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Viagem Incompleta

Texto 2D A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA (1500-2000)


História da América III
A GRANDE TRANSAÇÃO
Prof. Raphael Sebrian

Carlos Guilherme Mota


(ORGANIZADOR)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
2ª EDIÇÃO

Viagem (ncompleta. A experiência brasileira (1500-2000) :


a grande transação I Carlos Guilherme Mota (organi-
zador) . - 2. ed. São Paulo : Editora SENAC São Paulo,
2000.

Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 85-7359-111-0

1. Brasil- Civilização 2. Brasil- Condições sociais 3.


Brasil - História - 1500-2000 4. Brasil - Política e gover-
no 5. Literatura brasileira 6. Raças- Brasil I. Mota, Carlos
Guilherme, 1941-.

00-0077 CD D-981

Índices para catálogo sistemático:


1. Brasil : História: 1500-2000 981

EDITORA
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sena c
DO
SÃO PAULO
Davi e Golias: as rela~ões entre
rasil e Estados Unidos no século XX

Ugio Coelho Prado


O s Estados Unidos continuam despertando no imaginário de signi-
ficativa parte da sociedade brasileira sonhos idealizados de êxito económi-
co e realização pessoal. No Brasil globalizado e neoliberal, os Estados Unidos
aparecem como país-modelo, possuidor das qualidades essenciais cons-
titutivas ela fórmula para a entrada bem-sucedida no novo milênio. Entre-
tanto, outra fatia da sociedade brasileira considera os Estados Unidos como
antimodelo, por não terem eliminado, a despeito de sua enorme riqueza, os
numerosos bolsões de pobreza, por estarem atravessados por uma violência
armada aparentemente inexplicável e por não terem sido capazes de resol-
ver adequadamente a questão das tensas e explosivas relações raciais. Tal
perspectiva critica atribui a grandeza econômica norte-americana à expan-
são imperialista, particularmente no que se refere à exploração dos países
da América Latina. Dessa forma, os sentimentos que os Estados Unidos
despertam são fortes e variados, aguçados, na atualidacle, pelo impressio-
nante poder internacional de que gozam.
É certo que estamos nos referindo a dois países - Brasil e Estados
Unidos - que estão separados por brutal diferença no que tange à sua pro-
dução e poder económicos. De um lado, o país que concentra a maior parte
da riqueza mundial e que se constitui na mais poderosa potência militar do
planeta e, de outro, o Brasil que convive com níveis extremos de pobreza e
que atravessa séria crise econômica e social. Historicamente, a produção
brasileira se voltou para o mercado norte-americano desde o século XIX,
criando fortes laços de subordinação com relação a ele, desde o café e a
borracha no século XIX, até os produtos manufaturados dos tempos mais
recentes.
Ao escrever sobre as relações entre Brasil e Estados Unidos durante o
século XX, tenho clareza de estar entrando em campo minado, no qual os
posicionamentos políticos e ideológicos estão definidos a priori, repercu-
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Oovi e Golios: os relações entre Brosil e Estudos Unidos no século '[X 323

tindo. também nos trabalhos acadêmicos. O historiador · ao v o lt a-se . par


de divergências pontuais. 2 A Segunda Guerra Mundial, por exemplo, mo-
analisar o passado, sabe que os problemas e os questionamentos do a
- · 1 , · . presen- rnento central nessa história, não desencadeou nenhuma crise entre os dois
1
te sao me utave1s, co ocando perguntas e adiantando respost as. p aralela-
países. O pequeno ensaio de independência durante os governos de João
mente, deve-se ressaltar, . desde
. , logo, a amplidão do tema em pauta e os Goulart e Jânio Quadros não chegou a afetar o "bom" relacionamento dos
sulcos profundos
. - das tnlhas p construídas na composiç'ío ' de s uas ab orda- dois países. Os regimes militares, apesar de algumas disputas, também guar-
gens que 1mpoe,
. em seu tratamento, direções previsíveis
, , mesmo q ue, mul-.
tas vezes, mteressantes. daram boas relações com os Estados Unidos .3
Voltando os olhos para a produção historiográfica norte-americana que
Bom exemplo dessa perspectiva é a escolha de um caminho co nsagra-
estuda as relações entre América Latina e Estados Unidos, constata-se, em
~o para se recortar o tema, aquele que propõe percorrer as " fases" da polí-
prirneiro lugar, que ela é muito vasta. Numa análise recente sobre a mesma,
ttca externa es tadunidense, acompanhando passo a passo suas repercussões
Mark Berger afirma que tal historiografia, de maneira geral, justifica a ex-
no Brasil. 1 O analista encontra-se obrigado a percorrer, nos últimos cem
pansão norte-americana, assumindo o discurso liberal. O tom liberal que
anos, as tradicionais classificações que começam com o corolário Roosevelt
procura a neutralidade, ouvindo as duas partes em jogo, tende sempre a
à Doutrina Monroe, e chegam até as últimas proposições para a América
legitimar as ações dos Estados Unidos, indiretamente culpando a América
Latina dos governos republicanos de Reagan e Bush. Desse modo, a histó-
Latina por não ser capaz de deixar o "atraso" e a "desordem". As explica-
ria das relações entre Brasil e Estados Unidos se enquadra numa moldura
ções do "atraso" e as justificativas dos "aros civilizatórios" elos Estados
i'
J preestabelecida, fabricada pela historiografia oficial norte-americana que
Unidos estão também implícitas nos esc ritos acadêmicos produzidos nas
!
J . escolheu denominações algumas vezes mai s realistas, como a "política do
; ' ~ universidades norte-americanas. O discurso hegemónico elaborado por aca-
big stick*" de Theodore Roosevelt ou a " diplomacia do dólar" de William
dêmicos estadunidenses, segundo Berger, está afinado com as políticas ofi-
Taft, até as mais adocicadas , como a "política da boa vizinhança" de Franklin
p-· ciais do Departamento de Estado, convergindo na construção de um discurso
Roosevelt e a "Aliança para o Progresso" de John Kennedy.
quase que único sobre a América Latina. Tendo em vista o êxito económico
Gostaria ele enfatizar que este tema, em princípio, coloca-se tradicio-
e militar alcançado, os Estados Unidos se converteram em modelo de "civi-
nalmente no campo ela história das relações internacionais que, no Brasil,
lização" do mundo moderno. A América Latina "atrasada" deve procurar
tem uma produção importante. Entretanto, boa parte dessa produção ressal-
seguir seus passos para poder alcançar um dia o progresso c a modernidade.
ta apenas o afinamento de interesses nas relações diplomáticas entre Brasil
Para tanto, é preci so mudar o rumo de s ua história, negando seu passado e
e Estados Unidos. Esses trabalhos apontam o barão do Rio Branco como
sua herança culturais. 4
figura-chave na construção da política externa moderna brasileira, funda-
Nessa linha de argumentação, Lars Schoutz indica que a política exte-
dor de uma visão pragmática, que aceita fazer conscientemente algumas
rior dos Estados Unidos sempre obedece u aos interesses nacionais que vêm
concessões, particularmente às diretrizcs impostas pelo govemo dos Esta-
em primeiro lugar e que se relacionam invariavelmente com a segurança da
dos Unidos, se elas reverterem em benefício futuro aos interesses brasilei-
ros. Valorizando a extensão territorial do Brasil, essas interpretações mostram
o "respeito" e a "amizade" que uma nação tem demonstrado pela outra e
I I insistem na ausência de conflitos mais consistentes e na existência apenas Cf. Amado Lui z Cervo & Clodoaldo Bueno, llistôria da política exTerior do Brasil (São Paul o:
Atica, 1992).
3
Para as relações entre o Brasil e os Estados Unido s, ver o livro pioneiro de Luiz Alberto Moni z
Bandeira, Pre sença dos Eswdos Unidos no Brasil (Rio de Janei ro: Ci·;ilização Brasileira, 1973) ;
do mesmo autor, Brasil-Estados Unidos: a ri validade emergente ( 1950-1988) (Rio de Janeiro:
' Ver, por exemplo, o didático livro de Voltaire Schilling, EUA X América Latina: as etapas da Ci vili zação Brasileira, 1989); ver, ainda, Amado Luiz Cervo & Wolfgang Dopcke (orgs.), Rela -
dominação (Porto Alegre : Mercado Aberto, 1984). ções internacionais dos países americanos ( Brasília: Editora da UoB, 1994).
* Numa tradução livre, "política do porrete". ' Cf. Mark T. Berger, Unde r No rthern Eyes. Latin Ame rican Studies and U.S. flegenwn y in the
Americas 1898-/990 (B ioomi ngton: Indiana Univers ity Pre ss, 1995).
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nação, com a política interna e com o crescimento econômico. As justifica- Europa e o dos Estados Unidos- este preservado pela historiografia nacional
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tivas apresentadas para as intervenções no exterior- apaziguar os grupos como "isolacionista" e só excepcionalmente expansionista. Diz Joseph que,
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.: : políticos em oposição, alcançar a paz interna, lutar contra a corrupção, com- diferentemente de 25 anos atrás, quando até o senador Fulbright usava o con-
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bater o comunismo, implantar a democracia, defender razões humanitárias ceito, no presente faz-se necessário um microscópio para encontrar o termo
-são apenas a cortina de fumaça que encobre a idéia de que os direitos dos imperialismo na produção historiográfica norte-americana. 7
Estados Unidos são superiores aos de qualquer outra nação, em particular Amy Kapland e Donald Pease propõem que se trabalhe o tema das rela c
se esta pertencer à América Latina. 5 ções internacionais tomando a cultura como porta central de entrada. A abor-
Schoultz tem uma tese, a da existência de uma moldura, quase que um dagem do mundo da cultura deve estar aberta a interpretações cont1itantes,
esquema, dentro da qual as concepções sobre a América Latina se ajustam. que incluem modos de vida, ações simbólicas representações, formas con- e
Para esse autor, John Adams, há duzentos anos, fundou uma maneira de traditórias de senso comum, práticas sociais e redes de instituições sociais. 8
pensar que se reproduz nos discursos oficiais com perversa insistência. \ Esses autores claramente declaram sua filiação teórica à obra de Gramsci,
Adams era grosseiro, superficial, sem sutilezas. Por exemplo, declarava que estabelece uma relação umbilical entre cultura e poder.
que pretender estabelecer a democracia na América espanhola independen- Após essa long a introdução, ainda que necessária, apresento minha
te era "tão absurdo quanto propor planos semelhantes para e stabelecer a abordagem para trabalhar o tema das relações entre Brasil c Estados Uni-
democracia entre o s pás saro s, as feras ou o s peixes". Ou ainda, "o povo da dos. E sc olhi anali sar as questões da c ultura e d a produç ão de di scursos
América do Sul é o mai s ignorante, o mais fanático , o mais supersticioso de hegemô nic o s , aproximando-me, assim, das duas últimas perspectiva s
toda a cristandade rom ana católica". Essa visão que afirma a superioridade indicadas. No entanto, tenho algumas diferenças fundamentais que me se-
dos norte-americanos sobre os latino-americanos, apoiada na perspectiva param desses autores. Pretendo fazer uma análise que olhe de dentro , a
de que os católicos são inferiores aos protestantes, os latinos aos anglo- partir das manifestações da sociedade civil e do Estado brasile iros, para as
saxões, os de pele escura aos de pele clara, segundo Schoultz, continuou atitudes e propostas norte-americanas, proc urando e ntender algumas das
incorporada pelos representantes da política externa dos Estados Unidos estratégias postas em prática para conter o poder dos E stados Unidos .
que a tem posto em prática na América Latina. 6 Para fu g ir das generalizações, tomei três momentos da históri a dare -
Importa notar que recentemente o velho tema do imperialismo volta a pública, p ara ret1etir sobre ess as relações . O primeiro dele s re trata o perío-
interessar um pequeno grupo de historiadores estadunidenses que trabalha do em que se deu a decisiva cont1uência entre o nascimento da república
com as relações internacionais. Gil Joseph, por exemplo, afirma que a brasileira, a proposição do pan-americanismo pelos E stados Unidos e o cres-
hi storiografia norte-americana utiliza o termo "poder global" em vez de "im- cente interesse "científico" nos Estados Unidos por conhecer o Brasil e a
perialismo" e "unipolaridade" em vez de "hegemonia" para perpetuar a falsa América Latina.
noção do "excepcionalismo" dos Estados Unidos no concerto das nações O segundo quadro compreende o período do prime iro governo de
poderosas . Para ele, o imperialismo dos Estados Unidos não nasceu no sécu- Getúlio Vargas que coincide com a Segunda Guerra Mundial , a "política da
lo XX, quando o da Europa começava a declinar. Propõe que os registros boa vizinhança" e a entrada maciça da cultura de Tio Sam no Brasil . Discu-
sobre o imperialismo sejam articulados em sua coexistência com a formação
do E stado nacional, desde o século XVIII, acompanhando seu contínuo
expansionismo. Não aceita a separação que se faz entre o expansionismo da 7
Cf. Gi!bert M. Joseph, "Close Enco unters. Toward a New Cultur al History of U.S. Latin American
Relatio ns" , em Gilbert M . Joseph , Catherine C. Legrand e Ri cardo D . Sal vatore (orgs. ), Cluse
Encormters (Durh am: Duke University Press , 1998).
' Cf. Lars Schoultz, Beneath the United States. A l!isro ry of U.S. Policy To wa rd Latin America ' Cf. Donald E. Pease, "New Perspectives on U.S. Culture and Imperialism", em Amy Kaplan and
(Cambridge: Harvard Uni vcrsity Press, 1998), p. XV. Donald E. Pease, Cultures of United States lmperialism (Durham: Duke University Press, 1993),
6
lbid . p. 375. p. 27. Ver também Edward Said, Cu/ture and Imperialism (Nova York : Alfred A. Knopf, 1993).
326

to as respostas do governo Vargas diante da conjuntura internacional e a


-
Mario Ligia Coelho Prado Davi e Golios: os relações entre Brasil e Estados Unidos no século '/:X 327

de Cuba. Depois de breve campanha, os estadunidenses venciam e entra-


penetração bem-sucedida da cultura norte-americana no Brasil, passando a vam vitoriosos em Havana, assumindo o governo da ilha. Pelos Tratados de
constituir-se em traço incorporado à vida cotidiana brasileira. Paris, a Espanha cedia Porto Rico, Guam e as Filipinas, que passavam a
Por fim, trabalho as relações entre as posições políticas e ideológicas colónias dos Estados Unidos. O controle político sobre Cuba foi garantido
dos governos militares, a entrada no Brasil dos Corpos da Paz dos Estados com a elaboração da emenda do senador Platt, incorporada à Constituição
Unidos, dentro dos compromissos da "Aliança para o Progresso", as mani- cubana em 1901, que permitia o desembarque de forças armadas dos Esta-
festações concretas das oposições de esquerda e a elaboração da teoria da dos Unidos, quando os interesses desse país se sentissem "ameaçados".
dependência. Esta constituiu-se em discurso tão poderoso contra o imperia- Entretanto, outra intervenção anterior- hoje quase esquecida- acon-
lismo norte-americano, que chegou a repercutir internacionalmente, inclu- teceu no Brasil. Sem dúvida mais breve e menos importante, era, no entan-
sive nos Estados Unidos. to, sintomática das futuras posições assumidas pelos Estados Unidos.
Em suma, pretendo mostrar que não são possíveis generalizações \ Refiro-me ao envio de uma esquadra estadunidense de 12 navios, que tinha
abstratas quando se quer trabalhar sobre essas complicadas relações inter- por finalidade defender o governo do marechal Flori ano Peixoto, desafiado
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l nacionais. A dominação imperialista dos Estados Unidos no século XX é pela revolta naval de 1893 liderada pelos almirantes Custódio de Melo e
ij incontestável, em particular no que se refere à América Latina. Entretan- Saldanha da Gama.
I: to, o outro lado, o Brasil, não pode ser visto como passivo, simples recep- O ministro brasileiro em Washington, Salvador de Mendonça, coco-
i! tador das determinações de fora. Os mecanismos de reação, de contestação merciante estadunidense, Charles Flint, exportador de locomotivas e outros
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'!"'! ou de repúdio que convivem com outros de âceitação e de admiração foram bens e importador de borracha, entenderam que seria proveitosa a "colabo-
entendidos neste texto como estratégias- deliberadas ou não- constituídas ração" dos Estados Unidos nessa questão interna delicada. A esquadra foi
por ações, discursos e elaborações simbólicas por parte da sociedade bra- financiada por Flint, que se encarregou de organizar a esquadra de merce-
sileira. nários, com o aval dos governos dos dois países. Afirmava-se que os rebel-
Com o advento da república, a política externa brasileira voltou-se des queriam a volta da monarquia e que contavam com o apoio das potências
para uma deliberada aproximação com os Estados Unidos, país que reco- européias, algumas ainda indecisas diante da nova situação republicana bra-
nhecera, quase que de imediato, o novo regime político do Brasil. Isso não sileira. Os Estados Unidos, que já haviam reconhecido a república, apare-
significou que houvessem sido abandonadas as ligações com a Europa, es- ciam como aliados "naturais" do governo brasileiro. A chegada ela frota de
pecialmente com a Grã-Bretanha, marca registrada das relações exteriores Rint à baía de Guanabara em março de 1894, com uma tripulação que não
durante o império. Mas articulavam-se, com o barão do Rio Branco à frente sabia por que lutava, produziu um efeito imediato e inesperado. Sem dispa-
do ministério, as novas bases de uma "identidade continental", que garanti- rar um tiro contra os rebeldes, apenas pavoneando suas modemas máquinas
ria um alinhamento do Brasil com os Estados Unidos, mantido, apenas com de guerra e sua tecnologia avançada, produziu a rendição dos rebeldes. 10
pequenas alterações, até o presente. É bom lembrar que a iniciativa de Mendonça de buscar ajuda militar
No final da primeira metade século XIX, os Estados Unidos comple- nos Estados Unidos foi um desdobramento de outro acordo que ele patroci-
tavam a conquista do Oeste, preparando a expansão para além de suas fron- nara e assinara pouco antes, em 1891. Pelo denominado tratado comercial
teiras nacionais. 9 Em 1898, inaugurava-se a era de intervenções armadas no Blaine-Mendonça, o Brasil garantia a livre entrada nos Estados Unidos do
Caribe, com a intromissão dos Estados Unidos na guerra de independência seu açúcar, café e peles, concedendo em troca isenção ou redução de 25%

9
Em 1846, os Estados Unidos, pelo Tratado de Oregon, delimitaram as fronteiras com o Canadá;
em 1867, o Alasca era comprado da Rússia; desde 1875, discutia-se a "questão" do Havaí, ane- 10
Para esse terna, ver Steven C. Topik, Trade and Gunboats. United States and Brazil in the Age of
xado oficialmente em 1898. Empire (Stanford: Stanford University Press, 1996).
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Davi e Gal ias: os rela ções entre Brasil e Estados Unidos no século YJ,.

para uma longa lista de manufaturados e produtos agrícolas dos Estados ressante observar que o pan-americanismo se consriruía em traço de união
Unidos. Os políticos e a imprensa brasileiros foram bastante críticos ao entre Salvador de Mendonça e Charles Flint. O primeiro, ainda durante o
acordo, o primeiro acontecido em 65 anos- o último fora com a Inglaterra, império, fora indicado por d. Pedro II , em 1889, para representar o Brasil
em 1826. As aparentes vantagens que o Brasil poderia obter foram apaga- na primeira Conferência Pan-americana, em Washington. Flint também fora
das por tratados semelhantes que os Estados Unidos fizeram com outros delegado dos Estados Unidos na mesma Conferência. 12 Essa coincidência
países, aos quais concediam as mesmas isenções. De todo modo, os Esta- no tempo demonstra que o pan-americani smo se formulava como di sc urso
dos Unidos também não puderam usufruir de vantagens especiais, pois ain- para salvaguardar os crescentes interesses econômicos e estratégicos dos
da não possuíam uma infra-estrutura comercial no Brasil para distribuir Estados Unidos no continente.
seus produtos. Entretanto, o acordo era simbólico ao prenunciar o expan- No Brasil , as idéias pan-americanas conseguiram, entre políticos e in-
sionismo econômico estadunidense no Brasil e na América Latina. telectuais , fervorosos defensores, como Joaquim Nabuco, que s ucedeu a
A esquadra de Flint era uma manifestação clara de que os Estados \ Salvador de Mendonça como ministro nos Estados Unidos e que foi, em
Unidos se sentiam no direito de intervir nos "negócios" brasileiros e marca- seguida, indicado para primeiro embaixador brasileiro naquele país. Nunca
I va a ascensão do prestígio estadunidense nos círculos oficiais brasileiros. O aceitou a caracterização dos Estados Unidos como país imperialista, advo-
olhar imperial se traduzia nos se ntimentos de superioridade da tripulação gando uma política de aproximação entre os dois países. Para ele "se os
! com relação aos brasileiros, que foram inteiramente apartados da " missão
.··, Estados Unidos constituíam o e xemplo mais bem-acabado de república
! salvadora" . Mas o episódio também revelava outras faces da postura do presidencialis ta, nada mais natural do que a liderança norte-americana em
'
governo Flori <:t no. O marechal não demonstfou submissão nem externou um continente republicano e presidencial is ta" . 13
um agradecimento especial aos Estados Unidos. Ao contrário, usou a vitó- Artur Orlando, intelectual pernambucano, que também fez carreira po-
ri a contra os rebeldes para consolidar seu governo e procurou minimizar a lítica, não só defendia o pan-americanismo, como apoiava explicitamente a
importância da "ajuda" dos Estados Unidos. Ainda que passageiramente o política expansionista dos Estados Unidos, pois a considerava um impor-
4 de Julho fosse decretado feriado nacional e fogos de artifício comemoras- tante elemento de civilização. Afirmava ele:
sem o dia, Washington não conseguiu nenhuma concessão econômica ou
diplomática em troca de sua "assistência". Como afirma Steven Topik : "A o pan-americanismo no bom sentido da palavra não quer dizer dominação da Amé-
nasce nte urgê ncia imperialista dentro dos Estados Unidos foi bloqueada no rica do Norte sobre a América do Sul; traduz idéia muito mais nobre e elevada, qual
Brasil pelo pragmático nacionalismo brasileiro". 11 A historiografia oficial a de articulação das três Américas em uma vasta federação ou comunhão intern ac io-
baniu da memória nacional o lugar da esquadra estrangeira na vitória nal de interesses políticos, econômicos c morais, com o fim de garantir à civili zação
futura se u pleno desenvo lvimento, levar a expansão simultânea da economi a e da
t1orianista, não merecendo menção nos livros escolares. Floriano Peixoto
justiça ao coração do mundo inteiro.''
esgrimiu a intromissão estrangeira e passou para a posteridade como o mai s
nacionalista dos presidentes do início da república. Delineava-se, assim,
I
Os escritos desses homens indicam que era preciso se defender de
~! uma das estratégias diante do poder imperialista, a estratégia do esqueci-
outros discursos acusatórios que viam os Estados Unidos como perigo para
mento, do apagamento desse episódio da memória nacional.
Esses acontecimentos são paralelos à proposição por parte dos Esta-
l
1 dos Unidos da instalação de um congresso pan-americano - velha idéia
" Flint era ainda representante dipl omático de alguns governos latino·arnericanos nos Estados
bolivarista- que pretendia a unidade das Américas, sob seu comando. ln te- Unidos.
13 Citado por Kátia Gerab Baggio. A "Outra"América:a América Latina na visão dos intelectuais

11
brasileiros das primeiras décadas republicanas. São Paulo, Departamento de História da USP,
Cf. Steven C. Topik, "Mercenaries in the Theatre of War", em Gilbert Joseph, Cath erine 1999. Tese de doutoramento, mimeo., p. 136.
Legrand e Ricardo Salvatore (orgs.), op. cit., p. 197. 14
Citado por Kátia Gcrab Baggio, op. cit., p. 164.
l

330 Maria ligia Coelho Prado Oovi e Golios: os relações entre Brasil e Estados Unidos no século YJ.. 331

os países mais pobres das Américas. 15 José Veríssimo, por exemplo, estabe- Unidos, não foi hegemônica. Muito tempo se passou antes que tal alterna-
lecia relações claras entre a Doutrina Monroe, o destino manifesto e o pan- tiva fosse discutida seriamente e gerasse políticas de aproximação entre
americanismo, apontando as intenções expansionistas dos Estados Unidos: os latino-americanos.
No começo do século XX, a emergência e a difusão do pan-ame-
O pan-americanismo, tal como o entendem e querem os Estados Unidos, invenção ricanismo coincidia com uma sensível mudança de comportamento por parte
de Blaine, principal fautor do imperialismo americano e pai intelectual de Roosevelt, da imprensa, das editoras, das universidades e dos museus norte-america-
é [ . . . ) a encarnação daquele ideal do " manifesto destino" ele uns Estados Unidos
nos com relação à América Latina. É possível afirmar que houve como que
estendendo-se de pólo a pólo. 16
uma explosão de representações visuais e escritas sobre a América Latina
nos Estados Unidos. 18 A América Latina começava a aparecer, de maneira
Da mesma forma, Oliveira Lima, historiador, diplomata e defensor da
mais freqUente, em livros de história, de viagens e aventuras, assim como
monarquia, alertava os latino-americanos contra o expansionismo dos Esta-
em reportagens de algumas revistas populares. Por exemplo, a National
dos Unidos. Entendia que a intervenção dos Estados Unidos na guerra de
Geographic Magazine estava dando, em suas reportagens, mais espaço à
Cuba contra a Espanha tinha sido o anúncio da definição da política estadu-
América do Sul, mostrando fotografias e artigos sobre lugares ou ativida-
nidense com relação à América Latina. Pensava que o Brasil, importando-
des um tanto "exóticos", como as fazenda s de café do Brasil, os pamp as
se fundamentalmente com s ua soberania, devia manter boas relações com
argentinos ou as ruínas incas do Peru.
os Estados Unidos, mas insistia na necessidade de uma aproximação efeti-
Os museus e bibliotecas estadunidenses inauguravam a prática ele man-
va com os demai s países da América Latina, em especial com a Argentina:
dar seus "especialistas" para pesquisas in loco, com a finalidade de tirar foto -
É cedo para falar em hegemonia do continente meridional. Por en quanto a hegemonia
grafias, derrubar árvores, matar e empalhar animais, r~colher espécies vegetais
do Novo Mundo é uma só: a dos Estados Unidos da América, que têm voz prepon- e minerais, como parte de uma grande empresa "científica", apoiada na supe-
derante senão voto dccisi vo em qualquer assembl é ia pan-americana e que para isto rioridade ela tecnologia norte-americana. Seus cientistas coletavam "evidên-
têm conveniêttcia, e muito humana ela é, em ver agravadas as desconfianças e riva- cias" e as exibiam classificadas e catalogadas em suas instituições, provando
lidades entre as outras nações deste mundo que eles consideram e proclamam, sem assim que elas "tinham existência". Para Ricardo Sal va tore, caminhavam juntas
rcbuços, seu. O princípio é velho do dividir para imperar. O predomínio norte-ame-
as idéias pan-americanas, a filantropia científica e a persuasão do consumi-
ricano deixar-ia de ser uma realidade se entre os países latinos do con tinente vingasse
o es pírito de solidari edade a que deviam em tal campo tender e que não é forçosa-
dor, novo herói do cotidiano estadunidense. As metáforas das relações intera-
mente infenso à cordialidade, mesmo à união com o elemento anglo-saxônico -" mericanas se desenvolveram na interseção entre as novas tecnologias de ver,
como a fotografia, e os novos requerimentos da c iência nesse período de
Ainda que o di sc urso oficial do governo brasileiro aceitasse a lide- expansão capitalista norte-americana. 19
rança continental dos Estados Unidos, havia vozes de oposição que de- O expan sionismo estadunidense está intrin secamente ligado ao engen-
nunciavam as intenções de dominação econômica e política por parte dramento de outras formas simbólicas de dominação, como a da construção
daquele país. A visão de Oliveira Lima com relaç ão à importância das de um saber "científico" sobre o Brasil e a América Latina. 20 Um bom exem-
alianças entre os países da América Latina, para se contrapor aos Estados plo dessa combinação foi a expedição de Theodore Roosevelt ao interior do

i
j 18
" Seria extremamente interessan te co nhecer as manifestações popul ares e os sentimentos patrióti· Cf. Ricardo Salvatore. " Representalional Machincs of Empirc". cm Gilbcrt Joseph , Catherine
·i cos diante das ações dos Estados Unidos . Como se comportou, por exemplo, a população do Rio Legrand e Ricardo Salvatore (orgs.) , op. c ir. , p. 76. O autor denomina este período de neo- impe-
de Janeiro , nas comemorações oficiais do 4 de Julho, deterrrúnadas pelo governo Floriano? rial.
16 19
J Citado por Kália Gerab Baggio, op. cit., p. 86. lbid., cit., pp. 80 e ss.
11 20
Citado por Kátia Gerab Baggio, op. cit., p. 78. Ver o já clássico trabalho de Edward Said, Orientalüm (Nova York: Random House, 1978).
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Mario Ligia Coelho Prado Davi e Golias: os relações entre Brasil e Estados Unidos rro século 'fX 333
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Brasil, em 1913. Sobre ela, o presidente norte-americano deixou um relato O relato de Roosevelt sobre a expedição conferia a ele competência
publicado no ano seguinte, no qual se apresenta como cientista e desbravador para classificar o material coletado, legitimada pela autoridade da ciência.
das terras desconhecidas do interior do Brasil. Segundo Roosevelt, a expedi- Os brasileiros não passavam de ajudantes secundários, aprendizes do futu-
ção contou com o efetivo apoio do ministro do Exterior, Lauro Müller, pois ro. Roosevelt desconsiderava o saber daqueles que o guiaram pelo interior
ele "tinha enorme interesse na exploração e no desenvolvimento do interior do Brasil, atribuindo existência real às espécies levantadas apenas no mo-
do Brasil e estava convencido de que minha expedição seria de grande alcan- mento em que um "museu respeitado" passasse a expô-las, segundo sua
ce para tornar o país mais conhecido no exterior". 21 Esse trecho é significati- ordenação. Seu comportamento equipara-se ao dos europeus entrando pela
vo, pois mostra a importância que Roosevelt atribuía a si mesmo e a crença África na "tentativa de desbravá-la". Manifestam-se, mais uma vez, o olhar
na impossibilidade dos próprios brasileiros desempenharem essa tarefa. e a arrogância imperiais. 24
A aventura intitulou-se "Expedição Científica Roosevelt-Rondon". O No Brasil, entretanto, repete-se a estratégia do esquecimento, domes-
nome do presidente aparecia em primeiro lugar, denotando a primazia de mo modo que no episódio da intervenção da esquadra estadunidense de
seu posto. Entretanto, quem realmente comandou a expedição, graças a seus Charles Flint, em 1894. A memória dessa expedição norte-americana foi
conhecimentos e experiência, foi o futuro marechal Cândido Rondon, que apagada da história nacional, permanecendo marginal e pouco conhecida,
Roosevelt sempre apresentava como seu auxiliar. Rondon, de 1900 a 1906, como um ato isolado e aventureiro do ex-presidente dos Estados Unidos. O
havia se embrenhado por áreas desconhecidas dos brancos, levantando re- herói nacional moderno que "desvendou os mistérios e a grandeza" do inte-
des telegráficas pelo antigo estado de Mato .prosso; entre 1907 e 1915, rior do Brasil é o marechal Rondon. Seus sucessores são os irmãos Villas
dedicara-se às linhas telegráficas de Mato Grosso ao Amazonas. A prova de Boas, consagrados como os continuadores da "obra pioneira" de Rondon.
que a expedição "de Roosevelt" percorria região já conhecida pelos bran- Esses desbravadores do sertão são, por sua vez, a continuidade dos bandei-
cos estava em sua despreocupação ao atravessar territórios habitados pelos rantes. A mitologia em torno da figura do bandei;ante como fundador da
nhambiquaras, outrora tão temidos e evitados. Durante a expedição, a co- grandiosidade do território nacional está fortemente presente no imaginário
missão encontrou diversos grupos nhambiquaras que não foram hostis aos brasileiro. Assim, a despeito do cunho científico imputado à expedição e da
brancos, como pode ser constatado pela própria narrativa de Rooscvelt.
22 elaboração do discurso da competência, Roosevelt, vestido com as roupas
O ex-presidente pretendia, com seu pequeno grupo, recolher materiais c_áqui e com o capacete típico dos aventureiros brancos que entravam pela
para o Museu de História Natural de Nova York, tendo enviado para lá Africa, não conseguiu atravessar as barreiras construídas pela mitologia
exemplares de 2.500 aves, quinhentos mamíferos, alguns répteis, batráquios nacional do bandeirantismo.
e peixes, "muitos dos quais novos para a ciência". Na sua perspectiva, o O período do Estado Novo, com Getúlio Vargas à frente do governo, é
inovador de sua expedição era percorrer grande parte de uma região que muito interessante para ser analisado, no que se refere às relações com a
"ainda não havia sido estudada por cientistas". Mas, para ele, a contribui- política externa norte-americana. Para os Estados Unidos, a Segunda Guer-
ção mais importante fora de ordem geográfica, "representada pela explora- ra Mundial pode ser considerada um di visor de águas em sua história. Quando
ção de um rio desconhecido, feita sob os auspícios do governo brasileiro e ela terminou, o país se consolidava como grande potência mundial, suas
em colaboração com seus representantes". 23 companhias aéreas dominavam os ares, seus navios comerciais eram
hegemônicos nos mares e suas poderosas forças armadas só eram rivaliza-
das pelas da União Soviética. No caso dos mercados da América Latina,
21 Cf. Theodore Roosevelt, Nas selvas do Brasil (São Paulo/Belo Horizonte: Edusp/ltatiaia. 1976),
p. 23.
22 Ver o interessante trabalho de José Mauro Gagliardi, O indígena e a república (São Paulo: Hucitec/
Edusp/Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1989); esta referência está na p. 258. " Para uma comparação do comportamento imperial na África e na América Latina, ver Mary
Louise Pratt, Olhos imperiais. Relatos de viagem e transwlturação (Bauru: Edusc, 1999).
23 Cf. Theodore Roosevelt, op. cit., p. 216.
Mario ligia Coelho Prado Davi e Golios: os relações entre Brasil e Estados Unidos no sé(ulo XX 335
334 -----------------

desbancavam o lugar de primazia que a Grã-Bretanha mantivera desde o tar que o Brasil fos se tratado como um pequeno país da América Cen -
século XIX. Além disso, iniciado o período da Guerra Fria, com o mundo tral. O governo dos Estados Unidos temia que ganhasse força a idéia de
dividido entre dois blocos, o capitalista e o comunista, consagrava-se a fór- que os norte-americanos estavam "ocupando" o Brasil, incentivando as
mula das áreas de influência, ficando a América Latina alinhada à política posições nacionalistas. Apenas aceitando os brasileiros como "verda-
deiros" aliados é que essa perspectiva poderia ser contornada, segundo
externa dos Estados Unidos.
Entretanto, com relação às atitudes do governo de Getúlio Vargas é as autoridades norte-americanas:
possível concluir que, diante do poder dos Estados Unidos, foi tecida uma
Está agora se intensificando no país uma campanha de rumores contra nós, resultan-
estratégia da ambigüidade. Como já demonstrou a historiografia, Vargas
te da presença de tantos milhares de americanos no Brasil. Estamos sendo acusados
fazia um jogo duplo, desde os primeiros indícios da iminência da guerra, de estar aqui para ficar, de que este é território conquistado , e assim por diante -"
não definindo o apoio do Brasil a nenhuma das articulações em curS0 2 5
Com relação aos Estados Unidos, barganhou, esperou, atacou, cedeu, O encontro de Roosevelt e Vargas, em Natal, mais uma vez, demons-
ameaçando pender para o lado alemão. Para conseguir atingir determina- trava o pragmatismo do brasileiro. O presidente norte-americano compor-
dos objetivos de seu governo, Vargas adiou seu comprometimento com os tava-se como se fosse o dono da casa e Vargas, seu hóspede. Lembrava a
aliados. O Brasil declarou guerra ao Eixo, em 1942, depois que os Estados velha atitude de seu tio , Theodore, a mesma perspectiva imperial. Entretan-
Unidos atenderam às principais reivindicações do governo brasileiro. O di- to, Vargas aparente mente não se deixou impressionar, chegando um dia an -
tador recebeu um empréstimo a longo prazo cte 20 milhões de dólares - o tes a Natal, afirmando que o dono da casa devia esperar pelo hóspede. Na
Brasil devia entrar com outros 25 milhões - para construir a Companhia fotografia bastante conhecida que mostra os dois presidentes num jipe nor-
Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, um dos pilares de sua política te-americano, é vi sível que o lugar preeminente no carro é de Roosevelt,
econômica nacionalista. Para reequipar as forças armadas, que atingiram que está sentado na parte da frente, enquanto Getúlio, muito sorridente, e stá
um status muito superior ao de 1938, conseguiu 71 % de todo o auxílio sentado na parte de trás. 28
prestado pelos Estados Unidos à América Latina durante a guerra. P~ra o Ao lado das atitudes ambíguas do governo Vargas, é preciso indicar
prestígio de seu governo e para garantir um lugar estratégico do Brastl na que o discurso oficial do período era de extremado nacionalismo. A cons-
América Latina, solicitou e conseguiu a anuência dos Estados Unidos para trução de um pensamento nacionalista no Brasil do século XX, como se
enviar tropas brasileiras para lutar ao lado dos aliados, " deferência" só con- sabe, é bastante anterior ao período Vargas. Entre tantos outros autores e
cedida ao Brasil em todo o continente. 26 textos, basta recordar a difusão dos escritos de Alberto Torres que, em A
. . 1' Esse último episódio não foi de fácil solução. O Departamento de organização nacional , de 1914, denunciava a importação de idéias inade-
'r
Guerra dos Estados Unidos superou suas hesitações depois do encontro quadas à realidade brasileira e condenava a alienação dos recursos nacio-
entre Vargas e Roosevelt, em Natal, em 1943 , quando o último voltava nais a empresas estrangeiras, numa clara posição antiimperialista. 29 Tania
da Conferência de Casablanca. Vargas havia cedido às pretensões dos de Luca já mostrou como a Revista do Brasil, na sua primeira fase, entre
Estados Unidos para a construção de uma base aérea naquela cidade,
inaugurada em 1941 e fundamental para o apoio logístico dos aliados
nos combates do norte da África. Em contrapartida, declarara não acei-
" Do secretário substituto ao embaixador no Brasil (Caffery); Washington, 27-10-43 . Citado por
Roberto Gambini , op . c ir . p. 148.
" Ver Frank McCann Jr., Th e Braúlian-American Alliance ( /93 7-1945) (Princeton : Princeton
" Ver Roberto Gambini, O duplo j ogo de Gecúlio Vargas (São Paulo: Símbolo, 1977).
University Press, 1973).
,. Para comparar com alguns outros países da América Latina, ver meu artigo "Ser ou não ser u:n 9
' Cf. Alberto Torres, A organização nacional (São Paulo: Nacional, 1978), vol. 17, Brasiliana, e O
bom vizinho: Améric a Latina e Estados Unidos durante a guerr a", em Revüca USP, n. 26, Sao
problema nacional brasileiro (São Paulo: Nacional , 1978), vol. 16, Brasiliana.
Paulo, jun.-jul.-ago. 1995.
136 Mario ligia Coelho Prado Davi e Golios: os relações entre Brasil e Estados Unidos no século XX 337

1915 e 1925 , principal publicação de caráter cultural durante a Primeira órgãos semelh antes foram criados durante a década de 30, culminando com
República, evidenciava o esforço da intelectualidade do tempo para com- o estabelecimento do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), em
preender o Brasil: dezembro de 1939. 33 A interferência do Estado na área da cultura- cinema
rádio, teatro, música popular- fazia parte de um grande projeto nacional is ~
A vastidão do territór io, um é pico sempre em cart az, alicerçou o ufanismo em seus
ta que pretendia legitimar o governo Vargas e conquistar o apoio dos traba-
diferentes mati ze s, num amplo espectro que vai da aparente s ingeleza descom-
lhadores à política varguista.34 Durante o E stado Novo, a propaganda política
promissada de um Afonso Celso à doutrina de segurança nacional da Escola Supe-
rior de Guerra. No início do século XX, período em que a voracid ade das potências ganhou um nível de organização sem precedentes no país , pregando a m a-
imperialistas pareci a não ter limites, as dimensões do país insuflavam o orgulho nutenção da ordem e a unidade nacionaP 5
nacional.]() Foi ta mbém durante a Segunda Guerra que, como afirmou Gerson
Moura, a cultura de Tio Sam desembarcou com todo o vigor no Brasil,
Como mostrou José Luis Beired, nas décadas de vinte e trinta, um seg- disseminando um arsenal de idéias, imagens e padrões de comportamento
mento da direita no Brasil construiu um discurso nacionalista poderoso, que que caracterizavam o que se costumava chamar de American way oflife.36
fazia o diagnóstico da situação do país e forneci a as soluções para os proble- Esse bem montado sistema de propaganda, cujas origens estavam numa
mas sociais e políticos, apostando num governo autoritário e corporativista anterior e projetada política do governo norte-americano, apenas expandiu-
que deveria conduzir o destino do "despreparado povo brasileiro" e edificar se, quando o co ntlito mundial terminou.
uma nação poderosa. Um gmpo de intelectu,ais nacionalistas -entre eles, A "política da boa vizinhança", implementada por Franklin Roosevelt,37
Oliveira Viana, Azevedo Amaral, Francisco Campos - f01jou as justificativas embalava os discursos e algumas das ações oficiais do governo dos Estados
do golpe de 1937, transformando-se em ideólogos do Estado Novo .31 Unidos. Nos a nos que antecederam o previ sível início da guerra, vinculan-
Desse modo, durante os anos da era Vargas, as posturas nacionalistas do-se umbilical mente às necessidades estratégicas que ela colocava, o De-
permaneceram como suste ntáculos discursivos de seu governo. Natural , as- partamento de Estado norte-americano, te mendo o avanço alemão n a
sim, que se insi sti sse no arg umento da importância do tamanho do território América Latin a, criou em 1938 um órgão especi al para estimular os encon-
e na idéia da unidade nacional que continuaram a ser incorporados tanto tros culturais das Américas. A importância estratégica da América Latina se
nos discursos oficiais, quanto no imaginário naci o na l. Como afirma Maria evidenciava, na medida do perigo crescente representado pelos países do
Helena Capelato, " no Estado Novo, incentivou-se o se ntimento de agrega- Eixo. Foi, assi m , com objetivos semelhantes que, em 16 de agosto de 1940,
ção e pertencimento a uma terra grandiosa e farta, o que deveria produzir o governo Roosevelt instituiu o Office of the Coordinator of Commercial
orgulho nos seus filhos". 32
O governo de Vargas deu prioridade à montagem de uma e strutura
oficial de propaganda política. A criação do Departame nto Oficial de Publi- JJ Ver Claudi o Ag ui ar A lme ida, Culwra e sociedade no Brasil: 1940-1968 (São Paulo: A tua! , !996),
cidade, em 1931, era a primeira manifestaç ão de suas inte nções e indicava p. 7.
" Cf. Maria He lena Capei ato, op. cit., p. 68.
que o governo Vargas desejava gerenciar os mei os de comunicação. Outros 35
Sobre o DIP, ver Silvana Goulart, Sob a verdade oficial (São Paulo/Brasília: Marco Zero/CNPq,
1990); v~r também Mari a Luiza Tucci Carneiro, "E! uni verso simbólico de la 'Era Vargas':
fascmac10n y seducc1ón de una dictadura", em Historia poUtica dei siglo XX (Quito: E! Nacio-
3
° Cf. Tania Regina de Luca, A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (n)açãu (São Paulo: nal, 1992). ·
36
Unesp, 1999), p. 86.
11
Gerson Moura tem vários trabalhos relevantes sobre esse período: Tio Sam chega ao Brasil (São
Cf. Jo sé Lui s Bendicho Beired, Autoritarismo e nacionalismo: o campo inte lectual da nova Pa~lo: Brasiliense, 1983) ; Estados Unidos e América Latina. As relações políticas no século XX
direita no Brasil e Argentina ( 1914- 1945). Tese de doutoramento, Departamento de História da (Sao Paul o: Contex to, 1990) ; Sucessos e ilusões. Relações internacionais do Bra.,il durame e
USP, mimeo , 1996. após a Segunda Guerra Mundial (Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Yargas, 1991 ).
32 37
Cf. Maria Helena Cape! ato, Multidões em cena. Propaganda política no varguismo e peronismo Para um texto in formativo sobre a "política da boa vizinh ança", ver Bryce Wood, The Making of
(Campinas/São Paulo: Papiru s/Fapesp, 1998), p. 246. the Good Neighbor Policy (Nova York: Colurnbia University Press, 1961 ).
Mmio ligia Coelho Prodo Davi e Golias: os relações entre Brasil e Estados Unidos no século'tf.. 339
338

and Cultural Relations Between the American Republic s, mais conhecido Essas manifestações demonstravam um certo desco nforto ao ver "aquele
no Brasil como Birô Interamericano. Seu mentor e diretor, Nelson Ro- produto estilizado" sendo consumido como "autenticamente brasileiro" .
ckefeller, cujos investimentos na América Latina eram já notórios, vinha Carrnen foi peç a de uma engrenagem complicada que pretendia agradar às
também se interessando pelo campo da política. 38 O Birô deixou de existir platéias brasileiras e latino-americanas, dentro de uma estratégia de sedu-
em 1946, mas muitas das atividades por ele implementadas se tomaram ção fabricada pelos produtores de Hollywood e seus amigos burocratas do
governo norte-americano . Seus objetivos n ão se cumpriram integralmente
parte da rotina das embaixadas dos Estados Unidos.
Fundamentalme nte, o Birô dedicou-se à propaganda política, dando no Brasil, pois o público nacional não se identificou completamente com
atenção ao rádio , ao cinema e às publicações em geral. O controle das notí- aquela figura exótica e um tanto caricata.
cias tinha prioridade. Era visível que as agências no tic iosas norte-america- Walt Disney, cuj as ligações com o Departamento de Estado se inicia-
nas, como a United Press e a Associated Press ganhavam poder e espaço vam, foi enviado à América Latina para "col he r matéria prima original" para
internacionais, depois de desbancar suas riv ais alemãs e italianas e passa- a confecção de personagens para seus desenhos animados. Sempre em nome
vam a ser a principal fonte de notícias dos jornais brasileiros. Durante a da "amizade" que nos unia, nasceu a figura do papagaio Zé Carioca, aliás um
guerra e depois dela, no rádio, o "Repórter Essa"- patroc inado pela compa- animal que se distingue por imitar ou repetir os sons que ouve. Cantarolando
nhia de Rockefell er, a Standard Oil - ganhava respeitabilid ade, transforman- e dançando, sempre feliz, Zé é malandro e inconseqüente, aplica truques sem-
do-se em referênc ia como "fonte segura de informações". O Departamento pre descobertos, não pode ser levado a sério. Enfim , uma criatura simpática,
de Estado iniciou nesse período, no Brasil, aJorm ação de bibliotecas com descartável e não confi ável. No entanto, seu nascimento pretendia mostrar
revistas e livros preocupados em apresentar favoravelmente a cultura, os que um desenhista como Disney, de tão alta popularidade, importava-se com
o Brasil , a po nto de criar uma personagem especial para nós .
costumes, os valores norte-americanos.
O cinema passou a ser alvo importante dos interesses do Birô, que em Afinada com a mesma perspecti va de propaganda " dos valores da cu l-
Hollywood intervinh a nas produções, indicava roteiros, censurava cenas, em tura norte-americana", a revista Seleções do R eader's Digest, fundad a em
nome dos princípios da "boa vizinhança". Artistas latino-muericanos, de re- 1922, nos Estados U nidos, e já muito importante em seu país natal, entrava
pente, apareciam nos filmes de Hollywood, como o cantor Carlos Ramirez no Brasil em 1942. N elson Rockefeller, por exemplo, havia insistido que se
o u a orquestra de Xavier C ugat, sempre apresentados de forma simpática. No providenciasse uma ed ição do Digest em português, para ser distribuíd a no
caso brasileiro, como é sobejamente conhecido, há dois fenômenos centrats Brasil e em Portugal. Co nsumida pelas classes médias brasileiras, foi a se-
gunda revi sta mais lid a no Brasil, perde ndo apenas para O Cruzeiro. Sele-
na histó ria dessas relações: Carmen Miranda e Zé Carioca.
Carmen , vestida de " baiana estilizada" , se transformara em estrela, ções difundi a os valores da c ultura no rte -americana oficial - bran ca,
recebendo altos salários e aparecendo cantando e dançando nos filme s. Os masculina e protestante - e apresentava a s ua soc iedade como modelo a ser
olhos imperiais construíram a imagem daquela que devia representar a cul- copiado, por se co nstituir, na sua visão, em forma universal do bem viver.
tura brasileira: brejeira e alegre, mas também inconseqüente, impulsiva, Segundo pesqui sas do Ibope, foi considerada pelos brasileiros a revi sta mais
emocional e não particularmente inteligente . Apesar de seu "sucesso no confiável do país, j á que trazia as "últimas novidades" não só dos Estados
exterior", no Brasil houve memoráveis polémicas em tomo do que se deno- Unidos, mas de todo o mundo, passando a idéia de que também os brasile i-
minava a "americanização" de Carmen Miranda. Muitos se indignara~, ros se atualizav am e podiam acompanhar os últimos passos da tecnologi a
perguntando se teria ela se vendido a Hollywood e esquecido do Brastl. moderna, dos avanços da medicina e das descobertas "c ientíficas. 39

39
Cf. Mary Anne Junqueira, Ao sul do Rio Grande. Imaginando a América Latina em Seleções:
" Para uma biografia (em estilo jornalístico) de denúncia da ação de Rockefeller na América Lati- leste, Wilderness e fronteira ( 1942- 1970) . São Paul o, Departamento de Hi stória da USP, 1999.
na, ver Gerard Colby, Seja feita a vossa vontade (Rio de Janeiro: Record, 1998).
·il. . Tese de doutoramento , mimeo., p. 254 .

,"'; ~·
Mario ligia Coelho Prado Davi e Golios os relações entre Brasil e Estudos Unidos no século 't:f.. 341
340 ------------------------

Em termos de propaganda política, Seleções manteve uma proximida- temas polêmicos, tais como a propalada destruição da cultura nacional pela
imposição de valores norte-americanos. Se, de um lado, o imperialismo
de indiscutível com os objetivos imediatos da política externa norte-ameri-
exerce a dominação sobre o outro, isso não significa afirmar que o outro
\i cana, defendendo durante e depois da guerra os mesmos pontos de vista
l: não reaja e que aceite o que lhe é impingido passivamente, como se não
!' oficiais do Departamento de Estado. Vale a pena reproduzir o que a revista
tivesse passado ou história. Fernando Ortiz, sociólogo cubano, elaborou,
dizia sobre Getúlio Vargas, em sua edição norte-americana, no momento
em 1940, o conceito de transculturação, incorporado à crítica literária por
das grandes decisões sobre o lugar do Brasil no contexto das alianças de
Angel Rama nos anos 70 e trabalhado recentemente por Mary Louise Pratt.
guerra. Vargas
Ortiz afirmava que usava o conceito de "transculturação para expressar as
é a figura-chave dos esfo rços dos Estados Unidos para a unidade do hemi sfér io variadíssimas formas que se originam em Cuba pelas complexíssimas
ocidental contra o totalitarismo[ ... ] Freqüentemente nos é perguntado por que os transmutações de culturas que aqui se verificam". 42 Nessa linha de reflexão,
Estados Unidos que se vinculam à liberdade e à democracia podem ter uma relação é possível observar como muitos dos produtos da cultura norte-americana
de proximidade com ditadores. São duas as respostas: no Brasil há uma ditadura foram relidos e resignificados por autores e pelo público brasileiros. Por
benevol ente , governada com extrema tol erância - um governo pessoal - não um exemplo, as populares chanchadas da Atlântida que, com enorme êxito po-
governo oficialmente totalitário. A segunda resposta envolve o tipo de decisão que
pular, satirizavam alguns dos sucessos do cinema de Hollywood como Nem
políticos realistas inevitavelmente apresentam. Nós podemos não gostar do fato de
Yargas se r um ditador, mas um Brasil forte , estável e am istoso é mai s importante Sansão nem Dalila ou Matar ou correr, protagonizados pela imbatível du-
para nós como nação do que sua política intema'0 pla Oscarito e Grande Otelo, os anti-heróis por excelência. A música popu-
lar brasileira - que apesar de todos "os estrangeirismos" nunca perdeu a
Como se vê, a revista advogava idêntica posição à do governo dos criatividade e o público fiel- respondia aos modelos impostos com o "yes,
Estados Unidos. nós temos bananas, bananas pra dar e vender". Uma pequena anedota con-
A revista Seleções reproduzia estereótipos sobre brasileiros e latino- tada por Ruy Castro é exemplar. Refere-se a Nelson Rodrigues que , para
americanos, procurando indicar soluções pragmáticas para os problemas que, ganhar uns trocados, fazia a tradução de gibis norte-americanos para a Edi-
em suas análises, impediam a saída do "atraso". Era preciso praticar métodos tora Globo. Havi a um pequeno senão, ele não sabia uma palavra de inglês e
racionais na agricultura e aprender a ter controle absoluto sobre a natureza. inventava a história a partir das ilustrações ... 43
Os latino-americanos, de forma geral, eram vistos como passivos, ignoran- Concluindo essa segunda parte, entendo que as ações do governo Vargas
tes, supersticiosos, vivendo de forma natural e instintiva, em contraste com com rel ação à política externa dos Estados Unidos, num período de enorme
41
os habitantes do mundo civilizado, protestante e anglo-saxão. tensão, como o da Segunda Guerra Mundial, podem ser interpretadas como
Tal poder de persuasão e sedução e tão avassaladora onda de produ- uma estratégia da ambigüidade. Ao mesmo tempo aceitava as imposições
ções culturais norte-americanas- cinema, rádio, revistas, livros, fotogra- dos Estados Unidos e alcançava vários dos objetivos propostos por se u go-
fias, etc.- tiveram ampla aceitação por parte da sociedade brasileira. Basta verno à custa de concessões do governo norte-americano. Usando das mes-
pensar no sucesso da revista Seleções até 1970, ou na hegemonia dos filmes mas armas de pro paganda que aquelas do governo dos Estados Unidos,
de Hollywood até o presente. A falta de pesquisas mais abrangentes sobre a enaltecia a unidade nacional, estimulava o orgulho nacional e tecia louvo-
recepção da cultura norte-americana pela sociedade brasileira impede uma res à soberania da nação.
análise mais aprofundada dessa questão . É possível lembrar apenas alguns

" Cf. Fernando Ortiz, Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar (Havana: Consejo Nacional de
Cultura, 1963 [ P ed. 1940]); Mary Louis e Pratt, op. cit.; Ángel Rama, La crítica de la culru ra en
América Latina (Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1985).
'"' Reader's Digest, jul. 1941, citado por Mary Anne Junqueira, op. cit., p. 156. 3
' Cf. Ruy Castro, O anjo pornográfico (São Paulo: Companhia das Letras, 1994).
" Cf. Mary Anne Junqueira, op. cit., p. 231.
342 Mario ligia Coelho Prado Oovi e Golios: os relações entre Brasil e Estados Unidos no séwlo 'ti. 343

A sedução da cultura norte-americana que entrou maciçamente no Brasil O governo dos Estados Unidos jogava em duas frentes; de um lado,
a partir desses anos atingiu os corações de boa parte da sociedade brasileira. desenvolvia uma estratégia de prevenção para impedir o avanço do comu-
Mas a ambigüidade também esteve presente, pois isso não significou que nismo no Brasil, com os programas da "Aliança para o Progresso" e a atu-
seu poder foi tal a ponto de apagar os traços das nossas tradições culturais e ação concreta dos Corpos da Paz, cidadãos norte-americanos de boa vontade
de nossa criatividade cotidiana e de impedir respostas alternativas à domi- que se colocavam como salvadores da América Latina. Numa outra verten-
nação. te, obscura e violenta, em dissonância com a primeira, a CIA oferecia apoio
O golpe militar de 1964 recebeu total apoio do governo dos Estados técnico e logístico à repressão militar que estava atuando para desmantelar
Unidos. Durante os 21 anos de ditadura, o Brasil oscilou entre posições as organizações armadas clandestinas que lutavam contra a ditadura.
estritas de alinhamento ideológico e outras mais independentes, particular- Os Corpos da Paz nasceram do entusiasmo de um pequeno grupo de
mente no que se referia a projetas nacionalistas de desenvolvimento econô- liberais que colaboraram com a campanha de Kennedy à presidência. For-
mico, ou a relações mais comprometidas com outros países, como no caso maram-se como uma agência de assistência internacional do governo, ba-
da política nuclear brasileira, apoiada na tecnologia alemã. seada em trabalho voluntário, inteiramente financiada pelo Tesouro. Tinham
Nesse período de polarização política e ideológica, a associação entre por finalidade enviar às nações carentes especialistas em educação, saúde e
o regime militar brasileiro e o imperialismo norte-americano era comum e agricultura que deveriam ensinar às populações locais conhecimentos téc-
constante. Assim se explica a razão pela qual os militantes de movimentos nicos básicos e os segredos de novas técnicas.44 O cuidado com a seleção
armados de esquerda escolheram seqüestrar Çharles Burke Elbrick, embai- dos candidatos demonstrava o temor de que radicais e comunistas tomas-
xador dos Estados Unidos no Brasil, em setembro de 1969, episódio de sem os postos e não representassem adequadamente o país. Os republica-
grande repercussão nacional e internacional. nos conseguiram que os candidatos fossem investigados pelo FBI, treinados
A política exterior dos Estados Unidos, após a vitória da Revolução em filosofia e táticas comunistas, jurando não advogar a derrubada do go-
Cubana, em 1959, sofrera algumas mudanças frente aos países da América verno dos Estados Unidos. Para alguns, os Corpos da Paz seriam os prota-
Latina. Cuba, primeiro país do continente a pertencer ao "mundo socialis- gonistas de uma revolução pacífica nos países em que a maioria da população
ta", se transformou em exemplo para parte das esquerdas da América Lati- estava excluída da riqueza e da política. 45
na, provocando crises e rompimentos radicais dentro dos tradicionais partidos Em 1961, San Tiago Dantas, ministro das Relações Exteriores do go-
comunistas. O medo de que a revolução fosse "exportada" fez com que o verno João Goulart, e Lincoln Gordon, embaixador dos Estados Unidos no
governo de John Kennedy, adotando uma ótica diversa, propusesse uma país, assinaram um acordo que estabelecia as bases para a atuação dos Cor-
política, a "Aliança para o Progresso", que pretendia reparar as injustiças pos da Paz no Brasil, poucos meses depois do lançamento da " Aliança para
do capitalismo e promover o desenvolvimento para impedir que os pobres e o Progresso" . O Nordeste do Brasil, aos olhos dos Estados Unidos, estava
desesperados se levantassem em armas. propenso a cair nas garras do comunismo, por sua extrema pobreza. Assim ,
Como parte desse esforço, foram formados os Corpos da Paz, que em outubro de 1961, Kennedy enviou uma missão encarregada de verificar
eram constituídos por grupos de jovens norte-americanos que acreditavam os problemas da região, particularmente depois que "descobriram" o perigo
poder ajudar a trazer o progresso e a modernidade aos países da América representado por Francisco Julião e as Ligas Camponesas.
Latina. No Brasil, eles também deveriam amenizar os ataques à política Bastante conscientes das limitações do programa, os próprios inte-
externa dos Estados Unidos que freqüentemente era acusada de ser respon- grantes dos Corpos faziam algumas avaliações críticas de sua atuação:
sável pela exploração da riqueza nacional, reforçando a pobreza e o subde-
senvolvimento. As bandeiras antiimperialistas alcançavam várias áreas, como
.._. Sobre os Corpos da Paz no Brasil, ver Cecília Azevedo, Uma história dos Corpos da Paz no Bmül.
a da educação e da cultura, exatamente as prioritárias da atuação dos Cor- São Paulo, Departamento de História da USP, 1999. Tese de doutoramento, mimeo., p. 70.
pos da Paz. " lbid., p. 98.
Davi e Gal ias: as relações entre Brasil e tstodas Unidos no século YJ.. 345
344 Maria Ugia Coelho Prado

Depois de fazer um estudo sobre todo nosso programa para o Brasil, está claro para ao subdesenvolvimento. A idéia de uma dependência forjada historicamen-
mim que nós não estamos atingindo os cidadãos comuns do Brasil. Nossos progra- te se casava perfeitamente com a defesa de posições nacionalistas, já velhas
mas são geralmente voltados para um nível superior, tanto econômico, quanto inte- conhecidas dos intelectuais brasileiros. Os nacionalistas, entre os quais se
lectual, apesar de que a penetração comunista no Brasil, como em todo lugar, tem contavam alguns grupos militares, viam no imperialismo ianque um inimi-
sempre começado com os camponeses. Estou convencido de que não se trata de
go a ser combatido. Eram os continuadores daqueles que, depois da guerra,
quanto gastamos, mas como e onde nós produzimos nosso impacto. Nós temos que
alcançar as pessoas comuns que compõem a grande massa da população com um
articularam as memoráveis campanhas nacionalistas, como a do "Petróleo é
real programa de impacto ... AGORA!6 nosso", que resultou na criação da Petrobrás, em 1951. Nesses mesmos
anos 50, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) havia produzido
Internamente, nos países onde se instalaram, também houve muitas interpretações que se converteram em inúmeras publicações que divulga-
críticas aos acordos dos governos com os Corpos da Paz. No Brasil, por vam posições nacionalistas vinculadas, no mais das vezes, ao combate ao
exemplo, em 1963, Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, impe- imperialismo. 47
diu a entrada de voluntários em seu estado e afirmou que era preciso lutar As apropriações políticas da teoria da dependência foram diversas e
contra eles com palavras e, se necessário, com atitudes hostis. justificaram desde a defesa de posições ideológicas nacionalistas até as ações
Naturalmente, depois do golpe militar, o número de voluntários cres- armadas das guerrilhas urbanas e rurais. Entendiam tais grupos que para
ceu. Em dezembro de 1966, havia no Brasil 639 voluntários, o maior núme- eliminar a dependência e esmagar o imperialismo apenas a luta pela vitória
ro de sua história. Na década de 70, a tendênci?- se inverteu, diminuindo seu da revolução socialista seria a saída possível.
número. O interesse do governo brasileiro também esfriou. Em novembro Posições mais moderadas foram também defendidas, como, por exem-
de 1980, os Corpos da Paz encerravam suas atividades no Brasil. Para mui- plo, as do então sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que escreveu com
tos, eram jovens bem-intencionados que queriam ajudar; para outros tantos, Enzo Faletto um livro de grande repercussão, no qual o conceito de depen-
não passaram de instrumento útil a serviço do imperialismo ianque durante dência era fundamental. Propunham, na conclusão, outro caminho para sua
o regime militar brasileiro. superação:
De todo modo, é indiscutível que os governos militares estiveram sin-
tonizados com as diretrizes da política externa dos Estados Unidos e que Portanto, a superação ou a manutenção das "barreiras estrutmais" ao desenvolvi-
mento e à dependência dependem, mais que de condições económicas tomadas iso-
receberam, particularmente até 1975, apoio de parte da sociedade bras i !eira
ladamente, do jogo de poder que permitirá a utilização em sentido variável dessas
que endossava suas atitudes. Porém, por outro lado, grupos de oposição "condições económicas". Nesse sentido, tratamos de sugerir que oposições - pre-
protagonizavam uma estratégia de confronto. A oposição que tinha matizes sentes ou virtuais- poderiam dinamizar as nações industrializadas e dependentes da
-de moderada a radical -organizou-se de formas políticas diversas para América Latina e que possibilidades estruturais haveria para um ou outro tipo de
confrontar o regime. Entre elas, cabe destacar a produção pelas esquerdas movimento social e político''

de análises sobre a sociedade brasileira, nas quais enfatizavam a "atuação


nefasta" do imperialismo dos Estados Unidos no continente. Os debates ideológicos dessas décadas estavam fortemente marcados
Tais críticas se cristalizaram na construção de uma interpretação pela polarização entre esquerda e direita. A estratégia do confronto que pro-
explicativa da realidade da América Latina, a teoria da dependência. Esta duziu textos e ações de repercussão nacional e internacional tomou como
denunciava os laços de subordinação das nações periféricas aos pólos
hegemónicos, que impedia o desenvolvimento económico, condenando-as
" Sobre o lseb, ver Caio Navarro de Toledo, lseb, fábrica de ideologias (Campinas: Editora da
Umcamp, 1997).
48
Cf. Fernando Henrique Cardoso e Enzo Fa1etto, Dependência e desenvolvimento na América
46
Latina (7. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, s.d.), pp. 142-3.
Citado por Cecília Azevedo, op. cit., p. 217.
346 Maria ligia Caelha Prada Davi e Gal ias as relações entre Brasil e Estadas Unidos no séwlo 'tf.. 347

inimigo externo o imperialismo dos Estados Unidos . Nem os Corpos da Bibliografia selecionacla
Paz escaparam da retaliação. Eram vistos como comprometidos com o regi-
AZEVEDO, Cec ília. Uma histó ria dos Corpo s da Paz no Brasil, tese de doutoramento
me militar, marionetes atrelados à política externa dos Estados Unidos. As- (mimeo). São Paulo: Departamento de História da USP, 1999.
sim, nos anos 60 e 70, pode-se acompanhar a um verdadeiro embate de BAGGIO, Kátia Gerab. A "outra" América: a América Latina na visão dos intelectuais
imagens produzidas por doi s campos. De um lado, o di scurso e as práticas brasileiros das primeiras décadas republicanas. São Paulo: Dep. de His tória da
engendradas pelo governo militar brasileiro, apoiadas pelos Estados Uni- USP, 1999.
dos, e, de outro, a ofensiva antiimperialista que produzia textos e propunha BERGER , Mark T. Under northern eyes. Latin American Studies and U.S. hegemony in
estratégias de contestação à ordem. the Ame ricas 1898-1990. Bloomington : Indiana University Press, 1995.
CERVO, Amado L. & DOPCKE (orgs.). Relações internacionais dos países americanos.
Depois de olhar para o passado e analisar as relações entre Brasil e Brasília: Linha Gráfica Editora, 1994.
Estados Unidos , em três momentos específicos, cabe agora uma reflexão FuRTADO, Celso. A hegemonia dos Estados Unidos e o subdesenvolvimento da América
sobre o presente. Neste fim de século, em tempos de globalização, a econo- Latina . Rio de Janeiro: Civilização Bras ileira, 1973.
mia brasileira está subordinada às flutuações do mercado financeiro, tendo JosEPH, Gil; LEGRAND, Catherine C.; SALVATORE, Ricardo D. (orgs.). Close enco unters of
o FMI, capitaneado pelos Estados Unidos, como gerente de suas decisões. empire. Writing the cultural history of U.S. -Latin Ame rica relations. Durham: Duke
University Press, 1998.
O Brasil parece refém das determinações que vêm de fora, imerso em séria
JuNQUEIRA, Mary Anne. Ao sul do Rio Grande. fmaginando a América Latina em Sele-
c ri se. À primeira vista, não se vislumbram respostas otimistas, pois o poder
çoes: leste, Wildern ess e fronteira ( 1942- 1970). São Paulo : Dep. de Hi s tó ria da
dos Estados Unidos, diante de nossas fraque zas, assusta. Que estratégias USP, 1999 .
estão sendo desenvolvidas para fazer frente htal complexa situação'! Diante MAGDOFF, Harry. A era do imperialismo. São Paulo: Hucitec , 1978.
de relação tão desigual, saberemos utilizar a funda de Davi para enfrentar o MoNrz BANDEfRA, Luiz Alberto. Brasil-Estados Unidos: a rivalidade emergente ( 1950-
gigante Golias? Uma nova estratégia política estaria se estruturando, ligada 1 988). Rio de Janeiro: Civilização Brasile ira, 1989.
às possibilidades abertas com a integração do Mercosul ? MoURA, Gerson. Autonomia na dependência: p o lítica externa brasileira de 1934 a 1942.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
_ _ _ _ _ _ .Sucessos e ilusões. Relações internacionais durante e após a S egunda
Guerra Mundial. Rio de Janeiro: FGV, 1991.
PIKE, Frederick B. The Un ited States and Latin America. M yths and stereotyp es of
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PRADO, Maria Ligia. "Ser ou não ser um bom viz inho: Améri ca Latina e Estados Unidos
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TRíAs , Vivián . Historia de! imperialismo norteam ericano , 2 vis. Monte vidéu : Edici o nes
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