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Os ingredientes exigidos.
PAI (ANTENOR):
nao importa o que aconteça... voçe sabe o que estah
fazendo!
RADDEN WEST:
O que ela pode te ensinar?
— Parabéns, Georgia!
— Felicidades, Georgia!
— Vi a notícia, fico feliz por vocês!
Agradeço com um sorriso e alguns acenos enquanto
atravesso a Farol em busca de Mikael. Deixei Ivy na companhia de
Teresa e prometi que iria resolver tudo com as minhas próprias
mãos. Tenho vinte e quatro anos de idade e dezenove de carreira. E
é a primeira vez que isso acontece.
Meu nome sempre é assimilado com a tranquilidade de uma
vida pacífica, especialmente por eu não gostar de me expor em
nenhum momento. As poucas vezes em que estive em grandes
matérias foram para anunciar o meu diagnóstico, minha amizade
com uma cantora que realmente não deu certo e a minha mais nova
aposentadoria. E essa última já me deixa com os nervos sensíveis o
suficiente.
Recebo mensagens diárias de fãs, me contando o quanto
estão decepcionados comigo. Que eles torcem para o meu bem,
mas suplicam violentamente que não abandone a emissora — e
nem eles. E isso é o bastante para me fazer sentir a pior pessoa do
mundo. É invasivo precisar provar algo a alguém ou ficar em um
determinado espaço apenas porque os outros querem.
Sempre foi constante o desejo da mídia de saber com quem
ando saindo — e nunca dei esse gostinho a eles. Não será Mikael
que enviará tudo para o espaço.
Não vou ser grosseira ou rude com as pessoas que esbarram
em mim pelos corredores da Farol, e desejam que eu seja feliz ao
lado de Mikael. Por um lado, é fofo saber que sou querida ao ponto
de eles estarem torcendo genuinamente por mim, mas, por outro,
me sinto extremamente exposta. É como se eu estivesse usando
uma blusa terrivelmente fina no inverno tenebroso da Antártica.
Minha busca pelo camarim trezentos e trinta é quase
insuportável.
Todos os olhos estão voltados para mim — e não é porque
sou a Marina. Até mesmo a Dona Safira, a senhora gentil que
comanda o carrinho do café, está com a fofoca quentinha na ponta
da língua.
Tento ser o mais educada possível.
— Parabéns, Georgia! — Uma garota grita para mim,
enquanto eu praticamente corro por um corredor, quase chegando
ao que deve ser a ala C da emissora.
— Obrigada — murmuro, acenando na sua direção e lhe
lançando um sorriso casual.
Ela fica animada e pula no lugar, e logo entra em uma sala
particular. Deve ter entre quinze ou dezesseis anos, e aposto que
está aqui para participar da coletiva de imprensa.
Sigo os números destacados na porta, sem parar por nem um
segundo.
Trezentos e nove.
Trezentos e dez.
Não ter controle sobre minha própria vida me deixa estática e
muito furiosa. As pessoas invadem a minha privacidade como se eu
não merecesse uma vida sossegada. Já reclamei sobre esse
quesito com algumas pessoas e as respostas que recebi não foram
as melhores do mundo.
“Você quis ser famosa. Esperava o quê?”
“E daí? Você é conhecida!”
“Você já sabia disso quando quis ser atriz, não adianta
reclamar agora. É um preço que se paga!”
“Sua vida é pública! Nós merecemos saber o que acontece
nela!”
Merecem?
Todos os detalhes, mesmo?
Trezentos e vinte.
Trezentos e vinte e um.
Viro em um corredor deserto, diminuindo meus passos, mas
continuo muito atenta às portas. O camarim de Mikael é indicado
como o último de um corredor sem saídas e, para a minha surpresa,
ele está lá quando chego. Está conversando com uma assistente de
produção que recua um passo quando me vê.
Mikael está usando o figurino de Germano; uma camisa jeans
e uma calça jeans verde-musgo que, com certeza, faria parte do seu
guarda-roupa. Não parece muito caracterizado, mas posso imaginar
que as tatuagens foram escondidas com maquiagem.
— Georgia, oi. — A assistente me cumprimenta, abaixando o
olhar. — Eu vou indo, Mikael. Obrigada!
Cumprimento-a quando ela passa por mim, totalmente
apressada e ansiosa para nos deixar a sós. Pelo seu sorrisinho,
posso imaginar que também adorou a ideia de saber que Mikael e
eu “estamos juntos”.
Porra.
Sozinhos no corredor, sinto meu sangue ferver todo
novamente. Minhas bochechas já estão latejantes de tanta fúria,
mas todas as emoções simplesmente se fundem ao me deparar
com a expressão descarada em seu rosto.
— Eu posso explicar! — Mikael ergue a mão na minha
direção.
— Não precisa. Eu li o suficiente... — Me aproximo dele,
ficando frente a frente. — Você vai desmanchar isso e falar que foi
um mal entendido. Que foi hackeado, que foi... Sei lá. Só conserta
esse negócio e nunca mais fala comigo, por favor.
— Georgia... — Ele pede, ao suspirar. Suas mãos
escorregam para o bolso da calça jeans. — Não posso.
Eu ouvi bem?
— Não pode? Como não pode?
— Quer entrar? — Ele aponta para o camarim ao seu lado
esquerdo. — Podemos conversar melhor.
— Não, não podemos. Não quero conversar com você. Quero
que resolva essa confusão inteira!
— Georgia...
— Mikael! — brado. — Não pode simplesmente achar que as
coisas são apenas do seu jeito! Eu não quero ter meu nome
associado ao seu!
Nem todas as ofensas do mundo seriam capazes de fazer o
ego de Mikael Devante desinflar — nem que fosse apenas um
pouco. Então, todas as palavras que jorram da minha boca não são
suficientes para fazê-lo pensar ou refletir.
Ele revira os olhos rapidamente, se aproximando de mim.
Sem avisar, ele agacha, me pegando pelas pernas. Me coloca em
seus ombros sem muito esforço. Não me debato, porque daria um
gostinho de vitória a ele, então simplesmente me deixo ser
carregada pela pessoa mais detestável que já conheci. E olha que
precisou menos de vinte e quatro horas para contestar o que eu já
suspeitava há anos.
Mikael chuta a porta de seu camarim suavemente, apenas
para abri-la. Passa pela entrada, fechando a porta com as costas e
me coloca no chão apenas quando nos tranca no mesmo ambiente.
— Ah — solta. — Belas pernas.
— Cala a boca.
Bufo, arrumando meu cabelo automaticamente.
Me afasto dele sem precisar escutar mais nada e me
surpreendo pelo tamanho de seu camarim. E pela decoração
moderna e automatizada. Ele possui sofás, frigobar, uma cama,
guarda-roupa e uma penteadeira enorme. Sem contar na janela de
vista privilegiada para o litoral de Madre Rita e para o estádio de
futebol no próximo quarteirão.
Estou pensando em começar a chantagear a Farol para
conseguir trocar de camarim.
Com o corpo tenso, cruzo os meus braços, me afastando ao
máximo dele e me aproximando da janela.
— Quer beber alguma coisa? — Mikael indaga,
provavelmente caminhando em direção ao frigobar. — Refrigerante?
Suco? Água?
Ele me dá espaço suficiente para receber uma resposta
minha, mas não digo nada. O que lhe causa uma enxurrada de
palavrões. Ouço o som característico de alguém sentando-se no
sofá mais próximo e Mikael tenta contato novamente.
— Não se preocupe, ninguém pode te ver lá debaixo. É um
daqueles vidros filmados por fora. Algo assim...
Impressionante.
— De repente, você não vai mais falar nada? — desafia,
curioso.
— O que eu tinha para falar, eu já disse. — Me viro na sua
direção, erguendo minhas sobrancelhas. — Quero um resultado.
Quero que meu nome seja dissociado com o seu. Já basta oito
meses gravando ao seu lado!
— Georgia...
— Foi por isso que você ficou insistindo para conversar
comigo, não foi? — o interrompo. — Na frente do bistrô? Para
alguém tirar uma foto nossa e você ganhar uma namorada?
Mikael franze completamente o rosto, puxa um maço de
cigarro do bolso e paralisa o movimento.
— Acha que eu armei para cima de você, Georgia Pessoa?
— quer saber, desacreditado. — Quantos anos você acha que eu
tenho? Quinze? Não estamos no ensino médio e nem em um filme.
— O que eu acho, Mikael Devante, é que para você, essa
reputação é bem mais benéfica do para mim — discorro firme. —
Afinal, você passou de um cara melancólico e traído, para um galã
de namorada nova.
— Eu não pensei muito bem quando fiz aquilo, ok? — Mikael
abre os braços, colocando o cigarro entre os lábios. Ele amacia a
jaqueta jeans, tentando procurar o isqueiro.
— E você lá pensa? — retruco. — Se pensasse, teria seguido
sua vida normalmente.
— O que você precisa saber, Georgia, é que eu não paguei
nenhum paparazzi para nos fotografar. Eles nos acharam e nos
colocaram nesse cargo de namorados. Porque acredite... — Ele
acende o cigarro. — Não é legal ser seu namorado de mentira, não.
Desço os meus ombros com cansaço; ele realmente não
entende.
Toda a sua prepotência é banhada com o maldito cigarro que
ele está fumando e toda a sua paz em continuar sua vida. Em um
grande currículo amoroso, eu sou apenas mais uma vez para a
mídia, alguém a quem perseguir e recorrer caso Mikael entre de
cabeça em mais uma polêmica. Ele alimenta as fofocas, porque
adora o que elas podem causar em sua vida.
Para sua má reputação, é apenas mais um capítulo de sua
carreira.
— Pode ser que você não entenda, de fato, não pediria para
entender nada. Você é egoísta e só pensa em si mesmo, já tinha
notado isso antes — confesso, elevando o meu tom de voz. — Mas
os últimos meses serão decisivos para mim, quero me despedir
desta emissora com calma, Mikael, e não tendo que suportar um
mimadinho metido a besta que não sabe lidar com o fim de um
namoro!
— Eu não sei o motivo de ter feito aquilo, Georgia! — Ele se
levanta do sofá, para começar a se defender. Apaga o cigarro
recém-aceso no cinzeiro e dá alguns passos para longe de mim. —
Quando vi, já tinha feito. Me desculpa, tá legal? — troveja. — Eu
voltei para o hotel e o meu amigo já estava me esperando com um
novo celular, no meio das configurações, eu vi quando vazaram as
fotos. E aquilo me deixou feliz, parecia que eu seria desejável
novamente um dia e não completamente magoado. Sim, postei
aquela frase dando a entender que estávamos juntos, mas apaguei
uns três segundos depois, porque sabia que seria impossível de
acontecer. Foi uma madrugada turbulenta e horrível, e eu não quis
contribuir para nada disso. Não dou a mínima para a sua
aposentadoria, mas respeito sua decisão de ter uma vida longe dos
holofotes, mesmo sendo a Georgia Pessoa. A famosa, a queridinha,
uma das atrizes mais rentáveis dos últimos tempos. Me desculpe!
— Mas fez! — concretizo. — Como pensa em consertar tudo
isso?
Mikael afasta os fios para trás, em uma leva de fios
ondulados que voltam saltitantes para a frente do seu rosto. Ele me
fita com uma indecisão denunciante, que faz com que suas
bochechas fiquem levemente rosadas de irritação.
— Ah, não — anuncio sem humor, sacudindo minha cabeça
negativamente. — Nem pensar!
— Você ainda nem me escutou!
— Mas já consigo imaginar aonde isso irá chegar!
Mikael hesita, mas se aproxima novamente, não faz nada
além de se sentar. Ele aponta para que eu me acomode também.
Me sinto tão extasiada, frenética e inquieta, que não consigo me
imaginar ficando parada.
— Eu estava chegando de uma festa quando vi o Bernardo
com a Amanda.
— Agora que é a hora que você começa a contar a história
triste? — indago retoricamente. — Porque se for, minha resposta
ainda é não.
Ele me fuzila com os olhos castanhos com filetes da cor mel,
mas decide não me rebater.
— Não foi nada característico. Eles estavam se beijando na
varanda do quarto quando cheguei — conta, juntando as pernas.
Sua chateação e seu desprezo começam a crescer em seu tom de
voz. — Fazia meses que a Amanda tinha parado de responder às
minhas mensagens. Apenas dei o espaço dela, porque eu sabia que
ela não estava mais apaixonada por mim havia semanas... —
continua. Me dou um pouco por convencida e decido me sentar na
poltrona vaga, mas ainda mantendo distância. — Então, quando ela
voltou de viagem, o Bernardo me aconselhou a terminar com ela.
Ele insistiu tanto, mas tanto, que pensei que ele só queria uma
noitada de solteiro comigo. Nós decidimos terminar em conjunto,
mas não anunciamos para ninguém. Seria péssimo as notícias no
dia seguinte...
— Realmente, imagina que horrível ter seu nome em todas
as manchetes por algo que você detesta! — acrescento.
— Desculpa, tá bom? — pede novamente, áspero. — Já
disse que fiz merda. Só estou explicando que eu quis sair por cima.
Quis provar a eles que não fiquei nem um pouco ressentido.
— Mas ficou... — assumo. — E não há problema nisso.
Mikael sorri, amargo.
— Diga por você, senhora perfeitinha — debocha. — Não é
fácil lidar com isso apenas porque você quer.
— Não quero, mas você é um artista. — Dou de ombros. —
Transforme essa dor em arte, escreva músicas, venda bastante
álbuns e fique rico!
Impressionantemente, ele consegue rir, por mais que tenha
revirado os olhos mais uma vez.
Com os ânimos um pouco mais controlados, posso notar o
quão magoado ele está. Não que Mikael tenha razão no que fez,
ainda foi realmente uma reação estúpida, mas consigo entendê-lo
um pouco. Só um pouco. Há quem faça de tudo para não dar o
braço a torcer. Ser vulnerável, demonstrar sentimentos, é quase
como um sinônimo de fraqueza para muitas pessoas. Elas preferem
magoar, do que serem magoadas. Preferem se afastar, do que
assistirem os amores de suas vidas irem embora. Escolhem o lado
mais difícil do orgulho, apenas para provar o gostinho da
estabilidade de ser superior.
No entanto, no final, elas sofrem mais. Muito mais.
— Você ainda gosta da Amanda? — pergunto sinceramente e
meneio a cabeça para o lado.
— Deveria?
— Não respondeu à minha pergunta.
— Não — confidencia de imediato. Sem pensar por mais de
dois segundos. — Mas ainda dói, porque eles estiveram se
encontrando bem debaixo do meu nariz.
— Eles disseram isso? Com todas as letras?
Mikael assente em silêncio e posso jurar que sua voz
embargou.
— Mais ou menos. Me explicaram rapidamente o que
aconteceu. Disseram que “aconteceu”, que iam me contar o mais
rápido possível e que esperavam que eu entendesse. Que não foi
sacanagem, nem fizeram por mal. Apenas se apaixonaram. — Ele ri
pelo nariz, não acreditando nas próprias palavras. — Babacas.
— E como me namorar pode ajudar? — quero saber. — Não
será apenas mais uma página dos sentimentos que você não quer
encarar?
— Olha, depois que as fotos foram vazadas, a procura pela
nossa novela triplicou de número — Mikael diz orgulhosamente. —
A coletiva de imprensa teve seus números de mídia esgotados,
porque muitos jornais e revistas confirmaram presença hoje. E eu
sei que a imprensa anda pegando pesado com você ultimamente.
Com esse boato, eles podem focar apenas em mim, do que associar
seu nome a qualquer um. Você ganhou mais de duzentos mil
seguidores nas últimas horas...
— Espera... — Franzo a testa. — Como você sabe?
— Andei pesquisando e analisando a situação de perto. —
Mikael dá de ombros. — As pessoas gostam de namoros que
nascem dentro de um set de filmagem. É romântico. Eles não
cansam dessa fórmula, porque vende e faz sucesso. — Mikael se
apoia nos joelhos, me encarando de perto. — Paolo Cazano e
Julieta Benencio, Ricardo Manuel e Arthur Padilha, Flora Menezes e
Giulia Macedo. Os nomes são infinitos.
— E quase todos esses casais se divorciaram e possuem
acordos milionários para não voarem no pescoço um do outro —
completo.
— Mas não muda o fato de que, mesmo com a receita para
dar tudo errado, eles conquistaram os corações das pessoas. — O
cantor evidencia. — Se você parar para pensar, todo mundo tem um
casal queridinho das telas. Podemos ser os próximos.
— Não, não podemos.
— Não só apenas pelo bem da novela, Georgia — Mikael
sustenta seu argumento com seriedade. — Bernardo e Amanda
veriam que eu estou muito bem sem eles.
— Mas você não está! Apenas finge que está.
Ele resmunga baixo.
— E isso importa? — protesta.
— Deveria! — suspiro. — Ainda parece bastante benéfico
para você.
Há uma grandiosa parte benéfica para mim também; a
calmaria de poder simplesmente viver em paz, sem colocarem a
minha capacidade à prova apenas pela narrativa de um
relacionamento. Eles poderiam pensar o que quiserem e eu não
seria mais notícia. Não com dizeres maléficos a meu respeito, por
exemplo.
— Se quiser, você pode terminar comigo! — Mikael sugere,
alto. — Pode ser em público. As pessoas veriam o quanto sou podre
por dentro e você teria sua aposentadoria longe de mim e de todos.
— Faria isso? — me surpreendo. — Te encheriam a
paciência por meses!
— Faria. — Ele se recosta no sofá, confortavelmente. — Não
me importo com o que as pessoas dizem de mim. Não é verdade.
Nem tudo o que você lê é verídico. Se querem me julgar, me
julguem!
— Apesar de ser tentador imaginar te dar um fora
publicamente e ver sua cara estampada nas revistas como um
otário, vou recusar. — Me levanto da poltrona, arrumando a minha
saia. — É um plano genial e muito bom. Com certeza, a Farol ficaria
satisfeita com a audiência e as vendas… Só que eu ainda tenho um
plano de encerrar meu contrato sem me envolver demais com
pessoas como você. — Sorrio, fazendo um sinal com a cabeça. —
Não quero saber. Não quero ser usada para fazer ciúmes em
ninguém!
— Não estou querendo fazer ciúmes em ninguém! — afirma.
— Não quero te usar e te descartar como se não fosse nada. Só
não quero que pensem exclusivamente em mim como um pobre
coitado.
Suas palavras são verdadeiras e éticas. Não posso ser
apenas uma pessoa racializada mantida como um objeto e, ao
menos, ele tem noção disso.
Vou em direção à sua penteadeira, pegando um creme
hidratante de uma marca muito cara e boa.
— Vou ficar com isso aqui! — aviso, erguendo o tubo. — Eu
mereço pelas próximas horas. Afinal, serei confundida com a sua
namorada. As pessoas devem pensar que eu tenho muito mau
gosto, mesmo. — Abraço o creme, indo em direção à porta. — Sinto
muito pelo o que passou, Mikael. Não desejo o sentimento de
coração partido nem para o meu pior inimigo, no caso, você. Mas
nem tudo se resolve com outra mentira. — Seguro a maçaneta,
medindo meus olhos nele. — Resolve essa merda logo —
aconselho.
E saio sem olhar para trás.
7: torta de limão
INGREDIENTES: biscoito de maisena, margarina, leite condensado, creme de
leite, suco de limão, ovo, açúcar, raspas de limão.
MIKAEL DEVANTE:
Finalmente me seguiu de volta, hein.
Achei que ia ter que pedir.
Ou implorar.
GEORGIA PESSOA:
Pensei mesmo em ignorar, mas sou boa demais.
Como pode ver.
MIKAEL DEVANTE:
Também não é pra tanto.
GEORGIA PESSOA:
Apenas segui porque namorados fazem isso, não é?
E porque queria dizer que você irá amanhã, na praia de
Concha Amarela, ajudar na limpeza da orla.
MIKAEL DEVANTE:
Vou?
GEORGIA PESSOA:
Sim.
Você fará tudo o que eu quiser.
Esqueceu?
MIKAEL DEVANTE:
E tem como esquecer?
Me sinto a Pequena Sereia, depois que assinou o contrato
com a Úrsula.
Uma perseguição diferente da outra.
GEORGIA PESSOA:
Apenas vá.
E não se atrase, por favor.
MIKAEL DEVANTE:
Pode me passar seu número pelo menos?
GEORGIA PESSOA:
Não.
MIKAEL DEVANTE:
O que mais você vai querer?
Uma massagem no pé?
Um anel de diamante?
GEORGIA PESSOA:
Um anel de diamante é demais.
Aceito apenas a massagem no pé.
Você me encanta
Quando seu corpo arranha
Garota internacional
Mergulhada em um desejo colossal
JUNTINHOS NA PRAIA!
Georgia Pessoa e Mikael Devante foram clicados em clima
íntimo na última tarde. Quem estava no local garante que os dois
estavam falantes, sempre perto um do outro.
Mikael ainda publicou uma foto enigmática ao lado da atriz.
Será que tá rolando?
Enrugo o nariz:
— Tem um erro de digitação bem aqui — aponto para as
letras pequenas e pretas. — Amora mio.
Mikael guarda o celular.
— Não, não é um erro — Mikael reponde com convicção. — É
um trocadilho — frisa. Ele me encara por poucos segundos. — Seu
cabelo me lembra uma amora azul. Amore mio é o jeito mais
carinhoso que um italiano pode tratar sua amada. Amora mio.
Amora. Mio. Entendeu?
— Você não é italiano.
— Nem você é a minha amada.
Fito-o de volta, sorrindo ao semicerrar os olhos.
— Justo.
12: bolo de laranja
INGREDIENTES: ovos, suco de laranja, óleo, farinha de trigo, açúcar, fermento,
raspas de laranja, leite.
É FESTA!
Os atores queridinhos do momento, Georgia Pessoa e
Mikael Devante, abalaram na festa promocional oferecida pela
emissora Farol, ontem à noite. O suposto casal não chegou junto,
mas fez questão de tirar fotos coladinhos no tapete vermelho além
de atenderem alguns fãs!
#MikaGeorgia está cada vez mais real!
MIKAEL DEVANTE:
Nossa cena está chegando.
Ansiosa?
GEORGIA PESSOA:
Hoje não.
Estou sem paciência.
MIKAEL DEVANTE:
E quando é que você tem?
TÁ ROLANDO?
Mikael Devante e Sofia Balloi?
Estamos tontos e perdidos ao noticiar que o astro da música
brasileira andou se engraçando com nossa blogueira favorita!
Será que isso quer dizer que #MikaGeorgia já era?
17: bolo gelado de romeu e julieta
INGREDIENTES: açúcar, margarina, farinha de trigo, leite, fermento em pó,
chá de goiabada, leite condensado, coco ralado, queijo parmesão.
PEDRO:
Vocês já são o assunto mais falado do momento
As fotos estão boas
Só falta um sorriso ;p
O PARAÍSO ESFRIOU?
Muitos de vocês repararam que os pombinhos andam
sumidos.
Será que algo de errado está acontecendo?
É o fim de #MikaGeorgia?
“Ela.
O amor em português.
O sentimento em vários idiomas.
Cada dia mais parecida com minha verdadeira amora mio”
20.01: verrine de manga e kiwi
INGREDIENTES: kiwi, manga madura, iogurte natural, leite condensado, hortelã
fresca.
GEORGIA:
Não precisa conhecer.
Não vai durar.
É mídia :p
PAI (ANTENOR):
Tempos modernos.
Já diria Lulu Santos
GEORGIA:
Não acho que ele escreveu essa música para mim.
Boa viagem <3
AS GAROTAS DELES!
Beatriz Mafra, Allura Guispe, Amanda Olivêncio e Georgia
Pessoa. Esses são os poderosos nomes das garotas da banda
Desvio. As quatro foram flagradas curtindo o último show da turnê
Malévola, que contou com a presença ilustre de outros convidados
interessantes. Apesar das quatro não terem sido vistas juntas, fontes
confirmam que Amanda estava radiante. Tanto quanto Georgia.
A receita perfeita.
Deslizo uma moeda por entre seus dedos, para ele acionar a
sequência de fotos. Dentro de três segundos, o flash nos pega
desprevenidos, tirando a primeira foto da fileira; uma completamente
espontânea, um flagra de um susto. Temos apenas mais três
segundos para decidirmos as próximas poses e apenas faço o
básico. Fecho os olhos e mostro a minha língua, enquanto sinto
Mikael me abraçar forte.
Nossas caretas são idênticas na última e terceira foto e, por
fim, a máquina desliga-se automaticamente.
— De novo. — Ele decide, retirando mais uma moeda. — Isso
foi ridículo. Eu nem estava pronto. — Antes de colocar o dinheiro no
compartimento, ele me avisa: — Vou me sentar no seu colo de novo,
esteja preparada. Um, dois, três... — Ele empurra a moeda para
dentro, passando o braço ao redor do meu pescoço. — Já!
De Banda do Mar reconheço a inconfundível melodia de
“Paper Rings”, da Taylor Swift.
I like shiny things, but I'd marry you with paper rings.
Eu gosto de coisas brilhantes, mas eu me casaria com você
com anéis de papel.
RUMOR:
Após assumirem o namoro há apenas um mês, Mikael
Devante e Georgia Pessoa podem estar em uma jogada de
marketing para fazer com que “Destino Inteiro” seja um grande
sucesso?
Fontes afirmam que os jovens atores de vinte e cinco e vinte e
quatro anos, respectivamente, não estão interpretando que são um
casal apaixonado apenas na frente das câmeras. O boato que corre
pelos corredores da emissora Farol é que os pombinhos, na verdade,
nem amigos são de verdade.
Postado por Fofocalândia, às 10:43 da manhã.
MÃE (JULIA):
tem certeza que não devemos conhecer seu novo amigo?
Parece sério.
Todo mundo que conheci, só fala de vocês. Como um casal
* carinha pensativa *
PAI (ANTENOR):
É!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
GEORGIA:
Não, não precisa.
Já disse que não vai durar.
#SAMPAILOVEYOU!
Alerta de flagrante!
Olha só quem estava a passeio pela capital paulistana? Isso
mesmo! Nosso casal!
Georgia e Mikael provaram mais uma vez que andam em
sintonia e que são responsáveis pelos nossos suspiros diários!
BERNARDO:
Chegou?
MIKA:
Claro.
BERNARDO:
Tô no trânsito...
Chego em vinte minutos. Ou mais. Me deseje sorte!
MIKA:
Sorte!!!!!!
Modo de preparo.
ANTENOR (PAI):
tem certeza que nao precisamos conhecer seu namorado?
nao me parece uma mentira!!!!!!!!!!
TUDO EM CIMA!
Nada pode abalar o casal sensação que está no páreo para
ser eleito o mais bonito do ano.
E aí, apoiam?
DIA 01:
MIKAEL DEVANTE:
Bom dia, às 9:03
GEORGIA PESSOA:
Boa tarde, às 14:31
DIA 02:
GEORGIA PESSOA:
Bom dia, às 10:10
MIKAEL DEVANTE:
Boa noite, às 19:13
DIA 03:
MIKAEL DEVANTE:
Boa noite, às 20:54
GEORGIA PESSOA:
Bom dia, às 8:34
DIA 04:
MIKAEL DEVANTE:
Bom dia, às 7:45
DIA 05:
MIKAEL DEVANTE:
Bom dia, às 6:26
DIA 06:
MIKAEL DEVANTE:
Bom dia, às 5:58
40.01: bolo de morango
INGREDIENTES: ovos, açúcar, farinha de trigo, leite quente, fermento em pó,
leite condensado, creme de leite, gemas, amido de milho, morango, chantilly.
Eu morri.
Não na forma literal, mas artisticamente falando, eu morri.
Bem, pelo menos é o que diz a matéria semanal da coluna de
fofoca do jornal local de Madre Rita. Minha personagem, Marina,
sofrerá um grave acidente de origem desconhecida. A morte será
instantânea, causando uma reviravolta emocional em Germano.
Eles focarão no novo casal da trama, ele e Élia, e como o luto
atingirá o mocinho e a vilã que, apesar de odiar Marina mortalmente,
perceberá que nem tudo é o que parece ser.
É a maneira mais clichê e rápida de dizer que agora a Farol
me odeia.
O vento faz questão de amassar uma parte do jornal, então
decido jogar fora, na lata de lixo mais próxima que encontro. É difícil
amassá-lo com o braço engessado, mas arremesso até o cesto e
suspiro alto. Isso tudo é uma merda sem fim, mas preciso me focar
nas coisas boas — ou tentar.
Um vizinho, que passa distraído por sua varanda, me lança
um sorriso agradável. Devolvo o gesto, me concentrando na paz
que a rua exala. As portas do bistrô estão abertas porque os
uniformes chegaram. Faz alguns dias que todos vêm trabalhando
nos últimos detalhes — finalmente — ao meu lado. E a contagem
regressiva pode começar. Daqui a pouco mais de três semanas, a
Amora Mio abrirá as portas oficialmente.
A rua só não está movimentada, porque uma leva de
moradores decidiram organizar um abaixo assinado para que
expulsassem e proibissem os paparazzis de perturbarem a ordem
comum do ambiente. Eu achei uma ótima ideia, visto que eles
poderiam tentar se livrar de mim e não deles.
Então, posso respirar fundo agora — só um pouco.
Dou a volta pelos meus pés e entro no bistrô. Ele cheira a
morango, porque Allura comprou um produto de limpeza delicioso
ontem, quando decidimos passar a tarde por aqui. As mesas e as
cadeiras estão organizadas, o cantinho dos quadrinhos está cada
vez mais colorido e cheio. Serafim está conversando com duas
garotas, entregando a elas o futuro uniforme. Uma combinação
interessante de rosa-bebê, com detalhes em laranja-salmão.
A mais velha, de cabelo artificialmente vermelho, se chama
Ana, e me ajudará na cozinha. A mais nova, de cabelo preto e pele
branca-bronzeada, se chama Talita, e servirá o salão. Ainda preciso
contratar mais duas pessoas, mas Seu Serafim disse que tomará
conta de tudo.
O que me anima também é que o novo freezer chegou, onde
guardarei meu mais novo investimento; sorvete artesanal.
— Uniformes entregues. — Seu Serafim se aproxima de mim,
apontando para as duas garotas que estão pulando no lugar,
frenéticas. — Elas querem começar hoje mesmo!
— Eu também! — Sorrio, alargando o meu sorriso ao ver
Gael limpando as gotas de suor da sua testa. Ele está aqui ao lado
de Mikael, os dois se ofereceram para instalar o freezer novo. —
Mas quero que o dia seja especial, Seu Serafim. E não quero usar
isso! — Ergo meu braço quebrado, dando ênfase no gesso.
Ele faz uma careta.
— Justo... — Ele se afasta pedindo licença com as mãos,
para poder trocar mais algumas palavrinhas com as garotas.
Amanda passa por mim rapidamente, terminando de colocar
duas latas de tinta aos meus pés. Ela desenhará algumas flores na
parede do salão principal e está ansiosa para colocar a mão na
massa. Fora que terei uma arte assinada por ela, não tem como
estar mais animada do que já estou.
— Esse lugar tá ficando lindo! — Ela me elogia, prendendo
os cabelos em um coque que a deixa parecendo uma artista de TV.
— Sim! — Me agito no lugar. — Você precisa ver...
— Gê! — Allura me chama, da cozinha. Ela coloca sua
cabeça no corredor e diz: — O Gael tá te chamando lá nos fundos,
quer sua opinião sobre o freezer.
— Hm... Que chique! — Amanda cutuca os meus ombros. —
Ser uma empresária é exatamente assim?
— Um dia te conto — brinco, piscando e pedindo licença.
Sorrio na direção de Seu Serafim, Ana e Talita, e me enfio na
cozinha, que já não parece mais tão superficial ou sem vida como
antes. O relógio de girafas continua no mesmo lugar e ainda parece
perfeito na minha concepção.
Nos fundos da cozinha, no depósito ao lado da dispensa de
alimentos, Gael está agachado perto de um freezer horizontal, ele
parece instalar os cabos perto da tomada, enquanto Mikael o
supervisiona de perto. Allura está com uma prancheta, apenas
distribuindo suas ordens — do jeito que ela ama.
— Está bom assim? — Gael pergunta, quase deitado no
chão, enquanto checa todas as instalações.
— Sim, está.
Ao ouvir a minha voz, Mikael acorda de seu transe e me
encara no mesmo segundo. Sua expressão me pega desprevenida,
porque ele parece muito disposto a falar comigo. Preciso decidir o
que fazer primeiro, entre conversar com Gael e passar as instruções
certas ou arriscar algumas palavras com Mikael. Faz alguns dias
que não conversamos direito e nem trocamos mensagens, por mais
que eu queira. Ele apenas está por perto, me desejando “bom dia”
ou “boa noite”.
Não sei dizer se isso é um término, mas é complicado
quando me sinto esgotada de tudo. Não conseguir o que eu quero
acaba me deixando baqueada.
Como por exemplo, a diretora Karina Sales, que conseguiu
uma protagonista para o seu filme, “Vertigem”. Li a matéria ontem à
noite, a escolhida foi Cássia Rodrigues, uma artista independente
que descobriu ser portadora da Síndrome de Meniere em uma
viagem a Barcelona. Por mais triste que eu esteja, estou feliz que a
atriz saiba o que é sentir o que eu sinto, ela saberá como passar
cada micro pensamento para a protagonista. Também me leva ao
ponto de acabar sendo um pouco egoísta; a doença não é minha,
existem outras pessoas que lidam com ela diariamente, não é
apenas eu que sei contar uma história. Enviei flores para Cássia
assim que terminei de ler toda a matéria.
As manchetes estão viciadas no meu nome. Todo o dia sai
algum rumor nojento sobre a minha saída da emissora. No atual
cenário das coisas, eu sou a vilã.
E, para finalizar, o dono da casa de praia recusou a minha
oferta, alegando que os moradores do condomínio não querem ser
“importunados por uma atriz mimada e sem sal, que acabará com os
dias de paz da praia, trazendo fotógrafos oportunistas como brinde”.
Essas foram as exatas palavras que ele usou.
E voltamos para a estaca zero; sem casa e sem um
cachorrinho.
— Ah... — Volto a prestar atenção em Gael, retirando meu
olhar de Mikael. — Está ótimo! Não precisa ligar agora... — Sinto o
olhar do cantor ainda em mim, o que torna tudo mais difícil.
Não sabia que ele tinha vindo, apesar de que Mikael vem
sendo bastante proativo ultimamente. Mesmo que não fale comigo,
ele ainda quer ajudar.
— Beleza... — Gael solta, um pouco cansado.
— Então... — Mikael começa, coçando a nuca. — Eu já vou
indo.
— Ok... — murmuro, dando espaço para ele.
O cantor me lança um breve sorriso, nada muito simpático ou
cheio de calor. Nosso namoro de mentira esfriou como este freezer.
Ele passa por mim de queixo erguido e desaparece segundos
depois. Ele se despede das demais pessoas no salão e não volta
mais.
— Credo — Allura pragueja, revirando os olhos e fingindo
anotar alguma coisa na prancheta. — Vocês não vão conversar?
— Deveriam. — Gael se senta no chão, derrotado. Ele apoia
as mãos com o peso do corpo. — Você quer falar muito com ele, só
está esperando a hora certa!
Olho de Allura e para Gael duas vezes, alternando. É bom
que o clima entre eles tenha mudado, realmente fico feliz. Às vezes
flagro Gael admirando Allura de longe, mas ele consegue focar-se
em outra paisagem com rapidez.
— Como você sabe que quero falar com ele? Como sabe que
não estou esperando a hora certa? — Ergo minhas sobrancelhas,
áspera.
— Porque a hora certa não existe. — Gael abre um sorriso
grande e sagaz. — Só quer se apegar nisso, porque acha que deve
esquecer o que você está sentindo.
Enrugo a minha testa, ficando séria.
— Quem te contou? — Coloco a mão na cintura. — Foi a
Allura, não foi?
— Está dizendo que não posso deduzir as coisas por minha
conta e risco? — Gael coloca uma mão no peito, ultrajado. — Se
liga, Georgia! Eu mesmo descobri que vocês gostam um do outro!
— Foi a Allura, não foi? — insisto, nenhum pouco
convencida.
— Sim, foi ela! — brada, se entregando. — E daí?!
— Valeu, Alli! — resmungo, cruzando meus braços com
dificuldade.
— Gael é romântico. — Ela se defende, dando de ombros. —
Ele tem o direito de saber quando uma história de romance está
acontecendo bem debaixo do nariz dele!
Abro um sorriso, afastando o meu cabelo. Nem o tom de azul
está certo.
Porra!
— A banda toda já sabe que vocês se gostam... Tá na cara.
Esse negócio de namoro fake num dá certo, Gêgê! — Gael cruza os
braços, sábio.
Reviro meus olhos.
— Eu vou conversar com ele — garanto, apontando para o
lado onde ele passou. — Daqui a pouco...
— Você quem sabe. — Gael se levanta, sem ajuda de
ninguém. Ele caminha na direção de Allura e pega uma garrafa de
água gelada que ela deixou apoiada em uma mesa qualquer. —
Agora ele deve estar estressado, mesmo.
Não é da minha conta e posso confirmar que é apenas uma
armadilha de Gael Soares contra mim. Mas me preocupo com
Mikael — dane-se o que eles vão pensar de mim.
— Por que ele está estressado? — Dou um passo para
frente, tentando ser casual. Mas Gael consegue abrir um sorriso
ridículo que me deixa quente de vergonha. — Fala logo!
— Ele vai me matar se eu disser, mas... — Gael faz um
suspense exagerado como castigo. Ele troca um olhar cúmplice com
Allura, mas para de sorrir quando volta a me fitar. — Ele vai pedir
demissão da Farol. As gravações estão suspensas, o público clama
pela sua volta e ele quer fazer algo a respeito.
— O quê?!
Minha língua treme junto ao céu da boca e pisco meus olhos,
desnorteada pela informação. Mas Allura Guispe não está
espantada, pelo contrário, sua tranquilidade me impressiona em
níveis alarmantes. Minha melhor amiga solta um murmúrio, parecido
com um lamento.
— Não posso deixar que ele faça isso... — Saio depressa,
entrando pela cozinha e passando como um raio por Seu Serafim.
Gael corre atrás de mim, conseguindo me alcançar. — Gael... —
Paro de andar somente quando percebo que não posso dirigir, não
com esta merda de braço quebrado. — Me leve até o Mikael! —
ordeno.
Amanda está me encarando com as sobrancelhas franzidas,
mas não pergunta nada, apenas abaixa o olhar e continua a separar
as tintas coloridas das brancas, sorrindo de lado.
Até ela sabe!
— Não posso! — Gael arregala os olhos. — Se você for
matar ele, o Mika vai ressurgir dos mortos para me matar! — Ele
nega com o dedo várias vezes. — E se você pensa que eu mereço
morrer pelas mãos dele, está muito enganada!
— Eu não vou matar o Mikael! — trovejo. — Só quero
conversar.
Gael cruza os braços, estreitando os olhos. Está visivelmente
desconfiado.
— Não parece que quer conversar!
— Gael! — brado mais alto ainda. — Anda logo! Me leva até
ele!
— Só se você prometer que não vai matar ninguém...
— Não sei, se você continuar bancando o mensageiro
arrependido, quem sabe?
Gael deixa escapar uma risadinha sacana que é o suficiente
para me fazer sorrir um pouco. Ele descruza os braços e coloca as
mãos nos meus ombros, me guiando para fora do bistrô. Na
calçada, retira a chave do seu carro do bolso e indica para um
modelo popular estacionado do outro lado da rua.
Abro a porta do carro me sentando no banco do passageiro,
esperando Gael entrar em seguida. Quando ele bate a porta com
toda a sua força, pressiona os dedos no volante.
— Ele tá decidido — revela. — Não quer ficar naquele
ambiente sem você. Ainda mais contribuindo para a fortuna da
Claudia aumentar. Depois do que ela fez com o Pedro, o Mika só
quer vazar de lá.
A retaliação não será feita apenas pelo o meu lado. Sei que
os motivos do cantor são nobres, mas é um momento que eu sei
que ele adoraria compartilhar comigo. Eu o desculpei por ter
sumido, posso finalmente demonstrar que não sou tão insensível
quanto pensa.
— Eu sei... — confesso, cansada. — Mas ele ficou tão feliz
quando voltou a atuar, que eu queria ter sabido dessa informação
antes. — Mordo os meus lábios, afundando minha cabeça no
assento. — Fiquei tão ocupada apenas tentando fazer tudo dar
certo, que esqueci que apenas uma coisa ainda não tinha ruído.
— Guarda essas palavras para ele — Gael me aconselha,
ligando o carro e sorrindo, vitorioso. — Ele vai gostar de ouvir.
Sorrio fracamente, agradecendo sua ajuda e apenas passo o
cinto de segurança pelo meu corpo.
Se ao menos uma coisa dará certo, que seja Mikael e eu.
40.02: bolo de morango
Depois de Gael passar por uma multidão de fãs implorando
pela minha volta na novela — e eu ter parado para tirar foto com
todas elas — , ele me fez prometer que eu não iria matar Mikael
Devante coisíssima nenhuma. E foi uma tarefa fácil, visto que eu
realmente não estou interessada em desbravar a prisão pela
primeira vez na vida.
Ele me deixou próximo ao elevador e disse que me esperaria
no saguão do Hotel Prudência, caso algo desse errado e se eu
quisesse voltar para o Amora Mio o quanto antes. Gael beijou a
minha testa e desejou que fôssemos protagonizar uma cena de um
livro de romance.
Segurando meu braço quebrado, porque ele está latejando
um pouco, preciso admitir que estou confusa por estar no hotel.
Pensei que ele estivesse na Farol, mas não. De acordo com a
minha fonte confiável — Gael — , ele está exatamente aqui. No
apartamento que divide com os meninos.
Nunca vim aqui, apenas ouvi falar. Não sei por que nunca o
visitei, talvez porque não fui convidada ou talvez porque não pensei
em aparecer.
Solto todo o ar do meu corpo e toco a companhia.
Ao contrário da minha escolha, a banda divide um
apartamento com quatro quartos, sem cobertura, academia privativa
ou outras mordomias. Enquanto espero para ser atendida, penso
em desistir, dar meia volta e sair daqui, fingir que não apareci
esbaforida para falar com o cantor. No entanto, ele abre a porta
minutos depois. Está com o semblante cansado, o cabelo preso e os
óculos tortos.
— Georgia? — Ele fecha a porta perto do corpo, impedindo a
minha passagem. — O que faz aqui?
— Vim conversar com você — informo, ansiosa. — Posso?
— Sério? — Franze o cenho, surpreso. — Aconteceu alguma
coisa?
— Sim. Várias coisas. Posso entrar?
— Não.
— Não?! — repito, confusa.
— Pode, claro! Espera aí! — Afoito, ele bate a porta na minha
cara, causando um baque forte contra o batente. Não consigo reagir,
somente encaro o Olho-Mágico, intrigada. Será que ele está me
escondendo algo? Ou não sou bem-vinda? — Pronto! — Mikael
volta, escancarando a porta de uma vez só e permitindo a minha
passagem.
Dou poucos passos até estar no hall principal da banda
Desvio, o apartamento que abriga três dos integrantes. Tudo é
aberto e condecorado num estilo rock dos anos 90. Há quadros,
esculturas, mulheres bonitas em capas de revistas apoiadas na
mesa de centro e uma cozinha arejada com balcão norte-americano.
Espio todos os lados, talvez procurando algo. Ou alguém.
Aparentemente, Mikael está sozinho.
— Ao que devo a honra? — Ele debocha, fechando a porta e
colocando as mãos nos bolsos ao parar de frente para mim. Seu
corpo grande esconde a visão que tenho da varanda e da vista, mas
não me importo. — Lembrou que eu existo?
— Podemos conversar? — ignoro a última parte. — É sério.
— Sim. — Ele não se move, frisando que posso sentar ou me
acomodar. Ok, então. — Sobre?!
Suspiro.
— A sua saída da novela.
— O boca grande do Gael que te contou, né?
— Quem mais seria?
Seu sorriso é ácido e ele segura a vontade de rir de verdade.
— Tarde demais — assegura, confiante. — Amanhã será
anunciado que estou fora. Se pensa que vai me convencer...
— Não estou aqui para isso. — Corto sua fala, calma. — Só
quero saber exatamente o que você sente. Não vim brigar, nem
discutir. Vim... Em paz?!
Mikael solta todo o ar do corpo, colocando as mãos na
cintura.
— Por que isso agora, hein? — Sobe o queixo, destemido. —
Passei a semana toda perto de você e o máximo que você me disse
foi para instalar um freezer, por que agora você quer conversar
comigo?
— Porque sei o quanto a atuação significa para você. E por
mais desapontado que esteja, está com raiva também! — Aumento
o meu tom de voz, para parecer firme.
— Não tem como ficar feliz com o meu melhor amigo sendo
chantageado e a garota de quem eu gosto não estar mais presente
no set.
Seguro todo o meu rosto para não me derreter com o “garota
de quem eu gosto”.
Nem Mikael percebe o que diz, porque está sério e
impassível. E magoado.
— Sim, por isso vim aqui saber como você está!
— Bem — garante. — Pode ir embora.
— Não seja tão babaca — peço, contornando seu corpo e
andando pela sala. Esse é o meu jeito de dizer que vou ficar e
insistir. Somos exatamente iguais. Um dia pensei que éramos
distintos, mas somos dois otários teimosos. O puro suco da
rabugice. — Você que não apareceu e nem mandou uma
mensagem por dois dias. Eu é quem deveria estar magoada.
— Mas você está! — Mikael gira pelos calcanhares. — Fica
andando por aí com esse nariz lindo em pé, porque é rancorosa e
mimada. E porque não consegue iniciar uma conversa comigo,
porque tem medo!
— Não mude de assunto. — Ergo a palma da minha mão. —
Me responda, então, já que eu sou a rancorosa. O que aconteceu
com você naqueles dois dias?
— Isso importa? — pergunta, exausto. — Se quisesse saber,
já teria perguntado!
Solto um grito ardido da garganta, completamente raivosa.
— Você é tão irritante! — Cruzo a sala de estar, apontando o
dedo em sua direção. Estou perto dele novamente, minhas íris estão
esbugalhadas e meu coração sinaliza que pode explodir dentro do
peito. — Você disse que ia esperar o meu tempo, agora não quer
me responder?!
— Eu disse mesmo, mas é cansativo esperar a Rainha do
Mundo decidir o que quer. É difícil estar perto de você e não falar
com você, não precisa agir como se fosse fácil! — Mikael também
se aproxima, trincando os dentes. — E acontece que posso acabar
me cansando de esperar!
— Estou aqui, afinal! — praguejo, abrindo os braços. — Me
diga exatamente o que aconteceu, Mikael!
— Houve uma emergência em São Paulo, essa tal
emergência não poderia esperar por mim. Eu é que estava
esperando por ela. Viajei, não levei o carregador do meu celular e
quando consegui, já estava no aeroporto voltando para Madre Rita.
— Sua guarda abaixa um pouco enquanto explica, mas não sinto
nada além de confusão. Que tipo emergência? — Me desculpe, de
verdade. Só agi por impulso, porque precisava estar em São Paulo.
Ok?!
— Por que precisava?
— Precisava, simples assim.
Ele me dá as costas, andando para a cozinha arejada.
— Cara. — Relaxo os meus ombros. — Você é...
— Vai lá, usa seu arsenal de xingamentos contra mim! —
pede, virando-se. — Tudo o que eu sou, você também é!
— Nunca posso ser comparada a você, Mikael. — Ergo meus
braços em rendição, ofendida. — Você está mentindo nesse exato
momento. E, ao contrário de você, não sou uma mentirosa!
Ele ri alto, sendo extremamente falso. Até coloca a mão na
barriga para fazer meu ódio dessa situação colapsar.
— Quer enganar a quem, Georgia? — Mikael pede,
desaforado. — Você está mentindo para si mesma há algum tempo
— define, se aproximando de mim de novo, até seus olhos estarem
afiados com os meus. — Sabe por que você não falou comigo
antes? — questiona. — Porque você queria que mais alguma coisa
desse errado, porque tem medo de admitir que estávamos dando
certo. Você é desconfiada, turrona e às vezes prefere se acostumar
com a perda.
Ele tem razão.
Completamente.
É exatamente esse o motivo.
Ele me leu com tanta maestria que apenas pisco, surpresa
por ouvir aquelas palavras saindo de sua boca e não da minha.
Porém, o sorriso de vitória que se alastra por seus lábios me faz
decair e ser imatura novamente. Dou um passo para trás, colocando
com dificuldade minhas mãos para trás.
— Tem razão! — confirmo, azeda. Assinto diversas vezes
com a cabeça. — É exatamente isso. Não tem o que argumentar, a
não ser pedir desculpa. Faz anos que não me apaixono e não sei
lidar. Você sempre quis ter algo comigo, pensei que quando
conseguisse, sairia pela primeira porta que encontrasse, cantando
sua majestosa vitória. Sentimentos são fáceis para mim, imaginei
que saberia administrá-los, mas me enganei, Mikael. Não vou fugir
ou fingir que você não tem razão, porque você tem. — Subo e desço
os meus ombros. — Tive medo de quebrar a cara, mesmo
afirmando que estaria bem com isso. Não quero que nos afastemos
ou briguemos, porque gosto de você, seu babaca!
Mikael Devante está em silêncio, ora porque está se
deliciando com a última frase, ora porque está chocado com a
minha falta de resistência.
— E eu vim aqui para fazer o mesmo que você fez. Apesar
de não termos conversado, assim que você saiu do aeroporto, você
veio me ver. Isso prova algo, não é? — interrogo, sem esperar por
uma resposta. — Pelo menos deveria.
— Sim, significa — fala baixo, quase como um sussurro.
— Então... — Afago meus ânimos, conseguindo respirar sem
revirar os olhos. — Pode me dizer o que está sentindo?
— Sua falta, porra! — Ele range os dentes, começando a
ficar irritado. — Aquele set de filmagem é a coisa mais sem graça do
mundo sem você. E sempre que eu piso ali, penso na maneira como
você foi tratada. Na forma que o caso do Pedro foi completamente
banalizado. Não quero trabalhar na merda daquele lugar se significa
estar longe do meu par romântico ou fazendo mal para o meu
melhor amigo...
— Eu não vim te convencer a ficar, já disse — assumo. — E
você tem razão — confirmo. Suas sobrancelhas se suspendem. —
É sério!
— Você está doente? — Ele se aproxima, checando a
temperatura da minha testa. — Tem uma onda de febre atingindo a
cidade, vai que é isso.
Desfiro um tapa na sua mão.
— Só quero me resolver com você, inteligência!
— Não sei se devo! — Faz charme, olhando para o teto. —
De repente, posso estar ocupado.
— Ok! — concordo, caminhando para longe. — Talvez eu
deva ligar para aquele jogador de futebol que me paquerou no
corredor e dizer a ele que estou disponível...
Mikael, como eu bem pensava, me segura pelo pulso, me
girando para frente e me trazendo para perto.
— Deve ligar, mesmo — anuncia, bem perto de mim. —
Talvez afirme que você não está disponível nem daqui um milhão de
anos.
— Por quê? — Me faço de boba, controlando meu olhar.
— Porque estamos juntos, Georgia! — fala alto, analisando
meus lábios de perto. — Entendo que você gosta de resolver as
coisas sozinha, porque é acostumada a lidar com tudo e mais um
pouco. Mas pedir ajuda, dar o braço a torcer, não te faz fraca. E se
depender de mim, você não estará mais sozinha por aí, exibindo
essa solteirice toda. — Os orbes sobem para os meus olhos,
evidenciando sua entrega a mim. — E só para esclarecer, eu e você
sempre estivemos juntos! Pode dizer isso a ele ou melhor, ou
mesmo aviso...
— Mikael?! — Seguro seu rosto nas minhas mãos, fazendo
carinho na sua cicatriz.
— Sim?!
— Cala a boca.
Beijo seus lábios com extrema saudade, principalmente
porque toda essa briga foi inútil, infantil e totalmente sem
fundamento. Como pode ter sido uma coisa tão boba?
Por Deus...
Ele tem razão quando disse que somos iguais, talvez por isso
entramos em parafuso. E apesar da minha barriga ter se afundado
em ressentimentos nos últimos dias, é meu direito consertar um dos
poucos fatores que querem ser remendados. Acharei outra casa,
disso tenho certeza. Meus pais consertaram o motorhome e, apesar
de ficar chateada, eles sabem como precisarão lidar com tudo.
Cássia fará um ótimo papel e posso oferecer a minha mente criativa
para fazer do filme um bom projeto a segundo plano. Claudia ainda
irá se foder muito nessa vida. E meu braço ficará curado daqui a
algumas semanas.
Não há motivo para ficar longe dele.
Não depois de...
Separo o nosso beijo, apenas para dizer uma única frase que
vem desejando há algum tempo.
— Aconteceu, Mikael — anuncio, em alto e bom som. —
Você é a minha última pessoa favorita!
— Pronto. — Ele me solta. — Consegui o que eu queria,
pode ir embora!
— Mikael!
— Tô brincando!
Ele me agarra na altura da barriga, erguendo o meu corpo ao
me rodopiar pela sala. Agradeço pelo cuidado com o meu braço
fraturado, mas minha barriga dói de tanto rir. Ele paralisa no ar e me
desce com cuidado, me abraçando e me direcionando para o sofá.
Mika encaixa meu queixo em seu polegar, direcionando sua boca ao
encontro da minha. O beijo faz pequenas explosões de felicidade
entorpecerem o meu corpo, me fazendo derreter e deslizar para o
móvel.
Eu me deito de costas, ainda o beijando. Ele me abraça pelos
ombros e desce uma mão para a minha cintura, preenchendo a
minha pele com carícias e pequenos beliscões.
— Está vendo? — interrompe o beijo para falar. — Conversar
sempre é bom.
— Cala a boca — peço de novo, o puxando para
experimentar mais um pouco do seu beijo.
Agora é uma extensão da saudade que precisamos
administrar, é o nosso corpo sabendo e redecorando o caminho de
volta, suprindo a falta e a emoção, finalmente. O abraço pelo
pescoço, gemendo um pouquinho de dor — porque não pensei
muito bem sobre a atitude. Quando me sinto confortável, deixo que
suas mãos desçam até a minha bunda, enchendo-as. Mikael geme
dentro da minha boca, aprofundando sua língua no desejo carnal
motivado pelo tempo em que estivemos separados.
Seus beijos úmidos e deliciosos descem pelo meu pescoço,
ao afastar meus fios de perto. Fecho os meus olhos, me entregando
a ele. Tenho muita coisa para fazer, mas não consigo me concentrar
direito.
Me remexo abaixo dele, rindo um pouco, ao sentir alguma
coisa embaixo de mim me incomodar. É uma peça de roupa, e é
estranho senti-la, porque não sabia que estava ali. Retiro um par de
meia debaixo da minha bunda, rindo.
— Devo imaginar que seja do Gael. — Estreito os meus
olhos, jogando a meia para longe.
— Eu não brinquei quando disse que ele deixa as coisas dele
largadas por aí. — Mika beija a minha bochecha, me fazendo deitar
novamente.
Sua língua encontra a minha novamente, saboreando-a.
Contudo, não consigo me concentrar nos nossos amassos, não
quando escuto um latido. Depois outro, depois outro. Até se tornar
pequenas sequências de latidos.
— É aqui? — Espalmo seu peito, o empurrando apenas um
pouco.
— O quê?!
— Os latidos!
— É?!
Me desfaço de Mika totalmente, franzindo o cenho ao ouvir
perfeitamente os latidos se tornarem maiores e mais frequentes. A
voz é arisca e um pouco abafada, mas consigo escutar. O que é
irônico. Olho para Mikael, mas ele apenas parece tão confuso
quanto eu.
Me levanto do sofá rapidamente, tentando identificar o som.
Com a perda auditiva flutuante, é difícil me localizar. É como se meu
ouvido esquerdo fizesse o trabalho redobrado em poder me oferecer
a informação. Só consigo definir que vem do corredor e marcho em
direção ao final dele.
— Você pensa que tem um cachorro aqui? — Mika debocha
da sala de estar, sem se levantar do sofá.
Não respondo, apenas continuo a minha caminhada. Defino o
quarto de cada um dos meninos de acordo com as portas. A aberta,
sem medo de ser espionado, indica o quarto de Gael. A semiaberta,
com a porta apenas encostada no batente, deve ser a de Pedro. E a
totalmente fechada, é a de Mikael.
Exatamente de onde o latido vem.
O som para de repente, mas volta, acompanhado com um
som nada confortável de arranhões feitos por unhas afiadas contra a
madeira.
Abro a porta rapidamente, esperando encontrar tudo, menos
um cachorrinho. O filhote está arranhando o chão de madeira do
quarto de Mika, parece ansioso para começar a cavar de verdade. O
restante do quarto está em ordem, mas o chão parece que foi palco
de um mini furacão. O cãozinho só para de latir e arranhar o piso
quando me vê. Suas orelhinhas sobem em dúvida e ele corre na
minha direção, animado.
Me derreto ao ver suas perninhas de filhote escorregarem no
assoalho e me agacho no corredor para recebê-las. Ele salta para o
meu colo e se apoia no meu busto, me dando lambidas
desesperadas e empolgadas. Ele é completamente preto, é um vira-
lata de focinho úmido e grande, com orelhas pesadas e olhos
cinzas.
— Surpresa! — Mikael canta, se aproximando de mim e se
ajoelhando perto de nós.
— O que é isso? — pergunto sorridente e segurando o
cachorrinho com dificuldade. Ele não para me cumprimentar da sua
maneira.
Mika franze a testa.
— Não parece óbvio? — retruca. — Um cachorro, ué. Não
tem como ser mais direto que isso.
— Eu sei! — Abraço o filhote assim que ele se acalma. —
Mas o que ele está fazendo aqui?
Mika afaga a cabeça dele, revelando que são melhores
amigos.
— Essa era a minha emergência em São Paulo — conta,
pegando o filhote da minha mão e o erguendo para o alto. Ele
sacode as patinhas, se divertindo com Mika. — O garotão estava
para adoção há um tempo, mas uma família estava interessada
primeiro. Então, fiquei na fila de espera para o próximo que fosse
surgir. Quando voltamos para a nossa realidade, depois daquele
final de semana, recebi um e-mail falando que ele estava disponível,
isso se eu fosse buscá-lo naquele dia. Meu plano era voltar antes do
nosso ensaio íntimo, mas a papelada de adoção era mesmo grande.
Depois, ele precisava de banho, tosa e vacinas. — Mika o abaixa, o
abraçando. — Acontece que adotar um cachorro é bem mais difícil
do que pensava, mas é justo. Tudo para garantir que ele fique bem!
O cantor afaga atrás das orelhas do filhote, fazendo-o latir de
prazer pelo carinho.
— Aí eu sumi porque estava cuidando dele, e tentando
pensar numa maneira dele não se assustar ao fazer uma viagem de
São Paulo pra cá. Pensei em levar ele para você no mesmo dia,
mas o clima não era dos melhores! — Mika me devolve o
cachorrinho, que tem uma coleira vermelha com um símbolo em
coração pendurado, como uma medalha. — Esperei que você
viesse me procurar, aí eu revelaria o motivo certo.
— Me faz parecer boba.
— Você é boba! — assume. — Mas a Instituição Balloi me
garantiu que o filhote gosta de qualquer pessoa.
— Balloi?
— Sim, a rede de apoio pertence a Sofia. Ela me ajudou a
entender o processo de adoção, além de indicar veterinários... —
conta. — Voltei a falar com ela logo depois de ter pedido desculpa.
Ela é uma grande defensora dos animais, você não sabia disso?
Curvo um pouco meus ombros.
— Allura deve ter me dito alguma coisa... — desconverso,
sentindo o peso do cachorro entre os braços. Mika sorri de lado. —
Eu não estava com ciúme de você!
— Não... Imagina — cantarola, revirando os olhos.
Prefiro ignorá-lo.
— Ele é lindo, Mika! — grudo meu nariz com o do cachorro,
que lambe a pontinha.
— Eu tinha certeza que a casa seria sua — recita. — Aí tudo
seria perfeito. Sua casa ideal com o seu cachorro!
— Nós vamos procurar outra casa — afirmo, me
aproximando dele e depositando um beijo em seus lábios. — Aquela
não é a única casa foda do mundo.
— Ele vai adorar procurar uma com você.
— Não, Mika. — Rio. — Nós. Eu, você e ele.
O cantor abre a boca, estático por ouvir as minhas palavras.
Mika concorda na mesma hora, sem hesitar ou fazer alguma
gracinha.
— Ele tem nome? — pergunto, soltando o cachorrinho,
porque ele parece ansioso para correr e pular.
— Ainda não... Eu estava pensando que acabaria ficando
com ele. Gael já ama essa gracinha — admite. — Pensei em um...
— Qual?
— Peter Parker.
— Clichê demais. — Mostro a língua para ele, analisando o
cão detonar com uma meia perdida de Gael. — Vamos pensar em
algo... — garanto. Olho para Mika, sorrindo. — E outra coisa, tenho
uma ideia que pode ajudar nesse momento. Somos uma equipe
agora!
— O que tem em mente? — Sorri de lado.
Só não respondo de imediato porque o cachorrinho começa a
espirrar, e simplesmente é a coisa mais adorável do mundo. A cada
espirro, ele fica confuso e furioso por estar fazendo algo que não
quer. E a bolha de catarro que se forma em seu focinho é fofa o
suficiente para me fazer grunhir de amores.
— Que tal Bolhas? — sugiro. — Para o nome dele. É curto e
meigo.
— Bolhas — Mika define, assentindo com a cabeça. — É
bom ter você no meu time! — Ele me cutuca com o ombro.
— Ótimo ouvir isso, porque agora reconhecemos que sempre
estivemos do mesmo lado.
41: panna cotta de caramelo
INGREDIENTES: nata, gelatina incolor, leite condensado cozido, manteiga,
açúcar, avelãs, amendoins, amêndoas.
“Mika,
Sua linguagem do amor são os presentes, e com tantos que
você vem me dando nos últimos tempos, parece que eu sou a
pessoa mais tediosa do mundo. Na realidade, andei pesquisando e
sou mais sobre carinho e toques, e tempo de qualidade. Mas
prometo que encontraremos uma sintonia.
Com tantas surpresas, é escancarado que eu não consigo
competir com você. Dessa vez você venceu, só dessa vez. E, apesar
do nosso relacionamento não ser uma competição, você teria
medalha de ouro.
Então, tentei pensar em todas as alternativas para
surpreendê-lo.
Presentes, mimos, doces, tudo.
E precisei ir até o fundo da minha alma para reconhecer que
somos artistas. E artistas fazem de suas dores e seus amores, a
verdadeira arte.
Decidi me expressar por palavras, em uma possível música.
Sim, isso mesmo. A atriz que decora receitas, lhe escreveu
uma canção – com ajuda da Allura, é claro.
Espero que esteja à sua altura.
“O Que Acabo (Não) Gostando em Você”
Posso listar,
Posso pensar.
Devo listar,
Devo pensar.
Soube colidir,
Soube mediar.
Talvez eu prefira odiar sua mão
E depois seus dedos nos meus.
As suas pegadinhas,
Mas ainda mais sua risada
tão parecida com a minha.
Dois espelhos,
Mas não duas almas.
Se não estivéssemos na mesma frequência,
Talvez eu te odiasse ainda mais.