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Marília de Dirceu, de Tomaz Antonio Gonzaga

Mas tendo tantos dotes da ventura,


Fonte:
GONZAGA, Tomaz Antonio. Marília de Dirceu. 1. ed., São Paulo: Ediouro. (Prestígio)
Só apreço lhes dou, gentil Pastora,
Depois que teu afeto me segura,
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br> Que queres do que tenho ser senhora.
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
É bom, minha Marília, é bom ser dono
Texto-base digitalizado por:
De um rebanho, que cubra monte, e prado;
Sérgio Scuotto (Belo Horizonte/MG) Porém, gentil Pastora, o teu agrado
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores Vale mais q’um rebanho, e mais q’um trono.
informações, escreva para <bibvirt@futuro.usp.br>.
Graças, Marília bela,
Estamos em busca de patrocinadores e voluntários para nos ajudar a manter este projet o. Se você quer ajudar de alguma forma, mande
um e-mail para <bibvirt@futuro.usp.br> e saiba como isso é possível.
Graças à minha Estrela!

Os teus olhos espalham luz divina,


Marília de Dirceu A quem a luz do Sol em vão se atreve:
Tomaz Antonio Gonzaga Papoula, ou rosa delicada, e fina,
Te cobre as faces, que são cor de neve.
PARTE I Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
Teu lindo corpo bálsamos vapora.
Lira I Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora,
Para glória de Amor igual tesouro.
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro, Graças, Marília bela,
Que viva de guardar alheio gado; Graças à minha Estrela!
De tosco trato, d’ expressões grosseiro,
Dos frios gelos, e dos sóis queimado. Leve-me a sementeira muito embora
Tenho próprio casal, e nele assisto; O rio sobre os campos levantado:
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite; Acabe, acabe a peste matadora,
Das brancas ovelhinhas tiro o leite, Sem deixar uma rês, o nédio gado.
E mais as finas lãs, de que me visto. Já destes bens, Marília, não preciso:
Graças, Marília bela, Nem me cega a paixão, que o mundo arrasta;
Graças à minha Estrela! Para viver feliz, Marília, basta
Que os olhos movas, e me dês um riso.
Eu vi o meu semblante numa fonte, Graças, Marília bela,
Dos anos inda não está cortado: Graças à minha Estrela!
Os pastores, que habitam este monte,
Com tal destreza toco a sanfoninha,
Que inveja até me tem o próprio Alceste: Irás a divertir-te na floresta,
Ao som dela concerto a voz celeste; Sustentada, Marília, no meu braço;
Nem canto letra, que não seja minha, Ali descansarei a quente sesta,
Graças, Marília bela, Dormindo um leve sono em teu regaço:
Graças à minha Estrela! Enquanto a luta jogam os Pastores,
E emparelhados correm nas campinas,
Toucarei teus cabelos de boninas, Mas de loura cor não são.
Nos troncos gravarei os teus louvores. Têm a cor da negra noite;
Graças, Marília bela, E com o branco do rosto
Graças à minha Estrela! Fazem, Marília, um composto
Da mais formosa união.
Depois de nos ferir a mão da morte,
Ou seja neste monte, ou noutra serra, Tem redonda, e lisa testa,
Nossos corpos terão, terão a sorte Arqueadas sobrancelhas;
De consumir os dois a mesma terra. A voz meiga, a vista honesta,
Na campa, rodeada de ciprestes, E seus olhos são uns sóis.
Lerão estas palavras os Pastores: Aqui vence Amor ao Céu,
“Quem quiser ser feliz nos seus amores, Que no dia luminoso
Siga os exemplos, que nos deram estes.” O Céu tem um Sol formoso,
Graças, Marília bela, E o travesso Amor tem dois.
Graças à minha Estrela!
Na sua face mimosa,
Marília, estão misturadas
Lira II Purpúreas folhas de rosa,
Brancas folhas de jasmim.
Pintam, Marília, os Poetas Dos rubins mais preciosos
A um menino vendado, Os seus beiços são formados;
Com uma aljava de setas, Os seus dentes delicados
Arco empunhado na mão; São pedaços de marfim.
Ligeiras asas nos ombros,
O tenro corpo despido, Mal vi seu rosto perfeito
E de Amor, ou de Cupido Dei logo um suspiro, e ele
São os nomes, que lhe dão. Conheceu haver-me feito
Estrago no coração.
Porém eu, Marília, nego, Punha em mim os olhos, quando
Que assim seja Amor; pois ele Entendia eu não olhava:
Nem é moço, nem é cego, Vendo o que via, baixava
Nem setas, nem asas tem. A modesta vista ao chão.
Ora pois, eu vou formar-lhe
Um retrato mais perfeito, Chamei-lhe um dia formoso:
Que ele já feriu meu peito; Ele, ouvindo os seus louvores,
Por isso o conheço bem. Com um gesto desdenhoso
Se sorriu, e não falou.
Os seus compridos cabelos, Pintei-lhe outra vez o estado,
Que sobre as costas ondeiam, Em que estava esta alma posta;
São que os de Apolo mais belos; Não me deu também resposta,
Constrangeu-se, e suspirou. Quis a Vênus, e foi preso
Na rede, que lhe armou o Deus Vulcano.
Conheço os sinais, e logo
Animado de esperança, Mas sendo amor igual para os viventes,
Busco dar um desafogo Tem mais desculpa, ou menos esta chama:
Ao cansado coração. Amar formosos rostos acredita,
Pego em teus dedos nevados, Amar os feios de algum modo infama.
E querendo dar-lhe um beijo, Que lê que Jove amou, não lê nem topa,
Cobriu-se todo de pejo, Que ele amou vulgar donzela:
E fugiu-me com a mão. Lê que amou a Dânae bela,
Encontra que roubou a linda Europa.
Tu, Marília, agora vendo
De Amor o lindo retrato, Se amar uma beleza se desculpa
Contigo estarás dizendo, Em quem ao próprio Céu, e terra move:
Que é este o retrato teu. Qual é a minha glória, pois igualo,
Sim, Marília, a cópia é tua, Ou excedo no amor ao mesmo Jove?
Que Cupido é Deus suposto: Amou o Pai dos Deuses Soberano
Se há Cupido, é só teu rosto, Um semblante peregrino:
Que ele foi quem me venceu. Eu adoro o teu divino,
O teu divino rosto, e sou humano.

Lira III Lira IV

Marília, teus olhos


De amar, minha Marília, a formosura São réus, e culpados,
Não se podem livrar humanos peitos. Que sofra, e que beije
Adoram os heróis; e os mesmos brutos Os ferros pesados
Aos grilhões de Cupido estão sujeitos. De injusto Senhor.
Quem, Marília, despreza uma beleza, Marília, escuta
A luz da razão precisa; Um triste Pastor.
E se tem discurso, pisa
A lei, que lhe ditou a Natureza. Mal vi o teu rosto,
O sangue gelou-se,
Cupido entrou no Céu. O grande Jove A língua prendeu-se,
Uma vez se mudou em chuva de ouro; Tremi, e mudou-se
Outras vezes tomou as várias formas Das faces a cor.
De General de Tebas, velha, e touro. Marília, escuta
O próprio Deus da Guerra desumano Um triste Pastor.
Não viveu de amor ileso;
A vista furtiva, Falando com Laura,
O riso imperfeito, Marília dizia;
Fizeram a chaga, Sorria-se aquela,
Que abriste no peito, E eu conhecia
Mais funda, e maior. O erro de amor.
Marília, escuta Marília, escuta
Um triste Pastor. Um triste Pastor.

Dispus-me a servir-te; Movida, Marília,


Levava o teu gado De tanta ternura,
À fonte mais clara, Nos braços me deste
À vargem, e prado Da tua fé pura
De relva melhor. Um doce penhor.
Marília, escuta Marília, escuta
Um triste Pastor. Um triste Pastor.

Se vinha da herdade, Tu mesma disseste


Trazia dos ninhos Que tudo podia
As aves nascidas, Mudar de figura;
Abrindo os biquinhos Mas nunca seria
De fome ou temor. Teu peito traidor.
Marília, escuta Marília, escuta
Um triste Pastor. Um triste Pastor.

Se alguém te louvava, Tu já te mudaste;


De gosto me enchia; E a faia frondosa,
Mas sempre o ciúme Aonde escreveste
No rosto acendia A jura horrorosa,
Um vivo calor. Tem todo o vigor.
Marília, escuta Marília, escuta
Um triste Pastor. Um triste Pastor.

Se estavas alegre, Mas eu te desculpo,


Dirceu se alegrava; Que o fado tirano
Se estavas sentida, Te obriga a deixar-me;
Dirceu suspirava Pois basta o meu dano
À força da dor. Da sorte, que for.
Marília, escuta Marília, escuta
Um triste Pastor. Um triste Pastor.
Casado de dar-me
Os ais, que lhe dou.
Lira V São estes os sítios?
São estes; mas eu
Acaso são estes O mesmo não sou.
Os sítios formosos. Marília, tu chamas?
Aonde passava Espera, que eu vou.
Os anos gostosos?
São estes os prados, Aqui um regato
Aonde brincava, Corria sereno
Enquanto passava Por margens cobertas
O gordo rebanho, De flores, e feno:
Que Alceu me deixou? À esquerda se erguia
São estes os sítios? Um bosque fechado,
São estes; mas eu E o tempo apressado,
O mesmo não sou. Que nada respeita,
Marília, tu chamas? Já tudo mudou.
Espera, que eu vou. São estes os sítios?
São estes; mas eu
Daquele penhasco O mesmo não sou.
Um rio caía; Marília, tu chamas?
Ao som do sussurro Espera, que eu vou.
Que vezes dormia!
Agora não cobrem Mas como discorro?
Espumas nevadas Acaso podia
As pedras quebradas; Já tudo mudar-se
Parece que o rio No espaço de um dia?
O curso voltou Existem as fontes,
São estes os sítios? E os freixos copados;
São estes; mas eu Dão flores os prados,
O mesmo não sou. E corre a cascata,
Marília, tu chamas? Que nunca secou.
Espera, que eu vou. São estes os sítios?
Meus versos alegre São estes; mas eu
Aqui repetia: O mesmo não sou.
O eco as palavras Marília, tu chamas?
Três vezes dizia, Espera, que eu vou.
Se chamo por ele,
Já não me responde; Minha alma, que tinha
Parece se esconde, Liberta a vontade,
Agora já sente Se deixa conduzir do próprio gosto,
Amor, e saudade, Passo as horas contente
Os sítios formosos me agradaram, Notando as graças do teu lindo rosto.
Ah! Não se mudaram; Sem cansar-me a saber se o Sol se move;
Mudaram-se os olhos, Ou se a terra volteia, assim conheço
De triste que estou. Aonde chega o poder do grande Jove.
São estes os sítios?
São estes; mas eu Noto, gentil Marília, os teus cabelos.
O mesmo não sou. E noto as faces de jasmins, e rosas:
Marília, tu chamas? Noto os teus olhos belos,
Espera, que eu vou. Os brancos dentes, e as feições mimosas:
Quem faz uma obra tão perfeita, e linda,
Minha bela Marília, também pode
Lira VI Fazer os Céus, e mais, se há mais ainda.

Oh! Quanto pode em nós a vária Estrela!


Que diversos que são os gênios nossos! Lira VII
Qual solta a branca vela,
E afronta sobre o pinho os mares grossos; Vou retratar a Marília,
Qual cinge com a malha o peito duro, A Marília, meus amores;
E marchando na frente das coortes, Porém como? Se eu não vejo
Faz a torre voar, cair o muro. Quem me empreste as finas cores:
Dar-mas a terra não pode;
O sórdido avarento em vão defende Não, que a sua cor mimosa
Que possa o filho entrar no seu tesouro; Vence o lírio, vence a rosa,
Aqui fechado estende O jasmim, e as outras flores.
Sobre a tábua, que verga, as barras d’ouro. Ah! Socorre, Amor, socorre
Sacode o jogador do copo os dados; Ao mais grato empenho meu!
E numa noite só, que ao sono rouba, Voa sobre os Astros, voa,
Perde o resto dos bens, do pai herdados. Traze-me as tintas do Céu.

O que da voraz gula o vício adora, Mas não se esmoreça logo;


Da lauta mesa os seus prazeres fia. Busquemos um pouco mais;
E o terno Alceste chora Nos mares talvez se encontrem
Ao som dos versos, a que o gênio o guia. Cores, que sejam iguais.
O sábio Galileu toma o compasso, Porém não, que em paralelo
E sem voar ao Céu, calcula, e mede Da minha Ninfa adorada
Das Estrelas, e Sol o imenso espaço. Pérolas não valem nada,
E nada valem corais.
Enquanto pois, Marília, a vária gente . Ah! Socorre, Amor, socorre
Ao mais grato empenho meu! Todos amam: só Marília
Voa sobre os Astros, voa, Desta Lei da Natureza
Traze-me as tintas do Céu. Queria ter isenção?

Só no Céu achar-se podem Em torno das castas pombas,


Tais belezas, como aquelas, Não rulam ternos pombinhos?
Que Marília tem nos olhos, E rulam, Marília, em vão?
E que tem nas faces belas. Não se afagam c’os biquinhos?
Mas às faces graciosas, E a prova de mais ternura
Aos negros olhos, que matam, Não os arrasta a paixão?
Não imitam, não retratam Todos amam: só Marília
Nem Auroras, nem Estrelas. Desta Lei da Natureza
Ah! Socorre, Amor, socorre Queria ter isenção?
Ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os Astros, voa, Já viste, minha Marília,
Traze-me as tintas do Céu. Avezinhas, que não façam
Os seus ninhos no verão?
Entremos, Amor, entremos, Aquelas, com que se enlaçam,
Entremos na mesma Esfera, Não vão cantar-lhes defronte
Venha Palas, venha Juno, Do mole pouso, em que estão?
Venha a Deusa de Citera, Todos amam: só Marília
Porém não, que se Marília Desta Lei da Natureza
No certame antigo entrasse, Queria ter isenção?
Bem que a Páris não peitasse,
A todas as três vencera.
Vai-te, Amor, em vão socorres Se os peixes, Marília, geram
Ao mais grato empenho meu: Nos bravos mares, e rios,
Para formar-lhe o retrato Tudo efeitos de Amor são.
Não bastam tintas do Céu Amam os brutos impios,
A serpente venenosa,
A onça, o tigre, o leão.
Todos amam: só Marília
Lira VIII Desta Lei da Natureza
Queria ter isenção?
Marília, de que te queixas?
De que te roubou Dirceu As grandes Deusas do Céu
O sincero coração? Sentem a seta tirana
Não te deu também o seu? Da amorosa inclinação.
E tu, Marília, primeiro Diana, com ser Diana,
Não lhe lançaste o grilhão? Não se abrasa, não suspira
Pelo amor de Endimião? Tiram, Marília, os sucos saborosos
Todos amam: só Marília Das orvalhadas flores:
Desta Lei da Natureza Pendentes dos teus beijos graciosos
Queria ter isenção? O mel não chupam, chupam ambrosias
Nunca fartos Amores.
Desiste, Marília bela,
De uma queixa sustentada O Vento quando parte em largas fitas
Só na altiva opinião. As folhas, que meneia com brandura;
Esta chama é inspirada A fonte cristalina,
Pelo Céu; pois nela assenta Que sobre as pedras cai de imensa altura,
A nossa conservação. Não forma um som tão doce, como forma
Todos amam: só Marília A tua voz divina.
Desta Lei da Natureza
Não deve ter isenção. Em torno dos teus peitos, que palpitam,
Exaltam mil suspiros desvelados
Enxames de desejos;
Lira IX Se encontram os teus olhos descuidados,
Por mais que se atropelem, voam, chegam;
Eu sou, gentil Marília, eu sou cativo; E dão furtivos beijos.
Porém não me venceu a mão armada
De ferro, e de furor: O Cisne, quando corta o manso largo,
Uma alma sobre todas elevada Erguendo as brancas asas, e o pescoço;
Não cede a outra força, que não seja A Nau, que ao longe passa,
A tenra mão de amor. Quando o vento lhe infuna o pano grosso,
O teu garbo não tem, minha Marília,
Arrastem pois os outros muito embora Não tem a tua graça.
Cadeias nas bigornas trabalhadas
Com pesados martelos: Estima pois os mais a liberdade;
Eu tenho as minhas mão ao carro atadas Eu prezo o cativeiro: sim, nem chamo
Com duros ferros não, com fios d’ouro, À mão de amor impia:
Que são os teus cabelos. Honro a virtude, e os teus dotes amo:
Também o grande Aquiles veste a saia,
Oculto nos teus meigos vivos olhos Também Alcides fia.
Cupido a tudo faz tirana guerra:
Sacode a seta ardente;
E sendo despedida cá da terra, Lira X
As nuvens rompe, chega ao alto Empíreo:
E chega ainda quente. Se existe um peito,
Que isento viva
As abelhas nas asas suspendidas Da chama ativa,
Que acende Amor; A seta em vão.
Ah! Não habite
Neste montado, As suas faces
Fuja apressado São cor de neve;
Do vil traidor. E a boca breve
Só risos tem.
Corra, que o impio Mas, ah! respira
Aqui se esconde, Negros venenos,
Não sei aonde; Que nem ao menos,
Mas sei que o vi. Os olhos vêem.
Traz novas setas,
Arco robusto; Aljava grande
Tremi de susto, Dependurada,
Em vão fugi. Sempre atacada
De bons farpões.
Eu vou mostrar-vos, Fere com estas
Tristes mortais, Agudas lanças
Quantos sinais Pombinhas mansas,
O impio tem. Bravos leões.
Oh! Como pé justo
Que todo o humano Se a seta falta,
Um tal tirano Tem outra pronta,
Conheça bem! Que a dura ponta
Jamais torceu.
No corpo ainda Ninguém resiste
Menino existe; Aos golpes dela:
Mas quem resiste Marília bela
Ao braço seu? Foi quem lha deu.
Ao negro Inferno
Levou a guerra; Ah! Não sustente
Venceu a terra, Dura peleja
Venceu o Céu. O que deseja
Ser vencedor.
Jamais se cobrem Fuja, e não olhe,
Seus membros belos; Que só fugindo
E os seus cabelos De um rosto lindo
Que lindos são! Se vence Amor.
Vendados olhos,
Que tudo alcançam,
E jamais lançam
Lira XI Empresa maior;
Deixemos as ternas
Não toques, minha Musa, não, não toques Fadigas do Amor.
Na sonorosa Lira,
Que às almas, como a minha, namoradas Anima pois, ó Musa, o instrumento,
Doces canções inspira: Que a voz também levanto,
Assopra no clarim, que apenas soa, Porém tu deste muito acima o ponto,
Enche de assombro a terra! Dirceu não sobe tanto:
Naquele, a cujo som cantou Homero, Abaixa, minha Musa, o tom, qu’ergueste;
Cantou Virgílio a Guerra. Eu já, eu já te sigo.
Mas, ah! vou a dizer Herói, e Guerra,
Busquemos, ó Musa, E só MARÍLIA digo.
Empresa maior;
Deixemos as ternas Deixemos, ó Musa,
Fadigas do Amor. Empresa maior;
Só posso seguir-te
Eu já não vejo as graças, de que forma Cantando de Amor.
Cupido o seu tesouro;
Vivos olhos, e faces cor-de-rosa, Feres as cordas d’ouro? Ah! Sim, agora
Com crespos fios de ouro: Meu canto já se afina:
Meus olhos só vêem graças, e loureiros; E a humana voz parece que ao som delas
Vêem carvalhos, e palmas; Se faz também divina.
Vêem os ramos honrosos, que distinguem O mesmo, que cercou de muro a Tebas,
As vencedoras almas. Não canta assim tão terno;
Nem pode competir comigo aquele,
Busquemos, ó Musa, Que desceu ao negro Inferno.
Empresa maior;
Deixemos as ternas Deixemos, ó Musa,
Fadigas do Amor. Empresa maior;
Só posso seguir-te
Cantemos o herói, que já no berço Cantando de Amor.
As serpes despedaça;
Que fere os Cacos, que destrona as hidras; Mal repito MARÍLIA, as doces aves
Mais os leões, que abraça. Mostram sinais de espanto;
Cantemos, se isto é pouco, a dura guerra Erguem os colos, voltam as cabeças,
Dos Titães, e Tifeus, Param o ledo canto:
Que arrancam as montanhas, e atrevidos Move-se o tronco, o vento se suspende;
Levam armas aos Céus. Pasma o gado, e não come:
Quanto podem meus versos! Quanto pode
Busquemos, ó Musa, Só de Marília o nome!
Nos pés, que alarga,
Deixemos, ó Musa, Se firma em vão.
Empresa maior;
Só posso seguir-te Mal o derrubo,
Cantando de Amor. Ferro aguçado
No já cansado
Peito, que arqueja,
Mil golpes deu.
Lira XII Suou seu rosto;
Tremeu gemendo;
Topei um dia E a cor perdendo,
Ao Deus vendado, Bateu as asas;
Que descuidado Enfim morreu.
Não tinha as setas
Na impia mão. Qual bravo Alcides,
Mal o conheço, Que a hirsuta pele
Me sobe logo Vestiu daquele
Ao rosto o fogo, Grenhoso bruto,
Que a raiva acende A quem matou;
No coração. Para que prove
A empresa honrada,
“Morre, tirano; Co’a mão manchada
Morre, inimigo.” Recolho as setas,
Mal isto digo, Que me deixou.
Raivoso o aperto
Nos braços meus. Ouviu Marília
Tanto que o moço Que Amor gritava;
Sente apertar-se, E como estava
Para salvar-se Vizinha ao sítio
Também me aperta Valer-lhe vem.
Nos braços seus. Mas quando chega
Espavorida,
O leve corpo Nem já de vida
Ao ar levanto; O fero monstro
Ah! e com quanto Indício tem.
Impulso o trago
Do ar ao chão! Então, Marília,
Pôde suster-se Que o vê de perto
A vez primeira; De pó coberto,
Mas à terceira E todo envolto
No sangue seu, Zomba do assalto
As mãos aperta Do vil traidor.
No peito brando,
E aflita dando O amante de Hero
Um ai, os olhos Da luz guiado,
Levanta ao Céu. C’o peito ousado
Na escura noite
Chega-se a ele Rompia o mar.
Compadecida; Se o Helesponto
Lava a ferida Se encapelava,
C’o prato amargo, Ah! não deixava
Que derramou. De lhe ir falar.
Então o monstro
Dando um suspiro, Do Cantor Trácio
Fazendo um giro A herocidade
Co’a baça vista, Esta verdade,
Ressuscitou. Minha Marília,
Prova também.
Respira a Deusa; Cheio de esforço
E vem o gosto Vai ao Cocito
Fazer no rosto Buscar aflito,
O mesmo efeito, Seu doce bem.
Que fez a dor.
Que louca idéia Que ação tão grande
Foi, a que tive! Nunca intentada!
Enquanto vive Ao pé da entrada
Marília bela, Já tudo assusta
Não morre Amor. O coração:
Pendentes rochas,
Campos adustos,
Nem ervas dão.
Lira XIII
Na funda fralda
Oh! quantos riscos, De calvo monte,
Marília bela, Corre Aqueronte,
Não atropela Rio de ardente,
Quem cego arrasta Mortal licor.
Grilhões de Amor! Tem o barqueiro
Um peito forte, Testa enrugada,
De acordo falto, Vista inflamada,
Que mete horror.
Tem outro o peito
Que seguranças! Despedaçado:
Que fechaduras! Monstro esfaimado
As portas duras Jamais descansa
Não são de lenhos; De lho roer.
De ferro são. A roxa carne,
Por três gargantas, Que o abutre come,
Quando alguém bate, Não se consome,
Raivoso late Torna a crescer.
O negro cão.
Mas bem que tudo
Dentro da cova Pavor inspira,
Soam lamentos; Tocando a lira
Não mostra aos olhos Desce ao Averno
A escassa luz! O bom Cantor.
Minos a pena Não se entorpece
Manda se intime A língua, e braço;
Igual ao crime, Não treme o passo,
Que ali conduz. Não perde a cor.

Grande penedo Ah! também quanto


Este carrega; Dirceu obrara,
E apenas chega Se precisara
Do monte ao cume, Marília bela
O faz rolar. De esforço seu!
A pedra sempre Rompera os mares
Ao vele desce, C’o peito terno,
Sem que ele cesse Fora ao Inferno,
De a ir buscar. Subira ao Céu.

Nas limpas águas Aos dois amantes


Habita aquele: De Trácia, e Abido
Por cima dele Não deu Cupido
Verdejam ramos, Do que aos mais todos
Que pomos dão. Maior valor.
Debalde a boca Por seus vassalos
Molhar pretende. Forças reparte,
Debalde estende Como lhes parte
Faminta mão. Os graus de Amor.
Com os anos, Marília, o gosto falta,
Lira XIV E se entorpece o corpo já cansado;
triste o velho cordeiro está deitado,
e o leve filho sempre alegre salta.
Minha bela Marília, tudo passa; A mesma formosura
A sorte deste mundo é mal segura; É dote, que só goza a mocidade:
Se vem depois dos males a ventura, Rugam-se as faces, o cabelo alveja,
Vem depois dos prazeres a desgraça. Mal chega a longa idade.
Estão os mesmos Deuses
Sujeitos ao poder impio Fado: Que havemos de esperar, Marília bela?
Apolo já fugiu do Céu brilhante, Que vão passando os florescentes dias?
Já foi Pastor de gado. As glórias, que vêm tarde, já vêm frias;
E pode enfim mudar-se a nossa estrela.
A devorante mão da negra Morte Ah! Não, minha Marília,
Acaba de roubar o bem, que temos; Aproveite-se o tempo, antes que faça
Até na triste campa não podemos O estrago de roubar ao corpo as forças
Zombar do braço da inconstante sorte. E ao semblante a graça.
Qual fica no sepulcro,
Que seus avós ergueram, descansado;
Qual no campo, e lhe arranca os brancos ossos Lira XV
Ferro do torto arado.
A minha bela Marília
Ah! enquanto os Destinos impiedosos Tem de seu um bom tesouro;
Não voltam contra nós a face irada, Não é, doce Alceu, formado
Façamos, sim façamos, doce amada, Do buscado
Os nossos breves dias mais ditosos. Metal louro.
Um coração, que frouxo É feito de uns alvos dentes,
A grata posse de seu bem difere, É feito de uns olhos belos,
A si, Marília, a si próprio rouba, De umas faces graciosas,
E a si próprio fere. De crespos, finos cabelos;
E de outras graças maiores,
Ornemos nossas testas com as flores. Que a natureza lhe deu:
E façamos de feno um brando leito, Bens, que valem sobre a terra
Prendamo-nos, Marília, em laço estreito, E que têm valor no Céu.
Gozemos do prazer de sãos Amores.
Sobre as nossas cabeças, Eu posso romper os montes,
Sem que o possam deter, o tempo corre; Dar às correntes espaçosos
E para nós o tempo, que se passa, Nos caudosos
Também, Marília, morre. Turvos rios.
Posso emendar a ventura Eu, Glauceste, não duvido
Ganhando astuto a riqueza; Ser a tua Eulina amada
Mas, ah! caro Alceu, quem pode Pastora formosa,
Ganhar uma só beleza Pastora engraçada,
Das belezas, que Marília Vejo a sua cor-de-rosa,
No seu tesouro meteu? Vejo o seu olhar divino,
Bens, que valem sobre a terra, Vejo os seus purpúreos beiços,
E que têm valor no Céu. Vejo o peito cristalino;
Nem há coisa, que assemelhe
Da sorte que vive o rico Ao crespo cabelo louro.
Entre o fausto alegremente, Ah! que a tua Eulina vale,
Vive o guardador do gado Vale um imenso tesouro!
Apoucado,
Mas contente. Ela vence muito, e muito
Beije pois torpe avarento À laranjeira copada,
As arcas de barras cheias: Estando de flores,
Eu não beijo os vis tesouros, E de frutos ornada.
Beijo as douradas cadeias, É, Glauceste, os teus Amores;
Beijo as setas, beijo as armas E nem por outra Pastora,
Com que o cego Amor venceu: Que menos dotes tivera,
Bens, que valem sobre a terra, Ou que menos bela fora,
E que têm valor no Céu. O meu Glauceste cansara
As divinas cordas de ouro.
Ama Apolo, e o fero Marte; Ah! que a tua Eulina vale,
Ama, Alceu, o mesmo Jove: Vale um imenso tesouro!
Não é, não, a vã riqueza,
Sim beleza, Sim, Eulina é uma Deusa;
Quem os move. Mas anima a formosura
Posto ao lado de Marília De uma alma de fera;
Mais que mortal me contemplo: Ou inda mais dura.
Deixo os bens, que aos homens cegam, Ah! quando Dirceu pondera
Sigo dos Deuses o exemplo: Que o seu Glauceste suspira,
Amo virtudes, e dotes; Perde, perde o sofrimento,
Amo enfim, prezado Alceu, E qual enfermo delira!
Bens, que valem sobre a terra, Tenha embora brancas faces,
E que têm valor no Céu. Meigos olhos, fios de ouro,
A tua Eulina não vale,
Não vale imenso tesouro.
Lira XVI
O fuzil, que imita a cobra,
Também aos olhos é belo: Eu sei, Marília,
Mas quando alumeia, Que outra Pastora
Tu tremes de vê-lo. A toda hora,
Que importa se mostra cheia Em toda a parte
De mil belezas a ingrata? Cega namora
Não se julga formosura Ao teu Pastor.
A formosura, que mata. Há sempre fumo
Evita, Glauceste, evita Aonde há fogo:
O teu estrago, e desdouro; Assim, Marília,
A tua Eulina não vale, Há zelos, logo
Não vale imenso tesouro. Que existe amor.

A minha Marília quanto Olha, Marília,


À natureza não deve! Na fonte pura
Tem divino rosto, A tua alvura,
E tem mãos de neve. A tua boca,
Se mostro na face o gosto, E a compostura
Ri-se Marília contente; Das mais feições.
Se canto, canta comigo, Quem tem teu rosto
E apenas triste me sente, Ah! não receia
Limpa os olhos com as tranças Que terno amante
De fino cabelo louro. Solte a cadeia,
A minha Marília vale, Quebre os grilhões.
Vale um imenso tesouro.
Não anda Laura
Nestas campinas
Lira XVII Sem as boninas
No seu cabelo,
Minha Marília, Sem peles finas
Tu enfadada? No seu jubão.
Que mão ousada Porém que importa?
Perturbar pode O rico asseio
A paz sagrada Não dá, Marília,
Do peito teu? Ao rosto feio
Porém que muito A perfeição.
Que irado esteja
O teu semblante! Quando apareces
Também troveja Na madrugada,
O claro Céu. Mal embrulhada
Na larga roupa,
E desgrenhada Não se levanta,
Sem fita, ou flor; Não vai sentar-se
Ah! que então brilha Ao lado teu?
A natureza!
Estão se mostra Quando um por outro
Tua beleza Na rua passa,
Inda maior. Se ela diz graça,
Ou muda o gesto,
O Céu formoso, Esta negaça
Quando alumia Faz-lhe impressão?
O Sol de dia, Se está fronteira,
Ou estrelado E brandamente
Noa noite fria, Lhe fita os olhos,
Parece bem. Não põe prudente
Também tem graça Os seus no chão?
Quando amanhece; Deixa o ciúme,
Até, Marília, Que te desvela:
Quando anoitece Marília bela,
Também a tem. Nunca receies
Dano daquela
Que tens, Marília, Que igual não for.
Que ela suspire! Que mais desejas?
Que ela delire! Tens lindo aspecto;
Que corra os vales! Dirceu se alenta
Que os montes gire De puro afeto,
Louca de amor! E pundonor.
Ela é que sente
Esta desdita,
E na repulsa Lira XVIII
Mais se acredita
O teu Pastor. Não vês aquele velho respeitável
Que à muleta encostado
Quando há, Marília, Apenas mal se move, e mal se arrasta?
Alguma festa Oh! quanto estrago não lhe fez o tempo!
Lá na floresta, O tempo arrebatado,
(Fala a verdade) Que o mesmo bronze gasta.
dança com esta
o bom Dirceu? Enrugaram-se as faces, e perderam
E se ela o busca, Seus olhos a viveza;
Vendo buscar-se Voltou-se o seu cabelo em branca neve:
Já lhe treme a cabeça, a mão, o queixo, Meu corpo suportando
Não tem uma beleza Do tempo desumano a dura guerra.
Das belezas, que teve. Contente morrerei, por ser Marília
Quem sentida chorando
Assim também serei, minha Marília, Meus braços olhos cerra.
Daqui a poucos anos;
Que o impio tempo para todos corre.
Os dentes cairão, e os meus cabelos, Lira XIX
Ah! sentirei os danos,
Que evita só quem morre. Enquanto pasta alegre o manso gado,
Minha bela Marília, nos sentemos
Mas sempre passarei uma velhice À sombra deste cedro levantado.
Muito menos penosa. Um pouco meditemos
Não trarei a muleta carregada: Na regular beleza,
Descansarei o já vergado corpo Que em tudo quanto vive, nos descobre
Na tua mão piedosa, A sábia natureza.
Na tua mão nevada.
Atende, como aquela vaca preta
Nas frias tardes, em que negra nuvem O novilhinho seu dos mais separa,
Os chuveiros não lance, E o lambe, enquanto chupa a lisa teta.
Irei contigo ao prado florescente: Atende mais, ó cara,
Aqui me buscarás um sítio ameno; Como a ruiva cadela
Onde os membros descanse, Suporta que lhe morda o filho o corpo,
E o brando sol me aquente. E salte em cima dela.

Apenas me sentar, então movendo Repara, como cheia de ternura


Os olhos por aquela Entre as asas ao filho essa ave aquenta,
Vistosa parte, que ficar fronteira; Como aquela esgravata a terra dura,
Apontando direi: “Ali falamos, E os seus assim sustenta;
“Ali, ó minha bela, Como se encoleriza,
“Te vi a vez primeira.” E salta sem receio a todo o vulto,
Que junto deles pisa.
Verterão os meus olhos duas fontes,
Nascidas de alegria: Que gosto não terá a esposa amante,
Farão teus olhos ternos outro tanto: Quando der ao filhinho o peito brando,
Então darei, Marília, frios beijos E refletir então no seu semblante!
Na mão formosa, e pia, Quando, Marília, quando
Que me limpar o pranto. Disser consigo: “É esta
“De teu querido pai a mesma barba,
Assim irá, Marília, docemente “A mesma boca, e testa.”
Mal viu a rotura,
Que gosto não terá a mãe, que toca, E o sangue espargido,
Quando o tem nos seus braços, c’o dedinho Que a Deusa mostrou;
Nas faces graciosas, e na boca Risonho beijando
Do inocente filhinho! O dedo ofendido,
Quando, Marília bela, Assim lhe falou:
O tenro infante já com risos mudos
Começa a conhecê-la! “Se tu por não tão pouco
“O pranto desatas,
Que prazer não terão os pais ao verem “Ah! dá-me atenção;
Com as mães um dos filhos abraçados; “E como daquele,
Jogar outros luta, outros correrem “Que feres, e matas,
Nos cordeiros montados! “Não tens compaixão?”
Que estado de ventura!
Que até naquilo, que de peso serve, Lira XXI
Inspira Amor, doçura.
Não sei, Marília, que tenho,
Lira XX Depois que vi o teu rosto;
Pois quanto não é Marília,
Era uma frondosa Já não posso ver com gosto.
Roseira se abria Noutra idade me alegrava,
Um lindo botão. Até quando conversava
Marília formosa Com o mais rude vaqueiro:
O pé lhe torcia Hoje, ó Bela, me aborrece
Com a branca mão. Inda o trato lisonjeiro
Do mais discreto pastor
Nas folhas viçosas Que efeitos são os que sinto?
A abelha enraivada Serão efeitos de Amor?
O corpo escondeu.
Tocou-lhe Marília, Saio da minha cabana
Na mão descuidada Sem reparar no que faço:
A fera mordeu. Busco o sítio aonde moras,
Suspendo defronte o passo.
Apenas lhe morde, Fito os olhos na janela,
Marília gritando, Aonde, Marília bela,
C’o dedo fugiu. Tu chegas ao fim do dia;
Amor, que no bosque Se alguém passa, e te saúda,
Estava brincando, Bem que seja cortesia,
Aos ais acudiu. Se acende na face a cor.
Que efeitos são os que sinto?
Serão os efeitos de Amor?

Se estou, Marília, contigo, Lira XXII


Não tenho um leve cuidado;
Nem me lembra se são horas Muito embora, Marília, muito embora
De levar à fonte o gado. Outra beleza, que não seja a tua,
Se vivo de ti distante, Com avermelha roda, a seis puxada,
Ao minuto, ao breve instante Faça tremer a rua.
Finge um dia o meu desgosto:
Jamais, Pastora, te vejo As paredes da sala, aonde habita,
Que em seu semblante composto Adorne a seda, e o tremó dourado;
Não veja graça maior. Pendam largas cortinas, penda o lustre
Que efeitos são os que sinto? Do teto apainelado.
Serão os efeitos de Amor?
Tu não habitarás palácios grande,
Ando já com o juízo, Nem andarás no coches voadores;
Marília, tão perturbado, Porém terás um Vate, que te preze,
Que no mesmo aberto sulco Que cante os teus louvores.
Meto de novo o arado.
Aqui no centeio pego, O tempo não respeita a formosura;
Noutra parte em vão o sego: E da pálida morte a mão tirana
Se alguém comigo conversa, Arrasa os edifícios dos Augustos,
Ou não respondo, ou respondo E arrasa a vil choupana.
Noutra coisa tão diversa,
Que nexo não tem menor. Que belezas, Marília, floresceram,
Que efeitos são os que sinto? De quem nem sequer temos a memória!
Serão os efeitos de Amor? Só podem conservar um nome eterno
Os versos, ou a história.
Se geme o bufo agoureiro,
Só Marília me desvela, Se não houvesse Tasso, nem Petrarca,
Enche-se o peito de mágoa, Por mais que qualquer delas fosse linda,
E não sei a causa dela. Já não sabia o mundo, se existiram
Mal durmo, Marília, sonho Nem Laura, nem Clorinda.
Que fero leão medonho
Te devora nos meus braços: É melhor, minha Bela, ser lembrada
Gela-se o sangue nas veias, Por quantos hão de vir sábios humanos,
E solto do sono os laços Que ter urcos, ter coches, e tesouros,
À força da imensa dor. Que morrem com os anos.
Ah! que os efeitos, que sinto,
Só são efeitos de Amor.
Lira XXIII “Zombando rias?

Num sítio ameno “Quando num peito


Cheio de rosas, “Assento faço,
De brancos lírios, “Do peito subo
Murtas viçosas; “À língua, e braço.

Dos seus amores “Nem creias que outro


Na companhia “Estilo tome,
Dirceu passava “Sendo eu o mestre,
Alegre o dia. “A ação teu nome.”

Em tom de graça
Ao terno amante Lira XXIV
Manda Marília
Que toque, e cante. Encheu, minha Marília, o grande Jove
De imensos animais de toda a espécie
Pega na lira, As terras, mais os ares,
Sem que a tempere, O grande espaço dos salobros, rios,
A voz levanta, Dos negros, fundos mares,
E as cordas fere. Para sua defesa,
A todos deu as armas, que convinha
C’os doces pontos A sábia natureza.
A mão atina,
E a voz iguala Deu as asas aos pássaros ligeiros,
À voz divina. Deu ao peixe escamoso as barbatanas;
Deu veneno à serpente,
Ela, que teve Ao membrudo elefante a enorme tromba,
De rir-se a idéia, E ao javali o dente.
Nem move os olhos Coube ao leão a garra;
De assombro cheia: Com leve pé saltando o cervo foge;
E o bravo touro marra.
Então cupido
Aparecendo, Ao homem deu as armas do discurso,
À Bela fala Que valem muito mais que as outras armas;
Assim dizendo: Deu-lhe dedos ligeiros,
Que podem converter em seu serviço
“Do teu amado Os ferros, e os madeiros;
“A lira fias, Que tecem fortes laços,
“Só porque dele E forjam raios, com que aos brutos cortam
Os vôos, mais os passos. As setas mais aguçadas,
Como se em rocha batessem,
Às tímidas donzelas pertenceram Dão no peito seu, e descem
Outras armas, que têm dobrada força, Todas quebradas ao chão.
Deu-lhes a Natureza Só as graças de Marília
Além do entendimento, além dos braços Podem vencer um tão duro,
As armas da beleza. Tão isento coração.
Só ela ao Céu se atreve;
Só ela mudar pode o gelo em fogo, A fortuna desta empresa
Mudar o fogo em neve. Consiste em armar-se o laço,
Sem que sinta ser o braço,
Eu vejo, eu vejo ser a formosura, Que lho prepara, de Amor:
Quem arrancou da mão de Coriolano Que ele vive como as aves,
A cortadora espada. Que já deixaram as penas
Vejo que foi de Helena o lindo rosto, No visco do caçador.
Quem pôs em campo armada
Toda a força da Grécia. Na força deste conselho
E quem tirou o cetro aos reis de Roma? O raivoso Deus sossega,
Só foi, só foi Lucrécia. E à tropa a honra entrega
De o fazer executar.
Se podem lindos rostos, mal suspiram, Todos pretendem ganhá-la;
O braço desarmar do mesmo Aquiles; Batem as asas ligeiros,
Se estes rostos irados E vão as armas buscar.
Podem soprar o fogo da discórdia
Em povos aliados; Os primeiros se ocultaram
És árbitra da terra: Da Deusa nos olhos belos:
Tu podes dar, Marília, a todo o mundo Qual se enlaçou nos cabelos,
A paz, e a dura guerra. Qual às faces se prendeu.
Um amorinho cansado
Caiu dos lábios ao seio,
Lira XXV E nos peitos se escondeu.

O cego Cupido um dia Outro Gênio mais astuto


Com os seus Gênios falava Este novo ardil alcança,
Do modo, que lhe restava Muda-se numa criança
De cativar a Dirceu. De divino parecer.
Depois de larga disputa, Esconde as asas, e a venda;
Um dos Gênios mais sagazes Esconde as setas, e quanto
Este conselho lhe deu: Pode dá-lo a conhecer.
Ela que vê um menino Apenas do brando peito
Todo de graças coberto, Lhe tocou a neve fria,
Tão risonho, e tão esperto Com o calor, que trazia,
Ali sozinho brincar, Lhe abrasou o coração.
A ele endireita os passos; Dá o Pastor um suspiro,
Finge Amor ter medo, e a Deusa Abre os seus olhos, e solta
Mais que empenha em lhe pegar. Do apertado ouvido a mão.

Ela corria chamando; Logo que viram os Gênios


Ele fugia, e chorava: Ao triste Pastor disposto
Assim foram onde estava Para ver o lindo rosto,
O descuidado Pastor. Para as palavras ouvir,
Este, mal viu a beleza, Cada um as armas toma,
E o gentil menino, entende Cada um com elas busca
A malícia do traidor. Seu terno peito ferir.

Põe as mãos sobre os ouvidos, Com os cabelos da Deusa


Cerra os olhos, e constante Lhe forma um Cupido laços,
Não quer ver o seu semblante, Que lhe seguram os braços,
Não o quer ouvir falar. Como se fossem grilhões.
Qual Ulisses noutra idade O Pastor já não resiste;
Para iludir as Sereias Antes beija satisfeito
Mandou tambores tocar. As suas doces prisões.

Cupido, que a empresa via,


Julga o intento frustrado, Lira XXVI
E de raiva transportado
O corpo na chão lançou. O destro Cupido um dia
Traçou a língua nos dentes; Extraiu mimosas cores
Meteu as unhas no rosto, De frescos lírios, e rosas,
E os cabelos arrancou. De jasmins, e de outras flores.

O Gênio, que se escondia Com as mais delgadas penas


Entre os peitos da Pastora, Usa de uma, e de outra tinta,
Ergueu a cabeça fora, E nos ângulos do cobre
E o sucesso conheceu. A quatro belezas pinta.
Deixa o sossego em que estava,
E vai ligeiro meter-se Por fazer pensar a todos
No peito do bom Dirceu. No seu liso centro escreve
Um letreiro, que pergunta:
“Este espaço a quem se deve?” E despovoa a terra
Também o mau tirano.
Vênus, que viu a pintura, Consiste o ser herói em viver justo:
E leu a letra engenhosa, E tanto pode ser herói pobre,
Pôs por baixo “Eu dele cedo; Como o maior Augusto.
“Dê-se a Marília formosa.”
Eu é que sou herói, Marília bela,
Segundo da virtude a honrosa estrada:
Lira XXVII Ganhei, ganhei um trono,
Ah! não manchei a espada,
Alexandre, Marília, qual o rio, Não roubei ao dono.
Que engrossando no inverno tudo arrasa, Ergui-o no teu peito, e nos teus braços:
Na frente das coortes E valem muito mais que o mundo inteiro
Cerca, vence, abrasa Uns tão ditosos laços.
As cidades mais fortes.
Foi na glória das armas o primeiro; Aos bárbaros, injustos vencedores
Morreu na flor dos anos, e já tinha Atormentam remorsos, e cuidados;
Vencido o mundo inteiro. Nem descansam seguros
Nos palácios cercados
Mas este bom soldado, cujo nome De tropa, e de altos muros.
Não há poder algum, que não abata, E a quantos nos não mostra a sábia história
Foi, Marília, somente A quem mudou o Fado em negro opróbrio
Um ditoso pirata, A mal ganhada glória.
Um salteador valente.
Se não tem uma fama baixa, e escura, Eu vivo, minha Bela, sim, eu vivo
Foi por se pôr ao lado da injustiça Nos braços do descanso, e mais do gosto:
A insolente ventura. Quando estou acordado
Contemplo no teu rosto
O grande César, cujo nome voa, De graças adornado:
À sua mesma Pátria a fé quebranta; Se durmo, logo sonho, e ali te vejo.
Na mão a espada toma, Ah! nem desperto, nem dormindo sobe
Oprime-lhe a garganta, A mais o meu desejo.
Dá Senhores a Roma.
Consegue ser herói por um delito; Lira XXVIII
Se acaso não vencesse, então seria
Um vil traidor proscrito. Cupido tirando
Dos ombros a aljava
O ser herói, Marília, não consiste Num campo de flores
Em queimar os Impérios: move a guerra, Contente brincava.
Espalha o sangue humano,
E o corpo tenrinho (Astuto o moço dizia)
Depois, enfadado, “Já perto da morte estava,
Incauto reclina “Inda de amores cantava;
Na relva do prado. “Por isso alegre vivia.

Marília formosa, “Aos negros, duros pesares


Que ao Deus conhecia, “Não resiste um peito fraco
Oculta espreitava “Se o amor o não fortalece:
Quanto ele fazia. “O mesmo Jove carece
“De Cupido, e mais de Baco.”
Mal julga que dorme
Se chega contente, Eu lhe respondo: “Perjuro,
As armas lhe furta, “Nada creio do que dizes;
E o Deus a não sente. “Porque já te fui sujeito,
“Inda conservo no peito
Os Faunos, mal viram “Estas frescas cicatrizes.
As armas roubadas,
Saíram das grutas “Se o mundo conhece males,
Soltando risadas. “Tu os maiores fizeste,
“Sim, tu a Tróia queimaste,
Acorda Cupido, “Tu a Cartago abrasaste,
E a causa sabendo, “E tu a Antônio perdeste.”
A quantos o insultam
Responde, dizendo: Amor, vendo que da oferta
Algum apreço não faço,
“Temíeis as setas Me diz afoito que trate
“Nas minhas mãos cruas! De ir com ele a combate
“Vereis o que podem Peito a peito, braço a braço.
“Agora nas suas.”
Vou buscar as minhas armas;
Cinjo primeiro que tudo
Lira XXIX O brilhante arnês, e à pressa
Ponho um elmo na cabeça,
O tirano Amor risonho Tomo a lança, e o grosso escudo.
Me aparece e me convida
Para que seu jugo aceite; Mal no campo me apresento,
E quer que eu passe em deleite Marília (oh Céus!) me aparece:
O resto da triste vida. Logo que os olhos me fita,
O meu coração palpita,
“O sonoro Anacreonte A minha mão desfalece.
Do Deus de amor,
Então me diz o tirano: Que tanto inflama
“Confessa, louco, o teu erro; A mente, o peito
“Contra as armas da beleza Do teu Pastor.
“Não vale a externa defesa
“Dessa armadura de ferro.” Em vão se viram
Perlas mimosas,
Jasmins, e rosas
Lira XXX No rosto teu.
Em vão terias
Junto a uma clara fonte Essas estrelas,
A mãe de Amor s assentou, E as tranças belas,
Encostou na mão o rosto, Que o Céu te deu;
No leve sono pegou. Se em doce versos
Não as cantasse
Cupido, que a viu de longe, O bom Dirceu.
Contente ao lugar correu;
Cuidando que era Marília O voraz tempo
Na face um beijo lhe deu. Ligeiro corre:
Com ele morre
Acorda Vênus irada: A perfeição.
Amor a conhece; e então Essa, que o Egito
Da ousadia, que teve, Sábia modera,
Assim lhe pede o perdão: De Marco impera
No coração;
“Foi fácil, ó Mãe formosa, Mas já Otávio
“Foi fácil o engano meu; Não sente a força
“Que o semblante de Marília Do seu grilhão.
“É todo o semblante teu.”
Ah! vem, ó Bela,
E o teu querido,
Lira XXXI Ao Deus Cupido
Louvores dar;
Minha Marília, Pois faz que todos
Se tens beleza, Com igual sorte
Da Natureza Do tempo, e morte
É um favor. Possam zombar:
Mas se aos vindouros Tu por formosa,
Teu nome passa, E ele, Marília,
É só por graça Por te cantar.
Teu nome for:
Mas ai! Marília, Mostrando Jove
Que de um amante, Graça extremosa,
Por mais que cante, Mudando a Esposa
Glória não vem! De inveja a cor;
Amor se pinta De todos há de,
Menino, e cego: Voltando o rosto,
No doce emprego Sorrir-se Amor.
Do caro bem
Não vê defeitos, Ah! não se manche
E aumenta quantas Teu brando peito
Belezas tem. Do vil defeito
Da ingratidão:
Nenhum dos Vates, Os versos beija,
Em teu conceito, Gentil Pastora,
Nutriu no peito A pena adora,
Néscia paixão? Respeita a mão,
Todas aquelas, A mão discreta,
Que vês cantadas, Que te segura
Foram dotadas A duração.
De perfeição?
Foram queridas;
Porém formosas Lira XXXII
Talvez que não.
Num noite sossegado
Porém que importa Velhos papéis revolvia,
Não valha nada E por ver de que tratavam
Seres cantada Um por um a todos lia.
Do teu Dirceu?
Tu tens, Marília, Eram cópias emendadas,
Cantor celeste; De quantos versos melhores
O meu Glauceste Eu compus na tenra idade
A voz ergueu; A meus diversos amores.
Irá teu nome
Aos fins da terra, Aqui leio justas queixas
E ao mesmo Céu. Contra a ventura formadas,
Leio excessos mal aceitos,
Quando nas asas Doces promessas quebradas.
Do leve vento
Ao firmamento Vendo sem-razões tamanhas
Eu exclamo transportado: Manda que os lance nas brasas;
“Que finezas tão mal-feitas! E ergue a chama c’o vento,
“Que tempo tão mal passado!” Que formou batendo as asas.

Junto pois num grande monte Lira XXXIII


Os soltos papéis, e logo,
Porque relíquias não fiquem, Pega na lira sonora,
Os intento pôr no fogo. Pega, meu caro Glauceste;
E ferindo as cordas de ouro,
Então vejo que o Deus cego Mostra aos rústicos Pastores
Com semblante carregado A formosura celeste
Assim me fala, e crimina De Marília, meus amores.
O meu intento acertado: Ah! pinta, pinta
A minha Bela!
“Queres queimar esses versos? E em nada a cópia
“Dize, Pastor atrevido, Se afaste dela.
“Essas Liras não te foram
“Inspiradas por Cupido? Que concurso, meu Glauceste,
Que concurso tão ditoso!
“Achas que de tais amores Tu és digno de cantares
“Não deve existir memória? O seu semblante divino;
“Sepultando esses triunfos, E o teu canto sonoroso
“Não roubas a minha glória?” Também do seu rosto é digno.
Ah! pinta, pinta
Disse Amor; e mal se cala, A minha Bela!
Nos seus ombros a mão pondo, E em nada a cópia
Com um semblante sereno Se afaste dela.
Assim à queixa respondo:
Para pintares ao vivo
“Depois, Amor, de me dares As suas faces mimosas,
“A minha Marília bela, A discreta natureza
“Devo guardar umas liras, Que providência não teve!
“Que não são em honra dela? Criou no jardim as rosas,
Fez o lírio, e fez a neve.
“E que importa, Amor, que importa, Ah! pinta, pinta
“Que a estes papéis destrua; A minha Bela!
“Se é tua esta mão, que os rasga, E em nada a cópia
“Se a chama, que os queima, é tua?” Se afaste dela.

Apenas Amor me escuta A pintar as negras tranças


Peço que mais te desveles, Se afaste dela.
Pinta chusmas de amorinhos
Pelos seus fios trepando; Pinta mais, prezado amigo,
Uns tecendo cordas deles, Um terno amante beijando
Outros com eles brincando. Suas douradas cadeias;
Ah! pinta, pinta E em doce pranto desfeito,
A minha Bela! Ao monte, que temo no peito.
E em nada a cópia Ah! pinta, pinta
Se afaste dela. A minha Bela!
E em nada a cópia
Se afaste dela.
Para pintares, Glauceste,
Os seus beiços graciosos, Nem suspendas o teu canto,
Entre as flores tens o cravo, Inda que, Pastor, se veja
Entre as pedras a granada, Que a minha boca suspira,
E para os olhos formosos, Que se banha em pranto o rosto;
A estrela da madrugada. Que os outros choram de inveja,
Ah! pinta, pinta E chora Dirceu de gosto.
A minha Bela! Ah! pinta, pinta
E em nada a cópia A minha Bela!
Se afaste dela. E em nada a cópia
Se afaste dela.
Mal retratares do rosto
Quanto julgares preciso,
Não dês a cópia por feita; PARTE II
Passa o outros dotes, passa,
Pinta da vista, e do riso Lira I
A modéstia, mais a graça.
Ah! pinta, pinta Já não cinjo de louro a minha testa;
A minha Bela! Nem sonoras canções o Deus me inspira:
E em nada a cópia Ah! que nem me resta
Se afaste dela. Uma já quebrada,
Mal sonora Lira!
Os seus pés, quando passeiam,
Pisando ternos amores; Mas neste mesmo estado, em que me vejo,
E as mesmas plantas calcadas Pede, Marília, Amor que vá cantar-te:
Brotando viçosas flores. Cumpro o seu desejo;
Ah! pinta, pinta E ao que resta supra
A minha Bela! A paixão, e a arte.
E em nada a cópia
A fumaça, Marília, da candeia, E são bons Pintores.
Que a molhada parede ou suja, ou pinta,
Bem que tosca, e feia, Mal meus olhos te riam, ah! nessa hora
Agora me pode Teu retrato fizeram, e tão forte,
Ministrar a tinta. Que entendo, que agora
Só pode apagá-lo
Aos mais preparos o discurso apronta: O pulso da Morte.
Ele me diz, que faça do pé de uma
Má laranja ponta, Isto escrevia, quando, ó Céus, que vejo!
E dele me sirva Descubro a ler-me os versos o Deus louro:
Em lugar de pluma. Ah! dá-lhes um beijo,
E diz-me que valem
Perder as úteis horas não, não devo; Mais que letras de ouro.
Verás, Marília, uma idéia nova:
Sim, eu já te escrevo,
Do que esta alma dita Lira II
Quando amor aprova.
Esprema a vil calúnia muito embora
Quem vive no regaço da ventura Enter as mãos denegridas, e insolentes,
Nada obra em te adorar, que assombro faça: Os venenos das plantas,
Mostra mais ternura E das bravas serpentes.
Quem te ensina, e morre
Nas mãos da desgraça. Chovam raios e raios, no meu rosto
Não hás de ver, Marília, o medo escrito:
Nesta cruel masmorra tenebrosa O medo perturbador,
Ainda vendo estou teus olhos belos, Que infunde o vil delito.
A testa formosa,
Os dentes nevados, Podem muito, conheço, podem muito,
Os negros cabelos. As fúrias infernais, que Pluto move;
Mas pode mais que todas
Vejo, Marília, sim, e vejo ainda Um dedo só de Jove.
A chusma dos Cupidos, que pendentes
Dessa boca linda, Este Deus converteu em flor mimosa,
Nos ares espalham A quem seu nome dera, a Narciso;
Suspiros ardentes. Fez de muitos os Astros,
Qu’inda no Céu diviso.
Se alguém me perguntar onde eu te vejo,
Responderei: No peito, que uns Amores Ele pode livrar-me das injúrias
De casto desejo Do néscio, do atrevido ingrato povo;
Aqui te pintaram, Em nova flor mudar-me,
Mudar-me em Astro novo. Só a minha sorte não?

Porém se os justos Céus, por fins ocultos, Aos altos Deuses moveram
Em tão tirano mal me não socorrem; Soberbos Gigantes guerra;
Verás então, que os sábios, No mais tempos o Céu, e a Terra
Bem como vivem, morrem. Lhes tributa adoração.
Muda-se a sorte dos Deuses;
Eu tenho um coração maior que o mundo! Só a minha sorte não?
Tu, formosa Marília, bem o sabes:
Um coração..., e basta, Há de, Marília, mudar-se
Onde tu mesma cabes. Do destino a inclemência;
Tenho por mim a inocência,
Lira III Tenho por mim a razão.
Muda-se a sorte de tudo;
Sucede, Marília bela, Só a minha sorte não?
À medonha noite o dia;
A estação chuvosa e fria O tempo, ó Bela, que gasta
À quente seca estação. Os troncos, pedras, e o cobre,
Muda-se a sorte dos tempos; O véu rompe, com que encobre
Só a minha sorte não? À verdade a vil traição.
Muda-se a sorte de tudo;
Os troncos nas Primaveras Só a minha sorte não?
Brotam em flores viçosos,
Nos Invernos escabrosos Qual eu sou, verá o mundo;
Largam as folhas no chão. Mais me dará do que eu tinha,
Muda-se a sorte dos troncos; Tornarei a ver-te minha;
Só a minha sorte não? Que feliz consolação!
Não há de tudo mudar-se;
Aos brutos, Marília, cortam Só a minha sorte não.
Armadas redes os passos,
Rompem depois os seus laços, Lira IV
Fogem da dura prisão.
Muda-se a sorte dos brutos; Já, já me vai, Marília, branquejando
Só a minha sorte não? Louro cabelo, que circula a testa;
Este mesmo, que alveja, vai caindo
Nenhum dos homens conserva E pouco já me resta.
Alegre sempre o seu rosto;
Depois das penas vem gosto, As faces vão perdendo as vivas cores,
Depois de gosto aflição. E vão-se sobre os ossos enrugando,
Muda-se a sorte dos homens; Vai fugindo a viveza dos meus olhos;
Tudo se vai mudando. Os mares, minha bela, não se movem,
O brando Norte assopra, nem diviso
Se quero levantar-me, as costas vergam; Uma nuvem sequer na Esfera toda;
As forças dos meus membros já se gastam, O destro Nauta aqui não é preciso;
Vou a dar ela casa uns curtos passos, Do seu governo a roda.
Pesam-me os pés, e arrastam.
Mas ah! que o sul carrega, o mar se empola,
Se algum dia me vires destas sorte, Rasga-se a vela, o mastaréu se parte!
Vê que assim me não pôs a mão dos anos: Qualquer varão prudente aqui já teme;
Os trabalhos, Marília, os sentimentos, Não tenho a necessária força, e arte.
Fazem os mesmos danos. Corra o sábio Piloto, corra, e venha
Reger o duro leme.
Mal te vir, me dará em poucos dias
A minha mocidade o doce gosto; Como sucede à nau no mar, sucede
Verás burnir-se a pele, o corpo encher-se, Aos homens na ventura, e na desgraça;
Voltar a cor ao rosto. Basta ao feliz não ter total demência;
Mas quem de venturoso a triste passa,
No calmoso Verão as plantas secam; Deve entregar o leme do discurso
Na Primavera, que os mortais encanta, Nas mãos da sã prudência.
Apenas cai do Céu o fresco orvalho,
Verdeja logo a planta. Todo o Céu se cobriu, os raios chovem:
E esta alma, em tanta pena consternada,
A doença deforma a quem padece; Nem sabe aonde possa achar conforto.
Mas logo que a doença faz seu termo, Ah! não, não tardes, vem, Marília amada,
Torna, Marília, a ser quem era dantes, Toma o leme da nau, mareia o pano,
O definhado enfermo. Vai-a salvar no porto.

Supõe-me qual doente, ou mal a planta, Mas ouço já de Amor as sábias vozes:
No meio da desgraça, que me altera; Ele me diz que sofra, senão morro,
Eu também te suponho qual saúde, E perco então, se morro, uns doces laços;
Ou qual a Primavera. Não quero já, Marília, mais socorro;
Oh! ditoso sofrer, que lucrar pode
Se dão esses teus meigos, vivos olhos A glória dos teus braços!
Aos mesmos Astros luz, e vida às flores,
Que efeitos não farão, em quem por eles
Sempre morreu de amores? Lira VI

De que te queixas,
Lira V Língua importuna?
De que a Fortuna
Roubar-te queira Em que nasceu.
O que te deu? Este foi sempre
Este foi sempre O gênio seu.
O gênio seu.
Mas não me rouba,
Levou, Marília, Bem que se mude,
A impia sorte Honra, e virtude:
Catões à morte; Que o mais é dela,
Nem sepultura Mas isto é meu.
Lhes concedeu. Este foi sempre
Este foi sempre O gênio seu.
O gênio seu.

A outros muitos, Lira VII


Que vis nasceram,
Nem mereceram, Meu prezado Glauceste,
A grandes tronos Se fazes o conceito,
A impia ergueu. Que, bem que réu, abrigo
Este foi sempre A cândida virtude no meu peito;
O gênio seu. Se julgas, digo, que mereço ainda
Da tua mão socorro,
Espalha a Cega Ah! vem dar-mo agora,
Sobre os humanos Agora sim que morro.
Os bens, e os danos,
E a quem se devam Não quero, que montado
Nunca escolheu. No Pégaso fogoso,
Este foi sempre Venhas com dura lança
O gênio seu. Ao monstro infame traspassar raivoso.
Deixa que viva a pérfida calúnia,
A quanto é justo E forje o meu tormento:
Jamais se dobra; Com menos, meu Glauceste,
Nem igual obra Com menos me contento.
C’os mesmos Deuses
Do claro Céu. Toma a lira dourada,
Este foi sempre E toca um pouco nela:
O gênio seu. Levanta a voz celeste
Sobe, ao Céu, Vênus Em parte que te escute a minha Bela;
Num carro ufano; Enche todo o contorno de alegria;
E cai Vulcano Não sofras, que o desgosto
Da pura esfera, Afogue em pranto amargo
O seu divino rosto.
Que coisas portentosas nele encontro!
Eu sei, eu sei, Glauceste, Eu vejo a pobre fundação de Roma;
Que um bom cantor havia, Vejo-a queimar Cartago;
Que os brutos amansava; Vejo que as gentes doma;
Que os troncos, e os penedos atraía. E vejo o seu estrago.
De outro destro Cantor também afirma Lá floresce o poder do Assírio Povo;
A sábia antigüidade, Aqui os Medos crescem,
Que as muralhas erguera E os perde um braço novo.
De uma grande Cidade.
Então me diz a Deusa: “E que pretendes?
Orfeu as cordas fere; “Todas estas medalhas ver agora?
O som delgado, e terno “Ah! não, não sejas louco!
Ao Rei Plutão abranda, “Espaço de anos fora
E o deixa, que penetre o fundo Averno. “Para isso ainda pouco;
Ah! tu a nenhum cedes, meu Glauceste, “Deixa estranhos sucessos, vem comigo;
Na lira, e mais no canto; “Verás quanto inda deve
Podes fazer prodígios, “Acontecer contigo.”
Obrar ou mais, ou tanto.
Levou-me aonde estava a minha história,
Levanta pois as vozes: Que toda me explicou com modo, e arte.
Que mais, que mais esperas? “Tirei-te libras de ouro”,
Consola um peito aflito; Me diz, “e quero dar-te
Que é menos ainda, que domar as feras. “Todo aquele tesouro.
Com isto me darás no meu tormento “Não suspira por bens um peito nobre?
Um doce lenitivo; Severo lhe respondo,
Que enquanto a Bela vive, “Vivo afeito a ser pobre.”
Também, Glauceste, vivo.
Aqui me enruga a Deusa irada a testa,
E fica sem falar um breve espaço.
Lira VIII “Alegra, alegra o rosto”,
Prossegue, “ali te faço
Eu vejo, ó minha Bela, aquele Nume “Restituir o posto.”
A quem o nome deram de Fortuna; Respondo em ar de mofa, e tom sereno:
Pega-me pelo braço, “Conheço-te, Fortuna,
E com voz importuna “Posso morrer pequeno.”
Me diz que mova o passo;
Que ente no grande Templo, em que se encerra “Aqui te dou, me diz, a tua amada.”
Quanto o destino manda, Então me banho todo de alegria.
Que ela obre sobre a terra. “Cuidei, me torna a cega,
“Que essa alma não queria
“Nem esta mesma entrega.” Do cerco apenas
“É esse o bem, respondo, que me move, Soltava o gado,
“Mas este bem é santo, Eu lhe amimava
“Vem só da mão de Jove.” Aquela ovelha
Que mais amava.
Queria mais falar; eu insofrido
Desta maneira rompo os seus acentos: Dava-lhe sempre
“Basta, Fortuna, basta, No rio, e fonte,
“Estes breves momentos No prado, e selva,
“Lá noutras coisas gasta; Água mais clara,
“Da minha sorte nada mais contemplo.” Mais branda relva.
E, chamando Marília,
Suspiro, e deixo o Templo. No colo a punha;
Então brincando
Lira IX A mim a unia;
Mil coisas ternas
A estas horas Aqui dizia.
Eu procurava
Os meus Amores; Marília vendo,
Tinham-me inveja Que eu só com ela
Os mais Pastores. É que falava,
Ria-se a furto,
A porta abria, E disfarçava.
Inda esfregando
Os olhos belos, Desta maneira
Sem flor, nem fita, Nos castos peitos,
Nos seus cabelos. De dia em dia
A nossa chama
Ah! que assim mesmo Mais se acendia.
Sem compostura,
É mais formosa, Ah! quantas vezes,
Que a estrela d’alva, No chão sentado,
Que a fresca rosa. Eu lhes lavrava
As finas rocas,
Mal eu a via, Em que fiava!
Um ar mais leve,
(Que doce efeito!) Da mesma sorte
Já respirava Que à sua amada,
Meu terno peito. Que está no ninho,
Fronteiro canta Lira X
O passarinho;
Arde o velho barril, arde a cabeça,
Na quente sesta, Em honra de João na larga rua;
Dela defronte, O crédulo mortal agora indaga
Eu me entretinha Qual seja a sorte sua?
Movendo o ferro
Da sanfoninha. Eu não tenho alcachofra, que à luz chegue,
E nela orvalhe o Céu de madrugada,
Ela por dar-me Para ver se rebentam novas folhas
De ouvir o gosto, Aonde foi queimada.
Mais se chegava;
Então vaidoso Também não tenho um ovo, que despeje
Assim cantava: Dentro dum copo d’água, e possa nela
Fingir palácios grandes, altas torres,
“Não há Pastora, E uma nau à vela.
“Que chegar possa
“À minha Bela, Mas, ah! em bem me lembre; eu tenho ouvido
“Nem quem me iguale Que a boca um bochecho d’água tome,
“Também na estrela; E atrás de qualquer porta atento esteja,
Até ouvir um nome.
“Se amor concede
“Que eu me recline Que o nome, que primeiro ouvir, é esse
“No branco peito, O nome, que há de Ter a minha amada;
“Eu não invejo Pode verdade ser; se for mentira,
“De Jove o feito; Também não custa nada.

“Ornam seu peito Vou tudo executar, e de repente


“As sãs virtudes, Ouvi dizer o nome de Filena:
“Que nos namoram; Despejo logo a boca: ah! não sei como
“No seu semblante Não morro ali de pena!
“As Graças moram.”
Aparece Cupido: então soltando
Assim vivia... Em ar de zombaria uma risada,
Hoje em suspiros “E que tal, me pergunta, esteve a peça?
O canto mudo; “Não foi bem pregada?
Assim, Marília,
Se acaba tudo. “Eu já te disse, que Marília é tua:
“Tu fazes do meu dito tanta conta,
“Que vais acreditar o que te ensina
“Velha mulher já tonta.” Que de mim se retiram quando busco
Fartar o meu desejo;
Humilde lhe respondo: “Quem debaixo Mas quer, Marília, o meu destino ingrato
“Do açoite da Fortuna aflito geme, Que lograr-se não possa, estando vendo
“Nas mesmas coisas, que só são brinquedos Nesta alma o teu retrato.
“Se agouram males, e teme.”
Estou no Inferno, estou, Marília bela;
E numa coisa só é mais humana
A minha dura estrela:
Lira XI Uns não podem mover do Inferno os passos;
Eu pretendo voar, e voar cedo
Se acaso não estou no fundo Averno, À glória dos teus braços.
Padece, ó minha Bela, sim padece
O peito amante, e terno,
As aflições tiranas, que aos Precitos Lira XII
Arbitra Radamanto em justa pena
Dos bárbaros delitos. Ah! Marília, que tormento
Não tens de sentir saudosa!
As Fúrias infernais, rangendo os dentes, Não podem ver os teus olhos
Com a mão escarnada não me aplicam A campina deleitosa,
As raivosas serpentes; Nem a tua mesma aldeia,
Mas cercam-me outros monstros mais irados: Que tiranos não proponham
Mordem-se sem cessar as bravas serpes À inda inquieta idéia
De mil, e mil cuidados. Uma imagem de aflição.
Mandarás aos surdos Deuses
Eu não gasto, Marília, a vida toda Novos suspiros em vão.
Em lançar o penedo da montanha;
Ou em mover a roda; Quando levares, Marília,
Mas tenho ainda mais cruel tormento: Teu ledo rebanho ao prado,
Por coisas que me afligem, roda, e gira Tu dirás: “Aqui trazia
Cansado pensamento. “Dirceu também o seu gado.”
Verás os sítios ditosos
Com retorcidas unhas agarrado Onde, Marília, te dava
Às tépidas entranhas não me come Doces beijos amorosos
Um abutre esfaimado; Nos dedos da branca mão.
Mas sinto de outro monstro a crueldade: Mandarás aos surdos Deuses
Devora o coração, que mal palpita, Novos suspiros em vão.
O abutre da saudade.
Quando à janela saíres,
Não vejo os pomos, nem as águas vejo, Sem quereres, descuidada,
A minha pobre morada.
Tu dirás então contigo: Lira XIII
“Ali Dirceu esperava
“Para me levar consigo; Vês, Marília, um cordeiro
E ali sofreu a prisão.” De flores enramado,
Mandarás aos surdos Deuses Como alegre corre
Novos suspiros em vão. A ser sacrificado?
O Povo para Templo já concorre;
Quando vires igualmente A Pira sacrossanta já se acende;
Do caro Glauceste a choça, O Ministro o fere, ele bala, e morre.
Onde alegre se juntavam
Os poucos da escolha nossa, Vês agora o novilho,
Pondo os olhos na varanda A quem segura o laço,
Tu dirás de mágoa cheia: No chão as mãos especa,
“Todo o congresso ali anda, Nem quer mover um passo.
“Só o meu amado não.” Não conhece que sai de um mau terreno;
Mandarás aos surdos Deuses Que o forte pulso, que a seguir o arrasta,
Novos suspiros em vão. O conduz a viver num campo ameno.

Quando passar pela rua Ignora o bruto como


O meu companheiro honrado, Lhe dispomos a sorte;
Sem que me vejas com ele Um vai forçado à vida,
Caminhar emparelhado, Vai outro alegre à morte:
Tu dirás: “Não foi tirana Nós temos, minha bela, igual demência;
“Somente comigo a sorte; Não sabemos os fins, com que nos move
“Também cortou desumana A sábia, oculta Mão da Providência.
“A mais fiel união.”
Mandarás aos surdos Deuses De Jacó ao bom filho
Novos suspiros em vão. Os maus matar quiseram.
De conselho o muraram.
Numa masmorra metido, Como escravo o venderam.
Eu não vejo imagens destas, José não corre a ser um servo aflito;
Imagens, que são por certo Vai subindo os degraus, por onde chega
A quem adora funestas. A ser um quase Deus no grande Egito.
Mas se existem separadas
Dos inchados, roxos olhos, Quem sabe o Destino
Estão, que é mais, retratadas Hoje, ó Bela, me prende.
No fundo do coração. Só porque nisto de outros
Também mando aos surdos Deuses Mais danos me defende?
Tristes suspiros em vão. Pode ainda raiar um claro dia.
Mas quer raie, quer não, ao Céu adoro; Aos ombros o remira.
E beijo a santa mão, que assim me guia. Inda por ele muito mais obrara.
E se nada servisse,
Fizera então, Amigo, o que fizeste;
Lira XIV Gemera, e suspirara.

Alma digna de mil Avós Augustos! Oh! quanto são duráveis as cadeias
Tu sentes, tu soluças, De uma amizade, quando
Ao ver cair os justos; Se dão iguais idéias!
Honras as santas leis da Humanidade: Se apesar dos estorvos se sustinha
E os teus exemplos deve Nossa união sincera,
Gravar com letras de ouro no seu Templo Foi por ser a minha alma igual à tua,
A cândida Amizade. E a tu igual à minha.

Não é, não é de Herói uma alma forte, Se o caro Amigo te merece tanto,
Que vê com rosto enxuto Lá lhe fica a sua alma,
No seu igual a morte. Limpa-lhe o terno pranto.
Não é também de Herói um peito duro, De quem eu falo, és tu, Marília bela.
Que a sua glória firma Ah! sim, honrado Amigo,
Em que lhe não resiste ao ferro, e fogo, Se enxugar não puderes os seus olhos,
Nem legião, nem muro. Pranteia então com ela.

Oh! quanto ousado Chefe me namora,


Quando vê a cabeça Lira XV
Do bom Pompeu, e chora!
É grande para mim, quem move os passos, Eu, Marília, não fui nenhum Vaqueiro,
E de Dario aos filhos, Fui honrado Pastor da tua aldeia;
Que como escravos seus tratar pudera, Vestia finas lãs, e tinha sempre
Recebe nos seus braços. A minha choça do preciso cheia.
Tiraram-me o casal, e o manso gado,
Se alcança Enéias, capitão piedoso, Nem tenho, a que me encoste, um só cajado.
Entre os Heróis do Mundo
Um nome glorioso, Para ter que te dar, é que eu queria
Não é, porque levanta uma cidade; De mor rebanho ainda ser o dono;
É sim, porque nos ombros Prezava o teu semblante, os teus cabelos
Salvou do incêndio ao Pai, a quem destina Ainda muito mais que um grande Trono.
A mão de longa idade. Agora que te oferte já não vejo
Além de um puro amor, de um são desejo.
Ah! se ao meu contrário entre as chamas vira,
Eu mesmo, sim, da morte Se o rio levantado me causava,
Levando a sementeira, prejuízo,
Eu alegre ficava apenas via Nas noites de serão nos sentaremos
Na tua breve boca um ar de riso. C’os filhos, se os tivermos, à fogueira;
Tudo agora perdi; nem tenho o gosto Entre as falsas histórias, que contares,
De ver-te aos menos compassivo o rosto. Lhes contarás a minha verdadeira.
Pasmados te ouvirão; eu entretanto
Propunha-me dormir no teu regaço Ainda o rosto banharei de pranto.
As quentes horas da comprida sesta,
Escrever teus louvores nos olmeiros, Quando passarmos juntos pela rua,
Toucar-te de papoulas na floresta. Nos mostrarão c’o dedo os mais Pastores;
Julgou o justo Céu, que não convinha Dizendo uns para os outros: “Olha os nosso
Que a tanto grau subisse a glória minha. “Exemplos da desgraça, e são amores”.
Contentes viveremos desta sorte,
Ah! minha Bela, se a Fortuna volta, Até que chegue a um dos dois a morte.
Se o bem, que já perdi, alcanço, e provo;
Por essas brancas mãos, por essas faces
Te juro renascer um homem novo; Lira XVI
Romper a nuvem, que os meus olhos cerra,
Amar no Céu a Jove, e a ti na terra. Vejo, Marília,
Que o nédio gado
Fiadas comprarei as ovelhinhas, Anda disperso
Que pagarei dos poucos do meu ganho; No monte, e prado;
E dentro em pouco tempo nos veremos Que assim sucede
Senhores outra vez de um bom rebanho. Ao desgraçado,
Para o contágio lhe não dar, sobeja Que a perder chega
Que as afague Marília, ou só que as veja. O seu Pastor.
Mas inda sofro
Senão tivermos lãs, e peles finas, A viva dor.
Podem mui bem cobrir as carnes nossas
As peles dos cordeiros mal curtidas, Também conheço,
E os panos feitos com as lãs mais grossas. Que os Pegureiros,
Mas ao menos será o teu vestido Que apascentavam
Por mãos de amor, por minhas mão cosido. Os meus cordeiros,
Dão suspiros,
Nós iremos pescar na quente sesta E verdadeiros,
Com canas, e com cestos os peixinhos: Porque perderam
Nós iremos caçar nas manhãs frias Um pai no amor.
Com a vara envisgada os passarinhos. Mas inda sofro
Para nos divertir faremos quanto A viva dor.
Reputa o varão sábio, honesto e santo.
Eu mais alcanço, Paixão de amor.
Que a minha herdade, Eu já não sofro
Estando eu preso, A viva dor.
Sofrer não há de
Nem a charrua, Lira XVII
E nem a grade;
Que a mão lhe falta Dirceu te deixa, ó Bela,
Do Lavrador. De padecer cansado;
Mas inda sofro Frio suor já banha
A viva dor. Seu rosto descorado;
O sangue já não gira pela veia,
Mas quando sobe Seus pulsos já não batem,
À minha idéia, E a clara luz dos olhos se baceia:
Que tu ficaste A lágrima sentida já lhe corre;
Lá nessa aldeia, Já pára a convulsão, suspira, e morre.
De mil cuidados
E mágoa cheia, Seu espírito chega
Das paixões minhas Onde se pune o erro:
Não sou senhor. Grossos portões de ferro.
Eu já não sofro Aos severos Juízes se apresenta,
A viva dor. E com sentidas vozes
Toda a sua tragédia representa;
A quanto chega Enche-se de ternura, e novo espanto
A pena forte! O mesmo inexorável Radamanto.
Pesa-me a vida,
Desejo a morte, Abre um pasmado a boca,
A Jove acuso, E a pedra não despede;
Maldigo a sorte, Outro já não se lembra
Trato a Cupido Da fome, e mais da sede;
Por um traidor. Descansa o curvo bico, e a garra impia
Eu já não sofro Negro abutre esfaimado;
A viva dor. Nem na roca medonha a Parca fia.
Até as mesmas Fúrias inclementes
Mas este excesso Deixam cair das unhas as serpentes.
Perdão merece,
E dele Jove Já votam os Juízes;
Compadece: E o Rei Plutão lhe ordena
Que Jove, ó Bela, Deixe o sítio, em que moram
Mui bem conhece, Almas dignas de pena.
Aonde chega Já sai do escuro Reino, e da memória
Lhe passa tudo quanto Os ais lastimosos
Ou pode dar-lhe mágoa, ou dar-lhe glória Os guarda unidos,
Só, bem que o gosto as turvas águas tome, Marília, c’os teus;
Inda, Marília, inda diz teu nome. As lágrimas nossas
No seio amontoa,
Entra já nos Elísios, Forma asas, e voa,
Campinas venturosas, Vai pô-las nos Céus.
Que mansos rios cortam,
Que cobrem sempre as rosas. A Deusa formosa,
Escuta o canto das sonoras aves, Que amava aos Troianos,
E bebe as águas puras, Livrá-los querendo
Que o mel, e do que o leite mais suaves, De riscos, e danos,
“Aqui, diz ele, espero a minha Bela; A Jove buscou.
“Aqui contente viverei com ela.” As águas, que o rosto
Da Deusa banharam,
“Aqui...” Porém aonde A Jove abrandaram,
Me leva a dor ativa? Assim os salvou.
É ilusão desta alma;
Jove inda quer que eu viva. Confia-te, ó Bela,
Eu devo sim gozar teus doces laços; Confia-te em Jove,
E em paga de meus males, Ainda se abranda,
Devo morrer, Marília, nos teus braços. Ainda se move
Então eu passarei ao Reino amigo, Com ânsias de amor.
E tu irás depois lá ter comigo. O pranto de Vênus,
Que obrou no pai tanto,
Não tem que o teu pranto
Lira XVIII Apreço maior.

Não molho, Marília,


De pranto a masmorra Lira XIX
Que o terno Cupido
Não voe, não corra, Nesta triste masmorra,
A i-lo apanhar. De um semivivo corpo sepultura,
Estende-o nas asas, Inda, Marília, adoro
Sobre ele suspira, A tua formosura.
Por fim se retira, Amor na minha idéia te retrata;
E vai-lo levar. Busca extremoso, que eu assim resista
À dor imensa, que me cerca, e mata.
Se o moço não mente,
Os tristes gemidos, Quando em eu mal pondero,
Então mais vivamente te diviso: À força da dor cedera,
Vejo o teu rosto, e escuto E nem estaria vivo,
A tua voz, e riso. Se o menino Deus vendado,
Movo ligeiro para o vulto os passos; Extremoso, e compassivo,
Eu beijo a tíbia luz em vez de face; Com o nome de Marília
E aperto sobre o peito em vão os braços Não me viesse animar.

Conheço a ilusão minha; Deixo a cama ao romper d’alva;


A violência da mágoa não suporto; O meio-dia tem dado,
Foge-me a vista, e caio, E o cabelo ainda flutua
Não sei se vivo, ou morto. Pelas costas desgrenhado.
Enternece-se Amor de estrago tanto; Não tenho valor, não tenho,
Reclina-me no peito, e com mão terna Nem par de mim cuidar.
Me limpa os olhos do salgado pranto.
Diz-me Cupido: “E Marília
Depois que represento “Não estima este cabelo?
Por lago espaço a imagem de um defunto, “Se o deixas perder de todo,
Movo os membros, suspiro, “Não se há de enfadar ao vê-lo?”
E onde estou pergunto. Suspiro, pego no pente,
Conheço então que amor me tem consigo; Vou logo o cabelo atar.
Ergo a cabeça, que inda mal sustento,
E com doente voz assim lhe digo: Vem um tabuleiro entrando
De vários manjares cheio;
“Se queres ser piedoso, Põe-se na mesa a toalha,
“Procura o sítio em que Marília mora, E eu pensativo passeio:
“Pinta-lhe o meu estrago, De todo o comer esfria,
“E vê, Amor, se chora. Sem nele poder tocar.
“Se lágrimas verter, se a dor a arrasta,
“Uma delas me traze sobre as penas, “Eu entendo que a matar-te,
“E para alívio meu só isto basta.” “Diz amor, te tens proposto;
“Fazes bem: terá Marília
Lira XX “Desgosto sobre desgosto.”
Qual enfermo c’o remédio,
Se me viras com teus olhos Me aflijo, mas vou jantar.
Nesta masmorra metido,
De mil idéias funestas, Chegam as horas, Marília,
E cuidados combatido, Em que o Sol já se tem posto;
Qual seria, ó minha Bela, Vem-me à memória que nelas
Qual seria o teu pesar? Vi à janela teu rosto:
Reclino na mão a face,
E entro de novo a chorar. Se eu, que vivo à sombra dela,
Inda vivo desta sorte,
Diz-me Cupido: “Já basta, Sempre triste a suspirar?
“Já basta, Dirceu, de pranto;
“Em obséquio de Marília
“Vai tecer teu doce canto.” Lira XXI
Pendem as fontes dos olhos,
Mas em sempre vou cantar. Que diversas que são, Marília, as horas,
Que passo na masmorra imunda, e feia,
Vem o Forçado acender-me Dessas horas felizes, já passadas
A velha, suja candeia; Na tua pátria aldeia!
Fica, Marília, a masmorra
Inda mais triste, e mais feia. Então eu me ajuntava com Glauceste;
Nem mais canto, nem mais posso E à sombra de alto Cedro na campina
Uma só palavra dar. Eu versos te compunha, e ele os compunha
À sua cara Eulina.
Diz-me Cupido: “São horas
“De escrever-se o que está feito.” Cada qual o seu canto aos Astros leva;
Do azeite, e da fumaça De exceder um ao outro qualquer trata;
Uma nova tinta ajeito; O eco agora diz: “Marília terna”;
Tomo o pau, que pena finge, E logo: “Eulina ingrata”.
Vou as Liras copiar.
Deixam os mesmos Sátiros as grutas.
Sem que chegue o leve sono, Um para nós ligeiro move os passos;
Canta o Galo a vez terceira; Ouve-nos de mais perto, e faz flauta
Eu digo a Amor, que fico C’os pés em mil pedaços.
Sem deitar-me a noite inteira;
Faço mimos, e promessas “Dirceu, clama um Pastor, ah! bem merece
Para ele me acompanhar. “Da cândida Marília a formosura.
“E aonde, clama o outro, quer Eulina
Ele diz, que em dormir cuide, “Achar maior ventura?”
Que hei de ver Marília em sonho,
Não respondo uma palavra, Nenhum Pastor cuidava do rebanho,
A dura cama componho, Enquanto em nós durava esta porfia.
Apago a triste candeia, E ela, ó minha Amada, só findava
E vou-me logo deitar. Depois de acabar-se o dia.

Como pode a tais cuidados À noite te escrevia na cabana


Resistir, ó minha Bela, Os versos, que de tarde havia feito;
Quem não tem de Amor a graça; Mal tos dava, e os lia, os guardavas
No casto e branco peito. Não treme de susto
O meu coração.
Beijando os dedos dessa mão formosa,
Banhados com as lágrimas do gosto, Eu vejo, Marília,
Jurava não cantar mais outras graças, A mil inocentes,
Que as graças do teu rosto. Nas cruzes pendentes
Por falsos delitos,
Ainda não quebrei o juramento, Que os homens lhes dão.
Eu agora, Marília, não as canto; Mas, ah! que não treme,
Mas inda vale mais que os doces versos Não treme de susto
A voz do triste pranto. O meu coração.

Se penso que posso


Lira XXII Perder o gozar-te,
E a glória de dar-te
Abraços honestos,
Por morto, Marília, E beijos na mão.
Aqui me reputo: Marília, já treme,
Mil vezes escuto Já treme de susto
O som do arrastado, O meu coração.
E duro grilhão.
Mas, ah! que não reme, Repara, Marília,
Não treme de susto O quanto é mais forte
O meu coração. Ainda que a morte,
Num peito esforçado,
A chave lá soa De amor a paixão.
No porta segura; Marília, já treme,
Abre-se a escura, Já treme de susto
Infame masmorra O meu coração.
Da minha prisão.
Mas, ah! que não treme,
Não treme de susto Lira XXIII
O meu coração.
Não praguejes, Marília, não praguejes
Já o Torres se assenta; A justiceira mão, que lança os ferros;
Carrega-me o rosto; Não traz debalde a vingadora espada;
Do crime suposto Deve punir os erros.
Com mil artifícios
Indaga a razão. Virtudes de Juiz, virtudes de homem
Mas, ah! que não treme, As mãos se deram, e em seu peito moram.
Manda prender ao Réu austera a boca, Ao peito o aperto, estalam-lhe as costelas,
Porém seus olhos choram. Desfalece, cai, urra, treme, e morre.

Se à inocência denigre a vil calúnia, Vem agora um Leão: sacode a grenha,


Que culpa aquele tem, que aplica a pena? Com faminta paixão a mim se lança;
Não é o Julgador, é o processo, Venha embora; que o pulso
E a lei, quem nos condena. Ainda não se cansa.
Oprimo-lhe a garganta, a língua estira,
Só no Averno os Juízes não recebem O corpo lhe fraqueia, os olhos incham,
Acusação, nem prova de outro humano; Açoita o chão convulso, arqueja, e expira.
Aqui todos confessam suas culpas,
Não pode haver engano. Mas que vejo, Marília! Tu te assustas?
Entendes que os destinos inumanos
Eu vejo as Fúrias afligindo aos tristes: Expõem a minha vida
Uma o fogo chega, outra as serpes move; No circo dos Romanos?
Todos maldizem sim a sua estrela, Com ursos, e com onças eu não luto:
Nenhum acusa a Jove. Luto c’o bravo monstro, que me acusa,
Que os tigres, e leões mais fero e bruto.
Eu também inda adoro ao grande Chefe,
Bem que a prisão me dá, que eu não mereço. Embora contra mim raivoso esgrima
Qual eu sou, minha Bela, não me trata, Da vil calúnia a cortadora espada;
Trata-me qual pareço. Uma alma, qual eu tenho,
Não se receia a nada.
Quem suspira, Marília, quando pune
Ao vassalo, que julga delinqüente, Eu hei de, sim, punir-lhe a insolência,
Que gosto não terá, podendo dar-lhe Pisar-lhe o negro colo, abrir-lhe o peito
Às honras de inocente? Co’as armas invencíveis da inocência.

Tu vences, Barbacena, aos mesmos Titos Ah! quando imaginar, que vingativo
Nas sãs virtudes, que no peito abrigas: Mando que desça ao Tártaro profundo,
Não honras tão-somente a quem premeias, Hei de com mão honrada
Honras a quem castigas. Erguer-lhe o corpo imundo.
Eu então lhe direi: “Infame, indigno,
Lira XXIV “Obras como costuma o vil humano;
“Faço, o que faz um coração divino.”
Eu vou, Marília, vou brigar co’as feras!
Uma soltaram, eu lhe sinto os passos; Lira XXV
Aqui, aqui a espero
Nestes despidos braços. Minha Marília,
É um malhado tigre: a mim já corre, O passarinho,
A quem roubaram Na chama ativa;
Ovos, e ninho, Derrete ao bronze;
Mil vezes pousa Sendo excessiva,
No seu raminho; Ao mesmo seixo
Piando finge Faz estalar.
Que anda a chorar. Mas do amianto
Mas logo voa A febre dura
Pela espessura, Na chama atura
Nem mais procura Sem se queimar.
Este lugar.
Também, Marília,
Se acaso a vaca Não há quem negue,
Perde a vitela, Que bem que o fogo
Também nos mostra Nos óleos pegue,
Que se desvela; Que bem que em línguas,
O pasto deixa, Às nuvens chegue,
Muge por ela, À força d’água
Até na estrada Se há de apagar.
A vem buscar. Se a negra pedra
Em poucos dias, Nós acendemos,
Ao que parece, Com água a vemos
Dela se esquece, Mais s’inflamar.
E vai pastar.
O meu discurso,
O voraz Tempo, Marília, é reto:
Que o ferro come, A pena iguala
Que aos mesmos Reinos Ao meu afeto.
Devora o nome; O amor, que nutro,
Também Marília, Ao teu aspecto,
Também consome E ao teu semblante,
Dentro do peito É singular.
Qualquer pesar. Ah! nem o tempo,
Ah! só não pode Nem inda a morte
Ao meu tormento A dor tão forte
Por um momento Pode acabar.
Alívio dar.
Lira XXVI
Também, ó Bela,
Não há quem viva Aquele, a quem fez cego a natureza,
Instantes breves C’o bordão palpa, e aos que vêm pergunta;
Ainda se despenha muitas vezes, Parecer desgraçado, ó minha Bela,
E dois remédios junta! É muito mais honroso.

De ser cega a Fortuna eu não me queixo; Lira XVII


Sim me queixo de que má cega seja:
Cega, que nem pergunta, nem apalpa, A minha amada
É porque errar deseja. É mais formosa,
Que branco lírio,
A quem não tem virtudes, nem talentos, Dobrada rosa,
Ela, Marília, faz de um Cetro dono: Que o cinamomo,
Cria num pobre berço uma alma digna Quando matiza
De se sentar num Trono. Co’a folha a flor.
Vênus não chega
A quem gastar não sabe, nem se anima, Ao meu Amor.
Entrega as grossas chaves de um tesouro;
E lança na miséria a quem conhece Vasta campina
Para que serve o ouro. De trigo cheia,
Quando na sesta
A quem fere, a quem rouba, a infame deixa C’o vento ondeia,
Que atrás do vício em liberdade corra; Ao seu cabelo,
Eu amo as leis do Império, ela me oprime Quando flutua,
Nesta vil masmorra. Não é igual.
Tem a cor negra,
Mas ah! minha Marília, que esta queixa Mas quanto val’!
Co’a sólida razão se não coaduna;
Como me queixo da Fortuna tanto, Os astros, que andam
Se sei não há Fortuna? Na esfera pura,
Quando cintilam
Os Fados, os Destinos, essa Deusa, Na noite escura,
Que os Sábios fingem, que uma roda move, Não são, humanos,
É só a couta mão da Providência, Tão lindos como
A sábia mão de Jove. Seus olhos são;
Que ao Sol excedem
Não é que somos cegos, que não vemos Na luz, que dão.
A que fins nos conduz por estes modos;
Por torcidas estradas, ruins veredas Às brancas faces,
Caminha ao bem de todos. Ah! não se atreve
Jasmim de Itália,
Alegre-se o perverso com as ditas; Nem inda a neve,
C’o seu merecimento o virtuoso; Quando a desata
O Sol brilhante Procura outras bebidas,
Com seu calor. Que apressem mais a morte.
São neve, e causam
No peito ardor. Desce ao Reino profundo,
Ajunta aí venenos,
Na breve boca Que nunca visse o mundo:
Vejo enlaçadas Traze o negro licor, que têm nos dentes,
As finas per’las Nos dentes denegridos
Com as granadas; As raivosas serpentes.
A par dos beiços
Rubins da Índia Cachopo levantado,
Têm preço vil. Que pôs a natureza
Neles se agarram Dentro no mar salgado,
Amores mil. Não se abala no meio da tormenta;
Bem que uma onda, e outra onda
Se não lhe desse, Sobre ele em flor rebenta.
Compadecido,
Tanto socorro Árvore, que na terra
O Deus Cupido; As robustas raízes,
Se não vivera Buscando o centro, a ferra,
No peito seu; Não teme ao furacão mais violento,
Já morto estava E menos, se se deixa
O bom Dirceu. Vergar do rijo vento.

Vê quanto pode Sou tronco, e rocha, ó Bela,


Teu belo rosto; Que açoita o Sul, que brama,
E de gozá-lo E o mar, que se encapela:
O vivo gosto! Não temas que do rosto a cor se mude;
Que, submergido Vence as rochas, e os troncos
Em um tormento A sólida Virtude.
Quase infernal,
Porqu’inda espero, A maior desventura
Resisto ao mal. É sempre a que nos lança
No horror da sepultura:
Lira XXVIII O covarde a morrer também caminha;
Com que males não pode
Detém-te, vil humano; Uma alma como a minha?
Não espremas a cicuta
Para fazer-me dano.
O sumo, que ela dá, é pouco forte;
Lira XXIX O Pastor louro
Deu-me, Marília,
Eu descubro procurar-me Para cantar-te
Gentil mancebo, e louro; A lira de ouro.
Trazia a testa adornada
Com folhas de verde louro. As cordas firo;
Vejo ser o Pai das Musas, O brando vento
E me entrega a lira d’ouro. Teus dotes leva
Nas brancas asas
“Já basta, me diz, ó filho, Ao firmamento.
“Já basta de sentimento;
“O cansado peito exige “O teu cabelo
“Um breve contentamento: “Vale um tesouro;
“Louva a formosa Marília “Um só me adorna
“Ao som do meu instrumento.” “A sábia fronte
“Melhor que o louro.
Firo as cordas; mas que importa?
A dor não sossega entanto: “Nesses teus olhos
Ergo a voz; então reparo “Amor assiste;
Que, quanto mais corre o pranto, “Deles faz guerra;
É mais doce, e mais sonoro “Ninguém lhe foge,
Meu terno, e saudoso canto. “Ninguém resiste.

Apolo fitou os olhos “Algumas vezes


Na mão que regia o braço; “Eu o diviso
E depois de estar suspenso, “Também oculto
De me ouvir um largo espaço, “Nas lindas covas
Assim diz: “O Deus Cupido, “Que faz teu riso.
“Faz inda mais, do que eu faço.
“Nesses teus peitos
“Eu te dou a minha lira: “Têm os seus ninhos
“Louva, louva a tua Bela; “Destros Amores;
“Porém vê que ta concedo “neles se geram
“Com condição, e cautela...” “Os cupidinhos.
Eu lhe corto a voz dizendo,
Que só canto me honra dela. “Vences a Vênus,
“Quando com arte
Lira XXX “As armas toma,
“Porque mais prenda
O Pai das Musas, “Ao fero Marte.”
Eu produzia Não é, não, ilusão o que te digo;
Estas idéias, Tu mesma me acompanhas;
Quando, Marília, Peno, mas é contigo.
O som escuto
De vis cadeias. Não vejo as tuas faces graciosas,
Os teus soltos cabelos,
Dou um suspiro, As tuas mãos mimosas.
Corre o meu pranto;
E, inda bebendo Se eu as visse, infeliz me não dissera,
Lágrimas tristes, Bem que subira ao Potro
De novo canto: Bem que na Cruz pendera.

“Sou da constância Não ouço as tuas vozes magoadas,


“Um vivo exemplo: Com ardentes suspiros
“E vós, ó ferros, Às vezes mal formadas.
“Honrareis inda
“De Amor o Templo”. Mas vejo, ó cara, as tuas letras belas,
Uma por um beijo,
Lira XXXI E choro então sobre elas.

Roubou-me, ó minha Amada, a sorte impia Tu me dizes que siga o meu destino;
Quanto de meu gozava Que o teu amor na ausência
Num só funesto dia; Será leal, e fino.

Honras de maioral, manada grossa, De novo a carta ao coração aperto,


Fértil, extensa herdade, De novo a molha o pranto,
Bem reparada choça. Que de ternura verto.

Meteu-se nesta infame sepultura, Ah! leve muito embora o duro Fado
Que é sepulcro sem honras, A tudo, quanto tenho
Breve masmorra, escura. Com meu suor ganhado.

Aqui, ó minha amada, nem consigo Eu juro que do roubo nem me queixe,
Venho outro desgraçado Contanto, ó minha cara,
Sentir também comigo: Que este só bem me deixe.

Mas esta companhia não mereço, Que males voluntários não sentiram,
Os Deuses me dão outra, Os que te amam, somente
Ainda de mais apreço. Porque menos te ouviram?
Vejo o alfanje afiado.
Dê pois aos mais seus bens a Deusa cega;
Que eu tenho aquela glória, Um frio suor me cobre,
Que a mil felizes nega. Laxam-se os membros, suspiro;
Busco alívio às minhas ânsias,
Não o descubro, deliro.
Lira XXXII Já , meu Bem, já me parece
Que nas mãos da morte expiro.
Se o vasto mar se encapela,
E na rocha em flor rebenta, Vem-me então ao pensamento
Grossa nau, que não tem leme, A tua testa nevada,
Em vão sustentar-se intenta; Os teus meigos, vivos olhos,
Até que naufraga, e corre A tua face rosada,
À discrição da tormenta. Os teus dentes cristalinos,
A tua boca engraçada.
Quem não tem uma beleza,
Em que ponha o seu cuidado; Qual, Marília, a estrela d’alva,
Se o Céu se cobre de nuvens, Que a negra noite afugenta;
E se assopra o vento irado, Qual o Sol, que a névoa espalha
Não tem forças que resistam Apenas a terra aquenta;
Ao impulso do seu fado. Ou qual Íris, que o Céu limpa,
Quando se vê na tormenta:
Nesta sombria masmorra,
Aonde, Marília, vivo, Assim, Marília, desterro
Encosto na mão o rosto, Triste ilusão, e demência;
Ah! que imagens tão funestas Faz de novo o seu ofício
Me finge o pesar ativo. A razão, e a prudência;
E firmo esperanças doces
Parece que vejo a honra, Sobre a cândida inocência.
Marília, toda enlutada;
A face de um pai rugosa, Restauro as forças perdidas,
Num mar de pranto banhada; Sobe a viva cor ao rosto,
Os amigos macilentos, Gira o sangue pela veia,
E a família consternada. E bate o pulso composto:
Vê, Marília, o quanto pode
Quero voltar aos meus olhos Contra meus males teu rosto.
Para outro diverso lado;
Vejo numa grande praça Lira XXXIII
Um teatro levantado;
Vejo as cruzes, vejo os potros, Morri, ó minha Bela:
Não foi a Parca impia, O meu nome se ultraja
Que na tremenda roca, C’o suposto delito,
Sem Ter descanso, fia; Dize severa assim em meu abono:
Não foi, digo, não foi a Morte feia “Não toma as armas contra um Cetro justo
Quem o ferro moveu, e abriu no peito “Alma digna de um trono.”
A palpitante veia.

Eu, Marília, respiro; Lira XXXIV


Mas o mal, que suporto,
É tão tirano, e forte, Vou-me, ó Bela, deitar na dura cama,
Que já me dou por morto: De que nem sequer sou o pobre dono:
A insolente calúnia depravada Estende sobre mim Morfeu as asas,
Ergueu-se contra mim, vibrou da língua E vem ligeiro o sono.
A venenosa espada.
Os sonhos, que rodeiam a tarimba,
Inda, ó Bela, não vejo Mil coisas vão pintar na minha idéia;
Cadafalso enlutado, Não pintam cadafalsos, não, não pintam
Braço de ferro armado; Nenhuma imagem feia.
Mas vivo neste mundo, ó sorte impia,
E dele só me mostra a estreita fresta Pintam que estou bordando um teu vestido;
O quando é noite, ou dia. Que um menino com asas, cego, e louro,
Me enfia nas agulhas o delgado,
Olhos baços, e sumidos, O brando fio de ouro.
Macilento, e descarnado,
Barba crescida, e hirsuta, Pintam que entrando vou na grande Igreja;
Cabelo desgrenhado; Pintam que as mãos nos damos, e aqui vejo
Ah! que imagem tão digna de piedade! Subir-te à branca face a cor mimosa,
Mas é, minha Marília, como vive A viva cor do pejo.
Um réu de Majestade.
Pintam que nos conduz dourada sege
Venha o processo, venha; À nossa habitação; que mil Amores
Na inocência me fundo: Desfolham sobre o leito as moles folhas
Mas não morreram outros, Das mais cheirosas flores.
Que davam honra ao mundo!
O tormento, minha alma, não recuses:
A quem sábio cumpriu as leis sagradas Pintam que desta terra nos partimos;
Servem de sólio as cruzes. Que os amigos saudosos, e suspensos
Apertam nos inchados, roxos olhos
Tu, Marília, se ouvires, Os já molhados lenços.
Que ante o teu rosto aflito
Pintam que os mares sulco da Bahia; O Céu em meu dano,
Onde passei a flor da minha idade; E a glória me tira
Que descubro as palmeiras, e eme dois bairros De honrado Pastor.
Partidas a grã Cidade.
Têm suspiros
Pintam leve escaler, e que na prancha Motivo dobrado;
O braço já te of’reço reverente; Perdi o meu gado;
Que te aponta c’o dedo, mal te avista, Perdi, que mais vale,
Amontoada gente. O bem de te ver.
Se os não receberes,
Aqui, alerta, grita o mau soldado; Amante por ora,
E o outro, alerta estou, lhe diz gritando: Por serem de um triste,
Acordo com a bulha, então conheço, Os deves, Pastora,
Que estava aqui sonhando. Por honra acolher.

Se o meu crime não fosse só de amores, Virá, minha Bela,


A ver-me delinqüente, réu de morte, Virá uma idade,
Não sonhara, Marília, só contigo, Que, vista a verdade,
Sonhara de outra sorte. Gostosa me entregues
O teu coração.
Lira XXXV Os crimes desonram,
Se são existentes;
Se lá te chegarem Os ferros, que oprimem
Aos ternos ouvidos As mãos inocentes,
Uns tristes gemidos, Infames não são.
Repara, Marília,
Verás, que são meus. Chegando este dia,
Ah! dá-lhes abrigo, Os braços daremos:
Marília, nos peitos; Então mandaremos
Aqui os conserva De gosto, e ternura
Em laços estreitos, Suspiros aos Céus.
Unidos aos teus. Pôr-me-ão no sepulcro
A honrosa inscrição:
O vento ligeiro, “Se teve delito,
De ouvi-los movido, “Só foi a paixão,
Os pede a Cupido, “Que a todos faz réus.”
Que a todos apanha,
E lá tos vai pôr.
Ah! não os desprezes, Lira XXXVI
Porque se conspira
Não hás de Ter horror, minha Marília, Um doce contentamento,
De tocar pulso, que sofreu os ferros!
Infames impostores mos lançaram, Ah! não cantes, mais não cantes,
E não puníveis erros. Se me queres ser propício;
Eu te dou em que me faças
Esta mão, esta mão, que ré parece, Muito maior benefício.
Ah! não foi uma vez, não foi só uma,
Que em defesa dos bens, que são do Estado, Ergue o corpo, os ares rompe,
Moveu a sábia pluma, Procura o Porto da Estrela,
Sobe à serra, e se cansares,
É certo, minha amada, sim é certo Descansa num tronco dela,
Qu’eu aspirava a ser de um Cetro o dono;
Mas este grande império, que eu firmava, Toma de Minas a estrada,
Tinha em teu peito o trono. Na Igreja nova, que fica
Ao direito lado, e segue
As forças, que se opunham, não batiam Sempre firme a Vila Rica.
Da grossa peça, e do mosquete os tiros;
Só eram minhas armas os soluços, Entra nesta grande terra,
Os rogos, e os suspiros. Passa uma formosa ponte,
Passa a segunda, a terceira
De cuidados, desvelos, e finezas Tem um palácio defronte.
Formava, ó minha Bela, os meus guerreiros;
Não tinha no meu campo estranhas tropas; Ele tem ao pé da porta
Que amor não quer parceiros. Uma rasgada janela,
É da sala, aonde assiste
Mas pode ainda vir um claro dia, A minha Marília bela.
Em que estas vis algemas, estes laços
Se mudem em prisões de alívios cheias Para bem a conheceres,
Nos teus mimosos braços. Eu te dou os sinais todos
Do seu gesto, do seu talhe,
Vaidoso então direi: “Eu sou Monarca; Das suas feições, e modos.
“Dou leis, que é mais, num coração divino!
“Sólio que ergueu o gosto, e não a foça, O seu semblante é redondo,
“É que é de apreço digno.” Sobrancelhas arqueadas,
Negros e finos cabelos,
Lira XXXVII Carnes de neve formadas.

Meu sonoro Passarinho, A boca risonha, e breve,


Se sabes do meu tormento, Suas faces cor-de-rosa,
E buscas dar-me, cantando, Numa palavra, a que vires
Entre todas mais formosa.
Acabou-se, tirana,
Chega então ao seu ouvido, A honra, o zelo deste Luso Povo?
Dize, que sou quem te mando, Não é aquele mesmo,
Que vivo neta masmorra, Que estas ações obrou? É outro novo?
Mas sem alívio penando. E pode haver direito, que te mova
A supor-nos culpados,
Quando em nosso favor conspira a prova?
Lira XXXVIII
Há em Minas um homem,
Eu vejo aquela Deusa, Ou por seu nascimento, ou seu tesouro,
Astréia pelos sábios nomeada; Que aos outros mover possa
Balança numa mão, na outra espada. À força de respeito, à força d’ouro?
O vê-la não me causa um leve abalo, Os bens de quantos julgas rebelados
Mas, antes, atrevido, Podem manter na guerra,
Eu a vou procurar, e assim lhe falo: Por um ano sequer, a cem soldados?

Qual é o povo, dize, Ama a gente assisada


Que comigo concorre no atentado? A honra, a vida, o cabedal tão pouco,
Americano Povo? Que ponha uma ação destas
O Povo mais fiel e mais honrado: Nas mãos dum pobre, sem respeito e louco?
Tira as Praças das mãos do injusto dono, E quando a comissão lhe confiasse,
Ele mesmo as submete Não tinha pobre soma,
De novo à sujeição do Luso Trono! Que por paga, ou esmola, lhe mandasse!

Eu vejo nas histórias Nos limites de Minas,


Rendido Pernambuco aos Holandeses; A quem se convidasse não havia?
Eu vejo saqueada Ir-se-iam buscar sócios
Esta ilustre Cidade dos Franceses; Na Colônia também, ou na Bahia?
Lá se derrama o sangue Brasileiro; Está voltada a Corte Brasileira
Aqui não basta, supre Na terra dos Suíços,
Das roubadas famílias o dinheiro. Onde as Potências vão erguer bandeira?

Enquanto assim falava, O mesmo autor do insulto


Mostrava a Deusa não me ouvir com gosto; Mais a riso, do que a temor me move;
Punha-me a vista tesa, Dou-lhe nesta loucura,
Enrugava o severo e aceso rosto. Podia-se fazer Netuno ou Jove.
Não suspendo contudo no que digo; A prudência é tratá-lo por demente;
Sem o menor receio, Ou prendê-lo, ou entregá-lo
Faço que a não entendo, e assim prossigo: Para dele zombar a moça gente.
Aqui, aqui de todo
Aqui, aqui a Deusa A Deusa se perturba, e mais se altera;
Um extenso suspiro aos ares solta; Morde o seu próprio beiço;
Repete outro suspiro, O sítio deixa, nada mais espera.
E sem palavra dar, as costas volta. Ah! vai-te, então lhe digo, vai-te embora;
Tu te irritas! Lhe digo e quem te ofende? Melhor, minha Marília,
Ainda nada ouviste Eu gastasse contigo mais esta hora.
Do que respeita a mim; sossega, atende.

E tinha que ofertar-me PARTE III


Um pequeno, abatido e novo Estado,
Com as armas de fora, Lira I
Com as suas próprias armas consternado?
Achas também que sou tão pouco esperto, Convidou-me a ver seu Templo
Que um bem tão contingente O cego Cupido um dia;
Me obrigasse a perder um bem já certo? Encheu-se de gosto o peito,
Fiz deste Deus um conceito,
Não sou aquele mesmo, Como dele não fazia.
Que a extinção do débito pedia?
Já viste levantado Aqui vejo descorados
Quem à sombra da paz alegre ria? Os terníssimos amantes,
Um direito arriscado eu busco, e feio, Entre as cadeias gemerem;
E quero que se evite Vejo nas piras arderem
Toda a razão do insulto, e todo o meio? As entranhas palpitantes.

Não sabes quanto apresso A quem amas, quanto avistas


Os vagarosos dias da partida? (Diz Cupido) não aterra;
Que a fortuna risonha, Quem quer cingir o loureiro
A mais formosos campos me convida? Também vai sofrer primeiro
Daqui nem ouro quero; Todo o trabalho da guerra.
Quero levar somente os meus amores.
Contudo, que te dilates
Eu, ó cega, não tenho Neste sítio não convenho;
Um grosso cabedal, do mais herdado: Deixa a estância lastimosa,
Não o recebi no emprego, Vem ver a sala formosa
Não tenho as instruções dum bom soldado, Aonde o meu sólio tenho.
Far-me-iam os rebeldes o primeiro
No império que se erguia Entre noutro grande Templo;
À custa do seu sangue, e seu dinheiro? Que perspectiva tão grata!
Tudo quanto nele vejo
Passa além do meu desejo, Aqui tens o manso Touro,
E o discurso me arrebata. Tens o Cisne decantado,
A Velha em que foi mudado,
É de mármore, e de jaspe Com a grossa chuva de ouro.
O soberbo frontispício;
É todo por dentro de ouro; Aplica, Dirceu, agora
E a um tão rico tesouro Os olhos ara esta parte,
Inda excede o artifício. Aqui tens a Lira d’ouro
Que inda estima o Pastor louro;
As janelas não se adornam E a rede que enlaça a Marte.
De sedas de finas cores;
Em lugar dos cortinados, Vês este arco destramente
Estão presos, e enlaçados De branco marfim ornado?
Festões de mimosas flores. À casta Deusa servia,
E o perdeu quando dormia
Em torno da sala augusta Do gentil Pastor ao lado.
Ardem dourados braseiros,
Queimam resinas que estalam, Vês esta lira? com ela
E postas em fumo exalam Tira Orfeu ao bem querido
Da Panchaia os gratos cheiros. Dos Infernos onde estava:
Vês este farol? guiava
Ao pé do trono os seus Gênios Ao meu nadador de Abido.
Alegres hinos entoam;
Dançam as Graças formosas, Vês estas duas espadas
E aqui as horas gostosas Ainda de sangue cheias?
Em vez de correrem voam. A Tisbe, e a Dido mataram;
E os fortes pulsos ornaram
Estão sobre o pavimento De Píramo, e mais de Enéias.
Igualmente reclinados,
Nos colos dos seus amores, Sabes quem vai no navio,
Os grandes Reis, e os Pastores, Que este mar se levanta?
De frescas rosas coroados. É Teseu. Vês esse pomo?
É de Cípide, assim como
Mal o acordo restauro, São aqueles de Atlanta.
Me diz o moço risonho,
Como ainda não reparas Vê agora estes retratos,
Em tantas coisas tão raras, Que destros pincéis fizeram,
De que este Templo componho? Ah! que pinturas divinas!
Todas são das heroínas,
Sabes a história de Jove? Que mais vitórias me deram.
Mal exclamo assim, conheço
Repara nesse semblante, Ser a minha doce amada.
É o semblante de Helena;
Lá se avista a Grega armada, O coração pelos olhos
E aqui de Tróia abrasada Em terno pranto saía,
Se mostra a funesta cena. E no meu peito saltava;
Disfarçando amor, olhava
Vê est’outra formosura? Para mim a furto, e ria.
É a bela Deidamia;
Lá tens Aquiles ao lado, Depois de passado tempo,
De uma saia disfarçado, A mim se chega, e me abala;
Como com ela vivia. Desperto de tanto assombro;
Ele bate no meu ombro,
Cleópatra é quem se segue: E assim afável me fala:
Ali tens lançado a linha
Marco Antônio sossegado, Sim, caro Dirceu, é esta
Ao tempo em que Augusto irado A divina formosura,
Com armada nau caminha. Que te destina Cupido;
Aqui tens o laço urdido
Aqui Hérmia se figura; Da tua imortal ventura.
Vê um Sábio dos maiores,
Qual infame delinqüente, Um Nume, Dirceu, um Nume,
Ir desterrado, somente Que os trabalhos de um humano
Por cantar os seus amores. Desta sorte felicita,
Não é como se acredita,
Este é de Ônfale o retrato; Não é um Nume tirano.
Aqui tens (quem o diria!)
Ao grande Hércules sentado Olha se a cega Fortuna,
Com as mais damas no estrado, De tudo quanto se cria,
Onde em seu obséquio fia. Ou nos mares, ou na terra,
Em seus tesouros encerra
Anda agora a est’outra parte, Outro bem de mais valia?
Conheces, Dirceu, aquela?
Onde vais, lhe digo, explica, Lisas faces cor-de-rosa,
Que beleza aqui nos fica, Brancos dentes, olhos belos,
Sem fazeres caso dela? Lindos beiços encarnados,
Pescoço, e peitos nevados,
Ergo o rosto, ponho a vista Negros, e finos cabelos,
Na imagem não explicada,
Oh! quanto é digna de apreço! Não valem mais que cingires,
Com braço de sangue imundo, Foge o menino
Na cabeça o verde louro? e, disfarçado,
Do que teres montes de ouro? vive abrigado
Do que dares leis ao mundo? numa cruel.

Ah! ensina, sim, ensina Com mil carícias


Ao vil mortal atrevido, a ímpia o trata;
E ao peito que adora terno, nem o desata
Que tem, para um o Inferno, do peito seu.
Para outro um Céu, o Cupido.
Se a semelhança
Ao resto Amor me convida, sempre amor gera,
Eu chorando a mão lhe beijo, deve uma fera
E lhe digo: Amor, perdoa outra acolher.
Não seguir-te; pois não voa
A ver mais o meu desejo. Ah! se o teu nome,
Marília, calo,
que de ti falo
Lira II bem podes crer.

Em vão do amado
filho que foge, Lira III
Vênus quer hoje
notícias ter. Tu não verás, Marília, cem cativos
Tirarem o cascalho, e a rica, terra,
Sagaz e astuto Ou dos cercos dos rios caudalosos,
ele se esconde Ou da minada serra.
em parte aonde
ninguém o vê. Não verás separar ao hábil negro
Do pesado esmeril a grossa areia,
Dos sinais dados, E já brilharem os granetes de ouro
bem se conhece No fundo da bateia.
que ele aborrece
a mãe que tem. Não verás derrubar os virgens matos;
Queimar as capoeiras ainda novas;
Se os seus defeitos Servir de adubo à terra a fértil cinza;
Ela publica, Lançar os grãos nas covas.
razão lhe fica
de se ofender. Não verás enrolar negros pacotes
Das secas folhas do cheiroso fumo;
Nem espremer entre as dentadas rodas
Da doce cana o sumo. Um conta que há pouco
a seta aguçada
Verás em cima da espaçosa mesa em uma beleza
Altos volumes de enredados feitos; deixara empregada.
Ver-me-ás folhear os grande livros,
E decidir os pleitos. Diz outro que as flechas
cravara no peito
Enquanto revolver os meus consultos. de um grande, que teve
Tu me farás gostosa companhia, o mundo sujeito.
Lendo os fatos da sábia mestra história,
E os cantos da poesia. Enquanto das forças
cada um presumia,
Lerás em alta voz a imagem bela, seus membros já lassos
Eu vendo que lhe dás o justo apreço, o sono rendia.
Gostoso tornarei a ler de novo
O cansado processo. Dormindo tranqüilos,
a noite passaram,
Se encontrares louvada uma beleza, e inda antes da aurora
Marília, não lhe invejes a ventura, com ânsia acordaram.
Que tens quem leve à mais remota idade
A tua formosura. - É tempo que o leito
deixemos, ó Morte –
Amor, já erguido,
Lira IV falou desta sorte.

Amor por acaso - É tempo, - em reposta


a um pouso chegava, a Morte repete –
aonde acolhida que à nossa fadiga
a Morte se achava. dormir não compete.

Risonhos e alegres, As armas colhamos,


os braços se deram, voltemos ao giro:
e as armas unidas cada um a seu gosto
num sítio puseram. empregue o seu tiro.

De empresas tamanhas Vão, inda cos olhos


cansados já vinham, em sono turbados,
e em larga conversa ao sítio em que os ferros
a noite entretinham. estão pendurados.
Graças, ó Nise bela,
Amor para as setas graças à minha estrela!
da Morte se enclina;
de Amor logo a Morte As fortunas, que em torno de mim vejo,
co’as flechas atina. por falsos bens, que enganam, não reputo;
mas antes mais desejo:
Oh! golpes tiramos! não para me voltar soberbo em bruto,
oh! mãos homicidas! por ver-me grande, quando a mão te beijo.
são tiros da Morte Graças, ó Nise bela,
de Amor as feridas. graças à minha estrela!

De um sonho, que pinto, Pela ninfa, que jaz vertida em louro,


Marília, conhece o grande deus Apolo não delira?
se amor, ou se morte Jove, mudado em touro
esta alma padece. e já mudado em velha não suspira?
seguir aos deuses nunca foi desdouro.
Graças, ó Nise bela,
Lira V graças à minha estrela!

Eu não sou, minha Nise, pegureiro, Pertendam Anibais honrar a História,


que viva de guardar alheio gado; e cinjam com a mão, de sangue cheia,
nem sou pastor grosseiro, os louros da vitória;
dos frios gelos e do sol queimado, eu revolvo os teus dons na minha idéia:
que veste as pardas lãs do seu cordeiro. só dons que vêm do céu são minha glória.
Graças, ó Nise bela, Graças, ó Nise bela,
graças à minha estrela! graças à minha estrela!

A Cresso não igualo no tesouro;


mas deu-me a sorte com que honrado viva. Lira VI
Não cinjo coroa d’ouro; (Tradução)
mas povos mando, e na testa altiva
verdeja a coroa do sagrado louro. Amor, que seus passos
Graças, ó Nise bela, ligeiro movia
graças à minha estrela! por mil embaraços,
que um bosque tecia,
Maldito seja aquele, que só trata
de contar, escondido, a vil riqueza, Nos ombros me acena
que, cego, se arrebata com brando raminho;
em buscar nos avós a vã nobreza, e logo me ordena
com que aos mais homens, seus iguais, abata. que siga o caminho.
Anda encher de alegria estranhas terras;
Por entre a espessura Ah! por ti suspiram
do bosque me avanço; Os meus saudosos lares.
e atrás da ventura,
incauto, me lanço. Não corres como Safo sem ventura,
Em seguimento de um cruel ingrato,
Já tinha calcado Que não cede aos encantos da ternura;
os montes mais duros, Segues um fino amante,
co peito rasgado Que a perder-te morria.
os rios escuros: Quebra os grilhões do sangue, e vem, ó Bela;
Tu já foste no Sul a minha guia,
Eis que uma serpente, Ah! deves ser no Norte
a língua vibrando, Também a minha estrela.
me crava o seu dente,
me deixa expirando. Verás ao Deus Netuno sossegado,
Aplainar c’o tridente as crespas ondas;
Então, surpreendida Ficar como dormindo o mar salgado;
da dor que a traspassa, Verás, verás, d’alheta
minha alma ferida Soprar o brando vento;
aos beiços se passa.
Mover-se o leme, desrinzar-se o linho:
As iras detesta Seguirem os delfins o movimento,
Amor. Isto vendo, Que leva na carreira
e as asas na testa O empavesado pinho.
me bate, dizendo:
Verás como o Leão na proa arfando
- Tu choras, tu gemes, Converte em branca espuma as negras ondas,
da serpe tocado, Que atalha, e corta com murmúrio brando;
e o braço não temes Verás, verás, Marília,
de um númem irado? Da janela dourada,

Lira VII Que uma comprida estrada representa


A linfa cristalina, que pisada
Tu, formosa Marília, já fizeste Pela popa que foge,
Com teus olhos ditosas as campinas Em borbotões rebenta.
Do turvo ribeirão em que nascestes;
Deixa, Marília, agora Bruto peixe verás de corpo imenso
As já lavradas setas: Tornar ao torto anzol, depois de o terem
Pela rasgada boca ao ar suspenso;
Anda afoita a romper os grossos mares, Os pequenos peixinhos
Quais pássaros voarem; Eu vou, eu vou subindo a nau possante,
Nos braços conduzindo a minha bela;
De toninhas verás o mar coalhado, Volteia a grande roda, e a grossa amarra
Ora surgirem, ora mergulharem, Se enleia em torno dela;
Fingindo ao longe as ondas, Já ponho a proa à barra,
Que forma o vento irado. Já cai ao som do apito
Ora uma, ora outra vela.
Verás que o grande monstro se apresenta,
Um repuxo formando com as águas, Os arvoredos já se não distinguem:
Que ao mar espalha da robusta venta; A longa praia ao longe não branqueja;
Verás, enfim, Marília, E já se vão sumindo os altos montes,
As nuvens levantadas, Já não há que se veja
Nos claros horizontes,
Umas de cor azul, ou mais escuras, Que não sejam vapores,
Outras de cor-de-rosa, ou prateadas, Que Céu, e mar não seja.
Fazerem no horizonte
Mil diversas figuras. Parece vão correndo as negras águas,
E o pinho qual rochedo estar parado;
Mal chegares à foz do claro Tejo, Ergue-se a onda, vem à nau direita,
Apenas ele vir o teu semblante, E quebra no costado;
Dará no leme do baixel um beijo. O navio se deita,
Eu lhe direi vaidoso: E ela finge a ladeira
“Não trago, não, comigo, Saindo do outro lado.

“Nem pedras de valor, nem montes d’ouro; Vejo nadarem os brilhantes peixes,
“Roubei as áureas minas, e consigo Cair do lais a linha que os engana;
“Trazer para os teus cofres Um dourado no anzol está pendente,
‘‘Este maior Tesouro.” Sofre morte tirana,
Entretanto que a sente,
Ao tombadilho açoita
Lira VIII A cauda, e a barbatana.

Em cima dos viventes fatigados Sobre as ondas descubro uma carroça


Morfeu as dormideiras espremia: De formosas conchinhas enfeitada;
Os mentirosos sonhos me cercavam; Delfins a movem, e vem Tétis nela;
Na vaga fantasia Na popa está parada;
Ao vivo me pintavam Nem pode a Deusa bela
As glórias, que desperto, Tirar os brandos olhos
Meu coração pedia. Na minha doce amada.
Nas costas dos golfinhos vêm montados Dobro os joelhos, pelos pés o aperto;
Os nus Tritões, deixando a esfera cheia E manda que dos pés ao peito passe;
Com o rouco som dos búzios retorcidos. Marília, quanto eu fiz, fazer intenta;
Recreia, sim, recreia Antes que os pés lhe abrace
Meus atentos ouvidos Nos braços a sustenta;
O canto sonoroso Dá-lhe de filha o nome,
Da música sereia. Beija-lhe a branca face.

Já sobe ao grande mastro o bom gajeiro; Vou descer a escada, oh Céus, acordo!
Descobre arrumação, e grita – terra! Conheço não estar no claro Tejo;
À murada caminha alegre a gente; Abro os olhos, procuro a minha amada,
Alguns entendem que erra; E nem sequer a vejo.
Pelo imóvel somente Venha a hora afortunada,
Conheço não ser nuvem, Em que não fique em sonho
Sim o cume d’alta serra. Tão ardente desejo!

De Mafra já descubro as grandes torres; Lira IX


(E que nova alegria me arrebata!)
De Cascais a muleta já vem perto, Chegou-se o dia mais triste
Já de abordar-nos trata; que o dia da morte feia;
Já o piloto esperto, caí do trono, Dircéia,
Inda debaixo manda do trono dos braços teus,
Soltar mezena, e gata. Ah! não posso, não, não posso
dizer-te, meu bem, adeus!
Eu vou entrando na espaçosa barra,
A grossa artilharia já me atroa; Ímpio Fado, que não pôde
Lá ficam Paço d’Arcos, e a Junqueira; os doces laços quebrar-me,
Já corre pela proa por vingança quer levar-me
Uma amarra ligeira; distante dos olhos teus.
E a nau já fica surta Ah! não posso, não, não posso
Diante da grã Lisboa. dizer-te, meu bem, adeus!

Agora, agora sim, agora espero Parto, enfim, e vou sem ver-te,
Renovar da amizade antigos laços; que neste fatal instante
Eu vejo ao velho pai, que lentamente há de ser o teu semblante
Arrasta a mim os passos; mui funesto aos olhos meus.
Ah! com vem contente! Ah! não posso, não, não posso
De longe mal me avista, dizer-te, meu bem, adeus!
Já vem abrindo os braços.
E crês, Dircéia, que devem
ver meus olhos penduradas
tristes lágrimas salgadas Talvez, Dircéia adorada,
correrem dos olhos teus? que os duros fados me neguem
Ah! não posso, não, não posso a glória de que eles cheguem
dizer-te, meu bem, adeus! aos ternos ouvidos teus.
Ah! não posso, não, não posso
De teus olhos engraçados, dizer-te, meu bem, adeus!
que puderam, piedosos,
de tristes em venturosos Mas se ditosos chegarem,
converter os dias meus? pois os solto a teu respeito,
Ah! não posso, não, não posso dá-lhes abrigo no peito,
dizer-te, meu bem, adeus! junta-os cos suspiros teus.
Ah! não posso, não, não posso
Desses teus olhos divinos, dizer-te, meu bem, adeus!
que, terno e sossegados,
enchem de flores os prados E quando tornar a ver-te,
enchem de luzes os céus? ajuntando rosto a rosto,
Ah! não posso, não, não posso entre os que dermos de gosto,
dizer-te, meu bem, adeus! restitui-me então os meus.
Ah! não posso, não, não posso
Destes teus olhos, enfim, dizer-te, meu bem, adeus!
que domam tigres valentes,
que nem rígidas serpentes
resistem aos tiros seus? SONETOS
Ah! não posso, não, não posso
dizer-te, meu bem, adeus! 1

Da maneira que seriam É gentil, é prendada a minha Altéia;


em não ver-te criminosos, As graças, a modéstia de seu rosto
enquanto foram ditosos, Inspiram no meu peito maior gosto
agora seriam réus. Que ver o próprio trigo quando ondeia.
Ah! não posso, não, não posso
dizer-te, meu bem, adeus! Mas, vendo o lindo gesto de Dircéia
A nova sujeição me vejo exposto;
Parto, enfim, Dircéia bela, Ah! que é mais engraçado, mais composto
rasgando os ares cinzentos; Que a pura esfera, de mil astros cheia!
virão nas asas dos ventos
buscar-te os suspiros meus. Prender as duas com grilhões estritos
Ah! não posso, não, não posso É uma ação, ó deuses, inconstante,
dizer-te, meu bem, adeus! Indigna de sinceros, nobres peitos.
Cupido, se tens dó de um triste amante, Mas tu perdeste mais em me enganares:
Ou forma de Lorino dois sujeitos, Que tu não acharás um firme amante,
Ou forma desses dois um só semblante. E eu posso de traidoras ter milhares.

2 4

Num fértil campo de soberbo Douro, Ainda que de Laura esteja ausente,
Dormindo sobre a relva, descansava, Há de a chama durar no peito amante;
Quando vi que a Fortuna me mostrava Que existe retratado o seu semblante,
Com alegre semblante o seu tesouro. Se não nos olhos meus, na minha mente.

De uma parte, um montão de prata e ouro Mil vezes finjo vê-la, e eternamente
Com pedras de valor o chão curvava; Abraço a sombra vã; só neste instante
Aqui um cetro, ali um trono estava, Conheço que ela está de mim distante,
Pendiam coroas mil de grama e louro. Que tudo é ilusão que esta alma sente.

- Acabou – diz-me então – a desventura: Talvez que ao bem de a ver amor resista;
De quantos bens te exponho qual te agrada, Porque minha paixão, que aos céus é grata
Pois benigna os concedo, vai, procura. Por inocente assim melhor persista;

Escolhi, acordei, e não vi nada: Pois quando só na idéia ma retrata,


Comigo assentei logo que a ventura Debuxa os dotes com que prende a vista,
Nunca chega a passar de ser sonhada. Esconde as obras com que ofende, ingrata.

3 5

Enganei-me, enganei-me – paciência! Ao templo do Destino fui levado:


Acreditei às vezes, cri, Ormia, Sobre o altar num cofre se firmava,
Que a tua singeleza igualaria Em cujo seio cada qual buscava,
A tua mais que angélica aparência. Tremendo, anúncio do futuro estado.

Enganei-me, enganei-me – paciência! Tiro um papel e lio – céu sagrado,


Ao menos conheci que não devia Com quanta causa o coração pulsava!
Pôr nas mãos de uma externa galhardia Este duro decreto escrito estava
O prazer, o sossego e a inocência. Com negra tinta pela mão do fado:

Enganei-me, cruel, com teu semblante, “Adore Polidoro a bela Ormia,


E nada me admiro de faltares, sem dela conseguir a recompensa,
Que esse teu sexo nunca foi constante. nem quebrar-lhe os grilhões a tirania.”
Dar mãos Amor mo arranca, e sem detença, Prostra-se o gênio; e sem que a empresa tome
Três vezes o levando à boca impia, De lhe buscar sequer mais outro agouro,
Jurou cumprir à risca a tal sentença. O sítio beija, e lhe mostra o nome.

6 8

Quantas vezes Lidora me dizia, Nascer no berço da maior grandeza,


Ao terno peito minha mão levando: De palmas e de louros rodeado,
- Conjurem-se em meu mal os astros, quando Deve-se aos grandes pais, ao tronco honrado,
Achares no meu peito aleivosia! Que ilustra deste longe a natureza.

Então que não chorasse lhe pedia, Se porém muito mais se adora e preza
Por firme seu amor acreditando. O Dom que o nobre sangue traz herdado,
Ah! que em movendo os olhos, suspirando, Pela própria virtude sustentado,
Ao mais acautelado enganaria! Feliz o objeto da presente empresa.

Um ano assim viveu. Oh! céus, agora De mil heróis, no Tejo vencedores,
Mostrou que era mulher: a natureza, Um ramo nasce, um ramo que a memória
Só por não se mudar, a fez traidora. Faz imortal de seus progenitores.

Não, não darei mais cultos à beleza, Eu leio em vaticínio a sua história:
Que depois de faltar à fé Lidora, Une Francisco, a par de seus maiores
Nem creio que nas deusas há firmeza. Ao herdado esplendor a própria glória.

7 9

O nume tutelar da Monarquia, Mudou-se enfim Lidora, essa Lidora


Que fez do grande Henrique a invicta espada, Por quem mil vezes fé me foi jurada.
Procurou dos Destinos a morada, Que vos detém, ó céus, que castigada
Por consultar a idade que viria. Ainda não deixais tão vil traidora?

A mil e mil heróis descrito via, Não haja piedade; sinta agora
Que exaltam de furtado a estirpe honrada, A dita sem remédio em mal trocada:
E na série, que adora, dilatada, Pois, se assim não sucede, fica ousada
O nome de Francisco descobria. Para ser outra vez enganadora.

Contempla uma por uma as letras d’ouro; Vingai, ó justos céus..., mas ah! que digo?
Este penhor, que o tempo não consome, Que maltrateis Lidora? – O sentimento
Promete ao reino seu maior tesouro. Privou-me do discurso; eu me desdigo.
Não, não vibreis o raio violento; Quebrei o vil grilhão que me oprimia!
Pois se que a compaixão do seu castigo Oh! feliz de quem goza a liberdade,
Há de aumentar depois o meu tormento. Bem que venha por mãos da aleivosia!

10 12

Adeus, cabana, adeus; adeus, ó gado; Obrei quando o discurso me guiava,


Albina ingrata, adeus, em paz te deixo; Ouvi aos sábios quando errar temia;
Adeus, doce rabil; neste alto freixo Aos Bons no gabinete o peito abria,
Te fica, ao meu destino consagrado. Na rua a todos como iguais tratava.

Se te for meu sucesso perguntado, Julgando os crimes nunca os votos dava


não declares, rabil, de quem me queixo; Mais duro, ou pio do que a Lei pedia;
não quero que se saiba vive Aleixo Mas devendo salvar ao justo, ria,
por causa de uma infame desterrado. E devendo punir ao réu, chorava.

Se vires a pastor desconhecido, Não foram, Vila Rica, os meus projetos


lhe dize então piedoso: - Ah! vai-te embora, Meter em férreo cofre cópia d’ouro
atalha os danos, que outros têm sentido. Que farte aos filhos, e que chegue aos netos:

Habita nesta aldeia uma pastora, Outras são as fortunas, que me agouro,
de rosto belo, coração fingido, Ganhei saudades, adquiri afetos,
umas vezes cruel, e as mais traidora. Vou fazer destes bens melhor tesouro.

11 13

Com pesadas cadeias manietado, Quando o torcido buço derramava


Às vozes da razão ensurdecido, Terror no aspecto ao português sisudo,
Dos céus, de mim, dos homens esquecido, Quando, sem pó nem óleo, o pente agudo,
Me vi de amor nas trevas sepultado. Duro, intonso, o cabelo em laço atava.

Ali aliviava o meu cuidado Quando contra os irmãos o braço armava


C’o dar de quando em quando algum gemido. O forte Nuno, apondo escudo a escudo:
Ah! tempo! Que, somente refletido, Quando a palavra, que prefere a tudo,
Me fazes entre as ditas desgraçado. Com a barba arrancada João firmava.

Assim vivia, quando a falsidade Quando a mulher à sombra do marido


De Laura me tornou num breve dia Tremer se via; quando a lei prudente
Quanto a razão não pôde em longa idade: Zela o sexo do civil ruído;
Feliz então, então só inocente
Era de Luso o reino. Oh! bem perdido!
Ditosa condição, ditosa gente!

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