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Artes Marciais e o Budō, ontem, hoje e

amanhã.

Fernando Malheiros Filho

Não é necessário, para integrar de qualquer


fenômeno social, entendê-lo, ainda mais fazendo-o
profundamente. Em geral, somos envolvidos pelos fatos, e
carregados pelas ondas de acontecimentos atraídos por sem
número de motivos, na sua maior parte incompreensíveis
imediatamente.

As artes marciais provavelmente nasceram com


a própria humanidade. Há estudos que confirmam a existência de
conflitos entre grupos de símios, nossos prováveis antepassados,
que poderiam ter maior ou menor êxito em razão da destreza com
que utilizam técnicas de conflito corporal ou armado (sim, os
símios usavam pedras e paus). O fenômeno tem expressão ao
ocidente e ao oriente, obedecidas as caraterísticas culturais,
geográficas e religiosas de cada povo.

No ocidente a história é copiosa. Alexandre, o


Grande, mantinha treinadas suas tropas em cujo comando
atravessou o mundo então conhecido. Sabemos que, com soldados
muito bem treinados e táticas militares de excelência, deixou sua
Macedônia natal, foi ao norte da África, estendendo seus domínios
pelo Oriente Médio até os limites da China, passando pela Índia. É
certo que morreu jovem – nem tanto para aquela época, aos 32
anos –, mas não se lhe pode furtar o grande êxito militar.

Da mesma forma, as Legiões Romanas, talvez o


primeiro exército regular e profissional da história, que calcavam
seu êxito nas formações e no treinamento exaustivo dos soldados,
além da criatividade dos engenheiros em conceber novos artefatos
ao tempo em que não se tinha desenvolvido as armas de fogo.

Nessa interminável lista estão os Templários


(monges guerreiros), os Hussardos (sérvios e croatas), os Gurkhas
(nepaleses), os Terços Espanhóis, os centauros gaúchos na
Revolução Farroupilha, os batalhões especiais presentes em todos
os exércitos e polícias atuais.

Para todos esses que foram esculpidos pelas


artes marciais lato sensu, além do treinamento físico e da própria
experiência crua, eleva-se o código moral daqueles que aprendem
a conviver com a morte e, por isso, olhar para vida, e suas
adversidades, de outra forma.

No oriente, talvez o fenômeno mais vistoso seja


a história dos samurais, raiz que dá estabilidade ao tronco no qual
se assentam grande partes das “artes marciais” praticadas até hoje
em todo mundo.

Não se desconhece a importância da parte


continental da Ásia, aliás origem mediata das artes marciais
japonesas, conforme as fontes primárias abundantemente
indicam. Mas, por várias circunstâncias históricas, especialmente
a capitulação japonesa na 2ª Guerra Mundial e o sincretismo que
dela adveio com as tropas americanas, aquelas praticadas no
Japão, desde então, singraram os mares e desaguaram em todos
os recantos do planeta. Assim o Judō, o Karate-Dō, o Kendō, o
Aikidō, o Kyudō, o Jiu-jitsu, e tantas outras modalidades que
vieram chegando, do Oriente ao Ocidente, nos genes dos
imigrantes ou na mente de instrutores.

A figura dos samurais teve, nesse processo


sociocultural e antropológico, especial importância, que se
projetou para o futuro, nos alcançou e, por certo, chegará firme às
tantas gerações que, depois de cada um de nós, sob as cinzas que
deixarmos, elevar-se-ão para olhar o passado, entender o presente
e, o quanto possível, idealizar o futuro.

Originalmente “servos da gleba”, na peculiar


formação social do feudalismo japonês, nos tantos conflitos que se
iniciaram até o epicentro das “Guerras Samuraicas” no fim do
século XVI e o início do período Tokugawa, os samurais formavam
batalhões de soldados especializados em matar com rapidez e
eficiência.

No minimalismo japonês, a espada dos


samurais, a Katana, é a representação sintética da época: forjada
ritual e lentamente, em camadas, endurecida, afiadíssima, curva e
pontiaguda, talvez a arma branca mail letal de que se tenha
notícia, representava a síntese mesma de seu portador.

Esses homens, como hoje se sabe, impiedosos e


violentos como era de sua função, obedeciam a código de ética
próprio àqueles tempos (bushido). Deviam estrita obediência ao
líder (Daimyō – Senhor Feudal), estando sempre aptos a morrer
pela causa, mostrando desprendimento e perfeita consciência de
sua própria finitude.

Grande enfeixamento de vetores culturais


contribuiu para esse complexo cenário, cujas expressões até hoje
absorvemos: a situação geográfica do Japão e a escassez de terras
agriculturáveis, a influência dos elementos filosóficos e religiosos,
tanto aqueles oriundos do continente – o Confucionismo e o Zen-
budismo –, como os autóctones – o Xintoísmo –, além de todos os
condimentos inerentes a cada cultura em particular.

O fato é que, sendo as artes marciais nipônicas


um dos frutos daquela multifacetada cultura, espalhou-se pelo
ocidente impregnada desses valores e, mesmo que inicialmente
nós as praticássemos sem conhecê-los, o próprio exercício nelas
nos levou, com o passar dos anos, a buscar aquilo que ainda
faltava, isto é, a origem de tudo: o Budō.

Ainda hoje a noção do Budō sobrepaira como


algo que não é inteiramente cognoscível ao praticante ocidental.
Somente a imersão na cultura que lhe deu origem, e no tempo em
que perdurou, permitiria tal compreensão. E, como sabemos, o
tempo passou. No período Tokugawa, com início em 1603, os
samurais assumiram o poder e impuseram paz forçada, mas sem
guerra que justificasse sua existência, amoleceram até permitirem
a Restauração Meiji em 1868 (data de nascimento do Professor
Gichin Funakoshi), concedendo novamente o poder ao Imperador.

Entrementes, alguns samurais enlouqueceram.


Não poderiam mais sobreviver sem a finalidade para a qual foram
treinados por séculos. Ronins saíram a disputar duelos até que
perdessem a vida, ou lhes faltassem os alimentos. Outros
fundaram escolas, e são as reminiscências delas que chegam até
nós, ainda que, nesse particular, reconheça-se enorme salto
histórico justificado pela brevidade destas linhas.

Aqui o passado aproxima-se do presente e


projeta o futuro. As artes marciais, mormente em um mundo em
que a guerra é cada vez mais tecnológica (assimétrica ou de 5ª
geração) abandonaram sua aplicação exclusiva aos soldados para
levá-los ao combate, ganhando expressão civilizatória muito mais
abrangente. Transformaram-se em instrumento de educação.

Sem que possamos compreender o fenômeno


nas suas circunstâncias históricas, influências culturais e
modelagem casuística, até poderemos surfar no vagalhão que se
forma pelos seus movimentos, mas dificilmente recolheremos
resultados de longo prazo e alta significação.

Quando compreendido como fenômeno


predominantemente educacional, como parece indicar o
encaminhamento dos fatos, as artes marciais elevam-se a
patamares muito além daqueles ainda conhecidos e até aqui
praticados, que apenas se detêm na excelência técnica, nas táticas
de competição e preparação física.

A excelência técnica e demais atributos de


competidores e praticantes de alto rendimento, além de
representarem parte menor da vida deles próprios – que também
envelhecem e morrem, ou até deixam o mundo dos vivos antes de
envelhecer, como era comum aos samurais –, atingem espectro
humano limitadíssimo, muito aquém do alcance que se pretende
com a educação.
Moldada a formatação educacional da arte,
abre-se aos mestres, professores, instrutores e praticantes em
geral horizonte antes ainda não conhecido. A arte abrange outros
territórios não alcançados exclusivamente pela prática física e o
desporto. Requer nova e robusta edificação, em termos de
alinhamento filosófico, valores morais e conteúdos educacionais a
partir de todos esses vetores: os técnicos, os filosóficos, os
históricos, aqueles próprios ao relacionamento entre os partícipes,
e as habilidades que poderão ter a seu dispor no mundo externo.

Para isso é fundamental que a natureza do Budō


seja reescrita, é certo com respeito aos seus princípios fundantes,
mas com a compreensão do que ele pode significar nesse mundo
jamais sonhado, nem nos mais desvairados delírios, pelos
samurais que o seguiam.

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