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Apêndice 1

ELETROCARDIOGRAMA:
INTERPRETAÇÃO,
PRINCIPAIS ALTERAÇÕES E
USO NA PRÁTICA
AMBULATORIAL

Fábio Morato de Castilho


Luisa Campos Caldeira Brant
Antonio Luiz Pinho Ribeiro
Introduzido há mais de 100 anos pelo médico holandês Willem Einthoven,
o eletrocardiograma (ECG) é um método de investigação clínica de fácil
utilização e de grande utilidade no diagnóstico e no tratamento das doenças
que acometem o coração, de modo direto ou indireto. Embora novos
métodos de diagnóstico cardiovascular tenham sido introduzidos nas
últimas décadas, o papel da eletrocardiografia continuou a ganhar espaço na
prática clínica. Na verdade, a confrontação do ECG com métodos mais
modernos, muitas vezes procedimentos invasivos, tem permitido definir
com acuidade o valor dos sinais eletrocardiográficos, apontando também
para as limitações do método.
Simples e reprodutível, o ECG pode ser feito de forma seriada,
possibilitando o acompanhamento evolutivo de condições cardiológicas
graves, como o infarto agudo do miocárdio (IAM). O significado
prognóstico das alterações eletrocardiográficas tem sido objeto de estudos
clínico-epidemiológicos, conferindo ao método importante papel na
estratificação de risco das cardiopatias. Assim, a eletrocardiografia é uma
ferramenta básica na avaliação diagnóstica, prognóstica e terapêutica das
doenças cardíacas.
O ECG consiste no registro não invasivo da atividade elétrica do
coração, obtido por eletrodos colocados sobre a superfície do corpo. O
coração é constituído predominantemente de células musculares – as fibras
cardíacas –, responsáveis pela função primordial de bombeamento de
sangue para os tecidos. A atividade muscular da fibra cardíaca depende de
processo ordenado e específico que envolve o fluxo de íons e cargas
elétricas através da membrana celular – a atividade elétrica cardíaca. O
ECG não registra diretamente a atividade elétrica de uma fibra cardíaca,
mas sim as mudanças de potencial no campo elétrico gerado pela atividade
elétrica sincronizada do conjunto das fibras cardíacas. No caso de
anormalidades estruturais ou funcionais cardíacas, como arritmias ou
infarto do miocárdio, a ativação elétrica se dá de forma diferente da
habitual, alterando a frequência e a morfologia dos eventos registrados ao
ECG.
Em geral, os eletrodos são colocados nas extremidades (membros
superiores esquerdo e direito e membro inferior esquerdo) e sobre o
precórdio (6 eletrodos), fornecendo um sistema de 12 derivações que
permite avaliar os fenômenos elétricos cardíacos de forma tridimensional.
As derivações obtidas pelos eletrodos de extremidades (I, II e III e aVR,
aVL e aVF) fornecem informações dos fenômenos registrados no plano
frontal (FIGURA A1.1), enquanto as derivações precordiais (V1 a V6)
referem-se ao plano horizontal (FIGURA A1.2). Outras derivações
possíveis são as precordiais direitas (V3R e V4R), usadas para o
diagnóstico de infarto do ventrículo direito (VD), e as derivações
posteriores (V7 e V8), utilizadas no diagnóstico do infarto da parede
posterior.
FIGURA A1.1 → Derivações obtidas pelos eletrodos periféricos, que fornecem informações
sobre os fenômenos elétricos no plano frontal. As derivações ditas bipolares registram a
diferença de potencial entre dois pontos: derivação I (DI), entre o membro superior
esquerdo e o membro superior direito; DII, entre o membro inferior esquerdo e o membro
superior direito; e DIII, entre o membro inferior esquerdo e o membro superior esquerdo. As
derivações ditas unipolares registram a diferença de potencial de um ponto do corpo em
relação a uma referência central, e são denominadas aVR (membro superior direito), aVL
(membro superior esquerdo) e aVF (membro inferior esquerdo). As seis derivações podem
ser integradas em um sistema de seis eixos que permite localizar os fenômenos elétricos
cardíacos com precisão.
FIGURA A1.2 → Localização dos eletrodos precordiais, que permite o registro
eletrocardiográfico em derivações unipolares do plano horizontal. V1 se localiza no quarto
espaço intercostal, logo à direita do esterno. V2 está na mesma direção, porém à esquerda
do esterno. V4 deve ser posicionado no quinto espaço, na linha hemiclavicular. V3 é
intermediário entre V2 e V4. V5 e V6 estão na mesma altura de V4, mas por onde passam
as linhas axilar anterior e hemiaxilar, respectivamente.

A metodologia de interpretação do ECG foi desenvolvida nas últimas


décadas e está descrita nos livros-texto sobre eletrocardiografia, alguns
deles citados ao final deste apêndice.1 De modo geral, os princípios da
interpretação do ECG são simples, de fácil aprendizado e suficientes para
reconhecer os padrões mais comuns na prática clínica, possibilitando a
resolução da grande maioria dos casos. Na prática ambulatorial, a maioria
dos traçados é normal, o que está associado, em geral, a um bom
prognóstico. O traçado de ECG normal não exclui muitas das
anormalidades cardíacas importantes, como arritmias paroxísticas, que
podem não estar presentes no momento do registro, ou mesmo alterações
como a hipertrofia de ventrículo esquerdo (HVE), já que a sensibilidade do
método para sua detecção é limitada. A frequência de ECGs normais
diminui com o envelhecimento e com a existência de doenças cardíacas
crônicas. Um pequeno número de traçados pode ser de interpretação difícil
e exigir a troca de ideias com um especialista.
Como em outras áreas da medicina, a prática rotineira da interpretação
sistemática de traçados eletrocardiográficos é essencial para que o médico
adquira a experiência e a segurança necessárias ao bom uso dessa
ferramenta diagnóstica. Ao interpretar o ECG, deve-se seguir
sistematicamente a rotina de análise, lembrando-se de contextualizar os
achados à hipótese diagnóstica. A comparação do traçado atual com ECGs
prévios é uma estratégia simples, mas de grande valor na prática diária.
Alterações eletrocardiográficas novas, quando comparadas aos traçados
anteriores, em especial se associadas ao aparecimento de novos sintomas,
devem ser levadas em conta no raciocínio clínico.
Como qualquer método diagnóstico, a interpretação do ECG depende da
probabilidade prévia da condição a ser diagnosticada e da acuidade dos
critérios usados para o diagnóstico. Ou seja, quanto maior for a suspeita
prévia do médico quanto à presença de uma condição clínica e quanto mais
típicos forem os achados eletrocardiográficos, mais provável que eles
indiquem a presença da condição suspeitada.

PRINCIPAIS INDICAÇÕES
A principal indicação da realização do ECG é na avaliação diagnóstica do
paciente com cardiopatia conhecida ou suspeitada, ou com risco
cardiovascular elevado, seja na avaliação inicial, seja no acompanhamento,
com periodicidade variável, dependente da cardiopatia de base. Nesse caso,
o ECG é particularmente indicado quando aparecem novos sintomas, sinais
ou manifestações laboratoriais que sugiram o agravamento da doença ou o
aparecimento de complicações. Em algumas situações, quando a condição é
intermitente (p. ex., arritmias) ou de evolução aguda (p. ex., dor torácica), a
realização de apenas um ECG pode não ser suficiente para o diagnóstico, e
a repetição do exame pode ser necessária.
O método também pode ser utilizado na avaliação da resposta
terapêutica, quando a terapia prescrita produz alterações
eletrocardiográficas que se correlacionam com a resposta terapêutica ou a
progressão da doença, ou quando existem efeitos adversos que podem ser
preditos ou detectados pelo ECG. Nos indivíduos saudáveis, sem
cardiopatia diagnosticada ou suspeitada, existem menos motivos para a
realização do ECG, aumentando a possibilidade de encontrar achados sem
significado clínico, inespecíficos ou de curso benigno. A possível indicação
do ECG nos exames periódicos de saúde e na avaliação prévia à realização
de exercícios físicos é abordada em capítulos deste livro.
Este apêndice não tem o objetivo de descrever, de forma aprofundada, a
metodologia de interpretação do ECG nem discutir a fisiopatologia dos
critérios diagnósticos. Para esse fim, recomenda-se a leitura de textos
básicos de eletrocardiografia, referenciados nas Leituras Recomendadas.
Após uma breve revisão da sistematização da interpretação do ECG e das
principais alterações eletrocardiográficas, o capítulo aborda o uso da
eletrocardiografia em algumas condições clínicas comuns e os princípios de
utilização de dois métodos derivados do ECG: o teste de esforço e a
eletrocardiografia ambulatorial (Holter).

SISTEMATIZAÇÃO DA INTERPRETAÇÃO DO
ELETROCARDIOGRAMA
O registro eletrocardiográfico é feito em papel milimetrado, com linhas
mais espessas a cada 5 milímetros (mm), no qual o tempo está representado
no eixo horizontal, e a magnitude (voltagem) das ondas e deflexões, no eixo
vertical (FIGURA A1.3). A velocidade de registro padrão é de 25 mm/s, de
modo que cada 25 mm representam 1 segundo (s), ou 1.000 milissegundos
(ms). Assim, cada milímetro representa 1/25 de segundo, 0,04 s ou 40 ms.
A magnitude das deflexões é medida em milivolt (mV). O padrão normal
(N) é de 1 mV equivalendo a 10 mm, de modo que cada milímetro é igual a
0,1 mV. Sempre no início de cada traçado, registra-se uma onda de pulso
quadrada como a amplitude de 1 mV, para que o leitor do ECG possa ter
certeza de que o registro foi feito em padrão normal. Ocasionalmente, o
traçado pode ser registrado em padrão 2N (onda de pulso de 1 mV = 20
mm), quando as deflexões são de muito baixa amplitude, ou N/2 (onda de
pulso de 1 mV = 5 mm), quando a amplitude das ondas R e S é muito
grande; assim, para que as deflexões possam ser registradas, é preciso
diminuir o seu tamanho.

FIGURA A1.3 → O papel eletrocardiográfico e as mensurações típicas do


eletrocardiograma (ECG). No eixo horizontal, representa-se o tempo. A velocidade do
papel é de 25 milímetros por segundo (mm/s), de forma que 25 mm = 1 s (A), 5 mm = 0,2 s
(B) e 1 mm = 0,04 s (C). A amplitude é registrada no eixo vertical e de maneira que, no
modo normal (N), 10 mm = 1 mV (mV) (A), 5 mm = 0,5 mV (B) e 1 mm = 0,1 mV (C).

As principais ondas e deflexões avaliadas no ECG (FIGURA A1.4) se


relacionam com a ativação (ou despolarização) dos átrios (onda P) e dos
ventrículos (complexo QRS) e com a recuperação (ou repolarização) dos
ventrículos (onda T). No complexo QRS, a onda q é a deflexão negativa
que precede a deflexão positiva (onda R), enquanto a onda s é deflexão
negativa registrada após a onda R. A onda positiva costuma ser única e é
denominada onda R; se existe uma segunda onda R, ela é denominada onda
R’. Quando não há onda R, o complexo é denominado qS. Há, ainda, a onda
U, cuja origem é incerta, em geral de pequena amplitude, situada após a
onda T e visível sobretudo nas derivações precordiais. No complexo QRS,
geralmente se usam letras maiúsculas para ondas de grande amplitude e
letras minúsculas para ondas de baixa amplitude. Entre as ondas, existem os
segmentos PR (ou PQ), que são a linha plana que une a onda P ao complexo
QRS, e o segmento ST, que vai desde o final do complexo QRS ao início da
onda T.

FIGURA A1.4 → Principais ondas e intervalos ao eletrocardiograma (ECG). A onda P


registra a despolarização atrial, enquanto o complexo QRS representa a despolarização
ventricular, e a onda T, a repolarização ventricular. A onda U, de gênese controversa, pode
estar presente especialmente nas derivações precordiais. O intervalo PR indica o tempo
entre o início da ativação atrial e o início da ativação ventricular, enquanto o intervalo QT é
uma medida do tempo entre o início da ativação ventricular e o fim de sua repolarização.

Na interpretação do ECG, analisam-se sistematicamente os seguintes


aspectos (TABELA A1.1):1
TABELA A1.1 → Roteiro para análise sistemática do eletrocardiograma

1. Qualidade técnica do registro


2. Cálculo da frequência cardíaca
3. Onda P
4. Intervalo PR
5. Complexo QRS
6. Segmento ST
7. Onda T
8. Intervalo QT
9. Ritmo cardíaco
10.Conclusão

1. Qualidade técnica do registro. O registro deve conter as 12


derivações, e a linha de base deve ser estável, com pouca ou nenhuma
interferência. A onda de pulso quadrada é registrada nos
eletrocardiógrafos automáticos e permite avaliar se o padrão utilizado é
o N.
2. Cálculo da frequência cardíaca. A frequência cardíaca (FC) é a
medida do número de batimentos que ocorre em 1 minuto. Pode ser
obtida a partir do número de intervalos entre 2 batimentos cardíacos
sucessivos, medido pelo intervalo entre o pico das ondas R (intervalo
RR ou RRi), contidos em 1 segundo, ou pela fórmula:
FC = 1 minuto = 60 segundos = 60.000 ms

RRi RRi RRi


(em minutos) (em segundos) (em milis-
segundos)

Como é mais fácil medir o intervalo RR em mm e cada mm representa


40 ms, a FC pode ser facilmente calculada dividindo 1.500/RRi (em
mm) (FIGURA A1.5). Uma fórmula aproximada, porém de mais fácil
execução, para o cálculo da FC consiste em dividir 300 pelo número de
quadrados grandes entre as ondas R (cada quadrado corresponde a 5
mm). Em caso de arritmia irregular, como na fibrilação atrial, o ideal é
que sejam medidos vários intervalos RR, obtendo o RRi médio.
FIGURA A1.5 → Cálculo da frequência cardíaca (FC) a partir do intervalo RR (RRi). Mede-
se o RRi e divide-se 1.500/RRi (em milímetro [mm]). No caso em questão, 1.500/20 = 75
batimentos por minuto (bpm). Nesse mesmo caso, dividindo 300 pelo número de
quadrados grandes no intervalo (5), obtém-se o mesmo valor (300/4 = 75 bpm).

3. Onda P. A ativação atrial é avaliada pela análise da onda P, que é a


deflexão habitualmente arredondada, de baixa amplitude e positiva em
quase todas as derivações. Em V1, a onda P tende a ser difásica, com
uma porção inicial positiva e outra porção final negativa, e, em aVR, a
onda P normal é sempre negativa. A onda P dura até 0,10 s e tem a
magnitude de 0,25 mV, o que equivale a 2,5 mm de largura e de altura.
As alterações de amplitude ou duração da onda P sugerem sobrecarga
atrial (ver tópico Sobrecargas, adiante), enquanto a ausência de onda P
com o ritmo irregular pode significar presença de fibrilação atrial (ver
tópico Taquicardias, adiante).
4. Intervalo PR. Mede o intervalo de tempo entre o início da ativação
atrial e o início da ativação ventricular. Assim, é medido do início da
onda P (inclusive) ao início do complexo QRS (excluído da medida),
sendo, em geral, de 0,12 a 0,22 s em adultos com FC em torno de 60
batimentos por minuto (bpm) (ver FIGURA A1.4). O intervalo PR
(PRi) se encurta com o aumento da FC e, nas crianças, tende a ser mais
longo nas frequências < 60 bpm e nos idosos. O PRi aumentado indica a
presença de distúrbio da condução atrioventricular (AV), enquanto o
PRi curto, sobretudo se associado ao encurtamento do segmento PR,
pode indicar a existência de síndrome de pré-excitação ventricular,
situação em que a existência de via anômala comunicando átrios e
ventrículos leva à excitação precoce dos ventrículos, predispondo a
arritmias cardíacas.
5. Complexo QRS. A ativação ventricular determina a duração e a
configuração do complexo QRS, que costuma ter 2 ou 3 ondas na
maioria das derivações eletrocardiográficas. A polaridade e a
morfologia das ondas vão depender da magnitude dos potenciais
elétricos observados e da posição do coração em relação às derivações.
Uma primeira onda é habitualmente negativa (onda q) na maioria das
derivações (com exceção de V1 e V2, em que a presença de onda q é
anormal), com duração < 0,04 s e comumente de pequena amplitude, de
no máximo 0,4 mV e de 25% da onda R subsequente (com exceção de
DIII e aVR). Ondas q de duração e amplitude maiores do que esse
limite são marcadores eletrocardiográficos da inatividade elétrica, como
no infarto antigo do miocárdio. A seguir, costuma-se observar uma onda
positiva ampla (onda R), seguida em algumas derivações por uma
pequena deflexão negativa (onda S). A deflexão registrada entre o pico
da onda R e o vértice da onda S é chamada de deflexão intrinsecoide, e
o tempo de aparecimento desta após o início do QRS é chamado de
tempo de ativação ventricular (que equivale ao intervalo entre o início
do QRS e o pico da onda R), que deve ser, no máximo, 0,045 s em
precordiais esquerdas e 0,03 s em precordiais direitas. O eixo elétrico do
QRS costuma ser de cerca de 60 graus, variando geralmente entre −30 e
+90 graus (complexos QRS positivos em DI e aVF) (TABELA A1.2).
Na maioria dos casos, a duração do QRS em adultos é de 0,07 a 0,10 s,
sendo que a duração ≥ 0,12 s é sempre anormal (ver tópico Bloqueios
intraventriculares, adiante).
TABELA A1.2 → Desvios do eixo elétrico do coração: forma simplificada de avaliação
DI aVF EIXO

Positivo Positivo Normal (entre 0 e +90°)

Negativo Negativo Desvio extremo (entre −90° e 180°)

Negativo Positivo Desvio para a direita (entre +90° e 180°)

Positivo Negativo Se DII positivo: normal (entre 0 e −30°)


Se DII negativo: desvio para a esquerda (entre −30° e −90°)
6. Segmento ST. O segmento ST representa o período no qual o ventrículo
permanece no estado ativado ou despolarizado. Em geral, inicia com um
ângulo de 90 graus com o fim do complexo QRS (ponto J) e segue
horizontalmente até fundir-se com a onda T de maneira gradual. O
segmento ST normal é nivelado com o segmento PR e a linha de base,
sendo que infradesnivelamentos ou supradesnivelamentos > 1 mm
devem ser considerados anormais. Não é incomum, porém, a existência
de supradesnivelamento do segmento ST > 1 mm, em especial nas
precordiais esquerdas, em homens jovens saudáveis, caracterizando uma
variante da normalidade que se denomina “repolarização precoce” (ver
tópico Síndromes isquêmicas, adiante). O caráter benigno da
repolarização precoce foi questionado recentemente por estudos que
mostraram a associação de alguns tipos de repolarização precoce com o
risco aumentado de morte súbita, embora permaneça o conceito de que
se trata de uma condição primariamente benigna.
7. Onda T. A onda T representa o fenômeno da repolarização ventricular e
tem, em geral, a mesma polaridade que o complexo QRS, ou seja, em
derivações nas quais o QRS é predominantemente positivo, a onda T
também tende a ser positiva. Caracteristicamente, a onda T é positiva
em DI e DII e negativa em aVR, com polaridade variável nas outras
derivações; nas precordiais, a onda T é positiva de V2 a V6, podendo
ser invertida ou aplanada em V1, sobretudo em mulheres. Na maioria
dos casos, a onda T é assimétrica, com início mais gradual do que a
porção terminal. Após a onda T, pode-se observar uma deflexão de
baixa frequência, de gênese controversa, em geral positiva, denominada
onda U, com pequena importância clínica.
8. Intervalo QT. O intervalo QT (QTi) representa a duração da sístole
elétrica ventricular e é medido do início do complexo QRS ao fim da
onda T, representando a soma da duração do complexo QRS, do
segmento ST e da onda T. O valor de referência para o QTi na FC de 60
bpm está entre 0,34 e 0,44 s. O QTi diminui com o aumento da FC, e,
quando medido em frequências muito diferentes desta, deve-se utilizar
uma fórmula de correção. A fórmula de correção usada com mais
frequência é a Bazett:
QTmedido
QTcorrigido =
√RR (em segundos)

A mensuração do intervalo QT deve ser feita de rotina na análise do


ECG, mas é particularmente útil em pacientes em uso de medicamentos
com potencial arritmogênico, como os antimoniais pentavalentes
(meglumina) e os antidepressivos tricíclicos; nesses casos, o aumento
significativo do QTc, em especial se superior a 0,50 s, pode prenunciar
o aparecimento de arritmias potencialmente fatais.
9. Ritmo cardíaco. O ritmo cardíaco pode ser sinusal, ou seja, originado
no nó sinusal, estrutura do sistema excitocondutor localizada no átrio
direito (AD) que tem células especializadas com atividade elétrica
espontânea que costumam comandar o ritmo cardíaco, ou não sinusal
(ou ectópico), quando comandado por outros focos, geralmente
anormais (ver tópicos Taquicardias e Bradicardias, adiante). O ritmo
normal do coração é o sinusal, embora possam ocorrer arritmias
(extrassístoles, pausas, etc.) na ausência de cardiopatia estrutural. Diz-se
que há ritmo sinusal regular quando se registra ritmo com intervalos PP
e RR regulares, FC entre 60 e 100 bpm, ondas P positivas em DI, DII e
de V2 a V6, seguidas sempre de complexo QRS, com PRi > 0,12 s.
Uma arritmia normal frequentemente observada em crianças e adultos
jovens é a arritmia sinusal respiratória, na qual se observa aumento da
FC (redução do RRi) durante a inspiração, com redução da FC
(aumento do RRi) na expiração.
10. Conclusão. A análise do ECG termina com uma conclusão, que resume
o diagnóstico eletrocardiográfico, seja ele de ECG normal (FIGURA
A1.6), seja pela existência dos padrões de ECG típicos descritos a
seguir. Os padrões descritos foram definidos para adultos e podem
sofrer algumas modificações em crianças, especialmente para os
padrões morfológicos.
FIGURA A1.6 → Exemplo de eletrocardiograma (ECG) normal.

A interpretação básica do ECG pode ser sumarizada por meio da


FIGURA A1.7.
FIGURA A1.7 → Interpretação de eletrocardiograma (ECG).
AD, átrio direito; AE, átrio esquerdo; BAV, bloqueio atrioventricular; bpm, batimentos por
minuto; BRE, bloqueio de ramo esquerdo; FA, fibrilação atrial; FC, frequência cardíaca;
IAM, infarto agudo do miocárdio; TEP, tromboembolismo pulmonar; VE, ventrículo
esquerdo.
Fonte: Adaptada de materiais de Michael Duncan.

Õ
PRINCIPAIS ALTERAÇÕES
ELETROCARDIOGRÁFICAS

Sobrecargas
O reconhecimento eletrocardiográfico das sobrecargas atriais e
ventriculares auxilia no diagnóstico das doenças valvares, permite avaliar
repercussões cardíacas de doenças pulmonares e auxilia no reconhecimento
da HVE na hipertensão arterial, que tem valor prognóstico. Por serem
encontradas frequentemente na prática clínica, seu reconhecimento correto
propicia, em alguns casos, a extensão de propedêutica diagnóstica e, no
caso da hipertensão, o correto acompanhamento terapêutico. Os critérios
diagnósticos das sobrecargas atriais e ventriculares, assim como o
significado clínico de cada alteração, estão explicitados nas TABELAS
A1.3 e A1.4.2,3
TABELA A1.3 → Sobrecargas atriais e ventriculares: critérios diagnósticos e significado
clínico
ALTERAÇÃO CRITÉRIOS SIGNIFICADO CLÍNICO
DIAGNÓSTICOS

Hipertrofia de Índice de Sokolow-Lyon: Os critérios de Romhilt-Estes consideram


ventrículo onda S de V1 + onda R tanto o aumento da voltagem como outras
esquerdo de V5 ou V6 > 35 mm alterações ao ECG e devem ser preferidos
(HVE) Índice de Cornell: onda R A HVE está relacionada com hipertensão
de aVL + onda S de V3 > arterial e, menos comumente, com doenças
28 mm em homens e > valvares (sobretudo estenose aórtica)
20 mm em mulheres
Critérios de Romhilt-
Estes (ver TABELA
A1.4)

Hipertrofia de Presença de qualquer A HVD pode ser encontrada na doença


ventrículo dos critérios a seguir: pulmonar obstrutiva crônica, no cor pulmonale
direito (HVD) 1. Onda R em V1 > 6 mm crônico, na estenose mitral com hipertensão
2. R/S em V1 > 1 pulmonar e nas cardiopatias congênitas
3. S em V5 > 10 mm
4. S em V6 > 3 mm
5. R em aVR > 4 mm
S pequena em V1 < 2
6. mm
7. S pequena em V5 e V6
< 3 mm
8. R/S em V5 < 0,75
9. R/S em V6 < 0,4
10.R/S em V5 dividido
por R/S em V1 < 0,04
11.(R1 + SIII) − (SI + RIII)
< 15 mm

Hipertrofia 1. Presença de critérios Pode ser encontrada em pacientes com


biventricular de HVE e HVD defeitos do septo ventricular ou ducto arterial
2. Sinais de HVE nas patente com presença de hipertensão
derivações precordiais pulmonar (síndrome de Eisenmenger)
com eixo do QRS >
+90 graus
3. R > Q em aVR, S > R
em V5, onda T
invertida em V1
associados a sinais de
HVE

Anormalidade 1. Duração da onda P > Pode ser encontrada em cardiopatia


do átrio 120 ms hipertensiva e doenças valvares
esquerdo 2. Presença de notch na (especialmente estenose mitral), pericardite
onda P > 40 ms constritiva, etc.
3. Componente negativo
na onda P em V1 ≥ 40
ms ou 1 mm

Anormalidade 1. Onda P > 2,5 mm em Pode estar presente em pacientes com


do átrio DII cardiopatia congênita e cor pulmonale crônico
direito 2. Onda P com
componente positivo >
1,5 mm em V1 ou V2

ECG, eletrocardiograma; mm, milímetro; ms, milissegundo.


Fonte: Surawicz e colaboradores2 e Hancock e colaboradores.3

TABELA A1.4 → Critérios de Romhilt-Estes para diagnóstico de hipertrofia de ventrículo


esquerdo (HVE)
CRITÉRIOS INTERPRETAÇÃO

1. Presença de um dos critérios de > 5 pontos: HVE presente


amplitude a seguir – 3 pontos: 4 pontos: HVE provável
presença de onda R ou S ≥ 20 mm Significado: a HVE envolve alterações
em uma derivação periférica; onda secundárias, como alteração de átrio esquerdo,
S em V1 ou V2 ≥ 30 mm ou onda desvio do eixo do QRS para a esquerda e
R em V5 ou V6 ≥ 30 mm alterações de repolarização ventricular; os critérios
2. Padrão Strain de Romhilt-Estes contemplam essas alterações,
(infradesnivelamento de ST com além das alterações de amplitude
inversão de T em V5, V6, aVL e
DI) – 3 pontos sem uso de digital
ou 1 ponto em caso de uso de
digital
3. Sobrecarga de átrio esquerdo
(índice de Morris) – 3 pontos
4. Desvio do eixo para a esquerda ≥
−30° – 2 pontos
5. Duração do QRS ≥ 90 ms – 1
ponto
6. Tempo de ativação ventricular em
V5 e V6 > 50 ms – 1 ponto

mm, milímetro; ms, milissegundo.


Fonte: Surawicz e colaboradores2 e Hancock e colaboradores.3

De forma geral, a sobrecarga do ventrículo esquerdo (VE) aumenta a


magnitude dos potenciais elétricos dirigidos para a esquerda e para trás,
enquanto a sobrecarga do VD reverte essa tendência normal, dirigindo as
forças para a frente e para a direita. Enquanto a sobrecarga (ou crescimento)
do átrio esquerdo (AE) afeta predominantemente a duração da onda P, a
sobrecarga do AD aumenta sua amplitude. Apesar da importância clínica
das sobrecargas, deve-se ressaltar que os critérios eletrocardiográficos
costumam ter baixa sensibilidade e elevada especificidade para o
reconhecimento da hipertrofia e para o aumento das câmaras cardíacas
correspondentes.

Bloqueios intraventriculares
Os distúrbios de condução intraventricular ocorrem por atraso ou bloqueio
no sistema de condução elétrica de His-Purkinje, gerando alterações na
duração e na morfologia do complexo QRS. Esses distúrbios podem ocorrer
por alterações diversas do ventrículo, como presença de fibrose ou
isquemia, adaptação a alterações valvares ou doenças congênitas. Enquanto
os bloqueios completos de ramo se caracterizam pela duração do QRS ≥
0,12 s, os bloqueios incompletos têm duração entre 0,11 (inclusive) e 0,12
s; já os hemibloqueios alteram primariamente o eixo elétrico no plano
frontal, desviando para a esquerda (hemibloqueio anterior esquerdo) ou
para a direita (hemibloqueio anterior direito).2 Os bloqueios de ramo
também podem ocorrer de forma intermitente, relacionados, em geral, com
o aumento da frequência ventricular e com a propagação do estímulo
durante a fase de refratariedade de algum componente do sistema de
condução.2
Os critérios diagnósticos desses bloqueios, assim como o significado
clínico de cada alteração, estão explicitados na TABELA A1.5.
TABELA A1.5 → Bloqueios intraventriculares: critérios diagnósticos e significado clínico

ALTERAÇÃO CRITÉRIOS SIGNIFICADO CLÍNICO


DIAGNÓSTICOS

Bloqueio Presença dos 3 1. Indivíduos sem evidência de cardiopatia; mais


completo de primeiros critérios; frequente em idosos, podendo representar
ramo direito quando há R puro alteração degenerativa
em V1, o critério 4 2. Cardiopatia chagásica
deve ser
3. Sobrecarga crônica (cor pulmonale) ou aguda
contemplado:
(TEP) do VD
1. QRS > 120 ms
4. IAM (conferindo elevada mortalidade e
2. rsr’ ou rsR’ ou sugerindo lesão de artéria descendente anterior)
rSR’ em V1 ou 5. Outros: pericardite, doenças congênitas,
V2; na minoria hipertensão, etc.
dos pacientes, há
um R puro em V1
ou V2
3. S com duração >
40 ms ou maior
que a duração do
R em V6 e D1
4. Tempo de
ativação
ventricular > 50
ms em V1

Bloqueio 1. QRS entre 110 e Pode ocorrer na ausência de cardiopatia e durante


incompleto de 119 ms taquicardias supraventriculares, TEP, SCA (infarto
ramo direito
2. Outros critérios anterior ou infarto de VD), pacientes com HVD,
idênticos aos do cardiopatias congênitas, miocardite
BRD

Bloqueio 1. QRS > 120 ms Alteração encontrada geralmente em pacientes


completo de 2. Onda R com cardiopatia estrutural (isquêmica,
ramo esquerdo empastada ou hipertensiva, congênita, valvar, etc.); raras vezes é
com notch em vista em indivíduos sem doença cardíaca, em
V5, V6, DI e aVL geral mais idosos
3. Ausência de A presença de BRE é indicação para propedêutica
onda q em DI, V5 cardiológica complementar; em pacientes
e V6 portadores de cardiopatia estrutural, o BRE é
marcador de gravidade e pior prognóstico da
4. Tempo de
doença de base
ativação
ventricular > 60
ms em V5 e V6
5. ST e T opostos
ao QRS

Bloqueio 1. QRS entre 110 e Considerada uma variante da HVE, indica atraso
incompleto de 119 ms na condução pelo ramo esquerdo; pode ocorrer
ramo esquerdo 2. Ausência de em todas as condições que produzem BRE ou
onda q em DI, V5 HVE
e V6
3. Tempo de
ativação
ventricular > 60
ms em V5 e V6

Bloqueio do 1. QRS < 120 ms Pode ocorrer em indivíduos sem evidência de


fascículo 2. Eixo do QRS cardiopatia estrutural
anterossuperior entre −45° e −90° As doenças mais comumente associadas são
esquerdo hipertensão, doença de Chagas (comumente com
3. qR em aVL
BRD), doença isquêmica (relacionada com lesão
4. Tempo de
de descendente anterior), cardiopatias congênitas
ativação
ou valvares (especialmente aórtica)
ventricular ≥ 45
ms em aVL Como achado isolado, não confere maior
mortalidade a cardiopatias estruturais

Bloqueio do 1. QRS < 120 ms Por ser um fascículo mais largo e estar exposto a
fascículo 2. Eixo do QRS menores pressões e turbulências em seu trajeto, a
posteroinferior entre 90 e 180 presença isolada de BFPI é rara
(BFPI) Pode estar associada à doença isquêmica, à
3. rS em aVL
esquerdo doença de Chagas, à miocardite, à hipercalemia e
4. qR em DIII e aVF
ao cor pulmonale agudo
Pré-excitação 1. PR < 120 ms Indica a existência de ativação ventricular por via
tipo WPW 2. Presença de anômala que conecta átrios e ventrículos
onda delta diretamente, sem o retardo da condução pelo nó
atrioventricular
3. QRS > 120 ms
4. Alterações Está associada a arritmias supraventriculares,
secundárias de como taquicardia supraventricular regular e
ST e T fibrilação atrial
Pacientes com pré-excitação tipo WPW
persistente ao ECG, mesmo assintomáticos,
devem ser referenciados a um cardiologista, para
a melhor estratificação de risco arritmogênico

BRD, bloqueio de ramo direito; BRE, bloqueio de ramo esquerdo; ECG,


eletrocardiograma; HVD, hipertrofia de ventrículo direito; HVE, hipertrofia de ventrículo
esquerdo; IAM, infarto agudo do miocárdio; ms, milissegundo; SCA, síndrome
coronariana aguda; TEP, tromboembolismo pulmonar; VD, ventrículo direito; WPW,
Síndrome de Wolff-Parkinson-White.

Extrassístoles
As extrassístoles são batimentos cardíacos prematuros, gerados por
atividade elétrica anormal em átrios, no sistema de condução ou nos
ventrículos (FIGURA A1.8). As extrassístoles costumam ser classificadas
em supraventriculares, quando originadas nos átrios ou na junção AV, e
ventriculares, quando originadas nos ventrículos. Extrassístoles
supraventriculares geralmente se apresentam com o complexo QRS que é
similar ao QRS prévio, em geral estreito (< 0,12 s). Uma onda P prematura
e anormal (denominada P’) pode aparecer, sobretudo se a origem for atrial.
As extrassístoles ventriculares comumente se apresentam com QRS largo, >
0,12 s, e não são precedidas por ondas P’.
FIGURA A1.8 → Arritmias ao eletrocardiograma (ECG). Em A, extrassístole ventricular
isolada interpolada entre 2 batimentos sinusais, conduzidos com intervalo PR prolongado
(0,24 segundo [s]). Em B, fibrilação atrial, com ondas f irregulares com alta frequência e
intervalo RR variável. Em C, bloqueio atrioventricular avançado, com 3 ondas P
bloqueadas, seguidas por escape ventricular e retorno ao ritmo sinusal. Em D, bloqueio
atrioventricular total, com dissociação completa entre ritmos atrial e ventricular.

Quando, após cada batimento normal, segue-se uma extrassístole, o


termo bigeminismo é usado; se a extrassístole ocorre sempre após 2
batimentos normais, usa-se trigeminismo. Duas extrassístoles sucessivas
constituem um par; já a concatenação de 3 ou mais batimentos
extrassistólicos ventriculares com frequência ≥ 100 bpm configura
taquicardia ventricular: não sustentada se dura até 30 segundos e
sustentada se dura mais que 30 segundos ou necessita ser interrompida.1
As extrassístoles são muito frequentes e, em geral, benignas. A
frequência das extrassístoles atriais aumenta com a idade e em pacientes
com cardiopatia, podendo, nestes últimos, ser secundária à dilatação atrial e
preceder o aparecimento da fibrilação atrial. O significado das extrassístoles
ventriculares depende da presença ou não de cardiopatia e de sua
complexidade. As extrassístoles ventriculares isoladas não têm significado
prognóstico na ausência de cardiopatia, mas a presença de ectopia
ventricular é marcadora de risco aumentado de morte em doenças
cardiovasculares, como após o infarto e na cardiopatia chagásica, em
especial se frequente e na presença de formas repetitivas, como pares e
taquicardia ventricular não sustentada.

Taquicardias
Encontrar pacientes com FC > 100 bpm não é raro na prática médica,
inclusive em nível ambulatorial. O aspecto inicial mais importante da
avaliação desse tipo de paciente é a busca por critérios de instabilidade
clínica: hipotensão, dor torácica, dispneia intensa, rebaixamento do nível de
consciência. A presença desses marcadores indica a transferência imediata
do paciente para centro de urgência e a avaliação imediata de cardioversão
elétrica, caso o ECG confirme taquicardia não sinusal.
A maioria dos pacientes, entretanto, apresentará clínica mais insidiosa,
com queixas como dispneia aos esforços, palpitações e tontura. Alguns
pacientes estarão assintomáticos, apesar da taquicardia. A avaliação
eletrocardiográfica das taquicardias começa pela mensuração do QRS,
dividindo-as em dois grupos: taquicardias com QRS estreito (< 120 ms –
TABELA A1.6)2,4 e taquicardias com QRS largo (≥ 120 ms – TABELA
A1.7).
TABELA A1.6 → Taquicardias com QRS estreito: critérios diagnósticos e significado
clínico
TAQUICARDIAS DIAGNÓSTICO SIGNIFICADO CLÍNICO

Taquicardia FC > 100 bpm e onda A taquicardia sinusal apresenta múltiplas


sinusal P com critérios de ritmo causas, que podem ser tanto psíquicas
sinusal (positiva em DI, (ansiedade) quanto orgânicas (hipovolemia,
DII, aVF, V3 a V6 e infecção, anemia, embolia pulmonar, uso de
negativa em aVR) drogas, etc.)
O tratamento baseia-se no diagnóstico da
causa básica com instituição de medidas
específicas para esta

Taquicardia Taquicardia regular de A denominação TPSV engloba taquicardias


paroxística FC entre 100 e 250 diferentes na origem eletrofisiológica, nos
supraventricular bpm critérios eletrocardiográficos e nas condições
(TPSV) Pode haver ou não clínicas associadas
onda P visível; caso De modo geral, o paciente deve ser
haja, sua morfologia é encaminhado a serviço de urgência para
diferente da sinusal, avaliação
podendo ser retrógrada Quando estável, a manobra vagal ou uso de
adenosina serve para cardioverter alguns
tipos de arritmia e alentecer outras (por
aumento do BAV), facilitando o diagnóstico

Taquicardia Taquicardia de QRS Sua forma paroxística é muito rara e


juncional estreito, geralmente geralmente associada à alteração congênita,
com dissociação apresentando FC entre 110 e 250 bpm; sua
atrioventricular; em forma não paroxística apresenta FC entre 70
alguns casos, há e 120 bpm e é considerada uma arritmia
condução retrógrada benigna; entretanto, pode estar associada a
para o átrio (P condições clínicas potencialmente graves,
retrógrado) como intoxicação digitálica, hipocalemia e
isquemia miocárdica; nesses casos, o
tratamento é dirigido à doença de base

Taquicardia atrial Taquicardia irregular Ocorre, geralmente, como manifestação


multifocal com a presença de secundária de doença pulmonar, alteração
pelo menos 3 eletrolítica ou intoxicação digitálica
morfologias diferentes O tratamento é dirigido à doença de base
de onda P

Flutter atrial Taquicardia com O flutter atrial ocorre na grande maioria das
frequência atrial entre vezes em paciente com doença cardíaca
250 e 350 bpm; o ritmo estrutural ou pulmonar
costuma ser regular e O hipertireoidismo é outra causa que deve
não há linha isoelétrica, ser lembrada
com presença de A adenosina pode ser usada para aumentar
ondas bifásicas o grau de BAV, facilitando o diagnóstico
regulares entre os QRS (reduz a resposta ventricular e facilita a
(ondas F) visualização das ondas atriais)
Há BAV, em geral 2:1
A cardioversão química (sendo a amiodarona
(gerando FC em torno
o fármaco mais usado), quando indicada,
de 150 bpm); o BAV
apresenta baixa taxa de sucesso
pode ser, ainda, 3:1,
4:1, 3:2, etc.; O controle da resposta ventricular pode ser
raramente há condução feito com betabloqueador, bloqueador de
1:1, gerando canal de cálcio ou digitálico
taquicardia de alta
resposta ventricular e O flutter atrial confere risco de eventos
risco de degeneração tromboembólicos, motivo pelo qual se deve
para arritmias avaliar a anticoagulação do paciente
ventriculares
O ritmo cardíaco será
irregular quando o BAV
for variável

Fibrilação atrial Ritmo cardíaco Pacientes portadores de fibrilação atrial


(ver FIGURA irregular, com ausência geralmente possuem doença cardíaca
A1.7) de onda P e presença estrutural com alteração atrial
de pequenas A prevalência dessa arritmia aumenta com a
oscilações irregulares idade
na linha de base Os sintomas – dispneia, palpitação, tontura –
(ondas f) geralmente são causados pela resposta
ventricular elevada (que pode passar de 150
bpm, quando não tratada)
A fibrilação atrial confere risco de eventos
tromboembólicos, motivo pelo qual se deve
avaliar a anticoagulação do paciente

BAV, bloqueio atrioventricular; bpm, batimentos por minuto; FC, frequência cardíaca.
Fonte: Surawicz e colaboradores2 e Blomström-Lundqvist e colaboradores.4

TABELA A1.7 → Taquicardias com QRS largo: critérios diagnósticos e significado clínico

TAQUICARDIAs CRITÉRIOS ELETROCARDIOGRÁFICOS SIGNIFICADO


CLÍNICO

Taquicardia Taquicardia regular com FC, em geral, entre 140 A TV representa a


ventricular (TV) e 200 bpm maioria das
Vários critérios já foram descritos para taquicardias com
diferenciá-la da taquicardia supraventricular com QRS largo e sua
aberrância, baseando-se, sobretudo, no fato de, forma mais grave;
na TV, o início do QRS ser lento, a morfologia do dessa forma, em
QRS não ser típica de BRE ou BRD, a duração caso de dúvida
do QRS ser geralmente maior e pela diagnóstica, todo
possibilidade da ocorrência de dissociação AV, paciente com
batimentos de fusão (batimento híbrido entre a taquicardia com
morfologia basal do paciente e a morfologia da QRS largo deve ser
TV) e captura (batimento em que o QRS é tratado como
estreito, idêntico ao basal do paciente, com apresentando TV
condução AV) A presença de
doença cardíaca
estrutural aumenta
ainda mais a
probabilidade de a
arritmia tratar-se de
TV
O paciente pode
apresentar
estabilidade
hemodinâmica,
hipotensão ou
mesmo ausência
de pulso central
Em caso de
instabilidade
clínica, o paciente
com essa arritmia
deve ser
prontamente
cardiovertido
eletricamente, e
sempre
encaminhado a
serviço de urgência

Fibrilação Taquicardia caracterizada por ritmo ventricular O paciente sempre


ventricular caótico, com deflexões irregulares ao ECG de apresenta parada
amplitude e contornos variados cardiorrespiratória,
A FC está entre 150 e 500 bpm pelo fato de as
contrações
ventriculares serem
fracas,
desordenadas e
ineficientes
O paciente deve
ser prontamente
submetido à
desfibrilação
elétrica e
encaminhado ao
serviço de urgência

Taquicardia Uma taquicardia supraventricular pode O diagnóstico


supraventricular apresentar QRS largo, pela presença de diferencial com TV
com aberrância bloqueio de ramo preexistente ou relacionado pode ser difícil e
com aumento da FC baseia-se nos
critérios descritos;
em caso de dúvida,
a arritmia deve ser
tratada como TV
Taquicardia pré- Ocorre pela condução do impulso O paciente costuma
excitada supraventricular por via anômala para o apresentar critérios
ventrículo de pré-excitação no
Como a propagação do impulso ocorre por via ECG de base
acessória diretamente para a porção muscular O ritmo pode ser
do ventrículo, o QRS é largo regular (taquicardia
A FC pode ser muito elevada antidrômica – o
impulso desce para
o ventrículo pela via
anômala e sobe
para o átrio pelo nó
AV – ou flutter pré-
excitado) ou
irregular (fibrilação
atrial pré-excitada)
O paciente
apresenta FC muito
elevada, com risco
de degeneração
para arritmia
ventricular

AV, atrioventricular; BRD, bloqueio de ramo direito; BRE, bloqueio de ramo esquerdo;
ECG, eletrocardiograma; FC, frequência cardíaca.

Bradicardias
Indivíduos normais podem apresentar FC ≤ 50 bpm. Esse achado é mais
frequente durante o sono e pode estar presente durante a vigília de maneira
contínua em idosos e atletas. Esses pacientes estarão, na maioria das vezes,
assintomáticos. Pacientes com bloqueios atrioventriculares (BAVs)
avançados e/ou FC muito baixa (especialmente ≤ 40 bpm) podem
apresentar sintomas, como dispneia, pré-síncope ou síncope.2 Quando esses
sintomas surgem de maneira abrupta e o ECG confirma bradicardia, deve-se
afastar síndromes isquêmicas (sobretudo infarto inferior) ou ação
medicamentosa (intoxicação digitálica, uso de betabloqueador, amiodarona,
etc.). Pacientes com bradicardia sintomática devem ser encaminhados para
serviço de urgência e avaliados quanto à indicação de implante de marca-
passo.
A descrição das principais formas de bradicardia, bem como o seu
significado clínico, é apresentada na TABELA A1.8.
TABELA A1.8 → Bradicardias: critérios diagnósticos e significado clínico
BRADIARRITMIAs CRITÉRIOS SIGNIFICADO CLÍNICO
ELETROCARDIOGRÁFICOS

Bradicardia sinusal Critérios eletrocardiográficos de Pode ser encontrada em


ritmo sinusal com FC < 50 bpm indivíduos normais ou atletas
A bradicardia sinusal pode
estar relacionada com
síndromes isquêmicas, apneia
obstrutiva do sono e
hipertensão intracraniana

Bloqueio Intervalo PR > 120 ms Pode ser encontrado em


atrioventricular pessoas saudáveis, conferindo
(BAV) de primeiro risco aumentado de
grau necessidade futura de marca-
passo artificial
Em pacientes com
coronariopatia, parece conferir
risco aumentado de
mortalidade

Bloqueio Aumento progressivo do intervalo Alteração geralmente benigna,


atrioventricular PR, até o aparecimento de uma podendo ser encontrada em
(BAV) de segundo onda P bloqueada; diminuição pessoas saudáveis e atletas;
grau Mobitz tipo I progressiva do intervalo RR até o pode ocorrer, ainda, em
aparecimento de uma onda P síndromes isquêmicas
bloqueada; o intervalo RR contendo (sobretudo IAM inferior) e na
a onda P bloqueada é menor que a doença de Chagas
soma de 2 intervalos PP

Bloqueio BAV intermitente, com intervalo PR Bloqueio geralmente


atrioventricular constante até o aparecimento da permanente, com grande
(BAV) de segundo onda P bloqueada chance de degeneração para
grau Mobitz tipo II BAVT
Pode estar associado à
doença degenerativa do
sistema de condução, a
síndromes isquêmicas e à
doença de Chagas

Bloqueio Independência entre ritmo atrial e Apesar de, em alguns casos, o


atrioventricular ritmo de escape, com intervalo PP paciente poder estar
total (BAVT) (ver e RR regulares, mas sem relação assintomático e com FC > 40
FIGURA A1.7) entre a onda P e o complexo QRS bpm, todo paciente com BAVT
deve ser encaminhado para
avaliação em serviço de
urgência, pelo risco de
bradicardia extrema ou
assistolia

IAM, infarto agudo do miocárdio; ms, milissegundo.


Fonte: Surawicz e colaboradores.2

O ELETROCARDIOGRAMA EM CONDIÇÕES
CLÍNICAS COMUNS

Hipertensão arterial sistêmica


A realização de um ECG de 12 derivações é recomendada como parte da
avaliação inicial de todo paciente hipertenso e tem como objetivo a
pesquisa de alterações cardíacas associadas à hipertensão (especialmente
HVE), arritmia (sobretudo fibrilação atrial, que não é incomum em
hipertensos idosos), sinais de doença isquêmica, além da obtenção de um
ECG basal, que pode ser útil para futuras comparações.5
A HVE é a alteração eletrocardiográfica de maior importância clínica
no paciente hipertenso. Sua presença está relacionada, de forma
independente, com o aumento do risco de um grande número de desfechos:
insuficiência cardíaca, arritmia ventricular, dilatação da raiz da aorta,
isquemia cerebral, IAM não fatal e morte cardiovascular. Os mecanismos
propostos para explicar o papel prognóstico da HVE são a isquemia
induzida pelo aumento da massa do VE e a alteração da função diastólica.
Por outro lado, o uso de anti-hipertensivos está associado à redução da
massa do VE, com melhora dos critérios eco e eletrocardiográficos de HVE.
A regressão da HVE, por sua vez, mostrou-se associada à redução do risco
cardiovascular, incluindo morte cardiovascular, IAM e acidente vascular
cerebral (AVC).
Outras alterações eletrocardiográficas em pacientes hipertensos cujas
associações com aumento de mortalidade cardiovascular já foram estudadas
são o prolongamento do QTc e o aumento da duração do QRS. O aumento
do QTc (≥ 450 ms em mulheres e ≥ 440 ms em homens) mostrou-se fator
preditor de mortalidade cardiovascular, independentemente da HVE.6 Já o
aumento da duração do QRS confere maior risco cardiovascular aos
pacientes portadores de HVE. Além das alterações já citadas,
anormalidades de AE e bloqueio do fascículo anterossuperior esquerdo são
achados comuns em pacientes hipertensos.
Dessa forma, o ECG é parte indispensável no acompanhamento do
paciente hipertenso, estando ligado à avaliação de lesão cardíaca associada
e risco cardiovascular. A melhora dos critérios de HVE, mediante o uso de
anti-hipertensivos, deve ser valorizada como redução do risco
cardiovascular.

Síndromes isquêmicas
O ECG é exame fundamental na avaliação de paciente com suspeita clínica
de síndrome coronariana aguda (SCA) e deve ser realizado o mais breve
possível. Alterações eletrocardiográficas compatíveis com isquemia
miocárdica aguda são supra de ST, infra de ST, inversão da onda T,
pseudonormalização da onda T, novos bloqueios de ramo, etc.7 As
alterações do segmento ST apresentam maior especificidade para isquemia
aguda e necessitam de correta e rápida avaliação. Servem, ainda, para
dividir as SCAs em com ou sem supra de ST, implicando tratamentos
distintos.8,9 O critério diagnóstico para IAM com supra de ST é a presença
de supra de ST novo > 1 mm em duas derivações contíguas (FIGURA
A1.9), com as seguintes exceções:
FIGURA A1.9 → Eletrocardiograma (ECG) de infarto agudo do miocárdio com supra de ST
em parede anterior.

→ V2 e V3, em que o supra deve ser maior que 2,5 mm em homens com
idade < 40 anos; maior que 2 mm em homens com idade ≥ 40 anos; e
maior que 1,5 mm em mulheres;
→ V3R e V4R, em que o supra de ST deve ser maior que 1 mm em
homens com idade < 30 anos e maior que 0,5 mm em mulheres de
qualquer idade ou homens com idade ≥ 30 anos;
→ V7 e V8, em que o supra de ST deve ser maior que 0,5 mm.7
No IAM com supra de ST, o ECG serve para localizar a parede e, em
muitos casos, a artéria coronária envolvida (TABELA A1.9).7 Contudo, é
preciso lembrar que há várias outras condições capazes de gerar
supradesnivelamento do segmento ST e que, portanto, fazem parte do
diagnóstico diferencial (TABELA A1.10).10
TABELA A1.9 → Relação entre a parede miocárdica isquêmica, as derivações
eletrocardiográficas com supra do segmento ST e a artéria relacionada com o infarto

PAREDE DERIVAÇÕES COMENTÁRIOS

Anterior V1 a V6 Artéria descendente anterior (DA): dependendo da


localização da oclusão arterial, um número diferente das
derivações citadas será acometido (p. ex., DA proximal: V1
a V6; DA distal: V3 a V6)

Anterior V1 a V6, DI e Artéria descendente anterior


extenso aVL

Septal Supra de ST em Ramo septal da DA


V1 e V2

Lateral Supra de ST em Ramo diagonal da DA, diagonalis, circunflexa ou coronária


V5, V6 e/ou DI e direita
aVL

Posterior Supra de ST em Artéria coronária direita ou circunflexa; pode estar


V7 a V9, com ou associado a infarto inferior ou lateral
sem infra de ST As derivações V7 a V9 devem ser sempre realizadas em
em V1 a V3 pacientes com IAM inferior ou lateral, além de pacientes
com suspeita clínica de IAM, apesar da ausência de supra
de ST nas 12 derivações habituais

Inferior Supra de ST em Artéria coronária direita ou circunflexa


DII, DIII e aVF

Ventrículo Supra de ST em Coronária direita proximal; as derivações V3R e V4R


direito V3R e V4R devem ser feitas em todo paciente com IAM inferior

IAM, infarto agudo do miocárdio.


Fonte: Surawicz e colaboradores2 e Wagner e colaboradores.7

TABELA A1.10 → Outras causas de supradesnivelamento do segmento ST


OUTRAS ELETROCARDIOGRAMA COMENTÁRIOS
CAUSAS DE

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