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Versão revista e aumentada do posfácio a Fernando Pessoa, Associações Secretas e outros escritos, ed.
José Barreto, Lisboa: Ática, 2011, pp. 239-288.
1
Ao projecto de lei de José Cabral foi atribuído o número 2. Aparentemente, ao projecto de
regimento terá sido atribuído o número 1, embora não exista disso registo no Diário das Sessões.
2
O parecer da Câmara sobre o projecto de lei, datado de 27 de Março, foi publicado no Diário das
Sessões, suplemento ao n.º 39, de 2 de Abril de 1935, pp. 1-25.
3
O parecer da Câmara começava por declarar que teria sido “preferível resolver o problema das
sociedades secretas na prevista lei especial do exercício da liberdade de associação [...], e no estatuto dos
funcionários públicos”, ressalvada embora a “concordância da Câmara com a generalidade da doutrina do
projecto” (p.1). As numerosas alterações que foram propostas pela Câmara revelariam, porém, diferenças
de sensibilidade política em relação ao projecto de Cabral.
Cabral mostrava sede de protagonismo. O projecto de lei revelava, porém, deficiências
formais e, do ponto de vista do poder, um desnecessário radicalismo – traço
característico do seu autor, antigo sidonista e guerrilheiro monárquico, ex-membro
destacado do Nacional-Sindicalismo e defensor da reintrodução da pena de morte em
Portugal. Em particular, a referência do projecto de lei aos militares era susceptível de
gerar reacções de hostilidade no seio do exército, um pilar do regime que ao poder não
interessaria muito agitar.
Anos antes, em finais de 1931, já o nome de José Cabral aparece ligado a um
programa intitulado “Da Defesa do Estado”, em que se incluem medidas visando o
encerramento das “agremiações” secretas e o confisco das suas sedes, bem como a
criação de uma Milícia Nacional, destinada a colaborar com as autoridades nas tarefas
de vigilância social e repressão.4 José Cabral estaria posteriormente ligado à criação da
Legião Portuguesa (1936), de cuja primeira Junta Central foi adjunto político e de cujos
Serviços de Acção Social e Política foi o primeiro director, instalando a sua sede no
palácio do Grémio Lusitano (sede da entretanto extinta Maçonaria), ao abrigo da lei n.º
1950, de 18 de Fevereiro de 1937, de que também ele foi o proponente.
4
S/autor, Da Defesa do Estado. Bases da Sua Organização, s.l., s.d. [ca. 1931-1932]. O único
exemplar conhecido, do Arquivo de José Pacheco Pereira, contém no rosto a assinatura de José Cabral.
O projecto de lei de José Cabral sobre associações secretas surgia quando estava
em curso na Alemanha hitleriana a extinção da Maçonaria, mas inspirava-se mais
proximamente na referida lei fascista sobre associações secretas, com que o regime de
Mussolini tinha dado o golpe final na Maçonaria italiana, após anos de perseguições e
violências dos squadristi contra maçons e lojas maçónicas. Comparativamente com a lei
italiana, o projecto de José Cabral continha várias lacunas, pois não definia capazmente
“associações secretas” nem estabelecia trâmites processuais para a dissolução das
mesmas. O projecto de Cabral limitava-se a reproduzir várias das disposições da lei
italiana – idênticas penas de prisão, multas e perda de direitos políticos para os
membros de sociedades secretas, similar obrigatoriedade para os funcionários do Estado
de prestarem uma declaração formal de não pertença a entidades secretas. O projecto
era, todavia, em vários aspectos, mais radical do que a lei em vigor na Itália fascista,
nomeadamente no respeitante aos estudantes do ensino público. Além disso, a
declaração de não pertença à Maçonaria era obrigatória, no projecto de Cabral, para
todos os funcionários do Estado (na lei italiana era obrigatória apenas para aqueles a
quem fosse solicitada). Os funcionários do Estado português deveriam ser também
obrigados a uma vexatória declaração de desvinculação da Maçonaria caso a ela
tivessem pertencido no passado (tal norma tinha sido retirada da lei italiana na sua
revisão de 1926). A pena por falta de declaração era mais dura no projecto de Cabral
(demissão) do que na lei italiana (suspensão de vencimento). O projecto de Cabral era
também mais discricionário do que a lei italiana, ao não prever qualquer tramitação
processual de dissolução das associações secretas, mas apenas o seu confisco directo, ao
livre arbítrio do poder.
No fundo, o objectivo do projecto de Cabral coincidia largamente com a
intenção política do Estado Novo quanto à Maçonaria, que era, de facto, a sua
perseguição e extinção. Durante o debate da lei, o representante do governo na
Assembleia Nacional, Mário de Figueiredo, seria muito claro quanto ao destino a dar à
Maçonaria: “É preciso exterminá-la, e o Estado Novo tem não só o direito, mas o dever
de o fazer imediatamente.” Todavia, quanto a aspectos particulares ou formais do
projecto, havia discordâncias. Recusada pelo governo − através de Mário de Figueiredo
− a urgência pedida pelo deputado proponente, o projecto de lei foi remetido para
estudo à Câmara Corporativa, que só publicou o seu parecer em 2 de Abril, após uma
reunião, a 13 de Março, do seu relator, o penalista Abel de Andrade, com Salazar.5 A
Câmara, fundando-se expressamente na lei italiana, integralmente transcrita no parecer,
supriu as lacunas jurídicas do projecto de Cabral, eliminou aspectos “desnecessários”,
limou arestas e produziu um projecto alternativo, de conteúdo bastante idêntico à lei
fascista. A Câmara adoptou mesmo a alteração que em 1926 fora feita à lei italiana, no
sentido de não obrigar ex-maçons a mencionar a sua pertença passada à Maçonaria,
obrigação que o projecto de Cabral mantivera. Ficavam assim desobrigados dessa
declaração os ex-maçons que eram agora altas figuras do Estado Novo, como o
Presidente da República, Óscar Carmona e o Presidente da Assembleia Nacional, José
Alberto dos Reis, para não citar outros, como Bissaya Barreto, amigo e conselheiro de
Salazar, que com este reunia semanalmente. Não por acaso, no próprio dia da votação
do projecto de lei, o deputado Carneiro Pacheco apresentou previamente uma proposta
de elevação do general Carmona ao marechalato.6 No respeitante às sanções, a Câmara
foi, por vezes, mais longe do que o projecto de Cabral, acrescentando, por exemplo, a
5
Entrada na agenda de audiências de Salazar, a 13 de Março de 1935: “Dr. Abel de Andrade – proj.
do Dr. José Cabral (maçonaria) – estudos e relatório” (ANTT/AOS/1/5/73).
6
Veja-se o relato da sessão parlamentar de 5 de Abril no Diário de Lisboa do mesmo dia, p. 5.
perda de pensão de reforma dos funcionários do Estado pertencentes a sociedades
secretas. Foi nesta versão inteiramente refundida pela Câmara Corporativa que o
projecto de lei foi aprovado por unanimidade na Assembleia Nacional em 5 de Abril de
1935, apenas com uma alteração de última hora, proposta pelo mesmo José Cabral, que
fez finca-pé em manter uma menção expressa dos militares entre os funcionários do
Estado obrigados a prestar a referida declaração de não pertença a sociedades secretas.
A Câmara, ao tentar retirar a expressão “civis ou militares” do projecto de Cabral,
pretendera talvez evitar vexar os oficiais do exército maçons ‒ ou ex-maçons, como
Carmona. No dia seguinte à aprovação da lei, em nova intervenção na Assembleia
Nacional, José Cabral procuraria exibir uma atitude mais apaziguadora para com os
oficiais que se encontravam afastados do activo “por razões especiais” (políticas),
pugnando pela resolução da sua situação (reintegração).
7
O parecer da Câmara Corporativa citava o número total de 3.325 maçons, referente a Julho de 1926,
indicando como fonte um relatório do Supremo Conselho da Maçonaria Portuguesa.
8
Carta transcrita em A. H. de Oliveira Marques, A Maçonaria Portuguesa e o Estado Novo (3.ª ed.,
Lisboa: Dom Quixote, 1995), pp. 217-222.
9
BNP/E3, 113P1-87r a 90r.
10
BNP/E3, 113I-31r a 36r.
11
Tratava-se do Congresso Nacional do Apostolado da Oração, que teve lugar em Braga a 9-11 de
Julho de 1930.
12
Fernando Pessoa, Associações Secretas e outros escritos, Lisboa: Ática, 2011, texto 28.
acusou José Cabral de em tempos ter pretendido criar uma associação secreta de
princípios nacionalistas e católicos para combater a Maçonaria. 13
Primeira página da tradução para inglês, por Fernando Pessoa, da carta de Norton de
Matos ao presidente da Assembleia Nacional, José Alberto dos Reis, em 31 de
Janeiro de 1935 (BNP/E3, 113I-31r).
Pessoa nunca foi maçon, como ele próprio o afirmou repetidamente, inclusive
em alguns dos textos aqui reunidos. Sabe-se mesmo, pelos seus escritos privados, que
era um crítico da Maçonaria portuguesa, por ele considerada como uma mera
“carbonária ritual” ou “um anticlericalismo secreto”, mas “católico romano em espírito
até à medula”.14 Também se sabe, contudo, por esses escritos, que Pessoa afirmava
nutrir “um sentimento profundamente fraternal” para com a Maçonaria e que, como
assumido cristão gnóstico, se sentia “espiritualmente correligionário dos maçons,
embora sob outra Luz.”15 Por “outra Luz” Pessoa referia-se muito provavelmente ao
facto de se considerar templário, isto é, “iniciado, por comunicação directa de Mestre a
13
Idem, texto 18.
14
Idem, textos 78, 79, 80 e 81.
15
Idem, texto 81.
Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de
Portugal”, como declarou na sua conhecida ficha pessoal datada de 30 de Março de
1935.16 Além disso, numerosos escritos do espólio de Pessoa denotam uma clara
proximidade espiritual em relação à Rosa-Cruz, irmandade esotérica de afinidades
doutrinárias e ligações históricas com a Maçonaria. Num texto de 1935 sobre a
Mensagem, Pessoa afirmava que o seu livro estava “abundantemente embebido em
simbolismo templário e rosicruciano”, circunstância que alegava em justificação da sua
intervenção pública em “defesa integral da Maçonaria”. 17
Não terão sido, porém, unicamente sentimentos de fraternidade espiritual para
com a Maçonaria que levaram Pessoa a publicar o artigo “Associações Secretas”. Ele
próprio esclarece os seus motivos mais profundos num escrito que deixou inacabado,
até hoje inédito:
16
Idem, texto 82. Em carta a Adolfo Casais Monteiro de 13 de Janeiro de 1935, Pessoa disse não
pertencer a qualquer ordem iniciática, declarando ter-lhe sido apenas permitido folhear os Rituais dos três
primeiros graus da Ordem Templária de Portugal. Noutro escrito de 1935 (texto 53), Pessoa declarava,
todavia, que era templário português e que, se antes tinha afirmado (no artigo “Associações Secretas”),
que não pertencia a ordem nenhuma, isso se devia ao facto de a Ordem Templária não estar activa em
Portugal, constituindo apenas um “sistema de iniciação”. Enfim, no poema “S. João”, de Junho de 1935,
Pessoa escreve: “Sou mais que maçon – eu sou templário”.
17
Idem, texto 60.
18
Idem, texto 14.
19
Idem, texto 71.
20
Idem, texto 19.
imanentes naquela fé firme e totalitária que dividem, em partes iguais, entre
Nossa Senhora de Fatima e o senhor D. Duarte Nuno de Bragança. 21
21
Idem, texto 13.
22
João Ameal, “Mensagem – Versos de Fernando Pessoa”, Diário da Manhã, 25 de Janeiro de 1935,
p. 3. A Mensagem é aí elogiada por Ameal e o seu autor descrito como profeta do “futuro já presente”.
23
Arquivo da Assembleia da República, Assembleia Nacional, Livro 1, n.º 55, fls. 123-142. Entre
outros, assinaram o documento António Sérgio, Câmara Reis, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Abel
Salazar, José Rodrigues Miguéis, Adolfo Casais Monteiro, João de Barros, Hernâni Cidade, Rodrigues
Lapa, Domingos Monteiro, Bernardo Marques, Joaquim Madureira, Matos Sequeira, Norberto de Araújo,
Manuel Mendes, Rocha Martins, Cunha Leal, Nuno Simões e Ramada Curto.
24
Dias depois, a circular n.º 101 da Direcção-Geral dos Serviços de Censura à Imprensa (DGSCI),
datada de 8 de Fevereiro de 1935, insistia em que nenhuma referência fosse permitida na imprensa a essas
duas “petições”. Insistência desnecessária, porque a censura já tinha cortado as respectivas notícias.
“Associações Secretas”, por Fernando Pessoa, no Diário de Lisboa de 4 de Fevereiro de 1935.
25
Afirma-o Maia Pinto (T.D.) no Fradique de 28 de Fevereiro de 1935, p. 8. Foi cortada pela censura
uma notícia do jornal O Povo, de 11 de Fevereiro de 1935, em que se referia que a edição do Diário de
Lisboa em que se publicou o artigo de Fernando Pessoa se tinha esgotado completamente, apesar de a
tiragem desse dia ter sido muito aumentada (ANTT/MI, Gab. do Ministro, Mç. 472, p. 1/1, fl. 214).
Pessoa − um desconhecido do grande público cujo nome, “ao som de uma imprevista
pancada de gongo”, surgira bruscamente da sombra, “encharcado pelas luzes de mil
holofotes”. Sem se referir uma única vez, porque a censura o não permitiria, ao título ou
ao conteúdo do artigo de Pessoa que despertara a enorme curiosidade do público,
Reinaldo Ferreira escreve:
Fernando Pessoa que, há dez dias a esta parte, é dos indivíduos mais
discutidos − não só nos cafés, nas esquinas, nas tertúlias da capital, como em
todo o país − é também dos nomes mais ignorados, das personalidades
menos conhecidas... À parte uma minúscula minoria intelectual que não só
não o ignora, como o admira e o entroniza mui alto [...], Fernando Pessoa é
uma incógnita.
O jornalista relata, divertido, especulações que correram sobre a autoria do artigo, que
muitos supunham assinado por um pseudónimo, duvidando da existência de Fernando
Pessoa. E prossegue, na sua característica prosa empolada:
26
O relato não assinado, da presumível autoria de Reinaldo Ferreira, foi publicado no semanário X,
n.º 13, de 7 de Fevereiro de 1935, p. 4, na rubrica “Homens da semana”. Ver também Ilídio Rocha,
“Fernando Pessoa existe”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, 14 de Junho de 1988, p. 14.
27
“A dança das horas. Um poeta e o papão (e que papão!) maçónico”, Diário da Manhã, 5 de
Fevereiro de 1935, p. 1.
Ou porque o relógio do sr. Fernando Pessoa esteja atrasado, ou
porque a loja que lho vendeu era maçónica, o seu brado da Hora Augusta,
depois deste artigo, só encontrará um eco em todo o Portugal:
Ora sebo!...
Nesse mesmo dia e nos seguintes, o escrito de Pessoa foi também alvo da
imprensa católica pro-regime. No diário A Voz, após um primeiro editorial do director
Fernando de Sousa, o próprio deputado José Cabral respondeu a Pessoa, voltando à
carga no dia imediato no Diário de Lisboa, fazendo em ambos os jornais observações
ofensivas para com Fernando Pessoa.28 Um Cabral truculento e certamente pouco dado
a leituras afirmava na Voz que Pessoa não passaria de “um raté qualquer da literatura e
da vida” e, no Diário de Lisboa, tratava-o de “pobre escrevedor”, a quem não “valeria a
pena sequer mencionar-lhe o nome”. Chamava-lhe ainda “beócio”, “tolo” e “mimoso
anfíbio”, acusava-o de ter actuado a mando da “seita” (a Maçonaria) e afirmava que
Pessoa, no passado, tinha tido convicções integralistas − o que também era falso.
José Cabral chama a Fernando Pessoa “um raté qualquer da literatura e da vida” (A Voz, 6 de Fevereiro
de 1935, p. 1).
Fernando Pessoa tratado por José Cabral de “pobre escrevedor”, a quem “não valeria a pena sequer
mencionar-lhe o nome” (Diário de Lisboa, 7 de Fevereiro de 1935, p. 4).
28
José Cabral, “Chove no templo...”, A Voz, 6 de Fevereiro de 1935, p. 1, e “O projecto de lei sobre
associações secretas. O sr. dr. José Cabral responde ao artigo do sr. Fernando Pessoa”, Diário de Lisboa,
7 de Fevereiro de 1935, pp. 1 e 4.
29
Associações Secretas e outros escritos, op. cit., texto 45.
boas relações com Rolão Preto, a quem facultaria em Março a primeira página do seu
jornal para tomar posição sobre a lei antimaçónica. 30
Ele [Pessoa] não era político, mas gostava de dar a sua ferradinha. Eu
tinha uma amiga minha na Censura, e fui eu que consegui que ele publicasse
um artigo no Diário de Lisboa; era inofensivo, mas naquela época deu
imenso brado. Ele estava divertidíssimo com o escândalo que aquilo deu. 32
30
Ver na secção 1. da Bibliografia, as referências bibliográficas das peças da polémica.
31
José Blanco, em particular, passa ao lado desta questão em “Fernando Pessoa e as ‘Associações
Secretas’ (o artigo, a polémica e os folhetos)”, em Gilda Santos et alia, Cleonice, Clara em Sua Geração
(Rio de Janeiro: UFRJ, 1995), pp. 305-317. Blanco desconhecia o dactiloscrito do artigo de Pessoa, o que
o leva a tecer algumas hipóteses infundadas sobre as diferentes versões do texto no jornal e no opúsculo.
32
Isabel Murteira França, Fernando Pessoa na Intimidade (Lisboa: Dom Quixote, 1987), pp. 149-
152. O livro contém o fac-simile da dedicatória autógrafa de Pessoa, no livro Mensagem, a Maria da
Graça Facco Vianna Martins, datada de Dezembro de 1934.
33
Sobre os militares e a censura, ver Joaquim Cardoso Gomes, Os Militares e a Censura: A Censura
à Imprensa na Ditadura Militar e Estado Novo (1926-1945) (Lisboa: Livros Horizonte, 2006).
sarcasmo. Pessoa chamou-lhe “uma bomba”, depois de constatar, com satisfação, o
efeito causado no público.
Maria da Graça Facco Vianna Martins nos anos 1930 e dedicatória de Fernando Pessoa à mesma, num
exemplar oferecido de Mensagem, datada de 5 de Dezembro de 1934 (in Isabel Murteira França,
Fernando Pessoa na Intimidade (Lisboa: Dom Quixote, 1987), pp. 178-179.
Sendo altamente improvável que tal artigo possa ter obtido o agrément dos
Serviços de Censura com prévio conhecimento do seu director, Álvaro de Salvação
Barreto, ou sequer dos responsáveis da Comissão de Censura de Lisboa, não pode
todavia excluir-se a hipótese de que o escrito tenha sido autorizado por um censor à
revelia daqueles, isto é, sem o seu conhecimento. Mesmo nesse caso, os responsáveis
teriam de se presumir estranhamente desatentos, dado o grande destaque gráfico e de
paginação dado ao artigo, que ocupava a primeira página e as duas centrais − ou seja, o
espaço mais nobre do Diário de Lisboa, um jornal que era tido pelos Serviços de
Censura como um órgão da “imprensa adversa”. Todavia, um censor não totalmente
sintonizado com a orientação política dominante poderia ter iludido a vigilância dos
responsáveis ou, actuando habitualmente numa base de confiança ou por delegação,
poderia ter autorizado sozinho a publicação, fundado num critério político pessoal − não
sem antes operar um ou outro corte ligeiro, para manter a aparência de rigor, o que
realmente aconteceu, como adiante se verá. De facto, havia ainda na Comissão de
Censura de Lisboa, e por lá continuaram até Setembro de 1935, alguns censores ligados
ao Nacional-Sindicalismo, apesar de o movimento de Rolão Preto ter sido dissolvido
pelo governo de Salazar em Julho do ano anterior. É esse o caso, entre outros, do
capitão João dos Santos Marques, antigo tenente sidonista e cunhado do chefe nacional-
sindicalista Rolão Preto.34 O capitão Marques, um irrequieto militar que já em 1934
estivera envolvido em conspirações, viria a ser preso em Setembro de 1935 por
envolvimento na tentativa do golpe de Mendes Norton e Rolão Preto. Só uma tal brecha
política, aliás datada e provisória, no seio da Comissão de Censura de Lisboa parece
permitir explicar a insólita tolerância para com o artigo de Pessoa.
Que o poeta tinha boas relações pessoais em meios nacional-sindicalistas, isso
parece comprovado pelo facto de em 1932 e 1933 ter publicado duas colaborações
literárias (mas não escritos políticos) no órgão desse movimento, o diário Revolução, a
que o amigo de Pessoa, Augusto Ferreira Gomes, esteve ligado.35 Diga-se que o chefe
nacional-sindicalista Rolão Preto, que só regressou do exílio espanhol em meados de
Fevereiro de 193536, tomaria em 14 de Março posição pública contra a lei das
associações secretas, não por simpatia para com a Maçonaria, mas por achar que a
“perseguição” e a “repressão” não eram o modo mais inteligente e eficaz de a combater.
Segundo ele, o combate visando “vencer a maçonaria” deveria antes decorrer no plano
das ideias e da persuasão. As soluções do projecto de lei revelavam, no dizer de Rolão
Preto, “primitivismo” e “cegueira”, e eram animadas de um espírito “conservador” e
“reaccionário”.37 Não se sabe até que ponto esta curiosa posição liberal de Rolão Preto
era genuína ou preferencialmente motivada por forte antipatia contra o autor do projecto
de lei, José Cabral, ex-membro do Grande Conselho do Nacional-Sindicalismo e que,
no ano anterior, tinha contribuído destacadamente para a cisão desse movimento
político e tomado posição pela sua ilegalização.
Que forte razão poderia levar um censor militar nacional-sindicalista (mesmo
que com isso anuísse ao pedido de uma senhora) a autorizar, à revelia dos seus chefes, a
publicação do artigo de Pessoa em defesa da Maçonaria, organização que não tinha
qualquer afinidade ideológica ou ligação pessoal com o Nacional-Sindicalismo? Uma
vaga razão poderia estar relacionada com o desagrado existente em certos meios
militares pela projectada lei das associações secretas. Essa circunstância levaria meses
depois a uma insólita colaboração de militares monárquicos e republicanos, entre os
quais oficiais de baixa patente maçons, com os nacional-sindicalistas de Rolão Preto na
tentativa de golpe de 10 de Setembro de 1935, chefiada pelo comandante Manuel
Mendes Norton, um conservador monárquico, aliás primo do general Norton de Matos,
líder da Maçonaria. 38 Todavia, uma pista explicativa mais plausível da atitude
permissiva de um censor nacional-sindicalista relacionar-se-ia certamente com o
crescente descontentamento dos seguidores de Rolão Preto para com Salazar, que tinha
decidido a dissolução do movimento em Julho de 1934. Ora, como foi dito, a extinção
do Nacional-Sindicalismo seguira-se a uma cisão no seu seio operada sob o
protagonismo de José Cabral, um devotado salazarista que se transferiu com os seus
sequazes para a União Nacional – razão pela qual teria ganho o lugar de deputado à
34
Idem, pp. 72 e 172. Segundo o autor, João dos Santos Marques entrou para a Comissão de Censura
de Lisboa em Novembro de 1931.
35
Fernando Pessoa, “Do Livro do Desassossego, composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-
livros na cidade de Lisboa”, Revolução, n.º 74, 6 Junho de 1932, e “Mar Português”, Revolução, n.º 383,
16 Junho de 1933.
36
Rolão Preto, que se exilara em Espanha após a dissolução do Nacional-Sindicalismo em 1934,
ainda se encontrava em Madrid em 5 de Fevereiro de 1935. É o que se pode inferir da notícia do seu
iminente regresso a Portugal, constante de um telegrama de Madrid, que foi cortada pela Censura no
Diário de Lisboa de 6 de Fevereiro de 1935 (ANTT/MI, Gab. do Ministro, Mç. 472, p. 1/1, fl. 169).
37
Rolão Preto, “Não!”, Fradique n.º 14 de Março de 1935, p. 1.
38
Luís Cardoso de Menezes, “A revolta Mendes Norton de 1935”, Cadernos Vianenses, t. 44, 2010,
pp. 257-293.
Assembleia Nacional. 39 Dado o modo como o artigo de Pessoa personalizava em José
Cabral o alvo do seu ataque ao projecto de lei, mais verosimilhança ganha a hipótese de
que a vingança de um censor nacional-sindicalista contra o cisionista e trânsfuga José
Cabral possa ter estado na origem da aparente falha ou permissividade da censura.
Cabral era, de facto, odiado e vilipendiado pelos partidários de Rolão Preto. 40
Muito arriscado seria, neste ponto, conjecturar a possibilidade de que Fernando
Pessoa já anteriormente tivesse sido solicitado por alguém daquele mesmo quadrante
político para escrever o próprio artigo “Associações Secretas”. Embora o seu
relacionamento pessoal com nacional-sindicalistas ou aparentados permita,
teoricamente, essa especulação (como se disse já, um íntimo do escritor, Augusto
Ferreira Gomes, também colaborara no jornal Revolução, antes de se tornar redactor do
Diário da Manhã, órgão da União Nacional), não é, porém, de crer que Pessoa tivesse
resolvido intervir publicamente por encomenda de uma qualquer facção política. Não
foi o artigo “Associações Secretas”, aliás, a sua primeira tentativa de publicar uma
defesa da Maçonaria: já o tinha feito em Janeiro de 1934, em carta enviada ao jornal A
Voz, que a não publicou. Se Pessoa tinha, como se disse, relacionamentos pessoais na
área do Nacional-Sindicalismo, eram escassas, ou nenhumas, as suas afinidades
ideológicas com o movimento. Em vão pretendeu Alfredo Margarido, em oito (!) textos
publicados entre 1975 e 1986, construir uma imagem se não fascista, pelo menos
fascizante de Pessoa, retratando-o como “ídolo dos nacional-sindicalistas” e tentando
provar que Pessoa “admirou Mussolini”, depois de em 1971 o ter caracterizado, num
longo artigo de fundamentação marxista, como um ideólogo da burguesia. 41 Margarido
não apresentou melhor prova dos supostos “laços que uniam Pessoa à extrema-direita” e
da sua alegada proximidade ao Nacional-Sindicalismo do que a “campanha”
desenvolvida no jornal Revolução por Augusto Ferreira Gomes, íntimo de Pessoa,
visando a adopção do poema “Mar Português” pelos livros de leitura do ensino público
(que, de facto, não foi então adoptado).42 Num artigo em que confessa lançar-se numa
“extrapolação não documentada”, Margarido atribui as duras críticas que Pessoa fez a
Salazar à mera diferença de estilos dos ditadores português e italiano. Margarido
sustenta sem qualquer prova que, para Pessoa, “a figura carismática por excelência é,
naturalmente, Mussolini, cujo verbo e cuja veemência física se aproximam de Hitler,
mas se afastam de Salazar”. 43
Não é arriscado afirmar que Fernando Pessoa − seguidor atento da política
portuguesa, conhecedor dos rumores de golpes e ecos dos bastidores que, por essa
altura, lhe chegavam nas tertúlias e cafés que frequentava e, por isso, certamente bem
informado do descontentamento que grassava nas hostes nacional-sindicalistas,
republicanas e em meios militares reviralhistas − tivesse escrito o artigo “Associações
Secretas” na posse de toda essa informação. Seria, porém, entrar no domínio da pura
especulação admitir a possibilidade de Pessoa ter sido utilizado como articulista político
39
A. Costa Pinto, Os Camisas Azuis: Ideologia, Elites e Movimentos Fascistas em Portugal (Lisboa:
Estampa, 1994). O autor afirma que Cabral foi o único ex-membro do Nacional-Sindicalismo premiado
por Salazar com um lugar de deputado à Assembleia Nacional, pelo seu papel na cisão anti-Rolão Preto e,
até, na liquidação do Nacional-Sindicalismo. O trânsfuga José Cabral terá aconselhado a Salazar uma
atitude firme contra o movimento de que fizera parte (op. cit., pp. 263, 265 e 299).
40
Refere A. Costa Pinto que, em privado, os adeptos de Rolão Preto alcunhavam os seguidores do
cisionista José Cabral de “cabrões” (op. cit., p. 257).
41
Ver a lista dos artigos de Alfredo Margarido na bibliografia final.
42
A. Margarido, “Pessoa, ídolo dos nacional-sindicalistas”, JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º
73, 25 de Novembro de 1983, p. 11.
43
A. Margarido, “Nota curta para lembrar que Pessoa admirou Mussolini”, JL – Jornal de Letras,
Artes e Ideias, n.º 85, 21 de Fevereiro de 1984, p. 11.
por qualquer grupo conspirador ou, mesmo, de o conteúdo do seu artigo ter sido
previamente concertado com alguém da área nacional-sindicalista. Ainda que o artigo
em defesa da Maçonaria possa ter correspondido a objectivos precisos e bem
delimitados desse sector político, tal não significa que Pessoa tivesse sido recrutado ou
usado por ele. O artigo foi, de resto, publicado no Diário de Lisboa, jornal independente
e plural, de simpatias oposicionistas e liberais, que nada tinha que ver com o Nacional-
Sindicalismo. O artigo seria também aplaudido (veremos como) pelo semanário O
Diabo, ligado à intelectualidade de esquerda republicana, socialista e comunista, com a
qual Pessoa também nada tinha a ver.
Dispõe-se apenas de elementos parcelares, ainda que muito relevantes, sobre a
reacção dos responsáveis da Censura e do próprio governo nos dias imediatos à
publicação do artigo de Pessoa. A 8 de Fevereiro de 1935, quatro dias depois da
publicação do artigo “Associações Secretas”, o director-geral dos Serviços de Censura,
major Álvaro Salvação Barreto, emitiu uma circular com instruções aos seus serviços.
Nela, constatando o “acréscimo de combatividade notada na imprensa adversa” desde a
abertura da Assembleia Nacional (11 de Janeiro), Salvação Barreto determina que as
comissões e delegações de censura “permaneçam atentas”, alerta para que a censura
“não deve atenuar o rigor da sua acção” e exige “o máximo rigor na apreciação de toda
a matéria suspeita”. Mais adiante, proíbe que se dê “relevo” ao artigo de Fernando
Pessoa ou que se fizessem até “simples referências” ao assunto, que doravante deveria
ser “evitado”, tendo em vista o seu desejado “esquecimento”.44 Como antecedente
directo desta circular, dois dias antes, na tarde de 6 de Fevereiro, Salazar tinha reunido
com o director Salvação Barreto, com o assunto “Instruções” na agenda 45, facto que
sugere de quão perto Salazar acompanhou o caso do artigo de Fernando Pessoa. Pode
imaginar-se a surpresa e o desagrado do ditador, vendo um escritor recém-premiado
pelo Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) − órgão adstrito à própria Presidência
do Conselho − tomar uma posição política tão contrária aos interesses do regime e fazê-
lo com tão grande repercussão pública. Obviamente, também o director da Censura foi
apanhado de surpresa pela publicação do artigo do Diário de Lisboa, pois não é de crer
que, em 1935, Salvação Barreto ou os responsáveis da Comissão de Censura de Lisboa,
todos de comprovada fidelidade a Salazar 46, ainda precisassem de instruções detalhadas
do chefe do governo para decidir sobre um artigo que tomava tão notoriamente a defesa
da Maçonaria, o arqui-inimigo do Estado Novo e da Igreja Católica, e que se permitia
até fazer referências desrespeitosas a órgãos do poder.
44
Circular n.º 101 da DGSCI de 8 de Fevereiro de 1935, já citada. Ver o fac-simile da circular em
Richard Zenith, Fotobiografias Séc. XX: Fernando Pessoa (Lisboa: Círculo de Leitores, 2008), p. 164.
45
ANTT/AOS/1/5/37, Agenda de 1935, dia 6 de Fevereiro. Numa entrada do dia, lê-se: “Director da
Censura – Instruções”.
46
A obra atrás citada de J. Cardoso Gomes sustenta a inteira fidelidade a Salazar dos responsáveis da
censura a partir de 1932. Aparentemente, não foi demitido qualquer censor em consequência da falha da
censura. Esta obra não se refere ao caso, embora aluda às instruções do director da censura para silenciar
a polémica jornalística em torno do artigo de Pessoa.
Página da agenda de Salazar do dia 6 de Fevereiro de 1935, com a referência “Director da
Censura – Instruções”, relativa a uma reunião do ditador com Salvação Barreto, que esteve na origem da
circular deste aos Serviços de Censura proibindo referências ao artigo de Fernando Pessoa.
47
ANTT/MI, Gab. do Ministro, Mç. 472, p. 1/1, fl. 170.
próxima publicação nas suas páginas do artigo de Pessoa.48 Não obstante, o Fradique
ainda pôde publicar diversos textos sobre o caso durante o mês que se seguiu, nenhum
deles, obviamente, elogioso do artigo de Pessoa. O artigo de Rolão Preto "Não!", na
edição de 14 de Março do Fradique, embora muito crítico do sentido do projecto de lei
antimaçónico, não defendia a Maçonaria nem apoiava o artigo de Pessoa, ao qual, de
resto, nem sequer se referia.
48
Idem, fl. 214.
Isso não impediu Alfredo Margarido, apostado em sustentar a proximidade de
Pessoa à extrema-direita, de afirmar abusivamente que Rolão Preto foi “muito
singularmente, o único defensor de Fernando Pessoa”49 − parecendo até ignorar que, por
força da censura, nenhum defensor de Fernando Pessoa poderia ter vindo a terreiro
defendê-lo.50 Ao contrário de Pessoa, Rolão Preto não tinha qualquer simpatia pela
Maçonaria e os argumentos por ele usados contra o projecto de José Cabral pouco ou
nada tinham em comum com os expendidos no artigo “Associações Secretas”. Não
obstante, Pessoa elogiou a tomada de posição de Rolão Preto, cuja argumentação, neste
caso, tinha assumido simplesmente um cunho liberal, à revelia das posições políticas
habituais do chefe nacional-sindicalista, claramente antiliberais.
Que o artigo “Associações Secretas” foi realmente submetido à Censura e esta o
deixou passar, sabemo-lo pelo boletim de registo de cortes que a Comissão de Censura
de Lisboa elaborava semanalmente para o governo e, também, pelo próprio Fernando
Pessoa. O relatório com o sumário dos cortes operados na semana de 4 a 10 de
Fevereiro de 1935, assinado pelo capitão Dimas Lopes de Aguiar (homem da confiança
de Salvação Barreto, fiel salazarista e futuro subdirector dos Serviços de Censura),
começava por observar que o artigo de Pessoa discordava da doutrina do projecto de lei
apresentado na Assembleia Nacional. Não obstante, segundo este responsável, apenas o
subtítulo do artigo foi cortado, em virtude do seu carácter “tendencioso”, dado nele se
afirmar que o projecto de lei era “ao mesmo tempo inútil, injusto e prejudicial para o
país”.51 Ora essa mesma afirmação era feita por Pessoa no corpo do artigo, sem que
tivesse sofrido corte, para não mencionar muitas outras afirmações passíveis de serem
censuradas (por muito menos, a decisão habitual da censura era o “corte total” do
artigo). Diga-se que o original dactilografado, cuja cópia se encontra no espólio de
Pessoa, se intitulava “Um projecto de lei” e não tinha qualquer subtítulo. Não se sabe se
a iniciativa de alteração do título para “Associações Secretas” foi da redacção do Diário
de Lisboa ou, eventualmente, proposta pelo censor. Quanto ao “subtítulo” (isto é, o
título da continuação nas páginas centrais), é muito provável que ele tenha sido da
responsabilidade da redacção e que esta, depois do corte pela censura, o tenha
substituído por outro.52
Num manuscrito coevo, Pessoa refere que o artigo foi deixado passar
“integralmente” pela Censura.53 Noutra nota de 1935, Pessoa afirmava que, se havia
alguém que, até então, não se podia queixar da censura, era ele próprio.54 A censura era
já então extremamente rigorosa e atenta ao menor sinal de dissonância política. Vários
exemplos de cortes integrais efectuados pela censura durante a mesma semana são
eloquentes a esse respeito. Até a imprensa afecta ao regime teve notícias e textos
cortados, não, obviamente, por tomarem posição contra o poder político, mas porque
foram simplesmente julgados “inconvenientes”, “prematuros”, etc. Permanece a
questão: se o artigo de Pessoa foi considerado pela Censura como contrário à doutrina
49
A. Margarido, “Introdução”, em Fernando Pessoa, Santo António, São João, São Pedro, org.
Alfredo Margarido (Lisboa: A Regra do Jogo, 1986), p. 17.
50
A censura nem sequer deixou passar notícias sobre os aplausos de que o artigo de Pessoa foi alvo.
No jornal O Povo de 13 de Fevereiro de 1935 foi cortada uma local que referia que Fernando Pessoa tinha
“recebido inúmeras cartas e telegramas de felicitações pelo brilhante artigo que há dias publicou nas
colunas do Diário de Lisboa” (ANTT/MI, Gab. do Ministro, Mç. 472, p. 1/1, fl. 237).
51
ANTT/MI, Gab. do Ministro, Mç. 472, p. 1/1, fl. 169.
52
O título nas páginas centrais do Diário de Lisboa era: “Análise serena e minuciosa ǀ O projecto de
lei apresentado ao Parlamento acerca de associações secretas ǀ apreciado e largamente comentado pelo sr.
Fernando Pessoa”.
53
Associações Secretas e outros escritos, op. cit., texto 6, nota b.
54
Idem, texto 59.
do projecto de lei, porque lhe foi apenas cortado um subtítulo, que se limitava a
reproduzir uma passagem não cortada do texto?
O deputado José Cabral, apanhado de surpresa pela intrigante falha da censura,
afirmaria mais tarde, em 5 de Abril, durante o debate da lei na Assembleia Nacional, ter
conhecimento dos meios de que a Maçonaria se teria servido, depois de alegadamente
ter mandado Fernando Pessoa fazer a sua defesa num jornal, para “conseguir que, na
imprensa portuguesa, essa defesa aparecesse”. Apesar de insinuar assim que a passagem
do artigo pelas malhas da censura se teria devido a uma maquinação da Maçonaria, o
deputado entendeu, porém, não ser naquele momento “oportuno falar desse aspecto da
questão”, ou para não ter que denunciar os responsáveis directos pela falha da censura
ou para evitar falar sobre certas cumplicidades políticas e conspirações em curso.
Esclareça-se que decorriam nesse mesmo momento contactos conspiratórios, que eram
do conhecimento da polícia política, entre militares republicanos, incluindo maçons, e
os meios civis e militares do Nacional-Sindicalismo, contactos que desembocariam em
duas tentativas de golpe nesse ano. Em todo o caso, é muito significativo que Cabral
tenha imputado a publicação do artigo a um estratagema qualquer da Maçonaria, o que
exclui a hipótese de o texto ter obtido luz verde dos responsáveis dos Serviços de
Censura.
Perante o mistério da insólita permissividade da censura, Alfredo Margarido, a
quem essa estranha circunstância não escapou, aventou a hipótese de Pessoa ter sido
“manipulado” ou a de a publicação do artigo ter sido permitida por uma “astúcia” do
governo, que assim teria pretendido varrer “toda e qualquer outra forma de oposição
pública” à lei antimaçónica. 55 Margarido chega a admitir a absurda eventualidade de
Salazar ter dado o seu aval à publicação.56 Além de tortuosas e infundadas, tais
hipóteses são muito pouco verosímeis. O governo não precisava de qualquer pretexto
astucioso para silenciar a oposição, neste ou em qualquer outro assunto. A Censura
intervinha então com todo o rigor por razões bem menos ponderosas, como foi dito. Até
a mera citação de uma afirmação do presidente da Assembleia Nacional, proferida em
plena sessão, foi cortada, por “inconveniente”, em todos os diários do dia 8 de
Fevereiro.57 O artigo de Pessoa, recorde-se, além do seu tom geral de crítica sarcástica,
chamava “dominicano” e “inquisidor” ao deputado católico José Cabral, duvidava da
sapiência dos restantes deputados e chegava até a ironizar sobre o Conselho de
Ministros, permitindo-se apontá-lo, por redução ao absurdo, como uma “associação
secreta”, dado que o que se passava nas suas reuniões era igualmente rodeado de sigilo.
Sublinhe-se, uma vez mais, que o projecto de lei de José Cabral contou com a luz verde
de Salazar, embora a apresentação do projecto de lei na Assembleia Nacional tenha sido
uma iniciativa individual e extemporânea e, por isso, certamente pouco ao gosto dos
altos responsáveis políticos de então. Uma vez apresentado na Assembleia, o projecto
de lei poderia ter sido esquecido, remetido para as calendas gregas ou substituído por
um projecto de diploma de âmbito mais vasto (como o parecer da Câmara Corporativa
declarou que teria sido preferível). Ora não foi isso o que realmente se passou, mas sim
a cooptação do projecto de lei pelo governo e pela Assembleia. Dois anos depois, em
1937, outro projecto de lei da iniciativa individual de José Cabral, visando a
reintrodução da pena de morte em Portugal, foi simplesmente chumbado nos bastidores,
não chegando a ser admitido à discussão no hemiciclo.
55
A. Margarido, “Introdução” a Fernando Pessoa, Santo António, São João, S. Pedro, op. cit., p. 16.
56
Idem, p. 15.
57
ANTT/MI, Gab. do Ministro, Mç. 472, p. 1/1, fl. 169. Foi cortada em toda a imprensa a notícia
sobre a resposta do presidente da Assembleia Nacional, José Alberto dos Reis, à petição dos intelectuais
contra a censura.
Alfredo Margarido conjecturou ainda que Fernando Pessoa, decidido a defender
publicamente a Maçonaria, se teria valido do seu prestígio recentemente adquirido junto
dos meios governamentais, devido ao prémio que lhe foi atribuído pela Mensagem. É
sabido que Pessoa era então ainda tido, em alguns dos meios que frequentava, por
“situacionista”. Ele próprio se considerava ainda, no início de Fevereiro de 1935, um
“situacionista por aceitação”, embora não “por convicção”.58 O director da propaganda
António Ferro e o ideólogo do regime João Ameal (autor do Decálogo do Estado Novo),
secundados por Augusto Cunha, Augusto Ferreira Gomes e outros, alimentavam desde
pelo menos 1934 o projecto de captar Fernando Pessoa, de retirar do seu “isolamento”
esse ilustre desconhecido do grande público e de fazer dele uma espécie de poeta e
profeta do regime, numa aplicação prática da “Política do Espírito” definida por
António Ferro. A Mensagem foi premiada e o seu prémio pecuniário muito aumentado
em relação ao previsto no regulamento por insistência de Ferro, que teria até avançado à
tipografia o custo da impressão do livro.59 Como já aqui se disse, o livro de Pessoa foi
depois publicamente elogiado por João Ameal, que o apresentou como sintonizado com
os objectivos do regime. Censurar, pois, um autor “nacionalista”, pouco antes premiado
pelo governo e alvo de elogio no Diário da Manhã, poderia ter suscitado estranheza e
corrido o risco de alienar do regime uma figura cuja tentativa de captação estava em
curso. Mas nada disto é convincente como explicação da insólita permissividade da
censura, embora se possa conjecturar que o censor que autorizou o texto possa ter-se
valido de argumentos desse jaez para justificar a posteriori a sua decisão. Mereceria
talvez mais consideração a circunstância, também alegada por Alfredo Margarido, de o
artigo “Associações Secretas” ter involuntariamente fornecido um argumento de fácil
exploração pelo campo anti-Maçonaria, a saber, a eventualidade, sublinhada algo
ingenuamente por Pessoa, de represálias da internacional maçónica contra Portugal caso
fosse aprovada uma lei antimaçónica no país. Ficaria desse modo patente – os críticos
do artigo de Pessoa assim o sustentaram depois nos jornais – que a Maçonaria, pelos
argumentos dos seus próprios defensores, corporizava uma interferência supra-nacional
e ilegítima nos negócios políticos internos. Não sendo totalmente absurda, a hipótese de
que este cálculo poderia ter facilitado a publicação do artigo seria mais verosímil se o
governo ou os Serviços de Censura usassem de tal táctica noutras ocasiões. Ora isso
nunca se verificou na década de 30: mesmo quando o poder atacava os seus críticos, que
a maior parte das vezes simplesmente ignorava, jamais permitia que publicassem as
suas posições nos jornais. Críticos do governo de Salazar como Afonso Costa,
Bernardino Machado ou Cunha Leal publicavam então as suas críticas no estrangeiro ou
recorriam a publicações clandestinas.
A Censura − ou um determinado censor, por sua conta e risco − deixou, de facto,
passar o longo e rebarbativo artigo de Pessoa sem alterações de maior, ainda que não
“integralmente”, como o escritor chegou a pretender. De facto, além do “subtítulo”
censurado, acontece que desapareceu no texto do jornal uma referência velada que o
original de Pessoa fazia ao Presidente da República, general Óscar Carmona, insinuando
a sua qualidade de ex-maçon. Não se sabe se esse desaparecimento se deveu à censura,
cujo relatório não regista tal corte, ou à redacção do Diário de Lisboa, com eventual
acordo do autor. Também não é possível saber a quem atribuir outras diferenças que se
podem verificar entre o original dactilografado do artigo e o texto publicado, como a
referência à situação da Maçonaria na Rússia, mais contundente para com o regime
comunista no texto saído no Diário de Lisboa do que no original. Sabe-se, no entanto,
58
Associações Secretas e outros escritos, op. cit., texto 57.
59
José Blanco, “A verdade sobre a Mensagem”, em Steffen Dix e Jerónimo Pizarro (orgs.), A Arca de
Pessoa (Lisboa: ICS, 2007), pp. 147-158.
que os censores faziam por vezes sugestões de alteração dos textos às redacções dos
jornais, o que pode ter acontecido neste caso.
Concluindo este ponto, uma parte do mistério perdura. José Cabral não revelou
aquilo que declarava saber sobre a origem da falha da censura, que atribuiu
laconicamente a vagas maquinações da Maçonaria. Alfredo Margarido fez sobre o caso
meros juízos especulativos, alguns deles completamente destituídos de fundamento.
Como o depoimento de Maria da Graça Facco Vianna Martins também não resolveu a
questão, não existem até hoje provas definitivas do que se terá realmente passado. A
hipótese que parece mais verosímil, todavia, é a de que a publicação de “Associações
Secretas” tenha sido autorizada, à revelia dos responsáveis do serviço, por um censor
menos sintonizado com a orientação política do governo, possivelmente um nacional-
sindicalista motivado pela sua forte antipatia por José Cabral − sempre pressupondo,
como se disse, alguma desatenção por parte dos chefes dos Serviços de Censura, sobre
cuja fidelidade a Salazar não existem dúvidas.
60
Além do artigo de José Blanco atrás citado, ver Fernando Pessoa, Hyram: filosofia religiosa e
ciências ocultas, notas e posfácio de Petrus (Porto: CEP, ca.1953), que também contém a versão do artigo
“Associações Secretas” que Petrus já publicara no ano anterior.
61
Associações Secretas e outros escritos, op. cit., especialmente os textos 13 e 14.
62
Idem, capítulo III.
63
Assim o admitiu, embora o não declarasse taxativamente, o historiador A. H. de Oliveira Marques,
que foi grão-mestre do GOL, numa entrevista publicada em 14 de Junho de 1988 no JL, p. 15. Existe uma
segunda versão, de igual conteúdo, do opúsculo clandestino, um “folheto de capa branca” referenciado
por José Blanco no estudo citado.
64
Associações Secretas e outros escritos, op. cit., texto 59. Ver também a carta de 30 de Outubro de
1935 a Adolfo Casais Monteiro (apenas começada), em Fernando Pessoa, Correspondência 1923-1935,
ed. Manuela Parreira da Silva (Lisboa: Assírio & Alvim, 1999), pp. 357-358, na qual Pessoa se declara
decidido a não mais escrever para qualquer publicação ou livro em Portugal.
65
Ver carta a Marques Matias em Fernando Pessoa, Correspondência 1923-1935, op. cit., p. 358-359.
66
Associações Secretas e outros escritos, op. cit., textos 7 e 67.
67
Idem, texto 68.
68
Idem, texto 63.
polémica em que preferiu não participar, embora a todos os opositores pudesse refutar
facilmente. Imagina-se sem custo que polémica podia ter em mente. O poeta diz preferir
a sombra e limitar-se a ouvir, aconselhando obediência ao poder, quer este mande mal
quer bem, porque a vida dura pouco e, por isso, “não há muito que sofrer”.
71
Pessoa rematara já o famoso triplo poema satírico contra Salazar, datado de 29 de Março de 1935,
com a assinatura “Um sonhador nostálgico do abatimento e da decadência”, expressão retomada do
discurso de Salazar de 21 de Fevereiro.
72
Por exemplo, em 27 de Janeiro de 1936, o órgão da União Nacional Diário da Manhã declarava
que “a ofensiva maçónico-comunista é um facto”.
73
Os dois artigos foram reproduzidos em apêndice a José Barreto, “Fernando Pessoa e a invasão da
Abissínia pela Itália fascista”, Análise Social n.º 193, 2009, pp. 693-718.
74
Carta inacabada (não enviada) a Adolfo Casais Monteiro em 30 de Outubro de 1935 (BNP/E3,
1141-36r), publicada em Adolfo Casais Monteiro, A Poesia de Fernando Pessoa, org. José Blanco
(Lisboa: INCM, 1985).
75
Associações Secretas e outros escritos, op. cit., texto 67.
76
BNP/E3, 92A-26r. Publicado em Fernando Pessoa, Da República, op. cit., pp. 361-362.
77
Idem.
78
Veja-se, por exemplo, o texto intitulado “Nacionalismo liberal”, publicado em Fernando Pessoa,
Ultimatum e Páginas de Sociologia Política, org. Joel Serrão (Lisboa: Ática, 1980), pp. 343-351.
79
BNP/E3, 92M-62r a 63r, intitulado “Nacionalismo” (inédito).
Sobre O Interregno Pessoa escreverá novamente, em 30 de Março de 1935, que
ele deveria “ser considerado como não existente”, acrescentando: “Há que rever tudo
isso e talvez que repudiar muito.” 80 A partir do artigo “Associações Secretas”, torna-se
cada vez mais claro o retorno consequente à posição do “nacionalista e liberal” que
Pessoa, em escritos coevos, afirma sempre ter sido:
[...] de facto, fui sempre fiel, por índole, reforçada por educação − a
minha educação é toda inglesa −, aos princípios essenciais do liberalismo,
que são o respeito pela dignidade do Homem e pela liberdade do Espírito,
ou, em outras palavras, o individualismo e a tolerância, ou, ainda, em uma
só palavra, o individualismo fraternitário.82
80
Associações Secretas e outros escritos, op. cit., texto 82.
81
Texto publicado em Teresa Rita Lopes (org.), Pessoa por Conhecer, op. cit., p. 88.
82
“Explicação de um livro”, em Associações Secretas e outros escritos, op. cit., texto 60.
83
Bandarra, n.º 40 a 43, de 21 de Dezembro de 1935 a 11 de Janeiro de 1936.
84
Associações Secretas e outros escritos, op. cit., texto 82. Em À Memória do Presidente-Rei Sidónio
Pais (Lisboa, 1940) a Editorial Império censurou no dito documento, que era então desconhecido, o
último período da entrada “Obras que tem publicado”, onde Pessoa repudiava O Interregno, e cortou na
íntegra as entradas “Ideologia política”, “Posição religiosa”, “Posição iniciática”, “Posição patriótica”,
“Posição social” e ainda o “Resumo destas últimas considerações”.
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4. Outras obras