar algumas?
— Não foram momentos de mentira, foram momentos de
verdade — rebato, quase a mesma coisa que ele me disse certa vez.
— Mas uma ou outra eles merecem ver. Já que somos o casal mais
vigiado do país.
Não tivemos tranquilidade quanto a nossa privacidade. O que,
por um lado, foi bom. Isso fez com que os boatos de que somos uma
farsa morressem de uma vez por todas.
— É... — Hesita, ganhando um sorriso de soslaio. — Só
espero que ninguém vigie o que está prestes a acontecer agora. Ou
vigie — opina, descarado. — Não me importo.
Ele me segura pela nuca, beijando a minha bochecha
esquerda, antes de traçar o caminho até minha boca com sua língua.
Arfo, tombando a minha cabeça para trás e dando pequenos tapas
em seus ombros. Indico que quero ir até o meu quarto e tiro sua
camiseta já na metade da escada. Jogo-a pelo degrau, sem qualquer
pudor. No segundo andar, Mika me coloca sentada no gradil da
escada, retirando a minha blusa, deixando-a cair aos nossos pés.
Ele morde e umedece os lábios, distribuindo carícias na minha
bochecha ao apreciar o meu sutiã de renda preta.
Sei que gostou porque seus olhos são tomados por um
interesse cativante, que é rapidamente investido na minha boca — e
em suas mãos. Ele me segura pelas pernas, me sustentando pela
minha bunda, sempre apertando a carne com muito gosto. Me leva
para o meu quarto, desviando de móveis e esbarrando nas paredes.
Abro a porta, apenas espiando com um olho se Allura está.
E não está.
A cama está organizada, a TV desligada, os meus pertences
em ordem e a cobertura inteira está mergulhada em um silêncio
avassalador.
Apenas encosto a porta quando passamos por ela, porque
sou jogada na cama antes mesmo de pensar em trancá-la. Esqueço
de qualquer outra regra de privacidade quando Mikael está
começando a retirar sua calça e decido me desfazer do meu sutiã,
liberando meus peitos, que já estão pesados de tesão.
Dou adeus aos meus sapatos, calça e calcinha, e sento-me no
meio da cama, esperando por ele.
No final de semana não tive a oportunidade de vê-lo sem
roupa totalmente, mas agora tenho e me delicio com a imagem. O
pau demarcado, com veias torneadas, que me fez salivar. A glande
lubrificada naturalmente, o cós marcado em V no caminho para
virilha, as poucas, mas intensas, tatuagens. Sua mandíbula com uma
precisão forte e desenhada, acompanhada dos cabelos engenhosos
e da cicatriz áspera.
— Você é linda. — Ele caminha na minha direção, parando na
beirada da cama. — Linda pra caralho, Georgia.
— Me diz isso aqui... — aponto para o meu lado na cama. —
Por favor — suplico baixo, fazendo-o estremecer.
Mikael avança sobre mim e sinto que posso montar nele a
qualquer momento, seguro o seu rosto com força. Ele me abraça
com precisão, me deitando na cama arrumada e começando a nossa
deliciosa desordem. Seu corpo encobre o meu e deixo meu pescoço
liberado para que seus beijos sejam depositados ali.
Meu coração acelera com violência quando ouço um baque
vindo da porta principal da cobertura e posso jurar que a força foi
tanta, que fez todo o prédio tremer.
— Georgia? — Allura grita, lá de baixo. — Você já chegou?
Seguro o peito do cantor, parando todos os nossos
movimentos, em alerta. Arregalo os olhos, enquanto Mikael afunda
seu rosto no meu busto, soltando um palavrão.
Será que uma pessoa não pode ter sossego?
Eu só quero transar em paz!
Não é um crime.
Contudo, os passos de Allura me fazem reagir de imediato,
empurrando Mika para qualquer esconderijo. Não queremos palpites,
nem comemorações. Por enquanto é apenas sexo e diversão. E
nossos amigos são as últimas pessoas que entenderiam isso.
Reparo que digo “Nossos amigos”, e percebo como é bom
fazer parte de um grupo.
Enfim, não é hora para isso. Sacudo seus braços, apontando
para o guarda-roupa.
— Como assim? — Mika recolhe seus sapatos e roupas às
pressas, pelado e desesperado. — Não posso entrar no seu armário!
— Banheiro? — sugiro.
— Clichê! — brada.
— Debaixo da cama?
— Apenas amantes fazem isso... É bem novela das nove!
— Adivinha... — Forço seus ombros para ele se ajoelhar. —
Somos atores de novela. Se enfia aí debaixo dessa cama e não dá
nenhum pio!
Ele grunhe, raivoso, mas vira o corpo todo para o vão que há
abaixo da cama. Não resta nada no quarto, a não ser as minhas
roupas jogadas. Há uma camiseta de Mika descartada na escada,
mas com sorte, Allura não vai notar — com sorte.
— Voltei! — grito de volta, já sabendo que ela está vindo para
o meu quarto. Levo um momento para segurar a risada e me agito
para buscar uma toalha e me enrolar, para fingir que estava quase
entrando no banho. Prendo meu cabelo em um rabo de cavalo e
espero pela entrada de Alli. — Oi!
Mas não é nada como eu esperava.
Allura está com os olhos inchados e avermelhados, sua
bochecha úmida frisa que ela andou chorando. Despenco os meus
ombros, surpresa pela recepção. Eu esperava que ela falasse
alguma coisa sobre as malas de Mika na entrada e até a camiseta,
não fomos as melhores pessoas nos escondendo. Pensei que ela iria
me abraçar e se jogar no meu colo, e então eu até tentaria fazer
minha amiga voltar outra hora, mas sua expressão melancólica é
eficaz em me fazer sentir mal.
— Allura... — discorro baixo. — O que foi?
— Estou triste. — Ela me abraça sem qualquer hesitação.
Afunda o rosto no meu ombro e respira fundo. — Ainda bem que
voltou!
— Mas o que foi? — Afago suas costas, aflita.
— Gael me pediu em namoro.
— E isso é ruim?
— É, de certa forma. — Ela funga. Minha amiga se afasta de
mim e inspira. Me segura pelos ombros e analiso as gotículas de
água se formando em seus olhos — É bem ruim, porque não consigo
amar o Gael da forma que ele quer.
A frase faz bem mais sentido na minha cabeça.
Nos últimos tempos, eles vieram se divertindo todos os dias,
saíam e agiam feito um casal. Mesmo que Allura me prometesse que
ambos estavam na mesma página, senti que Gael queria dar um
passo a mais quando me encontrou na festa oferecida pela Família
Farol. Sabia que alguma coisa estava acontecendo, só não
conseguia entender o quê.
Não ser correspondido é péssimo e decepcionante, mas não
sentir o mesmo por uma pessoa que nos ama é um pouco
desesperador. Nos sentimos perdidos, confusos e solitários. E
ficamos nos perguntando qual é o nosso problema.
— Ah, Alli. — Abraço-a com muito mais força. — Quer
desabafar? Me contar tudo?
— É, Alli, quer desabafar? — Mikael coloca a cabeça para
fora do vão da cama, pregando um susto na minha melhor amiga,
que pula alguns passos para trás. — Desculpa! Eu não queria
interromper, mas acabei ouvindo... Não tem muita coisa para se fazer
debaixo de uma cama!
— Que porra é essa?! — Allura troveja, segurando o peito ao
digerir o susto. Ela se apoia na parede mais próxima. — Que merda
você está fazendo aí, Mika?
— Me escondendo... — responde, como se fosse bastante
lógico. — De você.
Massageio as minhas têmporas.
Ótimo. Legal. Maravilha.
Minha melhor amiga está chorando e tem um otário, pelado,
escondido debaixo da cama que não conseguiu ficar quieto.
É muita coisa para processar.
Mikael se arrasta pelo carpete, ficando em pé. Ele ainda está
nu, mas seu pau já está mole. Allura sequer se importa com a nudez
do cantor, apenas me encara com a boca enrugada, tentando
entender. E, quando a compreensão traça o seu rosto, ela abre um
sorriso enorme — mesmo úmido pelas lágrimas.
— Vocês estão fodendo! — acusa, esbugalhando os olhos
estreitos.
— Estamos tentando — Mikael corrige, vestindo a cueca
casualmente. Eu espero que ele vista mais alguma coisa, mas
apenas se senta na beirada da cama e se apoia com as mãos para
trás. — Foi um final de semana interessante, Allura. Vocês estariam
orgulhosos de nós...
— Georgia? — Ela olha para mim, totalmente convencida. —
Tem alguma coisa para me dizer? — Alli cruza os braços, cínica e
mesquinha. — Achei que nunca fosse beijar ou ficar com o Mika.
O babaca ri de se acabar, colocando a mão na barriga.
— Essa aí não resiste a mim — debocha. — Da mesma forma
que eu não resisto a ela.
Respiro fundo.
— Pode guardar segredo? — interrogo-a, juntando as minhas
mãos em forma de súplica. — Ainda é... Novo.
— E não queremos pitaco de ninguém — Mika resume. —
Inclusive o seu.
Combinamos de manter em segredo até conseguirmos
entender exatamente o que queremos — além de sexo sem
compromisso. O que é bastante peculiar da nossa parte, porque o
Brasil todo sabe que somos um casal, não é como se estivéssemos
escondendo algo de verdade.
— Relaxa — Allura promete, mostrando a palma da sua mão.
— Quero distância de relacionamentos, e acompanhar o de vocês
me dará muita glicose.
— Não estamos juntos! — Mika e eu declaramos em
uníssono.
Allura ri, fracamente. É bom vê-la rir genuinamente, porque
sua entrada me assustou. Contudo, ela começa a se sentir triste
novamente e Mika pigarreia, desconfortável e sem jeito.
— Eu vou deixar vocês duas sozinhas. O Gael deve estar
precisando de mim... — Ele termina de recolher suas roupas com
calma. Ainda de roupa íntima, ele se vira para Alli. — Ainda somos
todos amigos, Allura. Não se preocupe.
— O-Obrigada, Mika. — Ela funga, triste.
— Até, amora mio — diz para mim, acenando com dois dedos.
— Tchau — murmuro, vendo-o ir.
Arrumo a toalha ao redor do meu corpo e tento sorrir para
Allura.
— Como você está? — quero saber, paciente.
— Não quis atrapalhar. — Ela aponta para a porta.
— Não se preocupe, nós moramos no mesmo hotel, qualquer
hora ele vai aparecer aqui — a tranquilizo, me aproximando dela. —
Quer me contar o que houve? — Com a questão, ela assente, quieta.
— Quer que eu faça sua sobremesa favorita? Estou com saudade de
fazer pavê de paçoca. E você ama!
Allura abre um sorriso tão doce que fico feliz em estar aqui.

A travessa de pavê de paçoca está pela metade no meio da


cama. Estamos usando pijamas quentinhos enquanto fofocamos
sobre o meu final de semana. Ela ainda não quis se abrir totalmente
sobre Gael, então, o que me resta é respeitar e esperar o seu tempo.
Apenas quando ela termina de comer e se deita de frente para
mim, sinto que começará a falar.
— Obrigada, essa sobremesa é muito gostosa — elogia,
brincando com as unhas longas estilo Élia.
— Adoro cozinhar — relembro. — Principalmente para você.
Allura se vira na cama, deitando de barriga para cima,
inquieta.
— O Gael é tão legal — anuncia.
— Eu sei.
— Ele me levou para a praia ontem à tarde... — começa
dizendo. — De Concha Amarela, lembra? Que fizemos aquele
trabalho voluntário? — questiona, e eu confirmo com o rosto. —
Então, ele queria que fosse um pedido especial, e eu sabia que
alguma coisa ia acontecer assim que cheguei lá. Ele me fez uma
música, Gê! — choraminga, sentindo vontade de derramar mais
algumas lágrimas. — Eu fiquei feliz, fiquei animada, mas não senti o
amor. Não o amor que ele quer.
“E eu me sinto tão mal com isso, porque não consigo
corresponder. E eu tentei!
“Quando eu percebi que o Gael queria mais do que eu poderia
oferecer, fiquei sem reação. É claro que eu quero ser amada, é claro
que eu quero que uma pessoa me celebre todos os dias e não
corresponder isso é tão... Frustrante. Não é isso o que todo mundo
quer? Uma pessoa que preste atenção em você, que repare nos
mínimos detalhes, que te leve para o mesmo lugar em que se
conheceram e flertaram pela primeira vez? Que escreva uma música
sobre seus olhos, mesmo que existam outros mil iguais.
“E eu pensei em aceitar o pedido, apenas para me forçar a
sentir algo.
“Eu o amo. Gael é incrível, me faz rir, me faz chorar com suas
canções perfeitas, faz eu me sentir viva e alegre. Mas somos ótimos
como amigos. E é assim que eu o amo, como um grande e
verdadeiro amigo. A forma como me sinto me decepciona, e acho
que me odeio.
“Porque as pessoas reclamam que querem alguém e, quando
algo incrível acontece comigo, quando um cara sensacional aparece,
eu simplesmente digo ‘não’?
“Não tenho coragem de contar para mais ninguém, tenho
medo de falarem que vou morrer sozinha, que não mereço nada.
Com certeza falariam; “É por isso que ficam solteiras, quando
aparece alguém decente, vocês dão o fora nele!” Não quero ser vista
como interesseira, porque não sou. Não quero que me acusem de
nada, porque se eu pudesse, eu amaria Gael Soares do mesmo jeito
que ele me ama.
“Eu queria ser como você, que está completamente resolvida.
“Você não se importa se passará a vida inteira sozinha.”
Faço carinho nos cabelos cacheados de Allura com muito
cuidado, para não os embaraçar ou fazer nós acidentais. A trago
para perto, abraçando-a e fazendo uma conchinha com a minha
melhor amiga.
— Não tem problema querer ou desejar uma companhia,
Allura — informo. — Eu apenas não me importo porque todos esses
anos foram solitários para mim. Minha adolescência não foi muito
comum, porque ela foi assistida por inúmeras pessoas, que me
ofereciam opiniões e ofensas sem antes eu perguntar. Quando eu
digo que quero ficar sozinha, é porque prezo por mim. Quero
conhecer uma Georgia não-famosa e me surpreender com o que irei
descobrir, mas... — Faço graça com a sua bochecha. — Querer uma
companhia não te faz menos resolvida. O ponto é, não colocar toda a
sua felicidade nas mãos dessa única pessoa.
— Faz mais sentido você falando, não muito para mim.
— Eu sei, porque não é fácil decidir e reconhecer isso.
— Não mesmo. Você faz parecer fácil... — resmunga, sincera.
— Eu só... Não me sinto apaixonada. Eu estava encantada por ele...
mas… Eu quero me casar, Georgia. Mas... Quando eu recusei o
pedido de Gael, eu ouvi dentro da minha cabeça como se estivesse
sendo julgada, não por ele. Pelas pessoas.
— Então, você nunca mais vai fazer nada na sua vida.
— O quê?
— A gente se desdobra para agradar pessoas invisíveis na
nossa mente, porque não queremos ser julgados, e até aquilo que
fazemos com boas intenções acaba se tornando um motivo —
explico, e ela me encara com dificuldade, com a testa franzida. —
Por exemplo, eu não queria que as pessoas falassem sobre o fato de
eu estar solteira, aceitei namorar com o Mikael e agora as pessoas
não me deixam em paz, porque adoram nosso falso envolvimento.
Percebe? No final, não adiantou de nada, porque continuo na mídia.
Mais até do que antes!
— Não importa, né? — indaga. — Qualquer merda que eu
fizer, será insuficiente — proclama. Não respondo, apenas a escuto.
Allura se afasta um pouco de mim e se senta na cama, ansiosa. —
Eu ainda não me sinto pronta para um relacionamento, Gê. Mesmo
que eu queira alguém, ainda não sinto que é a hora certa.
— Você disse ao Gael?
— Sim.
— E o que ele disse?
— Ele foi sensacional, como sempre. Me abraçou, disse que
me amava e que estará comigo sempre que eu precisar. O que foi
bem pior na minha concepção... — arfa. — Me senti ainda mais
culpada! — Ela afunda o rosto entre os dedos, resmungando ainda
mais. Sorrio um pouco. — Eu pensei que ele ia entender os sinais,
eu estava passando o tempo todo pensando na minha música...
Então, pensei que ele fosse se ligar. Mas eu errei em não ter sido
sincera, não soube lidar...
— Vocês ainda vão ser amigos?
— Sim. Eu amo o Gael e ele me quer na vida dele. Disse que
não quer que nada mude, mesmo sabendo que vai mudar alguma
coisa. — Suspira novamente. — Ainda vai me ajudar com o EP,
trabalhando com o Victor.
— É provável que você se sinta triste pelo Gael ser muito legal
do que pela situação em si.
— Como assim?
— Se fosse uma pessoa divertida, mas mediana, você entraria
por aquela porta cheia de confiança e saberia que o amor não é tão
fácil quanto as pessoas pensam. Você ficaria abatida, mas não
chorosa — argumento, entrelaçando nossos dedos. — E como o
Gael é fantástico, você se sente pressionada, porque é isso o que
todo mundo espera. — Faço uma pausa. — “Encontre uma pessoa
genial e fique com ela para sempre, sem qualquer chance de um
término.”
— Talvez... — define.
— Ele te disse algo ruim? — pergunto, vendo-a negar na
mesma hora. — Quer que eu faça mais pavê?
— Sim, por favor.
Sorrio largamente, mas Allura não me deixa levantar da cama.
— Depois — se corrige. — Só fica abraçadinha comigo, Gê —
pede, se aninhando para perto de mim. — Por favor.
Faço a conchinha novamente na minha melhor amiga, não
falando mais nada, apenas fazendo carinho em suas costas, ombro e
cabelo, até fazê-la dormir pela primeira vez no final de semana.
30: gelatina
INGREDIENTES: gelatina em pó, água quente, água gelada.

Tenho muitos anos para me acostumar com o Meniere, porque


não é como se ele fosse a algum lugar.
E digo isso apenas porque um dia ao lado da doença nunca
será como o anterior e nem com o seguinte. É, basicamente, um da
de cada vez, um passo e depois o outro, aprendendo a respeitar
meus limites e a notar todos os sinais do meu corpo. Nunca vou
entender quem encara uma doença — ainda mais uma crônica —
como uma oportunidade.
“Bom, agora você pode descansar.”
“Há males que vem para o bem!”
“Olhe pelo lado bom!”
Descansar? Para o bem? Que lado?
Não há lado, não há como entender, é uma fase tortuosa de
adaptação que vai se intensificar para sempre no meu organismo. É
capaz de eu estabelecer uma rotina hoje e ela cair por terra, por
algum fator que mudará totalmente o meu cotidiano. De novo. Não
estar no controle quanto a Síndrome é o que mais me frustra, porque
apenas tenho a ilusão de ter tudo na palma da minha mão. Quando,
na realidade, não é bem assim que funciona.
Hoje é um dia que a minha paciência está no limite, quase
zero. Acordei amarga e indiferente. Ainda mais agora que estou
atrasada para uma reunião da equipe de roteiro da novela. Estou
caminhando o mais rápido que posso pelo asfalto úmido do
estacionamento da grande emissora, revirando minha bolsa, sedenta
por uma barrinha de cereal. O meu braço está um pouco dormente,
porque estive no consultório hoje mais cedo, fazendo outros exames
de rotina para controlar a Síndrome de Meniere com mais precisão.
Nada me deixa feliz envolvendo essa merda de condição,
então sempre que preciso ir à clínica de especialização em
otorrinolaringologia, é fato que terei o pior dia da semana. Desisto de
procurar pela barrinha, me dando por convencida de que farei isso
quando entrar na sede da Farol.
À porta de acesso para a saída, uma pessoa a deixa aberta.
Identifico e reconheço os pares de olhos risonhos e cabelos grandes
imediatamente.
Gael.
Ele também me vê, sorrindo com toda a sua simpatia.
— Que cara horrorosa é essa? — zomba, segurando a porta
para mim.
— Não te contaram? — brinco, ao fingir surpresa. — Vou
estrelar um musical sobre bruxas nos contos de fadas e andei
treinando. Pareço com uma?
— Não, não parece — define, sorrindo. Subo todos os
degraus até chegar perto dele, notando seu sorriso esbelto e gentil
preencher todo o seu rosto. Ele está triste, isso é visível, mas não
inteiramente.
— Obrigada, Gael. — Abaixo a minha guarda, segurando a
porta por conta própria.
Ele faz um sinal com o queixo, sinalizando “Não tem de quê.”
— Ei — chamo, antes que ele vá embora. — Está tudo bem?
— Não quero me meter, esse assunto não diz respeito a mim, mas
me preocupo com ele. Com os dois.
Tudo é diferente para nós, pessoas públicas. Um passo em
falso, um erro, uma frase mal dita nos acompanhará pelo resto da
vida. Se Gael quer esquecer e lidar com o término com Allura, ele
terá que se manter longe das redes sociais. Porque as pessoas farão
questão de lembrá-lo de como ele era encantador e feliz ao lado da
minha amiga. As fotos pipocam quase todos os dias, porque algumas
colunas de fofocas já começaram a reparar no afastamento dos dois.
Esse interesse genuíno em como levamos nossa própria vida
é angustiante. Não sentimos que temos o direito de nada, apenas, é
claro, o direito de sermos perfeitos. A merda do tempo todo.
— Está — responde, enfiando as mãos nos bolsos traseiros.
— Hoje, sim. Amanhã não sei. Mas quero levar exatamente assim...
Apenas um dia de cada vez. — Pisca, me fazendo sorrir. — Não vai
ser o último fora que vou levar na vida, Gê. — Confirmo com o rosto,
escolhendo minha próxima frase. Não tem muito o que responder,
então Gael completa: — E vou me sentir muito melhor se você fizer
um cheesecake de frutas vermelhas para mim. — Seu charme me
conquista, me fazendo rir de verdade pela primeira vez no dia.
— Claro, Gael! — concordo, sacudindo a cabeça. — Apareça
quando quiser, que eu prometo que faço. Aliás, me ajude nos últimos
retoques do meu bistrô, que eu preparo qualquer comida que você
quiser!
— Promessa é dívida, hein! — Ele aponta para mim.
— E eu costumo pagar em dia — cantarolo, entrando na onda.
Faço-o rir, o que me deixa realmente melhor. — Agora eu tenho que
ir... Estou atrasada para a reunião. Se eu não aparecer em dois
minutos, a Ivy vai me matar. Ou como ela gosta de dizer... “Tenha
respeito pelo meu tempo, darling”.
— Beleza. — Gael aponta para frente. — Vai lá. Acabei de dar
carona para o Mika...
Ele não sugere nada, não sorri na minha direção e nem brinca
com a sonoridade do apelido do amigo. O que, a meu ver, é um bom
sinal.
— Tchau, Gael — aceno, começando a me afastar.
Quero ter mais tempo com ele.
E com Pedro.
— Até, Gê.
O sentimento que fica comigo é que eu gostaria de poder
fazer alguma coisa; tirar essa emoção árdua dele, dizer que tudo vai
ficar bem. Porém, Gael não pediu minha ajuda e falou sério quando
disse que estava tudo bem.
A faceta de ser um amigo é entender todos os sinais. A
mentira e a verdade. E precisamos mediar os dois lados da moeda
antes de agir porque, dessa vez, Gael está me pedindo para deixar
que ele resolva tudo.
Porque consegue.

Alguns núcleos da novela vão mudar.


Tramas adicionais que não conseguiram conquistar os
telespectadores sofrerão alterações. Uma delas é que eles não
querem assistir um triângulo amoroso, e não gostaram de algumas
decisões envolvendo o trio Marina, Élia e Germano. Tanto o público
quanto os roteiristas pedem que Germano e Marina se firmem logo,
sem restar qualquer dúvida sobre seus sentimentos.
O destino de Élia continuará sendo o de vilã, mas agora, estão
pensando em introduzir um personagem a mais, apenas para ser seu
par romântico. Sua nova motivação é que ela não suporta ver a
felicidade de Marina e gostará de atazanar a mocinha até o final,
custe o que custar.
Me sentei ao lado de Mikael na reunião, a única cadeira vaga
que restava. Ele sorriu na minha direção, interpretando como
sempre. Eu conseguia diferenciar algumas escalas da sua atuação,
sabendo diferenciar seus momentos reais dos falsos. Pelo menos é
bom saber que estou lidando com os verdadeiros secretamente.
— Com isso... — A diretora, Ellen, está quase finalizando a
reunião. Há um sorriso de satisfação que chega até os seus olhos,
um que demonstra todo o orgulho dela de estar participando de um
projeto tão grande quanto a novela. Ela está olhando para mim
agora, determinada. — O beijo de Marina e Germano vai ser gravado
ainda essa semana, ao que me leva, que vocês precisam participar
de uma sessão de autoconhecimento geral, porque haverá uma cena
de sexo logo em seguida.
Sim, o público está sedento por nós.
— O primeiro beijo mal aconteceu, e já estão pensando em
sexo? — pergunto, analisando o roteiro bem na minha frente.
Minha intenção é que se pareça com uma piada, mas
ninguém, a não ser Mika, sorri.
A diretora me olha com atenção, intrigada.
— Você não entendeu muito bem. — Ellen sorri, vibrando
nervosismo agora. — No primeiro beijo, já acontecerá a cena... —
responde.
— Ah — Mika intervém, desdenhoso, olhando para todas as
pessoas presentes na reunião. — Marina e Germano são
apressadinhos, hein?
Ellen o encara, rápida, mas devolve o olhar para mim.
— Mas para isso teremos uma preparadora corporal — ela
explica, séria. — E será tudo coreografado. As escalas serão
liberadas ainda hoje...
— Não tenho problema em fazer nude frontal. — Mika entona,
brincando com um lápis colorido no dedo. — Aliás, qualquer tipo de
nude para mim tá ótimo.
— A classificação da novela é de doze anos — Ellen
relembra. — Então, não.
Limpo a minha garganta com força, sustentando uma
risadinha sarcástica, mas não demonstro concordar ou discordar
com Mika. Como a classificação é baixa, aposto que será uma cena
rápida e poética à luz de velas.
— Estamos entendidos, então? — Ellen pergunta, com aquele
ar desconectado que começa a indicar que a reunião acabou. Alguns
roteiristas e preparadores de cena se agitam, recolhendo seus
roteiros. Há alguns atores também. — Destino Inteiro tem tudo para
se tornar mais um marco da Farol...
Com a algazarra e o novo falatório, não consigo entender
muito bem o que Ellen diz ao finalizar, mas ela está contente — e
cansada. O que, no nosso mundo, só “significa” satisfação. Não
parece, mas fiquei presa nesta sala por duas horas e meia, então a
minha barriga está vazia. O que não é um bom sinal, não para um
dia como este. Mika sai sem mim, me dando um tapinha amistoso e
igualmente irritante no ombro direito.
Me levanto apenas quando a maioria do pessoal já se foi,
deixando a porta principal livre.
Ivy está na sala, mas ela atende uma ligação importante,
então apenas me cumprimenta com dois beijinhos na bochecha e
desaparece, andando com muita pressa. A barrinha de cereal não foi
párea para o meu estômago, e meu corpo todo pede um almoço
reforçado.
Me afasto da mesa, pego meu mais novo roteiro, com uma
grande enxurrada de cenas românticas de Germano e Marina, enrolo
o papel e o enfio na minha bolsa. Saio da sala de reunião, me
despedindo de quem ainda decide ficar e adentro o corredor.
Algumas pessoas estão conversando, batendo papo e repassando
os conselhos de Ellen de um modo geral.
Perto do bebedouro, segurando um copo plástico, sorrindo e
flertando, está Mikael. Tem uma garota do RH segurando uma
prancheta contra o busto, ela deve ter seus vinte e poucos anos.
Seus olhinhos estão direcionados a ele, sem conseguir tirá-los do
cantor, suas costas estão retas e recostadas na parede. Ela não
consegue parar de rir e sacudir os ombros, porque está encantada. E
Mika ama esse tipo de atenção, ama flertar sem compromisso, ama
arrancar sorrisinhos sugestivos. É o seu hobby, seu passatempo
favorito.
Me aproximo dos dois, ameaçando entregar um sorriso
esbelto.
O sorriso dela se desmancha aos poucos com a minha
presença. Mika repara que alguma coisa está acontecendo e busca
encontrar o foco de atenção dela. Quando me reconhece, seu sorriso
aumenta. Ele está usando óculos hoje.
— Estou com fome — digo para ele, pegando o copo de água
de sua mão e o tomando em um gole. — E pensei que você pode me
levar para sair... Você paga! — Jogo o copinho no lixo mais próximo
e oscilo os ombros, sendo petulante.
— Boa pedida — Mika define, sem se importar com a água.
— Eu vou indo... — A garota se acanha, abraçando a
prancheta com muito mais força e sequer me dando “oi.”
Penso em cumprimentá-la por contra própria, mas seus olhos
não chegam até os meus, e qualquer possibilidade de interação
nossa é cortada sem maiores delongas.
— O que foi isso? — pergunto, fazendo uma careta ao
apontar para o lado do corredor em que ela virou.
— Uma namorada marcando território. — Mika gira nos
calcanhares, se encostando na parede. — Não foi?
Olho para os lados, checando se estamos sozinhos.
Não estamos. Ainda tem muitas pessoas ao redor, e mesmo
que estejam focados em suas próprias conversas, ainda podem
pescar qualquer informação valiosa.
— Só queria saber se poderíamos sair para comer — escolho
dizer, sem poder negar nosso envolvimento. — Só isso.
— Admita. — Mika cruza os braços com lentidão, estreitando
os olhos. — Você gosta de ser temida. É a sua diversão, gosta de
desfilar, gosta de ser reconhecida...
Meneio a cabeça.
— Estou com fome... — relembro.
Convencido, ele se desencosta da parede, mas não diz nada,
porque as últimas pessoas ao nosso redor passam por nós,
acenando e nos elogiando — como um casal e como atores.
Sozinhos, Mika esquece da piada por um momento quando encara o
meu braço direito. Ele desfaz seu sorriso, ao mesmo tempo em que
um vinco se forma no centro de sua testa.
— O que é isso? — Ele me toca na altura da dobra do braço,
bem onde um pequeno curativo em forma de círculo está.
— Tirei sangue — explico, olhando para o mesmo lugar. —
Exame de rotina. Coisa básica. Não precisa se preocupar... —
Recolho meu braço de seu toque, dando um passo para trás. — E
então? — incentivo. — Vamos? Quero o restaurante mais caro de
Madre Rita...
Passos me calam, porque eles são altos, escandalosos e são
acompanhados por uma voz estridente. Em poucos segundos,
Claudia Farol aparece, dobrando a ponta do corredor, enquanto fala
ao celular. Parece estressada e comunicativa, mas quando nos vê,
desacelera, e seu rosto se torna ainda mais firme como pedra. Fico
em alerta, repassando o que sinto pelo olhar para o cantor ao meu
lado.
Ela pede um momento para a pessoa na ligação e desliga, a
poucos centímetros de se aproximar totalmente de nós.
Os rumores de que nosso namoro é uma verdadeira mentira
esfriaram, as pessoas compartilham nossas fotos e os pedidos de
entrevistas são diários. Ivy e Lola estão pensando em aceitar alguma
coisa, apenas para acabarmos de vez com qualquer dúvida maldosa.
Especialmente a de Claudia .
— Ah, oi. — Ela sorri com grandeza. — Vocês voltaram... —
evidencia.
— Sim. — Mika esfrega a barriga. — São Paulo estava ótimo,
mas Madre Rita agora é a nossa casa.
— E vejo que a reunião acabou — emenda, curiosa. — Como
foi?
Por que ela quer saber?
Ela nunca aparece.
Nunca.
— Foi ótima! — brado, sorridente. Coloco minhas mãos para
trás e apoio minha cabeça no peito de Mika. — Você sabia que a
novela bateu muitos pontos de audiência? Somos líderes!
— Ah... — Claudia solta. — Sim, sabia...
— Não podemos colocar toda essa culpa em nós. — Mika
entra na disputa de falsidade. — Os outros atores mandaram bem
também.
Dou uma risadinha, apenas para acompanhar. Mika e eu
trocamos um olhar rápido e engenhoso.
— Vocês souberam das últimas notícias? — Claudia verifica
com muito prazer. — Sobre... Não estarem juntos?
— Não. — Mika nega com a cabeça, murchando os lábios. —
Você sabe de alguma coisa, Georgia?
— Não sei de nada. — Dou de ombros. — O que está
acontecendo, Claudia ? Pode nos dizer?
Sei que meu tom de voz é prepotente de propósito, mas não
consigo conter a minha vontade de xingar alto. Ela entende com
perfeição o que está acontecendo; como estamos sendo cínicos,
infantis e brincando com fogo. A herdeira da emissora respira fundo,
dando um passo para frente, séria.
— Estou avisando... — começa. — Seria uma pena que todos
pensassem que estamos alimentando uma farsa. Não vamos
trapacear o público...
— Desculpe... — interrompo. Ergo meu dedo, pedindo calma.
— Mas o que quer dizer com isso?
Não posso e nem quero continuar na Farol, mesmo que isso
tudo acabe em chamas e em ruínas. Não dou a mínima para a
reputação da emissora, não posso mais comer nas mãos de Claudia
. Não mesmo.
Nem dela e nem de seu irmão.
Téo, seu filho, já deve estar cooperando o bastante neste
momento.
— É... — Mika passa um braço pelos meus ombros, me
trazendo para mais perto. — O que quer dizer com isso, Claudia ?
Como poderíamos enganar o público? Eles nos conhecem há anos...
— Se somos discretos e levantamos boatos, isso quer dizer
que todos estão fascinados em falar de nós... O tempo todo. Isso não
é bom? — Subo minhas sobrancelhas, teatral.
— Reputação ruim, reputação boa. — Ele lista na mão vaga.
— Ainda é reputação! — Mika se mantém no mesmo tom.
— Se um dia terminarmos... — continuo. — Surgirão boatos
horrendos sobre nós. Não tem muito o que fazer...
— Infelizmente — ele concorda, interpretando tristeza.
— Mas sabe o que é pior do que um casal rompendo na frente
das câmeras? — indago, retoricamente. As sobrancelhas de Claudia
se anuem, porque não estamos dando espaço para que haja uma
tréplica. — Intimidação no local de trabalho — defino, analisando seu
sorriso de desdém crescer. — Minha vida pessoal só diz respeito a
mim... E ao Mikael. O público ama uma narrativa que promete revelar
segredos. Não me importaria de atiçar algumas manchetes se essas
perguntas indelicadas continuarem acontecendo.
— Georgia. — Ela se contém. — Tome cuidado.
— E eu estou tomando — assumo. — Meu relacionamento é o
que é. Somos discretos e não vamos ficar cedendo caprichos apenas
para fazer uma emissora feliz, Claudia — pontuo. — Querendo ou
não, somos uma empresa. E se essas perguntas e subordinações
continuarem, com apenas a intenção de me intimidar, me
chantagear, pode ter certeza que correrei atrás dos meus direitos
como qualquer outro funcionário — discorro, focada. Mika respira
fundo bem perto de mim, sem coragem de se intrometer. — E você
não quer que isso aconteça. Quer? — friso. — Porque eu não. Quero
sair da Farol com as melhores lembranças possíveis. — Forço um
sorriso. — Afinal, é a minha última novela.
Meu coração está muito acelerado, e se Mika me apertar
muito bem, ele conseguirá ouvi-lo, ou até mesmo senti-lo. Mas não
suporto ser colocada contra a parede, quanto mais em um assunto
que não diz respeito a ela.
E a mais ninguém.
Ela não diz nada. Seu rosto está contorcido, como se tivesse
chupado muito limão. Claudia Farol retorna à ligação no mesmo
instante, passando por nós como se fôssemos estátuas comuns
dentro de um museu qualquer.
Mika e eu esperamos que ela se vá totalmente, paralisados na
mesma posição, engolindo a vontade de rir com os lábios, quase
explodindo. Os passos dela se tornam nada e, então, nossas
gargalhadas ecoam.
— Que porra foi essa? — Ele indica a situação, gesticulando.
— Eu disse que ela estava de olho em nós. — Coloco as
minhas mãos na cintura, rindo alto. — Pelo menos agora, eu acho
que ela vai dar um tempo. Não é?
— Espero que sim. — Mika estremece o corpo, rindo sem
parar. — É — diz, ao pé do meu ouvido. — Você merece que eu
pague seu almoço. Cada centavo será muito bem aproveitado.
31: strudel
INGREDIENTES: farinha de trigo, manteiga, sal, leite, maçãs, açúcar, canela em
pó, uvas passas, limão, gemas, amêndoas, noz-moscada ralada, gengibre.

Quando eu decidi que moraria em Madre Rita por um tempo,


eu levei em consideração que a cidade litorânea estava ganhando
grande destaque, especialmente por alguns conhecidos meus
estarem adorando conhecer a cidade no início de sua ascensão.
Encontrei o calor das praias, que me apaixonei ao conhecer o Rio
de Janeiro, e a discrição de São Paulo.
Estar sentada na minha poltrona, analisando os últimos
ajustes — de verdade — sobre a construção do meu mais novo
sonho, me enche de felicidade e ansiedade. Porque, primeiro, é
bem diferente ver algo sair do papel e ganhar vida e, segundo,
porque pensei que alguma coisa fosse dar errado. Sempre dá, às
vezes.
E preciso estar preparada para quando esse tal de “errado”
chegar.
— Onde eu coloco isso? — Pedro Honduras quer saber,
segurando uma caixa de água lacrada. — Não tem mais lugar na
geladeira.
À porta do meu escritório, consigo ouvir o falatório dos meus
amigos, me ajudando a carregar algumas mercadorias que
chegaram antes da hora.
— Tem um freezer nos fundos. — Indico com a caneta que
está na minha mão.
— Ok — Pedro resmunga, contorcendo os lábios.
Volto para a minha tarefa mais do que primordial. Com a
matéria saindo na revista, a cozinha e o ambiente principal quase
prontos, cheguei em um momento que vim adiando por semanas e
meses. Um nome. O bistrô sem nome e a confeitaria sem identidade
não pode continuar. À minha frente, estou rabiscando alguns nomes
que Allura sugeriu, conjuntamente com Pedro e com Gael.
Allura sugeriu chérie, do francês “querida”, com suas demais
variantes com apelidinhos fofos. Mas não é original — e tenho
certeza que outra pessoa já está o usando. Pedro sugeriu Tiana,
como a protagonista de “A Princesa e o Sapo”, mas até agora não
sei se ele está falando sério ou não. Gael disse que seria
interessante ser um jogo de palavras que se remeta à cidade, como
Sereia Rita ou Fada Madre, mas achei brega.
Mika opinou também e pensou em “Mika’s”, então preferi
ignorá-lo também.
Meu nome é bonito, foi inspirado na letra de “Georgia”,
música de Elton John, mas é o cúmulo da falta de criatividade
colocar o meu próprio nome no meu negócio.
Então, estou dentro de um dilema, anotando qualquer palavra
que vem à minha mente e rabiscando — e quase dando pontos a
Allura, porque até agora chérie parece a melhor opção.
— Ei... — Gael aparece na porta do meu escritório, se
apoiando no batente. Ele está usando um boné vermelho do time
oficial de futevôlei de Madre Rita. — Um cara chegou aí.
Paro de ler as opções dos meus pais. Eles queriam “Mônica
Doces”, pela minha paixão na infância pelos gibis, mas não sei se
eles estão me levando a sério.
— Que cara? — pergunto, sem retirar os olhos da minha
agenda. Por que não consigo pensar em nada melhor? O lugar é
meu! — Se for um repórter, não posso atendê-lo sem falar com a Ivy
primeiro.
— Santa Madrugada! — Mika pragueja, se aproximando e
entrando no meu escritório sem ser convidado. Ele é o único que
não está ajudando com o trabalho braçal, apenas dá ordens e torce
para ser atendido. — Gael, você é o pior secretário do mundo!
Mika se aconchega perto de uma mesa vaga e cruza os
braços. Ao contrário dos melhores amigos, ele não está suado.
Tampouco, cansado.
— Cala a boca, Mikael — Gael pede, inconformado. O
segundo guitarrista vira o rosto na minha direção. — Georgia, o
Mika nem ajudando está. Só fica pra lá e pra cá enchendo a porra
do meu saco!
— É mentira dele! — Mika se agita, arregalando os olhos. —
Estou apenas auxiliando da melhor maneira que encontrei. Só isso...
Fecho lentamente os olhos, encontrando paz e serenidade.
Quando abro novamente, os dois ainda estão numa discussão
bastante imatura sobre quem ajuda quem.
— Pode me dizer quem está aí? — Encaro Mika, com
firmeza.
— O Seu Serafim! — Ele responde, enfim.
Me animo, porque qualquer tarefa é melhor do que pensar
em um nome para batizar meu bistrô. O nome tem que ser perfeito,
marcante e único, porque as pessoas lembrarão de mim quando
colocarem seus pés aqui.
— Pode pedir que ele entre? — proponho, amaciando a
minha roupa para parecer apresentável.
— Ouviu a chefia, Gael — Mika provoca o amigo. — Vá
chamar o Seu Serafim.
— Ela não pediu para mim... — Gael protesta.
— Tanto faz! — Allura fala alto, aparecendo de repente,
acompanhada com o gentil comerciante, logo atrás dela. — Ele está
aqui... Voltem logo para suas tarefas!
Mikael revira os olhos, mas se arrasta pelos pés, como se
carregasse um peso enorme nas costas.
— Eu vou! — Ele me avisa, mesmo parecendo uma ameaça.
— Não esquece que amanhã vamos sair, não atrasa...
Gesticulo com a mão, desinteressada. Sei perfeitamente bem
que temos um jantar com Bernardo e com Amanda. Ele está
ansioso e até feliz pelo reencontro. Pode ser que seja bem melhor
dessa vez. Mika dá um tapa forte no ombro de Gael e sai correndo,
os dois babacas brincando de luta e xingamentos. Seu Serafim dá
risada, baixo.
Allura diz que ele pode entrar no meu escritório e logo o
comerciante está sentado à minha frente, em uma cadeira
confortável de estofado laranja-escuro. Alli fecha a porta e nos deixa
a sós. Para dar um ar de importância, eu fecho a minha agenda,
sorrindo para Seu Serafim.
— Leu a minha proposta? — indago, na mesma hora. — O
que acha dela?
Ivy me disse para contratar uma equipe primordial para o
meu bistrô, e como ele tem a capacidade máxima de apenas trinta
pessoas, tenho ciência de que a equipe não precisa ser muito
grande. Até agora, eu sei que ficarei na cozinha e no escritório, mas
não tenho tempo de conhecer cada parte de Madre Rita para
entender exatamente do que preciso.
Somente uma pessoa pode me ajudar, uma pessoa nascida e
criada na cidade, uma pessoa que ama trabalhar com o público e
que entende de comércio, porque está no mercado há anos. Uma
pessoa que ama cozinhar, tanto quanto eu.
— Filha... — Seu Serafim junta as mãos no centro do colo,
usando seu apelido carinhoso. — Tem certeza disso? É muita coisa.
Quando tracei meu plano e cheguei ao nome do Seu Serafim,
não pensei duas vezes ao entrar em contato com sua filha, Priscila,
para enviar meu método de contratação.
— Tenho, sim — confirmo, sem hesitar. — Você tem paixão
por essa cidade e eu quero exatamente isso vindo do meu gerente.
Quero que ele conheça as pessoas que trabalharão aqui, acima de
tudo — cito. — Ainda me sinto nova na cidade, Seu Serafim. Seria
muito legal ter o senhor ao meu lado no... bistrô.
— Esse é o nome da confeitaria? — pergunta, sorridente.
— Não — resmungo, erguendo o canto dos lábios. — Ainda
estou pensando nisso.
Seu Serafim me acha engraçada. Seus olhos se dispersam
para a janela, para o dia lindo e ensolarado que Madre Rita nos
presenteia como iguais. Depois que ajudamos em sua casa, eu
sabia que o veria mais alguma vez, mas não sabia exatamente
como. Seu quiosque de bebidas foi restaurado e até hoje tenho
certeza que a minha marca está lá.
— Mas você tem certeza mesmo que me quer aqui? — Ele
pergunta novamente, inseguro. Coloca seus olhos em mim. — Filha,
é uma oportunidade tão boa, mas...
— Sim, eu tenho! — Inflo meu peito, lhe passando confiança.
— Não é uma recompensa, não é apenas uma pessoa brincando
com algo tão sério. Quero realmente que faça parte do meu time,
Seu Serafim, e que me ajude a tocar esse bistrô... Ainda sem nome!
Ele se remexe na cadeira, pensando bastante. Consigo notar
que ele quer aceitar, ao mesmo tempo que reluta. O que é muito
inteligente. Ele não quer ser afobado, mas também não quer se
arrepender.
— Tudo bem! — dispara, aliviado. — Eu concordo... Com
tudo.
— Mesmo?
— Mesmo!
Me agito, apertando a caneta entre meus dedos.
— Posso começar a dar entrada na papelada? No contrato?
— Sim. — Ele sorri, feliz. — Pode, sim.
— Ótimo, porque... Preciso te pedir uma outra coisa! — Faço
um sinal com meus dedos, gesticulando. Seu Serafim fica na
defensiva, sério. — Quero encomendar um quadro para o bistrô. Um
quadro meu, ainda não sei onde vou colocar, mas acho que vai ser
aqui no escritório.
— Um quadro?
— É! — ressalto. — Que nem seus filhos tem no quarto.
Achei tão lindo, Seu Serafim. Quero um só meu...
— Ah... — Ele suspira. — Que isso, filha. Eu faço de
presente!
— Não, não, Seu Serafim — refuto. — Um quadro leva tempo
e é o seu trabalho, faço questão de encomendar e pagar por isso!
Ele me encara de um jeito que jamais me encarou.
Seu Serafim é um homem doce e sonhador. Já me lançou
olhares gentis, paternos e felizes, mas um agradecido é a primeira
vez. Há entusiasmo também, porque parece ansioso para começar
o quanto antes.
— Estamos combinados? — Estico a minha mão, para
trocarmos um aperto de mão.
— Estamos! — Ele sela nosso acordo, com um sorriso
grande e banhado em animação.
Recolho minha mão e o aviso:
— Vou te mandar o cardápio por meio da Priscila, para
estudarmos juntos os componentes do que serviremos. As
sobremesas serão o carro chefe da casa e as vitaminas um ponto
adicional, Seu Serafim — informo, adorando todo esse tom
profissional entre nós.
— Pode deixar, filha! — Seu Serafim bate continência, alegre.
— E aí... — Mikael invade o escritório, na cara de pau. — Ele
aceitou?
Relaxo meus ombros, irritadiça. Seu Serafim acha graça, se
levantando da poltrona.
— Ele não muda, né? — diz para mim, mas aponta para
Mika. — Doidinho, doidinho... — E acha engraçado, rindo bem
baixo.
— Vou contar para a sua avó que você não tem educação
nenhuma — ameaço, fechando a minha expressão. — Ela vai odiar
saber isso.
— Quer carona para casa, Seu Serafim? — Mika oferece, me
ignorando por completo. — Eu ia levar a minha doce e nada azeda
namorada para sair, mas como ela só briga comigo, quem sabe ela
sinta a minha falta?
— Não precisa, filho! — Seu Serafim o acalma. — Eu já estou
indo... Não precisa! — O comerciante o acalma e se despede de
nós, afirmando que voltará em breve. — Obrigado, Georgia.
Obrigado!
Sorrio em sua direção, esperando-o sair totalmente do meu
ponto de vista para resmungar.
— Por que você é tão sem noção assim, hein? — brigo com
Mikael, voltando a abrir a minha agenda. Não quero sair daqui até
encontrar um nome. Um maldito nome. — Estávamos em uma
reunião, Mikael.
— O Seu Serafim me ama! — decreta, analisando a janela. O
dia realmente está muito bonito. — E você viu, ele me acha
engraçado.
— Não interessa! — elucido, raivosa. — Vai agir sempre
assim? Esse bistrô não é seu, não pode agir como se fosse o
dono... e...
Seu Serafim retorna, com o dedo erguido, como se quisesse
oferecer uma sugestão.
— Georgia... — avisa. — O relógio na cozinha está torto,
filha. Melhor arrumar antes que caia na cabeça de alguém. —
Mikael engasga, tentando controlar a vontade de rir, e a minha
expressão pode-se considerar de pedra. — Até mais!
Ele faz um sinal com o queixo e vai embora, caminhando
tranquilamente. Estou embasbacada e estática, porque na minha
concepção, a droga do relógio de girafas na cozinha está retíssimo.
Exatamente no lugar certo.
— Eu disse! — Mika aponta na minha direção, uma vez
sozinhos novamente. — Eu disse e você nem me ouviu! — Ele
canta vitória, abrindo seu sorriso idiota como sempre. — Admita,
amora mio, você precisa de mim, senão esse barco vai afundar.
Estou disponível para falarmos sobre uma possível sociedade
envolvendo esse bistrô...
Paro de ouvi-lo, porque ele diz algo que chama a minha
atenção. Por detrás de seu discurso mesquinho, ele fala a verdade
sobre ser meu sócio, ele adora atenção, mas ama desafios. E uma
confeitaria para ele comandar, é exatamente o que Mika busca para
fugir do tédio, mas, mais do que isso, ele me diz algo que realmente
pode funcionar.
Enquanto tagarela sem parar, escrevo discretamente “amora
mio” em letras grandes ao lado das únicas boas opções de nomes
que possuo.
Se for escolhida, posso reservar pelo menos dez anos de
vida para ter que aguentar Mikael zombando de mim sobre a
escolha de Amora Mio. Mas o nome é bonito, acolhedor, único e
bem original. Traz um quesito sentimental e estético que se funde
com uma boa funcionalidade.
O único defeito é que o nome surgiu dele e evidencia seu
apelido “carinhoso” para mim.
Não quero dar o braço a torcer e nem reconhecer que é uma
possibilidade — uma ótima e sugestiva possibilidade — então,
decido fechar a minha agenda e dar umas férias para a minha
mente.
Preciso encontrar outro nome.
32: picolé de mirtilo
INGREDIENTES: iogurte cremoso, açúcar, mel, mirtilo, framboesa.

Sou o primeiro a chegar ao restaurante, o que não me


impressiona. Uma gentil — e gata — recepcionista me conduz até o
terraço do espaço, onde reservei uma mesa hoje de manhã. Quero
dizer, Lola conseguiu reservar uma mesa de última hora no Telhado,
o restaurante mais cobiçado e privativo de Madre Rita.
E eu apenas agi como um cantorzinho mimado, porque eu
queria que a noite fosse especial.
Bernardo me convidou para sair e estamos tentando nos
resolver.
Ele me envia mensagens, dá risada das minhas piadas, mas
ainda não é a mesma coisa. Nesta manhã, pelo menos, torcemos
para o mesmo time de futebol chegar até as eliminatórias e Pedro
está animado para que a tensão se vá da Desvio, então um jantar
com as nossas namoradas deve servir. Um bem diferente do
primeiro, é claro.
O Telhado é conhecido por oferecer uma experiência noturna
aos seus clientes, onde quase todas as mesas são postas do lado de
fora, em um terraço de quase sete andares, para poderem desfrutar
do ambiente marítimo da cidade. Ou seja, o lugar perfeito.
Do meu lado direito, quando me sento à mesa vazia, consigo
ver o mar escuro e vasto. Do meu esquerdo, a metrópole iluminada
que acaba por se tornar meu lugar favorito.
— Já vai pedir? — A recepcionista pergunta, colocando as
mãos para trás, afoita.
— Acho que não... Parece que só eu sei ver as horas... —
brinco, ouvindo sua risada educada em seguida. — Por enquanto
não. Vou esperar quando todos chegarem...
Ela faz um sinal educado com a cabeça e se afasta, andando
apressadamente para me deixar sozinho. Ela fecha a porta do
terraço e eu sinto a brisa gostosa e calorosa me atingir bem no rosto.
Abro a câmera do meu celular, analisando o delineado preto que fiz
abaixo dos olhos e como meu cabelo continua com a mesma
confusão de fios embaraçados. Me perco dentro do meu Instagram,
me espantando com as fotos que coleciono ao lado de Georgia.
Nós na Farol, quase gravando, nós em seu camarim. Estamos
alimentando uma fanbase inteira com nossas fotografias, ao mesmo
tempo em que somos reservados.
Não faço ideia do que Georgia sente por mim e estou
começando a desconfiar que meus sentimentos progrediram. Ainda
não tivemos um momento a sós desde que voltamos de São Paulo,
mas é certo que minha avó a adorou. Ela vem pedindo que eu volte
sempre — e com Georgia — e isso pode ser declaradamente
perigoso.
Especialmente porque posso estar me apaixonando.
Meu celular anuncia que uma mensagem chegou e fico feliz
que não vou precisar pensar mais nela. É complicado não fazer
planos com uma pessoa que você sempre quis por perto.

BERNARDO:
Chegou?

MIKA:
Claro.

BERNARDO:
Tô no trânsito...
Chego em vinte minutos. Ou mais. Me deseje sorte!

MIKA:
Sorte!!!!!!

Sorrio para o celular, gostando dessa pequena e rápida


interação. Para duas pessoas que se matariam se estivessem no
mesmo ambiente, até que é bom saber que podemos falar
banalidades agora.
— Cheguei, cheguei... — Uma Georgia Pessoa esbaforida se
aproxima, abrindo a porta do terraço e marchando com pressa na
minha direção. — Desculpe o atraso. Sim, eu sei que você vai ficar
me importunando, mas tinha trânsito. Me desculpe! — Sem aviso, ela
se senta ao meu lado, colocando a bolsa de lado e afastando os
cabelos azuis da face. — Bom... — Ela checa a mesa, sarcástica. —
Pelo visto, estou dentro do horário!
— Parece que apenas eu sei levar as coisas a sério... —
provoco, ainda digitando no meu celular. Mas consigo ouvir quando
Georgia bufa. — Por que demorou, afinal?
— Ah... — Ela sorri, colocando uma mecha do cabelo atrás da
orelha. — Guzman Luz estava no hotel, sabe? O jogador de futebol?
— Ao ouvir sua pergunta, apenas confirmo com a cabeça, em
silêncio. — Nos esbarramos no corredor e ficamos conversando. Ele
elogiou meu cabelo e a novela, disse que nos acompanha.
— Ele vai ficar aqui? — Sinto minha garganta pesar.
— Em Madre Rita? — Georgia repuxa para si o pão de
cortesia. — Não, não. Apenas uma noite... — explica rápido,
rasgando o pãozinho em dois. — Ele disse que me chamaria para
sair se eu não estivesse namorando...
Claro que chamaria.
Com certeza!
Guzman Luz é conhecido por sua lista infinita de namoradas
atrizes, modelos e esportistas, mas não é conhecido pela fidelidade.
É claro que ele convidaria Georgia para sair. Ela é bonita,
interessante, inteligente e talentosa. Seria incrível, de fato, se ela
estivesse com um jogador de futebol, diretamente do gramado do
Barcelona.
E, preciso admitir, estou com um pouco de ciúme. Mal me
aproximei dela e já tenho concorrência?
Já não basta o engomadinho sem sal do Téo Farol.
Fito as minhas unhas, fingindo tirar alguma sujeira que possa
encardir as bordas, enquanto Georgia fala no meu ouvido o quanto
Guzman Luz foi legal, engraçado e atencioso com sua fã interior.
— Aonde você quer chegar com isso, hein? — Perco a minha
paciência, apoiando minha testa entre os meus dedos. Georgia
esboça um sorriso convencido, curvando os ombros para trás. —
Que foi?
— Está com ciúme, Mikael? — Ela canta o meu nome, de
propósito. Seu sorriso de cobra se estica pelos lábios pintados de
vermelho-sangue, acompanhando seus olhos decorados com
delineador marrom-escuro. — Não precisa. — Ela afaga meu ombro,
com as unhas longas. — Guzman não me chamou para sair. E
mesmo que chamasse, eu seria muito discreta quanto ao nosso
encontro.
Porra.
Então, ela iria?
Sei que podemos, isso é o que viemos combinando desde que
fechamos nosso acordo, mas não consigo imaginar. E não quero
demonstrar nenhum sinal de vacilo da minha parte, se eu mostrar
que fiquei e ainda estou incomodado com a aproximação de Guzman
Luz — mesmo que ele já esteja dentro de um avião a caminho da
Espanha — Georgia Pessoa usará isso contra mim. Estamos nos
divertindo, mas ainda estamos dentro de um jogo de poder e ego que
irá mover o vencedor, exatamente como em uma partida de Dama.
Reajo aos poucos, analisando seu rosto bonito se transformar
em soberba pura. Finjo um sorriso em sua direção; notando como as
pernas de Georgia estão lindas dentro de uma minissaia de couro,
que combina com a imagem de “namorada de um roqueiro” que ela
quer passar. Usa um top simples da mesma cor e seus cabelos azul-
turquesa estão jogados pelos ombros, dando um ar artístico que
combina com ela.
— Não preciso ter ciúme, amora mio — digo, pousando
minhas mãos no apoio de sua cadeira e a puxando para mim.
Georgia solta um gritinho assustado e eu sorrio, roçando meus lábios
em sua bochecha. — Sabe por quê?
— Hum?! — Ela não responde com firmeza, porque não
consegue, é apenas uma resposta mal pronunciada.
— Porque você vibra por mim, a cada toque meu. Duvido que
um desses babacas faça o mesmo. — Dedilho seu queixo, molhando
a ponta do meu dedo com seu batom fresco. — E seu corpo pede
por mim, Georgia. Resta aceitar. — Afasto seus cabelos de perto,
curvando seu pescoço para o lado. — Como está pedindo por mim
agora...
— Mikael...
— Sim, diga o meu nome, amora mio — peço, beijando a pele
exposta de seu pescoço, banhada em seu habitual perfume de
açúcar e rosas. — Sabe que eu amo. — Com a minha outra mão,
deixo que ela escape pelas pernas lisas de Georgia, que me
convidam para um passeio no vale entre as coxas. — Há um lugar
que quero visitar, porque estou com saudade, aliás.
É a primeira vez que Georgia demonstra receio, misturado
com um sensor de alerta. Ela segura minha mão esquerda, a que
quer vagar por seus joelhos, e arregala um pouco os olhos.
— Podem nos ver... — relembra. — Bernardo e Amanda
podem chegar a qualquer momento!
— Eles estão presos no trânsito. — Afundo meu nariz em seu
ombro, beijando-o. — Temos vinte minutos ou mais para fazer o que
quisermos, Georgia. — Subo meu olhar, beijando sua bochecha. —
Não está com saudade de mim? — pergunto, cínico. — Parece...
Você anda tensa.
— Ridículo — brada, um pouco fraca. Ela revira os olhos, mas
os fecha totalmente, curtindo meu toque.
Ela não vai admitir, mesmo que sua expressão corporal esteja
lhe entregando de todas as formas. Mas não tem importância,
arrancar uma confissão de Georgia é o que eu realmente quero.
— Então, você não vai se importar se eu colocar a minha
mão... aqui — interrogo, descruzando suas pernas e alcançando sua
calcinha por baixo da minissaia. — Vai?
Georgia ofega pesadamente e se recosta na cadeira com
força, abrindo-se aos poucos para mim. Sua calcinha é grande e um
pouco fina, mas é fácil para colocar de lado. Primeiro, apenas
saboreio a sensação de sentir sua boceta úmida pelo tecido da peça
íntima e, segundo, consigo afastá-la, sentindo os pelos de sua
intimidade deslizarem pelo meu dedo. Eles estão começando a
crescer, mas possuem um tamanho médio.
— Quer que eu pare? — Travo meus movimentos, sorrindo
para cada suspirar dela. — Ou devo continuar?
— Pode continuar — Georgia consente, ainda de olhos
fechados e com as mãos postas no apoio da cadeira.
Minha língua saliva, mas não a beijo, mesmo tendo passe-
livre para a atitude. Quero fazê-la sofrer um pouquinho e isso implica
em não ceder às minhas próprias vontades — mesmo que seja
unânime.
Não penso no garçom que pode aparecer de repente, nem em
Bernardo e Amanda, porque posso me desvencilhar de Georgia ao
ouvir o mínimo de barulho possível. Sei que não seremos
incomodados.
Depois de brincar com sua sanidade, recolho meu dedo,
sentindo seu cheiro na minha pele e chupando a ponta, apenas para
seu gosto atiçar a minha língua. Já estou duro antes mesmo de
devolver meu dedo para o centro de seu vale, onde pressiono na
região inchada do clitóris. Georgia engole um gemido fraco, frouxo e
tímido, segurando seus lábios um no outro para poder se controlar.
Mesmo em um terraço privativo, ainda estamos em um lugar público.
Meu pau está concentrado dentro da cueca, fazendo com que
o espaço entre a peça e a calça seja insuportável. O relevo está
grande e não conseguirei disfarçar sem ajuda da toalha da mesa, ou
de algum guardanapo.
Não penso em mais nada além de lhe oferecer prazer, então
aprofundo meu toque, utilizando outro dedo para encontrar sua
abertura molhada.
Georgia esfrega suas coxas na minha mão, em uma fricção
que a deixa delirante. Seus dentes arrastam por seus lábios, suas
pálpebras se apertam e as suas coxas fazem um ótimo trabalho em
deixar a minha mão inteiramente úmida.
Quero comê-la agora. Nessa mesa, ou levá-la para outro
lugar, que se dane Bernardo, ele vai me entender. Quase penso na
possibilidade de levantar, pegar Georgia pela mão e levá-la para o
meu carro, mas isso implicaria no ato de interromper o que está
acontecendo, e eu não posso ser esse monstro que estragará seu
prazer. Posso? Claro que não. Isso seria baixo até para mim.
Em sua boceta preparada, peço permissão lentamente para
penetrá-la com meus dedos e Georgia afunda-se neles por conta
própria. Preciso de um momento para me ocupar com meu próprio
gemido, porque isso foi bom para caralho de sentir. Quero fazê-la
minha e enfiar minha língua em sua boca — e em seus peitos — ,
mas Georgia paralisa meus pensamentos quando enrosca seus
dedos na minha camiseta, amassando a região do peito.
— Me beija — suplica, sôfrega.
Seu pedido quase sempre é uma ordem, mas esse não vou
acatar como seu fiel servo.
— O que disse? — zombo, mesmo tendo ouvido com
perfeição.
Faço movimentos de vai-e-vem, sem pressa, sem rapidez ou
sagacidade, apenas apreciando cada espasmo de prazer.
— Me beija, Mikael — pede novamente, apertando cada vez
mais os olhos fechados.
Me aproximo dela, sentindo suas mãos escorregarem da
camiseta para a minha barriga, por baixo do tecido. Ela arranha meu
abdômen e se contorce cada vez mais, esfregando-se em mim. Ela
vira sua cabeça na minha direção, decidida a conseguir um beijo, no
entanto, continuo no controle. É isso o que me dá gás para provocá-
la, deslizando meus lábios pelos seus, lambendo ao redor de sua
boca, mas sem a intenção de beijá-la.
Georgia dispara um palavrão, impaciente.
— Mikael... — anuncia, um aviso pródigo de que irá se vingar.
Muito em breve, é claro.
— Georgia... — repito, descarado. — Pode me dizer o que
realmente quer?
Sentencio os movimentos, grunhindo em seu ouvido. Ela se
arrepia, vejo em suas coxas.
Por falta de conforto, retiro meus dedos de Georgia com
bastante pesar para encontrar outra posição. Aproveito para senti-los
dentro da minha boca. Quando estou pronto para voltar a dedá-la, do
jeitinho que ela gosta, a porta do terraço é aberta. Georgia entra em
alerta e abaixa a minissaia com muita agilidade, se aproximando da
beirada da mesa e brincando com o pão que estava comendo antes
de começarmos a deliciosa preliminar.
— Demorei? — Bernardo pergunta, ele está digitando no
celular, enquanto Amanda está focada no seu próprio aparelho. Eles
sequer desconfiam do que estava acontecendo aqui. Eles se
aproximam o suficiente da mesa e tomam seus lugares. — E aí,
irmão.
Cumprimento com um aceno de cabeça, começando a me
recompor.

O jantar se desenrola de uma forma tão agradável e natural,


que me espanto.
Não é como se estivéssemos estranhos uns com os outros,
apesar do silêncio ainda ser constrangedor. Mas depois que os dois
chegaram — e finalmente pedimos as bebidas e os pratos principais
— tudo realmente fluiu. Bernardo sempre foi ótimo interagindo com
qualquer tipo de pessoa, mas ao lado de Amanda — e
declaradamente apaixonado — seus atributos sociais quase
triplicaram.
Amanda e Georgia se dão muito bem, elas riem das mesmas
piadas e gostam de passar o tempo zombando de nós.
— Temos planos de ficar em Madre Rita — Amanda conta,
enquanto termina sua sobremesa, uma travessa de picolé de mirtilo.
Nunca pensei que assistiria a minha ex-namorada falar sobre seus
planos com seu atual namorado, meu melhor amigo. — Aqui é uma
cidade muito boa. Assim que a novela acabar, eu acho que ficará
mais tranquila.
— É, e esse contato com a natureza me deixa mais calmo —
Bernardo concorda, colocando sua mão grande e tatuada em cima
da mão pequena e delicada de Amanda. — Sem contar que os
imóveis aqui são bem mais baratos.
— Papo de gente grande — Georgia brinca, arrancando
risada dos dois. — E aqui, em breve, terá a minha confeitaria. Existe
motivo mais brilhante que isso?
— E eu terei desconto? — Bernardo indaga. — Ou até mesmo
a conta paga?
— Se alguém pagar por você, sim. Fora isso, não venderei
fiado, nem para os amigos. — Georgia é determinada na sua
resposta, piscando as pálpebras de forma metida.
— Nosso bistrô será ótimo! — debocho, apenas para vê-la
irritada.
— Seu?! — Amanda arregala os olhos, sorrindo aos poucos.
— Vão abrir uma sociedade?
Georgia resmunga baixo, revirando os olhos.
— Não dê ouvidos a ele, Amanda — pede, sem me olhar. —
Ele fica agindo assim, mas não passa de um mero ajudante. — Ela
desconversa, ignorando a minha risada. — E enfim, contribuindo
para o assunto, vou começar a visitar casas por Madre Rita também.
— Tem algo em mente? — Amanda se anima, se curvando
sob seu prato. Seu cabelo castanho-cobre está preso em um coque
muito bem arrumado, dando destaque aos seus olhos claros. Curioso
pensar que eles não me causam mais nada hoje em dia, nem
nostalgia. — Posso ajudar? Sou ótima fornecendo a minha opinião...
— Modéstia à parte... — Bernardo se intromete na conversa.
— É verdade, mas isso é porque a Amanda não consegue ficar mais
de dois minutos sem falar.
Explodimos em risadas altas — talvez mais do que realmente
devemos. A comida é boa, a bebida é ótima e o clima está finalmente
entrando em seus conformes.
Quando as meninas entram no assunto de negócios e casas,
aviso que vou fumar na varanda mais próxima. Bernardo diz que vai
me acompanhar e nós levantamos da mesa, pedindo licença. Nós
caminhamos juntos, lado a lado, até o gradil, onde conseguimos ver
uma leva de fotógrafos amontoados na frente do restaurante
Telhado. Quero que todos nos fotografem juntos, assim eles saberão
que estamos bem e que não tem mais porque especular que não
estamos nos dando bem. Agora são águas passageiras e
precisamos torcer para que nada nos faça tomar um rumo diferente
— de novo, não.
Ofereço um cigarro a ele, mas Bernardo recusa, porque
prefere a marca do seu. Reviro os olhos, retirando meu isqueiro do
bolso jeans e acendendo a minha bituca. Acendo a sua e nos
apoiamos na grade, analisando a imensidão do mar à nossa frente.
Só de termos marcado o jantar, já significa que estamos
rumando para a mesma página. E isso fez com que Pedro e Gael
ficassem mais tranquilos, além de me fazer ter um pouco de
inspiração para uma nova música. Com o hiato após o final da turnê
Malévola, é ótimo eu estar pensando em composições novas, assim
traremos um frescor novo aos nossos fãs.
Sendo parecidos, Bernardo e eu gostamos de fumar em
silêncio e, assim, quietos, aproveitamos o momento.
Penso na música que estou rascunhando há alguns dias. Ao
meio das meias fedorentas que Gael deixa pelo nosso apartamento,
consegui reunir concentração e inspiração. Consegui um nome, um
que chamo carinhosamente de “Além da Fantasia”. Fala sobre duas
pessoas que estão vivendo à base de uma mentira, mas que buscam
a verdade acima de tudo.

Em nosso castelo de botão,


Vamos juntos para fora da imaginação.
Em nosso castelo de melodia,
Apontamos para além da fantasia

Suas mentiras não me completam


Mas suas jogadas me encantam.
Seu feitiço, mágico e poderoso
Porque preciso te dizer, garota
Eu não sou de mais ninguém.

Contêm versos uniformes e outros com rimas, ainda preciso


decidir para qual caminho quero seguir, mas tem potencial de ser
uma balada romântica, uma calmaria para os nossos shows, aquele
momento mais íntimo com os fãs.
— Está pensando em quê? — Bernardo me cutuca com seu
ombro, me fazendo acordar. Rio, sem graça, como se ele pudesse
adivinhar. — Quer outro?
Ele já terminou seu cigarro e pesca outro, de uma marca
bastante cara.
— Relaxa, tô de boa — aviso, ainda no primeiro. — E estou
pensando em músicas novas.
Bernardo, como normalmente é, bufa, entediado.
— Mal saímos da turnê, já está pensando em outra?
— Em outro álbum, isso sim. — Mostro meus dentes, em um
sorriso ardiloso. — Sempre estou pensando em música, sou assim.
Sabe disso...
— Claro que sei! — resmunga, franzindo a testa. — Nunca
entendi muito bem, mas como você está de namorada nova, tenho
certeza que há influência dela...
— Quem sabe... — desconverso.
— Tenho certeza! — afirma, sem rodeios.
Uma boa parte da minha inspiração vem de Georgia, isso se
ela soubesse que já rascunhei dezenas de canções pensando nela.
Nunca consegui finalizar nenhuma, porque me sentia envergonhado
de estar oferecendo uma letra inteira para uma pessoa que me
desprezava — da mesma forma que eu a ignorava. Então, as
músicas para Georgia são um emaranhado de ideias sem fins, sem
qualquer ritmo ou destreza. E todos esses pensamentos ainda me
dão um presente; um nome para uma futura música.
Quem sabe eu não escreva algo como “Todos os Finais que
Nunca Te Escrevi”?
Caramba. Que nome bom.
Vou terminar “Além da Fantasia” e partir para “Todos os Finais
que Nunca Te Escrevi”, onde posso apostar que o ritmo será intenso
e frenético, falando de um amor que está começando a ser
correspondido.
Porra! Tô animado pra cacete.
Bernardo ri da minha expressão, porque devo estar com o
rosto contorcido, ansiando ir para casa e começar a rabiscar nos
meus cadernos de composições.
— Senti sua falta, irmão. — Ele coloca sua mão no meu
ombro. — Tipo assim... Pra caralho.
Georgia e Amanda riem alto de uma piada, chamando nossa
atenção. Elas levam as mãos até as bocas, cobrindo seus lábios
para não gargalharem tanto.
Sorrio e volto minha atenção para Bernardo. Ber, como
gostava de chamá-lo.
— Senti falta de vocês dois, cara — admito, finalizando meu
cigarro e me dando por convencido. Estou elétrico e ansioso, quero ir
para o apartamento logo. Georgia que me desculpe, mas preciso
trabalhar. — Precisamos repetir isso mais vezes...
— Ei... — Ber me chama. — Você me desculpa, mesmo? —
Quero responder que sim, mas ele me impede: — Nunca fui muito
bom demonstrando meus sentimentos, cara. Você sabe disso... Perdi
pessoas maravilhosas no decorrer da minha vida porque fui cabeça-
dura. Fingi que não me importava, quando a realidade era bem
diferente. Sofri pra caramba, mesmo que eu estivesse com um
sorriso no rosto. Então... Preciso saber. Porque não estou blefando
ou mentindo, eu realmente senti sua falta, Mikael Devante. — Ele me
segura pela nuca, para dar ênfase ao que diz. — Você é como meu
irmão mais novo e eu nunca quis te magoar, apesar de ser um
babaca, otário e sem coração na maior parte do tempo.
Sempre fui bom me expressando — de vez em quando, é
claro — , mas Ber sempre foi o tipo de pessoa que se sentia
desajeitada quando recebia um abraço.
Prefere mostrar do que dizer, sua forma de intensificar o amor
é fazendo algo pela pessoa; seja limpando seu quarto ou lavando
suas roupas. Ele sempre preparou o café da manhã de Pedro e
sempre ajudou Gael a lidar com a fama. Mesmo que nunca tenha
nos dito “Eu te amo”, essas foram a sua maneira de cuidar da
Desvio. Quero dizer, essa é a sua forma de cuidar de todos nós,
mesmo sendo fechado e ranzinza.
Nossa amizade ainda vai entrar nos trilhos, ainda
encontraremos uma frequência que nos faça entrar nos eixos. Pelo
nosso bem e pelo bem da banda, entendo sua insegurança.
Se eu disser qualquer frase agora, ele irá entender, mas
busco na memória algo que faça sentido — e que faça Bernardo
entender, de uma vez por todas, que nossos ressentimentos
precisam ser enterrados.
— Vá comigo fazer uma tatuagem — convido, simplesmente.
Ele me levou ao estúdio na minha primeira tatuagem, e cada
desenho que cobre o meu corpo, foi porque Bernardo esteve lá
comigo. Claro, os mais recentes fiz porque queria me sentir bem e
tatuar sempre me acalma, mas não adiantou de nada, porque fiquei
pensando no meu melhor amigo o dia todo, na sessão toda. No final,
o que era para me acalmar apenas me ajudou a ficar ainda mais
decepcionado e frustrado.
Ele me acompanhar no próximo desenho é simplesmente
dizer “Sim, Bernardo, eu ainda te amo. E ainda somos irmãos.”
E pelo sorriso que ele abre, emocionado e cativo, Ber
finalmente compreende.
III:

Modo de preparo.

“Eu já deitei no teu sorriso,


Só você não sabe.
Te chamei pro risco,
Então fica à vontade.”
Por Supuesto – Marina Sena.
33: milkshake de morango
INGREDIENTES: sorvete de morango, leite gelado.

Uma vez eu li que a decadência da felicidade é quando tudo


está dentro dos eixos, quando nossa guarda está baixa, nossas
reflexões estão concentradas e quando a tranquilidade nos alcança
na maior parte do tempo. Basicamente, é uma premonição e significa
que algo de ruim está por vir e não podemos fazer nada a respeito.
Não sei dizer se estou presenciando este momento, mas
espero que seja apenas uma sensação.
Sentada à mesa da varanda, ao lado de Beatriz, Amanda e
Allura, estou dando uma olhadinha no roteiro da semana, enquanto
elas fofocam ao mesmo tempo em que tomamos café da manhã. Dei
a ideia de nos reunirmos para Amanda se sentir mais integrada,
principalmente depois de ter me dito que não tem muitas amigas
restantes. Um marca-texto verde-neon está acoplado por entre os
meus dedos, uma xícara de chá de frutas vermelhas fumega ao meu
lado e ouço as vozes das minhas amigas de fundo.
Ivy está presente, mas não participa do momento, ela está
trabalhando a poucos metros de nós, enquanto se contenta com uma
xícara simples de café expresso.
— Eu vou tirar uma pausa da carreira. — Presto atenção no
justo momento que Amanda Olivêncio revela seus planos. Subo meu
olhar para ela, que está respondendo uma pergunta que Beatriz fez.
— Eu estava conversando com o Bernardo e com a minha
assessoria, e acho que preciso disso.
— Precisa? — Allura repete a palavra, incrédula. — Ou as
pessoas que precisam pedir desculpas para você?
Amanda dá de ombros, porque aposto que ela teve essa
mesma conversa com alguém milhares de vezes.
Faz uma semana que as colunas de fofoca estão
mergulhadas em um grande alvoroço, apenas porque Amanda,
Bernardo, Mika e eu estamos sendo clicados juntos. Nós jantamos
no Telhado, um restaurante chique na orla mais próxima de Sereia
Encantada, há alguns dias, e depois aparecemos em um jogo de
futevôlei juntos. Fomos a um evento da Farol na companhia deles,
além de sermos vistos tomando sol na praia de Concha Amarela
quase que diariamente.
Todos sabem que somos amigas agora, e que estamos
grudadas entre compras e fotos postadas no Instagram. Não
estamos alimentando qualquer rivalidade entre nós, além de
demonstrarmos o quanto nos gostamos. Isso, de certa forma, frustra
a imprensa, que adoraria uma narrativa sangrenta e maldosa. Eles
conseguiram, na verdade, porque Amanda ainda se sente receosa
de voltar às redes sociais totalmente.
Mika e eu estamos focados em oferecer todo o apoio possível
para Amanda e sua carreira, mas há certas decisões que ela tomará
sozinha.
— Você sabe a resposta... — Amanda inspira com força,
dando um gole em seu chá-mate. — De qualquer forma, o Bernardo
quer viajar depois de um tempo, antes de se trancar no estúdio para
o novo álbum da Desvio.
— Já? — Bea se espanta, arregalando os olhos.
— O Bê disse que o Mika já está compondo algumas músicas,
e eles estão ansiosos para começar logo — ela explica, sorrindo e
bastante contente. — O Pedro não te disse nada?
— Ah, ele disse, mas estamos pensando no casamento mais
do que tudo. Quero que seja rápido, porque estou pensando que a
Lua de Mel pode ser na próxima turnê. — Bea conta, sonhadora. —
Também estamos analisando a possibilidade de ser em Las Vegas...
Ser casada por um sósia do Elvis Presley não é algo que vemos
muito na vida.
— Um casamento em Las Vegas... — Allura assente com
lentidão. — Eu quero ir! Agora faça algo a respeito, por favor!
— Deve ser muito divertido! — Bea assume, se encolhendo
um pouco. Ela repuxa um cacho pequeno e fechado de seu rabo de
cavalo blackpower e sorri. — Eu me casaria com o Pedro em
qualquer lugar.
Explodimos em um coro ensaiado de gritos e deboches,
fazendo Beatriz pedir para que paremos com o barulho. Ivy nos pede
para calar a boca em inglês, fazendo um sinal com o dedo indicador
ao proferir um “Shhhh”. Como crianças arteiras, recuamos para
esperar Ivy se distrair novamente com sua pilha de trabalho, para
gargalharmos um pouco mais baixo.
— E você, Allura? — Amanda puxa assunto, comendo seu
oitavo pão de queijo caseiro da manhã. Minhas receitas foram
rapidamente aprovadas por Bea e Amanda. — Vai fazer o que depois
da novela?
— Quero ir para a Bolívia, me reencontrar com a minha família
e trabalhar na minha música — expõe, deixando um sorrisinho meigo
brotar em seus lábios grossos. — Estou tão animada, que não iria
me incomodar se a novela acabasse... tipo assim... hoje!
As duas dão risada, brotando seus olhos em mim.
— Georgia? — Bea me coloca na conversa. — E você?
Além da confeitaria Amora Mio — nome temporário, ok? —
estou pesquisando casas e apartamentos. Ivy está me ajudando e
até está entrando em uma negociação sobre um apartamento em
Concha Amarela, de frente para a praia. É o único imóvel que eu
gostei, apesar de não ser realmente a minha cara. Pelas fotos, ele é
arejado, iluminado e íntimo, nada muito grandioso ou espalhafatoso.
Há uma sensação curiosa no meu peito, uma em que eu deveria
estar muito feliz por ter encontrado um lar, mas não sinto nada.
Apenas vontade de me mudar logo.
Quem sabe com os papéis assinados eu me anime mais?
Mikael disse que vai me ajudar na tarefa, e desde ontem não
responde às minhas mensagens, porque está focado na “missão” de
encontrar uma casa para mim.
— Sossegar — resumo, fazendo-as rir um pouco. — Depois
da novela, vou mergulhar de cabeça no bistrô e pronto. Planejei até
aí... O resto será improviso.
— Nem pensa nada com seu namoro com o Mika?
A pergunta de Amanda me faz franzir a testa, então lembro
que ela simplesmente não sabe a verdade sobre nós. E não acho
que um dia saberá. Até explicarmos todos os detalhes, talvez ela
fique confusa e nos ache superficiais. Não é um detalhe que preciso
colocar na mesa — pelo menos, não agora.
— Ele vai ficar comigo, é claro. — É a única coisa que
respondo, mas serve pela maneira feliz e simpática que Amanda
sorri.
Ela realmente torce por nós como um casal e isso me deixa
com um sentimento breve de culpa.
— Isso é bom... — Amanda fala sinceramente. — De verdade,
eu nunca o vi tão feliz — confessa. Bea prende a respiração, como
se soubesse que entraremos em um assunto sensível. Amanda, no
entanto, não entende muito bem a atitude da modelo ao seu lado,
pois diz: — Tô falando sério, Bea! Ele sempre admirou muito a
Georgia, quando namorávamos, ele sempre dizia que ela era a atriz
da nossa geração!
— Ele não mente — Bea acrescenta, sem jeito. — Mas...
— Mas? — Amanda indaga. — Não se preocupe, não me
sinto mal em falar sobre a Georgia e ele. Mika é meu amigo, sempre
foi. Estou realmente feliz em vê-lo tão apaixonado...
Puta merda.
Sentimentos são uma área que ainda não falamos sobre,
apesar de desconfiar que eu esteja quase lá.
— Vai tirar uma pausa mesmo, Amanda? — Allura muda de
assunto drasticamente, confundindo a atriz de imediato.
Amanda me encara, confusa e perdida na conversa, mas
decide responder.
— Ah, sim, sim... — assegura. — Eu estava pensando em
fazer um teste para um filme, de uma diretora nova, mas desisti.
Quero mesmo focar em mim mesma...
— Que filme? — Bea pergunta, apenas para manter Amanda
fixada em outro tema.
Muito mais aliviada, abaixo o meu rosto para recomeçar a ler
o roteiro dessa semana. Hoje é sexta-feira e estaremos liberados
pelo final de semana. Segunda-feira sem falta, Mika e eu
precisaremos comparecer aos ensaios da nossa cena íntima. Será
um momento bastante pessoal para nossos personagens e terá uma
quantidade até que impressionante de nudez. O povo realmente nos
quer.
— Não sei muito bem, mas minha agente me enviou um
edital... — A atriz de cabelo castanho-cobre faz uma pausa e sinto
que ela pode ter pego seu celular. — Aqui está. O filme vai ser da
Karina Sales... Vai ser uma produção independente... — Presto
atenção em sua fala e no texto diante de mim. Marina e Germano
estão retirando suas roupas, ansiosos para sentirem suas peles em
contato. — As gravações vão começar em algumas locações de São
Paulo, Madre Rita e Constância... — Eles se aproximam de seus
rostos, colando suas testas. — Se chama “Vertigem” e fala sobre
uma garota que tem uma doença sem cura, que é esquecida pelos
amigos no final de semana em uma casa e precisa lidar com um pico
de desespero...
— Quê? — O som da minha voz me surpreende, porque até o
momento eu estava lendo meu roteiro picante. Agora, as três me
encaram, surpresas. — O filme vai falar sobre isso?
— É... Meio que funciona como um terror psicológico, porque
a garota sofre dessa doença rara, que nenhum dos amigos parece
entender — narra, gesticulando bastante. — O roteiro é muito bom, e
algumas atrizes já estão começando a estudar o edital para as
audições...
— Você deveria tentar, Georgia. — Allura aconselha, olhando
de mim e para Amanda duas vezes. — Ninguém consegue entender
isso mais do que você.
De relance, arrumo a minha postura, procurando por Ivy ao
nosso lado. Para a minha total felicidade, minha agente já está
prestando atenção em cada palavra que Amanda discorre e parece
tentada a me conseguir uma vaga nos testes, exatamente o que eu
quero.
— Olha, nunca pensei nisso, mas... — Mordo meus lábios,
pensando. Um filme e uma novela ao mesmo tempo resultarão em
cansaço na certa, ainda mais com a confeitaria. Contudo, uma
história que envolva uma possível versão desastrosa e aterrorizante
da minha doença, é algo que me intriga. — Esse projeto é realmente
interessante, Amanda. Me conta mais!
— Isso! — Bea se anima.
— Fala sobre um grupo de amigos que vai passar o final de
semana em uma cabana, mas tudo dá errado e essa garota esquece
os remédios que controlam a vertigem — Amanda começa, tomando
fôlego. — Eles se oferecem para buscar, mas como a farmácia mais
próxima é muito longe, eles apenas dão remédios falsos, que na
realidade, intensificam as crises de tontura dela. Eles brigam e
decidem deixá-la sozinha. O terror começa daí... Tudo o que ela está
sentindo, as vertigens, os enjoos. Ela começa a ouvir passos e
vozes, mas ela está sozinha. É imaginação da cabeça dela ou os
amigos voltaram para infernizar os dias dela?
Ouço tudo com muita atenção, me apegando aos detalhes.
Eu, como sofro exatamente o que a personagem está passando, sei
como é cruel ter uma crise violenta ao ponto de não conseguir se
manter em pé. Interpretar um lado odioso do Meniere me interessa
puramente. É um projeto que me anima bem mais do que fazer
Marina em Destino Inteiro. E quanto mais Amanda fala sobre a
história, mais me sinto fascinada em contatar Karina Sales.
— Ivy! — digo rápido, erguendo meu pescoço e entusiasmada
para conhecer o projeto de perto. Mesmo que eu não seja
selecionada, já quero me oferecer para ajudar nos bastidores.
— Já entendi, darling! — Ivy pisca, voltando sua atenção para
seu notebook. — Vou contatar a equipe da Karina. Precisamos desse
edital!
— Já é seu! — Allura me acalma, me servindo com mais chá.
— Seria idiotice contratar uma atriz saudável.
— Tá me chamando de não-saudável?
— Sim. — Minha melhor amiga sorri, sem maiores
preocupações.
Nossas risadas cessam quando Ivy passa por nós, atendendo
uma ligação importante. É quando vejo a porta da varanda ser aberta
e Mika se aproximar de nós. Ele sobe os óculos escuros para o alto
da cabeça, revelando que está usando lentes hoje. Sua cicatriz está
muito aparente pelo sol que invade seu rosto, e ele usa uma
camiseta minha. Parece que faz questão de deixar explícito que
anda dormindo por aqui.
Infelizmente, isso não quer dizer que estamos transando com
frequência. A última vez que ele me tocou, foi no restaurante Telhado
e depois não arranjamos tempo. E quando arranjamos, estamos
cansados demais para pensar em sexo. O que pode mudar com a
folga desse final de semana.
— Oi, meninas! — Ele canta para nós, beijando a bochecha
de Gabi. — Bom dia. — Ele beija a testa de Amanda, em um ato tão
honorável e fofo que me derreto um pouco. — Nem me convidaram!
— Ele beija a bochecha de Allura agora.
— Exatamente — Bea protesta. — Se não convidamos, por
que está aqui?
— Ai! — Mika coloca a mão no coração. — Essa doeu —
ironiza. — Continue assim e eu vou estragar o seu casamento!
— Nem ouse! — Bea ameaça.
Mika contorna a mesa, parando ao meu lado e me roubando
um selinho. A atitude me assusta e eu pulo na cadeira, me
recuperando da prontidão de nossos lábios ao colidirem. Ele me
presenteia com um sorriso nada afetado pelo momento.
— Podemos conversar? — pergunta, apontando para dentro
da cobertura e roubando um pedaço de pão doce da mão de Allura.
Ela reclama, mas Mika desvia de qualquer investida que ela possa
dar. — Isso aqui está uma delícia, tenho certeza que foi a Georgia
que fez!
— Podemos — respondo sua pergunta, ignorando a última
parte.
Fecho o roteiro com o marca-texto dentro e peço licença para
as minhas amigas, que ainda estão rindo das piadinhas de Mikael,
da forma que ele tanto ama. Ele cumprimenta Ivy com um longo
aceno, fingindo que é um duque na Inglaterra. Eu o conduzo até a
cozinha, onde posso aproveitar para pegar um pouco mais suco de
laranja.
Dentro da cozinha, abro a geladeira, pedindo que ele fale logo
o que quer.
— Arrume suas malas — dispara, genioso. Mika se senta na
bancada da ilha da cozinha, sem cerimônias. Ergo minhas
sobrancelhas, segurando o suco de laranja. — Eu andei pesquisando
sobre casas. E depois que você me enviou as fotos daquele
apartamento sem graça, eu sabia que você precisava de ajuda.
— Tadinha de mim! — praguejo alto. — O que seria de mim
sem você, Mika? Você me ajuda no bistrô, na novela, no namoro
falso e agora com a minha casa! — ironizo, cerrando meus dentes.
— Quem vê de fora pode pensar que você não passa de um
enxerido mequetrefe.
— Sim, mas você sabe que eu ajudo de todo o meu coração!
— debocha, aumentando seu sorriso. — E estou falando sério,
Georgia! — Aponta na minha direção. — Encontrei a casa por acaso.
O dono aluga a residência por um preço camarada em um aplicativo
de turismo, mas faz um tempo que ele quer vender a casa
totalmente, porque não aguenta mais fazer a manutenção. O preço
está incrível e pelas fotos, ela é o sonho de qualquer pessoa!
— E onde fica essa divindade? — interrogo, sendo sarcástica.
Passo de um lado para outro, buscando um copo limpo.
— Não posso dizer, é surpresa! — Ele se recusa a cooperar,
sorrindo de lado. — Por isso estou pedindo que faça as malas. Eu
aluguei a casa pelo final de semana, se você gostar, podemos
negociar com o cara. Se não gostar, seguimos em frente.
— Seguimos?!
— Não posso te deixar sozinha numa decisão tão grande,
amora mio — provoca, ainda sorrindo feito um grande babaca. — O
final de semana será nosso. Precisamos dessa folga! — Ele abre os
braços, argumentando. — No domingo, podemos chamar nossos
amigos para um churrasco... Que tal? Claro, isso depois de
passarmos a sexta e o sábado completamente sozinhos!
Sirvo-me de suco de laranja, mas não chego a bebericar
nenhuma gota.
— Sozinhos? — Amacio o meu tom de voz.
Mika abaixa um pouco a soberba, saltando da bancada e
caminhando até mim. Ele me encurrala no balcão da cozinha e
afasta meus fios azuis do meu rosto. Mika segura-os na minha nuca,
apertando-me para si.
— Porque temos muitos assuntos pendentes e faz tempo que
te quero, Georgia — confidencia. — Nós temos nos divertido. Nos
vemos todos os dias, eu chego a dormir aqui, mas eu quero você.
Podemos unir sua busca pela casa perfeita para termos um pouco de
paz. Longe de tudo.
Lembro das palavras de Amanda sobre Mikael.
Será que ele está mesmo apaixonado por mim?
— Algumas horas com você? — Faço charme. Internamente,
eu já aceitei, posso correr para o meu quarto agora e aprontar as
minhas malas, mas gosto de fazer Mika sofrer um pouco. — Espero
que você não encha o meu saco.
— Ah, não. Não é sobre isso, mas eu pretendo preencher
algo, sim. — Ele franze o nariz. — Eu quero encher, na verdade, sua
boca com o meu pau.
— Opa! — Allura aparece bem na hora, nos dando um susto.
Mika enfia o rosto na abertura do meu pescoço, rindo, um
pouco envergonhado ao ser pego falando besteira. Meu rosto está
quente e minha barriga reage na mesma proporção, porque sua ideia
é realmente boa.
— Eu vou indo. — Ele se separa de mim, ainda rindo sem
jeito. — Tenho que deixar algumas coisas prontas... pros caras... lá
no nosso apê. — Ele coça a nuca, totalmente desconcertado. — Te
busco às quatro. Pode ser?
— Pode, claro. — Me encosto direito no balcão, porque
minhas pernas se encontram moles feito gelatina e a minha pele
arde em chamas.
— Tchau, Allura — diz, passando pela minha melhor amiga,
que ainda continua paralisada à porta da cozinha.
— Tchau, Mika — ela responde, mas o cantor já está longe
demais para ouvir.
Sozinhas, arregalamos os olhos ao mesmo tempo, e preciso
reprimir a vontade de rir alto.
Muito alto.
34: churros
INGREDIENTES: água, sal, margarina, farinha de trigo, leite condensado, doce
de leite, manteiga, açúcar, canela em pó.

Às quatro horas e cinco minutos, Mika me buscou na minha


cobertura. Ele estava animado e falante, beijou corajosamente o
dorso das mãos de Ivy quando disse que cuidaria de mim pelo resto
do final de semana, em um tom sarcástico e malicioso que foi uma
sorte Ivone não ter notado. Ele carregou a minha mochila sem
reclamar ou pestanejar, me conduziu para o seu carro e abriu todas
as janelas do veículo. Fomos flagrados deixando o Hotel Prudência,
mas não nos importamos.
Na metade do caminho, ele ligou o rádio e deixou que sua
mão pousasse em cima dos meus joelhos, enquanto dirigia. Com os
cabelos ao vento, os óculos de sol no rosto e Madre Rita inteira
mergulhada em um calor altíssimo, de nos fazer suar até mesmo
debaixo de uma sombra. Coloquei meus melhores pares de chinelos
e prendi meu cabelo em um coque não muito elaborado, mas que
serviu para me proteger da temperatura elevada.
Mika, neste momento, está batucando os dedos no volante,
enquanto “Summer”, do Calvin Harris, toca livremente. Estamos nos
aproximando de uma área isolada e particular de Madre Rita, com
bairros sofisticados e comércios locais de fácil acesso, mas sem
prédios à vista. Tudo aqui é térreo, pequeno e aconchegante.
Em uma paleta de cores entre amarelo-escuro, branco e
marrom-claro.
— Estamos chegando? — pergunto, animada, retirando meu
olhar da praia vazia ao meu lado direito.
— Sim, estamos — é o que ele me responde, sem qualquer
chance de me dizer mais nada a respeito da casa misteriosa.
Meu sorriso é fácil e frouxo, não quero bancar a pessoa fria
quando nitidamente já não sou mais. Estou animada também,
porque Ivy disse que me conseguiria um teste para o filme de Karina
Sales e minha agente não é o tipo de pessoa que desiste sem
vencer. E, antes disso, comecei a mexer meus próprios pauzinhos,
seguindo Karina nas redes sociais. Ela me seguiu de volta e na
linguagem moderna, isso significa que fui notada — e que
possivelmente ela dará uma olhada no meu perfil.
A música continua alta entre nós e demora uns cinco minutos
até Mika virar em uma estrada de areia, ao lado esquerdo de uma
reserva. Há uma placa indicando que o condomínio se estende por
uma praia particular e que há seu próprio comércio por lá. Como
sorveterias, livrarias e farmácias. Todas as pessoas usam regatas e
chinelos. Tudo cheira a protetor solar e me sinto na infância, quando
esse aroma queria dizer diversão e férias.

ANTENOR (PAI):
tem certeza que nao precisamos conhecer seu namorado?
nao me parece uma mentira!!!!!!!!!!

Rio, apenas para mim mesma.


Mika dirige pela pequena vila dentro de Madre Rita, até
chegar à portaria de outro condomínio. Ele rapidamente se identifica
e faz uma piada ao porteiro, que ri muito dele. O homem entrega um
molho de chaves para nós e diz que podemos seguir em frente. As
portas de ferro se abrem lentamente, revelando um caminho de
terra, areia e árvores.
A temperatura abaixa radicalmente, e começo a sentir a
minha pele quente e pesada, absorvendo os pontos frescos e
deliciosos das árvores. Me remexo no assento, tentando captar
alguma coisa. Noto que as casas do condomínio não possuem
muros ou cercas, sequer portões. O ambiente arborizado contribui
para o clima íntimo se intensificar. As casas são térreas e com tetos
baixos, nenhuma possui mais do que dois andares. São simples,
plenas e familiares, e já começo a me animar — ainda mais.
Mika desliga o rádio para eu poder escutar o som do mar, das
ondas quebrando na encosta e analisar como a praia é realmente
muito perto de onde estamos.
Ele leva mais três minutos para entrar por uma estradinha
ainda mais escondida, até chegarmos a uma fonte desativada de
anjos, de frente para uma casa grande de apenas um andar.
— Agora chegamos! — Ele anuncia, completamente
orgulhoso de seu feito. — Não é uma beleza? — Mika abaixa o
rosto para poder enxergar melhor. As portas são feitas de madeira e
as janelas de vidro. — O dono realmente quer fechar negócio com a
gente... Com você, quero dizer. Então, espero que goste, porque o
preço está bem abaixo do mercado.
— Vamos ver... — falo, misteriosa. Abro a porta do carro,
soltando para fora. A entrada é de areia da praia e sinto a
necessidade de ficar descalça automaticamente.
Retiro meus chinelos, subindo a escadaria principal de
degraus amplos. Mika vem logo atrás, apoiando nossas mochilas
em cada ombro. Havia me esquecido delas. Ele sorri, brincando
com as chaves em mãos. Seleciona apenas uma delas e me
entrega, afirmando que posso destrancá-las. É o que eu faço,
girando a maçaneta redonda. A entrada é como a fachada, com
pisos de assoalho que nos levam para a sala de estar lado a lado
com a sala de jantar. Janelas de vidro do teto ao chão, que
contribuem com as cortinas branco-creme.
Há esculturas e artesanatos feitos de madeira e não consigo
me imaginar trocando a decoração. Tudo parece metricamente
pensado. Não há varanda, porque a casa sai diretamente em um
caminho de pedras coloridas, até a praia particular do condomínio.
— Mika! — brado, sem conseguir dizer mais nada. Arrasto
meus pés pelo piso, abrindo as janelas. — Ela é linda.
— Eu disse — canta vitória. Mika deixa nossas mochilas no
sofá mais próximo e coloca a mão na cintura. — Quer ver os quartos
ou a praia?
Não respondo nada, porque realmente não consigo. Então,
decido seguir pelo corredor. A cozinha é o último cômodo, equipada
com uma área de lazer com churrasqueira, incluindo uma horta
própria. Há cinco quartos ao total e um escritório. Uma piscina de
acesso ao quarto principal, a suíte. Encontro uma sauna e uma sala
de cinema esquecida, que merece uma reforma.
Ele me segue por todos os lugares, sem dizer nada, apenas
rindo e brincando com seus óculos escuros por entre os dedos. Mika
com certeza já está se divertindo.
— Praia? — sugiro, empolgada.
— Praia — define, abrindo a porta para mim e me deixando
passar.
A trilha de pedrinhas coloridas não dura mais do que dois
minutos. O acesso à praia é rápido e fácil. Poucas pessoas
preenchem a areia, mas consigo ver cachorros brincando
livremente, crianças soltando pipas, adolescentes estudando,
enquanto alguns adultos apenas bebem enquanto tomam sol.
Ninguém repara em nós, apenas continuam em suas vidas.
Mika e eu escolhemos um lugarzinho com sombra para nos
sentarmos, aproveitarmos a paisagem e o aroma gostoso da
maresia.
— Quero ficar! — digo, espalmando as minhas mãos na areia
fofinha.
— Já? — Mika quer saber, com as grossas sobrancelhas
suspensas. — Achei que teria que implorar para você dar uma
chance ao lugar.
— Não, você tinha razão. — Sacudo a cabeça. — Eu
realmente gostei da casa!
— Pode repetir?
— Eu realmente...
— Não, não. A outra parte... — pede, risonho. — Disse que
eu tenho razão e isso não acontece.
— Realmente, porque não vai mais acontecer — critico. —
Isso é uma coisa que acontece em milhões e milhões de anos.
Mika ri, deixando as provocações e os desafios de lado para
termos uma conversa franca.
— Então... Você se vê morando aqui?
— Ainda é cedo para dizer — admito, analisando um
cachorrinho brincar com uma bola vermelha. — Mas posso me
imaginar. Teria um quarto para a Allura ficar coladinha comigo, meus
pais poderiam conhecer este lugar. Tem espaço pros caras da
banda, posso decorar meu quarto e o resto da casa do jeito que eu
quiser... Consigo visualizar. Mas quero passar uma noite inteira aqui
antes de decidir.
— Consegue se ver cuidando de um cachorro aqui? —
brinca, me lembrando de um dos meus maiores desejos depois de
conseguir uma casa. Uma companhia canina. — Ele terá muito
espaço para desvendar. Para um cachorro, é quase o mundo inteiro.
— Sim, eu consigo! — Me pego rindo alto. — Se eu fechar o
contrato, vou pensar em adotar um cachorro logo em seguida.
Escreva o que estou te dizendo!
Mika confirma apenas uma vez com a cabeça, indicando que
acredita em mim. E é verdade, é a próxima etapa. Como seu sorriso
chama a minha atenção, viro meu rosto para olhá-lo. Foco nas íris
castanhas, na cicatriz e na sua mandíbula muito bem demarcada.
Nos cabelos que estão bem maiores do que me lembro e como seu
rosto fica bem mais iluminado quando ele está de bom humor.
Gosto dele. E muito.
Gosto de como Mika pensou em tudo; um lugar bonito e
isolado, exatamente do jeito que eu escolheria a dedo se tivesse
pensado e pesquisado mais. Um lugar que não fique no centro de
Madre Rita, mas ainda dentro da cidade, uma casa que seja
excluída das outras em um condomínio onde ninguém se importa
com a minha vida ou quem eu sou.
— O que foi? — Ele questiona, um pouco desconfiado. Seu
sorriso vacila, porque talvez pense que fez algo de errado. — Está
tudo bem, Georgia?
Solto o ar pelo nariz, não respondendo.
Me ajeito ao seu lado na areia, mesmo que esteja
manchando todo o meu shorts, e me aproximo dele. Seguro sua
camisa na altura do seu peito, enroscando meus dedos no tecido
fino e leve, e o puxo para bem perto. Seguro seu rosto com a outra
mão e beijo Mikael. Ele sorri antes mesmo de nossos lábios se
tocarem e há um riso preso na minha garganta, que acorda as
borboletas aprisionadas no meu estômago. Elas fazem uma festa
ensaiada, dançam e se contorcem, enquanto sinto sua língua
timidamente degustar a minha.
Fecho meus olhos, me aconchegando em seu braço, me
permitindo experimentar o beijo mais calmo que já tivemos. Os
outros foram devastadores, primitivos, urgentes, precisos e um
pouco cálidos, mas este é exatamente como a tarde que está quase
acabando. Com toda a sua suavidade e sua poesia em destaque.
Ele nos interrompe distribuindo selinhos nos meus lábios e
beijando a pontinha do meu nariz. Seu sorriso é ainda maior e me
sinto uma garota bem boba, por não conseguir controlar o meu
próprio sorriso.
— Quer ir lá pra dentro? — Mika convida, apontando para a
trilha de onde viemos. — Quero tomar um banho... Esse sol está de
lascar, e já estou suado.
— Isso é um convite ou um aviso? — Ergo uma sobrancelha,
analisando sua boca tão próxima da minha.
— Depende — murmura. — Se você quiser participar, é um
convite. Se você não quiser, é apenas um aviso.
— Vamos ver se você tem sorte — saliento, brincalhona.
Ele se levanta primeiro, deixando que uma leva de areia
chegue até a minha blusa. Mas não reclamo, seria previsível demais
— e é isso o que ele quer. Mika estende sua mão na minha direção
e me ajuda a ficar de pé. Cravo minhas unhas em seu pulso quando
me sinto estranha e aérea. Dou um passo pequeno para trás,
tentando manter o equilíbrio e fecho meus olhos, encostando minha
testa em seu ombro.
— O que foi? — Aflito, ele me sustenta pela cintura. — Foi
uma tontura?
— É... — sibilo, baixo. — Mas é coisa rápida... Eu já me
acostumei. São picos isolados...
— Está muito forte? — Sinto seu corpo estremecer de
preocupação, mas não quero explicar, porque exige energia. E por
mais que tenha sido uma rápida sensação, ainda assim, me frusta.
— Quer seu remédio? Quer ir embora?
— Mika... — chamo-o. — Calma — peço, sorrindo um pouco.
Abro meus olhos, me afastando dele. — Foi só um momento, estou
acostumada. Talvez seja o sol, ele está muito forte, sei lá...
— Vamos voltar. — Ele decide, ainda cuidadoso. Seus dedos
se infiltram nos meus e estamos de mãos dadas. E não quero
quebrar nosso toque. — É melhor. Depois voltamos quando ele
estiver baixo.
Não tem o que discutir, então apenas me deixo ser guiada
por Mika de volta pela trilha deliciosamente fresca do condomínio.
Há um portãozinho de madeira, de aproximadamente um metro, que
separa a trilha da área de convivência da casa. Nós passamos por
ele, e Mika o fecha, passando o trinco. Volta a segurar as minhas
mãos e me conduz para o quarto principal.
Ele possui uma cama de casal grande o suficiente para
quatro pessoas dormirem tranquilamente. Há uma vista estupenda
do mar ao longe, evidenciando o sol quase se pondo. O banheiro é
espaçoso e posso apostar que a banheira é feita para parecer um
ofurô. Mika me coloca sentada na beirada da cama, avisando que
pegará nossas coisas na sala.
— Ei... — Sorrio. — Estou bem... Não precisa agir como se
eu fosse quebrar.
— Mesmo que você não quebre, não quero nenhum arranhão
em você. Nenhuma parte lascada — me responde, o semblante
sério e cauteloso. — Me entendeu?
É o suficiente para meu peito explodir em derretimento e a
minha barriga formigar. Porque, ao mesmo tempo que é fofo e
centrado, é decidido e sexy. Observo Mika deixar o quarto, ainda
muito pensativo, e voltar alguns segundos depois com nossas
mochilas em mãos. Ele as coloca nas poltronas de descanso do
quarto e ruma para o banheiro, ligando a água do ofurô.
Me desfaço do meu penteado primeiro, sentindo meus fios
retomarem o lugar ao redor do meu rosto. Me levanto da cama e me
apoio no batente do banheiro, analisando Mika sentir a temperatura
da água.
— Sabe... — começo. — Essa semana você dormiu comigo
quase todos os dias.
— Sim, verdade. — Ele não me olha, porque está de costas
para mim, escolhendo sais de banho para a espuma. — Me
acostumei com o seu ronco, aliás.
— Eu não ronco! — Me defendo, um pouco ofendida.
— Como você pode saber se está dormindo?
É uma boa pergunta, por este motivo decido não respondê-la.
Como Mika está focado em cuidar de mim e não entendeu o tom
malicioso da minha voz, escolho pegar o caminho mais rápido;
começo a retirar a minha blusa. De primeiro momento ele não
percebe, porque desliga o ofurô, mas repara quando meu shorts
está preso nos meus tornozelos. Ele me encara, um tanto quanto
perdido, mas arrasta seu olhar certeiro em minhas pernas nuas e na
minha barriga exposta. Ainda estou de calcinha e sutiã, mas não me
demoro em tirá-los.
Mika fica na mesma posição, me admirando boquiaberto,
sem saber o que fazer primeiro.
Dou um passo em sua direção e firmo minhas mãos na barra
de sua camiseta, puxando-a e revelando o tronco exposto e suas
tatuagens pretas, espalhadas por sua pele branca-pálida. Ele sorri e
molha os lábios, esperando pelo meu próximo passo. Desamarro
sua bermuda e a deixo cair naturalmente até seus pés, brindando-
me com a visão de Mikael com sua cueca preta — e boxer.
— É um convite — anuncio, massageando seus ombros,
enquanto abaixo meu olhar.
Ele ainda não me responde, porque talvez esteja inebriado
pelos poucos segundos que conseguiu raciocinar. Mika engole em
seco, dando destaque ao pomo de adão que sobe e desce. Suas
mãos finalmente se movem, me segurando pelo quadril. Seus dedos
se afundam na minha pele e eu oscilo, adorando o aperto. Deposito
um selinho demorado em seus lábios, enquanto arrasto sua cueca
para baixo, sem retirar meu olhar do dele.
Subo novamente e Mikael se apoia na ponta do ofurô, se
controlando um pouco.
Ele segura a minha mão e me ajuda a entrar na água, me
acompanhando. Ele se mantém por trás, me abraçando e me
fazendo apoiar em seu corpo quente e molhado. Me deito nele,
deitando minha cabeça em seu busto e sentindo suas mãos grandes
pousarem nas minhas coxas.
As bolhas se formam diante de nós e sinto quando meu corpo
todo relaxa.
Estive pensando e ensaiando o que dizer a Mika sobre meus
sentimentos, mas ainda é um pouco complexo. Especialmente
porque prometi a Ivy e a mim mesma que eu não iria me envolver.
— Você deve ser a pessoa mais bonita do mundo. — Sua
frase me arrepia, porque é acompanhada de um beijo na bochecha.
Suas mãos encontram lugar nos meus ombros e Mika começa a
desferir uma tendenciosa massagem. — Não consigo te tirar do
pensamento, Georgia.
— Sirvo como inspiração? — pergunto, de olhos fechados.
— A nova musa da minha criatividade tem nome. — Ele
deposita um beijo no meu ombro direito, arrastando os dentes por
minha pele em seguida. — Devo parar?
— Com o quê?
— Devo parar de pensar em você ou posso continuar?
Minhas batidas se intensificam.
Meu Deus.
Faz anos que não me sinto assim.
— Deve — proclamo. — Porque também penso em você.
— Imagino — comenta. — Todas as possíveis maneiras em
me matar, aposto.
— Como adivinhou? — brado, energética. — Sou tão sem
graça assim?
Mika ri na minha orelha, beijando-a.
— Na segunda, teremos nossa primeira cena íntima juntos —
lembra. Ele para a massagem um pouco, porque está ocupado
beijando minhas costas. — Com certeza, iremos trabalhar essa
química no final de semana.
— Posso te contar meus planos? — Me animo, brincando
com os cabelos de sua nuca. Ele assente, ainda focado nas minhas
costas. — Quero passar o final de semana todo deitada na cama,
comendo, sem fazer nada.
— Hum?! — Ele me aprecia.
— Não quero trazer nossos amigos para um churrasco.
Estarei sendo egoísta ao pensar que quero... Que quero você só
para mim?
Mika para de me beijar, porque ao ouvir o que digo, ele se
espanta um pouco. Apesar de ter adorado o que ouviu, ele parece
trancafiado em uma miragem ou uma ilusão, porque seu sorriso
cresce lentamente. Mika não diz mais nada, apenas me segura pelo
queixo e me beija com ternura, misturado com toda a malícia
presente no seu corpo.
Eu dou risada em sua boca, abraçando-a pelo pescoço — e
tendo dificuldade, porque estou torta na banheira. Ele espalma uma
das mãos nas minhas costas, me arranhando fracamente, e
mordisca meu lábio inferior. Me aprofundo em seu toque e me
permito senti-lo mais perto, sentando em seu colo escorregadio pela
água. É difícil me manter centrada, porque escorrego algumas
vezes, nos causando crises de riso. E o momento é tão leve que
sequer me importo se é sexy ou não.
O banho continua, com beijos e mãos bobas, mas quando
seguro a nuca de Mika para investir ainda mais em seu pescoço, ele
desiste. Desiste de tudo.
— Chega — anuncia, entredentes e mordendo a minha pele.
— Vamos para a cama. Eu te quero pra caralho, garota.
A minha risada é alta, mas Mika é ágil em sair do ofurô
primeiro, buscando uma toalha em seguida. Ele joga uma em mim, a
tempo de eu ver seu membro não se conter no tecido felpudo da
toalha branca.
— Não demora — me acusa, apontando na minha direção e
saindo do banheiro.
Sua ausência deixa um espaço considerável e sinto sua falta
quase que em automático, porque quero estar perto dele. Afinal, é
por isso que estou aqui. Termino meu banho em apenas alguns
minutos, lavo o meu cabelo e meu corpo, deixo que a espuma se
infiltre na minha pele e ganho um aroma irresistível de flores.
Decido sair, puxando a toalha que Mika deixou para mim. Em
pé, me enrolo nela, saindo do ofurô com cuidado. Seco meus pés e
saio do banheiro, encontrando o guitarrista principal da banda
Desvio ainda de toalha, observando o sol se pôr. Ainda há gotículas
concentradas em sua pele e me animo novamente, sendo atingida
por uma onda de entusiasmo.
Ele repara na minha presença e sorri para mim, por cima dos
ombros.
É a minha vez de ficar parada, avaliando seus passos na
minha direção, até se aproximar o suficiente para arrancar a toalha
do meu corpo, me deixando nua e exposta. Mika sorri lentamente,
enchendo suas mãos com a minha bunda e me beijando
explicitamente. Sua língua se move em uma velocidade nada afoita,
é bem devagar, sujo e explícito. Só com este contato, me sinto
excitada novamente — e ansiosa — para darmos continuidade a
tudo o que queremos fazer, mas não conseguimos pela semana
conturbada e cansativa.
Desprendo a toalha de sua cintura, para senti-lo por
completo. O abraço pelas costas, ainda adorando suas mãos em
mim. Ele me aperta e estala um tapa na minha bunda, que ecoa
pelo quarto todo. Morde, suga e lambe minha boca, me conduzindo
para a cama. Ele me segura pelo rosto, esquadrinhando meus
traços, como se não pudesse acreditar em nada.
Às vezes desejo que ele apenas apareça para me importunar.
Ele me atira em direção à cama, onde eu caio de costas,
deixando meus cabelos se espalharem. Mika cobre seu corpo com o
meu, o sorriso atrevido brilha em seus lábios; a sugestão sexual
palpita de seus olhos e sinto sua virilha reagir de imediato.
— Não tão rápido. — Afasto-o, conseguindo escapar de seu
aperto. Confuso, ele fica na mesma posição, com as sobrancelhas
unidas. — Sabe que tenho uma vingança a planejar, né?
— Como assim?
— No Telhado — informo, me aproximando dele e o fazendo
sentar na cama. As pernas esticadas, se acomodando perto dos
travesseiros. — Você me dedou bem gostoso... E eu disse que você
pagaria caro por isso.
Seu sorriso se banha em sugestão.
— Achei que tinha esquecido.
— Não esqueço — asseguro. — Não quando posso te
provocar.
Seguro a base de seu pau já duro, sentindo-o vibrar de
tentação ao analisar a minha mão tão firme em seu membro
deliciosamente atrativo. Dedilho de seu pescoço até sentir seus
cabelos de fios rebeldes, posiciono minha mão em sua nuca, ao
sentir a reação de seu corpo de encontro com a minha pele.
— Qual foi a última vez que você transou? — pergunto,
começando a brincar com os movimentos de cima e para baixo da
masturbação.
— Sei lá. — Ele enruga o rosto, fechando os olhos e
tombando a cabeça para trás. — Com a Sofia.
— Sério? — Não quero sair do personagem, mas a revelação
me espanta. Isso quer dizer que faz quase dois meses. Eu acho. —
Ela te desbloqueou?
Seu sorriso sacana surge.
— Está com ciúme, Georgia?
— Só me responda. — Masturbo com ainda mais vontade,
fazendo o sorriso desaparecer para dar lugar aos seus gemidos.
— Não, continuo bloqueado. Foi naquela noite, do bar... nós...
porra, isso tá bom pra cacete. Depois não saí com mais ninguém —
conta, banhado em perdição. — Por que quer saber?
— Nada — respondo, inocente.
É o que eu preciso para abaixar o meu rosto e enfiar seu pau
na minha boca sem aviso, ainda o estimulando. Mikael estremece
com força, soltando um grunhido rouco. Ele apoia suas mãos nas
minhas costas e busca meus cabelos, para segurá-los.
Solto um suspiro considerável, porque é muito mais gostoso
chupá-lo do que pensei. Invisto na glande com a ponta da minha
língua e a sugo quase por inteiro. Ao gemer, Mika consegue soltar
um riso frouxo, extasiado. Ele me mantém firme, bagunçando meus
fios coloridos ao sustentá-los.
Seu pau fica cada vez mais duro, e sinto minha boceta vibrar
de tesão. Ultimamente, basta que Mikael me olhe intensamente, é o
suficiente para eu ficar úmida.
Me afasto um pouco para tomar fôlego. Mika abre seus olhos,
como se estivesse buscando respostas para a minha pausa. Apenas
sorrio, garantindo que estou bem. Estalo os lábios um no outro e
brinco com a ponta da minha língua em sua cabecinha, distribua
beijos longos e pontuados na glande lubrificada. Solto um gemido
surpreso e eufórico, adorando seu gosto.
Fecho os olhos para sentir seu pau entrar novamente na minha
boca, engolindo meu membro cada vez mais, com o meu hálito
quente. De uma forma que me faz delirar e deixar minhas pernas
bambas.
Abro uma fresta das minhas pálpebras para enxergar Mika.
Ele morde os lábios, segurando ainda mais firmemente os meus
cabelos e sorrindo entre um gemido e outro. A tarefa de ficar quieto
não é nada fácil. Meu gemido, com ele, vem fácil e frouxo. É
maravilhoso, espetacular, tê-lo bem na palma da minha mão. Posso
sair daqui a qualquer momento, e ele não entender nada. Mas não é
isso o que eu quero. Só o fato de cogitar perder mais tempo com
Mikael me deixa ansiosa. Dessa vez, serei condizente.
Sinto sua perna bambear ainda mais e a sensação vitoriosa
que me cerca é fantástica. Mika me presenteia com a sensação
colossal de estar sendo revirado de dentro para fora pelo prazer.
— G-Georgia... — avisa, dando pequenos tapas nas minhas
costas. — Eu vou...
Continuo focada na minha tarefa, porque serei boazinha o
suficiente em fazê-lo chegar até lá. No Telhado, o restaurante, eu
não tive a mesma sorte, mas depois ele me recompensou. Só nos
resta partir para um patamar que ainda não experimentamos no
sexo; a penetração.
Mika explode dentro da minha boca. Agradeço por ele ter
avisado. Sou paciente em esperar que ele preencha toda minha
língua com seu gozo, e só me afasto quando tenho certeza que
terminou. Mika está rindo feito um bobo e me observa engolir o
pouco do líquido que fica rente em mim.
Sorrio, deixando explícito minha satisfação.
— Vem cá... — Me puxa pelo pulso, e eu me deito em seu
peito, ouvindo seu coração palpitar. — Você acabou comigo.
Me aperto em seu tronco e percebo que ainda estou úmida
do banho, sequer notei enquanto trepávamos agora a pouco. Estou
cansada também, então aproveito para descansar.
Porque ainda não terminamos.
35.01: crème brulée
INGREDIENTES: gemas, creme de leite, leite, açúcar, extrato de baunilha.

Nós cochilamos, por fim. E tão rápido dormimos, tão rápido


acordamos. Despertamos apenas porque Mikael teve um espasmo
muscular forte o suficiente para me assustar, me retirando do sono
pesado às pressas. Então acordo esbaforida, confusa e em alerta.
Até notar que se trata dele, sonolento, estirado ao meu lado na
cama.
Já é noite. Alguns focos de luz estão postos na praia, o que
não nos dá a ideia de uma escuridão total. Mikael também acorda
pela denúncia de seu corpo, ele sorri molenga para mim e me beija,
me trazendo para perto. E, apesar de estar decidida a transar,
também estou faminta.
— Só quero repor as energias — contra argumento quando
escuto um zumbido de protesto vindo de sua parte. Procuro por uma
calcinha em minha mochila e a visto, passando uma camiseta grande
pelos meus braços logo depois. — E eu tenho certeza que você
também precisa... O que mais você desejar, é apenas gula da sua
parte. — Pisco, aprovando a minha piada de duplo sentido.
Saio no corredor de luzes apagadas, passando a minha mão
por todos os interruptores. A casa se ilumina, me brindando com um
frescor novo. Mikael vem logo atrás de mim, usando apenas uma
cueca. Vou em direção à cozinha, o último cômodo, escancarando as
portas dos armários. Sua presença rapidamente me encurrala contra
o balcão da cozinha e ele beija meu ouvido esquerdo, deixando suas
mãos passearem pela minha barriga e costelas.
— Deixa que eu cozinho — avisa, galante. — Você sempre
faz alguma sobremesa para gente quando estamos na cobertura.
— O que tem em mente? — Me viro na sua direção,
amolecendo.
— A única coisa que sei fazer, claro. — Levantando sua mão,
ele começa a selecionar os ingredientes sem que eu veja. —
Macarrão.
A risada que escapa de mim é sincera e eu afundo meu rosto
no seu peito, concordando.
— Está ótimo — defino, lhe passando apoio e me afastando
da cozinha. — Serei apenas sua convidada.

Os pratos de macarrão estão sujos ao nosso lado, no chão do


quarto. Os talheres sobrepostos uns aos outros, trazendo alguma
variedade de comida que deixamos de lado. Estamos detonando
uma caixa de suco de uva em taças de cristal, fingindo que é vinho.
A comida de Mika não é um desastre como ele fez parecer, é apenas
simples, mas muito saborosa. Estamos rindo de nossas piadas
enquanto ele me conta algumas fofocas sobre sua banda. Ele não
entra em detalhes sobre o novo álbum e as músicas em que está
trabalhando — nesse quesito, Mika é muito profissional e misterioso.
Apenas me diz que vou gostar, porque ele sabe que, no fundo, sou
uma grande fã da Desvio.
— Vou levar isso lá pra cozinha — anuncia, recolhendo nossa
sujeira do chão, mas que não chega a manchar ou danificar o tapete
chique da decoração do quarto.
Utilizo seu tempo fora da suíte para pegar meu celular pela
primeira vez em horas. Há mensagens de Allura falando que está
assistindo um filme com Amanda, de Beatriz me enviando fotos do
Elvis Presley falso de Las Vegas. Tem Gael zombando de mim e
Pedro pedindo a receita do meu bolo de laranja.
Ainda não há sinal de qualquer possibilidade de uma audição
para o filme de Karina Sales, mas ainda me mantenho esperançosa.
E muito.
Quando Mika volta, ainda estou na mesma posição, no chão,
encolhida, digitando no celular. Porém, quando ele fecha a porta do
quarto, me desfaço do aparelho no mesmo instante, porque quero
me dedicar ao nosso final de semana. Engatinho para a cama,
preguiçosa com o clima aconchegante, e ele se deita ao meu lado,
ligando a TV à nossa frente, mas sequer prestando atenção no que
passa no canal. Ele se aconchega comigo, à minha frente, apenas
analisando meu rosto. Há uma imensidão de perguntas e questões
que dançam na minha mente, é um ótimo momento para perguntar
tudo o que eu quiser saber. Portanto, sorrio, começando a formular a
pergunta perfeita.
— Ei... — Cutuco seu ombro, fazendo-o me encarar. — Como
você descobriu que também gostava de garotos?
— Estava guardando essa pergunta há quanto tempo com
você? — zomba, desferindo um carinho no meu joelho esquerdo. Ele
está deitado atravessado na cama, ainda de cueca.
— Há muito tempo, mas estamos confinados aqui. Nossas
perguntas serão nossas únicas companhias.
— Bem pensado... — Aponta na minha direção. — Qual foi a
pergunta, mesmo?
— Como você descobriu que também gostava de garotos? —
repito, eufórica.
— Quando eu vi o sorriso do Pedro pela primeira vez depois
de nos reencontrarmos.
— Uou. — Me endireito entre os travesseiros, me
interessando ainda mais pela resposta. Ela é tão firme e bonita, que
pisco minhas pálpebras. Mika arrasta um sorriso convencido. — E
aí?
— E aí, o quê?
— O que aconteceu depois?
Ele não me responde rapidamente, porque gosta de criar
expectativa em mim. Mika abre um sorriso singelo, refazendo as
carícias na minha pele. Nossas barrigas estão forradas e cheias, seu
macarrão foi uma ótima pedida para o jantar.
— Bom... Na época, era lógico que eu estava... Desconfiando.
Na minha vida toda, nunca pensei que houvesse uma separação.
Meninos e meninas, e apenas isso — conta, sorrindo para o teto. —
Mas nunca parei para prestar atenção em mim mesmo. Quando eu
conheci o Bernardo, eu só queria saber de tocar minhas músicas
favoritas, andar de skate, me arrebentar por estar andando errado de
skate, trabalhar em comerciais e ajudar minha avó com o que fosse
necessário. Nem as garotas eram tão interessantes, confesso... —
Ele suspira, sorridente. — Então, nosso antigo baixista era um porre
e o Gael disse que conhecia o Pedro. Eu reconheci aquele nome,
mas nem me toquei que se tratava do mesmo garoto que eu brincava
quando era menor. Quando eu o vi de novo, na minha frente, se
apresentando como um possível baixista, foi... Normal. Mas quando
ele sorriu, quando ele me fez sorrir, eu sabia que alguma coisa
estava acontecendo e, pela primeira vez, dei ouvidos ao meu interior
de verdade, não apenas fingindo que a vida era apenas skate e
música.
— Então, vocês começaram a namorar?
— Não — garante. — Depois eu tentei me aproximar, contei
ao Ber, conheci outros caras, outras garotas. Tentei me reconectar
comigo antes de chegar no Pedro. Só quando começamos a nos
destacar com a Desvio, foi que eu tive coragem de esboçar meus
sentimentos a ele. Por sorte, foi recíproco e começamos a namorar.
— E depois? — Me animo com a história.
— Depois perdemos um contrato grande com uma gravadora,
porque ela mudou de ideia quando descobriu que o baixista e o
guitarrista eram namorados — confidencia, me fazendo soltar um
muxoxo. Sou puxada para a realidade novamente, onde nem tudo é
colorido e com um final feliz. — Corremos atrás de outra por mais um
ano, até a gravadora afiliada da Farol fechar com a gente.
Mantivemos o namoro discreto e, em seguida, terminamos. Um ou
dois anos depois de já sermos famosos.
— Pelo o que eu estava vendo, vocês eram um casal muito
fofo, Mika — elogio, contente. Ele agradece, sorrindo. Me acomodo
ainda mais na cama, me sentindo extremamente confortável. — E
sinto muito. Sobre a primeira gravadora.
— Deixa aqueles otários comerem merda — define,
rancoroso. — Com certeza, viram a besteira que fizeram. Mas eu
não faria nada diferente. Nada, mesmo! — Ao ouvir minha risada de
aprovação, ele toca minha barriga. — E você?
Suspiro, muito risonha.
— Foi quando uma atriz perguntou se poderia me beijar —
recito. Ele reage, ao abrir a boca. — Eu tinha uns dezessete anos.
Estava em um evento de um filme, e ela se aproximou, me elogiou,
começou a conversar comigo e a flertar também. Quando ela falou
sobre o beijo fiquei confusa. Principalmente, porque a resposta que
eu estava pensando era “sim”. — Ele solta um uivo, me provocando.
— Então, eu meio que fugi, mas depois apareci novamente e nos
beijamos. Foi tudo muito rápido, então no outro dia fingi que nada
aconteceu.
“Até pensei que era apenas curtição, mas era uma forma tão
errada de se ver as coisas, que percebi que eu ainda estava me
conhecendo. Que por mais determinada que eu fosse, ainda teria um
capítulo na minha vida que eu precisaria desvendar. E ler com calma,
não ir tão afobada decidindo as coisas. Contei para a Allura, nós
conversamos e eu comecei a focar em mim.
“A reparar em mim, a usar cada detalhe novo que eu não
vinha reparando ao meu favor, apenas para obter as melhores
informações possíveis sobre quem eu era. Até notar que estava
rumando para uma fase conturbada, o Meniere, mas muito sólida ao
reconhecer a minha bissexualidade não apenas como diversão numa
festa ou tédio em uma viagem.”
Mika me olha com atenção, sem dizer nada, apenas sorri
como quem diz “Sei exatamente o que você quer dizer”. E,
basicamente, é o suficiente. É muito importante encontrar uma
pessoa que te entende e compreende o que você quer dizer, mas
uma pessoa que sabe do que você está falando, porque sente o
mesmo, é realmente diferente. É significante e nos faz sentir que
pertencemos a um lugar e que nossos valores importam. Que nossos
valores importam finalmente.
Fico em silêncio, apenas o encarando de volta.
Meu coração palpita, meus dedos brincam, ansiosos, uns com
os outros. Meu peito sobe e desce, e a minha mente voa.
— Posso te fazer uma pergunta? — Mikael se aproxima de
mim, se apoiando nos joelhos. Assinto com a cabeça, em silêncio. —
Quem é a sua última pessoa favorita?
Uso minha mão para esconder meu riso frouxo.
— O Bernardo — respondo.
— Quê? — explode em negação. — O Bernardo? Você nem
fala com ele. Aposto que respondeu qualquer merda!
— Não — assumo, dando de ombros. — Ele vem sendo
menos babaca, faz a Amanda feliz genuinamente, não me irrita mais,
realmente está se tornando mais agradável. Por que não? —
pergunto retoricamente. — Bernardo vem sendo uma ótima pessoa.
Mika estreita os olhos, nada convencido.
— Ainda vou conquistar esse pódio. — Me ameaça, com o
dedo erguido na frente do meu rosto. — Você ainda vai responder o
meu nome, Georgia.
Beijo a ponta de seu nariz, lhe pregando um susto.
Ele desiste de sua destreza em me intimidar e se aproxima,
me beijando e pousando sua mão por dentro da minha camiseta.
35.02: crème brulée
Minha relação com o sexo é; eu gosto, mas preciso ter uma
real conexão com a pessoa. Não me importo sobre como as outras
pessoas lidam, mas estou falando sobre mim. Já transei com alguns
caras apenas para provar que eu podia, dormi com uma porção de
babacas, tentando convencer a mim mesma de que estava sendo
livre. Mas se um forte remorso me atingia depois, que raios de
liberdade era aquela?
Para me compreender dentro das relações íntimas, primeiro
precisei compreender aonde o sexo se encaixava nas minhas
prioridades. Depois que notei que eu não precisava me adequar ao
que esperavam de mim — e nem outras pessoas precisavam seguir
os meus caminhos — me tornei muito mais livre. Exatamente como
eu queria.
No meu ponto de vista, não há problema nenhum em
conhecer a pessoa muito antes de ir para cama. Aliás, é o que eu
gosto de fazer. Mesmo que seja casual, estabelecer uma confiança é
o que eu verdadeiramente prezo. Allura é diferente de mim, e eu sou
diferente dela. E simplesmente consigo reconhecer que não existe
uma forma certa ou errada. Apenas o que nos faz bem é o que
conta.
É por isso que me sinto tão confortável quando Mikael retira a
minha camiseta, passando por entre meus braços e ombros. Ele joga
a peça no chão e me coloca no seu colo, sem pressa alguma. Me
sento de frente, com as pernas ao redor da sua cintura.
Ele me segura pelos ombros e traz nossas testas para se
firmarem, coladas.
Respiramos fundo e juntos, até nossas bocas se conectarem,
como se soubessem o caminho uma para outra, naturalmente. O
beijo me infla e me desmonta, me desarmando do mundo ao nosso
redor e me fixo apenas em Mikael. Seu cheiro me atiça e me
estimula, me enfeitiçando aos poucos. Suas mãos se mantêm nas
minhas costas nuas, espalmadas, me mantendo firme em seu colo.
É devagar e pontuado, mas é sensual e ardiloso. Com
cuidado, ele me deita, me sobrepondo, seu peito acima dos meus
seios, mergulhado em nosso beijo. Enfio minhas mãos em seu
cabelo, gemendo baixinho com a sensação deliciosa de conforto.
— Agora você vai ser minha — proclama. — Como já deveria
ter sido.
— Sua autoestima é admirável. — Afasto seus cabelos do
rosto, contornando sua cicatriz com o meu polegar. — Mika.
Ele fecha os olhos, sorrindo.
— Adoro quando você me chama assim — comenta, beijando
a minha testa. — Demorou muito para fazer isso.
Não respondo, apenas sorrio e o trago para perto,
aprofundando em um clima diferente, até conseguir sentir sua
respiração pesada e quente, me transformar em uma pessoa
completamente vidrada em tê-lo dentro de mim.
Sua mão se posiciona na minha cintura, me apertando,
enquanto a outra encontra um caminho certeiro para o meu seio
esquerdo. Mikael abandona meus lábios por alguns instantes,
ouvindo meus grunhidos acompanhados de protestos. Mas ele cala a
minha boca quando abocanha o primeiro mamilo inchado e
redondinho que encontra. Ele consegue sorrir apenas um pouco,
porque gosta da entonação surpresa e extasiada que deixo escapar
automaticamente.
Ele consegue se firmar na cama, deixando a outra mão livre
para beliscar o seio direito.
Afasto a minha cabeça para trás, enfiando-a nos travesseiros
macios, para poder curtir a sensação sem observá-la. Sinto quando
sua língua traça um caminho do seio esquerdo para o direito,
umedecendo o vale para chegar até o outro. Esfrego as minhas
pernas em seu corpo, para que ele sinta que o desejo tanto quanto
ele me deseja.
Arranho suas costas e suplico para que me beije novamente.
Mas ele não acata a minha ordem, apenas quando consegue fazer
meus olhos revirarem, elucidados pelo contato da sua língua em uma
das regiões mais sensíveis do meu corpo.
— Quero você — relembro, segurando seu queixo, com as
minhas unhas fincadas em sua pele. — Agora, Mikael.
Ele sabe que eu falo sério e sua entonação perspicaz me
enche de prazer, apenas por vê-lo tão de perto. Seu corpo, seus
dedos, sua perna, seu pau e seu sorriso são capazes de me fazer
perder a cabeça, me tirarem do sério — e ele, infelizmente, já sabe
disso.
Mika não diz nada, porque está sorrindo de maneira
convencida. Ele pega a minha mão, à direita, colocando-a no volume
de sua cueca, fazendo com que os meus dedos lhe apertem com
indelicadeza. Ele grunhe bem perto da minha boca, sorrindo de lado
e esfregando seu membro ereto na palma da minha mão.
— Te quero pra caralho, Georgia — avisa. — Só me dizer
quando, estou esperando por você, gata.
Rio debochadamente, mas com um tom carregado de luxúria
que o faz pressionar seu pau em mim, investindo seu quadril contra a
minha mão. Não largo dele; embora eu queira chupá-lo de novo,
também o quero dentro de mim. A solução que encontramos para o
nosso dilema é rir um para o outro, bêbados de tesão.
O cantor decide se afastar um pouco, esticando o corpo para
perto de nossas mochilas. Ele retira um tubo de lubrificante e
algumas camisinhas, deixando-o no móvel mais próximo de nós.
Retira sua cueca, liberando o pau duro e molhado na glande,
fazendo uma pequena linha do líquido escorrer até as bolas. Minha
boca saliva e eu choramingo, manhosa, para ele se aproximar de
mim logo. Tiro a minha calcinha até os joelhos, utilizando meus
tornozelos para fazerem o serviço completo. Mikael está abrindo um
preservativo e seu rosto está concentrado no meu corpo, nos
detalhes que talvez ele não tenha prestado atenção anteriormente.
Nas curvas e nas marcas de nascença que possuo na cintura. Sua
hipnose é uma grande vantagem, então começo a estimular meus
mamilos, segurando meus seios com vontade, apertando-os,
massageando-os e os amassando-os contra o peito.
— Georgia... — vibra por mim, meio como um aviso, como
uma lamentação.
Sorrio largamente, travessa.
Ele coloca a camisinha com destreza, desenrolando pelo resto
do corpo de seu pau. Pego o tubo de lubrificante, abrindo-o com
cuidado e derramando o gel feito à base de água na palma da minha
mão. Espalho com delicadeza na entrada da minha boceta, da forma
mais explícita que consigo. Mika busca fôlego, esperando
pacientemente o momento de eu terminar, mas está sério o
suficiente para eu saber que está sedento por mim e pelo nosso
momento.
Quando termino, me afundo ainda mais na cama, ajeitando
minhas pernas ao redor de sua cintura e o abraçando pelo pescoço.
Ele toma a minha boca na sua, ajeitando o membro em meu centro.
Mika empurra com cautela, analisando minhas expressões enquanto
mantém a boca grudada nos meus lábios. Pouco a pouco, seus
centímetros me preenchem e preciso soltar um murmúrio
impressionado por senti-lo tão firme dentro de mim.
Ele investe, tomando seu ritmo lento para si. Aperta os lençóis
ao redor da minha cabeça, mantendo o tronco erguido acima do
meu. Seus olhos não saem dos meus seios, vagando do meu
pescoço até os meus olhos. É quando sorri, abaixando-se um pouco
para roubar um selinho meu.
Beijo a parte superior de seu pescoço, afagando minhas mãos
em seu peitoral, sentindo os músculos brutos de seu abdômen.
Demora alguns instantes para nos acostumarmos, até que sua
velocidade aumenta e ele consegue segurar meus cabelos pelo topo
da minha cabeça. Mika cerra os dentes, concentrado em mim e no
meu prazer, resmunga sacanagem no meu ouvido e arrasta seus
dentes pela minha pele. Seus atos acompanham meus olhos, e
nossos olhares se fundem em palavras que não conseguimos
discorrer.
Desfaço as minhas pernas, deixando-as caídas ao seu lado.
Espalmo seu peito e remexo meu quadril, avisando silenciosamente
que quero tomar a rédea da situação. Protestamos juntos quando
seu pau sai de mim, mas não demoro a virá-lo, para montá-lo. Ele
sorri, astuto, me segurando pela cintura e escorregando as mãos
para minha bunda. Ele estala tapas na minha carne e pressiona a
virilha contra a minha novamente. Engulo seu membro com a minha
boceta e recomeço seus movimentos, agora controlando-o.
Mikael xinga alto, fechando os olhos e apertando as
pálpebras. Ele tomba a cabeça para trás, me fazendo delirar com
olhares de desejo.
Cavalgo deliciosamente no seu pau, levando uma de suas
mãos para o meu seio. Massageio seus ombros enquanto quico,
rebolando sempre que possível e a cada pausa. Mesclo os ritmos,
deixando-o vidrado em mim. Mika morde os lábios, enquanto enche
suas mãos com a minha bunda. Ele me aperta tanto que seus dedos
se afundam na carne, repuxando com vontade.
Libero meu sorriso mais sacana e safado, porque meus
gemidos estão se tornando audíveis. Não estou controlando a minha
mente, porque sei que estamos sozinhos e adoro como o quarto se
preenche com a nossa melodia sugestiva dentro de uma cama. E da
maneira que nossos corpos se completam, com a fricção saborosa
se misturando com nosso suor.
— Quero mudar de posição — aviso, ofegante.
Mikael não responde, porque ele apenas obedece o que eu
rapidamente indico. Aponto para o começo da cama, ele levanta o
tronco, me abraça e ainda dentro de mim, se move para a beirada do
móvel. Com os pés e as pernas fora da cama e sentada na beira, ele
me segura pela minha bunda; malicioso, mas ainda um pouco
confuso com o que eu quero.
Seguro sua virilha, me desfazendo de seu pau. Me viro de
costas para o cantor, recolando meu cabelo para frente. Mikael
entende o que quero, então abre a minha bunda com suas mãos, me
ajudando a sentar nele, só que agora de costas. Arfo alto quando
estamos reconectados novamente e preciso de um segundo para me
estabelecer. Ele agarra meu cabelo, estimulando sua virilha contra a
minha bunda.
Uso a minha força para quicar de costas para ele, sentindo
seu peito molhar as minhas costas pela transpiração deliciosa que
estamos compartilhando. Sua mão descansa na minha cintura,
enquanto a outra brinca com meu clitóris. Me esfrego em seu corpo e
revelo meus grunhidos satisfeitos por nossa química. Consigo
segurar sua nuca erguendo a minha mão e tombo minha cabeça
para trás, apoiando-a em seu ombro.
Ele morde e beija meu pescoço, apostando nos chupões para
me fazer delirar ainda mais. Intensifica o aperto nos meus cabelos, o
que me faz gritar baixinho. Não estou mais no controle quando
Mikael se aconchega abaixo de mim, me estocando com força,
controlando a orla intensa do meu clitóris, que se torna um fantástico
brinquedo em suas mãos.
Aperto meus seios, identificando a sensação inconfundível do
meu orgasmo.
— Georgia... — Mika sussurra. — Vou gozar.
Sorrio, entre uma estocada e outra, mas não respondo. Sequer
consigo formular uma resposta adequada enquanto ele me come. É
pedir demais, não consigo nem ao menos pensar. Senti-lo em mim
faz meu corpo arder em chamas por querer mais, por ansiar as
outras vezes em que estaremos banhados por esses lençóis.
Gemidos altos, às vezes controlados.
Mikael investe com força, com estocadas pontuadas que me
fazem arfar o suficiente para atingir meu ápice. Meu centro formiga,
transformando a sensação em pequenas explosões de prazer que
crescem por meu ventre, sobem pela minha barriga e se desfazem
no meu peito, me trazendo a famosa sensação de estar nas nuvens,
com as pernas moles e os sentidos aguçados.
Alguns segundos depois é a sua vez, gemendo baixo no meu
ouvido, com a voz arrastada, rouca e lenta causando espasmos e
arrepios pelo meu corpo. Ele me abraça com toda a sua força,
estocando uma última vez, até ouvirmos nossas respirações rasas e
descompensadas.
Por alguns segundos, eu o encaro e, quando nossos olhos se
encontram, apenas rimos. Bagunçados, suados, extasiados e
cansados.

Prendo meu cabelo com dificuldade quando termino de atingir


outro orgasmo, hipnotizada pelas íris acastanhadas que me assistem
vibrar e estremecer abaixo dele. Meus fios estão encharcados de
suor pela segunda rodada de sexo e desisto de prendê-los, jogando
meus braços na cama, agradecendo por termos escolhido a posição
de lado para transar de novo.
Depois que terminamos a primeira transa, apenas deitamos.
Mas uma coisa leva a outra, uma mão boba muito bem posicionada
leva à outra e, quando percebi, já estávamos enroscados de novo,
de lado, brigando por espaço e desatando a arfar alto de novo.
É uma sorte que a casa mais próxima fique a muitos e muitos
metros.
— Vou tentar ficar longe de você, garota — Mika promete,
retirando a camisinha usada do pau. Ele amarra na ponta e a joga
em qualquer lugar no chão, exausto o bastante para sequer levantar.
— Sério.
— Não, não vai. — Viro de frente para ele, deitando de
bruços. É uma delícia estar pelada e sentir o corpo livre de tecidos.
— Você não consegue.
— Verdade, não consigo.
Mika fecha os olhos, relaxando, de barriga para cima.
Ele não consegue dizer mais nada — e nem eu — , apesar de
estar um pouco elétrica por nossos momentos.
Não sei o que está acontecendo comigo, mas de repente é
bom me entregar totalmente para o que a casa tem a me oferecer.
Mikael tenta se afastar totalmente da sonolência que parece
atingir cada parte do seu corpo. Ele se senta, abrupto, na cama e me
puxa para perto, me abraçando com força. Seus dedos amaciam
minhas costas e a minha nuca, mas sei que ele dormirá em breve.
— E aí. — Puxa assunto. — Já se vê morando aqui?
Para falar a verdade, sim.
— Ainda não — minto, não sei o motivo, mas talvez para ouvir
sua provocação ao pé da minha orelha. — Ainda é cedo — defendo-
me. — Mas... É um ótimo lugar. Estreamos a cama e ela não
quebrou, então isso é um bom sinal. Não acha?
— Isso é um desafio? — murmura. — Você quer quebrar a
cama?!
— Se ela for a minha futura cama, não. Mas se for pagar...
Quem sabe?
Ele ri, inflando e desinflando o peito.
— Mas consigo me ver cuidando de um bichinho e o levando
para passear pela praia, no final da tarde. Depois me preparar para
um turno noturno no... hum... bistrô... — conto, empolgada. — Planos
e planos.
— Afinal... — decide dizer. — Qual vai ser o nome da
confeitaria? A inauguração está batendo na porta e ainda não sei o
nome.
É Amora Mio, penso em dizer, mas controlo a minha língua
com um sorriso atrevido que ele não pode ver.
Subo meu olhar, para enxergar seu rosto descansado. Suas
pálpebras estão fechadas, lacradas e tranquilas, Mika está
namorando com o sono e com a possibilidade de adormecer dentro
de instantes. É estranho perceber que uma pessoa que eu odiava
tem total influência no nome — perfeito — para a minha confeitaria.
O nome não tem nada em relação ao que eu sinto por ele e o que
estamos tendo, é realmente uma ideia espetacular e traz um
trocadilho açucarado sobre amor e doces.
— Você ainda vai saber. — Toco sua bochecha, ouvindo sua
respiração demarcar que ele finalmente dormiu.
36: torta de maçã
INGREDIENTES: biscoito de maisena, margarina sem sal, maçãs, açúcar,
refinado, canela, suco de limão, leite condensado, creme de leite, baunilha.

A sensação de leveza me acompanha por todo o final de


semana. No sábado, Mika e eu acordamos cedo para caminhar na
praia e pegarmos o melhor momento do sol. Corremos atrás de um
cachorro que se soltou de uma coleira e tivemos que subir em cima
de uma árvore para recuperar a pipa de uma criança. Voltamos pela
tarde, cozinhamos juntos e eu preparei uma torta de maçã que se
tornou uma de suas sobremesas favoritas. Entramos na piscina e
ficamos jogando conversa fora no sofá, enquanto eu recebia
massagens nos meus pés.
Transamos, jogamos Uno e assistimos TV. No domingo,
decidimos fazer um churrasco apenas para nós dois e não pegamos
o celular em nenhum momento.
Passamos o dia todo comendo e ouvindo nossas músicas
favoritas em alto e bom som.
Agora, na segunda-feira de manhã, estou baqueada.
Completamente anestesiada pelo início da semana que, com
certeza, não pode e nem vai me atingir. Minha pele está queimada
de sol, meu sorriso está largo e as coisas estão se encaixando
perfeitamente. Minha confeitaria abrirá em breve, meus amigos
estão em harmonia, eu pertenço a um grupo, a novela está em seu
auge e hoje gravaremos uma cena importante para Marina e
Germano.
Sinto como se estivesse em uma vibração adulta e
sofisticada, e que a minha vida está em um eixo gostoso e
fresquinho de se acompanhar.
Seguro a minha mochila em mãos quando entro na minha
cobertura no Hotel Prudência, destrancando a porta. Em breve, não
morarei mais aqui. É apenas um lar temporário.
Mika me deixou no elevador, disse que estava ansioso para
começar a compor e a reencontrar Pedro e Gael. E como vamos
nos rever hoje à tarde na emissora, afirmei que não precisava de
companhia para o meu andar.
Deixo as chaves em cima de um móvel na entrada e jogo a
minha mochila em qualquer canto. Trabalhando no balcão aberto da
cozinha, Ivy está tomando uma taça de vinho, digitando com apenas
uma mão no notebook aberto. São apenas oito horas da manhã,
não entendo o motivo de ela estar bebendo.
Ela usa óculos de grau e seu cabelo louro-arruivado está
preso em um rabo de cavalo bem alto. Sua postura é invejável e seu
semblante é límpido, mas sério.
— Voltou cedo, darling — diz, sem retirar o olhar da tela.
Suspiro, concordando.
Às vezes sinto vontade de abraçar Ivy, porque ela é uma
pessoa que vem me acompanhando há anos. Não somos amigas,
não somos confidentes, somos parceiras de negócio, mas é
complicado separar todas essas categorias quando você se apega.
— Eu ainda tenho um emprego — comento, rindo e
caminhando na sua direção. Ela coloca seus olhos em mim, mas
não se demora com o ato. — O que está fazendo?
— Alguns relatórios — evidencia. A voz cansada e um pouco
arrastada condiz com o horário. — Volto para Londres em um mês,
e como sua carreira está indo bem e você está decidida a
abandoná-la, não tem muita coisa a se fazer.
— Então... — Cruzo os meus braços, frouxamente. Me
aproximo do balcão e me apoio em uma banqueta. — Então... Eu
não consegui o teste para o filme da Karina Sales?
Ela me encara de lado, desconfiada.
— Achei que estava... Como se diz? — Aperta os olhos,
buscando a palavra ideal. — Blefando? É isso?!
— Acho que sim. — Sorrio. — E não, não estava. Realmente
me interessei pelo roteiro...
— Bom... — Ela volta a digitar, decidida. — Teve sorte.
Mesmo assim, consegui uma audição. Daqui cinco dias, na cidade
vizinha. Eles querem uma confirmação até amanhã... Posso mesmo
confirmar? — Ivy me encara com atenção, preocupada e cética.
E eu sei o que ela pensa.
Eu a assustei quando disse que sairia da Farol, que deixaria
de lado a carreira de atuação para me dedicar ao meu bistrô e, de
repente, surge um projeto que realmente me encanta. Tanto por
falar sobre a minha doença, quanto por ser um filme independente,
que me tirará de uma zona de conforto em que estive orbitando há
anos.
— Sim, pode sim — afirmo, me remexendo ao seu lado. Ela
me espia de canto de olho e finalmente sorri. — É sério. Eu fiquei
pensando durante o final de semana, Ivone. — Faço questão de
falar o seu nome. — Se tem uma pessoa que pode repassar toda a
angústia para a personagem, essa pessoa sou eu.
— Não tenho dúvidas — sibila. — De verdade, estou falando
sério. — Ela faz uma pausa, analisando suas palavras. Pelo idioma
que digita, identifico que seja italiano. — Vou confirmar, então.
— Certo, ok. Obrigada! — Pulo no lugar, animada por pensar
em trabalhar com Karina.
Mesmo que o assunto tenha acabado, não consigo me
dispersar de perto de Ivy. Me sinto empolgada, feliz, frenética e
animada com a vida.
— O que você quer? — Ela resmunga, girando a banqueta na
minha direção e puxando a taça de vinho para si.
— Esse é o seu jeito inglês de puxar assunto comigo? —
provoco, estreitando os olhos.
Ela não responde, desconfiada.
É o tipo de pessoa que consegue identificar uma mentira a
quilômetros de distância. Esconder alguma coisa de Ivone Telesco é
o mesmo que tentar forjar uma situação para um espião.
Então, eu relaxo os meus ombros, arfando pela boca e
brincando com um fiapo da minha camiseta. Hoje o dia está um
pouco nublado, mas ainda está muito quente. É confuso explicar,
exatamente como as minhas emoções.
— Fiz o que você disse para não fazer, Ivy — confesso, um
pouco envergonhada. Ela ergue suas elegantes sobrancelhas, em
repreensão, mesmo que ainda não saiba o que eu fiz. — Você disse
para eu não me apaixonar pelo Mikael... — relembro. — Mas foi
exatamente o que eu fiz.
Há alguns dias venho reparando que Mikael não comenta e
não fala sobre sair com outras pessoas e, talvez, seja um bom sinal.
Porque também não estou interessada em conhecer ninguém.
Ivy aperta a taça com as duas mãos, bufando.
— Às vezes isso não funciona, Georgia. — Seu sotaque
pronuncia meu nome do mesmo jeitinho que eu gosto de ouvir.
Vindo apenas dela, é claro. — E eu sabia que isso poderia
acontecer, mas pensei que você fosse inteligente!
— Ivy! — brado, rindo nervosamente. E, para a minha
felicidade, ela está sorrindo também. — Me desculpe, ok?! —
Empino o meu nariz, começando a retrucar. — Mas... — Abaixo um
pouco a minha guarda, sorrindo de lado. — Faz anos que não me
sinto assim. Ah, sim, Mikael é detestável e inconveniente, mas faz
muito tempo que não sinto essa animação em ver uma pessoa ou
até mesmo pensar que o mundo ao redor parou de girar apenas
porque estamos juntos. É tão brega, batido e convincente, que eu
tenho certeza de que estou apaixonada, apenas por pensar em
tanta besteira!
Ela me fita, neutra. Está gostando de me ouvir falar, por isso
continuo:
— Eu tinha me esquecido do que era sentir isso, consegue
me entender? — Abaixo o meu olhar. — Tipo... Me apaixonei muitas
vezes, mas eu tinha esquecido do que era sentir a pele arrepiada e
a aquela ansiedade para ver a pessoa. Apenas me esqueci. É tão
gostosinho de sentir, que parece a primeira vez... O que pode ser
perigoso, confesso. Mas... — Ergo o meu dedo anelar, ressaltando
meu ponto. — Eu não tenho medo do amor, tampouco da queda.
Não me importo em estar magoada, não me importo se isso for
durar por dois dias ou duas semanas, realmente não tenho medo do
que a paixão tem a me oferecer. — Abro outro sorriso. — Se Mikael
e eu formos apenas uma página na vida um do outro, eu não vou ter
medo da seguinte. Porque se nos chatearmos, ele nunca, jamais
será a única pessoa do mundo — conto. — Dizer é bem mais fácil
do que fazer, mas é o que eu penso. Você entendeu tudo o que
disse? — Me preocupo. — Ou quer que eu repita alguma parte?
Nunca falamos sobre isso!
Ivy sorri, entreabrindo a pouca. Ela deixa a taça de lado e
toca meus joelhos.
— Nós nunca falamos sobre nada, darling. — Sua
sinceridade não é malvada, apenas constata um fato. — Mas
entendi o que você disse. Quase tudo, mas deu para entender... —
Ela sacode a cabeça e morde os lábios. — Eu tenho dois filhos.
Franzo a testa, não conseguindo entender o que sua frase
tem a ver com a minha fala.
— Você sempre me disse que nunca soube nada sobre mim.
— Ela dá pequenas batidas nos meus joelhos, antes de pegar a
taça de vinho de novo. Sorrio abertamente. — Agora sabe. Eu tenho
dois filhos. Elena e Ethan. Eles são gêmeos e fazem faculdade na
Irlanda. São crescidos, não precisam mais de mim, mesmo que às
vezes insistam que sim. — Seu sotaque carregado acentua cada
palavra. — Agora você sabe... Que eu, Ivy, sou mãe.
— Ivy... Uau! — Suspendo as minhas sobrancelhas, chocada.
— Eu nem imaginava, achei que seus filhos fossem seus
agenciados. Você nos trata como uma mãe!
— Às vezes vocês conseguem... Me tirar do sério! — Ela
solta um soluço, quase bêbada. — Mas eu... Admiro cada um de
vocês.
Essa é a maneira de Ivy dizer que gosta de mim — que me
ama — , que preza pelo meu bem-estar, que adora trabalhar comigo
e que estará aqui para quando eu precisar. Quando nos
conhecemos, ela nunca me lançou um sorriso sequer. Não é muito
diferente de atualmente, mas quando sorri, é como se
conquistássemos uma joia rara depois de tanta busca.
Ela não diz mais nada. Confessar que tem filhos é o máximo
que conseguirei ouvir de Ivy. Se ela é casada ou divorciada, será um
assunto para daqui outro momento sensível e vulnerável como esse.
Não é algo que ela dirá. “Ah, preciso ir, meu ex-marido está me
deixando irritada!” nunca sairá da sua boca — pelo menos, nem tão
cedo.
Fazer a linha misteriosa é o que lhe define.
— Sobre Mikael. — Ela se vira novamente para o notebook,
esse é o seu jeito de dizer que nossa conversa acabou e que ela
precisa trabalhar. — Ele também está apaixonado por você. Há
muito mais tempo do que você imagina.
E é isso.
Ela não diz mais nada, nem explica ou nem disserta sobre o
que acaba de falar. É também um incentivo, porque se fosse uma
má ideia, Ivone seria a primeira pessoa a se opor. Até quando uma
ideia é boa, Ivy hesita em concordar.
— Obrigada, Ivy.
Não é um agradecimento sobre Mikael, ele não está
relacionado ao assunto. É apenas uma forma que encontro de dizer
que minha agente é especial, por mais que goste de separar os
sentimentos de sua profissão.
— Darling. — Ela infla o peito, impaciente. — Vá tomar
banho, você está cheirando a peixe e sua pele está seca. Você tem
uma cena importante para gravar hoje!
Ela voltou, penso, sorrindo de lábios fechados.
Me sinto uma adolescente pisando duro pelos degraus da
escada, em direção ao quarto, mas realmente não me importo em
encerrar nosso breve diálogo.
Ele já foi muito esclarecedor.
37: pasta de amendoim
INGREDIENTES: 500 gramas de amendoim cru, sem pele e sem sal.

TUDO EM CIMA!
Nada pode abalar o casal sensação que está no páreo para
ser eleito o mais bonito do ano.
E aí, apoiam?

— Você tem certeza?


— Filha... Eu sei reconhecer uma goteira quando vejo uma. —
Ouço a voz de Seu Serafim me presentear com a notícia de mais
uma goteira sem sentido na confeitaria. Ele está me dizendo que é
bem no centro do salão principal e que se não for consertada o
quanto antes, deixará a inauguração para daqui a três meses, um
mês a mais do que estou planejando. — Posso pedir para
consertarem ou você quer ver primeiro?
Não consigo responder, porque o cabeleireiro particular que
está me atendendo acabou de puxar uma mecha consideravelmente
grande do meu cabelo, me fazendo grunhir de dor. Lhe lanço um
olhar de censura, porque suas mãos não são macias e nem
agradáveis. Ele murmura um pedido de desculpas rápido e volta a
pentear meus fios.
Estou sentada de frente para a minha penteadeira, no meu
camarim. Preciso estar na preparação íntima em dez minutos, mas
Ellen insistiu que eu fosse retocar meus fios azuis — apenas para eu
estar no auge da minha beleza como Marina. Ele está finalizando o
penteado, mas não parece muito satisfeito com o resultado. De
alguma forma, errou o tom de azul. Ele não está mais azul-turquesa,
e sim azul-marinho.
O dia começou bem, mas uma infinidade de coisas
minúsculas está transformando-o em um dia insuportável.
Depois que conversei com Ivy, subi para o meu quarto e
descobri que o motorhome dos meus pais quebrou no meio da
estrada para Paraty. Eles estão hospedados em um hostel perto,
mas estão tristes pela despesa inesperada. Com certeza, eles
possuem um fundo generoso para momentos como esse, mas o
motorhome tinha passado por uma inspeção há pouco tempo.
Depois, descobri que nossa aula de preparação íntima seria feita às
oito da noite, o que deixou implícito que a gravação da cena de sexo
será de madrugada.
Para completar, Mikael está atrasado para a aula — e isso, de
repente, se torna culpa minha. O dono da casa onde passamos o fim
de semana não respondeu às minhas mensagens ainda. Há um
boato pelos corredores de que Karina encontrou a protagonista
perfeita para o seu filme. O cabeleireiro está machucando meu couro
cabeludo de diferentes formas. Seu Serafim está me avisando de
mais uma goteira indiscreta no bistrô e, para completar, o dia está
terrivelmente quente. Está chovendo também, uma tempestade de
verão está acontecendo do lado de fora, mas não está fresco. Muito
pelo contrário, continua quente pra cacete.
Todo o meu bom humor está quase se esgotando.
Se o final de semana serviu para repor as energias, a semana
está encarregada de esgotá-las.
— Não, Seu Serafim, eu confio no senhor — respondo,
agradecendo ao perceber que o cabeleireiro terminou meu penteado.
E, preciso dizer, o novo tom de azul combina comigo, mas a
diferença é escancarada. — Pode contratar alguém. Depois me avise
quanto ficou... — Checo o horário no relógio grudado na parede. São
dez para oito e Mika ainda não chegou. — Me avise se algo
acontecer. Preciso ir agora...
— Tudo bem, filha. Tudo bem!
Ele desliga, educado e determinado. A porta do meu camarim
bate, anunciando que o cabeleireiro também foi embora, sem se
despedir, pelo visto. Analiso a minha imagem no espelho; os olhos
grandes focados em delineador, os cabelos grandes, compridos,
banhados em tinta azul.
Me ergo da cadeira, checando as horas mais uma vez. Pego
uma garrafa de água e a abro, entornando metade do líquido fresco
e gelado. Limpo o canto da minha boca, úmida, quando alguém bate
na porta. Apenas grito que a pessoa pode entrar e envio uma
mensagem para Mika, relembrando que precisamos encontrar uma
tal de Carmen daqui poucos minutos.
Para minha surpresa, quem aparece à porta é Teresa, a
assistente de RP. Ela está com o semblante vazio e distante. Da
última vez que Teresa me encontrou, ela me ofereceu uma notícia
nada promissora.
— O que aconteceu, Teresa? — Me adianto, deixando a
garrafa de lado e colocando as mãos na cintura. — Não me diga que
estou namorando outra pessoa famosa sem saber. — Dou risada da
minha própria piada, para esclarecer que não estou colocando a
culpa em suas costas.
Mas ela não sorri, nem estremece por achar minha frase
engraçada.
— A Dona Claudia quer ver você, Georgia.
Bufo muito alto, mas controlo meus sentimentos explosivos
pelo estresse. Teresa não tem culpa de o dia estar sendo uma
merda, de estar sendo uma bomba-relógio me presenteando com
muita ansiedade e conflitos para lidar. Então, coloco meu melhor
sorriso no rosto e envio outra mensagem para Mikael, apressando-o.
— Desculpe — sibilo, batucando meus dedos na tela do
celular. Por que ele não responde? — Eu preciso encontrar o Mika e
a Carmen. Vamos gravar uma cena importante hoje, Teresa.
E a última coisa com que eu preciso lidar hoje é Claudia Farol
e sua instabilidade profissional, seus dizeres passivos-agressivos e
suas ideias nada cordiais em tratar um funcionário.
— Não dá, Georgia. — Teresa hesita, mordendo os lábios de
maneira insegura. — Ela quer mesmo falar com você. O quanto
antes!
Teresa é só uma garota que cumpre ordens e faz seu
trabalho, não tem o porquê de insistir que ela repasse minha
mensagem nada sorrateira para Claudia .
É o tempo de eu relaxar os meus ombros, convencida, para
Teresa dar um passo para a frente e Claudia entrar no meu camarim,
sem ser convidada. Para variar, ela está segurando seu celular em
uma das mãos. Um trovão acaba de fazer as janelas tremerem e não
posso encarar esse sinal como mera coincidência.
Sinto vontade de rir, mas escolho me manter firme.
Acanhada, Teresa se despede de mim, fechando a porta
rapidamente.
Claudia Farol está olhando para os lados, captando cada
detalhe do camarim para si. Ela escaneia as minhas fotos pregadas
no espelho, no meu frigobar cheio de água, nas araras que apoiam
meus principais figurinos e nos farelos de bolacha que deixei quando
precisei almoçar qualquer guloseima que encontrei na cantina mais
próxima.
— Voltou de viagem? — Ela pergunta com a falsidade
banhada na voz. Claudia junta as pernas e se senta no sofá,
cruzando-as.
— Sim, e...
— Que eu me lembre, este camarim era do Mikael. — Me
interrompe, sem me dar a chance de alfinetá-la. Por que ela ama
saber onde eu estava? — Não me lembro de terem trocado.
— Isso aconteceu há algum tempo — desconverso. De
repente, não sei se devo me sentar ou esperar sua boa vontade em
falar o que veio fazer aqui. Mas, como estou atrasada, decido
emendar: — O que quer, Claudia ? Me oferecer boas-vindas que não
é.
É rude e hostil, mas não me importo mais em conquistar a
confiança e o respeito dela. Não depois de como veio me tratando
ultimamente.
— Tem razão. — Ela sorri. — Vou ser rápida, Georgia. Não
gosto de enrolação... — Sem retirar os olhos de mim, Claudia projeta
seu polegar em cima da digital do celular, desbloqueando-o. —
Vocês foram descobertos.
Ela coloca o celular em cima da mesinha de centro, indicando
que posso pegá-lo caso eu queira. Sua tranquilidade, soberba e seu
ar misterioso se fundem, me causando pequenos calafrios pela
coluna.
O que ela quer dizer com isso?
A frase é ambígua, pode conter muitos significados.
Arrumo as minhas costas, ficando reta. Tento não demonstrar
meu estresse e me sento no sofá à sua frente, ficando bem perto da
beirada. Pego seu celular e só consigo ler o que está escrito quando
a tela fica na altura dos meus olhos. Não é um texto comum, é uma
troca de mensagens que foi configurada em um screenshot. É,
resumidamente, uma foto. Nas mensagens, uma pessoa chamada
Pedro está trocando informações com uma pessoa chamada Gael.
Os integrantes da Desvio.
Eles estão brincando sobre o Esquadrão do Namoro Falso e
como eles querem que Mikael coma a própria língua; que eles
desejam que Mika realmente fique comigo na vida real, e que
esqueça essa besteira de farsa. Fico impassível o tempo todo, sem
emitir som algum.
Quando termino de ler, Claudia ainda sorri.
— Tem mais — avisa, com um tom de prazer escorrendo por
sua voz esbelta. — Passe para o lado.
E eu passo. Sendo agraciada com mais uma troca de
mensagens, dessa vez, de Pedro com Allura. Eles estão falando que
estamos com uma boa visibilidade, que nossos números
aumentaram e que somos um casal lindo — por mais mentira que
seja. Em todas as mensagens, algum deles está falando sobre o
namoro falso. São conversas tiradas do contexto, mas que podem —
e vão — fazer um grande estrago em mãos certas. Exatamente
como Claudia está fazendo agora.
Não espero que ela me diga que tem mais, deslizo o dedo
pela tela, encontrando mais mensagens e informações
comprometedoras retiradas diretamente do celular de Pedro. Ele não
as forneceu, porque parece confortável em conversar com seus
amigos, pessoas de confiança. O que implica e me garante que seu
celular foi hackeado. Completamente invadido.
Quando as mensagens acabam, chego nas fotos.
Em uma delas, Ivy está conversando com um fotógrafo,
enquanto Lola Santos, a empresária da banda, se mantém ao lado.
Não é uma rua movimentada, tampouco um lugar aberto. É uma foto
de uma sacada de um prédio; é profissional e recluso. Elas estão
concentradas na missão, ou seja, fazer com que todos saibam da
existência do novo casal sensação.
A foto seguinte é mais um print, onde é mostrado o extrato de
uma transferência bancária. É de um banco internacional, mas que
caiu na conta de um cara brasileiro. Consigo ler IVONE TELESCO
com perfeição, repassando o mesmo pagamento que havia me
informado para poder garantir que os paparazzis estivessem na
nossa cola, quando Mika e eu visitamos a praia de Sereia
Encantada, há semanas.
Nessa altura dos fatos, meu coração já está palpitando no
meu peito, chegando até os meus ouvidos. Meu tinido está aguçado
e minha barriga já está funda. Minhas mãos estão suando e segurar
o celular é uma tarefa pegajosa e molenga, como se ele fosse sujo e
sentisse repulsa de mim, tanto quanto sinto dele. Engolir a saliva me
presenteia com um nó na garganta, me fazendo recuar e sentir um
refluxo se aproximando. Tudo o que farei daqui para frente será útil
para Claudia usar contra mim.
Eu sabia que ela estaria de olho em mim, mas não poderia
imaginar que jogaria tão sujo.
Continuo a ler tudo o que ela me oferece, chegando em fotos
cruciais de Mika ao lado de Sofia. São fotos que nunca vi, talvez
aquelas imagens que Lola correu para apagar da internet. Eles estão
conversando, sorrindo, um do lado do outro, em um banco de praça.
Não parecem tão íntimos, mas ela sorri de uma maneira que ilumina
todo o seu rosto.
É demais para mim, então devolvo seu aparelho, colocando-o
na mesa.
— Viu tudo? — pergunta, sorridente. — Até as fotos?!
— São antigas — murmuro, cruzando as minhas pernas. Não
posso demonstrar insegurança e nem fraqueza. Estou estática,
petrificada e me sentindo acuada, mas não posso deixar que ela
saiba. — Sofia e ele não são mais amigos.
— Entendi. — Claudia assente a cabeça. — Não sei, não. As
fotos são de hoje!
Ela está brincando com o celular entre os dedos de unhas
pontiagudas. Ela sabe que está amaciando a minha curiosidade e
instigando um lado ciumento que não é nada saudável ou ético.
Decido não dar esse gostinho a ela. Se Mikael está se encontrando
com Sofia é totalmente problema dele.
Preciso repetir a última frase na minha mente, porque me
recordo do nosso final de semana juntos. Ela foi a última pessoa com
quem ele esteve.
Preciso organizar meus pensamentos o quanto antes. As fotos
não são reveladoras, não fazem parte de um escândalo. Podem ser
dois amigos saindo juntos.
Não é?
Não peço para vê-las novamente, mesmo que eu sinta
vontade de conferir o restante. Será que eles foram vistos se
beijando? Juntos?
Respiro fundo, tentando calar a minha mente, tentando conter
meus gritos internos.
— O que você quer, Claudia ? — falo com firmeza, me
surpreendendo por parecer tão controlada. Não posso deixar que ela
saiba o caos que está se formando no meu cérebro. — Está
orgulhosa de ter invadido o celular do Pedro? Sabia que isso é
crime?
— É admirável como você se acha importante, Georgia
Pessoa. — Claudia junta as pernas, reunindo o celular no colo. —
Não paguei ou contratei ninguém. Eu apenas recebi com
exclusividade antes que a mídia inteira saiba.
— Por quê? — sibilo, cerrando meus dentes. — Por que justo
você?
— Sou a pessoa que está na linha de frente nesta emissora,
não seja inocente! — pede, sorrindo com aspereza. — Em breve
herdarei a Farol, e a minha meta é manter as coisas como elas são.
Com harmonia, respeito e competência. — Ela sobe os dedos,
mostrando três deles para mim. — E esses fatores você não tem. —
Claudia se remexe no sofá, se apoiando nos joelhos, curvada. — Eu
sabia que você estava me enganando...
Mentir não é tão fácil quanto parece. Eu posso resistir e
afirmar que é apenas uma brincadeira entre Pedro e eu, mas há
certos momentos que simplesmente não podemos mais disfarçar.
Claudia é uma nítida ameaça, e se está aqui, no meu camarim, ela
não quer uma conversa, ela quer cantar vitória. É tudo tão confuso.
Muita informação para processar.
— O que você quer? — Insisto na pergunta.
— Os boatos estavam correndo soltos — explica, se
recostando no móvel, espalhando-se. — É de se imaginar que
algumas pessoas estivessem desconfiadas, porque Mikael e você
nunca se deram bem.
Ela tem razão, o que pode surtir um efeito contraditório
quando assumimos o namoro. Mas apenas uma pessoa realmente
focada em me desmascarar colocaria tanta energia em apenas um
rumor. E talvez ela esteja falando a verdade, que não contratou
ninguém para corromper a privacidade de Pedro Honduras.
Mas que ela esteve por perto, sempre espionando qualquer e
toda a falha, este é o mais puro fato.
— O que você quer? — repito, muito séria. Não vou
pestanejar, nem choramingar e nem fazer um teatro. Absolutamente
nada. — Se está aqui, você tem algo em mente, Claudia .
— Não gosto de ser enganada! — Ela aponta o dedo na
minha direção. — A Farol é da minha família e não admito que dois
atorezinhos enganem a mim, a minha empresa e o público com um
namoro de mentira que pode explodir a qualquer momento! —
Claudia estreita os olhos, furiosa. — E eu tenho como garantir que
esse conteúdo não vaze. Lola Santos é uma querida, e está fazendo
de tudo para que Pedro tenha a privacidade mantida, mas ela não
tem muito poder. Para calar a boca de verdade dessas pessoas, é
preciso de mais. E eu posso oferecer isso a você... Se quiser.
Ah, sim.
Chantagem.
Se fosse por mim, ela poderia imprimir cada imagem deste
celular e pregar nas paredes de todos os países. Eu ainda sairia
ferida, porque seria alvo de críticas violentas e pecaminosas, mas
seria um efeito destinado para mim. Uma consequência que eu teria
que saber lidar, de uma forma ou de outra. Mas ela está envolvendo
o nome de Pedro agora. Alguém que não tem nada a ver com isso.
O público não me perdoaria tão facilmente se fosse
confirmado um envolvimento fantasma, um teatro na frente de uma
plateia. É brincar demais com a sorte e com a credibilidade de
inúmeras pessoas, ainda que elas não tenham poder nenhum sobre
a minha vida pessoal e privada.
— O que tem em mente? — negocio, tentada a aceitar a sua
proposta. Faço qualquer coisa para ela cair fora e eu poder ligar para
Pedro, apenas para saber se ele está bem ou não.
Se esses prints vazaram, é certeza que outras conversas e
fotos também.
— Saia da Farol — define de uma vez.
Faço uma pausa, piscando as pálpebras três vezes.
Preciso de um momento para digerir o que ouvi, nem sempre
escuto certo.
— Como é?
— Você me entendeu.
E entendi.
— Desculpa, Claudia . — Me levanto, saindo do sofá e
sacudindo a minha cabeça. — Tenho aula de preparação de cena
daqui a pouco, vou gravar madrugada afora e ainda estou atrasada...
— Essa é a condição para que nada disso vaze — intervém,
sem mover um único músculo. — Você sai da Farol, não diz nada
sobre importunação no meio do trabalho, não busca seus direitos e
vive sua vida cheia de doces e confeitos a partir de agora. É simples.
Se aceitar esse termo, nada disso partirá do celular do Pedro.
Lembre-se que ele pode ser muito afetado!
— E eu também! — trovejo, quase me oferecendo de bandeja.
Qualquer sinal de instabilidade emocional é uma vitória para a
herdeira.
— É, mas se esse conteúdo vazar, você será uma mentirosa
aos olhos do público. Mikael pode consertar a situação, mas
sabemos que tudo é bem mais cruel para uma mulher. — Ela
suspira, ácida. — Ele vai se reerguer, não se preocupe. Má
reputação é ótima para músicos. Em uma ou duas semanas todos
vão esquecer... Mas esse erro vai marcar a sua carreira e depois
todos se perguntarão onde está Georgia Pessoa.
Eu entendo o que ela quer dizer aos poucos.
Estremeço meus ombros, sentando-me no sofá novamente.
Estou encarando o chão sem saber o que dizer. De qualquer forma,
eu sairei perdendo. Se eu continuar na Farol, Claudia deixará que
essas informações vazem, fará com que a minha reputação se fixe
na lama, até não restar nada para contar a história. Amanda é prova
viva e real que as coisas não possuem a mesma medida para o
nosso lado. E há certos privilégios que jamais degustarei.
Se eu ficar, Pedro sofrerá uma consequência terrível. Eu serei
brindada com dezenas de insultos e ofensas. Minha seriedade será
comprometida e tenho certeza que meu futuro na atuação será
pontuado. Embora eu estivesse com pretensões de trocar de
profissão, ainda era uma escolha minha, e não de uma ricaça,
herdeira de uma emissora gigantesca, branca e com intenções
malignas sobre o certo e o errado.
E se eu pedir demissão da Farol, eu também sairei com uma
péssima visão de futuro. Um ator que sai no meio de um projeto é
visto como irresponsável e imaturo. Falarão sobre mim por semanas,
tentando especular o que me levou a abandonar a novela. Inventarão
mentiras, ouvirão fontes “confiáveis”, e tudo se tornará focado em
mim, na breve tentativa de descobrir a verdade. E se eu concordar
em não dizer nada, nunca poderei dar a entender que Claudia me
obrigou a deixar a emissora para sempre.
De todas as possibilidades, de todos os finais que ela está me
oferecendo, eu e apenas eu sairei como a errada.
Em uma opção, posso salvar a minha pele e na outra, salvar a
do meu amigo.
— E não era isso o que você queria? — Claudia debocha. —
Sair daqui? Esta seria sua última novela, estou apenas te dando a
possibilidade de sair mais cedo.
Minha decisão nunca esteve conectada à ingratidão. Comecei
na Farol aos cinco anos de idade, no meu primeiro telefilme para o
canal. Fiz amizade, conheci pessoas incríveis e cresci ao lado de
gênios da atuação que me ofereceram a maior parte do meu
conhecimento. Sair sempre esteve ligado à minha sede de conhecer
o meu potencial e conviver com uma cozinha cheia, e uma
confeitaria recheada de pessoas, porque realmente amo fazer
sobremesas.
Mas agora, talvez, eu entenda que este mundo bonito e vasto
nem sempre é colorido e fantasioso como eu pensei quando criança.
É podre, cruel e rude, e sempre será comandado por pessoas
poderosas sem qualquer senso com a realidade.
— As pessoas não gostarão de não me ver na novela —
tento.
— Você é substituível, menina — ressalta, frisando muito bem
a última palavra. — Uma reunião com os roteiristas e seu destino na
novela será selado. Não se preocupe!
Com a frase, descubro que sempre fui descartável, afinal.
Manter meu nome no catálogo por quase vinte anos foi primordial
para aumentar o prestígio, triplicar a grana deles. Me manter por
perto nunca foi sobre o bem-estar. Nunca.
— Eu avisei que você não poderia brincar com algo tão sério
— resume, me analisando com atenção. — Você tem até amanhã de
manhã para decidir o que vai fazer...
Não importa.
Minhas escolhas me tornarão a vilã na frente de todos.
— Não precisa. — Paraliso seus atos com a minha mão
erguida, oscilando o meu rosto. — Já tomei a minha decisão, pode
ficar tranquila.
Satisfeita, ela se esparrama novamente no sofá, pronta para
negociar.
38: sorvete de doce de leite
argentino
INGREDIENTES: leite integral, doce de leite argentino, creme de leite, fava de
baunilha, sal, gemas.

Minhas pernas estão reunidas, dobradas, em cima do meu


sofá. Estou detonando o meu estoque de sorvete de doce de leite
argentino que fiz hoje mais cedo, quando tentei me recordar de que
eu não precisava mais acordar cedo para ir a Farol, porque
simplesmente não faço mais parte de lá. Eu fiquei encarando a
parede por três minutos até me dar conta que eu não era mais uma
atriz exclusiva da emissora. Assinei o meu destrato, sorri para
Claudia e dei adeus para o meu papel como Marina.
Faz apenas dois dias que sai pela porta da frente, segurando
a minha bolsa, a vontade de chorar e o meu nariz entupido. Faz dois
dias que escorreguei no estacionamento e quebrei o braço,
consequentemente. Faz dois dias que estou usando uma tipoia e
abraçando a minha má sorte, sem fazer nada a não ser comer,
testar minhas novas receitas e ligar sem parar para o Seu Serafim.
Essas últimas quarenta e oito horas foram caóticas,
principalmente porque elas parecem dois meses, de tão cansada
que estou. Não dormi direito; pela dor do osso quebrado e por Ivy
estar uma fera com todo esse acontecimento. É claro que Claudia
correu para falar com a imprensa assim que eu saí do meu
camarim, então todo o país já sabe que deixei o elenco de Destino
Inteiro. Desativei minhas redes sociais, não atendo o meu telefone e
nem respondo as mensagens dos meus ex-colegas de trabalho,
porque não tem o que falar. E nem o que explicar.
Concordei previamente que o meu silêncio custaria a
privacidade dos meus amigos e de Mikael, e pelo menos isso foi
rapidamente cumprido.
Apesar de ainda ser um nato mistério o que vem
acontecendo nos últimos dois dias, eu não mudaria a minha escolha
por nada. Prezar pelo bem-estar de Pedro foi o que eu quis – e faria
isto novamente se fosse necessário. Ninguém precisa entender o
que eu fiz porque, na realidade, sinto que fiz o mínimo.
Agora Ivy está conversando ao telefone, enquanto Lola
Santos digita uma mensagem para alguém, totalmente preocupada.
Pedro, Gael e Bernardo estão sentados no meu sofá, analisando as
duas mulheres bem-sucedidas à nossa frente. É uma reunião
atípica, mas Mikael não está presente. Ele sumiu nos últimos dois
dias, disse que viajou para São Paulo para resolver uma
emergência, mas nem sua avó, Dona Elzira, disse que ele apareceu
por lá.
Sinceramente, não quero saber o destino de seu paradeiro.
Não mais.
Ou quero?
Sim, eu quero. Porque estou preocupada, mas não parece
que ele esteve se importando conosco. E quando digo isso, não
estou me referindo a nada romanticamente falando, estou me
direcionando ao fato de que gostaríamos de tê-lo por perto. O que
aconteceu com Pedro não apenas lhe afeta, mas como a Desvio por
inteiro.
— Você não precisava ter feito aquilo, Georgia — é Pedro
quem diz, baixo, tocando o meu joelho. Seu semblante é receoso e
estático. Enquanto eu estava sendo chantageada por Claudia,
Pedro estava tentando resolver o que podia para que seu material
pessoal não fosse parar nos confins da internet. — De verdade, eu
daria um jeito. Já estava dando...
— Sorvete? — ofereço, tentando mudar de assunto. Ele
recusa com um aceno, surpreso. — Pedro... — murmuro,
sobrepondo as vozes de Ivy e Lola. Não quero que elas escutem
nada da nossa conversa. — Não se preocupe... Pelo o que Claudia
Farol estava me falando, não eram apenas as conversas que tinham
vazado. Você sabe o que eu quero dizer, fotos, documentos,
senhas... Essas coisas. É muito mais do que apenas um namoro
falso circulando por aí.
— Mas não é justo! — Gael se intromete, inconformado. — A
Georgia não pode ser tratada assim. Pode?
— Já está — Bernardo responde, cansado. Nós olhamos
para ele. — Sem ofensa, claro. Mas a merda já está feita!
— Ele tem razão — sibilo, afundando minha colher no
sorvete. Estou dividida entre elogiar a minha receita ou sofrer de dor
pelo braço esquerdo quebrado. — A mídia já sabe e me tornei a
sensação do momento com mais uma polêmica. Agora, eles estão
doidos para saber o motivo!
— E você pode dar isso a eles. — Pedro se anima. —
Podemos dar um jeito de deixar subentendido que a Claudia te
chantageou.
— Sim, mas por qual motivo? — rebato. — Se chegarmos em
um ponto, precisamos revelar a razão pelo qual ela usou suas
armas contra mim. E isso seria pior... Bem pior!
Pedro, Gael e Bernardo ficam em silêncio, pensando. Pedro
com as mãos juntas, Gael coçando a nuca e Bernardo curvado sob
os joelhos. Jamais vi a banda tão sem brilho antes. E olha que para
isso acontecer, é preciso de muito.
Como pedi demissão, sem precisar realmente ser demitida,
saí sem direito algum. Apenas com o cachê integral, mas sem
salário ou qualquer outro pagamento legal. Claudia cuidou de tudo
pessoalmente para que não me restasse nada.
Meus sentimentos ainda estão confusos e, embora eu esteja
triste, acuada e reservada, me sinto aliviada.
— Tentei falar com o Ricardo Farol — Ivy retorna, desligando
o celular. Com sua chegada, Lola também deixa o aparelho de lado.
— Ele não sabe dizer se Georgia pode voltar ou não. Está... está...
como é a palavra?
— Explodindo na imprensa. — Lola completa, educada.
— Exato — Ivy concorda. — Todos só querem falar disso e
acaba sendo uma publicidade para a novela. Querendo ou não.
— Com certeza a audiência vai cair — Lola garante, tentando
me animar. — Mas dependendo da substituição, eles conseguem
malear o estrago.
— Primeiro ponto... — Ergo a minha colher suja de sorvete.
— Não quero voltar pra lá — friso, lambendo meus lábios. Ivy
arregala os olhos, petrificada. — Sem chance. Não quero pisar
naquele lugar nunca mais. Claudia me ofendeu e me enxotou de lá
como se eu não fosse nada. Aliás, ela deixou bem claro que eu não
sou nada para ela.
— Georgia. — Ela entoa seu sotaque inglês. — Estou
tentando...
— E agradeço, Ivy, mas não quero. — Me afundo no sofá,
sentindo o olhar de todos sobre nós. — Não quero voltar. Simples
assim. Mesmo que para salvar a novela do fiasco, eles podem se
danar!
— Jeito educado de dizer “que se foda!” — Bernardo ironiza,
me fazendo sorrir um pouco. — É... — Ele olha para Ivy. — Por que
a Gê voltaria se eles são um bando de babacas de merda?
— Desistências são péssimas — Lola responde, encurtando
o tempo de Ivy. — Se ela quiser um papel grande, será com receio.
— Precisamos pensar em todas as possibilidades. — Ivy
coça a testa, afoita. — Quem sabe... Fazer com que a Farol faça um
comunicado? Afirmendo que entre ela e Georgia, está tudo bem?!
— Afirmando — corrijo, amena. — E não, eles não fariam
isso. Eles gostam dessa atenção e com certeza Claudia espalhou o
motivo da minha demissão entre os irmãos Farol. Eles vão apoiá-la.
— Então... — Gael diz, depois do silêncio. — O que você vai
fazer?
— Nada. — Dou de ombros. — Na verdade, vou me dedicar
ao meu bistrô, que é o que eu deveria estar fazendo desde o
começo. Aceitei participar dessa última novela em respeito aos anos
em que a Farol me acolheu muito bem, mas eles não tiveram
respeito de volta por mim. Eles sequer precisam de mim. Eu sou um
lucro e, daqui a um tempo, haverá outro lucro para eles. Minha
saída vai trazer bons resultados a eles, da mesma forma que um
pedido público de desculpas meu fará com que eles sejam ainda
mais intocáveis.
Olho para Ivy, para ela entender o meu ponto. E eu não a
culpo por tentar resolver toda essa situação catastrófica. Ela é a
minha agente, se preocupa e preza pela minha carreira, é seu
trabalho me manter nos holofotes, mas é preciso me ouvir.
— Prefiro que todos me encarem como uma garotinha
imatura do que uma mentirosa. Prefiro que eles joguem suas
opiniões contra mim do que acessar toda a vida do Pedro na palma
da mão novamente. Ouvir que eles estavam com todo controle do
celular dele me aterrorizou. Eu iria escolher a mesma opção se eu
voltasse no tempo... Então... — Inspiro profundamente. — Espero
que respeitem a minha decisão de não voltar para a Farol. — Eles
assentem com suavidade, mas Ivy é a última a acenar com a
cabeça. — Na verdade, vou voltar lá daqui uns dias, preciso limpar
meu camarim, mas vocês me entenderam!
Ao menos consigo fazer Gael sorrir um pouco com a minha
piadinha.
— E se eu processar a Claudia ? — Pedro sugere. — De
qualquer forma, ela estava com as imagens.
— É, mas já temos os nomes dos culpados e entramos com
um processo de crime virtual — Lola responde, repassando seus
olhos pelos garotos da banda. — Claudia, por mais que tenha tido
acesso, ainda sugeriu uma maneira de manter tudo em segredo e
cumpriu. Nada vazou! — Ao ouvir o que Lola diz, Pedro bufa, com
raiva. — E mesmo se tivesse vazado, ainda seria complicado
combater um membro da Família Farol...
— Seria complicado, mas não é impossível... — Pedro rebate
na mesma hora. — É por isso que essa gente tá no poder, porque
ninguém faz nada.
— Podem até fazer, cara — Bernardo fala, massageando a
testa. — Mas acabam morrendo na praia. Essa gente é influente,
conseguem arquivar um caso em um piscar de olhos.
— Não posso ficar de mãos abanando! — exclama, enojado.
— Isso quer dizer que estou abaixando a cabeça.
— Eu te entendo. — Afago suas costas com a minha mão
livre. — E é isso o que me deixa mais irritada. Esse círculo sem fim
e esse labirinto de falsas opções... — Fecho meus olhos. — Eu
devia ter gravado... — Abro meus olhos, inspirando. Eles me
encaram, esperando por mais. — Quando ela chegou no meu
camarim, eu deveria ter colocado meu celular pra gravar. Ter feito
algo mais do que só ouvir!
— Não coloque a culpa em você — Pedro pede, segurando o
meu joelho. — Aquela cobra fez de propósito, te pegou
desprevenida para que você não pensasse.
O silêncio preenche cada cubículo da sala de estar.
Todos se mantêm sérios e pragmáticos, sem vontade alguma
de dizer mais nada. Parece uma encruzilhada, onde estamos
correndo a toda velocidade e dando de cara com uma parede. Dou
mais uma colherada no sorvete, satisfazendo meus sentidos. Allura
não está aqui porque toda a equipe da novela está dentro de uma
reunião urgente sobre o novo destino da trama. Eles podem ter me
chutado bem na bunda, mas levarei alguns pontos da audiência
comigo.
Que seja um fracasso — mas que faça sucesso, porque
Allura não merece afundar.
— Pedro? — Lola o chama. — Vamos iniciar os passos do
processo?
Nunca vi Lola tão suave e sensível antes e isso me deixa
feliz. Pelo menos ela está tratando o momento com toda a
delicadeza necessária. Pedro Honduras confirma com o queixo, me
dando um pequeno carinho entre meus cabelos e sorrindo
tristemente para mim. Pedro está arrasado que uma boa leva de
paparazzis e hackers o viram tão vulnerável, conseguindo passear
por seus arquivos mais íntimos. Ele não quis conversar muito
comigo, mas está um pouco aliviado por Beatriz não ter sofrido nada
tão grave.
Ele se levanta do sofá e indica um caminho para Lola, e os
dois seguem juntos para a minha varanda.
Se eu me concentrar muito, consigo ouvir o som dos gritos
das fãs que acamparam na frente do hotel nesta manhã. Elas
choram e pedem a minha volta. Pensei em descer e dar atenção a
todos, mas Ivy disse que isso só pioraria a atenção. Se eu aparecer
com o braço quebrado, podem inventar outras milhões de mentiras
— e não quero me apegar a nenhuma delas, por mais inteligentes e
sagazes que elas sejam.
Ivy abre e fecha as mãos, talvez furiosa demais com uma
situação que ela não possa resolver com uma ligação. Admiro como
ela tenta consertar tudo até quando não tem um caminho para
correr.
— Descansa, Ivone — peço com firmeza. — E estou falando
sério dessa vez.
Ela hesita e até pondera, pensa e repensa em uma forma de
retrucar. Mas, convencida, ela faz um sinal com a cabeça e deixa a
sala de estar, caminhando em direção à cozinha.
— Você é foda — Bernardo me elogia. Um sorriso pequeno
trilha seus lábios finos. — De verdade, mesmo. Essa novela não
será nada sem você!
— Ela vai cair — Gael afirma, de um modo tão confiante, que
é difícil não acreditar em suas palavras. — Ninguém mais vai assistir
sem você.
— E aí eles vão falir — emendo, adorando a minha parte
rancorosa dando as caras.
— E vamos dançar nas cinzas. — Bernardo balança os
dedos, interpretando bonequinhos dançando.
— Assim que se fala!
Dou risada pela primeira vez em dois dias e me sinto bem. É
um momento que experimento como tem que ser, bem leve e
despretensioso.
— Quer ajuda? — Bernardo oferece, se recostando no sofá.
Ainda está preocupado, mas quer me animar de algum jeito. — A
lidar com a má fama? Posso ajudar com uma ou duas coisas.
— Eu também. — Gael ergue a mão. — Eu sou um anjo! — E
sorri. — Mas isso não quer dizer que ninguém diz nada sobre mim.
— Como assim? — Me volto para Gael, comendo um pouco
mais de sorvete.
— Por exemplo... — Ele junta as mãos e respira fundo. — Tá
sendo foda lidar com as dúvidas quanto ao meu ex-relacionamento
com a Allura, foi tudo muito rápido e eu ainda me sinto sozinho,
sabe? — pergunta, olhando para mim e para Bernardo. —
Conversei com o Mika um dia desses, mas na real, é que eu sinto
falta de ter alguém por perto. E isso é o que mais me deixa ferrado
da cara. — Gael faz uma pausa. — Gê, o que eu quero dizer é que
eu sempre senti um pouco de inveja de alguns casais. Queria ter o
que o Pedro tem com a Beatriz, ou o Ber tem com a Amanda e acho
que acabei colocando todas as minhas fichas na Allura. A menor
atenção que ela me deu, pensei que estivesse de frente para o meu
verdadeiro amor.
— E você acha que as pessoas esquecerão disso? —
Bernardo completa, olhando para mim. — Claro que não. O que só
fode tudo...
— Isso — Gael confirma. — Quero um tempo sozinho
também. Sem relacionamentos ou sem colocar todas as minhas em
uma pessoa... Acaba que me sinto na obrigação de encontrar
alguém, quando na realidade tô bem demais solteiro.
— Acontece que nem todos saberão o que aconteceu no seu
camarim, Gê — o baterista emenda. — As pessoas vão acreditar
naquilo que elas querem e ponto final. Pode parecer grosseiro da
minha parte, mas é melhor você se acostumar com isso.
Nego.
— Não tá sendo grosso, é a realidade no fim das contas —
digo, segurando minha colher com força.
É bom saber finalmente o que Gael sentia e ainda sente
perante a todas as suas emoções, ainda mais reconfortante que ele
chegou à essa conclusão depois de tanto tempo. Sempre pensei
que a Desvio fosse muito bem resolvida, mas se eu desse este
cargo a eles, não saberia reconhecer que os integrantes são nada
além de seres humanos. E como humanos, sentem e emanam suas
confusões e suas inseguranças o tempo todo.
Também nunca pensei que seria amiga deles, mas me sinto
muito realizada em me abrir, ao mesmo tempo em que eles
conseguem enxergar em mim uma grande amiga.
— Dicas? — sugiro, erguendo minhas sobrancelhas.
— Taca o foda-se — Bernardo elucida de uma vez.
— Não se importe com merda nenhuma! — Gael recita,
trocando um olhar sagaz com Bernardo.
Nossas risadas se estendem por alguns segundos, é um
frescor necessário para me dar um pouquinho de calma em meio ao
navio em chamas que me encontro. Mas meu sorriso se desmancha
abruptamente quando a porta da frente é aberta e Mikael passa por
ela, arrastando sua mala de viagem e colocando seus olhos em mim
de primeiro momento.
Ele está esbaforido e ansioso.
É um pouco surpreendente também. Depois de dois dias sem
notícias, pensei que não colocaria meus olhos nele nem tão cedo.
Ofegante, ele coloca a mão na cintura, confuso. Um vinco se
forma na sua testa lisa e ele limpa o suor na região com o dorso da
mão.
— O que eu perdi?
Era para ele estar aqui há duas horas, mas não conseguiu
um motorista a tempo quando chegou ao aeroporto de Madre Rita.
Ao menos não aconteceu nada grave, já é um alívio.
Com o clima pesado, Bernardo e Gael se cutucam, afirmando
que vão pegar um pouco de sorvete de doce de leite argentino na
cozinha. Quando se levantam do sofá, bagunçando os meus
cabelos em sinal de irmandade, eles cumprimentam Mikael com um
abraço breve, mas não se aprofundam. O cantor consegue
encontrar Lola e Pedro no terraço pelo olhar, mas não acena.
Com cuidado e com jeito, ele se senta no mesmo lugar que
Pedro deixou vago e me encara, atento. Para falar a verdade, estou
baqueada e um tanto quanto calejada pelo seu silêncio nos últimos
dias. Ele não ligou e nem enviou nenhuma mensagem.
O que isso significa, afinal?
Se não foi uma emergência hospitalar, o que foi, então?
Ele concorda com Claudia ? Ele realmente saiu com Sofia?
Ele esteve resolvendo assuntos importantes, para que mais fotos
não vazem?
Que merda você esteve fazendo, Mikael?
— Oi — diz, baixo.
— Oi — profiro.
— Eu...
— Não quero conversar — interrompo, cansada. — Eu
quebrei o braço, só quero dormir e comer sorvete. Amanhã vou
estar na confeitaria, porque preciso verificar se apareceu mais uma
goteira do nada. Essa reunião foi longa, meu pescoço está doendo e
tudo parece incerto. Então... Não quero conversar agora com você,
Mikael.
É maldade o que ele está fazendo, porque seus olhinhos
estão iluminados por detrás das lentes dos óculos redondos. Seu
cabelo está amarrado para trás, então consigo ver sua cicatriz na
bochecha perfeitamente posta no mesmo lugar que sempre esteve.
A camisa que usa está dobrada até os cotovelos, dando evidência
aos seus braços e tatuagens.
— Eu vou te respeitar — promete. Ele faz um sinal com as
mãos. — Só quero pedir desculpa.
— Não quero conversar! — resmungo.
— Não é desculpa por esses dias... Que fiquei fora e você
teve que lidar com tudo sozinha. É uma desculpa diferente —
assegura. Arqueio minhas sobrancelhas, não entendendo o que ele
quer dizer. — Quando eu postei aquele tweet dizendo que
estávamos namorando, você disse com todas as letras que não
queria a mídia em cima de você. Disse que estaria me ajudando se
eu respeitasse seu espaço. Por mais que você quisesse calar a
boca de todos, você pediu e enfatizou que não queria que seu nome
estivesse ligado a tanta merda. E, mais uma vez, você está
passando por uma barra que não precisava ter passado.
“Então eu peço desculpa por não ter pensado direito e por ter
feito você entrar nesse negócio absurdo de relacionamento de
mentira. Peço desculpa por ter feito um caos na sua vida,
especialmente porque você queria apenas viver no sossego. Mas
agradeço por ter me ajudado e espero poder recompensar agora
que estou de volta. Me importo pra cacete com você, amora mio.
“E só quero pedir desculpa por ter te arrastado para esse
mundo, de verdade.
“Vou respeitar seu tempo e não precisa falar comigo se não
quiser. Falo sério, eu vou esperar quando você quiser sentar e
conversar comigo.”
Suas palavras são importantes, porque ele está
reconhecendo e não apenas jogando comigo, são palavras sinceras
e certeiras. Ele não pode e nem deve colocar toda a culpa em suas
costas, mas seu pedido de desculpas tem mais a ver consigo
mesmo, finalmente compreendendo o poder da privacidade e da
paz.
— Obrigada — agradeço, em um fio de voz.
Ele sorri com ternura, mas sabe que não direi mais nada. Não
tem muito o que dizer e sei que este momento abalou
consideravelmente nossa pequena relação que já nasceu
conturbada.
— Fiquei pensando em você o tempo todo — admite, se
levantando do sofá e beijando a minha testa. — Vou te esperar.
Quando quiser conversar... Por favor, me procure!
Fico satisfeita e muito confortável que ele está prestes a se
levantar para ir embora. Porque não quero vê-lo e, ao mesmo
tempo, quero abraçá-lo com toda a minha força. Quero ouvir sua
explicação de porquê esteve longe, afinal, ele merece se defender.
Não estou furiosa e nem brava, apenas me sinto deixada de lado. É
estranho explicar exatamente o que estou sentindo. O que eu sei
dizer, é que não posso acreditar em tudo o que eu vejo e não posso
me desesperar – por mais complexo que seja manter a calma
quando tudo está dando errado.
Desejo que seja apenas uma semana odiosa e que tudo
acabe logo. Não sei dizer como será nossa relação daqui para
frente, mas sei que é um momento passageiro de mágoa. Somos
teimosos, mas não mentirosos. Somos difíceis, mas não impossíveis
de decifrar.
No entanto, acontece algo que eu estava torcendo para não
acontecer. A falta de Mikael só me magoa tanto porque me importo
com ele. Depois de tantos anos perto dele, eu finalmente o
enxerguei.
Espero que o tempo seja bonzinho comigo e que coloque
tudo no lugar.
39: doce bicho de pé
INGREDIENTES: leite condensado, margarina sem sal, gelatina de morango,
açúcar.

DIA 01:
MIKAEL DEVANTE:
Bom dia, às 9:03
GEORGIA PESSOA:
Boa tarde, às 14:31

DIA 02:
GEORGIA PESSOA:
Bom dia, às 10:10
MIKAEL DEVANTE:
Boa noite, às 19:13

DIA 03:
MIKAEL DEVANTE:
Boa noite, às 20:54
GEORGIA PESSOA:
Bom dia, às 8:34

DIA 04:
MIKAEL DEVANTE:
Bom dia, às 7:45
DIA 05:
MIKAEL DEVANTE:
Bom dia, às 6:26

DIA 06:
MIKAEL DEVANTE:
Bom dia, às 5:58
40.01: bolo de morango
INGREDIENTES: ovos, açúcar, farinha de trigo, leite quente, fermento em pó,
leite condensado, creme de leite, gemas, amido de milho, morango, chantilly.

Eu morri.
Não na forma literal, mas artisticamente falando, eu morri.
Bem, pelo menos é o que diz a matéria semanal da coluna de
fofoca do jornal local de Madre Rita. Minha personagem, Marina,
sofrerá um grave acidente de origem desconhecida. A morte será
instantânea, causando uma reviravolta emocional em Germano.
Eles focarão no novo casal da trama, ele e Élia, e como o luto
atingirá o mocinho e a vilã que, apesar de odiar Marina mortalmente,
perceberá que nem tudo é o que parece ser.
É a maneira mais clichê e rápida de dizer que agora a Farol
me odeia.
O vento faz questão de amassar uma parte do jornal, então
decido jogar fora, na lata de lixo mais próxima que encontro. É difícil
amassá-lo com o braço engessado, mas arremesso até o cesto e
suspiro alto. Isso tudo é uma merda sem fim, mas preciso me focar
nas coisas boas — ou tentar.
Um vizinho, que passa distraído por sua varanda, me lança
um sorriso agradável. Devolvo o gesto, me concentrando na paz
que a rua exala. As portas do bistrô estão abertas porque os
uniformes chegaram. Faz alguns dias que todos vêm trabalhando
nos últimos detalhes — finalmente — ao meu lado. E a contagem
regressiva pode começar. Daqui a pouco mais de três semanas, a
Amora Mio abrirá as portas oficialmente.
A rua só não está movimentada, porque uma leva de
moradores decidiram organizar um abaixo assinado para que
expulsassem e proibissem os paparazzis de perturbarem a ordem
comum do ambiente. Eu achei uma ótima ideia, visto que eles
poderiam tentar se livrar de mim e não deles.
Então, posso respirar fundo agora — só um pouco.
Dou a volta pelos meus pés e entro no bistrô. Ele cheira a
morango, porque Allura comprou um produto de limpeza delicioso
ontem, quando decidimos passar a tarde por aqui. As mesas e as
cadeiras estão organizadas, o cantinho dos quadrinhos está cada
vez mais colorido e cheio. Serafim está conversando com duas
garotas, entregando a elas o futuro uniforme. Uma combinação
interessante de rosa-bebê, com detalhes em laranja-salmão.
A mais velha, de cabelo artificialmente vermelho, se chama
Ana, e me ajudará na cozinha. A mais nova, de cabelo preto e pele
branca-bronzeada, se chama Talita, e servirá o salão. Ainda preciso
contratar mais duas pessoas, mas Seu Serafim disse que tomará
conta de tudo.
O que me anima também é que o novo freezer chegou, onde
guardarei meu mais novo investimento; sorvete artesanal.
— Uniformes entregues. — Seu Serafim se aproxima de mim,
apontando para as duas garotas que estão pulando no lugar,
frenéticas. — Elas querem começar hoje mesmo!
— Eu também! — Sorrio, alargando o meu sorriso ao ver
Gael limpando as gotas de suor da sua testa. Ele está aqui ao lado
de Mikael, os dois se ofereceram para instalar o freezer novo. —
Mas quero que o dia seja especial, Seu Serafim. E não quero usar
isso! — Ergo meu braço quebrado, dando ênfase no gesso.
Ele faz uma careta.
— Justo... — Ele se afasta pedindo licença com as mãos,
para poder trocar mais algumas palavrinhas com as garotas.
Amanda passa por mim rapidamente, terminando de colocar
duas latas de tinta aos meus pés. Ela desenhará algumas flores na
parede do salão principal e está ansiosa para colocar a mão na
massa. Fora que terei uma arte assinada por ela, não tem como
estar mais animada do que já estou.
— Esse lugar tá ficando lindo! — Ela me elogia, prendendo
os cabelos em um coque que a deixa parecendo uma artista de TV.
— Sim! — Me agito no lugar. — Você precisa ver...
— Gê! — Allura me chama, da cozinha. Ela coloca sua
cabeça no corredor e diz: — O Gael tá te chamando lá nos fundos,
quer sua opinião sobre o freezer.
— Hm... Que chique! — Amanda cutuca os meus ombros. —
Ser uma empresária é exatamente assim?
— Um dia te conto — brinco, piscando e pedindo licença.
Sorrio na direção de Seu Serafim, Ana e Talita, e me enfio na
cozinha, que já não parece mais tão superficial ou sem vida como
antes. O relógio de girafas continua no mesmo lugar e ainda parece
perfeito na minha concepção.
Nos fundos da cozinha, no depósito ao lado da dispensa de
alimentos, Gael está agachado perto de um freezer horizontal, ele
parece instalar os cabos perto da tomada, enquanto Mikael o
supervisiona de perto. Allura está com uma prancheta, apenas
distribuindo suas ordens — do jeito que ela ama.
— Está bom assim? — Gael pergunta, quase deitado no
chão, enquanto checa todas as instalações.
— Sim, está.
Ao ouvir a minha voz, Mikael acorda de seu transe e me
encara no mesmo segundo. Sua expressão me pega desprevenida,
porque ele parece muito disposto a falar comigo. Preciso decidir o
que fazer primeiro, entre conversar com Gael e passar as instruções
certas ou arriscar algumas palavras com Mikael. Faz alguns dias
que não conversamos direito e nem trocamos mensagens, por mais
que eu queira. Ele apenas está por perto, me desejando “bom dia”
ou “boa noite”.
Não sei dizer se isso é um término, mas é complicado
quando me sinto esgotada de tudo. Não conseguir o que eu quero
acaba me deixando baqueada.
Como por exemplo, a diretora Karina Sales, que conseguiu
uma protagonista para o seu filme, “Vertigem”. Li a matéria ontem à
noite, a escolhida foi Cássia Rodrigues, uma artista independente
que descobriu ser portadora da Síndrome de Meniere em uma
viagem a Barcelona. Por mais triste que eu esteja, estou feliz que a
atriz saiba o que é sentir o que eu sinto, ela saberá como passar
cada micro pensamento para a protagonista. Também me leva ao
ponto de acabar sendo um pouco egoísta; a doença não é minha,
existem outras pessoas que lidam com ela diariamente, não é
apenas eu que sei contar uma história. Enviei flores para Cássia
assim que terminei de ler toda a matéria.
As manchetes estão viciadas no meu nome. Todo o dia sai
algum rumor nojento sobre a minha saída da emissora. No atual
cenário das coisas, eu sou a vilã.
E, para finalizar, o dono da casa de praia recusou a minha
oferta, alegando que os moradores do condomínio não querem ser
“importunados por uma atriz mimada e sem sal, que acabará com os
dias de paz da praia, trazendo fotógrafos oportunistas como brinde”.
Essas foram as exatas palavras que ele usou.
E voltamos para a estaca zero; sem casa e sem um
cachorrinho.
— Ah... — Volto a prestar atenção em Gael, retirando meu
olhar de Mikael. — Está ótimo! Não precisa ligar agora... — Sinto o
olhar do cantor ainda em mim, o que torna tudo mais difícil.
Não sabia que ele tinha vindo, apesar de que Mikael vem
sendo bastante proativo ultimamente. Mesmo que não fale comigo,
ele ainda quer ajudar.
— Beleza... — Gael solta, um pouco cansado.
— Então... — Mikael começa, coçando a nuca. — Eu já vou
indo.
— Ok... — murmuro, dando espaço para ele.
O cantor me lança um breve sorriso, nada muito simpático ou
cheio de calor. Nosso namoro de mentira esfriou como este freezer.
Ele passa por mim de queixo erguido e desaparece segundos
depois. Ele se despede das demais pessoas no salão e não volta
mais.
— Credo — Allura pragueja, revirando os olhos e fingindo
anotar alguma coisa na prancheta. — Vocês não vão conversar?
— Deveriam. — Gael se senta no chão, derrotado. Ele apoia
as mãos com o peso do corpo. — Você quer falar muito com ele, só
está esperando a hora certa!
Olho de Allura e para Gael duas vezes, alternando. É bom
que o clima entre eles tenha mudado, realmente fico feliz. Às vezes
flagro Gael admirando Allura de longe, mas ele consegue focar-se
em outra paisagem com rapidez.
— Como você sabe que quero falar com ele? Como sabe que
não estou esperando a hora certa? — Ergo minhas sobrancelhas,
áspera.
— Porque a hora certa não existe. — Gael abre um sorriso
grande e sagaz. — Só quer se apegar nisso, porque acha que deve
esquecer o que você está sentindo.
Enrugo a minha testa, ficando séria.
— Quem te contou? — Coloco a mão na cintura. — Foi a
Allura, não foi?
— Está dizendo que não posso deduzir as coisas por minha
conta e risco? — Gael coloca uma mão no peito, ultrajado. — Se
liga, Georgia! Eu mesmo descobri que vocês gostam um do outro!
— Foi a Allura, não foi? — insisto, nenhum pouco
convencida.
— Sim, foi ela! — brada, se entregando. — E daí?!
— Valeu, Alli! — resmungo, cruzando meus braços com
dificuldade.
— Gael é romântico. — Ela se defende, dando de ombros. —
Ele tem o direito de saber quando uma história de romance está
acontecendo bem debaixo do nariz dele!
Abro um sorriso, afastando o meu cabelo. Nem o tom de azul
está certo.
Porra!
— A banda toda já sabe que vocês se gostam... Tá na cara.
Esse negócio de namoro fake num dá certo, Gêgê! — Gael cruza os
braços, sábio.
Reviro meus olhos.
— Eu vou conversar com ele — garanto, apontando para o
lado onde ele passou. — Daqui a pouco...
— Você quem sabe. — Gael se levanta, sem ajuda de
ninguém. Ele caminha na direção de Allura e pega uma garrafa de
água gelada que ela deixou apoiada em uma mesa qualquer. —
Agora ele deve estar estressado, mesmo.
Não é da minha conta e posso confirmar que é apenas uma
armadilha de Gael Soares contra mim. Mas me preocupo com
Mikael — dane-se o que eles vão pensar de mim.
— Por que ele está estressado? — Dou um passo para
frente, tentando ser casual. Mas Gael consegue abrir um sorriso
ridículo que me deixa quente de vergonha. — Fala logo!
— Ele vai me matar se eu disser, mas... — Gael faz um
suspense exagerado como castigo. Ele troca um olhar cúmplice com
Allura, mas para de sorrir quando volta a me fitar. — Ele vai pedir
demissão da Farol. As gravações estão suspensas, o público clama
pela sua volta e ele quer fazer algo a respeito.
— O quê?!
Minha língua treme junto ao céu da boca e pisco meus olhos,
desnorteada pela informação. Mas Allura Guispe não está
espantada, pelo contrário, sua tranquilidade me impressiona em
níveis alarmantes. Minha melhor amiga solta um murmúrio, parecido
com um lamento.
— Não posso deixar que ele faça isso... — Saio depressa,
entrando pela cozinha e passando como um raio por Seu Serafim.
Gael corre atrás de mim, conseguindo me alcançar. — Gael... —
Paro de andar somente quando percebo que não posso dirigir, não
com esta merda de braço quebrado. — Me leve até o Mikael! —
ordeno.
Amanda está me encarando com as sobrancelhas franzidas,
mas não pergunta nada, apenas abaixa o olhar e continua a separar
as tintas coloridas das brancas, sorrindo de lado.
Até ela sabe!
— Não posso! — Gael arregala os olhos. — Se você for
matar ele, o Mika vai ressurgir dos mortos para me matar! — Ele
nega com o dedo várias vezes. — E se você pensa que eu mereço
morrer pelas mãos dele, está muito enganada!
— Eu não vou matar o Mikael! — trovejo. — Só quero
conversar.
Gael cruza os braços, estreitando os olhos. Está visivelmente
desconfiado.
— Não parece que quer conversar!
— Gael! — brado mais alto ainda. — Anda logo! Me leva até
ele!
— Só se você prometer que não vai matar ninguém...
— Não sei, se você continuar bancando o mensageiro
arrependido, quem sabe?
Gael deixa escapar uma risadinha sacana que é o suficiente
para me fazer sorrir um pouco. Ele descruza os braços e coloca as
mãos nos meus ombros, me guiando para fora do bistrô. Na
calçada, retira a chave do seu carro do bolso e indica para um
modelo popular estacionado do outro lado da rua.
Abro a porta do carro me sentando no banco do passageiro,
esperando Gael entrar em seguida. Quando ele bate a porta com
toda a sua força, pressiona os dedos no volante.
— Ele tá decidido — revela. — Não quer ficar naquele
ambiente sem você. Ainda mais contribuindo para a fortuna da
Claudia aumentar. Depois do que ela fez com o Pedro, o Mika só
quer vazar de lá.
A retaliação não será feita apenas pelo o meu lado. Sei que
os motivos do cantor são nobres, mas é um momento que eu sei
que ele adoraria compartilhar comigo. Eu o desculpei por ter
sumido, posso finalmente demonstrar que não sou tão insensível
quanto pensa.
— Eu sei... — confesso, cansada. — Mas ele ficou tão feliz
quando voltou a atuar, que eu queria ter sabido dessa informação
antes. — Mordo os meus lábios, afundando minha cabeça no
assento. — Fiquei tão ocupada apenas tentando fazer tudo dar
certo, que esqueci que apenas uma coisa ainda não tinha ruído.
— Guarda essas palavras para ele — Gael me aconselha,
ligando o carro e sorrindo, vitorioso. — Ele vai gostar de ouvir.
Sorrio fracamente, agradecendo sua ajuda e apenas passo o
cinto de segurança pelo meu corpo.
Se ao menos uma coisa dará certo, que seja Mikael e eu.
40.02: bolo de morango
Depois de Gael passar por uma multidão de fãs implorando
pela minha volta na novela — e eu ter parado para tirar foto com
todas elas — , ele me fez prometer que eu não iria matar Mikael
Devante coisíssima nenhuma. E foi uma tarefa fácil, visto que eu
realmente não estou interessada em desbravar a prisão pela
primeira vez na vida.
Ele me deixou próximo ao elevador e disse que me esperaria
no saguão do Hotel Prudência, caso algo desse errado e se eu
quisesse voltar para o Amora Mio o quanto antes. Gael beijou a
minha testa e desejou que fôssemos protagonizar uma cena de um
livro de romance.
Segurando meu braço quebrado, porque ele está latejando
um pouco, preciso admitir que estou confusa por estar no hotel.
Pensei que ele estivesse na Farol, mas não. De acordo com a
minha fonte confiável — Gael — , ele está exatamente aqui. No
apartamento que divide com os meninos.
Nunca vim aqui, apenas ouvi falar. Não sei por que nunca o
visitei, talvez porque não fui convidada ou talvez porque não pensei
em aparecer.
Solto todo o ar do meu corpo e toco a companhia.
Ao contrário da minha escolha, a banda divide um
apartamento com quatro quartos, sem cobertura, academia privativa
ou outras mordomias. Enquanto espero para ser atendida, penso
em desistir, dar meia volta e sair daqui, fingir que não apareci
esbaforida para falar com o cantor. No entanto, ele abre a porta
minutos depois. Está com o semblante cansado, o cabelo preso e os
óculos tortos.
— Georgia? — Ele fecha a porta perto do corpo, impedindo a
minha passagem. — O que faz aqui?
— Vim conversar com você — informo, ansiosa. — Posso?
— Sério? — Franze o cenho, surpreso. — Aconteceu alguma
coisa?
— Sim. Várias coisas. Posso entrar?
— Não.
— Não?! — repito, confusa.
— Pode, claro! Espera aí! — Afoito, ele bate a porta na minha
cara, causando um baque forte contra o batente. Não consigo reagir,
somente encaro o Olho-Mágico, intrigada. Será que ele está me
escondendo algo? Ou não sou bem-vinda? — Pronto! — Mikael
volta, escancarando a porta de uma vez só e permitindo a minha
passagem.
Dou poucos passos até estar no hall principal da banda
Desvio, o apartamento que abriga três dos integrantes. Tudo é
aberto e condecorado num estilo rock dos anos 90. Há quadros,
esculturas, mulheres bonitas em capas de revistas apoiadas na
mesa de centro e uma cozinha arejada com balcão norte-americano.
Espio todos os lados, talvez procurando algo. Ou alguém.
Aparentemente, Mikael está sozinho.
— Ao que devo a honra? — Ele debocha, fechando a porta e
colocando as mãos nos bolsos ao parar de frente para mim. Seu
corpo grande esconde a visão que tenho da varanda e da vista, mas
não me importo. — Lembrou que eu existo?
— Podemos conversar? — ignoro a última parte. — É sério.
— Sim. — Ele não se move, frisando que posso sentar ou me
acomodar. Ok, então. — Sobre?!
Suspiro.
— A sua saída da novela.
— O boca grande do Gael que te contou, né?
— Quem mais seria?
Seu sorriso é ácido e ele segura a vontade de rir de verdade.
— Tarde demais — assegura, confiante. — Amanhã será
anunciado que estou fora. Se pensa que vai me convencer...
— Não estou aqui para isso. — Corto sua fala, calma. — Só
quero saber exatamente o que você sente. Não vim brigar, nem
discutir. Vim... Em paz?!
Mikael solta todo o ar do corpo, colocando as mãos na
cintura.
— Por que isso agora, hein? — Sobe o queixo, destemido. —
Passei a semana toda perto de você e o máximo que você me disse
foi para instalar um freezer, por que agora você quer conversar
comigo?
— Porque sei o quanto a atuação significa para você. E por
mais desapontado que esteja, está com raiva também! — Aumento
o meu tom de voz, para parecer firme.
— Não tem como ficar feliz com o meu melhor amigo sendo
chantageado e a garota de quem eu gosto não estar mais presente
no set.
Seguro todo o meu rosto para não me derreter com o “garota
de quem eu gosto”.
Nem Mikael percebe o que diz, porque está sério e
impassível. E magoado.
— Sim, por isso vim aqui saber como você está!
— Bem — garante. — Pode ir embora.
— Não seja tão babaca — peço, contornando seu corpo e
andando pela sala. Esse é o meu jeito de dizer que vou ficar e
insistir. Somos exatamente iguais. Um dia pensei que éramos
distintos, mas somos dois otários teimosos. O puro suco da
rabugice. — Você que não apareceu e nem mandou uma
mensagem por dois dias. Eu é quem deveria estar magoada.
— Mas você está! — Mikael gira pelos calcanhares. — Fica
andando por aí com esse nariz lindo em pé, porque é rancorosa e
mimada. E porque não consegue iniciar uma conversa comigo,
porque tem medo!
— Não mude de assunto. — Ergo a palma da minha mão. —
Me responda, então, já que eu sou a rancorosa. O que aconteceu
com você naqueles dois dias?
— Isso importa? — pergunta, exausto. — Se quisesse saber,
já teria perguntado!
Solto um grito ardido da garganta, completamente raivosa.
— Você é tão irritante! — Cruzo a sala de estar, apontando o
dedo em sua direção. Estou perto dele novamente, minhas íris estão
esbugalhadas e meu coração sinaliza que pode explodir dentro do
peito. — Você disse que ia esperar o meu tempo, agora não quer
me responder?!
— Eu disse mesmo, mas é cansativo esperar a Rainha do
Mundo decidir o que quer. É difícil estar perto de você e não falar
com você, não precisa agir como se fosse fácil! — Mikael também
se aproxima, trincando os dentes. — E acontece que posso acabar
me cansando de esperar!
— Estou aqui, afinal! — praguejo, abrindo os braços. — Me
diga exatamente o que aconteceu, Mikael!
— Houve uma emergência em São Paulo, essa tal
emergência não poderia esperar por mim. Eu é que estava
esperando por ela. Viajei, não levei o carregador do meu celular e
quando consegui, já estava no aeroporto voltando para Madre Rita.
— Sua guarda abaixa um pouco enquanto explica, mas não sinto
nada além de confusão. Que tipo emergência? — Me desculpe, de
verdade. Só agi por impulso, porque precisava estar em São Paulo.
Ok?!
— Por que precisava?
— Precisava, simples assim.
Ele me dá as costas, andando para a cozinha arejada.
— Cara. — Relaxo os meus ombros. — Você é...
— Vai lá, usa seu arsenal de xingamentos contra mim! —
pede, virando-se. — Tudo o que eu sou, você também é!
— Nunca posso ser comparada a você, Mikael. — Ergo meus
braços em rendição, ofendida. — Você está mentindo nesse exato
momento. E, ao contrário de você, não sou uma mentirosa!
Ele ri alto, sendo extremamente falso. Até coloca a mão na
barriga para fazer meu ódio dessa situação colapsar.
— Quer enganar a quem, Georgia? — Mikael pede,
desaforado. — Você está mentindo para si mesma há algum tempo
— define, se aproximando de mim de novo, até seus olhos estarem
afiados com os meus. — Sabe por que você não falou comigo
antes? — questiona. — Porque você queria que mais alguma coisa
desse errado, porque tem medo de admitir que estávamos dando
certo. Você é desconfiada, turrona e às vezes prefere se acostumar
com a perda.
Ele tem razão.
Completamente.
É exatamente esse o motivo.
Ele me leu com tanta maestria que apenas pisco, surpresa
por ouvir aquelas palavras saindo de sua boca e não da minha.
Porém, o sorriso de vitória que se alastra por seus lábios me faz
decair e ser imatura novamente. Dou um passo para trás, colocando
com dificuldade minhas mãos para trás.
— Tem razão! — confirmo, azeda. Assinto diversas vezes
com a cabeça. — É exatamente isso. Não tem o que argumentar, a
não ser pedir desculpa. Faz anos que não me apaixono e não sei
lidar. Você sempre quis ter algo comigo, pensei que quando
conseguisse, sairia pela primeira porta que encontrasse, cantando
sua majestosa vitória. Sentimentos são fáceis para mim, imaginei
que saberia administrá-los, mas me enganei, Mikael. Não vou fugir
ou fingir que você não tem razão, porque você tem. — Subo e desço
os meus ombros. — Tive medo de quebrar a cara, mesmo
afirmando que estaria bem com isso. Não quero que nos afastemos
ou briguemos, porque gosto de você, seu babaca!
Mikael Devante está em silêncio, ora porque está se
deliciando com a última frase, ora porque está chocado com a
minha falta de resistência.
— E eu vim aqui para fazer o mesmo que você fez. Apesar
de não termos conversado, assim que você saiu do aeroporto, você
veio me ver. Isso prova algo, não é? — interrogo, sem esperar por
uma resposta. — Pelo menos deveria.
— Sim, significa — fala baixo, quase como um sussurro.
— Então... — Afago meus ânimos, conseguindo respirar sem
revirar os olhos. — Pode me dizer o que está sentindo?
— Sua falta, porra! — Ele range os dentes, começando a
ficar irritado. — Aquele set de filmagem é a coisa mais sem graça do
mundo sem você. E sempre que eu piso ali, penso na maneira como
você foi tratada. Na forma que o caso do Pedro foi completamente
banalizado. Não quero trabalhar na merda daquele lugar se significa
estar longe do meu par romântico ou fazendo mal para o meu
melhor amigo...
— Eu não vim te convencer a ficar, já disse — assumo. — E
você tem razão — confirmo. Suas sobrancelhas se suspendem. —
É sério!
— Você está doente? — Ele se aproxima, checando a
temperatura da minha testa. — Tem uma onda de febre atingindo a
cidade, vai que é isso.
Desfiro um tapa na sua mão.
— Só quero me resolver com você, inteligência!
— Não sei se devo! — Faz charme, olhando para o teto. —
De repente, posso estar ocupado.
— Ok! — concordo, caminhando para longe. — Talvez eu
deva ligar para aquele jogador de futebol que me paquerou no
corredor e dizer a ele que estou disponível...
Mikael, como eu bem pensava, me segura pelo pulso, me
girando para frente e me trazendo para perto.
— Deve ligar, mesmo — anuncia, bem perto de mim. —
Talvez afirme que você não está disponível nem daqui um milhão de
anos.
— Por quê? — Me faço de boba, controlando meu olhar.
— Porque estamos juntos, Georgia! — fala alto, analisando
meus lábios de perto. — Entendo que você gosta de resolver as
coisas sozinha, porque é acostumada a lidar com tudo e mais um
pouco. Mas pedir ajuda, dar o braço a torcer, não te faz fraca. E se
depender de mim, você não estará mais sozinha por aí, exibindo
essa solteirice toda. — Os orbes sobem para os meus olhos,
evidenciando sua entrega a mim. — E só para esclarecer, eu e você
sempre estivemos juntos! Pode dizer isso a ele ou melhor, ou
mesmo aviso...
— Mikael?! — Seguro seu rosto nas minhas mãos, fazendo
carinho na sua cicatriz.
— Sim?!
— Cala a boca.
Beijo seus lábios com extrema saudade, principalmente
porque toda essa briga foi inútil, infantil e totalmente sem
fundamento. Como pode ter sido uma coisa tão boba?
Por Deus...
Ele tem razão quando disse que somos iguais, talvez por isso
entramos em parafuso. E apesar da minha barriga ter se afundado
em ressentimentos nos últimos dias, é meu direito consertar um dos
poucos fatores que querem ser remendados. Acharei outra casa,
disso tenho certeza. Meus pais consertaram o motorhome e, apesar
de ficar chateada, eles sabem como precisarão lidar com tudo.
Cássia fará um ótimo papel e posso oferecer a minha mente criativa
para fazer do filme um bom projeto a segundo plano. Claudia ainda
irá se foder muito nessa vida. E meu braço ficará curado daqui a
algumas semanas.
Não há motivo para ficar longe dele.
Não depois de...
Separo o nosso beijo, apenas para dizer uma única frase que
vem desejando há algum tempo.
— Aconteceu, Mikael — anuncio, em alto e bom som. —
Você é a minha última pessoa favorita!
— Pronto. — Ele me solta. — Consegui o que eu queria,
pode ir embora!
— Mikael!
— Tô brincando!
Ele me agarra na altura da barriga, erguendo o meu corpo ao
me rodopiar pela sala. Agradeço pelo cuidado com o meu braço
fraturado, mas minha barriga dói de tanto rir. Ele paralisa no ar e me
desce com cuidado, me abraçando e me direcionando para o sofá.
Mika encaixa meu queixo em seu polegar, direcionando sua boca ao
encontro da minha. O beijo faz pequenas explosões de felicidade
entorpecerem o meu corpo, me fazendo derreter e deslizar para o
móvel.
Eu me deito de costas, ainda o beijando. Ele me abraça pelos
ombros e desce uma mão para a minha cintura, preenchendo a
minha pele com carícias e pequenos beliscões.
— Está vendo? — interrompe o beijo para falar. — Conversar
sempre é bom.
— Cala a boca — peço de novo, o puxando para
experimentar mais um pouco do seu beijo.
Agora é uma extensão da saudade que precisamos
administrar, é o nosso corpo sabendo e redecorando o caminho de
volta, suprindo a falta e a emoção, finalmente. O abraço pelo
pescoço, gemendo um pouquinho de dor — porque não pensei
muito bem sobre a atitude. Quando me sinto confortável, deixo que
suas mãos desçam até a minha bunda, enchendo-as. Mikael geme
dentro da minha boca, aprofundando sua língua no desejo carnal
motivado pelo tempo em que estivemos separados.
Seus beijos úmidos e deliciosos descem pelo meu pescoço,
ao afastar meus fios de perto. Fecho os meus olhos, me entregando
a ele. Tenho muita coisa para fazer, mas não consigo me concentrar
direito.
Me remexo abaixo dele, rindo um pouco, ao sentir alguma
coisa embaixo de mim me incomodar. É uma peça de roupa, e é
estranho senti-la, porque não sabia que estava ali. Retiro um par de
meia debaixo da minha bunda, rindo.
— Devo imaginar que seja do Gael. — Estreito os meus
olhos, jogando a meia para longe.
— Eu não brinquei quando disse que ele deixa as coisas dele
largadas por aí. — Mika beija a minha bochecha, me fazendo deitar
novamente.
Sua língua encontra a minha novamente, saboreando-a.
Contudo, não consigo me concentrar nos nossos amassos, não
quando escuto um latido. Depois outro, depois outro. Até se tornar
pequenas sequências de latidos.
— É aqui? — Espalmo seu peito, o empurrando apenas um
pouco.
— O quê?!
— Os latidos!
— É?!
Me desfaço de Mika totalmente, franzindo o cenho ao ouvir
perfeitamente os latidos se tornarem maiores e mais frequentes. A
voz é arisca e um pouco abafada, mas consigo escutar. O que é
irônico. Olho para Mikael, mas ele apenas parece tão confuso
quanto eu.
Me levanto do sofá rapidamente, tentando identificar o som.
Com a perda auditiva flutuante, é difícil me localizar. É como se meu
ouvido esquerdo fizesse o trabalho redobrado em poder me oferecer
a informação. Só consigo definir que vem do corredor e marcho em
direção ao final dele.
— Você pensa que tem um cachorro aqui? — Mika debocha
da sala de estar, sem se levantar do sofá.
Não respondo, apenas continuo a minha caminhada. Defino o
quarto de cada um dos meninos de acordo com as portas. A aberta,
sem medo de ser espionado, indica o quarto de Gael. A semiaberta,
com a porta apenas encostada no batente, deve ser a de Pedro. E a
totalmente fechada, é a de Mikael.
Exatamente de onde o latido vem.
O som para de repente, mas volta, acompanhado com um
som nada confortável de arranhões feitos por unhas afiadas contra a
madeira.
Abro a porta rapidamente, esperando encontrar tudo, menos
um cachorrinho. O filhote está arranhando o chão de madeira do
quarto de Mika, parece ansioso para começar a cavar de verdade. O
restante do quarto está em ordem, mas o chão parece que foi palco
de um mini furacão. O cãozinho só para de latir e arranhar o piso
quando me vê. Suas orelhinhas sobem em dúvida e ele corre na
minha direção, animado.
Me derreto ao ver suas perninhas de filhote escorregarem no
assoalho e me agacho no corredor para recebê-las. Ele salta para o
meu colo e se apoia no meu busto, me dando lambidas
desesperadas e empolgadas. Ele é completamente preto, é um vira-
lata de focinho úmido e grande, com orelhas pesadas e olhos
cinzas.
— Surpresa! — Mikael canta, se aproximando de mim e se
ajoelhando perto de nós.
— O que é isso? — pergunto sorridente e segurando o
cachorrinho com dificuldade. Ele não para me cumprimentar da sua
maneira.
Mika franze a testa.
— Não parece óbvio? — retruca. — Um cachorro, ué. Não
tem como ser mais direto que isso.
— Eu sei! — Abraço o filhote assim que ele se acalma. —
Mas o que ele está fazendo aqui?
Mika afaga a cabeça dele, revelando que são melhores
amigos.
— Essa era a minha emergência em São Paulo — conta,
pegando o filhote da minha mão e o erguendo para o alto. Ele
sacode as patinhas, se divertindo com Mika. — O garotão estava
para adoção há um tempo, mas uma família estava interessada
primeiro. Então, fiquei na fila de espera para o próximo que fosse
surgir. Quando voltamos para a nossa realidade, depois daquele
final de semana, recebi um e-mail falando que ele estava disponível,
isso se eu fosse buscá-lo naquele dia. Meu plano era voltar antes do
nosso ensaio íntimo, mas a papelada de adoção era mesmo grande.
Depois, ele precisava de banho, tosa e vacinas. — Mika o abaixa, o
abraçando. — Acontece que adotar um cachorro é bem mais difícil
do que pensava, mas é justo. Tudo para garantir que ele fique bem!
O cantor afaga atrás das orelhas do filhote, fazendo-o latir de
prazer pelo carinho.
— Aí eu sumi porque estava cuidando dele, e tentando
pensar numa maneira dele não se assustar ao fazer uma viagem de
São Paulo pra cá. Pensei em levar ele para você no mesmo dia,
mas o clima não era dos melhores! — Mika me devolve o
cachorrinho, que tem uma coleira vermelha com um símbolo em
coração pendurado, como uma medalha. — Esperei que você
viesse me procurar, aí eu revelaria o motivo certo.
— Me faz parecer boba.
— Você é boba! — assume. — Mas a Instituição Balloi me
garantiu que o filhote gosta de qualquer pessoa.
— Balloi?
— Sim, a rede de apoio pertence a Sofia. Ela me ajudou a
entender o processo de adoção, além de indicar veterinários... —
conta. — Voltei a falar com ela logo depois de ter pedido desculpa.
Ela é uma grande defensora dos animais, você não sabia disso?
Curvo um pouco meus ombros.
— Allura deve ter me dito alguma coisa... — desconverso,
sentindo o peso do cachorro entre os braços. Mika sorri de lado. —
Eu não estava com ciúme de você!
— Não... Imagina — cantarola, revirando os olhos.
Prefiro ignorá-lo.
— Ele é lindo, Mika! — grudo meu nariz com o do cachorro,
que lambe a pontinha.
— Eu tinha certeza que a casa seria sua — recita. — Aí tudo
seria perfeito. Sua casa ideal com o seu cachorro!
— Nós vamos procurar outra casa — afirmo, me
aproximando dele e depositando um beijo em seus lábios. — Aquela
não é a única casa foda do mundo.
— Ele vai adorar procurar uma com você.
— Não, Mika. — Rio. — Nós. Eu, você e ele.
O cantor abre a boca, estático por ouvir as minhas palavras.
Mika concorda na mesma hora, sem hesitar ou fazer alguma
gracinha.
— Ele tem nome? — pergunto, soltando o cachorrinho,
porque ele parece ansioso para correr e pular.
— Ainda não... Eu estava pensando que acabaria ficando
com ele. Gael já ama essa gracinha — admite. — Pensei em um...
— Qual?
— Peter Parker.
— Clichê demais. — Mostro a língua para ele, analisando o
cão detonar com uma meia perdida de Gael. — Vamos pensar em
algo... — garanto. Olho para Mika, sorrindo. — E outra coisa, tenho
uma ideia que pode ajudar nesse momento. Somos uma equipe
agora!
— O que tem em mente? — Sorri de lado.
Só não respondo de imediato porque o cachorrinho começa a
espirrar, e simplesmente é a coisa mais adorável do mundo. A cada
espirro, ele fica confuso e furioso por estar fazendo algo que não
quer. E a bolha de catarro que se forma em seu focinho é fofa o
suficiente para me fazer grunhir de amores.
— Que tal Bolhas? — sugiro. — Para o nome dele. É curto e
meigo.
— Bolhas — Mika define, assentindo com a cabeça. — É
bom ter você no meu time! — Ele me cutuca com o ombro.
— Ótimo ouvir isso, porque agora reconhecemos que sempre
estivemos do mesmo lado.
41: panna cotta de caramelo
INGREDIENTES: nata, gelatina incolor, leite condensado cozido, manteiga,
açúcar, avelãs, amendoins, amêndoas.

ADEUS A “DESTINO INTEIRO”;


Como a saída da atriz Georgia Pessoa pode interferir
diretamente para uma possível ruína na emissora?

Uma das mãos de Mika está pousada no meu joelho


esquerdo, enquanto sorri com diplomacia na direção de Ricardo
Farol. O outro herdeiro da emissora é a linha de frente das
negociações, é a pessoa que tomou o lugar do pai temporariamente,
mas que no final ficará no cargo por muito tempo porque no fundo
gosta do serviço, nunca vai largar o osso.
As semelhanças físicas entre ele e Claudia são poucas,
porque apesar de ricaços adorarem preservar a família, eles também
são conhecidos por trocar de esposas na mesma proporção que
trocam de cueca. Cada irmão Farol vem de um relacionamento
diferente. Claudia e o irmão mais velho se limitam a ter apenas os
olhos claros como heranças direta da mãe, Ana Jabour Farol — e só.
Ricardo tem o cabelo preto muito bem cortado e a barba
aparada, ele é um homem sério, mas sorridente quando os
problemas são externos. Quando homens de poder não conseguem
resolver um problema, eles sempre vão apelar para a simpatia.
Assim, eles conseguem o que querem sem sentir remorso — para
que você sinta, é claro.
— Estou realmente muito feliz em ver vocês dois — Ricardo
admite, fechando as mãos em cima de alguns documentos, acima da
mesa. Claudia está ao seu lado, com os lábios lacrados, os olhos em
pavor puro, enquanto tenta se manter calma. — E preciso dizer, não
gostaria de ter dois dos nossos maiores artistas fora do nosso
catálogo. É de extrema satisfação saber que vocês voltaram atrás!
Não, ele não está satisfeito. A última emoção que traça o rosto
de Ricardo é alegria.
Na realidade, ele está infeliz pra cacete por estarmos com a
decisão do futuro da Farol na palma da mão. Com a suposta ameaça
de Mika deixar a novela, é claro que outros fatores se tornam cada
vez mais críticos. A audiência, o recebimento do público, um novo
roteiro para uma nova parte da história. É muito trabalho, muita dor
de cabeça, é algo que eles não gostariam de colocar nas costas. E
apesar de Claudia ter calculado muito mal sobre a minha saída, a
minha reputação ainda continua firme o suficiente para os
telespectadores me desejarem de volta como Marina.
Os dois sabem que pisarão em ovos nesta reunião e sabem
que precisam amaciar o terreno para a nossa volta.
— Seremos breves. — Mika se adianta. — A Georgia está
disposta a negociar, da mesma forma que estou aberto a envolver
algumas exigências em um novo contrato.
O perfume masculino de Mika atinge com força as minhas
narinas, me fazendo sorrir. Hoje de manhã, enquanto estávamos
ensaiando nossa entrada triunfal pela porta da frente da empresa,
pensamos seriamente em combinarmos nossas roupas, para
parecermos pessoas de negócios, mas desistimos. Ele está usando
uma roupa social e casual ao mesmo tempo, e eu me contentei com
uma saia de pregas finas, com tecido liso.
A situação de Destino Inteiro é o que eu chamo de crítica.
Eles precisam resolver logo, antes que os capítulos gravados se
esgotem. E por mais que seja ridículo tudo o que vem acontecendo,
os outros atores não tem nada a ver com esta briga, não seria
prudente fazê-los esperar mais um pouco.
Depois de alguns dias conversando com Ivy e Lola, finalmente
Mika e eu colocamos nossas mentes para funcionarem juntas.
Separados somos inúteis para um momento como este.
— Ivone Telesco fez outro contrato... — digo, abrindo a pasta
transparente que vim carregando pelo corredor. — Para cada um de
nós. Se estamos aqui, é claro que precisamos de outras garantias.
— Tem certeza? — Ricardo brinca, procurando apoio na irmã.
Mas Claudia está impassível, controlando seu nervosismo. Quando
não consegue um breve sorriso da mulher ao lado, Ricardo me
encara. — Contratos podem ser rompidos. Da mesma forma que
vocês romperam os anteriores. Precisamos dessa burocracia
mesmo?
Seu sorriso é aquele simpático e amigável que quer dizer “Sou
seu amigo, confie em mim, vai!”, quando na verdade, continua
pertencendo a um homem poderoso e rico, que adora dinheiro e que
quer faturar ainda mais grana, custe o que custar.
— Sim, eu tenho certeza! — falo com propriedade. — Falo por
mim e por Mikael, que temos certeza em seguir em frente com outro
contrato.
Ricardo respira fundo, inflando as narinas.
— Você cresceu muito rápido, Georgia — diz, pescando os
contratos de uma vez. Cada um possui três páginas e Ricardo Farol
não parece interessado em ler nenhuma. — Negociando desse jeito,
nem parece que chegou aqui com apenas cinco anos.
— É, eu me lembro — corto sua falsa tentativa de me golpear
com a nostalgia. — Mas não posso viver presa à idade que comecei
aqui. Crescer é essencial!
— Tem razão! — concorda alto, pegando uma caneta dourada
de seu porta-lápis e ajustando entre os dedos. — E por esse motivo
não precisamos dizer mais nada. Somos parceiros... — Ele rabisca
seu nome na última página do meu contrato. Quando termina, se
volta para o contrato de Mika e o assina sem ler nada, apenas na
página indicada. — Claudia ?
Ele passa os dois contratos para a irmã. Assim que termina de
colocá-los à frente da herdeira, ele lhe entrega a caneta dourada.
Claudia hesita um pouco, checa meu nome e o de Mikael algumas
vezes, mas não se dá ao trabalho de ler nada. Assina seu nome na
risca pontilhada e desliza os documentos na direção de Mika.
— Pronto! — Ricardo comemora, abrindo os braços. — Viu
como foi fácil? Estou de total acordo...
— Não quer saber as exigências? — Mikael recolhe os
documentos, os olhos estreitos por detrás das lentes circuladas.
— Tenho certeza que são todas de bom gosto! — Ricardo
está desesperado. Não só desesperado, como nos odeia. Ele nos
quer de volta ansiosamente ao mesmo tempo que nos quer longe. —
A novela vem sofrendo algumas represálias, pessoal. Posso
confidenciar isso, porque todos nesta sala são de confiança. Vocês
são o casal do momento, todos os holofotes estão virados para
vocês... É claro que os queremos de volta. E falo isso por toda a
família Farol.
Família.
Nenhum membro da “família” lutou por mim quando saí pelas
portas dos fundos, me sentindo completamente encurralada.
— As minhas exigências são simples — conto. — Quero um
aviso prévio sobre cada cena íntima.
— Fechado.
— Uma nova vaga de carro.
— Fechado.
— E quero Claudia longe da direção criativa da novela e de
qualquer outro projeto que eu vá participar.
— Fecha... — Ricardo faz uma pausa. Ele está a um passo de
começar uma discussão, mas suspira para dentro, mantendo a
calma. — Pensei que pudéssemos deixar esse capítulo para trás,
Georgia. Tenho certeza que a minha irmã se sente arrependida... O
mal entendido entre vocês duas foi...
— Não foi um mal entendido — interrompo sua fala,
suspendendo a minha mão aberta no ar. — Ela me chantageou, usou
informações pessoais e secretas para me persuadir a deixar a Farol.
Não foi uma briga ou uma discussão envolvendo divergências, foi um
ato de excesso de autoridade.
A mandíbula de Ricardo trava e ele busca apoio na outra
figura masculina presente em seu escritório; Mika. No entanto, meu
namorado — de verdade — está me encarando orgulhosamente ao
meu lado direito.
— Certo, certo. — O homem desiste. É a primeira vez que seu
sorriso abandona o rosto carregado de linhas de expressões. —
Claudia ?!
Não reconheço Claudia .
Ela é cheia de atitude e com uma opinião atrevida na ponta da
língua para oferecer a quem quiser ouvir. Esta à minha frente só
parece uma adolescente arrependida de ter pego o carro do papai
escondido.
Sem mais delongas, ela suspira e diz:
— Me desculpe, Georgia — narra. — Isto nunca mais vai se
repetir.
— Não vai, mesmo — Mika intervém, categórico. — Porque
uma das minhas exigências, a qual você rapidamente concordou, é
colaborar com o processo que o Pedro está movendo contra alguns
fotógrafos. Os mesmos que entraram em contato com você.
— O quê?!
Agora os dois parecem exatamente quem são; com as
sobrancelhas erguidas, o semblante ameaçador e o desdém na voz.
— Eu não li nada disso... — Ricardo pega os contratos de
volta, folheando-os. — Com tantas exigências, preciso passar para
todos os meus advogados. Não posso concordar com tudo...
— Você já concordou, Ricardo — falo com a minha melhor
voz. — Assinou tudo sem antes ler ou questionar. Tem sorte que
Mikael e eu somos decentes ao ponto de estarmos contando tudo a
vocês.
— Entendo que os fotógrafos tenham errado... — Claudia
começa a falar, pedindo calma com as mãos para o irmão. — Mas
não posso me indispor com essa gente. Sendo horríveis ou não,
ainda são contatos bons. Alguns deles são de revistas grandes!
— Devia ter pensado nisso antes de assinar um documento
sem ler — Mika acrescenta, pegando todos os papéis de volta. Ele
retira-os das mãos grandes de Ricardo e os guarda na pasta. — E
como sua assinatura está aqui, a minha empresária te procurará
para marcarmos a primeira reunião quanto à retomada do processo.
Se você colaborar, ainda consegue pegar uma narrativa de
coitadinha pela mídia.
— Melhor do que todos descobrirem que você os ajudou,
Claudia . — Subo meus ombros, de forma inocente. — Não acha?
— Não posso aceitar! — Ricardo lamenta. — Vou recorrer!
— Como? — pergunto, tranquila. — Se vocês acabaram de
assinar um acordo, afirmando que não quebrarão o contrato e nem
farão outra negociação!? — Dou pequenas batidas na pasta lacrada.
— Estava aqui... E vocês concordaram!
Com tanta fúria dentro de seus olhos, Ricardo é capaz de se
transformar em um foguete movido a ódio e ir até a Lua. Ida e volta.
Claudia está prestes a mover seus lábios em um xingamento,
mas o irmão mais velho reúne o pouco de senso que ainda lhe resta.
— Mais alguma coisa? — A pergunta é tão arrastada, que
seus dentes trincam.
— Quero meu camarim de volta! — Mikael cruza os braços,
mimado.
— Eu não sabia que você tinha perdido seu camarim, sr.
Devante — Ricardo responde com pausas grandes entre uma
palavra e outra.
— Mikael? — o chamo, tentando entender como isso é
relevante agora.
— Desculpa — assume. — Só queria deixar pontuado,
mesmo. Em caso de dúvidas...
A frase é a última que ouvimos. Os irmãos estão derrotados,
mas não podem reagir porque ainda temem nos perder.
— Já podemos ir. — Bato na mão de Mika. Ele recolhe a
pasta e a abraça. — Já terminamos, certo?
— Certo — resmunga Ricardo, se recostando na poltrona em
um ato nada educado da sua parte.
Me levanto também. E como nenhum deles estica a mão, sei
que essa conversa está encerrada e enterrada. Mika abre a porta do
escritório de Ricardo para eu poder passar primeiro. No entanto, o
herdeiro pigarreia, chamando a nossa atenção novamente. Claudia
está de pé, segurando as próprias mãos, mas não parece pensar em
nós, seu olhar está perdido na janela mais próxima.
— Vocês conseguiram o que queriam... Estarão aqui amanhã
de manhã para gravar? — Ricardo questiona. É uma nítida ameaça.
— Posso mandar a equipe de roteiro se reunir agora mesmo!
Mika e eu trocamos um olhar de cumplicidade.
— Eu estarei — confirma. — Ela, não.
— Como não?! — Agora Ricardo poderá ter um treco a
qualquer momento. — Nós assinamos tudo!
— Exato. — Faço um sinal positivo com a minha cabeça. —
No contrato do Mika, vocês o aceitam de volta, como protagonista da
novela, com aumento de salário, novo camarim e sem Claudia na
parte criativa. No meu, vocês assinaram a minha suposta volta. Cabe
a mim aceitar ou não. — Suspiro longamente, descendo minha mão
longamente até encontrar os dedos de Mika, para nos entrelaçarmos.
— E eu não aceito. Meus dias de Farol acabaram... O contrato foi
apenas uma cerimônia. Tanto para garantir o silêncio de Claudia,
quanto para a minha segurança. — Sorrio, pronta para ir embora. —
E outra coisa... Em uma das cláusulas, vocês vão soltar uma nota
oficial e longa para a imprensa, afirmando que a minha saída foi
respeitosa, profissional e que vocês me agradecem por todos esses
anos sendo uma atriz exclusiva da Farol! — anuncio, com muito
prazer. — Estou esperando essa nota ansiosamente! — Quase pulo
no lugar. — Agora, se me dão licença, vou limpar o meu antigo
camarim! — Mika sai primeiro, fazendo um sinal como se eu fosse a
rainha do seu mundo. — Foi um prazer negociar. Claudia. — Faço
um gesto com o queixo. — Ricardo — repito-o.
Fecho a porta, me encostando na parede mais próxima.
Ser atriz é foda pra caralho.
— Não achei que ia dar certo — Mika diz, andando lado a lado
comigo, muito rápido. Antes que os seguranças apareçam, caso os
irmãos mudem de ideia. — Achei que teríamos que bancar os
espiões.
Não existe o dono do plano, Mika e eu pensamos juntos nos
últimos dias, enquanto tomávamos conta de Bolhas. Traçamos cada
exigência com ajuda de Ivy e de Lola, somos realmente uma equipe
aplicada.
— Eu disse para nos aproveitarmos do desespero — canto
vitória. — E deu certo!
— Sabia que ter você no meu time daria algum resultado! —
Na curva do corredor mais próximo, Mika segura a minha cintura, me
encostando na parede. — Na nossa fuga ideal, tem um espaço para
um beijo?!
— Tem.
Me enrosco nele, sentindo o doce sabor de estar no topo.

— Posso ficar? — Amanda Olivêncio pega uma peça de uma


arara de roupas. É a jaqueta jeans que Marina ganhou de Germano
em um momento da novela, é a sua roupa favorita na trama. — Ou
você quer?
Não tive tempo de me apegar a Marina; ela não me fez mudar
e nem transformou a minha vida. É apenas um papel transitório,
precisei interpretá-la para perceber que merecia dar um passo em
direção ao que eu realmente queria. Talvez o cabelo azul-turquesa
sempre seja seu maior ponto forte. Ou talvez eu me lembre dela
como a verdadeira quebradora de ciclos.
— Pode, sim — falo, guardando minhas maquiagens dentro
de uma caixa. — Aliás, pode ficar com todas as roupas daí.
— Sério? — Amanda arregala os olhos, feliz. Ela está me
ajudando a limpar meu antigo camarim, porque ele será de Mika
novamente.
— Sim... Só não conta para a Allura. — Pisco na sua direção,
fechando a caixa com apenas um braço.
Não vejo a hora de tirar o gesso, pelo menos não preciso ficar
andando com a tipoia por aí.
— Minha boca é um túmulo! — Amanda promete, fazendo um
sinal como se trancasse a boca e jogasse a chave fora.
— Terminei aqui! — bato em cima da caixa. Agora, preciso
recolher minhas fotos no espelho. Queria tanto colocar uma de
Bolhas, porque pareço uma mãe orgulhosa, a cada passo que ele
dá, tiro uma foto dele. Meu Instagram já está cheio de fotos dele. —
Vou pedir pro Bernardo buscar e colocar no carro — aviso-a.
Mando uma mensagem para o baterista, aguardando sua
resposta carrancuda em seguida. Amanda junta os lábios e cantarola
baixinho uma música da Desvio, me fazendo sorrir. Se me
contassem que eu seria amiga dela, que estaria conversando com
Bernardo e que seria namorada de Mikael, eu nunca acreditaria.
Nunca pensei que a minha vida seria invadida pela banda e por seus
agregados.
— Pronto. — Bernardo não bate na porta, apenas aparece. —
Qual caixa?
Aponto para uma à minha frente, mas antes de pegá-la, ele
rouba um selinho da namorada e mostra a língua para mim.
— Só porque você manda no seu cachorrinho, não significa
que mande na banda! — Bernardo fala, antes de sair pelo corredor.
— E não estou falando do Bolhas — provoca, saindo de perto de
mim antes que eu responda.
Amanda ri, pegando uma caixa de cosméticos e decidindo
acompanhar Bernardo até o carro. Preciso reunir alguns itens
pessoais, de higiene e as minhas fotos. Depois de pronto, estou
oficialmente livre.
Ao mesmo tempo que me sinto destemida, me sinto
apavorada.
Mas o misto de emoções é válido, especialmente porque sei
exatamente para onde estou indo.
— Ah... Oi.
A voz me retira dos pensamentos. Me viro na direção da porta
aberta, guardando uma foto de Ivy e eu na caixa.
A pessoa que está me encarando de volta é Teresa. Seus
ombros estão curvados e seus lábios tremem.
— O sr. Ricardo quer saber quando você vai embora —
informa, assustada.
— Daqui a pouco — respondo, sacudindo as mãos. — Pode
dizer a ele que não irei pegar nada que não é meu.
Claro que quero oferecer-lhe uma resposta afiada e suja, mas
Teresa não tem nada a ver com toda essa situação, não merece
ouvir desaforo. Muito pelo contrário...
— Teresa! — chamo-a, antes de ir. Ela volta, ainda encolhida.
— Eu vou abrir um bistrô dentro de poucos dias e você pode me
ajudar em uma coisa.
Seus olhinhos brilham.
— Em quê?
— Bom... — Sorrio, me aproximando dela. — A minha agente
vai voltar para o Reino Unido, sem uma carreira artística, ela não tem
muito o que fazer aqui. Eu preciso de uma assistente. Tenho alguns
compromissos com algumas marcas, publicidade aqui e ali. Às vezes
dar conta de tudo é cansativo... — saliento, analisando seus orbes se
interessarem cada vez mais. — Enfim... Se quiser, pode se oferecer
para o cargo.
— Eu?! — Teresa vibra. — Sua assistente?
— Sim! — elucido. — Claro... Se você aceitar.
Ela não diz nada, parece ressentir concordar tão fácil. Retiro
um cartão de contato da calça jeans e prendo na sua típica
prancheta, o item que ela carrega para cima e para baixo.
— Aí tem o meu telefone. Podemos marcar uma entrevista. —
Sorrio.
— C-Claro... — Um pouco mais animada, Teresa se afasta,
mas com os olhos presos no cartão.
Com a mão acomodada na porta, estou pronta para fechá-la,
mas outra pessoa me interrompe. Dessa vez, é Claudia . Com a
guarda baixa e os olhos caídos.
— Você precisa voltar, menina! — pede, exasperada. — A
audiência vai diminuir muito. Os números vão cair drasticamente...
— Tenho certeza que Allura e Mika farão sucesso como um
novo casal, Claudia — falo devagar. Completamente fria.
— Por favor, Georgia. Volte! — Ela junta as mãos. — Pense
em todos esses anos!
Ela não pensou quando foi a minha vez. Não pensou que me
viu crescer diante das câmeras, e não pensou que conhece os meus
pais. Não pensou em mim quando decidiu agir da maneira mais
egoísta e cruel que já vi. Não pensou em mim e nem em todos esses
anos de cordialidade e respeito que dividimos, porque ela estava
ocupada demais pensando no próprio umbigo. Agir como se
estivesse arrependida é fácil. Pensar em como errou apenas quando
envolve alguns milhões de reais parece ser o esporte preferido dos
herdeiros.
— Vá se foder, Claudia — retruco, fechando a porta de uma
vez.
42: limonada suíça
INGREDIENTES: limão, açúcar, leite condensado, água, gelo.

A EMISSORA FAROL se solidariza com a saída de


Georgia Pessoa de nosso casting oficial.
Georgia é uma profissional séria e querida por
toda a equipe. Se mostrou prestativa e aberta a
todos os projetos que lhe foram expostos nesses
quase vinte anos de tradição. Lamentamos a saída
de alguém tão talentosa de nossa família, mas
desejamos que sua trajetória seja linda, leve e
completamente regada a colher frutos de seu
desempenho.
A EMISSORA FAROL repudia qualquer ato de
violência verbal envolvendo a atriz e nega
quaisquer tipos de divergências ou fatores
infundados contra a sua pessoa.
A escolha foi tomada por ambos os lados e
acreditamos no respeito mútuo entre as partes.
Nota oficial publicada por Ricardo Farol Jr. e Claudia Farol.
43.01: banoffee
INGREDIENTES: doce de leite, banana, chantilly, biscoito maisena, margarina,
canela em pó.

— Você viu o que eles disseram? — Allura debocha. —


Ambas as partes... Como se tivesse sido isso mesmo. A mentira é
realmente uma arte!
— Pelo menos eles falaram algo viável, poderiam ter colocado
“Vai tomar no cu, Georgia!” — Gael brinca, cada um deles
completamente viciado em decorar cada palavra que Ricardo e
Claudia utilizaram para oferecer a nota da imprensa.
Estou ocupada demais rindo e enchendo o porta-malas do
carro de Pedro, porque vamos levar Ivy até o aeroporto de Madre
Rita. Ela está fazendo seu último telefonema em solo brasileiro,
dentro do bistrô Amora Mio. O letreiro vai chegar ainda hoje e quero
estar presente para supervisionar a instalação.
— As pessoas acreditam no que querem — é o que eu digo,
fechando o porta-malas com um baque e oferecendo um “joinha”
com o polegar para Pedro, que já retira as chaves do bolso. — Pelo
menos deu uma esfriada.
Gael não diz mais nada, apenas dá de ombros como quem diz
“É, pois é”. Ele está presente porque ficará de olho no bistrô por mim,
ao lado de Allura. Eles não são mais um casal e nem ficam se
encarando como antigamente. É difícil vê-los em uma conversa que
não pode gerar um flerte. Eles realmente deram um ponto final no
romance e estão seguindo em frente, como amigos.
— Deu — Allura confirma apenas por confirmar, porque ela
está amando cada parte do desenrolar dessa história toda.
— Quando você vai tirar isso aí? — Gael aponta para o gesso.
— Infelizmente, vou passar a inauguração do bistrô com isso
aqui. Vou fazer vale a pena — murmuro ao lamentar, analisando sua
careta.
Observo Ivy desligar o celular e o guardar na bolsa. Ela
sequer se demora dentro da confeitaria e sai para a calçada, onde
estamos. Ela dá uma boa olhada em nós e avisa que está de partida.
É isso. Ela não vai olhar para o meu futuro negócio com carinho e
nem saudade, não vai implorar por abraços e nem falar o quanto nos
ama. Ela não é assim.
— Foi um prazer, srta. Guispe — diz, totalmente cordial.
Parece que saiu de um filme antigo. — Digo o mesmo para o você,
sr. Soares.
— Valeu, Ivy — Gael fala, abrindo espaço para ela poder
passar. Ele passa o braço por cima dos ombros de Allura, conta uma
piada que apenas ela escuta e esconde um sorrisinho na garganta.
— Da próxima vez que nos visitar, pode me trazer uma cerveja
alemã?
Ivone não responde, ela apenas revira os olhos e caminha
com elegância em direção ao carro de Pedro.
— Estou pronta — avisa. — Já podemos ir, Georgia.
Subo as sobrancelhas para os dois.
— Cuidem da loja — ameaço, apontando o meu dedo anelar
da mão que não está enfaixada. — Até mais tarde! — aceno, abrindo
a porta do banco do passageiro e me acomodando ao lado de Pedro,
que já ligou o motor do carro.
Allura e Gael acenam ao mesmo tempo, afirmando que vão
dar uma festa com a minha ausência. Eu não levo o que eles dizem
a sério. Pedro liga o rádio também e partimos, rumo ao aeroporto.
Não há assunto dentro do carro, porque estou ocupada sendo
uma legítima fofoqueira, buscando pelas últimas notícias nos sites de
fofocas. Allura é oficialmente a nova protagonista, ela e Mika
formarão o novo casal. Germano ajudará Élia a se tornar uma
pessoa melhor, e Élia ajudará Germano a lidar com o luto pela morte
de Marina. Os dois vão perceber que sentem falta da minha
personagem e assim, acabarão se aproximando de novo, se
apaixonando de verdade dessa vez.
É interessante.
Eu, pelo menos, achei uma ótima trama envolvendo drama e
redenção.
Minha melhor amiga sabe que será uma parte totalmente
delicada na novela, mas precisa do novo salário, especialmente para
viajar até a Bolívia e começar a compor o quanto antes.
Mika está nesse momento gravando algumas cenas
atrasadas. Me enviou algumas mensagens de “bom dia” e uma foto
do Bolhas comendo a ração dele, que o Bernardo enviou da casa
dele. A cobertura permite cachorros de porte pequeno, mas eu estou
começando a suspeitar que Bolhas será enorme.
Por enquanto, consigo driblar a vista grossa dos funcionários
do hotel, mas ele precisará de espaço para crescer feliz e se
exercitar. Nós precisamos de uma casa.
— Está feliz em voltar para a casa, Ivone? — Pedro pergunta,
tentando puxar assunto.
Minha agente suspira.
— Sim.
E só.
Pedro faz uma careta discreta, deve odiar dirigir no silêncio.
Dou pequenas batidas em seus ombros, para animá-lo. Ivy é assim
mesmo, não é nada pessoal.
Ele me devolve um sorriso travesso, porque sabe disso.
Pedro Honduras não está mais tão triste quanto nos últimos
dias. Mesmo se estivesse, ele teria todo o direito do mundo de tentar
lidar melhor com os recentes acontecimentos. Depois do processo,
ele me disse que ficará algum tempo fora do país com a Beatriz, para
curtir uma vida totalmente anônima, que só seria possível bem longe
do Brasil.
Claudia está cooperando e ele me disse, ontem, que ela já
ofereceu seu depoimento contra os fotógrafos. Agora é questão de
tempo para cada um deles pagar.
E pagar caro.

Meia hora depois, Pedro estaciona na área reservada para


nós. Ivy pegará um voo particular para São Paulo, onde embarcará
na classe executiva para a Inglaterra, mas fará uma escala em
Portugal de apenas três horas.
— Entregue, Ivone — Pedro brinca, fitando-a por cima dos
ombros. — Até a próxima!
— Obrigada, sr. Honduras. — Ivy sorri de lado, recolhendo
bolsa e casaco.
Ela sai do carro e bate a porta, esperando que alguns
funcionários lhe ajudem com as bagagens.
— Volto já — aviso Pedro.
Ele confirma, se afundando no banco e batucando os dedos
no volante. Fora do carro, vejo Ivy guiar os funcionários que apoiam
suas malas num carrinho prateado. Ela agradece pela recepção e
me encara, curiosa.
— Vou te acompanhar até lá dentro — informo, apontando
para o pequeno aeroporto de Madre Rita. — Não posso te deixar
sozinha por aí.
Ela sorri de lado, um sorrisinho mínimo.
Ivy aceita, enfim, o contato. Enlaço meu braço bom no seu e,
juntas, empurramos o carrinho para dentro. Ela não terá que esperar
mais do que vinte minutos no saguão, mas se bem conheço Ivone
Telesco, ela vai tentar me despachar bem antes disso. Não estou
chateada com a sua decisão de não ficar para a inauguração do
Amora Mio. Ela se sente totalmente responsável por mim, mas sabe
que estou ao lado de pessoas que podem e que vão me ajudar.
Sabe que formei uma equipe confiável, digna e respeitável, e
que vamos fazer tudo dar certo. Se algo der errado, ela pegará o
primeiro voo para o Brasil. É o que ela faz, mesmo fingindo que é
apenas seu trabalho.
— Pronto. — Ela para de andar, de repente. O saguão para
seu voo particular está a poucos metros de nós. — Daqui eu sigo
sozinha, darling.
— Quer se livrar de mim? — Fico à sua frente, arqueando
apenas uma sobrancelha. — Se não te conhecesse tão bem, Ivone,
poderia pensar que está com o coração doendo ao dizer adeus para
mim.
— Nunca é um adeus, honey, vocês sempre voltam para mim.
Assim eu posso consertar as coisas estúpidas que vocês fazem —
diz, encarando as unhas de forma fria. Apenas sorrio com sua
resposta atravessada. — E prometo visitá-la.
— Quem sabe, dessa vez, eu mesma não vá para Londres?!
— sugiro, colocando as minhas mãos para trás.
— Será muito bem-vinda.
Nós ficamos em silêncio. Vou sentir falta da maneira chique e
inglesa que Ivy fala “Georgia”. Também vou sentir falta da sua diretriz
em ser destemida, nada parece abalá-la.
O aeroporto ao nosso redor não para apenas por causa da
nossa despedida, há outras acontecendo.
— Você parou mesmo de atuar? — Ela quer saber, pegando a
sua passagem entre o passaporte na bolsa de mão. — Tem certeza?
— Não. Não tenho certeza, mas... — Abro um sorriso cativo.
— Por enquanto, eu vou dar uma pausa. É o que eu quero... —
conto. — Vou voltar a atuar assim que um papel cativante surgir.
Prometo. E quando isso acontecer, você poderá voltar para me
brindar com sua cara fechada.
Ela faz um bico com os lábios pintados de rosa-escuro, é uma
expressão que Ivy faz apenas quando quer segurar o riso.
— Cheque seu e-mail, darling — diz, piscando. — Eu não
podia ir embora sem antes fazer algo. Afinal, é o meu trabalho!
— Pode deixar! — Bato continência. — Espero que o Hinsel
cuide de você.
— Não, ele não vai. Ele só me dá dor de cabeça. — Ela revira
os olhos e suspira alto, como se quisesse se livrar de mim. Como, na
realidade, quer. — Georgia?!
— Antes... — Ergo meu dedo, abrindo meus braços e
sacudindo os meus ombros. — Não seja fria. Me dê um abraço! —
opino. — Sei que você quer!
Ivy me encara com muita atenção, seus olhos traçam um
caminho genioso pelo meu sorriso aberto e, convencida, ela se
aninha em mim. É um abraço consideravelmente apertado, mas é
rápido. Sinto seu corpo magro se encostar no meu e suas mãos
alcançarem as minhas costas, onde desfere tapinhas sentimentais.
Nós logo nos afastamos, sem mais e nem menos. Dentro de quase
nove anos lado a lado, presumo que seja a quarta vez que ela me
abraça.
— Agora pode ir — falo, apontando para frente. Há uma moça
que lhe espera na entrada do saguão particular e parece esperar por
Ivy. — Não quero que se atrase ou coloque a culpa em mim. Te fazer
perder o timing do seu jeitinho inglês é o que eu menos quero.
A piada lhe faz soltar o ar pelo nariz, rindo sem muita
praticidade. Já é um grande avanço.
Ivone não é o tipo de pessoa que falará que sentirá a minha
falta, não é carinhosa e não me oferece palavras de carisma, porque
ela espera que saibamos disso. Se fosse qualquer outra pessoa, eu
faria o possível para ouvir palavras de afeto. Mas só de ser Ivy e ela
deixar eu estar aqui, plantada à sua frente, lhe pedindo abraços, já
diz muito sobre a nossa relação. A maneira como ela me admira e
ama.
— Juízo, Georgia — define, com as sobrancelhas franzidas no
alto da testa, sendo uma exímia estrategista.
Abro meu melhor sorriso sorrateiro, dando passagem a ela.
Ivy pousa as mãos no guidão extenso do carrinho e começa a
empurrá-lo em direção ao saguão, pronta para voltar para sua vida
normal, depois de meses na minha cola. É um pouco assustador,
admito, mas me sinto realmente muito bem. Além da independência
ser gostosa de sentir, o sabor é indescritível.
Quando lembro de um fato que possa deixá-la levemente
irritada, decido colocar em prática.
— Ivy! — chamo-a. Seu corpo treme pelo susto inesperado e
para de andar. Ela me olha por cima dos ombros. — Você nunca
mais vai me contar nada sobre você?
Uma vez, ela me disse que tem filhos, Ethan e Elisa. E é uma
das poucas coisas que sei recitar sobre a minha agente.
Contudo, neste momento, ela abre um sorriso bastante
delicado e maternal.
— Minha cor favorita é azul — confessa ao deixar o sotaque
se arrastar, desmanchando o sorriso um pouco ao colocar seus
óculos escuros e desfilar para longe de mim.
Coloco meus fios para frente do corpo, me agraciando com a
tonalidade que vem fazendo meus dias mais coloridos.
— E então? — Pedro pergunta quando eu volto para o carro.
Ele destranca a porta para mim. — Ela fez alguma criancinha chorar
neste meio tempo?
— Ainda é cedo, mas não podemos subestimar a Ivone.
— Não mesmo. — Pedro religa o motor do carro, enquanto
puxo meu celular para perto. Ivy disse que preciso checar o meu e-
mail. Ela fez algo? — Sorveteria?!
— Sorveteria — concordo, mas não presto muito atenção no
que Pedro diz.
Sinto que o carro está se mexendo, mas estou ocupada
demais ao pegar meu celular e conferir a minha caixa de e-mail.
Clico no único que não foi aberto. Ele é recente, de três horas atrás.

DE: Karina Sales


PARA: Georgia Pessoa

Bom dia, Georgia!


Você teve um teste marcado para ser Samantha, em
“Vertigem”, há alguns dias. Espero que tenha sido informada que já
conseguimos uma protagonista, ou essa mensagem se tornará
bastante constrangedora daqui para frente.
Preciso parabenizar sua agente, ela sabe o que está fazendo.
Ela me enviou algumas matérias suas, sobre a sua atuação e
a recente descoberta da síndrome. Primeiramente, sinto muito.
Segundamente, não quero tratá-la com piedade, estou aqui para
fazer um convite.
Ivone Telesco entrou em contato comigo, porque sabia que
você poderia contribuir para o filme de algum jeito. Este é apenas um
pedido informal para você participar do processo criativo de toda a
jornada que será o projeto. Precisamos de mentes geniais que
saibam conversar com Cássia de maneira sincera. Porque, afinal,
vocês sabem descrever perfeitamente o que sentem.
A pesquisa de campo durará alguns meses, enquanto o filme
é gravado na cidade de Constância, interior de São Paulo.
Se tiver alguma disponibilidade, podemos marcar uma
conversa rápida via videochamada.
Aguardo retorno!
Atenciosamente,
Karina Sales.
43.02: banoffee
Ouço o espirro de Mikael de onde eu estou. É alto o suficiente
para fazer Bolhas levar um susto e latir, irritado. O cachorrinho para
de farejar o meu pé e corre na direção de onde vem o som,
tropeçando nas próprias patinhas até chegar na cozinha.
Com as recentes obras, o Amora Mio está com pó por todo
lado. Antes de me familiarizar com a cozinha e com os demais
funcionários, preciso retirar toda a poeira que se formou na
confeitaria. A cada detalhe que arrumamos, parece que surgem
outros mil para resolver. Não é como se a inauguração estivesse
distante, ela vai acontecer daqui a dois dias.
É mais do que oficial!
— A rinite atacou — Mika responde, voltando da cozinha com
Bolhas aninhado em seu colo. O filhote ainda tenta arrancar o brinco
de corrente que Mikael usa, mas o cantor se esquiva com
sagacidade. — Esse lugar nunca vai ficar pronto, não?
— É só varrer! — resmungo, fechando toda a minha
expressão para ele. Paro meus movimentos com a vassoura e apoio
meu pulso no cabo. — E o que você estava fazendo? Além de
reclamar?
— Retocando o rodapé da tinta da cozinha, ele meio que
descascou. — Mika coloca Bolhas no chão, para que o cachorro
corra livremente pelo salão. — Não sabia que ter um negócio
demandava tanta energia, pensei que você comprava o lugar,
mandava construir tudo e pronto! Qual é a dificuldade? Por que as
coisas precisam de conserto o tempo todo?
Abaixo a cabeça ao rir e volto a varrer. Reúno todas as lascas
de tinta, poeira e sujeiras pequeninas que se aglomeraram com o
passar dos dias em uma pilha para levar ao lixo. Bolhas se agita,
pronto para pular em mim. Sei que ele vai bagunçar, portanto, Mika o
pega no colo novamente, antes que o filhote nos dê ainda mais
trabalho.
Ele é alegre, genioso e muito teimoso. Adora Mikael, mas
parece saber que veio para Madre Rita por minha causa. Temos uma
conexão carinhosa e impactante. Ele gosta de lamber a ponta do
meu nariz e sempre enfia o focinho na minha bochecha antes de
dormir. Não poderia desejar um cachorro melhor.
— Enfim... Está pronto para usar sua folga preso aqui? —
questiono, sorrindo de lado ao observar Mika desferir carinhos na
barriga estufada de ração de Bolhas. — Precisamos varrer o máximo
que conseguirmos... O letreiro chegou, mas ainda não instalaram.
— Eu queria estar bebendo com os meus amigos, sendo
honesto. — Mika faz uma careta, bastante mesquinho. — Mas
arranjei uma namorada.
— O que isso quer dizer?
— Quer dizer que eu arranjei uma namorada e preciso fazer o
que ela pede. — Ele toca meu nariz, passando por mim e se
agachando perto de uma caminha de cachorro. Bolhas já está com
sono e boceja longamente. — E apesar de ser um sacrifício passar
um tempo com você, não me importo em te ajudar!
— Nossa! — debocho. — Que sorte eu tenho... Meu
namorado vai me ajudar! As outras garotas devem ter tanta inveja de
mim!
— Sim, elas têm! — confirma, deitando Bolhas com cuidado e
se sentando à frente da caminha, apenas para se certificar de que o
filhote vá dormir. — Ouvi dizer que sou um partidão, Georgia! Fique
de olho, hein?
— Realmente — ironizo, deixando a vassoura de lado. — Que
sorte a minha!
— Tem muitas fãs que querem que eu namore a Allura agora
— Mika me provoca com um sorriso inocente, que de inofensivo não
tem absolutamente nada. — O que acha disso?
— Que eles são muito espertos... — Entro na brincadeira. —
É tudo o que eu sempre quis. Meu namorado e a minha melhor
amiga.
Ele desata a sorrir, porque quer conseguir algum tipo de
desafio vindo da minha parte. Contudo, estou realmente feliz e
satisfeita que a resposta do público tenha sido tão boa. Quero dizer,
claro que ainda existe uma boa parcela que acredita fielmente no
meu retorno e que deixou de assistir com a morte de Marina, mas é
bom saber que Mikael e Allura estão em ótimos caminhos, dentro de
uma trama que não está sendo feita para envergonhá-los.
Os dois vêm trabalhando duro por horas; é até motivo para
chegarem ao hotel tarde da noite. Mika me prometeu que, com as
gravações se tornando recorrentes em horários uniformes, ele
poderá respirar um pouco mais aliviado. Mas, por enquanto, precisa
arcar com sua agenda a fio. Afinal, o sonho dele é se tornar um ator
exímio, além de um cantor talentoso.
— Vou tomar um antialérgico e continuamos de onde paramos
— avisa, levantando-se do chão e puxando uma mecha do meu
cabelo, bem infantil.

As luzes principais estão apagadas, as janelas e as persianas


abaixadas, o bistrô não parece mais aquele comércio vazio de
paredes cinzas de antigamente. Ele tem cor, vida e uma dona que
está ansiosa para abrir as portas o quanto antes.
Mika e eu estamos sentados no chão do meu escritório. É
duas horas da manhã em ponto, não está chovendo e nem estamos
a um passo de nos matar. À nossa frente, tem uma latinha de Coca-
Cola para ele e uma de Soda para mim. Um saco de salgadinho está
aberto e estamos beliscando-o. Bolhas ainda está dormindo no
salão.
— Quando é que eu vou saber o nome desse lugar, hein? —
Mika pergunta de repente, encostando suas costas na parede.
Arregalo meus olhos, franzindo a minha boca.
— Você ainda não sabe? — Exasperada, indago ao virar o
meu rosto na sua direção. — Ninguém te contou?
— Não?! — Mika oscila as sobrancelhas. — Eu deveria saber
o nome? Esse lugar, afinal de contas, tem um nome?
Não sei o motivo, talvez ainda precise me acostumar com o
fato de estar namorando o cara que jurei odiar para sempre, mas
encolho os meus ombros. Ele tem uma facilidade tremenda em
abaixar a minha guarda e me fazer sentir borboletas no estômago,
como uma adolescente experimentando seu primeiro amor.
— Você realmente não sabe o nome ou apenas quer saber
pela minha boca?
— Os dois! — brada. — Ninguém me disse e, óbvio, seria
bem mais interessante saber por você, Georgia.
— Hm... — zombo. — Acho que estou sentindo uma tontura
se aproximando!
— Não tem graça! — acusa com o dedo.
E realmente não tem.
— Ok... Você promete não rir de mim?
— É tão ruim assim? — Se espanta, indo um pouco para trás.
— Se for horrível, deveria ter pedido a minha opinião.
— Cala a boca e escuta — peço, fazendo um sinal com os
dedos. — É... Amora Mio.
Mika Devante não tem reação alguma; seus olhos
estremecem e sua boca treme apenas um pouco. Fora isso, ele não
diz nada.
— Antes que você me zoe, precisa saber que Amora é uma
fruta, então pensei em ser doce. Exatamente como a confeitaria... É
um apelido emocional e bonitinho. Também será se um dia
terminarmos... Mesmo se formos cada um para o lado, ainda é um
nome que significa muito para mim. É isso... É a escolha mais óbvia,
mais clichê... Mais tudo. Mas é a minha escolha. É o meu bistrô!
Ele me fita como se eu estivesse acabado de recitar uma
conta matemática muito difícil.
— Para alguém que não gosta de falar, você anda bastante
tagarela, hein.
Escondo o meu rosto nas minhas mãos, gemendo baixinho.
Ouço o arrastar de seu corpo pelo piso, até se aproximar o bastante
de mim. Mika me abraça por trás, firmando suas pernas ao redor das
minhas, como se estivesse me protegendo.
— Eu amei saber que contribuí de alguma forma para o seu
sonho, amora mio — diz, ao pé da minha orelha. — Porque você é o
meu.
— Vou confessar que me derreto toda a vez que você me
chama assim... — conto, com a voz baixa e fraca.
— Então, vou confessar que só te chamo assim. Só você.
Nunca usei o apelido com mais ninguém... — Ele beija a minha
bochecha e cola sua pele na minha, deslizando pela extensão da
minha mandíbula. — Me confesse mais alguma coisa.
— Sim — sibilo. — Mas o que achou do nome? Não vai me
zoar?
— Claro que eu vou! — troveja, sacudindo um pouco o meu
corpo. — Essa é a coisa mais fantástica que já me aconteceu, com
toda a certeza vou usar isso contra você em algum momento. Por
enquanto, vou curtir nosso momento fofinho, mas assim que sairmos
por aquela porta, vou me gabar para todos ouvirem que você está
mais do que apaixonada por mim, Georgia Pessoa.
— Você é um babaca. — Estreito os meus olhos, ficando de
frente para ele. Entrelaço minhas pernas ao redor de sua cintura e
acomodo meus braços em seu pescoço. — Ainda não entendi como
tudo isso aconteceu. — Ao ouvir a minha frase, Mika abaixa o olhar.
— Talvez eu tenha notado que estava começando a gostar de você
no cinema. Quando assistimos àqueles filmes e compartilhamos um
momento de verdade, porque parecia que estávamos vivendo na
mentira.
— Vou confessar que pensei que nunca fôssemos nos
resolver quando brigamos... Naquele dia na praia — especifica ao
explicar. — Fizemos uma guerra de tinta e você estava tão brava,
que eu pensei que nunca fôssemos nos tornar amigos. Nem nada do
tipo.
— Vou confessar... — Uso suas palavras. — Nunca gostei do
modo que você me tira do sério. Perco a razão em questão de
minutos e parece que mergulho de cara em decisões que nunca
tomaria.
— Não precisa pensar que é só você! — Ele aperta a minha
bochecha. — Georgia, você é insuportavelmente chata. E ainda
estou aqui... Também não sei explicar!
Mika retira minhas mãos de sua nuca e segura apenas uma,
levando-a até a altura de seu peito, para sentir seu coração bater
ritmicamente dentro da minha palma. Ele está me olhando daquele
jeito. O jeito do show, das vezes que usamos nosso tempo livre para
decorar algumas falas, o jeito do cinema, quando esteve no meu
apartamento após uma crise ferrada de vertigem. Do mesmo jeito
que vem o acompanhando há algum tempo. E, talvez, seja a maneira
natural que ele sempre me encarou.
— Vou confessar... — continuo. — Eu me divirto com você.
— Eu também. — Ele inspira fundo e toca a minha bochecha
direita. Depois, encara meus fios de cabelo azul. — E vou
confessar... Estou com medo.
A quebra de parâmetros na conversa me surpreende um
pouco.
— Como assim?
— Estou assustado com esta nova fase na minha vida. Com
você, a novela, a banda. Tudo parece dentro dos eixos, então tenho
medo de perder tudo isso em um passe de mágica — conta, beijando
as costas da minha mão direita, logo após tirá-la de seu peito. —
Tenho medo de estar dentro de um sonho e acordar, abrupto. Tenho
medo de não ser o suficiente e de decepcionar meus fãs. Ou
desapontar a minha avó. — Ele se aproxima mais. — Tenho medo da
vida e da angústia de vivê-la.
— Não quero admitir, mas você tem a áurea de um artista.
— Sim, eu tenho — elucida, sem humildade alguma. — E
tenho medo de estar tão perdido em você, que você não esteja em
mim. Porque, se não ficou claro, amora mio... Quero ter um futuro
com você.
Cubro suas mãos nas minhas, acariciando seu braço.
— Então, vou te convidar para uma coisa. Um passeio... —
sussurro. — Seja o meu parceiro na minha jornada única. Sempre
pensei em estar sozinha, mas estou te convidando para ser sozinho
ao meu lado.
Ele sorri gradativamente.
— Aceito — cochicha. — Só se você nunca mais pintar seu
cabelo de preto. Adoro o tom azul dele!
Sorrio com o flerte.
— Vou pensar... — Amacio meus fios. — E sobre sentir
medo... — Volto para o mesmo assunto. — Eu também sinto. O
tempo todo... Até mais do que deveria. — Me aninho em seu peito.
— Mas sei que se me render a ele, não estarei vivendo.
— Seu grande dia está chegando, então preciso dizer antes
que milhares de pessoas roubem o teu tempo. — Ele segura a minha
cintura e me faz ficar cara a cara com ele. — Estou orgulhoso de
você, Georgia. Principalmente porque entrei por aquela porta sendo
um desconhecido, e vou sair por ela sendo o namorado mais gostoso
que você já teve. Se eu soubesse que aquela noite poderia me
reconectar com você, tinha pagado alguns paparazzis para me
seguir muito antes.
— Quem disse que você é o namorado mais gostoso que eu
já tive?
— Nunca vi nenhum. — Dá de ombros. — Logo, o meu
argumento é muito válido.
Semicerro os meus olhos, beijando seus lábios com muita
ternura.
— Também estou orgulhosa de você, Mikael — recito. — Mas
não conte isso a ninguém!
— Pode deixar.
44: pé de moleque
INGREDIENTES: amendoim torrado, açúcar, leite condensado, margarina.

“ELA ESTÁ MUITO ORGULHOSA DE MIM!”


É o que diz o cantor e ator Mikael Devante, após ser perguntado
sobre seu relacionamento com a atriz Georgia Pessoa [ler a matéria
completa aqui]

“ELA É A PESSOA MAIS SENSACIONAL DA MINHA VIDA!”


Afirma Bernardo Vicentino ao descrever a carreira de Amanda
Olivêncio, depois da pausa das redes sociais [ler a matéria completa
aqui]

“VOU VIAJAR COM A MINHA NOIVA POR DOIS MESES, É


ISSO O QUE EU QUERO”
O desejo de Pedro Honduras de passar mais tempo com Beatriz
Mafra, repercute no Twitter [ler a matéria completa aqui]

“ESTOU SOLTEIRO PELA PRIMEIRA VEZ EM ANOS”


Gael Soares declara que ainda não está preparado para um
relacionamento sério; o integrante da Desvio é facilmente clicado ao
lado de belas mulheres, uma delas foi Allura Guispe, a atriz com
quem o ator teve um breve affair há alguns meses [ler a matéria
completa aqui]

“VOCÊS VÃO ME OUVIR, MAS AGORA, PELA MINHA


MÚSICA”
Allura Guispe promete três músicas experimentais para o
próximo ano [ler a matéria completa aqui]

“MADRE RITA É A MINHA NOVA CASA”


Acompanhe a cobertura completa da inauguração de Amora Mio,
o novo bistrô focado em sobremesas que Georgia Pessoa está
abrindo!
O dia será recheado de surpresas, contando com um show
particular da banda Desvio apenas para convidados e vários mimos
interativos. A Amora Mio ainda consta com um espaço especial para
o seu pet, além de incentivar a leitura e a descoberta de novos
sabores [ler a matéria completa aqui]
45: doce de abóbora
INGREDIENTES: abóbora sem casca, açúcar, canela, cravos, coco ralado.

— Me diz que o Bolhas não comeu o arranjo de mesa da


Elisa Matias?
— Tá, então eu não vou te dizer que o Bolhas comeu o
arranjo de mesa da Elisa Matias!
Arregalo um pouco meu olhar para Gael Soares que,
educadamente, trouxe Teresa ao meu encontro. Estou segurando
uma taça de suco de laranja, ouvindo a música alta tremer o chão
da rua fechada. Consegui uma permissão direta para fazer com que
a rua não obtivesse nenhum movimento durante as cinco horas da
inauguração. Tanto pela festa quanto pelo palco que foi montado
perto da esquina.
A banda ainda não começou seu show, mas consigo ouvir o
som que vem da mesa do DJ. Tenho certeza que é uma música
nova da Anitta.
Atrás do corpo trêmulo de Gael, há diversas mesas postas na
rua; convidei todos os vizinhos, para que não houvesse
reclamações. Se eles participassem da festa, seria muito mais fácil
dobrá-los quanto ao barulho.
Imaginei que tudo daria errado, especialmente quando a
repórter do jornal das dez informou que choveria bem no meu dia
especial. Mas, impressionantemente, o dia está aberto e
ensolarado. Não há nuvens no céu e o calor está dando uma trégua.
É apenas um dia bonito, agradável e nada seco. Coloquei todas as
possíveis mesas disponíveis na calçada e no próprio asfalto, uma
empresa de decorações ficou com a parte democrática envolvendo
balões, painéis e lembrancinhas. Tudo em rosa e laranja.
Há flores também, agraciando as mesas e as cadeiras.
Eu só não estava esperando que Bolhas fosse tão arteiro.
— E ela se importou? — pergunto, bebendo um gole
generoso do suco. Desde que acordei, hoje às cinco da manhã, não
tive paz. Uma crise de tontura mediana me atingiu assim que desci
as escadas do apartamento, foi um momento pessoal e quase
desmotivador que usei para me concentrar. Se eu ficasse em casa
no dia em que realizaria o meu sonho, isso iria significar que a
Síndrome venceu. E jamais posso deixar isso acontecer. — E cadê
o Bolhas?
Teresa, minha mais nova assistente, me ajudou assim que
me viu sentada ao pé dos degraus. Ela vem trabalhando comigo há
duas semanas. Estudou toda a minha rotina por horas, para
conseguir se adaptar. E ainda escondeu as olheiras que a tontura
sempre deixa abaixo dos meus olhos, com um truque de
maquiagem que aprendeu no perfil da Bea. Teresa também
escolheu um modelito casual e simples para que eu usasse hoje,
fora que está me oferecendo suco natural a cada trinta minutos para
garantir que eu me mantenha hidratada.
— Essa é a questão! — Teresa responde, abraçando sua
nova prancheta marrom-escura, com detalhes em rosa. — Não o
encontramos. Elisa disse que não se importa, porque ele é apenas
um filhote e deu risada...
— Mas depois que me viu, ele saiu correndo! — Gael
completa, falando por cima da música ridiculamente alta. — Acredita
que o miserável está fugindo de mim? Ele fazia isso quando morava
lá em casa e destruía todas as minhas meias!
— Se eu fosse um cachorro bagunceiro, eu também fugiria
de você, Gael — falo, brincando. — Você é enorme, deve assustar o
coitado!
— Coitado?! — Gael repete, inconformado. — Bolhas deve
ter trinta anos só na mente dele. É calculista e desordeiro.
— Assim que eu achar o meu cachorro, pode ter certeza que
vou dizer a ele suas palavras. — Deixo a taça de suco na mesa
mais próxima, uma das poucas desocupadas. — Teresa, cuide para
que não falte nada na mesa da Elisa, ela ama flores e um dos
arranjos faz parte das lembrancinhas — digo para a minha
assistente, que puxa um walkie talkie da cintura, repassando as
minhas informações para o Seu Serafim. — Gael, se você vir o
Bolhas, não faça nada!
— Vou tentar! — Gael dá de ombros, conseguindo arrancar
um sorrisinho de Teresa que, um pouco envergonhada, se afasta de
nós.
Ela se infiltra na multidão que dança, bebe e come, pedindo
licença sempre que possível.
Belisco a barriga de Gael, que urra alto.
— Nem pense nisso! — ordeno, apontando na sua direção.
— Nisso o quê?!
— Flertar com a Teresa! — explico, ficando na ponta do pé
para tentar encontrar Mika ou Pedro. Até mesmo Allura. — Ela é
uma garota incrível, que quer se formar o quanto antes na faculdade
e acabou de mudar de emprego.
— Ela precisa relaxar, então. — Ele sorri de lado,
massageando a mandíbula. — E eu posso ajudar!
Afasto os cabelos grandes de Gael do rosto e suspiro.
— Cinco minutos. — Mudo drasticamente de assunto. —
Dentro de cinco minutos você vai estar no palco. Encontre o resto
da banda!
É a única ordem que Gael acata, porque ele beija a minha
bochecha e sai correndo, na direção oposta da qual Teresa se foi.
Sozinha, coloco as mãos na cintura, tentando pensar. Ao
redor do bairro do bistrô, quase todas as ruas estão desertas,
Bolhas não pode ter ido muito longe. Há dezenas de convidados
que o conhecem do meu Instagram, ele deve estar no colo de
alguém, furtando docinhos e sendo adorável de propósito para
ganhar carícias.
Começo a procurá-lo pelo chão, na tentativa de identificá-lo
pelas patas. Ele pode estar deitado por aí, se protegendo do sol ou
apenas descansando para o próximo ataque. Ele deveria estar na
área pet, mas conseguiu fugir graças a Gael — que é tão facilmente
manipulado, que ainda conseguiu perder o meu cachorrinho.
Ele ainda é um filhote, mas não é mais pequeno. Está na fase
curiosa e rebelde.
— O que você está fazendo, exatamente? — Ouço a voz de
Allura atrás de mim. Estou agachada perto de uma mesa vazia.
— Bolhas — defino, continuando a me apoiar nas mãos. —
Você o viu por aí?
— Não — Allura nega. Ela está usando um vestido florido
com óculos de coração. Ainda está na sua fase colorida e vibrante.
— Ele está aterrorizando todo mundo?
— E vai aterrorizar ainda mais se eu não o encontrar. —
Sorrio, feliz. Porque apesar de estar preocupada com ele, tenho
certeza que Bolhas está se divertindo. — Está ansiosa?
Allura irá cantar “Garota Internacional” com a banda Desvio.
Eles fizeram uma parceria ao meu nome e ela vai subir ao palco
pela primeira vez antes de voltar para a Bolívia. Isso significa muito
para ela — e para mim. Estou assistindo seu sonho de perto,
participando de cada etapa.
Me levanto do chão, notando que a barra da minha saia está
suja na altura dos joelhos. Mas não me importo; quer dizer que
agora esta roupa tem uma história e ficará marcada pelo dia de
hoje.
— Acho que vou vomitar. — Sua voz deixa explícito o enjoo.
— E vou fugir. Ninguém vai reparar em mim...
— Nunca mais fala isso!
Abraço Allura com força, sentindo seu aroma nato de açúcar.
Ela é a nova queridinha do momento; seus seguidores
dobraram, as marcas a adoram e quase todas as pessoas que
conheço estão fascinadas pelo seu arco de redenção na novela.
Felizmente, Mika e ela possuem muita química, e eu mesma fico
vidrada no sofá quando há alguma cena dos dois.
— Vai dar tudo certo! — Beijo sua bochecha. — Se não der,
eu faço outra festa de inauguração, só para você cantar com eles
novamente!
— Vou agradecer! — Allura afaga o meu braço. — Porque se
for vergonhoso, vou precisar de segundas e terceiras chances...
Seguro sua mão na minha, apenas fazendo carinho em sua
pele.
Quando nos conhecemos, nós tínhamos sonhos bem
diferentes. Ela queria ganhar o Oscar, e eu queria mudar de país.
Depois, ela estava fascinada com a carreira de modelo, e eu estava
pensando na possibilidade de apenas estrelar filmes. Anos depois,
ela está muito bem na sua carreira musical iniciante, enquanto
posso me consolidar como chef de uma confeitaria.
— E se você estiver mal hoje à noite, posso fazer o meu
famoso pavê de paçoca — sugiro, ao piscar e sorrir. — Dizem por aí
que ele levanta qualquer ânimo.
— É — Allura debocha. — Vou precisar de uma dose dele,
mesmo.
— Georgia! — Teresa retorna para perto de mim, segurando
a prancheta e o walkie talkie. Os olhos pequenos de amêndoas
esbugalhados pelo desespero e o peito subindo e descendo, pela
falta de ar. — Não estamos encontrando o Mikael! — Solta de uma
vez. — Precisamos atrasar o show em dez minutos! Ele não está
em lugar nenhum...
— Ah, que ótimo — debocho, para esconder meu
nervosismo. — Agora estou à procura de dois cachorros!
Allura se desfaz da minha mão, ficando em alerta.
— Vou procurar! — anuncia. — Quero estar nesse palco!
Cada uma de nós se separa, enfrentando uma parte da festa.
Allura entra no bistrô, Teresa fica com a pista de dança e eu com a
mesa quilométrica de doces. Todas as sobremesas que serão
servidas no Amora Mio estão preenchendo o móvel, em seu formato
de miniatura.
Repasso meus olhos pela extensão de sua decoração
refinada e impecável. Mas não encontro nada que possa definir que
Mika ou Bolhas passarão por ali.
Porém, sorrio ao ver três pessoas conversando. Dona Elzira,
a avó de Mika, está abraçada de lado com Bernardo, que está
devorando uma mini-tortinha de limão, enquanto Amanda insiste em
ficar com o mini cheesecake de frutas vermelhas.
— Não quero interromper, mas vocês viram dois cachorros
passando por aqui? — Abraço Amanda pelos ombros, sentindo seu
corpo estremecer pelo susto, mas logo sorri quando me reconhece.
— Um se parece com o amor da minha vida e o outro é um vira-lata.
— Mika ou Bolhas é o vira-lata? — Bernardo ironiza, sorrindo
sacanamente para mim.
— Mika, lógico — respondo, como se fosse a coisa mais
lógica do mundo.
— Não — Dona Elzira lamenta, com marcas de riso ao redor
da boca. — Nem Mika e nem Bolhas.
— Certo... — confirmo, passando pelos três, sorrindo um
pouco e os deixando conversar.
Na pista de dança, Teresa está falando com Pedro e Beatriz,
que dançam juntos uma coreografia que eles aprenderam na minha
frente. Eles até tentaram me ensinar, mas logo entendi que era outra
característica daquele casal tão único.
Perto da calçada do outro lado, Seu Serafim está
conversando com Gael, e nenhum deles parece saber o paradeiro
dos outros dois.
Hoje é um dia bom, mas é estranho. Porque eu sei que
apenas sentirei uma felicidade genuína quando a Amora Mio estiver
funcionando. Atualmente, é apenas uma festa que eu serei a anfitriã
e precisarei arcar com os imprevistos. Talvez seja por isso que Ivy
quis embarcar para o Reino Unido muito antes; provavelmente, ela
sabia que seria um dia estressante.
Continuo meu caminho em direção ao palco. Boa parte da
imprensa está aqui, fiz questão de convidar alguns dos jornalistas
mais célebres da mídia. Mantê-los felizes e satisfeitos é um passo
para cair na sombra do anonimato mais uma vez. Se bem que
namorar um astro da música nacional torna tudo bem complicado.
Aceno para alguns fotógrafos — mesmo sabendo que minha
saia está suja — e permaneço com a minha expressão neutra.
Entro na área do palco, aquela construção nada simples e
tecnológica que chama a atenção pelo tamanho. Os instrumentos da
Desvio já estão distribuídos pela passarela principal e alguns
seguranças estão a postos para manter algumas pessoas afastadas
dos integrantes que ainda não subiram.
Atravesso a construção e as cercas de segurança. Bolhas
não está em parte alguma, tampouco Mika.
Na rua atrás do palco, desço os pequenos degraus em
direção aos ladrilhos do asfalto, alguns carros estão estacionados e
o som do funk está abafado pelas caixas de som. Finalmente
encontro Mika, ele está de costas para mim, conversando com um
casal. O que me chama a atenção é que ele está fazendo carinho
em Bolhas, que está com a barriga para cima, sendo
completamente agraciado pela atenção ser toda sua.
Até mesmo o casal consegue se render aos poucos,
acariciando as grandes orelhas do filhote, que se desfaz no colo do
meu namorado.
Apenas quando me aproximo o suficiente, é que percebo que
conheço o casal. Não só os conheço, como não esperava que eles
viessem.
São meus pais!
Meu gritinho surpreso é o que faz os três me encararem de
imediato — até Bolhas me fita. Minha mãe abre um sorriso muito
gentil, frisando sua pele queimada de sol, já que é a fã número um
das praias do Brasil.
— Ei. — Me aproximo correndo até eles, disparando na
direção dela em primeiro lugar. Julia e Antenor Pessoa não me
disseram que Madre Rita seria uma possível parada de seu
motorhome. Gosto como as viagens deles são independentes. —
Achei que vocês não poderiam vir!
Abraço minha mãe com toda a força do mundo, porque sei
que agora é um misto incurável de sentimentos. Há uma parte dos
sonhos que não é preciso apenas fé. O dinheiro pode mover muitos
parâmetros para “chegarmos lá”. Talvez, se eu ainda estivesse
vivendo em um bairro comum da Zona Leste de São Paulo, eu não
teria chegado aonde cheguei. Ou pode ser que sim. Ou pode ser
que não.
As respostas podem ser infinitas, mas não posso colocar o
mérito disso tudo em apenas uma pessoa. Se meus pais não
tivessem pegado aulas extras e não tivessem insistido no meu
sonho, muito antes de eu saber que sonhos precisam de
investimento, eu não teria tido a oportunidade brilhante, arriscada e
apavorante de ter aberto meu próprio negócio.
Se o Amora Mio existe, é porque meus pais conseguiram
sonhar antes de mim.
— Era apenas uma mentirinha! — Minha mãe ri dentro do
meu abraço. Ela segura o meu cabelo azul e faz carinho no topo da
minha cabeça com a outra mão. — Mikael nos ajudou a fazer
surpresa!
— Mikael — canto seu nome, me separando dela e correndo
para abraçar o meu pai. — Claro... Ele sempre planeja tudo!
— Descobri que as coisas podem dar errado se eu faço as
coisas por impulso, amora mio — responde, charmoso. Tenho
certeza que ele já conquistou minha mãe com seus meios sorrisos.
— Oi, pai! — Me acomodo em Antenor Pessoa, que está
começando a ficar calvo. — Tem pé de moleque no cardápio, em
sua homenagem!
— Meu doce favorito e o primeiro que você aprendeu a fazer
— ele responde, segurando-me pelos ombros e dando uma boa
olhada em mim. — Ansioso para experimentar!
Me separo deles, ainda bastante eufórica por vê-los. Da
última vez que nos vimos, eles estavam se preparando para seguir
viagem até a fronteira do Brasil com a Argentina.
Mika me segura pela cintura, me trazendo para perto. Bolhas
se agita e me força a pegá-lo no colo. Ele está com bafo de leite e
de flores, fazendo os aromas peculiares se misturarem em uma
confusão tremenda em sua língua. O cachorrinho se acomoda nos
meus ombros e suspira, cansado.
— Não acredito que já se conheceram... — Sacudo a cabeça
em negação. — Eu queria aterrorizar o Mika quando chegasse a
hora!
— Ele é um bom rapaz! — Meu pai elogia, se apoiando em
um ombro de Mika. — Nos disse que você estava ansiosa e quase
explodindo por aí.
— E como ele não poderia catar seus caquinhos sozinho, nós
viemos! — Minha mãe completa, também sorrindo sentimentalmente
para Mika. — E cadê a Allura? Quero muito vê-la... Eu fico
acompanhando a novela todos os dias!
— Julia não para de falar na Élia e no Germano. — Meu pai
revira os olhos, coçando a nuca.
— Ele reclama... — Julia Pessoa confessa. — Mas não perde
uma cena!
Todos nós rimos — e Bolhas late, irritado, porque foi
interrompido de seu possível cochilo.
— Nós vamos para a festa! — Antenor avisa, colocando uma
mão nas costas da minha mãe. — Quero conhecer o pessoal e o
bistrô.
— Vão ficar em Madre Rita? — Já pergunto animada, quase
pulando no lugar.
— É o plano — ele garante, beijando a minha testa e
pegando Bolhas do meu colo. — Vem cá, amigão! Me mostra os
melhores doces...
— Estacionamos o motorhome na praia — mamãe relembra,
começando a seguir meu pai e Bolhas, que já são melhores amigos.
— Ainda não tínhamos conhecido a praia e Mikael se ofereceu
como nosso guia!
— Pode me chamar de Mika! — O cantor relembra,
colocando seu flerte inocente para jogo.
— Mika, então. — Minha mãe abre seu sorriso jovial. — Até
mais!
Ela acena, com um ar de quem está zombando pacificamente
da minha fase apaixonada. Franzo meu nariz, para ela parar de me
olhar daquele jeito. Quando dá as costas para mim e corre na
direção de meu pai e de Bolhas, me viro na direção de Mika.
Ele está usando uma camisa social vermelha, com dois
botões abertos, porque a Desvio ainda está mergulhada na fase
Malévola. A nova era chegará em breve, mas não agora.
— Você faz muitas surpresas para mim — analiso. — Me faz
parecer antirromântica.
— Porque você é. — Ele me puxa para perto. — É por essas
e outras que fui eleito o galã do ano!
— A votação ainda não acabou!
— Mas fui indicado, isso já diz muito sobre mim!
Espalmo minhas mãos em seus braços, sorrindo bem perto
de seu rosto.
— Estava te procurando, o show não pode atrasar —
relembro.
— Pode, se for para conhecer pessoalmente seus pais.
— E como foi?
— Quase fiz xixi nas calças! — conta, sem qualquer tipo de
vergonha. — Mas eles são tão legais, que me senti parte da Família
Pessoa logo de uma vez!
— Então... A partir de hoje você é Mikael Devante Pessoa?
— Como adivinhou?!
Abro um sorriso muito grande, o abraçando com todo o meu
peso e com todo o meu ser. Sinto que estou apaixonada todos os
dias desde que começamos nosso relacionamento — o de verdade.
Seguro seu rosto, beijando-o.
Saboreio sua língua e me permito derreter em seus braços,
não bagunço seus cabelos, mas arranho sua nuca. Brinco com a
armação de seus óculos e vibro ao sentir seu coração compassado
ao meu. Mergulho de cabeça, mais uma vez, em mais uma etapa do
nosso namoro, porque há certos momentos que não quero emergir.
— Obrigada. — Não solto seu rosto entre os meus dedos. —
Apenas obrigada.
Meus olhos devem estar brilhando, porque Mika não para de
encará-los.
— Obrigado — ele repete, extasiado pelo momento. —
Apenas obrigado.
Há dezenas de coisas que eu gostaria que Mikael Devante
soubesse, coisas essas que ele descobrirá a cada manhã em que
nos dermos uma real chance de passarmos outras vinte e quatro
horas juntos. Mas, neste momento, ele parece saber exatamente do
que eu estou falando.
epílogo
bolo de red velvet
INGREDIENTES: leite, suco de limão, manteiga sem sal, açúcar, ovo, essência
de baunilha, farinha de trigo, fermento em pó, corante líquido vermelho, cream-
cheese, manteiga sem sal, açúcar de confeiteiro.

quatro meses depois

Em 1939, o circo francês Deluit passava por uma crise


financeira ferrada.
Ou eles mudavam seu repertório, ou alegavam falência logo
de uma vez. Jonathan Mártin, o dono do circo, estava realmente
frustrado com seu sonho indo para o ralo, mas sabia que poderia
contar com a ajuda de sua esposa, Kelly Petit. Então, um dia,
quando Kelly estava arriscando sua vida como escritora, Jonathan
sugeriu que ela pensasse em um enredo que pudesse intrigar o
público em sua última apresentação. Era tudo ou nada. Ou eles
conseguiam o prestígio de volta ou fechavam as portas.
Por dois dias e duas noites, o casal conseguiu inventar uma
história épica, que ultrapassou os muros do Circo Deluit, até se
tornar uma grande representação sobre mentiras, más notícias, amor
e ódio. Kelly utilizou seus nomes reais em seus gloriosos
personagens porque queria ser famosa – e conseguiu. A história teve
algumas adaptações durante muitos anos, até se tornarem ícones no
mundo do teatro caricato.
É verdade que Kelly foi enterrada com seu diário, mas apenas
porque pediu assim antes que morresse. E é verdade que Jonathan
faleceu dois dias depois – se por amor ou solidão, ninguém nunca
descobriu.
Sendo verdade ou não, sendo a primeira fake news que
Georgia acreditou na vida ou não, é uma boa história. Se o desfecho
dela lhe provou algo, também preciso saber.
Afinal, quem foram os verdadeiros Jonathan e Kelly?
— Que horas você vai?
— Daqui a pouco... Vou apenas pegar o meu carro na
garagem, garantir que o Bolhas esteja bem e pronto — digo, saindo
e fechando a porta do carro de Bernardo. Me apoio na janela aberta,
segurando a minha mochila por apenas uma alça. — Te mando um
postal de Constância!
— Não, obrigado. Me poupe de muitos sentimentos —
Bernardo olha na minha direção, retirando apenas uma mão do
volante e me ameaçando com seu dedo estirado. — Semana que
vem precisamos estar em São Paulo. Espero que aproveite sua
viagem, porque depois você não terá mais descanso nenhum!
— Não sei como senti sua falta — comento, relaxando todo o
meu corpo. Bernardo revira os olhos. — Você é tão desagradável!
Meu melhor amigo não diz mais nada, apenas aciona um dos
botões de seu carro, fazendo a janela subir e fechar enquanto
permaneço ali, de pé. O vidro blindado e filmado se ergue por inteiro,
me deixando sem a visão de dentro de seu carro. Sei que ele
consegue me ver, por este motivo lhe ofereço uma risada tão alta e
tão feroz, que simplesmente tenho ciência de que foi o suficiente
para irritá-lo até o último fio de cabelo.
Me afasto da lataria do carro e espero o veículo se distanciar,
desaparecendo pela rua movimentada graças ao bistrô Amora Mio.
Em finais de semana, Georgia consegue fazer esse lugar
lotar. É preciso ligar dias e dias com antecedência para reservar uma
mesa, e se você é corajoso, irá enfrentar uma fila de espera de
quase duas horas. Os negócios vão tão bem que ela está
começando a pensar em abrir uma filial em São Paulo e outra no Rio
de Janeiro.
Ela não pode pensar pequeno, porque de fato, nunca pensou.
Em dias comuns — os famosos dias úteis — é até possível
conseguir uma mesa, mas o movimento ainda é acirrado o bastante
para algumas pessoas ficarem de pé ou do lado de fora. Neste
horário, o Amora Mio está com apenas meia dúzia de clientes,
distribuídos pelo charmoso salão pequeno de sempre.
Ao abrir a porta, não chamo a atenção, porque a maioria da
clientela sabe que pode me encontrar por aqui, vagando de um lado
para o outro. Ora ajudando Georgia, ora importunando-a. Começo a
sorrir só de imaginá-la irritada comigo. Com suas bochechas se
enchendo de ar, seu nariz começando a se enrugar e sua testa
oscilando com seu humor.
Pego uma mesa bem no meio do Amora Mio, analisando
alguns clientes estudando, enquanto bebem limonada ou desfrutam
das sobremesas que podem fazer qualquer pessoa ter água na boca.
Nas paredes, há prêmios que Georgia ganhou nos últimos meses. A
torta de limão daqui é conhecida como uma das melhores da região
e o bolo gelado de Romeu & Julieta ficou em terceiro lugar em um
concurso culinário.
Também tem um pôster da Desvio em uma das paredes
coloridas, que a própria Amanda fez questão de pintar e grafitar. Tem
um bigode desenhado na minha parte da foto — e eu tenho certeza
que foi Georgia quem fez isso.
Me ajeito na cadeira, puxando o cardápio laminado para
verificar se há alguma opção da qual não experimentei ainda. Mas
vou pedir o de sempre; suco de maracujá com bolo de red-velvet.
Porque é a minha combinação favorita, e o bolo que ela faz é
simplesmente perfeito.
Não há sinal da garçonete que fica por aqui, a Talita, nem
sinal de Seu Serafim.
Batuco meus dedos em cima da madeira, puxando meu
celular. A foto de bloqueio é a minha avó recebendo um beijo bem
molhado do Bolhas. Ele está enorme agora. Pensei que o cachorro
fosse de médio porte, mas ele é surpreendentemente grande e forte.
Suas patas são enormes e, quando Bolhas está muito agitado, feliz
em me ver, consegue me derrubar no chão apenas com seus pulos.
Estou de volta a Madre Rita depois de ter passado um mês
longe. Acabei de voltar do aeroporto e já estou pronto para
acompanhar Georgia nas últimas semanas de gravação de
“Vertigem”. Estou louco de saudade, fervendo de ansiedade em revê-
la.
Ao fim das gravações, ela vai me acompanhar até São Paulo,
para podermos iniciar a nova fase da Desvio. Dessa vez, traremos o
tema vampiresco mais acentuado do que nunca.
Checo todas as mensagens, mas não tem nenhuma de
Georgia na tela do meu celular e eu o bloqueio, me deparando com
Teresa saindo dos fundos do bistrô. Para a garota tímida e mirrada
da Farol, ela agora consegue adotar uma nova postura e atitude que
combina com seu novo emprego. Talvez seja porque este é saudável
e lhe paga bem. Não tem ninguém gritando no seu ouvido ou a
encarando como se ela não fosse nada.
— Oi, Mika! — Ela me cumprimenta com ânimo e com
confiança. Na emissora, ela sequer sabia falar meu nome sem
gaguejar. — Tudo bem? Voltou agora? Chegou agora? — Ela me
enche de perguntas. — Pensei que vocês fossem viajar de noite!
— E aí, Teresa! — Faço um sinal com dois dedos na testa. —
Tô de boa. — Sorrio. — Vamos daqui a pouco, acabei de voltar. O
disco está em pré-produção e só na semana que vem que a Allura
vai estar para gravar a parte dela, então... Estamos de folga... É
temporária, mas ainda é uma folga — explico. — Sabe me informar
aonde está sua chefe?
— Ela já vem! — Teresa informa, sorridente. — As duas
garçonetes meio que tiveram um contratempo, então todo mundo tá
trabalhando no salão hoje. Inclusive ela.
— Faço questão que a Georgia me atenda. — Estico as
minhas pernas, sorrindo com deboche na direção de Teresa. — Ela
pode me atender? Sou um cliente VIP!
Teresa ri frouxamente, achando graça na minha implicância.
Há certas coisas que nunca podem mudar — e nem vão. Ela faz um
sinal com o polegar e dá a volta pelos calcanhares, entrando no
corredor e desaparecendo dentro da cozinha.
Como Georgia vive na cozinha desta confeitaria, é normal que
ela chegue em casa cheia de açúcar no cabelo, farinha na bochecha
e cobertura de frutas nas roupas. Ela está cansada, mas muito feliz e
realizada. Ainda diz que prefere cozinhar para seus amigos, mas é
delicioso saber que a minha amora mio consegue encantar outros
tipos de públicos.
Pego o cardápio novamente, agora começando a ficar
ansioso. Sempre fico assim quando vamos viajar ou ter um tempo só
para nós. É bem ridículo o que vou falar, mas quando fico muito
tempo longe dela, fico pensando se ela já não está enjoada de mim.
Idiota da minha parte, eu sei.
Alguns segundos depois, uma garçonete sai da cozinha, mas
não demoro meu olhar nela. Continuo a vagar pelas opções que
parecem ter aumentado nos últimos dias. Penso em trocar meu bolo
de red-velvet por outra opção, mas hoje não parece ser um dia bom
para trocas.
Gosto de tradições.
— Pois não? — A garçonete pergunta. Ela está parada ao
meu lado direito, esperando para me ouvir.
— Ah, sim... — Pigarreio. — Desculpe, eu quero esperar a
sua... — Paro de falar, deixando as palavras morrerem no fundo da
minha garganta. Subo o olhar para aquela mulher lindíssima, me
deparando com a minha namorada. Georgia está sorrindo, com as
sobrancelhas erguidas, ostentando a postura de uma garota travessa
e empolgada. — Georgia?
— Não, sou o Fantasma do Natal Passado — zomba,
colocando apenas uma mão na cintura. — Não me reconheceu?
Seu cabelo não tem mais o tom de azul que eu tanto gosto e
amo. Agora ela está com o rosto emoldurado por uma tonalidade
roxo-escuro que a deixa parecida com uma super-heroína de alguma
HQ — e porra, isto é um elogio.
— O que aconteceu com o azul? — pergunto. Até ontem à
noite, na nossa videochamada, Georgia estava com aquele mesmo
tom azul-turquesa. Agora não mais. — Eu dormi quanto tempo?!
— Dormiu por quinze dias — brinca, puxando uma cadeira
para se sentar ao meu lado. — Quem garante que as horas
passaram certo no seu estúdio?
Estou impressionado e embasbacado.
Porque, cacete, ela está linda pra caramba!
Sempre foi, mas talvez cabelos coloridos sejam sua nova
marca, porque o roxo brilha contra a luz e faz parecer que suas
mechas possuem pequenos focos de diamante na cor vívida.
— Adeus, amoras. — Me aproximo dela, puxando um
punhado de cabelo para perto. — Agora vou te chamar de beterraba
mio.
— Tão romântico!
— Tô brincando. — Repuxo sua cadeira para perto e ouço seu
gritinho assustado contra a minha boca. Abraço-a apertado,
afundando meu rosto no seu ombro. O mesmo cheiro de açúcar e
flores. — Senti falta desse gemidinho!
— Eu não... Gemi! — Ela responde, um pouco irritada pela
aproximação abrupta e por estarmos no meio de seu trabalho.
Georgia é profissional e careta.
— Mas vai! — prometo, molhando meus lábios. Foco na sua
boca. — Acabei de voltar de São Paulo. Um mês longe é muita
coisa. Eu quase morri de saudade, e você sabe que quando a
saudade aparece nós somos ótimos a matando.
— Somos. — Ela se aconchega em mim, fazendo beicinho. —
Mal posso esperar por um momento a sós... Você precisa segurar o
meu cabelo entre seus dedos da próxima vez que for me comer.
— É você que está me matando! — acuso-a, ouvindo sua
gargalhada venenosa. — Pintou o cabelo justo no dia que estamos
de partida!
— Foi coincidência!
— Nunca! — defino. — Você é ardilosa e cruel, Georgia
Pessoa!
— Pode ser que tenha sido uma coincidência proposital...
Me recosto na cadeira, cruzando os braços e sorrindo,
indignado como o meu sorriso aparece com tanta facilidade perto
dela.
Nós decidimos comprar uma casa em uma área afastada da
praia há alguns meses.
Nada de areia, mar, ondas ou maresia. Apenas um
condomínio no meio de uma reserva florestal, bem perto da estrada.
A casa é de madeira e de tijolos, tem apenas um andar e nosso
quintal é suficientemente grande para fazer qualquer pessoa se
perder na mata. Bolhas adora, especialmente quando chove, porque
se cria poças de lama na grama úmida, ele fica horas e horas
rolando de um lado para o outro.
É discreto o bastante para nós, confortável para nossa família
de apenas duas pessoas e um cachorro serelepe, que adora destruir
meias e espirrar sempre que um aroma diferente é colocado no ar.
Ontem à noite, antes de fazer minhas malas de volta para cá,
eu disse a ela “Olha só o que construímos”. Porque não foi apenas
uma amizade, não foi apenas uma mera casa que nos fez um casal
feliz, foi a confiança que depositamos na possibilidade de nos
entregarmos um ao outro.
Duas pessoas terrivelmente difíceis e iguais.
— Agora vou ter que mudar o nome da música que fiz para
você — conto, fazendo charme. — “Mar Azul” vai ser “Mar Roxo”?
Não tem a mesma sonoridade!
— Até agora eu não ouvi nada dessa música... Estou
começando a achar que é uma lenda! — resmunga. — Aliás, nunca
ouvi nem “Fantasia” e nem “Todos os Finais que Nunca Te Escrevi".
Você acha isso justo?
— Quero gravar primeiro — respondo, erguendo as minhas
mãos. — Paciência não é a sua virtude.
— Nunca foi. — Dá de ombros ao ouvir a minha risada.
— Mas prometo que daqui a uns quinze dias, você vai assistir
de camarote a gravação. Ok?
— A Allura vai também?
Ao ouvir o nome da minha parceria de novela, abro um
sorriso. Germano e Élia são o novo casal queridinho das colunas de
revistas. Podemos não ter o apoio dos fãs da falecida Marina, mas
conseguimos conquistar o público e reerguer o prestígio da trama.
— Sim... Ela disse que desembarga de Sucre no final do mês
— brinco perto da sua camiseta. — Já podemos ir? Estou ansioso
para pegar estrada.
— Sim. Pode me esperar no carro? Preciso garantir que tudo
esteja em ordem por aqui antes de ir... — Ela se levanta, amaciando
a roupa com pesar. — É a primeira viagem que faço depois que abri
este lugar. Já tô com medo.
— Ei. — Puxo sua mão. — Constância é perto. É no mesmo
estado, qualquer coisa nós corremos pra cá.
— Obrigada. — Sorridente, ela abaixa o corpo para poder
beijar a minha bochecha. — Vou buscar seu bolo e podemos ir. —
Georgia me encara por alguns segundos, um sorrisinho esperto
brindando os lábios cheios. — Acabaram de sair do forno!
Apenas assinto com a cabeça, analisando suas pernas longas
levarem-na para longe.
Dentro de alguns segundos, Teresa passa por mim, ainda
sorrindo. Ela sinaliza para o lado de fora que o Amora Mio está
fechando, e os poucos clientes que ainda estão presentes começam
a se arrumar para irem embora. O feriado prolongado irá se
estender, e Georgia e eu ficaremos em Constância por muitos e
muitos dias. A fase final das gravações está chegando e trabalhar
nos bastidores a fez ter uma outra visão do seu trabalho como atriz.
Me levanto da cadeira, a arrumando no lugar.
Na cozinha, abraço Seu Serafim, que está checando um
último estoque de sorvete de doce de leite argentino — um dos itens
mais pedidos da Amora Mio. Nos fundos, onde Georgia improvisou
uma garagem, meu carro está aberto com apenas algumas malas
nos porta-malas. Bolhas está correndo de um lado para o outro,
detonando com um ursinho de pelúcia que Gael deu a ele.
Meu cachorro se agita ao me ver. Um mês longe deles foi
realmente uma covardia. Ele se agita, preparando as patas traseiras
para correr. Me agacho, abrindo os braços para recebê-lo.
— E aí, amigão. — Caio no chão, sentindo suas patas
baterem contra a minha barriga e sua língua deslizar por todo o meu
rosto.
Bolhas late alto de saudade, pula, rola, lambe e morde
levemente as minhas mãos. Ele também sabe que vamos viajar em
breve.
— Vem — digo. — Vou te ajeitar.
O cachorro entende, me deixando guiá-lo para dentro do
carro. Inteligente como é, Bolhas pula para dentro do banco de trás,
ansioso para cairmos na estrada.
— A fera está controlada? — Georgia aparece. Ainda está
com seu uniforme do Amora Mio, mas sem o crachá. Uma mochila
está pendurada no seu ombro, e carrega um embrulho de papel
marrom-escuro, fechado e grampeado. É o meu bolo. — Se esse
cachorro falasse, a maioria das palavras seriam palavrões. Tenho
certeza.
— Seus pais que acostumaram ele mal — acuso, fechando a
porta, mas deixando as janelas abertas. Bolhas enfia sua cara ali,
com a língua caída, ofegante. — Parece que ele só quer viajar o
tempo todo.
— Ouviu isso, Bolhas? — Georgia provoca. — Mika te
chamou de mimado.
O cachorro preto late, muito alto.
— As verdades doem, rapaz — sussurro para ele.
— Vamos? — Georgia me apressa. — Teresa vai fechar a loja
daqui a pouco. Já tô liberada...
— Vamos. — Sorrio, puxando-a para um abraço e lhe
roubando um beijo lento.
Esses tipos de beijos são muito perigosos. Toda vez que
aprofundamos um beijo, acabamos transando. Na real, é melhor que
Georgia e eu fiquemos apenas nos selinhos. É bem mais seguro e
simples.
Nós não falamos ainda de casamento, e nem de filhos, porque
sabemos aonde estamos indo. Para onde estamos rumando e,
talvez, seja questão de tempo. Ela entende que adoro focar na minha
atuação e que a fase vampiresca da Desvio está chegando para a
próxima turnê. Ela tem os bastidores do filme para cuidar e o bistrô.
Temos muito tempo ainda.
— Vem cá, você não tem medo de ir até Constância? —
Ajudo-a com a mochila, enfiando-a no porta-malas e o fechando.
Deixo o embrulho mais perto de mim, pronto para ir. — Sabe o caso
das Duas Irmãs? Envolvendo prima-donas e tudo? Então...
Aconteceu lá.
— Não estou com medo, mas sabe de uma coisa? — Georgia
se aproxima. — A Karina alugou uma casa no mesmo condado das
chácaras onde o crime ocorreu. Ela disse que quer uma imersão ao
terror psicológico em “Vertigem”... Talvez o lugar seja mal-
assombrado!
— Boa sorte! — Faço uma careta, sentindo calafrios por toda
parte do meu corpo. — Sério, nem precisa me convidar para ficar por
perto.
— Relaxa
Uma buzina irritante me faz despertar do meu transe; é
Bolhas, que está dentro da cabine do motorista e está pressionando
as patas no volante. O susto me faz rir, mas também me desespera.
Temos que ir logo. Solto Georgia, dando a volta no carro e retirando
o cachorro de lá. Ele volta para o banco de trás, satisfeito com sua
travessura, e nos aguarda colocar o cinto de segurança.
Georgia liga a rádio, depois que se acomoda. Ela sorri ao
perceber que está tocando “Garota Internacional”, a versão acústica
ao lado de Allura.
— Pronta?
— Pronta.
Ligo o motor, manobro um pouco saindo da vaga e dos fundos
de seu bistrô, até chegar em uma porta automática onde Teresa está
nos esperando, para fechá-la depois. Quando o carro atinge a rua
principal, a mesma onde Georgia e eu nos reencontramos, me sinto
em paz.
No momento, ela está cantarolando a música, descansando
com os olhos fechados, enquanto Bolhas permanece com a cabeça
para fora, deixando o vento sacudir suas orelhas grandes.
Cada um de nós da banda escreveu uma música
sentimentalista para nossas amadas. Bernardo escreveu “Depois do
Sonho” para Amanda; “Até o Fim”, Pedro rascunhou para Beatriz,
deu certo e conseguimos finalizar a canção antes do casamento dos
dois. Que aconteceu em uma capela em Las Vegas — exatamente
como eles queriam.
“Mar Azul” eu escrevi em apenas dois dias para Georgia, mas
mudei tanta coisa, que a versão final é uma melodia de quase seis
minutos. E “Ainda Estou Aqui”, Gael prometeu que não, mas todos
nós sabemos que é para Teresa.
Os dois fingem que não, mas tenho certeza que estão saindo
escondidos.
— Tem uma coisa para você dentro do embrulho... — Georgia
diz, ao fazer um gesto para o pacote do bolo red-velvet que deixei ao
meu lado, perto do porta-luvas. Seu cabelo roxo está muito vívido —
Não abre agora! — Ela pede, segurando a minha mão por cima do
volante. — Só depois!
Sua expressão séria é o que me faz aguardar. Confirmo com a
cabeça, focando na estrada que entraremos há pouco. Seus pais,
Julia e Antenor, já estão em Constância. Eles quiseram ir primeiro
para poderem turistar, mas já estão nos esperando no hotel.
Com a minha paciência, ela beija a minha bochecha
novamente, fazendo carinho na tatuagem. Há alguns meses, Georgia
jamais me beijaria em público, não quando as manchetes ainda
adoram seu nome. Hoje em dia, ela está pouco se fodendo para o
que vão pensar e gosta de celebrar nosso amor aonde quer que
esteja.

— Quando, enfim, vou ler a letra de “Mar Azul”? — pergunta


impaciente, quando paramos em um posto de gasolina, a muito
quilômetros longe de Madre Rita.
— Te mando um e-mail. — Pisco.
Georgia aperta meu corpo contra o dela e inala o meu cheiro.
Só se afasta quando decide pegar algo para comer, na loja de
conveniência. Bolhas está do outro lado da rodovia e estou de olho
nele, enquanto o cachorro faz xixi. Ele termina o que tem para fazer
e, educadamente, atravessa a estrada até nosso carro.
Bom garoto!
Analiso seu corpo desfilar para longe de mim e sorrio,
cruzando os braços, também de olho nela. Me encosto na lataria do
carro e inspiro o cheiro agradável das árvores ao redor. Vai começar
a chover daqui a pouco e, com sorte, estaremos em Constância
antes de anoitecer.
Talvez a conclusão sobre o caso de Jonathan e Kelly tenha
sido exatamente sobre um casal que se enxergava como uma dupla.
Eles colocavam seus interesses pessoais e profissionais acima de
tudo e, juntos, conseguiam resultados ótimos para viverem uma vida
ainda mais maravilhosa. Amor e ódio não podem viver lado a lado,
porque somente um deles é verdadeiro.
Somos uma dupla agora. Nós não possuímos mais mal
entendidos. Porque, sendo franco, me considero muito sortudo por
poder estar ao lado dela. Na minha época de fã, nunca pensei que
fosse conhecê-la de perto sem antes falar qualquer asneira que a
fizesse ficar irritada. E quando revivo todos esses seis anos na
minha mente, penso que tudo realmente valeu a pena para fazer
sentido nesse futuro. E, muito provavelmente, nós tenhamos vivido
um mar vasto de honestidade desde o princípio.
Entre Georgia e eu, entre nossos sentimentos e nossas reais
emoções, jamais existiu a mentira. Nós apenas pensávamos que
sim. Até as áureas ruins precisam ser verídicas para fazerem algum
sentido.
O pensamento me faz rir e, com fome, decido pescar o
embrulho com o bolo, antes que Bolhas o rasgue. Georgia acena
para mim, de trás do vidro da loja, apontando para os inúmeros
salgadinhos que pegou para nós.
Rasgo o embrulho, sedento pelo bolo e pelo o que ela deixou.
Apenas encontro uma caixa com o meu pedido e um papel dobrado
em dois. Abro-o em seguida, com as sobrancelhas juntas. Procuro
Georgia com o olhar, encontrando-a, saindo da loja. Ela me vê em
pé, segurando o papel, e sorri, assentindo com a cabeça para eu
seguir em frente.
Não entendo o que é.
São versos?
Começo a ler, enfim.

“Mika,
Sua linguagem do amor são os presentes, e com tantos que
você vem me dando nos últimos tempos, parece que eu sou a
pessoa mais tediosa do mundo. Na realidade, andei pesquisando e
sou mais sobre carinho e toques, e tempo de qualidade. Mas
prometo que encontraremos uma sintonia.
Com tantas surpresas, é escancarado que eu não consigo
competir com você. Dessa vez você venceu, só dessa vez. E, apesar
do nosso relacionamento não ser uma competição, você teria
medalha de ouro.
Então, tentei pensar em todas as alternativas para
surpreendê-lo.
Presentes, mimos, doces, tudo.
E precisei ir até o fundo da minha alma para reconhecer que
somos artistas. E artistas fazem de suas dores e seus amores, a
verdadeira arte.
Decidi me expressar por palavras, em uma possível música.
Sim, isso mesmo. A atriz que decora receitas, lhe escreveu
uma canção – com ajuda da Allura, é claro.
Espero que esteja à sua altura.
“O Que Acabo (Não) Gostando em Você”

Posso listar,
Posso pensar.
Devo listar,
Devo pensar.

Mas tudo o que acabo (não) gostando em você,


É o que me faz ficar.
Talvez seu cabelo (rebelde)
Que não para em nenhum elástico

Talvez seus olhos (sagazes)


Que podem e me encontram
Em qualquer multidão

Talvez suas roupas (fixação)


Que são iguais aos dos astros.
Talvez sua cicatriz,
Que é a única parte que amei primeiro.

Soube colidir,
Soube mediar.
Talvez eu prefira odiar sua mão
E depois seus dedos nos meus.
As suas pegadinhas,
Mas ainda mais sua risada
tão parecida com a minha.

Dois espelhos,
Mas não duas almas.
Se não estivéssemos na mesma frequência,
Talvez eu te odiasse ainda mais.

Talvez eu odeie suas verdades,


Porque nelas não cabem mentiras.
Talvez eu odeie tudo o que te componha.”
Batuco meus dedos na folha, analisando o sorriso enorme que
se forma nos lábios da minha namorada. E é bom que ela esteja me
encarando de volta, porque, em outra vida, jamais poderei descrever
alguém parecido como Georgia.
agradecimentos

Primeiramente, preciso dizer que estou muito feliz em dar


seguimento ao segundo livro que publico neste ano de 2022. Eu
tinha um planejamento muito firme sobre os meus próximos
lançamentos e pensei que não conseguiria seguir a minha ordem. E
cá estou, feliz em poder concluí-la.
Também quero agradecer ao meu grupo de Espiãs; Andy e Rai,
que são Foguinhos e Livrinhos, respectivamente. Obrigada por
acreditarem em mim, muito antes de eu pensar em qualquer livro,
vocês já acreditam fielmente que eu vá conseguir. Obrigada,
obrigada!
Às minhas revisoras incríveis que cuidaram muito bem do meu
texto, Raianne e Dayane, obrigada por taaanto!
Estou muito feliz que uma pessoa cuidou de cada detalhe da arte
de diagramação e esse alguém é uma pessoa que admiro muito, que
transborda talento por onde passa. Obrigada, Arda. Espero que leia
este livrinho e que ele te traga sorrisos sinceros, você faz parte
disso!
Gabrielle Dantas, obrigada por ter começado esta jornada
comigo, espero que termine MUPF tão satisfeita quando começou.
Te amo mil milhões!
Maria Clara Ronda, sua gostosa!!!!!! Obrigada por tudo, é
basicamente isso o que posso dizer. Teu carinho e seu trabalho
foram importantes demais para MUPF chegar neste mundão. Você é
luz, não me canso de te ver crescer e brilhar. Conte comigo pra tudo!
Mary Dionísio, por mais que não tenha trabalhado diretamente
comigo, ainda assim é uma fonte de grande inspiração. Obrigada,
bicha, tu é sensacional!
Kengalinhas, simplesmente obrigada por serem quem são. Um
agradecimento em especial para a Lua, que me ajudou no processo
de escrita com seu olho super sagaz para vícios de linguagem e
Alycia, que trabalhou tão bem nesta capa e nos brindes, que é até
um crime uma capa ser tão bonita assim – sem modéstia por aqui.
Mikael precisava vir de alguém e este alguém se chama
Guilherme. Metadinha, obrigada por ser uma chama inapagável de
inspiração. Tô imensamente satisfeita com o resultado e mal posso
esperar para as outras pessoas conhecerem o Mikael da mesma
forma que te conheço. Você é incrível.
Luiza Carvalho e Isis Casemiro vocês são as betas que as
pessoas desejam. Obrigada pelo apoio, os surtos e o trabalho digno
de vocês. Sério, contem comigo para tudooooooooo!!
E para o Renato que, assim como qualquer personagem literário
que acaba virando realidade, é a minha última pessoa favorita.
Obrigada pelo apoio, neneco.

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