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11 Copyrigth © 2018 Vera Maria Candau

/
Organização
Vera Maria Candau

Autores
Vera Maria Candau
Vera Maria Candau ·
Silvana Mesquita
Cinthia Monteiro de Araujo
Pedro Teixeira
Maria Inês Marcondes
Susana Sacavino
Adélia Maria Nehrne Simão e Koff
Magda Pischetola
Susana Sacavino e Vera M ál'là Candau
Vera Maria Cadau
Monique Marques Longo
Clea Maria da Silva Ferreira e Edi!eia de Carvalho
Daftiela Frida Drelich Valentim
Raehel Pulcino

Coordenação editorial e revisão


Adélia Maria Nehme Simão e Koff

Projeto gráfico e capa


Rodo!pho Oliva

CIP-BRASIL CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES D E LIVROS, RJ

0551

Didática : tecendo/reinventando saberes e práticas I organização Vera Maria Candau.


1. ed. - Rio de Janeiro : 7 Letras, 2018.
ISBN 978-85-421-0700-5

1. Didática. 2. Prática de ensino. 3. Planejamento educacional . I. Candau,


vera Maria.

18-51650 CDD: 370.71


CDU: 37.02

Meri Gleice Rodrigues de souza - Bibliotecária CRB-7/6439

Nenhuma parte dessa obra pode ser reproduzida, duplicada ou transmitida


por quaisquer meios sem a prévia autorização da organizadora.

Viveiros de Castro Editora Ltda


Rua Visconde de Pirajá, 580 Loja 320
Ipanema, Rlo de Janeiro/RJ
cep: 22410-902
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saberes e práticas *ii ·

Organizadora

Vera Maria Candau

Rio de Janeiro. 2018


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Ao Marcelo Andrade
Amigo, colega, parceiro, cúmplice...
de muitas buscas, projetos, compromissos e sonhos. . .
SEMPRE PRESENTE.
Apresentação alffE
.
.

C ertamente os estudos sobre Didática possuem uma lon­


ga trajetória histórica. Desde de Comênio (1592-1670)
e sua Didática Magna (1631), obra considerada pela grande
maioria dos especialistas como referência fundacional da re­
flexão sistemática sobre as questões didáticas, muitas foram
as contribuições, discussões, abordagens de diferentes corren­
tes e tendências da filosofia, sociologia, psicologia e pedago­
gia ao seu desenvolvimento. Diferentes autores apresentaram
diversas visões e perspectivas do papel social da educação e
da escola, tendo presente momentos históricos determinados.
É possível afirmar que a Didática sempre teve presente os de­
safios concretos que a promoção de processos educacionais
enfrentou nos diferentes contextos socioeducativos e épocas
determinadas. Trata-se de um conhecimento dinâmico e· em
contínua construção.

O foco da Didática, o que lhe dá identidade, é, segundo a po­


sição que assumo, a reflexão sobre os processos de ensino­
-aprendizagem em sua complexidade, pluralidade e multi­
dimensionalidade e a busca de intervir em suas dinâmicas,
visando dar respostas significativas aos interesses e questões
dos atores neles envolvidos e da sociedade em que se situam.

No que diz respeito ao nosso país, a produção da área tem


sido ampla, plural e criativa. Certamente, a década de 80 signi­
ficou um marco muito importante para o seu desenvolvimento
e criou uma convergência em torno da perspectiva crítica, sem
que este fato significasse uma homogeneização de enfoques
e preocupações. Nos anos 90 e na primeira década dos anos
2000, a produção continuou se ampliando e se diversificando.
Foram realizados vários balanços críticos e reflexões sobre o
seu desenvolvimento a partir de diversas leituras, com enfo­
ques variados e ênfases diferenciadas dos processos vividos.

Partindo do reconhecimento da significativa produção do cam­


po, gostaríamos de assinalar que, nos últimos anos, emergem
críticas aos cursos de Didática oferecidos nas licenciaturas,
particularmente pela distância entre os temas abordados e as
questões presentes no exercício da docência. Ao mesmo tem­
po, se afirmam buscas para ressignificar o conhecimento sobre
Didática, no sentido cU: .construir abordagens e perspectivas
que ofereçam elemetitos Sígnificativos para se trabalhar os
desafios atuais do/no cotidiano escolar. É o que vimos identi­
ficando em diferentes pesquisas, assim como nas discussões
que temos presenciado e/ou das quais temos participado em
espaços acadêmicos sobre a atual configuração do campo
da Didática.

É nesta perspectiva que se situa o presente trabalho que visa


contribuir para uma reconfiguração da Didática no momento
atual. Reconfigurar a Didática constitui um processo intima­
mente associado à afirmação que venho fazendo reiterada­
mente nos últimos anos, da urgência de se reinventar a escola.
Reinventar não é negar a relevância social da escola. Reinven­
tar exige reconhecer seu processo de construção histórica. Sua
configuração atual apoiada na lógica da modernidade. Seus
vínculos com uma visão homogeneizadora e monocultura! dos
processos educativos. Reinventar exige reconhecer a impor­
tância da mediação socioeducativa da escola hoje. Reinventar
supõe ter presente as novas subjetividades de crianças e ado­
lescentes. Reinventar supõe assumir distintas formas de cons­
truir conhecimentos e exercer a cidadania. Reinventar desafia a
nós, educadores e educadoras, a construir novos formatos es­
colares, outras maneiras de organizar o espaço e o tempo esco­
lares, de dinamizar os processos de ensino-aprendizagem que
permitam dar respostas aos desafios da contemporaneidade.
Reinventar nos convida a construir culturas escolares inclusi­
vas, que articulem direitos à igualdade e à diferença. Os desafios
são muitos, mas já existem caminhos em construção, teórica e
praticamente, no dia a dia de nossas escolas, por pesquisado­
res/as e educadores/as comprometidos/as com uma educação
de qualidade social e intercultural para todos e to.das.

Em 2008, publiquei na revista Nuevamerica/Novamerica um


breve artigo intitulado "Professor/a: Profissão de risco?"'. Nele
tentava enumerar alguns dos desafios que vinha comprovando
que os professores e professoras enfrentavam no seu exercício
profissional. Este texto teve, para minha surpresa, uma ampla
repercussão sendo inúmeros os depoimentos de colegas sobre
a pertinência das questões colocadas e a necessidade de se
aprofundar nos diferentes aspectos que o trabalho destacava.
Ainda hoje é um texto utilizado em cursos de formação de
professores em distintos contextos. Os desafios nele assinala­
dos, comprovei através de pesquisas realizadas, participação
em seminários e diálogos com professores/as, não somente
continuam presentes no cotidiano escolar, como intensifica­
ram seu impacto nas dinâmicas do ensinar e aprender.

Esta é a origem do presente livro. Nela proponho aprofundar


nos temas e discussões abordados, assim como ampliar as
questões apresentadas no horizonte de contribuir para a rein­
venção da escola e a ressignificação da Didática.

Os textos que integram a publicação estão agrupados em qua­


tro eixos. O primeiro, A profissão docente hoje, pretende refle­
tir sobre desafios e tensões atuais do exercício da profissão
docente. D e fende a perspectiva de que é na prática cotidiana
que os professores e professoras vão construindo uma nova
profissionalidade, pessoal e coletivamente.

Construindo saberes, tecendo sentidos constitui o segundo eixo.


Nele incluímos textos que oferecem diferentes perspectivas
teóricas e propostas pedagógicas que introduzem questões
ainda pouco trabalhadas no âmbito da Didática, assim como
novas leituras de abordagens já presentes no desenvolvimen­
to do campo.

!Artigo publicado no n. I 18, de junho de 2008 (p.60-65) e reproduzido no primeiro


eixo da presente publicação.
O terceiro eixo, Tecnologias de informação e comunicação na
escola, aborda as contribuições das mídias digitais aos pro­
cessos de ensino-aprendizagem. Não considera estas mídias
como meros dispositivos operacionais, e sim como uma pers­
pectiva que afeta nossos modos de aceder e construir conhe­
cimentos, nossas formas de relacionamento, nossas subjetivi­
dades, atitudes e comportamentos. A chamada cultura digital
está chamada a desafiar nossa criatividade pedagógica.

Quanto ao último eixo, Diferenças culturais e processos edu­


cativos, parte da afirmação do potencial das diferenças cultu­
rais para o enriquecimento dos processos de ensino-aprendi­
zagem. Questiona a v�o qas diferenças como um problema
a resolver. Reconhece a diversidade étnico-racial, social, de
gênero e sexualidade, religiosa, entre outras. Afirma a impor­
tância de se promover processos de educação intercultural.

Esta é uma publicação coletiva. Seus autores são profissionais


vinculados à Universidade Federal do Rio de Janeiro, Univer­
sidade do Estado do Rio de janeiro, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, organização não governamental
Novamerica e ao Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Educação
e Culturas (GECEC) , vinculado à PUC-Rio. O apoio do CNPq
foi imprescindível para sua realização. Sua ação é fundamen­
tal para o contínuo aperfeiçoamento da produção científica no
nosso país.

A todos e todas agradeço profundamente e desejo que possa­


mos continuar compartilhando ideias, buscas e compromis­
sos orientados à construção de uma educação de qualidade
social e intercultural que colabore na afirmação de uma de­
mocracia no nosso país em que a justiça, a liberdade e a plu­
ralidade se articulem.

Vera Maria Candau

Rio de Janeiro, 5 de julho de 20 J 8


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Sumano
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A PROFISSÃO DOC�TE ,HOJE • 15

Professor/a: profissão de risco? - Vera Maria Candau•16


Ensinar - Aprender: desafios atuais da profissão docente -

Vera Maria Candau• 24


Ser professor hoje: dilemas e possibilidades de renovação
da profissão - Silvana Mesquita• 44

CONSTRUINDO SABERES, TECENDO SENTIDOS • 71

Por uma ecologia de saberes escolares -


Cinthia Monteiro de Araujo• 72
O ensino de temas controversos:
riscos ou potenciais para a didática? - Pedro Teixeira• 92
Paulo Freire , da cena nacional para a internacional:
diálogos sobre currículo e didática com Ira Shor -
Maria Inês Marcondes• 1 1 4
Direitos humanos , educação e cidadania planetária -
Susana Sacavino• 134
Trabalho centrado em projetos:
reinventando a prática escolar, desafiando professores
e alunos - Adélia Maria Nehme Simão e Kojf • 1 54
TIC'S NA ESCOLA • 185

Cultura digital, tecnologias de informação e comunicação


e práticas pedagógicas - Magda Pischetola • 186
Ensino híbrido: possibilidades e questões -
Susana Sacavino e Vera Maria Candau • 202

DIFERENÇAS E PROCESSOS
DE ENSINO-APRENDIZAGEM • 219

Interculturalidade e cotidiano escolar Vera Maria Cadau • 220


-

A mediação de conflitos violentos que desafiam


os saberes docentes - Monique Marques Longo • 236
Educação para as relações étnico-raciais:
uma conversa com professores da escola básica -

Clea Maria da Silva Ferreira e Edileia de Carvalho • 258


o depoimento como prática pedagógica intercultural
na luta antirracista Daniela Frida Drelich Valentim • 280
-

Diálogos com a formação docente:


relações de gênero e cotidiano escolar Rachel Pulcino• 296
-

PERFIL DOS AUTORES • 312


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A PROFISSAO ,
DO C ENTE
HOJE
16 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

Vera Maria Candau


PUC-Rio

* Texto publicado na revista Nuevamerica/Novamerica, nºl 18, junho, 2008, p.60-65.


PROFESSOR/A: PROFISSÃO DE RISCO? 17

O magistério foi considerado durante muito tempo como


uma profissão muito valorizada socialmente, de prestí­
gio e reconhecimento pelo seu potencial humanizador e seu
compromisso com a formação para a cidadania. Em geral,
esta valorização não era acompanhada de condições de traba­
lho muito favoráveis. O salário dos professores e professoras
era módico e os estímulos para o desenvolvimento profissio­
nal escassos. No entanto, isto não impedia que o magistério
fosse visto e vivido como uma profissão que valia a pena por
sua importância intelectual, ética e social.

Esta não é a situação que vemos hoje. Junto às condições de


trabalho precárias que a grande maioria dos/as professores/as
vive, é possível detectar um crescente mal-estar entre os pro­
fissionais da educação. Insegurança, stress, angústia parecem
cada vez mais acompanhar o dia a dia dos docentes. Sua auto­
ridade intelectual e preparação profissional é frequentemente
questionada. As múltiplas manifestações de indisciplina e vio­
lência no cotidiano escolar se intensificam. As pressões sociais
se fazem cada vez mais fortes e as escolas, públicas e privadas,
não conseguem responder adequadamente às novas deman­
das. O impacto das tecnologias da informação e da comuni­
cação sobre os processos de ensino-aprendizagem obrigam a
buscar novas estratégias pedagógicas. Os sujeitos da educa­
ção, crianças e adolescentes, apresentam configurações iden­
titárias e subjetividades fluidas que escapam à compreensão
dos educadores/as. Diante deste quadro, muitos/as evadem
da profissão e procuram caminhos mais tranquilos e seguros
de exercício profissional.
18 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

Ser professor/a hoje se vem transformando em uma atividade


de risco que desafia nossa resistência, saúde e equilíbrio emo­
cional, capacidade de enfrentar conflitos e construir experiên­
cias pedagógicas significativas cada dia.

Entre saberes e culturas: o que ensinar?

Esta pergunta é na atualidade extremamente desafiadora para


nós, professores e professoras. A identidade docente tem es­
tado fortemente ancorada, especialmente a partir do segundo
segmento do ensino fundamental, no domínio de um conhe­
cimento específico-dq.,qual o/a professor/a é considerado/a
especialista. A posseâésté chamado "conteúdo" não é coloca­
do em questão. Este saber, oriundo do campo científico de re­
ferência, dá ao docente segurança e convicção de que possui
um patrimônio, que lhe é próprio, que lhe corresponde socia­
lizar. Este conhecimento foi adquirido ao longo de vários anos
de formação universitária e pertence aos "iniciados" em cada
área específica do conhecimento considerado científico. Por
outro lado, existem bons livros didáticos que "pedagogizam" e
transpõem estes "conteúdos" aos diferentes níveis de ensino.
Confiantes no nosso saber, formação e nos materiais de apoio
selecionados podemos desenvolver com tranquilidade e com­
petência nossa atividade docente diária.

Esta era a visão dominante, mas a reflexão pedagógica em


geral e, mais especificamente, a teoria curricular, nos últi­
mos anos vêm questionando fortemente esta concepção
do conhecimento escolar. Este passa a ser concebido como
uma construção específica do contexto educacional, em que
o cruzamento entre diferentes saberes, cotidianos e/ou so­
li ciais e científicos, referenciados a universos culturais plu­
rais, se dá no dia a dia das escolas em processos de diálogo e
confronto, permeados por relações de poder. O conhecimen­
to escolar não é um "dado" inquestionável e "neutro", a par­
tir do qual nós, professores/as configuramos nosso ensino.
Trata-se de uma construção permeada por relações sociais
e culturais, processos complexos de transposição/recontex­
tualização didática e dinâmicas que têm de ser ressignifica­
das continuamente.
PROFESSOR/A: PROFISSÃO DE RISCO? 19

o que ensinar? Como favorecer aprendizagens significativas?


Estas perguntas, mais ou menos óbvias e tranquilas em outros
tempos passam, hoje, a ser questões desestabilizadoras e ins­
tigantes, que admitem respostas múltiplas, segundo as con­
cepções epistemológicas e educativas que informem nossas
práticas cotidianas.

Nossos alunos e alunas: identidades plurais


e fluidas que nos escapam a cada momento?

Outra questão que informa a prática docente diz respeito à


caracterização de nossos alunos e alunas. Durante muito tem­
po nos pautamos em nosso dia a dia por uma visão do que
se convencionou chamar de "aluno médio", certamente uma
abstração, mas que constituía uma referência para a docência.
De onde veio esta construção? Acredito que se possa afirmar
que está baseada numa simplificação de textos de psicologia
do desenvolvimento e de psicologia da educação em que são
apresentadas as principais características de diferentes etapas
da vida, no nosso caso das fases da infância, da pré-adoles­
cência e da adolescência. Muitas vezes, trata-se de elementos
que favorecem uma visão homogeneizadora, que tendem a
descrever de modo uniforme os/as "alunos/as". Tendemos a
assumir esta visão uniforme destes personagens e a adequar
nosso ensino a esta visão.

Basta entrar em uma sala de aula do ensino fundamental com


um olhar sensível às diferenças para que se evidencia a inade­
quação desta perspectiva. As crianças e adolescentes "explo­
dem" este modo de encará-los. Apresentam formas de expres­
sar-se, comportar-se, situar-se diante de distintas situações
que questionam nossas formas habituais, socialmente cons­
truídas, de lidar com elas. Diferenças de gênero, físico-senso­
riais, étnicas, religiosas, de contextos sociais de referência, de
orientação sexual, entre outras, se visibilizam e se expressam
nos cenários escolares.

Os educadores e educadoras nos manifestamos muitas vezes


desconcertados com nossos alunos e alunas, diante desta explo­
são das diferenças. Tendemos, com frequência, a encará-las ne-
20 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

gativamente, "já não se fazem alunos como antigamente" afirma­


mos explicita ou implicitamente. Os/as alunos/as estão exigindo
de nós, educadores/as, novas formas de reconhecimento de suas
alteridades, de atuar, negociar, dialogar, propor e criar. Estamos
desafiados a superar uma visão padronizadora, assii;n como um
olhar impregnado por um juízo, em geral, negativo de suas ma­
nifestações. Trata-se de abrir espaços que nos permitam com­
preender estas novas configurações identitárias, plurais e fluidas,
presentes nas nossas escolas e na nossa sociedade.

Entre o "quadro-negro/verde/branco"
e as tecnologias .$.informação e comunicação:
que dinâmica construfr na sala de aula?

Outro aspecto desestabilizador da prática docente diz respeito


às estratégias didáticas privilegiadas na sala de aula. O ensino
frontal tem sido a perspectiva dominante nas nossas escolas.
Basta entrar em um estabelecimento de ensino que o reconhe­
cemos pela organização espacial das salas de aula. O chama­
do "quadro-negro, verde ou branco" em uma das paredes, as
carteiras enfileiradas diante dele, indicando que todos devem
olhar para aquele personagem, nós, professores/as, que, em
alguns instantes entrará para "dar" a sua aula. Certamente,
esta descrição é caricatural. Nos primeiros anos do ensino
fundamental já está sendo superada. No entanto, na segunda
etapa do ensino fundamental e no ensino médio, afirmo, sem
duvidar, ainda impera na grande maioria das escolas. Certa­
mente de modo matizado em muitas situações, com maior
frequência de exposições . dialogadas, alguns trabalhos em
grupos, utilização de filmes, apresentações em PowerPoint e
utilização de outras mídias que "modernizam", mas não rom­
pem com o chamado ensino frontal.

É importante ressaltar que, em algumas escolas, já se está


trabalhando em uma perspectiva diferente, que se pode cha­
mar de "sala de aula ampliada" (Koff, 20091) Nela os diferentes
espaços escolares -corredores, pátio, biblioteca, laboratório

1 KOFF, Adélia Mª Nehme Simão e. Escolas, Conhecimentos e Culturas: trabalhando


com projetos de investigação. Rto d e Janeiro: ?Letras, 2009, 224p.
PROFESSOR/A: PROFISSÃO DE RISCO? 21

de informática, etc.- e mesmo espaços fora da escola -ruas,


museus, fábricas, empresas, jardins, parques, shoppings, etc.­
são concebidos como "salas de aula", na medida_ em que po­
dem propiciar processos de aprendizagem e ensino, tanto de
professores/as quanto de alunos/as.

A familiaridade das crianças e adolescentes com as TIC's é


cada vez maior. Os alunos e alunas manifestam intimidade
com este mundo, "navegam" com autonomia e, muitas vezes,
nos ensinam, pois nós, professores/as -pelo menos os que
possuímos mais anos de magistério-, em geral, nos metemos
no mundo das T!Cs mais lentamente. Esta é uma realidade
que vem se impondo cada vez mais. Como integrar de modo
consistente as TICs nos processos de ensino-aprendizagem?
Como utilizá-las na perspectiva de favorecer processos de
construção de conhecimento, análise e reflexão críticas? Como
operar com as múltiplas possibilidades que as T!Cs oferecem a
partir de uma visão reflexiva e crítica de sua utilização, tanto
no meio escolar, como na sociedade em geral?

Que significa cidadania em sociedades marcadas


pelo individualismo e a cultura do consumo?
Qual o papel da escola nesta perspectiva?

Entre os objetivos das escolas, um dos considerados básicos,


constitutivos da própria configuração da instituição escolar, é
a formação para a cidadania. Mas, o que quer dizer esta ex­
pressão hoje? Ainda tem sentido afirmá-la? Cidadania, em ge­
ral, é uma categoria referida à consciência de pertença a um
estado-nação. Serviu historicamente, me atreveria a afirmar,
para negar e/ou silenciar as diferenças: "Somos todos brasi­
leiros" é uma expressão muitas vezes utilizada para superar
conflitos e não reconhecer desigualdades e discriminações.

Vivemos em tempos de globalização que, para vários analis­


tas, é um fenômeno pluridimensional que fragiliza os chama­
dos estados-nação. Por outro lado, nas sociedades complexas,
marcadas por políticas neoliberais e pela centralidade do con­
sumo e do individualismo, a cidadania é muitas vezes orienta­
da à formação de consumidores.
22 01DATlCA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

Neste contexto, problematizar a questão da cidadania consti­


tui um desafio importante para nós, educadores e educadoras.
De que cidadania falamos? Que cidadania queremos ajudar a
construir? Como ressignificar este conceito que está relaciona­
do à dimensão pública, sociopolítica e coletiva da vida? Como
favorecer uma cidadania diferenciada, que procura articular
igualdade e diferença? Muitas são hoje as experiências de
voluntariado, os projetos promovidos por organizações não
governamentais e outros atores da sociedade civil que apon­
tam nesta direção e, certamente, nós educadores/as também
li estamos chamados a participar desta construção de redes de
solidariedade e compromisso social.
- ,, ". -:-��... .
Profissão de risco . . . Certamente ser professor/a hoje supõe as­
sumir um processo de desnaturalização da profissão docente,
do "oficio de professor/a", e ressignificar saberes, práticas, ati­
tudes e compromissos cotidianos orientados à promoção de
uma educação de qualidade social para todos/as. Mas, não
é isto que permite humanizarmo-nos e humanizar, aprofun­
dar nos dilemas do nosso tempo, dilatar horizontes, desafiar,
criar? E, não são estas as "marcas" da profissão docente?
li
24 DtDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

ENSINA R -

APRENDER: :
DESAFIOS ATU�IS
DA PR01FISSÃO i
D OCENTE*

Vera Maria Candau


PUC-Rio

. • Texto publicado em. COCAR, v. 2, p. 298-318, 2016.


ENSINAR - APRENDER: DESAFIOS ATUAIS DA PROFISSÃO DOCENTE 25

Introdução

Formação inicial e continuada de professores, trabalho do­


cente, desenvolvimento profissional, Identidade docente, es­
tas são apenas algumas das expressões utilizadas na literatura
especializada para abordar as questões relativas à formação e
ao exercício do magistério.

Estes temas vêm adquirindo cada vez maior centralidade nos


debates e nas investigações da área de educação. Atrevo-me
mesmo a afirmar que para eles convergem o maior número
de pesquisas, publicações, seminários, mesas redondas e con­
gressos realizados no último decênio.

Por outro lado, é consensual a convicção de que para melhorar


a qualidade da educação, por mais polissêmica que seja esta
expressão, é fundamental termos professores bem preparados
e comprometidos com a docência. Para Arroyo (2008) quanto
"mais nos aproximamos do cotidiano escolar mais nos con­
vencemos de que ainda a escola gira em tomo dos professores,
de seu oficio, de sua qualificação e profissionalismo" (p. 9).

No entanto, não parece que toda a reflexão que tem sido desen­
volvida, a partir de um significativo número de pesquisas e tra­
balhos com diversos enfoques, tenha tido uma forte incidência
e provocado mudanças significativas nos processos formativos
dos docentes, assim como no cotidiano da maioria das escolas.
26 ÜIDÁTlCA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

Muitas podem ser as tentativas de entender esta realidade. Mi­


nha posição assume a perspectiva de que os desafios que os
docentes enfrentam no cotidiano escolar estão muito distan­
tes dos temas por nós privilegiados, pesquisadores das áreas
de formação de professores, trabalho docente, didática e cur­
rículo. Parece que estes desafios não são integrados nas nos­
sas preocupações investigativas e que a interlocução com os
professores e professoras do ensino básico é frágil e não ade­
quadamente articulada.

Segundo Lelis (2012):


Assistimos na última década a um esforço crescente dos pes­
quisadores em mapear a problemática da profissão docente. Em
comum, existe a percepção de que o trabalho do professor se
caracteriza hoje pela intensificação e complexificação do próprio
trabalho (MAROY, 2006). Com relação ao primeiro aspecto, não
se trata apenas de aumento de tempo do trabalho, mas também
da ampliação das tarefas a que os professores são chamados
a desempenhar, seja pelas mudanças na composição social do
público escolar, seja pela implementação de reformas educacio­
nais com visíveis impactos no cotidiano do trabalho em sala de
aula (p. 1 56).

Considero que o chamado "formato" escolar (Dubet, 20 1 1)


vigente está em crise e que , se queremos promover dinàrrii­
cas formativas que respondam aos desafios que enfrentam os
professores e as professoras, temos de colocá-lo no centro de
nossas preocupações.

Com a finalidade de colaborar nesta perspectiva, pretendo no


presente trabalho, assinalar alguns desafios que considero de
especial relevância para se aprofundar tanto nos processos
formativos como no trabalho docente no cotidiano de nossas
escolas.

O formato escolar em questão

Muitos são os indicadores de mal-estar e questionamentos à


educação escolar hoje. Evasão de alunos e professores, situa­
ções de violência e bullying, condições do trabalho docente,
ENSINAR - APRENDER: DESAFIOS ATUAIS DA PROFlSSÀO DOCENTE 27

(ir)relevância dos currículos, infraestrutura das escolas públi­


cas, entre outros. Os vários movimentos de professores atuan­
tes no país, o "OCUPA" promovido por alunos de inúmeras
redes de ensino, a polêmica sobre os projetos "Escola sem par­
tido", os debates sobre a Base Nacional Comum Curricular são
apenas alguns exemplos que explicitam, por um lado, a forte
crise da educação escolar e, por outro, a relevância social que
as instituições educativas continuam a ter no nosso contexto.

Muitas das políticas educacionais hoje vigentes, no nosso país


e em muitos outros do continente americano, não questionam
o formato escolar dominante e colocam a ênfase em dois as­
pectos: na avaliação e na gestão. No que diz respeito à avalia­
ção, se multiplicaram as avaliações em larga escala, os testes
nacionais e internacionais que pretendem medir o desempe­
nho dos alunos em determinadas áreas curriculares, particu­
larmente matemática, ciências e língua materna. Baseando-se
nos resultados destes testes se pretende avaliar ou simples­
mente medir a "qualidade" do ensino e, ao mesmo tempo,
"premiar" os professores bem-sucedidos através de sistemas
de bonificações.

Esta lógica vem se afirmando cada vez com maior força, a


ponto de construir uma verdadeira cultura da avaliação que
é a que termina por orientar os processos de ensino-apren­
dizagem das escolas de ensino básico, segundo depoimentos
de inúmeros educadores/as. Para garantir este processo, se
investe na gestão dos sistemas de ensino, na sua operacio­
nalização e produtividade, partindo-se do pressuposto de que
esta permite o controle e o monitoramento do processo como
um todo, identificando os pontos débeis a serem trabalhados.

Esta lógica não é uma novidade e tem sido utilizada em mui­


tos países. No entanto, vem sendo fortemente contestada. Fo­
ram amplamente divulgadas as afirmações de Ravitch (2011),
autora norte-americana com ampla experiência acadêmica
e atuação na formulação de políticas públicas em educação
nos Estados Unidos. Depois de vinte anos de envolvimento e
apoio a estas políticas faz uma corajosa autocrítica e afirma
que os efeitos destas políticas orientadas pelos princípios do
mercado e da competição não foram positivos, o ensino não
28 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATrCAS

melhorou e os sistemas de premiação aos professores pelos


resultados dos alunos nos testes terminaram por estimular
formas de burlar os resultados, procurando-se ensinar aos
alunos modos de lidar melhor -"truques"- com os testes pa-
·

dronizados.

Nesta perspectiva, educar fica reduzido a ensinar. Ensinar a ins-


, truir. Instruir a preparar para ter êxito em testes padronizados.
Processo este que termina reduzindo a educação a questões
meramente operacionais e à racionalidade instrumental. Não
se põe em questão o formato escolar e as políticas se limitam a
!I. buscar sua eficiência numa lógica produtivista e limitada.

Para Canário (2013p�· · --

A escola que ternos hoje e que cresceu de urna maneira expo­


nencial na segunda metade do século XX em todo o mundo, que
é a escola herdada do século XIX, é uma escola que perdeu o
prazo de validade, é obsoleta e não tem futuro. Não sou adi­
vinho, não faço profecias, portanto não posso dizer corno vai
ser a educação daqui a cinquenta anos. Agora, o de que estou
convicto é que a escola já está sofrendo urna mutação profunda
e passando por urna situação que não tem volta, quer dizer, a
escola não tem retorno, é urna suposta idade de ouro do passado
em que funcionava bem, os atuais problemas que a escola tem, e
que são muito graves, são inultrapassáveis com base na própria
lógica da escola (p. 326).

Na mesma perspectiva se situa Dubet (2011):


Em todos os lugares e não somente na escola, o programa ins­
titucional [republicano] declina. E essa mutação é muito mais
ampla que a simples confrontação da escola com novos alunos
e com os problemas engendrados por novas demandas. É tam­
bém porque se trata de urna mutação radical que a identidade
dos atores da escola fica fortemente perturbada, para além dos
problemas específicos com os quais eles se deparam.
A escola foi um programa institucional moderno, mas um pro­
grama institucional apesar de tudo. Hoje somos "ainda mais mo­
dernos", as contradições desse programa explodem, não apenas
sob o efeito de uma ameaça externa, mas de causas endógenas,
inscritas no germe da própria modernidade (p. 299).
ENSJNAR - APRENDER: DESAFIOS ATUAIS DA PROFISSÃO DOCENTE 29

Nesta perspectiva, é o próprio formato escolar, marcado pela


lógica da modernidade, que está em questão. Este desafio
questiona os conhecimentos e as pesquisas vigerites no âm­
bito da educação e nos obriga a investir numa compreensão
mais aprofundada da realidade das escolas e do trabalho do­
cente hoje. A buscar caminhos de promover processos de en­
sino-aprendizagem mais significativos e produtores de cria­
tividade e construção de sujeitos de direito, tanto no âmbito
pessoal como social. A construir uma educação escolar capaz
de dar resposta aos desafios da contemporaneidade.

Parto da afirmação de que a construção de um novo forma­


to de escola já está em marcha. Está presente nas inúmeras
experiências transgressoras da lógica dominante que se vêm
desenvolvendo em diversos contextos. Estas realidades abor­
dam desafios que cotidianamente os professores enfrentam.
Assinalo alguns deles.

De uma escola centrada na homo� eneização a


uma educação escolar orientada a diferenciação

Este constitui um desafio central. O formato escolar dominan­


te, construído a partir da modernidade, está afirmado na pro­
moção da igualdade: todos são iguais perante a lei e devem ter
igualdade de oportunidades.

Ferreiro, reconhecida educadora argentina, expressa de modo


muito significativo, tendo presente a realidade latino-america­
na, esta perspectiva:
A escola pública, gratuita e obrigatória do século XX é herdei­
ra da do século anterior, encarregada de missões históricas de
grande importância: criar um único povo, uma única nação,
anulando as diferenças entre os cidadãos, considerados como
iguais diante da lei. A tendência principal foi equiparar igualdade
à homogeneidade. Se os cidadãos eram iguais diante da lei, a es­
cola devia contribuir para gerar estes cidadãos, homogeneizan­
do as crianças, independentemente de suas diferentes origens.
Encarregada de homogeneizar, de igualar, esta escola mal podia
apreciar as diferenças.
30 D!DATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

E conclui:
É indispensável instrumentalizar didaticamente a escola para
trabalhar com a diversidade. Nem a diversidade negada, nem a
diversidade isolada, nem a diversidade simplesmente tolerada.
Também não se trata da diversidade assumida como um mal ne­
cessário ou celebrada como um bem em si mesmo, sem assumir
seu próprio dramatismo. Transformar a diversidade conhecida e
reconhecida em uma vantagem pedagógica: este me parece ser
o grande desafio do futuro (FERREIRO in Lerner, 2007, p. 9).

Nos trabalhos de pesquisa que tenho desenvolvido, a polisse­


mia dos termos igualdade e diferença, detectada em entrevis­
tas individuais, grupos focais, observações e narrativas plurais
de diferentes eduéatlãies�e educadoras, esteve permanente­
mente presente.

Nas narrativas dos professores, predominaram/am depoimen­


tos em que a igualdade era/é concebida como um processo de
uniformização, homogeneização, padronização, orientado à
afirmação de uma cultura comum a que todos e todas têm
direito a ter acesso. Desde o "uniforme" até os processos de
avaliação, tudo parece contribuir para construir algo que seja
"igual", isto é, o mesmo para todos os alunos e alunas. Nesta
perspectiva, certamente impossível de ser alcançada, as dife­
renças são invisibilizadas, negadas e silenciadas.

Quanto ao termo diferença, nos depoimentos dos educadores


e educadoras, é frequentemente associado a um problema a
ser resolvido, à deficiência, ao déficit cultural e à desigualda­
de. Diferentes são aqueles que apresentam baixo rendimento,
são oriundos de comunidades de risco, de famílias com con­
dições de vida de grande vulnerabilidade, que têm comporta­
mentos que apresentam níveis diversos de violência e incivi­
lidade, os/as que possuem características identitárias que são
associadas à "anormalidade" e/ou a um considerado baixo
"capital cultural". Enfim, os diferentes são um problema que
a escola e os educadores/as têm de enfrentar. Somente em
poucos depoimentos, a diferença é articulada a identidades
plurais que enriquecem os processos pedagógicos e devem
ser reconhecidas e valorizadas.
ENSJNAR - APRENDER: DESAFIOS ATUAIS DA PROFISSÃO DOCENTE 31

Este desafio me parece fundamental. No entanto, o aprofun ­


damento desta questão não parece estar presente de modo
relevante nos processos formativos. Somente quando somos
capazes de não reduzir a igualdade à padronização, nem a di­
ferença a um problema a resolver é possível mobilizar proces­
sos educativos sensíveis às diferenças. Para tal é necessário
outro olhar: reconhecer a dignidade de todos os atores pre­
sentes nos processos educativos e conceber a diferença como
riqueza e "vantagem pedagógica", como propõe Ferreiro. Sem
esta mudança de perspectiva não poderemos caminhar. O que
é necessário trabalhar supõe, ao mesmo tempo, desconstruir
a padronização e lutar contra todas as formas de desigualdade
presentes na nossa sociedade. No entanto, esses todos/as não
são padronizados/as, não são os/as "mesmos/as". Têm de ter
as suas diferenças reconhecidas como elemento de constru­
ção da igualdade. Esta articulação não é simples, nem do pon­
to de vista teórico, nem das práticas socioeducativas. Exige
ser assumida de modo permanente nos processos formativos,
tanto na formação inicial quanto continuada de professores.

Do ponto de vista didático, Perrenoud (2000) defende que tra­


balhar os dispositivos de diferenciação no cotidiano escolar é
um componente fundamental para enfrentar a realidade das
escolas hoje. Exige administrar a heterogeneidade presente
na sala de aula - estimular a participação, realizar tarefas di­
ferenciadas, acolher iniciativas dos alunos, organizar grupos
de trabalho, utilizar diferentes linguagens etc. - e ampliar a
gestão da sala de aula para um espaço mais vasto - trabalho
cooperativo entre colegas, articulação com atividades plurais
promovidas pela escola, aproveitar as experiências dos alu­
nos/as e suas famílias, estabelecer relações com as questões
presentes na sociedade, entre outros aspectos.

segundo Cortesão e Stoer (1999) considerar as diferenças su­


põe ter presente o arco-íris das culturas nas práticas educativas,
o que exige todo um processo de desconstrução de práticas
naturalizadas e enraizadas no trabalho docente para sermos
educadores/as capazes de criar novas maneiras de situar-nos
e intervir no dia a dia de nossas escolas e salas de aula, va­
lorizar as histórias de vida de alunos/as e professores/as e a
construção de suas identidades culturais, favorecendo a trpca
32 DIDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

o intercâmbio e o reconhecimento mútuo, assim como estimu­


lar que professores/as e alunos/as se perguntem quem situam
na categoria de "nós" e quem são os "outros" para eles. Esta
perspectiva convida à interação da escola com os diferentes
grupos presentes na comunidade e no tecido social mais am­
plo, favorecendo uma dinâmica escolar aberta e inclusiva.

Conceber as diferenças como vantagem pedagógica abre um


11" horizonte amplo de iniciativas orientadas a questionar o for­
mato escolar dominante que organiza de modo rígido e padro­
nizado o cotidiano escolar.

Este é certamepte um desafio que tem de ser assumido, teó­


rica e praticame11te;"l'lÕs processos de formação inicial e con­
tinuada de professores/as. Estas questões ainda estão muito
pouco presentes nos processos formativos dos educadores e
educadoras.

De uma escola centrada na transmissão­


assimilação de conhecimentos consolidados a
uma escola consciente da pluralidade de saberes,
enfoques e fontes de informação orientada ao
desenvolvimento da "curiosidade epistemológica"
(P. Freire)

A afirmação de que vivemos numa sociedade do conheci­


mento e da informação pode ser considerada, hoje, um lugar
comum. Multiplicam-se as fontes de informação e podemos
acessar conhecimentos através de estratégias plurais. os dis­
positivos digitais expandem cada vez mais nossas possibili­
dades e estamos continuamente desafiados a manejá-los de
forma intensiva e plural.

No entanto, é possível afirmar que os conhecimentos se trans­


formaram em um bem de consumo, altamente cotizado na
lógica do mercado. A perspectiva utilitária, produtivista, ins­
trumental e simplificadora invade os processos de aquisição/
construção de conhecimentos. Queremos conhecimentos que
sejam facilmente adquiridos e produtivos. Obtidos rapidamen-
ENSINAR - APRENDER: DESAFIOS ATUAIS DA PROFISSÃO DOCENTE 33

te e que incidam praticamente no nosso dia a dia. Neste con­


texto, o grande desafio é favorecer processos que permitam
sistematizar informações muitas vezes fragment.adas e dis­
persas e construir conhecimentos articulados. o que supõe
desenvolver a capacidade reflexiva e crítica, que exige proces­
sos sistemáticos em que os sujeitos implicados exerçam dialo­
gicamente sua curiosidade epistemológica.

Em geral, no que diz respeito ao conhecimento escolar, este


está naturalizado e concebido como constituído por concei­
tos, ideias e reflexões que guardam vínculos com as diferentes
ciências de referência das diversas áreas curriculares. Estes
conhecimentos tendem a ser considerados universais e cien­
tíficos, assim como a apresentar um caráter monocultura!.
Sua aquisição está marcada pela preparação para os testes
padronizados e a lógica utilitária já assinalados que, em geral,
predominam nos processos escolares. Nesta perspectiva são
enfatizados os conhecimentos que "valem" e a curiosidade
epistemológica é minimizada.

.i Para Paulo Freire ( 1 996) , ensinar não é transmitir conheci­


,,
mento, mas criar as possibilidades para sua própria produção
ou a sua construção (p. 47). E afirma:
Se há uma experiência exemplar como negação da experiência
formadora é a que dificulta ou inibe a curiosidade do educando
e, em consequência do educador. [ . .. ] Como professor devo sa­
ber que sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que
·me insere na busca, não aprendo nem ensino.
[ . . . ] O fundamental é que professores e alunos saibam que a pos­
tura deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa,
indagadora e não apassivada, enquanto fala ou enquanto ouve.
O que importa é que professor e alunos se assumam epistemo­
logicamente curiosos. [. ..] O exercício da curiosidade a faz mais
criticamente curiosa, mais metodicamente "perseguidora" do
seu objeto. Quanto mais a curiosidade espontânea se intensifica,
mas, sobretudo, se "rigoriza", tanto mais epistemológica ela vai
se tornando. [. ..]
O exercício da curiosidade convoca a imaginação, a intuição, as
emoções, a capacidade de conjecturar, na busca da perfilização do
objeto ou do achado de sua razão de ser (FREIRE, 1 996, p. 84-88).
34 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

Trabalhar a curiosidade epistemológica, tanto a nossa como


professores/as, quanto a dos alunos/as é um desafio fun­
damental para a formação docente. E, para tal é necessário
questionar a visão vigente sobre o que se entende por conhe­
cimento escolar.

Streck (20 12), em artigo com o instigante título "Qual o conhe­


cimento que importa? Desafios para o currículo", afirma:
111 o conhecimento não é privilégio de determinado grupo de pes­
soas. Ele tem sua história e geografia. [ .. . ) Cabe reconhecer que
os caminhos da emancipação são diversos e que uma sociedade
democrática não pode prescindir dessa ecologia cognitiva, re­
conhecendo a diversidade de sujeitos e de lugares e formas de
produção de conhecimentos (p. 21).

Ter presente esta diversidade de saberes e colocá-los em re­


lação constitui uma tarefa fundamental da função docente.
Boaventura Sousa Santos, sociólogo português considerado
um dos intelectuais mais influentes na atualidade, ao longo de
sua ampla produção bibliográfica, faz uma consistente crítica
ao modelo de racionalidade ocidental dominante, pelo menos
durante os últimos duzentos anos. Este modelo é o inspirador
da concepção de conhecimento privilegiada nas nossas esco­
las. Entre as questões que este autor suscita, inerentes a esta
racionalidade, a que considera a mais poderosa, é a monocul­
tura do saber e do rigor do saber que assim caracteriza:
Consiste na transformação da ciência moderna e da alta cultu­
li:li11n ra em critérios únicos de verdade e de qualidade estética, res­
pectivamente. A cumplicidade que une as 'duas culturas' reside
no ato que ambas se arrogarem ser, cada uma no seu campo,
cãnones exclusivos de produção de conhecimento ou de cria­
ção artística. Tudo que o cânone não legitima ou reconhece é
declarado inexistente. A não existência assume aqui a forma de
ignorância ou de incultura (SANTOS, 2002, p. 247) .

Para ele, questionar esta lógica supõe a identificação de ou­


tros saberes e critérios de rigor que operam em contextos e
práticas sociais não hegemônicas. Saberes estes que tem le­
gitimidade para participar de debates epistemológicos com os
conhecimentos considerados científicos, pois todos os sabe­
res, inclusive os científicos, devem ser considerados incom-
ENSINAR - APRENDER: DESAFIOS ATUAIS DA PROFISSÃO DOCENTE 35

pletos. Daí decorre a possibilidade de diálogo entre saberes, o


que exige substituir a monocultura do saber científico por uma
ecologia de saberes.

Trata-se de promover uma justiça cognitiva, componente in­


dispensável da justiça social, que "não terá sucesso se se ba­
sear apenas na ideia de uma distribuição mais equitativa do
conhecimento cientifico" (Santos, 20 1 0, p. 57). Para que a al­
cancemos, é imprescindível uma ecologia de saberes. Neste
sentido, procura-se promover a inter-relação dos saberes as­
sumidos como científicos com outros saberes, considerados
não científicos. Não se trata de afirmar uns e negar os outros
e sim de colocá-los em diálogo, partindo-se da co-presença e
da comunicação mútua. Para Santos (20 1 O):
A ecologia dos saberes nos capacita para uma visão mais abran­
gente daquilo que conhecemos, bem como do que desconhe­
cemos, e também nos previne para aquilo que não sabemos é
ignorãncia nossa, não ignorância em geral (p . 66).

Esta perspectiva nos desafia a problematizar o conhecimento


esc o l a r A reconhecer os diversos saberes produzidos pelos
.

diferentes grupos socioculturais e os saberes tradicionais. Pro­


mover uma ecologia de saberes no âmbito escolar, favorecen­
do o diálogo entre o conhecimento escolar socialmente va­
lorizado e dominante e estes saberes. Esta interação pode se
dar por confronto ou enriquecimento mútuo e supõe ampliar
a nossa concepção de quais conhecimentos devem ser objeto
de atenção, entre confluências e tensões, a ser trabalhados na
escola, assumindo-se os possíveis conflitos que emergem da
interação entre estes saberes. Para tal, desenvolver a curiosi­
dade epistemológica é fundamental.

De um currículo. compartimentado a um currículo


que promove pontes, inter-relações entre ·

diferentes componentes, atividades conjuntas,


projetos etc.

O campo do currículo tem sido no nosso país, especialmen­


te nas últimas décadas, de grande produtividade acadêmi­
ca. Muitos são os temas e questões que tem discutido, assim
36 ÜIDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

como as novas leituras e práticas que tem provocado. Multipli­


cam-se publicações, seminários, congressos e palestras. Por
outro lado, a elaboração de políticas públicas, para os diferen­
tes níveis e modalidades de ensino, suscita acalorados deba­
tes. Estamos vivendo, por exemplo, fortes polêmicas sobre a
proposta da Base Nacional Comum Curricular proposta pelo
Ministério de Educação.

Certamente o termo curriculo, como outros utilizados na refle­


xão pedagógica, é polissêmico. Familiar para todos os educa­
dores e educadoras, no entanto, é utilizado a partir de múlti­
plos significados. Diversas concepções são construídas tendo
como referência .o§,iµodos como a educação tem sido histo­
ricamente concebiáá, assim como as diferentes correntes pe­
dagógicas e experiências práticas realizadas. Neste texto, nos
limitamos a ressaltar sua importância, tanto no cotidiano es­
colar quanto na formação de professores/as, estando sempre
presente, explícita ou implicitamente na educação escolar e
no imaginário dos professores e professoras.

Para Silva (201 O):


O currículo tem significados que vão muito além daqueles aos
quais as teorias tradicionais nos confinaram. O currículo é lugar,
espaço, território. o currículo é relação de poder. O currículo é
trajetória, viagem, percurso. o currículo é autobiografia, nossa
vida, curriculum vitae: no currículo se forja nossa identidade. O
currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento
de identidade (p. 1 50) .

No entanto, o que tenho identificado nas pesquisas que rea­


lizamos é a enorme distância entre uma visão ampla, abran­
gente e dinâmica de curriculo e como este termo opera, em
geral, nas escolas e nos cursos de formação de professores/as.
Ainda predomina uma visão em que o curriculo é concebido
como os chamados "conteúdos", por mais ambígua que este
termo seja, a serem trabalhados por cada disciplina escolar
ou área curricular, e as metodologias a serem empregadas
em seu desenvolvimento. 1i'ata-se de uma visão reducionista
do currículo, tendo por base predominantemente seu caráter
disciplinar.
ENSINAR - APRENDER: DESAFIOS ATUAIS DA PROFISSÃO DOCENTE 37

Esta perspectiva impregna também os cursos de formação de


professores, as licenciaturas, que os concebem fundamental­
mente como especialistas de determinadas disciplinas. Assim
sendo, o currículo escolar é formatado, compartimentalizado
e concebido como uma sucessão de atividades-aulas orien­
tadas, cada uma, a trabalhar os "conteúdos" de uma discipli­
na específica como matemática, português, geografia, história
etc., principalmente a partir do segundo segmento do ensino
fundamental. Para tal, a organização dos espaços e tempos, a
"grade curricular", as práticas de avaliação, as estratégias de
ensino-aprendizagem, são aspectos que reforçam a formato
escolar dominante e estão informados por esta visão reducio­
nista do curriculo.

No que diz respeito à formação de professores/as, particu­


larmente à formação inicial, os currículos estão concebidos
como um elenco de disciplinas, em geral, sem que se trabalhe
a relação entre elas.

É verdade também que se tem realizado experiências que ten­


tam superar esta perspectiva, tanto na educação escolar como
na formação de professores/as. Especialmente a formação
continuada tem sido um campo fértil para a construção de no­
vas lógicas de formação.

Consideramos que o desafio atual é desengessar os currículos.


Partir de uma visão ampla que os concebe como "documentos
de Identidade" (Silva, 20 1 O) . E, nesta perspectiva repensar a
organização de espaços e tempos, a seleção de temas, enfati­
zar conceitos-ponte, as atividades de caráter multi/interdisci­
plinar, dinâmicas que estimulem a "curiosidade epistemológi­
ca" (FREIRE, I 996) de professores/as e alunos/as.

Neste sentido, a metodologia de projetos tem sido uma estra­


tégia especialmente acionada. Para Candau e Koff (20 1 5) :
Organizar o currículo, a prática didática e o conhecimento esco­
lar, bem como os tempos, os espaços, os ritos, as estratégias de
gestão e outros aspectos que envolvem a dinâmica do funciona­
mento da escola, tendo por orientação o trabalho centrado em
projetos, parece ser muito mais do que adotar uma metodologia
diferente ou específica. Trabalhar por e/ou com projetos na es-
38 D10ATICA: TECENOO/RElNVENTANDO SABERES E PRATICAS

cola implica principalmente em adotar outra concepção do que


sejam os processos de ensinar e de aprender (p 10).

Outras podem ser as estratégias de organizar e desenvolver


os currículos, tanto da educação escolar quanto da formação
de professores/as. O fundamentai é superar uma visão acu­
mulativa e fracionada, favorecer o diálogo entre as diferentes
áreas curriculares, criar sinergias e trabalhar temas relevantes
e significativos para os atores envolvidos, de modo a favorecer
a reflexão crítica e a construção conjunta de conhecimentos.

De uma conc.epÇ._ão de docência


fundamentalm.értte como exercício individual
para uma perspectiva compartilhada

Em relação a esta temática, pretendo desenvolver brevemente


três afirmações: a formação iniciai não é o início da formação;
é fundamental ter consciência de que os saberes docentes (co­
nhecimentos, habilidades, atitudes etc.) são construídos, plu­
rais, contextualizados e dinâmicos e a formação docente deve
se dar em parceria entre a universidade e a escola básica: seu
centro deve ser a prática profissional.

Quando iniciamos nossa formação iniciai para o magistério,


j á fomos durante muitos anos alunos e alunas do ensino bá­
sico, pelo menos doze anos. Através desta trajetória, fomos
expostos a diferentes estilos docentes, mas a partir dos dados
que possuímos de pesquisas, é possível afirmar que com forte
predominância do modelo frontal de ensino.

Neste sentido, este modelo está profundamente introjetado


em nossos corpos e mentes. Tendemos "naturalmente" a re­
produzi-lo quando assumimos o manejo de uma sala de aula.
Se quisermos desestabilizar este modelo, característico do for­
mato escolar dominante, temos de começar por propor com­
ponentes formativos que favoreçam explicitar e refletir crítica­
mente sobre nossa experiência discente e os estilos docentes
que vivenciamos. Este é um aspecto em geral ausente dos
processos formativos. Supõe propor a realização de estraté­
gias didáticas que permitam trabalhar histórias de vida escolar
ENSINAR - APRENDER: DESAFIOS ATUAIS DA PROFlSSÃO DOCENTE 39

vivencialmente, refletir sobre elas e estimular a construção de


estilos docentes diferenciados, em sintonia com a construção
de novos formatos escolares.

Quanto aos saberes docentes, as contribuições de Tardif,


Lessard e Lahaye ( 1 99 1 ) são hoje amplamente reconhecidas.
Estes autores partem da afirmação de que o saber docente é
um saber "plural, estratégico e desvalorizado". Plural porque
constituído dos saberes das disciplinas, dos saberes curricu­
lares, dos saberes profissionais (das ciências da educação e
das correntes pedagógicas) e dos saberes da experiência. Es­
tratégico porque, como grupo social e por suas funções, os
professores ocupam uma posição especialmente significativa
no interior das relações complexas que unem as sociedades
contemporâneas aos saberes que elas produzem e mobilizam
com diversos fins. Desvalorizado porque, mesmo ocupando
uma posição estratégica no interior dos saberes sociais, o cor­
po docente não é valorizado em face dos saberes que possui
e transmite. Afirmam também que os professores/as não têm
com os saberes uma relação que pode ser reduzida à função
de transmissão dos conhecimentos já consolidados. São pro-
t. dutores de conhecimentos.
·

1 No contexto deste trabalho, considero fundamental ressaltar


a importância do reconhecimento e da valorização do saber
docente no âmbito da reflexão sobre a Didática, assim como
da formação continuada de professores/as, de modo especial
dos saberes da experiência, núcleo vital do saber docente,
com base no qual, o professor dialoga com as disciplinas e os
saberes curriculares. Os saberes da experiência fundam-se no
trabalho cotidiano e no conhecimento de seu meio. São sa­
beres que brotam da experiência e são por ela validados. São
constituídos p elos demais tipos de saber, mas "retraduzidos",
polidos e submetidos às certezas construídas na prática e na
experiência. Incorporam-se à vivência individual e coletiva
sob a forma de habitus e de habilidades, de saber fazer e de sa­
ber ser. Eles constituem a cultura docente em ação e é muito
importante que sejamos capazes de percebê-la e valorizá-la.

Hoje é cada vez mais amplamente reconhecido, nas diversas


áreas preocupadas com o desenvolvimento de processos de
40 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

formação profissional, um elemento fundamental destes pro­


cessos: a participação dos profissionais em exercício na for­
mação das novas gerações de profissionais. Este componente
é especialmente significativo para a construção da identidade
profissional.

No entanto, segundo Tardif (2002) , na formação docente, o


modelo em geral vigente é o aplicacionista, isto é, os alunos
passam um certo número de anos frequentando aulas basea­
das em disciplinas relativas à área específica e à pedagógica,
l1i ' muitas vezes justapostas e sem interação; em seguida, ou du­
rante estes cursos, vão estagiar para "aplicar" esses conheci­
mentos. Nesta persp�tiva,a escola de ensino básico e seus
; -:
profissionais são passivos-·enão interferem diretamente no
processo formativo.

No entanto, para este autor "esta visão disciplinar e aplica­


cionista da formação profissional não tem mais sentido hoje
em dia, não somente no campo do ensino, mas também nos
outros setores profissionais" (TARDIF, 2002, p. 23) .

É importante assinalar que já está em construção um outro


modelo de formação docente. Um modelo de colaboração,
parceria e compartilhamento, de corresponsabilidade entre as
instituições universitárias e as escolas de ensino básico, em
que são características fundamentais o reconhecimento e a
valorização dos saberes dos professores da escola básica, a
criação de espaços de reflexão e diálogo orientados a uma
construção conjunta entre professores universitários -das
'''ih
áreas específicas e pedagógica- e profissionais em exercicio
nas escolas -professores, gestores, orientadores- assim como
a promoção do diálogo com a prática profissional ao longo de
todo o processo formativo.

Não existe um modelo pré-estabelecido e único. O importante


é a mudança de perspectiva. O Programa Institucional de Bol­
sas de Iniciação à Docência (Pibid) , promovido pelo Ministério
de Educação, tem se constituído em um laboratório especial­
mente significativo para afirmação desta perspectiva. No atual
contexto, estamos instados a lutar por sua permanência den­
tro desta abordagem.
ENSIÚAR - APRENDER: DESAFIOS ATUAIS DA PROFISS/\0 DOCENTE 41

Algumas afirmações finais

Parto da afirmação que estamos chamados/as a r.einventar a


escola, o que supõe desconstruir o formato dominante e cons­
truir uma maneira outra de concebê-la, em que o reconheci­
mento das diferenças como vantagem pedagógica, a curiosi­
dade epistemológica, a criatividade, a interdisciplinaridade, o
exercício da cidadania e a construção coletiva sejam compo­
nentes fundamentais.

Nesta perspectiva, não concebemos os professores e profes­


soras como super-heróis ou heroínas, salvadores da situação
nacional, onipotentes, detentores de todos os conhecimentos
de sua área específica e pedagógicos, nem como meros exe­
cutores de currículos pré-estabelecidos e/ou consumidores de
produtos pedagógicos.

Acredito em um/a profissional inquieto/a, atento à realidade


do mundo e de seus alunos/as, consciente de seus limites, co­
laborativo e capaz de trabalharem em equipe. Em um/a pro­
fissional que estimula a curiosidade epistemológica . de seus
alunos e alunas e a sua própria, promove cidadania, amplia
horizontes culturais e sociais, comparte saberes, valores e
horizontes de sentido orientados à construção de sociedades
justas e democráticas.

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44 DrDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

Silvana Mesquita
PUC-Rio
SER PROFESSOR HOJE: DILEMAS E POSSIBILIDADES DE RENOVAÇÃO DA PROFISSÃO 45

Introdução

Exercer a docência hoje tem se mostrado um desafio, princi­


palmente, diante da complexidade da escola e do aluno, isto é,
do campo e do objeto de atuação desta profissão, respectiva­
mente. Parte desta complexidade se justifica pela abertura da
escola e a entrada de alunos com realidades sociais e culturais
diversas. Além disso, os novos alunos adentram à escola in­
fluenciados pelo mundo contemporâneo do qual são pioneiros,
caracterizado por novas formas de relações humanas, virtuais
e reais, até novas formas de consumo material e intelectual
que o meio digital e tecnológico proporciona. São jovens que
vivem contínuas transformações no que diz respeito às formas
de experimentar o tempo -cada vez mais acelerado- e o espaço
-cada vez mais flexibilizado (FREZZA ET AL., 2009).

Estas constatações não são novas, há muito se fala da


necessidade de mudanças nas estruturas de ensino para aten­
der às novas demandas da sociedade. Este dilema lembra uma
crônica de conhecimento popular, mas de autoria desconhe­
cida, que conta a história de um professor que adormeceu por
longos anos. Após cem anos, esse professor acorda de seu
transe. Atônito, começa a andar pelas ruas e percebe gran­
des transformações que ocorreram nos anos em que esteve
ausente. Viu que o homem havia pisado na lua. Soube dos
drones vasculhando o céu, das máquinas caseiras capazes de
fazer quase tudo o que as mulheres faziam antes, com hora
46 0JOÁT1CA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

marcada e sem ninguém por perto. As mulheres deixaram as


casas e começaram a trabalhar fora. Computadores e celulares
desafiam o tempo e o espaço. Mudanças de atitudes, mudan­
ças de olhares e pontos de vista. Mudanças de comportamen­
to e de tamanho das saias. Mudanças nas casas, nos modos
de vida, nas relações de trabalho. Mudanças na agricultura e
na genética. Nos remédios, na expectativa de vida. Este pro­
fessor, aturdido por tantas mudanças, caminha a procura de
um espaço familiar e entra, então, numa escola. Lá encontra
a lousa, os cadernos, as mesas alinhadas com alunos enfilei­
radas e o professor a transmitir conhecimentos. Satisfeito, fi­
nalmente sente que está no mesmo lugar de anos atrás, pois
verifica que a escol?- permaneceu intacta desafiando o tempo
de tant;:i.s mudanças (adaptado de BACCI, 201 7) .

A crônica aponta uma realidade escolar que começa a ser


questionada. Há um consenso de que a escola necessita ser
reinventada diante deste novo aluno que precisa ser formado
e socializado para compreender e viver em um mundo moder­
no. Mas, isso também exige um novo professor e uma nova
forma de se compreender esta profissão. É sobre esse novo
docente para uma nova escola e um novo aluno que este texto
quer refletir.

Parte-se do princípio de que o novo professor não pode ser de­


finido por um estatuto profissional imposto de fora para den­
tro. O novo precisa ser fruto de uma reflexão da docência em
sua própria prática, a partir das demandas que se apresentam
no cotidiano escolar. O professor precisa deixar o seu "lugar
de morto" no jogo das instâncias reguladoras do trabalho do­
cente (Estado, Universidade, Sociedade). como nos avisa Nó­
voa (20 1 4) , e tomar o seu lugar de protagonista no processo de
profissionalização do magistério.

Entende-se que profissionalizar a docência começa po� con­


ferir um conjunto de especificidades a esta profissão que so­
mente quem a ela adere o constitui. Não se pode conceber a
docência como um fazer marcado pelo improviso ou como a
repetição de sua experiência como discente. O domínio ape­
nas de um saber científico de determinada área de conheci­
mento não constitui elemento de diferenciação profissional
SER PROFESSOR HOJE: DILEMAS E POSSIBILIDADES OE RENOVAÇÃO DA PROFISSÃO 47

do professor. Trata-se de uma profissão que precisa ter claro


quais os saberes profissionais próprios que garantam a efetivi­
dade da ação de ensinar e de aprender. Como orienta Roldão
(20 1 7) , ensinar na escola é uma intencionalidade estratégica
capaz de gerar e avaliar a aprendizagem pretendida. Este é o
núcleo da docência, capaz de conferir singularidade à profis­
são de professor e seu reconhecimento como essencial. Mas,
como saber ensinar para a escola de hoje?

Primeiro esse debate se inicia com a própria forma de ser da


profissão. É preciso aderir à profissão, pois "firmar a profissão
como professor afirma a profissão docente" (N ÓVOA, 2 0 1 7).
Ser professor hoje requer reconhecer as suas especificidades
e afirmar sua posição como profissional, superando uma con­
cepção de docência como provisória ou de passagem. Faz-se
necessário romper com uma concepção meramente laboral
da docência, construída pela Juncionarização dos professores
por parte do Estado, pois essa visão oferece escassa autono­
mia, limita o seu desenvolvimento e confere, apenas, conhe­
cimentos instrumentais ao papel do professor, como aquele
que segue um currículo ou uma metodologia definida de forma
exógena. Esta concepção impede que o professor tenha uma
construção autônoma de conhecimentos especificas e a capa­
cidade de decisão diante de sua prática.

São os saberes específicos de uma profissão que conferem dis­


tinção profissional e legitimam o seu exercício. Uma profissão
realmente constituída desenvolve saberes associados à fun­
ção social que desempenha e que no caso da docência é o
ensino. como afirma Roldão (2007) o verbo ensinar é dupla­
mente transitivo, pois "ensinar é fazer aprender alguma coisa
a alguém". Assim, "o professor não é aquele que sabe, mas
que sabe ensinar".

Porém, o desafio que é imposto à docência hoje, "ensinar a no­


vos alunos", requer uma reconfiguração dos saberes que são
necessários à sua ação de ensinar. Se na escola do passado os
saberes que detinham os professores permitiam um ensinar e
aprender eficaz, hoje se questiona esta efetividade. Assim, um
segundo ponto a considerar neste debate é de que, além de
assumir a profissão, o professor precisa ter consciência de que
48 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

a docência é uma profissão que se renova através da reflexão


sobre a prática, possibilitando a identificação de novas formas
de constituir-se um profissional especialista para a escola que
o convoca. Com isso, o professor toma-se um profissional sin­
gular e único. O docente ao procurar caminhos novos para o
exercido de sua profissão constrói o que podemos chamar de
uma nova profissionalidade.

Profissionalidade pode ser entendida como aquilo que é espe­


cifico na ação docente, isto é, o conjunto de comportamentos,
conhecimentos, destrezas, atitudes e valores que constituem
a especificidade de ser professor (SACRISTAN, 1 995). Esta pro­
fissionalidade confere uma identidade profissional que supera
um mero saber fazer ou uma mera repetição de ações de en­
' 1 sinar ou um domínio linear de conteúdos científicos. Porém,
o que este texto se propõe é debater sobre quais os elemen-
, tos da atuação docente (ou do que se espera dela) constituem
uma nova profissionalidade docente hoje.

Responder a esta questão é parte do desafio deste texto. A


proposta é fazer um exercido de reflexão em defesa de uma
profissionalização docente consciente, constituída pela identi­
ficação de elementos que conduzam a essa nova profissionali­
dade de forma endógena, isto é, do professor para o professor,
para a escola e para o aluno. O objetivo do texto é permitir um
duplo movimento de identificação tanto dos dilemas que se
encontram frente à docência no cotidiano das escolas, quanto
das possibilidades para enfrentá-los. As análises privilegiam
resultados de pesquisas nas quais os professores as protago­
nizaram. Não se trata de falar sobre os professores, mas com
os professores.

'lhl '1,ll1 É preciso esclarecer que os dilemas da docência são com­


preendidos como situações que se configuram como proble­
máticas, constituídas por duas ou mais soluções que são, na
maioria das vezes, contraditórias entre si, mas ambas aceitá­
veis. Quando se diz que um professor está "enfrentando um
dilema", significa que está tendo que tomar uma decisão ex­
tremamente difícil. Como afirma Perrenoud (200 1 ) , ser "pro­
fessor é agir na urgência e decidir na incerteza", sem improvi­
sação, mas baseado no conjunto de competências e repertório
SER PROFESSOR HOJE: DILEMAS E POSSIBILIDADES DE RENOVAÇÃO DA PROFISSÃO 4 't

de seu desenvolvimento profissional. Por possibilidades com­


preende-se como caminhos alternativos, por que não dizer,
novos, experimentados por professores em seµ processo de
reflexão da prática. Estas possibilidades são apresentadas e
defendidas por professores em atuação na escola de hoje,
com dados de pesquisas empíricas realizadas no contexto da
escola de ensino médio. Entende-se que as imagens que os
professores têm sobre si são fluidas, marcadas por uma série
de dilemas e combinações de lógicas de ação entre a sua sub­
jetividade, os padrões impostos e as estratégias selecionadas
para lidar com o outro.

O texto se estrutura no debate de quatro dilemas e as possi­


bilidades para enfrentá-los. Os dilemas debatidos são: Entre
· os objetivos oficiais da escola e a diversidade de sentidos dos
alunos; Entre o desprestígio social e a satisfação profissional;
Entre a autonomia profissional pretendida e a autonomia al­
cançada; Entre a lógica do tempo institucional e o tempo real.

1 º Dilema: Entre os objetivos oficiais da escola e a


diversidade de sentidos dos alunos

O conflito entre os objetivos oficiais da escola e a diversidade


de sentidos que os alunos atribuem a ela mostra-se como um
dos principais dilemas da prática docente. De um lado, se po­
sicionam os documentos oficiais, curriculos norteadores e ins­
tâncias formadoras de professores na definição de objetivos
do ensino, do outro, os professores responsáveis em operacio­
nalizar esses objetivos no ato de ensinar ao se encontrarem
diante da diversidade dos novos alunos.

No caso especifico de escolas de ensino médio, este conflito


ainda se agrava, pois entre as instâncias norteadoras dos ob­
jetivos da escola não há consenso. Há um conflito de identi­
dade quanto à função do ensino médio, principalmente para
as classes populares, em relação à ausência de preparação
para o trabalho e às chances desiguais de acesso à univer­
sidade. Somam-se também as queixas da sociedade civil no
que diz respeito à precária formação dos jovens que entram
no mercado de trabalho após concluírem o ensino médio re-
50 ÜtDATICA: TECENDO/REIN VENTANDO SABERES E PRATICAS

guiar. Algumas análises históricas (CURY, 1 998; CUNHA, 1 998)


apontam o conflito entre os objetivos do ensino médio que
variam entre o ensino propedêutico, profissionalizante ou de
formação integral.

Os objetivos do ensino médio são norteados, desde 1 996 até


os dias de hoje, pela atual LDB n. 9.394 (BRASIL, 1 996) . in­
cluindo a reforma de 20 1 7 (LEI Nº 1 3 .4 1 5 / 1 7 BRASIL, 20 1 7) .
Segundo a legislação, esse nível de ensino é reconhecido
como a etapa final da educação básica brasileira, destinada
aos jovens de 1 5 a 1 7 anos, responsável pela sua formação in­
tegral, abrangendo as funções de preparação para o trabalho,
garantia de continuicl9':1e d�s estudos e formação como cida­
dão. Mas, como as escolas e, principalmente, os professores
operacionalizam isso?

Pesquisa realizada em uma escola pública de ensino médio


( MESQUITA, 201 6) com professores, gestores e alunos consta­
tou que é praticamente unânime entre os docentes o discurso
de que a função da escola média é formar jovens autônomos
e críticos, a fim de prepará-los para a vida através de uma for­
mação integral. No entanto, a função propedêutica voltada à
preparação para o ensino superior também ganha destaque
na opinião dos professores como um dos papéis prioritários,
associada à ênfase dos conteúdos escolares. A Tabela 1 expõe
o grau de concordância entre os 69 professores da escola in­
vestigada sobre os objetivos da .escola de ensino médio.
'
Pode-se observar que as escolhas se assemelham aos obje­ '

tivos definidos pela legislação que, segundo Cunha ( 1 998), !


conferem ao ensino médio a articulação de três funções: for­
mativa, de garantir a preparação para a vida e desenvolvi­
mento da pessoa humana; propedêutica, a fim de possibilitar 11
o prosseguimento de estudos em nível superior e profissio­ '

nal, pois visa fornecer preparação básica para o trabalho e


conquista da cidadania do educando. No entanto, diante des­
ta ampliação dos objetivos, o desafio está na dimensão que
cada uma destas funções adquire nas escolas e na ação de
cada professor. Pode-se dizer ser esse um dos principais dile­
mas dos docentes quanto à seleção dos conteúdos a ensinar
no ensino médio.
SER PROFESSOR HOJE: DILEMAS E POSSIBILIDADES DE RENOVAÇÃO DA PROFISSÃO 51

Tabela 1: Grau de concordância dos professores


sobre o objetivo principal da escola de ensino medio

Objetivos da escola de ensino médio % de


concordância
Formar alunos críticos e autônomos 89 ,9
Preparar os alunos para o acesso ao ensino superior 77,6
Preparar os alunos para a vida 76,8
Garantir a aprendizagem dos conteúdos escolares 75
Desenvolver a formação integral do cidadão 71
Preparar para o trabalho - sem ser profissionalizante 62,3
Valorizar o esforço/ mérito individual 60,9
Formar lideranças para a soci ed ade 58,8
Assegurar o sucesso escolar (aprovação) 44,9
Promover a felicidade 38,2
Fonte: Elaborada pela autora.

Dentre o total de professores da pesquisa citada, cerca de 60%


reconhece que há problemas com a falta de clareza dos objeti­
vos do ensino médio. Identifica-se constante conflito na busca
dos docentes por adesão aos novos princípios do ensino mé­
dio regular, com base na preparação para a vida e formação
integral dos jovens, pois demonstram dificuldades de opera­
cionalizá-los.
Eu acho muito obsoleto o nosso ensino médio, já não atende mais a
necessidade da sociedade, da juventude. Aqui mesmo a gente sefaz
'
' essa pergunta, somos professores em uma escola de ensino médio,
! mas qual é a nossa cara? A gente está aqui para fazer o quê? Para
preparar o aluno para a universidade? Para preparar para um curso

11 técnico? Porque essa coisa de uma escola conteudista já não se apli­


ca mais, mas, por outro lado, nós fomos formados assim, estamos
'
em um momento de mudança, mas defato como é que a gente vai
fazer essa trapsíção? (Professora de História).

Além disso, os professores destacam que há conflitos de in­


teresses entre os próprios alunos que acessam a escola, mar­
cados por origens sociais e perspectivas diferentes de vida,
o que, segundo os professores e gestores, dificulta não só a
gestão de classe, mas a própria lógica do "o que ensinar?"
52 DfDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

e "para que ensinar?". Reconhecem que na escola há uma


parcela de novos alunos que busca a garantia de entrada no
ensino superior via sistema de cotas, distanciando-se do mer­
cado de trabalho. São jovens oriundos de uma nova classe
média ascendente na região, que apostam no ensino de qua­
lidade pelo prestígio da escola e no benefício das cotas. Por
outro lado, os professores identificam também que há na es­
cola pública a manutenção de um grupo de alunos que, diante
d,a carência de recursos de suas famílias, precisa entrar no
mercado de trabalho precocemente. Estes alunos optam por
estágios remunerados em meio período ou subempregos,
atuando principalmente no comércio. Na opinião dos gesto­
res, é também uma ree.lid<;1de do ensino médio público, de
que somente a lógica do trabalho pode aproximar os jovens
da escola de ensino médio e fazer-lhes algum sentido. Para­
lelamente, há jovens que se apresentam na escola com baixas
perspectivas de futuro e ausência de objetivos concretos, que
não se interessa nem pelo prolongamento dos estudos nem
pela preparação para o mercado de trabalho.

É claramente o dilema trazido pela heterogeneidade da ex­


pansão da escola e a ambiguidade dos objetivos oficiais que
dificulta a ação dos professores e favorece interpretações di­
ferentes da realidade por parte de seus atores. Na realidade
da escola de ensino médio, comparando a atuação dos pro­
fessores com os discursos, é possível identificar duas lógi­
cas de ação predominantes. A primeira se baseia na prática
docente que concebe ênfase aos conteúdos historicamente
construídos para alcançar os objetivos ligados à preparação
para a vida e cidadania. Adota-se a crença de que o acesso
ao conhecimento sistemático pode garantir formação inte­
gral para os jovens. Estes professores reproduzem o modelo
lll de ensino médio propedêutico, com enfoque nos conteúdos
científicos, na maioria das vezes, descontextualizados; na
preparação para o acesso ao ensino superior e no predomí­
nio da lógica fragmentada do ensino dividido por disciplinas.
Além disso, são professores que parecem continuar acredi­
tando que os conteúdos ministrados por eles são adequados
às necessidades dos alunos, pois não reconhecem a necessi­
dade de alterações curriculares como estratégia para melhor
formação média dos alunos.
SER PROFESSOR HOJE: DILEMAS E POSSIBILIDADES DE RENOVAÇÃO DA PROFISSÃO 53

1, Mas, quanto às possibilidades? Há professores que questio-


nam este modelo da escola propedêutica e enciclopédica ado-
tando uma lógica de ação diferente, mais voltada para a for-
mação integral dos alunos, a fim de construir sua cidadania e
com foco também na preparação para o trabalho. Para isso,
optam em suas aulas por escolhas metodológicas mais partici­
pativas e pela conquista do interesse dos alunos pelos conteú­
dos como condição para alcançar os objetivos. A partir deste
ponto de vista, centrado na realidade do aluno, esses docentes
investem mais em projetos integradores e interdisciplinares
para fomentar a adoção de práticas pedagógicas mais parti­
cipativas e para apresentar opções de conhecimentos contex­
tualizados com a vida dos alunos. Investe-se também na par­
ceria com os jovens e no seu protagonismo como formas de
conhecer sua realidade e seus anseios, além de estimular seu
: desenvolvimento pessoal.

Na pesquisa citada (MESQUITA, 20 I 6), foi possível identificar


que os professores que adotam essas práticas são indicados
pelos alunos como os professores que mais contribuem para
o sucesso de seu processo de aprendizagem. Esses próprios
professores afirmam que a efetividade de seu trabalho com
, os novos alunos parte da compreensão da realidade dessa ju­
.
ventude, procurando identificar os múltiplos sentidos que atri­
buem à escola. Assim, ter clareza das funções deste segmen­
to do ensino e ser capaz de reconstruí-las de acordo com os
objetivos dos jovens e da realidade local parece ser uma das
possibilidades de superar a dicotomia entre objetivos oficiais
e objetivos reais.

2º Dilema: Entre o desprestigio social


e a satisfação profissional

Estudos com professores que obtiveram bons resultados no


processo de ensino-aprendizagem dos alunos (CUNHA, 1 996;
MESQUITA, 2016; BRESSOUX, 2003) apontam para a vivên­
cia de uma relativa satisfação profissional entre os docentes.
Porém, constata-se que há conflitos, frustrações e momentos
de desânimo, intercalados com sentimentos de euforia, pra­
zer e motivação, o que parece ser uma realidade observada
54 0JDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

nas condutas sociais dos indivíduos a partir da modernidade:


a não p adronização de modelos identitários, tanto pessoais
quanto profissionais. O reconhecimento da influência da pró­
pria subjetivação na ação social dos indivíduos, defendido
por Dubet ( 1 994), ou da individualização no processo social,
trazido por Elias ( 1 994) , permitem múltiplas possibilidades de
desenvolvimento pessoal e até certa instabilidade no proces­
so, mesmo diante da pressão dominante pela integração aos
papéis sociais historicamente construídos.

De um lado, há motivação para o desempenho da profissão,


quando relacionada com as imagens de sucesso de seus alu­
nos, atribuído aos pap�is�ue.a escola e cada professor desem­
penham em suas vidas. Tal situação favorece um sentimento
de valorização e de reconhecimento que, segundo os profes­
sores, somente o trabalho com o outro consegue garantir.
Eu tenho o melhor trabalho do mundo, eu sou apaixonada por
isso, eu acho realmente que a gente, professor, tinha que ser valo­
rizado. Eu tenho 15 tunnas, por volta de 600 alunos, que eu pego
por semana. Olha quantas pessoas eu influencio com a minha
postura, com a minha fala, minha ética. Ouvi-los retornando pra
mim e dizendo: "Professora eu.fiz histón·a por causa da senhora.";
dá até vontade de chorar. É muito gratificante esse retorno.
(Professora de História).
Prestígio a gente recebe de nós mesmos, um professor sabe que
é importante. Eu sou um profissional que faz a diferença e pron­
to. Eu sou muito de me valorizar, trata-se de um processo na- .
tural, você tem prestígio é daquilo que você sabe quefaz.
(Professora de Matemática).

Observa-se que para alguns professores as ideias de carreira


e prestígio estão diretamente relacionadas ao retorno dado
pelo desempenho dos alunos e ao sucesso que esses alcan­
çam dentro da ideia de futuro. "Eu me realizo no outro", afir­
mou um professor (MESQUITA, 20 1 6) reforçando a tese do
trabalho docente como um trabalho sobre o outro (DUBET,
2002) , marcado pelas interações humanas (TARDIF E LES­
SARD, 2005) . Por outro lado, há críticas ao desprestígio social
da profissão e a não valorização do desenvolvimento da car­
reira, principalmente, quanto às questões salariais e à sobre­
carga de trabalho.
SER PROFESSOR HOJE: DILEMAS E POSSIBILIDADES DE RENOVAÇÃO DA PROFISSÃO 55

Infelizmente a gente tem que trabalhar muito para ganhar bem, eu


não posso dizer hoje para você que eu ganh o mal (. .. ), mas inf,eliz­
mente tenho que trabalhar m uito. E isso atrasa o desenvolvimento
de minha carreira, eu quero muito voltar a estudar, mas não posso
ainda abrir mão de ganhar o que ganho. O professor é um acadê­
mico também, ele é um cara que pensa, que precisa estar partici­
pando de um debate intelectual e justamente isso falta na escola
pública (Professora de Ungua Portuguesa).
A carreira de professor não tem prestigio. Quando falam assim: ele
é professor? Coitado! Isso me desqualifica como professor, eu não
sou coitado, eu tenho valor! A gente está totalmente desprestigiado,
tanto pelo aluno quanto pela sociedade de forma geral (Professor
de Matemática).

Paralelamente, os docentes manifestam que a realidade atual


das escolas tem provocado frustrações em alguns profissio­
nais. Predomina, algumas vezes, a ideia de que o fazer do­
cente é um trabalho impossível de ser feito dentro das atuais
condições de trabalho. Observa-se que tais frustrações po­
dem provocar até três tipos de situações: aceitação passiva
da situação, com a adoção da postura "o professor finge que
ensina e o aluno finge que aprende"; sentimento de fracasso
e culpabilização pessoal pelos baixos resultados do trabalho,
gerando situações de estresse ocupacional e mal-estar e até o
abandono da profissão.

Quanto às possibilidades, os professores bem-sucedidos no


desafio de "ensinar para os novos alunos" acreditam que mui­
tas das situações de frustração com a profissão ocorrem pela
forma distanciada como alguns docentes concebem o exercí­
cio da docência. Não querer se envolver ou apostar em uma
postura é negar a própria profissão, contribuindo para cons­
tituir profissionais insatisfeitos, afirmam os bons professores.
Tem colegas que não querem ser professor, porque não gosta, mas
caiu de paraquedas na profissão e os alunos percebem isso. Alguns
acabam falando até em sala de aula, num momento de desabafo:
"Eu estou aqui só por causa de dinheiro''. Você, ao contrário, tem
que deixar claro que você se importa, é um trabalho. É um trabalho
diferente que todo mundo passa pela escola. Esses dias eu ouvi uma
_frase interessante, que a escola não transforma o mundo, a educa­
ção tran�orma as pessoas (Professora Isabel).
56 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

Tem professor que acha o trabalho relacional uma desqual!ficação


da nossa profissão, adota uma distância e fala: "Eu sou pago para
dar aula, isso aí vem de casa, quem tem que dar é o pai", tem gente
que não tem essa relação do carinho com a profissão e com os alu­
nos (Professora Ana).

Pode-se perceber que os professores que demonstram maior


satisfação profissional se reconhecem como profissionais bem­
sucedidos e atribuem suas conquistas materiais ao trabalho
que exercem. Estes docentes, além de apostarem nas relações
com os alunos, envolvem-se emocionalmente com a docência,
participam da gestão da escola, quase não faltam às aulas e
não cogitam sair do magistéri9. Há, portanto, a necessidade de
desenvolvimento de uma competência relacional desenvolvida
pelos docentes ao longo dos anos e que lhes permitem sobrevi­
ver e, especialmente, tornar o trabalho educativo útil em con­
textos de trabalho marcados pela heterogeneidade dos alunos
e pela perda da legitimidade do princípio da autoridade docen­
te em sala de aula (BARRÊRE, 2002).

Maroy (2002) ao tentar explicar os determinantes da satisfa­


ção profissional dos professores conclui que:
As condições concretas em que trabalha o educador têm um pa­
pel chave na explicação. No entanto, nessa "condição de ensi­
no", não são as "condições materiais" que contam (a variável
tem pouca ou nenhuma importância); são essencialmente as
características relativas às atitudes dos alunos (sobretudo aque­
las que condicionam a dificuldade do trabalho educacional ou a
frequência dos problemas disciplinares) e o estado das relações
sociais no estabelecimento que são determinantes (Ibid, p. 162) .

3° Dilema: Entre a autonomia profissional


pretendida e a autonomia alcançada

A ausência de autonomia profissional no exercício da docên­


cia é uma das características que configura o pouco reconhe­
cimento social da profissionalização do trabalho dos profes­
sores (TARDIF, 2 0 1 3 ) . A pouca valorização de seu trabalho, a
dificuldade da gestão de classe, as políticas regulatórias exter­
nas e a perda de autoridade dos professores são elementos que
SER PROFESSOR HOJE: DILEMAS E POSSIBlLIDADES DE RENOVAÇÃO DA PROFISSÃO 57

contribuem com a diminuição desta autonomia? Convocando


os professores para opinar (MESQUITA, 2 0 1 6) . a maioria reco­
nhece que possuem autonomia pedagógica por conseguirem
manter o controle sobre o seu trabalho, principalmente dentro
da sala de aula, sobre suas escolhas metodológicas, seleção
de novos conteúdos e até pela possibilidade de refletirem so­
bre sua prática. Além disso, tanto a crise de autoridade quanto
os problemas de reconhecimento e valorização das ações do­
centes, por parte dos alunos, parecem ser vistos pelos profes­
sores mais como lógica de mudança e de superação da atual
forma escolar do que de perda de status do papel do professor.

Canário (2006) reconhece que a situação de crise da escola e


do próprio trabalho do professor pode ser vista como sinônimo
de mudança. Para o autor, é possível que se encontrem novos
caminhos, desde que as diversidades e os possíveis problemas
ou crises sejam usados como estímulos para criar soluções
inovadoras. Em entrevista sobre como a escola deve transfor­
mar problemas em soluções, o autor argumenta:
Muitos afirmam que o descaso dos alunos impede a escola de
ser eficiente. Em vez de se conformar, que tal incentivar a cria­
ção de projetos que possam ser desenvolvidos pelos educandos,
tratando-os como capazes de produzir e não como aprendizes
que só têm a receber? É dificil não haver engajamento quando
as pessoas se tornam sujeitos e atribuem um sentido positivo ao
trabalho que realizam. O que parecia um obstáculo -a falta de
envolvimento- virou um caminho para atingir os objetivos. ( . . . )
Os principais recursos da educação são as pessoas, os saberes
e as experiências de mobilização. Com isso, não há escolas po­
bres (CANÁRIO, 2009).

A construção da autonomia por parte do professor constitui


um processo constante. Com isso, ao conquistar a autono­
mia, o docente conquista o controle sobre o próprio trabalho,
desenvolvendo uma autoridade profissional, afirmam Formo­
sinho e Machado (2009). Estas análises permitem supor que
mesmo diante das políticas regulatórias do Estado, da pressão
do tempo e dos problemas relacionais com os alunos, os pro­
fessores do ensino médio não parecem ter uma consciência
trágica de seu trabalho. Para Dubet (2002) isto ocorre, porque
os docentes normalmente têm o poder de articular as diferen-
58 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRAT!G:AS

tes lógicas de sua atividade, dando sentido a suas ações. E


quais são estas lógicas?

Segundo Dubet (op. cit.), os professores podem até sentir que


mantém baixo controle pelo seu trabalho, mas como são os
únicos a criar as regras diretas de sua sala de aula, a estabelecer
o clima e a tonalidade da classe, são capazes de objetivar o seu
trabalho. Os docentes têm ciência de que são eles que produ­
zem resultados nos alunos, que percebem as transformações e
medem seus progressos, principalmente a partir dos resultados
que os alunos produzem. Com isso, os avanços dos alunos fa-
zem os professores se sentirem bem e conferirem a si mesmos
o prestígio da profiss,�Q.!).S sim, os professores acreditam que o
seu trabalho nãosofreu'fanto ·com a racionalização e conside-
ram que seguem autônomos e líderes do jogo da sala de aula.

Como possibilidades os professores apostam em compreender


a sala de aula como um jogo, que envolve claramente a sua
ação docente, sua liderança, suas escolhas metodológicas,
suas formas de se relacionar e até de conceber o ensino e seus
objetivos. Além disso, são capazes de rever constantemente
as regras deste jogo e modificá-las se necessário, o que lhes
confere autonomia. Reconhecem também que este jogo da
sala de aula tem regras externas, burocráticas e institucionais,
mas não as veem como obstáculos a sua atuação docente.

Outras possibilidades de superação do dilema sobre a perda


ou não da autonomia profissional docente são apontadas por
diferentes pesquisadores. Segundo Barroso (2005), a autono­
i'
mia no ambiente escolar é sempre relativa, pois a educação
integra um modelo de instituição socializadora, portanto uma
série de interesses sociais e culturais a norteiam. Tardif (2005)
complementa ao afirmar que a autonomia de uma profissão
passa pela existência de um conjunto de conhecimentos es­
pecíficos como garantia de seu exercício eficaz. No caso do
magistério, trata-se de um conjunto de conhecimentos peda­
gógicos construídos tanto no processo formativo-acadêmico
como nas experiências vivenciadas. Para Contreras (2002), a
autonomia dos professores pode ser compreendida como uma
' ,i
forma de ser e de estar dos docentes em relação ao mundo em
que vivem e atuam como profissional, influenciada também
'
,[
' !
SER PROFESSOR HOJE: DILEMAS E POSSIBILIDADES DE RENOVAÇÃO DA PROFISSÃO 59

pelas formas e efeitos políticos de como a sociedade concebe


esta profissão. Pimenta (2002) complementa que quando se
reconhece que os professores não se limitam a executar cur­
rículos, mas sim a reelaborá-los, reinterpretando a partir do
que pensam, creem e valorizam, pode-se falar em autonomia
profissional.

Com isso pode-se refletir que o professor realmente autônomo


adquire certo "poder" via especialização pedagógica e domínio
de conhecimentos específicos que o tornam um profissional
único, que domina sua área de atuação e seu trabalho. Cons­
tata-se a existência de uma relação de "poder" dos professores
sobre o ensino. No entanto, em algumas realidades, o "poder"
dos professores se configura apenas em uma relação hierár­
quica que dita a organização escolar e a gestão de classe.

Na sala de aula, por exemplo, o "poder" dos professores é in­


discutível. Cada professor define de forma autônoma seu con-
junto de normas e regras, além do ritmo da classe. As escolhas
metodológicas e estratégicas, os critérios de avaliação, a in­
corporação de novos conteúdos são estritamente definidos por
cada docente. Como afirma Dubet (2002), "cada professor é o
único proprietário de sua classe". Por outro lado, consegue-se
identificar que este 'poder' dos docentes os mantém em um
quadro de isolamento, marcado por poucas trocas, e em um
conceito de autonomia, marcado pelas relações hierárquicas.

Mesmo que os professores se reconheçam como autônomos,


seja no exercício de seu "poder" de decisões em sala de aula
ou pela adoção de uma prática reflexiva e baseada em recons­
truções, há uma série de elementos regulatórios que atuam
sobre o fazer dos professores na atualidade, como o controle
de resultados através de testes padronizados externos e asso­
ciado à padronização curricular; políticas de bonificações para
escolas eficazes e/ou de desempenho docente dissociados da
análise das condições de trabalho e do contexto; definição dos
instrumentos de avaliação via legislações reguladoras, além
da pressão pela aprovação dos alunos, pela realização de pro­
jetos externos e pela limitação da carga horária dos compo­
nentes curriculares. No entanto, o maior elemento regulador,
que mais impacta esse "poder" dos professores, é o tempo.
60 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

O tempo se torna reduzido diante do modelo de organização


escplar, da carga de trabalho individual de cada docente, da
necessidade de cumprir uma série de ações burocráticas e das
próprias concepções dos professores sobre os objetivos do en­
sino e o que ensinar.

4° Dilema: Entre a lógica do tempo institucional


e o tempo real

Depois do conflito de objetivos da escola, o tempo parece ser


para os professores um dos dilemas profissionais mais impac­
tantes. Docentes afirmam "sofrer" constante pressão do tempo
para dar conta das lnúrrre'ras correções de atividades que pre­
cisam realizar e dos conteúdos que necessitam desenvolver
para cumprir o currículo em sala de aula. Pode-se perceber
que a limitação do tempo está diretamente ligada aos anseios
dos docentes em relação à própria educação, ao que gosta­
riam de fazer e ao que acreditam ser o melhor ensino.
Se eu pudesse, minha aula seria totalmente diferente, eu levaria os
alunos para ver vídeos, usaria mais os laboratórios, pois eu tenho
muito material para as aulas de História. Mas não há tempo! Você
mal começa o bimestre com uma lista de conteúdos para desenvol­
ver, mas quando vê, já está na semana de avaliação, precisafechar
notas, dar recuperação (Professora de História).
Você viu a lista de conteúdos que Língua Portuguesa tem que de­
senvolver em um bimestre? Você nem pode ficar doente, tem que
dar conteúdo todo dia e nem dá tempo de passar e corrigir os exer­
cidos! (Professora de Língua Portuguesa).

As constatações sobre a ampla jornada de trabalho dos profes­


sores, o número de turmas/alunos, os tempos de aulas estipu­
lados pela grade curricular, os processos de avaliação externas
e até internas, encarceram o trabalho destes docentes dentro
de uma estrutura delimitada por fronteiras temporais marcan­
tes. A lógica, tanto temporal quanto espacial, imposta para a
prática pedagógica aprisiona o professor dentro dos muros or­
ganizacionais, limitando sua criatividade, sua inventividade,
seu diálogo com os pares e até seus momentos formativos.
A necessidade de um processo contínuo de inovação em sala de
aula é evidente. Contudo, a escassa formação e a falta de tempo
SER PROFESSOR HOJE: DILEMAS E POSSJBJUDADES DE RENOVAÇÃO DA PROFISSÃO 61

dedicado à reflexão podem vir a impedir essa dinâmica e manter


os professores utilizando modelos de ensino que sejam ao mes­
mo tempo tradicionais e repetitivos (MARCHES!, 2002, p. 18).

Observa-se que, na maioria das vezes, este modelo de escola


limita o trabalho dos professores e não o reconhece como pro­
dutor autônomo de novas estratégias com vistas a encontrar
alternativas contextuais para a melhoria do ensino. O mode­
lo organizacional da escola de ensino médio, segundo pro­
fessores entrevistados, parece dificultar o uso dos recursos e
equipamentos didáticos, como a utilização dos laboratórios e
aulas experimentais. Os professores alegam que se perde mui­
to tempo com o deslocamento dos alunos para tais espaços,
a preparação dos mesmos é morosa, os problemas técnicos
muitas vezes demoram a ser sanados, com isso o tempo da
aula não é otimizado e predomina o sentimento de que "se
perdeu" a oportunidade de ensinar (MESQUITA 2 0 1 6 ) .

Observa-se também um descompasso entre a s lógicas tem­


porais dos alunos e da escola, seja em relação aos atrasos
constantes dos alunos, a não organização do seu tempo para
realização das tarefas de casa e até mesmo a dificuldade de
manter-se em sala de aula por longos períodos de tempo. Se­
gundo ressalta Thin (2006) , a forma escolar é, antes de tudo,
caracterizada por espaços e tempos específicos que entram
em conflito com as lógicas temporais das famílias de classe
popular que acessam a escola. Para o autor, o mundo da es­
cola é u m mundo de regularidade temporal, marcado tanto
pelos horários e calendários escolares como pela sucessão de
atividades pedagógicas organizadas de acordo com os em­
pregos do tempo. No caso das famílias populares são outras
temporalidades que aparecem. Por um lado, trata-se de famí­
lias cujos membros são socializados em universos nos quais
as relações com o tempo objetivadas em agendas, calendá­
rios, relógios etc. têm pouco lugar, porque eles são pouco
escolarizados ou porque vêm, pela emigração, de universos
culturalmente afastados desse tipo de racionalidade temporal
(THIN, 2006, p 220) .

Com isso, limitados pelo tempo, os professores acabam por


abrir mão de práticas inovadoras, de participação em projetos,
62 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

de busca por entrosamentos e até de espaços de formação


continuada, para priorizar o aligeiramento das ações educati­
vas, renunciando sua autonomia. A impossibilidade de maxi­
mizar o tempo, por excesso de racionalização e intensificação
do trabalho docente, segundo Contreras (2002), favorece a ro­
tinização e pouca reflexão, facilita o isolamento, desqualifica
intelectualmente e degrada as competências dos docentes. O
professor tem o seu trabalho reduzido a uma sobrevivência
diária, a fim de dar conta de tarefas meramente instrumentais
que precisa cumprir em primeira instância.

Hargreaves ( 1 998) aprofunda mais a interpretação das rela­


ções dos professorel)co qi .º tempo ao apresentar o conceito
de te
m po fenomenológiêlJ. Para o autor, trata-se de uma di­
mensão subjetiva do tempo, que não é o mesmo entre os ór­
gãos gestores e os professores. Para os docentes, em sala de
aula, o tempo sempre parece pouco para as suas ações co­
tidianas e para inovações. Segundo Hargreaves (op. cit.), os
professores se veem constrangidos pelo tempo que estrutura
o ensino, apontando-o, muitas vezes, como o empecilho para
a mudança. Além disso, a hegemonia do tempo administra­
tivo, através de maior controle do tempo de ensino e menos
"tempo livre", pode levar à intensificação do trabalho docente.
Segundo o autor, devolver o tempo aos professores fará com
que ele deixe de ser um inimigo para tornar-se um aliado.

Resta, com isso, a busca por alternativas adaptativas como


possibilidades de otimizar o tempo no dia a dia da escola.
Constata-se que durante as aulas, otimizar o tempo disponível
para o ensino, apesar das influências externas organizacionais
e regulatórias, é o grande desafio dos professores. Análises
sobre aproveitamento do tempo desde o início das aulas, pas­
sando pela sequência didática adotada e o encerramento da
mesma, indicam que há diferenças importantes a serem con­
sideradas entre as práticas adotadas pelos docentes.

Professores que constroem uma gestão da classe a partir das


interações com os alunos parecem não precisar perder muito
tempo para iniciar as aulas por conta de dispersão dos alunos.
Esses docentes, ao entrarem na sala, já atraem a atenção dos
alunos que se mostram, muitas vezes, ansiosos para interagir
SER PROFESSOR HOJE: DILEMAS E POSSIBILIDADES DE RENOVAÇÃO DA PROFISSÃO 63

ao iniciar a aula. Nas sequências didáticas desses professores,


os alunos não permanecem muito tempo ociosos ou copiando
atividades muito longas do quadro. Além disso, corno os pro­
fessores contam com o interesse e empenho dos alunos já con­
quistados, esses não se demoram nas atividades, pois as reali­
zam com entusiasmo e compromisso, maximizando o tempo.
Nas aulas de longa duração, com cerca de 2 horas e meia, al­
guns professores chegam a propor entre seis e oito atividades
de curta duração, intercalando entre algumas mais interativas,
corno perguntas e respostas orais, e outras de caráter indivi­
dual, como registro e realização de exercícios. Os alunos são
ainda incentivados a terminarem as atividades no menor tem­
po possível através do acompanhamento e ajuda dos docentes
diante das dificuldades e dispersões.

Professores que otimizam bem o tempo de suas aulas mostram­


se menos ansiosos com o cumprimento dos prazos, dando mais
tempo para os alunos se expressarem, criando mais situações
que envolvam sua participação e utilizando os erros dos alu­
nos corno oportunidade de aprendizagem e não corno punição.
Corno visto, os professores que adotam urna seleção de con­
teúdos prioritários baseados na contextualização conseguem
se "libertar" da pressão temporal de cumprir urna lista longa
de conteúdos. Esses docentes conseguem qualificar melhor o
tempo, objetivando sua prática pela aprendizagem significativa.
A gestão do tempo é crucial na determinação da eficácia do ensi­
no. Certificar-se de que as aulas se iniciam e terminam no horário
é tão crucial quanto minimizar o tempo em assuntos administra­
tivos d e rotina, intervenções disciplinares ou mudanças de um
tópico/matéria/atividade para outro. Maximizar a proporção de
tempo que é gasto na interação com os alunos pode ser particu­
larmente importante (BROOOKE E SOARES, 2008, p . 3 1 6) .

Considerações finais

Ao longo dos debates sobre os dilemas para se ensinar na


escola de hoje são apontadas possibilidades encontradas pe­
los próprios professores para enfrentá-los. Tais possibilida­
des contribuem para refletir sobre o desenvolvimento de uma
nova profissionalidade docente com vista a conferir distinção
profissional. Se compreendermos que a ação de ensinar no-
64 Ü!DATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

vos alunos precisa ser uma ação intencional de fazer apren­


der alguma coisa a alguém, a prática reflexiva parecer ser o
caminho encontrado pelos professores em sua prática a fim
de superar a dificuldade de ensinagem (CANARIO, 2005) . Tal
prática reflexiva se configura pelo diálogo dos pelos profes­
sores, entre os conhecimentos científicos e pedagógicos, com
os conhecimentos dos alunos e o contexto. A visão analítica
e r,eflexiva do professor imprime compromisso e responsabili­
zação social com o seu fazer, exigência para consolidação de
uma profissão com reconhecimento pela sociedade.

Além disso, o debate de cada dilema permitiu a reflexão so­


bre as concepções qué'.. J;p1nsitam entre os docentes sobre os
objetivos da escola, a-s -êxpettativas em relação à profissão, a
compreensão sobre sua autonomia e o lugar do tempo. Fica
evidenciado como tais concepções orientam a postura profis­
sional do docente e o sentido que conferem à própria profis­
são. Além disso, identifica-se uma variedade de concepções
marcadas por combinações e até contradições de um mesmo
grupo de docentes diante da complexidade da escola de hoje.

Em consonância com a afirmação de Nóvoa (20 1 7) de que "fir­


mar a posição como professor afirma a profissão", destaca-se
a necessidade de cada professor reconhecer que:

1 . Há um confronto constante entre um perfil docente impos­


to pelo estatuto profissional (padrões de conduta, normas,
objetivos) e a realidade da docência vivida diariamente,
não mais adequada aos modelos estabelecidos. A ação do­
cente precisa deixar de ser um papel e passar a ser uma
experiência em que os valores não são mais evidentes e
transcendentes, são redefinidos e reconstruídos nas dife­
rentes situações. Assim, dizer "sou professor", não inscreve
o sujeito e m uma identidade totalmente pré-definida, pois
a própria profissão confere múltiplas abordagens e con­
cepções sobre tal papel. Há uma tensão constante entre as
lógicas impostas pelo padrão social, pela subjetividade do
ator e pela própria atividade que ele precisa desempenhar.

2. Os professores e sua nova profissionalidade capaz de li­


dar com a complexidade da escola, não são apresenta-
SER PROFESSOR HOJE: DILEMAS E POSSIBILIDADES OE RENOVAÇÃO DA PROFISSÃO 65

dos como um modelo ideal de professor ou assumem a


figura do super professor vocacionado. Os docentes são
trabalhadores do magistério a desenvolver um ofício que
exige comprometimento pessoal, compreensão do outro
e superação das limitações diárias de uma crença quase
utópica no poder transformador e formador de vidas via
escola. Na escola de hoje o grande desafio é o lidar com
a classe, como um dos requisitos elementares para que o
processo de ensino se estabeleça. Por isso, é preciso reco­
nhecer que um dos elementos dessa nova profissionalidade
se pauta no desenvolvimento de uma competência relacio­
nal docente baseada na interação com outro, no reconhe­
cimento da diferença, na variedade de estratégias e na que­
bra de estereótipos, tanto de alunos quanto de professores.

3. Os professores que apontam as possibilidades de "ensinar


aos novos alunos" compartilham a crença na profissão, re­
conhecem seu compromisso com os bons resultados dos
alunos e demonstram satisfação pela docência. São profes­
sores profissionais que, segundo Formosinho (2009), valo­
rizam os princípios pedagógicos e didáticos, reconhecen­
do o conjunto desses conhecimentos como norteadores da
profissão. São docentes que compreendem o acompanha­
mento do desempenho docente como forma de desenvol­
vimento profissional e por conta desta postura tornam-se
mais p ropensos a desenvolver sua profissionalidade pela
articulação entre teoria e prática. No entanto, não se trata
de professores que adotam modelos padronizados em suas
práticas. São professores que desenvolvem estilos próprios
de ensinar e, por isso, se diferenciam, seja por fatores sub­
jetivos, como o grau de interesse e de motivação, seja pelas
trajetórias de vida pessoal e profissional ou pelas compe­
tências adquiridas.

Pode-se concluir que novos professores para novos alunos pre­


cisam prioritariamente superar a opção pela docência como
uma opção passageira ou de menor prestígio. Professores, ao
assumir a profissão e marcar uma posição (N ÓVOA, 20 I 7), po­
derão consolidar uma nova profissionalidade e uma verdadeira
distinção profissional entre dilemas e possibilidades.
66 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

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. , ?:
1i CONSTRUINDO
, SABERES,
l
TECENDO
! SENTIDOS
72 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

Cinthia Monteiro de Araujo


UFRJ
73
1
POR UMA ECOLOGIA DE SABERES ESCOLARES

1
"
i
:ii

H á dez anos, Vera Maria Candau nos interpelou com a


questão "Professor/a: profissão de risco?"'. Dentre ou­
tras provocações, a autora se/nos perguntava "Entre saberes
e culturas: o que ensinar?". Naquela ocasião, Candau já cha­
mava atenção para a situação sociocultural e peculiaridade
epistemológica do conhecimento escolar, reiterando-o:
( ... ) como uma construção espec[fica do contexto educacional, em

1 que o cruzamento entre diferentes saberes, cotidianos e/ou so­


ciais e científicos, referenciados a universos culturais plurais, se
[
i
dá no dia a dia das escolas em processos de diálogo e confronto,
permeados por relações de poder. ( ... ) Trata-se de uma constru­
1 ção permeada por relações sociais e culturais, processos com­
r plexos de transposição/recontextualização didática e dinâmicas
que tem de ser ressignificadas continuamente (CANDAU, 2009,
P. 94-95) (grifo meu) .

O tema da especificidade do saber/conhecimento escolar vem


sendo tratado pelos campos da Didática e do Currículo há al­
gumas décadas, como por exemplo em Forquin ( 1 992) ( 1 993)
e Lopes ( 1 997) ( 1 999) (2007) , para citar apenas alguns dos au­
tores mais lidos e referenciados no Brasil no âmbito dessa te­
mática. Contudo, Candau é uma das pioneiras em articular a
essas já complexas questões a problemática das identidades e
diferenças cu.lturais2 no âmbito do trabalho docente.
l Texto publicado na r� "ista Nueva/Novamerica, n. 1 1 8, junho, 2008 (p. 60-65) e no
livro Didática: questões CL· "temporâneas. Rio de Janeiro, Editora Forma e Ação, 2009,
p. 93-98.
2 A autora tem vasta produção que discute esta temática sob vários ângu los e abor­
dagens. Destaco aqui apenas dois de seus textos, com os quais dialogo diretamente
neste trabalho (CANDAU, 2009) e (CANDAU, 2 0 1 4) .
74 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

Partindo da premissa que afirma o professor como um agente


sociocultural, a autora identifica alguns desafios que estamos
chamados a enfrentar na direção da exigência de ressignifi­
cação da escola. O primeiro deles se refere à forte tradição
moderna que a instituição ainda carrega.
A escola, tal como a vivenciamos na atualidade, é certamente uma
das instituições mais representativas da modernidade. Tem como
horizonte de sentido a formação do sujeito moderno, que dispo­
nha das habilidades cognitivas e éticas necessárias ao exercício
de uma cidadania democrática. Para tal, encara os sujeitos da
educação como iguais e chamados a adquirir uma cultura co­
mum, fortemente valorizada para a construção de uma identi­
dade nacional (CANDA.\J, 2 0 1 4, p. 35) (grifo meu) .
" ·, '�. .

Diante desse desafio, Candau aponta para a necessidade de


pensarmos a crise da escola de uma forma menos superficial,
contextualizando-a num processo mais amplo de questiona­
mento do próprio modelo de sociedade na qual ela se situa.
Nessa direção, parece pertinente olhar com atenção para as
construções críticas situadas no campo das teorizações pós­
modernas, que, como reconhece a autora, constituem uma
"expressão certamente polissêmica, mas carregada de inquie­
tudes e novas problematizações" (20 1 4 , p. 35).

A emergência de demandas referentes às identidades e dife­


renças culturais pode ser considerada como aspecto relevante
desse contexto, e não devem deixar de ser encaradas. Este é
o segundo desafio apontado pela autora, frente ao qual des­
taca a premência em se romper com o caráter monocultura!,
homogeneizador e padronizador da escola. Seguindo Angel
Perez Gómez , afirma que:
A escola deve ser concebida como um espaço ecológico de cruza­
mento de culturas, cuja responsabilidade específica que a distin­
gue de outras instâncias de socialização e lhe confere identidade
e relativa autonomia, é a mediação reflexiva daquelas influências
plurais que as diferentes culturas exercem de forma permanente
sobre as novas gerações (CANDAU, 2 0 1 4 , p. 35) (grifo meu) .

Para lidar com essa escola, a autora defende que tanto nas
práticas pedagógicas como na formação de professores sejam
considerados principias pautados numa perspectiva intercul-
POR UMA ECOLOGIA DE SA5ERES ESCOLARES 75

tural. Dentre eles destaco como duas das estratégias sublinha­


das o desvelamento do daltonismo cultural e a afirmação da
ancoragem histórico-social dos conteúdos.

Provocada por essas concepções - destacadas em sua expres­


são síntese em cada uma das citações da autora em destaque
e reproduzidas como títulos das seções - pretendo no presente
trabalho defender os saberes escolares em seu potencial para
se constituírem como uma ecologia de saberes. Em cada uma
das três seções desse texto vou explorar potencialidades das
categorias saber escolar, conforme significadas por Carmen
Teresa Gabriel (20 1 7) na articulação com as concepções de
Boaventura de Sousa Santos (2006, 2008, 20 1 3 e 20 1 7) refe­
rentes a crise do paradigma da modernidade e a proposição de
uma justiça epistemológica.

Uma construção específica do contexto


educacional

Essa primeira ideia, que se refere a condição epistemológica


do saber escolar, já é bastante consolidada no campo edu­
cacional, como referido anteriormente. Nesta seção do texto,
quero abordá-la no sentido de reconhecer aqui sua potência
na direção da construção de uma ecologia de saberes. Para
tanto, o diálogo com Gabriel (20 1 7) ganha centralidade'.

Segundo a autora, saber escolar é uma das categorias analí­


ticas possíveis para "nomear e explicar a natureza, estrutura,
função e/ou funcionamento dos objetos de ensino e aprendi­
zagem específicos das instituições escolares" (20 1 7, p. 7) . Essa
categoria ganha destaque aqui exatamente por sublinhar a es­
pecificidade desse lugar de análise, que é o da epistemologia
social escolar. Dito de outra forma, as potencialidades desta
categoria para a construção de diálogos interculturais entre
saberes se desenham nesse texto por meio da construção de
proximidades com as potencialidades heurísticas da categoria
analítica apresentada por Gabriel.
3 No texto referido, a autora explora as tensões e perspectivas dos saberes escolares
no âmbito do ensino e aprendizagem de História. Apesar de compartilhar com Gabriel
dos mesmos interesses e problemas de pesquisa, neste trabalho pretendo me concen­
trar nas características mais gerais da categoria analisada.
76 DroATlCA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

A primeira potencialidade é considerarmos os usos e as discus­


sões em tomo da categoria como "porta de entrada" no debate
político sobre o papel da escola na nossa contemporaneidade.
A autora afirma que discutir o processo de constituição de sa­
beres escolares é um movimento de localização do papel da
escola como instituição de relevo na construção de um projeto
político cultural de sociedade. É reforçar que a escola, a despei­
to da perda do monopólio do saber reconhecido diante da am­
pliação das novas tecnologias da informação e comunicação,
ainda é o "único Jócus onde é possível, de um lado, estruturar e
sistematizar os saberes fragmentados, criados em outros luga­
res e, de outro, socializar os saberes considerados e legitimados
como dominantes" (Gftb!iel 291 7, 9) . E a forma que a escola
lida com esses distintos ·saberes se relaciona diretamente com
sua forma se inserção e participação no processo de construção
mais ampla de um projeto político cultural. Enfrentar o tema
dos processos de construção e representação das identidades e
diferenças é uma forma de se posicionar nesse debate.

A segunda potencialidade apresentada por Carmen Teresa


Gabriel é o reconhecimento de que a categoria saber esco­
lar oferece pistas para lidar com a tensão entre epistemolo­
gia e poder. Diante da crise paradigmática que qualifica nossa
contemporaneidade4, essa entrada no terreno epistemológi­
co exige uma tomada de posição frente às disputas presentes
no campo. As críticas tecidas à hegemonia da razão ocidental
moderna - com as quais concordo e as explorarei na próxi­
ma seção - , quando tensionadas ao máximo, podem ser con­
fUndidas com a própria pertinência do debate epistemológico.
oeste modo, em algumas situações mais radicais, a incorpo­
ração dessas críticas pode levar à negação da dimensão epis­
temológica na construção de interpretações sobre as práticas
curriculares, e não é essa a proposta que quero defender aqui.
Compartilho da defesa de Gabriel, que diz que dessa forma
coloca-se em jogo a possibilidade de existência de conheci­
mentos considerados verdadeiros e válidos serem ensinados.
No campo pedagógico, a questão dos valores é intrínseca à sele­
ção dos conteúdos escolares e, entre esses valores, não é possí-

4 Abordagem mais aprofundada sobre a crise dos paradigmas modernos pode ser
encontrada em Santos 2000, 2006, 20 1 3 e 2 0 1 7.
POR UMA ECOLOGIA DE SABERES ESCOLARES 77,

vel descartar o valor de verdade que se formula também no ter­


reno da epistemologia. A verdade e validade de um saber se, por
um lado, não são mais vistas como definitivas e _absolutas, por
outro, continuam a ter sua pertinência baseada em regimes de
verdades construídos e legitimados também no seio da comuni­
dade científica produtora dos saberes acadêmicos, que servem,
entre outros, de referência para os saberes escolares (GABRIEL,
20 1 7, P. 1 1 ) .

A autora chama atenção para o necessário desafio de ressig­


nificar a concepção de epistemologia na direção de sublinhar
sua especificidade e seu potencial no debate sobre saberes es­
colares. Esse caminho é traçado em seu texto na direção da
epistemologia social escolar.
Longe de conceber os saberes como universais, impessoais, sem
proprietários, sem traços de sua gênese, a epistemologia social
escolar tende a reconhecer a dimensão histórica e política como
elemento constituinte da própria noção de saber, afastando-se
das perspectivas representacionais do conhecimento/saber e
oferecendo a possibilidade de diálogo com as perspectivas cons­
trucionistas (GABRIEL, 20 1 7 , p. 1 3)5•

São, portanto, essas potencialidades do saber escolar, tomado


como categoria de análise, a partir da perspectiva de uma epis­
temologia social escolar, que serão articuladas no sentido de
reconhecê-lo também como espaço de diálogos interculturais.

A escola como uma das instituições mais


representativas da modernidade

A afirmação da escola como instituição moderna e o reco­


nhecimento de sua crise como parte do esgotamento desse
modelo de sociedade, nos remete imediatamente a primeira
potencialidade heurística apontada por Gabriel, na análise ci­
tada anteriormente. Apontar para a crise da escola, respon­
sabilizar (ou em alguns casos criminalizar) seus agentes - ora
professores, ora estudantes - pelo fracasso desse/nesse lu-
5 Uma aproximação bastante sintética, porém, muito clara e eficiente, à temática da
centralidade d a linguagem na construção do conhecimento, tema caro às perspecti­
vas construcionistas, pode ser vista em Hall (20 l 6).
78 0rDAT1CA: TECENDO/REJNVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

gar social, imprimir mágicas soluções pautadas em modelos


mercadológicos tem sido um dinâmica bastante comum nos
tempos atuais. Entretanto, esse movimento não ajuda a (re)
localizar a escola numa posição de protagonismo na gestão
de sua própria crise. Ao contrário, identifica-a no lugar de ví­ i
tima e/ou algoz de seu próprio tempo. Na direção contrária, 1 '

Carmen Gabriel ressalta o deslocamento do papel da escola


para um lugar de destaque na elaboração de um projeto de
sociedade quando enxergada através da potência heurística
da categoria de saber escolar. As possíveis respostas à crise da
modernidade produzidas pela/na escola no âmbito dos sabe­
res escolares - quando entendidos em sua complexidade e es­
pecificidade epistem0lógj.l;::a - se configuram como estratégias
de avivamento e reinvenÇão da própria escola.

Para significar e tomar posição diante dos processos de crise


da modernidade, aos quais venho me referindo, vou me aliar
1
'

às concepções de Boaventura de Sousa Santos. Nos últimos


20 anos, ele vem construindo e ampliando sua teoria social, a
partir de uma premissa que defende a íntima articulação entre
proposições e projetos políticos com reflexões e críticas epis­
temológicas6. E seguindo suas pistas, pretendo desenvolver

1,
essa seção na direção de fortalecer a segunda potencialidade
do saber escolar, apresentada por Gabriel.

A partir de reflexões teóricas e epistemológicas geradas no


projeto de pesquisa A reinvenção da emancipação sociaJ7, San­
tos chegou a conclusões que passaram a direcionar estudos
subsequentes. Elas podem ser assim resumidas: a experiência
social mundial excede em número e diversidade aquilo que
a tradição científica e filosófica ocidental conhece e conside­
ra relevante; essa riqueza vem sendo desperdiçada e desse
desperdício se nutrem as teorias que afirmam não haver ai-
6 Em 1 994, Santos publica "Pela mão de Alice: o social e o político na pós-moder­
nidade" (Porto: Afrontamento), obra que o autor nomeia como seminal no seu mo­
vimento de articulação de uma reflexão epistemológica com uma teoria social, que
posteriormente é sistematizada em "A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdí­
cio da experiência" (SANTOS, 2000) e "A Gramática do Tempo: Para uma nova cultural
política (SANTOS, 2006).
7 O projeto coordenado por Santos, e desenvolvido entre janeiro de 1 999 e dezembro
de 2001, foi realizado em Angola, Africa do Sul, Brasil, Colômbia, Portugal e fndia e
tinha por objetivo estudar alternativas à globalização neoliberal e ao capitalismo glo­
bal construídas em âmbito local.
POR UMA ECOLOGIA DE SABERES ESCOLARES 79

ternativas; não adianta recorrer à c1encia social tal como a


conhecemos para dar credibilidade às experiências, pois é ela
mesma responsável por esconder ou desacreditar .as alterna­
tivas. O autor defende que para uma crítica a esse cenário de
desperdício da experiência é necessário propor uma nova ra­
cionalidade, e esse movimento vem sendo chamado por ele de
crítica à razão indolente (SANTOS, 2006) .

Para ser sólida e contundente, a crítica à modernidade oci­


dental precisa considerar a diversidade e complexidade desse
paradigma social, político e cultural.
Lo que comúnmente se llama modernidade occidental es um
conjunto muy complejo de fenómenos en los que la perspectiva
dominantes y subalternas coexistem y constituyen modernida­
des rivales (SANTOS, 201 7).

E à escola, como instituição representante desse paradigma


e herdeira de sua crise, também se faz necessário lançar esse
mesmo olhar complexificado. Nesse sentido, volto a mobili­
zar as potencialidades do saber escolar apontadas por Gabriel.
Além de incluir a escola numa posição ativa diante o enfren­
tamento dessa crise, a categoria provoca a reflexão sobre a
pertinência do debate epistemológico. No desenvolvimento de
seu pensamento, Santos atribui especial centralidade a essa
dimensão. A proposta epistemológica do autor se constitui­
através de reflexões sobre formas de construção e validação.
Dei conocimiento nacido en la Jucha, de formas de saber de­
·sarrolladas por los grupos sociales como parte de su resistência
contra las injusticias y las opressiones sistemáticas causadas por
el capitalismo, e! colonialismo y e! patriarcado (SANTOS, 2 0 1 7) .

Assim retomamos à questão da verdade e validade dos sabe­


res e aos processos de construção e legitimação dos regimes
de verdade próprios a cada lócus de produção, utilização, en­
sino e transposição dos saberes (GABRIEL, 20 1 7) .

O movimento que coloca em questão a universalidade da ver­


dade da ciência ocidental não pode ser confundido com a ne­
gação do problema epistemológico que toca diretamente a es­
cola: qual/is saber/es é/são válidos e verdadeiros para serem
legitimados pela cultura escolar?
80 ÜJDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

Apoiada nas reflexões de Boaventura Santos, acredito ser pos­


sível afirmar que até agora a resposta para essa pergunta ain­
da se dá a partir ciência moderna, Iócus onde o modelo de
racionalidade ainda hegemônico entre nós tem sua referência.
Esse modelo se coloca como global, ao negar caráter racional
a todas as formas de conhecimento que não se pautarem por
seus princípios epistemológicos e suas regras metodológicas.
Por outro lado, segundo Santos, a crise do paradigma moder­
no é produzida em seu interior, e se funda no próprio desen­
volvimento do conhecimento científico.

Cientistas no campo da astrofisica, mecânica quântica, mate­


mática, química e biol.ogj.a apresentam teorias que refutam as
principais crenças da ciê'ilCia moderna, desde as leis da fisica
newtoniana até a eternidade, estabilidade e previsibilidade da
matéria e da natureza. Desta crise, desponta o questionamen­
to dos conceitos de lei e do princípio de causalidade, tal como
estavam colocados, e o questionamento do próprio conteúdo
do conhecimento científico, a partir da relação que se esta­
belece entre sujeito e objeto, "uma relação que interioriza o
sujeito à custa da exteriorização do objeto, tornando-os estan­
ques e incomunicáveis" (SANTOS, 2008, P. 54).

Da mesma forma que indica os sinais da crise, Santos sugere


que um novo paradigma está por surgir.
Sendo uma revolução científica que ocorre numa sociedade ela
própria revolucionada pela ciência, o paradigma científico (o pa­
radigma de um conhecimento prudente) , tem que ser também
um paradigma social (o paradigma de uma vida decente) (SAN­
TOS, 200 18, p. 60).

Senpo assim, junto-me a Santos para reclamar o lugar da


crítica à razão ocidental e à modernidade em sua totalidade
exclusiva como espaço de afirmação do pensamento cientí­
fico - e não de sua negação -, porém sob novas perspectivas
epistemológicas. E o contexto de emergência deste novo para­
digma, ainda em gestação, reclama por justiça. A sistemática
construção da inexistência de tantas experiências e saberes,
que sequer puderam concorrer a um estatuto de verdade, nos
compele a voltar atenção para o saber escolar como espaço
fértil para o exercício de uma ecologia de saberes.
POR UMA ECOLOGIA DE SABERES ESCOLARES 81 .

A escola deve ser concebida como um espaço


ecológico de cruzamento de culturas

A inevitável ressignificação da epistemologia n à direção de


alicerçar a perspectiva de uma epistemologia social escolar,
tratada por Gabriel como mais uma potencialidade do saber
escolar, se articula aqui nesta seção com as perspectivas de
Candau (20 1 4) em defesa de práticas curriculares capazes de
-

desvelar o daltonismo cultural e afirmar a ancoragem históri­


co-social dos conteúdos -, bem como com a ponderação de
Santos em favor de uma justiça cognitiva.

Para Santos, o pensamento moderno ocidental é um pensa­


mento abissal, pois se constitui num conjunto de distinções
visíveis e invisíveis, onde estas são a base para aquelas•. É
uma forma de pensar baseada em linhas radicais invisíveis,
que são responsáveis pelas distinções invisíveis e constroem
distâncias insuperáveis entre os seus dois lados. De um lado
da linha abissal - o lado de cá do pensamento ocidental - se
estabelecem as distinções visíveis, geralmente marcadas pela
dicotomia entre "o mesmo" e "o outro". E do "outro lado" se
localizam todas as formas de existência - ontológica e epis­
temológica - que não são reconhecidas como enquadráveis
nas categorias anteriores . É no "outro lado" da linha que se
reserva o lugar para todas as formas não relevantes ou não
compreensíveis de ser, formas que são, por isso, ativamente
construídas como inexistentes.

O direito e o conhecimento modernos são as mais bem-suce­


didas manifestações deste pensamento abissal. No campo do
conhecimento, o pensamento abissal atribui à ciência moder­
na o monopólio da verdade, e assim cria a distinção de cará­
ter epistemológico entre formas científicas e não científicas de
verdade. Esta distinção visível, que tem tensionado os debates
entre razão científica, razão filosófica e fé religiosa, se apoia,

8 É importante destacar que o autor reconhece a existência de diferentes expressões


do pensamento moderno ocidental, inclusive algumas versões marginais e subalterni­
zadas. Porém, neste texto, Santos se dedica a pensar sobre aquilo que nomeia como
pensamento moderno ocidental hegemônico, que foi/é a base para construção da Mo­
dernidade. Da mesma forma, o autor não nega a possibilidade de pensamento abissal
fora da Modernidade ocidental, porém, ele não se dedica a explorá-las em seu texto.
82 DIDAT1CA : TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

contudo, numa distinção invisível que coloca do outro lado


da linha abissal todas aquelas outras formas de conhecimento
que não se encaixam em qualquer urnas dessas formas, não se
encaixam sequer na categoria conhecimento. No melhor dos
casos poderiam se constituir como fonte da pesquisa científi­
ca. No âmbito do direito, a distinção visível se constrói entre o
legal e o ilegal, única forma de existir no contexto da distinção
jurídica visível. E do outro lado da linha abissal fica a ausência
de lei, a inexistência jurídica segundo o direito reconhecido
corno universal.

Essas duas linhas abissais apesar de distintas são interde­


pendentes. E explicam, ..q.. configuração das linhas globais da
Modernidade.Conforrné o autor, o direito e o conhecimento
moderno apoiam a instituição da linha global que estabelece
o espaço colonial9• A criação do mundo colonial passa a sus­
tentar urna nova distinção que atribui certa correspondência
entre a localização geopolítica e o lado da linha abissal que
urna experiência/existência ocupa. Em geral, as experiências/
existências das zonas geográficas metropolitanas se localizam
no "lado de cá" da linha, enquanto as experiências das zonas
coloniais se localizam no "lado de lá". Nesta cartografia, as
zonas coloniais são sempre os espaços das crenças incom­
preensíveis, das práticas mágicas e das formas inconcebíveis
de organização social, que sequer podem ser consideradas no
âmbito do conhecimento ou do direito e, portanto, não partici­
pam das distinções entre verdadeiro e falso, legal e ilegal.

Ainda que as distinções visíveis próprias dos territórios metro­


politanos não se apliquem nos territórios coloniais, a universa­
lidade dos paradigmas modernos não é colocada sob questão.
Estas linhas abissais, além de construírem e sedimentarem as
noções de verdade e legalidade, também participam das de­
finições de propriedade, natureza e sociedade. E todas essas
apoiam a ideia de humanidade. Aqueles que são os sujeitos de
modos de ser que não existem no "lado de cá" da linha abissal,
seja ela epistemológica ou jurídica, também são construídos
9 Santos (2017) aprofunda essa discussão atribuindo ao direito certa precedência so­
bre a ciência na construção da distinção entre o metropolitano e o colonial. Para esse
autor, as primeiras linhas globais modernas foram as linhas cartográficas do século
1';
.,
'
.1
XV, como Tratado de Tordesilhas.
f
i.
POR UMA ECOLOGIA DE SABERES ESCOLARES 83

como inexistentes. Inexistente em sua legitimidade e em sua


humanidade.

Uma das ideias centrais de Santos é que a construção e/ou a


manutenção dessas linhas abissais são tão válidas hoje quanto
eram no período das práticas colonialistas/imperialistas. E que
atualmente a cartografia metafórica das linhas abissais substi­
tuem a cartografia das linhas dos tratados político-geográficos.
Las colonias proporcionaron un modelo de exclusión radical que
hoy prevalece en el pensamiento y la práctica occidentales mo­
dernos como lo hizo durante el ciclo colonial. Hoy, como en­
tonces, tanto Ia creación como la negación dei otro lado de la
línea es un elemento constitutivo de los princípios y las prácticas
hegemónicos. Hoy, como entonces, es máxima la imposibilidad
de la copresencia entre los dos lados de la línea (SANTOS, 2 0 1 7 ) .

Santos chama atenção para o fato de que as distinções visíveis


do "lado de cá" da linha, por mais radicais ou categóricas que
sejam, se articulam para manter a própria linha, sua invisi­
bilidade e a manutenção da inexistência daquilo que está do
"lado de lá". E também destaca que a articulação entre essas
duas linhas globais - a epistemológica e jurídica - se coloca no
centro das demandas pela construção de um novo paradigma.
Por consiguiente, la injusticia social global está estrechamente
unida a la injusticia cognitiva global. Y, asi, la lucha por la jus­
ticia social global há de ser también uma lucha por la justicia
cognitiva global. Para conseguiria, esta lucha requiere um nuevo
tipo de pensamento postabisal (SANTOS, 20 1 7) .

Nesta direção, o autor preconiza que uma justiça social global


não existe sem uma justiça cognitiva global. o foco nesse tipo
de ruptura - um pensamento pós abissal - é o que distingue a
perspectiva teórica do autor daquelas p autadas pela tradição
crítica centrada no Ocidente. Para Santos, esta última não ob­
teve sucesso na- interpretação das lutas emancipadoras con­
temporâneas porque não considera a dimensão cognitiva da
injustiça social. E dessa forma, entende como universal a inter­
pretação e transformação ocidental do mundo. Entretanto, as
transformações emancipadoras produzidas no mundo podem
fazer parte de roteiros e gramáticas distintos daqueles desen­
volvidos pelas teorias críticas centradas no Ocidente. Ao mes-
84 010ATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

mo tempo, uma teoria crítica não eurocêntrica, além de estar


baseada nas experiências de grandes minorias marginaliza­
das e maiorias que lutam contra a marginalidade e inferiorida­
de impostas, deve valorizar as concepções não eurocêntricas
e os usos contra hegemônicos dos conceitos eurocêntricos.

Boaventura Santos vem trabalhando coletivamente com in­


telectuais de diferentes países na construção dessa ruptura,
esse pensamento pós abissal. Nomeia essa proposição como
Epistemologias do Sul'º, e revela que elas se constroem a par­
tir de dois procedimentos principais: as ecologias dos saberes
e a tradução intercultural" .
( . . . ) la ecología de .J0,s ..:j,abere_s se opone a la lógica de la mono­
cultura dei conocimierito y dei rigor científicos, e identifica otros
saberes y criterios de rigor y validez que operan de forma creíble
en prácticas sociales que la razón metonímica declara no exis­
tentes (SANTOS, 201 7) .

A monocultura do conhecimento e do rigor científico é uma


das formas de construção da inexistência operada pela razão
metonímica, uma das quatro indolências da razão ocidental
apresentadas pelo autor12• Na perspectiva da razão metoními­
ca, prevalece a ideia de totalidade única e homogênea, fora da
qual não há outras formas de existência13• Uma única lógica
1 O É importante destacar que nessa expressão o Sul é entendido como metáfora de
todo processo de exploração e invisibilização sofrido por países, grupos socioculturais
e indivíduos tanto no sul como no Norte geográfico. Para o autor, tanto o norte global
geográfico como o sul global geográfico contêm em si mesmo o sul epistemológico.
1 1 Neste texto pretendo explorar a ideia de ecologia dos saberes. Em trabalho anterior
tratei do tema da tradução intercultural (ARAUJO, 2014a). Um passo futuro em novo
texto será ampliar a articulação das duas operações no contexto dos saberes escolares.
12 A crítica que Santos apresenta à razão ocidental se dirige a quatro caracterís­
ticas da racionalidade moderna, que ele nomeia como de indolências da razão. As
quatro formas de se manifestar a indolência da razão são: Razão impotente: ''não se
exerce porque pensa que nada pode fazer contra uma necessidade concebida como
exterior a ela própria"; Razão arrogante: "não sente a necessidade de se exercer por­
que se imagina incondicionalmente livre e, por conseguinte, livre da necessidade de
demonstrar sua própria liberdade"; Razão metonímica: "se reivindica como a única
forma de racionalidade e, por conseguinte, não se aplica a descobrir outros tipos de
racionalidade ou, se o faz, fá-lo apenas para as tornar em matéria prima"; Razão pro­
léptica: "não se aplica a pensar o futuro, porque julga que sabe tudo a respeito dele e
o concebe como uma superação linear, automática e infinita do presente" {SANTOS,
2006, P. 95-96).
13 O sentido de existência empregado pelo autor, e compartilhado neste texto, se
aproxima muito mais da perspectiva de uma significação válida e positiva do que de
uma concepção ontológica de materialidade.
POR UMA ECOLOGIA DE SABERES ESCOLARES 85

organiza o movimento do todo e das partes e, se houver algu­


ma variação no movimento de alguma das partes isso não afe­
ta o movimento do todo, pois é visto como uma particularida­
de ou um desvio. "Nenhuma das partes pode ser pensada fora
da relação com a totalidade" (SANTOS, 2006, p. 98) e, por isso,
sua existência se restringe a uma única totalidade. Segundo
Santos, a forma mais bem-acabada de totalidade para a ra­
zão metonímica é a dicotomia, estrutura que torna os termos
inexistentes fora dela e que esconde hierarquias sob relações
aparentemente horizontais. A dicotomia própria da monocul­
tura do conhecimento e rigor científico é aquela que opõe co­
nhecimento à ignorância, distinção visível que se localiza do
"lado de cá" da linha abissal.

Contra as formas de construção da inexistência operadas pela


razão metonímica, Santos propõem dois procedimentos me­
todológicos /posicionamentos políticos: a sociologia das au­
sências e a sociologia das emergências14. A sociologia das
ausências quer identificar o âmbito de produção das inexistên­
cias efetuada pela razão metonímica, para que as experiências
produzidas como ausentes possam ser libertadas das relações
e passem a ser consideradas como alternativas às experiên­
cias hegemônicas, a partir da discussão de sua credibilidade.
"Trata-se de uma investigação que visa demonstrar que o que
não existe é, na verdade, ativamente produzido como não
existente, isto é, como uma alternativa não credível ao que
existe" (SANTOS, 2006, p . 1 02).

No contexto da monocultura do conhecimento e do rigor cien­


tífico, a sociologia das ausências afirma que não existe igno­
rância ou conhecimento que não sejam relativos. "Toda igno­
rancia lo es de un determinado tipo de conocimiento, y todo
conocimiento es la superación de una ignorancia particular"
(SANTOS, 20 1 7) . Dessa forma, aprender algo pode implicar
esquecer ou ignorar outra coisa. Na ótica de uma ecologia de
saberes, o que interessa interrogar é se aquilo que se aprende
é válido e/ou aquilo que se esquece ou ignora é necessário.
Em outas palavras, o que a ecologia de saberes intenciona in-

14 A mobilização desses procedimentos/posicionamentos no âmbito do saber esco­


lar pode ser vista em (ARAUJO, 2016), (ARAÚJO, 201 4b) e (ARAUJO, 2013).
86 ÜlOÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

dagar é por que nos é imposto esquecer determinados saberes


em favor de outros? Na lógica da razão metonímica, esquecer
e/ou ignorar determinados saberes SE conecta diretamente
com aprender saberes de valor superior, ou seja, aqueles iden­
tificados como conhecimento.

Desde este punto de vista epistemológico, las sociedades ca­


pitalistas modernas se caracterizan por favorecer las prácticas
en las que prevalecen las formas de conocimiento científico.
Esto significa que solo se considera descalificadora la ignoran­
cia de estas formas (SANTOS, 2 0 1 7) .

É importante destacar, q:t,1e ao.defender uma ecologia de sabe­


res não se pretende induzir um descrédito do conhecimento
científico, mas sim projetar seus usos em novos contextos de
diálogos com outros saberes. o que implica na superação da
razão metonímica, que exige uma totalidade unitária e homo­
gênea e uma relação excludente entre os termos da dicotomia,
e a provocação de uma permeabilidade da linha abissal que
impede a coexistência em seus ambos os lados.
Se trata, por un lado, de explorar concepciones alternativas que
estén en el interior dei conocimiento científico y que se hayan
hecho visibles a través de epistemologias pluralistas de diversas
prácticas científicas (en particular, las epistemologias feminis­
tas) y, por otro lado, de promover la interdependencia entre los
saberes científicos producidos por la modernidad occidental y
saberes distintos no científicos (SANTOS, 2 0 1 7).

É o princípio da incompletude das culturas e dos saberes a con­


dição para a realização desses diálogos. Fundamental é ressaltar
que uma ecologia dos saberes não pretende defender a aceita­
ção do relativismo, entendido como ausência de critérios de hie­
rarquias entre as experiências construídas como não existentes.
A questão não está em atribuir igual validade a todos os tipos de
saber, mas antes em permitir uma discussão pragmática entre
critérios de validade alternativos, uma discussão que não des­
qualifique a p artida tudo o que não se ajusta ao cânone episte­
mológico da ciência moderna (SANTOS, 2006, p. 1 08).

Esta discussão nos remete mais uma vez às potencialidades


da categoria analítica saber escolar, enumeradas por Gabriel
!'
POR UMA ECOLOGIA DE SABERES ESCOLARES 87

(201 7) . A pertinência do debate epistemológico no terreno do


saber escolar, especialmente enquanto referido ao conheci­
mento científico como fluxo de legitimidade, validade e ver­
dade, atualizado pelo princípio de incompletude dos saberes,
amplia o potencial do saber escolar constituir-se como espaço
fértil para relações ecológicas entre saberes.

Desvelar o daltonismo cultural e afirmar


a ancoragem sócio-cultural dos conteúdos

Candau (20 1 4) já havia identificado a urgência de práticas cur­


riculares que promovessem o desvelamento do daltonismo
cultural - ou seja, a incapacidade de ver a pluralidade de cul­
turas que concorrem para informar a constituição dos sabe­
res escolares - e da ancoragem sociocultural dos conteúdos,
que podem ser incrementados no domínio de uma ecologia
de saberes e de uma epistemologia social escolar. Conforme
Carmen Gabriel:
Entrar no debate pelas portas da epistemologia social escolar
significa ainda colocar em questão a hierarquização dos saberes,
sem, no entanto, desqualificar ou negar o papel de referência
dos saberes científicos n o processo de construção dos saberes
escolares (GABRIEL, 20 1 7, p. 13).

Dessa forma, insisto em defender aqui que os saberes esco­


lares, quando distinguidos em sua especificidade própria da
cultura escolar, significados a partir da perspectiva de uma
epistemologia social escolar, e reconhecidos em seus limites
e possibilidades diante da crise da escola enquanto institui­
ção moderna, podem alicerçar processos de organização de
ecologias de saberes. Fazer essa defesa demanda, necessaria­
mente, reconhecer implicações para as práticas pedagógicas.
E do lugar de uma professora de didática, que atua na forma­
ção inicial e continuada de professores e professoras, enxergo
nessa tarefa um desafio e compromisso cotidiano'5·

A construção intercultural de um espaço relações ecológicas


1 5 Quando iniciei minhas reflexões sobre essa temática, minha inserção profissional
era como professora da Educação Básica. A primeira sistematização dessas inquieta­
ções se encontra em (ARAUJO, 201 2) .
88 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

entre saberes requer a ressignificação da escola, do conheci­


mento e dos professores/as. Hierarquias, redes de poder, es­
truturas simbólicas são colocadas sob suspeita; sujeitos são
deslocados ou questionados em suas subjetividades. Tenho
fortalecido junto aos meus alunos e alunas a ideia de que esses
deslocamentos são processos contínuos e não lineares, para
os quais não existem fórmulas ou receitas, tampouco antído­
tos. No entanto, essas características não me impedem do es­
forço de sugerir algum caminho ou possibilidade de começo e,
nesse sentido, tenho apostado na possível articulação de/em
dois pressupostos - convicções firmes e concepções prudentes
- e dois movimentos - pluralização e situação .
; _...�� - .
Ao propor uma metodologia de trabalho para formação de pro­
fessores no âmbito da Educação em Direitos Humanos, Vera
Candau ( 1 999) já indicava a importância de convicções firmes.
Firmes no sentido de sólidas em sua conformação, fortes em
seus argumentos, mas não necessariamente rígidas e inflexí­
veis. Convicções que espelhem um posicionamento político
claro frente a injustiça e a desigualdade, e que reflitam con­
fiança nas possibilidades de construção de um mundo melhor.
Concordo com Boaventura Santos quando este afirma que "A
premissa de partida de uma teoria crítica é a ideia de que não
há forma de conhecer melhor o mundo do que prever um mun­
do melhor" (20 1 7) . Nesta direção, conhecer é também cons­
truir. Por isso, defendo concepções prudentes no sentido da
valorização da formação profissional que assegure competên­
cia técnica e autonomia criativa de forma consciente das im­
plicações políticas e socioculturais das práticas pedagógicas.

Desvelar o daltonismo cultural e afirmar a ancoragem socio­


cultural dos conteúdos incide nos movimentos de pluralização
e situação. Pluralização das práticas, das estratégias, dos re­
cursos, dos espaços, das narrativas, dos sujeitos, das pergun­
tas e das respostas. Movimento que requer a capacidade de
"Ter presente o arco-íris das culturas nas práticas educativas"
(CANDAU, 2 0 1 4 , p. 39) e ampliar a palheta de cores dispo­
níveis e visíveis no cotidiano escolar. Pluralização essa que
só é possível com o movimento complementar de situação,
de localização, de ancoragem sociocultural dos conteúdos e
dos sujeitos. Movimento esse que exige o reconhecimento da
1.

POR UMA ECOLOG!A DE SABERES ESCOLARES 89


.

complexidade das constituições identitárias e da inevitável


parcialidade dos pertencimentos, assim como a aceitação das
incompletudes e das diferenças culturais como riqueza e não
como impedimento para o diálogo.

Promover a escola como espaço ecológico de cruzamento de


culturas exige admitir o confronto e o conflito como estratégias
válidas de diálogo e reconhecer que o consenso não é a única
forma possível de construir saberes de forma compartilhada.

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92 Ü!DÁTJCJ\: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

Pedro Teixeira
PUC-Rio
Ü ENSINO DE TEMAS CONTROVERSOS: RISCOS OU POTENCIAIS PARA A DIDÁTICA? 93

T alvez uma das ideias mais difundidas do campo da Didá­


tica - e educacional, de maneira mais ampla - seja a de
que escola tem como um de seus principais objetivos a forma­
ção de cidadãos críticos, que consigam refletir sobre sua reali­
dade e nela atuar. Como exemplos de situações ou temáticas
sobre as quais os estudantes deveriam aprender refletir e se
posicionarem estão temas considerados controversos, como
racismo, bullying, homofobia, desigualdades de classe, clona­
gem, pesquisas com células-tronco, uso de drogas, intolerân­
cia religiosa, aborto, entre outros.

De fato, tais temáticas são relevantes, atuais e, muitas delas,


estão presentes no cotidiano escolar, seja no currículo pres­
crito, seja nas relações entre estudantes, professores e ges­
tores, especialmente aquelas ligadas a pautas identitárias e
de promoção das diferenças. A diversidade de contextos em
que os agentes escolares e as próprias instituições de ensino
estão inseridos traz uma série de desafios ligados a essas dis­
cussões, de forma concreta e contundente. Lidar com elas e
ensiná-las trata-se, portanto, de um grande desafio.

Apesar de tal urgência, a escola e os currículos prescritos ain­


da se mostram resistentes a mudanças significativas. Se, por
94 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

um lado, há iniciativas e propostas concretas de mudanças


- como a lei 1 0.639/03 que propõe o ensino de história e cul­
turas da Africa e afro-brasileiras - há movimentos e políticas
conservadoras que visam a restringir debates sobre quaisquer
temas que sejam identificados com pautas de movimentos so­
ciais de esquerda e progressistas - como o movimento e os
projetos de lei "Escola sem Partido". Se há bandeiras por uma
educação emancipadora, há, também, defesa incisiva de que
"a família educa e a escola ensina". Ou seja, propõe-se que a
função da escola seja, tão somente, "transmitir os conteúdos"
e que os valores seriam ensinados apenas pela família.

Neste artigo, defen_dÇ>_,que a discussão de temas controversos


possui grande poter'ici aYp ara desenvolver reflexões críticas,
conhecer posições diversas, exercitar e aumentar a tolerância
entre grupos diferentes e instigar estudantes a procurar res­
postas para diferentes problemas. Essa discussão, entretanto,
demanda planejamento e reflexões por parte dos professores
para que sejam profícuas e mobilizem, de fato, os estudantes.
Assim, este texto se organiza em três movimentos. Inicial­
mente, exploro o que autores do campo da educação enten­
dem por controvérsia, seu ensino, seus objetivos e potencia­
lidades. Posteriormente, analiso alguns dos obstáculos para
o ensino de controvérsias e, por fim, aponto elementos para
se pensar estratégias pedagógicas que visem a discussão de
controvérsias.

A importância das controvérsias e de seu ensino

Ao refletirmos sobre as controvérsias, é preciso esclarecer


algumas distinções, até certo ponto artificiais, mas que nos
ajudam a entender melhor seus objetivos pedagógicos. Nesse
sentido, podemos pensar em i) o que é uma controvérsia; ii) o
que devemos ensinar como controverso.

Em primeiro lugar, partindo de diferentes autores, podemos


dizer que questões controversas são questões verdadeiras -
que não possuem uma única resposta possível de ser identi­
ficada -, não-hipotéticas, que atingem diferentes grupos que
possuem posições distintas e que disputam entre si (DEAR-
Q ENSINO DE TEMAS CONTROVERSOS: RISCOS OU POTENCIAIS PARA A DIDATICA? 95

DEN, 1 98 1 ; HAND, 2008; HESS, 2009; LEV!NSON, 2007) . Ques­


tões sobre políticas - como a legalização de drogas, do abor­
to, a implantação de políticas de ação afirmativa, sobre temas
sociocientíficos - como o consumo de transgênicos, clonagem
humana, uso de células-tronco embrionárias - ou valores
morais - como a aceitação de práticas não-heterossexuais -,
são exemplos de questões controversas que mobilizam posi­
ções diversificadas na sociedade.

Partindo-se dessa noção, passa-se a outro ponto importan­


te: o que devemos ensinar como controverso? Aparentemen­
te, essa parece uma pergunta de fácil resposta: vamos ensi­
nar como controverso aquilo que é considerado controverso.
Autores como Dearden ( 1 9 8 1 ) e Hand (2007,:2008), todavia,
criticam esse critério. Para eles, ensinar um tema como con­
troverso, envolve apresentar diferentes pontos de vista como
igualmente válidos. O racismo, por exemplo, poderia ser con­
siderado um tema que gera controvérsias na sociedade, mas
não deveria ser ensinado como controverso, pois isso .impli­
caria em ensinar visões racistas e antirracistas como possi­
blidades válidas para a vida em sociedade. Nesse sentido, só
deveríamos ensinar como tal, aquelas questões em que dife­
rentes visões podem ser defendidas sem se oporem a razão
(DEARDEN, 1 98 1 ; HAND, 2007, 2008) .

Hand (2008) traz um argumento sem dúvida contundente,


mas não se debruça sobre as características de questões tidas
como controversas por muitos grupos da sociedade. Dessa
maneira, a perspectiva da autora estadunidense Diana Hess
(2009) ajuda-nos a compreender como os temas controversos
estão presentes ou não nas escolas e curriculos. A autora se
dedica a estudar o ensino de temas relacionados a políticas,
que geram debates em torno de questões com efeitos concre­
tos nas democracias. Para ela, a promoção de discussões so­
bre temas controvertidos diz muito sobre a saúde de uma de­
mocracia, torna as pessoas mais tolerantes do ponto de vista
político e faz com que aprendam sobre pontos importantes
da economia, sistema político e grupos sociais. Como exem­
plos de questões controversas, Hess (2009) cita a legalização
do aborto e o reconhecimento de casamentos de pessoas do
mesmo sexo.
96 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

Tendo em vista esses apontamentos, o desenvolvimento


de propostas pedagógicas de ensino de temas controversos
ganha relevância para as escolas e currículos. Hess (2009) de­
fende que, se a escola não discute sobre tais temáticas, expres­
sa de forma implícita: i) que a esfera política não é importante;
ii) que tais temas são tabus; iii) que as pessoas concordam
sobre a natureza do bem público e de como ele deve ser admi­
nistrado. Além disso, a escola deixa de aproveitar vantagens
que a configuram como um espaço único para a discussão de
temas controversos: os curriculos podem oferecer oportunida­
des para a inclusão de tais questões; professores já possuem
ou podem desenvolver habilidades de promover a investiga­
ção e a deliberação entre seus estudantes; há maior diversida­
de ideológica entre os e<filcandos na escola do que em outros
ambientes que eles costumam frequentar.

Magendzo-Kolstrein e Toledo-Jofré (20 1 5) e Magendzo (20 1 6)


argumentam que o ensino de temas controversos tem grande
potencialidade para as disciplinas escolares e para a educa­
ção em direitos humanos. Os autores destacam que o ensino
de controvérsias é importante porque: i) em geral, essas te­
máticas já tiveram, tem e/ou podem vir a ter impacto no fu­
turo; ii) estimulam uma mudança de uma educação bancária
- como discutido por Paulo Freire ( 1 974) - para uma que pro­
mova o pensamento crítico, baseado no diálogo e em trocas
cooperativas entre os estudantes e professores; iii) prepara os
estudantes para viver em um mundo que é, em si, controver­
so e iv) permite analisar uma série de situações de conflitos e
controvérsias entre direitos humanos, que implicam em bus­
car se colocar no lugar de outros grupos para compreender
suas demandas.

Obstáculos para o ensino de ternas controversos

Se, por um lado, essas parecem ser grandes contribuições


das controvérsias para a formação dos estudantes, por ou­
tro, é preciso reconhecer que tais propostas pedagógicas en­
contram uma série de obstáculos para seu desenvolvimento.
Como Hess (2009) argumenta, muitas políticas públicas, em­
presas, grupos privados e responsáveis de alunos, frequente-
Q ENSINO DE TEMAS CONTROVERSOS: RISCOS OU POTENCIAIS PARA A DlDATICA?

1 mente se mostram mais interessados em que as escolas pre­


parem os estudantes para a .universidade e para o mercado de
1 trabalho do que para fortalecer a democracia e a transforma­
ção da sociedade - o que é reforçado pela economia de mer­
cado. Outra razão é que há o desejo de que a escola ensine
apenas ideias semelhantes às das famílias e o temor de que
ao se tratar de controvérsias, ainda mais controvérsias sejam
geradas. Como alternativa, só seriam ensinadas formas de os
estudantes lidarem com as temáticas controversas que exis­
tem fora da escola, deixando de lado aquelas que, porventura,
se desenvolvam ali.

Analisando outra dimensão dessa oposição, a pesquisado­


ra diz que não há consenso mesmo entre os defensores de
propostas de educação democrática, já que existem múltiplas
concepções sobre as formas de participação que a escola
deveria promover e qual o papel dos cidadãos em uma de­
mocracia. Deve-se estimular o monitoramento e críticas aos
políticos em cargos públicos ou oferecer ajuda à população
em risco? É mais importante deliberar questões políticas com
pessoas cujas visões políticas são diferentes da sua ou se jun­
tar pessoas, que pensam de forma semelhante para defender
uma posição partidária ? Apesar de essas opções não serem
mutuamente excludentes , dificilmente alguém ou um grupo se
engaja em todas elas, o que indica prioridades distintas por
parte de diferentes atores políticos.

Já o medo de uma doutrinação política promovida por professo­


res, outros estudantes, materíais didáticos e currículos formam
outra fonte de oposição ao ensino de controvérsias. Neste caso,
o receio é de que a exposição a diferentes pontos de vista faça
com que os jovens abandonem as visões defendidas pelas suas
famílias.Nos EUA, por exemplo, questões em tomo dos ataques
terroristas de onze de setembro causaram intensas disputas so­
bre o que se deveria discutir na escola em relação à definição
de terrorismo, às motivações dos atentados e às decisões do
governo estadunidense em resposta àqueles eventos.

Tais destaques da autora, se relacionam com movimentos da


Nova Direita, criticados por Apple (2006; 20 1 3a; 20 1 3b) . que,
desde a década de 1 980 e 1 990, militam em favor de modelos
98 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

de educação que priorizem a formação para o mercado de tra­


balho e atacam políticas progressistas que visem a inclusão de
temáticas ligadas à diversidade e empoderamento de grupos
tradicionalmente marginalizados. Atrelada a essas bandeiras,
estão a criação de avaliações externas, com fins de ranquea­
mento, que interferem diretamente na autonomia dos docen­
tes. Também é possível encontrar movimentos semelhantes
no Brasil, em especial pelo avanço de pautas conservadoras
nos últimos anos, como simbolizado pelo chamado "Escola
sem Partido".

O movimento "Escola sem Partido" se autodenomina "como ini­


ciativa conjunta de es,tydantes e pais preocupados com o grau de
contaminação polítiáFiãeÔlógfca das escolas brasileiras, em to­
dos os níveis: do ensino básico ao superior"(NAGIB, s.d.). A or­
ganização vem se associando a parlamentares no congresso
federal, assembleias estaduais e municipais para a promoção
de projetos de lei homônimos, cujo objetivo é lutar contra a
"instrumentalização do ensino para fins políticos, ideológicos e
partidários" (ESCOLA SEM PARTIDO, s.d.) . Sua principal medida
para este fim é a afixação de cartazes em todas as salas de aula
dos ensinos fundamental e médio, além das salas de professo­
res, com os chamados "deveres do professor", dentre os quais se
destacam que o docente não deverá se aproveitar da "audiên cia
cativa" dos alunos para "cooptá-los" para determinada corrente
ideológica, nem favorecerá ou desfavorecerá algum discente
em função de suas visões políticas, ideológicas e morais, bem
como respeitará o direito dos responsáveis de que os filhos re­
cebam a educação moral de acordo suas próprias convicções
familiares e religiosas (ESCOLA SEM PARTIDO, s.d.) .

Seus defensores e proponentes argumentam que professores


e pensadores da educação defendem uma posição critica que,
na verdade, atacaria as mesmas instâncias, instituições, orga­
nizações e esferas como "a civilização ocidental, o cristianismo,
os valores cristãos, a Igreja Católica, a "burguesia", afamília tra­
dicional, a propriedade privada, o capitalismo, o livre-mercado,
o agronegócio, o regime militar, os Estados Unidos, etc.". (ES­
COLA SEM PARTIDO, s.d.). Por outro lado, não promoveriam
críticas às bandeiras, pautas, grupos e ícones de correntes de
esquerda. Um último, porém, não menos importante, ponto
Ü ENS!NO DE TEMAS CONTROVERSOS: RlSCOS OU POTENCIAIS PARA A DIDAT1CA? 99

f
1· de militância do movimento "Escola sem Partido" é a defesa
1.
,!
dos valores morais da família dos estudantes, em especial em
relação à sexualidade e aos valores religiosos.

O movimento e os diferentes projetos propostos vêm sofren­


do críticas de pesquisadores (FRIGOTTO, 20 1 6; PENNA, 20I 7) ,
entidades (ANPED, 20 1 6; ANPUH, 20 1 6) e imprensa (O GLOBO,
20 1 6; RATIER, 20 1 6) , além de ter sido apontado pelo Minis­
tério Público Federal como inconstitucional (DUPRAT, 20 1 6) .
São atacados o caráter vago de argumentos presentes na jus­
tificação do projeto, a falta de dados que justifiquem a alega­
ção de doutrinação nas escolas, as restrições à autonomia e
ao trabalho docente, bem como ao pluralismo de ideias ao se
coibir que os estudantes tenham contato com valores morais
distintos daqueles de suas famílias. Tal como já destacado an­
teriormente nos trabalhos de Hess (2009), esse ponto é espe­
cialmente crítico, pois impede a troca de ideias e o contato
com diferentes perspectivas sobre o mundo e outras pessoas
e reduz o papel da escola a uma mera "transmissão de con­
teúdos", ignorando-se de que toda e qualquer orientação pe­
dagógica já é, em si, imbuída de ideologias. Criticacse, ainda,
a visão de alunos como excessivamente passivos diante das
falas do professor, essencialmente inertes e que pudessem ser
facilmente influenciados.

Iniciativas conservadoras, como esta, representam o que


Apple (2006, 20 1 3a) chama de populismo autoritário, na qual
se combina uma ética de livre mercado com uma política po­
pulista, de modo que conquistas de cunho social-democrático
sejam postas em risco, apoiando-se em uma defesa de uma
educação supostamente neutra e que resgate os valores reli­
giosos. No Brasil, o atual cenário político-partidário de cres­
cimento conservador (SOUZA; CARAM, 20 1 4) e o aumento
de grupos evangélicos em aliança a grupos católicos também
conservadores (MARIANO, 1 999; ALMEIDA, 201 7; CARVALHO,
SÍVORI, 20 1 7) , catalisam a resistência a pautas progressistas,
dificultando a inclusão de conhecimentos ligados a grupos his­
toricamente subalternizados. O fortalecimento desses setores
conservadores faz com que o ensino e o debate de temas con­
troversos nas escolas sejam tarefas cada vez mais dificeis para
os docentes.
1 00 DIDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTrCAS

Elementos para se pensar a didática de ternas


controversos

Definir o que conta e o que não conta como controverso

Determinar com clareza quais temas são controversos não é


algo fácil (HESS, 2009) . Para Hess (2009), há grandes embates
para se definir o que é verdadeiramente controverso, em es­
pecial se uma questão está "inclinando", isto é, em mudança.
Inclinar engloba os processos de oscilação entre um estado de
questão aberta (aquelas em que não há uma resposta única
evidente e se estimula que os educandos se envolvam em re­
fletir criticamente sobr�.suas diferentes possibilidades) e fe­
chadas (questões para às quais se esperam que os alunos en­
tendam, construam e acreditem em uma resposta específica).

O ponto de partida para os defensores de um determinado


ponto de vista ideológico é incluir um determinado tópico no
currículo escolar (HESS, 2009) . Isto é de grande importância,
uma vez que pode significar a inserção de uma temática antes
proibida ou menosprezada, legitimando-a e atendendo a de­
mandas da sociedade em uma perspectiva mais ampla. Quan­
do passa a estar presente no currículo, frequentemente se des­
perta uma controvérsia sobre se ele deve ser tratado como
fechado ou aberto e começa, então o processo de inclinação.
Pode estar inclinando para abertura, como no caso da pena de
morte nos EUA - ou seja, passando de ter uma única possibi­
lidade de resposta para várias -, ou para o fechamento, como
o direito das mulheres ao voto - que não é mais considera­
do controverso e se reconhece amplamente na sociedade que
posições contrárias a este direito são condenáveis. A própria
demarcação entre aberto, fechado ou em inclinação motiva, e
ao mesmo tempo resulta, de disputas entre grupos e agentes
políticos na sociedade e na escola. Dessa forma, via de re­
gra, haverá grupos que defendem que determinado assunto é
aberto e merece ser objeto de discussão, enquanto opositores
dirão que não é passível de debate.

Diante de tais disputas, o professor tem papel central em defi­


nir o que identificará como aberto, fechado ou em inclinação
(HESS, 2009) . Se fechado, significa que não há necessidade de
Ü ENSINO DE TEMAS CONTROVERSOS: RISCOS OU POTENCIAIS PARA A DIDÁTICA? 1 01

tratá-lo na forma de uma discussão aberta em que diferentes


pontos de vista serão debatidos - o que não implica em dizer
que deva ser excluído do currículo. Questões abertas são mais
comuns de serem incluídas pelos professores em suas aulas.
Para as questões em inclinação, contudo, é fundamental que
o professor reconheça a natureza controversa do assunto ao
preparar sua aula e perceha que - independentemente de tra­
tá-la como aberta ou fechada - sem dúvida gerará algum nível
de controvérsia.

A pesquisadora dá como exemplo de questão em inclinação


a legalização de casamentos de pessoas do mesmo sexo. Até
bem pouco tempo atrás, tal questão seria vista como fechada,
no sentido de que não fazia sentido discutir que dois homens
ou duas mulheres pudessem se casar. Contudo, o avanço das
lutas de movimentos LGBT proporcionou a inclusão dessa te­
mática em algumas escolas, o que Hess (2009) ressalta que
quase sempre ocorre como uma questão aberta. Todavia, em
muitos contextos, esta questão permanece longe dos currícu­
los. Além disso, alguns materiais didáticos, quando a abor­
dam, a tratam como alvo de diferentes visões que competem
entre si. Assim, percebemos que em alguns contextos pode
ser considerada aberta, em outros, fechada ou em inclinação.

Postura do docente: revelar ou não sua opinião>

Se o professor tem grande participação na definição de como


abordar uma controvérsia, outra preocupação envolvendo­
-o também é de enorme importância: revelar ou não revelar
sua própria opinião. Poder-se-ia argumentar que ao revelar
sua opinião, o professor, devido a sua posição privilegiada de
adulto em meio a jovens, além de sua própria posição de au­
toridade em sala de aula, provavelmente estaria doutrinando
seus alunos a adotarem sua opinião. Em oposição, é possível
defender que, por mais que o docente se esforce, não é pos­
sível ser neutro, especialmente quando se trata de controvér­
sias. Dessa maneira, seria apenas ilusório - e talvez hipócrita
- tentar não revelar seu próprio posicionamento.

Em pesquisas com mais de 20 escolas, 35 professores e 1 000


estudantes em três estados nos EUA, Hess (2009) encontrou
1 02 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

que os professores estão divididos em relação a revelarem a


sua opinião (47% são a favor e 52% contra) . Entretanto, 80%
dos estudantes afirmam que não veem problemas nisso. A
autora chama atenção para o fato de que 46% dos estudan­
tes estão satisfeitos com a quantidade de vezes que seu/sua
professor/a revela sua opinião, enquanto que 52% gostariam
de ouvi-la mais vezes. Além disso, a pesquisa mostra que os
educandos não têm clareza se ouviram a opinião do professor
ou não. Em apenas cinco turmas, mais de 70% dos estudantes
conseguiram identificar corretamente se o professor manifes­
tou sua visão sobre alguma controvérsia.

Há dois tipos deinfluêriçj.<:1s do professor sobre os estudantes


que Hess (2009)identifkôu eni sua pesquisa: influência ideoló­
gica e influência pedagógica. A primeira estaria mais próxima
de uma ideia de doutrinação e diz respeito à ideia de que os
estudantes são propensos a adotar a visão do professor tanto
por uma questão de respeito, tendo em vista que ele seria um
especialista no assunto, quanto porque o docente pode estar
abusando de seu poder. Já a segunda está relacionada ao fato
de que a opinião do professor pode interferir nas discussões,
no clima da sala de aula ou no relacionamento professor-e­
ducando, ou seja, mesmo que não esteja doutrinando os estu­
dantes, o professor poderia estar silenciando-os ou perseguin­
do-os em função de suas ideias.

Em relação à influência pedagógica, a pesquisa de Hess (2009)


mostra que 45% dos professores participantes acreditam que,
caso o professor revele sua opinião, é mais provável que os
alunos adotem essas mesmas opiniões. Além disso, 44% dos
estudantes acreditam que os estudantes provavelmente adota­
rão a visão do professor caso este a revele. No entanto, apenas
23% dos estudantes dizem que mudariam sua opinião para ali­
nhar-se à do professor. Embora esses achados pareçam con­
traditórios, os dados qualitativos mostram que os educandos
não veem problemas em o docente dividir sua opinião com a
turma desde que não o faça à força, em tom de pregação.

É interessante notar que a maioria dos alunos que disseram ter


professores não-reveladores preferem uma postura de não­
revelação, pois temem a influência do professor. Por outro
Ü ENSJNO DE TEMAS CONTROVERSOS: RISCOS OU POTENCIAIS PARA A DlDATlCA? 1 03

lado, a maioria dos educandos que afirmaram ter professores


reveladores disseram que a revelação é, na pior das hipóteses,
benigna e, na melhor, desejável. De uma maneira geral,
argumentavam que os professores estavam abertos para a
discordância e não menosprezavam os alunos que defendiam
uma posição diferente da sua. Ademais, diferentes materiais
eram utilizados nas aulas, de forma equilibrada entre pontos
de vista divergentes.

A pesquisa aponta ainda que alunos de professores não-re­


veladores: gostavam de sentir que estavam descobrindo algo
por eles mesmos sobre um determinado assunto; diziam que
tinham que se esforçar mais e prestar mais atenção; se sen­
tiam mais responsáveis a participar; a discussão era melhor e/
ou as pessoas participavam mais quando o professor facilitava
sem revelar. Em oposição, ter um professor revelador pode
ser uma oportunidade de aprendizado valiosa, pois o profes­
sor atua como um modelo de como pensa um adulto que tem
conhecimento sobre o tema e de ter acesso à informação de
credibilidade.

Discussão e Educação Democrática

Dada a importância do conceito de discussão para as propos­


tas de educação democrática, Hess (2009) aponta elementos
que a caracterizam: i) trata-se de um diálogo entre pessoas
trocando informações sobre um tópico; ii) é uma aproximação
à construção de conhecimento baseada na crença de que as
ideias mais fortes podem ser produzidas quando as pessoas
expressam suas ideias e ouvem outras expressarem as suas;
iii) possui muitas formas e pode ser usada de várias manei­
ras. Nesse sentido, a discussão não se trata de apenas uma
conversa despropositada ou em uma exposição de uma única
visão, mas sim de um processo em que diversos pensamentos,
através de argumentos fundamentados em informações verí­
dicas e passíveis de crítica, são expostos de maneira respeito­
sa e sem preconceitos. Tendo em vista que as questões �nvol­
vidas na discussão são autênticas e abertas - ou seja, que não
possuem uma resposta correta - seu resultado não envolve
necessariamente a mudança de posição de um lado em favor
do outro. O objetivo maior é que as diferentes opiniões sejam
1 04 0IDATICA: TECENDO/REJNVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

ouvidas e entendidas por aqueles que dela discordem. Como


Hess (2009) resume, concordar em discordar.

A discussão é parte fundamental da · educação democrática.


Hess (2009) descreve educação democrática como aquela que
intencionalmente ensina os j ovens a como fazer democracia,
abordando o mundo político fora da escola e o representan­
do como dinâmico, enfatizando a transformação constante da
sociedade. Ela difere de uma educação civica no sentido de
que esta visa apenas adequar os estudantes à sociedade e não
está comprometida com a sua mudança e com o rompimento
de desigualdades. Discussão é, nesse sentido, uma aproxima­
ção da democracia em §.Í.. em outras palavras, ouvir e falar
representa um dos obj él:ivos centrais da democracia: a auto­
governança entre iguais. Ser contra a discussão, é semelhante
a ser contra a democracia.

Vai� a pena destacar que, para Hess (2009), a tolerância po­


lítica pode ser definida como a disposição de se estender di­
reitos importantes e significativos para pessoas diferentes
de si. Assim, debates que envolvem pessoas com diferentes
ideologias - chamados pela autora de transversais - são de
grande importância para a construção da tolerância política
entre elas, uma vez que as familiariza com outras lógicas de
pensamento e faz com que o conflito político seja visto como
normal e legítimo.

Baseada em dados empíricos para a realidade dos EUA, Hess


(2009) afirma que poucas pessoas se envolvem em discussões
de temas controversos. Estranhamente, a maior parte defen­
de que essas temáticas sejam amplamente debatidas. Hess
(2009) aponta duas razões para esse aparente paradoxo. Pri­
meiramente, cada vez mais são criados espaços ideologica­
mente homogêneos. Associações, comunidades e até mesmo
as amizades estão ficando cada vez mais restritas àqueles que
compartilham da mesma ideologia. Em segundo lugar, há uma
aversão ao conflito político. Enquanto a sociedade estaduni­
dense valoriza o conflito e a controvérsia para competições
esportivas, por exemplo, há uma forte resistência a disputas
entorno de temas políticos controversos. Para Hess (2009),
isto leva a baixos índices de engajamento político e diminui o
Ü ENSINO DE TEMAS CONTROVERSOS: RJSCOS OU POTENCIAIS PARA A DIDÁTICA? 1 05

apetite por um amplo espectro de visões políticas. De acordo


com a autora, se poucas opções são oferecidas aos eleitores
(no caso dos EUA, na prática, apenas os partidqs Republicano
e Democrata) é porque os eleitores também não demandam
perspectivas diferentes.

Consequentemente, criam-se o que a pesquisadora chama de


comunidades "balcanizadas" (Hess, 2009, p.2 1 ) . Opiniões cada
vez mais duras e fechadas são construídas e as pessoas se tor­
nam incapazes de enxergar visões diferentes como minima­
mente compreensíveis. Nesse sentido, é mais provável que se
tornem intolerantes. A autora acrescenta que o modelo de de­
bates promovido na televisão - por ela chamado de "cabeças
gritantes" - e a Internet - com opções em que o próprio usuá­
rio pode fazer escolhas do que se vê e se deixa de ver - não
ajudam a superar esses obstáculos. Embora não tenhamos
dados empíricos semelhantes para a realidade brasileira,
certamente encontramos indícios de tais considerações
também para nosso país, como por exemplo, com relação
às últimas eleições presidenciais em 2 0 1 4 , em que as redes
sociais foram palco de intensas ofensas e conversas que não
se aproximavam de uma discussão voltada para a tolerância e
o aprendizado (MESQUITA, 20 1 4) .

Tópicos, problemas, questões e outras distinções

Hess (2009) distingue alguns termos como forma de ressaltar


a importância da clareza e do planejamento de uma discus­
são. A autora defende, baseada em sua produção, que a pre­
paração e a coerência entre os objetivos do professor e sua
prática são fatores fundamentais para um debate qualificado.
Nesse sentido, ela diferencia i) tópicos, problemas e questões;
ii) eventos atuais e questões; iii) questões ligadas a casos es­
pecíficos e questões perenes; iv) questões públicas e privadas;
v) questões políticas controversas e questões constitucionais.

Um tópico pode ser entendido como um evento, um lugar,


um ato ou um pro_- esso. Pode ser usado para articular o con­
teúdo primário de uma aula, uma unidade ou de um curso,
por exemplo, a guerra do Iraque, o Oriente Médio, imigração,
desarmamento nuclear (HESS, 2009) . É importante notar que
1 06 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

tópicos são propositalmente vistos como bastante amplos e


podem conter uma série de abordagens distintas. Por esse
motivo, Hess (2009) sugere que não sejam tratados como o
objeto das discussões em si, dado que diferentes caminhos
poderão ser tomados e tornar o debate demasiado abrangen­
te e superficial.

Em seguida, a autora se refere a problemas, os quais define


como pontos relacionados a tópicos mais amplos. No caso da
imigração, poderia se levantar problemas como se seus pa­
trões estão tirando vantagem deles ou se eles estão conse­
guindo ter acesso aos serviços de saúde adequados. Dessa
maneira, os problemas j4..apor:itam em um sentido mais espe­
cifico para o debate, mas ainda são amplos e não estão basea­
dos em propostas específicas.

Indo mais além, Hess (2009) define questões como autênti­


cas, relacionadas a políticas específicas e que fazem sentido
no momento presente. Ela dá como exemplo "o que deveria
ser feito para melhorar o acesso a serviços de saúde de alta
qualidade?", "ações afirmativas devem ser utilizadas para o
ingresso na universidade?" ou "o estado deve legalizar o suicí­
dio assistido por médicos?". É importante perceber que essas
questões não possuem uma única resposta possível e correta,
estão baseadas em medidas e decisões concretas e são impor­
tantes atualmente. Tendo em vista o recorte que tais questões
já pressupõem, desenvolver uma discussão de qualidade se
torna mais plausível do que partir de um tópico ou problema
mais abrangentes. Não se quer afirmar, entretanto, que tópi­
cos e problemas não tenham valor, mas sim ressaltar que, se
partindo dessas questões, é possível que o/a professor/a reú­
na materiais e planeje seu trabalho para preparar os estudan­
tes para o debate de maneira mais qualificada.

A autora ainda destaca outras distinções importantes de se­


rem feitas quando do planejamento de discussões em sala. Ela
chama atenção para a diferença entre eventos atuais e ques­
tões controversas. Hess (2009) diz que não é difícil que o/a
professor/a tente juntar essas duas variantes, no entanto, isto ·

é arriscado, dado que nem todo acontecimento recente é con­


troverso e muitas vezes um acontecimento controverso e de
Ü ENSINO DE TEMAS CONTROVERSOS: RISCOS OU POTENCIAIS PARA A DIDÁTICA? 1 07

grande importância pode ser suplantado pela urgência de se


cumprir o conteúdo prescrito pelo currículo. A autora dá um
exemplo de sua pesquisa em que dias após o onze de setem­
bro de 200 1 , uma professora optou por dar uma· aula sobre a
guerra anglo-americana de 1 8 12 , pois precisava cobrir o pro­
grama estabelecido para a disciplina. Além disso, Hess (2009)
critica a postura de alguns professores que insistem que seus
alunos prestem atenção ao noticiário, porém não aproveitam
a oportunidade para estimular o desenvolvimento de habili­
dades deliberativas de seus educandos.Vale a pena destacar
outra distinção que a autora realiza: entre assuntos perenes
- que cruzam diferentes épocas e locais - e questões ligados a
casos especificos. A autora usa "em que condições o governo
deve interferir na economia?" como exemplo de questão pe­
rene. Já "o New Deal foi justificado7" pode ser vista como uma
questão ligada a um caso específico.

Há ainda que se diferenciar questões públicas de questões pri­


vadas. Estas podem ser definidas como questões sobre o que
indivíduos devem fazer em situações moralmente complexas.
Já aquelas têm relação com escolhas da população em geral
e não somente uma decisão individual. Assim, "John deve se
alistar no exército?" é uma questão individual e "os EUA devem
reinstituir o serviço militar obrigatório7" é uma questão públi­
ca. Ainda que a diferença entre público e privado possa ser
evidente, esclarecer essa distinção permite articular diferentes
esferas de atuação de nível local e global e permitir ao educan­
do perceber os diferentes contextos em que está inserido.

Diante de tal cenário complexo e desafiador, não podemos


nos furtar a apontar possibilidades e pistas para super,ar de­
sigualdades, preconceitos e estimular a discussão de temas
controversos. Assim, apoiados em diferentes autores e sem
a pretensão de dar prescrições ou protocolos de como tratar
essa temática, apontaríamos:

• Dar voz a diferentes identidades, reconhecendo as relações


de poder e opressão entre elas (ANDRADE, 2009b; CAN­
DAU, 2 0 1 2 ) .
• Promover acesso a diferentes grupos, materiais, formas de
conhecimento e expressão sobre uma temática - em espe-
1 08 DroATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

eia! as que fogem à lógica escolar hegemônica (CANDAU,


2012; HESS, 2009).
• Não se limitar a apenas introduzir determinados conteúdos,
mas sim promover a pluralidade de culturas, de valores, de
tempos e de ritmos (AND R ADE, 2009a) .
• Estimular o trabalho e conhecimentos de docentes que vi­
sem a incorporar novos conteúdos, saberes e linguagens
(ANDR ADE 2009a).

Promover debates sobre questões claras e especificas (HESS ,
2009) .
• Não temer o conflito e as posições divergentes, mas sim in­
corporá-los como parte da proposta pedagógica (MAGEND­
ZO-KOLST R EIN,TOLE,QO-JOFRÉ , 2015; MAGENDZO, 2 0 1 6 ) .
• Problematizar ecoil:ii rdiscursos, falas e atitudes preconcei­
tuosas (LEVINSON, 2007).
• Promover uma discussão ampla na sociedade sobre os limi­
tes éticos da profissão docente (PENNA, 20 1 7) .

Os pontos destacados acima podem servir corno ponto de par­


tida para reflexões e práticas pedagógicas que visem à discus­
são de controvérsias em sala de aula, tendo atenção às dife­
renças entre os agentes escolares. Não se pretende, todavia,
que se tomem orientações rígidas e que esgotem os possíveis
questionamentos e desafios que os professores venham a en­
frentar. Assim, é fundamental valorizar práticas e saberes já
desenvolvidos pelos professores na busca pela superação des­
sas barreiras.

Conclusão

Neste trabalho, busquei aprofundar algumas reflexões sobre


o que seriam temas controversos e de que forma podemos
pensar o seu ensino na educação básica. Essas questões pos­
suem grande potencial para estimular o desenvolvimento de
pensamento crítico entre os estudantes, além de ensiná-los,
na prática, corno construir discussões que abarquem diferen­
tes pontos de vista, aumentando sua tolerância e empatia por
realidades e pensamentos distintos dos seus. Autores como
Dearden, Hand, Lenvinson e Hess oferecem importantes apor­
tes teóricos e empíricos, indicando a importância da reflexão
Ü ENSINO DE TEMAS CONTROVERSOS: RISCOS OU POTENCIAIS PARA A DIDAT!CA? 1 09

e do planejamento docentes para o desenvolvimento de estra­


tégias pedagógicas que favoreçam as discussões sobre essas
temáticas em sala de aula.

Tendo em vista a pluralidade das sociedades contemporâneas


e, também, do cotidiano escolar, é de grande relevância que as
diferenças culturais sejam valorizadas e respeitadas na elabo­
ração de currículos e aulas que se proponham a abordar temas
controversos. O conservadorismo e o populismo autoritário,
que restringem as possibilidades de atuação de professores e
escolas, se mostram como fortes obstáculos para a discussão
de controvérsias. Pautas como o projeto "Escola sem Partido",
ameaçam a autonomia docente e parte de uma concepção ex­
tremamente passiva de aluno, para estimulá-los a denunciar
professores que tentem doutriná-los. Ao impedir que a escola
aborde temáticas que não coincidam com os valores morais e
religiosos das famílias dos estudantes, impede-se o desenvol­
vimento do pluralismo de ideias e deixa-se de explorar um dos
poucos espaços em nossa sociedade em que opiniões distintas
ainda podem ser debatidas (HESS, 2009).

· Nesse sentido, a realidade atual traz uma série de dificuldades


para professores, currículos e escolas que visem desconstruir
preconceitos, sob o risco de serem atacados publicamente
como manipuladores e doutrinadores. Faz-se necessário, por­
tanto, estimular o desenvolvimento de estratégias pedagógicas
e projetos político-pedagógicos que reconheçam identidades e
promovam diferentes formas de conhecimento, questionando
poderes hegemônicos em nossa sociedade, explorando a po­
tencialidade das temáticas controversas.

Ainda que construir as condições necessárias para uma dis­


cussão possa ser um processo árduo, deixar de promovê-la
apresenta reveses que comprometem uma proposta de edu­
cação democrática. Voltando à pergunta do título do artigo,
sim há riscos para o ensino de temas controversos. Mas há
ainda mais riscos se não exploramos os potenciais das con­
trovérsias.
1 1o DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

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1 14 ÜiDATlCA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

Maria Inês Marcondes


PUC-Rio
fRF.IRE, DA CENA NACIONAL PARA A !NTERNAC!ONAL: DIALOGQS SOBRE CURR1CULO E OlOÁTlCA COM IRA SHOR } }5

Penso que se não formos capazes de demonstrar


que a abordagem dialógica é muito séria, muito
exigente, muito rigorosa, e implica numa busca
pennanente de rigor, se não fonnos capazes de
demonstrar isso fazendo-o, e não através do dis­
curso, acho quefalhamos na nossa proposta.
(FREIRE em FREIRE, P. e SHOR, !. Medo e Ousadia.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, I 986, p. 98).

Introdução

O texto apresenta o trabalho do educador Paulo Freire consi­


derado por diversos autores na área da educação como tendo
grande e expressiva influencia na constituição do campo da
Pedagogia Crítica e de um paradigma crítico emancipador na
área dos estudos curriculares. Neste trabalho, enfocamos es­
pecialmente a publicação do seu primeiro "livro dialogado",
uma proposta de Freire para publicar em livro uma série de
conversas, diálogos, entre ele e Ira Shor. É significativo que o
autor opte pelo formato de livro dialogado dada a importância
do diálogo em seu método. Assim, Freire e Shor, buscavam
naquele momento, basicamente responder às dúvidas dos
professores norte-americanos sobre a possibilidade de aplica­
ção no Primeiro Mundo de uma pedagogia gestada no Terceiro
Mundo. Essa terminologia, Primeiro Mundo e Terceiro Mundo,
amplamente utilizada no diálogo entre os dois, era muito usa­
da na época, tendo hoje caído em desuso e não sendo mais
utilizada por ter adquirido uma conotação negativa.
1 16 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

No Prefácio da edição brasileira, publicado em português, a


educadora Ana Maria Saul, afirma que:
Este trabalho poderá dirimir muitas das percepções equivoca­
das sobre seu pensamento (de Paulo Freire) no que diz respeito
às possibilidades da educação libertadora no contexto escolar.
[ . . ] as propostas concretas sobre como trabalhar com os objetos
.

do conhecimento escolar reconstruindo-os numa perspectiva


critica, a partir da cultura do aluno, como expressão da classe
social, são retomadas de uma forma bastante profunda e clara.
Creio que não restarão dúvidas a respeito do método dialógico
utilizado para conhecer e reconstruir o conhecimento, e, nes­
sa perspectiva, ficou mais uma vez demonstrado que essa pro­
posta, ao contrário ·cte-ser. e_spontaneísta, como muitas visões
-
míopes a interpretam, propõe -se rigorosa e com horizontes bem
definidos (FREIRE, P. e SHOR, I. Medo e Ousadia. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1 986, p. 8).

A partir das questões dos professores norte-americanos


apresentadas no livro por Ira Shor, Paulo Freire explica mais
detalhadamente e, em alguns casos, reelabora a proposta
apresentada em Pedagogia do Oprimido. Consideramos Medo
e Ousadia uma referência incontornável para aqueles que
estudam a pedagogia crítica, pois, neste livro, Freire revisa
conceitos e discute a aplicação do método dialógico cerca
de 1 5 anos depois da publicação da Pedagogia do Oprimido.
Neste livro Freire não usa mais a palavra conscientização. De
acordo com Brandão (sem data, p. 23) , em 1 985, por ocasião
de uma fala destinada a educadores na Argentina, no teatro
San Martin, para preparar a sua participação no Conselho de
Educação de Adultos da América Latina (CEAAL) na Assem­
bleia Mundial de Educação de Adultos em novembro de 1 995,
Freire afirma que a palavra conscientização não era usada por
ele desde 1 972. Explica, no texto, que algumas vezes é criti­
cado por críticos que não compreendem o 'tempo histórico'
do criticado.
,Eu mesmo me autocritiquei quando vi que parecia que eu pensa­
va que a percepção crítica da realidade já significaria sua trans­
formação. Isto era idealismo. Superei estas fases, esses momen­
tos, essas travessias pelas ruas da história em que fui picado pelo
psicologismo e pelo subjetivismo (ver a esse respeito Brandão,
e. A Pessoa de Paulo. Memórias/ Depoimentos, sem data, p. 23) .
FREIRE, DA CENA NACIONAL PARA A INTERNACIONAL: DIÁLOGOS SOBRE CURR1CULO E D!DATJCA l'OM IRA SHOR 1 17

Não utilizando a palavra conscientização no livro, são utiliza­


das outras expressões como: educação para a transformação,
educação libertadora e educação liberadora. As questões que
são colocadas por Shor, se referem aos seguintes aspectos:
Como uma pedagogia do Terceiro Mundo influencia, até hoje,
países do Primeiro Mundo? Quais os aspectos didáticos que
Freire aborda em diálogo com Ira Shor no seu livro Medo e
Ousadia? Assim, Freire explicita a importância do diálogo na
sala de aula através de um livro dialogado. Em outros momen­
tos, posteriores à publicação deste livro, Freire dialoga com
outros autores, como Antonio Faundez ( 1 985) e Sérgio Guima­
rães (2002) , entre os mais conhecidos, e publica outros livros
neste formato de diálogo. Durante todo o livro há exemplos de
situações vividas pelos dois professores nos contextos univer­
sitários brasileiro e norte-americano.

O livro dialogado

Paulo Freire publicou, então, com Shor na década de 1 980 o


primeiro livro dialogado intitulado Medo e Ousadia: o cotidia­
no do professor (1986 ) /A Pedagogyfor Liberation (1986). Esse
livro teve versões em português e em inglês. Na edição em
português, na parte dos Agradecimentos, Shor conta que os
dois professores se reuniram inicialmente, em Amherst, em
fevereiro de 1 984, onde Freire fazia uma residência na Uni­
versidade de Massachussets, seguido de um encontro em Ann
Arbor, em março, depois houve outro encontro em Nova York,
em maio, para repassar a agenda das questões. Mais tarde, em
julho, se encontraram em Vancouver, onde Freire ministrava
um seminário sobre Educação de Adultos na Universidade de
British Columbia. Em Vancouver realizaram os diálogos, que
duraram oito dias em sessões com a duração de três horas
cada uma delas. As fitas foram transcritas e eles se reuniram
depois mais vezes em Nova York, com o objetivo de editar o
manuscrito e gravar mais algumas falas. Finalmente, em julho
de 1 985, em Massachussets, se reuniram para terminar a edi­
ção final do texto.

Freire, na época era considerado um dos ícones da pedagogia


crítica, nos Estados Unidos. Suas obras, publicadas em língua
1 18 DtDÁTJCA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

inglesa e amplamente divulgadas nos Estados Unidos como


Education for Criticai Consciousness Continuum, (New York,
1 973) eram lidas e citadas por diferentes teóricos do campo
dos estudos curriculares, como Henry Giroux e Peter Mac La­
ren entre outros. Seus livros eram resenhados em diferentes
periódicos acadêmicos americanos e Freire era constante­
mente convidado para debates e palestras em universidades,
sindicatos, associações de professores etc.

Ira Shor na época era um jovem professor americano de lín­


gua inglesa que trabalhava na Cio/ Universi9f de Nova York e
que havia lido algumas obras de Freire como Pedagogy of the
Oppressed /Pedagogia,clQ...Oprimido e já havia publicado um li­
vro que tinha os princlp!os freireanos como base do ensino,
procurando adaptar à realidade americana à proposta de edu­
cação dialógica intitulado Criticai Teachíng and Everyday Ufe
(Southend Press, Boston, 1 980) .

A importância deste livro, o primeiro livro dialogado ("a taikín- ·

g-book'', como era chamado por Shor) permite que através do


diálogo/entrevista se estabeleça uma autorreflexão dos pró­
prios autores sobre suas experiências, contextualizando-as, e
discutindo-as reflexivamente com um "amigo crítico"/ criticai
fiiend. o conceito de amigo crítico pode ser entendido como
aquele amigo que lê e discute com o autor suas ideias forçan-
do uma reflexão mais aprofundada dos conceitos e argumentos j
apresentados. Freire gostava de colocar suas ideias em discus-
são inclusive para reelaborá-las. Muitas vezes chegava a anotar
em fichas o resultado dessas discussões com amigos e intelec-
tuais para futuras reflexões e aprimoramentos de suas próprias
ideias. Tinha assim seu próprio método de trabalho intelectual.

Em relação a este primeiro livro dialogado, os autores assim


se expressam:
Na medida em que, enquanto falamos, somos leitor um do outro,
leitores de nossas próprias falas, o que ocorre aqui é que cada um
de nós é estimulado a pensar e repensar o pensamento do outro
(FREIRE, P. e SHOR, I. Medo e ousadia, Prefácio, 1986, p. 1 3- 1 4).

O diálogo aborda dúvidas e questionamentos dos professores


americanos, entre eles: Como pode o professor transformar-se
FREIRE, DA CENA NACIONAL PARA A INTERNACIONAL: DIÁLOGOS SOBRE CURRICULO E DIDÁTICA COM IRA 5HOR 1 }9

num educador libertador? De que modo a educação se rela­


ciona com a mudança social7 Quais os temores e os riscos da
transformação? Existe estrutura e rigor na educação libertado­
ra? As classes dialógicas tornam iguais professores e alunos?
o que é o "método dialógico" de ensino? O que é uma "peda­
gogia situada" e em que consiste o conceito de empowerment?
Existe uma "cultura do silêncio" nos EUA7 Os alunos norte-a­
mericanos, vivendo numa democracia abastada, precisam de
"libertação"? Como podem os educadores libe.rtadores superar
as diferenças de linguagem existentes entre eles e os alunos?
o sonho da transformação social: como começar a "segunda­
feira de manhã"? Temos direito de mudar a consciênda dos
alunos? Essas perguntas, em síntese, provocavam um ques­
tionamento mais amplo: Podemos aplicar no Primeiro Mundo
uma pedagogia do Terceiro Mundo?

O diálogo estabelecido entre os dois se propôs também a es­


clarecer equívocos gerados. Naquela época, de 1 970 a 1 980,
Freire havia ocupado um importante cargo relacionado à
educação no Conselho Mundial das Igrejas e, por condições
de convites e tarefas a serem desempenhadas neste posto,
viajou com frequência por vários países e, cada vez mais,
se tomou um educador de renome internacional, conhecido
primordialmente pela publicação de sua obra Pedagogia do
Oprimido e por sua experiência na educação em consultoria
e viagens pelo continente europeu, pela Africa e pelos Es­
tados Unidos. Nos Estados Unidos era intensamente citado
por aqueles que se propunham a constituir um novo para­
digma curricular em oposição ao paradigma técnico, predo­
minante na década de 1 970 e que ainda vigorava com força
na área. Mesmo sendo conhecido internacionalmente e suas
obras sendo utilizadas como base para fundamentar uma pe­
dagogia crítica, nessa mesma época já começavam a apare­
cer muitas críticas ao seu trabalho. Assim, ao dialogar com
Shor, ele se propôe a esclarecer a aplicação da metodologia
dialógica em diferentes contextos e a reafirmar sua impor­
tância. Freire volta a enfatizar a possibilidade de aplicação
da educação libertadora no contexto escolar, reiterando que
essa aplicação não só é possível como também necessária.
Neste livro, Freire retoma também a questão do rigor na edu­
cação libertadora, pois seu pensamento era visto, por alguns
120 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

de seus críticos, como por demais espontaneísta, sem fortes


referências teóricas.

No diálogo com Shor, Freire retoma e coloca a forte ênfase


em uma prática crítica. Coloca-se em oposição a uma ideia
de que não se trata de uma prática ingênua e sem direção, ao
contrário, os horizontes são bem definidos, o professor sabe
aonde quer chegar. Freire reafirma que a prática dialógica é
completamente diferente de uma prática não diretiva, espon­
taneísta. Esses pontos, retomados por Freire, neste diálogo,
tem como um de seus objetivos reafirmar a importância de
uma educação dialógica e sua aplicabilidade a diversos con-
textos. ,,�

Enquanto Shor discorre sobre suas experiências nos Estados


Unidos como professor secundário e universitário, Freire fala
sobre suas experiências no Brasil assim como quando foi pro­
fessor visitante nos Estados Unidos, na Universidade de Har­
vard e na Suíça na Universidade de Genebra.

No livro, Freire vai contando sua vida no período do exílio,


quando foi desenvolvendo uma experiência internacional que
vai marcar sua obra. Vivendo e trabalhando no Chile, nos Es­
tados Unidos e, na Suíça, a partir dessas experiências inter­
nacionais, Freire adquire novas perspectivas e se torna autor
de referência internacional. O livro Pedagogia do Oprimido foi
traduzido em várias línguas e ainda neste a no corrente foi ree­
ditado nos Estados Unidos, Durante toda sua vida, Freire re­
tornou aos Estados Unidos.
[.,.] Venho todos os anos (aos Estados Unidos) , e sempre apren­
do alguma coisa - ainda que seja apenas como é difícil aprender
sobre esta cultura (FREIRE apud FREIRE e SHOR, 1 986, p, 1 40).

Questões retomadas em Medo e Ousadia ( 1 986)

Em Medo e Ousadia, sempre levando em conta suas histórias


de vida como objeto de reflexão, retomam, na década de 1 980,
questões colocadas nas décadas anteriores, de 1 960 e 1 970,
e são discutidas possibilidades de uma educação dialógica,
transformadora no ensino superior,
FREIRE, DA CENA NAOONAL PARA A INTERNACIONAL: DIÁLOGOS SOBRE CURRÍCULO E DIDÁTICA COM [RA SHOR 1 2-1

Destacamos, nesse texto, alguns pontos básicos que podem


nos ajudar a pensar a didática e o currículo: uma proposta
didática para o ensino superior - a educação dialóg1ca. Segun­
do essa visão, a educação dialógica abrange uma variedade
de formatos inclusive a própria aula expositiva. Finalizamos o
texto com a constatação do próprio Freire dos limites da edu­
cação. Essa conversa que trouxe aos dois educadores muitas
reflexões que proporcionaram reelaborações no pensamento
de ambos é mais uma evidência da importância da sua in­
fluência no contexto internacional, assim como essa própria
experiência internacional influencia o pensamento freireano
de forma marcante.

No início do diálogo, Freire lembra alguns momentos em sua


vida que foram importantes. Sua prática inicial como profes­
sor de escola secundária, quando descobriu que deveria dia­
logar com os estudantes, mesmo não tendo ainda uma noção
sistemática do que significa diálogo. Misturava nesta época
métodos tradicionais com métodos críticos. Naquele momen­
to, para discutir a sua própria didática, Freire relembra quando
ensinava português em escolas de segundo grau de uma for­
ma muito dinâmica e isso agradava aos alunos.
Meu ensino, então, era uma mistura de formas didáticas tradi­
cionais e críticas. Eu explicava as regras de correção gramatical
na sala de aula, mas acima de tudo, estimulava-os a escrever
pequenos trabalhos, que eu lia e depois usava como texto, um
por vez, durante toda uma aula, usando seus próprios escritos
como exemplos de gramática e sintaxe, analisando temas so­
bre os quais escreviam. Eu lhes ensinava gramática a partir do
que escreviam, e não de um compendio. E utilizava também
textos de bons autores brasileiros (FREIRE in FREIRE e SHOR,
1 986, p. 39) .

Deste modo, Freire, desde cedo, já percebia a importância de


valorizar a experiência dos alunos, vendo não só como des­
creviam e dialogavam sobre essas experiências, trazendo sua
forma de ver o mundo, o que valorizavam, o que os incomo­
dava, seus anseios e aspirações para entender melhor como
se portavam e viam o seu modo de inserção na sociedade.
Sua prática também sempre foi marcada não só pela leitura de
educadores e escritores, mas sempre mediada por sua obser-
1 22 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

vação cuidadosa da realidade em que estava inserido.


( ... ) Tomava questões concretas, às vezes sobre algumas pági­
nas de algum texto que estávamos lendo, às vezes sobre algum
momento de sua própria experiência. E as horas de aula eram
discussões sobre os temas e também sobre as redações, mas
uma discussão crítica sobre o que diziam e escreviam, e não
uma lição de manual (FREIRE in FREIRE e SHOR, 1 986, p. 39).

Depois de deixar a escola secundária, começou a ensinar ao.s


trabalhadores adultos em Recife. Lá fortaleceu suas ideias.
Seu trabalho era em uma instituição particular em bairros da
cidade e em áreas rurais. Nesta época, ele conta que tentava
estabelecer relação enti:e...o que se ensina nas escolas e a vida
dos trabalhadores. cónfa que percebeu que deveria estudar
suas perspectivas, ouvi-los mais.

Em um terceiro momento, em tomo dos 25 anos, foi impor­


tante também sua descoberta do 'ensino como paixão'. Nes­
sa época, Freire já estava casado com Elza. Freire tinha sido
seu professor particular e a ajudava na preparação para um
concurso para diretora de escola. Nesse momento, foi convi­
dado para trabalhar num instituto industrial particular, em Re­
cife, o que lhe permitiu conhecer trabalhadores adultos e, de
acordo com ele mesmo, "foi exatamente minha relação com
trabalhadores e camponeses que nessa ocasião me levou à
compreensão mais radical da educação" (FREIRE in FREIRE e
SHOR, 1 986, p. 4 1 ) .

O último período de seu desenvolvimento na pedagogia, para


sua compreensão da política da educação, foi o exílio, segun­
do o próprio Freire:
O exílio permitiu-me repensar a realidade do Brasil. Por outro
lado, meu confronto com a politica e a história de outros luga­
res, no Chile, América Latina, Estados Unidos, Africa, Caribe,
Genebra, me expôs a muitas coisas que me levaram a reapren­
der o que eu sabia. É impossível que alguém esteja exposto a
tantas culturas e países diferentes, numa vida de exílio, sem
que aprenda coisas novas e reaprenda velhas coisas. o distan ­
ciamento do meu passado no Brasil e o meu presente em con­
textos diferentes, estimulou minha reflexão (FREIRE in FREIRE
e SHOR, 1 986, p. 43).
fREIRE, DA CENA NACIONAL PARA A INTERNACIONAL: DIÁLOGOS SOBRE CURRÍCULO E DIDÁTICA COM IRA 5HOR 1 23

Freire sempre reconheceu a importância da experiência in­


ternacional que teve em diferentes países tornando o con­
texto de empréstimo (o exílio) como seu objeto de reflexão
permanente e buscando pontos em comum com seu contexto
de origem. Se expondo a várias culturas, Freire pode dar con­
tribuições importantes e receber desafios de outras realida­
des diferentes da sua.

A educação clialógica: uma proposta rigorosa

Freire ressalta que, desde o início, estava convencido que de­


veria dialogar com os estudantes, mas não tinha ainda uma
noção sistemática do que significaria o diálogo.

No início do livro, Shor, em suas aulas de língua inglesa, diz


que se preocupava muito com os problemas dos alunos, seus
problemas familiares, condições de trabalho, de mobilidade
na cidade, e, por causa dessa preocupação que ele tinha, criou
condições em classe para que os alunos falassem de suas vi­
das, assim:
A vida e a linguagem dos estudantes eram textos sociais que
nem eles nem eu entendíamos, mas que me apresentavam mo­
delos, motivos, temas, personagens, e imaginário, como pistas
para seu significado. Assim, tudo somado, talvez tenha percebido
que os professores eram uma janela e um caminho para os alu­
nos, para que vissem suas próprias condições e vislumbrassem
um destino diferente. ( . ) O reconhecimento dessas questões me
. .

ocorreu depois de tê-las experimentado em classe durante mui­


to tempo. Primeiro experimentei, depois refleti. Depois, Paulo, li
seus livros e consegui o enquadramento filosófico daquilo que
estava fazendo (SHOR in FREIRE e SHOR, 1 986, p. 35).

Assim, Shor sempre achou que a experiência dos alunos de­


veria ser valorizada e que os escritos de Freire vieram forne­
cer a ele uma fundamentação teórica da importância dessa
valorização.

Continuando a tentar desfazer equívocos em relação à sua


proposta, Freire afirma que a educação dialógica "não é uma
concepção bizarra do Terceiro Mundo. [ . . ] O diálogo implica .
124 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

responsabilidade, direcionamento, determinação, disciplina,


objetivos (FREIRE in FREIRE e SHOR, 1 986, p. 1 27) e sem dei­
xar de lembrar de que é muito importante "introduzir os alu­
nos na linguagem acadêmica e teórica", mas que isso deve
ser feito a partir das percepções dos alunos, "sejam eles cam­
poneses em uma atividade educacional informal, operários,
ou sejam estudantes universitários, não importa". Temos que
começar "a partir da linguagem deles e não da nossa lingua­
gem". Porém, partindo de sua linguagem, de seus níveis de
percepção e conhecimento da realidade, procuramos, com
eles, atingir um nível de compreensão e expressão da reali­
dade mais rigoroso (FREIRE in FREIRE, e SHOR, 1 986, p. 1 78-
1 79). .
. ... . . . .
··. .,,

Perguntava o que tinliàm feíto no final de semana, por exemplo.


Não lhes pedia para escrever sobre coisas abstratas ou concei­
tos. Sempre achei errado esse tipo de exercício. Tomava ques­
tões concretas, às vezes sobre momentos de sua própria expe­
riência de vida. E as horas de aula eram discussões sobre os
temas e também sobre as redações, mas uma discussão crítica
sobre o que diziam e escreviam, e não uma lição de manual
(FREIRE in FREIRE, e SHOR, 1 986, p. 39) .

Em última análise a educação libertadora deve ser compreen­


dida como um momento, ou um processo, ou uma prática
. onde estimulamos as pessoas a se mobilizar ou a se organizar
para adquirir poder (FREIRE in FREIRE , e SHOR, 1 986, p. 47) .

Shor introduz, na conversa, temas que já eram muito discu­


tidos nos Estados Unidos como questões raciais e a própria
discussão do sexismo resultante dos movimentos feministas
que já eram muito atuantes no contexto norte-americano lem­
brando que:
Se estudam seriamente o racismo, ou o sexismo, ou a corrida
armamentista, percebo a í um ponto de partida da transforma­
ção que pode desenvolver-se, a longo prazo, em sua opção pela
mudança social. Refletindo sobre o que uma classe pode atingir,
vejo uma gradação de momentos de transformação (SHOR in
FREIRE, e SHOR, 1 986, p. 4 7).

Deste modo, os autores discutem os limites da educação e uma


concepção de transformação mais realista, menos idealizada.
fREIRE, DA CENA NACIONAL PARA A INTERNACIONAL: DIÁLOGOS SOBRE CURRICULO E DIDATICA COM IRA SHOR 1 1.5

Como entender o diálogo: desfazendo equívocos

Há uma nítida preocupação no livro em reafirmar posições,


clarificar conceitos, assim como desfazer equívocos e propor
alternativas de aplicação de propostas conceituais apresen­
tadas nas obras anteriores. A proposta de uma educação dia­
lógica, em alguns meios educacionais ficou identificada com
uma pedagogia não diretiva e sem rigor acadêmico. Freire re­
toma, com veemência, a concepção de diálogo, reafirmando
que não se trata de uma técnica descolada de uma concepção
de educação emancipadora, libertadora ou liberadora.
Antes de mais nada, Ira, penso que deveríamos entender o diá­
logo não como uma técnica apenas que podemos usar para con­
seguir obter alguns resultados. Também não podemos, não de­
vemos entender o diálogo como uma tática que usamos para
fazer dos alunos nossos amigos. Isso faria do diálogo uma téc­
nica para a manipulação, em vez de iluminação. Ao contrário, o
diálogo deve ser entendido como algo que faz parte da própria
natureza histórica dos seres humanos. É parte de nosso progres­
so histórico do caminho para nos tomarmos seres humanos. ( . . . )
O diálogo é o momento em que os humanos se encontram para
refletir sobre sua realidade tal como o fazem e refazem (FREIRE
in FREIRE, e SHOR, 1 986, p. 122) .

O diálogo, como técnica de ensino, foi apropriado por dife­


rentes autores e desvinculado dos princípios mais teóricos da
proposta freireana.

A questão da autoridade foi também, em muitos casos, trata­


da sem o devido rigor que Freire deu em sua proposta, assim,
Freire volta a reafirmar a autoridade do professor, mas dife­
rencia os conceitos de autoridade de autoritarismo. Marca que
a educação dialógica tem objetivos definidos e metas claras.
Defendendo que educação dialógica não se identifica com prá­
ticas espontaneístas, não diretivas e pouco rigorosas. Defende
uma ação planejada com objetivos definidos, uma proposta
política com metas claras e delineadas, buscando empoderar
os alunos, valorizando sua experiência e reconhecendo seu
conhecimento como válido.
Além disso, através dessa forma de entender o diálogo, o objeto
a ser conhecido não é de posse exclusiva de um dos sujeitos
,

1 26 DIDATlCA: TECE.NDO/RElNVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

que fazem o conhecimento, de uma das pessoas envolvidas no


diálogo. [ .. ] O contato prévio do educador com o objeto a ser
.

conhecido não significa, no entanto, que o professor tenha esgoc


tado todos os esforços e todas as dimensões no conhecimento
do objeto (FREIRE in FREIRE, e SHOR, 1 986, p . 1 23) .
Porque é que alguns educadores consideram bizarra essa pers­
pectiva do ato de conhecimento, algo bizarro que veio do Tercei­
ro Mundo? Como é possível pensar assim? A educação dialógica
é uma posição epistemológica e não uma invenção bizarra ou
uma prática estranha vinda de uma parte exótica do mundo! [ . . ] .

Precisamente porque há uma epistemologia aqui, minha posição


não é a de negar o papel diretivo e necessário do educador. Mas
não sou o educado� gue se considera dono dos objetos que estu­
do com os alunos. Estôtiéxtrémamente interessado nos objetos
de estudo · - eles estimulam minha curiosidade e trago esse entu­
siasmo para os alunos. Então podemos juntos iluminar o objeto.
(FREIRE in FREIRE, e SHOR, 1986, p. 1 25).

Concluindo, os autores vão reafirmar a importância de esclare­


cer que a educação dialógica pode ser aplicada em diferentes
contextos na discussão dos problemas daquela realidade es­
pecífica, visando tornar sociedades mais justas e igualitárias.

A variedade de formatos que uma aula libertadora


pode ter de acordo com Freire e Shor

Nesta parte do diálogo há uma preocupação grande por parte


dos dois professores de mostrar formas práticas de como um
curso dialógico pode se desenvolver, mas, ao mesmo tempo,
ambos enfatizam que isso não representa 'um método' e sim
que tem pressupostos claros em estabelecer novas relações
entre conhecimento e sociedade, como, por exemplo, profes­
sores e alunos em relações mais horizontais, enfatizando res­
peito pelos saberes dos alunos, preocupação real com sua si­
tuação de vida e perspectiva de educar as pessoas para serem
livres levando a uma transformação da sociedade.

Em relação a sua afirmação de que a transformação não é só


uma questão de métodos e técnicas, mas vai muito além disso,
Freire afirma:
FREIRE, DA CENA NACIONAL PARA A INTERNACIONAL: DlALOGOS SOBRE CURRICULO E DIDÁTICA COM lRA 5HOR 12 7

O educador libertador tem que estar atento para o fato de que a


transformação não é só uma questão de métodos e técnicas. (... ) a
questão é o estabelecimento de uma relação diferente com o co­
nhecimento e a sociedade (FREIRE in FREIRE, e SHOR, 1 986, p. 48).

Shor complementa bem essa ideia dizendo:


A meu ver, numa classe libertadora, o professor procura se re­
tirar, gradualmente, como diretor da aprendizagem, como força
diretiva. A medida que os estudantes passam a tomar iniciati­
vas mais críticas, o professor encoraja sua auto-organização,
sua participação na organização do currículo (Shor in FREIRE, e
SHOR, 1 986, p. 1 1 4) .

Contra uma simples identificação de educação bancária com


exposição feita pelo professor Freire vai afirmar que "nem to­
dos os tipos de aula expositiva podem ser considerados 'educa­
ção bancária"'. Assim, tenta clarificar um dos mal-entendidos
gerados mostrando que houve uma identificação apressada de
todo ensino expositivo com "educação bancária''. E que bas­
tava uma aula organizada em grupos para que se tivesse um
ensino libertador. Na época, muitas práticas não diretivas eram
difundidas e a educação dialógica foi assumida como uma de­
las esquecendo-se o seu potencial crítico da realidade. Desfa­
zer esse equívoco era um dos motivos do livro, por isso, Freire
defende sua postura de modo enfático:
A questão não é se as preleções são "bancárias" ou não, ou se
não deve fazer preleções. Porque o caso é que os professores
tradicionais tornarão a realidade obscura, quer dando aulas ex­
positivas, quer coordenando discussões. O educador libertador
iluminará a realidade mesmo com aulas expositivas. A questão é
o conteúdo e o dinamismo da aula, a abordagem do objeto a ser
conhecido. Elas reorientam os estudantes para a sociedade de
forma crítica? Estimulam o pensamento crítico ou não? (FREIRE
in FREIRE, e SHOR, 1 986, p. 54).

A forma de trabalhar o conteúdo, o dinamismo da aula, a


abordagem do objeto são mais importantes do que a escolha
da técnica. Tomar a fala como desafio passa a ser o mais re­
levante.
Como é possível provocar a atenção crítica falando? Como de­
senvolver um certo dinamismo no interior de sua fala? Como
128 ÜIDATICA : TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

ter, dentro da fala, o instrumento para desvendar a realidade,


para deixar de torná-la obscura? Se pode fazer isso com os es­
tudantes no espaço de uma hora? Depois a classe toma a pró­
pria fala do professor como objeto de reflexão. Você leva sua
fala como uma espécie de codificação de um problema, que
agora será decodificado pelos alunos e por você. Isto é extraor­
dinariamente crítico.
O importante é que a fala seja tomada como um desafio a ser
desvendado, e nunca como um canal de transferência de conhe­
cimento (FREIRE in FREIRE, e SHOR, 1 986, p. 54).

Assim, a identificação direta e simples de igualar todas as


aulas expositivas como educação bancária é refutada pelo
próprio Freire. Professores <:J.Ue dão aulas expositivas nem
sempre estão oferecendo uma "educação bancária" assim
como aqueles que sempre estão trabalhando em grupo po­
dem não estar possibilitando uma educação crítica. Esse foi
outro mal-entendido que o livro se propõe a esclarecer atra­
vés do diálogo.

Tendo esclarecido a questão das aulas expositivas Freire vai


mais adiante mostrando a variedade de formatos que uma
aula libertadora pode ter, dando exemplos práticos em dife­
rentes disciplinas escolares de como podemos planejar aulas
dialógicas.
Uma vez que se opta pela transformação, pode-se levar para
o seminário pedaços da realidade. Pode-se levar discursos do
presidente. Pode-se levar recortes de jornal. Pode-se levar co­
mentários do Banco Mundial. Levá-los e examiná-los! Pode­
se fazer isso mesmo sendo um professor de Biologia, sem sa­
crificar o conteúdo do programa -fantasma que assusta muitos
professores-, sem sacrificar o conteúdo da disciplina. Se um
professor de Matemática ou de Física não consegue descobrir
item algum do relatório do Banco Mundial relacionado com sua
disciplina, então não acredito em sua capacidade, porque há
sempre formas de fazer isso. ( . . . ) (FREIRE in FREIRE, e SHOR,
I 986, p. 62).

Freire explica que há várias formas de provocar a reflexão atra­


vés de perguntas em um seminário, utilizando diferentes tipos
de materiais como reportagens de jornais, relatórios, material
FREIRE, DA CENA NACIONAL PARA A INTERNACIONAL: D!ALOGOS SOBRE CURRICULO E DIDÁTICA COM IRA 5HOR J 29

da mídia.
O professor pode dar uma aula expositiva, pode encaminhar
uma discussão, pode organizar pequenos grupoE; de estudo den­
tro da sala de aula, pode supervisionar pesquisas de campo fora
de sala de aula, pode exibir filmes, pode complementar pontos
de vista que faltam à classe, ou pode atuar como um bibliotecá­
rio, na ajuda a grupos de estudos a encontrar materiais, ou pode
destinar longas horas de aula às apresentações dos estudantes
etc. Para os estudantes, essa flexibilidade é sinal da abertura do
curso (SHOR in FREIRE, e SHOR, I 986, p. I 1 6 ) .

Assim, os autores mostram diversas formas didáticas que po­


dem ser usadas em classes que se propõem dialógicas. Por ou­
tro lado, também Freire mostra que sua proposta, inicialmente
mais afeta à educação de adultos, tem um alcance bem mais
amplo, sendo bastante utilizada, j á nesta época por p rofe sso­
res de diferentes níveis de ensino assim como em diferentes
áreas de conteúdo.

Outro aspecto destacado por Freire é a leitura crítica dos tex­


tos como uma condição essencial para a metodologia dialó­
gica . Nesse momento do diálogo passa a explicar como ele
mesmo faz em sala de aula, procurando através de seu próprio
exemplo tornar essa questão mais clara.
Leio com eles, sem lhes dizer que os estou ensinando a ler, a
saber o que significa ler criticamente, o que você exige de si
mesmo para ler, a saber o que significa criticamente , o que
você exige de si mesmo para ler, que é impossível passar para
a página seguinte sem entender o que está nesta página; que se
você não entende alguma palavra tem de consultar um dicio­
nário, se o dicionário comum não ajuda, tem de consultar um
dicionário filosófico, um dicionário sociológico, um dicionário
etimológico. Ler um livro é uma espécie de pesquisa perma­
nente. Faço isso com os estudantes (FREIRE in FREIRE, e SHOR,
1 986, p. l 06) .

Mais do que dar uma explicação pronta como resposta à inda­


gação do aluno Freire mostra diferentes caminhos para que o
próprio aluno busque o seu conhecimento, saiba usar diferen­
tes materiais, aprendendo a ir atrás de suas respostas, formu­
lando também novas perguntas.
1 30 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

A Constatação dos Limites de uma Educação


Transformadora

Transcorridos mais de dez anos da publicação da Pedagogia


do Oprimido (1970) Freire reconhece limites de sua proposta e
da ideia que a educação tinha grande poder na transformação
das injustiças da sociedade. Reconhecendo que seus escritos
podem ter ajudado a reforçar essa ideia, a questão é retomada
em outras bases.
Sei que o ensino não é a alavanca para a mudança ou a transfor­
mação da sociedade, mas sei que a transformação social é feita
de muitas tarefas pequenas e grandes, grandiosas e humildes!
(FREIRE in FREIRE, e SljOR, 1 986, p. 60).
' -�. ..

Freire nos lembra que nenhuma tarefa deve ser considerada me­
nor. Tudo deve ser visto como parte de um processo mais amplo.
Devemos evitar o pensamento de que nós somos os iluminado­
res. Creio que a educação libertadora implica a iluminação da
realidade, mas os iluminadores são os dois agentes do proces­
so, os educadores e os educandos juntos (FREIRE in FREIRE, e
SHOR, 1 986, p. 64).

Tanto o educador como o educando têm sua parte no processo


de desenvolver uma educação crítica. Mesmo reconhecendo
que a realidade não pode ser transformada apenas pela ação
educacional, Freire nos anos 1 980 apresenta uma visão mais
realista que incorpora as críticas recebidas ao seu trabalho.
Precisamente porque a educação não é a alavanca para a trans­
formação da sociedade, corremos o perigo do desespero e do
ceticismo, se limitarmos nossa luta à sala de aula. [. . . ] Devemos
saber que é possível conseguir algumas coisas importantes no
espaço institucional de uma escola, ou faculdade, para ajudar
a transformação da sociedade. Se compreendermos a natureza
limitada e vinculada de educação, se compreendermos como a
educação formal se relaciona com a sociedade global, sem ser,
apenas, a reprodutora da ideologia dominante, e sem ser, tam­
bém, a principal alavanca da transformação (FREIRE in FREIRE,
e SHOR, 1 986, p. 1 57).

Conclui então reconhecendo os limites, mas, ao contrário do


que se poderia pensar, reafirmando a importância do trabalho
fREIRE, DA CENA NACIONAL PARA A INTERNACIONAL: D!ALOGOS SOBRE CURRICULO E DIDATICA COM IRA SHOR 131

político dentro e fora das salas de aula.


[ . . ] Conhecer os limites da educação não me levou a reduzir
.

minha atividade nessa área, mas, pelo contrário, .ampliou meus


objetivos politicos. Mas , sobretudo, ampliei meu trabalho polí­
tico fora das escolas. (FREIRE in FREIRE, e SHOR, 1 986, p. 1 58).

Ao final do livro, Shor traz para a discussão com Freire as te­


máticas do racismo e do sexismo, explicando que essas duas
dimensões são inevitáveis na vida social e na educação. Shor
defende a inclusão dessas discussões na sala de aula dialógi­
ca que deve tomar o racismo e o sexismo enquanto objeto de
estudo crítico. Freire vai afirmar que "se realmente queremos
reinventar a sociedade, para que as pessoas sejam cada vez
mais livres, e mais criativas, esta nova sociedade que deve
ser criada por homens e mulheres, não pode ser racista, não
pode ser sexista" (FREIRE e SHOR, 1 986, p. 1 99) . Conclui afir­
mando que devemos educar as pessoas para serem livres para
podermos transformar a realidade simultaneamente, por isso,
devemos estar engajados na ação política contra o racismo e
contra o sexismo. Assim, Freire se coloca como um "intelec­
tual de fronteira", de acordo com Giroux ( 1 995) .

Finalizando

É inegável a importância da vivência e reflexão de Freire sobre


os contextos internacionais em sua obra_ A Pedagogia do Opri­
mido (1970) influenciou de forma marcante a vários autores
na área do ensino, currículo e formação de professores. Ira
Shor foi um desses autores. A proposta de educação dialógica,
ainda hoje, se mantém como um desafio aos professores de
quaisquer níveis.

A proposta de educação d e Freire, que se inicia num contexto


nacional, internacionaliza-se, mantendo-se atual. Sua inter­
nacionalização mantém-se no contrafluxo das atuais políticas
globais que enfatizam a performatividade. Inegavelmente, a
obra de Freire continua sendo uma leitura essencial. Freire foi
um autor que exerce, em sua própria obra, sua proposta refle­
xiva, reformulando-a e expandindo-a constantemente.
1 32 ÜiDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

Referências bibliográficas

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1 34 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

DIREITOS
. HUMANOS, -

EDUCAÇAO
. · E CIDADANIA

PLANETÁRIA .

Susana Sacavino
NOVAMERICA
DIREITOS HUMANOS, EDUCAÇÃO E CIDADANIA PLANETARJA 1 35

--

"O mundo não é .


O mundo está sendo".
Paulo Freire

N o ano de 20 1 8, estamos comemorando algumas datas


significativas para os que trabalhamos no campo dos di­
reitos humanos e da educação: 70 anos da Declaração Univer­
sal dos Direitos Humanos (DUDH}, 50 anos da publicação da
obra Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, e 20 anos de sua
ausência/presença entre nós, a quem faço homenagem neste
texto. Algumas datas e muitos fios que se entrecruzam nesse
tortuoso caminho de busca de reconhecimento e afirmação da
dignidade humana, independentemente da cor da pele, da re­
ligião, da classe, do gênero e do lugar geográfico. Muitos fios e
muitas histórias de buscas e construção de outros mundos pos­
síveis com mais justiça, dignidade, equidade, com possibilida­
des e viabilidade para a vida humana, para todo ser vivo e para
o planeta no momento presente e para as futuras gerações.

Comemorar não é só fazer memória e recordar, reviver o pas­


sado como algo fixo e parado no tempo. Comemorar, quando
se tem no horizonte a construção de outros mundos possíveis,
plurais, sem muitas certezas, mas com a perspectiva do "mun­
do como possibilidade", como dizia Paulo Freire, significa fa­
zer novas leituras, atualizar os sentidos dos acontecimentos,
das ideias e dos documentos, para continuar a luta cotidiana
na construção de sociedades e mundos mais felizes, amáveis,
lindos, solidários, justos, democráticos, sustentáveis.

A aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos


(DUDH), setenta anos atrás, representou um amplo e profundo
1 38 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

Com a Declaração Universal se deu início a uma fase de cons­


tituição de um amplo sistema internacional de proteção dos
direitos humanos. Nesse processo, outro documento de gran­
de relevância é a declaração final da Conferência Mundial dos
Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1 993. Os principais
avanços desta Declaração (cap. 2) dizem respeito à legitimida­
de das preocupações internacionais com os direitos humanos
e a interdependência entre democracia, desenvolvimento e
direitos humanos, afirmada no artigo 8: "a democracia, o de­
senvolvimento e o respeito pelos direitos humanos e liberdades
fandamentais são conceitos interdependentes que se reforçam
mutuamente". Mesmo tendo despertado, na Conferência, uma
grande discussão, a unJ'l(,ç.rsalidade dos direitos acabou sendo
reconhecida: "a natureza ..univêrsal desses direitos e liberdades
não admite dúvidas" (art. ! ) , afirma. Além desses avanços, é
importante também destacar a afirmação da inter-relação, a
interdependência e a indivisibilidade entre os diferentes direi­
tos: "todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, inter­
dependentes e estão inter-relacionados. A comunidade interna­
cional deve tratar os direitos humanos globalmente [. }" (art. 5).
. .

Essas afirmações constituem conquistas importantes, diante


da tão questionada universalidade dos direitos humanos (Sa­
cavino, 2009, p. 68) .

De igual forma, o artigo 5, na segunda parte do seu enunciado,


se refere ao reconhecimento da diversidade cultural quando
declara que:
As particularidades nacionais e regionais devem ser levadas em
consideração, assim como os diversos contextos históricos, cul­
turais e religiosos, mas é dever dos Estados promover e proteger
todos os diretos humanos e liberdades fundamentais, indepen­
dentemente dos seus sistemas políticos, econômicos e culturais.

O legado da Conferência de Viena assegurou a incorporação


da dimensão dos direitos humanos em todas as iniciativas,
atividades e programas dos organismos das Nações Unidas,
assim como a noção de integração entre todos os direitos hu­
manos, a democracia e o desenvolvimento, onde o ser huma­
no é colocado como sujeito. Dessa maneira, o respeito aos
direitos humanos é obrigatório, não só para os Estados, mas
também para todos os organismos internacionais e para os
DIREITOS HUMANOS, EDUCAÇÃO E CIDADANIA PLANETÁRIA 1 39

grupos que possuem o poder econômico e cujas decisões e


práticas podem repercutir, direta o indiretamente, na vida de
todos os seres humanos, especialmente daqueles em situa­
ção de vulnerabilidade. A legitimidade que começa a existir
com a Conferência de Viena é mais um ponto positivo para a
construção de novos paradigmas, a partir do fortalecimento
de uma cultura universal de reconhecimento e respeito, en­
tendendo que os direitos humanos atravessam todas as áreas
da atividade humana (Dornelles, 2 0 1 2 , p. 1 6) .

Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável


20 1 5-2030

Com essa mesma visão de construção histórica e social dos


direitos humanos, consideramos que um documento recente
que atualiza a leitura e expande a articulação de direitos a
âmbitos que a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
no século passado, não podia considerar, porque seu desen­
volvimento e aparecimento são posteriores, é o documento
Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o Desen­
volvimento Sustentável, da ONU. Também conhecido como os
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 2 0 1 5-2030.1

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)2, identi­


ficados também como objetivos mundiais, são um chamado
universal para a adoção de medidas com o fim de erradicar a
pobreza, diminuir as desigualdades e proteger o planeta para
garantir a vida nas suas múltiplas dimensôes e para que todas
as pessoas tenham uma vida digna e com paz.

l Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) foram gestados na Confe­


rência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento sustentável, realizada no Rio de
Janeiro em 2012. A fin.alidade era criar um conjunto de objetivos mundiais que tives­
sem relação com os desafios ambientais, políticos, econômicos aos que se enfrenta
o nosso mundo. http://www.undp.org/content/undp/es/home/sustainable-deve\o­
pment-goals/background.html
2 Os ODS coincidiram com outro acordo histórico levado a cabo em 2 0 1 5: o Acordo
de Paris aprovado na Conferência sobre a Mudança do Clima (COP2 l ) . Junto com o
Marco de SENDAi para a Redução do Risco de Desastres, assinado no Japão em março
de 201 5, esses acordos nos provêm de um conjunto de normas comuns e metas viáveis
para reduzir as emissões de carbono, para administrar os riscos de mudança do cli­
ma e os desastres naturais e para poder reconstruir depois de uma crise.http://www.
undp.org/content/undp/es/home/sustainable-development-goals/background.html
.,

1 40 Ü!DÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 2 0 1 5 -


20303 são I 7 e contém 1 69 metas. Estão baseados nos avan­
ços obtidos a partir dos Objetivos de Desenvolvimento do
Milênio, mas também incluem novas esferas, tais como: a
mudança climática, a desigualdade econômica, a inovação,
o consumo sustentável, a paz e a justiça, entre outras prio­
ridades. Os Objetivos estão inter-relacionados do mesmo
modo que os diferentes direitos que promovem. É importante
levar em conta esse aspecto porque com frequência a chave
do sucesso de um deles trará consequências para os outros.
Para fins didáticos, com o intuito de facilitar o trabalho edu­
cativo, agrupamos e articulamos em cinco núcleos os I 7 ob­
jetivos (Anexo I L fortr;t'\._nOO uma rede de inter-relações dos
direitos. Cada núcleo con1ém diferentes aspectos e temas. Os
cinco núcleos são:

• Planeta: oceanos e mares; solos e florestas; produção e


consumo; mudança do clima.
• Seres humanos: pobreza; fome; vida saudável; água e sa­
neamento; educação; igualdade de gênero.
• Crescimento sustentável: energia; trabalho e crescimen­
to econômico; indústria e infraestrutura; desigualdades; ci­
dades e assentamentos; tecnologia.
• Parcerias: global, local e multisetorial.
• Paz: justiça e instituições eficazes.

Os ODS implicam que se tenha um espírito de colaboração


e pragmatismo para escolher as melhores opções, a fim de
promover, cuidar e melhorar a vida - de maneira sustentável
- para o momento presente e para as gerações futuras. Pro­
porcionam orientações e metas claras para que todos os paí­
ses posam adotá-las, levando em conta suas próprias priori­
dades e os desafios ambientais do mundo, em geral. Os ODS
são uma agenda inclusiva. Abordam as causas fundamentais
da pobreza e das desigualdades e nos unem para obter uma
mudança positiva em beneficio das pessoas, das sociedades
e do planeta.

3 www.undp.org/content/undp/es/home/sustainable-development-goals/back­
ground.html
DIREITOS HUMANOS, EDUCAÇÃO E ClDADANIA PLANETÁRIA 141

Para o desenvolvimento e a efetividade dos ODS se propõe


uma ação mundial coordenada entre os governos, as em­
presas, a academia e a sociedade civil a ser desenvolvida no
período de 2 0 1 5 até 2030, com o fim de erradicar a pobreza,
diminuir as desigualdades e promover uma vida digna para
todos/as dentro dos limites do planeta.

É por isso que consideramos que esses objetivos são um


convite e um desafio urgente para somar esforços e parcerias.
É preciso incorporá-los nos processos educativos das gerações
presentes , em suas diversas modalidades, e especialmente in­
corporá-los como referentes fundamentais nos projetos políti­
cos pedagógicos das instituições escolares.

Problematizando o desenvolvimento sustentável

A sustentabilidade e o desenvolvimento sustentável, tais


como são promovidos pelos ODS, são conceitos polissêmicos
e temas atuais dos que se fala muito. Esses conceitos acabam
assumindo diversos significados e conotações e muitas vezes
são utilizados para justificar aquilo que é contrário a seu signi­
ficado original. Embora a Conferência de Viena tenha afirmado
que direitos humanos, desenvolvimento e democracia devem
estar articulados - o que já supõe um grande desafio -, para o
trabalho educativo é importante se aproximar e entendê-los
de maneira crítica, sobretudo no referente ao desenvolvimen­
to sustentável.

Ao visualizar os 1 7 objetivos para o desenvolvimento susten­


tável que foram propostos para transformar nosso mundo,
acreditamos que muitos/as educadores/as devem estar se
perguntando sobre o significado desse conceito.

Entende-se o desenvolvimento sustentável como aquele ca­


paz de satisfazer as necessidades dos seres humanos na atua­
lidade, sem colocar em risco a capacidade do planeta de aten­
der às futuras gerações. A origem desse conceito data de 1 972,
com a aparição do termo "ecodesenvolvimento", enunciado
na I conferência da ONU sobre o Meio Ambiente e Desenvol­
vimento, realizada em Estocolmo (Suécia) . Posteriormente,
1 42 DtOATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS
'f
1

o tema foi retomado no Relatório Brundtland "Nosso Futuro


Comum", em 1 987. É nesse documento que aparece, pela pri­
meira vez, a expressão "desenvolvimento sustentável" com o
significado definido linhas acima. Implica uma mudança muito
importante em relação à ideia de sustentabilidade, principal­
mente ecológica, e em relação à ênfase que coloca no contex­
to econômico e social do ambiente, significando um possível
equilíbrio dinâmico entre equidade, crescimento e meio am­
biente. Em 2 0 1 5, o conceito foi retomado na proposta do do­
cumento Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o
Desenvolvimento Sustentável (ODS) . r
!
Partindo de uma p erspeçti.ya crítica, consideramos que educar
'
para o desenvolvimeritó ·sustêntável é um conceito limitado
1
1
e limitador da educação porque está assentado e focado na

1
força do desenvolvimento como eixo central que pertence à
esfera do econômico. Frequentemente entendido em sua ver­
são de crescimento infinito, como um paradigma de produ­
ção, de progresso e de acumulação. Esse conceito nos leva
a afirmar que vivemos tempos dificeis e sombrios nos que o
poder econômico de uns poucos concentra, cada vez mais, as
riquezas do mundo correspondentes a todos, consolidando-se
um restrito clube de bilionários que ditam as regras em um 1
ambiente no qual o crescimento econômico beneficia àqueles i
que possuem mais. Segundo o Relatório de Oxfam, de 2 0 1 7,
Uma economia para os 99%:
\
Oito pessoas concentram em suas mãos o equivalente à rique­
za de outros 3.600 milhões, a metade mais pobre da populaçãci'.
mundial (Trotta, 20 1 7, p. 1 ) .

Esse modelo econômico é o responsável pelas desigualdades


sociais que anualmente destroem a vida de milhões de pes­
soas, por falta de condições que garantam os direitos sociais
como saúde, moradia, alimentação, educação e outras exigên­
cias fundamentais para a vida digna. Sendo este um modelo \
de desenvolvimento injusto e insustentável.

A concentração econômica, a ausência de distribuição das ri­


quezas do planeta, seguindo a ordem global capitalista que
nega o acesso aos bens materiais e imateriais à maior parte
!
1
dos habitantes do mundo, mostra que desde uma opção e vi- 1
1
r! 0tREJTOS HUMANOS, EDUCAÇÃO E CJDADANJA PLANETARIA 1 43

1
são transformadora o desenvolvimento é uma categoria limi­
tada que deve ser questionada.
! '
l Não tem o alcance necessário para se constituir em um enfo­
que organizador da educação. Nesse sentido, propomos uma
mudança de enfoque e de paradigma deslocando o centro da
análise para a categoria sustentável e não para o desenvol­
vimento. Como afirma Herrera Flores (2009, p. 25), com uma
nova perspectiva "dos direitos como processos institucionais e
sociais que possibilitem a abertura e a consolidação dos espaços
de luta pela dignidade humana" e a sustentabilidade da vida do
planeta e no planeta.

A categoria sustentável é um enfoque mais holístico do âmbito


político e ético que considera o planeta como um ser vivo com
capacidade de ter direitos, não só o gênero humano, como
propõe Boff (2012):
Sustentabilidade é toda ação destinada a manter as condições
energéticas, informacionais, fisico-químicas que sustentam to­
dos os seres, especialmente a Terra viva, a comunidade de vida e
a vída humana, visando a sua continuidade e ainda a atender as
necessidades da geração presente e das futuras de tal forma que
o capital natural seja mantido e enriquecido em sua capacidade
de regeneração, reprodução e coevolução (p. ! ) .

O autor continua explicitando as diferentes dimensões do


conceito, explicando que a afirmação sustentar a todos os se­
res tem a intencionalidade de superar radicalmente a visão
antropocêntrica ocidental que considera o ser humano como
o centro da vida e do planeta, situado numa dimensão hierar­
quicamente superior à natureza, e, por isso, com capacidade
de dominação e depredação. Nesse sentido, afirma que todos
os seres emergem do processo evolutivo e gozam de valor in­
trínseco, independentemente do uso humano.

Sustentar especialmente a Terra viva é mais que uma "coisa"


(res extensa), sem inteligência ou um mero meio de produção.
Ela não só contém vida, mas está viva, ela se autorregula, rege­
nera-se e evolui. Se não garantirmos a sustentabilidade da Terra
viva - chamada Gaia, Pachamama ou casa comum - estaremos
tirando a base para todas as outras formas de sustentabilidade.
1 44 DtDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

Sustentar também a comunidade de vida é afirmar que o meio


ambiente não existe como algo secundário e periférico. Nós
não existimos, mas coexistimos e somos todos interdependen­
tes numa rede comum. Todos os seres vivos são portadores do
mesmo alfabeto genético básico. Formamos a rede de vida,
incluindo os micro-organismos. Essa rede cria a biomassa e
a biodiversidade e é necessária para a subsistência da nossa
vida neste planeta.

Sustentar a vida humana significa reconhecer que somos um


elo singular da rede de vida, o ser mais complexo do nosso sis­
tema solar e o extremo mais avançado do processo evolutivo
de que temos conhecim.eJ1tO. Isso, porque somos portadores
de consciência, de sensib ilidade e de inteligência. Sentimos
que somos chamados a cuidar e guardar a Mãe Terra, a ga­
rantir a continuidade da civilização e também a vigiar nossa
capacidade destrutiva e extrativista. É por isso que é muito
importante sustentar a atenção às necessidades humanas por
meio do uso racional e cuidadoso dos bens e serviços que o
cosmos e a Terra nos oferecem, e sem os quais sucumbiríamos
(Boff, 2 0 1 2 , p. 2).

Do ponto de vista dos direitos, é importante levar em conta os


avanços que nos oferecem as Constituições do Equador (2008),
e da Bolívia (2009) . Ambas consideram .a natureza como sujei­
to de direito. Assim o expressa a Constituição equatoriana, no
capítulo 7, artigo 7 1 , referido aos direitos da natureza:
A natureza ou Pachamama, onde se reproduz e se realiza a vida,
tem direito a que se respeite integralmente sua existência, ma­
nutenção e regeneração dos seus ciclos vitais, estrutura, funções
e processos evolutivos. [ ] .
. . .

Essas visões enriquecem as propostas dos Objetivos de De­


senvolvimento Sustentável e, tanto na dimensão local como
na global - sabendo que no mundo atual globalizado tudo está
interconectado -, nos possibilitam promover processos de glo­
balização contra-hegemônicos, cooperativos, inclusivos e so­
lidários, tal como propõe Sousa Santos (2002), que podem ser
entendidos também como processos de planetarização orien­
tados por valores éticos e espirituais. Acreditamos que é nes­
sa linha que é importante enfocar e desenvolver os processos
DIREITOS HUMANOS, EDUCAÇÃO E CIDADANIA PLANETARlA 145

educativos, afirmando, junto com Herrera Flores (2009) :


Os direitos humanos constituem o principal desafio para hu­
manidade nos primórdios do século XXI. Entretanto, os limites
impostos ao longo da história pelas propostas do liberalismo
político e econômico exigem uma reformulação geral que os
aproximem da problemática pela qual passamos atualmente. A
globalização da racionalidade capitalista supõe a generalização
de uma ideologia baseada no individualismo, competitividade e
exploração.
Essa constatação nos obriga a todos estarmos comprometidos
com uma visão critica emancipadora dos direitos humanos a
contrapor outro tipo de racionalidade mais atenta aos desejos e
às necessidades humanas que as expectativas de beneficio ime­
diato do capital (p. 23) .

Educar para a sustentabilidade da vida

A sensação de pertencer ao universo não começa na vida


adulta nem por um ato racional. Desde a infância nos senti­
mos conectados, pertencendo a algo que é muito maior que
nós. Desde crianças nos sentimos conectados, participes do
universo e nos colocamos diante dele com uma mistura de
fascinio e respeito. E ao longo da vida procuramos respostas
a perguntas existenciais profundas: de onde viemos, que pro­
curamos, para onde vamos, enfim, qual é o sentido da nossa
existência. A educação pode ter um papel importante nesse
processo ao colocar questões filosóficas fundamentais, sobre­
tudo se for capaz de trabalhar, junto com os conhecimentos, a
capacidade de nos encantarmos com o universo. Hoje temos
consciência de que o sentido da nossa vida está intimamente
conectado com a vida do planeta e com as possibilidades de
sua viabilidade (Gadotti, 2008, p. 6 1 ) .

Sem uma educação para a sustentabilidade da vida, o planeta


- a Terra - continuará sendo considerado um espaço de sobre­
vivência, de domínio técnico-tecnológico, de consumo depre­
dador, um ser para ser dominado, objeto de nossos estudos
e pesquisas e, algumas vezes, de nossa contemplação. Mas
não será um espaço de vida, de acolhida, de cuidado como
considera Boff ( 1 999, p. 56) . Não se aprende a amar o planeta
1 46 0JOÁTJCA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATlCAS

apenas racionalmente. A experiência, o contato, o despertar a


sensibilidade, o encantamento, a contemplação, o sentido de
conexão e interconexão da vida são aspectos fundamentais
para o desenvolvimento da consciência que os processos edu­
cativos estão chamados a promover.

Nesse sentido, é importante incorporar os Objetivos de Desen­


volvimento Sustentável no currículo escolar partindo de uma
visão interdisciplinar ou multidisciplinar, que trabalhe conteú­
dos significativos para os alunos e para a vida do planeta, pro ­
movendo mudanças de mentalidade, de paradigmas e de prá­
ticas culturais preocupadas com o sentido profundo da vida
em suas diferentes -dii:re,..nsões e a sustentabilidade planetária
a partir das práticas coti<li anas .

o modelo de desenvolvimento capitalista atual, como já men­


cionamos, aponta para a insustentabilidade do planeta, ao
promover as diferentes formas de globalização hegemõnicas,
competitivas, centradas nas regras do mercado e da econo­
mia, que se sobrepõem aos interesses humanos. Os interes ­
ses dos povos ficam subordinados aos interesses corporativos
das grandes empresas transnacionais, o que acaba provo­
cando exploração econômica, dominação política e exclu­
são social e cultural. Para enfrentar essa realidade é urgente
promover uma educação para a sustentabilidade da vida que
colabore com a construção das globalizações contra-hege­
mônicas cooperativas, participativas, solidárias, éticas e polí ­
ticas, focadas nos ODS com o fim de erradicar a pobreza e de
combater as desigualdades, viabilizando a vida do planeta e
no planeta.

De acordo com Gadotti (2008), educar para a sustentabilidade


da vida implica:
Um estilo de vida intencional que se caracteriza pela responsa­
bilidade pessoal, pelo serviço aos outros e por uma vida espiri­
tual com sentido (p. 4 1 ).

A sustentabilidade é um equilíbrio dinâmico consigo mesmo,


com o outro e com o meio ambiente. É harmonia entre os
diferentes. A sustentabilidade se opõe a tudo aquilo que su-
gere desequilíbrio, competitividade, conflito, ganância, indivi -
Í
DIREITOS HUMANOS, EDUCAÇÃO E CIDADANIA PLANETARIA 147

dualismo, dominação, destruição, expropriação e conquistas


materiais indevidas e desequilibradas em termos de mudança
e transformação da sociedade ou do ambiente.

Apresentamos a seguir alguns princípios pedagógicos para


educar para a sustentabilidade da vida. Essa educação deve
promover a aprendizagem de valores, perspectivas, atitudes e
práticas que orientem e impulsionem cada pessoa e aos gru­
pos, a viverem com mais sustentabilidade. Está fundamentada
em novos paradigmas reconhecendo as contribuições de Frei­
re, Boff, Sousa Santos, entre outros autores que propõem um
conjunto de conhecimentos, saberes e valores interdependen­
tes necessários para uma vida sustentável. Um estilo de vida
su.stentável se relaciona com a ética na gestão ambiental e
na economia buscando satisfazer as necessidades atuais, em
equilíbrio com as necessidades das gerações futuras. Dessa
forma também devem ser enfocados os ODS.

Alguns desses princípios pedagógicos, inspirados em Gadotti


(2008) e Boff ( 1 999), são:

• Educar para pensar planetariamente: no mundo atual, nessa


vertigem de informação que muitas vezes se torna desinfor­
mação é importante saber pensar. Pensar a realidade. Não
se trata de pensar pensamentos já pensados por outros, mas
ser capaz de desenvolver um pensamento próprio. Para isso,
é importante pôr atenção no tema das metodologias, no sa­
ber aprender e no saber conhecer para transformar. Énten­
der que o planeta é a "casa comum", é um só e o único para
toda a humanidade. Educar para transformar no nível local
e global. Unir forças com as lutas planetárias, especialmente
as promovidas pelas globalizações contra-hegemônicas. A
sobrevivência do planeta Terra é uma causa comum. Educar
para não ser omisso, indiferente nem conivente com a des­
truição da vida em qualquer parte do planeta.

• Educar os sentimentos: o ser humano é o único que pode


se questionar pelo sentido da vida. Educar para sentir, des­
cobrir e ter sentido, para cuidar e se cuidar, para despertar
a empatia e a compaixão. Somos humanos não só porque
pensamos, mas também porque sentimos. Somos seres sen-
1 48 ÜIDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

tipensantes, como diria Fals Borda (201 5) que combinamos


a razão e o amor, o corpo e o coração. Fazemos parte de um
todo em construção.

• Sensibilizar para a idenüdade terrena: como condição hu­


mana essencial, o sentido de pertença e interconexão com
a terra. Nosso destino comum é compartilhar com todos a
vida no planeta e do planeta. Nossa identidade é ao mes­
mo tempo individual e cósmica. O universo não está só fora
de nós, está também dentro de nós, muito próximo de nós.
Educar para amar a terra e procurar sua harmonia, não para
sua exploração e destruição.

• Educar para a compreensão crítica: desenvolver o sentido éti­


co com o gênero humano e com o planeta, não para a ética
instrumental e utilitária do mercado. Denunciar o paradigma
econômico do desenvolvimento que provoca desigualdades,
subalternidades e empobrecimento, especialmente em sua
versão de progresso e crescimento infinito. Compreender
que não existem duas crises separadas: uma ambiental e a
outra social, mas que ambas se encontram profundamen­
te interconectadas e relacionadas. Afirmar que o acesso a
uma vida digna e com qualidade são direitos que devem ser
efetivados para toda a humanidade, pois é uma questão de
justiça. A Terra é uma herança comum, cujos frutos devem
beneficiar a todos.

• Educar para a introspecção, contemplação e um estilo de vida


simples: nossas vidas precisam ser guiadas por novos va­
lores: simplicidade, austeridade, silêncio, paz, serenida­
de, saber ouvir, saber viver juntos, compartilhar, descobrir
e construir juntos. Precisamos escolher entre um estilo de
vida consumista, egoísta e destrutor da vida em sociedade
e do planeta, e um estilo corresponsável, compartilhado,
praticando a sustentabilidade da vida com ações concre­
tas cotidianas na família, na escola, no trabalho, na rua. A
simplicidade que propomos não deve ser confundida com
o simplório, e nem a quietude com a não participação. A
simplicidade precisa ser voluntária, como a mudança em
nossos hábitos de consumo, reduzindo e educando nossas
necessidades para gerar novos estilos de vida.
r

DIREITOS HUMANOS, EDUCAÇÃO E CIDADANIA PLANETARIA 1 49

• Educar para a ética do cuidado: significa reconhecer que uma


dimensão importante das relações passa pelo reconheci­
mento e pela educação dos sentimentos. Construir o mundo
a partir dos laços afetivos significa desenvolver as capacida­
des de empatia, simpatia, dedicação, cuidado e comunhão
com os diferentes. É o sentimento que nos sensibiliza, que
nos une com o queestá ao nosso redor e que cria laços
com as pessoas. Éo encantamento com a grandeza do uni­
verso que nos desperta sentimentos de ternura, compaixão,
admiração e veneração com a complexidade da Mãe Terra,
Pachamama, Gaia, casa comum. São as relações afetivas as
que fazem com que as pessoas, as coisas, a natureza se tor­
nem importantes para cada um/a e despertem atitudes de
cuidado. A ênfase no cuidado não significa deixar de traba­
lhar nem de intervir no mundo. Significa renunciar ao de­
sejo de poder que reduz tudo a objetos de consumo desco­
nectados da subjetividade humana. Significa colocar limites
ao desejo de dominação. A ética do cuidado promove uma
cidadania com capacidade para sentir com o outro, para se
indignar juntos pela violação dos direitos e ter compaixão
com todos os seres humanos e não humanos que sofrem.
Promove também uma capacidade de obedecer mais à lógi­
ca do coração, da cordialidade e da gentileza do que à lógica
da conquista, da dominação e do uso e consumo do outro,
das coisas e da natureza.

Promover esses princípios, incluindo os ODS, significa tam­


bém mudar algumas chaves de leitura que configuram nossas
mentalidades e concepção de cidadania entendida e definida
pelos limites do Estado-nação. Para educar na consciência
planetária precisamos ampliar os horizontes e superar os li­
mites nacionais para nos encontrarmos e nos identificarmos
com uma cidadania planetária. Educar para a planetarização
e não para a globalização. Vivemos num planeta e não num
globo. o globo se refere à superficie, a suas divisões geográfi­
cas e nacionais, a seus paralelos e meridianos. O globo alude a
aspectos cartográficos enquanto o planeta, ao contrário dessa
divisão linear, refere-se à totalidade em movimento. A Terra
que, como já afirmamos, é um superorganismo vivo e em evo­
lução. Nosso destino como seres humanos está ligado com o
destino deste ser chamado Terra , Pachamama, Gaia . Educar
1 50 DIDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

para outros mundos possíveis é educar para ter uma relação


sustentável com a terra e com todos os seres humanos ou não
humanos. É educar para promover sociedades sustentáveis. É
educar para viver no cosmos - educação planetária, cósmica e
cosmológica - ampliando a nossa compreensão da Terra e do
universo (Gadotti, p. 1 08) .

À modo de conclusão para continuar o caminho . . .

Tal como nos ensinou Paulo Freire ( 1 997), transformar o mun­


do é urgente, dificil e necessário. Mas para fazê-lo é preciso
conhecer arealidade,:;le.ç.o myndo, entendê-lo não só emocio­
nalmente, mastambé m cientificamente. E, sobretudo, intervir
nele de forma organizada.

Neste aniversário de setenta anos da Declaração Universal dos


Direitos Humanos fazemos um convite especial a todos os educa­
dores e educadoras para que a releiam e atualizem - assim como
nós fizemos neste texto - a partir do documento Transformando
Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Susten­
tável da ONU. Temos tempo suficiente para que seja incorporado
como um eixo norteador no projeto político pedagógico de cada
instituição e de cada escola. Transformar o mundo e as pessoas
são processos inter-relacionados. Na era atual digital, a educação
tem um papel importante para a criação de uma planetarização
e de outros mundos possíveis mais justos, equitativos, diversos,
produtivos e sustentáveis para todos e todas.

Neste artigo também lembramos Paulo Freire e os cinquenta


anos de publicação do seu livro Pedagogia do Oprimido ( 1 968) ,
que continua a nos orientar nesse caminho educativo trans­
formador:
O radical, comprometido com a libertação dos homens, não se
deixa prender em "círculos de segurança", nos quais aprisione
também a realidade. Tão mais radical, quanto mais se inscreve
nesta realidade para, conhecendo-a melhor, melhor poder trans­
formá-la (p. 1 4 ) .

Nesse sentido, desde uma leitura crítica e atualizada da DUDH


e dos ODS, pensamos que devem ser entendidos como instru-
Ü!REITOS HUMANOS, EDUCAÇÃO E C!DADANIA PLANETÁRIA 151

mentas de luta, como uma ferramenta que deve ser utilizada


para que possamos atingir os objetivos não cumpridos e para
criar condições para a transformação da ordem econõmica
capitalista injusta e depredadora, determinada e imposta pela
globalização hegemõnica neoliberal.

Precisamos pensar diferente, quebrando com a lógica capita­


lista vigente que nos impõem, apostando em que outros mun­
dos são possíveis partindo da perspectiva na que os grupos so­
ciais, os indivíduos e as organizações tenham a possibilidade
de lutar pelo acesso aos bens, que se comprometam com os
direitos humanos, garantindo as condições materiais e ima­
teriais necessárias para uma vida digna de ser vivida (Silveira
Mello, 2 0 1 8 , p. 558) . Promovendo a formação para uma cida­
dania planetária, entendida como uma categoria que afirma e
abrange um conjunto de principias, valores, atitudes e com­
portamentos que mostram uma percepção do planeta como
uma única comunidade com a convicção de que:
Nossas ações, por menores que pareçam, são capazes de mu­
dar o mundo. A cada momento, fazemos escolhas sobre nossos
modos de vida. Se nos conectarmos com o planeta e un? com
os outros, seremos uma ponte para um futuro sustentável. Cada
um de nós faz o seu Amanhã. E juntos fazemos os nossos - os
Amanhãs que queremos (Museu do Amanhã, 20 1 8) .

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DIREITOS HUMANOS, EDUCAÇÃO E CIDADANIA PLANETÁRIA 1 53

Anexo 1

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Fonte Novamerica 201 7

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1 54 ÜIOATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

Adélia Maria Nehme Simão e Koff


NOVAMERICA
TRABALHO CENTRADO EM PROJETOS: REINVENTANDO A PRATICA ESCOLAR, DESAFIANDO PROFESSORES E ALUNOS 1 55

Para início de conversa

Convidada para integrar esse novo livro, organizado pela pro­


fessora Vera Maria Candau, Didática: tecendo/reinventando sa­
beres e práticas, com um texto que registrasse minhas refle­
xões acerca de questões relacionadas à escola, à didática e ao
trabalho centrado em projetos, me senti desafiada a produzir
algo que, de algum modo, dialogasse com o texto de abertura
dessa mesma obra, intitulado Professor/a: profissão de risco?
E que, também, pudesse contribuir para a construção de uma
outra escola e de uma outra didática, mais "antenada" com
as exigências, tanto das sociedades, como das crianças e dos
jovens do século XXI.

Vale ressaltar que não pretendo defender a proposta de ado­


ção do trabalho centrado em projetos como uma alternativa
mágica e que pode dar conta de toda a complexidade que en­
volve a escola e a didática hoje, mas, ao contrário, como um
caminho possível que se constrói, tendo presente diferentes
1 56 DIDÁTICA; TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

traçados ou trajetórias e sempre em consonância com as ca­


racterísticas e necessidades do contexto contemporâneo e da
comunidade escolar onde o trabalho acontece/acontecerá.

Partindo de tais premissas, organizei minhas reflexões em seis


itens, assim especificados:

1 . Uma urgência: reinventar a escola, cuja a ideia é destacar o


contexto e os limites da escola tal como, de um modo geral,
ela, hoje, se apresenta e, consequentemente, a necessidade de
se reinventar seus tempos, espaços, saberes/conhecimentos
aprendidos/ensinados e suas formas de organização, práti­
cas, avaliação, forma::; d� relações, papeis da comunidade es­
colar, entre outros asp éêtos que a configuram.

2. Um compromisso: apostar nos princípios de uma educação


crítica e intercultural, com o objetivo de apresentar fundamen­
tos e características da perspectiva educacional crítica e in­
tercultural, expressando minha crença, no sentido de que tal
perspectiva é um horizonte importante e, até mesmo, neces­
sário, na medida em que me alinho com educadores e educa­
doras que estão propondo reinventar a escola e, de modo mais
especifico, a própria didática.

3. Um desa.fio: compreender as diferenças como "vantagens pe­


dagógicas", chamando a atenção para a importância de se su­
perar o "daltonismo cultural" (STOER & CORTESÃO, 1 999) e
avançar no sentido da incorporação, nas práticas didático-pe­
dagógicas escolares, do "arco-íris sociocultural" (CORTESÃO,
2 0 1 2) presente na sala de aula, ou seja, da valorização das
diferenças culturais.

4 . Uma condição: adotar a perspectiva do cuniculo integrado,


apontando possibilidades, características, bem corno os desa­
fios que envolvem urna integração curricular e que se constitui
em um pressuposto importante para a realização do trabalho
centrado em projetos.

5. lJm caminho possível: o trabalho centrado em projetos, cuja


intenção é apresentar os principias, características e, também,
os desafios que configuram urna outra maneira de organizar o
TRABALHO CENTRADO EM PROJETOS: REINVENTANDO A PRATICA ESCOLAR, DESAFIANDO PROl'l'SSORES E ALUNOS },É) 7

currículo, os saberes/conhecimentos e a prática escolar. Em ·


outras palavras, a proposta, aqui, é de sugerir a adoção de um
outro "formato escolar" (CANARIO, 2006), com possibilidades
de responder à reinvenção da escola, de modo que ela seja um
espaço de criação, reelaboração e transformação.

6. Para concluir minhas reflexões, destaquei e dei ênfase a algu­


mas das "ideias-força" (CANDAU 2 0 1 6) que permearam esse
meu texto e que considero relevantes para fazer acontecer o
trabalho centrado em projetos, de modo efetivo e desprovido de
um caráter puramente instrumental e/ou metodológico, para
se constituir em uma outra concepção de ensinar e aprender.

Uma urgência: reinventar a escola

Creio que não é exagero afirmar que, mesmo com mais de


200 anos de existência e constituída do próprio ethos da mo­
dernidade (COSTA, 2003), a escola, ainda hoje, é uma institui­
ção importante, uma referência significativa para a realização,
junto às crianças e aos jovens, de ações educativas intencio­
nais e formais.

Por sua vez, creio que também não é exagero dizer que, des­
de a sua invenção até os dias atuais, seu ideário e formato
original -que prevê espaços e tempos específicos destinados
à aprendizagem, uma determinada configuração institucional
e uma determinada organização pedagógica, curricular e/ou
didática- parecem se manter ainda muito próximos daqueles
que a caracterizavam na emergência do mundo moderno. E
mais do que isso, parecem se manter hegemõnicos e naturali­
zados (CANÁRIO, 2006).

Por outro lado, considero que é possível afirmar que essa


mesma escola tem passado, também, por transformações e
já há um bom tempo está em questão. O que significa dizer
que, ao longo de sua existência e sucessivamente, a institui­
ção escolar passou por mutações que a fizeram caminhar "de
um modelo de certezas para um modelo de promessas e, final­
mente, para um terceiro, marcado pela incerteza" (CANÁRIO,
2006, p . 1 3) .
ÜIDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

E é nessa última perspectiva que, em várias partes do mun­


do, inclusive no Brasil, uma pergunta tem sido formulada com
muita frequência pelos/as educadores/as de diferentes for­
mações, crenças e perspectivas analíticas: a escola tem futuro?
(CANÁRIO, 2006, COSTA, 2003). Vale dizer que para mim essa
é uma pergunta síntese, na medida em que ela expressa e siste­
matiza vários outros questionamentos do tipo: por que a esco­
la fracassa? Por que os/as alunos/as, com frequência, expres­
sam seu desinteresse e até desistem da escola? Por que eles/
elas não conseguem aprender, quando o que está em jogo é o
que se ensina na escola? Por que o modelo e/ou os modelos
de escola, tal como são concebidos e constatamos acontecer
ainda hoje não têm dado conta da complexidade e das atuais
demandas da socied.oide·;i'l'em como de suas crianças e de seus
jovens? Para que serve, atualmente, a escola se o conheci­
mento está acessível em muitos outros lugares?

Ao mesmo tempo, entendo que essas questões sobre o desti­


no da escola tendem a se justificar e a se alimentar das inúme­
ras críticas que lhe são feitas, como por exemplo, aquela que
ressalta que quando desafiada a se posicionar frente à existên­
cia de uma revolução tecnológica sem precedentes que afeta,
entre outros aspectos, os chamados processos de produção,
disseminação e consumo de conhecimentos e saberes, frente
à globalização da sociedade que atinge os sistemas produti­
vos, de organização do trabalho e o próprio modelo vigente de
desenvolvimento econômico que tem gerado significativa ex­
clusão social e, também, frente às mudanças de paradigma da
ciência e do conhecimento que influem na pesquisa, na pro­
dução do conhecimento e, consequentemente, no processo de
ensino-aprendizagem, à crise ambiental e ética, a escola pare­
ce se manter, na maioria das situações, distante e cristalizada.

Embora já apontada há mais de 20 anos, outra crítica que


ainda é muito comum é a que denuncia o seu caráter padro­
nizador, homogeneizador e monocultura! (CANDAU, 2000a) ,
transformando-a num espaço que dialoga pouco ou sequer
dialoga com a(s) cultura(s) de referência dos sujeitos/atores
que dela participam.
A cultura dominante nas salas de aula é a que corresponde à
visão de determinados grupos sociais: nos conteúdos escolares
TRABALHO CENTRADO EM PROJETOS: REINVENTANDO A PRATlCA ESCOLAR, DESAFIANDO PROFESSORES E ALUNOS } 59

e nos textos aparecem poucas vezes a cultura popular, as sub­


culturas dos jovens, as contribuições das mulheres à sociedade,
as formas de vida rurais e dos povos desfavorecipos (exceto os
elementos de exotismo) , o problema da fome, do desemprego ou
dos maus tratos, o racismo e a xenofobia, as consequências do
consumismo e muitos outros problemas que parecem "incômo­
dos" (GIMENO SACRISTAN, 1 995, p. 97).

Todas essas críticas, entre outras que poderiam ser aqui apon­
tadas, sugerem a escola dos nossos dias como um lugar desin­
teressante e pouco comprometido com a realidade complexa
que marca o século XXI e na qual ela está inserida, levando,
inclusive, alguns/mas educadores/as a expressarem o que se
convencionou chamar de 'crise da escola'.
Sentimos que a escola está em crise porque percebemos que
ela está cada vez mais desenraizada da sociedade. Como refe­
ri antes, a educação escolarizada funcionou como uma imensa
maquinaria encarregada de fabricar o sujeito moderno. Foi prin­
cipalmente pela via escolar que a espacialidade e temporalida­
de modernas se estabeleceram e se tornaram hegemônicas. [ ] . . .

Mas o mundo mudou e continua mudando, rapidamente sem


que a escola esteja acompanhando tais mudanças (VEIGA-NE­
TO, 2003, p. 1 1 0).

Nesse sentido, Candau (2006, p. 35) destaca:


Acreditamos que o mal-estar presente nas nossas escolas, en­
tre os educadores e educadoras, assim como entre os alunos
e alunas, exige que nos enfrentemos com a questão da crise
atual d a escola não de um modo superficial, que tenta reduzi-la
à inadequação de métodos e técnicas, à introdução das novas
tecnologias, ou ao ajuste da escola à lógica do mercado e da
modernização. Para nós, a crise da escola se situa em um nível
mais profUndo...

Tal alerta talvez explique porque as diversas e constantes re­


formas educacionais que aconteceram e, ainda, acontecem,
há quase cinquenta anos, nos sistemas de ensino, parecem
não ter alcançado os seus objetivos, ou seja, não responde­
ram ou não respondem satisfatoriamente a toda ordem de
problemas que esses sistemas tiveram que enfrentar e enfren­
tam até hoje.
1 60 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

Segundo Canário (2008, p. vii) :


o problema da escola pode ser sintetizado em três facetas: a es­
cola, na configuração histórica que conhecemos -baseada num
saber cumulativo e revelado- é obsoleta, padece de um défice de
sentido para os que nela trabalham (professores e alunos) e é
marcada, ainda, por um défice de legitimidade social, na medida
em que faz o contrário do que diz -reproduz e acentua desigual­
dades, fabrica exclusão relativa.

E o próprio Canário reitera (20 1 3, p. 326):


A escola que temos hoje e que cresceu de uma maneira expo­
nencial na segunda metade do século XX em todo o mundo, que
é a escola herdada . do século XIX, é uma escola que perdeu o
prazo de validade, é õÔsoleta e não tem futuro. Não sou adi­
vinho, não faço profecias, portanto, não posso dizer como vai
ser a educação daqui a cinquenta anos. Agora, o de que estou
convicto é que a escola já está sofrendo uma mutação profunda
e passando por uma situação que não tem volta, quer dizer, a
escola não tem retorno, é uma suposta idade de ouro do passado
em que funcionava bem, os atuais problemas que a escola tem, e
que são muito graves, são inultrapassáveis com base na própria
lógica da escola.

Em função desse contexto, alguns educadores e educado­


ras têm decretado o fim da escola ou, para ser mais precisa,
têm proclamado a sua decadência, principalmente quando
ela teima em "estabelecer uma ordem estável e ordenada em
torno de finalidades homogêneas" (DUBET, 1 994), e destacam
que essa escola não faz mais sentido em um mundo onde
ocorrem mudanças rápidas, intensas e em todas as direções/
dimensões e que, a todo o momento, sugerem novas formas
de ser e viver. "Para alguns, a escola já não é uma institui­
ção e, quer a organização escolar, quer a forma escolar, apa­
recem feridas de uma irreversível obsolescência (CAN ÁRIO,
2008, p. 79) .

Ao mesmo tempo, Canário (2008, p. 79) ressalta: "não é


possível adivinhar nem prever o futuro da escola, mas é possí­
vel problematizá-lo. É nesta perspectiva que pode ser fecundo
e pertinente imaginar uma "outra" escola, a partir de uma crí­
tica ao que existe".
TRABALHO CENTRADO EM PROJETOS: REINVENTANDO A PRÁTICA ESCOU.R, DESAFIANDO PROFESSORES E ALUNOS 161

Também acreditando na possibilidade de se construir uma


"outra" escola, refuto sua inutilidade ou o seu anacronismo
para sublinhar a necessidade de a escola ser repensada, re­
criada mesmo, na perspectiva de ser:
Um espaço de busca, construção, diálogo e confronto, prazer,
desafio, conquista de espaço, descoberta de diferentes possibili­
dades de expressão e linguagens, aventura, organização cidadã,
afirmação da dimensão ética e política de todo o processo edu­
cativo (CANDAU, 2000b, p. 1 5).

Recriar a escola, reconhecendo-a, tal como sugere Canário


(2008, p. 80), como um lugar aonde:
[ ] se aprende pelo trabalho e não para o trabalho. É na medida
...

em que o aluno passa à condição de produtor que nos afastamos .


de uma concepção molecular e transmissiva da aprendizagem,
evoluindo da repetição de informação para a produção de saber;
[ ] se desenvolva e estimule o gosto pelo acto intelectual de
. . .

aprender, cuja importância decorrerá do seu valor de uso para


"ler" e intervir no mundo e não dos beneficias materiais ou sim­
bólicos que promete no futuro;
[ ] se ganha gosto pela política, isto é, onde se vive a demo­
...

cracia, onde se aprende a ser intolerante com as injustiças e a


exercer o direito à palavra, usando-a para pensar o mundo e
nele intervir.

Cabe destacar que reconheço que (mesmo diante de todo


o aparato tecnológico de informação e comunicação) essa
escola reinventada pode ser um espaço privilegiado para a
apropriação crítica dos conhecimentos já sistematizados e re­
levantes como instrumento para compreensão e mudança da
realidade e, mais ainda, pode ser um espaço para o diálogo
e/ou confronto entre o conhecimento científico, algumas ve­
zes denominado conhecimento erudito ou cultura crítica (PE­
RÉZ GÓMEZ, 200 I ) e os demais conhecimentos, saberes e
culturas que nela circulam.

Entendo, portanto, que a escola pode ser, para além de um


espaço de aquisição crítica, um lugar de produção de conhe­
cimentos (conhecimentos escolares), construídos a partir do
diálogo entre diferentes conhecimentos, saberes e culturas
que para ela convergem e nela se cruzam.
1 62 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

Nesse sentido, reconheço que a escola pode ser um lugar para


o exercício da observação, da reflexão, da análise crítica, bem
como do debate/diálogo plural entre diferentes, onde as suas
diferenças são valorizadas, sem deixar de lado a busca pela
igualdade de condições, de direitos e realizações e onde se
possa formar para a conquista da cidadania nas diversas di­
mensões da vida cotidiana, contribuindo, assim, para a cons­
trução de uma nova sociedade, mais justa, solidária e, porque
não, mais feliz.

E é nessa direção que reafirmo que a instituição escolar ainda


tem um papel relevante na formação das crianças e dos jo­
vens, mas que é preciso.desvendar
· e/ou descobrir caminhos
alternativos que possain ser· mobilizados e apropriados, na
perspectiva da reinvenção dessa escola que desejo, precisa
e pode ser mais plural, democrática, capaz de responder aos
desafios de nossa contemporaneidade e de formar cidadãos e
cidadãs, sujeitos da construção de um mundo menos dogmá­
tico e mais solidário.

Vale sublinhar que, quando estou me referindo a reinventar a


escola, não estou pensando em se jogar tudo fora e anular as
diversas conquistas -mesmo que insuficientes para transfor­
má-la- que provavelmente já foram feitas até aqui. Mas como
Costa (2003, p. 22) , reconheço que:
Se a escola da modernidade não se sustenta mais, ela se trans­
muta, se hibridiza em múltiplos cruzamentos e se reproduz nos
infinitos discursos que sobre ela se enunciam. Ela certamente
não é de um único jeito, não toma uma só forma. Ela própria
já começa a se reconhecer como território da diversidade, con­
torcionista da incerteza, p risioneira dos poderes que a dobram.
Mas uma escola que fala a língua de seu tempo-espaço poderia
continuar fazendo a diferença no processo de socialização e de
educação dos humanos.

E, mais uma vez em consonância com Canário (2006, p. 1 2) ,


"defendo, como ideia central, a tese de que uma reinvenção da
escola, do oficio de professor e, inclusive, do papel do aluno,
supõe um questionamento crítico e a superação da formato
escolar, ou seja, do modo como a escola atual concebe os pro­
cessos de aprender e ensinar".
TRABALHO CENTRADO EM PROJETOS: REINVENTANDO A PRÁTICA ESCOLAR, DESAFIANDO PROFESSORES E ALUNOS 1 63

Em outras palavras, pressupõe colocar em debate o modo de


viver a prática educativa, discutindo, portanto, o que entendo
são os seus modos de organizar tempos e espaços, rel<tções,
papeis dos sujeitos/atores que dela participam, conteúdos e
conhecimentos/saberes, métodos, técnicas e recursos, lin­
guagens, planejamento e avaliação, ou seja, requer colocar
em discussão os modos como o currículo e a prática didática
são organizados e/ou vividos pela escola.

Contudo, reconheço que não basta promover transformações


teórico-metodológicas para fazer avançar a escola, o que sig­
nifica dizer que entendo que não é suficiente transformar "mo­
dos de" para mudar a escola. E, embora reconheça que esse é
um aspecto significativo na construção de uma outra escola e,
portanto, de uma outra educação (CANARIO, 2006) , reitero que
tais transformações precisam ser contextualizadas histórica e
culturalmente e estarem orientadas e/ou fundamentadas em
princípios claramente formulados que expressem respostas às
questões: que educação quero construir? Que sujeitos/atores
desejo ajudar a formar? ou, em outras palavras, que prática
escolar desejo realizar a serviço de quem e do que?

Um compromisso: apostar nos princípios de uma


educação crítica e intercultural

Quando busco minhas próprias respostas para essas questões


que acabo de formular e reflito sobre quais são os caminhos
para a construção de uma outra educação escolar, que pos­
sam responder à complexidade que configura o século XXI,
com todas as suas crises e barbáries, mas também com todas
as suas necessidades, interesses e conquistas, penso, em pri­
meiro lugar, nos princípios que devem norteá-la, ou seja, nos
princípios que devem fundamentar suas propostas, progra­
mas, projeto, ações, práticas, atividades, de modo que ela es­
teja afinada com o seu tempo-espaço e possa contribuir para a
socialização e formação das crianças e dos jovens que vivem
esse mesmo tempo-espaço.

Assim sendo, acredito que é importante e necessário apostar


na articulação entre os princípios da abordagem crítica e da
1 64 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

perspectiva intercultural, adotando-os como configuradores


da reinvenção da educação escolar e, consequentemente, dos
processos de ensino-aprendizagem a ela vinculados, reco­
nhecendo, inclusive, que tais princípios devem afetar todas as
suas diversas dimensões.

Entretanto, antes de me deter, mesmo sem a intenção de me


aprofundar nas características dessas abordagem e perspectiva,
preciso fazer dois breves esclarecimentos. Um deles diz respeito
ao fato de que estou ciente de que assumir, no âmbito da edu­
cação escolar, o compromisso com os princípios da abordagem
crítica e da perspectiva intercultural está/vai na contramão da
maior parte das política.�.públicas educacionais hoje em vigor
no Brasil. Todavia, isso ·ftão me intimida, ao contrário, me de­
safia a continuar caminhando na direção que acredito. O outro
comentário que quero sublinhar está relacionado ao meu en­
tendimento de que minhas respostas são provisórias, uma vez
que a própria realidade/sociedade está sempre em movimento
e, portanto, exigindo sempre novas respostas. Reconheço que
não há respostas mágicas ou tão pouco receitas para se rein­
ventar a escola, pois "certamente [ela] não é de um único jeito,
não toma uma só forma. Ela própria já começa a se reconhecer
como território da diversidade, contorcionista da incerteza, pri­
sioneira dos poderes que a dobram" (COSTA, 2003, p. 22).

Feitas essas considerações, passo a pontuar alguns aspectos


que considero significativos em relação à abordagem/pers­
pectiva crítica/intercultural.

No que tange à abordagem crítica' e em consonância com


McLaren ( 1 997, p. 1 92), acredito que ela dá "direção histórica,
cultural, política e ética para aqueles que na educação ousam
acreditar [ ... ] que um mundo radicalmente diferente pode se tor­
nar real". E mesmo reconhecendo sua polissemia, ou seja, que
não há uma só configuração que a defina, entendo que existem

1 Vale lembrar que a perspectiva crítica ganha ênfase na América Latina, especialmen­
te no Brasil, a partir da década de 80 , suscitando um fecundo movimento "gerador de
ideias e práticas orientadas à elaboração de políticas públicas de educação e à reno­
vação de práticas pedagógicas nas escolas e no âmbito dos movimentos sociais e po­
pulares, orientadas à afirmação da democracia e da cidadania em nossas sociedades"
(CANDAU, 2003, p. 59).
r TRABALHO CENTRADO EM PROJETOS: REINVENTANOO A PRÁTICA ESCOLAR, DESAFIANDO PROFESSORES E ALUNOS J

características comuns e relevantes para orientar, ainda hoje,


65

nossas concepções e práticas didáticas. Características que, se­


gundo Candau (2003, p, 60), podem ser assim explicitadas:
Conceber os processos educacionais como historicamente situa­
dos, articular a educação com outros processos sociais, trabalhar
sistematicamente a relação teoria-prática, favorecer processos
de construção de sujeitos autônomos, competentes, solidários
capazes de ser sujeitos de direito no plano pessoal e coletivo,
capazes de construir histórias e apostar em um mundo e em
uma sociedade diferentes, de utilizar metodologias ativas, parti­
cipativas, personalizadas e multidimensionais, articuladoras das
dimensões cognitiva, afetiva, lúdica, cultural, social, econômica
e politica da educação.

Por sua vez e também em consonância com Candau (2009, p,


59), defendo, uma perspectiva interculturaF que:
Quer promover uma educação para o reconhecimento do "ou­
tro", para o diálogo entre diferentes grupos sociais e culturais.
Uma educação para a negociação cultural, que enfrenta os con­
flitos provocados pela assimetria de poder entre os diferentes
grupos socioculturais em nossa sociedade, e é capaz de favore­
cer a construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças
são dialeticamente integradas,

Candau (2008, p , 51) também destaca que a perspectiva inter­


cultural:
Rompe com uma visão essencialista das culturas e das identida­
des culturais. Concebe as culturas em contínuo processo de ela­
boração, de construção e reconstrução. Certamente cada cultura
tem suas raízes, mas essas raízes são históricas e dinâmicas.
Não fixam as pessoas em determinado padrão cultural.

A partir dessas referências, entendo que estar comprome­


tido/a, com a construção de uma teoria e prática educativa
orientada pelas abordagem/perspectiva critica/intercultural
significa conceber e realizar processos de ensino-aprendiza-

2 Cabe sublinhar que reconheço que não há uma só concepção da perspectiva In­
tercultural. Porém, tais concepções não se constituem objetos de nossas reflexões no
âmbito desse trabalho, tendo em vista os seus objetivos já explicitados. Por sua vez,
o artigo da professora Vera Maria candau, que integra esta publicação (p.222), apro­
funda a reflexão sobre a interculturalidade/educação intercultural.
1 66 DIDÁTICA'. TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

gem orientados no sentido de: valorizar a construção da au­


tonomia do/a aluno/a, reconhecendo-o/a sujeito da cons­
trução de sua história particular e da história em geral; ter a
emancipação do/a aluno/a como horizonte; ampliar e/ou re­
forçar os mecanismos para o seu autoconhecimento, valori­
zando processos de construção de identidade(s); reconhecer,
valorizar e fazer dialogar os diferentes grupos culturais; em­
poderar esses diferentes grupos culturais, pondo em questão
o etnocentrismo; trabalhar os conflitos que emergem das e/ou
nas relações interpessoais, principalmente aqueles que são
fruto de preconceitos e discriminações, apostando, inclusive,
no potencial dos mecanismos de negociação e na construção
coletiva de normas/rem;éis e/ou códigos de convivência; re­
conhecer, valorizar, fàzêr circular e/ou articular diferentes
saberes, conhecimentos e culturas, incorporando diferentes
narrativas e linguagens; valorizar e empregar procedimentos
metodológicos diversificados, dando ênfase à produção coleti­
va e/ou colaborativa, sem deixar de valorizar a experiência e
a produção de cada um.

Estar comprometido/a, com a construção de uma teoria e prá­


tica educativa crítica/intercultural significa conceber e realizar
processos de ensino-aprendizagem contextualizados, tendo
presente que os contextos são multiculturais e/ou marcados
pela diversidade. Processos de ensino-aprendizagem que,
portanto, afirmam, incorporam e se enriquecem com as dife ­
renças culturais, sem negar a busca pela igualdade de direitos.
E que também buscam promover o diálogo entre as práticas
vividas na escola e as demais práticas sociais.

Trata-se, portanto, de uma abordagem/perspectiva que pres­


supõe uma relação intrínseca entre educação e cultura, com
ênfase no reconhecimento do "outro", no diálogo entre os
diferentes sujeitos -individuais e coletivos-, seus saberes e
práticas, visando a justiça -social, cognitiva e cultural. Uma
educação que propõe a construção de relações igualitárias en­
tre grupos socioculturais, cujas diferenças são reconhecidas
como riquezas e dialeticamente integradas, buscando favore­
cer a construção de um projeto comum e a democratização
da sociedade, por meio de políticas que articulam direitos da
igualdade e da diferença (CANDAU, 2009 e 20 13).

1
TRABALHO CENTRADO EM PROJETOS: REINVENTANDO A PRATICA ESCOLAR, DESAFIANDO PROFESSORES E ALUNOS 1 67

Sem a pretensão de ter esgotado, nesse espaço de reflexão,


toda uma caracterização do que entendo ser os princípios da
abordagem crítica e da perspectiva intercultur?l, reafirmo a
minha crença na relevância desses princípios/fundamentos,
ratificando que considero uma exigência estar com eles com­
prometidos (mesmo remando contra a corrente, já que esta­
mos inseridos em uma sociedade também fortemente globali­
zada) e, dessa maneira, poder contribuir para a construção de
uma outra educação escolar e, até mesmo, para a construção
de uma sociedade mais inclusiva, menos desigual, que acolhe
e valoriza as diferenças culturais.

Um desafio: compreender as diferenças como


"vantagens pedagógicas"

Levando em consideração as reflexões até aqui apresentadas,


cabe afirmar que é necessário romper com a perspectiva mo­
nocultura! que engessa e cristaliza a escola, ou seja, romper
com o "daltonismo cultural" (STOER e CORTESÃO, 1 999, p. 56)
que, com frequência, a caracteriza, promovendo, por sua vez,
a conscientização de que a diversidade cultural, quer dizer,
as diferenças étnicas, de gênero e sexualidade, religiosas, de
origem -regional e comunitária-, entre outras estão presentes
no espaço escolar e precisam ser reconhecidas e valorizadas.

Nesse sentido, um grande desafio se impõe: saber e/ou aprender


a lidar com essas diferenças culturais, incorporando-as como
riquezas às suas ações, práticas, atividades, bem como aos pro­
cessos de ensino-aprendizagem vividos no âmbito da escola.

Como afirmam Moreira e Candau (2003, p. 1 6 1 ) :


A escola sempre teve dificuldade em lidar com a pluralidade e a
diferença. Tende a silenciá-la e neutralizá-la. Sente-se mais con­
fortável com a homogeneização e a padronização. No entanto,
abrir espaços para a diferença e para o cruzamento de culturas
constitui o grande desafio que a escola está chamada a enfrentar.

E Emília Ferreiro (apud LERNER, 2007, p 7) destaca:


É indispensável instrumentalizar didaticamente a escola para
trabalhar com a diversidade. Nem a diversidade negada, nem a
1 68 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

diversidade isolada, nem a diversidade simplesmente tolerada.


Também não se trata da diversidade assumida como um mal
necessário ou celebrada como um bem em si mesmo, sem
assumir seu próprio dramatismo. Transformar a .diversidade co­
nhecida e reconhecida em uma vantagem pedagógica: este me
parece ser o grande desafio do futuro.

Gostaria de lembrar que o tema da diferença não é novo na


Educação e que, ao longo do tempo, seu conceito tem varia­
do - desde associado à ideia de diferentes capacidades para
aprender, chegando à importância de incorporar no processo
de ensino-aprendizagem o que é próprio e/ou especifico do in­
dividuo (conceitos forte111�te marcados por referenciais psico­
lógicos e que permanecem atê hoje no imaginário de muitos/
as educadores/as). atingindo uma concepção mais centrada
na diversidade das classes sociais e na desigualdade de opor­
tunidades para então avançar no sentido de um conceito que
privilegia a dimensão cultural, ou seja, as diferenças culturais.

Como sublinham Candau e Leite (2006, p . 1 36) e com as quais


estou de acordo:
A perspectiva intercultural na educação pretende superar as cons­
truções da visão didático-psicológica relativamente à diferença,
sem negar suas contribuições. Por outro lado, procura manter
um diálogo crítico com as contribuições das diversas correntes
do pensamento da pós-modernidade, reafirmando o compromis­
so com a transformação política e social, proposto pela peda­
gogia crítica, ao mesmo tempo em que evidencia a importância
das questões culturais, para além da visão em que a diversidade
é percebida como algo "natural", e concebe as diferenças como
construções sociohistóricas que se dão nas relações sociais".

Pesquisas realizadas pelo grupo que integro - o GECEC3 - con­


firmam que "a diferença está no chão da escola" (professo­
ra Ana, ln CANDAU e LEITE, 2006, p. 1 2 1 ) . Entretanto, essas
mesmas pesquisas indiquem que os/as professores/as têm
dificuldades para lidar com as diferenças culturais e/ou para
incorporá-las ao cotidiano da educação escolar. Além disso,
3 Trata-se do Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Educação e Culturais, coordenado
pela professora Vera Maria Candau, do Departamento de Educação da PUC-Rio, e que
vem realizando pesquisas desde 1996.
TRABALHO CENTRADO EM PROJETOS' REINVENTANDO A PRÁTICA ESCOLAR, DESAFIANDO PROFESSORES E ALUNOS J 6 �

nossas pesquisas também mostram que, apesar de reconhe­


cerem a importância da dimensão cultural, professores/as e
pesquisadores/as, quando se referem às diferenças, "estão, na
maioria das vezes, se referindo às desigualdades sociais, de
classe, de oportunidades sociais e educacionais e sua relação
com o contexto de pobreza estrutural da sociedade brasileira"
(CANDAU e KOFF, 2006, p. 1 13), sugerindo que:
O confronto social x cultural está na base desses comentários,
ora percebido como uma pergunta: será que no Brasil a proble­
mática das desigualdades sociais se sobrepõe às questões pos­
tas pelo multiculturalismo e/ou pela Educação Intercultural? ,
ora como um desafio mesmo, j á que tal perspectiva pode nos
provocar no sentido de mobilizar processos de articulação entre
igualdade e diferença e não de considerá-los com polos contra­
postos (CANDAU e KOFF, 2006, P. 1 1 3) .

E é em torno desse desafio que proponho mobilizar as nossas


energias, acreditando que a valorização e a incorporação pela
educação escolar das diferenças culturais como riquezas e/ou
"vantagens pedagógicas" contribuem no sentido de promover
sujeitos/atores autônomos, emancipados, com suas identida­
des fortalecidas e em permanente diálogo com o outro. Por sua
vez, entendo que tal valorização e incorporação precisam afetar
tanto a dimensão das políticas públicas a ela relacionadas, como
a dimensão dos saberes/conhecimentos e das próprias práticas
socioeducativas concebidas e implementadas na escola.

Saber/aprender a lidar com as diferenças culturais, certamen­


te não é um desafio para o qual vamos encontrar uma única
resposta. E, coerente com os próprios princípios da aborda­
gem/perspectiva crítica/Intercultural, aqui partilhados, en­
tendo que existirão muitas possibilidades e/ou modos de lidar
com as diferenças culturais, tendo presente o contexto, o tem­
po e o espaço aonde elas se situam.

Todavia e sem a intenção de oferecer uma receita, no sentido


de que as diferencas culturais não sejam silenciadas, conside­
ro fundamental:

• Problematizar os diversos aspectos que reforçam a mono­


culturalidade escolar, questionando as concepções que re-
1 70 ·DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

duzem a igualdade à padronização educativa, à negação,


à invisibilização e/ou à desvalorização das diferenças cul­
turais, bem como as concepções que tratam as diferenças
como problemas a serem resolvidos, deficiência ou déficit
cultural.

• "Olhar" os sujeitos/atores que integram a comunidade es­


colar, questionando as relações assimétricas de poder, os
mecanismos de subalternização e/ou inferiorização e/ou
de hierarquização presentes nas suas relações. Por sua vez,
estimular e promover relações mais igualitárias entre eles e
os diferentes grupos culturais a que pertencem, combatendo
os preconceitos e disc�i,rninações.

• Ainda em relação aos sujeitos/atores, questionar uma visão


essencializadora de suas identidades, fortalecendo a cons­
trução de identidades dinâmicas, abertas e plurais; estimu­
lar e valorizar processos de empoderamento, bem como da
construção da autoestima e da autonomia, no sentido de
sua emancipação social.

• Romper com a hierarquização entre conhecimentos (rela­


cionados aos conceitos, ideias e reflexões sistematizadas,
considerados científicos, universais e monoculturais) e sa­
beres (reconhecidos como produções dos diferentes grupos
socioculturais, relacionados às suas práticas cotidianas, tra­
dições e visões de mundo, concebidos como particulares e
assistemáticos) e, nesse sentido, fazer circular e estimular
o diálogo entre esses diferentes conhecimentos e saberes,
além de lidar com os possíveis conflitos que emergem da
tensão entre universalismo e relativismo.

• Reorganizar e flexibilizar os tempos e os espaços escola­


res; promover atividades e processos de diferenciação di­
dático-pedagógica, rompendo com as dinâmicas escolares
padronizadas e desvinculadas dos contextos sociocultu­
rais dos sujeitos/atores que delas participam; diversificar
o uso de métodos, técnicas, recursos e procedimentos de
avaliação; incentivar a utilização de múltiplas linguagens e
narrativas e a construção coletiva, favorecendo dinâmicas
participativas.
TRABAUlO CENTRADO EM PROJETOS: REINVENTANDO A PRÁTICA ESCOLAR, DESAFIANDO PROFESSORES E ALUNOS }7 1

• Favorecer a articulação e o diálogo entre as dinâmicas es­


colares diversificadas e aquelas que acontecem em outros
espaços educativo-culturais de aprendizagem.

• Estabelecer fortes relações entre os processos educacio­


nais e os contextos político-sociais em que se inserem, por
meio da adoção de políticas públicas que visem o reco­
nhecimento dos diferentes movimentos sociais presentes
em nossa sociedade brasileira e suas contribuições à edu­
cação brasileira, que articulam direitos da igualdade e da
diferença, bem como as questões de reconhecimento e de
redistribuição, que promovam processos de construção de­
mocrática, cujo horizonte seja a consolidação de uma de­
mocracia radical.

Em síntese, adotar políticas, concepções, mecanismos, proce­


dimentos, estratégias, alternativas, ações, práticas e ativida­
des que valorizem e façam uma incorporação positiva das di­
ferenças culturais presentes na escola, superando a tendência
à padronização em todas as suas dimensões.

Uma cond s:ão:


i e a prát ca
adotar a perspectiva i
de um curnculo integrado

Neste item, trago breves reflexões sobre a importância de a


escola adotar, como perspectiva e prática, o currículo4 inte­
grado, reconhecendo-o como alternativa tanto para viabili­
zar a escola como espaço de tensão, confronto, intercâmbio,
diálogo e cruzamento de conhecimentos, saberes e culturas,
favorecendo a construção de redes e/ou pontes entre eles,
bem como a relação entre a própria escola e o seu contexto
e, nesse sentido, criar as condições para que os/as alunos/as
compreendam melhor a sociedade na qual vivem, podendo
nela intervir como sujeitos/atores mais autônomos, críticos,
democráticos e solidários .

4 Levando em consideração o espaço e os objetivos deste texto, não vou tratar aqui
sobre a polissemia que envolve o conceito de currículo, apenas registro que estou
lidando com um conceito bem amplo que envolve não só o que ensinar e aprender,
mas todas as dimensões e dinâmicas relacionadas a esses processos.
1 72 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

Considero que a integração curricular5, sempre em diálogo


com os fUndamentos/princípios da abordagem/perspecti­
va crítica/intercultural, implica não só a reorganização dos
conteúdos escolares, mas também reconfiguração dos tempos,
espaços, práticas, atividades, relações entre outras dimensões
que são próprias do processo de ensino-aprendizagem.

Vale dizer que, mesmo reconhecendo toda a complexidade


que envolve a adoção de uma reorganização curricular que
pressupõe romper com a "tradição" da disciplinarização6, que
ainda é , nos dias de hoje, o principal constituinte de organiza­
ção implementada pela escola, aposto no potencial de currí­
culo integrado como .alt�µiativa importante para, de um lado,
superar o que entendo são limites da organização disciplinar,
como, por exemplo, a compartimentalização e/ou a fragmen­
tação excessiva dos conteúdos escolares e o distanciamento
entre eles e a realidade cotidiana e/ou os saberes e/ou cultu­
ras dos/as alunos/as e, por outro lado, nas possibilidades que
essa integração oferece, no sentido de valorizar uma maior
flexibilização seja nas fronteiras disciplinares, seja nos papéis
desempenhados pelos sujeitos das relações pedagógicas, bus­
cando construir relações menos isoladas e menos hierarqui­
zadas para, ao contrário, privilegiar relações mais horizontais
e dialógicas.

Para Torres Santomé ( 1 998, p. 26) , um currículo mais integrado


cria possibilidades no sentido de "desvelar as questões de valor

5 Cabe registar que no âmbito desse texto estou utilizando as expressões currículo
integrado e integração curricular como equivalentes. Considerando, contudo, que es­
sas também são expressões polissêmicas e que vou utilizá-las, tendo presente uma
concepção crítica de currículo integrado ou de integração curricular que quer ser mui­
to mais do que uma simples técnica de organização que se contrapõe à organiza­
ção disciplinar para ser uma perspectiva que quer viabilizar uma maior aproximação
entre o que acontece na escola e a realidade cotidiana de seus/suas alunos/as e da
própria sociedade onde eles/elas estão inseridos (BEANE, 1997).
6 Cabe uma observação para lembrar que é comum entender as disciplinas escola­
res como equivalentes às disciplinas científicas, sem levar em conta os processos de
recontextualização dos conhecimentos que acontecem no âmbito da escola. Nesse
sentido, entendo, em consonância com Lopes (2000) que as disciplinas escolares não
são meras cópias das disciplinas científicas reduzidas para fins didáticos. Elas têm
identidade e histórias próprias e, embora essas histórias possam, algumas vezes, se
aproximar das histórias de suas disciplinas de referência, elas não são homogêneas,
ao contrário, há uma série de fatores sociais, políticos, que ultrapassam uma dimen­
são puramente epistemológica na sua criação.
r TRABALHO CENTRADO EM PROJETOS: REINVENTANDO A PRATICA ESCOLAR, DESAFIANDO PROFESSORES E ALUNOS ) 7 0

implícitas nas diversas propostas disciplinares ou soluções disci­


plinares, permitindo constatar com maior facilidade dimensões
éticas, políticas e socioculturais que as visões exclusivamente
disciplinares tendem a relegar a um segundo plano" (p. 26).

Torres Santomé ( 1 998) também chama a atenção para a ten­


dência mundial de se:
Obter uma integração de campos de conhecimento e experiên­
cia que facilitem uma compreensão mais reflexiva e crítica da
realidade, ressaltando não só dimensões centradas em conteú­
dos culturais, mas também o domínio dos processos necessá­
rios para conseguir alcançar conhecimentos mais concretos e,
ao mesmo tempo, a compreensão de como se elabora, produz
e transforma conhecimento, bem como as dimensões éticas
inerentes a essa tarefa (p. 27).

Acredito, portanto, que a implementação de um currículo


integrado, em diálogo com os fundamentos da abordagem/
perspectiva crítica/intercultural, pode, de um modo mais fá­
cil e adequado, incorporar ao processo de ensino-aprendi­
zagem as concepções prévias dos/as estudantes; diminuir
as distâncias entre as expectativas e necessidades dos/as
alunos/as, bem como dos/as professores/as, além de apro­
ximá-los, favorecendo produções coletivas e, por serem co­
letivas, com potencial para serem mais críticas e criativas;
viabilizar a inter-relação entre o trabalho escolar e as ques­
tões da vida cotidiana.

Diante dessas considerações, podemos afirmar que a adoção


de um currículo integrado pode se constituir não só como um
caminho produtivo para a reinvenção da escola, como tam­
bém um pressuposto importante para viabilizar o Trabalho
Centrado em Projetos tal como apresentarei a seguir.

Um caminho possível:
o trabalho centrado em projetos

Mesmo ciente de que somente as transformações do/no


formato escolar de caráter teórico-metodológico não são
suficientes para transformar a educação e, particularmente, a
1 74 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

escola, considero que o Trabalho Centrado em Projetos pode


contribuir para a sua reinvenção na direção até aqui suge­
rida/proclamada. E justifico: trata-se de uma proposta que
tem alto potencial para mobilizar e envolver, no processo de
ensino-aprendizagem, os diferentes sujeitos/atores que dele
participam, à medida que favorece a incorporação de suas .
histórias e/ou trajetórias socioculturais nesse mesmo pro­
cesso. Ao mesmo tempo, acredito que o Trabalho Centrado
em Projetos oferece possibilidades para se romper com um
formato escolar padronizado e monocultura!, além de poder
favorecer um amplo diálogo, seja com os princípios da abor­
dagem/perspectiva crítica/intercultural, seja com a incorpo­
c;:uJ-,J;l.lrais
ração das diferenças -
como riqueza e/ou vantagem
pedagógica.

Tendo presente a polissemia existente entorno do que seja o


Trabalho Centrado em Projetos, podendo expressar diferentes
conceitos e configurações, cabe registar que estou "afinada",
ou seja, que adoto como "pano de fundo" das minhas próprias
reflexões as formulações propostas por Hernandez ( 1 998),
Hernadez ( l 998a). Hernández e Ventura ( 1 998) , Hernandez e
outros (2000) , Alvarez e outros (2004) .

Nesse sentido e em consonância com esses mesmos autores,


considero que trabalhar por e com projetos é uma proposta
que quer superar uma dimensão puramente técnica, muitas
vezes, presente quando se trata de conceber uma metodo­
logia e/ou um método e/ou ainda um outro formato esco­
lar. Trabalhar por e com projetos implica, principalmente, em
adotar uma nova postura, uma outra maneira de conceber a
educação e a escola e, certamente, um outro modo de lidar
com o curriculo, com a prática pedagógica e, portanto, com
o próprio processo de ensino-aprendizagem. Trabalhar por e
com projetos implica, ainda, ter a consciência de que não há
um único passo a passo, uma única receita que o configure.
Ou seja, é uma proposta que pode adquirir vários "desenhos"
em função dos fundamentos, principias e característica que a
orientam, dos seus contextos intra e extraescolares, dos sujei­
tos que dela participam, dos objetivos que se deseja alcançar,
das condições de trabalho, entre outras variáveis que podem
surgir ao longo de seu desenvolvimento.
TRABAU-10 CENTRADO EM PROJETOS: REINVENTANDO A PRÁTlCA ESCOLAR, DESAFIANDO PROFESSORES E ALUNOS } 75

Por sua vez, cumpre registrar que mesmo orientado pelos fun­
damentos, princípios e características que serão aqui explici­
tados, o Trabalho Centrado em Projetos - que reconheço como
um caminho possível para a construção de uma "outra" escola
- não tem uma única maneira de acontecer, precisa ser reco­
nhecido como algo em constante construção e reconstrução e,
portanto, em contínuo "redesenho" como o próprio movimen­
to de reinvenção da escola.

Segundo Hemández e Ventura ( 1 998, p. 57), os projetos de


trabalho estão vinculados à perspectiva do conhecimento glo­
balizado e relacional - uma noção que está associada a um
processo muito mais interno do que externo e, desse modo,
à ideia de uma estrutura de aprendizagem, entendida como
uma visão que assume que "as pessoas estabelecem conexões
a partir dos conhecimentos que já possuem e, em suas apren­
dizagens, não procedem por acumulação, e sim pelo estabe­
lecimento de relações entre diferentes fontes e procedimentos
para abordar a informação".

De acordo com esses mesmos autores, embora o enfoque glo­


balizador e relacional possa ser adotado em diferentes ma­
neiras de organizar os conteúdos curriculares (por disciplina,
atividades, centros de interesse, temas ou projetos) , os pro­
jetos de trabalho são os que possibilitam maior flexibilidade
e abertura no planejamento para pôr em prática tal enfoque.
Para eles, os projetos de trabalho são uma modalidade de arti­
culação dos diferentes conhecimentos que circulam na escola
e, nesse sentido, uma maneira de organizar as atividades de
ensino-aprendizagem de modo muito mais integrado:
Que implica considerar que tais conhecimentos não se ordenam
para sua compreensão de uma forma rígida, nem em função de
algumas referências disciplinares pré-estabelecidas ou de uma
homogeneização dos alunos. A função do projeto é favorecer
a criação . de estratégias de organização dos conhecimentos
1
escolares em relação: ( 1 ) ao tratamento da informação e (2) à
articulação entre os diferentes conteúdos em tomo de proble­
mas ou hipóteses que facilitem aos alunos a construção de seus
conhecimentos, a transformação da informação procedente dos
diferentes saberes disciplinares em conhecimento próprio (HER­
NÁNDEZ e VENTURA, 1 998, p. 6 1 ) .
1 76 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

E elés complementam:
Um projeto pode organizar-se seguindo um determinado eixo: a
definição de um conceito, um problema geral ou particular, um
conjunto de perguntas inter-relacionadas, uma temática que
valha a pena ser tratada por si mesma. Normalmente, superam­
se os limites de uma matéria (HERNÁNDEZ E VENTURA, 1 998,
p. 6 1 ) .

Assim sendo, os projetos de trabalho valorizam um sentido da


aprendizagem que quer ser significativo, ou seja, que pretende
conectar o que os/as alunos/as já sabem, suas experiências
e culturas com as temáticas a serem trabalhadas. E, quanto
mais os/as professorn,s/i>S forem capazes de fazer essas co­
nexões, mais favorável será ã atitude do/da aluno/a para a
construção de conhecimentos e melhores serão as condições
para a sua aprendizagem. "Globalização e significatividade
são, pois, dois aspectos essenciais que se plasmam nos proje­
tos" (HERNÁNDEZ e VENTURA, 1 998, p. 63) .

Além disso, esses autores destacam que as informações ne­


cessárias para construir os projetos não são determinadas a
priori, não dependem do desejo do/a educador/a, nem do que
propõe o livro-texto (e eu acrescentaria nem mesmo de um
programa curricular pré-estabelecido) . São informações que
estão em função do que cada aluno/a traz, seus saberes e cul­
turas e da informação com qaual ele/ela possa se relacionar
(HERNANDEZ e VENTURA, 1 998) .
dentro e fora da escola

Levando em conta esses pressupostos, considero que o Tra­


balho Centrado em Projetos pode favorecer espaços de cons­
trução, circulação, articulação e integração de diferentes co­
nhecimentos, saberes e culturas, respeitados alguns aspectos
que, de acordo com os próprios Hernández e Ventura ( 1 998) ,
precisam orientar a sua realização. Aspectos como: a ênfa­
se no protagonismo e autonomia dos/as alunos/as na esco­
lha de temas, na elaboração das perguntas a respeito do que
se deseja saber e/ou conhecer, na formulação de hipóteses
orientadoras de pesquisas e na própria realização das mes­
mas; a parceria dos/as professores/as na definição de um ín­
dice temático e de procedimentos para orientar as pesquisas
em múltiplas e variadas fontes de informação; o registro e a
TRABALHO CENTRADO EM PROJETOS: REINVENTANDO A PRATICA ESCOU.R, DESAFIANDO PROFESSORES E AWNOS 1 77 .

organização sistemática em dossiês elaborados com os dados


e informações coletados, a realização de sínteses individuais e
coletivas, bem como a elaboração de diversos produtos, cria­
dos em diferentes linguagens, utilizando diferentes mídias,
para expressar, os resultados, as descobertas e as aprendiza­
gens realizadas; o incentivo à autoavaliação e à avaliação re­
cíproca, contínua e global dos resultados alcançados.

o uso de variados espaços de trabalho7, a flexibilização dos


tempos escolares•, bem como a vivência de inúmeras e diver­
sificadas atividades pedagógicas, realizadas de forma indivi­
dual e coletiva, que valorizem o uso e/ou a incorporação de
diferentes narrativas (HERNÁNDEZ, 1 998) são outros aspectos
relevantes na configuração do Trabalho Centrado em Projetos.9

Cabe aqui destacar a ênfase que o Trabalho Centrado em Pro­


jetos dá às atividades em grupo, orientadas na perspectiva
da produção coletiva, que respeita e articula os diferentes rit­
mos, interesses, necessidades, saberes, conhecimentos e cul­
turas. Ao refletir sobre o que chama de antropologia do proje­
to'º, Boutinet (2002) afirma que "qualquer projeto, até mesmo
o mais pessoal, é fundamentado na lógica da interação".

7 Refiro-me, nesse caso, à adoção de um conceito de sala de aula ampliada, que


diz respeito à utilização de qualquer espaço como lugar de trocas, intercâmbios e
aprendizagens. Ou seja, trata-se do uso, além da sala de aula, de pátios, laboratórios,
bibliotecas, salas de midias, entre outros ambientes, que existem do lado de fora dos
muros da escola, como espaços pedagógicos.
8 Para inclusive respeitar os diferentes tempos dos/as diferentes alunos/as.
9 Vale um registro: considero que a atual proposta de trabalhar por e com projetos
pode ser compreendida como uma releitura do 'método de projetos', cuja formulação
original está associada ao educador norte americano William Kilpatrick. Autor e mé­
todo tomaram-se conhecidos no Brasil, a partir do Movimento da Escola Nova, que,
em confronto com os principias e métodos da pedagogia tradicional, propôs a adoção
de métodos mais ativos, buscando, principalmente, superar uma perspectiva centrada
na transmissão de conhecimentos pelos/as professores/as para incentivar participa­
ção e/ou a intensa atividade dos/as alunos/as na construção do conhecimento. Con­
tudo, acredito que as formulações aqui apresentadas vão além e se preocupam, de
modo relevante, com a incorporação das dimensões criticas e culturais que também
são importantes e configuradoras do processo de ensino-aprendizagem, da função da
escola e da educação.
1 O Boutinet {2002) se refere à sua intenção de construir uma antropologia do pro­
jeto, compreendida em uma perspectiva multidimensional, uma vez que considera
a existência de diferentes conceitos, instâncias, situações, níveis, tempos e espaços
associados à ideia de projetos. Tal autor apresenta, portanto, diversas possibilidades
de projetos, ao mesmo tempo, que busca construir procedimentos unificadores para a
sua análise. A questão do trabalho coletivo é um desses procedimentos.
1 78 ·D1DATICA: TECENDO/REINVENTANDO SASERES E PRÁTICAS

E acrescenta:
Em sua dupla ancoragem, individual e coletiva, o projeto deve
poder assegurar-se de que nenhuma instância se arrogue à pre­
tensão de se querer abusivamente proprietária .do que não lhe
pertence. Ele se apresenta como uma propriedade compartilha­
da, na qual cada um sabe reconhecer a sua dívida (BOUT!NET,
2002, p. 257).

Considero, portanto, que essa é uma característica importante,


na medida em que, além de favorecer a vivência de relações,
inclusive pedagógicas, menos hierarquizadas, isto é, mais
democráticas, contribui para promover um maior intercâm­
bio entre seus participp.J:i,l&S, com toda a bagagem que "carre­
gam", associada, tanto ãs suas experiências individuais, como
àquelas que são fruto e/ou oriundas dos grupos culturais a
que pertencem. Trabalhar por e com projetos, na perspectiva
da reinvenção da escola, implica, portanto, um compromis­
so permanente de valorização do diálogo entre todos os seus
participantes, em todos os níveis e âmbitos, respeitando suas
diferenças, incluindo as de natureza cultural.

Vale também registrar que essa é uma proposta que incenti­


va a autoavaliação (coerente com a ideia de que o/a aluno/a
é o protagonista em vários momentos e situações do traba-
lho) e também a avaliação mútua, mas que seja diversifica-
da, utilizando diferentes procedimentos e instrumentos, além
de abranger diferentes dimensões:. cognitiva, das habilidades,
das atitudes. 1
Diante de tais formulações, o Trabalho Centrado em Projetos,
que considero com potencial para reinventar a escola em con­
sonância com os principias da abordagem/perspectiva críti­
ca/intercultural, reconhece, valoriza, enfatiza e incorpora no
seu desenvolvimento aspectos como:

• O protagonismo dos/as alunos/as na concepção e na reali­


zação das inúmeras e diversificadas atividades pedagógicas
que acontecem ao longo de todo o trabalho, o que significa
empoderá-los/as e promover a construção de sua autono­
mia na vivência dos diversos momentos do processo de en­
sino-aprendizagem.
l�

TRABALHO CENTRADO EM PROJETOS: RE!NVENTANOO A PRÁTICA ESCOLAR, DESAFIANDO PROFESSORES E ALUNOS 1 79 'li
ii
il·

• Os diferentes saberes, conhecimentos e culturas presentes


na escola, incentivando a articulação e/ou diálogo entre '
eles, seja pela adoção de uma organização curricular pauta­
da por e/ou entorno de temas, indicados pelos próprios alu­
nos e objetos de suas pesquisas, seja pelo incentivo ao diá­
logo, ao intercâmbio e à produção coletiva ao longo de todo
o processo de trabalho, de pesquisas em diferentes fontes,
bem como dos relatos das conclusões e das aprendizagens
realizadas.

• Práticas pedagógicas diversificadas, aliadas à flexibilização


dos tempos e dos espaços de aprendizagem, ao uso de dife­
rentes linguagens e narrativas, bem como à ampliação e à
diversificação dos processos de avaliação.

• O trabalho coletivo, principalmente nos momentos de to­


madas de decisão, de criação e/ou produção, favorecendo a
vivência de relações mais democráticas.

• O diálogo com outras práticas de caráter educativo-socio­


cultural, à medida que valoriza diversos espaços de aprendi­
zagem para além dos muros da escola, inclusive como fonte
e/ou local de pesquisa ou favorece o acesso a outras expe­
riências que acontecem fora do âmbito escolar, promoven­
do o encontro com aqueles que são seus protagonistas.

Para concluir minhas reflexões

Como já destaquei, estou me referindo a reinventar a escola,


não estou pensando em anular tudo o que a instituição esco­
lar concebida na modernidade conquistou. E mesmo reconhe­
cendo que as várias mudanças já realizadas ao longo de sua
trajetória ainda não foram/são suficientes para transformá-la
na direção aqui proposta, acredito que a escola ainda "está
viva, ativa e se mantém como um lugar de realizações possí­
veis e desejadas" (COSTA, 2003, p. 20 e 2 1 ) . E por isso mes­
mo, a reinvenção que desejo aposta na ideia e/ou na possibi­
lidade de que a escola consiga ser, efetivamente, um espaço
de reconhecimento, valorização e diálogo entre as diferenças
culturais. Um lugar onde as diversas expressões, produções e
1 80 -DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

práticas de diversos grupos culturais se afirmem e se cruzem,


com suas histórias, narrativas e linguagens. Um espaço de
permanente buscas, construções individuais e coletivas, onde
os sujeitos que a integram experimentem e vivenciem proces­
sos de ensino-aprendizagem plurais, desafiantes e prazerosos.

Acredito, portanto, que a reinvenção que estou propondo,


orientada pela abordagem/perspectiva crítica/intercultural e
que aposta no potencial do Trabalho Centrado em Projetos,
encontra aí um caminho fecundo para superar a escola mo­
nocultura!, que prioriza a cultura dominante, que, na maioria
das vezes, corresponde a uma visão de determinados grupos
sociais hegemônicos, i'.i�anqo de fora ou minimizando toda
a riqueza que existe nos demais e diferentes grupos culturais.

E destaco que a reinvenção, que desejo, supõe o questiona­


mento crítico e a superação do formato padrão 1 1 que hoje pre­
domina nas instituições escolares, para conceber uma outra
escola, onde prevaleça o diálogo e/ou a relação intercultural
e, como consequência outras maneiras de conceber, construir
e organizar o currículo, o conhecimento e prática escolar. E
nesse sentido, construir uma outra escola que possa assu­
mir, de fato, o seu papel mobilizador e formativo de sujeitos/
atores, habilitando-os a participar ativamente dos processos
de formação da sociedade, do mundo e da vida para torna-la
mais digna para todos e todas.

1 1 Vale lembrar que quando estou me referindo a formato escolar estou querendo
falar sobre questões que vão muito além dos aspectos teóricos-metodológicos e/ou
instrumentais, para avançar no sentido de pensar a concepção de educação que orien­
ta a concepção de escola, bem como os processos de aprender e ensinar nela vividos.
.
TRABAUfO CENTRADO EM PROJETOS: REINVENTANOO A PRÁTICA ESCOU.R, DESAFIANDO PROFESSORES E ALUNOS 18}

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1
1 TIC'S
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NA ESCOLA
1 86 ÜJDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

CULTU DIGITAL,
TECNOLOGIAS -

DE INFORMAÇAO
E COMUNICAÇÃO
E P ,. 'TICAS .
PEDAGÓGICAS

Magda Pischetola
PUC-Rio
CULTURA DIGITAL, TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO E PRATICAS PEDAGôGICAS 1 87

E m 1 922, ��ublicava um ensaio intitulado Edu­


cação cbmrrengenharia , no qual defendia que o proces­
so de ensino-aprendizagem tinha sido transformado em um
procedimento de construção programada, que pouco tinha a
ver com o pensamento intelectual. Dessa forma, continuava
o filósofo, novas concepções de educação não serão capazes,
em si, de modificar a escola. Elas serão úteis somente quando
os significados e valores que essas concepções incarnam já
fizerem parte da realidade e da experiência cotidiana de pro­
fessores e alunos.

Cada vez mais, associa-se o conceito de inovação pedagógica


às Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) , que se
apresentam como "ferramentas de suporte" à pratica do pro­
fessor, quando utilizadas como "aliadas" por sujeitos que ven­
ceram sua "resistência" ao uso em sala de aula.

Esse capítulo pretende abordar esses discursos que permeiam


o campo da educação no momento atual, para desvendar
algumas crenças de senso comum, que em nosso ver não
facilitam a introdução de TIC no cotidiano escolar e reforçam
a ideia, contraproducente e contraditória, de que a inovação

1
pedagógica se deve à simples inserção de tecnologias em sala
188 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

de aula. Uma vez superados esses obstáculos iniciais, nos pro­


pomos a indicar alguns caminhos possíveis para o uso signifi­
cativo de TIC em educação. Em particular, graças a sua função
e uso prático.

O discurso das TIC como "ferramentas de


suporte" à pratica do professor

Em 1 964, um estudioso canadense da área de comunicação,


Marshall McLuhan, teorizou a existência em sociedade de um
"ambiente" criado por cada mídia, como uma bolha invisível
que rodea os indivídups .s<m determinada época histórica e lu­
gar geográfico. A televisão, qüe era a mídia dominante da épo­
ca em que ele escrevia, seria segundo o autor um ambiente
imersivo e muito influente nas experiências, vivências, ideias,
crenças, hábitos de todas as pessoas sujeitas à sua agência.
O autor analisa o lugar que a televisão chegou a ocupar nas
nossas casas, as práticas sociais e comunicacionais que ela en­
gendrou, as preferências por produtos culturais, modas, cos­
tumes que sua presença gerou. E, a partir desses elementos,
afirma que qualquer análise dos meros conteúdos que a televi­
são propõe acaba perdendo de vista o impacto maior que ela
traz para a sociedade: a bolha imersiva criada pelo novo meio
de comunicação. Em um de seus mais famosos aforismas,
McLuhan afirma que precisamos deixar de se preocupar pelas
mensagens e os seus efeitos, pois o aspecto mais importante é
que o meio é a mensagem. Os meios são extensões sensoriais
e cognitivas do homem e, ao mesmo tempo, motor da história.

Acreditamos que a visão de McLuhan é ainda mais relevante


com as Tecnologias da Informação e da Comunicação, am­
biente imersivo e fundante de todos os processos sociais, eco­
nômicos, políticos, relacionais, comunicacionais e, em última
análise, educacionais, do nosso tempo. Desde o começo do
século XXI, as TIC ocuparam todas as esferas culturais, torna­
ram-se o lugar onde os eventos políticos são organizados ou
visibilizados, o espaço hibrido entre a esfera privada e a esfera
pública dos indivíduos, a plataforma de expressão dos pensa­
mentos, o lugar da pesquisa, da divulgação de informação e
das novas formas de criaÇão.
CULTURA DIGITAL, TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO E PRATICAS PEOAGÓC!CAS 1 89

Se concordarmos em considerar as TIC e a Internet como ar­


tefatos culturais, ambientes imersivos que modificam substan­
cialmente as práticas, crenças e hábitos da nossa sociedade,
fica claro que não podemos defini-Ias simples "ferramentas"
e não podemos nos limitar a considerá-Ias um mero "apoio"
ou "suporte" ao professor e sua prática didática. O redimen­
sionamento das TIC à definição de "ferramenta" traz consigo
o problema fundamental de perder de vista a amplitude do
fenômeno da cultura digital em que as novas gerações estão
imersas. Além disso, a condição de ferramentas de suporte
implica o fato de que existe uma didática instaurada e esta­
belecida, que não será modificada com a presença de algu­
mas ferramentas a mais, quaisquer elas sejam e qualquer seja
o seu aporte para a educação. Em outras palavras, estamos
pressupondo que a educação é estanque, sua proposta já está
estruturada, seu modelo está incorporado em nossos hábitos,
como dizia Dewey, ao ponto de não suscitar nenhuma incer­
teza, dúvida ou alternativa. As ferramentas são um adendo à
prática consolidada do professor, que agora tem suas possibi­
lidades ampliadas. Com esse pressuposto, a educação não se
renova e as práticas continuam exatamente iguais, somente
mais digitalizadas: o retroprojetor substitui o quadro negro,
o professor não precisa escrever com o giz, os alunos conti­
nuam sendo interlocutores passivos. Talvez atraídos pelas lu­
zes do computador, mas não mais interessados ou motivados.
Pois as práticas culturais às quais estão acostumados fora da
escola são bem mais participativas e motivadoras.

O discurso das TIC como "aliadas" do professor


e da educação

Há um preconceito social com respeito às tecnologias, que


custa aos professores reconhecer. As TIC são associadas com
o lazer, o entretenimento e o prazer, sendo que a aprendi­
zagem é sinônimo de esforço intelectual, superação dos seus
limites, concentração, atenção e memória. Por trás desse dis­
curso, nos parece, há uma convicção fundamental, que asso­
cia o conhecimento científico - o único conhecimento consi­
derado "verdadeiro" - com a aprendizagem escolar. Hoje em
dia, nenhum professor diria que os alunos não aprendem com
1 90 .ÜIDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

as TIC. É óbvio que aprendem, pois, toda experiência humana


traz aprendizagem. Porém, há "categorias" de aprendizagem,
assim como há categorias de conhecimentos. Portanto, as TIC
são lugares de aprendizagem de série B. Podemos sim utili­
zá-las para realizar algumas atividades em sala de aula, para
"motivar" os alunos com sua presença e seu brilho, mas de
fato o que vai ser mais importante é cumprir o programa, pre­
parar os alunos para o vestibular, ensinar conteúdos.

Dessa forma, as TIC podem ser entendidas como "aliadas" do


professor. Esse discurso esconde uma outra face da moeda: elas
podem também ser inimigas do professor. Isso acontece, por
exemplo, quando o atµ_no �scolhe chatear no Facebook ao invés
de realizar a tarefa p"n'.>p-"6sta pelo professor, ou então navegar
em sites proibidos. Frente a essa falta de disciplina, os professo­
res se perguntam: por que o aluno escolhe gastar o seu tempo
com conteúdos que não servem para a educação formal? Por
que ele não aproveita a riqueza que as TIC providenciam, em
particular com a Internet e sua infinita quantidade de informa­
ção? A vontade do professor é ensinar ao aluno a utilizar essas
ferramentas "de forma correta". Como se não houvesse sim­
plesmente "usos" ou "práticas" e sim "usos bons e ruins" e "prá­
ticas boas ou ruins". Novamente, nos parece que esse professor
esquece que as tecnologias são artefatos culturais, cujo usos
dependem parcialmente de escolhas racionais, mas que, muitas
vezes, são usos que simplesmente se instauraram na sociedade
e são replicados pelos jovens usuários sem consciência crítica.
Cabe ao professor instigar o pensamento critico com relação
a certos usos, ao mesmo tempo em que propõe alternativas,
desconhecidas pelos alunos, mas que podem se tornar mais in­
teressantes e motivadoras dos usos atuais. o primeiro passo
nessa direção é abandonar o complexo de competição com as
mídias digitais. As TIC não substituem o professor, elas tornam ·

ainda mais importante sua mediação.

O discurso da "resistência do professor''


ao uso pedagógico de TIC

Muita literatura da área de educação responsabiliza o profes­


sor pela (não) integração de TIC na escola. O que fundamen-
CuCTURA DIGITAL, TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO E PRATICAS PEDAGÓGICAS }91

ta essa responsabilização é a associação, operada e m nível


de discurso social, entre inovação pedagógica e tecnologias.
O mundo vai para frente, dizem os trabalhos acadêmicos e
os professores por nós entrevistados nas escolas, · enquanto
a escola fica parada. O mundo oferece cada tipo de recurso
para inovar a didática, porém o professor está apegado à aula
tradicional e não sabe como usar as TIC com os seus alunos.
Esse sujeito resistente e tecnicamente incapaz está fadado a
não inovar nunca.

Ora, nossas pesquisas da última década em três países dife­


rentes - Itália, Etiópia e Brasil - nos mostraram que, no geral,
não há resistência do professor (Pischetola, 20 1 6) . Ao contrá­
rio, a maioria dos professores estão muito bem-dispostos a
inovar sua prática, alguns talvez mais preocupados de que sua
autoridade seja questionada e a gestão da sala de aula se tor­
ne mais dificil, mas sempre curiosos e abertos para o novo.
Também, é oportuno desmistificar o fato que a idade tenha um
peso negativo: nas nossas investigações, os exemplos de ino­
vação pedagógica mais interessantes vieram dos professores
mais idosos, ao passo que os professores mais jovens eram,
muitas vezes, os menos flexíveis com relação à sua prática
(talvez ainda em construção).

Qual é, então, a explicação desse discurso sobre a resistência


do professor? Acreditamos que se trata de uma falta de vi­
são sistêmica da educação . Quando perguntados sobre suas
dificuldades em utilizar as tecnologias nos contextos em que
trabalham, os professores relataram diferentes tipos de pro­
blemas: ( 1 ) burocráticos (o diretor requer que cada professor
imprima e assine urna ficha declarando sua responsabilidade
pela tecnologia que irá utilizar); (2) infraestruturais (a Internet
não funciona, o número de equipamento é inferior ao número
de alunos, não há cabos suficientes, etc.) ; (3) técnicos (não se
sentem preparados para o uso pedagógico de TIC) . Em nosso
ver, o que falta na análise dos professores entrevistados é uma
consideração sobre a necessidade que as TIC comportam de
mudar totalmente a estrutura da aula, em termos de metodo­
logias, tempos e espaços. Essa mudança não é simples, pois
não se trata, como argumentamos, de inserir uma nova ferra­
menta em uma prática pedagógica constituída. Ela acontece
1 92 DroATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

somente após muitos tentativas e erros, com o refinamento


das habilidades do professor que, aos poucos, entende qual
é a melhor forma de trabalhar com as tecnologias, quais são
as atividades que funcionam melhor com uma turma e aten­
dem aos objetivos pedagógicos, quais são as propostas que,
ao contrário, dispersam os alunos ou não os motivam para a
aprendizagem, e assim por diante.

As TIC, por serem uma cultura, desestruturam completamente


o sistema escolar ao qual estamos acostumados. E até elas
não encontrarem um terreno fértil para sua inserção efetiva
na educação, elas continuarão sendo consideradas acessórios
motivacionais a um(3.,prática pedagógica estabelecida e resis-
-..• -
tente à mudança. ·.

Apontamentos para um discurso cultural


sobre a educação com as TIC

Posto que as TIC são mais do que meras ferramentas e fun­


cionam como ambientes imersivos dos quais precisamos pes­
quisar e entender a força, para podermos modificar as práticas
pedagógicas, resta apreender o como dessa sua inserção na
educação escolar.

As 'indicações para esse caminho já nos foram dadas pelos


educadores do século XX, que se interessaram por dar res­
postas à crise da escola. "Como se planeja uma nova ponte?",
pergunta Dewey ( 1 922) . Através da imaginação de alguns en­
genheiros, que pensam em algo que nunca foi feito antes, apli­
cando seus conhecimentos matemáticos a novas condições
sociais, utilizando o conhecimento científico existente de for­
ma diferente do usual e com consequências desconhecidas. É
preciso ousar, diz o autor, para traduzir um pensamento teó­
rico em ação. Da mesma forma que os engenheiros tentam os
caminhos da criatividade, a educação pode trabalhar com o
desejo de experimentar e de aprender dos resultados. Não sa­
bemos quais serão esses resultados, como os engenheiros que
projetaram uma nova ponte não sabiam o que podiam atingir.
Não se pode supor que haja realmente qualquer avanço na edu­
cação simplesmente porque há uma melhoria técnica nas ferra-
CULTURA DIGITAL, TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO E PRATICAS PEDAGóGICAS 1 93

mentas de gerenciamento de um esquema educacional notável


para sua formação antes do surgimento da ciência. Essa "ciência"
apenas racionaliza a educação tradicional, melhorando-a em
pequenos detalhes. Dado o equipamento intelectual necessário,
a exigência imediata é de qualidades humanas de honestidade,
coragem e invenção que permitirão avançar sem os adereços do
costume ou as pretensiosas pretensões do costume disfarçadas
na terminologia da ciência (Dewey, 1 922, p. 4, tradução nossa) ' .

Nas palavras de Dewey, o professor precisa desenvolver três


qualidades principais: honestidade, coragem e invenção. Ten­
tamos fazer o exercício de aplicar essa sugestão à integração
pedagógica de TIC. É preciso, em primeiro lugar, de honestidade,
para olhar para a cultura digital e reconhecer as práticas
culturais em constante mudança das novas gerações. A cultura
digital pressupõe rapidez, múltiplas informações acessadas ao
mesmo tempo, práticas de comunicação e acesso à informação
não lineares. Sendo que a escola ainda trabalha os assuntos
em sequência, separados por disciplina e divididos em tempos
escolares. A partir dessa comparação, precisamos reconhe­
cer que a cultura digital nos obriga a repensar os caminhos da
aprendizagem, não apenas por uma questão de disponibilida­
de de conteúdos informativos on-line, mas também pelas mu­
danças cognitivas que as TIC trazem para as jovens gerações,
Como aponta Magda Soares (2002), a estrutura hipertextual dos
materiais disponíveis na Internet modifica as práticas de leitura
e escrita e levanta a questão da necessidade de múltiplos letra­
mentos: de quem é a responsabilidade de letrar os alunos para
essa nova sociedade digital, se não da escola? Em texto publica­
do com Naumann em 20 1 7, abordamos algumas questões que
sobressaem da reflexão sobre os Ietramentos na cultura digital:
O estudante-leitor-autor-produtor está consciente dessa instabi­
lidade dos textos? Ou continua tendo uma visão canônica do tex­
to escrito, aceitando-o como "verdade"? A reflexão sobre letra-

1 Texto original: "Let it not be supposed that there is really any advance in the science
of education merely because there is a technical improvement ín the toais of mana­
ging an educational scheme conspicuous for its formation prior to the rise of science.
such 'science' only rationalizes old, customary education while improving it in minar
details. Given the required intellectual equipment, the further immediate demand is
for hurnan qualities of honesty, courage, and invention which will enable one to go
ahead without the props of custam or the specious pretensions of custam niasquera­
ding in the terminology of science''-
1 94 D10AT1CA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

mento na escola inclui as práticas sociais de leitura e escrita dos


jovens leitores-autores? Quando abrimos esses questionamen­
tos, estamos querendo refletir sobre que novas habilidades polí­
tico-sociais - e aqui incluímos a leitura e a escrita - são exigidas
pela cultura digital. [ ] Trata-se de fortalecer os sujeitos nos
. . .

movimentos de ver, dizer e ouvir de lugares diferentes, assumir


outras posições, relativizar as assimetrias, sem a pretensão
descabida de eliminar as desigualdades que extrapolam a es­
cola, tentando não contribuir para aprofundá-las (NAUMANN;
PlSCHETOLA, 201 7, p. 1 28).

Em nosso entendimento, o letramento digital vai além das


questões meramente. cqgnitivas, apontando para questões
ã
sociais e políticas qué
s TIC levantam. Por exemplo, os al­
goritmos das redes sociais implicam uma restrição de acesso
a muitos conteúdos, criando filtros invisíveis e limitando as
possibilidades democráticas que a Internet podia trazer para
a sociedade: a escola vai se eximir de discutir assuntos tão
importantes como o significado do acesso à informação di­
versificada? E ainda, os primeiros resultados das buscas no
Google são os mais clicados, e não os mais relevantes: quem
vai ensinar aos nossos alunos o senso crítico necessário para
selecionar uma fonte de informação? Todas essas questões
estão relacionadas com a cultura digital, em que os nossos
alunos se encontram imersos. A honestidade da escola con­
siste em reconhecer seu papel de mediação pedagógica entre .
os alunos e as TIC.

Em segundo lugar, é preciso de coragem, para enfrentar os


erros que virão das tentativas .de uso pedagógico das TIC, em
termos de atividades que resultem pouco significativas do
ponto de vista da aprendizagem, ou pouco interessantes/mo­
tivadoras para os alunos, ou dispersivas em termos de aten­
ção. Em nosso entendimento, a coragem cresce com a hu­
mildade do professor, o que implica aceitar o fracasso como
parte intrínseca e natural do processo de aprendizagem, pois
no mundo da cultura digital, precisamos lembrar que o pro­
fessor também está aprendendo a ser um novo professor, a se
reinventar nas suas propostas didáticas. A coragem vem da
aceitação do "não saber" e pode ser auxiliada pelo suporte que
os mesmos alunos são capazes de dar ao professor. Sendo
CULTURA D!GITAL, TECNOLOGIAS DE INFORMAÇAO E COMUNICAÇAO E PRATICAS PEDAGÓGICAS 195

que, como tentamos explicar acima, o uso de tecnologias não


depende do conhecimento técnico, mas do conhecimento pe­
dagógico, relacionado aos objetivos que a atividade realizada
deveria alcançar. Quando o professor não tiver o conhecimen­
to técnico, pode pedir ajuda aos seus alunos, que por serem
"nativos digitais" terão todas as habilidades necessárias para
instalar um software ou abrir uma conta em algum site.

Por último, é preciso de invenção e criatividade para adaptar


todas as possibilidades existentes no mundo das TIC on-line
e off-line para o seu uso pedagógico, sem que isso signifique,
porém, "pedagogizar" as TIC, tirando o prazer que os jovens
alunos associam ao seu uso. Acreditamos que os professo­
res não carecem de criatividade e já sabem, inclusive, utili­
zar muitos recursos tecnológicos, para o uso pessoal, como
as investigações mais recentes demonstram (Malheiros, 20 1 7;
Pischetola, 2016). Pesquisas recentes demonstram como os
professores têm amplo conhecimento de muitas ferramentas
on-line, sites, softwares, e procuram inspiração para suas au­
las em blogs de outros professores ou nas plataformas institu­
cionais de recursos educacionais (por ex., o RioEduca, o Portal
do professor, etc.). Porém, há uma profunda diferença entre o
uso pessoal e o uso pedagógico que os professores fazem das
TIC. Apesar de conhecer muitas ferramentas, não as utilizam
no dia a dia da sala de aula. E justificam essa discrepância de
usos com a falta de método, o "não saber como". A realidade é
que não existe um "como" definido e, ao mesmo tempo, qual­
quer indicação prescritiva de uso das TIC na prática didática
é não somente inútil, mas também danosa, pois quem faz o
planejamento de suas aulas é o próprio professor, a partir das
especificidades do conteúdo a ser tratado, da turma, do con­
texto escolar, geográfico e temporal.

Algumas indicações concretas

A partir das considerações apresentadas, tentamos agora uma


aproximação à prática dos professores em busca de ideias
para trabalhar com as TIC, com algumas sugestões de método,
que resumimos, a seguir, com três palavras-chave: ( 1 ) inspira­
ção pelos outros; (2) múltiplas linguagens e (3) apoio do aluno.
1 96 ÜIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

1 Inspiração pelos outros


-

A formação docente é geralmente responsabilizada pela defa­


sagem dos professores com relação aos usos pedagógicos de
tecnologias. Concordamos em considerar a formação inicial e
continuada dos professores o núcleo central da mudança da
escola. Porém, algumas pesquisas recentes mostram que os
usos pedagógicos das TIC se desenvolvem, em muitos casos ,
em presença de comunidades de práticas (Brasilino, 20 1 7; Ca­
brera, 20 1 6; Hargittai, 2002) . Isso significa que os professores
aprendem muito mais através do exemplo e da troca com os
seus pares do que em cursos de formação sobre as tecnolo­
gias. Por que isso acontece? Porque os cursos de formação
com foco no uso das. '[IC abordam as tecnologias de um ponto
de vista meramente tê l:1Uco e instrumental. O professor não
precisa de técnicas, a não ser os conhecimentos básicos que
provavelmente já tem graças ao uso pessoal de tecnologias
que ele faz em seu cotidiano. o professor precisa de indica­
ções metodológicas, de uma formação que dê conta de ensinar
as possíveis aplicações didáticas das Tecnologias da Informa ­
ção e da Comunicação (Pischetola, 201 6) . A luz dessa análi­
se, uma primeira indicação para os professores que estejam
motivados a trabalhar com as TIC em sala de aula e não sai­
bam como fazer é: procurar um colega com mais experiência
e pedir sugestões de atividades, ideias, ferramentas on-line e
off-line. Pode não haver nenhum exemplo próximo na mesma
instituição escolar, mas há muitos grupos ç:le professores que
discutem práticas pedagógicas com o uso das TIC nas redes
sociais, trocando ideias e aprendendo mutuamente.

2 - Múltiplas linguagens
uma segunda sugestão vem da nossa experiência direta em
sala de aula. As TIC se caracterizam por uma evolução muito
rápida em termos de linguagens e ferramentas. Por isso, a
formação técnica não dá conta de mostrar caminhos concre­
tos para o professor e se torna um investimento inútil. Fazer
uma lista personalizada de sites ou softwares gratuitos dispo ­
níveis, para se pautar na imensidade das possibilidades que
a web apresenta, é muito mais interessante. A lista pode se r
ampliada a cada atualização do planejamento pedagógico ,
conforme o professor for descobrir novas ferramentas, indi­
cadas por colegas ou alunos. Segue um exemplo de uma lista
CULTURA DIGITAL, TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO E PRATICAS PEDAGÓGICAS 1 97"

personalizada de recursos on-line que a autora compôs, divi­


dida por tipo de atividade:

Re ositórios on-line:
http:/ /www. everystockphoto.com/
Imagens/Ilustrações
http:/ /www. freephotosbank.com/
http :/ /www. freeimages.com /
htt :/ /www. vecteez .com/
http://incompetech.com/music/royalty­
Músicas sem direitos autorais
free/
Recursos on-rme Para criacão de:
http://worditout.com/word-cloud/make-
Nuvem
-a-new-one
http://www.atividadeseducativas.com.br/
caça-palavras
index.oho?criarcacaoalavras
http://sites.google.com/ (acesso com
Webquest
conta Gmail)
Tutorial: https:/ /www.youtube.com/wat-
ch?V=LvOhGsoBFng
Site/blog http: //pt.wix.com/
http://pt-br.wikia.com/
Wiki Tutorial: https:/ /www.youtube.com/wat-
ch?v=W l nJ3Wu l fFw
http://www.scrapee.net/criador-de-tiri-
nhas-meme.htm
Tirinhas/memes/avatares http://garfield.com/game/comic-creator
http ://geradormemes.com/
htto://bitstrios.com/create/comic/
Anresentacões htto://orezi.com/
Nuvem de áudio https://soundcloud.com/
Softwares watuitos:
Baixar tube: http:/ /www.baixartube.com.
Baixar vídeos do Youtube
br/
Audacity: https://audacity.br.uptodown.
Gravação/edição de áudio
com
Movie maker üá instalados em sistema
operacional Windows)
Edição de vídeo:
VideoPad: http:/ /www.nchsoftware.com/
videopad/index.html
Cmap Tools: https://cmaptools.br.upt-
Criação de mapas mentais
odown.com/
Fig I - Lista persona/Jzada de alguns recursos on-/Jne. Fonte: a autora (2018).

É evidente que a lista de atividades deve poder responder às


exigências do professor, portanto, ela será ampliada, recorta-
1 98 ÜIDÁTlCA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

da, alterada conforme os objetivos pedagógicos de cada aula.


Porém, acreditamos que um elemento deva sempre ser consi­
derado preponderante, nas escolhas estratégicas do professor:
a criação e produção por parte dos alunos.

O letramento das jovens gerações passa pelo exercício de se


expressar através de inúmeras formas de criação. Alguns alu­
nos podem encontrar sua melhor veia criativa na produção
de um audiovisual, sendo que outros preferem gravar um áu­
dio ou criar a página de um site, uma tirinha, uma charge ou
uma animação. Todas essas produções podem ser avaliadas
pelo professor, para além da produção tradicional de textos
escritos. A atenção elpn
o.ifessor para as diferentes formas de
aprender de seusalunbs"":ímpltca, a nosso ver, a ampliação da
variedade das linguagens que o aluno encontra para formular
o seu pensamento e se expressar enquanto autor.

3 - Apoio do aluno
Uma última sugestão é de o professor trabalhar em parceria
com os seus alunos. Em nossa pesquisa de 20 1 2 nas escolas .
da Bahia e de Santa Catarina sobre o projeto Um Computador
por Aluno, resultou evidente que o apoio técnico é fundamen­
tal para o funcionamento de um projeto de inclusão digital e
é, infelizmente, o que mais falta nas escolas (Pischetola, 2015,
2016; Pischetola; Miranda, 20 15). Porém, as escolas investiga­
das que tinham instituído um projeto de monitoria tiveram mui­
to mais sucesso em termos de integração das TIC nas práticas
cotidianas. Os alunos ocupavam o papel de monitores, ficando
na escola no contra turno uma ou duas vezes por semana, e
ajudavam os professores preparando as salas com antecedên­
cia e oferecendo apoio concreto na gestão da sala de aula. Dar
aula com o uso das TIC é muito trabalhoso. A sensação do pro­
fessor é, muitas vezes, de perda de controle na gestão da sala
e de dispersão dos alunos durante a realização das atividades.
Porém, com a ajuda de um aluno monitor que cuida do apoio
técnico para a turma, o professor pode se concentrar na atua­
ção pedagógica, na gestão dos tempos da aula, no acompa­
nhamento concreto das tarefas que estão sendo desenvolvidas,
para atingir os objetivos pedagógicos preestabelecidos. Além
disso, trata-se para o aluno monitor de uma oportunidade ex­
traordinária de desenvolver algumas habilidades didáticas, co-
CULTURA DIGITAL, TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO í: PRATICAS PEDAGÓGICAS 1 99

municacionais e sociais, que não estariam ao seu alcance no


dia a dia escolar. Nas escolas pesquisadas pela autora, havia
fila de espera dos alunos que se propunham como. monitores.
E os monitores entrevistados estavam entusiasmados com seu
papel de suporte e, inclusive, muitos deles já decididos a se tor­
narem professores na vida adulta.

Considerações finais

A introdução das TIC na educação demanda por estratégias


didáticas capazes de promover uma variedade de processos
de aprendizagem e alerta para a urgência de uma revisão das
práticas pedagógicas. Enfrentar as implicações dessas mudan­
ças pressupõe buscar novas metodologias para o uso peda­
gógico de TJC, não apenas reproduzindo práticas tradicionais
com outros suportes, mas explorando criativamente as no,vas
possibilidades oportunizadas pelos novos meios.

Percebemos que o investimento das políticas públicas em in­


fraestrutura é importante e afeta o fazer pedagógico, mas não
são os equipamentos os principais responsáveis pela inovação
na escola. Se entendermos as TIC como artefatos culturais e
percebermos que estamos imersos em uma cultura digital, re­
conhecemos que a escola faz parte dessa mudança cultural
e contínua, tendo um papel crucial de mediação pedagógica.
Longe de ser substituída pelas TIC, a escola representa o lugar
privilegiado para desenvolver as habilidades que compõem
hoje os novos letramentos, e para pensarmos e discutirmos,
junto com as jovens gerações, as mudanças sociais, políticas
e éticas do mundo atual.

Se aplicarmos à educação a imagem pensada por John Dewey da


pónte como construção inovadora, fruto do desenho e da criati­
vidade de engenheiros corajosos, teremos uma metáfora muito
produtiva para o tema abordado nesse texto. A ponte ainda vai
ser construída, utilizando o conjunto de possibilidades que as TIC
apresentam para a educação: uma escola renovada em suas prá­
ticas, tempos e sentidos. Para que isso se concretize, precisamos
de professores capazes de inventar o novo e sem medo de errar,
professores curiosos e com vontade de aprender pela prática.
200 DIDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

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202 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

ENSINO HÍBRIDO :
POSSIBILIDADES
E QUESTÕES

Susana Sacavino
NOVAMERICA

Vera Maria Candau


PUC-Rio
ENSINO HÍBRIDO: POSSIBILIDADES E QUESTÕES 203

A s tecnologias digitais de informação e comunicáção


vêm impactando cada vez de modo mais abrangente
e intenso os diferentes âmbitos da vida social. Das operações
bancárias à vida doméstica. Da política às relações pessoais.
Do mundo do trabalho ao do lazer. Não se trata simplesmente
de mudanças de caráter operacional. Elas afetam nossos mo­
dos de aceder e construir conhecimentos, nossas formas de
relacionamento, nossas subjetividades, atitudes e comporta­
mentos. Neste sentido, afirma Almeida (20 1 8) :
Na convergência entre espaços presenciais e virtuais surgem
novos modos de expressar pensamentos, sentimentos, crenças
e desejos, por meio de uma diversidade de tecnologias e lin­
guagens rnidiáticas empregadas para interagir, criar, estabelecer
relações e aprender. Essas mudanças convocam participação e
colaboração, requerem urna posição crítica em relação à tecno­
logia, à informação e ao conhecimento, influenciam a cultura
levando à emergência da cultura digital (p. IX).

Se cada vez um maior número de pessoas e grupos socioculturais


estão afetados por estes processos, as crianças e os jovens são
considerados por muitos especialistas nativos digitais, no sen­
tido de que constituem a primeira geração que cresceu com
a Internet, na utilização das mídias digitais e no acesso aos
recursos da web.

Esta realidade afeta os processos educacionais e as culturas


escolares tendo presente que, segundo Pischetola (20 1 6) :
De súbito, a escola não é mais o primeiro lugar de aprendiza­
gem. · Pelo contrário, ela se afasta cada vez mais do mundo do
aluno, que parece dominar uma lingua aprendida espontanea-
204 DrDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

mente, uma língua desconhecida para o professor. Assim, a re­


lação tradicional entre docente e estudante subverte-se, provo­
cando desconforto (p. 50).

Nos últimos anos muitos têm sido os programas e experiências


desenvolvidas nos sistemas educacionais que tentam abordar
esta questão e promover a inclusão digital. No presente capí­
tulo, vamos nos referir a uma das propostas, o ensino híbrido,
expressão traduzida do inglês blended learning, por considerá­
-la uma perspectiva ampla que pode oferecer diversas alterna­
tivas e suscitar inúmeros questionamentos.

'.' ., ...

Ensino híbrido: em' que consiste?

o ensino híbrido, ou blended learning, é caracterizado como


uma das metodologias ativas e por promover uma articulação
entre o ensino presencial e propostas de ensino on-line, inte­
grando tecnologias ao currículo escolar.

O conceito de ensino híbrido foi criado no ano de 2008 , em


Harvard, por Michael Horn, numa obra intitulada Classe
disruptiva: como a inovação disruptiva vai mudar a forma
como o mundo aprende, (Disrupting Class: How Disruptive
Innovation Will Change the Way the World Learns), produzi­
da conjuntamente com Clayton Christensen. O livro aborda
o nascimento de uma nova forma de fazer educação. Horn
tornou-se também cofundador do Innosight Institute, que,
em 2 0 1 3, passou a se chamar Clayton Christensen Institute.
(http://porvir.org/ensino-hib rido-e-unico-j eito-de-transfo r­
mar-ed ucacao /) . Em sua acepção original, o termo híbrido
está vinculado precisamente a essa dualidade de possibili­
dades que inclui a escola e espaços externos que podem ser
utilizados para aprendizagem através da tecnologia como
uma mediação fundamental nesse processo. Os autores o
definem como:
Um programa de educação formal no qual um aluno aprende
por meio do ensino on-line, com algum elemento de controle do
estudante sobre o tempo, o lugar, o modo e/ou o ritmo do estu­
do, e por meio do ensino presencial, na escola (BACICH; TANZI
NETO; TREVISANI, 2015, p. 52).
ENSINO H[BRIDO: POSSIBILIDADES E QUESTÕES 205

Híbrido, segundo Moran (20 15; p. 27-28), significa misturado,


mesclado, blended. Híbrido é um conceito rico e complexo. O
ensino é híbrido porque todos somos aprendizes e mestres,
consumidores e produtores de informação e de conhecimentos.
No ensino híbrido acontecem vários tipos de misturas de saberes
e valores, quando integramos várias áreas de conhecimentos,
de metodologias, com desafios, atividades, projetos, games,
trabalhos grupais e individuais, colaborativos e personalizados.

No Brasil, o ensino híbrido vem sendo divulgado e promovi­


do especialmente pela Fundação Lemann 1 e pelo Instituto Pe­
nínsula2, ambas organizações com sede em São Paulo, que
desenvolvem diferentes programas em parceria com redes
públicas de educação de diversas regiões do país e escolas
privadas, se propondo contribuir para a qualidade da educa­
ção e a formação de educadores.

Como em todas as metodologias ativas, o centro do processo


educativo é o aluno e o desenvolvimento de suas possibili-_
dades de aprendizagens. Este modelo de educação formal se
caracteriza por combinar dois modos de ensino: o presencial,
que é o momento em que o aluno estuda em grupo, com o
professor ou colegas, valorizando a interação e o aprendiza­
do coletivo e colaborativo e o on-line, em que geralmente o
aluno estuda sozinho, aproveitando o potencial de ferramen­
tas on-line que podem inclusive guardar dados individuais dos
alunos sobre características gerais do seu momento de estu­
do (acertos, erros, correções automáticas de suas atividades,
tempo total de estudo, conteúdo estudado, dentre outros) .

A metodologia desenvolvida por Christensen e Horn estabele­


ce alguns modelos didáticos que propõem formas distintas de
organização da sala de aula, sempre considerando a inserção
de recursos digitais em ao menos uma das etapas de estudo.
1 "A Fundação Lemann é uma organização familiar, sem fins lucrativos, que colabo­
ra e trabalha por uma educação pública de qualidade para todos e apoia pessoas e
organizações que dedicam suas vidas a solucionar os principais desafios do Brasil".
("https://fundacaolemann.org.br). Acesso em 3 de junho de 2018.
2 "O Instituto Península nasceu em 201 O com o propósito de transformar e poten­
cializar vidas para catalisar o desenvolvimento sustentável da sociedade por meio
da educação e do esporte". (http://www.institutopeninsula.org.br). Acesso em 3 de
junho de 2 0 1 8.
206 ÜIDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

Em 20 12, o Instituto Innoosigth publicou um artigo intitulado


"Classifying K- 1 2 blended learning", que categorizava a maior
parte dos programas de ensino híbrido que estavam surgindo
no setor da educação básica nos Estados Unidos nesse mo­
mento e que são os que atualmente se desenvolvem também
no Brasil.

Os principais modelos se apresentam em quatro categorias:

a) o modelo de Rotação é aquele no qual, dentro de um


curso ou matéria, os alunos revezam entre modalidades de
ensino, com um roteiro fixo ou a critério do professor, sen­
do que pelo menos .11��..moqalidade é a do ensino on-line.
Outras modalidades podem incluir atividades como trabalhos ·

em grupos pequenos ou turmas completas, tutoria individual


e trabalhos individuais escritos.

O modelo de Rotação tem quatro submodelos: Rotação por


Estações, Laboratório Rotacional, sala de Aula Invertida, e Ro­
tação Individual.

- O modelo de Rotação por Estações ou o que alguns cha­


mam de Rotação de Turmas ou Rotação em Classe - é aquele
no qual os alunos se revezam em espaços específicos dentro
do ambiente de uma sala de aula.

- O modelo de Laboratório Rotacional - é aquele no qual


a rotação ocorre entre a sala de aula e um laboratório de
aprendizado para o ensino on-line.

- O modelo de Sala de Aula Invertida - é aquele em que os


aspectos conceituais de um tema são estudados on-line, em
casa com o emprego de diversas estratégias e dispositivos, e
o espaço da sala de aula é utilizado para discussões, resolu­
ção de problemas, entre outras atividades.

- O modelo de Rotação Individual difere dos outros mo­


-

delos de Rotação porque, em essência, cada aluno tem um


roteiro individualizado e, não necessariamente, participa de
todas as estações ou modalidades disponíveis.
ENSINO HIBRIDO: POSS!BIL\DADES E QUESTÕES 207

b) O modelo Flex é aquele no qual o ensino on-line é a espi­


nha dorsal do aprendizado do aluno, mesmo que ele o direcio­
ne para atividades off-line em alguns momentos. Os estudan­
tes seguem um roteiro flu ido e adaptado individualmente nas
diferentes modalidades de ensino, e o professor respons('tvel
está em um mesmo local.

c) O modelo A La Carte é aquele no qual os alunos participam


de um ou mais cursos inteiramente on-line, com um profes­
sor responsável on-line e, ao mesmo tempo, continuam a ter
experiências educacionais presenciais em escolas comuns. Os
alunos podem participar dos cursos on-line tanto nas unida­
des escolares ou fora delas.

d) O modelo Virtual Enriquecido é uma expenencia de


escola integral na qual, dentro de cada disciplina (ex: mate­
mática) , os alunos dividem seu tempo entre uma unidade es­
colar física e o aprendizado remoto com acesso a conteúdos
e lições on-line.

Christensen, Horn e Staker (20 1 3) criaram uma classificação


para as diferentes modalidades de ensino híbrido que eles de­
nominam inovações híbridas sustentadas que conservam algu­
mas características do ensino considerado tradicional; e inova­
ções híbridas disruptivas, que rompem com as características
do formato de escola mais comum atualmente. Desta forma:
Os modelos de Rotação por Estações, Laboratório Rotacional e
Sala de Aula Invertida seguem o modelo de inovações híbridas
sustentadas. Eles incorporam as principais características tanto
da sala de aula tradicional quanto do ensino on-line. Os mode­
los Flex, A La Carte, Virtual Enriquecido e de Rotação Individual,
entretanto, estão se desenvolvendo de modo mais disruptivo em
relação ao sistema tradicional (p. 3) .

Sala de Aula Invertida: como dinamizá-la? 1

Este modelo é considerado corno uma porta de entrada do en­


sino híbrido, por não apresentar urna ruptura radical com o
formato comum da sala de aula. Por ter uma natureza mista,
esse método pressupõe incorporar parte da mobilidade e da
208 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

possibilidade de comunicação através de dispositivos tecno­


lógicos para viabilizar o processo de aprendizagem para além
do encontro presencial no espaço escolar. Nele os estudantes
podem travar um primeiro contato com o material expositivo
que apresenta cada novo tema ou conceito antes das aulas,
seja em casa ou em um espaço de informática na própria es­
cola, reservando-se o momento de encontro com o professor
para a realização de atividades e tarefas que permitam o de­
senvolvimento de ações práticas, solução de problemas e o
aprofUndamento dos conteúdos (RODRIGUES, 2 0 1 6, p. 23).

No ensino frontal, a sala de aula é o espaço onde o profes­


sor ex12 lica conceitos e,ag_i;.e senta informações aos alunos que,
postenormente e fora da escola, devem estudar o matenal
abordado e realizar alguma atividade de avaliação para mos­
trar que o conhecimento foi assimilado. Na modalidade da sala
de aula invertida, o aluno estuda previamente fora da escola,
e a aula torna-se o lugar de aprendizagem ativa, onde há per­
guntas, discussões e atividades práticas. O professor trabalha
as dificuldades dos alunos, em vez de fazer explicações sobre
o conteúdo da disciplina (VALENTE, 20 1 8, p. 29) .

Basicamente, o conceito de sala de aula invertida, segundo


seus criadores Bergmann e sams (20 1 7; p. 1 1 ) , é o seguinte:
o que tradicionalmente é feito em sala de aula , agora é execu­
tado em casa, e o que tradicionalmente é feito como trabalho
de casa, agora é realizado em sala de aula.

A sala de aula invertida se desenvolve normalmente em três


momentos diferentes.

No primeiro, o aluno estuda o conceito que será visto na esco­


la antes da aula, se preparando para as atividades que serão
realizadas. Esse estudo pode ser feito baseado em referências
pesquisadas pelos próprios alunos ou em referências selecio­
nadas pelo professor que podem ser complementadas pelos
alunos. Podem utilizar diferentes recursos vídeos e blogs ou
outros tipos de materiais digitais, jogos, simulações, desafios,
animações ou mesmo o uso de laboratórios virtuais, que o
aluno pode acessar e complementar com as leituras, este é
um momento on-line.
ENSINO HIBRIDO: POSSIBILIDADES E QUESTÕES 209

O segundo momento é o momento da aula, em que os alunos


usarão os conceitos aprendidos previamente para construir
com o professor a aula, aplicando o que aprenderam e parti­
cipando ativamente da mesma. Nesse momento, o professor
passa a atuar como um supervisor daquilo que foi aprendido
pelos alunos, buscando identificar pontos estudados e validar
informações obtidas pelos estudantes. Este é um momento
importante pelo fato do professor estar participando das ati­
vidades que contribuem para o processo de significação das
informações que os estudantes adquiriram estudando on-line.
Nesse sentido, o feedback do professor é fundamental para
corrigir concepções equivocadas ou ainda mal elaboradas, as­
sim como para ampliar e aprofundar na temática focalizada.

O terceiro e último momento é o posterior à aula, em que os


alunos poderão aprofundar o que foi estudado em um local
externo à escola, buscando mais informações para comple­
mentar aquilo que estudaram na aula. Esse momento é impor­
tante para os alunos solidificarem sua aprendizagem e busca­
rem assuntos ligados ao tema que sejam de seu interesse.

Para que o professor avalie e acompanhe o que o aluno


apreendeu do estudo realizado on-line, a maioria das propos­
tas de sala de aula invertida sugerem que o estudante realize
testes autocorrigidos, disponibilizados na própria plataforma
on-line, de modo que ele possa avaliar sua aprendizagem. Os
resultados dessa avaliação, quando registrados na plataforma,
permitem ao professor acessá-los e conhecer quais foram os
pontos críticos do material estudado e que devem ser retoma­
dos em sala de aula (VALENTE , 20 1 8, p. 32).

Esta metodologia propõe desenvolver a autonomia dos alunos


e a personalização da aprendizagem, tornando-os ativos na
construção dos conhecimentos. É importante que o professor
trabalhe a conscientização da importância de buscar, selecio­
nar e analisar informações, usando os meios digitais, ensinan­
do cada um desses passos aos alunos.

Na aula invertida, o papel do professor na sala de aula é o de


orientar os alunos, ser um mediador e não um transmissor de
informações. A aprendizagem na sala de aula invertida permi-
210

1
DIDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

te a diferenciação do ensino para cada aluno. o ritmo da aula


se toma adequado às condições individuais, personalizando a ·
aprendizagem.

A sala de aula invertida, assim como as outras propostas men­


cionadas apresentam a perspectiva do ensino híbrido como
um modelo que busca uma forma de aprendizagem mais ativa
e envolvente para o aluno.

Como afirma Valente (20 1 5, p. 1 5) , no ensino híbrido:


A responsabilidade da aprendizagem agora é do estudante, que
assume uma postura mais participativa, resolvendo problemas,

1
desenvolvendo proj'\'tQ..S. [ ..] criando oportunidades para a cons­
.

trução de seu conheciment6. o professor tem a função de me­


diador, consultor do aprendiz.

As regras básicas para inverter a sala de aula segundo o re­


latório Flipped Class-room Field Guide (20 14, p. 5), são: 1 ) as
atividades em sala de aula devem envolver uma quantidade
significativa de questionamento, resolução de problemas e de
outras atividades de aprendizagem ativa, obrigando o aluno
a recuperar, aplicar e ampliar o material aprendido on-line;
2) os alunos devem receber feedback imediatamente após a
realização das atividades presenciais; 3) os alunos devem ser
incentivados a participar das atividades on-line e das presen­
ciais, sendo que elas são computadas na avaliação formal do
aluno; 4) tanto o material a ser utilizado on-line quanto os
ambientes de aprendizagem em sala de aula devem ser alta­
mente estruturados e bem planejados.

É importante destacar que, para aplicar o modelo de sala de


aula invertida ou qualquer um dos outros modelos de ensino
híbrido, é necessário que o professor planeje sua aula consi­
derando cada um dos momentos característicos de cada mo­
delo e o que cada aluno ou grupo de alunos estará fazendo
em cada momento: se trabalharão sozinhos ou em grupo, em
atividades de pesquisa teórica ou prática, em atividades on-li­
ne ou off-line. Assim como também o que o professor estará
fazendo em cada um dos momentos: se estará fixo em uma
estação ou livre para circular entre as estações, e a dinâmica
da aula como um todo.
ENSINO HIBRIDO; POSSlBIL!DADES E QUESTÕES
21 1

Como mencionam Bergmann e Sams (20 1 2) em seu trabalho


sobre a implantação da sala de aula invertida em suas disci­
plinas do ensino médio nos Estados Unidos, os professores
podem iniciar com o básico sobre a inversão da sala de aula
e, à medida que vão adquirindo experiência, passar a usar a
aprendizagem baseada em projetos ou em outras modalida­
des de investigação.

A sala de aula invertida atualmente é uma metodologia usada


tanto na educação fundamental como no ensino médio e no
ensino superior. No Brasil, no nível universitário, várias institui­
ções têm utilizado a abordagem da sala de aula invertida, mais
especificamente a peer instruction3, metodologia interativa, ba­
seada em questões mobilizadoras e interação entre os colegas.

Qual o lugar do/a professor/a no ensino híbrido?

A utilização das tecnologias digitais em situações de ensino


e aprendizagem não é uma ação que ocorre de um dia para
o outro. Estudos demonstram que se trata de um movimento
gradativo, processual em diferentes etapas até alcançar uma
ação crítica e criativa por parte dos professores na integra­
ção das tecnologias digitais em sua prática. A mudança do
papel do professor nesse processo tem como objetivo a busca
por estratégias que, incorporadas às aulas tradicionais, poten­
cializem o papel do aluno em uma postura de construção de
conhecimentos, com o uso integrado das tecnologias digitais
nesse percurso (BACICH, 2 0 1 8, p. 1 30, 1 35).

Inovar exige disposição. Essa é uma habilidade importante que


o professor precisa ter para usar a tecnologia de forma pedago­
gicamente intencional em um modelo hibrido. É preciso saber
combinar as atividades presenciais que estimulam a colabora­
ção entre os estudantes, bem como a valorização e a humani­
zação da relação professor/aluno, com as atividades virtuais

3 A Universidade de Harvard introduziu o método peer instruction (PI), desenvolvido


pelo professor Eric Mazur. Esta metodologia foi utilizada inicialmente na disciplina
introdutória de Física Aplicada e atualmente está sendo utilizada em outros cursos e
disciplinas, inclusive para atrair alunos para as áreas de ciências, tecnologia, enge­
nharia e matemática (VALENTE, 201 8 , p. 3 1 ) .
212 DlDATICA'. TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

em que o aluno estuda sozinho, utilizando-se das ferramentas


digitais. Será importante lembrar que a tecnologia é uma alia­
da e que o aprendizado pode acontecer em qualquer hora e em
qualquer lugar e de inúmeras formas, mas o professor precisa
definir como essas ferramentas podem auxiliar positivamen­
te na aprendizagem de seus alunos e alunas. O professor não
pode esquecer que o planejamento é fundamental no ensino
híbrido e que as tecnologias utilizadas devem ser escolhidas
a partir de objetivos pedagógicos bem definidos (FERNANDES
DE LIMA, HOLANDA E RIBEIRO DE MOURA, 2 0 1 5, p. 96-97).

No ensino híbrido, as práticas de explicação de temas específi­


cos são habilidades pouE>e utilizadas pelos professores. A ação
do professor é voltada para a tutoria, sendo capaz de identifi­
car problemas e agir com foco em individualizar e personali­
zar o ensino. Como destacam Fernandes de Lima, Holanda e
Ribeiro de Moura (20 1 5, p. 94) :
Essa mediação é uma habilidade pouco explorada na prática do­
cente, e a tecnologia permite ao professor passar instruções on­
-line e trabalhar propostas inovadoras em sala. Uma das práticas
bastante vinculada aos modelos híbridos é a abordagem de con­
teúdos baseada em projetos, a qual, além de muito mais atrativa
e engajadora para os alunos, potencializa o desenvolvimento de
habilidades não cognitivas, como a criticidade e a colaboração.

Outro aspecto que os mesmos autores destacam que facili­


ta a metodologia do ensino híbrido é o acompanhamento do
domínio de habilidades por meio de plataformas adaptativas,
programadas para identificar o desempenho cognitivo dos alu­
nos em determinadas disciplinas. Essas plataformas utilizam
dados para promover instrução com feedback e correção em
tempo real. Os dados acumulados personalizam o conteúdo
disponibilizado ao estudante e geram relatórios de acompa­
nhamento para o professor.

Os projetos pedagógicos inovadores conciliam, na organiza­


ção curricular, espaços, tempos e propostas que equilibram a
comunicação pessoal e a colaborativa, presencial e on-line.
Como afirma Moran (20 1 5, p. 39) :
o papel ativo do professor como design de caminhos, de ativida­
des individuais e de grupo, é decisivo e o faz de forma diferente.
ENSINO HIBRJOO: POSSIBILIDADES E QUESTÕES 213

O professor se torna cada vez mais um gestor e orientador de


caminhos coletivos e individuais, previsíveis e imprevisíveis, em
uma construção mais aberta, criativa e empreendedora.

O que a tecnologia oferece hoje é integrar diferentes espaços


e tempos. A articulação nos processos de ensinar e aprender
entre os mundos presencial e digital.

Ensino híbrido: reflexões e questionamentos

Sem dúvida, o impacto das midias digitais de informação e


comunicação vem se ampliando e avançando cada vez mais,
afetando os diversos âmbitos da vida social. No entanto, o
acesso e a navegação on-line ainda é muito desigual entre
nós, tanto no que diz respeito às diferentes áreas geográficas,
como aos diversos sujeitos socioculturais. Promover a inclu­
são digital constitui um grande desafio e estamos chamados
a favorecer processos que permitam uma maior democrati­
zação do acesso à Internet, das plataformas e dos dispositi­
vos digitais.

Esta desigualdade também está presente no âmbito educati­


vo. Os sistemas de ensino e as escolas oferecem possibilida­
des diferenciadas para o desenvolvimento de programas nes­
ta perspectiva. Qualquer que seja o projeto que pretendamos
realizar, da sala de aula aos sistemas de ensino, temos de ter
presente as condições conc retas dos sujeitos em relação ao
acesso às mídias digitais de informação e comunicação.

Também é fundamental nos perguntarmos pela concepção


de educação que queremos promover. Se nQs sitt.iamos numa
perspectivél.cilti.ca em que a educação visa colaborar rii'fcons­
trução de sociedades democráticas e justas, nossas opções e
escolhas de estratégias devem estar informadas por esta bus­
ca. Ao mesmo tempo, ter presente os sujeitos implicados, suas
características sociais e culturais é outro componente funda­
mental. As culturas infantis e juvenis apresentam novas e di­
ferenciadas configurações. Como educadores estamos cha­
mados não somente a conhecer e escolher entre dispositivos
digitais já disponíveis, como favorecer processos de criação de
214 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

estratégias e dispositivos multiculturalmente referenciados, o


que é um grande desafio.

Questionar e superar o "formato escolar" (Dubet, 20 1 1 ) domi­


nante na sociedade e nas culturas escolares constitui outra
questão de grande complexidade e urgência. O chamado ensi­
no frontal está fortemente arraigado nos processos educacio­
nais. Nos primeiros anos da escolarização apresenta menor
incidência e as dinâmicas de sala de aula são mais plurais. No
entanto, a partir da segunda etapa do ensino fundamental e
no ensino médio a predominância deste ensino ainda é a que
impera na grande maioria das escolas.
·:· �. ...
-

o ensino híbrido tem °C�O uma de suas características ques­


tionar e superar esta perspectiva. Apresenta-se como uma
metodologia ativa, centrada nos alunos e potencializadora
das articulações entre o presencial e o on-line. Convém ter
presente que as buscas de desenvolver metodologias ativas
não são novas no campo pedagógico, tendo tido uma ampla
difusão, especialmente a partir da metade do século XX, com
o conhecido movimento da Escola Nova. Neste sentido, é im­
portante ter presente a afirmação de Gimeno Sacristán (2002,
p. 1 5) , referida ao tema da diferença na educação, que consi­
deramos pertinente aplicar à questão das metodologias ativas:
não convém anunciar estes problemas como sendo novos, nem
os lançar como moda, perdendo a memóna e provocando des­
continuidades nas lutas para mudar as escolas.

De fato, são inúmeras as propostas de metodologias ativas:


centros de interesse, metodologia de projeto, técnicas basea­
das em Freinet, em Piaget, em Montessori, educação persona­
lizada, entre outras. Muitas foram as experiências desenvolvi­
das e com bastante sucesso. O que temos de nos perguntar é
porque não permanecem incorporadas de forma sistemática
e permanente nas escolas e nos sistemas de ensino. Têm um
período de duração em que são trabalhadas com intensidade
e depois vão progressivamente se fragilizando. Esta questão
nos leva a refletir sobre a importância de situar as propostas
de inovação na educação escolar em articulação com diferen­
tes componentes da cultura escolar: organização do espaço e
do tempo, concepção do currículo, infraestrutura das escolas,
ENSINO HJBRJDO: POSSJBJUDAOES E QUESTÕES 215

formação dos professores, formas de seleção e contratação


dos professores, expectativas dos pais e da sociedade em rela­
ção às escolas, entre outras.

Problematizar a cultura escolar dominante supõe capacidade


pedagógica e de gestão, assim como um compromisso social
e político que permita afirmar uma educação que atenda aos
desafios do momento e se comprometa com a formação de
cidadãos reflexivos, e ativos mobilizadores e apoiadores de
processos de transformação social.

Neste sentido, o papel dos professores é fundamental . Para


tal, é necessário que tenham uma formação inicial adequada
e participem de processos de formação continuada, especial­
mente na própria escola, de forma sistemática, assim como
que se promovam políticas que melhorem as condições de tra­
balho dos professores, ampliando sua dedicação e favorecen­
do o trabalho coletivo.

As mídias digitais de informação e comunicação têm um gran­


de potencial para mobilizar processos de reinvenção da es­
cola. Os educadores somos os agentes fundamentais para se
avançar na construção de culturas escolares mais inclusivas,
criativas e democráticas.
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216 DIDATJCA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

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DIFERENÇAS
E PROCESSOS
DE ENSINO­
APRENDIZAGEM ,
220 ÜJDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

Vera Maria Candau


PUC-Rio
INTERCULTURALIDADE E COTIDIANO ESCOLAR 221

Introdução

Muitas e diversificadas são as leituras sobre o mundo atual.


Plurais são as perspectivas e ênfases. No entanto, é possível
afirmar que é cada vez mais convergente a afirmação de que
a dimensão cultural constitui um elemento configurador fun­
damental da contemporaneidade. Stuart Hall ( 1 997, p. 97) é
especialmente incisivo nesta perspectiva:
Por bem ou por mal, a cultura é agora um dos elementos mais
dinâmicos e mais imprevisíveis da mudança histórica no novo
milênio. Não deve nos surpreender, então, que as lutas pelo po­
der sejam, crescentemente, simbólicas e discursivas, ao invés de
tomar, simplesmente, uma forma física e compulsiva, e que as
próprias políticas assumam progressiva mente a feição de uma
política cultural.

As diferenças socioculturais são componentes fundamentais


das relações sociais. Permeiam o nosso cotidiano, tanto no
que se refere às relações interpessoais quanto entre os diver­
sos grupos, organizações e movimentos presentes na socieda­
de. No entanto, estas relações estão, muitas vezes, marcadas
por tensões e conflitos, em função das assimetrias de poder
que as permeiam e provocam a construção de hierarquias,
processos de subalternização, preconceitos, discriminações e
violências em relação a determinados atores sociais.

Se estas afirmações são válidas para a sociedade como um


todo, também é possível afirmá-las em relação ao âmbito edu­
cacional. As questões relativas à diversidade cultural emer-
222 0JDÁTtCA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

gem com força nas dinâmicas educativas, no dia a dia de nos­


sas escolas.

Em diferentes trabalhos e pesquisas que tenho realizado nos


últimos anos, procurei aprofundar nas relações entre diversi­
dade cultural e processos educativos em diferentes âmbitos da
educação formal e não formal, tanto do ponto de vista teórico
como de suas implicações nas práticas pedagógicas.

No presente capítulo pretendo apresentar uma breve discus­


são conceituai sobre o que entendo por educação intercultu­
ral para, em um segundo momento, fazer referência a uma
experiência desenvolvida em uma disciplina da pós-gradua­
ção em educação nà'0 F'OC-Rio, para terminar apresentando
alguns componentes que considero fundamentais para o de­
senvolvimento de práticas educativas interculturais no coti­
diano escolar.

Educação Intercultural: uma proximação

A palavra interculturalidade vem adquirindo um uso cada vez


mais amplo na sociedade em que vivemos. No entanto, são
muitos os sentidos a ela atribuídos. Trata-se, sem dúvida, de
um termo polissêmico. Segundo Fleuri (20 1 7, p. I 77):
A interculturalidade se tomou hoje um tema paradoxal.O inte­
resse pela interculturalidade, assumido em programas governa­
mentais, movimentos sociais e mesmo pela pesquisa científica e
pela mídia, vem promovendo o reconhecimento da diversidade
cultural. Mas, ao mesmo tempo, apresenta-se por vezes como
uma nova tendência multicultural que se isenta de qualquer sen­
tido crítico, político, construtivo e transformador.

Esta realidade exige que precisemos o sentido em que a em­


pregamos. Evitando um modismo que termina por difundir
uma perspectiva superficial e reducionista das relações inter­
culturais. vou me referir especificamente à expressão educa­
ção intercultural. Dentre as diversas concepções que atraves­
sam a literatura sobre esta temática (CANDAU, 2014), assumo
a perspectiva da interculturalidade crítica e sublinho algumas
de suas características.
INTERCULTURALIDADE E COTIDIANO ESCOLAR 223

Uma primeira, básica, é a promoção deliberada da inter-rela­


ção entre diferentes grupos socioculturais presentes em deter­
minada sociedade. Para Kwame Anthony Appiah (20 1 2, p.3) :
Um diálogo intercultural cosmopolita é aquele em que nos tra­
tamos como cidadãos de um mundo compartilhado e, portanto,
digno de respeito mútuo. Isso não significa que não podemos
discordar. Por um lado, não podemos ser apenas relativistas
generalizadores e achar que tudo que acontece na humanida­
de é correto e bom. Por outro, não podemos achar que nós te­
mos todas as respostas, seja lá quem for esse "nós". Temos que
nos colocar em um diálogo no qual imaginemos que podemos
aprender com o outro.

A perspectiva intercultural rompe com uma v1sao essencia­


lista das culturas e das identidades culturais. Concebe as cul­
turas em contínuo processo de elaboração, de construção e
reconstrução. Certamente cada cultura tem suas raízes, mas
estas raízes são históricas e dinâmicas. Não fixam as pessoas
em determinado padrão cultural.

Uma terceira característica está constituída pela afirmação de


que nas sociedades em que vivemos os processos de hibridi­
zação cultural são intensos e mobilizadores da construção de
identidades abertas, em construção permanente, o que supõe
que as culturas não são puras. sempre que a humanidade pre­
tendeu promover a pureza cultural e étnica, as consequências
foram trágicas: genocidio, holocausto, eliminação e negação
do outro.

A consciência dos mecanismos de poder que permeiam as re­


lações culturais constitui outra característica desta perspec­
tiva. As relações culturais não são relações idílicas, não são
relações românticas; estão construídas na história e, portanto,
estão atravessadas por questões de poder, por relações forte­
mente hierarquizadas, marcadas pelo preconceito e pela dis­
criminação de determinados grupos.

Uma última característica que gostaríamos de assinalar diz


respeito ao fato de esta perspectiva não desvincular as ques­
tões da diferença e da desigualdade presentes hoje tanto ho
plano mundial quanto da nossa sociedade. A perspectiva in-
224 DJDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

tercultural crítica afirma que essa relação é complexa e admite


diferentes configurações em cada realidade, sem reduzir um
polo ao outro.

Partindo desta perspectiva da interculturalidade crítica, o Gru­


po de Estudos sobre Cotidiano, Educação e Culturas (GECECL
que coordeno, construiu coletivamente o seguinte conceito de
educação intercultural:
A Educação Intercultural parte da afirmação da diferença como
riqueza. Promove processos sistemáticos de dialogo entre diver­
sos sujeitos - individuais e coletivos -, saberes e práticas na pers­
pectiva da afirmação da justiça - social, econômica, cognitiva
e cultural -, assim como da construção de relações igualitárias
entre grupos socio éu1filrais-e da democratização da sociedade,
através de políticas que articulam direitos da igualdade e da di­
ferença (CANDAU, 2014).

Gostaría de ressaltar a primeira afirmação desta definição,


que considero central. O termo diferença, em depoimentos de
educadores em várias das pesquisas que tenho realizado, é
frequentemente associado a um problema a ser resolvido, à
deficiência, ao déficit cultural e à desigualdade. Diferentes são
aqueles/as que apresentam baixo rendimento acadêmico, são
oriundos de comunidades de risco, de famílias com condições de
vida de grande vulnerabilidade social, que têm comportamen­
tos que apresentam níveis diversos de violência e incivilidade.
Aqueles/as que possuem características identitárias que são
associadas a anormalidade, a "necessidades especiais" e/ou
a um baixo capital cultural. Enfim, os diferentes são um pro­
blema que a escola e os educadores/as temos de enfrentar e
esta situação vem se agravando e não sabemos como lidar
com ela. Somente em poucos depoimentos, a diferença é arti­
culada a identidades plurais que enriquem os processos peda­
gógicos e devem ser reconhecidas e valorizadas.

No entanto, se não logramos mudar de ótica e nos situar dian­


te das diferenças culturais como riquezas que ampliam nossas
experiências, dilatam nossa sensibilidade e nos convidam a
potencializá-las como exigência da construção de um mundo
mais igualitário, não poderemos ser atores de processos de
educação intercultural na perspectiva assinalada. E, para tal,
INTERCULTURALIDADE E COTIDIANO ESCOLAR 225 .

estamos chamados a desconstruir aspectos da dinâmica es­


colar naturalizados que nos impedem de reconhecer positiva­
mente as diferenças culturais e, ao mesmo tempo, promover
processos que potencializem esta perspectiva. É nesta direção
que tenho procudado trabalhar.

Construindo praticas educativas interculturais:


uma experiência 1

No primeiro semestre de 2 0 1 6, desenvolvi uma disciplina in­


titulada "Educação Intercultural e Práticas Pedagógicas", ofere­
cida aos alunos e alunas do Programa de Pós-Graduação em
Educação da PUC-Rio. A referida disciplina, de caráter eletivo,
supunha como condição de matrícula que os participantes es­
tivessem em exercício docente na escola básica e sua metodo­
logia teve como inspiração a pesquisa-ação.

No primeiro encontro, além da apresentação dos integrantes


do grupo e de suas expectativas em relação ao curso, foi apre­
sentada a proposta do mesmo, discutida como seria incorpo­
rada a perspectiva da pesquisa-ação e foram construídas con­
juntamente as questões que norteariam os trabalhos:
De que maneira a Interculturalidade pode se concretizar e/ou
pode acontecer impactando o currículo e a prática pedagógica
no cotidiano da sala de aula?
Quais as dificuldades para que isso aconteça? Quais os elemen­
tos potencializadores?
Como desestabilizar a questão da monoculturalidade que con­
figura a escola e que afeta a própria visão que temos dos/as
alunos/as e dos conhecimentos/saberes?

As integrantes - todas professoras - constituíram um grupo


pequeno e heterogêneo, formado por pessoas com diferentes
formações acadêmicas - biologia, educação física, música, le­
tras-inglês e matemática -, todas vinculadas a redes públicas
de ensino (municipal e estadual) e a um dos colégios de apli­
cação de uma universidade pública situada na cidade do Rio
de Janeiro, cursando a pós-graduação em educação, em nível

·
1 Item tendo como referência o artigo CANDAU, Vera Maria Ferrão. Cotidiano escolar
e práticas interculturais. cadernos de Pesquisa, v. 1 6 1 , p. 802-820, 2 0 1 6 .
226 DIDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

de mestrado ou doutorado, em diferentes universidades. To­


das as participantes receberam um Caderno de Campo, onde
deveriam registrar de modo sistemático suas observações, ex­
periências, impressões e comentários e um CD-ROM com os
principais textos que serviriam de base para o curso.

Uma das prticipantes registrou em seu Caderno de Campo:


percebemos que o que une o grupo é uma inquietude/preocu­
pação em como construir um cunfculo com olhar multicultural
e de que maneira concretizar a interculturalidade no currículo e
no cotidiano escolar.

Convergimos em que. o !;)Osso foco seria aprofundar no pro­


cesso de interculturalizâr a es<:ola, o currículo e a sala de aula.
A metodologia utilizada no curso supõs a realização de dife­
rentes exercícios orientados a trabalhar o "olhar" e a sensibi­
lidade em relação a diversas dimensões do cotidiano escolar
em que as diferenças culturais podem ou não se manifestar,
interagir com os colegas sobre estas questões, elaborar plane­
jamentos de práticas educativas interculturais, desenvolvê-las
e analisá-las, entre outros. Junto com as tarefas semanais, os
textos indicados foram sendo explorados e discutidos, procu­
rando-se privilegiar suas contribuições para ampliar as ques­
tões suscitadas.

O primeiro exercício esteve orientado a realizar um texto livre


sobre "Minha Identidade Cultural". Temos proposto esta ativi­
dade em muitos cursos sobre relaçoes entre educação e cultu­
ras que desenvolvemos nos últimos anos. Tem sido recorrente
a dificuldade dos professores e professoras em realizarem esta
reflexão. Muitos afirmam ser a primeira vez que pensam sobre
este tema e outros se limitam a um relato descritivo de sua tra­
jetória. Mais uma vez constatamos esta realidade. Não foi fácil
para as professoras reconhecerem sua construção identitária
do ponto de vista cultural. A tendência é enfatizar caracterís­
ticas de personalidade. No entanto, consideramos ser este um
ponto de partida fundamental, pois na medida que tivermos
maior capacidade de reconhecer nosso próprio processo de
construção de identidade cultural, estaremos também mais
abertos e sensíveis aos processos de construção identitária
dos demais, nossos alunos e alunas, nossos colegas e amigos.
INTERCULTURALIDADE E COTIDIANO ESCOLAR 22 7

Convém aqui fazer uma observação: consideramos as iden­


tidades como processos dinâmicos, históricos, em contínuo
movimento. Assumimos o ponto de vista de Boaventura Sousa
Santos ( I 993) quando afirma:
Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas [ . . . ], escon­
dem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de
temporalidades em constante processo de transformação, res­
ponsáveis em última instância pela sucessão de configurações
hermenêuticas que de época para época dão corpo e vida a tais
identidades. Identidades são, pois, identificações em curso (p. 3 1 ) .

Foram muitos os exercícios realizados. Apresento alguns: pro­


mover atividades para conhecer melhor o mundo cultural de
nossos alunos/as; identificar elementos importantes, "mar­
cas", da cultura escolar da instituição onde trabalha; observar
os painéis da escola - quem organiza, com que frequencia são
mudados? Que temas e informações são privilegiados? Os alu­
nos participam ou não da organização desses painéis? -; esco­
lher um livro didático utilizado na escola e analisá-lo, procu­
rando ver se a diversidade permeia o livro ou não - como são
as imagens?, o conhecimento é apresentado de modo linear e
único?, abre para a possibilidade de outras leituras e conheci­
mentos?-, construir uma prática pedagógica de caráter inter­
cultural, executá-la e fazer uma apreciação; "conversar" com
colegas sobre a diversidade cultural presente na escola; dis­
cutir com colegas determinadas frases como, por exemplo, "a
sociedade brasileira é multicultural, mas a educação escolar
não", "as práticas multiculturais afirmam as diferenças e ter­
minam por reforçar os conflitos na sociedade e nas escolas";
análise de prática intercultural apresentada por professora ex­
terna ao grupo etc.

A última tarefa proposta foi fazer um trabalho sobre o tem,a:


"Intetculturalízando minha prática pedagógica: um caminho em
construção". Muitas foram as constatações, descobertas e de­
safios que emergiram durante o curso. Destacarei alguns deles.

Um primeiro aspecto que gostaría de mencionar é que apesar


das professoras envolvidas estarem motivadas e interessadas,
incorporar a perspectiva intercultural em suas práticas se re­
velou uma tarefa nada simples.
228 0tDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

Acredito que ainda estamos engatinhando nesse assunto; que


ainda não está claro como implementar em nossas práticas co­
tidianas, afirmou uma delas, e outra acrescentou: senti uma
imensa dificuldade em pensar uma atividade que nãofosse óbvia
nem superficial demais, que promovesse a interculturalidade, ar­
ticulada com os conteúdos da minha disciplina.

Esta dificuldade está, segundo as participantes, determinada


por diferentes aspectos. Sem dúvida, a lógica das políticas pú­
blicas dominantes não favorece esta perspectiva. Os docentes
se sentem continuamente pressionados pelos múltiplos me­
canismos burocráticos, as condições de trabalho, as inúmeras
avaliações locais el\aciçnais, a necessidade de garantir de­
sempenhos quepermit â!n às -escolas e aos sistemas de ensino
obter cada vez resultados considerados melhores. Uma pro­
fessora afirmou:
As grades são as dificuldades. Elas são tão enraizadas, firmes e
engessadas. Eu acho interessante que, assim, nós temos muitas
ideias, mas na hora de por em prática ficamos presos pelos fa­
tores tempo, curriculo a cumprir. Tem sempre algo a cumprir e
não são levadas em conta questões verdadeiramente importan­
,tes para educação.

Tudo parece favorecer a homogeneidade, a padronização, a


monoculturalidade. Talvez, afirma uma professora:
A grande questão seja como desestabilizar a monoculturalidade
que configura a escola e que afeta a todos nós, independente
dos saberes e conhecimentos com os quais lidamos, esta talvez
seja o maior desafio de todos. Ela implica em ir além das práti­
cas individuais e abrange também as políticas públicas, a admi­
nistração regional (o Estado) e local (a escola) , as hierarquias e
assimetrias de poder dentro da máquina escolar.

E, neste contexto, as culturas escolares parecem fortemente


engessadas. As professoras participantes do curso atuavam em
escolas muito diferentes, da educação infantil ao ensino médio ,
em diversas áreas curriculares. No entanto, através dos exercí­
cios realizados, foi possível detectar as principais 'marcas' co­
muns das culturas escolares analisadas: organização do espaço
e dos tempos padronizada, ritos formais de avaliação,"cultura
da avaliação" (mais forte nos últimos anos com a multiplicação
INTERCULTURALIDADE E COTIDIANO ESCOLAR 229

de provas locais e nacionais, afirmou uma delas); ritos de entra­


da, saída, chamada, uniforme; normatização, disciplinamento,
controle; "ordem" escolar e social; adequação às normas hege­
mônicas e monoculturais do certo, correto, aceitável e bom; sala
de aula, em geral com a mesma disposição (alunos enfileirados,
quadro negro/verde/branco na frente etc.); seriação-hierarqui­
zação das disciplinas curriculares; em geral painéis a serviço
da organização e da gestão da escola; pouca participação dos
alunos na construção dos painéis e na decoração da escola.
Esta participação se revelou maior nos primeiros anos de esco­
larização e, em uma única escola, apareceu um painel referido
ao sindicato docente e ao grêmio estudantil.

Outro aspecto que consideramos importante ressaltar diz res- .


peito aos livros didáticos analisados. Foram diferentes mate­
riais, desde apostilas produzidas por uma secretaria munici­
pal até livros distribuídos pelo Ministério de Educação para a
seleção dos professores. Tendo presente esta diversidade, é
possível afirmar que, em geral, os livros estão referidos e têm o
foco no conhecimento socialmente reconhecido e valorizado,
mas identificamos esforços por introduzir imagens plurais de
diferentes grupos, socioculturais e suas expressões e saberes,
em alguns casos fazendo uma apresentação histórica da evo­
lução do conhecimento, assim como elementos orientados a
problematizar questões relativas ao corpo, relações raciais,
saúde, gênero etc. Há avanços nestas perspectivas hoje em
dia, principalmente se os livros estão aprovados pelo Minis­
tério de Educação que tem uma série de critérios que devem
ser obedecidos e comissões de especialistas que os analisam.
A conjugação desses fatores faz com que os livros mais atuais
de alguma forma incorporem a temática da diversidade, mes­
mo que de modo ainda tímido.

làmbém apareceu com muita força nos depoimentos das profes­


soras, a importância do compromisso pessoal do/a educador/a:
Para que possa haver de fato um diálogo, primeiro se faz neces­
sário que se tenha passado por um momento de "provocação"
pessoal, movido por uma inquietação, um desconforto. Acredi­
to que a interculturalidade necessite de algo mais contundente
do que o plano discursivo, de trocas de opiniões e posiciona­
mentos, pedagógicos ou políticos. [ ...] muitas vezes não basta
230 ÜJDATlCA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

apenas a teoria para que ocorra uma sensibilização para uma


prática intercultural, as trocas através do diálogo só são de fato
trocas quando há uma predisposição para a abertura a novas
perspectivas, novos olhares e novas formas de fazer.
Deve-se tentar quebrar as suas próprias resistências e o medo de
buscar sensibilizar a escola e as famílias; tem de nascer "dentro
de nós", a partir de predisposições, ideias e convicções que já
orientam nossas posturas e formas de ver o mundo.

Considero este um aspecto fundamental. Para o desenvolvi­


mento de uma e ducação intercultural é necessário trabalhar o
próprio 'olhar' do/a educador/a para as questões suscitadas
pelas diferenças cul�l!rai�. como as encara, questionar seus
próprios limites e precónceitos e provocar uma mudança de
postura. Somente assim será capaz de desenvolver também
outro 'olhar' para o cotidiano escolar. Foi o que tentamos fa­
zer no curso. E, neste sentido, um passo que consideramos
básico é favorecer a superação do daltonismo cultural para
podermos promover uma educação intercultural. Esta é uma
expressão utilizada pelos conhecidos autores Stephen Stoer
e Luiza Cortesão ( 1 999). O daltonismo cultural tende a não
reconhecer as diferenças étnicas, de gênero e sexualidade,
religiosas, de diversas origens regionais e comunitárias ou a
não colocá-las em evidência na sala de aula por diferentes ra­
zões como a dificuldade e falta de preparação para lidar com
estas questões, o considerar que a maneira mais adequada de
agir é centrar-se no grupo "padrão", ou, em outros casos, por,
convivendo com a multiculturalidade quotidianamente em di­
versos âmbitos, tender a naturalizá-la, o que leva a silenciá-Ia
e não considerá-la como um desafio para a prática educativa.
Trata-se de um "dado" que não incide na dinâmica promovida
pela escola.

Ter presente a diversidade cultural nas práticas educativas


supõe todo um processo de desconstrução de práticas natu­
ralizadas e enraizadas no trabalho docente para sermos edu­
cadores/as capazes de criar novas maneiras de situar-nos e
intervir no dia a dia de nossas escolas e salas de aula.

Sem esta mudança de ótica, a interculturalidade fica reduzida


a práticas pontuais e superficiais como expressa o depoimento
INTERCULTURALIDADE E COTIDIANO ESCOLAR 23 1

de uma das professoras com as quais uma participante do cur­


so conversou: se a diversidade estiver ligada aofolclore, a escola
tentará explorá-la através de projetos, que para ela· virou uma
moda. Sefor ameaçador, vai ignorá-la.

Gostaria de destacar dois aspectos deste depoimento. o pri­


meiro é a tendência a reduzir as diferenças culturais a determi­
nadas expressões, onde o que se faz é introduzir em determi­
nados momentos, em geral eventos de caráter comemorativo,
danças, músicas, comidas, de diversos grupos socioculturais
considerados diferentes, sem maior preocupação de contex­
tualização, problematização ou desnaturalização. A segunda
é a possibilidade de as diferenças culturais terem um caráter
ameaçador. Podemos perguntar-nos, em que sentido? Certa­
mente na perspectiva que adoto, as diferenças culturais visi­
bilizadas, historicizadas, desnaturalizadas estão chamadas a
desestabilizar as culturas escolares dominantes, os saberes
considerados como únicos e verdadeiros referentes para as
escolas e as práticas pedagógicas padronizadas, apontando
para a sua diversificação e p ara utilização de diversas lingua­
gens. Se aprofundarmos nas questões suscitadas pelas dife­
renças culturais no cotidiano escolar, múltiplas dimensões das
culturas escolares dominantes serão problematizadas, des­
construidas, e chamadas a serem reinventadas.

Entre as propostas das participantes consideradas como ele­


mentos potencializadores da educação intercultural foram
mencionados, entre outros: conhecer melhor o mundo cultu­
ral dos alunos; perceber que os alunos trazem experiências
que são significativas e importantes; relatos de histórias de
vida; observar a cultura da escola, buscando elementos que
possam quebrar a homogeneidade; refletir sobre os conheci­
mentos que se pretende construir, problematizar as formas de
construção desses conhecimentos na escola; ouvir e prestar a
atenção aos diferentes atores presentes na escola, se aproxi­
mar e sentir o outro; descobrir no corpo docente quem são as �i
,.

pessoas mais sensíveis ao tema; estabelecer parcerias. li


Foi salientado com força que a formação continuada é o prin­
cipal elemento potencializador, porque não tem como a gente
trabalhar com essa questão da interculturalidade se você não tem
232 ÜIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

espaços de formação continuada onde os professores possam


conversar sobre isso, essa é a grande dificuldade.

Na avaliação do curso, as professoras participantes valorizaram


muito positivamente o processo vivido , especialmente porque
consideraram que foi um curso diferente, que propiciou que a
prática de suas próprias salas de .aula pudesse ser incorporada
na sala de aula universitária e ressaltaram que este fato foi
muito positivo. No entanto, afirmaram também que este tinha
sido um primeiro passo e que seria necessário dar continuida­
de ao vivido para que a incorporação da educação intercultural
em sua experiência docente fosse consolidada.

Interculturalizando nossas práticas educativas

A perspectiva intercultural crítica quer promover uma educa­


ção para o reconhecimento do "outro", para o diálogo entre os
diferentes grupos sociais e culturais. Urna educação para a ne­
gociação cultural. Uma educação capaz de favorecer a cons­
trução de um projeto comum, pelo qual as diferenças sejam
dialeticamente integradas. A perspectiva intercultural crítica
está orientada à construção de uma sociedade democrática,
plural, humana, que articule políticas de igualdade com políti­
cas de identidade.

Para avançar nesta perspectiva enumero alguns aspectos que


devem ser trabalhados, tendo presente varios dos temas já
apresentados, assim como as diversas pesquisas que tenho
desenvolvido:

• Supõe, asumir as diferenças como vantagem pedagó­


gica, na expressão utilizada pela educadora argentina Emí­
lia Ferreiro (200 1 ; apud Lerner, 2007, p.7), o que exige urna
valorização das diferenças culturais e de seu potencial para
promover processos educacionais potenciadores dos dife­
rentes sujeitos neles implicados.

• Penetrar no universo de preconceitos e discrimina­


ções presentes na sociedade brasileira. Essa realidade
se apresenta entre nós com um caráter difuso, fluido, muitas
INTERCULTURALIDADE E COTIDIANO ESCOLAR 233
..

vezes sutil, e está presente em todas as relações sociais. A


"naturalização" é um componente que a faz em grande par­
te invisível e especialmente complexa. Para a promoção de
uma educação intercultural é necessário reconhecer o cará­
ter desigual. discriminador e racista da nossa sociedade, da
educação e de cada um/a de nós.

• Questionar o caráter monocultural, o etnocentrismo


e a padronização que, explícita ou implicitamente, estão
presentes na escola e nas políticas educativas e impregnam
os currículos escolares. Perguntarmo-nos pelos critérios uti­
lizados para selecionar e justificar os conteúdos escolares,
assim como ter presente a ancoragem histórico-social dos
chamados conteúdos curriculares, analisar suas raízes his­
tóricas e o desenvolvimento que foram sofrendo, sempre
em íntima relação com os contextos em que este processo
se vai dando e os mecanismos de poder nele presentes. Ao
mesmo tempo, exige reconhecer a pluralidade de conheci­
mentos e saberes presentes na sociedade e promover o diá­
logo entre eles.

• Articular igualdade e diferença: é importante articular


no nível das políticas educativas, assim como das práticas
pedagógicas, o reconhecimento e a valorização da diversi­
dade cultural, com as questões relativas à igualdade e ao
direito à uma educação de qualidade, como direito de to­
dos/as.

• Resgatar os processos de construção das nossas


identidades culturais, tanto no nível pessoal, como no
coletivo. As histórias de vida e da construção de diferen­
tes comunidades socioculturais são elemento fundamentais
nessa perspectiva. Especial atenção deve ser dada aos as­
pectos relativos à hibridização cultural e à constituição de
novas identidades culturais. É importante que se opere com
um conceito dinâmico e histórico de cultura, capaz de inte­
grar as raízes ristóricas e as novas configurações, evitando­
se uma visão d'" � culturas como universos fechados e em
busca do "puro", do "autêntico" e do "genuíno", como uma
essência pré-estabelecida e um dado que não está em con­
tínuo movimento.
234 0JDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

• Promover experiências de interação sistemática com


os "outros": para sermos capazes de relativizar nossa pró­
pria maneira de situarmo-nos diante do mundo e atribuir­
lhe sentido, é necessário que experimentemos uma inten­
sa interação com diferentes modos de viver e expressar-se.
Não se trata de momentos pontuais, mas da capacidade de
desenvolver projetos que suponham uma dinâmica siste­
mática de diálogo e construção conjunta entre diferentes
pessoas e/ou grupos de diversas procedências sociais, étni­
cas, religiosas, culturais etc. Exige romper toda tendência à
guetificação, presente também nas instituições educativas e
supõe um grande desafio para a educação.
;. ';. ....,..
,..,
• Reconstruir a dinâmica educacional: a educação inter­
cultural não pode ser reduzida a algumas situações e/ou
atividades realizadas em momentos específicos, nem foca­
lizar sua atenção exclusivamente em determinados grupos
sociais. Trata-se de um enfoque global, que deve afetar a
seleção curricular, a organização escolar, as linguagens,
as práticas didáticas, as atividades extra-classe, o papel do
professor, a relação com a comunidade etc.

• Favorecer processos de "empoderamento", principal­


mente orientados aos atores sociais que historicamente ti­
veram menos poder na sociedade, ou seja, menores possi­
bilidades de influir nas decisões e nos processos coletivos.
o "empoderamento" começa por liberar a possibilidade, o
poder, a potência que cada pessoa tem, para que ela possa
ser sujeito de sua vida e ator social. o "empoderamento"
tem também uma dimensão coletiva, trabalha com grupos
sociais minoritários, discriminados, marginalizados etc., fa­
vorecendo sua organização e participação ativa na socieda­
de civil.

• Estimular a diferenciação pedagógica: "desengessar" a


sala de aula, multiplicar/diversificar espaços e tempos de
ensinar e aprender, assim como utilizar múltiplas lingua­
gens e mídias no cotidiano escolar, dialogando com os pro­
cessos de mudança cultural presentes na sociedade e com
forte impacto entre os jovens e as crianças.

j'
{NTERCULTURAUOADE E COTIDIANO ESCOLAR 235

Estes são componentes imprescindíveis na promoção de pro­


cessos educativos na perspectiva intercultural crítica. Trata-se
de uma tarefa de longo prazo, mas ao mesmo tempo, pode ser
colocada em prática hoje, no nosso contexto educacional es­
pecífico. De fato, já existem muitos educadores e educadoras
comprometidos com ela. Acredito que assim poderemos con­
tribuir para a construção de uma educação e uma sociedade
mais igualitárias e democráticas.

Referências bibliográficas

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Caderno Prosa, p.3.
CANDAU, Vera Maria. Concepção de educação intercultural . Rio de
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.

52,1 993 . .
236 010ATICA: TEO:NDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

A MEDIAÇÃO
DE CONFLITOS
VIOLENTOS
QUE DESAFIAM
OS SABERES
DOCENTES

Monique Marques Longo


VER}
A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS VIOLENTOS QUE DESAFIAM OS SABERES DOCENTES 237

Introdução: novos desafios ã escola hoje

Não é raro escutarmos, nos corredores das instituições de en­


sino, que a escola não é mais como antigamente. O discur­
so afirma um fato irrefutável: a escola, uma instituição social
direcionada a atender crianças e jovens, se modifica assim
como os seres que ali se inserem e a constituem. O problema
que observamos na frase discursada é o cunho negativo, meio
nostálgico, que acompanha sua explicitação. Defende-se que
as crianças que outrora ali se matriculavam eram mais educa­
das, os professores mais dedicados, a família mais presente,
havia menos violência e desconhecia-se o conceito bullying.

Acusa-se, muitas vezes, a atual juventude de violenta, indisci­


plinada e sem valores. Em outros momentos, discursa-se ser
as novas tecnologias as responsáveis pelo desinteresse por
parte dos alunos, cujo tempo de estudo é gasto com Ipads e
Ipods. Defende-se, em geral, que o comportamento dos jovens
não está de acordo com as práticas escolares. Desta forma, ra­
tificam-se práticas repressivas nas escolas: maior rigidez nas
normas disciplinares, a presença de policiais nos portões, a
instalação de câmeras de vídeo e sanções àqueles que não se
adequam ao sistema escolar. Aquele bom, de antigamente.
238 ÜIDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

Ante tais fatos, surgem alguns questionamos: a escola de ou­


trora era realmente mais eficiente do que a atual? As crianças
eram mais educadas? O que significaria ser "mais educadas"?
Os valores defendidos e ensinados, antigamente, atendem às
relações e à sociedade vigente? Caso negativo, quais valores
ensinar e qual seria a sua relação com um possível aumento
das violências nas escolas? Quais desconstruções e questiona­
mentos as chamadas TIC's (Tecnologias de Informação e Co­
municação) nos trazem para pensar a indisciplina hoje? A(s)
violência(s) em meio escolar têm realmente aumentado? O
bullying não era praticado ou os conflitos que sempre existiram
na escola eram silenciados e não, desta forma, conceituados?
�· �.;. ........
... . -

A violência parece abalar· certezas e saberes pedagógicos que,


há muito, têm sido inquestionáveis. Afirma Candau (2008) que:
Ser professor/a hoje se vem transformando em uma atividade
de risco que desafia nossa resistência, saúde e equilíbrio emo- ·

dona!, capacidade de enfrentar conflitos e construir experiên­


cias pedagógicas significativas cada dia (CANDAU, 2008, p. 60).

No que concerne ao discurso do aumento da violência no con­


texto escolar, o pesquisador Eric Debarbieux1 (2006) questio­
na a influência do excesso de veiculação dos conflitos inter­
pessoais produzido pelos diversos meios de comunicação na
atualidade. O autor afirma que a violência escolar é mais um
tema que comporta um alto grau de manipulação. O exage­
ro midiático, as estratégias reparadoras promulgadas pelos
agentes públicos e o emergente mercado de segurança nas
escolas são discursos que uma vez acionados produzem e/ou
reforçam uma "histeria da violência" em meio escolar.

Em que pese a gravidade desses episódios e o impacto pro­


vocado nos imaginários social e escolar, a "histeria midiáti­
ca" das grandes violências inviabiliza estratégias de enfren­
tamento da questão. Ela nos faz desconfiar da legitimidade
dos números anunciados, falseia suas causas e impossibilita
seu entendimento quando obscurece fatores que provocam
1 Eric Debarbieux é diretor do Observatório Internacional de Violência na Escola, ins­
tituição que, em cooperação a Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (Unesco), tem como intuito combater as manifestações de violência
em meio escolar por meio de estratégias pedagógicas e sociais em âmbito mundial.
A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS VIOLENTOS QUE DESAFIAM OS SABERES DOCENTES 239

o fenômeno. Por outro lado, postula Debarbieux (2006), não


podemos cair numa postura de resistência ao problema que,
sem dúvida, afeta o cotidiano das escolas e cujas çausas são
multidimensionais. A questão que se coloca reside em com­
preender qual o escopo da escola em relação à subversão
desta histeria na atualidade.

Tognetta e Vinha (20 1 0) se direcionam a pensar o contexto da


violência escolar no Brasil. As autoras acusam grande parte
das instituições brasileiras de serem alheias ou incapazes de
lidarem com os conflitos interpessoais ocorridos nestas ins­
tituições. Opondo-se ao recorrente discurso que advoga ser
a indisciplina oriunda do desrespeito dos alunos pelas regras
acordadas, as autoras defendem que a violência escolar é fru­
to da indiferença e/ou das formas errôneas das instituiçôes
escolares lidarem com os conflitos. "É preciso pensar que os
conflitos vividos pelos alunos no interior da escola são opor­
tunidades de aprendizagens de valores", postulam Tognetta e
Vinha (20 1 0, p. 5) .

A partir dessas iniciais reflexões, mostrou-se pro!Icuo direcio­


nar minha atenção ao aspecto microssocial da violência. Vi­
sando provocar reflexões acerca do impacto da violência no
cotidiano da escola, deixaremos de lado os grandes massacres,
assassinatos, homicídios e demais episódios que são, cada vez
mais, objeto da produção midiática. Estes casos, conceitua­
dos por Charlot (200 1 ) , como "violências à escola" escapam
ao controle e escopo dos agentes educacionais e se diferem
das "violências na escola", isto é, os microconflitos surgidos
entre os diversos agentes educacionais - professor com aluno,
aluno com aluno e coordenação com aluno. Estas facetas da(s)
violência{s) em meio escolar diferem ainda, segundo Charlot
(200 1 ) da "violência da escola", violências produzidas pela pró­
pria escola enquanto instituição que reprime, silencia identida­
des, hierarquiza alunos, homogeneíza sujeitos.

Interessa-me considerar, aqui neste texto, as "violências na


escola" (CHARLOT, 200 1 ) em seus fatores microssociais: in­
vestigar os conflitos interpessoais que acontecem cotidiana­
mente nas salas de aula e que impossibilitam, muitas vezes,
a consecução dos programas curriculares. A partir da análi-
240 D1DATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

se dos conflitos, objetivei construir e apresentar uma possível


proposta de enfrentamento da questão a partir de um diálogo
entre a psicologia e a filosofia política assim como expor al­
gumas experiências bem-sucedidas de mediação de conflitos.

Compreender as causas do comportamento agressivo, isto é,


daquele agente educacional que ao invés de dialogar, bate e
agride, na minha avaliação, mostrou-se um primeiro desa­
fio. Pesquisas da psicologia das habilidades sociais e emo­
cionais, sobretudo, apresentada por Tognetta e Vinha (20 1 O),
Vicentin (200 1 ), Deluty ( 1 979) nos aportam a compreender o
comportamento daquele sujeito que entra em conflito e age
violentamente.

Deluty ( 1 979) aponta três possíveis características pessoais


de resolução de conflitos: agressivo, submisso e assertivo. O
agressivo, de forma resumida, seria aquele que se utiliza da
violência ou desrespeito como forma de coerção ao ponto de
vista alheio. O comportamento submisso é caracterizado pela
fuga ou esquiva, resultando no não enfrentamento da situação
já que o sujeito considera os direitos e sentimentos dos outros
em detrimento dos próprios. De forma semelhante à agres­
sividade, a estratégia do comportamento assertivo também
envolve enfrentamento da situação de conflito, ou seja, não
há fuga ou negação, porém, na assertividade não há qualquer
tipo de coerção violenta ao outro.

Como favorecer então o desenvolvimento da assertividade? Sa­


bendo da relevância desta para a não violência, a escola seria
capaz de formar sujeitos assertivos? A apresentação de valores
morais daria conta de uma educação para a assertividade?

A filósofa Hannah Arendt apresenta na obra A vida do Espiri­


ta (2008) seu estatuto do pensamento. Passei a me questio­
nar se o conceito de pensamento - que pressupõe a prática
do silenciamento e das desconstruções do senso comum - se
apresenta como um passo imprescindível ao agir assertivo.
Assim, fez-se necessário entender o estatuto do pensamento
proposto pela autora, relacioná-lo à desconstrução de precon­
ceitos e à construção de comportamentos, práticas e persona­
lidades marcadas pela assertividade.
A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS VIOLENTOS QUE DESAFIAM OS SABERES DOCENTES 241

Por fim, viso neste texto trazer uma proposta aos professores,
coordenadores e demais agentes educacionais de mediação
dos conflitos interpessoais que acontecem cotidianamente nas
escolas. Acreditamos que, se bem direcionados, os conflitos
tornam-se relevantes estratégias de ensino emocional, filosó­
fico e de autonomia ética.

Compreendendo a agressividade e desenvolvendo


a assertividade: contribuições da psicologia das
habilidades emocionais

O agir do educador, independente de qual seja, expressa e


transmite algum tipo de valor moral. Aqueles professores que
não mediam conflitos, afirma Vicentin (2009, p. 35) , "entre os
educandos, também transmitem uma mensagem indireta so­
bre a sua própria concepção de conflitos interpessoais e os
valores que os norteiam".

A professora apresenta uma pesquisa realizada em escolas


públicas paulistas onde analisou 84 adolescentes estudantes
ao resolverem conflitos interpessoais, comparando estas es­
tratégias com a capacidade de compreender e expor os senti­
mentos ali envolvidos. As inferências denotaram que 39,29%
dos adolescentes apresentaram respostas categorizadas
como submissas seguidas por 28,57% dos participantes que
indicaram respostas agressivas. Dos sujeitos entrevistados,
1 9,05% não apresentaram predominância de respostas e ape­
nas 5,95% dos sujeitos tinham uma predominância de respos­
tas assertivas. Os sujeitos com respostas categorizadas como
mistas formam 7,04%, dentre os quais 4,76% tiveram respos­
tas predominantemente submissa-assertiva e 2,38% respostas
agressiva- assertiva.

Vicentin (2009) observou que os adolescentes não conseguiam


se pronunciar, ou eram pouco claros, quanto aos sentimentos
envolvidos na situação. Ante tais dados, a autora infere a falta
de oportunidade, na escola, de se construir estratégias mais
equilibradas de solução de conflitos e relações de respeito mú­
tuo. Os dados retratam a necessidade de o professor possibi­
litar ao aluno compreender os sentimentos que tais situações
242 ·DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

incitam, bem como oportunizar um espaço que fomente o de­


senvolvimento de estruturas cognitivas e afetivas promotoras
da assertividade.

Fariz, Mias e Moura (2005) ressaltam a complexidade e mul­


tidimensionalidade do agir agressivo que abarca uma ampla
gama de ações. Para os autores, as práticas agressivas com­
preendem comportamento tanto verbais e físicos como não
verbais e psicológicos. A despeito da sua complexidade, os
comportamentos agressivos são os mais perigosos e mais es­
tudados, por provocarem um movimento cíclico de violência ·
na medida em que geram agressão por parte do agredido, fo­
mentando, muitas vez�%Pffi yiolento ambiente social.

As possíveis variáveis que desencadeiam o surgimento da


agressividade compreendem, salienta Leme (2004, p. 368),
componentes biológicos, de personalidade, experiências an­
teriores e expectativas socioculturais. A exposição às diversas
formas de violência e a carência de uma educação em valores
tende a aumentar a probabilidade de que sejam mantidos ati­
vos na memória scripts esquema psíquicos organizados, abs­
-

traídos e retidos pelo sistema cognitivo - também violentos.


Tais fatores fomentam uma maior ativação neuronal-sensitiva
que influencia a avaliação das situações vivenciadas.

As emoções passam por um processo de avaliação cogniti­


va constante e bastante complexo. Tal avaliação baseia-se na
positividade ou negatividade do evento, análise da agência
causadora da emoção, intenção, adequação às normas sociais
do evento, às consequências envolvidas, grau de controle e,
finalmente, ao esforço empreendido no lidar com a situação.
O significado e sentido dado a essas variáveis modificam-se
periodicamente na medida em que são incorporadas novas in­
formações acerca destes dados, fazendo com que as próprias
emoções envolvidas no conflito se modifiquem.

Uma educação que rechaça e/ou busca limitar o grau de


agressividade imprimido no conflito, neste sentido, possibilita­
rá a diminuição dos scripts violentos, promovendo o desenvol­
vimento de outras alternativas ao comportamento do sujeito.
São, portanto, os valores e normas estipuladas social e moral-
A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS VIOLENTOS QUE DESAFIAM OS SABERES DOCENTES 243

mente que significam positiva ou negativamente as emoções,


e, portanto, fomentam, dentre outros fatores, tendências mais
ou menos agressivas de comportamento.

Os castigos físicos muito severos, afirma Leme (2004, p. 370),


e a "ausência de explicação de valores como honestidade e
respeito à propriedade alheia por parte dos pais no processo
de socialização, podem ser as principais causas das atitudes
violentas". Pressuposto este corroborado por uma gama de es­
tudos na área (LONGO, 2009; MALHEIRO, 2008; TOGNETTA ,
20 1 0) , que, por sua vez, buscam também clarificar as discus­
sões sobre a estipulação de quais valores seriam estes.

Possíveis fatores que incitam a diminuição e/ou desistência


da agressividade, postulam Loeber e Hay ( 1 997) consistem na
construção de vínculos seguros com a família e responsáveis,
com o trabalho e/ou com a comunidade. Tais vínculos têm
papel preponderante na introjeção de valores e das normas
que balizam os sentidos dados às emoções, ao seu controle
e ao comportamento apresentado ante conflitos. A diminui­
ção da tendência agressiva acontece em função da percepção
das consequências dos seus atos e da probabilidade de obter
sanções pelos mesmos. Esta percepção deriva das mudan­
ças de significado imprimido às sanções externas, oriundas
da disciplina dos pais e/ou outras autoridades para uma cer­
ta autorregulação interna do comportamento. Tal passagem,
podemos assim resumir, da heteronomia para autonomia' é
importante e necessária para a possível regulação emocional,
sobretudo, da raiva e do ódio, promotoras de comportamen­
tos agressivos e violentos. Leme (2004) complementa expon­
do que comportamentos violentos interferem diretamente no
processo de aprendizagem, uma vez que aprender pressupõe
o autocontrole de emoções.

Deluty ( 1 979) observou, por outro lado, a existência de sujeitos


que apresentavam a tendência a resolver os conflitos de forma
submissa. Evidenciou que os submissos se caracterizam pelo
não enfrentamento de uma situação, utilizando-se da fuga e/ou

2 Utilizo-me das fases postulados por Jean Piaget quanto ao desenvolvimento moral
infantil expostas em O Juízo moral na criança ( 1 974).
244 D10AT!CA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

negação dos seus sentimentos e crenças em detrimento dos


alheios. De forma semelhante ao agressivo, o submisso não
desenvolveu recursos psíquicos necessários ao controle emo­
cional de maneira equilibrada, impedindo que exponha seus
sentimentos assim que necessário para a resolução mútua e
recíproca dos embates de ponto de vista.

Observa-se que sujeitos com tendências a resolver desafetos


de forma submissa, muitas vezes, se isolam dos demais, já
que o contato com o diferente lhes provoca sentimentos, que
uma vez não expostos, geram emoções desagradáveis. Se­
gundo Dei Prette e Dei Prette ( 1 997), o estilo submisso produz
uma imagem negativac4J.si, sente-se desvalorizado e é carac­
terístico de pessoas inseguras e indecisas nas suas escolhas,
o que incita a constante submissão às opiniões alheias. Como
são inibidos na expressão dos seus sentimentos, apresentam
baixa capacidade de elaborá-los, analisá-los e encontrar uma
nova visão para a situação vivenciada. Como determinados
sentimentos ficam internalizados, pode surgir uma revolta ex­
terna tardia, quando adultos, característica de sujeitos que na
infância apresentavam tendências mais submissas e quando
mais velhos, tornaram-se agressivos. Não é difícil encontrar,
nas escolas, casos de episódios de homicídios provocados por
ex-alunos caracterizados pelos seus antigos professores como
indefesos, submissos ou extremamente passivos'.

Determinados comportamentos submissos valem-se de argu­


mentos defensivos como, por exemplo, não percepção da au­
sêncía de dano a si próprio, não reconhecimento de ameaça à
autoestima, ao seu corpo e identidade. Muitas vezes, por este
motivo, são identificados como pessoas calmas, tranquilas,
bem adaptáveis e/ou desejáveis socialmente, sobretudo, nos
estabelecimentos de ensino.

Segundo Dei Prette e Dei Prette (2002), a ênfase na obediên­


cia à ordem leva as crianças, desde cedo, a concluírem que
quaisquer outras soluções aos conflitos são indesejáveis; pres-
3 Um bom exemplo é o caso de Welington de Menezes que retomou à escola Tarso
da Silveira, em Realengo, zona norte do Rio de Janeiro, e assassinou 23 crianças ar­
gumentando em carta deixada após sua morte que estava se vingando dos casos de
violência que havia sofrido na escola enquanto aluno.
A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS VIOLENTOS QUE DESAFIAM OS SABERES OOCl::NTES 245

suposto este que baliza práticas pedagógicas tradicionais há


anos. Atividades cooperativas que exijam acordos bilaterais e
não hierarquicamente marcados promovem, às crianças pe­
quenas, a oportunidade de compreenderem que as normas e
as regras são socialmente legitimadas, podendo, quando pos­
sível, ser modificadas. Desta forma, o respeito aos acordos é
sustentado de forma autônoma, consciente da sua importân­
cia, concomitante a garantia de ser ter um espaço para con­
testá-los quando necessário, sem burlá-los.

Tais características são visíveis em sujeitos que se caracteri­


zam, geralmente, como assertivos. Deluty ( 1 979) considera
ser a assertividade um dos componentes das denominadas
"habilidades sociais" e se caracteriza pela tendência a enfren­
tar situações conflituosas sem se utilizar de qualquer tipo de
coerção. Assertivamente, disponibiliza-se o diálogo para acor­
dar pontos de vista diferentes, e quase sempre se busca uma
solução para o conflito que acolha interesses dos sujeitos nas
suas diferenças.

o comportamento assertivo pressupõe a capacidade de ouvir


e dialogar. O sujeito assertivo, complementa Vicentin (2009,
p. 4 1 ) , "considera as ideias, sentimentos e argumentos de to­
dos os envolvidos em um conflito e se expressa de forma a
esclarecer suas ideias, sentimentos e argumentos, descritiva­
mente" . Tal comportamento vai pressupor um nível mínimo
de amadurecimento cognitivo e emocional, já que levar em
conta o posicionamento alheio exige a capacidade de realizar
operações de reciprocidade e síntese entre contrários, somen­
te possível com o fim do egocentrismo característico de fases
morais heterônomas.

Leme (2004) apresenta alguns fatores que favorecem o desen­


volvimento da assertividade que vão desde a influência fami­
liar (por modelo e/ou pelo que se impõe como aceitável) até
os significantes culturais. Ressalta, também, que pesquisas de
orientação intercultural têm corroborado a síntese de que as
formas de socialização variam com o funcionamento psíquico
dominante em uma determinada cultura. E, nesse sentido, nos
questionamos: seria a capacidade de refletir sobre os signifi­
cantes negociados culturalmente, sobretudo aqueles que ba-
246 ÜiDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

lizam o autocontrole emocional, um pré-requisito à formação


de novos scripts assertivos?

Os significados são negociados constantemente no interior des-.


tas relações socioculturais, abrindo espaço para a emergência
de individualidades capazes de imprimir um ciclo-movimento
na própria cultura e, portanto, novos significantes aos valores
estipulados. O ato de ressignificar o mundo, por sua vez, só é
possível a partir do distanciamento com o estabelecido, da des­
construção, do pensamento . Se desejamos a diminuição e/ou
desistência de comportamentos agressivos e submissos nas
escolas, devemos promover novos scripts não violentos, a par­
tir da
desconstrução,d�•ignjficantes dados às emoções e aos
comportamentos introjetados? E, isso seria possível através do
distanciamento e da desconstrução do estabelecido? A prática
da assertividade pressupõe, portanto, o pensamento?

Fomentando o pensamento na escola: o estatuto


do pensamento arendtiano

Como resposta apresentada por todos os humanos à sua in­


serção no mundo, o ato de pensar, assim como o querer e o
julgar, para a filósofa judia Hannah Arendt (2008b) , circunscre­
vem-se como atividades do espírito. Na primeira parte da sua
obra A Vida do Espírito (2008b), a filósofa elucida o que consi­
dera ser um estatuto próprio ao pensamento. Duas questões
se destacam: ( 1 ) esforça-se a se distanciar de qualquer filosofia
que despreze o mundo das aparências e (2) busca distinguir o
pensar do conhecer, isto é, afirma que o primeiro não se limita
à atividade cognitiva. Ambas questões nos ajudaram a conce­
ber a importância do pensamento como estratégia de combate
ao preconceito, mote de grande parte dos conflitos que hoje
emergem nas escolas.

Introduzindo a primeira questão, Arendt recorre à teoria dos


dois mundos. A autora concebe como uma das maiores falá­
cias metafísicas cujas bases aportam-se, sobretudo, na crença
de que a aparência é de grau inferior àquilo que estaria por
detrás dela. A dicotomia entre Ser e Aparecer inexiste para a
pensadora que considera que nada estamos fazendo quando
A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS VIOLENTOS QUE DESAFIAM OS SABERES DOCENTES 247

nos distanciamos deste mundo para pensar. O nosso aparelho


mental, elucida Arendt (2008b, p. 34), "continua ligado à apa­
rência. A mente, não menos que os sentidos, na sua busca,
espera que alguma coisa lhe apareça".

A prática do pensar estaria envolta da responsabilidade com


o mundo, apesar de prescindir de qualquer apelo mundano.
Seria inclusive melhor afirmar que, para Arendt, as atividades
do espírito pressupõem a suspensão do envolvimento com a
vida prática; elas ocorrem em um certo estado de calma, de
"quietude desapaixonada".

O importante pensador da obra da filósofa, Eduardo Jardim,


resume ser as práticas do pensamento arendtino "atividades
(não um estado) que podem ser iniciadas e que são interrom­
pidas por algum apelo do mundo. As exigências mundanas
incitam o pensamento, porém, tais emergências não são con­
dições e nem finalidades inerentes a sua ocorrência" OARDIM,
201 1 , p. 1 23).

Dialogando ainda com a teoria platônica, Arendt ressalta que o


parar para pensar não é privilégio dos filósofos ou dos intelec­
tuais, mas uma experiência cotidiana. A cada acontecimento
somos impelidos a refletir novamente, já que os sentidos que
imprimimos ao mundo não permitem respostas definitivas. O
Eu que pensa assume o lugar de quem olha para incessantes
ocupações da existência humana e nunca encontra uma solu-
ção definitiva para os seus enigmas; está apto cotidianamente
a novas respostas para novas perguntas.

O pensamento sobrepuja o mero conhecimento. Para a filóso­


fa, pensar ultrapassa a assimilação dos saberes compartilha­
dos socialmente e, primeiro, permite alcançar a compreensão.
A razão não se restringe às questões últimas, mas diz respeito
à reflexão sobre o sentido das coisas e das experiências, quais­
quer que sejam. A atividade arendtiana de pensar, ressalta Jar­
dim (20 1 1 , p. 1 06) , "permite dotar de significado os aconteci­
mentos, e por esse motivo se apresenta como uma resposta a
ele. A compreensão ensina a lidar com o que irrevogavelmen­
te passou e reconciliar-se com o que inevitavelmente existe",
independente do fato, coisa ou saber.
248 . ÜIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

No ensaio Compreensão e Política: as dificuldades da compreen­


são (2008a), Hannah Arendt salienta a imprescindibilidade
da compreensão para a conciliação . com os fatos vivencia­
dos. Para a filósofa, o resultado do processo de pensar/com­
preender é a significação que damos aos atos que fazemos ou
sofremos no decorrer da vida, sendo, como j á exposto, um
processo interminável e constante. A prática da compreen­
são seria, nesse sentido, oposta ao processo de doutrinação,
cuja operacionalização utiliza-se das palavras para edificar
opiniões e/ou transcender o campo sólido dos fatos. A au­
tora exemplifica a doutrinação com as práticas de violência
no campo político, e principalmente, com a instauração dos
regimes totalitários:'T�regi_mes e, sobretudo, o nazismo e o
stalinismo, se utilizaram da falta de compreensão promovi­
da pela exploração da experiência da solidão instaurada pe­
los Estados totalitários do século XIX. Contra a doutrinação,
Arendt defende a prática da compreensão.

"A compreensão precede e sucede o conhecimento", advoga a


filósofa (ARENDT, 2008 a, p. 334).
As compreensões preliminares - isto é, o senso comum -
não apenas ditam a base e/ou ponto de partida para o agir
transcendente dos cientistas, mas também são "o único capaz
de guiá-lo com segurança por entre o labirinto de seu próprio
resultado" (ARENDT, 2008a, p. 334) .

Podemos resumir ideias da filósofa, ressaltando que é por meio


do movimento de retirada dos apelos mundanos, a partir das
compreensões preliminares, para o agir transcende do pensa­
mento e, posteriormente, seu retorno por meio do juízo, que
permite e confere significado ao agir moral. Parece ainda ser
esse o movimento que falta na escola e, sobretudo, durante o
agir preconceituoso que termina em ações violentas. A falta
de reflexão e da desconstrução favorece o apego as ideias ar­
raigadas acerca da identidade do Outro, diferente de mim.

Ante as reflexões arendtianas, algumas outras questões emer­


gem ao correlacioná-las à violência escolar: estará, a escola,
assim como fazem os regimes totalitários, se utilizando de prá­
ticas doutrinárias - sanções, coerções e imposições unilaterais
- como meios de resolução dos conflitos? As diversas formas
A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS VlOLENTOS QUE DESAFIAM OS SABERES DOCENTES 249

de violência se configuram como consequências dos limites do


conhecimento e da prática da não compreensão na escola? Um
espaço/tempo dedicado à "retirada do mundo das _aparências"
para a prática de significá-la, e, posteriormente, retornar por
meio do juízo mostra-se relevante ao autocontrole emocional,
necessário à resolução assertiva dos conflitos? Se, somente
nos reconciliamos com o que vivenciamos por meio da com­
preensão, dar sentido às experiências incitadoras da agressivi­
dade e da submissão mostra-se um caminho para desenvolver
a assertividade? Acreditamos que sim.

Uma experiência de desenvolvimento


de habilidades emocionais na mediação
da violência escolar

Observamos, sobretudo, a partir da década de 80, a emergên­


cia tanto de programas implementados por governos em todo
o mundo de combate à violência escolar como experiências
isoladas visando mediar, da melhor forma, os conflitos inter­
pessoais nas escolas. Em geral, evidenciamos projetos que
apresentavam ( ! ) estratégias e conteúdos de como mediar
conflitos nos seus curriculos dos seus professores, isto é, a
mediação de conflitos como tema transversal da formação
docente - como exemplificou a tese de Longo (20 1 4) -; (2)
estratégias utilizadas isoladamente pelos próprios diretores
das escolas como formas de mediar desavenças diversas en­
tre os agentes daquela instituição - como exposto no artigo
de Possato et al (20 1 6) - ; (3) políticas de formação de equipes
ou mediadores escolares dentro das instituições educativas
- corno por exemplo o PMEC da Secretaria de Educação de
São Paulo analisada por Meneses e Ferri (20 1 3) ; (4) as pro­ -

postas de implantação de "assembleias escolares" no progra­


ma escolar - apresentada por Araujo (2008) - e (5) projetos
de desenvolvimento de habilidades sociais e emocionais nas
escolas - como analisou Loos e Zeller (2007) . O projeto ana­
lisado por Loos e Zeller (2007) semelhante teoricamente, em
parte, à proposta de mediação de conflito aqui exposta, se
mostrou eficiente na prática quanto à promoção do diálogo
e da diminuição de conflitos no seu cotidiano. Por isso, nos
direcionaremos a ele.
250 · ÜIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

Loos e Zeller (2007) relatam a experiência de uma escola mu­


nicipal de Curitiba/PR, cujo objetivo residiu no desenvolvi­
mento de habilidades sociais e de interação interpessoal entre
seus alunos. Baseada na proposta aplicada nas escolas ale­
mãs e conceituada por Schiermeyer e Beck (2002) como "bri­
gar melhor", a proposta implementada pela escola paranaen­
se se baseou em quatro principais pilares: desenvolvimento da
percepção, comunicação, cooperação e autoestima.

O projeto foi introduzido a partir do oferecimento de algumas


atividades lúdicas aplicadas em cinco dias consecutivos, em
sessões de duas horas diárias com cada turma, tendo parti­
cipado
aproximadam�nt!< 1 20 alunos de segundas e terceiras
séries do ensinofundá ITfental e seus respectivos professores.
A equipe pedagógica ofertou-se uma oficina extra, de seis
horas, com a finalidade de discutir as bases teórico-práticas
do programa.

As atividades se dividiam em ( 1 ) jogos, (2) discussões/ava­


liações, (3) trabalho com fantoches, (4) dramatizações, (5)
exercícios e (6) ponte de paz. Os jogos visavam desenvolver
a percepção dos sentimentos do Outro, a melhor forma de se
comunicar, ser cooperativo e em desenvolver um clima recep­
tivo ao trabalho. As discussões e avaliações aconteciam a par­
tir de encontros em grupo organizados em círculos onde se
discutiam os acontecimentos ocorridos na escola. As discus­
sões giraram em tomo de assuntos como, por exemplo, "quem
já vivenciou um conflito?" e "quais são as diferentes maneiras
possíveis de se resolver um problema?". No final, promovia-se
uma avaliação da atividade e apresentava-se novas propostas
ao próximo encontro. O uso de fantoches tinha como objeti­
vo diferenciar dois tipos de linguagem: a violenta (chamada
de "língua do lobo") e a linguagem de vida (chamada de "lín­
gua da girafa). Ambos tipos de linguagem são encenados num
quarto momento do projeto onde os alunos aprendem as suas
diferenças através do teatro e da encenação de situações onde
as diferentes linguagens são encenadas.

O projeto se baseia na "comunicação não violenta" (CNV),


proposta por Rosenberg (2003), que defende que as palavras
A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS VIOLENTOS QUE DESAFIAM OS SABERES DOCENTES 251

podem, facilmente, se tornarem "janelas" ou "muros". São ja­


nelas quando representam a vida e a conexão com os outros,
revelando necessidades e desejos, e abrindo camin)los para a
verdadeira comunicação e ajuda mútua. Por outro lado, quan­
do as palavras são usadas apenas como formas de acusações,
julgamentos e comparações, nossos parceiros de interação
tendem a se sentir ofendidos ou culpados, desencadeando
reações de defesa e resistência, ou agressão e ataque. Quando
usadas dessa forma, as palavras se tornam "muros", fecham
os canais da comunicação, predispondo ao surgimento de
sentimentos negativos e da violência.

Nos exercidos propostos, fomentava-se a habilidade de ou­


vir, aprender a ficar em silêncio para praticar a escuta ativa. A
quinta atividade, a" ponte de paz" caracterizava-se como um
momento onde se imaginava certos tijolos pelos quais os alu­
nos deveriam passar em busca de enfrentar um determinado
conflito. São eles: ( 1 ) as regras de falar gentilmente, de forma
educada e com respeito ao outro, deixar o outro terminar a
sua fala, cada um tem que falar sobre si mesmo e não fazer
suposições e acusações a terceiros. O segundo tijolo (2) da
ponte se refere a prática da conversa calma sobre os aconteci­
dos explicando os argumentos do seu ponto e vista e da escuta
aos alheios, o tijolo (3) direciona-se à busca de soluções do
conflito com todos os membros do grupo e quando as crianças
aprendem a negociar estratégias de solução.

Os degraus da "ponte da paz" são confeccionados com papel­


-madeira e colocados no chão, em forma de ponte, de maneira
que os alunos possam vivenciar concretamente os procedi­
mentos que visam à verdadeira prática de habilidades emocio­
nais e sociais impreterivelmente necessárias ao se dialogar e
mediar conflitos entre diferentes opiniões e desejos.

Inspirado no método implementado com sucesso em escolas


alemães, o projeto "brigar melhor" se mostrou bastante efi­
ciente na escola de Curitiba. Pesquisa de Loos e Zeller (2007)
ratificou o impacto do desenvolvimento destas habilidades
sociais e emocionais na diminuição dos episódios de violência
na escola paranaense.
252 ÜIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

Algumas considerações finais

Em que consiste o ato de pensar? Memorizar, assimilar, repro­


duzir, desconstruir são sinônimos de pensamento? A escola
fomenta o pensar ou enfoca a mera memorização? Qual a sua
relação com a vigência das discriminações - mote de grande
parte dos episódios violentos? O diálogo verdadeiro entre di­
ferentes - que necessariamente pressupõe a escuta e a consi­
deração de pontos de vista diversos - exige a desconstrução
do estabelecido, isto é, da prática do pensar nos moldes pro­
postos por Arendt. A emergência dos múltiplos conflitos nas
escolas pode ser compreendida como sintoma de uma incom­
patibilidade entre os,;;ilm1os diversos que ali se inserem e uma
cultura escolar que aíriãa hoje pressupõe a homogeneização
de sujeitos plurais. A violência acusa a vigência de uma escola
que não dialoga com o seu entorno e nem fomenta o diálogo
nas suas relações internas.

A prática da desconstrução dos (pré)conceitos, do estabele­


cido, inerente ao ato de pensar, nos pareceu ser um passo
imprescindível à mediação de conflitos entre diferentes. Ser
assertivo, ser capaz de mobilizar o diálogo verdadeiro ante
desavenças, exige a prática do pensamento, que por sua vez,
apenas torna-se hábito em espaços de reflexão, de diversida­
de de concepções de mundo e de consideração das culturas
diversas como igualmente relevantes. E para isso, "a escola
de antigamente", aportada em saberes hegemônicos, especia­
lizados e eurocentricamente determinados não mais dá conta.
Mas será que algum dia deu?

Desconstruir os pressupostos, essencialmente modernos, que


até então ancoravam de forma irrefutável os saberes docen­
tes, torna-se imprescindível.
A identidade docente tem estado fortemente ancorada, especial­
mente a partir do segundo segmento do ensino fundamental ,

no domínio de um conhecimento específico do qual o/a pro­


fessor/a é considerado/a especialista. A posse deste chamado
"conteúdo" não é colocado em questão. Este saber, oriundo do
campo científico de referência, dá ao docente segurança e con­
vicção ( ... ) . Esta era a visão dominante, mas a reflexão pedagó­
gica em geral e, mais especificamente, a teoria curricular, nos
,

A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS VIOLENTOS QUE DESAFIAM OS SABERES DOCENTES 253

últimos anos, vem questionando fortemente esta concepção do


conhecimento escolar. Este passa a ser concebido como uma
construção específica do contexto educacional, em que o cruza­
mento entre diferentes saberes, cotidianos e/ou sóciais e cientí­
ficos, referenciados a universos culturais plurais, se dá no dia a
dia das escolas em processos de diálogo e confronto, permeados
por relações de poder. O conhecimento escolar não é um "dado"
inquestionável e "neutro" (CANDAU, 2008, p. 60).

E foi este o objetivo incitador deste texto: questionar e repen­


sar saberes docentes. Saberes estes, hoje, desafiados pela pro­
blemática da violência escolar. Partimos do pressuposto de
que a "violência na escola" (CHARLOT, 200 1 ) , isto é, os con­
flitos interpessoais que emergem cotidianamente nos espaços
escolares, na sua maioria, são sintomas de uma escola que
deve ser repensada. De uma escola que desconsidera a diver­
sidade que nos caracteriza enquanto sujeitos de raça, gênero,
orientação sexual, religiosa, etnia e demais marcadores iden­
titários plurais.

Um sujeito que ante ao diferente disponibiliza o diálogo, se uti­


liza da capacidade de escutar, que realmente e corajosamente
desconstrói seus próprios pontos de vista e preconceitos, não
nasce com tais capacidades. Ele aprende, cognitiva e emocio­
nalmente, em casa e na escola. A instituição educacional que
desconsidera o desenvolvimento emocional e a prática da re­
flexão dos "apelos mundanos", como expunha Arendt (2008),
portanto, terá de lidar, aí sim, com os emergentes casos de
bullying e violência que tanto tem sido midiatizados. Algo que
a escola curitibana aqui exposta, como exemplo, conseguiu
enfrentar.

Findamos relembrando que Arendt (2008b) , parafraseando


Catão, expunha que "nunca um homem está mais ativo do
que quando nada faz e nem menos só do que a sós consigo
mesmo". O ato de pensar, sozinhos e cotidianamente, é nossa
tarefa individual e coletiva: o pagamento de nossa dívida por
estar nesse mundo.
254 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

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258 ÜIDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

EDUCAÇAO PARA
AS RELAÇÕES
ÉTNICO-RACIAIS :
uma conversa
com professores ·

da escola básica

Clea Maria da Silva Ferreira


Edileia de Carvalho
PUC-Rio
EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: UMA CONVERSA COM PROFESSORES DA ESCOLA BASlCA 259

"Aposto em uma escola que acolha todas e


todos, considerando a diferença uma riqueza e
afastando todo e qualquer tipo de discurso de
preconceito e discriminação".
Marcelo Andrade

Introdução

Este trabalho se insere nas discussões atuais sobre relações


étnico-raciais compreendidas como um componente que atra­
vessa o cotidiano escolar. Logo, a escola é concebida como
uma instituição sociocultural marcada pelas diferenças e pela
diversidade cultural que precisam ser vistas na sua riqueza.
Não obstante, pensar a escola nesta perspectiva, deve-se levar
em conta um processo de confronto com a realidade, identi­
ficando preconceitos, silenciamentos e processos de exclusão
revelados nas próprias atitudes, percepções distorcidas sobre
os negros e o racismo internalizados de forma consciente , ou
inconscientemente, o que envolve também a desconstrução
das dimensões etnocêntricas presentes no curriculo escolar,
bem como nas práticas pedagógicas. Exige ainda o reconheci­
mento de diferentes grupos culturais, a construção de identi­
dades étnicas e de pertencimento racial.

No cenário brasileiro, principalmente, no período do governo


Luiz Inácio Lula da Silva, com a expressiva atuação de diver­
sos movimentos sociais no que tange ao reconhecimento de
suas identidades étnico-culturais, é possível percebermos as
implicações políticas e epistemológicas da relação entre edu-
260 ÜIDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

cação e diferenças culturais (HALL, 1 997), sobretudo no âm­


bito das chamadas políticas educacionais afirmativas voltadas
ao reconhecimento das diversidades e/ou diferenças culturais
(CARVALHO, 2 0 1 4; OLIVEIRA, 2 0 1 3) .

Podemos citar como exemplo dessas políticas a Lei 1 0.639 de


2003 que altera a LDB em seu artigo 26A para incluir no cur­
rículo a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro­
-Brasileira". No entanto, o que ainda constatamos no cenário
educacional é a sua precária efetivação, face a um conjunto
de intolerâncias e discriminações enraizadas na sociedade
brasileira.

A promulgação da lêí' r1flifica: a necessidade de ampliação e


promoção de estudos e pesquisas sobre a temática étnico-ra­
cial para que educadores e educadoras possam desenvolver
práticas assertivas e contra-hegemônicas, visando educar
para a valorização das diferenças e para o combate ao ra­
cismo ainda existente e persistente no chão da escola. Des­
te modo, ampliar nossas reflexões, no sentido de fortalecer
princípios de equidade e de respeito, comprometendo-se com
o reconhecimento e a valorização da identidade e da histó­
ria dos afro-brasileiros em nossas práticas pedagógicas é um
movimento necessário e urgente para que possamos construir
umg pedagogia "Outra", antirracista.

Embora o crescente número de pesquisas produzidas no cam­


po da educação aponte para a importância da temática das re­
lações étnico-raciais na construção de processos de consoli­
dação de uma educação antirracista, na prática é perceptível
os esvaziamentos e silenciamentos ainda existentes no que
concerne a esta abordagem no chão da escola. Quando não, o
que se constata é que as datas comemorativas que compõem
o calendário escolar ainda são o caminho que muitos docentes
utilizam para realizar atividades, projetos interdisciplinares e
alguns trabalhos coletivos inspirados na Lei 1 0.639/03, a exem­
plo das atividades que fazem alusão ao dia 20 de novembro.

Ainda que reconheçamos estas ações como uma tímida forma


de avanço, ainda que de caráter bem pontual, não podemos
deixar de afirmar que muitos desses projetos acabam por re-
EDUCAÇÀO PARA AS RELAÇÕES i!TN!CO-RACIAIS: UMA CONVERSA COM PROFESSORES DA ESCOLA BÁSICA 26 1

produzir alguns estereótipos, além de se realizarem de forma


descontínuas, fragmentadas e incipientes, o que não corrobora
para a implementação da lei, tampouco, para o enraizamento
da mesma no espaço educacional (GOMES & JESUS, 2 0 1 3).

As constatações acima nos levam a uma série de questiona­


mentos que reverberam diretamente nas questões centrais
abordadas neste trabalho: que ações têm sido pensadas e rea­
lizadas na direção da construção de processos pedagógicos
pautados na perspectiva de valorização e fortalecimento da
diversidade étnico-racial na escola? O que favorece ou não a
construção desses processos? Que desafios se apresentam, na
escola, para a efetivação de práticas pedagógicas antirracis­
tas e de valorização da diversidade? Que atores têm assumido
este debate no tecido social da escola? Tais questionamentos
nos oferecem pistas para um caminho investigativo fértil no
intuito de pensarmos os possíveis caminhos existentes e a se
construir para a efetivação da Lei !0.639/03 nas escolas.

É neste sentido que o presente artigo objetiva contribuir, ao se


debruçar sobre as discussões atuais sobre as relações étnico­
-raciais no intuito de pensar as contribuições epistemológicas
e políticas da Lei 1 0.639/2003 na promoção de práticas e in­
tervenções pedagógicas combativas, que visam à promoção
da igualdade racial na escola básica.

Em um primeiro momento, faremos alguns diálogos entre


pressupostos da teoria decolonial/intercultural crítica com os
estudos étnico-raciais compreendidos neste trabalho como
perspectivas orientadas à desconstrução deste modelo hege­
mônico e ocidental de escola ainda vigente. Em um segundo
momento, nos debruçaremos sobre alguns aspectos da re­
ferida Lei, no intuito de pensar seu contexto de formulação,
desdobramentos, principais desafios, bem como suas contri­
buições para a construção de processos educativos e práticas
pedagógicas contra-hegemõnicas, insurgentes, embebidas em
uma perspectiva desestabilizadora que confronta concepções
e olhares enraizados histórica e socialmente. Já em um tercei­
ro momento, analisaremos uma experiência pedagógica, à luz
dos pressupostos teóricos que balizam este trabalho, decor­
rente de um contexto de afirmação das diferenças culturais no
262 DIDÁTICA: TECENDO/REJNVENTANDO SABERES E PRATICAS

cotidiano da escola básica , compreendida aqui como um lu­


gar privilegiado da práxis, da construção de um conhecimento
"Outro"', que valoriza identidades, promove a emancipação
das crianças, a compreensão crítica da realidade, buscando
novas relações, mais horizontais, mais respeitosas, antirra­
cistas. Por fim, apresentaremos algumas considerações que
julgamos pertinentes para as questões apresentadas ao longo
deste trabalho.

Dialogando com alguns pressupostos teóricos

. Conforme assinalou Tçlle!i (2003) , o Brasil desde sempre viveu


uma dicotomia muito 'grtmde·no tocante às relações raciais,
sendo que foram formadas aqui duas correntes de estudos:
uma que se notabilizou ao sustentar a crença na democra­
cia racial e apologia da mestiçagem e defender a inexistência
de racismo; e uma segunda que questionava tanto a demo­
cracia racial quanto a mestiçagem, afirmando que o Brasil se
caracterizava pela exclusão social e que o racismo aqui era
generalizado. Segundo ele, a miscigenação " [ . .] é real e indica
.

relativa e ampla sociabilidade inter-racial" (TELLES, 2003, p.


1 58) . e "[...] o racismo e a desigualdade racial persistem na
exclusão de pessoas negras e as impede de gozar as oportuni­
dades surgidas com o desenvolvimento econômico brasileiro
e a restituição dos direitos de cidadania. Esse é o paradoxo da
miscigenação brasileira" (TELLES, 2003, p .3 1 2) .

Considerando este cenário, os termos identidade, diversidade


e diferença têm ganhado cada vez mais centralidade nas dis­
cussões e proposições no campo educacional. A atuação da
escola numa perspectiva plural, no que tange ao desenvolvi­
mento de práticas que concorram para uma formação equâni­
me e ancorada na tensão entre identidade e diferença, passou
a ocupar a pauta de reivindicação dos grupos sociais histo­
ricamente subalternizados e tem ganhado corpo e a adesão
das políticas públicas, pesquisadores e educadores das mais
1 o uso do "Outro" não implica um conhecimento, prática, poder ou paradigma alter­
nativo simplesmente, mas sim um pensamento, prática, poder e paradigma de e des­
de a diferença, desviando-se das normas dominantes e desafiando-as radicalmente,
abrindo assim, possibilidades para a descolonização (WALSH, 2012).
EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÊTNICO-RACIA1S: UMA CONVERSA COM PROFESSORES DA ESCOLA BASICA 263

diversas áreas, apesar da resistência de grupos conservado­


res. Nesse sentido, cabe pensar o lugar que a decolonialidade
e a interculturalidade ocupam nesses debates e proposições,
visto que são conceitos importantes dessa nova abordagem
que emerge.

Para compreendermos esses conceitos é importante retomar,


ainda que resumidamente, as origens do pensamento decolo­
nial, que remonta aos estudos pós-coloniais. A teoria2 decolo­
nial é um movimento epistêmico, intelectual e político de ma­
trizes teóricas diversas que não apenas contesta, como almeja
subverter a lógica de produção de conhecimento vigente, cen­
trada na Europa e nos Estados Unidos. Um dos pilares centrais
desses estudos é a crítica à modernidade, apontada como um
"mito eurocêntrico" forjado a partir da violência colonial para
legitimar o que os homens brancos europeus e estadunidenses
consideram "razão universal", que exclui e subalterniza todo e
qualquer outro tipo de racionalidade e identidade. Suas origens
estão ligadas aos pós-coloniais, que não se aglutinaram em
uma única matriz teórica, pois as experiências de colonização
se deram de formas e em tempos diferentes nos diversos con­
tinentes, conferindo especificidades à geopolítica do poder e do
conhecimento. Nesse contexto, ganharam destaque duas ver­
tentes de contestação ao modelo de pensamento eurocêntr;ico
vigente: a do Grupo Asiático dos Estudos Subalternos e a do
Grupo Latino-Americano Modernidade/Colonialidade (M/C) .
Por hora, nos debruçaremos sobre este último.

A principal tese do grupo M/C, fundado em 1 998, é que a co­


lonialidade é constitutiva da modernidade - sua face oculta - e
uma das suas mais trágicas consequências, pois opera refor­
çando desigualdades históricas em diferentes níveis e espa­
ços, mesmo após o seu término como período histórico. É um
padrão de poder não formal e "invisível" que determina e hie­
rarquiza o conhecimento, as relações, as formas de trabalho,
as culturas e as subjetividades em torno do capitalismo e da
ideia forjada de raças (CASTRO-GOMEZ, 2005).

2 Usamos o termo teoria por estar de acordo com as observações de Ballestrin (2 1 03)
sobre o fato de que qualquer esforço de teorização feito fora do eixo norte seja cha­
mado de pensamento e não teoria social e política, numa evidente tentativa de infe­
riorização do conhecimento produzido no eixo sul.
264 DlDATlCA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

Destarte, o M/C propõe o que se convencionou denominar de


giro decolonial (BALLESTRIN, 2 0 1 3) como forma de subver­
são, desnaturalização e superação da lógica de pensamento
moderno/colonial e de insurgência de novas vozes, novos ce­
nários, repertórios e cosmovisões. Esse giro decolonial, enten­
dido enquanto movimento teórico, político e ético, se ancora
na crítica à colonialidade, na contestação da geopolítica do
conhecimento e se traduz nos conceitos seminais elaborados
pelo M/C, a saber: mito da modernidade, colonialidade, racis­
mo epistêmico, diferença colonial, transmodernidade, decolo­
nialidade e interculturalidade (OLIVEIRA, 2 0 1 6).

-o conceito de emerge então neste grupo como


decoloni§l- l.i9'1de
uma ruptura com tradiÇão
a eúrocêntrica e uma radicalização
da descolonização apregoada pelos estudos pós-coloniais, se
configurando como uma nova genealogia de pensamento que
a constitui e diferencia das demais. A decolonialidade repre­
sentaria, assim, a denúncia, a crítica e o enfrentamento da
modernidade e da colonialidade. Ela se caracteriza pela in­
surgência de novas condições de pensamento - outras epis­
temologias não canônicas - que permitam aos grupos histo­
ricamente subalternizados, produzir respostas alternativas ao
projeto moderno eurocêntrico de poder; superar a hegemonia
e as formas de controle das subjetividades, da cultura e da
produção de sentidos e de conhecimento, bem como as rela­
ções assimétricas e as desigualdades socioeconômicas a que
arbitrariamente são submetidos. Esse movimento implicaria
no alcance de uma nova liberdade política e na superação dos
binarismos que caracterizam a modernidade e a colonialidade
(do poder, do saber e do ser) : primitivo/civilizado, mágico/
mítieo-científico, racional/irracional, tradicional/moderno e
etc. (QUIJANO, 2005).

Para efetivar essa proposta de superação do modelo epistemo­


lógico eurocentrado, de visibilização, enfrentamento e trans­
formação das estruturas que hierarquizam grupos, práticas e
formas de pensar, o conceito e projeto de interculturalidade é
fundamental e estabelece com a decolonialidade uma relação
complementar. Contudo, para que esse projeto se efetive não
é possível e se limitar à interculturalidade relacional ou fun­
cional, muito contempladas pelas políticas públicas. É preciso
EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: UMA CONVERSA COM PROFESSORES DA ESCOLA BÁSICA 265
/

adotar a interculturalidade critica, disruptiva e questionadora


do modelo social vigente.

Segundo Walsh (2009), a interculturalidade crítica e a decolo­


nialidade são projetos, lutas e processos que se imbricam con­
ceituai e pedagogicamente, contribuindo para a emergência
do que ela chama de "pedagogia decolonial". Nesse contexto,
a interculturalidade crítica/decolonialidade são compreendi­
das enquanto ferramentas pedagógicas e a pedagogia é toma­
da como "processo e prática sociopolítica produtiva e trans­
formadora assentadas nas realidades, subjetividades, histórias
e lutas das pessoas, vividas num mundo regido pela estrutura
colonial" (p. 26), que deve se voltar para a construção de uma
práxis de orientação decolonial.

Embora tais propostas sejam consistentes, relevantes e neces­


sárias, cabe pensar na sua viabilidade e exequibilidade, dado
o contexto sociopolítico dos países latino-americanos. Diante
das mudanças vivenciadas nos últimos anos e da insurgên­
cia e reivindicação de movimentos sociais organizados para a
adoção de políticas de diferença, que timidamente foram sen­
do institucionalizadas - mas não sem a resistência de grupos
mais conservadores -, pensamos no desafio de implementação
de uma proposta mais radical como a pedagogia decolonial.

Com o recrudescimento do conservadorismo e sucateamen­


to das instituições públicas de ensino - notadamente as de
. formação de professores da educação básica -, que histori­
camente costumam capitanear mudanças dessa envergadura,
levar a cabo propostas ousadas e complexas como esta passa
a parecer inviável. Tal observação não escapa aos olhos do
M/C, que (re)conhece os desafios que algumas iniciativas re­
presentaram e não lograram êxito na efetivação de uma pro­
posta educativa que levasse a cabo a ruptura que a pedagogia
decolonial julga necessária e urgente.

Diante desse cenário, ocorre ratificar a importância de pes­


quisas que se deo. ·,,m a investigar as iniciativas que, mesmo
tímidas e/ou incipientes, apontem nessa direção e promovam
uma educação que articule políticas de igualdade e da dife­
rença, dando voz e vez a culturas, grupos e pessoas que cos-
266 ÜIDÁTlCA : TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

tumam ser invisibilizados nos espaços educativos e sociais.


Todo e qualquer conhecimento produzido que contesta e de­
sequilibra as práticas homogeneizantes merece atenção e têm
potencial de contribuir com a preparação do terreno para ex­
periências mais radicais e promotoras de efetivas mudanças.
Na esteira dessa reflexão, ao pontuar a importância da edu­
cação étnico-racial nas escolas, compreendida neste trabalho
como orientada à desconstrução de práticas hegemônicas,
Munanga (2008) chama atenção:
O resgate da memória coletiva e da história da comunidade ne­
gra não interessa apenas aos alunos de ascendência negra. Inte­
ressa também aos alunos de outras ascendências étnicas, prin­
cipalmente branca, .ppi.;l..;o
; receber uma educação envenenada
pelos preconceitos, eles-também tiveram suas estruturas psíqui­
cas afetadas. Além disso, essa memória não pertence somente
aos negros. Ela pertence a todos, tendo em vista que os seg­
mentos étnicos que, apesar das condições desiguais nas quais se
desenvolvem, contribuíram cada um de seu modo na formação
da riqueza econômica e social e da identidade nacional. (MU­
NANGA, 2008, p. 12).

A afirmação do autor coloca no centro do debate aquilo que


os estudos decoloniais denominam como práticas insurgen­
tes, que problematizam a hierarquia entre grupos, formas de
pensar, reconhecendo a epistemologia de outras cosmovisões.
Ou seja, desestabiliza a ideia de um conhecimento "universal",
eurocêntrico, promovendo "a construção de um novo espaço
epistemológico que promove a interação entre os conhecimen­
tos subalternizados e os ocidentais, questionando a hegemo­
nia destes e a invisibilização daqueles" (OLIVEIRA, 2016, p.3).

Nesse contexto de luta pelo reconhecimento de sujeitos e sa­


beres "Outros", as perspectivas teóricas aqui referenciadas,
reafirmam a importância da escola no processo de luta iden­
titária protagonizada pelos diferentes grupos socioculturais,
concebendo a escola com um espaço permeado por relações
de poder, de naturalização das diferenças e que se configura
como uma arena na disputa pelo reconhecimento de direitos
sociais, políticos e culturais e de combate ao racismo. Tal pro­
posição nos convida a pensar que o sistema educativo não é
a única instituição social que deveria reconhecer e expressar
EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: UMA CONVERSA COM PROFESSORES DA ESCOL.A BASlCA 26 7

a diversidade cultural em todas as suas instâncias, entretan­


to é a instituição com um grande potencial para impactar as
pessoas e o social em grande escala (CARVALHO, 20 1 4) . Tal
constatação nos ajuda a perceber a razão pela qual, grupos
subalternizados e invisibilizados histórica e socialmente, dis­
putam a escola em suas agendas de reivindicações políticas.
Nas palavras de Gomes (2003):
Somos educados pelo meio sociocultural a enxergar certas dife­
renças, as quais fazem parte de um sistema de representações
construído socialmente por meio de tensões, conflitos, acordos
e negociações sociais. A escola, enquanto instituição social res­
ponsável pela organização, transmissão e socialização do co­
nhecimento e da cultura, revela-se como um dos espaços em
que as representações negativas sobre o negro são difundidas.
E por isso mesmo ela também é um importante local onde estas
podem ser superadas (p. 77).

É com este olhar enviesado pela possibilidade de promover­


mos práticas pedagógicas voltadas para a superação das re­
presentações negativas, racistas, hegemõnicas, embranque­
cidas e coloniais que damos continuidade a conversa aqui
e stabelecida, buscando identificar as possíveis consonâncias
com o processo de formulação da Lei 1 0.639/2003, bem como
suas contribuições e desafios 1 5 anos após sua promulgação_

Por dentro da lei . ..


puxando fios nesta/desta trama

A escola é reconhecidamente um espaço estratégico de des­


construção de práticas discriminatórias que visem à formação
de uma sociedade j usta e equânime, regida por princípios de
respeito à diferença e valorização da diversidade característi­
ca da nossa sociedade. Mas é notório que o sistema de ensino
brasileiro sempre pregou uma educação formal voltada para o
embranquecimento cultural, em detrimento das matrizes cul­
turais africanas (MUNANGA, 1 999).

Ao problematizar identidade e representações sociais sobre


o corpo negro, Fernandes e Souza (20 1 6) evidenciam como
as narrativas hegemônicas - pautadas em teorias pseudocien-
268 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

tíficas - criaram marcadores sociais que "fazem das marcas


corporais elementos através dos quais se pode homogeneizar
os sujeitos e naturalizar identidades" (p. 1 05) e ocasionam es­
sencialização dessas identidades e a abjeção social. Por esse
motivo se defende nos meios educacionais a elaboração de
novas propostas para o enfrentamento da questão, que possi­
bilitem a construção de uma identidade negra positiva capaz
de se contrapor às concepções negativas, elaboradas histori­
camente pelos grupos brancos dominantes.

Destarte, muitas são as lutas empreendidas para o combate


ao racismo no Brasil, que teve como expoente máximo o Mo­
vimento Negro Unificai;lo,..4MNU), sendo também beneficiadas
por pesquisadores intemaciónalmente reconhecidos como
Abdias do Nascimento e Carlos Hasenbalg. Estes estudiosos
contribuíram através de pesquisas sobre a situação do negro
no contexto brasileiro, colaborando para o reconhecimento da
necessidade de empreender ações, principalmente educacio­
nais, para a superação das desigualdades. Um marco histórico
das reivindicações da população negra brasileira foi a Mar­
cha zumbi dos Palmares Contra o Racismo, pela Cidadania
e a Vida, realizada em 20 de novembro de 1 995 em Brasília,
quando as lideranças dos movimentos negros entregaram ao
então presidente Fernando Henrique Cardoso o Programa de
Superação do Racismo e da Desigualdade Racial, que conti­
nha propostas antirracistas concernentes à educação, como:
- O monitoramento dos livros didáticos, manuais escolares e
programas educativos controlados pela União.
- Desenvolvimento de programas permanentes de treinamento
de professores e educadores que os habilite a tratar adequada­
mente com a diversidade racial, identificar as práticas discrimi­
natórias presentes na escola e o impacto destas na evasão e re­
petência das crianças negras (EXECUTIVA, I 996) .

Estas reivindicações se inserem num rol de políticas de ações


afirmativas, ou seja, medidas que têm como objetivo:
[ .'.] eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garan­
.

tindo a igualdade de oportunidade e tratamento, bem como de


compensar perdas provocadas pela discriminação e marginali­
zação, por motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e ou­
tros (BRASIL. MJ. SEDH , 1 996, p. 1 0) .
EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: UMA CONVERSA COM PROFESSORES DA ESl�OLA BÁSICA 269

Em função destas discussões, timidamente foram surgindo


ações afirmativas no campo educacional com o propósito de,
aos poucos, introduzir aspectos da pluralidade cultural nos
currículos oficiais. Inicialmente através da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDBEN) 9394/96 que em seu -

artigo 26, parágrafo 4° estabelece que "[ . ] o ensino de His­ ..

tória do Brasil levará em conta as contribuições das diferen­


tes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, es­
pecialmente das matrizes indígena, africana e europeia" - e,
posteriormente, pela criação do volume intitulado Pluralidade
Cultural e Orientação Sexual dos Parâmetros Curriculares Na­
cionais para o Ensino Fundamental ( 1 997), que já procurava
enfatizar a urgência da formação de professores no tema e
tinha definido como um de seus objetivos gerais:
[. .] conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural
.

brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e na­


ções, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em
diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia
ou outras caracteristicas individuais e sociais (PCN, 1 997, p. 4).

Contudo, as propostas mantinham-se reticentes e as medidas


concretas de abordagem do tema careciam de regulamenta­
ção. As iniciativas enfrentavam dificuldades de incorporação
efetiva, sendo consideradas por muitos como insuficientes,
apesar de seu reconhecido valor, na medida em que rompiam
com a inércia comum à sociedade e particularmente à escola
brasileira. Nessa direção, foi pensada e implementada a Lei
1 0639/03, que tomou obrigatório o ensino da História e Cul­
tura Afro-brasileira e Africana no currículo oficial das escolas
- posteriormente complementada pela Lei 1 1 .645/08, que in­
cluiu os povos indígenas - e também estabeleceu as Diretrizes
Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico­
-Raciais (DCNERER) . Marcos legais importantes, mas que não
asseguravam que tais temáticas fossem tratadas de maneira
pedagogicamente adequada. A referida lei incluiu na LDBEN
9394/96 os seguintes artigos:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e mé­
dio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre
História e Cultura Afro-Brasileira.
Parágrafo 1 º - O conteúdo programático a que se refere o caput
deste artigo incluirá o estudo da História da Africa e dos Afri-
270 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

canos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e


o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a con­
tribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinentes à História do Brasil.
Parágrafo 2º - Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro­
-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo currículo esco­
lar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura
e História Brasileiras.
Art. 79-B. O calendário Escolar incluirá o dia 20 de novembro
como "Dia Nacional da Consciência Negra".

Ainda que tenha adquirido o "status" de obrigatória, instituída


também pela Resoluçí/o .d.o Conselho Nacional de Educação
- ê"deteimina a inclusão da temática no
(CNE/CP) nº 0 1 /043qu
currículo, exigindo especial atenção às instituições que atuam
tanto na formação inicial como na formação continuada de
professores - a efetividade da lei no cotidiano das escolas ain­
da tem sido questionada. Munanga ( 1 999) já afirmava que a
formação de professores que não tiveram contato em seu pro­
cesso formativo com a história da África, a cultura do negro
no Brasil e a própria história do negro de um modo geral, se
constituía o problema crucial das leis que implementaram o
ensino da disciplina nas escolas.

As críticas feitas à lei diziam respeito ao seu caráter gené­


rico, sem metas para implementação e sem trazer em seu
texto a exigência da reformulação dos programas de ensino
e/ou cursos de graduação das universidades, em especial os
de licenciatura, para formarem os professores aptos a minis­
trarem o ensino das disciplinas (SANTOS, 2005) . Esta falta leva
à interpretação de que a responsabilidade seria dos professo­
res, que também não dispunham dos subsídios necessários
para a abordagem do tema, visto que em sua formação não
costumam receber nenhum aporte para pensar o currículo ou
adotar práticas pedagógicas convergentes com as premissas
de uma educação antirracista.

3 Resolução do Conselho Nacional de Educação que estabelece as Diretrizes curri­


culares Nacionais para a Educação das Relações t:tnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: UMA CONVERSA COM PROFESSORES DA ESCOLA BASICA 27 1

Nessa perspectiva, há a necessidade de repensar os dispositi­


vos legais que têm a tendência de se tornar letra morta no Bra­
sil. Ao criar uma lei que torna obrigatório o ensino relativo à
história e cultura africana sem a definição clara de estratégias
para sua efetivação e fiscalização, bem como sem o estabele­
cimento da obrigatoriedade da formação dos professores em
todos os níveis - inicial e continuada -, e em todas as áreas -
não apenas nas ciências sociais e educação -, o poder público
correria risco de inviabilizar o seu real objetivo, contribuindo
para a perpetuação da reprodução dos conteúdos equivoca­
dos e racializados que a educação brasileira produziu até os
dias atuais.

Foram então reivindicadas, pela militância e intelectualidade


negra, ações contundentes de cobrança do cumprimento dos
pressupostos que a lei estabelece, atentando principalmente
para o acréscimo da obrigatoriedade da formação dos pro­
fessores em todos os níveis, principalmente nos cursos de
graduação. Desta maneira, seria possível reconhecer e legi­
timar o papel dos professores enquanto principais agentes
de efetivação da lei e garantir o início de um processo - que
se esperava eficaz -, "[ . ] de valorização do negro e o fim do
. .

embranquecimento cultural do sistema de ensino brasileiro"


(SANTOS, 2005).

Na esteira dessas reivindicações há uma demanda da comu­


nidade negra brasileira por reconhecimento, valorização e
afirmação de direitos no que concerne à educação, mas não
qualquer educação. A lei embasa a desconstrução de men­
talidades e visões sobre a história da África e dos afro-brasi­
leiros, o que exige estratégias de valorização da diversidade,
disputas sobre a noção de identidade nacional, superação do
etnocentrismo e das perspectivas eurocêntricas de interpre­
tação da realidade brasileira. Todas essas questões apontam
para o que os decoloniais chamam de uma geopolítica do co ­
nhecimento. Dessa forma, é possível afirmar que a lei se con ­
figura numa perspectiva de políticas de reconhecimento das
diferenças abarcando os aspectos políticos, culturais, sociais e
históricos, exigindo que o espaço escolar se repense e/ou res­
signifique suas práticas e conteúdos pedagógicos de caráter
monocultura! e homogeneizador.
272 ÜIDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

Ainda no que tange a esta disputa de sentidos quanto ao ca­


ráter contra-hegemônico da Lei 1 0.639/03, Oliveira e Candau
(20 1 1 ) chamam atenção para as semelhanças nos debates
em torno da lei e as reflexões sobre a colonialid.ade do poder,
do saber e do ser, concebendo-a como um possível caminho
para "novas construções teóricas para a emergência da di­
ferença colonial no Brasil e de uma proposta de intercultu­
ralidade crítica e de uma pedagogia decolonial" (Oliveira e
Candau, 20 1 1 , p. 98) . Questão cara para pensarmos a poten­
cialidade das contribuições epistemológicas e políticas da Lei
1 0. 63912003 na promoção de práticas e intervenções pedagó­
gicas combativas, que visam à promoção da igualdade racial
no espaço escolar. , , �,·

Mesmo diante destas considerações, 1 5 anos após a sua pro­


mulgação o que ainda constatamos é o que afirma Gomes e
Jesus (20 1 3 , p.22) : "Muito pouco ainda se sabe sobre o con­
texto nacional de implementação da lei". As pesquisas de­
senvolvidas no campo das relações étnico-raciais e educação
denunciam as informações pouco precisas sobre o nível de
sua implementação e o grau de enraizamento da mesma nos
contextos escolares em nível nacional. Gomes e Jesus (20 1 3)
afirmam ainda que:
Para avançar na compreensão do desenvolvimento da políti­
ca antirracista na educação por meio da implementação da Lei 1
10. 639/2003 e suas Diretrizes Curriculares Nacionais, bem como i
'
conhecer seus limites, saber ações e opiniões de gestores, do­
centes e estudantes, faz-se necessário mapear e analisar as prá­
1
�!
ticas pedagógicas que vêm sendo realizadas e ouvir os princi­
pais sujeitos desse processo (Gomes e Jesus, 2013, p. 22).

A constatação dos autores evidencia que a questão do racis­


mo, que também é estrutural, exige muito mais do que uma
legislação ou um conjunto delas. Como afirmam Lima, Klein e
Farias (20 1 6 , p.49) "seu processo de implementação demanda
sensibilização, tempo, engajamento, vontade política", bem
como uma formação docente pautada na prática pela luta an­
tirracista e no respeito às diversidades culturais.
i
EDUCAÇÃO PARA AS REU.ÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: UMA CONVERSA COM PROFESSORES DA ESCOLA l�ÁS!CA 273

Rompendo silêncios no cotidiano da escola básica

Pensar a atuação do docente da educação básica na perspec­


tiva da construção de práticas pedagógicas antirracistas e pro­
motoras de diálogos e trocas culturais que rompam as hierar­
quias vigentes no ambiente escolar é um desafio com o qual
muitos educadores, de formas distintas, estão implicados. Cada
vez mais tem sido reconhecida a necessidade de recriação e
releitura da arquitetura curricular, das concepções de currículo ,
das disciplinas e conteúdos escolares, bem como de posturas e
paradigmas que caracterizam esse ambiente como monocultu­
ra! em suas práticas, embora diverso em sua constituição.

Considerando o potencial da escola como rico ambiente para


·trocas culturais e imbuídos do compromisso com a transfor­
mação e humanização das relações e construção de novas
formas de sociabilidade que contribuam para a (re)construção
positiva da identidade negra, muitos docentes têm se implica­
do na revisão de suas práticas e no aproveitamento de espa­
ços até então ignorados ou subestimados para o tratamento
das questões étnico-raciais nas suas salas de aula. A amplia­
ção da produção bibliográfica e a releitura da história com o
propósito de revelar novos atores e narrativas até então invi­
sibilizadas pelo discurso hegemõnico deram impulso a este
movimento que vem ganhando consistência e adeptos, embo­
ra ainda esteja longe de atender às necessidades do contexto
educacional e social brasileiro.

Revelar experiências de enfrentamento dessa lógica vigente e


de aproveitamento dos espaços/tempos curriculares para uma
atuação contra-hegemônica tem se configurado ação estraté­
gica de criação e fortalecimento de uma rede de educadores
que ensejam construir uma escola pautada na justiça cogniti­
va, social e cultural (CANDAU, 201 3) . Aqui traremos uma prá­
tica pedagógica realizada p or um professor de Artes Visuais
que atua no ensino fundamental em escolas da rede pública
de dois municípios do estado do Rio de Janeiro. Uma das es­
colas de 1 º Ciclo do Ensino Fundamental em que ele atua tem
como projeto central do ano de 2018 trabalhar a história do
patrono que nomeia a escola, o educador baiano Anísio Tei­
xeira. Em seu plano anual elaborado para fins de registro junto
,.

274 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

à Secretaria de Educação do Município o educador afirma:


O meu trabalho tem como propósitos difundir o conhecimento
de nossa matriz africana e valorizar o legado negro que ajudou
a construir o nosso país, dentro da perspectiva da Educação das
Relações Étnico-Raciais, pautada na Lei nº 1 1 .645/08, posterior
à 1 0.639/03 1 , já que a proposta tem por premissas fundamen­
tais combater o racismo na escola, desconstruir a imagem nega­
tiva do negro manchada na História pelos padrões eurocêntricos .
impostos e a desvalorização cultural.

É possível afirmar que intencional e expressamente o professor


opta por dar ênfase às questões das contribuições das matrizes
africanas, atuando e�CQ.lilsonãncia com o que preconiza a lei.
Contudo, por si só, isso não garante que o trabalho seja efe­
tivamente convergente com uma abordagem contra-hegemô- ·
nica. Não é incomum ver experiências assim descritas que, na
prática, apenas reproduzem os formalismos, estereotipias e fol­
clorização na abordagem destes temas. Isso pode se dar tanto
do ponto de vista da forma, quanto do conteúdo, independen­
temente da disciplina em questão. Para compreender melhor,
analisemos duas atividades desenvolvidas pelo professor procu­
rando refletir, ainda que brevemente, sobre o conteúdo da aula.

A primeira sequência de atividades se intitula "Na Bahia de


Anísio Teixeira tem mulheres negras guerreiras importantes
para a história do Brasil" e são apresentadas as contribuições
de três personagens femininas: Maria Felipa de Oliveira, Luí­
sa Mahim e Tia Ciata (Hilária Batista de Almeida) . Estas fo­
ram mulheres que ocuparam posições de liderança e partici­
pação ativa em movimentos políticos e culturais no período
pré-abolição e que não costumam figurar em livros didáticos
como personagens de relevância histórica. Além de líderes,
elas também foram mulheres escravizadas ou filhas de ex-es­
cravizados que ocupavam socialmente posições subalternas
e realizavam trabalhos braçais: pescadoras, marisqueiras e
quituteiras. Desta forma, elas ocupam e acumulam posições
de inferioridade na hierarquia social, quando se considera os
três principais tipos de classificação apontadas por Quijano
(2000) - raça, gênero e trabalho - o que justifica a ausência
destas personagens nos currículos escolares e livros didáticos,
por exemplo. Quando as coloca como tema de uma sequência
EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ETNICO-RACIAJS: UMA CONVERSA COM PROFESSORES DA ESCOLA BÁSICA 2 75

de aulas - em um projeto que pretende homenagear um ho­


mem branco, importante educador e patrono da escola - este
professor inverte a lógica e atua numa perspectiva contra-he­
gemônica e em consonância com a lei 1 0.639/03, ao menos
do ponto de vista do conteúdo. Ele também contribui para a
desnaturalização do lugar do negro como sujeito subalterno
e que não teve participação nos processos e lutas que cul­
minaram na abolição, sobretudo as mulheres. Na escola, em
geral, costuma-se estudar a abolição como ato benemérito de
uma mulher branca, pressionada pelos ingleses, como se os
próprios negros escravizados e livres também não tivessem
empreendido movimentos e se organizado para garantia de
sua liberdade, para além das organizações de quilombos.

A segunda atividade tinha como tema "A Bahia de Anísio Tei­


xeira é um pedaço da Africa: a cosmogonia iorubá, os mitos
de origem". Mais uma vez, o professor subverte a lógica e dá \
centralidade a um tipo de narrativa que não costuma ser abor­
dada no contexto escolar. Ele propõe a leitura de itans - his­
tória em iorubá - que explicam a origem do mundo segundo
a cosmogonia africana e lhe permitiram introduzir o conceito
de escultura e a experimentação e criação de formas diversas
como meio de oportunizar o fazer artístico a seus estudantes.
A primeira parte da aula consiste na contação das histórias
com uso de máscaras de inspiração africana e os itans sele­
cionados foram os de Odudua e Nanã, publicados nas obras de
Pierre Verger e Reginaldo Prandi, respectivamente.

Mais uma vez, consideramos o caminho adotado pelo pro­ !j


fessor como um recorte epistemológico contra-hegemôni­ :i
co, na medida em que se referencia em matrizes africanas
para tratar de um conteúdo curricular numa perspectiva de
desconstrução da colonialidade cosmogõnica, definida por
Walsh (2009) como "a que se fixa na diferença binária carte­
siana entre homem/natureza, categorizando como não mo­
dernas, primitivas e pagãs as relações espirituais e sagradas
que conectam os mundos de cima para baixo, com a terra e
com os ancestrais como seres vivos" (p. 1 5 ) . As cosmogonias
africanas e indígenas não costumam ter lugar nas escolas
que, segundo o eurocentrismo que a rege, promoveu e ainda
promove uma assimilação forçada da lógica moderno-oci-
276 ÜIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

dental, quase que exclusivamente. Portanto, oportunizar aos


estudantes conhecer e produzir a partir de visões "outras" se
constitui como ato pedagógico transgressor e necessário à
desconstrução de práticas hierarquizantes que ainda vigo­
ram nos contextos escolares.

As contribuições que uma atuação alinhada com essa pers­


pectiva traz são inúmeras, tanto para as crianças negras,
quanto para as brancas que frequentam a escola. Este modo
de educar favorece o diálogo que possibilita a transformação
e humanização das relações, permite novas formas de socia­
bilidade, desconstrói valores que imobilizam e contribui para
a construção positiva ·daJdentidade negra e do seu posiciona­
mento político, a partir das africanidades brasileiras (FERNAN­
DES E SOUZA, 20 1 6) .

Para não encerrar a conversa...


(considerações finais)

A escola é uma instituição sociocultural marcada pelas dife­


renças e pela diversidade cultural que precisam ser vistas na
sua riqueza. Pensar a escola nesta perspectiva exige que le­
vemos em conta um processo de confronto com a realidade,
identificando preconceitos, silenciamentos e processos de ex­
clusão revelados nas próprias atitudes, percepções distorcidas
sobre os negros e o racismo internalizados de forma conscien­
te ou inconscientemente, o que envolve também a descons­
trução das dimensões etnocêntricas presentes no currículo
escolar, bem como nas práticas pedagógicas. Exige ainda o
reconhecimento de diferentes grupos culturais, a construção
de identidades étnicas e de pertencimento racial.

Apesar dos silenciamentos, bem como a reprodução de prá­


ticas estereotipadas e fragmentadas ainda existentes no que
concerne a existência e aplicação da Lei 1 0.639/2003, não
podemos deixar de considerar que ações contra-hegemóni­
cas também têm sido pensadas e produzidas nas "brechas de­
coloniais" (WALSH, 20 1 6) no cotidiano das escolas públicas.
Trata-se de práticas pedagógicas insurgentes, propiciadas,
sobretudo por educadores/as que possuem uma trajetória de
EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: UMA CONVERSA COM PROFESSORES DA ESCOLA llAS!CA 27 7

vivência, militância e compromisso político com a temática.


A experiência trazida no âmbito deste trabalho nos revela que
apesar da forte presença da cultura escolar marcada por as­
pectos muito comuns e recorrentes (como homenagear per­
sonagens ligados à história da escola, datas comemorativas
ou de alusão a uma cultura nacional, eventos, entre outros),
muitos deles, inclusive, pensados de forma hegemônica a to­
das as escolas de uma mesma rede, é possível subvertermos
essa lógica uniforme e igualitária de pensarmos e produzir­
mos práticas e projetos educacionais propiciando a descons­
trução de práticas hierarquizantes que ainda vigoram nos
contextos escolares.

Consideramos o caminho adotado pelo professor, cuja prática


foi trazida aqui, como exemplo para pensarmos possibilidades
"Outras" de prática pedagógica, como um recorte epistemo­
lógico contra-hegemônico, na medida em que se referencia
em matrizes africanas para tratar de um conteúdo curricular
numa perspectiva de desconstrução da colonialidade cosmo­
gônica, definida por Walsh (2009) . Portanto, oportunizar aos
estudantes conhecer e produzir a partir de visões "Outras", tal
como foi realizado, se constitui como ato pedagógico trans­
gressor e necessário para construirmos práticas antirracistas e
de valorização das diferenças. E, neste sentido, percebemos a
importância da prática docente estar imbuída de uma perspec­
tiva das relações étnico-raciais, respaldada, sobretudo, pela
existência da Lei 1 0.63912203.

Alinhavando os fios que tecem esta conversa, não pretende­


mos aqui tecer um olhar celebratório para a existência da lei,
embora reconhecer a sua importância seja, de algum modo,
celebrá-la. Entretanto, não podemos deixar de pontuar que
esta se concretiza em um cenário de avanços e não de retro­
cessos, ainda que os dias atuais imersos em um cenário po­
lítico devastador tragam novos desafios para a efetivação das
políticas de reconhecimento das diferenças no chão da escola,
sobretudo, no que tange a continuidade destas no âmbito do
projeto governamental.
278 ÜlDÁTlCA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

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280 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

O DEPOIMENTO
COMO PRÁTICA
PEDAGÓGICA
INTERCULTURAL
NA LU TA
ANTIR CISTA

Daniela Frida Drelich Valentim


UERJ
Ü DEPOIMENTO COMO PRÁTICA PEDAGÓGICA INTERCULTURAL NA LUTA ANT!RRACJSíA 281

Introdução

O presente artigo se situa no contexto de pesquisa que teve por


objetivo analisar as relações entre a escola, formação docente
e interculturalidade, que foi desenvolvida de março de 20 1 3 até
fevereiro de 20 1 7, por um grupo de pesquisadores, dentre os
quais me incluo na condição de pesquisadora associada.

Inspirada em Mato, entendemos que é preciso interculturalizar


toda a educação superior, incluindo a concepção das carreiras,
suas grades curriculares, as modalidades de aprendizagem e,
especialmente, as formas de se relacionar com o restante da
sociedade (Mato, 20 16, 42). Tal horizonte tem orientado nos­
sas práticas pedagógicas na condição de professora do ensino
superior da disciplina didática e estágio supervisionado para as
diferentes licenciaturas numa universidade pública estadual.

Pretendemos compartilhar e discutir a potencialidade do depoi­


mento pessoal como prática socioeducativa numa perspectiva
de educação intercultural voltada à desconstrução dos estereó­
tipos fortemente enraizados no imaginário dos alunos univer­
sitários. Os depoimentos pessoais dos alunos em classe visam
a desconstrução da chamada democracia racial brasileira, visi-
282 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

bilizando e dando enfrentamento aos preconceitos e discrimi­


nações que no espaço da sala de aula universitária também se.
fazem presentes, especialmente, no que tange ao racismo.
' .
Importante explicitar, desde essa introdução, com qual con-
ceito de raça opero ao longo do trabalho. Quero ressaltar que
a posição teórica aqui adotada é a dos estudiosos da raça que
a entendem como "uma constelação de processos e práticas"
(Ruth Frankenberger, 2004). Raça, nada tem de evidente ou real
no sentido positivista do termo como explicita Frankenberger.
Ela cita Gilroy ( 1 987) e seu já clássico estudo sobre a história
do racismo na Grã-Bretanha para quem a raça, sempre escrita
pelo autor entre asp<1;..P s.ilra melhor lembrar ao seu público a
irrealidade e a instabili d'ade do termo, é social e politicamente
construída e supõe um esmerado trabalho ideológico que visa
garantir e manter as diferentes formas de 'racialização' que
caracterizam o desenvolvimento capitalista (Frankenberger,
2004, p . 307) .

Tal entendimento, entretanto, não significa questionar "a po­


tência da raça como arcabouço organizador nas relações de
opressão e exploração" (Idem) . Mais, para Frankenberger,
raça é uma ficção "que é 'defensavelmente', a mais violenta
da história humana.

É importante dizer aos que me leem que me autodeclaro bran­


ca, filha de pais brancos, neta de europeus, alemães e polo­
neses brancos, todos judeus, embora, em alguns momentos
históricos, os judeus europeus não fossem considerados bran­
cos, fugidos em virtude da guerra que se avizinhava. Com a
segunda Guerra Mundial, só sobraram das famílias de meus
avôs maternos e paternos aqueles poucos que imigraram para
o Brasil, EUA e Argentina antes do extermínio conhecido por
Holocausto.

No mesmo diapasão teórico, entendo que negritude e bran­


quidade são fenômenos socialmente construídos, ambos os
conceitos estão intrincados aos de classe, gênero, naciona­
lidade e religiosidade, todos envoltos em relações de poder,
não existindo uma definição apropriada ou universal para
ambos. De acordo com os "estudos críticos da branquidade"
Ü DEPOIMENTO COMO PRÁTICA PEDAGóGICA lNTERCuLTURAL NA LUTA ANTIRRACISTA 2 83

(Frankenberger, 2004), ela se afigura como o estado normal,


o padrão pelo qual todo o resto é medido e em cotejo com o
qual todos são avaliados. Assim, ser classificado como branco
é a norma e todas as outras pessoas é que seriam racializadas,
posto que, "a branquidade é invisível" (idem) .

Referencial teórico-metodológico

Interculturalidade e educação intercultural são termos polissê­


micos e têm diferentes acepções, daí a importância de ressal­
tarmos que dialogamos nesse texto com os sentidos da inter­
culturalidade crítica proposta por Candau (2006, 2009, 2 0 1 2 ) .
A interculturalidade crítica é concebida como um processo e
uma estratégia ética, política e epistêmica que se coloca em
confronto à geopolítica hegemônica, monocultura! e monor­
racional de construção do conhecimento e de distribuição do
poder, que se constrói de "baixo para cima" exigindo uma ar­
ticulação em suas propostas dos direitos de igualdade com os
direitos da diferença.

Para a autora, a Educação Intercultural é uma opção assumida


dentro do universo plural do multiculturalismo, concebendo-a
como:
Um enfoque que afeta a educação em todas as suas dimensões,
promovendo a interação e comunicação recíprocas, entre os di­
ferentes sujeitos e grupos culturais. Orienta processos que têm
por base o reconhecimento do direito ã diferença e a luta contra
todas as formas de discriminação e desigualdade social. Tenta
promover relações dialógicas e igualitárias entre pessoas e gru­
pos que pertencem a universos culturais diferentes, trabalhando
os conflitos inerentes a essa realidade. Não ignora as relações
de poder presentes nas relações sociais e interpessoais. Reco­
nhece e assume os conflitos, procurando as estratégias mais
adequadas para enfrentá-los. Situa-se em confronto com todas
as visões diferencialistas que favorecem processos radicais de
afirmação de identidades culturais específicas. Rompe com uma
visão essencialista das culturas e das identidades culturais. Parte
da afirmação de que, nas sociedades em que vivemos, os pro­
cessos de hibridização cultural são intensos e mobilizadores da
construção de identidades abertas, em construção permanente.
284 D!DÁTrCA: TECENDO/REJNVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

É consciente dos mecanismos de poder que permeiam as rela­


ções culturais (CANDAU, 2006, p. 3 1 e 32).

Terido presente tal perspectiva como teoria a informar nossas


análises, utilizamos um mapa conceituai da expressão educa­
ção intercultural (Candau, 2 0 1 2 ) . O mapa conceituai se cons­
titui numa ferramenta que pretende organizar e representar o
conhecimento. Segundo Novak e Cafi.as (2005) , os mapas con­
ceituais são estruturados a partir de conceitos fundamentais e
suas relações. A questão focal que orientou a construção do
mapa foi: em que consiste a educação intercultural?

Resumidamente, o m?Pª que produzimos e com o qual opera­


mos concebe quatro ·c â't"egorias/conceitos articuladas, assim
explicitadas:

• Sujeitos e atores socioculturais (individuais e coletivos). Diz


respeito à promoção de relações mais igualitárias. O que
significa: questionar uma visão essencializadora das iden­
tidades; fortalecer a construção de identidades dinâmicas,
abertas e plurais; valorizar processos de empoderamento;
estimular processos de construção da autonomia e emanci­
pação social.

• Conhecimentos. Refere-se à proposta de romper com a hie­


rarquização entre os conhecimentos que estariam rela­
cionados aos conceitos, ideias e reflexões sistematizadas,
considerados científicos, universais e monoculturais e os
saberes que seriam reconhecidos como produções dos dife-
rentes grupos socioculturais, relacionados às suas práticas
cotidianas, tradições e visões de mundo, concebidos como
particulares e assistemáticos, assumindo todos enquanto
conhecimentos sem negar os conflitos que emergem da ten-
são entre universalismo e relativismo.

• Práticas socioeducativas. Relativas à proposta de se favore­


cer dinâmicas participativas; promover processos de dife­
renciação didático-pedagógica; incentivar a utilização de
múltiplas linguagens e a construção coletiva, questionando,
portanto, dinâmicas padronizadas e desvinculadas dos con­
textos socioculturais dos sujeitos que delas participam.
Ü DEPOIMENTO COMO PRATICA PEDAGÓGICA INTERCULTURAL NA LUTA ANTIRRACISTA 285

• Políticas públicas. Diz respeito às relações entre os processos


educacionais e os contextos político-sociais em que se inse­
rem; ao reconhecimento dos diferentes movimentos sociais
presentes na sociedade brasileira; à defesa da articulação
entre políticas de reconhecimento e de redistribuição, bem
como dos processos de construção democrática que têm
como horizonte a consolidação de uma democracia radical.

É possível dizer que, na condição de professora do ensino


superior da disciplina didática e estágio supervisionado e de
didática do ensino superior para alunos de pós-graduação stri­
tu sensu, minha prática pedagógica tem como horizonte de
sentido interculturalizar. Para tanto, minha perspectiva de tra­
balho está pautada por uma didática intercultural.

Ensinando didática numa perspectiva


intercultural: o enfrentamento ao mito da
democracia racial e ao racismo

Ressaltamos que a didática é um campo de conhecimento


complexo, plural, sempre em disputa. Para nós, as comple­
xas dificuldades que enfrentamos contemporaneamente não
serão tratadas de um modo simplista que reanima a didática
tecnicista, pretensamente neutra, como se bastassem às prá­
ticas escolares e universitárias uma adequação de métodos e
técnicas, a introdução das novas tecnologias e, principalmen­
te, a assunção de uma lógica hegemônica do mercado que
repudiamos.

Penso que a tese defendida nos 80 do século passado no Se­


minário Didática em Questão, por Candau, qual seja, a da mul­
tidimensionalidade da didática, em que se articulam as dimen­
sões técnica, humana e político-social da educação deve ser
reafirmada, posto que ainda é potente na construção de cami­
nhos/saídas/possibilidades de trabalho nos dias atuais. Inte­
ressante notar que a proposta da Didática Fundamental que
resistiu e enfrentou as perspectivas reducionistas da didática
à época, pode ser reciclada, retrabalhada e, porque não dizer,
reafirmada -afim de suportar teoricamente hoje as nossas prá­
ticas pedagógicas.
286 ÜIDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

Na virada do século, a autora acreditou que a perspectiva


crítica dos anos 80 não seria capaz de dar conta dos novos
contextos e recorreu às contribuições da crítica pós-moderna
visando compreender e intervir nas relações entre cultura, co­
nhecimento e poder necessárias à ressignificação e reinven­
ção da escola e da didática afim de superar a padronização e o
caráter monocultura! dos sujeitos, saberes e práticas pedagó­
gicas. Ao pensar sobre o "situado" cotidiano escolar afirmou:
Globalização, multiculturalismo, questões de gênero e raça, no­
vas formas de comunicação, manifestações culturais de adoles­
centes e jovens, expressões de diferentes classes sociais, mo­
vimentos culturais e religiosos, diversas formas de violência e
exclusão social configuram novos e diferenciados cenários so­
ciais, políticos e cÚl�u!'àis ( 1 997, p. 89).

A dimensão cultural desde então vem adquirindo especial re­


levância dentro e fora de nossas salas, mais, os diferentes gru­
pos socioculturais, dentre eles, os movimentos negros, vem
adquirindo crescente visibilidade e demandam à universida­
de, à escola e, no nosso entender, à didática. Daí nossa com­
preensão de que a didática, cujo objeto são as relações de en­
sino-aprendizagem, deve trabalhar as questões da igualdade
e da diferença que se exigem mutuamente sem abrir mão da
explicitação da desigualdade e da luta antirracista.

Nas minhas salas de aula de didática e estágio supervisionado,


assim como nas de didática do ensino superior, são muitos os
momentos em que a temática das relações raciais aparece, é
enfrentada e debatida. Por exemplo: na discussão sobre o novo
perfil racial e social dos alunos que acessam as vagas universitárias
através das políticas públicas de ação afirmativa como são as co-
tas; na aplicação da Lei 1 1 .645/2008, dentre outros. Com os alu-
nos de didática e estágio que temos, construímos um roteiro de
observação para a realização do estágio nas escolas onde propo-
nho que os alunos/estagiários busquem conhecer o perfil racial
dos alunos, professores e funcionários da escola observada (par-
ticular ou pública), além de notar como ela lida ou não com duas
datas comemorativas, o 1 3 de maio ou 20 de novembro.

Posteriormente, algumas aulas são destinadas às discussões dos


relatos dos alunos acerca das observações empreendidas, para
Ü DEPOIMENTO COMO PRATICA PEDAGÓGlCA INTERCULTURAL NA LUTA ANTIRRACISTA 287

tanto fazemos uma roda de discussão e questiono sobre suas


observações acerca dos pontos referidos acima, tudo de acor­
do com a proposta de uma didática intercultural que promove
deliberadamente experiências de inter-relação entre os sujeitos.

Não cabe aqui e nem seria viável descrever todas as falas e im­
pressões dos alunos, todavia, gostaria de chamar atenção para
o fato de que elas costumam desembocar: na percepção dos
lugares sociais naturalizados dos brancos e negros, nas desi­
gualdades educacionais dos mais pobres e negros, na valoriza­
ção ou não das culturas euro e afrodescendentes havidas nos
cotidianos escolares, no cumprimento ou não da Lei, na dificul­
dade ou não em reconhecer e adotar uma identidade racial, na
autoidentificação ou hétero identificação racial e no racismo.

Por em debate o racismo e seus aspectos tem sido um desa­


fio, deixar falar, deixar vir à tona as representações que meus
alunos têm sobre negros e brancos na sociedade brasileira. É
importante ressaltar que a ideia de democracia racial sempre
surge nesses diálogos, às vezes negada outras não. Na con­
dição de professora orientada pela interculturalidade crítica
eu trago os dados produzidos pelas pesquisas quantitativas
realizadas pelo !BGE e IPEA e também de algumas pesquisas
qualitativas que atestam, por um lado, as desigualdades edu­
cacionais entre brancos e negros em prejuízo dos últimos e,
por outro, o preconceito e a discriminação racial dos quais são
alvos os negros na educação formal da creche à universidade.

Paira um imenso desconforto em sala. Bernardino alerta que:


O mito da democracia racial e o ideal de embranquecimento de­
ram origem a uma realidade social em que a discussão sobre a
situação da população negra foi identificada como indesejável e,
até mesmo, perigosa. A recusa de reconhecer a realidade da ca­
tegoria raça, tanto num sentido analítico quanto de intervenção
pública, fez do regime de relações raciais brasileiro um dos mais
nefastos e estáveis do mundo ocidental (2002, p. 6) .

Tocar na questão racial brasileira é, ainda, gerar desconforto


em qualquer ambiente, no bar ou na universidade e, em minha
classe, não é diferente. No Brasil, o racista é sempre "o outro".
Entendo que me cabe na qualidade de professora que pratica
288 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

uma didática que se pretenda intercultural enfrentar o des­


conforto, problematizar, deixar vir à tona eventuais conflitos,
afim de contribuir para a desconstrução desse "mito" deletério
à educação para as relações raciais que temos o dever de de­
senvolver. Não é tarefa fácil já que muitos ainda nele creem
por ignorância, ingenuidade ou má-fé. Para Bernardino:
A construção da nação brasileira está estruturada dentre ou­
tras coisas a partir do mito da democracia racial. Uma parce­
la expressiva da sociedade brasileira compartilha a crença de
' ter construído uma nação diferentemente dos Estados Unidos
e da África do Sul, por exemplo, não caracterizada por confli­
tos raciais abertos. Além disso, imagina-se que em nosso país
as ascensões sociais do negro e do mulato nunca estiveram
bloqueadas por prih êlj) ios legais tais como os conhecidos fim
Crow e o Apartheid dos referidos países. Para os que imaginam
e advogam a singularidade paradisíaca brasileira, isto signifi­
ca dizer que o critério racial jamais foi relevante para definir
as chances de qualquer pessoa no Brasil. Em outras palavras,
ainda é fortemente difundida no Brasil a crença de que a cultu­
ra brasileira antecipa a possibilidade de um mundo sem raças
(Ibidem, p. 2).

Pensamos como Gomes, "Cabe a nós, educadoras e educado­


res, a tarefa pedagógica, política e social de desnaturalizar as
desigualdades raciais como um dos caminhos para a constru­
ção de uma representação positiva sobre o negro e de uma
pedagogia da diversidade" (2004, p. 6) . A autora instada a res­
ponder a questão "que caminho seguir?", ensina e alerta:
Talvez, um primeiro passo a ser dado pelas educadoras e pelos
educadores que aceitam o desafio de pensar os vínculos entre
educação e identidade negra seja reconhecer que qualquer in­
tervenção pedagógica a ser feita não pode desconsiderar que,
no Brasil, vivemos sob o mito da democracia racial e padecemos
de um racismo ambíguo. A partir daí, é preciso compreender
que uma das características de qualquer racismo é sustentar a
dominação de determinado grupo étnico/racial em detrimento
da expressão da identidade de outros. É no cerne dessa proble­
mática que estamos inseridos, o que significa estarmos em uma

1
zona de tensão (Ibidem).

É nesse contexto de tensão que o depoimento surge.

í'.l
Ü DEPOIMENTO COMO PRÁTICA PEDAGÓGICA INTERCULTURAL NA LUTA ANTIRRACISTA 289

Afim de ilustrar, trago um exemplo ocorrido numa dessas si­


tuações de tensão em sala de aula onde estimulei meus alunos
com as seguintes perguntas: qual é o lugar social _do negro?
É na universidade? Quantos colegas negros vocês tiveram
na graduação? Quantos psicólogos negros vocês conhecem?
Quantos dentistas negros vocês conhecem? Quantos nutricio­
nistas negros vocês conhecem? Quantos administradores de
empresa negros vocês conhecem? Quantos professores uni­
versitários negros vocês conhecem?

A discussão estava "pegand o fogo" e eu, ciente de que cada


pessoa fala de seu lugar social, fui contrapondo os diferen­
tes discursos, quando um de meus alunos, a quem identifico
como negro por seus sinais diacríticos, contou-nos gaguejan­
do o seguinte:
Vou contar para vocês uma história. Uma vez fui fazer uma visi­
ta profissional a um grande executivo numa empresa na condi­
ção de engenheiro da Petrobras, onde trabalho. Mandei fazer um
cartão de apresentação com meus principais dados para ofere­
cê-lo nessas situações, assim quando chego à empresa dou meu
cartão para a secretária. Quando fui convidado a entrar na sala
do executivo ele estava com a cabeça baixa lendo meu cartão.
Assim que levantou os olhos e me viu, disse incrédulo: - negro.
Ele não podia acreditar que a pessoa descrita no cartão, com tão
bons "títulos", engenheiro da Petrobras, fosse um negro como
eu, um "Negão"! Foi como se a palavra tivesse escorregado de
sua boca sem querer, pois, quando se deu conta do que tinha
dito em voz alta ficou vermelho como um pimentão. Foi tudo
muito rápido. Ninguém espera ver um negro na minha posição
social, eu j á vivi essa situação inúmeras vezes, mas dessa vez eu
fiquei chocado com a reação de espanto.

O depoimento em classe como prática


pedagógica intercultural

No contexto desse trabalho, o depoimento é pensado como


uma prática/dinâmica socioeducativa de perspectiva intercul­
tural. Desde 201 1 , venho aprendendo e adotando a dinâmica
de estimular o depoimento dos alunos negros sobre as suas
vivências pessoais no que tange às diversas faces do racismo
290 ÜIDATJCA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

porque me dei conta do seguinte: os relatos dessas vivências


têm valido mais do que meus argumentos de professora bran­
ca, todos baseados nas pesquisas, minhas ou alheias, como
desconstrutor do "mito da democracia racial brasileira".

Concordamos com Hall (2003) : todos nós nos originamos e


falamos a partir de "algum lugar", ou seja, somos seres de
um determinado local e pertencentes a uma certa tradição (p.
83). Hall defende uma "nova etnicidade" como um conceito
progressista e crítico em contraste à "velha etnicidade", uma
"identidade absolutista" que pode levar à violência e que de­
pende em parte da supressão da diferença cultural e de uma
noção separatista dajgen!idade branca. Para Giroux ( 1 999), "A
nova etnicidade fornecéfia uma teoria que permite aos bran­
cos irem além da paralisia inspirada pelo sentimento de culpa,
ou do racismo alimentado pelo combustível da ansiedade e
medo da diferença" (p. 1 12- 1 1 3) .

Penso com Sacavino e Candau que, "o cotidiano se transfor­


ma no lugar privilegiado de reconhecimento das lutas e dos
conflitos diários que permitem liberar o potencial de cada pes­
soa e dos diferentes grupos sociais" (2008. p. 84) . Quando os
depoimentos recuperam vivências com a prática do racismo
eles impactam o "mito" como se o despedaçasse na roda de
discussão, deixando ver o falso que "reside" nele.

Lembro aqui sem detalhar, que a oralidade como recurso


de testemunho, é utilizada desde a Antiguidade e, além dis­
so, é uma das formas de aprendizagem próprias dos povos
indígenas e afrodescendentes, bastante longeva, que não está
apenas localizada na prática, mas associada ao que chamamos
de tradição oral.

Note-se que ao estimularmos o depoimento oral não busca­


mos conhecer uma verdade, não se trata de saber se o fato
narrado aconteceu desta ou daquela forma, não há rigor meto­
dológico a ser perseguido e sabemos que sempre há os limites
impostos pela memória. Importa conhecer a subjetividade do
depoente como elemento constitutivo da alteridade naquele
momento e circunstância, isto é, num momento pontual da
vida daqueles que falam e ouvem. Talvez o depoimento em
Ü DEPO!MENTO COMO PRÁTICA PEDAGÓGICA INTERCULTURAL NA LUTA ANTIRRACISTA 291

roda, num ambiente dialógico e respeitoso promova proces-


sos profundos de interiorização que levem os alunos a atribuir
sentido ao combate do preconceito e da discriminação racial
em sua contínua negação.

Os depoimentos dos alunos negros têm dado conta de ressaltar:


Atitudes racistas e discriminatórias, compreendidas como ague- :i
las que geram hum1'lhaçoes - e sofnmentos a pessoas em decor-
',r�·.'·
.

rência do seu pertencimento a determinados segmentos e gru-


pos da população. Atitudes explícitas por meio de agressões e
humilhações, como piadas, xingamentos, apelidos, violência fi-
sica etc. ou atitudes "sutis", por meio da distância social, da falta
de reconhecimento e de estímulo, da negaçâo, da desatençâo,
da distribuição desigual de afeto e da baixa expectativa positiva
com relação ao desempenho (CARREIRA, 2013, p. 1 1 )

O fato é que a educação antirracista promovida por uma edu­


cação e didática interculturais afeta não somente a dimensão
cognitiva, mas a humana, na medida em que valoriza a sensi­
bilidade e promove a empatia com o outro e suas dores. Quan­
do se trata de trabalhar o imaginário e as representações indi­
viduais e coletivas, minha hipótese é que uma boa estratégia é
partir para uma prática pedagógica que não vise e lide apenas
com a dimensão cognitiva com a qual se trabalha, trazendo
aos debates os números e hipóteses construídos pelas pesqui­
sas acadêmicas, mas também com a dimensão da emoção e
dos afetos das pessoas. Tenho percebido que a dimensão hu­
mana, subjetiva ganha destaque nos depoimentos em classe e
tenho constatado sua eficácia.

Defendo que o depoimento oral tem uma potência disruptiva


por sua capacidade, potência de interromper a naturalização
do "mito da democracia racial" e sua ideia de que no Brasil
o racismo não estrutura nossa sociedade desigual, que não
existe como fundante nas relações raciais que aqui se desen­
volvem, em prejuízo dos negros em virtude dos históricos pri­
vilégios brancos.

o vocábulo disruptivo indica uma ruptura de algo com certo vi.­


gor, brutalidade, rispidez, o que desorganiza e altera uma dada
situação que se entenda estável. Essa faceta disruptiva tem se
292 Ü!DÁT!CA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

mostrado eficaz na roda de conversa e se adequa aos princí­


pios e finalidades de uma educação e didática interculturais.

Por outro lado, aprendi com Mclaren ( 1 997, 200 1 ) , adepto da


pedagogia crítica multiculturalmente orientada, que o profes­
sor precisa desafiar a branquidade e o eurocentrismo enrai­
zado em todos nós. Mclaren em diálogo com Kincheloe pro­
põe alguns "dispositivos para empoderar professores numa
perspectiva utópica" (200 1 , p. 67-74). Dentre os dispositivos,
ressalto o terceiro: "Os professores e professoras empodera­
dos(as) precisam ir além das normas educacionais escritas a
partir da perspectiva do branco, anglo-saxão, da classe média
e dos heterossexuais, para explorar o conhecimento subjuga­
do das mulheres, dos §l'ilpos minoritários e dos grupos indíge­
nas". Assim tenho procedido, colocando a minha branquidade
de professora em relevo junto aos depoimentos dos meus alu­
nos negros.

Ademais, confronto os depoimentos surgidos às respostas que


meus alunos brancos me dão para as perguntas que faço, por
exemplo: vocês já viveram/experimentaram algo semelhante?
Nesse diálogo pretendemos favorecer a tomada de consciên­
cia da construção de nossa identidade cultural, situando-a
num contexto de hibridização, mas também de silenciamen­
to dos pertencimentos subalternizados e evidência daqueles
privilegiados socialmente. O conflito sempre presente nesses
exercícios tem sido construtivo, para tanto foi preciso ultra­
passar a visão romanceada e idílica do diálogo intercultural
sem cair na ingenuidade de acreditar que nossas práticas em
sala de aula são suficientes na luta antirracista.

Ao final, os depoimentos de todos nós, de origens "raciais"


bem diversas, raças sempre do ponto de vista sociológico e
nunca biológico, implicam e são pensados como uma práti­
ca/dinãmica socioeducativa de perspectiva intercultural ca­
paz de dar conta da multidimensionalidade da didática crítica
proposta por Candau ( 1 982) e ressignificada, posteriormente,
como intercultural.

Ao estimular os depoimentos nesse contexto eu me coloco,


na condição de professora, como mediadora na construção de
. e
Ü DEPOIMENTO COMO PRATICA PEDAGÓGICA INTERCULTURAL NA LUTA ANTIRRACISTA 293

relações que visibilizam as estruturas de poder que se desen­


volvem num determinado contexto histórico sempre móvel.
Mais, me coloco na perspectiva de mobilizar o crescimento
pessoal e social de todos nós desafiando a todos ampliar hori­
zontes e experiências no diálogo com outras histórias de vida,
sentidos e práticas sociais no combate à discriminação racial
e ao racismo estrutural.

Considerações Finais

No contexto de uma educação intercultural, nossa concep­


ção de didática é filiada aos pressupostos da didática inter­
cultural, o que nos têm exigido interculturalizar nossas práti­
cas pedagógicas em sala de aula na qualidade de professora
de didática.

Na perspectiva que adotamos, a desigualdade de oportunida­


des sociais havidas entre negros e brancos deve ser visibiliza­
da, historicizada e desnaturalizada e não faltam ocasiões para
isso no cotidiano de nossa s salas. São muitos os momentos
em que a temática das relações raciais aparece implícita ou
explicitamente nos espaços de formação de professores.

Construir práticas educativas interculturais que façam o en­


frentamento aos preconceitos e discriminações de todo o tipo
tem sido um desafio, especialmente quando tratamos do racis­
mo brasileiro que estrutura também nossa desigualdade.

No Brasil, o racista é sempre "o outro". O desconforto ao lidar


com o racismo em sala é flagrante, daí porque temos tentado
criar um ambiente de respeito mútuo, democrático, onde to­
dos têm direito à fala visando um diálogo intercultural .

O depoimento oral dos alun os negros, expondo suas vivências


e subjetividades em relação ao racismo, como prática peda­
gógica de perspectiva intercultural tem se mostrado eficaz ao
desvelamento do "mito da democracia racial brasileira" por
sua natureza disruptiva e problematizadora. O depoimento
provoca silêncios e outros depoimentos que sempre são es­
timulados com a pretensão de, se bem conduzidos: levar à
294 Ü!OÁT!CA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

construção de vínculos entre sujeitos com identidades raciais


diferentes , valorizar as diferenças culturais, visibilizar a ocu­
pação de lugares sociais distintos perpassados por relações
de poder desiguais onde uns têm privilégios e outros subalter­
nidades e combater os preconceitos e discriminações raciais.

A didática trabalhada como teoria-prática intercultural tem


inegavelmente uma faceta humana e subjetiva que o depoi­
mento oral expõe e que interessa estimular com o propósito
de educar os futuros professores/as para as relações raciais.

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296 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

DIÁLOGOS COM
A FORMAÇÃO
DOCENTE:
relações de
genero e
.,..

cotidiano escolar

Rachel Pulcino
PUC-RIO
DIALOGOS COM A FORMAÇÃO DOCENTE: RELAÇÕES DE G!ôNERO E COTIDJANO ESCOLAI� 297

Introdução

Ensaiar uma escrita sobre o lugar das relações de gênero no


cotidiano escolar possibilitou a reflexão sobre minha experiên­
cia, entre os espaços que me encontro hoje. Como professora'
. de história na educação básica percebo diferentes desafios e
disputas na construção de um ensino que valorize a multipli­
cidade de sujeitos e narrativas históricas que, muitas vezes,
são esquecidas.

Vivencio as disputas do curriculo e procuro as brechas e me­


canismos possíveis para resistir a exposição de uma história
meramente factual e apegada as discussões de acontecimen-

l A regra gramatical da língua portuguesa que define o masculino como elemen­


to neutro em substantivos e adjetivos foi deliberadamente invertida para o feminino,
independentemente do sexo dos sujeitos ao qual o termo se refere. Seguindo esta
lógica, os substantivos e adjetivos usados no masculino neste texto ocorrem somente
em referência específicas a sujeitos masculinos (Felipe BASTOS, 2 0 1 5) . "É, pra mim,
estranho que pessoas sofisticadas em questões de poder, política e linguagem conti­
nuem isentando a gramática de qualquer cumplicidade na perpetuação de relações
de. desigualdade. {. ) Apesar da dificuldade de lidar com essa questão em uma língua
..

extremamente flexionada como o Português, continuo achando que vale a pena tentar
encontrar soluções {N. do T.)" (Elizabeth ELLSWORTH, 200 1 , p. 75).
298 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

tos políticos. Assim, observo no cotidiano o quanto o deba­


te sobre a construção do conhecimento escolar produzido no
contexto educacional entre saberes e a pluralidade cultural
ainda está em processo (Vera CANDAU2, 2009).

Nesse momento, também me encontro atuando na formação


docente e lá percebo o quanto a compreensão do conhecimen­
to escolar e dos processos de ressignificação, transposição di­
dática e contextualização dos saberes de origem ainda estão
sendo construídos pelas licenciandas. Em muitas ocasiões,
elas ainda se interrogam sobre a dificuldade e as angústias de
não se sentirem plenamente preparadas, do medo de não sa­
berem responder a detç;I'JJlinados questionamentos e o quanto
ainda em seus processoS'formativos a temática de gênero es­
teve presente de forma lacunar. Ou seja, ocupando espaços em
muitos dos casos através de iniciativas pessoais de professoras
que problematizam essas relações entre saber e poder.

Entendendo minha experiência entre esses dois espaços - a


escola e a universidade - optei por trazer neste capítulo uma
discussão sobre a interseção entre as relações de gênero e o
ensino História. Para isso, apresento uma discussão sobre os
medos e as angústias presentes nas aulas na formação do­
cente de Didática da História e Prática de Ensino, trazendo
em paralelo um relato pessoal, vivido por mim durante minha
formação inicial, para pensar como os questionamentos das
nossas estudantes na escola podem servir como potencializa­
dores para nossa reflexão e prática docente.

Em seguida, discuto, a partir de uma atividade realizada em


sala de aula com as licenciandas em História, os significados
possíveis da interseção entre gênero e ensino de História. E a
partir das produções delas, encontramos uma problematiza­
ção dos saberes curriculares e da composição do cotidiano es-
2 O uso do nome e sobrenome das autoras será utilizado nesse trabalho, fugindo um
pouco do padrão comum da escrita acadêmica. Assim, como faço uso ao longo desse
texto de uma inversão na regra gramatical, trocando o plural, do masculino para o fe­
o
minino. Essas escolhas são ações que demarcam a escrita como ato politico. uso do
nome junto ao sobrenome visa evidenciar o lugar das mulheres na produção científica
e acadêmica, pois a noção de sujeito universal empregada comumente as normas da
escrita, em muitos casos promovem leituras que ocultam as mulheres atuantes na
produção dos saberes.
ÜIÁLOGOS COM A FORMAÇÃO DOCENTE: RELAÇÕES DE Gj;:NERO E COTIDIANO ESCOLAR 299

colar. Por fim, tento levantar alguns caminhos possíveis para


uma escrita da história no cotidiano que contemple diferentes
sujeitos históricos e a pluralidade cultural.

"E se eu niio souber como responder?":


a insegurança do saber na formação e a
importância da problematização
no cotidiano escolar

Provavelmente essa seja a primeira dúvida e insegurança


das licenciandas ao pensarem as suas experiências no está­
gio. Ao menos esta é uma pergunta frequente que manifesta
essa angústia entre as turmas de Didática da História e Prá­
tica de Ensino. Dessa pergunta, podemos por ora demarcar
duas concepções presentes nesse questionamento: (i) a ideia
de que não se sentem plenamente preparadas para a prática

1
docente; (ii) a noção de que a possibilidade de não saber algo
seja um absurdo.

Vamos começar com a noção de despreparo. É compreensí­


vel que estudantes de graduação, principalmente aquelas que
estão iniciando as etapas de estágio, sentirem certo medo e
hesitações quanto esse novo lugar.

Ser professora parece ser o novo desafio, deixar de ser estu­


dante e assumir uma posição de responsável perante aqu,ele
grupo, mas também de ser detentora de um conhecimento,
um saber especifico. No caso do saber histórico, elas - as li­
cenciandas - se sentem com medo da possibilidade do erro,
ou seja, "e se não souber responder?". Mas, o que significa exa­
tamente esse não souber responder? Ele é um medo que reflete
insegurança e talvez traga em seu interior uma ideia de que
a formação inicial deveria ser algo que pudesse dar conta de
tudo e assim, seria capaz de esgotar todas as dúvidas que po­
deríamos ter.

Revendo minha trajetória, lembro-me de um momento que


percebi uma dúvida de uma aluna que na hora passou por
mim rapidamente, como mais um momento entre tantos da
sala de aula e que depois mobilizou minha inquietação e de-
300 DIDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

sejo de pesquisa. Durante uma aula no estágio, promovi junto


ao professor da turma uma atividade de pinturas rupestres,
como o fechamento dos conteúdos sobre sociedades ágrafas.
A proposta era que as estudantes pintassem imagens que re­
presentassem como as pessoas viviam naquela época. Duran­
te o trabalho, a aluna fez seguinte pergunta: Professora exis­
tiam mulheres das cavernas? Na hora respondi que sim, mas
essa pergunta ficou comigo por mais tempo, até que um dia
folheando o livro didático da turma percebi que as mulheres
eram pouco representadas e comecei a questionar como essa
ausência se manifestava também na minha formação em His­
tória. Foi a partir do questionamento daquela menina que en­
contrei meu espaço. _, --.•
Até o século XIX, faz-se pouca questão das mulheres no relato
histórico, o qual na verdade, ainda está pouco constituído. As
,

que aparecem no relato dos cronistas são quase sempre excep­


cionais por sua beleza, virtude, heroísmo ou, pelo contrário, por
suas intervenções tenebrosas e nocivas, suas vidas escandalo­
sas. A noção de excepcionalidade indica que o estatuto vigente
das mulheres é o do silêncio que consente com a ordem (Michel­
le PERROT, 1 995, p. 13).

Ao falar da sua escrita de uma história das mulheres, Michel­


le Perrot ( 1 995) assinala que a historiografia durante muito
tempo silenciou a experiência das mulheres. ou seja, essa au­
sência identificada pela menina no ensino de História não é
apenas algo restrito ao universo escolar, mas diz de uma com­
preem;ão maior sobre o lugar das mulheres enquanto sujeitas
da história.

o campo de estudos de gênero se abriu para mim enquanto


lugar de problematização a partir de uma pergunta mobiliza­
da em sala de aula, em meu primeiro estágio na graduação.
Essa experiência revela o quanto as perguntas levantadas no
cotidiano da escola pelas estudantes podem ser potentes, à
medida que nos permitimos refletir sobre o que de fato elas
representam.

Ao escutar os relatos das estudantes sobre os estágios, relem­


bro diferentes episódios que vivi na mesma fase que elas e
me percebo ainda passando por situações que me colocam

ÜIALOGOS COM A FORMAÇÃO DOCENTE: RELAÇÕES DE G�NERO E COTIDIANO ESCOLAR 301
. .

dúvidas, angústias e desafios. Porém, com o tempo perce'o'l


que tão importante quanto os conteúdos do currículo de His­
tória já prescritos, é importante saber reconhecer . e levar em
consideração os desejos e interesses das nossas estudantes e
tentar fazer conexões com temas do cotidiano que são rele­
vantes para elas. Sobre isso, Fernando Seffner (20 12) explica:
( ... ) na aula de História, tanto quanto saber contar as histórias do
passado, nós professores queremos que os jovens saibam con­
tar suas próprias histórias, ou seja, saibam fazer a narrativa de
seu tempo presente usando categorias e conceitos das ciências
humanas que lhes permitam um discurso mais sofisticado, mais
narrativo e igualmente analitico. Assim estaremos investindo na
formação de um jovem que é produtor de si, que se narra, que não
é narrado apenas pelos outros (Fernando SEFFNER, 2012, p. 129).

Estar atento às questões que as estudantes levantam em sala


é parte do processo de deixar o tempo presente adentrar o
ensino de História e construir pontes entre as relações entre
passado e presente. Pensando que esse é um dos desafios,
tornar possíveis outras leituras de mundo que estejam anco­
radas em reflexões e diálogos com os saberes. Fernando Seff­
ner (20 12) entende que esse movimento - passado e presente
- se torna mais potente na medida em que auxilia e aproxima
a estudante da dimensão ativa do processo histórico, conec­
tando o tempo presente e os elementos da cultura juvenil ao
saber histórico.

Nesse sentido, o autor reforça a importância de o ensino de


História promover esses diálogos, valorizando atividades que
propiciem a interlocução com a realidade vivenciada pelas
estudantes. Sendo assim: só é possível selecionar pontos
para abordagem em sala de aula se conhecemos os alunos e
conhecemos as culturas juvenis daqueles que estão na esco­
la (Fernando SEFFNER, 2 0 1 2 , p. 129). Assim, podemos pen­
sar a temática de gênero como parte das culturas juvenis do
tempo presente, através das demandas das estudantes por
debates no cotidiano escolar. Em diálogo com a questão da
menina do 6° ano - passado que se tornou presente a partir
do encontro com as licenciandas - estava presente na sua
fala, uma necessidade de compreender que partes as mulhe­
res ocupavam dentro do processo histórico, assim como, ela
3 02 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

trazia uma crítica ao curriculo e a forma como o conheci­


mento histórico era ensinado.

Retomando as ideias que envolvem as noções de despreparo


e o medo de não saber responder, encontramos nessas con­
cepções uma ideia de que a formação na licenciatura seria
capaz de encerrar o ciclo de formação. Quando na prática
identificamos a graduação como uma formação inicial que se
realimenta em diferentes momentos, entre oportunidades de
extensão e pós-graduação, mas que também se desenvolve
nas vivências cotidianas, e nas trcicas com outras professoras
e estudantes na prática escolar.
- ... �
Para Paulo Freire (20 13, p. 40) : na formação permanente dos
professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica
sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou
de ontem que se pode melhorar a próxima prática. Ao abordar
a reflexão e o papel da crítica na formação, Paulo Freire nos
convida a pensar a formação docente como um ciclo inacaba­
do. Logo, a angústia das aprendizas deve ser compreendida
como parte desse processo, pois elas ainda estão começando
a vivenciar a prática docente.

Outro ponto chave é a compreensão de que a pergunta que .


não sabemos responder em sala de aula pode ser uma oportu­
nidade de aprendizado e problematização do saber proporcio­
nando a união em torno de um novo projeto que una docentes
e estudantes. Ou seja, aquilo que não sabemos responder pode
se tornar tema de uma nova aula, surgir como possibilidade de
discussão sobre os conhecimentos escolares. Sendo assim, os
questionamentos que não sabemos responder não precisam
ser fonte de angústia, mas sim oportunidades de construção
para novas aprendizagens, mobilizando outras relações entre
ensinar e aprender.

experiência:
Analisando uma a caixa de perguntas
de
"gênero no ensino história"

A caixa de perguntas é parte de uma experiência iniciada em


conjunto com outras professoras - Raquel Pinho e Felipe Bas-
DIALOGOS COM A FORMAÇÃO DOCENTE: RELAÇÕES DE G!:.NERO E COTIDIANO ESCOLAR 303

tos - em diferentes oficinas para debater com estudantes de


Pedagogia e demais Licenciaturas os temas de gênero e se­
xualidade' na educação. Seguindo o formato de oficinas pe­
dagógicas, a caixa seria um dos momentos que compõem a
formação.
Esta atividade propicia diálogos sobre assuntos muitas vezes
não explorados, uma vez que a caixa garante o anonimato de
quem escreveu a pergunta. Ela traz concepções presentes no
imaginário social e coletivo sobre o tema proposto, captadas pe­
los indivíduos. Ao explorar essas visões do cotidiano, a ativida­
de trabalha na tensão entre saberes oriundos do senso comum
e saberes acadêmicos, aproximando teoria e prática na sala de
aula (Marcelo ANDRADE, et ai.; 201 7, p. 63).

O método da caixa de perguntas foi utilizado numa turma de


Didática de História, numa universidade pública federal loca­
lizada na zona sul do Rio de Janeiro, como um mecanismo '
de identificação dos saberes prévios das estudantes sobre gê­

1
nero, mas também como uma forma de iniciar uma reflexão
sobre as interseções da temática com o ensino de História.

A proposta da atividade consistia em: pensar como a temática


de gênero se relaciona com o ensino de História. Para isso, as
estudantes receberam tiras de papel e nelas deveriam escrever
palavras, perguntas ou expressões que tentassem traduzir sua
percepção sobre os sentidos atribuídos à temática de gênero
no saber histórico escolar. Com as palavras escritas, seguimos
para um momento de discussão das mesmas. Esse exercício
ocorreu durante a aula de Didática da História, pois na disci­
plina temos a proposta de exercitar diferentes possibilidades
e metodologias de trabalhos em sala de aula, utilizando os
próprios saberes como forma de construção e abordagens de
repertórios possíveis para suas futuras aulas nas escolas.

Esta forma de trabalhar a dimensão metodológica do saber


didático foi construída a partir da minha experiência de Está­
gio Docente durante o Mestrado e Doutorado, acompanhan-
3 Para um maior aprofundamento do trabalho com a caixa em oficinas de género e
sexualidade ver: ANDRADE, Marcelo; et al. GÊNEROS E SEXUALIDADES NA FORMA­
ÇÃO DE DOCENTE: ANALISANDO SABERES A PARTIR DE OFICINAS PEDAGÓGICAS.
MARGENS: Revista Interdisciplinar. VOL. I [ . N. 1 7. Dez 2 0 1 7 . (p. 59-75).
304 0JDATJCA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

do as turmas de Didática Geral do professor Marcelo Andrade


na graduação de Pedagogia da PUC-Rio. Seguindo seus pas­
sos, utilizo da sua estratégia para introduzir diferentes for­
mas de pensar a organização da sala de aula e os processos
de aprendizagem na escola na formação de professoras. A
imagem abaixo, traz as palavras escritas pelas licenciandas
na atividade.

Figura 1: Nuvem de Palavras "gênero no ensino de histón·a"

As palavras apresentadas pela turma podem ser organizadas


em qvatro eixos: (i) dimensão do pensamento; (ii) desafios do
tempo presente; (iii) conceituação e dimensão histórica; (iv)
resistências de gênero. A discussão desses eixos surge como
uma proposta de análise e problematização das concepções
das licenciandas das interseções entre gênero e ensino de
História. Ou seja, como produzir conexões e relações entre

1
saberes históricos, a partir da experiência da caixa de per-
guntas?
'I
ÜIÁLOGOS COM A FORMAÇÃO DOCENTE: RElAÇÔES DE Gl:.NERO E COTIDIANO ESCOLAR 305

Na dimensão do pensamento, podemos identificar as seguin­


tes palavras: repensar, refletir, respeitar, ressignificação e
construção. Todas essas palavras propõem uma ideia de que
o debate sobre gênero no ensino de História passa péla noção
de pensamento, expondo a importância de que é preciso refle­
tir sobre como as relações de gênero são trabalhadas através
dos conteúdos.
Se você tratar gênero como uma pergunta - o que está aconte­
cendo com a forma como os papéis e as características de mu­
lheres e homens estão sendo definidos -, então, você não poderá
deixar de ver as mulheres e incluí-las como sujeitos históricos.
Se você usa o gênero como uma ferramenta crítica expondo não
só o fato da presença das mulheres na história, mas as razões
para sua invisibilidade ou marginalização da política e da vida
pública, então você está avançando na "causa" da emancipação
das mulheres Ooan SCOTT, 20 1 3, p. 1 63).

Assim, o que dita a potencialidade analítica da categoria de


gênero não é a ideia de debater sobre mulheres, mas a forma
como questionamos as relações que são estabelecidas entre
mulheres e homens. Na concepção assumida por Joan Scott
( 1 995; 20 1 3) gênero é uma categoria essencial para a história
por trazer em si a problematização das relações entre os sexos
e as dinâmicas de poder aos quais estão inseridas.

Já no eixo desafios do tempo presentes, agrupamos as pala­


vras a seguir: Brasil, hoje, resistência, revolucionário, proibi­
ção, ausência e criminalização. Ou seja, nesse item já é pos­
sível identificar palavras que traduzem algumas das tensões
do cenário político atual que envolve a discussão de gênero
nas escolas. Atualmente, acompanhamos os embates e dis­
putas principalmente na enseada das políticas públicas na­
cionais, em torno do Plano Nacional da Educação (PNE) e da
Base Nacional Curricular Comum (BNCC) o quanto a temática
e a palavra gênero vem sendo tensionada e tendo sua perma­
nência ameaçada nesses documentos.

Entre disputas políticas, lideradas por grupos políticos de or­


dem conservadora e alguns setores da sociedade civil, de­
fendem a retirada da temática de gênero dos documentos
curriculares oficiais. Assim, pesquisadoras, educadoras e mo-
•\ '

306 Ü!DÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

vimentos sociais feministas e LGBT4 defendem a permanên­


cia e a ampliação desses debates no contexto escolar, visto
a demanda da escola em enfrentar esses temas. Seja pelas
constantes situações de preconceitos e discriminações que
explodem no chão da escola, como pelo aumento dos casos
de violências na sociedade como um todo orientado por prá­
ticas machistas, misóginas e lgbtfóbicas.

Esses embates e tensões são parte do processo descrito por


Michel Foucault (2013) ao analisar os dispositivos criados du­
rante a modernidade para regular a sexualidade. Essas prá­
ticas instituídas pelas instituições e exercidas no cotidiano
estão inscritas em jogp�.Q.e poder. Os embates do cenário po­
litico atual assinalam o quanto esses processos, experiências
e subjetivações atravessadas pelos gêneros e as sexualida­
des são territórios em disputa. Pensar esses jogos de poder é
compreender numa perspectiva foucaultiana que o poder não ·
emana de um determinado ponto central da sociedade, mas
que ele age de forma capilar por diferentes esferas, o poder é
um feixe de relações (Michel FOUCAULT, 20 1 4) .

No terceiro item conceituação e dimensão histórica foram


organizadas as seguintes palavras e expressões: conceito;
categoria; agentes históricos; interação história; representa­
tividade; identidade; condição; comportamento; meninas e
meninos; ''Não se nasce mulher, torna-se" e Simone de Beau­
voir. Esse conjunto expõe o quanto o grupo compreende as
relações de gênero seguindo uma perspectiva interacional,
como reconhece importantes teóricas dos estudos de gênero,
como Simone de Beauvoir. Além disso, expõe, valorizando a
utilização da categoria no ensino de História, enquanto fer­
ramenta analítica importante para a percepção de diferentes
narrativas e sujeitos históricos.

4 Por LGBT, estou nomeando as indivíduas que afirmam uma identidade sexual que
foge dos padrões da heterossexualidade. Opto por essa sigla para designar essas sujei­
tas que representam suas identidades Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Trans­
gêneros e Travestis. Concordo com Claudia Vianna (2015), ao reconhecer as inúmeras
representações que habitam esses grupos. A autora argumenta também que existem
variações da sigla incluindo a letra 1, para incorporar os Intersexos, e da letra Q, para
incorporar as chamadas identidades queer (do inglês, estranho). Porém, reconhecen­
do a diversidade existente nos movimentos, utilizarei nesse trabalho a sigla LGBT em
concordância com a deliberação da I Conferência Nacional LGBT, em 2008.
DIALOGOS COM A FORMAÇÃO DOCENTE: RELAÇÕE� DE G�NERO E COTIDIANO ESCOLAR 307

No interior desses processos e estruturas, há espaço para um


conceito de agência humana, concebida como tentativa (pelo
menos parcialmente racional) para construir uma identidade,
uma vida, um conjunto de relações, uma sociedade estabele-
cida dentro de certos limites e dotada de uma linguagem - uma
linguagem conceitua! que estabeleça fronteiras e contenha, ao
mesmo tempo, a possibilidade de negação, da resistência, da
interpretação e permita o jogo da invenção metafórica e da ima-
ginação Goan SCOTT, 1 995, p. 86).

Assim, entre essas palavras e expressões conseguimos iden­


tificar a potencialidade analítica do gênero defendida por Joan
Scott ( 1 995; 2013), como um organizador das relações sociais,
porém que não se esgota nas diferenças presentes na diferen­
ciação entre os sexos, busco percorrer horizontes de análise.

O eixo resistências de gênero foi construído a partir das pa­

1
lavras: resistência; empoderamento; pertencimento; ser livre;
ressignificação e representatividade. Estas palavras represen­
tam uma dimensão mais ativa das disputas lideradas por agen­
tes da educação e dos movimentos sociais que compreendem a
importância do debate de gênero para as escolas e a formação
docente. Elas apontam para a valorização de sujeitos e/ou te­
mas comumente silenciados no ensino de História e, para as
possibilidades dessas experiências serem tratadas de modo em
que se sintam representados e pertencentes ao processo esco­
lar. A noção de resistência surge na reflexão foucaultiana como:
( ... ) a resistência se dá, necessariamente, onde há poder, porque
ela é inseparável das relações de poder; assim, tanto a resistênc
eia funda as relações de poder, quanto ela é, às vezes, o resul­
tado dessas relações; na medida em que as relações de poder
estão em todo lugar, a resistência é a possibilidade de criar es­
paços de lutas e de agenciar possibilidades de transformação em
toda parte Gudith REVEL, 2005, p. 74).

Sendo assim, a resistência não acontece isolada das relações


de poder, ela é parte constitutiva desses mecanismos e ins­
tâncias que regulamentam e normatizam a experiência dos
sujeitos. Logo, pensar as possibilidades de resistir no ensino
de História alinhadas a uma perspectiva de gênero passa por
identificar as formas pelas quais os gêneros hegemónicos se
308 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

inserem no saber histórico. Dessa identificação, passamos para


a compreensão por quais espaços emergem da construção de
novas escritas da história contemplando e expondo as dinâmi­
cas de poder e as possibilidades de resistências presentes nas
relações entre os diferentes gêneros no processo histórico.

Portanto, a reflexão sobre as relações de gênero no ensino de


História perpassa uma discussão do que entendemos por sabe­
res históricos escolares como: conhecimento, currículo e nar­
rativas de sujeitos históricos possíveis. Segundo Fernando Sef­
fner (20 12) essa busca parte de assumir que os conhecimentos
que habitam os programas escolares são frutos de um recorte,
são escolhas dentre OMt.ra5 possibilidades do que ensinar.

Trazer a diversidade e as relações de gênero para o ensino de


História, enquanto possibilidades analíticas como Joan Scott
( 1 995; 20 1 3) argumenta, passa também por tentar novos olha­
res sobre o currículo e rever os "recortes" ou "saberes tradi­
cionais" já consolidados dentro do currículo oficial de História.
Sendo assim, o currículo e o ensino de História, se constroem
no cotidiano por entre processos de atravessamentos contí­
nuos. Sendo estes, atravessados por gêneros, sexualidades e
relações de poder. Essas relações de construção e descons­
trução se entrecruzam na escola como um lugar possível de
problematização de estereótipos, e também como desafios ao
qual a educação precisa lidar.
Um currículo é um artefato com muitas possibilidades de diálo­
gos com a vida; com diversas possibilidades de modos de vida,
de povos e de seus desejos. É um artefato com um mundo a ex­
plorar (Marlucy PARAÍSO, 2009, p. 278).

Currículo como artefato, como produção cultural, como espa­


ço de construção. Essas são algumas das principais definições
de currículo que circundam nas teorias pós-estruturalistas.
Para Marlucy Paraíso (2009) , é um mundo a ser explorado.
Sendo um mundo, é passível de múltiplas ideias, saberes, en­
contros e desencontros. Currículo é terreno de experiências.
Currículo e suas teorias estão no centro de um território con­
testado (Tomaz Tadeu SILVA, 20 1 1 , p. 1 6) . Currículo é dispu­
ta. Sobre aquele que deve/pode ser ou não ensinado, sobre
aquilo que é válido.
DrALOGOS COM A FORMAÇÃO DOCENTE: RELAÇÕES DE G�NERO E COTIDIANO ESCOLAR 309

Portanto, a experiência da caixa de perguntas possibilitou um


encontro com as concepções prévias sobre as relações entre
gênero e ensino de História, passando por reflexões do coti­
diano a produção do currículo escolar trazidas pelas licencian­
das. Abrindo espaços para debates sobre: representatividade,
sujeitos históricos, trajetórias, experiências, organização de
saberes e conhecimentos históricos.

Considerações finais

Os diálogos entre a escola e a universidade se mostram cada


vez mais necessários. Entre duas formas de prática, encontro
na interseção entre esses dois espaços diferentes formas de
pensar, organizar e produzir saberes sobre as relações de gê­
nero no ensino de História.

Desde as dúvidas e angústias das licenciandas, aos debates


sobre como selecionamos os conhecimentos, ao como elabo­
rar o processo de ressignificação dos saberes históricos para
sua transformação em saberes escolares, percebo o quanto
esses dois espaços ainda se fazem distantes nas formações.
Ouvir sobre o cotidiano e experienciar as suas dinâmicas são
coisas distintas. Ensinar as licenciandas a treinar o olhar para
observar a escola, partindo do lugar de professora também
parece um desafio. Ao mesmo tempo, escutar suas experiên­
cias e me encontrar, muitas vezes, em suas inseguranças e
poder retomar e refletir esses momentos parecem oportunida­
des extremamente ricas.

Se o gênero é a forma primária de dar significado às relações


de poder Goan SCOTT, 1 995, p. 86), por que ainda mantemos
ele distante da formação e não utilizamos sua potencialida­
de no cotidiano escolar? Observando os embates políticos da
atualidade respondemos facilmente essa pergunta, mas será
que de fato não ensinamos gênero? Ou que o que ensinamos
é a reprodução de gêneros hegemônicos? E diante do aumen­
to da violência e dos casos de lgbtfobia, machismo e do pre­
conceito nos diferentes contextos escolares, ainda assim, não
devemos ensinar gênero nas escolas?
310 DIDÁTICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

Na caixa de perguntas, palavras como proibição, criminaliza­


ção e ausência ecoam e sinalizam os sentidos que habitam as
relações de gênero no ensino de História hoje. Entre brechas,
por pequenos espaços, quando possível a diversidade se ma­
nifesta nas salas de aula. Porém, na mesma caixa, palavras
como: representatividade, empoderamento e ressignificação
demarcam novas possibilidades e assinalam para futuras pro­
fessoras que entendem que ensinar gênero no ensino de His­
tória convoca a novos horizontes de ampliação de saberes.

Entre as tensões do tempo presente e as lutas por represenc


tatividade e pela ampliação da discussão da categoria de gê­
nero na educação, ·�CJ&,-terrenos políticos e na formação. o
cotidiano assinala, através dos questionamentos feitos nas
salas de aula, que há demandas por escritas de outras histó­
rias que englobem diferentes agentes históricos. A pergunta
da menina do 6° ano sobre a existência de mulheres nas cac
vernas aponta para isso e talvez este seja um dos principais
desafios a serem enfrentados na formação docente, ensinar
a estar atenta às demandas e questionamentos do currículo
presentes no cotidiano.

As perguntas que não sabemos responder, os questionamen­


tos sobre as formas de ensinar, não são apenas isso, elas são
convites à reflexão. São oportunidades de novas experiências,
são aberturas para novos espaços de aprendizagens. Talvez
esta seja a grande tarefa, ensinar e aprender a problemati­
zar. Seguindo a perspectiva foucaultiana problematizar seria
transformar as práticas, os fatos e os pensamentos em pro­
blema (Michel FOCAULT, 201 4) . Ou seja, adotar uma postu­
ra investigativa de problematizar os processos e as relações
presentes no cotidiano, aproveitando as oportunidades que
emergem para ensaiar novas escritas da História.
0IALOGOS COM A FORMAÇÃO DOCENTE; RELAÇÕES DE Gf!NERO E COTIDIANO ESCOLAR 31 1

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.

n. 1 9, 2013, p. 1 6 1 - 1 64.
312 DIDATJCA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

Perfil dos autores .,

Adélia Maria Nehme Simão e Koff


Mestre e Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro/PUC-Rio. Licenciatura em Portu­
guês e Literaturas Brasileira e Portuguesa, pela Universidade
Federal do Rio de Janzj,ro/UFRJ. Pesquisadora associada do
Grt1po de Estudos sobre Cotidiano, Educação e Culturais (GE­
CEC), vinculado à PUC-Rio. Consultora educacional de dife­
rentes instituições públicas e privadas, educativas e culturais.
Coordenadora editorial da Revista NOVAMERICA e de outras
publicações. Tem experiência em produção de recursos didá­
ticos (impressos, vídeos/TV e Web) , na concepção, execução,
gerenciamento, acompanhamento e avaliação de diferentes
projetos de natureza educativo-cultural, bem como na docên­
cia no âmbito da Educação Básica e do Ensino Superior. Areas
de atuação: formação de professores, ensino das disciplinas
relacionadas à didática, currículo e docência do ensino su­
perior, educação ambiental, educação em direitos humanos,
educação para o trabalho, relações entre educação e culturas
e educação intercultural.

Cinthia Monteiro de Araújo

Professora do Departamento de Didática da Faculdade de Edu­


cação da UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Ensino
de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ
(PPEGEH - Profl-listória Nacional) . Doutora e Mestre em Edu­
cação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro/
PUC-Rio. Possui graduação em História pela Universidade Fe­
deral do Rio de Janeiro. Pesquisadora do Laboratório Núcleo
de Estudos do Currículo (LaNEC) e do Laboratório de Estudos e
Pesquisas em Ensino de História (LEPEH) desta mesma univer­
sidade. Coordena o Grupo Diferir - Grupo de Pesquisa Diferen-
PERFIL DOS AUTORES
.3 1 .3

ças e Interculturalidades no Ensino de História. Participa como


pesquisadora associada do Grupo de Estudos sobre Cotidiano,
Educação e Culturais (GECEC), vinculado à PUC-Rio. Atual­
mente atua também como vice-coordenadora do PPGEH - nú­
cleo UFRJ do ProfHistória Nacional. Áreas de atuação: ensino
de História, formação de professores, educação em direitos
humanos e educação intercultural.

Clea Maria da Silva Ferreira

Mestrado em Educação pela Universidade de São Paulo. Dou­


toranda em Educação pela Pontificia Universidade Católica do
Rio de Janeiro/PUC-Rio. Integra o Grupo de Estudos sobre Co­
tidiano, Educação e Culturais (GECEC) vinculado à PUC-Rio.
Atualmente, é consultora de ONGs que promovem a forma­
ção docente em serviço e consultora de pesquisa do Unicef/
Undime/MEC. Tem experiência na área de Educação, atuan­
do principalmente como formadora de educadores em cursos
presenciais e à distância. Areas de atuação: interculturalidade,
decolonialidade, educação em direitos humanos, história e cul­
tura afro-brasileira e africana, formação de professores e gesto­
res escolares, educação para as relações étnico-raciais-raciais.

Daniela Frida Drelich Valentim

Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universi­


dade Estadual do Rio de Janeiro/UERJ. Graduação em Direito
e Pedagogia pela UERJ. Mestrado e Doutorado em Educação
pela Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro/PUC­
-Rio. Pós-doutorado em Educação na UERJ. Tem experiência
na área de Educação, nos cursos de pedagogia e licenciaturas,
314 ÜIDATICA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRATICAS

nas disciplinas Didática, Avaliação, Curriculo, Estágio, Docên­


cia do Ensino Superior e Educação em Direitos Humanos. Atua
na Educação à Distância no Consórcio Cederj sendo coorde­
nadora da disciplina pedagógica de avaliação. Pesquisadora
associada do Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Educação e
Culturais (GECEC) , vinculado à PUC-Rio. Menção Honrosa da
Capes de Tese na área de Educação (20 13). Áreas de atuação:
ação afirmativa, polftica de cotas, políticas públicas voltadas
aos negros no ensino superior, multi/interculturalidade, direi­
tos humanos, curriculo e didática.

Edileia de CarvalhQ. '"


"*'

Mestrado em Educação e Doutoranda no Programa de Pós-Gra­


duação da Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro/
PUC-Rio. Graduação em Pedagogia pela mesma universidade.
Atualmente, integra o Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Edu­
cação e Culturais (GECEC) . É membro da equipe do programa
de formação de educadores em Direitos Humanos, promovido
ONG Novamerica. Integrante do Fórum Fluminense de Educa­
ção do Campo. Principais áreas de atuação: educação escolar
quilombola, quilombos, educação diferenciada, políticas pú­
blicas para quilombos, saberes tradicionais, movimentos so­
ciais, educação do campo, decolonialidade/interculturalidade
e educação intercultural.

Magda Pischetola

Professora adjunta do Departamento de Educação da Pontifí­


cia Universidade Católica do Rio de Janeiro/PUC-Rio. Possui
mestrado em Comunicação e doutorado em Educação pela
Universitá Cattolica dei Sacro Cuore de Milão, Itália e pós­
doutorado pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atua
na graduação e no programa de pós-graduação na área de
mídias. É coordenadora do grupo de pesquisa ForTec - Forma­
ção Docente e Tecnologias. Áreas de atuação: inclusão digital,
formação de professores e práticas pedagógicas inovadoras
com uso de tecnologias.
PERFIL DOS AUTORES 315

Maria Inês Marcondes

Professora Associada do Departamento de Educação da Pon-'­


tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro/PUC-Rio. Mes­

1
trado e Doutorado em Educação pela PUC-Rio. É membro de
associações de pesquisa nacionais e internacionais e repre­
sentante Nacional da International Study Association on Tea­
chers and Teaching (ISATT) . É membro do Comitê Editorial
da Revista Teachers and Teaching (UK - Taylor and Francis
Group) . Foi visiting scholar na Faculty of Education/University
of Cambridge. Coordena o Grupo de Pesquisas sobre Forma­
ção de Professores, Curriculo e Cotidiano Escolar, vinculado
à PUC-Rio. Foi coordenadora do GT de Didática da ANPED.
Atualmente, é Diretora do Departamento de Educação da PU­
C-Rio. Areas de atuação: formação de professores, didática,
currículo e avaliação.

Monique Marques Longo

Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Ja­


neiro. Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Ca­
tólica do Rio de Janeiro/PUC-Rio. Mestre em Educação pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora de Didática
do Ensino Superior da PUC-Rio. Atualmente, é pesquisadora
do Grupo de Estudos sobre o cotidiano, Educação e Culturais
(GECEC) vinculado à PUC-Rio e coordenadora do GECCI (Gru­
po de Educação, Corpo, Cultura e Infância) da UERJ. Areas de
atuação: violência escolar, bullying; ética e aprendizagem, filo­
sofia moral, didática e prática de ensino, psicologia da apren­
dizagem, antropologia do corpo e infância.

Pedro Pinheiro Teixeira

Professor Assistente no Departamento de Educação da Ponti­


fícia Universidade Católica do Rio de Janeiro/PUC-Rio. Mestra­
do e Doutorado em Educação pela PUC-Rio, tendo realizado
período sanduíche no Institute of Education da University Col­
lege London (UCL !OE, Reino Unido). Licenciado em Ciências
Biológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. É
316 DIDAT!CA: TECENDO/REINVENTANDO SABERES E PRÁTICAS

Coordenador do Diversias/Grupo de Estudos sobre Diversida­


de, Educação e controvérsias e pesquisador associado ao grupo
REDISCO/Religions, Discriminations en Milieu Scolaire (Univer­
sité Lyon 2, França). Áreas de atuação: educação e ensino de
Biologia, com foco em evolução, criacionismo, ciência, religião,
diversidade e interculturalidade em contextos escolares.

Rachel Pulcino de Abreu

Mestra e doutoranda em Educação pela Pontificia Universida­


de Católica do Rio de Janeiro/PUC-Rio. Graduada em Licen­
ciatura e Bacharelado em História pela Universidade Gama
Filho/UGF. Integra nte �dô Grupo de Estudos em Diversidade,
Educação e Controvérsias (Diversias) , vinculado à da PUC-Rio.
É professora substituta do Departamento de Didática da Facul­
dade de Educação da UFRJ e professora de História do Colégio
Alfa CEM Bilíngue. Áreas de atuação: estudos de gênero e se­
xualidades na educação e cotidiano e currículo escolar.

Silvana de Araújo Mesquita

Professora assistente do Departamento de Educação da Pon­


tificia Universidade Católica do Rio de Janeiro/PUC-RJ. Dou­
torado e Mestrado em Educação pela PUC-Rio. Graduação
em Ciências-licenciatura pela UNIGRANRIO. Prêmio Capes
de Tese na área de Educação (20 1 7) . Integrou os projetos de
Formação Continuada de professores de Ensino Médio (Pacto
Nacional/MEC) , de produção de material de apoio didático­
-pedagógico pelo CEDERJ e na avaliação de livros Didáticos
(PNLD/MEC). Atuou na formação de professores no Curso
Normal na rede pública e privada. Integra o Grupo de Pesquisa
de Estudos sobre o Professor e o Ensino, vinculado à PUC-RJ.
Áreas de atuação: formação de professores , didática, trabalho
e profissionalização docente, politicas curriculares, juventude
e ensino médio.
PE�!L DOS AUTORES
3'1 7 .,

Susana Sacavino

Mestrado em Ciências Jurídicas pelo Instituto de Relações i!'l­


temacionais e Doutorado em Educação pelo Departamento de
Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janei­
ro/PUC-Rio. Licenciada em Ciência Política pela Universidad
Catolica de Córdoba (Argentina). Atualmente, é diretora da Re­
vista Latino-americana Novamerica - Nueva merica e d.a orga­
nização não governamental (ONG) - Novainerica, com sed.e no
Rio de Janeiro. É coordenadora· do Observatório de Educação
em Direitos Humanos em Foco e membro do Grupo de Estudos
: , vinculado à
sobre o Cotidiano, Educação e Culturais (GE<::;i:q
PUC-Rio. Membro da equipe de direção do C9légio 'reresiano.
(CAP-PUC-Rio) . Areas de atuação: educação em direitos huma­
nos, educação e cidadania, direitos humanos e interculturali­
dade, formação de educadores, prevenção' da violência escolar
e do bullying, pedagogia da memória e formação de identida­
des, oficinas pedagógicas e gestão institucionaL ·
· ''

Vera Maria Candau

Doutorado e Pós-doutorado em Educação pela Universidad


Complutense de Madrid (Espanha). Realizou estudos de pós­
graduação na Universidade Católica de Louvain (Bélgica) .
Possui graduação em Pedagogia pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro/PUC-Rio. Atualmente, é professora
emérita do Departamento de Educação da Pontifícia Univer­
sidade Católica do Rio de Janeiro e pesquisadora Senior do
CNPq. Assessora e experiências em projetos socioeducativos
no país e no âmbito internacional, particularmente em países
latino-americanos. É coordenadora do Grupo de Estudos so­
bre Cotidiano, Educação e Culturais (GECEC), através do qual
tem desenvolvido sistematicamente pesquisas sobre as rela­
ções entre educação e culturais. Areas de atuação: educação
multi/intercultural, cotidiano escolar, didática, educação em
direitos humanos e formação de educadores/as.

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