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Daisy Peccinini

Brecheret
e a Semana

REVISTA USP • São Paulo • n. 94 • p. 39-48 • JUNHO/JULHO/AGOSTO 2012 39


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dossiê Semana de Arte Moderna

RESUMO

O protagonismo do escultor Victor Brecheret na realização da Semana de


22 define-se por sua contribuição como importante precursor do evento.
Brecheret é o elemento polarizador do grupo dos futuristas de São Paulo
desde sua descoberta por eles em janeiro de 1920. A análise de suas obras
expostas na Semana mostra a excelente formação na Itália junto a Arturo
Dazzi e a importante influência de Ivan Mestrovic. Os destaques da crítica
italiana a suas esculturas, em mostras coletivas em 1916 e 1919, em Roma,
comprovam as qualidades do jovem escultor, muito seguro e determina-
do em relação a sua arte, e são credenciais para que Brecheret seja uma
bandeira de luta, um trunfo dos modernistas. Mesmo ausente do país, em
Paris desde julho de 1921, o conjunto de suas esculturas ressoa no saguão
do Teatro Municipal a marcante presença do escultor, que plasmava em
greda e gesso os ideais dos modernistas de São Paulo.

Palavras-chave: Victor Brecheret, grupo futurista de São Paulo, crítica


italiana.

ABSTRACT

Victor Brecheret was a protagonist in the making of the 1922 Modern Art Week,
as he played the role as an important forerunner of that event. Brecheret is the
one polarizing the group of futurists in São Paulo since they discovered him in
January, 1920. The analysis of his works exhibited during the Modern Art Week
denotes his excellent training in Italy under Arturo Dazzi and the important
influence from Ivan Mestrovic. Italian critics heaped praise on his sculptures
in collective exhibitions held in 1916 and 1919 in Rome, which confirmed the
qualities of the young sculptor, very confident and determined as regards his
art, and turned Brecheret into an ensign or trump card of the modernists.
Although he had been in Paris since July 1921 – therefore out of the country
during the Modern Art Week – the group of his sculptures exhibited in the hall
of the Municipal Theater was a sign of the remarkable present of the sculptor,
who shaped the ideals of the modernists from São Paulo in clay and plaster.

Keywords: Victor Brecheret, São Paulo futurist group, Italian criticism.

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O
catálogo da exposi- as pequenas peças: Ídolo (no 4), que trouxera DAISY PECCININI
é professora do
ção de artes plásti- da Itália; Sapho (no 9), estilizada e contorcida Programa de
cas da Semana de figura, encomendada por Paulo Prado; e Vic- Pós-graduação em
Estética e História
Arte Moderna, ela- tória (no 12), alongada imagem feminina ala- da Arte do MAC-USP.
borado por Emilia- da, reprodução em bronze da que finalizava
no Di Cavalcanti, é o cortejo dos bandeirantes na primeira ma-
indicativo do prota- quete em gesso do Monumento às Bandeiras.
gonismo do escultor Victor Brecheret na rea- Medianas esculturas se faziam presen-
lização do explosivo evento. A lista de obras tes – vigorosas e impactantes cabeças, como
de escultura é encabeçada por doze obras do Sóror Dolorosa (no 3), em mármore, enco-
artista, formando um conjunto de marcante menda de Guilherme de Almeida, inspirada
presença no saguão do Teatro Municipal du- no seu livro de poesias de mesmo nome, in-
rante os três agitados dias entre 13 e 17 de sólita composição de duas cabeças que se de-
fevereiro de 1922. O artista estava ausente do frontam em uma relação de olhares vertical.
país, em Paris, desde julho de 1921, pensio- Havia a Cabeça de Mulher (no 7), em pedra
nado pelo governo paulista por cinco anos, de França, de Paulo Prado, um rosto de fei-
mas presente com suas obras. ções de impressionante expressividade, qua-
Na verdade, era uma destacável contri- se agressiva, mediante músculos tensos em
buição, como importante precursor da Se- esforço, ressaltados, e malares salientes, e a
mana de 22. Tornara-se Brecheret o polo do Cabeça de Cristo (no 7), de bronze polido, de
grupo dos futuristas de São Paulo. Um trunfo Mário de Andrade, a face funérea, emoldura-
dos modernistas. As peças modernas apre- da por duas trancinhas e a boca semiaberta,
sentadas materializavam os ideais e a nova que causou polêmica na família e um estado
sensibilidade que buscavam e que lutavam de inconformismo do poeta, que faz jorrar
por implantar. Ali estava Gênio, Ângelus, Só- os seus primeiros versos livres, publicados
ror Dolorosa, Ídolo, Regresso, Pietá, Cabeça com o nome de Pauliceia Desvairada1. A
de Mulher, Cabeça de Cristo, Sapho, Torso, presença de Brecheret na Semana de Arte
Baixo Relevo, Victória. Deve-se observar de 1922, testemunhada pelas obras, pode ser
que somente Anita Malfatti e Brecheret ex- considerada a culminação de um processo de
puseram doze obras, os demais artistas apre- interação entre o escultor e sua arte com o
sentaram um número menor de trabalhos. grupo dos jovens inquietos futuristas de São
A análise das obras de Brecheret na Se- Paulo. O jovem artista e Anita Malfatti foram
mana demonstra o domínio do escultor de to- importantes precursores da Semana.
das as modalidades da escultura e de sua lin- De fato, no período que antecede a rea­
guagem: desde a ordem monumental às peças lização da Semana de Arte Moderna, o
de tamanho natural e pequenas peças, além cenário intelectual e artístico provinciano
de incluir um relevo. De grandes dimensões, paulista contou com a presença de dois ar-
o gesso Gênio (no 1 da lista de obras) impac- tistas plásticos, Anita Malfatti, na pintura, e
tara os modernistas ao descobrir o ateliê do Victor Brecheret, na escultura, que, vindos
artista isolado numa das salas do Palácio das da Europa, mostram seus trabalhos, de forma
1  É bem conhecido esse
Indústrias, em construção. Figura monumen- sucessiva: em 1917, as pinturas de Anita na momento de criação
tal, de forte carga simbólica, porque simbo- exposição de Arte Moderna; em 1920, a vi- de Mário em conexão
liza o gênio de um povo, e grande expressi- são das esculturas de Brecheret em seu ateliê com a escultura de
Brecheret, mais co-
vidade, pela contorção do corpo alongado e e, no decorrer dos anos 1920 e 1921, a mostra nhecida como “Cristo
tensão do volume dos músculos expressivos. ao público da maquete para o Monumento às de Trancinhas”, relata-
do em sua conferência
Outras peças, em bronze, expostas, apesar Bandeiras e do mármore Eva, provocando o “Movimento Moder-
de menores dimensões, emanam força e ex- desencadear de fatos que levariam à Semana nista”, em Aspectos da
Literatura Brasileira,
pressividade pelos recursos de estilização de de 22, polarizando os ideais de transforma- São Paulo (Andrade,
alongamento e contorção das figuras, como ção e aggiornamento. s./d., p. 223).

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Deve-se ressaltar que, se dois artistas lo XX, configurou-se a presença de maciço


plásticos foram o estopim da Semana, as contingente de imigrantes italianos ou des-
primeiras iniciativas de modernização das cendentes de primeira geração aqui nascidos,
artes no país surgiram na esfera da literatu- sendo que 40% da população falava o italiano
ra, no início da década de 1910, certamente ou dialetos. Esse explosivo crescimento po-
sob a influência do “Manifesto Futurista” de pulacional urbano significou não só novas re-
1909, publicado em jornais do país e par- lações socioeconômicas como a emergência
ticularmente em São Paulo, onde despertou de um operariado, mão de obra da incipiente
interesse entre jovens intelectuais. industrialização – serralheria, vidrarias, te-
Nesse sentido, foi pioneiro Oswald de celagem, alimentos, mobiliários –, bem como
Andrade, que, em 1912, ao chegar da Euro- do setor de serviços. A expansão da área ur-
pa, fazia-se o “importador do futurismo” de bana foi multiplicada por novos bairros e vi-
Filippo Tommaso Marinetti, que conhecera las, implantando-se centenas de construções.
em Paris. De fato, o primeiro manifesto do O progresso e o dinamismo moderno da ci-
futurismo de Marinetti, de 1909, que pro- vilização material marcavam a cidade, mas
clamava “a liberdade das palavras”, fora pu- a cultura continuava a mesma do passado.
blicado em jornais do Nordeste, do Rio de Nesse contexto, os princípios do futuris-
Janeiro e de São Paulo, no mesmo ano e no mo, tais como a exaltação do presente, da
ano subsequente, sem maiores ressonâncias vida moderna, do progresso industrial, da
entre o público, que era informado “a título velocidade e das máquinas, são palavras de
de curiosidade”. Na continuidade, em 2 de ju- ordem estimuladoras por uma ruptura urgen-
lho de 1914, O Estado de S. Paulo publicava te e combativa com o passadismo para um
o artigo “As Lições do Futurismo”, conside- grupo de jovens intelectuais, literatos e artis-
rando o movimento uma vanguarda lógica e tas que passam a se denominar de os futuris-
benéfica. Em 1915, o mesmo Oswald publica, tas de São Paulo. Em 1911, Sergio Buarque
em O Pirralho, o artigo, “Em Prol de uma de Holanda, em Papel e Tinta, apontava a
Pintura Nacional”, que levantava questões disseminação das ideias futuristas de moder-
importantes, insatisfeito quanto ao processo nização e de renovação em São Paulo, dando
da pintura daquele momento que pensava o base ideológica à vanguarda que explodiria
moderno pela via do nativismo, sem abando- na Semana de 22.
nar os códigos formais da academia. A segunda exposição de pintura de Anita
Mais tarde, após o fim da Primeira Guer- Malfatti, em 1917, suscitou o polêmico artigo
ra Mundial, em que o Ocidente saiu transfor- de Monteiro Lobato, “Paranoia ou Mistifica-
mado, as palavras de ordem do futurismo, ção”. Publicado no Estado de S. Paulo, foi
inovação e modernização, estendem fortes um brutal ataque à obra de Anita e ao arraial
raízes em São Paulo. dos jovens modernistas. Monteiro Lobato era
Oswald, convertido ao futurismo, encar- um fervoroso nativista que, em prol das raí-
nava a reação contra o ecletismo, o simbolis- zes da cultura brasileira, nos moldes de uma
mo, o romantismo, o realismo importados da iconografia acadêmica, exaltava a pintura
Europa ou transmitidos pela Academia Na- de Almeida Jr. Se, de um lado, o ataque de
cional de Belas Artes. Entretanto, a radical Lobato serviu para unir as forças modernis-
modernização das artes seria alavancada no tas em defesa da jovem pintora – momento
cenário paulista pela convergência de outros em que Mário de Andrade passa a integrar o
fatores no contexto da cidade. Em São Paulo, grupo, que a cerca solidariamente –, por ou-
o importante evento se preparava e alterava a tro lado, a artista recuou e passou a viver um
cidade, que queria mostrar sua face moderna período de isolamento, de 1918 a 1921, longe
e de progresso com os festejos do Centenário das polêmicas que aconteciam nos jornais.
da Independência, proclamada na cidade. Por Em face dessa atitude, os jovens modernistas
outro lado, desde a primeira década do sécu- também se distanciaram de Anita.

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Victor
Brecheret,
Sapho, 1920-21;
ao lado,
Ídolo, 1919
Reprodução

Somente em 1920, surge em cena, no Independência, vencido pelo italiano Ettore


marasmo paulistano, um novo artista, Victor Ximenes. Era consabido que a maquete fora
Brecheret, um jovem escultor que desempe- realizada para o czar da Rússia, Alexandre
nhou um papel relevante no período heroico III, e com a revolução bolchevique, de 1917,
que antecede a Semana de 22. Sem bandeira Ximenes adaptara para o concurso brasileiro.
de luta, com o afastamento de Anita Malfatti, Com espírito crítico, os modernistas visita-
foi mesmo uma comoção para o grupo des- ram as obras do Palácio das Indústrias, não
cobrir Brecheret, nos idos de janeiro de 1920, se conformando com o ecletismo do século
em uma das salas do Palácio das Indústrias, anterior, que moldava o prédio tido como
edifício que se finalizava para abrigar a Ex- o ícone do progresso da cidade moderna e
posição Agroindustrial, marcando o progres- agroindustrial.
so de São Paulo, nos festejos do Centenário Foi lá que descobriram – solitário e des-
da Independência. conhecido – Victor Brecheret, talentoso es-
A cidade se engalanava para as come- cultor que se formara em Roma. Suas obras,
morações da Independência. Os modernis- de grande força expressiva e monumentalida-
tas mantinham-se cheios de tédio, pois não de, entusiasmaram os jovens futuristas, que
vislumbravam nada de moderno nas constru- o converteram em estandarte da batalha do
ções feitas para as festas, no que sobressaía o moderno. O artista – Vittorio, como se cha-
resultado do concurso para o Monumento da mava até 1922 – que tanto os entusiasmou

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definia-se como paulista, mas era italiano lista, expressiva e monumental, com citações
de nascimento. Em 1904, com 9 anos, órfão, arcaicas – egípcias e assírias –, tributária do
chegara a São Paulo, trazido pela tia mater- simbolismo e do art nouveau da Secessão
na. O menino, sofrido por perdas recentes e Vienense. Abordava temas heroicos e trági-
dramáticas da mãe e de dois irmãos, adotou cos da história da Croácia, fronteira de con-
a nova terra, a cidade de São Paulo, como flito do mundo cristão e muçulmano. A arte
sua pátria e local de origem. Com sua irmã de Brecheret tinha se estruturado nas bases
Ercilia, amparados carinhosamente pela tia clássicas, aproximando-se da escultura natu-
materna, Antonia Nanni, viveu em modestas ralista de Rodin e, mais ainda, da linguagem
condições, trabalhando desde a adolescência, arcaica, estilizada e heroica de Mestrovic.
época em que revelou seu desejo de ser escul- Brecheret tinha atingido a consistência ex-
tor. Durante dois anos, 1912 e 1913, seguiu os pressiva das formas estilizadas e contorcidas
cursos noturnos no Liceu de Artes e Ofícios: de Mestrovic, de intensa dramaticidade. Em
desenho, modelagem, cerâmica e entalhe em 1916, aos 22 anos, sentia-se maduro, domi-
madeira. Nesse período, modificou seu so- nando todas as técnicas da escultura. Deixou
brenome – nas duas matrículas aparecem o mestre Dazzi, instalou-se na Via Flaminia,
sobrenomes de Brecheretti e Brecheret, em 22, seu primeiro ateliê, que fora ocupado por
lugar de Breheret, como era o nome da fa- Mestrovic. Assim, o jovem Brecheret emula-
mília paterna. va com sucesso a prodigiosa capacidade de
Em 1913, com o apoio dos tios, viaja a trabalho do croata Mestrovic, que, em dois
Roma, mas não consegue ingressar na Escola anos em Paris, entre 1908 e 1910, criara nu-
Real de Belas-Artes por falta de estudos es- merosas esculturas para o Templo de Kosovo
pecíficos. Foi aceito como aprendiz no ateliê ou Monumento à Batalha de Kosovo, conce-
de Arturo Dazzi, renomado escultor do rei bido como um marco da identidade nacional
da Itália, que seguia a tradição da escultura dos povos eslavos do Sul, um monumento
naturalista de Auguste Rodin (1840-1917). exaltando a grande vitória do Império cris-
Roma, àquela época, apesar de não ser uma tão sérvio e outros eslavos sobre os turcos
capital artística internacional como Paris, otomanos, em 1386.
oferecia outras possibilidades. Veneza, com Mestrovic, em Paris, dedicou-se a reali-
suas bienais, e Florença, com a visão do Re- zar esse projeto político, simbólico e místico
nascimento, eram cenários movimentados e de vastas proporções, que previa centenas de
de interesse para os olhos do jovem Breche- esculturas em pedra, representando heróis
ret. Em Roma, bem como em viagens a Flo- nacionais, viúvas, cariátides, esfinges, etc.
rença, pôde estudar e conhecer a escultura No seu delírio artístico, empregou todo seu
clássica greco-romana e do Renascimento. extenso conhecimento técnico, movido por
Acima de tudo, observou os caminhos da es- grande energia de trabalho e incontestável
cultura moderna, iniciada por Rodin, e suas talento. Conseguiu fazer cerca de cinquenta
vertentes pós-Rodin. Em Veneza, conheceu esculturas, em dimensões supranormais, em
as obras de Émile Bourdelle e sua pesquisa tempo recorde. Deslocando-se para Roma,
de esculturas arcaicas, premiada na Bienal de recebeu o prêmio de escultura na Exposição
1914. De todos os modernos escultores, quem Internacional de 1911 com esse impactante
Brecheret mais admirava era Ivan Mestro- conjunto de obras, marcando o início de seu
vic, croata, vencedor do prêmio da Exposição reconhecimento internacional.
Internacional de Roma de 1911, que fixara Brecheret acompanhava com entusiasmo
seu ateliê na cidade. Mestrovic era um re- a arte do croata, de assombrosa força plásti-
belde, contrário ao domínio austríaco sobre ca e simbólica, marcando-lhe a sensibilida-
seu país, bem como sobre os demais povos de. Sorveu não só a plástica mestroviciana,
eslavos do Sul – sérvios, montenegrinos e vigorosa, monumental, tensa pela contorção
albaneses. Produzia uma escultura naciona- dos volumes, mas também se abriu ao ima-

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ginário épico patriótico, de heróis, vitórias, provinciano de São Paulo, que o fez sentir-
gênios da nacionalidade – da saga do povo -se desajustado. Sem contatos no meio ar-
croata. A experiência do contato com Mes- tístico, totalmente acadêmico, contou com o
trovic habilitou-o para responder, poucos apoio de Ramos de Azevedo, que conhecia
anos depois, plasticamente, aos anseios dos dos tempos de aluno do Liceu de Artes e
modernistas de ver plasmado um monumen- Ofícios. Instalou o seu ateliê numa das salas
to grandioso para a saga dos bandeirantes, do Palácio das Indústrias, cuja construção
formadores da nação. se finalizava para as comemorações da In-
Brecheret possuía impressionante domí- dependência, e passou o ano de 1919 soli-
nio técnico dos materiais da escultura, da tariamente. Sendo incansável trabalhador,
modelagem, talento para desenvolver estra- modelava em barro impressionantes figuras
tégias formais de estilizações e de volumes, e heroicas de simbolismo de raiz mestrovicia-
depressões de músculos tensos, contorcidos, na: heróis, gênios da nacionalidade, fonte da
provocando efeitos de violenta dramaticidade nação. Essas obras causaram grande impacto
e tensão exasperada, aliada à qualidade mo- em alguns jovens modernistas. É bem conhe-
numental. Começou a destacar-se em Roma cido o importante acontecimento para os ru-
por essas qualidades, desde sua primeira par- mos da história da arte moderna no Brasil:
ticipação em uma mostra coletiva, em 1916. a “descoberta” do escultor pelos jovens inte-
A crítica romana destacou as obras do lectuais e artistas Emiliano Di Cavalcanti,
escultor precoce num ambiente e numa épo- Helios Seelinger e Oswald de Andrade.
ca em que se considerava um demérito a ju- Menotti del Picchia o recordará, anos de-
ventude dos escultores. Foi elogiado como pois (19 de dezembro de 1955), no Diário da
elemento promissor, os críticos ressaltavam a Noite, de São Paulo:
linguagem vigorosa do gesso Il Risveglio (O
Despertar), de 1916. É importante ressaltar “[…] Foi então que Mário de Andrade me
que o seu sucesso inicial teve ecos em São anunciou o fenômeno.
Paulo, sendo a foto de Il Risveglio publicada – ‘Descobrimos um escultor fabuloso. Está
no jornal O Estado de S. Paulo, acompa- no Palácio das Indústrias. É, porém, uma
nhada de texto elogioso traduzido do artigo fera!’
publicado no Corriere d’Italia, transcrito […] Naquele prédio do Estado, para abrigar a
com o título de “Escultor Paulista”. Tiveram arte estranha deste paulista taciturno e hostil,
sucesso seus trabalhos, presentes em outra fechado numa prevenção agressiva contra o
coletiva, em 1919, ao fim da Primeira Guerra tremendo mundo plástico adocicado e acadê-
Mundial, a “Mostra degli Stranieri alla Casi- mico em que se encontrara aqui.
na del Pincio”, na qual mereceram destaque Fomos num bando alegre – Mário, Oswald e
suas obras Eva – gesso que foi muito bem Di Cavalcanti – ver o gênio feroz. Lá estava
recebido –, bem como Estudo para Esfinge e ele junto de suas estátuas, umas já moldadas
a Medalha Comemorativa do Centenário da em gesso, outras na carne viva da greda, em
Independência do Brasil, adquirida por duas plena elaboração. Fomos todos exagerada-
instituições: Reggia Scuola di Roma e Museu mente exclamativos. Explodimos em admi-
de Haia, na Holanda. Os jornais L’Epoca e ração. Os monstros plásticos, mestrovicianos,
Il Messagero comentaram positivamente sua que ele plasmava, pareciam-nos outros tantos
Eva, destacando o vigor plástico das massas, ‘escravos’ de Miguel Ângelo ou ‘pensadores’
aliado ao dinamismo dos volumes. de Rodin.
De volta a São Paulo, no começo de mar- – ‘Formidável!’
ço de 1919, no primeiro navio que cruzava Nosso entusiasmo espantou ainda mais o es-
o Atlântico após o Tratado de Paz, sentia- cultor taciturno…
-se seguro de sua obra, elogiada pela crítica […] É fácil imaginar que afinal nos entende-
italiana. Mas defrontou-se com o ambiente mos. Mais do que isso: irmanamo-nos. Bre-

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cheret passou a ser o fulcro de polarização Cabeça de Cristo – peça em bronze, também
de nossa revolta, uma espécie de bandeira chamada Cristo de Trancinhas, de 1919-20
vermelha içada pela nossa ânsia de renova- – ser responsável pelo estado de espírito que
ção, pela nossa próxima insurreição. O es- desencadeou no poeta o “estouro” dos versos
cultor – o mais neutro dos artistas, pois era livres de Pauliceia Desvairada, como o pró-
ele o único plástico do gênero – servia como prio autor testemunhou mais tarde na citada
um denominador comum do grupo, evitando, conferência sobre o movimento modernista.
assim, na chefia, as fatais rivalidades […]. O sentimento nativista dos modernistas,
Foi o ponto de partida de um movimento de no contexto dos festejos do Centenário da
renovação que com Mário e Oswald havía- Independência, teve em Brecheret uma res-
mos começado […]”. posta pontual: o projeto do Monumento às
Bandeiras. Inspirado pelos relatos dos jovens
Atraídos pelas obras monumentais de sobre a saga dos bandeirantes e a expansão
forte e dramática expressão, os jovens futu- territorial do país, Brecheret somou-se ao es-
ristas converteram Brecheret em elemento pírito exaltado de nacionalidade que o atraíra
polarizador das inquietações e anseios dos na escultura de alegorias patrióticas de Mes-
inconformados com o gosto generalizado trovic e pensou o Monumento às Bandeiras
pelo estilo fin de siècle. Comparada com a como o altar da nacionalidade. Ali, a exalta-
mesmice do meio, a obra de Brecheret foi ção dos formadores da nação e do território
considerada nova, moderna e arrojada. se faria com violenta expressividade e uso de
A “descoberta” de Brecheret tirou-o de alegorias – gênio da nacionalidade, vitória,
seu isolamento no Palácio das Indústrias, insídias no sertão, acompanhando o cortejo
convertido em estandarte de guerra do mo- dos bandeirantes.
dernismo em estado embrionário, em decor- Exposta em 28 de julho de 1920, a ma-
rência do encantamento e do entusiasmo que quete em gesso vinha acompanhada por um
os jovens futuristas sentiam diante de seus memorial explicativo, manuscrito por Mário
trabalhos monumentais modelados em barro, de Andrade. Era o primeiro momento de um
nos quais percebiam uma escultura poderosa sonho nativista, ao qual o escultor iria dedicar
e nova. Mário de Andrade confirmaria, dé- décadas de sua vida até realizá-lo. Plastica-
cadas depois, em depoimento-conferência de mente, o projeto do Monumento às Bandei-
1942, proferido na Casa do Estudante, no Rio ras era uma proposta inovadora, confrontan-
de Janeiro, o impacto da obra de Brecheret do-se, na época, com o medíocre projeto de
no período heroico que antecede a Semana Ettore Ximenes, vencedor do concurso de
de Arte Moderna de 1922. O jovem escultor, 1917 para o Monumento da Independência
de temperamento retraído e totalmente con- do Brasil, que foi mal recebido pelo meio
centrado em sua arte, marcou de tal forma e cultural, ainda mais porque Ximenes teve
força a sensibilidade criativa de seus compa- de completá-lo com elementos da história da
nheiros, que virou personagem dos romances emancipação brasileira, tamanha era a des-
de Oswald de Andrade, Estrela de Absinto, caracterização das esculturas que obedeciam
no qual encarna o escultor Jorge D’Alvellos, à tradição italiana do fim do século XIX.
e de Menotti del Picchia, O Homem e a Mor- O fato causou indignação nos arraiais
te, no qual é o arquiteto Criton. dos modernistas, como também fora do seu
Em sentido contrário, o artista concre- círculo. Monteiro Lobato, por exemplo, o im-
tizou em mármore e em bronze as obras placável crítico da exposição de vanguarda
literárias de Guilherme de Almeida, Sóror de Anita Malfatti em 1917, marco inicial do
Dolorosa, e de Menotti del Picchia, Másca- processo modernista, converteu-se em ad-
ras. Resume essa interação de sensibilidades mirador de Brecheret. Escreveu o artigo “As
exaltadas pela convivência, o fato de a aqui- Quatro Asneiras de Brecheret”, publicado na
sição, por Mário de Andrade, de sua obra Folha da Noite, em 16 de abril de 1921, e

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Cecília Bastos/Jornal da USP

Victor Brecheret,
Monumento
às Bandeiras

com ácida ironia se refere a Ximenes, bem sendo-lhe concedida a bolsa do Pensionato
como à falta de reconhecimento do talento de Artístico do Estado por cinco anos.
Brecheret no contexto paulistano: O escultor deixou o círculo dos modernis-
tas em junho de 1921. Foram um curto perío-
“[…] Segunda Asneira: voltar ao Brasil con- do, mas muito agitado, esses quase dois anos
vencido de que pelo simples prestígio do seu de convivência com os futuristas. Um período
talento todas as portas se abririam. A dura durante o qual Brecheret foi muito prestigiado
rea­lidade fez-lhe ver o contrário: as portas só pelos ardorosos amigos do grupo por meio de
se abrem com gazuas e gorjetas. O talento úni- artigos publicados em jornais que destacam
co que por cá tem cotação é o dos negocistas a arte e a personalidade do escultor que mar-
sem escrúpulos que subornam por meios dire- cou o ambiente paulistano. A chegada de Eva,
tos e indiretos, verbi gratia, o grilo Ximenes”. um mármore realizado na Itália, exposto na
cidade em 1921, pouco antes de sua partida,
Os louvores entusiastas dos jovens futu- e adquirido pela Prefeitura de São Paulo no
ristas, somados aos de outros intelectuais, mesmo ano, dá bem a medida da celebridade
não fizeram, porém, com que a maquete do do jovem Brecheret entre os intelectuais, os
Monumento às Bandeiras, oferecida ao go- artistas e a elite paulistana. Monteiro Lobato
verno paulista, tivesse continuidade quanto à não economizou elogios a Eva citando-a em
sua realização. Washington Luís, governador seu artigo na “quarta asneira”:
do Estado, enviou-a para o acervo da Pinaco-
teca do Estado, extinguindo-se aí a iniciativa “[…] como, por exemplo, a de não expor a
de se fazer uma subscrição pública para a sua sua ‘Eva’ logo ao chegar a São Paulo, fazen-
execução. Para Brecheret, não era um assun- do-o agora quando se retira de novo para o
to encerrado, mas a motivação do empenho Velho Mundo.
de toda a sua vida, que acabou por realizar Porque esta magnífica escultura devia até
no começo da década de 50. Em busca de precedê-lo aqui como a credencial indiscu-
aprimoramento para realizar o sonhado mo- tida e indiscutível do seu grande valor como
numento, desejou retornar à Europa, a Paris, artista do mármore. Viria dar-lhe na opinião

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dossiê Semana de Arte Moderna

pública um fortíssimo pedestal ao seu nome egrégora dos modernistas no momento da ar-
e impô-lo de maneira irrevogável. ticulação da Semana de Arte Moderna. Mas,
A mais séria obra de escultura que até hoje mesmo a distância, deu forças ao movimento.
apareceu em São Paulo foi também uma ‘Eva’, A notícia de que a obra Templo de Minha
de Rodin. Pois bem, diante da ‘Eva’ de Bre- Raça fora aceita no Salon d’Automne, poucos
cheret, ora exposta na Casa Byington, perde meses após sua chegada a Paris, foi divulga-
a de Rodin primado e passa a ser sombreada da com entusiasmo por Menotti del Picchia,
por uma rival igualmente obra-prima […]”. em “Brecheret no Salon de Paris”, no Cor-
reio Paulistano de 3 de novembro de 1921,
Mário de Andrade faz votos de que seu vaticinando os triunfos que Brecheret alcan-
aprimoramento leve-o a construir uma escul- çaria posteriormente.
tura nacional, de tipos brasileiros, no artigo Brecheret, mesmo a distância, era a mais
de despedida publicado no Jornal de Deba- importante bandeira de luta para a instau-
tes em 18 de abril de 1921. ração da nova arte que a Semana de Arte
Com sua partida, Brecheret afastou-se da Moderna de 1922 desencadeou.

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