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Special contribution
adolescentes com excesso de peso1,2 e que 80% se mostra que estas duas condições são necessárias
sentem frustados com o tratamento da obesidade mas não suficientes para a mudança. Sabe-se por
pediátrica.3 Estes dados são de especial relevância, exemplo, que estilos confrontativos do profissional
atendendo a que a mudança de estilos de vida é ten- de saúde estão associados a elevados níveis de resis-
dencialmente mais fácil de conseguir na infância e tência terapêutica por parte do doente8 e que, por
na adolescência do que na vida adulta. E esta difi- outro lado, se o terapeuta promover uma linguagem
culdade é comum a outras áreas de intervenção. Por de mudança por parte do próprio doente (em vez
exemplo, apesar de a evidência científica mostrar de impor a mudança), a possibilidade de o doente
que, de uma forma geral, a psicoterapia é eficaz (no ultrapassar a ambivalência/resistência inerentes à
fim do processo terapêutico, quem faz psicoterapia mudança é maximizada.9
encontra-se significativamente melhor do que cer- Ao tentar-se perceber o que é que realmente
ca de 80% dos doentes não submetidos a interven- funciona como motor da mudança emocional, cog-
ção)4, é sabido que os seus resultados não são igual- nitiva e comportamental, verificou-se que cerca de
mente optimistas em todas as áreas de intervenção, 30% da variância das intervenções psicoterapêu-
nomeadamente no que se refere aos comportamen- ticas pode ser atribuída a factores comuns a todas
tos aditivos, às perturbações alimentares e a alguns as orientações teóricas.10,11 Estes factores estão bem
tipos de depressão, com resultados positivos a variar identificados, com destaque para (a) a qualidade da
entre 45% e 95% dos casos, consoante os estudos aliança terapêutica, (b) para a capacidade do tera-
publicados.4 peuta em dar explicações alternativas sobre a per-
No contexto da prevenção e do tratamento da turbação e (c) para a capacidade do terapeuta em
obesidade, por tradição da intervenção biomédica, proporcionar experiências emocionais correctivas.
a promoção de comportamentos saudáveis (nomea- Destes elementos, o principal preditor do resultado
damente, dietas e exercício físico), é frequentemen- terapêutico é a qualidade da aliança terapêutica, in-
te realizada num estilo terapêutico directivo, em que dependentemente de orientação teórica. O bom te-
a autoridade epistemológica é centrada no terapeu- rapeuta: (a) cuida adequadamente da aliança no que
ta. O profissional de saúde elucida o doente quanto diz respeito às rupturas desta nas suas vertentes de
ao que está errado no seu estilo de vida (ou seja, o laço, acordo relativamente a objectivos e a tarefas12,13
que tem conduzido ao aumento do peso) e quanto e acordo relativo à representação do problema;14
ao que é desejável fazer para evitar este problema, (b) é sensível às diferenças individuais dos doen-
procurando, desta forma, orientá-lo para a adopção tes para além do mero diagnóstico nosológico;15,16
dos comportamentos que visam a redução ou ma- (c) auxilia o doente a identificar os seus padrões
nutenção do peso. Face a este tipo de intervenção, é interpessoais, cognitivos e afectivos;17 (d) auxilia a
comum o doente adoptar muitas vezes uma atitude bloquear padrões não-adaptativos;17 (e) fomenta a
passiva e/ou resistente, o que por si só é preditor do responsabilidade e a vontade de mudar do doente;17
insucesso terapêutico.5 (f) promove experiências de aprendizagem de no-
Na realidade, a mudança comportamental é um vos padrões interpessoais, cognitivos e afectivos;17
fenómeno complexo, com múltiplos determinantes, (g) consolida as mudanças, ajuda a atribui-las aos
incluindo variáveis motivacionais e, na maior parte esforços do doente e antecipa dificuldades futuras; e
das vezes, gerador de stress associado a processos (h) respeita uma sequência temporal de objectivos
ambivalentes, expressos no dilema entre manter o estratégicos.18
estado actual e o avançar para formas de estar dife- Resumindo, tanto importa compreender como
rentes. A título de exemplo, dizer às pessoas que, ao ocorre a mudança comportamental associada ao
manterem um determinado comportamento, estão objectivo de perda de peso como conhecer os seus
a aumentar o risco de contraírem uma doença é rara- processos (cognitivos, comportamentais, emocio-
mente suficiente para a mudança comportamental; nais) e etapas. Importa ainda manter presente que
as pessoas mudam quando acreditam que a mudan- a intervenção terapêutica na redução e no controlo
ça é realmente eficaz e que conseguem implemen- do peso depende da capacidade de mobilização, da
tar essa mesma mudança. 6,7 No entanto, a literatura motivação do doente com excesso de peso em adop-
los de vida, e é especialmente útil nos casos em que cia; e algumas pessoas preferem um estilo de in-
a díade terapeuta-doente está a ter dificuldade em tervenção mais directivo e educacional27, pelo que
atingir os objectivos definidos em comum. Embora o seu uso deve ser equacionado em função das ne-
seja apresentada por estes autores como uma técni- cessidades, preferências e variáveis culturais de cada
ca de intervenção clínica, talvez seja mais heurístico doente.
considerar a entrevista motivacional como um es-
tilo de intervenção terapêutico (directivo, embora A entrevista motivacional à luz do modelo
centrado no doente). O profissional de saúde que transteórico da mudança e da teoria
adopte este estilo, assume uma postura igualitária, da auto-determinação
empática, tendo por principal objectivo ajudar a li- Um aspecto central da entrevista motivacional é a
dar com a ambivalência e a ultrapassá-la. Assume-se prontidão para a mudança. Neste sentido, o mo-
que a mudança comportamental é melhor promo- delo transteórico da mudança22 tem sido utilizado
vida pela motivação autónoma (do doente) do que como enquadramento conceptual dos processos
pela transmissão de informação1 ou pela persuasão terapêuticos baseados em entrevista terapêutica,
ou directividade associáveis à autoridade epistemo- por fornecer um quadro de referência para avaliação
lógica do profissional de saúde. do estádio de mudança, bem como dos processos
Passar de um estilo directivo para um estilo subjacentes a este estádio, momento a momento de
“orientador” requer aos profissionais de saúde uma intervenção.
mudança de atitude acerca de quem é responsável Quer o modelo transteórico da mudança quer
pela resolução do problema de saúde e sobre o modo a entrevista motivacional enfatizam a necessidade
como o tempo de consulta é utilizado. O estilo de in- de adoptar estratégias de intervenção adequadas ao
tervenção orientador implica a supressão do instinto estádio de mudança (e prontidão para a mudança)
para dar respostas ao doente através de perguntas e/ do doente. A efectividade da intervenção passa por
ou conselhos. De uma forma geral, as ferramentas utilizar as técnicas terapêuticas adequadas no mo-
relacionais que se utilizam em qualquer dos estilos mento certo. Contudo, importa salientar que, na en-
são as mesmas: informar, questionar e escutar aten- trevista motivacional, a motivacão para a mudança
tamente o que o doente afirma. É o modo como estas assume maior dinamismo do que no modelo trans-
ferramentas são utilizadas que difere, com especial teórico da mudança (que pressupõe que os estádios
ênfase das primeiras duas (informar e questionar) no são mais estáveis no tempo). De facto, na perspec-
estilo directivo e especial ênfase da última no estilo tiva da entrevista motivacional, a prontidão para a
orientador (escutar).9 A motivação autónoma é espe- mudança pode flutuar (em qualquer das direcções)
cialmente promovida quando o profissional de saúde ao longo de uma sessão, em função dos conteúdos
facilita ao doente uma reflexão aprofundada, mate- que vão emergindo (quer por parte do terapeuta
rializada por verbalizações do próprio doente, acerca quer por parte do doente), cabendo ao terapeuta
das suas necessidades de compreensão e de informa- facilitar a progressão para estádios mais propensos
ção, fornecendo-lhe, então, informação seguida de à mudança.
novas deixas para que o doente verbalize a utilidade Se o modelo de Prochaska e DiClemente é um
e possibilidade de utilização da mesma, numa estru- quadro conceptual muito útil para a execução da en-
tura de interacção típica da entrevista motivacional trevista motivacional, a efectividade deste modelo
(elicitação-informação-elicitação).1 Isto porque um de intervenção é mais facilmente explicável através
dos princípios nucleares da entrevista motivacional é da teoria da auto-determinação28, actualmente o
o de que as pessoas têm maior propensão para aceitar modelo que mais consensualmente explica as de-
e agir em função de opiniões e planos que elas pró- terminantes motivacionais subjacentes ao compor-
prias verbalizem.26 tamento de mudança e de manutenção de novos
De qualquer modo, importa ter presente que a hábitos.29
entrevista motivacional não é uma panaceia. Na re- De acordo com a teoria da auto-determinação,
alidade, a entrevista motivacional é especialmente a predição da mudança passa pela compreensão da
eficaz em doentes com elevado nível de ambivalên- forma como as pessoas interiorizam e integram mo-
tivações extrínsecas (i.e., motivações promovidas tonomia nas acções (expresso no primado da entre-
pelo ambiente físico, social, relacional e afectivo que vista motivacional em ser o doente a fazer as suas
envolve a pessoa) e pela forma como auto-regulam e próprias escolhas, bem como a gerir os tempos e
se implicam de forma autónoma em novos compor- formas de mudança, com o apoio e orientação do
tamentos (adquirindo novos hábitos).28 A regulação terapeuta), e a necessidade de “estar em relação”
autónoma dos comportamentos é entendida como (amplamente defendido pelos autores da entrevista
sendo mais estável e prolongada no tempo (do que motivacional, nomeadamente no que toca à relação
a regulação heterónoma – de regulação externa, no doente-terapeuta, através da aposta na relação tera-
outro extremo), tendo efeitos mais positivos no que pêutica centrada no doente).
se refere ao bem-estar, à satisfação com a vida e à Resumindo, a entrevista motivacional pode fa-
qualidade de vida.30 cilitar a mudança comportamental auto-motivada
Quer a entrevista motivacional quer a teoria e autónoma (logo, mais prolongada) ao promover
da auto-determinação dão especial relevância ao a interiorização e integração da regulação dos no-
pressuposto de que os seres humanos têm uma ten- vos comportamentos, e ao garantir que estes novos
dência inata para o crescimento pessoal através da comportamentos sejam sintónicos com os objecti-
integração psicológica e da resolução da inconsis- vos e valores do doente.
tência psicológica.30,31 O ênfase dado pela teoria da
auto-determinação à interiorização da mudança te- Efectividade da entrevista motivacional no
rapêutica e à satisfação das necessidades é em tudo tratamento de excesso de peso e obesidade
compatível com os princípios e estratégias clínicas Como já referido, a entrevista motivacional foi ori-
da entrevista motivacional.32 ginalmente delineada para o tratamento de com-
À semelhança do proposto por Miller e Rollni- portamentos aditivos19,33-35, com eficácia clínica
ck21 para a entrevista motivacional, o modelo da comprovada em vários ensaios clínicos randomiza-
auto-determinação tem implícita a noção de que o dos36,37. Contudo, nos últimos dez anos a entrevista
processo de integração de novos comportamentos motivacional tem sido utilizada como ferramenta
pode ser facilitado ou dificultado pelo ambiente so- clínica de intervenção em vários tipos de doença
cial e afectivo da pessoa. Um ambiente que frustre crónica1, nomeadamente na mudança e adopção
a satisfação das necessidades através do controlo, de estilos de vida mais salutogénicos (incluindo
desafio excessivo, ou rejeição das necessidades, di- alimentação saudável e prática de actividade física).
ficulta ou mesmo impede a interiorização e a auto- Importa salientar que, uma vez que a obesidade não
motivação, resultando frequentemente em compor- é um comportamento, a intervenção motivacional
tamentos defensivos e à resistência à mudança.28 nesta área clínica implica antes de mais a identifi-
De forma similar, tem sido proposto que um dos cação dos comportamentos que contribuem para o
factores de efectividade da entrevista motivacional ganho ponderal. Por outro lado, apesar de a entre-
na adopção de novos comportamentos passa pela vista motivacional ser útil para ajudar a ultrapassar a
promoção (por este tipo de intervenção) de um ambivalência e a clarificar os aspectos motivacionais
conjunto de factores sócio-ambientais facilitadores subjacentes à mudança (ou não mudança) no indi-
(tidos como necessários, à luz da teoria da auto- víduo com excesso de peso ou obesidade, é necessá-
determinação) para a expressão da tendência inata rio ter em conta a possibilidade (bastante frequente
para o crescimento pessoal.29 no doente obeso) de psicopatologia (nomeadamen-
Ainda outro aspecto conceptual da teoria da te do humor), o que implica o recurso a estratégias
auto-determinação que encontra eco na entrevista psicoterapêuticas complementares (e compatíveis
motivacional tem a ver com o pressuposto de exis- com o estilo da entrevista motivacional), como, por
tência de três necessidades psicológicas fundamen- exemplo, a terapia cognitivo-comportamental ou a
tais como base da auto-motivação e da integração terapia interpessoal.1,38
da personalidade30: a necessidade de competência Vários estudos de meta-análise36,39 e de revisão
(conceito equivalente, no modelo da entrevista sistemática37,40,41 evidenciaram a efectividade da
motivacional, à auto-eficácia), a necessidade de au- entrevista motivacional (ou de componentes deste
Correspondência
Osvaldo Santos
email: osvaldorsantos@sapo.pt