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Série: 9º ano Língua portuguesa

MATERIAL COMPLEMENTAR

DISTINÇÃO ENTRE O TEXTO LITERÁRIO E NÃO LITERÁRIO

Conforme afirmam Torralvo e Minchillo (2010, p. 18), “é à literatura que interessa


fundamentalmente entregar-se à busca do poder expressivo das palavras, para com elas
comunicar as percepções, interpretações de alma de quem escreve. Quando isso acontece, a
fala e a escrita manifestam a pretensão de ser arte”.

Há certa dificuldade em se definir a literatura, uma vez que isso depende de muitos
aspectos e fatores que se modificam ao longo do tempo. Diferenciar os textos literários dos
não literários, por sua vez, requer que observemos alguns aspectos e características desses
textos específicos. Em um texto jornalístico, por exemplo, é facilmente identificável o desejo
de informar sobre algo. Da mesma forma, em uma bula de remédio, é possível perceber o
objetivo de apresentar as informações específicas sobre determinado produto. Em um texto
literário ou artístico, por sua vez, o que se manifesta é o desejo de ultrapassar a linguagem
utilitária, ou seja, nesses textos não é fácil definir uma utilidade última de tal produção.

Diante disso, como definir, então, o texto literário? Segundo, Torralvo e Minchillo
(2010, p. 20):

Mesmo que seja difícil chegar a uma definição, há ao menos uma


certeza, o texto literário, como outras obras artísticas, nasce da
intenção de o autor provocar alguma reação nos leitores, de modo a
divertir, emocionar, instigar, conscientizar. Para isso, o escritor pode
até partir da realidade, mas é livre para criar verdadeiros mundos
paralelos. Inventa personagens, imagina situações, determina uma
nova ordem para os acontecimentos. O produto desse trabalho é o
texto ficcional que, quando bem-sucedido, afeta a sensibilidade do
leitor.
Dessa forma, vai se percebendo como a distinção entre o texto literário e não literário
está associada aos diferentes modos de perceber a realidade e fazer uso da linguagem. Quando
nos valemos da linguagem em seu sentido objetivo, primário, dicionarizado ou literal, estamos
nos valendo dela em seu sentido denotativo. Quando nos valemos da linguagem em seu
sentido figurado, com a possibilidade de assumir variados significados, temos, nesse caso, a
linguagem em seu sentido conotativo. Assim, podemos diferenciar a linguagem denotativa da
conotativa da seguinte forma:

DENOTAÇÃO CONOTAÇÃO
Palavra com restrita significação Palavra com ampla significação
Sentido comum, do dicionário, literal. Plurissignificação. Sentido que extrapola o
do dicionário
Palavra usada de modo automatizado Palavra usada de modo criativo

Perceba os exemplos abaixo:

 Os adestradores conseguiram domar a fera. (sentido denotativo)


 Ele ficou uma fera quando soube disso. (sentido conotativo)

Sendo generalista, é possível afirmar que os poetas e romancistas, assim como os


artistas de modo geral, veem a realidade de modo diferenciado e são responsáveis pela
construção de universos, personagens e situações fantasiosas. É preciso perceber, no entanto,
que, mais do que entreter, ficcionalizar e, assim, criar novos mundos, a arte literária tem a
possibilidade de elaborar críticas e imagens artísticas da realidade na qual vivemos. Tal
crítica, contudo, é diferente da que se percebe no texto não literário, como em um texto
jornalístico, uma vez que, na literatura, o uso diferenciado da linguagem objetiva gerar
imagens e emoções difíceis de se ter em um texto técnico, científico ou jornalístico. Nesse
sentido, vamos analisar a notícia abaixo:

Mortalidade infantil é maior no Norte e Nordeste e menor no Sul

[...] Estados do Norte e do Nordeste registraram as maiores taxas de


mortalidade infantil no País em 2016, segundo cálculo feito pelo
Estado com base no Sistema Datasus, base de dados do Ministério da
Saúde. Roraima, Amapá, Piauí, Bahia e Amazonas têm os maiores
índices (de 18,4 a 15,9 óbitos infantis por mil nascidos vivos) [...]
Em números absolutos, 36,3 mil crianças com menos de 1 ano
morreram naquele ano. As duas principais causas nessa faixa etária
são problemas originados no nascimento ou nos primeiros dias de
vida, como falta de oxigenação no parto ou prematuridade e más-
formações congênitas. [...]
Disponível em: https://noticias.r7.com/saude/mortalidade-infantil-e-
maior-no-norte-e-nordeste-e-menor-no-sul-30072018
Acesso em: 19. Maio 2019
Neste texto, percebe-se o uso de uma linguagem objetiva e impessoal que tem o intuito
de informar sobre determinados dados e sobre uma situação específica no cenário brasileiro: a
mortalidade infantil no norte e nordeste do Brasil. Neste caso, observa-se que a linguagem é
utilizada em seu sentido denotativo, sem fazer uso de figuras de linguagem ou de um uso
diferenciado da língua portuguesa. Assim, muito embora o texto possa gerar sentimentos e
reflexões no leitor, o seu objetivo final é informar de modo preciso e objetivo sobre o tema
apresentado.

Vejamos, agora, o texto “Poema Brasileiro”, de Ferreira Gullar:

Poema Brasileiro
( Ferreira Gullar )

No Piauí de cada 100 crianças que nascem


78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
de cada 100 crianças
que nascem
78 morrem
antes
de completar
8 anos de idade

antes de completar 8 anos de idade


antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
(GULLAR, 2010, p. 159)

O poema de Ferreira Gullar, coloca-nos diante de um enunciado que pode ser


entendido como uma notícia de jornal que, enquanto notícia, não é captada em toda a sua
dimensão trágica. Nesse aspecto, é valido afirmar que o eu poético que se enuncia coloca em
destaque a automatização das notícias jornalísticas que, sendo mecanicamente reproduzidas e
assimiladas, não são analisadas e criticadas em toda a sua profundidade.
O título, “Poema brasileiro”, por sua vez, permite diversas leituras. É possível
elucidar, por exemplo, o fato de que, apesar de o poema apontar o estado do Piauí como
espaço central, há a formação do retrato do Brasil, em que crianças morrem sem que
perguntemos o porquê e sem que seja ofertada uma real importância a tal fato.

Há que se destacar, ainda, outro aspecto que é extremamente emblemático nesse


poema, o uso da linguagem. O poeta se apropria da linguagem de um modo singular a fim de
evidenciar algo que, com uma linguagem comum/corriqueira não seria percebido em toda a
sua cruel profundidade. A fragmentação da notícia, cria uma nova pausa na leitura e, assim,
vai delineando para o leitor um novo ritmo que permite que se oferte uma específica atenção
em cada passagem a ser destacada. Trata-se, portanto, de um trabalho de segmentação que,
partindo do todo em direção à parte, destaca elementos que passam a ser analisados
criticamente a partir da formação de um conjunto que já não é mais o mesmo do início da
leitura. Há que se registrar, ainda, a repetição do verso “antes de completar 8 anos de idade”.
Tal repetição, como tudo em um texto literário, não é gratuita. Podemos supor que se repete
tal dado a fim de dar certa ênfase e destaque que não seria possível em um texto jornalístico.
Pode-se aferir, assim, que a ambição do poeta não é a de noticiar, mas produzir uma denúncia,
tanto no que se refere a automatização da leitura dos textos jornalísticos quanto ao drama que
se coloca em questão, a morte de muitas crianças antes de completarem oito anos de idade.

Uma das formas de definir o texto literário seria pela noção de estranhamento, uma
vez que “a literatura, seja pelos temas, fatos e ideias abordados, teria a missão de surpreender,
desconcertar as expectativas do leitor” (TORRALVO; MINCHILLO 2010, p. 23). Nesse
sentido, podemos citar, além do próprio poema de Ferreira Gullar, um trecho de uma
produção de Gilberto Gil na qual ele apresenta uma percepção original do que seria um copo
vazio:

“É sempre bom lembrar


Que um copo vazio
Está cheio de ar [...]”
Gilberto Gil. “Copo vazio”. In: Gilberto Gil: todas as letras. São Paulo: Companhia das
Letras, 1966, p.157.
Das discussões aqui apresentadas é possível perceber que o conceito de literatura não é
categórico e imutável, mas alguns traços principais caracterizam as produções textuais
consideradas literatura em nossa sociedade. Frequentemente, os textos literários
(TORRALVO; MINCHILLO 2010, p. 28):
 Registram um jeito especial de ver e interpretar a realidade;

 Dispõem de liberdade para a criação de um universo ficcional, imaginário;

 Ultrapassam os objetivos clássicos de comunicação;

 Empregam a linguagem de modo não habitual;

 Utilizam recursos visuais e sonoros para provocar sensações nem sempre decifradas
pelo raciocínio lógico.

 Se valem da conotação, dos jogos de sentido;

 é organizada de modo que a plurissignificação esteja presente no texto.

Por fim, observe a tabela abaixo que objetiva sistematizar os elementos que
distinguem o texto literário e o não literário.

Texto literário Texto não literário


Emprego da linguagem Linguagem denotativa
plurissignificativa e com sentido
conotativo
Primor estético, artístico, mais relevante Representação da realidade tangível.
do que o objetivo de informar sobre algo Preocupação de informar
Maior subjetividade Uso da linguagem impessoal e objetiva
Mais importante do que falar é o modo de Prioriza a informação
falar
Tem função estética Tem função utilitária
Não pode ter seus termos substituídos ou Pode ser resumido sem prejuízo de seu
sua ordem alterada, pois isso gera a conteúdo (mensagem)
construção de outro texto que não mais
ele. Não pode ser resumido

Materiais consultados:
GULLAR, Ferreira. Toda Poesia (1950-1999). 19 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.
TORRALVO, Izeti Fragata; MINCHILLO, Caros Cortez. Linguagem em movimento. 1 ed.
São Paulo: FTD, 2010.

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