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ASSOCIAÇÃO DA DIETA CETOGÊNICA À TERAPIA FARMACOLÓGICA NO

TRATAMENTO DE EPILEPSIA REFRATÁRIA – RELATO DE CASO

Mara Lúcia Fernandes do Vale1

Vicente Mascarenhas Sanches Junior2

1. INTRODUÇÃO

A dieta cetogênica representa uma alternativa não farmacológica segura, e


que tem se mostrado eficaz no tratamento de epilepsia refratária. Tendo em vista
que a proposta terapêutica leva a uma modificação radical nos hábitos alimentares,
é importante que, uma vez indicada, também seja oferecida uma rede de suporte,
disponível a sanar dúvidas e manejar os possíveis efeitos colaterais que possam
surgir (ANDRADE, 2022).

2. RELATO DO CASO

LAMM, sexo feminino, atualmente com 25 anos de idade,fruto de uma


gravidez planejada.Na época da concepção, os genitores apresentavam 35 anos de
idade, e já tinham outra menina, sem comorbidades e com 6 anos na época. A mãe
informa ter realizado todas as consultas pré natais previstas, tendo como
intercorrência um episódio isolado de hemorragia de pequena monta no 1º mês de
gestação, a qual foi controlada com o uso de medicamentos prescritos por sua
ginecologista.Nascida de parto cesariana, a termo, com peso ao nascimento de
3.150 gramas, comprimento de 47,5 cm, Apgar 6/8, tendo sido necessário o uso de
ventilação com pressão positiva logo após o nascimento, com boa resposta.

A recém nascida permaneceu na incubadora por algumas horas, por ter


apresentado desconforto respiratório, vindo a normalizar o padrão respiratório,
sendo encaminhada para o alojamento conjunto no mesmo dia.

Logo após o nascimento, a criança apresentou ptose palpebral à esquerda.


Foi solicitada uma avaliação oftalmológica, devido às hipóteses diagnósticas de

1
Médica Pediatra. Mestre em Saúde Coletiva
2
Médico militar especialista em radiologia do Hospital Geral de Juiz de Fora - MG , Brasil

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coloboma ou catarata congênita, sendo ambas descartadas. A alteração foi então
atribuída à ocorrência de possíveis traumas durante o parto.

Após a alta hospitalar, foi observado que a criança apresentava, além da


ptose palpebral, hipotonia muscular e não realizava movimentos cervicais. Além
disso, também foi notada a ausência do reflexo de preensão palmar e plantar, e um
atraso de 30 dias na queda do coto umbilical. O teste do pezinho ampliado
apresentou resultado normal.

Durante o primeiro e segundo mês de vida, a criança apresentou três


episódios de espasmos musculares fugazes, tendo sido avaliada em um pronto
atendimento de Pediatria e liberada logo em seguida.

No 4º mês, a criança apresentou uma crise convulsiva manifestada por


espasmos de membro superior esquerdo e desvio do olhar conjugado. A lactente
passou por avaliação pediátrica, permaneceu em observação na emergência, sendo
liberada no dia seguinte, com encaminhamento para a Neuropediatria.

A lactente foi submetida à propedêutica neurológica, tendo apresentado


Ressonância Magnética de encéfalo normal, gasometria arterial com resultados
normais e eletroencefalograma com padrão irritativo.Foiiniciado o uso de
medicamento anticonvulsivante Valproato de Sódio.

Após alguns dias do início da medicação, a lactente voltou a apresentar crise


convulsiva focal, com movimentos mastigatórios. Em retorno ao neuropediatra
assistente, a dose do Valproato de Sódio foi aumentada, porém as crises
convulsivas tornaram-se diárias, freqüentes e fugazes.

Aos 6 meses, a criança foi levada à emergência pediátrica com crises


convulsivas subentrantes, sendo transferida para a Unidade de Tratamento Intensivo
pediátrico.Durante a internação, foi verificado que o nível sérico do Valproato Sódico
estava baixo. A dose da medicação foi ajustada, e a criança recebeu alta hospitalar
cinco dias após a internação, voltando a apresentar crises convulsivas, sendo
associado o Clobazam.

Apesar do ajuste das dosagens e associação de anticonvulsivantes, as crises


continuaram a se repetir diariamente.Diante do insucesso terapêutico, e presença de

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características fenotípicas, tais como ptose palpebral, hipotonia muscular e baixa
implantação das orelhas, foi solicitado o exame do cariótipo, que apresentou como
resultado a presença da Deleção do Braço Curto do Cromossomo 18 (Síndrome de
De Grouchy).A criança foi então encaminhada ao geneticista, que não esclareceu a
motivação das crises convulsivas persistentes, uma vez que não há descrição na
literatura de relação entre essas duas entidades clínicas.

Tendo em vista a continuidade das crises, foi prescrita a medicação


Etossuximida, sem sucesso, e a lactente foi novamente internada na UTI pediátrica
por ter voltado a apresentar crises subentrantes.

Após a alta da UTI, foi observada a ocorrência de convulsões diárias, com


aumento da freqüência e alteração do padrão, de focal para atônico. A mudança
também foi observada através do eletroencefalograma. Optou-se então pelo uso do
Fenobarbital, associado ao Valproato Sódico e Clobazam, sem melhora. Na
sequência foram feitas tentativas de controle com Carbamazepina, Ácido Valpróico,
Divalproato de Sódio, Lamotrigina e Vigabatrina, todos sem sucesso.

Com o passar do tempo, as crises mudaram novamente o padrão clínico,


assim como o traçado do EEG, apresentando características semelhantes às da
Síndrome de West.

A criança foi encaminhada para avaliação junto ao corpo clínico do Hospital


das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP),
onde foi confirmado o diagnóstico de Síndrome de West, e indicado o uso de
Topiramato, em alta dosagem, em associação aos demais fármacos em uso
(Lamotrigina, Valproato de Sódio e Vigabatrina).A associação medicamentosa
reduziu as crises de espasmos, que ocorriam cerca de 80 a 100 vezes ao dia, para
20 a 30 vezes ao dia.

Em retorno ao HCFM-USP Ribeirão Preto, após 30 dias de uso da associação


medicamentosa proposta, sem resposta satisfatória, e de posse do gráfico
demonstrando a alta frequência das crises, foi sugerida a utilização de umadieta
cetogênica, a suspensão do Valproato de Sódio, e manutenção da combinação de
Topiramato, Lamotrigina e Vigabatrina.

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A partir do 4º dia, as crises começaram a reduzir diariamente, chegando no 8º
dia de dieta sem apresentar nenhuma crise.Após 30 dias sem crises, a criança
retornou ao HCFMRP para reavaliação.

Optou-se pela suspensão progressiva dos fármacos anticonvulsivantes, ao


longo de 8 meses, até a sua completa suspensão, tendo em vista que a dieta
cetogênica, por si só, foi capaz de manter o controle da recorrência das crises.

Após 2 anos e 4 meses, a dieta cetogência foi suspensa, e a alimentação


habitual da família foi reintroduzida, sem que ocorresse o ressurgimento das crises
convulsivas. Em março de 2005, foi realizado o último eletroencefalograma, que
apresentou padrão livre de descargas epileptogênicas.

3. DISCUSSÃO

A dieta cetogênica deve ser considerada em casos de epilepsia refratária à


associação medicamentosa de dois a três fármacos (LOUVEIRA, et. al, 2023).Os
benefícios do jejum no controle das crises epiléticas já eram conhecidos desde os
anos 460 A.C (SAMPAIO, 2016).

Apesar das diversas pesquisas realizadas sobre o tema, ainda não está claro
o mecanismo exato que relaciona a dieta cetogênica ao controle das crises
epiléticas refratárias. Por outro lado, tudo indica que há uma ação direta sobre as
disfunções mitocondriais, melhorando a resistência ao estresse oxidativo e
protegendo seu DNA, contribuindo com a redução de morte celular (GOMES, et. al,
2011).

Entre os principais efeitos colaterais, GUZEL, et al. destacam em seu estudo


a hiperlipidemia, a deficiência de selênio, constipação, cálculos renais,
hiperuricemia, efeitos colaterais hepáticos (elevação de enzimas hepáticas e
esteatose), hipoproteinemia e hipoglicemia.

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4. CONCLUSÃO
A dieta cetogênica tem, cada vez mais, se consolidado como uma alternativa
adjuvante eficaz no controle de crises convulsivas refratárias à associação
terapêutica farmacológica.
São necessários mais estudos na área, a fim de elucidar seus mecanismos de ação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, F. M. M. Dieta cetogénica – Abordagem terapêutica na epilepsia


refratária ao tratamento farmacológico. Revisão Temática: 1.º Ciclo em Ciências da
Nutrição. Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do
Porto. Disponível em: <https://repositorio-
aberto.up.pt/bitstream/10216/142910/2/572771.pdf>Acesso em: 07/08/2023.

GOMES, T. K. de C., OLIVEIRA, S. L. de ., ATAÍDE, T. da R., & TRINDADE FILHO,


E. M.. (2011). O papel da dieta cetogênica no estresse oxidativo presente na
epilepsia experimental. Journal of Epilepsy and Clinical Neurophysiology, 17(2), 54–
64. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1676-26492011000200005>. Acesso
em: 16/11/2023.

GUZEL, O., UYSAL, U., ARSLAN, N. Efficacy and tolerability of olive oil-based
ketogenic diet in children with drug-resistant epilepsy: A single center experience
from Turkey. European Journal of Paediatric Neurology 2019;23(1):143-51.

LOUVEIRA SURIANO, N.; CAPELLI DE LIMA, A. B.; FREITAS, K. DE C.;


FERNANDES, D. S. Uso da dieta cetogênica para o tratamento da epilepsia
refratária no estado de Mato Grosso do Sul. Perspectivas Experimentais e Clínicas,
Inovações Biomédicas e Educação em Saúde (PECIBES), v. 9, n. 1, p. 25-33, 21 jul.
2023.

SAMPAIO, L. P. Ketogenic diet for epilepsy treatment. Arq. Neuro-Psiquiatr. 2016; 74


(10) : 842-48.

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