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DISCIPLINA: Introdução à Filosofia: Filosofia da Ciência e Epistemologia

CÓDIGO: FIL029 (CICH)


ALUNO: André Nascimento Ladeira

MATRÍCULA: 2020051138

Relação entre epistemologia e autoritarismo em Karl Popper

Karl Popper em toda sua obra trata de dois eixos temáticos: a filosofia da
ciência, em que ele elabora o conceito de Racionalismo Crítico e a filosofia política, em
que ele desenvolve conceitos como o paradoxo da democracia e o paradoxo da
tolerância. O que proponho fazer nesse trabalho é analisar a confluência entre essas
duas temáticas e fazer uma síntese dela. Contudo, primeiramente, é fundamental
elucidar alguns conceitos da filosofia epistemológica de Popper para tornar a análise
mais clara.

Para começar minha linha de pensamento, irei delimitar, em linhas gerais, a


teorias epistemológica do filósofo. Portanto, começarei por diferenciar o pensamento
indutivo do racionalismo crítico de Popper. Em “Introdução à lógica da ciência”, no
primeiro capítulo, o filósofo propõe-se a criticar o método indutivo, perspectiva usada
pelos neopositivistas na demarcação do princípio que diferenciam a ciência de outras
formas de saber. Assim, ele define que o princípio da indução tem como método a
condução lógica de um enunciado primeiro, provindo de uma observação empírica, até
um enunciado maior, que é a hipótese ou teoria do cientista. Contudo, Popper percebe
que o próprio princípio da indução tem uma contradição, pois ele por si só é a
justificativa para podermos inferir uma proposição maior de uma menor adquirida
empiricamente, mas o que justifica que podemos fazer isso é o próprio princípio da
indução. Dessa forma, ele estaria justificado em si mesmo, o que certamente
apresenta uma coerência interna muito fraca e, portanto, insuficiente para se fazer
ciência. Popper também critica essa visão por achar que tudo que provém do
pensamento metafísico seria “vazio” e “sem sentido”, não sendo significativa, o que,
para os neopositivistas quer dizer que não pode ser reduzido a proposições
elementares. Essa concepção apresenta uma ideia de lógica indutiva – considera a
validade de uma proposição em sua origem na observação empírica – e sobre esta já
foi exposto anteriormente a falha metodológica. Para Popper, a distinção que pode se
fazer entre a ciência e a metafísica é que a última não é empírica. Isso, porém, não
pressupõe juízo de valor.

Um exemplo que o filósofo usa para expor as dificuldades desse método é o


dos cisnes, segundo o qual ao observar alguns cisnes brancos e perceber que todos
os cisnes vistos até então são brancos, pode-se concluir que todos os cisnes são
brancos. Nesse caso, os neopositivistas como Reichenbach, que Popper cita, dizem
que mesmo que não seja possível ter certeza quanto à verdade ou a falsidade a partir
da observação de diversos cisnes brancos, pode-se atingir altos níveis de
probabilidade de que aquela situação se repita posteriormente. Contudo, Karl Popper
rejeita esse princípio probabilístico ao dizer que a própria afirmação de que se pode
atribuir grau de probabilidade a inferências indutivas teria de se originar de uma
inferência indutiva, gerando uma situação de regressão infinita que é insuficiente para
justificar toda a ciência. Além disso, ele também realça que não é satisfatório saber
apenas a probabilidade de um evento. Afinal, penso que ao saber a probabilidade de
uma teoria, mantém-se sem saber se é possível agir no mundo com base nela,
gerando uma teoria vazia, infértil, que não promove nenhum avanço.

Popper também ressalta que a convicção quanto à validade de uma teoria de


nada vale para a lógica do conhecimento científico, uma vez que esta se preocupa
com as evidências empíricas que possam falsear a teoria, ou seja, com o método
lógico da ciência, e não com a psicologia do conhecimento (embora esta sirva como
objeto de pesquisa para a psicologia científica). Contudo, Karl Popper faz uma
ressalva ao dizer que a faculdade criadora da mente ainda pode prover hipóteses
científicas interessantes para serem testadas pelo método científico.

Entrando na compreensão do método lógico científico, Popper sugere que esse


método seja feito a partir da falseação, segundo a qual se submete a proposição
científica ou alguma derivação lógica da mesma a prova a partir de evidências
empíricas. Se essa ela passar nesse teste, será corroborada, mas não mais
verdadeira. Caso não passe, ela será falseada. O filósofo dá esse enfoque para a
possibilidade de tornar uma proposição como falsa mas nunca como verdadeira, pois
se assumimos algo como verdadeiro, nós abandonamos nosso espirito crítico, sendo
que se alguma evidência empírica futura provar que a teoria é, na verdade falsa, nós
estaríamos presos à ideia de que ela é verdadeira e, assim, a ciência não poderia
progredir com novas noções. Dessa forma, a metodologia científica proposta por
Popper não funciona como as leis da física newtoniana, mas como as regras de um
jogo, ou seja, são um consenso que permite chegar a um fim, sendo esse fim a não
estagnação da ciência em proposições consideradas absolutas. Assim, Popper propõe
que ao invés de aceitar a verdade das coisas, nós tomemos a verdade como um ideal
de busca pelo conhecimento e de não estagnarmos o conhecimento, procurando
sempre evidenciar se uma teoria realmente não é falsa a partir de elementos
empíricos, da experiência intersubjetiva. Sendo assim, as teorias, para serem
científicas, devem sempre ser passíveis de falseação e de análise empírica
intersubjetiva.

Agora, partirei para a análise de um outro texto de Popper para poder seguir
para uma análise mais ampla da interface entre a filosofia da ciência e a filosofia
política do autor. Esse texto é: “As Origens do Conhecimento e da Ignorância”, que
introduz seu livro “Conjecturas e refutações: o progresso do conhecimento científico”.
Nesse texto, o autor se propõe a examinar o conflito entre racionalismo, de Descartes
e empirismo, de Bacon, Hume e Locke. A análise do filósofo inicialmente considera
não as divergências entre essas duas doutrinas (que são muitas), mas sim a
semelhança entre elas. Popper vai dizer que as duas doutrinas confluem em adotar
uma postura epistemológica otimista, em suas palavras. O que caracteriza essa
epistemologia otimista é que ambas consideram ser o conhecimento muito evidente
para o ser humano e ter uma fonte muito bem definida, a qual assim que descoberta
permite ao cientista ou ao filósofo desvendar os mais diversos mistérios do universo. A
maior divergência é somente quanto à fonte desse conhecimento. No caso de
Descartes, ela estaria na razão/ intelecção e no caso dos empiristas ela estaria na
experiência sensível. Essas abordagens, portanto, como expressa o autor, procuram
valer-se de uma validação do conhecimento a partir de sua origem. Então, para o
empirista, todo conhecimento provindo da experiência sensível seria verdadeiro e, no
caso do racionalista, assim seria para o conhecimento provindo do intelecto. Nota-se
que é gerada uma relação de autoridade para o conhecimento, o que, já introduzindo a
temática política, possibilita o autoritarismo, já que um grupo dominará essa verdade e
aquele que não a dominar - sendo que esta, supostamente, se mostra a ele tão
evidentemente – será suposto corrompido por preconceitos diversos que o impedem
de ver a verdade evidente, tornando a tolerância um tratamento inapropriado para o
detentor de tal crença. Assim, Popper propõe que não se procure por uma origem do
conhecimento, já que esta gera divinizações de cunho autoritário, mas sim, procure
colocar a prova os enunciados feitos, seja lá qual seja a origem deles. Afinal, se o
enunciado for refutado já se saberá ao menos que ele não pode ser verdadeiro sem
recorrer a qualquer tipo de imposição autoritária de uma ordem de conhecimento.
Essa postura, o filósofo ressalta, já tem tradição na filosofia e se encontra no Sócrates
da Apologia, do Teeteto, em Montaigne e Erasmo de Rotterdã.

Há também outra abordagem para o problema de encontrar o conhecimento.


Esse, ao contrário do empirismo e do racionalismo, propõe uma epistemologia
pessimista, segundo a qual não há qualquer esperança de que nós obtenhamos a
verdade. Agora, dando continuidade ao aspecto político da discussão, com essa
epistemologia seria preciso recorrer ao autoritarismo que, em meio ao caos da falta de
certeza nos dará valores morais para impedir o caos e a desordem, nos protegendo de
nós mesmos. Para Popper, apesar de não haver sentido no otimismo dos racionalistas
e dos empiristas, não precisamos recorrer ao pessimismo também. Afinal, a
humanidade, embora não seja capaz de achar uma verdade última é perfeitamente
capaz de encontrar as múltiplas falsidades existentes. Assim, pode-se estabelecer um
paralelo com o racionalismo crítico, estabelecendo que ainda que não saibamos a
organização política perfeita, somos capazes de identificar aquilo que não funciona
para a humanidade e mudarmos tal situação.

Agora, após sintetizar os conceitos fundamentais da epistemologia e da


filosofia da ciência de Popper, podemos finalmente começar a estabelecer,
definitivamente, uma relação entre estas e a filosofia política do autor. Começaremos,
portanto, pelo que foi dito no parágrafo anterior. Bem, uma teoria análoga ao
pessimismo epistemológico que leva ao autoritarismo é a de Hobbes, filósofo que
justifica o absolutismo na Europa do século XVIII. Em resumo, Hobbes defende que o
ser humano é incapaz de se organizar de modo a garantir o bem de todos e, portanto,
um líder forte e autoritário deve fazer isso em nome de todas as pessoas.
Analogamente, isso pode ser considerado como a impossibilidade de conhecer o bem
geral. Popper, no entanto, defende um racionalismo crítico que se pauta na
falseabilidade, ou seja, a capacidade humana de identificar inconsistências entre o
mundo empírico e as hipóteses formuladas. Isso vale também para as decisões
políticas. A partir de nosso espírito crítico somos capazes de identificar inconsistência
em sistemas e valores políticos e propor novos que resistam a testes dessas falhas.
Por isso o racionalismo é capaz também de justificar a importância da democracia, ela
permite que todos tenham a liberdade de expressão necessária para mudar o sistema
quando nele se identifiquem falhas, permitindo, não que se alcance o maior bem
possível, mas que se avance cada vez mais em garantir o bem geral.

Mas e a democracia? Seria ela passível de crítica? Afinal, a filosofia


epistemológica de Popper se pauta na crítica. Segundo ele, a filosofia não poderia ser
criticada. Ele expõe essa ideia a partir de dois conceitos: o paradoxo da democracia e
o paradoxo da tolerância. Em síntese, o paradoxo da democracia defende que a
democracia é o único sistema em que a crítica pode ser exercida sem barreiras e,
paralelamente, o racionalismo crítico pode existir. Portanto, se ela fosse criticada, seria
uma ameaça à liberdade de pensamento geral. Por isso, o sistema democrático se
justifica em si mesmo e não deve ser criticado. Quanto ao paradoxo da tolerância,
Popper propõe que não se pode tolerar aqueles que são intolerantes, pois nesse caso
os intolerantes podem transformar o sistema em um sistema intolerante, impedindo,
assim, que qualquer tolerância exista futuramente. Portanto, pode-se estabelecer uma
analogia entre esses 2 conceitos e a filosofia da ciência de Popper, ao mostrar que o
racionalismo crítico somente pode prosperar em um regime democrático e tolerante
sendo, portanto, a democracia a única passível de não receber críticas, por permitir
que estas sejam feitas e abrindo a possibilidade para a intolerância – criada por
verdades absolutas – em casos que comprometam a tolerância geral ao criarem uma
verdade que enaltece a visão da plural população em detrimento da de um grupo
político.

Agora, quanto à interface entre o otimismo epistemológico e a filosofia política,


Popper sugere que, como já introduzi anteriormente, uma doutrina que propõe ter a
certeza sobre a realidade não é tolerante quanto àqueles que a criticam ou apenas
pensam de forma diferente dela. Assim, aqueles que têm a pressuposta fonte do
conhecimento subjugam os que têm crenças diferentes sem nem mesmo tentar provar
a falsidade dessa crença. Isso, obviamente, gera intolerância e autoritarismos. De
maneira análoga, o mesmo vale para o pensamento positivista e neopositivista, que
pressupõe ter a verdade pronta e já descoberta por princípios circulares, como já foi
exposto nesse texto, o que valida a intolerância com grupos que, de forma crítica
procurem achar algo de mais evidente do que os enunciados positivistas, levando,
também ao autoritarismo. Como diz Fábio Faversani, da Uiversidade Federal de Ouro
Preto, em seu estudo Popper, Ciência e História Antiga: “Teorias desse tipo levam à
estagnação do saber, ao congelamento das falsas certezas que fundaram tipos tão
diversos de autoritarismos que devemos evitar.” De uma perspectiva histórica, isso se
mostra evidente, uma vez que o Nazismo se pauta em uma verdade absoluta, muito
em voga pelo positivismo biológico da época, que estudava o “racismo científico”,
propondo que a raça ariana era mais evoluída que as outras, segundo o United States
Holocaust Memorial Museum*. Assim, foi dada brecha para que Hitler iniciasse seu
projeto de exterminação das outras raças – principalmente a judaica – para,
supostamente, edificar uma nação mais forte. E devido à lógica de ciência absoluta e
otimista quanto à possibilidade de obtenção da verdade, qualquer um que se
opusesse ao regime estaria se opondo à verdade da ciência positiva, sendo passível
de ser rechaçado por ignorar uma verdade que era reconhecida como tão evidente.
Também para o lado da esquerda totalitária é possível identificar um ideal de verdade
absoluta guiando a tomada do poder nos mais diversos golpes/ revoluções socialistas
e comunistas ao redor do mundo. O pressuposto nesse caso parte de uma indução,
baseada em uma premissa inicial empírica, o conflito entre as classes, que leva a uma
teoria geral: a da tomada do poder pelo proletariado, ocasionando na revolução
socialista, que, posteriormente, se tornaria em uma revolução comunista. Para esse
assunto, Popper tem um estudo específico. Ele chama doutrinas como a do Marxismo
e do Nazifacismo de historicismo. “Popper tomou o historicismo como sendo qualquer
abordagem em Ciências Sociais que pretenda ter a capacidade de predição”
(FAVERSANI, Fábio, 1998). Ainda explicando esse conceito, Faversani explica que
Popper o rejeita de duas formas: “é insustentável, pois “o curso da natureza humana é
fortemente influenciado pelo crescer do conhecimento humano”, sendo que o
crescimento do conhecimento humano é imprevisível, o curso da história, em
decorrência, também o é” e “O historicismo, ao pretender-se capaz de afirmar o único
futuro possível de uma sociedade (ou de toda a humanidade), é gerador necessário de
todo o tipo de autoritarismos e intolerâncias (como o comunismo e o nazi-fascismo),
visto que não autoriza possibilidades alternativas de compreender a realidade.”. Os
exemplos históricos mais famosos, além do Facismo de Mussolini e o Nazismo de
Hitler, são os da União Soviética e de Cuba, em que foi implementada uma ditadura
socialista de cunho autoritário e aqueles que se opunham ao regime seriam
rechaçados por estarem contestando a verdade absoluta do materialismo histórico
que, supostamente, é justificativa incontestável para o regime.

Assim, concluo esse trabalho reforçando a importância atribuída por Popper ao


racionalismo crítico, no sentido de não aceitar verdades absolutas e estáticas –
perspectiva apresentada por outros filósofos modernos, como Thomas Khun, ao
admitir que a ciência é composta por paradigmas (embora Popper discorde e o acuse
de relativista) - uma vez que isso nos leva a deixar de questionar a realidade, o que
pode levar regimes autoritários, que usem disso para reprimir a população sem que
ela questione isso.

*Museu memorial do Holocausto nos Estados Unidos

Referências:
POPPER, Karl. “As origens do conhecimento e da ignorância”. Conjecturas e
refutações, trad. Sérgio Bath. Brasília: UNB, 1982.

POPPER, Karl. “Colocação de alguns problemas fundamentais”. A Lógica da pesquisa


científica. trad. Leônidas Hesenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix,
1975.

FAVERSANI, Fábio. Popper, Ciência e História Antiga. Síntese Nova Fase, v. 25,n. 83,
527 – 550, 1998. Disponível em:
http://periodicos.faje.edu.br/index.php/Sintese/article/download/694/1120. Acesso em:
27 out. 2020.

Racismo Nazista. United States Holocaust Memorial Museum. Disponível em:


https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/nazi-racism. Acesso em: 27 out.
2020.

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