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HANNAH ARENDT: Segundo constituía a condição natural para a a necessidade – por exemplo,
Coulanges, todas as palavras gregas liberdade na polis. [...] O que todos subjugando os escravos – e alcançar
e latinas que exprimem algum tipo os filósofos gregos tinham como a liberdade. [...] a violência é o
de governo de um homem sobre certo, por mais que se opusessem ato pré-político de libertar-se da
os outros, como rex, pater, anax, à vida na polis, é que a liberdade necessidade da vida para conquistar
basileus, referiam-se originalmente situa-se exclusivamente na esfera a liberdade no mundo.
a relações familiares e eram nomes política; que a necessidade é
que os escravos davam a seus primordialmente um fenômeno
senhores. [...] A esfera da polis, ao pré-político, característico da
contrário, era a esfera da liberdade, organização do lar privado; e
e se havia uma relação entre essas que a força e a violência são
duas esferas era que a vitória sobre justificadas nesta última esfera por
as necessidades da vida em família serem os únicos meios de vencer
narrativa, podem lidar com este inesperado, usando apropriada como ferramenta metodológica. O
ferramentas próprias, criar outros modos de (des)encaixe é uma estratégia relativa tanto ao
encaixarem-se nestes movimentos e de provocarem modo de combinar, articular e tencionar reflexões
visualmente sua imaginação criadora. urbanísticas- históricas- políticas- sociais, como
o modo de criar relações com o leitor. Em alguns
[ARTIFÍCIO CARTOGRÁFICO I] movimentos e
momentos do jogo, é preciso encontrar modos
instauração dos territórios investigativos
próprios de encaixar determinadas relações, ou
Um capoeirista em ação elabora encaixar-se corporalmente e imaginariamente
incessantemente sua movimentação no jogo e nos movimentos propostos, dada a natureza
define formas, alturas, inclinações, dobras, posições; fragmentada e lacunar desta narrativa cartográfica.
ritmos, acelerados, lentos, contínuos, quebrados, Observa-se nestas relações, a emergência de
descompassados; espaços ocupados e desocupados, um campo de forças específico, espacializado pela
espaços para aproximação ou afastamento. roda, no instante presente do jogo. No caso da roda,
A intenção do golpe é certeira, e a partir das campo de forças e território estão absolutamente
articulações entre forma, ritmo e espaço, agenciados implicados um sobre o outro. Entretanto, um
pelo corpo espreita-se um pé, um rosto, um tronco mesmo campo de forças pode engendrar-se em
suscetível ao ataque. Adentra-se nas brechas das diferentes territórios, em espaços descontínuos,
formas definidas pelo corpo do outro jogador, como até mesmo simultaneamente. O campo de forças
uma engrenagem em que as peças vão encaixando- definido pelo processo de transição do Forte de
se e desencaixando-se numa sequência ininterrupta Santo Antônio Além do Carmo para o Forte da
e rítmica. Capoeira extrapola os limites do território forte.
A ideia do encaixe e desencaixe entre corpos, de Trata-se de uma complexa trama relacional, em que
um encadeamento de movimentos codeterminados os vetores de forças atravessam constantemente
pela relação que se coloca entre espaço-tempo foi o Forte e espraiam-se por outros territórios,
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CACÁ FONSECA: Entendo que lei é o que ligaria as propriedades, HANNAH ARENDT: A palavra polis
temos alguns problemas para e que constituiria a própria cidade. tinha originalmente a conotação
nos apropriarmos das noções de A lei não poderia jamais regular a de ago como muro circundante
Arendt em função da diferença propriedade, que estaria no lugar e, ao que parece, o latim urbs
de contextos. No início do texto, a do próprio. E se observamos hoje exprimia também a noção de um
autora dá especial atenção para como vivemos nas cidades, não só círculo e derivava da mesma raiz
a noção de ambiente, enquanto dividimos o mesmo muro, como a que orbis. Encontramos a mesma
artefato humano. A noção de lei mesma laje. E como fica essa noção relação na palavra inglesa town
em Roma significava o espaço de lei e de cidade? que, originalmente, como o alemão
entre as propriedades, elas sequer zaum, significava cerca.
poderiam dividir o mesmo muro. A
tencionam relações espacializadas na cidade, se formula outras regras para ir a campo, ou para
noutras rodas, em instituições do governo nas produzir a narrativa, altera-se também o modo
esferas municipal, estadual e federal, entre outros de questionar sobre, de elaborar hipóteses e de
territórios. construir mecanismos de compreensão das relações
Como estratégia metodológica, percorre-se na observadas.
narrativa cartográfica três territórios implicados Jogos são práticas espacializadas numa mesa,
neste campo de forças: a roda de capoeira, o Forte numa casa, numa calçada, numa rua, na água, num
de Santo Antônio Além do Carmo e a cidade de tabuleiro, num suporte invisível capaz de assimilar
Salvador - territórios investigativos sobrepostos, relações entre- espaços entre pessoas, entre olhares,
encaixados uns dentro do outros. Têm-se interesses- entre relações. A emoção do entre o
assim diferentes instâncias de forças, escalas de agora e o daqui a pouco, entre a sorte e a experiência
aproximação e possibilidade de constituição de adquirida. Tentativa e risco, num jogo espacializado
novos movimentos no jogo cartográfico. O recorte no papel, neste espaço entre nós...
espaço-temporal abrange, portanto, estes três Obra em jogo, mobilizada pelo foco da
territórios, percorridos ao longo dos anos 2007- simultaneidade. Olho-míssil e olho- fóssil, focos
2008 período da pesquisa de campo - com o objetivo simultâneos com propósitos complementares, um
de investigar o referido processo de transição arrisca-se num impulso de expansão, de lançar-
ocorrido entre 1982 e 2008. se para fora; o outro adentra as intensidades
Esta construção híbrida tanto no que diz submersas, num ímpeto de transpor superfícies
respeito aos aspectos metodológicos quanto à e encontrar as opacidades. A narrativa aspira ao
própria definição dos territórios investigativos movimento de percorrer nosso corpo, adentrar
amplifica as possibilidades de conexões entre nossos olhares, olho-míssil e fóssil, e fazer pulsar
ferramentas metodológicas e modifica a atitude nossa imaginação criadora.
do pesquisador no ato investigativo. À medida que
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FERNANDO FERRAZ: Arendt chega a CACÁ FONSECA: Como fica a de reforma urbana? De acordo com
afirmar, inclusive, que não há cidade afirmativa de Arendt “a política a autora “o governo é pré-político”.
jamais visa a manutenção da
sem muro.
vida”? Se retomamos à noção de
biopolítica de Foucault, aparece uma
contradição, já que esta última trata
da própria gestão da vida. Sinto um
incômodo com a noção de política
de Arendt, pois como ficariam todas
as mobilizações e lutas sociais cujo
investimento político é, inclusive,
interesse de nossos estudos, como
os movimentos de luta pela moradia,
DISPOSITIVO E CAMPO DE FORÇAS > linhas:
trajetos x territórios existenciais x diálogos essas linhas do dispositivo não abarcam nem
delimitam sistemas homogêneos por sua própria
Os dispositivos enquanto máquinas de fazer conta (o objeto, o sujeito, a linguagem), mas
ver e falar, nesta investigação, são operados a partir seguem direções diferentes, formam processos
de conceitos filosóficos e urbanísticos, de trajetos sempre em desequilíbrio, e essas linhas tanto se
pela cidade, de enunciações dos diferentes grupos aproximam como se afastam uma das outras.
e pessoas envolvidas no processo de ocupação Cada uma está quebrada e submetida a variações
do Forte, de imagens fotográficas e jornalísticas de direção (bifurcada, enforquilhada), submetida
correlatas, de personagens e territórios do mundo a derivações. Os objetos visíveis, as enunciações
da capoeira, de projetos oficiais definidos no âmbito formuláveis, as forças em exercício, os sujeitos
das políticas públicas, e de anotações relativas à numa determinada posição, são como que vetores
pesquisa de campo. ou tensores [...] Desemaranhar as linhas de um
dispositivo é, em cada caso, traçar um mapa,
Os dispositivos têm, então, como componentes cartografar, percorrer terras desconhecidas, é o que
linhas de visibilidade, linhas de enunciação, linhas Foucault chama de “trabalho em terreno”. É preciso
de força, linhas de subjetivação, linhas de ruptura, instalarmo-nos sobre as próprias linhas, que não
de fissura, de fratura que se entrecruzam e se se contentam apenas em compor um dispositivo,
misturam, enquanto umas suscitam, através de mas atravessam-no, arrastam-no, de norte a sul,
variações ou mesmo mutações de disposição. As de leste a oeste ou em diagonal [...] O certo é que
diferentes linhas de um dispositivo repartem- os dispositivos são como as máquinas de Raymond
se em dois grupos: linhas de estratificação ou Roussel, máquinas de fazer ver e de fazer falar, tal
de sedimentação, linhas de atualização ou de como são analisadas por Foucault. (DELEUZE,
criatividade. [...] Em primeiro lugar, é uma espécie 1990, p. 155-161)
de novelo ou meada, um conjunto multilinear.
É composto por linhas de natureza diferente e
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HANNAH ARENDT: Não obstante, o GUSTAVO CHAVES: O social de HANNAH ARENDT: Pelo contrário,
passado de verdadeira experiência Arendt teria a ver com a biopolítica todo conceito de domínio e de
política, pelo menos em Platão e em Foucault e não o político. submissão, de governo e de poder
Aristóteles, continuava tão forte no sentido em que o concebemos,
que jamais houve dúvida quanto à bem como a ordem regulamentada
que os acompanha, eram tidos
distinção entre as esferas da família
como pré-políticos, pertencentes à
e da vida política. Sem a vitória
esfera privada e não à esfera
sobre as necessidades da vida na
pública. [...] Ser livre significava
família, nem a vida nem a boa vida
ao mesmo tempo não estar sujeito
é possível; a política, porém, jamais
às necessidades da vida nem ao
visa à manutenção da vida. comando de outro e também não
Todas estas matérias de expressão dimensão do poder intrínseca aos componentes do
emaranhadas nos seguintes vetores, linhas dispositivo, sejam aqueles ligados à subjetivação, à
de trajetos, linhas de vida e linhas em jogo fuga, à estratificação, e etc. As linhas trajetos, linhas
configuram um conjunto multilinear que fazem de vida e linhas de diálogos configuram nosso
falar e ver os constantes engendramentos das campo de forças, uma virtualidade, configurada
linhas de subjetivação, de ruptura, de fuga, de processualmente a partir das emergências que se
desterritorialização, de morte. Enfim as diversas efetivam no processo de ocupação do Forte de Santo
manifestações das linhas concernentes aos grupos Antônio além do Carmo e na sua transformação em
de estratificação e de sedimentação; e de atualização Forte da Capoeira.
ou de criatividade, cartografadas, desemaranhadas
ao longo do processo investigativo. Um dispositivo implica linhas de forças. Pareceria
que estas foram situadas nas linhas precedentes de
A inserção destes vetores na presente discussão
um ponto singular a outro; de alguma maneira, elas
é feita como um movimento arquitetado, que
“retificam” as curvas anteriores, traçam tangentes,
intenciona desencadear outros movimentos e
envolvem os trajetos de uma linha com outra
questões, criar tensões; um golpe acionado dentro de
linha, operam idas e vindas entre o ver e o dizer e
um contexto específico e potente de possibilidades
inversamente, agindo como setas que não cessam
de associações, ataques, encaixes e esquivas. Um
de penetrar as coisas e as palavras, que não cessam
dispositivo, no sentido de criar relações de forças,
de conduzir à batalha. A linha de forças produz-se
produzidas por uma determinada intenção, a
“em toda a relação de um ponto a outro” e passa
construção da narrativa cartográfica.
por todos os lugares de um dispositivo. Invisível e
As relações de forças são imanentes a todos indizível, esta linha está estreitamente mesclada
os movimentos operados pelos dispositivos e, com outras e é, entretanto, indistinguível destas.
portanto, todo conjunto multilinear implica a (DELEUZE, 1990, p. 155-161)
instauração de um campo de forças. Trata-se da
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comandar. Não significava domínio, DIEGO MAURO: De acordo com a FERNANDO FERRAZ: Esta é uma
como também não significava ideia grega de política, abordada visão recorrente sobre o trabalho
submissão. no trabalho de Arendt, quem de Arendt, que é caracterizada
discute política é aquele que tem a como uma aristocrata da política,
necessidade suprimida. Considero uma interpretação “lugar comum”
uma concepção de política muito sobre a autora. Pois o referente
excludente. O morador de rua, por grego é questionado, já que grande
exemplo, na concepção grega, não parte das pessoas que viviam em
seria sequer cidadão. Atenas sequer participava da vida
pública.
A dimensão do poder faz vibrar o campo e autores são acionados como possibilidade de
multilinear, entrecortado por idas e vindas, explicita transvalorar os relatos cotidianos e de introduzir a
suas ambigüidades, desestabiliza o ver e o dizer, abordagem teórica articuladora da narrativa nestas
tangencia norte e sul e localiza-se nos interstícios aproximações.
entre norte e sul, espetáculo e resistência. A batalha
[Movimento inicial do jogo]: trajetos
associa-se à ideia do jogo, da disputa, do conflito
e do risco e permeia a construção metodológica e
conceitual da cartografia deste campo de forças. O ponto de água só existe para ser abandonado,
e todo ponto é uma alternância e só existe como
I: Linhas trajetos alternância. Um trajeto está sempre entre dois
pontos, mas o entre-dois tomou toda a consistência,
O jogo inicia-se com três diferentes trajetos
e goza de uma autonomia bem como de uma direção
percorridos para acessar o Forte. As paisagens
próprias. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 42)
vigentes e dissidentes conformadas nesta
experiência compõem as primeiras linhas da nossa O Forte de Santo Antônio Além do Carmo
cartografia. Linhas-trajetos, escrituras dos passos revela no seu próprio nome o sentido de um trajeto,
na ação de cartografar o referido campo de forças e define uma espacialidade a partir das relações
descobrir algumas conexões possíveis entre o Forte e que estabelece com outra. Nossas primeiras
seu contexto urbano. aproximações do Forte são realizadas a partir da
Esta aproximação provoca nossa imaginação idéia de percorrer um espaço para acessar outro e
com enredos cotidianos devorados nas diversas portanto, compreendê-lo na sua inserção urbana.
vezes que estes trajetos foram percorridos e com Entendê-lo nas suas relações com o entorno, com as
breves pontuações acerca das ocupações do Forte possibilidades de acesso, de transporte, as paisagens
desde 1982, sem entretanto aprofundar nas que compõe - a depender do ponto de vista que
entrelinhas destes processos. Alguns conceitos lançamos nosso olhar, se da Cidade Baixa, se do
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CACÁ FONSECA: Penso numa FERNANDO FERRAZ: Sugiro pensar a ÍCARO VILAÇA: Pensando na
imbricação dos processos, tal como rede (internet) como um dispositivo sobreposição das esferas, público
a atual pesquisa do Laboratório técnico, que cria uma esfera x privado, as redes sociais, como
oscilante, ora pública, ora privada, já fora citado, não seriam também
Urbano propõe – privatização
ora social (ou ainda da intimidade). um espaço político, além da
do espaço público – e também “exposição da intimidade no social”,
poderíamos dizer de publicização citada por Fernando?
do espaço privado. Nessa
imbricação estariam os fenômenos
das redes sociais e reality shows?
momento, compõe-se de linhas de vida, que incorporais dos afetos e das paisagens psicossociais.
configuram uma estratégia de constituição de O território então passa a figurar o plano de
múltiplos territórios existenciais operados pela consistência dos afetos, que por sua vez são
capoeira. (ROLNIK, 2006) simulações do desejo no seu incessante movimento
Estas linhas de vida são convergências de de produzir intensidades/significados/personagens
personagens-capoeiristas, de passagens históricos, e agenciamentos, ou seja, de definir as formações do
de territórios significativos ocupados por esta campo social.
prática, de matérias de expressão cunhadas pela
E o território, no caso, não tinha nada a ver nem
vivência da capoeira suscitadas num enredo
com terra – circunscrição geográfica, nem com
rizomático. A idéia é investigar os movimentos
grupo- circunscrição de pertencimento. Território,
de des-re-territorialização destas linhas de vida
ali, designava máscaras, rituais, balizas de
e, por conseguinte, dos territórios existenciais
cartografia. As máscaras, os rituais, as balizas de
conformados a partir da capoeira ao longo do seu
cartografia – os territórios- configurações mais
processo de constituição enquanto crime, esporte,
ou menos instáveis, atravessam terras e grupos
cultura popular, espetáculo, cotidiano, entre
os mais variados: são transversais, transculturais.
inúmeras outras possibilidades.
(ROLNIK, 2006, p. 58)
[Artifício cartográfico. II] Como se
formula a ideia de territórios existenciais? Portanto, um território existencial dilata-
se, expande-se e contrai-se à medida que seus
Na cartografia sentimental esboçada por contornos vão sendo esboçados pelo movimento
Rolnik (2006), outras substâncias são incorporadas de simulação dos afetos. É como se virtualmente
na conceituação de território, que se dobra em pudéssemos conectar qualquer estrato operante
territórios existenciais, provocando a dilatação da no mundo a outro e definir um novo contorno e,
notação geográfica tradicional para as geografias portanto, um novo território existencial. Desta
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HANNAH ARENDT: Um fator se, a abolir a ação espontânea FERNANDO FERRAZ: A ascensão da
decisivo é que a sociedade, em ou a reação inusitada. [...] Mas a sociedade normalizada corresponde
à ascensão do econômico. O lugar
todos os seus níveis, exclui a sociedade equaliza em quaisquer
do político não é o do social, e
possibilidade de ação, que antes era circunstâncias, e a vitória da
as Ciências Sociais são as Ciências
exclusiva do lar doméstico. Ao invés igualdade no mundo moderno é do Comportamento, de modo que
de ação, a sociedade espera de cada apenas o reconhecimento político e quanto maior a população, menor
um dos seus membros um certo jurídico do fato de que a sociedade a possibilidade do político. Na
modernidade, a partir do caráter
tipo de comportamento, impondo conquistou a esfera pública,
científico da Economia, uma Ciência
inúmeras e variadas regras, todas e que a distinção e a diferença
Social ou do Comportamento,
elas tendentes a normalizar os seus reduziram-se a questões privadas quem não seguia as regras
membros, a fazê-los comportarem- do indivíduo. podia ser considerado associal e
relação de natureza criadora, inventiva e fluida como a roda, o cenário de bonecos sem rosto e
entre desejo e território emergem uma miríade o Forte3; toma-se a capoeira também como um
de coletividades, temporalidades, corporeidades, território existencial, e desta forma como o plano
territorialidades, práticas, discursos, saberes, de consistência de afetos em incessante movimento
enredamentos pulsantes de vida e de sentidos que de des- re- territorialização dos seus próprios
fundam múltiplas máscaras, ancoradas em diversos ritmos, rituais, circunscrições, intensidades e, desta
sistemas de valores. forma, de ininterruptas simulações de máscaras
Nos trajetos cartografados, alguns territórios engendradas sob determinadas formações sociais.
emergiram no sentido da espacialização dos III: Linhas de diálogos
processos de subjetivação inerentes à produção-
invenção da vida no espaço urbano. Nestas Estas linhas entram em jogo a partir de
narrativas cartográficas, a capoeira associada diálogos criados com alguns personagens que
ao sentido da experiência urbana de explorar vivenciaram o processo de ocupação do Forte de
diferentes trajetos para acessar o Forte - figuram Santo Antônio Além do Carmo e sua posterior
as transversalidades de terras e grupos, o plano transição para o Forte da Capoeira. Trata-se de um
de consistência dos afetos mobilizadores das processo de transvalorar as entrevistas realizadas
territorializações descritas. com estes personagens ao longo da pesquisa de
O plano de consistência dos afetos, enquanto campo, no sentido da interação dos discursos.
potência de produção incansável de mundos, de A partir de uma perspectiva polifônica operada
personagens, de práticas, de territorialidades, no agenciamento destas narrativas, propõe-se
promove um transbordamento das variáveis a abertura de lacunas e descompassos entre os
consideradas na formulação dos territórios. ritmos e os movimentos de cada discurso. A
Portanto, além de abordar a capoeira como emergência de lacunas e contrariedades, relativas
catalisadora de processos de territorialização, tais à compreensão de cada personagem, que também
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anormal. A equalização do espaço HANNAH ARENDT: Hoje, não podemos encontrar nos últimos
público deriva da hegemonia da apenas não concordaríamos com períodos da civilização romana,
esfera social no espaço público. A os gregos que uma vida vivida na embora dificilmente em qualquer
espetacularização tem uma espécie privatividade do que é próprio ao período da antiguidade grega, mas
de “mais do mesmo”, sendo que indivíduo (idion), à parte do mundo cujas peculiaridades multiformidade
os espaços públicos estão tomando comum, é “idiota” por definição, e variedade eram certamente
um caráter de igualdade, num mas tampouco concordaríamos desconhecidas de qualquer período
processo de economização do com os romanos para os quais a anterior à era moderna. [...] Na
espaço público. privatividade oferecia um refúgio opinião dos antigos, o caráter
apenas temporário contra os privado da privatividade, implícito
negócios da res pública. O que hoje na própria palavra, era sumamente
chamamos de privado é um círculo importante: significava literalmente
de intimidade cujos primórdios um estado no qual o indivíduo
assume outras conformações para adentrar este e passam a compor um agenciamento coletivo e
jogo. Uma construção relacional, aberta às afecções polifônico. Trata-se de uma estratégia de encaixe
recíprocas entre inúmeras linhas de vida e trajetórias das diferentes falas singularizadas pela experiência
engendradas no Forte. de cada personagem, numa multiplicidade. Os
Os diálogos abordam três momentos potentes mestres Moraes, Itapuã, Gildo Alfinete, Boca Rica e
de relações para se pensar a interação dos vetores Poloca são agenciados na multiplicidade <mestre>.
espetáculo-resistência, molar-molecular e cotidiano- Os integrantes do Ilê Ayê Vivaldo Benvindo do
território, eixos que direcionaram as reflexões sobre Santos e Vovô do Ilê agenciaram-se no <artista>;
as linhas trajetos. As linhas de diálogos conectam- o pesquisador e estudioso Fred Abreu transmuta-se
se em alguns momentos à narrativa cartográfica na multiplicidade <pesquisador>; os professores
acerca de passagens cotidianas e festivas vivenciadas de capoeira do CECA Nany, Aranha e Zoinho
no Forte. Articulam-se simultaneamente no mesmo agenciam-se na multiplicidade <professor>;
plano de observação as linhas da cartografia do e os diversos representantes das instituições
urbanismo, dos praticantes ordinários do forte e da governamentais envolvidas neste processo: Zé
cartógrafa-artesã. Virgílio (funcionário do IPAC e gestor do Centro
de Cultura Popular), José Augusto de Azevedo Leal
A perspectiva polifônica destes diálogos
(diretor do IPAC e superintendente da ONG Forte
interessa como dispositivo para tencionar planos
da Capoeira), Cleonel Pereira (presidente da ONG
e lentes de observação, confrontá-los no sentido
Casa das Filarmônicas) e Márcio Meirelhes (ex-
da instauração do conflito. A emergência de uma
secretário de Cultura do estado da Bahia) agenciam-
emoção conflitante é pertinente para análise do
se na multiplicidade <estado>, que no decorrer dos
processo de ocupação e transformação de um
diálogos desdobra-se em outras multiplicidades.
território, atravessado incessantemente pelo fluxo
da disputa. Os discursos produzidos a partir das questões
da artesã-cartógrafa desvelam intercorrências,
Os personagens perdem seus rostos, suas
conexões, convergências, discursos dentro de
expressões individualizadas, o timbre das suas vozes
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se privava de alguma coisa, em parte, se deve ao enorme função mais relevante – proteger
até mesmo das mais altas e mais enriquecimento da esfera privada aquilo que é íntimo – foi descoberta
humanas capacidades do homem. através do moderno individualismo. não como o oposto da esfera
Quem quer que vivesse unicamente Não obstante, parece ainda política, mas da esfera social, com a
uma vida privada – o homem que, mais importante o fato de que a qual, portanto, tem laços ainda mais
como o escravo, não podia participar privatividade moderna é pelo menos estreitos e mais autênticos.
da esfera pública ou que, como tão nitidamente oposta à esfera
o bárbaro, não se desse o trabalho social – desconhecida dos antigos,
de estabelecer tal esfera – não era que consideravam o seu conteúdo
inteiramente humano. Hoje não nos como assunto privado – como o é
ocorre, de pronto, esse aspecto a esfera política propriamente
de privação quando empregamos dita. O fato histórico decisivo é que
a palavra privatividade; e isto, a privatividade moderna, em sua
outros discursos, dispersando o sentido autoral em A investigação construída na perspectiva
polifonias. Ainda que estes personagens definam da “criação” de sentidos remete-se a uma prática
posicionamentos particulares, e que seus discursos cartográfica operada pelo corpo vibrátil (ROLNIK,
também se relacionem por rupturas e divergências, 2006) e pelo olho-molar (SALOMÃO, 2008)
o agenciamento coletivo é um dispositivo potente correlatos à dimensão da experiência. Estes
para abarcar os movimentos de convergência e dois artifícios agenciaram-se, nesta pesquisa, e a
divergência, sem, no entanto anular sua potência captura do estado de coisas realizou-se a partir
conflitiva. A sobreposição dos três territórios de movimentos do olho míssil- fóssil-câmera,
investigativos, roda- Forte- Salvador inserem as compreendidos como artifícios cartográficos que
questões relativas ao referido processo, numa entrecruzam planos e lentes de observação e as
discussão mais abrangente, focada sobre a produção circunstâncias do jogo da capoeira.
de espaços urbanos nas cidades contemporâneas, Esta captura, ao abrir planos simultâneos
as perspectivas patrimoniais e as políticas públicas de observação e ao alternar lentes por onde se
culturais. enquadra um território, pretendeu abarcar os
INTERRUPÇÃO DO JOGO > considerações finais movimentos de expansão e contenção dos corpos,
das expressões dos personagens e das energias
sociais mobilizadas na constituição dos territórios
“Cartógrafo”, quando querem os enfatizar que
existenciais. A pesquisa capturada entre o vibrátil e
ele não “revela” sentidos (o mapa da mina), mas
o molar, ou nos termos desta narrativa, o molecular
os “cria”, já que não está dissociado de seu corpo
e molar.
vibrátil: pelo contrário, é através desse corpo,
associado ao uso molar de seus olhos, que procura O ato cartográfico em questão revelou-se uma
captar o estado das coisas, seu clima, e para eles possibilidade de experimentação metodológica, à
criar sentido. (ROLNIK, 2006, p. 71) medida que a criação, neste caso abarcou também a
idéia de método, enquanto invenção circunstanciada
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CACÁ FONSECA: Na passagem nesta esfera? A autora fala muito HANNAH ARENDT: Esta igualdade
de Arendt que fala do caráter das condições de integrar ou ser moderna, baseada no conformismo
“acirradamente agonístico” da excluído da polis, mas não entra inerente à sociedade e que só é
possível porque o comportamento
esfera pública aparece a ideia no cerne do que eles faziam lá, ou
substitui a ação como principal
de público como produção da sobre o que se discutia.
forma de relação humana, difere
diferença, único lugar reservado em todos os seus aspectos, da
à individualidade, onde todos igualdade dos tempos antigos, e
poderiam mostrar o que eram. Mas especialmente da igualdade da
coloca um contraponto: diante da cidade-estado grega. Pertencer aos
poucos iguais (homoioi) significava
primazia da individualidade, como
ter a permissão de viver entre pares;
fica a constituição do comum
mas a esfera pública em si, a polis,
pelas capturas que se deram no decorrer da traçarem direções tangenciais absolutamente
pesquisa. A narrativa procedeu no ímpeto do jogo, imprevistas pelas estratégias de captura e definirem
do encaixa e desencaixa, da busca pelo golpe- outras linhas, outras cartografias.
estratégia- tempo apropriado à determinada O vir a ser outro pode ser associado ao devir,
circunstância. fluxo permanente, potência imanente aos processos
As linhas de trajetos traçaram conexões entre urbanos, ao engendramento de territórios e à
Porto, Aquidabã, Sé, Barbalho e Santo Antônio, emergência de outras configurações entre os vetores
bairros do entorno imediato do Forte; as linhas de forças. A investigação também é atravessada
de vida atravessaram personagens e territórios por este fluxo constante, e solicita uma atenção
entre Salvador e Rio de Janeiro e abriram canais comprometida da cartógrafa-artesã no sentido
de efetivação de territórios-existenciais ligados de, em algum momento estabilizar as lentes de
à capoeira como angola, patrimônio, cotidiano, observação, definir sobre que plano deterá seu olho
regional, crime, mito, identidade nacional; os câmera-míssil-fóssil e com quais dispositivos irá
diálogos produziram a sobreposição de linhas experienciar este campo de forças.
da cartografia do urbanismo e dos praticantes O ato cartográfico territorializou-se, constituiu
ordinários numa atmosfera conflitante e polifônica. um território investigativo, idéia avessa à noção
Inúmeras outras linhas, outras cartografias de um território a priori, no qual se pode adentrar
não foram abarcadas por estes planos de a partir de uma fronteira pré-determinada. O
observação, escaparam a nossa captura. O horizonte território enquanto ato configura-se à medida que se
metodológico definido pela lógica da incompletude caminha, encontra as singularidades de cada trajeto,
assimila a idéia destas linhas virem a ser outros escapa numa linha de fuga e deflagra a experiência,
diálogos, outros trajetos e outros personagens. a dimensão do vivido. Uma experiência implicada
Destas se desdobrarem em movimentos pelas num determinado campo de forças, onde as lentes
margens, virar ou-tros seres (SALOMÃO, 2008), de observação alternaram-se entre míssil, fóssil e
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era permeada de um espírito ÍCARO VILAÇA: A noção de esfera público se efetivar – configura
acirradamente agonístico: cada pública como o lugar de produção a hegemonia da esfera social
homem tinha constantemente que da diferença, reservada à no espaço público, em que são
se distinguir de todos os outros, individualidade, retoma a fala de reduzidas as suas possibilidades, a
demonstrar, através de feitos ou Paola na mesa-redonda “Errâncias, questão da descomplexificação, do
realizações singulares, que era ambiências e transurbâncias”. desaparecimento da alteridade e da
o melhor de todos. Em outras (FAUFBA, 2011) Ela tratava da privatização do espaço público.
palavras a esfera pública era eliminação da alteridade no espaço
reservada a individualidade; era público e podemos relacionar
o único lugar em que os homens com a ideia de privatividade (grega)
podiam mostrar quem realmente e enquanto privação. A privação
inconfundivelmente eram. do outro – que configuraria a
própria possibilidade do espaço
câmera direcionando-se simultaneamente para os Atribui-lhes sentidos fixos e homogêneos, compacta
planos molar e molecular. O território investigativo a espessura de uma complexa trama relacional de
delimita-se por fronteiras e singularidades e saberes-poderes-modos de subjetivação.
também desencaixa o cotidiano da cartógrafa, Compreender a emergência destas linhas
insere-a noutro campo de experiências. duras na perspectiva relacional das micropolíticas é
Neste caso, a cartógrafa- artesã movimenta-se tarefa árdua. O plano molar é delineado por traços
entre fluxos de vida, estratifica-se pelo estado de contundentes, de natureza dubiamente rígida e
coisas, recoloca as individualidades em instâncias flexível, capaz de assimilar as singularidades mais
de poder, tais como <mestre>, <professor>, dissidentes e convertê-las em imagens sem malícia
<estado>, <pai>, <capitão do mato>, <artista> nem malandragem. A narrativa cartográfica propôs
e depara-se com um campo de forças, permeado a apreensão das opacidades, no sentido de não
pela noção de jogo. Os agenciamentos e as se deter sobre o que se vê com o olho-câmera.
multiplicidades operados nestas instâncias de poder Entretanto, é relevante, compreender que a força
funcionam como artifícios, estratégias de encaixe e mobilizada pelas hegemonias e pelas contra-
desencaixe de discursos e territorialidades, como o hegemonias tem potencial de inserção e de produção
forte-ruína e o forte-patrimônio. de espaços absolutamente distintas.
A tônica da narrativa pretende não enquadra- A idéia do não enquadramento depara-se
la numa perspectiva absolutamente estabilizada, como a contundência destas linhas, a exatidão de
compreendendo que mesmo diante da estabilidade, suas direções, a dimensão fixa das suas definições
operam vetores de diferenciação. Entretanto, a espaciais, a capacidade de medir, estriar e provocar
produção de territórios sob o viés hegemônico rupturas ao encontrar outras linhas de vida. No
do vetor espetáculo, transversal aos processos de Forte, percebeu-se a interferência da dimensão,
constituição da capoeira-patrimônio, imobiliza direção e natureza destas linhas no momento
algumas dimensões espaço-tempo no Forte. da constituição da ONG Forte da Capoeira e
141
142
relação entre “homogeneização ÍCARO VILAÇA: Os processos de DIEGO MAURO: Isto reforça o
das sensibilidades” e a privação espetacularização atuam reduzindo comportamento, volta para o social
do público que seria a privação
as possibilidades (privação). em oposição à ação.
da própria individualidade, uma
Privatização e idiotização do
vez que o público na noção grega
é a realização da individualidade. público se relacionam com a ideia
E por fim insisto na pergunta, se de descomplexificar e homogeneizar,
a esfera pública era reservada proposta por Paola.
à individualidade, como se dá a
passagem da individualidade para o
comum?
que apertam as mãos e saem da roda. Ao deixar não subseqüentes e, de incompletas e inconclusas
este território onde a disputa espreitou a exatidão conexões.
do ataque, e ao espreitá-la converteu movimentos
em interações, suas direções em assimilações e
Notas
deslocamentos do sentido do movimento do outro.
1
A esquiva é o argumento central desta dissertação, representa
Em se tratando de um jogo onde tantos
dentro do vasto repertório da capeoira, um movimento de defesa,
impasses se colocaram e tantos movimentos mas uma defesa situada num intermezzo entre defender-se e
engendraram hegemonias e contra-hegemonias, preparar-se para o próximo ataque. O corpo flexiona-se, ora
ouve-se o chamado do berimbau, o toque que suavemente, ora agressivamente, impulsionado pela vibração
anuncia a interrupção. As matérias de expressão do arame do berimbau e pelo alcance do movimento disparado
pelo outro capoeirista. Os limites entre ataque e defesa diluem-
apreendidas nesta investigação e resignificadas nesta
se compondo um campo de forças constantemente definido
narrativa cartográfica assumem, nos momentos
pelos componentes do risco, da eminência de algo por vir e da
finais deste jogo, uma saturação dos movimentos. ruptura. Este texto expõe estritamente as ferramentas adotadas na
A música anuncia o término, os instrumentos construção metodológica do trabalho, para acessar o trabalho na
comunicam-se entre si pelos olhares dos capoeiristas íntegra consultar. <http://www.laboratoriourbano.ufba.br/?menu=8
na bateria que avisam uns aos outros o momento da &conteudo=73&submenu=23>. (FONSECA, 2007)
interrupção. 2
Siglas das principais instituições analisadas nesta investigação:
Por vezes, chama-se os jogadores ao pé do CECA: sigla do Centro Esportivo de Capoeira Angola, a academia
coordenada por Mestre Doutor João Pequeno de Pastinha;
berimbau para interromperem, outras vezes não,
e GCAP: sigla do Grupo de Capoeira Angola do Pelourinho,
interrompe-se com o jogo correndo solto. E num coordenado por Mestre Moraes.. Referem-se a duas escolas de
“de repente” praticamente acordado entre todos ali capoeira cujas trajetórias no Forte serão abordadas detalhadamente
dispostos, a roda fecha-se num sonoro iê, acentuado ao longo deste trabalho. Por ora, basta sabermos que se trata de
na vogal final. Fechamento numa imagem duas instituições absolutamente centrais no mundo da capoeira e
turbilhonar e não cíclica, de vetores emaranhados e mais pontualmente, no referido Forte.
143
HANNAH ARENDT: O termo mesmo as maiores forças da vida de experiências individuais. [...] No
público denota dois fenômenos íntima – as paixões do coração, os entanto, há muitas coisas que não
intimamente correlatos, mas não pensamentos da mente, os deleites podem suportar a luz implacável
perfeitamente idênticos. Significa em dos sentidos – vivem uma espécie e crua da constante presença de
primeiro lugar, que tudo o que vem de existência incerta e obscura, outros no mundo público; neste,
a público pode ser visto e ouvido a não ser que, e até que, sejam só é tolerado o que é tido como
por todos e tem a maior divulgação transformadas, desprivatizadas e relevante, digno de ser visto ou
possível. Para nós, a aparência – desindividualizadas, por assim dizer, ouvido, de sorte que o irrelevante
aquilo que é visto e ouvido pelos de modo a se tornarem adequadas se torna automaticamente assunto
outros e por nós mesmos – constitui à aparição pública. A mais comum privado.
a realidade. Em comparação com dessas transformações ocorre na
a realidade que decorre do fato de narração de histórias e, de
que algo é visto e escutado, até modo geral, na transposição artística
3
No trajeto Pelourinho > Carmo, deparei-me com uma
montagem cenográfica composta por duas imagens
construídas com os apetrechos do capoeirista e da baiana de
DELEUZE, Gilles GUATTARI, Felix. Mil Platôs,
Capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora
acarajé. Junto do primeiro, vê-se um berimbau, sem afinação
34, 1997. v. 2.
ou sonoridade capaz de provocar o jogo e uma peruca com
um volumoso cabelo rastafári preto; em frente à segunda há DELEUZE, Gilles. ¿Que és un dispositivo? In: BALBIER,
um tabuleiro, que nada tem para ser experimentado, sequer E. Michel Foucault, filósofo. Tradução Wanderson
está envolvida pelo cheiro do óleo de dendê. Tal aparição Flor do Nascimento. Barcelona: Gedisa, 1990..
foi problematizada a partir da relação imagem x espetáculo GUATARRI, F.; ROLNIK, S.. Micropolítica.
(DEBORD, 1997) x produção de territórios urbanos na Cartografias do desejo. Petrópolis: Editora Vozes,
contemporaneidade. 2005.
4
Volta do mundo é um movimento da capoeira definido FONSECA, Carolina. Esquivas entre o Forte da
pelo movimento circular dos capoeiristas, cuja atenção, Capoeira e o Forte do Santo Antônio Além do
movimentos, braços, balanço direcionam-se para o centro da Carmo: umas cartografia sobre resistência e
roda, caminham em círculo na cadência da bateria, como se espetáculo em Salvador. 2009. 194 f. Dissertação
estivessem se perseguindo e de repente invertem a direção (Mestrado) - Programa de Pós- graduação em
do caminham, inscrevendo no círculo duas direções opostas.
Urbanismo, da Universidade Federal da Bahia, Salvador.
2009.
Este movimento é acionado em diversos momentos, seja pela
desvantagem de um jogador em relação ao seu adversário, FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de
seja pelo êxtase de um golpe certeiro, pela intenção de Janeiro: Editora Graal, 1999.
retomar a atenção e do autocentramento, mas sobretudo pelo
ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental:
ímpeto de desestabilizar um certo andamento e vantagem de transformações contemporâneas do desejo. Porto
um jogador sobre o outro e inverter o destino do jogo. Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2006.
SALOMÃO, Wally. Gigolô de bibelôs. Rio de Janeiro:
Rocco, 2008.
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ADALBERTO VILELA: No espaço da THAIS PORTELA: O lugar do discurso pública de Arendt (referenciada
internet, na rede, ou dispositivo na polis era fundamental, o lugar na experiência grega), pois, neste
como Fernando sugeriu, a escuta
da fala, mas principalmente o da dispositivo não há escuta, todos
é a possibilidade de escolher
escuta. Quando algum cidadão falam ao mesmo tempo. Não dá
os caminhos, de entrar e sair
dos lugares onde as pessoas assumia o lugar da fala e não se pra escutar todo mundo. É uma
disponibilizam a informação. afirmava efetivamente enquanto mudança de escala, a palavra tinha
uma individualidade que merecesse que ser ouvida no mundo grego.
a escuta, os demais tampavam os
ouvidos para não escutá-lo. E neste
sentido, questiono a aproximação
das redes sociais com a esfera