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SACRINI, M. Introdução à análise argumentativa: teoria e prática. São Paulo: Paulus, 2016.

(Coleção Lógica) - Antônio David

Revista de Filosofia
DOI: 10.36517/Argumentos.28.9 e-ISSN: 1984-4255

RESENHA

SACRINI, M. Introdução à análise


argumentativa: teoria e prática. São Paulo:
Paulus, 2016. (Coleção Lógica)

Antônio David
https://orcid.org/0000-0001-9857-6662 – E-mail: mdsf.antonio@gmail.com

As tarefas de reconhecimento, avaliação, reconstrução e produção de argumentos,


sejam simples ou complexos, constitui requisito elementar das atividades desempenhadas
pelo ser humano não apenas em âmbito intelectual e profissional, mas em todas as dimensões
do mundo da vida1. A não evidência de temas e questões em face das quais queremos ou pre-
cisamos nos posicionar conduz ao problema de sua justificativa racional, isto é, concluir, com
base em premissas, teses não evidentes por si, segundo um movimento inferencial regido por
critérios lógicos. Nesses termos, é por si evidente que a argumentação, como expressão linguís-
tica da racionalidade, intervém decisivamente na atividade acadêmica e científica.
Compreendidas no campo da lógica não formalizada – distinto da linguagem natural –, as ha-
bilidades exigidas pelo domínio dos princípios, técnicas e estratégias de argumentação, longe
de serem algo exterior ao trabalho acadêmico e científico, situam-se em seu núcleo mesmo.
Essa relação aparece de maneira particularmente instigante em Introdução à análise argumen-
tativa: teoria e prática (2016), de Marcus Sacrini.

A cultura racional e seu avesso


Embora Introdução à análise argumentativa (2016) seja um manual, seu escopo ultra-
passa em muito a mera exposição de princípios e estratégias da argumentação. Nessa obra,
Marcus Sacrini toca em questões de fundo concernentes à própria racionalidade como con-

1
Sobre o conceito husserliano de mundo da vida, (Cf. SACRINI, 2014).

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dição de possibilidade da boa argumentação2. O conceito que melhor as designa é o de cultura


racional (SACRINI, 2016, p. 50; 258; 277-8; 324)3. É sob esse pano de fundo, ou sob o pressuposto
da vigência ou do predomínio de uma cultura racional, que o conceito de força lógica – o con-
ceito central do livro – ganha sentido: a força lógica permite que a justificativa para uma tese
não evidente prescinda da subjetividade daquele que a veicula e daquele que a recebe (gostos,
opiniões, crenças, preferências), dependendo apenas e tão somente do modo como as sen-
tenças do argumento se relacionam, ou, mais precisamente, do elo inferencial que une pre-
missas e conclusão, o que é suficiente para seu reconhecimento público (SACRINI, 2016, p. 50).
Por certo a força lógica não elimina a subjetividade na prática argumentativa, mas tem o mérito
de garantir um campo de interlocução capaz de fazer o debate avançar de maneira regrada. Ela
se dá por meio da obediência do arguidor às regras da argumentação per se, bem como a regras
de conduta em contextos de debate, como o respeito ao princípio da caridade, pelo qual o ar-
guidor considera o argumento mais forte de seu adversário – o que pressupõe “[conhecer] em
detalhe” e “estudar seriamente as posições alheias” –, e ao princípio do posicionamento não
dogmático, pelo qual o arguidor mantém um desprendimento mínimo em relação à tese que
sustenta (SACRINI, 2016, p. 96-102; 263-6; 293). Não é difícil de se ver que o caráter radicalmente
democrático do predomínio da força lógica em uma controvérsia, afinal, por esse critério, para
que um argumento seja aceito ou não, em nada importa quem o veicula, mas apenas e tão so-
mente o argumento em si mesmo.
O conceito de cultura racional compreende a um só tempo o ambiente no qual a prática
argumentativa se dá e esquemas cuja atualização só é possível porque amparada na identidade
pessoal, unificados pela formação cultural: ponto de encontro entre indivíduo e cultura, a for-
mação cultural viabilizaria, em larga escala, “a valorização dos recursos racionais como ferra-
mentas priorizadas para a condução de questões controversas” (SACRINI, 2016, p. 329). Sob a
cultura racional, as paixões e os interesses por certo não desapareceriam, mas não prevalece-
riam em face da racionalidade e do “interesse comum”, tornando possível, enfim, o “desenrolar
racionalmente saudável das controvérsias” (SACRINI, 2016, p. 97; 258). Em uma palavra, o res-
peito às regras da boa argumentação não seria uma obediência cega ou vivida como coerção,
mas envolveria uma verdadeira adesão. À dimensão cognitiva implicada no ato de justificar
teses não evidentes corresponderia, assim, uma dimensão ética: um agir racional, do qual o ar-
gumento seria “o instrumento decisivo”, evitando com isso “posições irrefletidas” e favorecendo
a “emancipação racional” (SACRINI, 2016, p. 256; 323; 335-6)4. No fechamento do livro, Sacrini
recorre a uma analogia emblemática do lugar que a cultura racional deve ocupar na vida de
cada um:

Assim como um cristão se persigna diante de uma igreja – sem nem mesmo ter total
clareza de por que o faz, executando um tipo de gesto cultural deflagrado pela situação
decodificada conforme esquemas simbólicos priorizados por ele, os arguidores formados em
um ambiente cultural fecundo para a argumentação, diante de uma questão controversa,
chamam com naturalidade um ao outro: “vamos discutir as razões disponíveis para esse
caso” (SACRINI, 2016, p. 338).

2
Ainda que tais questões tenham recebido um tratamento mais sistemático no epilogo, elas atravessam a obra como um todo.
3
O autor volta a abordar a questão no capítulo 2 de Leitura e escrita de textos argumentativos (2019).
4
Ao falar dos “estilos de comportamento”, o autor chega a empregar a expressão “tornar-se pessoa” e a noção de identidade exis-
tencial (SACRINI, 2016, p. 325; 327; 338).

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Em algumas partes do livro, Sacrini reconhece que, na prática, as controvérsias nem


sempre se desenrolam segundo os parâmetros acima5. Com efeito, ao introduzir o ponto acerca
da condução das controvérsias, ele faz a ressalva de que as condições que elencará não corres-
pondem a “uma discussão abstrata de como as discussões argumentativas ocorreriam no
mundo da racionalidade perfeita”, mas ao “estabelecimento de critérios que permitam deter-
minar o enviesamento ou outros problemas em uma discussão real, oferecendo perspectivas
de correção tendo em vista a condução produtiva dos debates racionais” (SACRINI, 2016, p.
258-9). Tal afirmação, contudo, não me parece inteiramente fiel à obra, não porque nela haveria
uma idealização, mas porque a proposta de Sacrini não se limita à dimensão normativa da prá-
tica argumentativa, ainda que esta seja central na obra. Na caracterização e fundamentação da
cultura racional tal como realizada pelo autor, há uma dimensão histórico-descritiva – distinta
da dimensão normativa – que, ocupando um lugar igualmente central no argumento do autor,
confere à obra um especial interesse para meu propósito6.
Exemplo emblemático do lugar proeminente ocupado pela dimensão histórico-descritiva
é o dos pressupostos ou dados não discutidos, próprios das premissas: “para que a argumen-
tação opere corretamente, é preciso pressupor um ponto de partida de dados não discutidos,
tomados, ainda que apenas contextualmente, como certos ou ao menos aceitáveis” (SACRINI,
2016, p. 21)7. Sacrini insiste nessa ideia porque não se trata apenas de os arguidores entenderem
um mesmo idioma e outros condições tão elementares quanto essa, mas de partirem de pressu-
postos mínimos comuns no sentido forte do termo, ou seja, convergentes com as noções de
verdade, certeza ou aceitabilidade, partilhadas inclusive pelo público da controvérsia argumenta-
tiva (SACRINI, 2016, p. 21; 23-4; 26; 124-5). No caso da aceitabilidade, o autor reconhece tratar-se
de um atributo “[sujeito] à relatividade histórico-cultural” (SACRINI, 2016, p. 125).
Ao caráter contextual implicado no estatuto epistemológico das premissas, some-se o
caráter contextual envolvido na busca por contraexemplos plausíveis na aferição da força ló-
gica de inferências argumentativas de tipo indutivo, as quais veiculam uma conclusão não ne-
cessária, mas possível: segundo Sacrini, a plausibilidade “envolve a consideração dos conheci-
mentos partilhados pelos participantes de certa discussão em curso”, razão pela qual “a noção
de plausibilidade é contextual” (SACRINI, 2016, p. 54; 59). A própria determinação da posição
mais bem justificada em controvérsias nas quais há posições incompatíveis razoavelmente de-
senvolvidas acaba sendo “uma tarefa relativa”, dependente de contingências ligadas às condi-
ções do debate/confronto e das capacidades dos arguidores (SACRINI, 2016, p. 291).
Se do ponto de vista normativo as formas culturalmente enraizadas de esquemas de
ação e compreensão alternativos ao agir racional – como as visões de mundo tradicionais dog-
máticas, a autoridade e os interesses pessoais ou corporativos – “[não] são preferíveis por seus
méritos em evitar equívocos e em garantir a racionalidade das posições escolhidas” (SACRINI,
2016, p. 331), o peso determinante do contexto na argumentação nos faz lembrar que movi-
mentos inferenciais desprovidos de força lógica ou até mesmo falaciosos frequentemente são

5
Trata-se, obviamente, de contextos outros que não aqueles “contextos cotidianos” que “não estão abertos, senão excepcional-
mente, à argumentação" (SACRINI, 2016, p. 20).
6
Ao tratar da “receptividade cultural” à argumentação, Sacrini informa ao leitor não ter em mente, na abordagem da questão, aque-
las condições sociais “muito básicas”, inexistentes em “casos extremos”, e declara: “interessa-me mencionar o caso, mais próximo das
circunstâncias concretas de nosso país (assim creio), em que as situações sociais para as discussões racionais estão garantidas por
lei, embora muito ainda precise ser feito para fomentar e fortalecer as discussões que aí ocorrem” (SACRINI, 2016, p. 325).
7
O autor volta a essa ideia ao longo do livro muitas vezes, valendo-se para tanto de conceitos análogos a “ponto de partida de
dados não discutidos”, como “horizonte de 'certezas' não problematizadas”, “amplo horizonte de verdades não questionadas”,
“crenças prévias”, “conhecimento estabelecido”, “senso comum partilhado”, “ponto de partida mutuamente reconhecido em sua
legitimidade”, dentre outros (SACRINI, 2016, p. 21-4; 58; 118; 150; 259-63).

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preferidos por serem dotados de força social, política, moral, econômica, religiosa ou estética, e
que argumentos “inúteis para oferecer sustentação lógica” (SACRINI, 2016, p. 118) a teses não
evidentes por si podem, ainda assim, ser tidos como úteis de outras perspectivas que não a ló-
gica. O problema aqui apontado não se limita às premissas, mas alcança a conclusão do argu-
mento: uma vez que a força inferencial veicula determinado “nível de legitimidade atribuído
pelas premissas à conclusão” (SACRINI, 2016, p. 95), é forçoso levar em conta que a legitimidade
implicada na conclusão padece da mesma vulnerabilidade, afinal, uma conclusão, ainda que
não legítima da perspectiva lógica, pode gozar de legitimidade social.
Tais apontamentos acendem o sinal amarelo para o risco de, em controvérsias, a cultura
racional sucumbir. Sacrini não é indiferente a essa ameaça: o avesso da cultura racional figura
em várias partes do livro sob diferentes designações: erro, equívoco, ilusão, arbitrariedade,
crença (errada), fanatismo, idolatria, obstinação, ortodoxia e, com destaque, dogmatismo – cuja
crítica, aqui, não implica na defesa do ceticismo (SACRINI, 2016, p. 334). Convém notar que o
autor diferencia entre o lapso daquele que é capaz de realizar a boa argumentação, de um lado,
e o erro cometido por aquele que vive preso ao dogmatismo, de outro. Quanto a este, ele é ca-
tegórico: aparecendo como um comportar-se que não recusa a divergência, o agir racional
“evita os erros crassos a que todo dogmatismo se expõe ao ignorar dados contrários relevantes”
(SACRINI, 2016, p. 335, o destaque é meu). Se o lapso é favorecido pelo “viés do ponto cego” e,
de uma maneira geral, à “dificuldade em representar corretamente as posições adversárias”, na
gênese do dogmatismo – e, eventual e inadvertidamente, do lapso – podem estar desde o
apego à tradição e à autoridade até o interesse econômico e a busca por prestígio, passando
pela ligação afetiva, pela defesa de determinada ideologia e até mesmo pela fragilidade lógica
da própria posição (SACRINI, 2016, p. 258, 264. Cf. ainda p. 98; 264-5; 269-70; 274; 324-6; 329-30).
Esses e outros motivadores são favorecidos pela comoção, quando as questões em litígio são
espetacularizadas pelos meios de comunicação de massa (SACRINI, 2016, p. 276)8.
Ao lado dessas designações, que oferecem as várias faces do dogmatismo, figura a
imagem de seu vetor: o obstinado ou o fanático (p. ex., SACRINI, 2016, p. 266; 273). Ainda que o
livro não se proponha a informar quem são concretamente os dogmáticos, as ilustrações ofere-
cidas pelo autor ao longo da obra revelam certo viés. Refiro-me, em particular, à reiterada alusão
à religião (p. ex., SACRINI, 2016, p. 99-100; 259-60; 272-3; 290; 324; 327; 329)9. Além desta, em
duas ocasiões é nomeada a política, nas formas de “tradições políticas” e “facções políticas radi-
cais” (SACRINI, 2016, p. 324; 329). A seletividade com que são ilustradas as formas alternativas
ao agir racional não tem uma contrapartida em ilustrações das formas do agir racional. Ainda
assim, em contraste com aquelas, é notável o otimismo do autor em relação aos domínios cien-
tífico e acadêmico, bem como ao conhecimento técnico e especializado. É sobre esse ponto
que quero me concentrar. Em vista de meu objetivo na presente resenha, dedicarei alguns pa-
rágrafos ao que considero, na abordagem de Sacrini, um otimismo demasiado em relação à
atividade acadêmica e científica.

8
Sacrini faz a ressalva de que, em controvérsias acerca de valores e deliberações, o apelo às emoções e o ataque à pessoa podem
ser legítimos (SACRINI, 2016, p. 236-8). Embora ele procure dissociar esses casos do dogmatismo, parece haver – e o livro reforça
essa leitura – uma zona cinzenta na qual é a legitimidade ou não desses expedientes não é clara. É emblemático que a menciona-
da ressalva tenha sido feita poucas linhas depois de Sacrini ter oferecido, como exemplos da falácia da “conclusão ou refutação
irrelevante”, três casos desse tipo de controvérsia, os três do universo judicial (cf. p. 234).
9
Sequer as duas notas de rodapé nas quais o autor procura desfazer a ideia de que a religião não é necessária ou essencialmente
prejudicial ao agir racional dá conta do problema aqui notado; ao contrário, independente das convicções de Sacrini, o fato de ele
ter se sentido obrigado a desfazer qualquer mal-entendido duas vezes apenas confirma o viés na veiculação discursiva emprega-
da (SACRINI, 2016, p. 327; 337-8).

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Ao fazer menção aos contraexemplos plausíveis como “as situações logicamente possíveis
(ainda que imaginárias) construídas no interior dos limites daquilo que é considerado como conhe-
cimento estabelecido” ou ao menos “como um senso comum partilhado acerca do mundo real”,
Sacrini oferece como exemplo do respeito a tais limites a “maior parte das comunidades acadê-
micas” (SACRINI, 2016, p. 58, o último destaque é meu). Cabe indagar: se é certo que nelas não
se aceitam “fadas, dragões, fantasmas, rompimentos bruscos das leis da natureza, pessoas que
repentinamente começam a voar etc.”, será igualmente certo que a maior parte das comuni-
dades acadêmicas é imune àqueles motores do dogmatismo há pouco citados – ou ao menos
a “posições irrefletidas”? Por seu turno, fazendo alusão às falácias, Sacrini é taxativo: “as gera-
ções formadas em tradições filosóficas ou científicas historicamente sedimentadas tentam
evitar o uso desses argumentos, embora obviamente não sempre consigam” (SACRINI, 2016, p.
225, o destaque é meu). Penso caber aqui semelhante indagação: é certo que tentem sempre?
O otimismo de Sacrini em relação à academia transparece nas partes em que são tema-
tizados os debates acadêmicos, em contraste com os debates aplicados (SACRINI, 2016,
p. 251s). Não é necessário discorrer aqui sobre as características de um e de outro. Para meu
propósito, é suficiente observar que a menção à coerção em debates acadêmicos, sem dúvida
descritiva, é exposta em termos ambíguos: se a coação se manifesta como “resistência de parte
de grupos”, quem coage é “parte do público” – ou seja, não os arguidores (SACRINI, 2016, p. 276,
o destaque é meu).
Particularmente rica é a discussão sobre o encerramento dos debates acadêmicos
(SACRINI, 2016, p. 309s). Aqui novamente, os termos parecem retirar destes o peso do dogma-
tismo. No caso dos “desacordos racionalmente sustentados”, por exemplo, Kuhn teria obser-
vado a “dificuldade” da aceitação de novos paradigmas no interior da comunidade científica, de
modo que seria “difícil” circunscrever um denominador comum que permitisse pesar a rele-
vância dos valores ou propostas concorrentes (SACRINI, 2016, p. 316-7). É certo que o escopo de
Kuhn são os valores cognitivos, mas a “dificuldade” apontada por Sacrini é sem dúvida válida no
que concerne aos valores sociais, e provavelmente até mais. Já no caso das “estratégias institu-
cionais”, em que os interesses pessoais ou corporativos intervêm, os termos usados por Sacrini
para descrever essa interferência são distintos daqueles usados quando o autor se refere ao
dogmatismo ao longo do livro. Aqui, a crítica é formulada em termos de “[utilização de] certos
recursos institucionais” ou “estratégias institucionais”, “[envolvimento de] interações e interesses
socioinstitucionais”, “apelo [a] redes institucionais” ou a “relações sociopolíticas”, expressões
que, em si mesmas, não fomentam no leitor a ideia de práticas nocivas ou ilegítimas. Ademais,
a situação de “dominância institucional de uma posição ou concepção teórica sobre outras” é
restrita ao problema da representatividade numérica da posição que se encontra em desfavor,
ou seja, às “posições marcadamente minoritárias”, e é igualmente restrita a explicação para a
interrupção do debate quando os “partidários de posições minoritárias” logram inserir-se nele:
este não perdura “porque não há a disponibilização de todo o suporte material-institucional
necessário” (SACRINI, 2016, p. 319-20, o destaque é meu). Cabe indagar: apenas por esse mo-
tivo? Na dominância institucional de uma posição, não intervêm, por exemplo, o prestígio e o
interesse, atravessados ou não pelo poder político e pelo poder econômico? Em suma, os
termos com que Sacrini descreve a interferência de interesses no debate acadêmico subtrai
toda a carga negativa e pejorativa presente na caracterização do dogmatismo ao longo do livro,
para a qual os termos são muito mais duros.
As figuras do “especialista” e do “técnico” vêm corroborar a percepção de um viés no tra-
tamento dado por Sacrini à descrição do agir racional nos domínios acadêmico e científico.
Segundo o autor, “os debates circunscritos a certos domínios de fatos ou crenças considerados

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plausíveis avançam notavelmente diante de análises de especialistas das disciplinas ou temas


relevantes”, a que complementa: “o conhecimento técnico acerca dos fatos e crenças relevantes
para a discussão exerce papel decisivo na avaliação da pertinência dos contraexemplos suge-
ridos” (SACRINI, 2016, p. 59). Ele argumenta ainda que, nas discussões em que figuram argu-
mentos indutivos, o conhecimento especializado “pode fazer toda a diferença”, e que, dentre os
critérios úteis à formulação de premissas aceitáveis, ou funções, “cabe uma avaliação especiali-
zada, por assim dizer, principalmente no que tange à aceitabilidade” (SACRINI, 2016, p. 59; 135).
Um caso emblemático do que aqui pretendo mostrar são os termos com os quais o autor,
tratando do argumento indutivo, aborda a situação específica na qual a força inferencial é um
componente de argumentos complexos, sujeitos à interpretação – situação predominante em
contextos científicos e acadêmicos em geral. Sacrini sustenta que, nestes casos, “a exibição
dessa força depende ao menos das capacidades técnicas interpretativas das pessoas que se
dispõem a discutir os argumentos em vista”, e complementa:

[…] as capacidades aqui em foco não têm nada a ver com a verbalização de uma crença
em um tipo de força inferencial, como se essa verbalização por si só pudesse produzir o
nível de força verbalizado. Por sua vez, no caso das capacidades interpretativas, trata-se
somente da aplicação de técnicas que permitem clarificar metodicamente uma intenção
argumentativa, exibindo, de acordo com aquilo que o conjunto de sentenças em vista permite
julgar, a estrutura inferencial supostamente ali em vigor (SACRINI, 2016, p. 51, o primeiro
e segundo destaques são meus).

Ainda que se conceda que a verbalização de crenças não produz por si só força lógica,
disso não se pode concluir que aquelas não participem dessa produção, o que é pressuposto na
tese de que as capacidades interpretativas em questão, enformadas pela cultura racional, não
têm nada a ver com a verbalização de crenças e que consistam somente na aplicação de téc-
nicas. O que torna este um caso emblemático é o fato de aqui o autor caracterizar a cultura ra-
cional como exclusivamente técnica.
Tal caracterização ecoa uma imagem do saber especializado e técnico profundamente
enraizada na sociedade. Tudo se passa como se a presença do especialista e do técnico não só
favorecesse, mas garantisse a vigência da racionalidade na controvérsia. Não se trata aqui de
objetar nem a potencial nem a efetiva contribuição do especialista e do técnico para uma cul-
tura racional, mas o viés contido nas linhas acima: um leitor desatento poderá facilmente de-
preender que o especialista e o técnico veiculam sempre uma opinião isenta daqueles móveis
avessos à cultura racional, quando, efetivamente, não há garantia dessa isenção.
À luz desses apontamentos, impõe-se a indagação: não seria o caso de levar a mais sério a
presença, na atividade acadêmica e científica, daqueles motores do dogmatismo? Tomemos al-
gumas proposições que se encontram na obra: a negação pura e simples de que haja dúvida
legítima ou, alternativamente, a admissão da incerteza apenas com vistas a afirmar um con-
junto de dogmas, em ambos os casos favorecendo uma “doutrina ortodoxa vigente”; a preocu-
pação apenas com “a aniquilação das posições alheias ou a mera adesão do público, pouco
importando o esclarecimento racional da questão discutida”; a obstinação em defender uma
posição a ponto de “só buscar instâncias favoráveis que confirmem suas teses, ignorando todo
tipo de evidência contrária”; um tal comprometimento com uma ideologia que leva o arguidor
a buscar a “adesão irracional” a essa ideologia; o emprego de “razões enviesadas”, que “sistema-
ticamente ignoram evidências contrárias relevantes”; a proposição de uma definição persua-
siva como se ela fosse uma definição lexical, “de modo que as conotações positivas ou nega-
tivas associadas ao definiendum pareçam fazer parte de seu uso corrente” (SACRINI, 2016,
p. 129; 148; 256-8; 270; 276; 333). A lista poderia continuar. É inegável que essas e outras infra-

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ções às regras da boa argumentação ocorrem nos meios acadêmico e científico e que não há
garantia de que, em certas circunstâncias, cheguem mesmo a predominar.
É sintomático que, dentre as estratégias (de refutação e de defesa) listadas pelo autor,
todas podem ser exercidas tanto racionalmente como em sentido contrário, inclusive o reconhe-
cimento de que as objeções se aplicam e reformular os argumentos ou a posição – quando a
reformulação visa apenas a oferecer uma outra versão da posição já refutada10. Ademais, a vigi-
lância ou fiscalização interna, através de normas, instituições e instâncias de autocrítica – meca-
nismos de favorecimento da “vigilância mútua”, segundo Sacrini – não devem ser tomadas como
garantidoras da neutralização daqueles móveis, uma vez que os que vigiam, fiscalizam ou cri-
ticam nem sempre o fazem olhando apenas para as normas (SACRINI, 2016, p. 264; 277-8; 320).
O próprio autor reconhece a possibilidade de os arguidores não estarem comprome-
tidos com uma resolução colaborativa, o que ocorreria, segundo Sacrini, quando há outros in-
teresses preponderantes, tais como “a obtenção de vantagens pessoais, a manutenção a todo
preço de certo status quo ameaçado por questionamentos alheios ou, o que é ainda mais grave,
uma adesão fanática às teses defendidas”, e que isso ocorre “muitas vezes” (SACRINI, 2016,
p. 98). Em outra passagem, ele constata que, em muitas ocasiões, a desconsideração das obje-
ções está comprometida com interesses extralógicos, “que a motivam a defender sua posição
original a qualquer custo”, tais como o “ganho de dinheiro, prestígio ou ainda a manutenção de
certo status quo” (SACRINI, 2016, p. 273). No entanto, essas e outras passagens com semelhante
tom crítico nomeiam um vetor genérico: “os arguidores”.
Em suma, ao longo da obra, Sacrini abstém-se de realizar críticas diretas a explícitas à
infração da boa argumentação nos meios acadêmico e científico – em contraste com as ilustra-
ções oferecidas de vetores do dogmatismo. Na contramão mesmo, sempre que esse cenário fi-
gura no livro, os termos empregados são suaves e atenuadores, como procurei mostrar.

“Gestos discursivos”: o fenômeno da argumentação ritual


Parece-me supérfluo especular se os domínios acadêmico e científico são, em compa-
ração com outros domínios, mais propensos ao agir racional e menos propensos ao dogma-
tismo. Mais enriquecedor, a meu ver, é examinar, em cada domínio, a maneira como o agir ra-
cional e seu avesso se manifestam em cada contexto. Em uma palavra, é situar historicamente o
agir racional e seu avesso. Para tanto, Sacrini oferece um precioso instrumento analítico. Ao
discorrer sobre as falhas amplas nos processos argumentativos, ele nota que o problema não se
limita ao desinteresse e à desvalorização do processo argumentativo, mas envolve ainda um
tipo específico (e nocivo) de interesse:

A argumentação é vista muitas vezes como um rito social rebuscado e supérfluo, como um
conjunto de gestos discursivos que as pessoas devem até tentar reproduzir artificialmente
em certas circunstâncias, porém sem identificar-se verdadeiramente com esse processo,
já que se trataria de algo distante dos meios simbólicos priorizados para resolver conflitos
acerca de questões controvertidas (SACRINI, 2016, p. 328)11.

10
No capítulo inicial, Sacrini faz alusão a “casos” em que os argumentos são usados “somente para reforçar posições já assentadas
ou, em sentido mais geral, para aperfeiçoar as razões de aceitação de certa tese ou ponto de vista já admitidos pelo público como
corretos”, não informando quais seriam estes casos (SACRINI, 2016, p. 24).
11
Ao mesmo tempo, se se reconhece que em certas circunstâncias as pessoas devam tentar reproduzir artificialmente um conjunto
de gestos, então o caráter “supérfluo” do rito deve ao menos ser relativizado.

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SACRINI, M. Introdução à análise argumentativa: teoria e prática. São Paulo: Paulus, 2016. (Coleção Lógica) - Antônio David

Um pouco adiante, e na mesma direção, Sacrini argumenta ser possível ao arguidor “se
servir do caráter instrumental da racionalidade e ainda assim não privilegiar a discussão ra-
cional como método adequado para sustentar teses não autoevidentes”, situação na qual a ar-
gumentação reduz-se a “mero recurso eficaz” (SACRINI, 2016, p. 331).
O que essas passagens marcam é uma maneira peculiar pela qual arguidores infringem
os princípios, regras e normas da boa argumentação: fingindo bem argumentar. Reduzida a
rito, instrumentalizada, a argumentação como que camufla aqueles móveis avessos ao agir ra-
cional. O ponto essencial é que, nessa teatralização, tais móveis são travestidos não de qualquer
outra coisa, mas de seu exato oposto. O agir não racional é travestido de agir racional, a cultura
não racional é travestida de cultura racional, o interesse particular é travestido de interesse pú-
blico, e o arbítrio e o casuísmo são travestidos de argumento racional. Nesses termos, a argu-
mentação é como que usurpada. Trata-se, em uma palavra, do sequestro da argumentação. O
argumento converte-se naquilo que, na linguagem do cotidiano, costumamos designar de pre-
texto. A indicação do caráter instrumental da argumentação é uma contribuição ímpar de
Sacrini à reflexão crítica sobre a cultura racional, e é uma pena que o tópico não tenha recebido
um tratamento sistemático na obra.
Na base da teatralização está, creio, a corriqueira necessidade de uma aparência de não
gratuidade, de não arbitrariedade, de não casuísmo. Sacrini tangencia essa questão: tratando
da conclusão que veicula um ato performativo (em si mesmo não analisável em termos de valor
de verdade), ele argumenta que as premissas devem ser cuidadosamente selecionadas e for-
muladas para que o ato “não pareça gratuito, aleatório, e sim devidamente justificado” (SACRINI,
2016, p. 28, o destaque é meu). Nesse exemplo, a não aparência de gratuidade é abordada de
uma perspectiva lógica, atestando o bom uso da argumentação; contudo, em não poucas situ-
ações, quando no argumento as premissas não justificam devidamente a conclusão, ainda
assim a não aparência de gratuidade se impõe, mas não como uma exigência lógica, e sim
como uma exigência social. Nessa mesma direção, se, como lembra Sacrini, recorrer a razões
não implica necessariamente em adotar uma posição racionalmente melhor (SACRINI, 2016, p.
226-70), o oposto deve ser notado: apesar disso, em inúmeros contextos, o que se vê é a mera
veiculação de razões12.
Tais indicações, contudo, não figuram na obra como associadas ao meio acadêmico e
científico, e de fato não são sua exclusividade. Todavia, é pertinente questionar se também
nesses domínios não estariam presentes aqueles móveis que desfavorecem o agir racional e
cuja interferência exprime o avesso da cultura racional. Sem dúvida estão. E não apenas estão,
como neles os móveis do dogmatismo realizam-se camuflados de racionalidade – aquela racio-
nalidade associada ao saber técnico, especializado e, como tal, pretensamente objetivo, neutro,
imparcial e impessoal.
A comparação entre os domínios religioso e acadêmico/científico é elucidativa. Tome-se
a polêmica do aborto. Enquanto religiosos contrários ao aborto tendam a oferecer justificativas
com base em dogmas religiosos para a tese de que o aborto deva ser considerado ilegal – como
a noção metafísica de que o embrião possui uma alma –, já os cientistas contrários ao aborto
tendem a oferecer justificativas para essa mesma tese com base em supostas evidências cientí-
ficas. Ambos argumentam, é certo; contudo, estes veiculam premissas pretensamente verda-
deiras do ponto de vista científico. Mas quando nos damos conta de que, no debate público, tor-

12
Considero melhor ilustrar essa situação a maneira como a argumentação é comumente empregada no Direito, em que o caráter
altamente ritualizado da argumentação, revestido de pomposidade, contrasta com a abundância com que se incorre em falácias,
com consequências nefastas na teoria e na prática.

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SACRINI, M. Introdução à análise argumentativa: teoria e prática. São Paulo: Paulus, 2016. (Coleção Lógica) - Antônio David

nou-se muito mais comum religiosos recorrerem à palavra e à autoridade da ciência do que o
contrário, coloca-se com força a hipótese de que a camuflagem de racionalidade científica através
da argumentação ritual cumpra um papel proeminente na reprodução social do dogmatismo.
O exemplo nos dá ocasião de tocar naquele que parece ser, para Sacrini, o ponto mais
sensível dos problemas aqui examinados. Ao falar daquelas três formas alternativas ao agir
racional, Sacrini conclui que elas “muito mais levam à imposição de uma tese do que à sua
aceitação diante dos dados relevantes disponíveis acerca dos tópicos em vista” (SACRINI, 2016,
p. 330). Todavia, convém indagar: por si mesmas, elas chegam a impor teses? Pode-se falar,
com propriedade, em imposição? Esse é sem dúvida o problema de fundo, mas imposição não
parece ser o termo adequado. Em uma das notas de rodapé dedicadas a desfazer mal-enten-
didos em torno da religião, Sacrini declara que “a imposição de dogmas religiosos como pre-
tensa solução para possíveis divergências acerca de questões não autoevidentes constitui um
entrave para a sedimentação do agir racional como uma opção culturalmente formadora”
(SACRINI, 2016, p. 327, o destaque é meu). Penso que aqui Sacrini nomeou o problema central:
entrave. A diferença é que, enquanto imposição denota um esforço e uma intenção, entrave
designa um efeito concreto desse esforço. De uma ótica histórico-descritiva, qual é o entrave
dominante à cultura racional no mundo contemporâneo? O exemplo do aborto, ao lado de
inúmeros outros que poderiam ser evocados, autorizam, ao menos como hipótese, a localizar,
no prestígio social usufruído pelo saber técnico e especializado e nos usos que se faz da ciência,
o entrave principal.
Obviamente, não é meu propósito sustentar que nos domínios acadêmico e científico o
emprego ritual da argumentação predomine. Todavia, penso merecer maior atenção a hipótese
de que o uso ritual da argumentação manifeste-se neles com frequência, e não apenas excep-
cional ou residualmente. Independente do peso da instrumentalização no interior desses do-
mínios, o ponto é que é sobretudo neles, mais do que em qualquer outro domínio, que a argumen-
tação racional se converte em instrumento-chave de uma ideologia da objetividade técnica.

Rumo à emancipação racional


A título de conclusão, quero ressaltar que, a despeito das críticas aqui esboçadas, ne-
nhuma delas tira os méritos da obra, escrita com profundo rigor e seriedade. Introdução à
análise argumentativa oferece uma contribuição ímpar não só ao estudo dos fundamentos e
das principais estratégias de argumentação, mas à reflexão crítica em torno de questões de
fundo, como a racionalidade em contextos sociais. Se realizei uma crítica ao autor, é porque o
livro oferece uma abordagem e uma perspectiva qualificadas para que tais questões sejam
alvo de discussão.
Gostaria de finalizar esta resenha com a seguinte questão: o que o partidário de uma
posição racionalmente justificável pode fazer, se quiser dedicar-se prioritária ou mesmo exclu-
sivamente à argumentação, diante do avesso da cultura racional? Como condições práticas do
agir racional, Sacrini faz alusão ao “oferecimento de possibilidades educacionais maciças”, de
um lado, e da “importância de apoiar os projetos comprometidos com o desenvolvimento e
manutenção das condições culturais de sedimentação do agir racional”, de outro (SACRINI,
2016, p. 332)13. A posição assumida por Sacrini suscita duas indagações: em primeiro lugar, seria

13
Na sequência, o autor declara: “Não cabe esboçar nenhum projeto político nessas poucas páginas. Ainda há muito que esclarecer
em nível teórico, conquanto seja imprescindível reconhecer a importância da prática política” (SACRINI, 2016, p. 332).

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o caso de indagar se apenas o apoio é suficiente para a consecução de projetos como esses, ou
se não se faz necessário um tipo de tomada de posição mais ativa, até mesmo engajada – sem
prejuízo da importância decisiva da contribuição teórica a esse propósito; em segundo lugar, e
em contrapartida, penso que é o caso de indagar se apenas a argumentação racional é sufi-
ciente para a consecução de projetos políticos dessa natureza, afinal, grandes transformações,
com sentido emancipador, não ocorreram e provavelmente não ocorreriam sem ações não
pautadas pelos preceitos da boa argumentação.
De todo modo, para além desse caminho, penso que Sacrini oferece preciosa indicação
no artigo intitulado “Mundo da vida e racionalidade científica” (2014). Tratando da noção hus-
serliana de “estrutura de horizonte” (que organiza os dados da experiência em uma totalidade
coerente), Sacrini lembra que, apesar de na maior parte dos casos ela funcionar como pressu-
posto com base no qual se podem resolver conflitos interpretativos entre as experiências parti-
culares, “algumas vezes os conflitos nas experiências particulares podem levar a alterações no
sentido global veiculado pelo horizonte”. Ele lembra ainda que “os horizontes de sentido das
ações sociais envolvem perspectivas valorativas e mesmo sistemas de crenças ordenadas por
vezes em complexas visões de mundo”, ocorrendo com frequência “conflitos devidos às relativi-
dades culturais-valorativas referentes a interpretações dos fatos e a modos de agir”, de modo
que “muitas vezes, por meio desses conflitos altera-se, em parte, a própria estrutura de hori-
zonte com base na qual se apreende o desenrolar dos eventos particulares”. Sacrini conclui
afirmando que “critérios amplos para a atribuição de sentido são alteráveis diante de evidências
no âmbito das experiências particulares” (SACRINI, 2014, p. 702-3, o destaque é meu). Talvez, mais
do que na crítica genérica e abstrata, é na crítica pública a expressões particulares do interesse
e de outros móveis avessos à cultura racional que resida um horizonte mais fecundo para a
mudança. Penso que os meios acadêmico e científico deveriam ser um alvo prioritário de uma
tal crítica14. Trata-se, sem dúvida, de um desafio de grande monta, e que faz lembrar as ponde-
rações de Sacrini sobre a cultura racional como um projeto histórico “frágil” (SACRINI, 2016,
p. 337), ainda que necessário e urgente.

Referências
Sacrini, M. Introdução à análise argumentativa: teoria e prática. São Paulo: Paulus, 2016.
(Coleção Lógica).
Sacrini, M. Leitura e Escrita de Textos Argumentativos. São Paulo: EDUSP, 2019. (Coleção
Acadêmica, 97).
Sacrini, M. Mundo da vida e racionalidade científica. Scientiae Studia, v. 12, n. 4, p. 697-710, out./
dez. 2014.

14
Um exemplo emblemático de crítica pública e particularizada – e da recusa daqueles que são criticados em justificar as próprias
posições quando confrontados, ou da veiculação de pretextos toscos como se fossem argumentos – é dado pelo documentário
Inside Job (FERGUSON, 2010). Focado na Economia, a parte final do documentário aborda exatamente os economistas e sua au-
toimagem de cientistas isentos e objetivos. Tendo entrevistado economistas que, a despeito dessa autoimagem, são comprome-
tidos com interesses e vantagens extra-acadêmicos e tiveram envolvimento direto em decisões econômicos com nefastas reper-
cussões sociais, a estratégia do documentarista foi colocá-los contra a parede, isto é, obrigá-los a dizer o que não pode ser dito, sob
pena de seu edifício ideológico ruir.

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SACRINI, M. Introdução à análise argumentativa: teoria e prática. São Paulo: Paulus, 2016. (Coleção Lógica) - Antônio David

Sobre o autor

Antônio David
Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Escola de Comunicação e Artes da
Universidade de São Paulo (USP).

Recebido em 04.11.2021. Received: 04.11.2021.


Aprovado em 09.12.2021. Approved: 09.12.2021.

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