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Texto, Textualidade e Textualizacao Costa Val
Texto, Textualidade e Textualizacao Costa Val
O QUE É TEXTO?
Há algum tempo, entendia-se como texto apenas os escritos que empregavam uma
linguagem cuidada e se mostravam “claros e objetivos”. Já não se pensa mais assim.
Hoje, com o avanço dos estudos lingüísticos, discursivos, semióticos e literários, mudou
bastante o conceito de texto. Falando apenas de texto verbal, pode-se definir texto, hoje, como
qualquer produção lingüística, falada ou escrita, de qualquer tamanho, que possa fazer sentido
numa situação de comunicação humana, isto é, numa situação de interlocução. Por exemplo: uma
enciclopédia é um texto, uma aula é um texto, um e-mail é um texto, uma conversa por telefone é
um texto, é também texto a fala de uma criança que, dirigindo-se à mãe, aponta um brinquedo e
diz “té”.
Um ponto importante nessa definição é “que possa fazer sentido numa situação de
interlocução”. Isso significa duas coisas: a) nenhum texto tem sentido em si mesmo, por si mesmo;
b) todo texto pode fazer sentido, numa determinada situação, para determinados interlocutores1.
Retomando o exemplo acima, “té” não chega a ser propriamente nem ao menos uma
palavra da língua portuguesa; portanto, isolada, fora da situação em que foi usada, não tem nem
deixa de ter sentido. No entanto, quando pronunciada por uma criança e dirigida à mãe,
acompanhada do gesto de apontar um brinquedo, passa a ser um texto bom e completo, pode ser
interpretada como o verbo “quero”, pronunciado de acordo com as possibilidades do locutor
naquele momento, e significando um pedido da criança de que a mãe lhe dê o brinquedo. Do
mesmo modo, um e-mail que só traz a pergunta “E aí, tudo verde?” pode parecer “sem sentido”
para uns, mas seria perfeita (e furiosamente...) compreendido um torcedor corintiano que
recebesse a mensagem de um amigo palmeirense, depois de um jogo de futebol em que o
Palmeiras tivesse vencido o Corinthians. Por outro lado, um livro de Física Quântica ou um tratado
de Filosofia podem ser claros e consistentes para os especialistas e absolutamente
incompreensíveis para os leigos.
Resumindo: uma produção lingüística que, numa dada circunstância, pareça “sem pé nem
cabeça”, incompreensível, inadequada, inaceitável, para determinado grupo, pode ser
perfeitamente entendida e considerada como sem qualquer problema por outros interlocutores,
noutra situação, e, para eles, funcionar plenamente como texto. Isso quer dizer que o sentido não
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O termo interlocutor, neste artigo, designa o par locutor/alocutário, participantes de uma interlocução. O termo locutor
será usado para designar a figura do autor ou produtor do texto; o termo alocutário, para designar a figura do destinatário
ou recebedor do texto. Com essa opção terminológica quero sinalizar a participação ativa das duas figuras nas práticas
sociais de interação verbal, orais e escritas.
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Caderno 9 – Texto, textualidade e textualização (Maria da Graça Costa Val)
está no texto, não é dado pelo texto, mas é produzido por locutor e alocutário a cada interação, a
cada “acontecimento” de uso da língua.
Essa questão tem tudo a ver com os conceitos de “textualidade” e de “textualização”, que
serão explicados no próximo item. Esses conceitos são da maior importância e podem ter muitas
aplicações na aula de Língua Portuguesa, no ensino da leitura e da escrita.
TEXTUALIDADE E TEXTUALIZAÇÃO
que produzem e esperam encontrar nos textos que ouvem ou lêem: coerência, coesão,
intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade, informatividade e intertextualidade. Embora os
autores pretendessem se referir aos processos de produção e interpretação textual, sua teoria foi
compreendida como relativa ao texto enquanto produto, enquanto “artefato” lingüístico. Os
conceitos de coerência e coesão foram usados por muita gente, inclusive eu, no livro Redação e
Textualidade, como definidores de qualidades que um determinado texto tinha ou deixava de ter.
Se pudesse reescrever meu livro, que foi publicado em 1991, eu hoje modificaria a maneira como
tratei dessas questões. Não diria mais que a redação A tem coerência e que a redação B não tem;
nem que a redação C tem coesão e a redação D não tem. Diria que eu, na posição de leitora,
pude textualizar aquelas redações da maneira X ou Y, e que foi fácil para mim produzir coerência
e coesão para as redações A e C, mas foi difícil fazer o mesmo quanto às redações B e D.
A seguir, vou tratar dos sete princípios de textualização propostos por Beaugrande e
Dressler (1981) e Beaugrande (1997), dando destaque especial para a coerência e a coesão.
Coerência
Podemos entender coerência como aquilo que faz com que um texto nos pareça ‘lógico’,
consistente, aceitável, com sentido. Quando a gente entende um texto, oral ou escrito, é porque
conseguiu atribuir coerência a esse texto. A coerência tem a ver com as ‘idéias’ do texto, com os
conceitos e as relações entre conceitos que esse texto põe em jogo: de que tópicos o texto fala, o
que diz sobre eles, como organiza e articula esses tópicos (por exemplo, com relações de
causa/conseqüência, ou de anterioridade/simultaneidade/ posterioridade, ou de inclusão/exclusão,
ou de semelhança/oposição, ou de proximidade/distância). Quer dizer: a coerência tem a ver com
conhecimentos e informações. Ouvir ou ler um texto e entendê-lo, considerá-lo coerente, significa
conseguir processá-lo com os conhecimentos e a habilidade de interpretação que se tem e, então,
avaliá-lo como compatível com esses conhecimentos.
Acontece que praticamente nenhum texto diz tudo que é necessário para que ele possa
ser compreendido. Em geral, os textos trazem muita informação implícita ou subentendida e
também não explicitam todas as relações entre as informações. Ao ouvinte ou leitor é que cabe a
tarefa de identificar e inter-relacionar informações e, assim, produzir coerência para o texto. Como
as pessoas podem ter conhecimentos, habilidades e interesses diferentes, é normal que haja
pontos de divergência na compreensão que produzem de um mesmo texto. A construção do
sentido depende dos conhecimentos e intenções de quem falou e dos conhecimentos disponíveis
e habilidades interpretativas de quem ouviu.
Mas não é só isso. Apesar da efetiva diversidade de interpretações, as pessoas são
capazes de se entender, ou seja, há uma parte comum no processo de produção de sentido, no
trabalho de construção da coerência textual. Isso é possível porque interlocutores que pertencem
a uma mesma sociedade partilham conhecimentos, crenças e valores. Partilham conhecimentos
lingüísticos (a gramática e o vocabulário de uma língua), textuais (quanto a características de tipos
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Tipos: narrativo, descritivo, expositivo, argumentativo, injuntivo; gêneros: carta, notícia, reportagem, romance, soneto,
conto, catálogo de telefones, e-mail, sermão religioso, pronunciamento político, diário, prova escolar, fofoca de comadre,
piada, trova, canção popular, anúncio classificado, propaganda, discurso de paraninfo de formatura, terço, novena, etc.
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Por exemplo: ato de declarar, pedir, de perguntar, de avisar, de cumprimentar, de bajular, de ofender, de irritar, de
ameaçar, de prometer, de amedrontar, etc.
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Que aplicação poderiam ter essas idéias sobre coerência textual no ensino de Língua
Portuguesa? A meu ver, essa maneira de compreender a coerência é maior importância para o
trabalho em sala de aula.
Em primeiro lugar, porque permite ao professor e aos alunos compreenderem que não se
pode dizer que um texto é bom ou ruim, coerente ou incoerente, com sentido ou sem sentido, sem
considerar a situação de interlocução em que ele acontece. Todo texto tem que ser pensado em
função de seu contexto. Se isso é verdade para o funcionamento efetivo dos textos nas trocas
linguageiras que acontecem de fato na vida social, é preciso que os alunos compreendam esse
fato e aprendam a lidar com ele, na produção e na interpretação, de textos falados e escritos.
Vamos exemplificar.
Para contribuir com o desenvolvimento da capacidade de compreensão crítica, na leitura e
na escuta, as atividades escolares devem propor aos alunos que considerem quando, onde, para
quê e para quem o texto foi produzido, ou seja, que, na construção da coerência e na apreciação
do texto, levem em conta a situacionalidade, a intencionalidade, a aceitabilidade pretendida, a
intertextualidade. Na interpretação, procurar recompor as condições em que o texto foi produzido
facilita e enriquece o processo de textualização.
Paralelamente, o desenvolvimento das habilidades envolvidas na produção de textos
falados e escritos pode ser favorecido quando se ensina os alunos a planejarem suas falas e
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escritas públicas levando em conta os destinatários de seus textos. Do que sabem e do que
gostam esses destinatários, que expectativa e disposição eles têm, em que situação vão ouvir ou
ler os textos? Como será possível, nessas condições, realizar as intenções, os objetivos
pretendidos? As respostas a essas questões é que deverão orientar o produtor na definição do
gênero do texto, na escolha dos recursos lingüísticos mais adequados, na determinação de
elementos como tamanho, ilustrações, apoios gráficos ou gestuais, etc. Na auto-avaliação pelo
aluno e na avaliação pelo professor, a grande questão não é se a fala ou escrita ‘tem’ ou ‘não tem’
coerência, mas sim se ela se apresenta de modo a facilitar o trabalho de textualização por parte
dos alocutários, de modo a obter a aceitabilidade deles.
O segundo motivo que me leva a julgar importantes para a sala de aula as idéias aqui
expostas sobre coerência tem a ver com a construção ‘interna’ dos textos. Na produção falada e
escrita, por exemplo, para atender aos requisitos de funcionamento eficiente e eficaz do texto
numa determinada situação, os alunos precisarão cuidar para que seus textos sejam considerados
por seus ouvintes/leitores como inteiros (com “começo, meio e fim”), com unidade temática (“sem
perder o fio da meada”), consistentes, articulados, não contraditórios (“falando coisa com coisa”).
Assim, é bom que o professor os oriente na seleção e no desenvolvimento dos temas, trabalhando
a ‘lógica’ interna e o encadeamento das idéias, a consistência dos argumentos, a verossimilhança
das histórias, nos momentos de planejamento, produção, auto-e hetero-avaliação dos textos.
Outra habilidade que precisa ser sistematicamente trabalhada na escola diz respeito à
escolha e à utilização dos recursos lingüísticos com os quais se constrói a coesão textual, que é
assunto do próximo item.
Coesão
(1) Era uma vez, num país muito distante, um rei que tinha uma filha muito amada, que
vivia triste e não sorria nunca. Um dia, preocupado com a menina, o rei decidiu
convocar todos os seus súditos e (...)
(2) Um vez, num congresso em São Paulo, entrei em um auditório lotado e pensei ter
reconhecido, de costas, um velho amigo de Recife. Não tive dúvida: cheguei por trás
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Simplificando, pode-se definir referente textual como aquilo de que se fala no texto, aquilo a que o texto se refere.
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(3) Ontem fomos olhar apartamento para alugar. Eu gostei muito de um que fica no
Centro, mas o condomínio é muito caro.
Como no caso anterior, a expressão “o condomínio” vem marcada, pelo artigo definido,
como informação dada, embora esteja aparecendo no texto pela primeira vez. Para entender essa
fala, o ouvinte terá que acionar seus conhecimentos sobre “apartamento”, que devem incluir
elementos como “ser em um prédio”, “os moradores do prédio pagam uma taxa de condomínio”
etc. e, assim, relacionar as informações textuais, interpretando a expressão “o condomínio” como
“a taxa de condomínio do prédio onde fica o apartamento mencionado”.
O artigo definido – assim como os demonstrativos e os possessivos – são recursos que
sinalizam – dão instrução – para que o ouvinte/leitor considere o termo que eles introduzem como
informação dada no texto e, então, relacione esse termo com algum elemento textual, que pode
estar explicitado ou não. Diferentes tipos de relação podem ser estabelecidos entre a expressão
lingüística marcada com esses recursos e o outro elemento textual. Vejamos:
No exemplo (1), no caso de um rei/o rei, tem-se a retomada de um conceito, indicada pela
repetição da palavra (rei) marcada pelo definido (podia ser também “esse rei”). A seguir, em uma
filha/a menina, tem-se também uma retomada de conceito, indicada pela substituição da palavra
“filha” por outra que, nesse texto, pode ser equivalente a ela e vem marcada com o artigo definido.
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A equivalência entre os dois termos é resultado de uma escolha entre outras possibilidades que a
língua oferece e tem conseqüências na construção do sentido do texto: dependendo do termo com
que se retomasse “uma filha”, poder-se-ia indicar, além da retomada, algumas características
dessa personagem da história: sua classe e status social (“a princesa”), sua idade (“a princesinha”,
“a criança”, “a jovem”, “a moça”), sua aparência física (“a linda princesinha”), traços de sua
personalidade (“a simpática menina”, “a infeliz criança”, “a bondosa princesinha”).
No exemplo (2), ao empregar “o aluno da PUC” (poderia ser também “aquele aluno da
PUC”), o locutor do texto sinaliza aos seus alocutários não só a retomada de um elemento anterior
(“um rosto completamente estranho”), mas também a classificação desse elemento num grupo ou
categoria (a categoria “aluno da PUC”, que é diferente da de “professor da PUC”, ou de “estudante
universitário”). Essa expressão tem implicações específicas para a construção do sentido do
texto, diferentes das que teria, por exemplo, o uso de “o/aquele rapaz” .
No exemplo (3), entre “apartamento” e “o condomínio” não há uma relação de retomada
de conceito, mas sim uma associação entre um conceito e outro, que é possível em função do
conhecimento sócio-cultural partilhado pelos interlocutores a respeito de “apartamento”, como já
se apontou acima. O termo “o condomínio” ancora em “apartamento”, como diria o Prof.
Marcuschi, da UFPE, e não há entre os dois relação nem de retomada nem de equivalência.
Pode-se ainda, marcando uma expressão como informação dada (com artigo definido, ou
demonstrativo, ou possessivo), indicar que ela deve ser conectada a outro elemento do texto, não
porque retoma esse elemento, mas porque pode ter com ele uma relação metonímica (relação
entre a parte e o todo, entre o autor e a obra, entre o conteúdo e o continente, etc.), com em
(4) Não pude sair de bicicleta porque o pneu traseiro estava vazio.
(5) Meu filho adorava ir de bicicleta para o colégio e tinha o maior orgulho do seu
veículo.
(7) Eu detesto minha vizinha do terceiro andar. Você acredita que aquela bruxa ontem
teve o desplante de dizer que eu estou gorda?!...
Esses exemplos dão uma idéia das possibilidades de exploração da noção de coesão
nominal em sala de aula. O emprego do artigo definido, dos demonstrativos e dos possessivos
pode ser bastante econômico e expressivo, quando conjugado com o trabalho relativo à escolha
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(8) Meu sobrinho de cinco anos está cada dia mais esperto e engraçado. Outro dia ele
me pediu um presente de Dia das Crianças “rápido e sem burocracia”!!!
(9) No primeiro dia de aula, ela perguntou o nome de todo mundo, conversou, foi muito
simpática, mas já passou tarefa para casa.
(10) Tenho a maior gratidão a essa equipe médica, porque eles salvaram a vida do meu
pai.
Um exemplo como (9) pode ocorrer numa conversa cotidiana em que o tema seja escola e
o pronome “ela” seja usado pelo locutor mesmo sem que antes ele tenha se referido a professora.
As informações precedentes permitem ao alocutário inferir que “ela” só pode ser a professora. O
importante é que o ouvinte realiza com rapidez e facilidade essa operação de inferência, em geral
sem se dar conta disso e sem reclamar que o texto está incompleto. Exemplos como esse são
bem mais freqüentes no dia a dia do que a gente imagina.
Do mesmo modo, no caso (10) o ouvinte é “instruído” a realizar uma operação mental que
ultrapassa as formas lingüísticas: conectar o pronome “eles”, masculino e plural, com “essa equipe
médica”, expressão substantiva no feminino singular, priorizando outros conhecimentos, como o
de que uma equipe é formada por várias pessoas, entre as quais pode haver homens e mulheres.
Esse tipo de uso também é muito comum no nosso cotidiano.
Os exemplos apresentados até aqui tiveram dois objetivos. O primeiro foi mostrar que a
coesão não é uma característica que vem pronta no texto, mas é um princípio de textualização
que as pessoas aplicam aos textos que falam, ouvem, escrevem e lêem com o intuito de atribuir
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sentido à seqüência de palavras e frases com que deparam. O segundo objetivo foi apresentar
como válidos, e freqüentes em práticas linguageiras cotidianas e descontraídas, alguns usos que a
gramática escolar tradicional condena. Esse ponto é importante para a reflexão lingüística em sala
de aula: a coesão textual pode-se valer de diferentes recursos e de diferentes usos desses
recursos; a escolha adequada vai depender de para quem e para quê se fala ou escreve, em que
tipo de situação.
Há ainda outros recursos coesivos, cuja função é sinalizar a chamada “coesão
seqüencial”, que consiste no estabelecimento de conexão e inter-relação entre partes do texto
através de conectivos, advérbios, verbos. Alguns estudiosos, como Bronckart (1999) e Schneuwly
(1988), chamam esses processos de “conexão” (sinalizada pelos “organizadores textuais”) e de
“coesão verbal” (sinalizada pelos tempos, modos e aspectos verbais).
Comecemos pela “conexão”. Entre os organizadores textuais ou articuladores estão as
conjunções e locuções conjuntivas, os advérbios e locuções adverbiais, além de várias
expressões que se podem usar para sinalizar inter-relações entre informações textuais (por
exemplo, em resumo, concluindo, por um lado/por outro lado, ainda, também, em outras palavras,
ou seja). Os organizadores textuais podem sinalizar inter-relações tanto entre orações de um
período, como entre frases de uma seqüência ou parágrafo, como também entre partes do texto.
Por exemplo, numa história, costuma-se sinalizar o início do enredo, da complicação, com
articuladores como “um dia” –ver exemplo (1); num texto expositivo, pode-se indicar o início da
conclusão ou fechamento com organizadores do tipo “resumindo, a idéia central é que”.
Destaquemos o articulador “mas”, que aparece nos exemplos (3) e (9). Esse operador
lingüístico desencadeia uma série de operações interpretativas que não estão dadas no texto; são
relações que foram ‘pensadas’ pelo locutor e devem ser também estabelecidas pelo alocutário.
Pelo conhecimento lingüístico, sabemos que esse operador sinaliza relação de oposição entre a
informação que introduz e a(s) anterior(es). Deparando com ele, o interlocutor tem que selecionar
no texto informações que podem se opor e interpretar por que e como se opõem. No caso do
exemplo (3), não vem da ‘realidade’, nem da ‘lógica’ a oposição entre “gostar de um apartamento
no Centro” e “esse apartamento ter uma taxa alta de condomínio”. Pode-se até imaginar o
contrário: se o Centro for uma região valorizada na cidade dos parceiros desta conversação, será
esperável que a taxa de condomínio seja alta; se o falante for uma pessoa rica e esnobe, uma
taxa de condomínio alta poderá até ser considerada ‘qualidade’, já que ‘seleciona’ pelo poder
aquisitivo os moradores do prédio. Assim, ao estabelecer oposição entre essas duas informações,
o alocutário compreende também, por inferência, que o locutor ou não tem dinheiro sobrando, ou é
uma pessoa ‘econômica’... Outra inferência, sinalizada e autorizada pelo operador “mas” – mas
não explicitada no texto – é quanto à “orientação argumentativa” dessa fala, que aponta para uma
conclusão do tipo: “por isso não vou poder alugá-lo” ou “por isso desisti de alugá-lo”. Processo
semelhante pode ser desencadeado na interpretação do exemplo (9), em que cabe ao ouvinte ou
leitor inferir a oposição entre “ser muito simpática” e “passar tarefa para casa no primeiro dia de
aula”.
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Nós tínhamos uma empregada chamada Maria José que tinha uma criação de
coelhos em sua casa.
Um dia perguntei a ela se podia me dar um coelho e ela me trouxe esse coelho
no dia seguinte.
Depois de um bom tempo ele fugiu e pedi outro, outro, outro, outro, outro,
outro, etc.
Até que chegou um especial: em vez de branco, com nome Pé Sujo, marrom,
com nome Bombril. Ele era mais legal e mais manso que os outros.
Um dia voltei da escola e vi que estava sumido. Tinha fugido.
Mas uma amiga do meu pai me deu um cachorrinho pequeno e gordinho e lhe
dei o nome Bolinha. Estou com ele até hoje.
Respeitando a instrução de escrever algo que os colegas não conhecessem, o aluno autor
decide começar ‘do começo’ seu relato e sinaliza essa decisão pelo uso do pretérito imperfeito,
que, tradicionalmente, indica, nas narrativas, o cenário, a situação e as características dos
personagens na fase inicial: “nós tínhamos uma empregada que tinha (...)”. O imperfeito vai
aparecer novamente no texto quando é preciso caracterizar um novo personagem, o coelho
Bombril (“ele era mais legal”).
A partir do articulador “um dia”, que marca o início da fase central do relato, o locutor, com
o uso do pretérito perfeito, instrui seu leitor/ouvinte no sentido de considerar os episódios
seguintes como os de primeiro plano no caso que está contando (“perguntei”, “trouxe”, “fugiu”,
“pedi”, “chegou”, “voltei”, “vi”). Subordinado a “perguntei”, aparece o único verbo dessa seqüência
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que não está no pretérito perfeito (“podia me trazer”). Aí, a forma coloquial do futuro do pretérito,
no verbo auxiliar, sinaliza a situação da ação no eixo temporal: perguntei se ela poderia trazer o
coelho num dia posterior ao dia em que foi feita a pergunta.
O mesmo marcador temporal “um dia” sinaliza nova mudança de fase no relato: a fuga do
coelho Bombril é caracterizada como episódio ‘dramático’ que interrompe a seqüência ‘feliz’ de
perder um coelho e imediatamente ganhar outro para substituí-lo. A ruptura é sinalizada também
por alterações no emprego das formas verbais. Em “voltei” e “vi”, o pretérito perfeito simples, na
voz ativa, indica ações pontuais, num determinado momento do eixo temporal: o momento em que
o narrador chegou da escola. Com relação a esse momento, uma construção passiva, com o
auxiliar no imperfeito – “estava sumido” – indica um “estado de coisas” não pontual, nem imediato,
mas já de alguma duração. A seguir, o pretérito mais-que-perfeito composto – “tinha fugido” –
sinaliza um fato pontual acontecido num momento anterior ao da chegada do narrador.
No final do texto, o articulador “mas” e o retorno do pretérito perfeito (“deu”, “dei”) vêm
indicar a reversão da ‘tragédia’. Aí, com o uso do presente, o locutor sinaliza o encerramento da
narrativa, assegurando que o ‘final feliz’ perdura até o momento da enunciação, até o momento da
produção do relato (“estou com ele até hoje”).
Este texto revela a habilidade do aluno autor no emprego das formas verbais na
construção de um relato que corresponde aos moldes mais usuais, mais canônicos. No entanto, a
observação e a reflexão sobre diferentes possibilidades de correlação entre tempos, modos e
aspectos verbais, em narrativas de autores consagrados, pode contribuir para ampliar essa
habilidade. Vejamos, por exemplo, o efeito de sentido suscitado pelo jogo entre pretérito e
presente no início de um conto infantil de Cora Rónai, intitulado Sapomorfose (ou o príncipe que
coaxava).
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sapos costumam dividir seu tempo entre comer e dormir), e pode, com isso, tornar sua história
mais verossimilhante e envolvente.
Apenas a título de exemplificação, vejamos com que complexidade se correlacionam
tempos, modos e aspectos verbais no fragmento a seguir, de um conto de Rachel de Queiroz,
sinalizando a situação dos fatos em diferentes momentos do eixo temporal, convidando o leitor a
atribuir a eles diferentes durações e lhe propondo interpretá-los ora como ‘acontecidos’, ora como
‘imaginados’ ou ‘desejados’:
(13) Não pudera acenar uma resposta porque só vira o bilhete ao abrir a revista,
depois que o ‘blimp’ se afastou. E estimou que assim o fosse: sentia-se
tremendamente assustada e tímida ante aquela primeira aproximação com o seu
aeronauta. Hoje veria se ele era alto e belo, louro ou moreno. Pensou em se
esconder por trás das colunas do portão, para o ver chegar – e não lhe falar nada.
Ou talvez tivesse coragem maior e desse a ele a sua mão; juntos caminhariam até a
base, depois dançariam um fox langoroso, ele lhe faria ao ouvido declarações de
amor em inglês, encostando a face queimada de sol ao seu cabelo. Não pensou se o
pessoal de casa lhe deixaria aceitar o convite. Tudo se ia passando como num sonho
– e como num sonho se resolveria, sem lutas nem empecilhos.
(14) Dissolva os ingredientes em meio litro de leite frio. Coloque tudo no fogo e mexa até
iniciar a fervura. Abaixe o fogo e deixe cozinhar por 10 minutos, mexendo de vez em
quando.
(15) Dissolver os ingredientes em meio litro de leite frio. Colocar tudo no fogo e mexer até
iniciar a fervura. Abaixar o fogo e deixar cozinhar por 10 minutos, mexendo de vez
em quando.
(16) Dissolvem-se os ingredientes em meio litro de leite frio. Coloca-se tudo no fogo e
mexe-se até iniciar a fervura. Abaixa-se o fogo e deixa-se cozinhar por 10 minutos,
mexendo de vez em quando.
(17) Para fazer esse doce, você tem que dissolver os ingredientes em meio litro de leite
frio, depois colocar tudo no fogo e mexer até iniciar a fervura. Daí, você tem que
abaixar o fogo e deixar cozinhar por 10 minutos, mexendo de vez em quando.
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(18) Para fazer esse doce, você dissolve os ingredientes em meio litro de leite frio, depois
coloca tudo no fogo e mexe até iniciar a fervura. Daí, você abaixa o fogo e deixa
cozinhar por 10 minutos, mexendo de vez em quando.
(19) Dissolverás os ingredientes em meio litro de leite frio. Colocarás tudo no fogo e
mexerás até iniciar a fervura. Abaixarás o fogo e deixarás cozinhar por 10 minutos,
mexendo de vez em quando.
CONCLUSÃO
Num artigo rápido como este, não seria possível abordar com profundidade todos os
princípios de textualização, nem ao menos tratar do amplo leque de recursos coesivos disponíveis
na língua, explorando adequadamente suas possibilidades de uso nas práticas linguageiras
sociais e de aplicação na aula de Português. Procurei, então, centralizar minha exposição em
algumas poucas idéias básicas, que retomo aqui, para finalizar.
As produções lingüísticas efetivas são textualizadas pelos interlocutores envolvidos num
processo de interação verbal; seu sentido e sua adequação são mentalmente co-construídos pelos
interlocutores, que levam em conta seus objetivos e expectativas, os conhecimentos, crenças e
valores que partilham, as circunstâncias físicas em que as produções ocorrem. Sendo assim, em
si mesmas, por si mesmas, isoladas de seu contexto de uso, as produções lingüísticas não têm
nem deixam de ter sentido, não são boas nem más, nem certas nem erradas. No processo de
textualização, um mesmo texto pode ser considerado incompreensível e impróprio por
determinados interlocutores, em determinada situação, e ser considerado plenamente inteligível e
adequado por outros interlocutores, noutra situação.
Essa concepção pode trazer como conseqüência para o ensino de Língua Portuguesa,
a) por um lado, flexibilização com relação a fôrmas e modelos textuais e à imposição de
regras lingüísticas prévias, pretensamente universais e absolutas;
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b) por outro lado, atenção e acuidade no trabalho com os textos orais e escritos
interpretados ou produzidos pelos alunos, porque a escolha, a reflexão e a avaliação
relativas aos recursos lingüísticos deverão levar em conta as circunstâncias dos
processos de produção e interpretação, os conhecimentos e disposições dos
interlocutores.
ATIVIDADE DE APLICAÇÃO
Prepare uma atividade para realizar com seus alunos em sala de aula, relativa às
posssibilidades de TEXTUALIZAÇÃO do texto transcrito abaixo. Trata-se de uma carta dirigida ao
apresentador de televisão Gugu Liberato.
Comece por convidá-los a refletir sobre a intencionalidade, a aceitabilidade e a
situacionalidade desse texto, orientando-os a levantar hipóteses consistentes quanto
1. Ao locutor:
a) quais seriam seus conhecimentos lingüísticos e textuais;
b) quais seriam seus objetivos e suas expectativas ao redigir esta carta;
c) qual seria a sua compreensão da situação de interlocução.
2. Ao alocutário:
a) quais seriam seus conhecimentos lingüísticos e textuais;
b) qual seria sua expectativa e disponibilidade quanto às cartas que recebe;
c) qual seria a sua compreensão da situação de interlocução.
A partir dessa reconstituição das condições de produção e leitura da carta, discuta com
seus alunos as possibilidades de TEXTUALIZAÇÃO dessa carta pelo destinatário. Para isso,
examine com eles o grau de adequação desse texto, apontando seus pontos positivos e suas
falhas com relação à construção, pelo leitor previsto, da:
• informatividade;
• intertextualidade;
• coerência;
• coesão;
Proponha a seus alunos a reescrita desse texto, de acordo com a análise feita.
Estabeleça com eles orientações para essa reescrita e defina com eles estratégias de
encaminhamento e discussão da atividade (que etapas do trabalho serão realizadas
individualmente, em duplas, em grupo, ou coletivamente?) bem como critérios de avaliação e auto-
avaliação.
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PEDAGOGIA CIDADÃ – CADERNOS DE FORMAÇÃO
Volumes de Língua e Literatura
Caderno 9 – Texto, textualidade e textualização (Maria da Graça Costa Val)
Marilia da Silva
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PEDAGOGIA CIDADÃ – CADERNOS DE FORMAÇÃO
Volumes de Língua e Literatura
Caderno 9 – Texto, textualidade e textualização (Maria da Graça Costa Val)
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