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17 1969

EDIÇÃOESPECIAL
ABRIL

17 de Abril de 2009

a cabra
Ano XVIII
N.º 196
Quinzenal gratuito

Director: João Miranda


Editor-executivo: Pedro Crisóstomo Jornal Universitário de Coimbra

Quando os estudantes
pediram a palavra
D.R.
2 | a cabra | 17 de Abril de 2009 | Sexta-feira
17 1969
ABRIL

MEMÓRIA FORMIDÁVEL © CMC

á vai longa a madrugada

J e no edifício da Rua Padre


António Vieira a discus-
são está acesa. À volta da
mesa, Direcção-Geral da Associa-
ção Académica de Coimbra
(DG/AAC) e Juntas de Delegados
entremeiam a vontade de intervir
e de marcar uma posição com o re-
ceio da detenção de sócios e pior,
da destituição da direcção da asso-
ciação académica. É necessário
tomar uma decisão e é então que
Osvaldo Castro arremessa a ideia
para o debate, “eles dizem que nós
não aceitamos e que não vamos
falar. Não, nós aceitamos. Vamos e
falamos segundo o protocolo”. A
confusão instala-se, há os que de-
fendem a ideia e os que a negam à
partida. Os representantes da
Junta de Delegados de Ciências,
Carlos Baptista e José Manuel
Roupiço, asseveram a sua posição,
a decisão do plenário da faculdade
é de que se fale, a junta de Ciências

Também fora do
edifício a contestação
se fez sentir

vai tomar a palavra. Está decidido!


O presidente da direcção-geral se
achar que tem condições para isso,
também pede a palavra. Alberto
Martins deixa transparecer: “não
tenho grande lábia para isso”.
Há que pôr o plano em marcha,
nos corredores da AAC os estudan-
tes que vão aparecendo desdo-
bram-se entre a pintura de cartazes
e a distribuição de cartas pelas re-
públicas a mobilizar todos os estu-
dantes para estarem presentes na
cerimónia de inauguração.
Quando Osvaldo Castro e Celso
Cruzeiro terminam a sua missão de
convocar os estudantes que se en-
contram nos jardins da AAC, à
porta do edifício das Matemáticas APÓS A CERIMÓNIA, os estudantes desceram para os jardins da associação

17 DE ABRIL DE1969
já vários alunos empunham os car-
tazes pintados na noite anterior.
Por pouco, José Hermano Saraiva
e Américo Thomaz falham a che-
gada do grupo de alunos liderados
por Carlos Baptista e Osvaldo Cas-
tro.
Pouco falta para as 11 horas.

A “VERDADEIRA INAUGURAÇÃO”
Dentro da sala, Alberto Martins já
se encontra sentado, enquanto as
figuras do regime vão ocupando os
lugares da frente. Cá fora, está um
daqueles dias de Abril, com sol mas
com vento frio. Celso Cruzeiro ne-
goceia com um polícia a entrada
dos estudantes, mas depressa os Nesta madrugada de Abril, Coimbra ainda está longe de imaginar as
alunos enveredam pela porta do
edifício.
proporções que um pedido de palavra vão desencadear no movimento
Com a sala já repleta, começam
os discursos oficiais, entretanto,
estudantil e no plano político português. Reportagem por João Miranda
Celso Cruzeiro, que não conseguiu
entrar no edifício, agarra no mi- instigar ainda mais os alunos. Coimbra, peço para usar da pala- dente da República, “bem, mas vanta e abandona a sala.
crofone que o vice-presidente da Terminado o discurso do se- vra”. Na sua perplexidade, Thomaz agora fala o ministro das Obras Pú- Perante todo o cenário, Alberto
comissão administrativa do novo gundo orador, Alberto Martins le- não responde, ao que Alberto Mar- blicas”. A cerimónia continua, fala Martins sobe para uma cadeira e
departamento, Louza Viana, lhe vanta-se e dirige-se a Américo tins volta a repetir o pedido. A eu- o ministro das Obras Públicas, fala declara: “esta é a verdadeira inau-
cede, na esperança de acalmar a Thomaz: “Senhor Presidente da foria das palmas inunda a sala e só o ministro da Educação e por fim guração!”. Osvaldo Castro vai
massa estudantil que se reúne no República, em nome de todos os é substituída por vários murmúrios todas as personalidades do regime abrindo alas à saída de Américo
exterior. Porém, Celso só consegue estudantes da Universidade de quando surge a resposta do Presi- seguem Américo Thomaz que se le- Thomaz que é rodeado por estu-
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MEMÓRIA
FORMIDÁVEL © CMC

dantes que gritam com o Chefe de


Estado.
Na sala, Alberto Martins acaba o
seu discurso e dá a palavra a Car-
los Baptista que lê a Carta Aberta
da Junta de Delegados de Ciências,
e a Barros Moura que fala pela
Confederação Nacional dos Estu-
dantes Portugueses. Reina a “ver-
dadeira inauguração”.
Terminada a “cerimónia”, cá fora
os dirigentes, que recusaram o al-
moço oficial com os responsáveis
de Estado, abraçam-se e congratu-
lam-se, e são discutidas e pronun-
ciadas as directivas para o futuro
da AAC. A discussão continua tarde
fora nos jardins da associação. Não
é de uma Assembleia Magna que se
trata, mas a discussão é agora per-
manente.
Com o cair da noite, urge tomar
medidas de precaução, “nenhum
dirigente deve dormir na sua casa”
e conclui-se a última decisão da
noite: saem todos pela porta da
frente da AAC, Alberto Martins de-
verá ser o último a sair. O plano FORMIDÁVEL © CMC
corre como previsto e o presidente
é o último a abandonar o edifício,
acompanhado por Osvaldo Castro.
Surgem então sete agentes da PIDE
(Polícia Internacional de Defesa do
Estado) que identificam Alberto
Martins e que o conduzem à sede
da polícia política.
Sem qualquer resposta sobre o
incidente, por parte da reitoria e do
ministério, a dirigente estudantil
Fernanda Bernarda, inicia uma
ronda de telefonemas às repúblicas
convocando todos os estudantes
FORMIDÁVEL © CMC
para a porta das instalações da
PIDE. Depressa, a Rua Antero de
Quental fica repleta de estudantes
que exigem a libertação de Alberto
Martins. A resposta do regime não
se faz esperar e a polícia carrega
sobre a massa estudantil. Estão
assim abertas as portas para uma
crise que se vai prolongar por todo
o ano de 69.

*este relato baseia-se em entre-


vistas feitas a testemunhas, como
Osvaldo Castro, Matos Pereira, FORMIDÁVEL © CMC
Carlos Baptista; no relato dos livros
“Grandes Planos – Oposição Estu-
dantil à Ditadura”, de Gabriela
Lourenço, Jorge Costa e Paulo
Pena, e “Coimbra, 1969”, de Celso
Cruzeiro e na Acusação inserida
nos processo disciplinar académico
levantado.

NOTA EDITORIAL

Era intenção do Jornal ACABRA


publicar uma entrevista com o
Ministro da Educação Nacional
em 1969, José Hermano Saraiva.
Quando contactado telefonica-
mente, este recusou a entrevista e
remeteu qualquer esclarecimento
para a as suas memórias, publi-
cadas em livro. Já em 1999 e
2001, José Hermano Saraiva havia
recusado prestar declarações ao
jornal sobre o 17 de Abril e a
Crise Académica de 1969.
A Direcção
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ENTREVISTA
ALBERTO MARTINS • PRESIDENTE DA DG/AAC EM 1969

“Em 1969, os estudantes de Coimbra


estavam do lado certo da história”
Na comemoração dos quarenta anos da crise académica, Alberto Martins conta como
despoletaram os acontecimentos que marcaram a Academia naquele ano. Texto por Andreia
Silva e Cláudia Teixeira e fotografia por Pedro Crisóstomo
oi no gabinete de Alberto res do 25 Abril foram os oficiais jo- Em algum momento, ponde- após a greve aos exames, a AAC é Foram a Coimbra as grandes figuras

F Martins, na Assembleia
da República, em Lisboa,
que revisitámos as me-
mórias de quem construiu parte da
vens da universidade. Pela primeira
vez na vida universitária, a mulher
tem um papel importantíssimo. A
luta de Coimbra, pela primeira vez
rou não falar?
Não. Tinha de ter condições para o
fazer. O que esperava era que me
prendessem e espancassem, mas eu
encerrada e 49 de nós são incorpo-
rados compulsivamente no exército,
como traidores à pátria. Coimbra,
na altura, foi uma ilha de liberdade.
da canção, da literatura, da oposição
democrática. Os convívios eram
uma forma de atrairmos os estu-
dantes para uma mobilização colec-
história da Universidade de Coim- na história da universidade, tem tinha de pedir a palavra. Era o meu tiva e para os focalizar naquilo que
bra e da própria resistência ao fas- esse protagonista fantástico que são compromisso. Mas quando entrei A partir do momento em que o era o grande objectivo da luta, que
cismo. Com um sorriso no rosto e homens e mulheres em luta. Como para a sala pensei para mim pró- reitor, Andrade Gouveia, em era a greve aos exames. Fizemos
sempre descontraído, o actual líder dizem alguns, o 1969 foi não só uma prio: “isto não vai ter grande efeito, comunicado, nega a palavra à luto, acabamos com a praxe dos ca-
parlamentar do Partido Socialista festa da liberdade mas foi também estou sozinho, eles vão fazer aquilo DG/AAC, como foi traçada a es- loiros e fizemos a greve aos exames.
fala do momento em que pediu a pa- uma festa do amor (risos). que eu estou a pensar que vão fazer, tratégia para poderem inter- Não fizemos a Queima das Fitas e
lavra na sessão de inauguração do vão-me prender”. Mas entretanto vir? fomos prestar esclarecimentos à ci-
Departamento de Matemática, em De que forma foi feita a articu- entram os meus colegas que ocupam Dissemos em comunicados públicos dade porque tinha uma importância
1969, o qual se seguiu a sua prisão e lação entre a DG/AAC e os es- toda a sala. Recordo-me de uma fo- que íamos usar todos os meios legí- económica muito grande para a ci-
uma intensa luta estudantil, pau- tudantes das faculdades? tografia do Celso em cima de um co- timos para poder usar da palavra. dade de Coimbra, e nós tivemos que
tada por uma greve aos exames e o Havia uma articulação muito forte. lega nosso a mandar entrar os Claro que era uma situação de risco, pôr os comerciantes e os habitantes
encerramento da própria universi- Não éramos dirigentes distanciados nossos colegas. Quando vi os meus mas foi um risco racional e criterio- ao lado dos estudantes. Eu posso
dade. Alberto Martins acredita que da vida estudantil. Qualquer fluxo colegas na sala pensei: “a batalha samente assumido. dizer a esta distância que a univer-
“a democratização do ensino é uma informativo se verificava de forma está ganha”. Perante o meu pedido sidade, os professores, os funcioná-
necessidade de desenvolvimento muito veloz e regular. Como diz Mao de palavra, o Américo Thomáz disse As repúblicas e os Organismos rios e a cidade de Coimbra esteve ao
para Portugal” e que “os jovens não Tsé-Tung, um líder sem massas é “bom, e agora fala o ministro das Autónomos da AAC tiveram lado dos estudantes em 1969. E isso
estão alheados das questões políti- como um peixe fora de água. E nós Obras Públicas”. Depois prende- um papel preponderante na foi conseguido pela capacidade dos
cas”. éramos líderes de massas porque es- ram-me nessa noite, à saída da AAC. crise académica. estudantes de fazer sentir que a sua
távamos ligados aos estudantes. Vinham com uma pistola e disseram Sim. Tiveram um papel muito im- luta era justa. Era uma luta pela li-
Até 1969, o movimento estu- “o senhor é o Alberto Martins? portante porque eram uma forma de berdade, por uma universidade me-
dantil assentava na luta pelo Quando tomaram posse, em Então considere-se preso”. Leva- organização livre e autónoma de au- lhor, por um país melhor.
direito de associação. A partir Fevereiro, pensaram que daí a ram-me e lá fiquei até ao meio-dia togestão dos estudantes.
de 1969, passou a concentrar- dois meses estariam a quatro do dia seguinte. Passada uma hora A crise foi um passo impor-
se sobre a universidade. Para metros de distância do poder? oiço um barulho brutal. Eram os co- O movimento juntou pessoas tante para a queda do regime?
si, qual foi o momento que des- Não. Nunca pensámos que as coisas legas que tinham ido para a porta da de esquerda, de direita, católi- Sim. Nós fomos, a determinada al-
poletou a crise académica? se proporcionassem de forma tão PIDE a pedir a minha libertação. cos, mulheres. Como foi possí- tura, a esperança na mudança de
O momento mágico da luta dos es- rápida. Foram banidos violentamente com vel juntar pessoas de vertentes uma ditadura que já tardava em

SEGUNDO ALGUNS, COIMBRA, NA ALTURA,


FOI A MAIOR GREVE FOI UMA ILHA DE
DE RESISTÊNCIA LIBERDADE
À DITADURA

tudantes foi o pedido de palavra do cair. Na memória das lutas estudan-


presidente da DG/AAC, que era eu, No dia 17 de Abril, não temeu graves agressões. No dia seguinte li- tão diferentes? tis em Portugal, o melhor delas é a
na inauguração do edifício das Ma- confrontos com a polícia? bertaram-me e suspenderam-me Sobretudo pela grande capacidade luta da resistência à ditadura.
temáticas ao chefe de estado da di- Temi. A decisão de pedir a palavra das aulas e de qualquer actividade de luta de todos nós. Pela grande ca-
tadura, o Almirante Américo foi tomada no dia anterior, numa universitária. pacidade de fazermos o movimento A visão que tem da crise acadé-
Thomáz. A partir daí, desencadeia- reunião da direcção. Chegou-se à Depois, a academia faz greve às de massas, de termos consciência de mica a esta distância é a
se um grande processo na vida da conclusão que quem estava em me- aulas com uma grande adesão, in- que o que era importante era os es- mesma que tinha por exemplo
academia, muito intenso. Segundo lhores condições para o fazer era o clusive dos professores, e o José tudantes estarem unidos. em 1980, quando escreveu o
alguns, a maior greve de resistência presidente da direcção-geral, por- Hermano Saraiva afirma que “a texto “Há Onze Anos em Coim-
à ditadura que houve em Portugal. que podia sempre reivindicar a ordem será inexoravelmente man- Esperava que a mobilização de- bra – A Crise Académica de
condição de ser representante de tida na Universidade de Coimbra”, pois dos acontecimentos do 17 69”?
Quais eram as principais ban- todos os estudantes. O nosso temor com rosto e voz ameaçadora, algo de Abril fosse assim tão Não sei… O tempo faz-nos ver a his-
deiras da Crise Académica de era que o pedido de palavra fosse que teve uma resposta esmagadora grande? tória de forma cada vez mais distan-
1969? visto como uma provocação gra- com a greve. Depois, o governo en- Não. Tínhamos sempre uma grande ciada e é curioso que quarenta anos
Defendíamos uma universidade tuita. Tínhamos de pedir a palavra cerra a universidade e nós decidi- dúvida: se não tivéssemos em As- depois nós estejamos a comemorar
nova. Uma universidade com um para que interpretassem isso como mos fazer então a greve aos exames. sembleia Magna um mínimo de três, a crise académica. Significa que não
novo ensino, novas qualificações, uma pretensão legítima, formulada Fizemos piquetes de greve, fomos quatro mil estudantes, não tínha- foi um episódio, significa que foi
modernidade, abertura à sociedade. de forma equilibrada e com rigor. espancados, presos pela Polícia Ju- mos condições para avançar para a uma marca. Eu hoje tenho a noção
Queríamos também uma sociedade Essa era a minha preocupação. E diciária, levados a tribunal e absol- greve aos exames. Aquele período clara, que já tinha na altura, que em
nova. A ideia de que a classe operá- eu tinha de pedir a palavra, por vidos, acusados do crime de tumulto que medeia a greve às aulas, o en- 1969 os estudantes de Coimbra es-
ria, as vanguardas populares eram uma questão de honra. Não ficaria público que era um crime que não cerramento da universidade e a tavam do lado certo da história. O
os detonadores da história começa a bem comigo próprio se não o fi- era exercitado em termos de acusa- greve a exames foi um período de lado certo da história é sempre o
mudar. Em Portugal, os detonado- zesse. ção desde a monarquia. Em Agosto, grandes movimentações culturais. lugar da liberdade.
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ENTREVISTA

essenciais para que tenham uma participação dos estudantes nos ór-
“A responsabilidade dos boa formação. gãos da universidade, e continuo a
ser. Mas acho que a partilha da res-
PERFIL

estudantes nos órgãos de Que comentário faz às decla-


rações que acusam os jovens
ponsabilidade dos estudantes deve
ser diminuta nos órgãos de gestão,
Alberto de Sousa Martins nasceu
a 25 Abril de 1945, em Guimarães.
de estar alheados das ques- isto é, os estudantes devem apre- Em 1963 entrou no curso de Direito
gestão deve ser diminuta” tões políticas? Acha que é um
problema de causas ou de
sentar a suas alternativas políticas
fora desses órgãos. Eu defendo a
da Universidade de Coimbra. Ainda
pensou seguir Medicina, mas como
meios? participação de estudantes, mas “tinha um grande problema com o
Há cada vez mais alunos a lúcido de quem olha o futuro com Eu não considero que os estudan- com a responsabilidade a recair nos sangue”, optou por Direito, por ser
abandonar o ensino superior vontade que ele mude e que seja tes e os jovens estejam alheados professores, nos elementos exterio- uma área que também lhe desper-
devido a dificuldades econó- melhor. A insatisfação é uma exi- das questões políticas. A política é res e nos funcionários, porque acho tava interesse. Em 1969, é eleito
micas. Pensa que a democra- gência de uma pessoa inteligente e tudo, é a vida. que os estudantes devem ter um es- presidente da Direcção-Geral da
tização do ensino, pela qual que quer um futuro melhor. paço livre de alternativa e não um Associação Académica de Coimbra,
lutou em 1969, está ameaçada Na Crise Académica de 69 os espaço de responsabilidade da ges- tendo tido um papel fundamental
pela actual crise económica? Actualmente verificam-se estudantes lutaram pela re- tão. nos acontecimentos que ocorreram
Acredito que a democratização do casos de estudantes que pas- presentatividade nos órgãos a 17 Abril. Esse dia tornou-o “num
ensino é uma necessidade de de- sam por sérios problemas eco- de gestão da universidade. Em Isso não cria um fosso entre a actor com consciência cívica e com
senvolvimento para Portugal. Essas nómicos Considera ser um 2007, com a aprovação do Re- instituição e a comunidade es- preparação política”, sem o qual
dificuldades são conjunturais, mas retrocesso face aos tempos da gime Jurídico para as Institui- tudantil? Uma opinião não é “seria certamente um honrado ad-
não nos podem distanciar do que é crise académica em que lutava ções de Ensino Superior deliberativa. vogado do Porto ou de Guimarães”.
fundamental. Não há limites para a pelo fim de uma universidade (RJIES), houve uma diminui- Aquilo que interessa aos estudan- Exerceu advocacia e foi docente na
qualificação da nossa formação. Eu elitista? ção nessa mesma representa- tes é o plano pedagógico, o plano Faculdade de Letras da Universi-
quero uma melhor democracia, Nós, enquanto sociedade democrá- ção. O PS, do qual é líder científico. Os estudantes podem dade do Porto, tendo enveredado
uma melhor universidade, e um tica, devemos ter condições de soli- parlamentar, aprovou a lei. dar uma opinião analítica e eu acho pela carreira política em 1987. Ac-
maior progresso para Portugal. dariedade. Eu não penso que os Na altura qual foi a sua posi- isso positivo. Agora, a partilha res- tualmente é presidente do grupo
Demos um salto mas não chega, e estudantes devam ser privilegiados, ção? Votou a favor? ponsabilizada da organização não parlamentar do PS.
a insatisfação faz parte do espírito mas devem ser criadas condições Sim, votei a favor. Fui a favor da me parece a melhor solução.
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ANTECEDENTES

O CAMINHO
PARA O 17 DE ABRIL
Da luta pela autonomia universitária às greves de 62, um longo historial
de luta e contestação marca as raízes da Crise Académica de 1969.
Por João Miranda
1956 – o mundo assiste a perma- ções estrangeiras. Com o decreto, do Decreto-lei nº 40900. Contudo, perar e vários estudantes ocupam o
nentes convulsões, catalisadoras de surge também a possibilidade da fica provada a capacidade organiza- Palácio dos Grilos e a Torre Cabra,
novos rumos de mudança. Pelas imposição de comissões adminis- tiva dos estudantes. conduzindo a um novo processo
universidades da Europa, o existen- trativas que substituam a direcção disciplinar contra os dirigentes.
cialismo de Sartre e de Beauvoir co- eleita em caso desta se orientar por A importância Em Lisboa, num plenário com
meça a proliferar e com eles as uma “má conduta”. da crise de 62 seis mil estudantes, no dia 9 de
ideias da liberdade individual e da No mesmo dia da aprovação do Quando os cerca de dois mil estu- Maio, decidem-se inúmeras acções
subjectividade do ser humano, ao decreto, os estudantes de Lisboa dantes da Universidade de Lisboa de luta, entre elas, uma greve de
mesmo tempo que as concepções discutem em Reunião Inter-Asso- se agrupam na cidade universitária fome que leva 86 alunos a barricar-
expedidas do recém-formado Pacto ciações (RIA) o teor do novo édito, na manhã do dia 24 de Março de se nas cantinas da universidade
de Varsóvia insurgem na comuni- no encontro marcam presença dois 1962, estão longes de imaginar as para pôr em marcha o plano. Nesse
dade académica uma vontade de delegados da Associação Académica repercussões históricas e o signifi- mesmo dia, a Assembleia Magna da
abertura das instituições às classes de Coimbra (AAC). Inicia-se então cado da acção que estão prestes a AAC delibera nova ocupação da
trabalhadoras. um processo de luta que, segundo levar a cabo. Com o intuito de esta- sede da associação, que se vê frus-
“Orgulhosamente só”, o Portugal belecer ali o Dia do Estudante, os trada pela intervenção da polícia de
de Salazar vive à margem do con- alunos pretendem desfilar pelas choque. A Queima das Fitas é can-
texto internacional. Assim o vivem ruas de Lisboa. Mas o que encon- celada e para colmatar a falta de re-
também as universidades portu- Na crise de 62 tram é uma cidade universitária ceitas que a decisão origina,
guesas. Num sistema universitário cercada pela polícia de choque. enquanto os estudantes vendem
que abrange cerca de 18 mil estu- vários estudantes Quando no percurso entre o pólo poemas nas ruas de Coimbra.
dantes, provindos essencialmente universitário e o restaurante onde é Cerca de um mês depois, um ple-
das famílias abastadas, as universi-
foram suspensos suposto realizar-se o convívio, vá- nário de estudantes em Lisboa de-
dades concentram-se exclusiva- rios estudantes empunham cartazes cide a cessação do luto académico,
mente em Lisboa e Coimbra. com mensagens de protesto. A polí- vários estudantes são suspensos e
Vencidos que estão os estudantes Gabriela Lourenço, Jorge Costa e cia desmobiliza a frente e carrega expulsos das universidades e a AAC
que ainda reclamavam a legalização Paulo Pena, autores da obra “Gran- sobre os manifestantes. No dia se- continua encerrada.
do Movimento de Unidade Demo- des Planos – Oposição Estudantil À guinte, é decidido em RIA o decre-
crática – Juvenil, o regime aponta Ditadura”, conhece dois caminhos tar de luto académico e ao mesmo Nova era na AAC
agora as baterias aos pequenos gru- muito diferentes, em Lisboa e em tempo iniciar uma greve às aulas. Os órgãos gerentes da AAC são no-
pos que começam a penetrar a bar- Coimbra. Enquanto na capital a Sob a AAC paira ainda o processo vamente demitidos em 1965 e é ins-
reira da dificuldade da organização luta se pretende nacional e análoga, de suspensão, pela tentativa da as- taurada pelo ministério uma
do movimento estudantil nas uni- a linha da Associação Académica de sociação em organizar o I Encontro Comissão Administrativa (CA) no-
versidades. O alargamento da pres- Coimbra (AAC) envereda pelo reco- Nacional de Estudantes. Porém, meada pelo reitor. Porém, só uma
tação de serviços das associações de nhecimento da singularidade de também aqui o luto ganha expres- minoria dos estudantes tem conhe-
estudantes a residências, cantinas e Coimbra. Então, pela mão do Con- são. Com a possibilidade da revoga- cimento da medida ministerial. A
apoios sociais como a saúde e o se- selho de Repúblicas (CR) é apre- ção do processo sobre a Academia, resolução não afecta, ainda assim,
guro escolar não vem ajudar a bata- sentada em Assembleia Magna uma Coimbra interrompe o processo de os organismos autónomos, que jun-
lha do governo e a antiga lei de manifestação para o dia seguinte, luta. No dia seguinte o processo é tamente com o Conselho de Repú-
regulação das actividades estudan- em que quase toda a totalidade dos entregue à Policia Judiciária. Tam- blicas (CR) desenvolvem iniciativas
tis 1932 mostra-se assim obsoleta. estudantes de Coimbra marcha tra- bém o órgão dos estudantes – a pu- contra a imposição.
Sob o signo de 40900, Salazar jada entre os Gerais, o actual Pátio A luta desenrola-se até o princí-
pretende finalmente extinguir qual- da Universidade, e o Governo Civil. pio de 68, quando a conjuntura
quer possibilidade de sublevação ou Passa quase um ano sobre o iní- oposicionista dos estudantes decide
objecção por parte dos estudantes. cio dos protestos e o decreto vai a “A CPE era uma criar a Comissão Pró-Eleições
40900 é também o número do de- debate parlamentar. À porta de S. (CPE) e recolher assinaturas num
creto-lei que vai estar na origem de Bento, um grupo de estudantes es- espécie de documento que reivindica eleições
uma das maiores contendas da his- pera para entregar vários abaixo- livres na AAC. “A CPE era uma es-
tória do fascismo português entre o assinados reivindicando a extinção
direcção-geral” pécie de direcção-geral” lembra o
governo e os estudantes. Com o pre- da medida. O presidente da Assem- antigo membro, Osvaldo Castro.
texto de implementar no meio aca- bleia Nacional, Albino dos Reis, re- “Organizou esse abaixo-assinado,
démico o mesmo espírito cebe-os argumentando: “vocês é blicação Via Latina – vê várias mas também um conjunto de ou-
corporativista que se vive nas fábri- que sabem. De qualquer modo, o edições censuradas e a direcção edi- tras iniciativas, nas repúblicas, nos meada em Setembro de 1968 para
cas e escritórios, a medida governa- decreto já está suspenso. E sabemos torial substituída. organismos autónomos”. Recolhi- realizar as eleições depois de anos
mental vela uma nova metodologia as chatices em que estas coisas se Rapidamente a Academia de Lis- das cerca de duas mil assinaturas em que elas não tiveram lugar”, re-
para as associações de estudantes. podem tornar…”. Os dirigentes de- boa volta ao luto académico e, em está concretizado o objectivo essen- corda José Miguel Júdice. Por seu
Assim, as assembleias-gerais pas- cidem então, como explicam os au- solidariedade, seguem-se-lhe as as- cial da acção, o alargamento do mo- lado, Osvaldo Castro defende que as
sam a restringir-se a delegados de tores de “Grandes Planos”, revogar sociações de Coimbra e do Porto. A vimento. eleições se tornam realidade devido
cada ano, as actividades começam a entrega dos documentos. AAC exige a demissão do reitor, Em Setembro de 1968, toma ao movimento entretanto desenvol-
a ter que passar pelo carimbo de As manifestações e focos de con- Guilherme Braga da Cruz e, como posse a quarta comissão adminis- vido pela CPE: “nós forçamos as
aprovação do ministério, assim testação que surgem depois entre retaliação, o Ministério da Educa- trativa, liderada por Jorge Ponce eleições”.
como a composição das direcções Lisboa e Coimbra não conseguem ção Nacional demite a direcção da Leão e com José Miguel Júdice na No dia 12 de Fevereiro de 1969,
eleitas e as relações com associa- evitar a aprovação e implementação associação. A resposta não se faz es- vice-presidência. “A CA foi no- duas listas apresentam-se ao ple-
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ANTECEDENTES
D.R.

biscito, uma dinamizada pela CPE, do CPE liderada por Carlos Baptista raiva. O ministro tenta esquivar-se de matérias sociais, a Fernanda na AAC. Até que surge a notícia da
encabeçada por Alberto Martins e vence as eleições. ao encontro marcando um almoço Baptista também”, conta Osvaldo inauguração do novo edifício do De-
Osvaldo Castro e outra denominada O período que se segue à tomada com os dirigentes. Os membros da Castro. “E ele ficou um bocado es- partamento de Matemática da Uni-
Movimento Renovação e Reforma de posse é de desenvolvimento das direcção-geral encetam então uma pantado porque o que estava a falar versidade de Coimbra. Decide-se
(MRR), dinamizada por sectores linhas programáticas do movi- estratégia para o almoço: cada um naquele momento não comia, só assim a participação e o pedido de
mais identificados com o regime. mento e de reivindicação da melho- coloca as questões que lhes são atri- despejava, despejava, despejava”, palavra, por parte dos dirigentes es-
No antigo ginásio da AAC, actual ria das condições para os buídas e durante esse período não acrescenta. tudantis, na cerimónia de inaugu-
Cantina dos Grelhados, são eleitos estudantes. Osvaldo Castro lembra come. “O Alberto Martins apresen- O momento após a tomada de ração e dá-se início a um dos
seis membros da lista do CPE e um o episódio em que a direcção-geral tou inicialmente os nossos pontos posse é também de reorganização períodos mais marcantes da histó-
do MRR para a direcção-geral. requer uma reunião com o ministro de vista gerais, o Celso Cruzeiro do trabalho da direcção-geral e de ria da Universidade de Coimbra, a
Também a lista do conselho fiscal da Educação, José Hermano Sa- falou de matérias culturais, eu falei preparação para um novo período Crise Académica de 1969.
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ANTECEDENTES D.R. D.R.

D.R. D.R.

AS MOVIMENTAÇÕES ESTUDANTIS ocorridas em anos anteriores proporcionaram uma “almofada” internacional para a crise conimbricense

O Maio de 68 trouxe um amigo também


A crise académica não foi uma acção isolada. Em pleno auge da Guerra Fria e por toda
a Europa estudantes e população juntam-se para fazer face às dificuldades
verno salazarista. Prova disso foi a colonial, eram protestos surdos”, de 1969 se enquadra nos movimen- correntes, que passaram a ser temas
Filipa Magalhães tentativa do governo, em 1957, para, bem diferentes do que se passava tos estudantis que vinham a acon- de debate e discussão entre os estu-
Rui Miguel Pereira através do Decreto 4900, acabar nos EUA. tecer desde 1957 em Portugal. Na dantes, agora despertos e ávidos de
com as associações académicas. Es- Anos após os primeiros confron- sua perspectiva, o Maio de 68 foi informação. Tal como afirma Car-
Muito antes de os estudantes de tavam lançadas as pedras para a tos entre estudantes e forças da lei apenas uma ligeira influência para valho Homem, “os estudantes da-
Coimbra confrontarem o governo construção do muro de oposição es- nos EUA, acontece em França a crise académica, mais importante quela época eram estudantes que
português em 1969, já vários países tudantil ao regime. aquele que ficou conhecido como o do que esse acontecimento, foi a in- conviviam e que discutiam ombro a
tinham visto os seus estudantes re- Maio de 68. Segundo o historiador e vasão da Checoslováquia pela União ombro as questões, o que conduziu
belarem-se. Nos Estados Unidos da Movimentos deputado, Fernando Rosas, “todas Soviética. A Checoslováquia encon- a que dentro da academia de Coim-
América (EUA), o movimento con- catalisadores as lutas estudantis eclodiram em es- trava-se em 1968 à beira do afasta- bra se pudessem fazer movimentos
tra a guerra do Vietname e pela de- O primeiro movimento estudantil a treita correlação com o Maio de 68”. mento do bloco soviético. Contudo, de acção colectiva”. O “excesso” de
fesa dos direitos humanos, abalar o mundo surgiu nos EUA Não deixando ninguém indiferente, e com a invasão da URSS, em informação preocupava o governo
mobilizou jovens de todas as classes onde a Guerra do Vietname e a luta ocorre ao mesmo tempo, por toda a Agosto de 1968, cai o governo re- português que temia uma subleva-
e mostrou uma sociedade inconfor- pelos direitos humanos provocou a França, uma onda de greves operá- formador, ficando este período co- ção dos estudantes.
mada. Anos depois, em 1968, e a indignação dos jovens, sobretudo rias por maiores salários e melhores nhecido como a Primavera de Como forma de retrair a crescente
partir de manifestações ocorridas nos campos universitários. Mas condições de trabalho. Esta cadeia Praga. onda de contestação estudantil, o
nas universidades francesas de apesar de, tal como Portugal, os de contestação é simultaneamente governo mobilizou, à força, estu-
Nanterre e Sorbonne, viria a ocor- EUA estarem em guerra, não é pos- marcada e responsável por uma vi- Informação dantes para a guerra do Ultramar.
rer a mais importante revolta estu- sível, segundo o historiador e do- ragem de mentalidades assinalável. que vinha de fora O que se veio a revelar um erro, pois
dantil da história. Correm cente da Universidade de Coimbra, Para Amadeu Carvalho Homem A tendência filosófica existencia- os estudantes universitários arregi-
repercussões por toda a Europa. Amadeu Carvalho Homem, estabe- “houve a percepção, da parte da lista, personificada por Jean-Paul mentados puderam transmitir a
Alemanha, Checoslováquia, Itália e lecer um paralelo entre a oposição nossa população mais esclarecida, Sartre e Simone de Beauvoir, (que mensagem de denúncia ao resto do
Polónia sentem o efeito do Maio de dos estudantes dos dois países. En- de que as coisas estavam a mudar subjugavam o individuo à própria contingente militar. Como destaca
68 nesse mesmo ano. quanto decorriam manifestações no plano internacional”, por isso, a liberdade) e a influência do pensa- Carvalho Homem, “ pô-los nas filei-
Ainda longe do que viria a ser a nos EUA contra a guerra, em Portu- “almofada” internacional da década mento marxista começa a ganhar ras das forças armadas foi a mesma
Crise Académica de 1969, a contes- gal, refere o professor, “não havia de 60 foi tão preponderante para a nova força dentro das universida- coisa que meter o cavalo de Tróia
tação estudantil em Portugal era já direito de manifestação”, “os pro- Crise Académica de 1969. Já Fer- des. A esfera académica portuguesa dentro das muralhas”.
uma realidade que preocupava o go- testos que existiam contra a guerra nando Rosas acredita que esta crise não era indiferente a estas novas

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D.R.
OPINIÃO
A crise de 69
Crise!
Qual crise?

JOÃO
BOTELHO

“Adoro o passado. É muito mais na barriga. Fiz parte da comissão


repousante que o presente e so- da cantina da AAC (Associação
bretudo muito mais seguro que o Académica de Coimbra), onde
futuro!” todos nós comíamos muito e mal,
Esta frase dita por um narrador e onde tudo começou. A partir daí
aristocrata no início de “LA a vertigem dos movimentos colec-
MONDE” de Max Ophuls apesar tivos durou meses para uns, anos
de maravilhosa está em oposição para outros. Sofrer com a praxe
absoluta a qualquer das sentenças mas o prazer de acabar com ela,
que me conduziram a caminhada. participar em assembleias contí-
Por exemplo, para mim “amanhã, nuas em vez de ir a aulas idiotas,
é sempre melhor do que hoje!”. E desenhar Hermano, o Firme, a cair
assim eu me movo, penso, crio, de um pedestal, vaiar o Américo
tomo decisões, enfim acelero e Thomaz na sessão mais quente da
vivo. crise, escrever frases poéticas nas
Esforço de memória. 40 anos é vetustas paredes, erguer balões e
muito muito tempo e eu detesto flores ingénuas mas, menos infan-
efemérides, celebrações e passa- til, colocar sebo no chão para as
dos. E no entanto há qualquer patas dos cavalos, ou nós de pre-
coisa de grandioso e de enternece- gos para os pneus dos jeep da GNR
dor que de repente me atinge (Guarda Nacional Republicana)
agora que me pedem um pequeno que nos tentavam combater. Viva
texto sobre a “crise Coimbrã” de a “Alfatah”! Todos os ismos em
1969. Crise? Qual crise?! Para poucos meses, até ao glorioso e
minha euforia, aprendizagem con- afrancesado “jus q’au boutismo”
tínua, celebração total da vida. E que me fez chumbar por faltas dois
ao contrário da ideia aristocrática anos seguidos logo no primeiro
citada no início, repouso é que mês de aulas, já a “revolução”
nunca houve. A Portugal as coisas tinha terminado há muito. Porque
chegam sempre atrasadas, como um tipo com missão de artista, ou
nós portugueses chegamos sempre lá o que é, nunca se rende. A
atrasados, mais do que nós só os aprendizagem fez-se de outro
brasileiros, que são uma espécie de modo. Colectiva, colectiva, sempre
portugueses divertidos, que falam colectiva. O único disco de Miles
com vogais e têm o dom do canto, Davis era de todos, o Quarteto de
enquanto nós utilizamos consoan- Alexandria de Durrel era de todos,
tes e temos o dom do queixume. o círculo de artes plásticas era um
No entanto, as nossas queixas mundo, o cineclube a vida, e acima
em 1969 foram extraordinaria- de tudo o CITAC (Círculo de Ini-
mente alegres, embora pobres imi- ciação Teatral da Academia de
tações dos grandes movimentos Coimbra), o meu teatro radical e
dos jovens americanos e dos jo- louco, em que os encenadores, in-
vens franceses, que no ano ante- variavelmente eram postos na
rior tinham decidido a revolta total fronteira. Foi esta a minha verda-
e com ela a mudança da vida de deira universidade. E a amizade e
todos nós e do mundo inteiro. o amor nunca foram tão gigantes-
Uns tinham o Vietnam, outros o cos e tão intensos. Mas já não me
De Gaulle e nós o Salazar prestes lembro de nada quando de novo as
a cair da cadeira, a primavera capas e batinas e as praxes imbe-
idiota de Marcello Caetano e a cis ocupam tanto país jovem
nossa absurda guerra colonial, quanto as suas cabeças são preen-
muito podre. E à memória chega- chidas por revistas rosas ou face-
me a imagem da carne com ver- books de idioteira desmedida.
mes do Couraçado de Potemkine Tenho pena, a “crise” de hoje não é
numa sessão clandestina do cine- só financeira nem é só económica.
clube de Coimbra, o que confirma Realizador. Estudante
que as revoltas começam sempre da UC em 1969
10 | a cabra | 17 de Abril de 2009 | Sexta-feira
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ABRIL

REPÚBLICAS
As “ilhotas democráticas” desse Abril
As Repúblicas foram casas de causas que não abandonaram o barco durante a crise, apesar das
dificuldades. Ficaram, lutaram e conseguiram levar a bom porto aquilo a que se propuseram
PEDRO CRISÓSTOMO
Sara Coimbra Histórias que
Maria João Fernandes moldaram a crise
Sara Oliveira João Gonçalves, antigo residente
da Real Ay-ó-Linda, agora com 62
“As repúblicas serviram de plata- anos, confessa que ainda hoje mui-
forma durante aqueles meses”, de- tos dos seus antigos colegas de re-
fende a mestre em Culturas pública, nunca chegaram a
Regionais Portuguesas, Teresa Car- conhecer uma história apenas sua.
reiro. Eram células independentes, Tudo se passou a propósito da
onde se preparava a revolução entre greve aos exames, em Junho de 69.
as paredes que tantas histórias têm O ex-repúblico conta que ele e mais
para contar; sítios onde a PIDE (Po- dois colegas correram todo o bairro
lícia Internacional de Defesa do Es- do Calhabé com uma sovela, um
tado) tinha medo de entrar, mesmo instrumento com que os sapateiros
quando a suspeita era mais que coziam os sapatos, furando todos
muita. Pedidos como “senhor dou- os pneus dos “traidores”, que não
tor, pode vir para ser interrogado?”, fizeram greve. Até hoje permanece
ouviam-se muitas vezes à porta des- o anonimato de quem fez o quê a
tas casas de resistência. E se de re- quem, sendo que “agora já se pode
volta e resistência se fez a crise de contar”, graceja o ex-repúblico.
69, os que passaram por ela dizem Mas as histórias são mais que
que “Coimbra de 69 foi Paris de 68”. muitas em pleno 69. João Martins
Júlio Oliveira, antigo residente da lembra que “às quatro da manhã
Real República Rápo-Táxo, hoje [do dia 17 de Abril] apareceu a po-
com 62 anos, considera que “eram lícia de choque e começou a ferir
tempos difíceis”, mas tinha-se “a muita gente”. O embate entre os
consciência de que algo tinha de cerca de 100 estudantes que lá se
mudar em Portugal”, pois o regime encontravam àquela hora foi muito
não perdoava os irreverentes. Para violento e o ex-repúblico lembra

O Conselho de Por precaução,


Repúblicas tinha nas repúblicas
um representante também se vigiavam
de cada casa os agentes da PIDE

Teresa Carreiro, as Repúblicas eram também a presença de Marinho e


mesmo “ilhotas democráticas”, Pinto, “ele apanhava sempre”. Se
onde havia eleições, e onde a justiça para uns estar entre os confrontos
deveria estar sempre à mesa. era uma opção, para outros não
As muitas conversas que aconte- estar era uma obrigação. “Os paizi-
ciam dentro de cada uma das repú- nhos que não concordavam com a
blicas eram intermináveis, e greve [aos exames] e que temiam
ultrapassavam em muito a habitual pela segurança dos filhos levavam-
hora do jantar. A discussão e a de- nos para casa”, remata João Mar-
mocracia andavam de mãos dadas, tins.
e as ideologias que já tinham noites E porque a violência foi uma das
e noites de discussão, eram trans- armas utilizadas no confronto
portadas para o Conselho de Repú- entre polícia e estudantes, os epi-
blicas (CR), que como explica o O CONSELHO DE REPÚBLICAS reunia-se sempre numa república, que variava de reunião para reunião sódios sucediam-se. Contudo, Rui
antigo residente da Real República Namorado explica que nas Repú-
Ay-ó-Linda, João Martins, “era entre vontade de mudança e espí- nas linhas do regime. A impressão essa mesma palavra passava tanto e blicas também se vigiavam os
aceso e onde estava presente um re- rito de equipa, no dia 7 de Março de d´“O Badalo” tinha de ser feita a tão depressa que a PIDE não demo- agentes da PIDE: “havia uma cen-
presentante de cada república”. As 1969, pela primeira vez, uma lista quilómetros de Coimbra, pois tudo rava muito a aparecer e a apreender tral de escuta dentro de uma das
reuniões do CR acabavam sempre do CR vence a corrida à Direcção- tinha de passar despercebido atra- todos os exemplares que encon- repúblicas que tinha a frequência
tarde, pois no debate, a troca de Geral da Associação Académica de vés da clandestinidade. Quem hoje trasse, como recordam os episódios da polícia, e sabíamos o que eles es-
ideias era uma constante. Falava- Coimbra (DG/AAC). folheia o jornal, percebe facilmente de Celzo Cruzeiro na obra “1969 tavam a dizer e onde o estavam a
se do regime, da universidade, da que tem artigos desordenados que Coimbra – A Crise Académica, o fazer”.
cidade, do reitor e seus seguidores, “O Badalo” se fragmentam por diferentes pági- Debate das Ideias e a Prática, Se, por um lado, a violência era a
e tudo, tudo o que os repúblicos en- revolucionário nas, dificultando a leitura. Isto por- Ontem e Hoje”. arma do regime, por outro existiam
tendiam ser importante para o fu- O CR foi o motor que ressuscitou a que os artigos tinham de ser O antigo membro da Real Repú- “as operações de charme”, que, se-
turo da academia coimbrã. “Pelo imprensa estudantil. O Badalo, jor- subdivididos para que a PIDE, ao blica Os Pyn-Guyns, e actual pro- gundo Teresa Carreiro, “eram
meio havia uns copos”, graceja João nal do organismo das repúblicas, revê-los, não se apercebesse da sua fessor da Faculdade de Economia pouco comentadas na altura, mas
Martins, “mas isso não impedia que era a forma privilegiada de difusão natureza, que estava longe de ir ao da Universidade de Coimbra, Rui eram habilmente utilizadas nos
houvesse um nível de formalidade”. de ideias das várias repúblicas, pois encontro das ideologias do regime Namorado, hoje com 67 anos, nota cafés por muitos estudantes para
Para Teresa Carreiro “o CR foi foi o verdadeiro eco da revolta dos fascista. Depois de uma viagem tur- que “o facto de o CR publicar um trazer as meninas para a causa re-
muito importante sobretudo a par- estudantes contra a conjuntura vi- bulenta, os jornais chegavam, final- jornal era por si só uma afronta”. volucionária”. Quando faltavam
tir do fenómeno Humberto Del- vida. mente, às faculdades, e em menos Apesar do activismo d´“O Badalo” apenas cinco anos para o golpe que
gado”, pois o regime começava a Contudo, foi uma aventura peri- de 15 minutos esgotavam-se, devido se afirmar com todas as letras, este faria cair o Estado Novo, a estu-
deixar marcas que o tempo não con- gosa construir um jornal que não à natureza democrática e combativa jornal só conheceu três edições, diosa sublinha que “a década de 60
seguia apagar. Foi então que, por estava propriamente enquadrado que imprimia nas suas palavras. E uma em cada ano de 66, 67 e 68. veio a dar as flores em Abril de 74”.
17 de Abril de 2009 | Sexta-feira | a cabra | 11
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ACADEMIA ANDRÉ FERREIRA

CER

TEUC

GEFAC

AS ACÇÕES DE RUA, as peças de teatro, os espectáculos musicais e os cartazes eram utilizados para que a mensagem revolucionária se espalhasse pelos estudantes
CORO
O
MIST
A contestação dentro de portas...
Os organismos programação que de um modo Os dias que precederam o 17 de volução não estava naquela sala numa ma-
da AAC foram os geral nos deixava sair um pouco
daquilo que estava no papel e man-
Abril foram turbulentos. O TEUC
preparava-se para a estreia da peça
porque tinha ido com uma colega
resolver um problema de censura
nifestação,
com um gravador
TAUC
pilares que fizeram dar umas ‘bocas’ através dos mi- “A ilha dos escravos”, que iria a devido a uma peça que estava já na desde a [avenida] Sá
vingar os propósitos crofones”, refere. palco poucas vezes. O antigo mem- fase terminal e que pelos vistos não da Bandeira
de uma luta e que Quando em 1968 a lista do Con-
selho de Repúblicas (CR) se prepa-
bro do grupo de teatro mais antigo
da academia, José Oliveira Barata,
podia sair”. Mas ressalva que “es-
tavam muitos elementos do CITAC
até quase à
Praça da Re-
CITAC
viam nas actividades rava para vencer a corrida aos hoje com 60 anos, era o protago- na sala onde houve o primeiro em- pública, andando
um meio de resistência corpos gerentes da AAC, foram os nista da história e conta que “na bate com o Alberto Martins quando ali pelo chão, na busca
organismos autónomos que mais peça estavam retratadas uma série pediu a palavra”. Para além disso, de algum som para o
directamente estavam ligados ao de desigualdades sociais entre pa- Maria Delgado explica que “havia CER”, conta João Sansão
Sara Oliveira
CR que foram consultados em pri- trões e escravos. Essa ‘ilha’ era Por- elementos do CITAC muito bons ao Coelho com entusiasmo.
meira instância, nomeadamente o tugal”. A censura não tardou e, o nível da ilustração e foram eles os “O esforço que os orga-
Por entre as portas dos organis- Teatro de Estudantes da Universi- antigo membro do TEUC explica autores de muitos dos cartazes fan- nismos desenvolviam era
mos autónomos conspirava-se con- dade de Coimbra (TEUC), o Círculo que depois de uma longa conversa tásticos que apareceram na AAC, feito através dos espectácu-
tra o governo de Américo Thomaz e de Iniciação Teatral da Academia que teve com o ministro José Her- de pura sátira e contestação”. los”, sublinha Luís Pais Bor-
a revolta protegia-se e alimentava- de Coimbra (CITAC), o Coro Misto, mano Saraiva, “ele acabou por Já Sansão Coelho conta que os ges, que travou algumas
se dentro da pequena muralha que a Tuna Académica da Universidade banir o espectáculo”. momentos que fizeram da sala 17 batalhas ao utilizar os espec-
tinha o nome de Associação Acadé- de Coimbra (TAUC) e o Coral. de Abril o que é hoje ficaram regis- táculos do GEFAC para trans-
mica de Coimbra (AAC). “Todo Para Luís Pais Borges, antigo A crise de 69 tados. “O Maia, um amigo meu, foi mitir as mensagens em que os
aquele espaço era uma zona acas- membro do Grupo de Etnografia e na primeira pessoa gravar o que aconteceu na sala 17 estudantes acreditavam, e que
telada, quase castrense da Acade- Folclore da Academia de Coimbra Marcelo Ribeiro, ex-membro do de Abril. A determinada altura ele o governo desaprovava re-
mia”, defende um dos antigos (GEFAC), hoje com 59 anos, “a luta CITAC, fez parte do grupo que chegou, e pouco tempo depois, já dondamente. “Num dos es-
membros do Centro Experimental do GEFAC era igual à do TEUC ou marcou presença na sala da inau- estava a ouvir a gravação. Infeliz- pectáculos a sala foi
de Rádio (CER), que hoje deu lugar à do CITAC, e nessa altura havia guração do edifício das Matemáti- mente, teve tanto medo, que ficou mesmo esvaziada e
à actual Rádio Universidade de um maior empenhamento por va- cas e foi membro do grupo que com a fita e escondeu-a”, explica o fomos todos para a
Coimbra, João Sansão Coelho, um lores como a autonomia da UC”. dirigiu os piquetes da greve acadé- jornalista. A fita, essa, foi escon- esquadra, enquanto
jornalista de 59 anos. Pais Borges considera que “era mica posta em prática a 2 e 4 de houve um ‘saque’ ao autocarro a
O CER emitia experimental- mais fácil desenvolver-se esquemas Junho de 1969. Confessa que “é um fim de a PIDE tentar descobrir
mente, explica o jornalista, e num e minar as actividades do regime orgulho ter participado sempre em Viver intensamente mais alguma coisa de que não gos-
circuito interno dentro da AAC, porque os organismos tinham al- todas as lutas académicas contra o tasse”, lembra o antigo membro do
através de pequenas colunas. Ape- guns meios para dominar a propa- regime vigente quer político quer
e inventar diferentes GEFAC, sendo que “as dificuldades
sar disso, Sansão Coelho sublinha ganda, a começar desde logo pelos universitário”. O ex-membro do formas de luta era eram mais que muitas e aquilo
que “ se faziam muitos programas espectáculos que davam, pois apro- CITAC foi preso várias vezes, e [GEFAC] não era folclore nenhum,
gravados com conteúdos vanguar- veitava-se sempre para passar al- numa dessas vezes a Polícia Inter- o caminho para porque o regime apertou muito as
distas que emitiam em várias emis- guns recados”, enfatiza. nacional de Defesa do Estado malhas”.
soras, e que reflectiam a própria A luta era transversal aos diver- disse-lhe com todas as letras: “você
a vitória Uma maior consciência da res-
revolta contra o regime”. Contudo sos organismos. “Fazíamos acções é mesmo um revolucionário por ponsabilidade que os estudantes ti-
esses programas só podiam ser en- de rua, intervenções nos jardins da conta própria”. dida no telhado de uma das casas nham dentro da sociedade
viados para as antigas colónias, AAC, com manifestações e peças Não foi interdição ter de estar do Terreiro da Erva, na Baixa de portuguesa e a valorização da con-
pois “não havia propriamente uma que de algum modo transmitiam presente no edifício das matemáti- Coimbra, mas nunca mais foi en- testação contra o governo e as suas
censura e o analfabetismo impe- algo”, refere Maria João Delgado, cas no dia 17 de Abril de 69 para contrada. Mas não foram poucos os políticas são as consequências que
rava nesses sítios”, defende. A ne- antigo membro do CITAC, agora mudar a história do movimento es- episódios que marcaram o dia 17, Maria João Delgado afirma terem
cessidade de liberdade de com 63 anos. “Houve nitidamente tudantil em Portugal, até porque a que percorreram a cidade do Mon- vindo de uma luta “árdua” que não
expressão reinava e era também muita coisa que saiu das nossas ca- revolta não se resumiu apenas dego de lés a lés e que até hoje não se ficou apenas pelo papel, mas que
por isso que os estudantes de beças e dos nossos corpos durante àquele. Maria João Delgado pode foram esquecidos. “Recordo-me de teve nos actos e dentro da acade-
Coimbra lutavam. “Tínhamos uma essa altura”, lembra. comprová-lo. “No dia da grande re- andar a tentar captar os passos mia a sua bandeira.
12 | a cabra | 17 de Abril de 2009 | Sexta-feira
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PERFIL
CELSO CRUZEIRO • ELEMENTO DA DG/AAC EM 1969 PEDRO CRISÓSTOMO

CELSO
ESTÁ MAIS VOLTADO PARA O FUTURO
ESCRITÓRIO da casa em Cajadães, Oliveira de Frades, onde Celso Cruzeiro vive

Cedo veio estudar para Coimbra e cedo se deixou envolver pelo movimento estudantil.
A sua visão apartada do aparelho partidário repele-o da máquina. Uma visão despegada
que o leva a ser tido como o cronista da crise académica. Por Pedro Crisóstomo
steve envolvido na crise até 1969” – foi “um ajuste de contas com Foi acusado, como muitos, de par- de cor, uma passagem de um comu- ziu. Da única vez que se filiou num

E ao osso. A imagem que têm


dele é do rapaz de 21 anos,
de barba comprida e de ca-
saco de cabedal preto, na soleira da
a crise”, que ficou saldado por aí, re-
vela a irmã, Manuela Cruzeiro.
Quando há 20 anos lançou a obra –
onde faz a leitura cronológica e polí-
ticipação directa na contestação do
dia 17 de Abril, de convocar assem-
bleias magnas, de actividade panfle-
tária e injúria a professores. Nada
nicado escrito pelo irmão, a partir de
um poema de José Gome Ferreira:
“Foram demasiados os companhei-
ros de bibe e pião que ficaram pelo
partido foi em 1974 – na Comissão
Política Nacional do Movimento de
Esquerda Socialista, extinto sete
anos mais tarde. Chegou a subscre-
porta das Matemáticas, de microfone tica dos acontecimentos – ficou sur- que o fizesse mover. Era tempo de caminho”. ver o manifesto de fundação do Bloco
em punho, a puxar alto pelos colegas. preendido com a recepção pública, perder ou tempo de ganhar. E, nisso, de Esquerda, mas a independência
A voz rouca e sincopada, inconfundí- que pensava interessar a pouco mais Celso Cruzeiro “era muito sanguíneo, O ensaio à sociedade que exige a si mesmo traz consigo a
vel à distância, é a mesma de há 40 do que os que viveram a data. “E 40 sobretudo quando era preciso con- Sobre os movimentos estudantis de obrigação de “não ficar prisioneiro de
anos na força e na convicção, tão anos depois, ainda querem saber o vencer”, elogia Pio Abreu. Manuela hoje, Celso diz-se desiludido com o favores que o impeçam de dizer de
firme quanto a utopia que o faz cor- que se passou”, ironiza Celso, com Cruzeiro lembra com precisão a As- caminho dos estudantes. “As direc- caras aquilo que pensa”, esclarece a
rer há 63 anos. um sorriso no rosto. sembleia Magna de 28 de Maio – ções muitas vezes estão sintonizadas irmã.
Celso Cruzeiro é um histórico da Aos 16 anos, vem estudar Direito aquela onde decidida a greve aos exa- com o poder e eu gostava mais de ver Celso sabe que está longe de en-
crise – para muitos o eterno utópico para Coimbra, onde habita o Palácio a juventude a discutir muito mais do contrar um mecanismo de sociedade
do movimento – hoje conhecido ad- da Loucura. Pio Abreu, que com ele que as medalhas”. Acha que as lutas definida – “ultrapassando os obstá-
vogado em Aveiro e a viver a um mi- partilhou casa, recorda que é ali que “Tinha um entusiasmo perderam algum sentido e que os lí- culos de uma teoria repetitiva do pas-
nuto da casa que o viu nascer, na o amigo desperta para a ideia de deres se tornam “adultos de mais e sado” –, mas nem por isso deixa de
Aldeia de Cajadães, Oliveira de Fra- fazer um movimento que envolvesse arrasador e as pessoas muito conservadores”. Sinais de abrir caminho a um projecto dife-
des. Tem perfeita consciência do que todos os estudantes da universidade. novos vícios: “a malta jovem já não rente de vida. O livro que lançou em
representou no 17 de Abril e já espe- “Ele queria pensar nas questões filo- ficavam convencidas tem esperança de ter um emprego. Novembro passado, “A nova es-
rava que 40 anos depois não o lar- sóficas, a economia, o mundo”. quando ele falava” Existe uma cultura de desesperança querda”, é o resultado de 13 anos de
gassem para falar da crise. Não nega Quando, em Março de 69, a lista do que começa a ter lógicas ligadas aos investigação extensa, também ao
o passado, de que se orgulha sem Conselho de Repúblicas vence as tráficos vários, à hierarquia adminis- lado da família e dos amigos, que não
egocentrismos, mas prefere falar da eleições para a associação acadé- mes – em que “a coisa esteve muito trativa, aos chefes, aos ‘gangs’”. E de- tem vergonha em esconder – os fi-
outra crise. Ou melhor, das crises mica, torna-se responsável pelo pe- balançada”… até ao momento em pois vem a censura, uma certa asfixia lhos, os netos… e a mãe. Com 91
que por aqui andam… E aí sobe o louro cultural com a motivação de que o irmão “segurou a assembleia”. sobre os movimentos que contestam anos, Orsina Rocha vai a meio de “Os
tom da voz, quase gritando e gesticu- desenvolver um conjunto de centros “Tinha um entusiasmo arrasador e as o poder. Fidalgos da Casa Mourisca” en-
lando muito. É tudo menos memo- de estudos. Mas com o despoletar da pessoas ficavam convencidas quando Na democracia, já em 1995, escre- quanto os dois filhos mais velhos
rialista, porque viver com a saudade crise a meio de Abril, “a luta passou a ele falava”, reforça Pio. A ajudar, veu um romance, “Não pode ser”, conversam. Quase não é preciso fazer
de um acontecimento de quatro dé- ocupar tudo, tudo, tudo”. A direcção havia os comunicados “muito bem- também ele político – como não perguntas. Discutem. Atiram farpas.
cadas é como virar as costas ao fu- estava permanentemente em reu- feitos” a chamar para a luta, que podia deixar de ser. Celso é um polí- Celso repete que é preciso discutir o
turo, assume. E Celso está mais niões, quase 24 horas por dia. Foi aí eram da responsabilidade de Celso. tico – na teoria e na prática. Já o era, futuro. Manuela acena com a cabeça
voltado para o futuro. Já em 69 es- que Celso deu mais de si, ajudando a “Não tinham aquela fria linguagem consistente, em 69. Mas um político e acrescenta que o caminho é aproxi-
tava, mas o que o lhe importa agora é transportar para dentro da universi- dos comunicados comuns”, diz Ma- daqueles que na prática nunca se fe- mar os jovens. Ele não podia estar
abrir novos caminhos e novos hori- dade a discussão sobre o saber, o en- nuela. “Às vezes, eram duas e três pá- chou sobre si próprio. Embora reco- mais de acordo. Irmãos. Que viveram
zontes políticos. sino e as formas como eram ginas, que líamos sofregamente. nheça a importância da actividade a crise. Como não podia deixar de
O livro que escreveu – “Coimbra, ministrados. Líamos e quase chorávamos”. E cita, partidária, a estrutura nunca o sedu- ser.
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17 1969
ABRIL

ENTREVISTA
CARLOS BAPTISTA • PRESIDENTE DA JUNTA DE DELEGADOS DE CIÊNCIAS E DO CF/AAC EM 1969

“Falávamos sempre, oficialmente ou não”


As Juntas de Delegados dos estudantes e os organismos da AAC assumiram um papel
preponderante na introdução da contestação dentro das faculdades. Por João Miranda
Como descreve todo o pro- inauguração. Nas vésperas, o reitor teriores, se manifestou sempre em respeito aos estudantes e a politi- da direita?
cesso que conduziu a que em informa, numa resposta um pouco torno da associação. zação ia-se fazendo sempre, em Não tinham hipótese, não havia es-
1969 se realizassem as pri- dúbia, “não podem participar, por- crescendo, em torno destas ques- paço de manobra para eles. Ti-
meiras eleições livres na As- que o protocolo já está feito e não No dia 17 de Abril estava den- tões. E estávamos a viver também o nham os seus próprios jornais, os
sociação Académica de podemos inscrever os estudantes tro do edifício. Em algum mo- problema da Guerra Colonial. seus próprios grupos mas durante
Coimbra? no protocolo”. A direcção decidiu mento pensaram que Alberto Havia um meio favorável ao desen- aqueles meses de greve não se ma-
Há um movimento que antecede falar na mesma. E mobilizámos os Martins não viesse a falar? volvimento deste movimento. E nifestaram. Mesmo os professores
essas eleições, que é o movimento estudantes em torno da participa- Não. Falávamos sempre, oficial- Coimbra, a partir de 69, foi um de direita.
do abaixo-assinado. Abaixo-assi- ção na inauguração. E foi o que mente ou não. Acabou por se suce- paiol em termos políticos, onde
nado que consegue milhares de as- aconteceu. O [Alberto] Martins der a segunda opção, mas falaria houve de facto muita pulverização O 17 de Abril ainda é uma data
sinaturas a exigir eleições para a pediu a palavra, eles não lha con- sempre, isso não estava excluído. em grupos partidários e é natural presente tanto na comuni-
Associação Académica de Coimbra. cederam. Também deixaram na ex- Inclusivamente, nós já tínhamos que isto crie uma base de apoio a dade estudantil, como na so-
Esse movimento é encabeçado por pectativa, não disseram que sim uma carta da junta para usar du- qualquer movimento para o der- ciedade?
uma comissão chamada a Comis- nem que não. E depois abandona- rante a cerimónia e nessa mesma rube de qualquer regime, a qual- Em Coimbra é uma data impor-
são Pró-Eleições (CPE). Pratica- ram a sala e nós fizemos a inaugu- manhã a junta reuniu com os estu- quer momento. tante. Não sei se no resto do país…
mente, a crise nasce aí. É o ração, que foi considerado na dantes para decidir essa participa- Os jornais todos os anos recordam.
movimento da CPE que vem dar altura a verdadeira inauguração do ção e quem devia falar. Esta luta extravasou a comu- Foi um movimento sui generis.
origem à organização nas faculda- edifício. Falou o Martins pela asso- nidade estudantil…
des e na própria associação. ciação, eu li a carta aberta da junta Tinham previsto que aquele Nós forçámos para que extrava- Existe alguma deturpação his-
de Ciências, o Barros Moura falou momento viesse a desenca- sasse. Com a existência da censura tórica há volta da crise?
São eleitos… em nome da Comissão Nacional de dear um movimento, como havia a preocupação em abafar o Até hoje não. Acredito que haja
Há duas listas. Uma de direita e Estudantes Portugueses, o Celso aconteceu? que se passou em Coimbra. Curio- uma ou outra pessoa que se sinta
uma lista patrocinada pelo Conse- Cruzeiro também falou… A partir Penso que sim. Era cedo para de- samente, a primeira pessoa que no direito de assenhorear o movi-
lho de Repúblicas, mas com a cola- daí, eles tomam a decisão de san- sencadear o movimento, mas mais veio divulgar a existência de tu- mento, mas foi um movimento de
boração dos organismos cionar oito alunos, os seis da multos em Coimbra foi o próprio oito mil estudantes.
autónomos, que também propu- DG/AAC, eu pela junta de Ciências José Hermano Saraiva, quando
nham pessoas para as listas. Eu sou e o Barros Moura. apareceu a fazer o discurso dele. Ainda faz sentido, hoje, um 17
um caso, pelo Teatro dos Estudan- CONTINUA A HAVER Aparentemente, nos jornais, du- de Abril?
tes da Universidade de Coimbra, Sem esse trabalho mais des- TODAS AS RAZÕES rante todo aquele mês, havia um Há coisas que o 25 de Abril trouxe,
embora também pertencesse à centralizado, com o apoio das país perfeitamente calmo e aparece que não tínha-
CPE. juntas e dos organismos autó- [PARA UM 17 DE ABRIL] um ministro a dizer que em Coim- mos. Mas as
nomos, teria sido possível de- bra estava a acontecer qualquer coisas mu-
Qual era a posição da CPE senvolver o movimento à coisa. Mas utilizámos outros daram.
sobre as comissões adminis- volta do 17 de Abril? tarde ou mais cedo iria haver re- meios, fizemos a carta à Continua
trativas (CA)? Não. Politicamente na Academia só pressão. Porque a repressão estava nação, que foi divulgada na a haver
A CA era uma imposição ministe- havia um partido a funcionar com sempre no ar. O Queiró ou o Mi- final da Taça e no S. João. todas as
rial para sancionar a direcção de militantes, que era o partido co- randa Barbosa tinha dito que “se razões.
1964. Não fecharam a associação, munista, onde estava eu e estavam houver agitação em Coimbra, nós Neste momento, qual foi
propriamente dito, mas puseram muitos estudantes. Entretanto, expulsamos três ou quatro estu- o papel
uma comissão a geri-la. Os estu- com o movimento do abaixo-assi- dantes e o problema está resol- dos es-
dantes estavam alheios à sua pró- nado, criou-se uma estrutura que vido”. Não expulsaram três ou tudan-
pria associação. Os organismos era o CONGE, que, de certa forma, quatro, expulsaram oito e não tes
autónomos não eram afectados, dirigiu politicamente. Portanto, parou, tiveram que castigar cerca
continuamos a ter eleições livres havia uma organização que tem um de duzentos. E tiveram uma greve
nos organismos. Por isso, o movi- papel muito importante, porque aos exames com oito mil, mais de
mento foi feito, de certa forma, no havia estudantes de todas as facul- 86 por cento da universidade.
exterior com o Conselho de Repú- dades no CONGE, havia estudan-
blicas e no interior da associação tes que dirigiam organismos Que importância atribui a
com os organismos autónomos. autónomos, havia estudantes das toda a onda de contestação
repúblicas nesse CONGE. E por- no processo histórico do
Como recorda o espaço tem- tanto, as informações circulavam derrube do fascismo?
poral entre o início do man- muito rapidamente e era possível Foi um momento político es-
dato e o dia de 17 de Abril? Foi inclusivamente testar as iniciativas, pecial. Havia uma expecta-
um tempo de mobilização? nas tácticas que eram utilizadas. tiva em torno de uma
Foi um tempo muito curto. A Junta Por outro lado, na associação só possível liberalização do re-
de Delegados de Ciências já estava podiam participar os estudantes gime. Também optamos por
a trabalhar em vários sectores den- que eram sócios e só uma minoria outro caminho. No movi-
tro da faculdade, quando surge a de estudantes é que o eram. Para mento estudantil nunca
notícia de que vai ser inaugurado o participarem oito mil estudantes havia uma politização di-
edifício das Matemáticas. Nessa al- na greve, como participaram, era recta, começávamos os mo-
tura, pensamos “nós devemos tam- necessário ir mais longe e esse ir vimentos com questões que
bém participar”. Porque uma das mais longe era a junta , que conse- diziam directamente
exigências era que os estudantes guiu levar o movimento estudantil
também participassem em tudo o para dentro das faculdades,
que dizia respeito à sua faculdade. quando ele, nas cri-
A própria direcção [da AAC] assu- ses an-
miu que devia ter um papel na
inauguração do edifício. Falámos
com a reitoria. Não nos
deram uma resposta defi-
nitiva de que sim pode-
ríamos participar na “A PRIMEIRA PESSOA que veio divulgar a existência de tumultos foi o próprio Saraiva.” ANDRÉ FERREIRA
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ABRIL

MEMÓRIA
D.R. D.R.

AS REUNIÕES de alunos foram uma constante em 69 ACÇÃO DE LUTA a favor da greve aos exames

ra bastante raro ir dor- Geral da AAC em 1969, Joaquim O que é certo é que os estudantes ciais, vários estudantes foram per- pois, teve lugar a chamada “Ope-

E

mir numa cama, o que Gil, fala com entusiasmo da as- que foram aos exames, contra o seguidos pela GNR (Guarda Na- ração Balão”. Cada estudante levou
aliás não era muito se- sembleia de 28 de Maio, onde que foi decidido em Assembleia cional Republicana), tendo um ou mais balões desde a sede da
guro; a maior parte das cerca de seis mil estudantes con- Magna, ficaram com uma péssima entrado no Mercado Municipal. AAC até à Portagem, onde os lar-
vezes dormia uma ou duas horas cordaram com a greve aos exames: imagem junto dos seus colegas. gou, criando “um grande impacto
no chão ou num sofá”. Não, não é “Era empolgante, porque era a pri- “Havia, na associação, listas com visual”, recorda o antigo estudante
um extracto de um diário de meira vez que eu via os Jardins da os nomes deles”, recorda Carlos de Direito.
guerra. Trata-se, sim do testemu- AAC completamente cheios. Santarém. Hoje, com 68 anos, Ao mesmo tempo, havia espaço
nho de Joaquim Matos Pereira, Aquilo era gente que ia decidir se lembra que “durante anos e anos, para o humor. Lauro Ramos conta
membro da Direcção-Geral da As- ia ou não fazer greve. A imagem um traidor era um traidor”. a história de um colega a quem foi
sociação Académica de Coimbra que me ficou foi a daquela gente pedida a identificação por um po-
(DG/AAC) em 1969. Era este o am- imensa a dizer quase unanime- A cidade ocupada lícia a cavalo. O colega não resistiu
biente vivido em Coimbra no pós- mente que a iria fazer”. A greve aos Perante o aumento de contestação A greve aos exames e mostrou o cartão, não ao polícia,
17 de Abril. exames foi também uma forma de e de manifestações anti-regime, mas ao cavalo. Resultado: deten-
O luto académico, decretado a a comunidade universitária se foram enviados para Coimbra con- foi decidida pelos ção. Também Carlos Santarém
22 de Abril, em Assembleia fazer ouvir, com resultados massi- tingentes de polícias e militares. Os sorri ao lembrar-se de como goza-
Magna, foi a forma mais forte de vos: em 1969, pouco mais de dez acessos à universidade foram guar- seis mil estudantes vam com a polícia: “como os agen-
protesto que os estudantes encon- por cento dos estudantes foi fazer dados e qualquer exteriorização de tes eram de fora não conheciam as
traram contra as prisões de outros exames. Contudo, na altura, cor- acções contrárias à ditadura eram
presentes na magna ruas e ruelas da Alta, a malta
colegas. O antigo estudante de Me- riam histórias de que quem fosse contidas pela polícia de choque. A metia-se com eles e gritava. Eles
dicina, Lauro Ramos, recorda que tinha a vida facilitada, bastando história de Carlos Santarém é elu- Lá, os agentes da polícia provoca- vinham atrás de nós e depois já
magnas eram “muito participadas” marcar presença para ter a passa- cidativa do que se vivia: “uma vez, ram vários danos materiais aos não sabiam bem onde estavam!”.
e que “toda a Academia se interes- gem à disciplina assegurada. O an- na Praça da República, houve uma vendedores. Como pedido de des- Joaquim Gil resume a vivência
sava”, provocando, por vezes, “um tigo presidente da secção social da carga policial em que a polícia de culpas, os estudantes, no dia se- dessa época dentro “de um espírito
ambiente escaldante”. De resto, as AAC, Carlos Santarém, não con- choque entrou à cacetada a sério! guinte, compraram todas as flores poético, talvez por influência do
Assembleias Magnas tornaram-se firma, mas também não desmente Eu estava na AAC, do lado das can- do mercado e foram distribuí-las Maio de 68”, em que “a contesta-
símbolos da participação e do acti- a veracidade destas histórias: “não tinas, e um polícia de Coimbra pela Baixa – da rua Ferreira Bor- ção não entrava directamente nas
vismo estudantil durante a crise pode ser provado, mas há depoi- disse-me: ‘fujam que estes gajos ges à Portagem. Segundo Carlos motivações políticas”. O antigo es-
académica, onde invariavelmente mentos. A verdade é que ao go- são umas bestas!’. O próprio polí- Santarém, “esta era uma maneira tudante lembra que “o regime
reuniam milhares de estudantes. verno interessava ter uma média cia dizia isso e de facto era assim”. de haver uma comunhão entre os ficou mesmo abalado [com a ade-
O vice-presidente da Assembleia de ida aos exames e de passagens”. Durante uma das cargas poli- estudantes e a cidade”. Dias de- são à greve aos exames]” e fala,

LUTO ACADÉMICO
A Crise Académica de 1969 foi marcada pela contestaçã
operações Balão e Flor e, sobretudo, a greve aos exam
ao 17 de Abril. P
17 de Abril de 2009 | Sexta-feira | a cabra | 15
17 1969
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MEMÓRIA
D.R. D.R.

ESTUDANTES largam centenas de balões como forma de protesto A UNIVERSIDADE cercada pela GNR

saudoso, numa “beleza guerreira, primeira página do livrinho de conta com carros “muito pouco va- sos tornou Carlos Santarém num
que atingiu o seu máximo com as Santarém, todo ele uma crítica à riados”… pois eram todos da polí- dos estudantes referenciados pelas
A SÃ DEMOCRACIA
escadas monumentais cheias de presença policial em Coimbra. cia. Nota-se, sempre, a grande autoridades, como o próprio faz PARTICIPATIVA
capacetes de ferro e arame farpado Esta “queima” tem uma Serenata ironia nos trabalhos de Carlos San- questão de mostrar num docu-
por todo o lado”. tarém. mento da Polícia Judiciária (PJ), As magnas de 69 ficaram na
Os estudantes que fizeram os sem esconder algum orgulho. No história tanto pela participação
A crise em desenhos exames, os chamados “traidores”, entanto, nunca foi preso, embora como pelo ambiente intenso que
A luta estudantil de 1969 também constituem outro dos grupos visa- estivesse ciente desse risco. “Acre- se vivia. O antigo estudante José
era feita com papel e caneta e Car- dos pelo artista. Um polícia que ditava que podia ser preso, mas Dias lembra que, “na altura, havia
los Santarém é a prova disso. Os leva por uma trela um estudante quando se tem 20 anos não se uma mão cheia de bons oradores”.
seus desenhos fizeram grande su- para o exame e um “traidor” com pensa muito nisso”, afirma. Apesar Tão bons que “a malta estava em
cesso durante a crise, como refere orelhas de burro a um canto sob as da sua segurança, o antigo estu- silêncio e só depois é que batia
Joaquim Gil: “O Santarém fazia A caricatura foi palavras “Orgulhosamente só” (co- dante conta um episódio em que palmas”. A par das assembleias –
uns bonecos que foram um êxito e nhecida frase de Salazar), são al- esteve perto de ser detido: “Uma realizadas no Pátio das Escolas, no
eram distribuídos por todo o mo- muito utilizada guns exemplos. vez estava uma colega com os Ginásio (Cantina dos Grelhados)
vimento”. Para além da mensagem que meus desenhos no Palácio da Jus- ou nos Jardins da AAC – havia uma
Um dos trabalhos é um pequeno para os estudantes transmitiam, estes desenhos ti- tiça [antiga sede da PJ] e estava o componente de animação. Zeca
livro que “saúda” a Queima das nham outro objectivo. Carlos San- inspector a perguntar quem os Afonso e Adriano Correia de
Fitas de 1969, organizada pelo go-
se unirem na luta tarém era presidente da Secção tinha feito. Eu também estava lá, Oliveira eram alguns dos artistas
verno. Na realidade, a maior festa Social da AAC e a sua grande mis- mas a entregar tabaco e doces. Não que participavam. E não havia
dos estudantes não foi realizada em que os polícias, rodeando a Sé são era fazer chegar tabaco, refri- fui preso por acaso”, desabafa. magnas curtas. Muitas começavam
nesse ano, por ordem dos grelados. Velha, são os verdadeiros artistas; gerantes, bolachas e outras Sorte diferente teve Joaquim à tarde, mas “sabíamos que se pro-
Contudo, Carlos Santarém cele- um baile que mais não é do que guloseimas aos estudantes presos, Matos Pereira. “Uma noite das longavam pela noite”. Depois, jan-
brou-a à sua maneira. “Como é do uma carga policial; na Garraiada, “mas para isso era preciso di- raras em que fui dormir a casa, a tava-se e José Dias lembra-se em
conhecimento geral, não se reali- os carneiros são os “traidores” que nheiro”, diz. Então, os desenhos polícia foi-me buscar cedo à cama, especial da tasca do Raul e das
zou a tradicional festa da Queima fizeram exames; a tarde desportiva que fazia foram vendidos para an- às seis da manhã e fui transpor- sandes de dois andares com queijo
das Fitas. O governo, sempre integra o atletismo (estudantes que gariar fundos e enviados para todo tado para a AAC, que tinha sido e presunto. Música, sandes e dis-
atento aos interesses dos seus súb- fogem da polícia), o automobi- o país. “Eram uma maneira das ocupada pela polícia”, conta o an- cussão à parte, o actual presidente
ditos, resolveu tomar a seu cargo, lismo (a polícia de “jeep”) e o hi- pessoas saberem o que se passava tigo estudante de Direito. Não, não do Conselho da Cidade define as
embora tardiamente, a sua realiza- pismo (cavalos montados nos cá”, lembra. é o extracto de um diário de magnas de 69 como exemplos da
ção”. É assim que se pode ler na agentes); e, finalmente, o cortejo Ser autor de desenhos tão famo- guerra. “sã democracia participativa”.

LUTA ACADÉMICA
ão. Assembleias Magnas com milhares de estudantes, as
mes foram os pontos altos dos meses que se seguiram
Por João Ribeiro
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17 1969
ABRIL

TAÇA DE PORTUGAL D.R.

a transmissão televisiva também foi


impedida.
A cumprir a parte final do serviço
militar em Mafra, o antigo jogador da
Briosa, Manuel António, foi directa-
mente do acampamento para a final,
levado “por um coronel que era
adepto da Académica”.
Manuel António, que foi o melhor
marcador da época 68/69, descreve
um “estádio completamente cheio”.
“Os nossos colegas estavam nas ban-
cadas com cartazes de protesto que
levantavam e, quando a polícia lá ia,
escondiam e apareciam noutro
local”, recorda. As faixas, nas quais
se podia ler “Estão 36 estudantes
presos”, “Melhor ensino, menos po-
lícias”, “Universidade livre” ou “Es-
tudantes unidos por Coimbra”, eram
erguidas rapidamente e depois enro-
ladas, antes que a PIDE (Polícia In-
ternacional de Defesa do Estado) as
alcançasse.
Ainda antes do jogo, enquanto a
equipa aquecia num espaço junto aos
balneários do Estádio Nacional, Ma-
nuel António lembra que alguns po-
lícias tentavam prender estudantes.
“[Os polícias] passavam no trajecto
para o balneário quando saíam, e
como tínhamos de entrar em campo
– porque sem nós não havia jogo –
mandávamos uns piropos”, relata.
Depois de a equipa ter sido proi-
NO TOPO SUL DO ESTÁDIO, as faixas de protesto eram erguidas e rapidamente enroladas para evitar reacção da PIDE bida de usar braçadeiras e adesivos
em sinal de luto, a Académica entrou

A final mais politizada de sempre


no Jamor de capa aberta e caída
sobre os ombros. Em vez de chegar
ao centro do campo em corrida,
como era habitual na década de 60,
entrou a passo. “Ninguém nos podia
Desde o início da crise, a AAC mostrou-se solidária com os estudantes. A Taça mandar correr e a polícia não teve hi-
pótese de nos proibir”, conta Manuel
de Portugal de 1969 foi conquistada pelo Benfica, mas quem esteve na final António.
Dos seus pés surgiu o golo que pôs
apercebeu-se que em Coimbra se estava a travar uma luta política a AAC em vantagem a sete minutos
do fim. Mas o sonho de dar a conhe-
conversas de esclarecimento. gunda mão, no Calhabé, em Coim- sobre o futebol”. cer o protesto académico desvane-
Catarina Domingos bra, a Académica utilizou “o equipa- Jamor: o palco político ceu-se, com Simões a levar o
A caminhada até à final mento preto com uma faixa branca, A Académica chegava à final da Taça encontro para o prolongamento e
A final da Taça de Portugal de 1969 A partir do momento em que come- que foi proibida”, como conta o an- de Portugal pela quarta vez na sua Eusébio a dar a vitória final à equipa
pôs frente a frente o Benfica e a Aca- çou a crise académica, a equipa de tigo jogador Vítor Campos. Em história e tentava conseguir, contra o de Otto Glória. “Seria uma grande
démica. Os encarnados repetiam a futebol também se manifestou e res- opção, os jogadores voltaram a pôr Benfica, o troféu que lhe havia fugido festa, mas, se calhar, uma grande
presença no Jamor pela 15ª vez e os peitou as regras do protesto. “Éra- um adesivo branco por cima do em- dois anos antes, frente ao Vitória de desgraça, porque aquilo estava cheio
estudantes chegavam à final depois mos estudantes universitários, fomos blema. A Académica venceu os dois Setúbal. de polícia, ia haver confusões de cer-
de deixar pelo caminho o Vitória de nós próprios que votámos em As- encontros e dava seguimento a “uma Contudo, mais importante era a teza absoluta”, supõe Manuel Antó-
Guimarães e o Sporting. No prolon- sembleia Magna o luto académico grande caminhada em termos des- oportunidade de mostrar ao país as nio.
gamento, Eusébio desfez o empate a que realizámos”, conta Mário Cam- portivos”, como classifica Mário razões dos protestos do movimento Se a Académica tivesse ganho, já
uma bola e deu a vitória ao Benfica, pos, antigo jogador da Académica. Campos. estudantil. Para isso, estabeleceram- havia combinações preparadas para
que assim conquistou a 13ª Taça de No encontro dos quartos-de-final, se contactos com outras associações dar finalmente a voz aos estudantes.
Portugal do seu palmarés. com o Vitória de Guimarães, a AAC académicas do país. “Os estudantes Vítor Campos, através de um telefo-
Mas não foram os números deste entrou em campo com uma camisola O Estádio do Jamor de Lisboa e de Coimbra uniram-se e, nema do jogador Artur Jorge, que
encontro, nem o golo do Pantera preta e um adesivo branco sobre o pela primeira vez, a Académica tinha também cumpria serviço militar,
Negra os aspectos que mais se desta- emblema em sinal de luto acadé- recebeu mais 15 mil mais gente a assistir ao jogo do que teve de transmitir à equipa que, em
caram naquela final de 22 de Junho. mico. Francisco Andrade relata que o Benfica”, descreve Mário Campos. caso de vitória, os estudantes iriam
Houve um aproveitamento político os polícias “se apanharam despreve-
pessoas do que Dias antes, para garantir que os es- ao topo sul buscar Alberto Martins
do percurso da Associação Acadé- nidos”, mas que no jogo seguinte, a sua lotação tudantes não eram barrados à en- para acompanhar o grupo na volta de
mica de Coimbra (AAC) para dar vi- contra o Sporting, “já tiveram reac- trada de Lisboa e que chegariam ao honra ao estádio.
sibilidade aos movimentos que ção”. estádio, os dirigentes associativos de No regresso a Coimbra de auto-
estalaram no dia 17 de Abril. Depois de vencer os vimaranenses À medida que os resultados apare- Coimbra foram para a capital prepa- carro, a equipa foi recebida na Praça
“Não era só um jogo de futebol que por 6-2, no conjunto das duas mãos, ciam e a final do Jamor se aproxi- rar toda a campanha logística. da República pelos líderes da contes-
estava a decorrer e quem foi ao está- a Académica tinha pela frente a mava, o entusiasmo era maior. “O O Jamor tinha mais 15 mil pessoas tação académica. “Dois anos antes,
dio ficou com a certeza de que algo se equipa leonina. Nas meias-finais, a ambiente do balneário reflectia uma do que a sua lotação. À hora do jogo, quando perdemos para o Vitória de
passava que estava silenciado”, su- turma de Francisco Andrade deslo- grande euforia por estarmos a cola- foram distribuídos 35 mil comunica- Setúbal, fomos heroicamente recebi-
blinha o técnico da Académica da al- cou-se a Alvalade e manifestou-se borar, através do desporto, numa dos, com os objectivos da luta estu- dos. Esta recepção foi mais silen-
tura, Francisco Andrade. mais uma vez, vestindo equipamento grande manifestação que tinha toda dantil. Antevendo a grande ciosa”, descreve Vítor Campos.
Dentro de campo, a equipa da Aca- branco, com uma braçadeira preta. A a lógica”, explica Vítor Campos. dimensão dos protestos, o Presidente Apesar da derrota dentro de
démica, composta por estudantes, secção de futebol justificou-se junto Já Francisco Andrade considera a da República, Américo Tomás, e o campo e da luta desportiva, Mário
solidarizou-se com os outros univer- da federação, alegando que a cor caminhada dos estudantes “um mo- ministro da Educação Nacional, José Campos realça a luta política, que fez
sitários, adoptando o luto académico. negra atraía mais radiação solar. mento de grande dificuldade”. “Sen- Hermano Saraiva, não comparece- deste encontro “a derrota mais co-
Nas bancadas, circulavam faixas de Mesmo assim, o uso de equipamen- tia-se um peso tremendo, que deixou ram no Estádio Nacional. Para não memorada de sempre”.
protesto, comunicados e faziam-se tos alternativos foi proibido. Na se- de estar sobre a Academia, para estar ampliar a dimensão da manifestação, Com Sónia Fernandes
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17 1969
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TAÇA DE PORTUGAL
D.R.

O futebol foi a janela Se a AAC tivesse ganho


Tal como em 1967, a Académica fa-
lhou no prolongamento a conquista

para a luta estudantil da segunda Taça de Portugal da sua


história. Os contornos desta final
foram políticos, o Estado Novo es-
O regime não deixava passar a mensagem tava atento e a PIDE mobilizada.
“Não é difícil adivinhar que se a Aca-
dos estudantes de Coimbra, que teve como démica tivesse ganho, o sentimento
principal aliada a equipa da Académica de vitória por parte dos elementos
contestatários levaria a uma revolta
rio “Futebol de Causas”, que tam- quase geral contra qualquer símbolo
Catarina Domingos
bém explora a final de 69. Na sua de autoridade presente”, entende Ri-
opinião, “a televisão, ainda pouco cardo Martins. Assim, em caso de
A luta coimbrã nascida do 17 de enraizada na cultura nacional, não triunfo, a entrega do troféu a Alberto
Abril de 1969 teve vários episódios conseguia evitar os estádios comple- Martins seria o simbolismo da vitó-
de protesto estudantil, como foram tamente cheios”, o que também ria estudantil. No livro “Académica
a greve às aulas, o cancelamento da pesou para que o movimento pu- – História do Futebol”, da autoria de
Queima das Fitas e a abstenção aos desse ganhar cobertura nacional. João Mesquita e de João Santana,
exames. Mas este dizer “não” a um O desempenho desportivo da Aca- José Belo, antigo central da Acadé-
regime de censura e perseguição teve démica na década de 60 contribuía, mica na década de 60/70, escreve
um poderoso aliado: o futebol. Tal- da mesma forma, para a focalização que “foi melhor assim”. Também
vez nunca na história do desporto- das atenções. “A equipa tinha sete ou João Santana acredita que “se a Aca-
rei em Portugal um jogo assumiu oito internacionais A, o que quer démica tivesse ganho poderia ter ha-
tantos contornos políticos como a dizer que era das melhores nacionais vido mais pancadaria”.
final da taça de 22 de Junho daquele e com uma força muito grande”, re- Opinião diferente tem o antigo jo-
ano. lembra o antigo jogador Mário Cam- gador Vítor Campos: “foi pena não
“A nossa forma de sermos solidá- pos. A disputa pelos lugares cimeiros termos ganho porque ia haver uma
rios era a fazer o que sabíamos, que do campeonato nacional, a presença grande manifestação anti-regime e
era jogar. A imprensa vinha e aper- na primeira eliminatória da Taça das não tinha de haver medo das conse-
cebia-se que qualquer coisa estava Cidades com Feira e a ida à final da quências”. Em 1974 veio o 25 de
mal”, pensa o antigo jogador Manuel Taça de Portugal faziam da Acadé- Abril e, com ele, o derrube da velha
António. O futebol já era, tal como mica “a bandeira da Academia e dos ordem. Mas cinco anos antes, o final
hoje, “um fenómeno desportivo de estudantes, que nela se reviam e dela da taça representava já uma “grande
índole social altamente massifi- se serviam para transmitir as suas abertura de janelas para a democra-
cante”, como considera Ricardo lutas”, como defende Ricardo Mar- cia”, sintetiza o antigo técnico Fran-
Martins, realizador do documentá- tins. cisco Andrade.

D.R.

O que os jornais não disseram


Com a censura, os jornais falaram de uma grande festa e omitiram as faixas
de protesto e os comunicados distribuídos no Jamor
lava de uma Coimbra adormecida e Mas as verdadeiras razões foram
Catarina Domingos
“desinteressada da final”. No en- ocultadas. A RTP considerava “ina-
tanto, podia ler-se que “apesar do de- ceitáveis as condições transmitidas
Pelos meios de comunicação da sinteresse que se notava em pela federação”, referindo-se ao pa-
época, controlados pela censura, Coimbra, era de prever que a Briosa gamento de direitos.
pouco se soube da movimentação es- tivesse uma grande falange de apoio O jornalista de “A Bola” Carlos Pi-
tudantil no Estádio Nacional, a 22 de em Lisboa”. O Estádio Nacional re- nhão apelava aos golos em mais uma
Junho de 1969. No dia seguinte, os cebeu cerca de 70 mil pessoas, en- final, porque “golo era emoção”. Foi
jornais destacavam a 13ª Taça de quanto que a lotação máxima era de o mesmo jornalista que mais tarde
Portugal “dificilmente conquistada” 54 mil. Para difundir os motivos da apelidou a final de 1969 de “um dos
pelo Benfica, após duas horas de luta académica foram distribuídos à maiores comícios de sempre contra
jogo. “A Bola” falava, na primeira pá- hora do jogo 35 mil comunicados. o regime de Salazar e Caetano”.
gina, de “uma grande jornada de fu- No mesmo dia, 21 de Junho, o jor- A Académica saiu derrotada do Es-
tebol, vivida no tal ambiente nal desportivo continha a razão da tádio Nacional por 2-1. “Se tivessem
‘popularmente solene’ ou ‘solene- Académica ter jogado de branco na ganho por certo que os ‘efe-erre-ás’
mente popular’”. No “Diário de No- primeira mão das meias-finais da ainda estariam a ecoar no Vale do
tícias” lia-se “A Taça para o Benfica”, taça frente ao Sporting. A decisão Jamor”, escrevia “A Bola”. No final
com uma imagem dos dois capitães tinha levado a federação a proibir do encontro, o jogador da Académica
de equipa a segurarem o troféu. que os jogadores envergassem outros Mário Campos não desarmava: “nós
Sobre a ausência do Presidente da equipamentos que não os tradicio- agora ganhámos o gosto. Para o ano
República, Américo Tomás, nem nais. A secção de futebol justificava o voltamos”. No entanto, no ano se-
uma referência. O chefe de Estado uso desta cor com um motivo: o guinte, a Académica não voltou e
não esteve no Jamor pela primeira calor, “mais absorvido pela cor apenas alcançou os oitavos-de-final.
vez na história das finais da competi- negra”. Na véspera, também todos os Mas mesmo que chegasse à final a
ção. jornais anunciavam que o encontro luta política já tinha adormecido.
NO DIA DO JOGO, foram distribuídos 35 mil comunicados No dia anterior à final, “A Bola” fa- não ia ser transmitido na televisão. Com Daniel Almeida
18 | a cabra | 17 de Abril de 2009 | Sexta-feira
17 1969
ABRIL

NACIONAL PEDRO CRISÓSTOMO

IL
25 DE ABR
COMUNICADOS de apoio à luta estudantil foram surgindo ao longo da crise

ENTAÇÃO
Para lá de Coimbra

E DOCUM
CENTRO D
cresce o movimento
A Crise Académica cer, crescia nos pólos académicos de nham que viver numa semi-clandes- riosidade. "O movimento de Lisboa Luta Estudantil", documento que ex-
Lisboa e do Porto uma vontade em tinidade". Em Setembro de 1968, era disperso porque a universidade plica a evolução da situação estu-
de 69 veio trazer conhecer Coimbra e perceber o mo- José Dias vem para Coimbra. Atra- tinha características diferentes em dantil em Lisboa e no Porto. O
profundas alterações vimento que estava em marcha. “Fa- vés do Conselho de Repúblicas, en- termos de implantação na cidade. O documento alerta para o facto de "os
à actividade e lavam-nos de Coimbra como sendo volve-se logo com estudantes que de Coimbra tinha uma grande cen- filhos da maioria dos portugueses
uma associação académica – ‘lá reivindicavam eleições livres para a tralidade, era mais coeso", reconhece não terem acesso à universidade” e
metodologia do aquilo é uma coisa bestial’”. A ex- DG/AAC. Eduardo Graça. que "os problemas fundamentais de
movimento estudantil pressão pertence a José Dias, presi- O movimento podia ter sido muito Na continuação da onda de con- democratização e reforma da Uni-
português, que tentou dente do Conselho da Cidade de maior caso houvesse uma boa liga- testação, dá-se a final da Taça de versidade e de todo o Ensino conti-
Coimbra, que entre 1965 e 1968 es- ção entre as três academias. "O mo- Portugal em que a Académica de- nuam por resolver".
convergir numa luta tudava no Porto. vimento estudantil das três fronta o Benfica e esta era uma opor- Depois de vencidas inúmeras difi-
nacional Entre 1965 e 1968, José Dias foi universidades não tinha uma auto- tunidade que não se podia perder culdades, mais de cinco mil estudan-
estudante na Universidade do Porto. estrada de comunicação", explica para mostrar o desagrado. tes provenientes das três academias
Da altura em que frequentou a Uni- José Dias, que ainda acrescenta a re- Dois dias depois, foi preciso ir ao reuniram-se em Coimbra e aprova-
Nuno Agostinho
versidade do Porto, conta que "teve Porto distribuir comunicados sobre ram a declaração em que exigem ao
uma acção que extravasava a vida e a greve aos exames. O presidente do governo "a demissão do Ministro da
“São inúmeras as expressões de a luta estudantil por uma luta polí- “A crise foi um Conselho da Cidade de Coimbra ex- Educação Nacional e das autoridades
apoio à luta dos estudantes de Coim- tica mais globalizante" e que foi de- plica que os contactos que tinha no académicas responsáveis, o levanta-
bra oriundas dos mais diversos sec- vido a essa luta que passou a vir fenómeno tão forte Porto foram úteis para “organizar mento de todos os processos instau-
tores da Nação Portuguesa”, frequentemente a Coimbra. Aqui co- pequenas brigadas com amigos cató- rados e a libertação de todos os
declarava a Direcção-Geral da Asso- meçou a ouvir falar de movimentos
que qualquer licos e de diversas faculdades para estudantes presos”.
ciação Académica de Coimbra estudantis organizados e de alguns estudante o sentia” pôr nas caixas dos correios toda a Como resposta ao documento, o
(DG/AAC) num dos muitos comuni- momentos históricos na luta acadé- propaganda". governo destitui todos os órgãos da
cados da crise. A dimensão que o mica, tal como a Tomada da Bastilha. Entretanto, os estudantes tomam AAC com excepção das secções des-
movimento tomou a partir dos acon- E como em Coimbra existia uma ver- lutância existente entre os principais consciência de que não têm a ligação portivas e da secção Filatélica.
tecimentos do 17 de Abril fez de dadeira associação com um espaço dirigentes de Lisboa em deslocarem- que procuravam com as cinturas in- Depois da declaração, apareceram
Coimbra o bastião pela construção físico em que todas as faculdades es- se a Coimbra: "lembro-me de pes- dustriais, onde pretendiam chegar no país vozes que se uniam à luta
de uma “Universidade Nova”. tavam representadas e era possível soas, como eram os dirigentes de para unir as lutas. Os estudantes pas- preconizada pelos estudantes de
“A crise foi um fenómeno tão forte constituir um movimento organi- Económicas de Lisboa, que tiveram sam então a fazer sessões de esclare- Coimbra, nomeadamente do Grupo
naquele contexto que qualquer estu- zado. A realidade portuense, por seu uma relutância enorme em vir a cimento aos trabalhadores sobre os de Democratas de Braga e de alguns
dante, mesmo que não estivesse en- lado, era completamente diferente. Coimbra. Eu desafiei-os, mas só aí à motivos da luta, como refere José pais de jovens de Viseu que pediam
volvido no movimento associativo, o “Eu vinha de uma salinha do Porto terceira vez é que consegui que vies- Dias. "Deu-se um movimento biuní- que se resolvesse a situação. Por
sentia”. Quem o diz é Eduardo onde vendia réguas de cálculo e onde sem". voco, em que foi preciso explicar às outro lado, 48 jornalistas de Lisboa
Graça, que em 1969 estudava no an- recebia os estudantes um a um, um Actualmente presidente do Insti- cinturas e aos trabalhadores porque lamentavam "a impossibilidade de
tigo Instituto Superior de Ciências pouco a medo”, lembra. tuto António Sérgio do Sector Coo- é que estávamos inquietos", explica. darem conhecimento público da
Económicas e Financeiras, em Lis- No Porto, a maior parte das asso- perativo, Eduardo Graça relata que Mais tarde é lançada a "Declaração exemplar e patriótica acção dos es-
boa. ciações e pró-associações não tinha chegou a vir a Coimbra, não por mo- do Movimento Democrático Eleito- tudantes”.
Mas mesmo antes de tudo aconte- instalações próprias, pelo que “ti- tivos institucionais, mas mais por cu- ral sobre a Crise Universitária e a Com Pedro Crisóstomo
17 de Abril de 2009 | Sexta-feira | a cabra | 19
17 1969
ABRIL

OPINIÃOFOTOMONTAGEM POR TATIANA SIMÕES

A crise de 69 – questão de moral?


A crise de 69, como referência histórica do movimento estudantil e da luta geral do país
contra o fascismo, corre riscos habituais, como todas as referências históricas
modo que escrevo tranquilo. terísticas singulares, decorrentes de rante este período o movimento as- ria é talvez o menos acentuado. O
ANTÓNIO É lugar-comum dizer-se que, fe- uma única Associação de Estudan- sociativo, fragilizado e em recessão episódio da tomada da bastilha, por
GOMES MARTINS lizmente, quem não viveu o fas- tes com uma tradição forte de mo- no início, retomou lentamente ex- exemplo, marco da história do mo-
cismo no nosso país não tem a vimento associativo: intensa pressão visível, recuperou força e vimento estudantil de Coimbra, é
noção da sua atmosfera bafienta e partilha de ideias, produção cultu- capacidade de intervenção pública. ainda hoje recordado, apesar de o
atrofiante, provinciana, atrasada, ral autónoma, debate aceso, hábitos Lutou-se pela reabertura da AAC, ser com grande depuração. Não de-
retardada, impancientadora, revol- de democracia vivida com genuini- com a luta de 69 como referência. O saparece da memória colectiva. Já
enho a minha memória tante e atemorizante. Nesse am- dade e vigilância. A par com o facto 25 de Abril ocorreu nesta fase de re- não é possível fazer umas cerimó-

T pessoal do 25 de Abril
de 1974. Tinha na altura
dezanove anos e a expe-
riência vivida dessa época deixou-
biente era mais fácil ouvir uma
anedota a achincalhar o presidente-
fantoche Tomás do que ver uma ati-
tude de corajoso afrontamento. E,
de o número de estudantes ser bas-
tante menor do que hoje, estas eram
condições férteis para manifestação
de consciência crítica, de indignado
toma que permitiu que a revolução
encontrasse os estudantes preveni-
dos. A AAC foi reaberta, a universi-
dade ganhou de novo alma com o
nias ou uns colóquios com este ou
aquele participante. Assim aconte-
cerá com a crise de 69.
A reescrita exige, pelo menos aos
me marcas que não convivem bem no entanto, quantas movimenta- exercício efectivo de direitos demo- novo Reitor, verdadeira referência, interessados numa perspectiva
com visões dela que considero dis- ções houve, de centenas ou de mi- cráticos. o Doutor Teixeira Ribeiro. A efer- equilibrada, uma leitura dos vários
torcidas, incompletas, mal intencio- lhares de pessoas, ao longo de todo vescência começou e, tal como an- contributos e uma atitude de filtra-
nadas ou ingénuas. Sei, por isso, o o período de letargia! A crise de 69 teriormente a resistência, ajudou a gem crítica guiada pela descon-
risco que se corre quando se fala de é um bom exemplo, a par com mui- formar a consciência cívica e demo- fiança relativamente aos aspectos
O MEIO UNIVERSITÁRIO
uma época da qual não se teve ex- tos outros, envolvendo camadas so- crática dos estudantes dessa época. que geram unanimismos e aos tra-
periência de contacto íntimo (em- ciais variadas contra o regime. DE COIMBRA REVELOU A crise de 69, como referência ços acessórios ou anedóticos que
bora sobre o 25 de Abril os vícios Cinco anos antes do 25 de Abril, a MAIS UMA VEZ AS SUAS histórica do movimento estudantil frequentemente dão origem a gene-
escritos não sejam predominante- crise de 69 ocorreu numa fase tam- e da luta geral do país contra o fas- ralizações abusivas.
mente de autores não contemporâ- bém de crise, mas do regime. A CARACTERÍSTICAS cismo, corre riscos habituais, como Finalmente, quanto aos aprovei-
neos dessa época). Em 1969 eu guerra colonial consumia cerca de SINGULARES (...) todas as referências históricas: o es- tamentos, eles também tenderão a
tinha catorze anos e, vivendo em 40 por cento da riqueza do país e os batimento da memória, ou dos sig- esbater-se com o decurso do tempo,
Coimbra e convivendo com univer- jovens rapazes de então tinham a O ministro da educação dessa nificados dela, que se acentuará por razões biológicas, mais que por
sitários, tive contacto abundante. certeza de ir parar a essa guerra que época, o inefável (que digo eu? quando a geração protagonista gra- quaiquer surpreendentes razões de
Conheci alcunhas e ciciares relati- não lhes dizia respeito. A fraseolo- Abundante e jocosamente comen- dualmente desaparecer; a reescrita ética subitamente assumida. A crise
vos a personagens mais ou menos gia oficial, oca e patrioteira, era ri- tado, hoje como então!) J. Hermano ou, melhor dizendo, as reinterpre- de 69 foi, entre outras coisas, um
saboreadas pela corrosiva opinião dicularizada pelos estudantes, com Saraiva, era figura ridícula, alvo tações segundo as opções de pers- movimento colectivo e só por isso
dos estudantes que, então talvez um a cínica amargura da antevisão da fácil do sarcasmo unitário. Justa- pectiva de quem reinterpreta, assumiu as proporções que assu-
pouco mais do que agora (impres- morte. Havia condições, de facto, mente. Caiu. Seguiu-se-lhe Veiga criando várias versões do período e miu. As personalizações, porque
são nostálgica de velho?), eram (al- para que as pessoas se insurgissem, Simão. Com a AAC encerrada, a dos seus conteúdos; e, finalmente, forçadas, são sempre redutoras e di-
guns) especialmente cáusticos e com a coragem de serem muitas e universidade ameaçada com o cu- o aproveitamento, político ou pes- ficultam a percepção da importân-
preocupadamente cultos. Mas de o medo ser, por isso, muito par- telo, pendente sobre a academia, soal, que a falta de uma certa ética cia dos movimentos colectivos na
quem se lembrou de mim para esta tilhado. dos pides e dos informadores, inau- permite aos que têm esse tipo espe- evolução das sociedades.
contribuição não espera testemu- O meio universitário de Coimbra gurou-se a era da reforma de curta cífico de carência. Vice-reitor da UC. Presidente
nho de memória presencial, de revelou mais uma vez as suas carac- duração e longas repercussões. Du- O risco do esbatimento da memó- da DG/AAC em 1975/76
20 | a cabra | 17 de Abril de 2009 | Sexta-feira
17 1969
ABRIL

MEMÓRIA
Como as mulheres lutaram
por uma “Universidade Nova”
A participação das mulheres na crise levou a uma maior afirmação das estudantes na cidade
de Coimbra. Apesar de tudo, esta participação “não se baseou na luta pelos direitos das
mulheres”. Por Diana Craveiro e Andreia Silva
papel da mulher na so- reverência, “sabíamos que não condições de vida das mulheres”, afirma que “actos pioneiros” Coimbra participaram num livro

O ciedade portuguesa dos


anos 60 assentava em
duas perspectivas dife-
rentes. Às raparigas com dificul-
íamos mudar o mundo só por
viver numa república, que era
algo que não era bem visto por
pessoas conservadoras”.
a questão do feminismo “não era
uma prioridade”.
A acção das mulheres na crise
académica foi um ponto de par-
como os que ocorreram durante a
luta estudantil “são importantes
como exemplo para as gerações
seguintes”. Um desses exemplos
antológico intitulado “Igualdade
Radical para a Mulher”, editado
na cidade pela Almedina. No en-
tanto, a obra esteve
dades económicas estava Ao relembrar os tempos de es- tida para uma maior afirmação do teve lugar logo em 1970, à venda apenas
destinado o trabalho doméstico e tudante, Fernanda fala de um dia- seu papel na sociedade. A coorde- quando 13 rapazes e 13 durante três
o casamento. Para aquelas que ti- a-dia muito semelhante ao dos nadora do doutoramento em Es- raparigas de dias, até ser ob-
nham hipóteses de seguir estudos colegas rapazes. “Frequentáva- tudos Feministas da Faculdade de jecto de apreen-
superiores, o futuro perspecti- mos o [café ] Mandarim, íamos ao Letras da Uni- são pela PIDE
vava-se diferente. Mas mesmo cinema, passeávamos, namoráva- versidade de (Polícia Internacio-
com a oportunidade de emanci- mos. Divertíamo-nos como jovens C o i m b r a , nal de Defesa do Es-
pação, o conservadorismo de uma que, de alguma maneira, tiveram Adriana Be- tado).
sociedadade em ditadura conti- a sorte de poder ter acesso a uma biano, defende
nuava a prevalecer no quotidiano civilização mais livre e avançada”. que esta par-
das estudantes universitárias. Foi nesse ambiente que as mu- ticipação foi
A autora do livro “Movimentos lheres começaram a participar muito im-
de Mulheres em Portugal nas dé- nos movimentos de contestação portante,
cadas de 70 e 80" e ex-presidente ao lado dos colegas. Segundo Fer- “porque é
da União de Mulheres Alternativa nanda Campos, “a universidade então que
e Resposta (UMAR), Manuela Ta- era elitista”, já que “não havia começam
vares, afirma que Coimbra “era condições para que jovens tão ou a ganhar
uma cidade com algumas dificul- mais inteligentes pudessem fre- visibili-
dades na afirmação das jovens”, quentá-la só pelo facto de perten- dade”.
porque “havia muito controlo por cerem a um meio B e -
parte das famílias” ao nível dos sócio-económico mais desfavore- biano
costumes. Às estudantes era ne- cido”.
gada a entrada em repúblicas e as Fernanda e as colegas tinham
que se atreviam a quebrar a regra também “uma intervenção bas-
“eram muito mal vistas perante a tante activa no combate por uma
sociedade”, conta Manuela Tava- Universidade Nova”. E, apesar do
res. conservadorismo, as mulheres
Durante a década de 60, con- não eram tratadas como um ser
tudo, as relações entre rapazes e inferior, “era uma luta de igual
raparigas foram mudando. Se- para igual”, recorda a antiga estu-
gundo a ex-presidente da UMAR, dante.
“surgiu uma tendência para a
mistura” e as mentalidades Luta estudantil abre
foram-se alterando, embora novos caminhos
tenha sido algo que não se esten- A participação das estudantes na
deu a toda a comunidade estu- Crise Académica de 69 não se
dantil. baseou na luta pelos direitos
A Crise Académica de 1969 veio das mulheres nem pelo segui-
a ser, assim, o primeiro passo mento de um movimento fe-
para as mulheres se afirmarem, minista, esclarece Fernanda
não só na comunidade estudantil Campos. “Entendíamos que
conimbricense, como em toda a naquele momento havia
sociedade portuguesa. problemas mais importan-
Fernanda Campos foi uma das tes, como o facto de viver-
poucas mulheres da altura a viver mos numa ditadura, de
numa casa feminina que se asse- não termos liberdade e de
melhava a uma república, a “Ar- termos uma universidade
véolas”, criada em 1965. Era uma retrógada”. Apesar de
casa gerida por um grupo de cole- não ignorarem que “o
gas, onde “o estilo porta aberta desenvolvimento da so-
como uma república masculina ciedade também pas-
não existia”, conta. Apesar da ir- sava pela melhoria das EM 1970, “Igualdade radical para a mulher” esteve à venda até ser apreendido pela PIDE três dias a seguir ao lançamento

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17 de Abril de 2009 | Sexta-feira | a cabra | 21
17 1969
ABRIL

ENTREVISTA
MANUELA CRUZEIRO • INVESTIGADORA DO CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL

“Coimbra deu um enorme passo


para a emancipação da mulher”
Manuela Cruzeiro é um dos rostos conhecidos da crise académica. 40 anos depois, fala do “papel
decisivo” da mulher no maior movimento de estudantes vivido em Portugal. Por Cláudia Teixeira
CLÁUDIA TEIXEIRA

odeada de livros, cartazes

R antigos, recortes de jor-


nais, apontamentos e fotos
de família, Manuela Cru-
zeiro retoma à crise de 69. Recorda o
movimento como algo que lhe per-
tence. A ela e a muitos que por lá pas-
saram.

O movimento estudantil de 69
juntou centenas de estudantes.
Como foi possível esta mobiliza-
ção?
Penso que o principal motivo terá
sido a estratégia da lista vencedora
para a direcção da Associação Acadé-
mica de Coimbra (AAC) que fez com
que a luta passasse da associação
para a universidade. Foi um movi-
mento conduzido de uma forma inte-
ligente, de uma forma gradual, ou
seja, os objectivos não eram imedia-
tamente radicais. Não se pedia uma
coisa como ‘Abaixo o Governo!
Abaixo a ditadura!’. Isso estava im-
plicado numa mudança da universi-
dade que, entendida em todas as suas
consequências, conduziria a isso.

Que papel tiveram as mulheres


na crise académica?
Foi um papel decisivo. As mulheres
vieram para a rua em plano de igual-
dade com os homens. Coisa que
nunca tinha acontecido. Há um ele- A INVESTIGADORA no Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra
mento que me parece importante,
que é o facto de não sermos dadas Foi um papel muito reduzido. Até puericultura, bordado, gestão do- mento da Direcção-Geral da Acha que é possível, nos dias de
como muito perigosas. A atenção das porque a crise foi avassaladoramente méstica. Foi sempre visto pela es- AAC em 1969) é um ícone, tanto hoje, um movimento como em
autoridades ia para os rapazes e nós de esquerda. querda como uma coisa muito para as mulheres como para 1969?
conseguíamos coisas furando pelos anacrónica. Uma mulher de esquerda quem participou na crise acadé- Claro que não. A começar pelos ob-
espaços, com uma naturalidade e Houve professores que ficaram não ia para o Conselho Feminino. A mica. jectivos de luta que não são os mes-
uma espontaneidade que desarmava na história por se terem aliado mulher de esquerda ria-se daquele Para as mulheres é. Sem dúvida. O mos. Embora eu ache que as
um pouco as autoridades. Coimbra à luta dos estudantes. Também conselho, era uma coisa ridícula. papel dela foi muito preponderante. reivindicações da altura não estão al-
deu, em 69, um enorme passo para a houve professoras a assumir a Num mundo masculino uma mulher cançadas. Vocês recuaram, agora
emancipação da mulher. Mas não foi causa? Na sua opinião, que papel de- tem algumas vantagens e a Fernanda muito recentemente.
isso que perspectivámos. A condição sempenham hoje as mulheres usou-as bem. Era uma pessoa calma,
feminina não se colocou a não ser na vida associativa? serena, ponderada. Não era exaltada As escolhas ideológicas feitas
numa ou outra intervenção que não A mulher não ocupa ainda o lugar nem arrebatada, e isso era uma mais- durante os anos do activismo
foi, de todo, a intervenção do comum A MULHER NÃO OCUPA para o qual abrimos caminho em 69. valia naquele conjunto. estudantil influenciaram o seu
das mulheres. Nem pensar nisso. Parece-me que há retrocessos e mais percurso profissional?
AINDA O LUGAR PARA me preocupa porque acho que é com Acha que o movimento dos es- Completamente. Ser protagonista
Até que ponto as mulheres esta- O QUAL ABRIMOS o consentimento e com o apoio dado tudantes na crise académica foi destes acontecimentos traz-me um
vam integradas nos grupos con- pela própria mulher. A mulher não se um passo importante para a Re- enorme orgulho e também uma
testatários, como o IBM, os
CAMINHO sente afectada com isso, pelo contrá- volução de Abril em 1974? enorme responsabilidade.
Contestas e o CONGE? rio, sente-se muito bem com este Foi um passo muito importante. Não
Participavam. O CONGE, por exem- Houve uma, que eu me lembre. Era a papel. Parece-me que a mulher é quer dizer que se tenha ganho tudo. Escrever “Os Anos Inquietos”,
plo, teve mulheres. Foi uma estrutura Maria dos Anjos, assistente de Ciên- muito subserviente e muito passiva, Mas todas as revoluções têm mo- com Rui Bebiano, foi uma
de decisão. Foram líderes incontestá- cias. Só me lembro dessa. aceitando e participando até nas pra- mentos assim, é um balão que enche forma de reviver a Crise Acadé-
veis? Talvez não. Integram, partici- xes, às vezes em situações confrange- e acaba por esvaziar. Ficámos para mica?
pam, mas nunca chegam ao topo. Como funcionava o Conselho doras. Este é um período de toda a vida implicados naquele com- Foi tentar pôr ao serviço do trabalho
Feminino da AAC? revivalismo acrítico, de reposição de promisso e há um mal-estar daqueles que faço actualmente um capital pes-
A crise académica é um mo- Era marcadamente feminino no sen- velhas tradições que, actualmente, que não aderiram. Anos depois ainda soal que poderia trazer uma mais-
mento histórico datado à es- tido mais tradicional do termo, ou não fazem sentido. E já em 69 não fa- definíamos determinado elemento valia a esse trabalho. Foi também
querda e da qual não se conhece seja, algo que preparava as mulheres ziam e por isso acabámos com a que não tinha feito greve aos exames. uma homenagem a alguns rostos
o envolvimento de mulheres li- para as tarefas tradicionalmente fe- praxe. ‘Aquele foi traidor em 69’ e isso era pouco conhecidos da crise de 69. Por-
gadas à direita. Qual foi o papel mininas. Era reaccionário, na nossa um selo com o qual marcávamos a que a crise foi um colectivo de rostos
delas? perspectiva. O que lá se ensinava era A Fernanda Bernarda (ele- pessoa. imenso.
22 | a cabra | 17 de Abril de 2009 | Sexta-feira
17 1969
ABRIL

Cronologia
da MEMÓRIA
1968

19
FEV
O “verdadeiro”
Eleições para a AAC e fim das
comissões administrativas rei-
vindicada pela Comissão Pró-
Eleições (CPE)
17 de Abril
25
NOV
Comemoração da Tomada da
Bastilha. Estudantes gritam
não foi notícia
“Eleições, já” defronte da AAC
Entre estudantes presos e greves, os
27 jornais só “tiveram conhecimento”
FEV

Comissão Administrativa da da inauguração do edifício da


AAC anuncia realização de
eleições para Fevereiro Matemática. Por Vasco Batista

E
1969 m 1969, a Academia de quer factos tidos como “desagradá-
Coimbra viveu um dos veis” e susceptíveis de fomentar mais
10 episódios mais célebres e sublevações. O importante era passar
FEV marcantes de toda a sua a imagem de que o país vivia numa
Debate entre as duas listas história. A 17 de Abril desse ano, di- harmonia inquebrável. Primeiro as
concorrentes à DG/AAC: Con- versas personalidades distintas da aparências, depois as evidências.
selho de Repúblicas e MRR plêiade política portuguesa, das quais Este aspecto do indubitável re-
cabe destacar o chefe de Estado Amé- curso à censura como meio para de-
12 rico Thomaz, descolaram-se até monstrar a “estabilidade” social e
FEV Coimbra para inaugurar o “grandioso política constitui, por si só, o sinal de
A lista do Conselho de Repú- edifício da secção de Matemática da que Portugal era governado por um
blicas vence as eleições para a Faculdade de Ciências”, tal como regime de cariz ditatorial e anti-de-
AAC com 75% dos votos destacou o Diário de Notícias na edi- mocrático. Na verdade, esse carácter da faculdade de ciências, cujo valor Neste sentido, num tom marcada-
ção do referido dia. Contudo, os jor- do regime político então instaurado dispensava, segundo o Ministro da mente descritivo, são apresentados
7 nais da época nada mencionaram tornou-se tão mais claro pelas moti- Educação Nacional, José Hermano ao leitor, com pormenor, as etapas da
MAR
acerca do momento áureo que veio a vações que originaram a rebelião. Em Saraiva, “quaisquer considerações”. sessão de inauguração, os custos
Tomada de posse da nova mergulhar a cidade na profunda crise última instância, tanto a censura, A obra financiada pelo “Plano In- exactos das obras e são relatados os
DG/AAC por parte da lista do académica de 1969. Alberto Martins, como a privação do uso da palavra tercalar de Fomento” constituiu, em discursos dos que presidiram à inau-
Conselho de Repúblicas presidente da Direcção-Geral da As- confluem e confundem-se num si mesmo, o objecto noticioso dos di- guração e puderam falar. Os artigos
14 sociação Académica de Coimbra mesmo factor. A inexistência da li- ferentes organismos de comunicação são também aproveitados para pro-
ABR (DG/AAC) foi impedido de usar da berdade de expressão e comunicação social. O curioso (ou não) é que os ar- paganda política e realçar os traba-
DG/AAC confirma presença na palavra pelos estudantes da Univer- era, portanto, incontestável. tigos do Diário de Notícias alusivos lhos do Governo, tal como espelha a
inauguração das Matemáticas e sidade durante a “sessão solene inau- Os periódicos da época, ainda hoje ao acontecimento, seja da edição do afirmação “gastar-se-ão 277000 con-
expressa a intenção de usar da gural”. Seguiu-se o cerco à cidade sobejamente conhecidos, como próprio dia, seja da edição do dia tos em edifícios do ciclo preparató-
palavra pelas forças policiais, decretou-se o sejam o Diário de Notícias, o Jornal subsequente, apenas relatavam o rio…”.
luto académico e greves a aulas e exa- de Notícias e o Diário de Coimbra, modo como decorreu a cerimónia de Por contar ficou que os estudantes,
16 mes. Mas as notícias foram outras. sublinhavam a data como sendo um inauguração do edifício, engrande- por quererem falar, foram presos.
ABR
Hoje, volvidos quarenta anos, e dia de assaz importância, no qual a cendo a beleza arquitectónica do Cerco policial, greves a aulas e exa-
Reitor nega, em comunicado, numa análise à “vista desarmada” Universidade de Coimbra concreti- mesmo. Uma rápida consulta nou- mes, demissão dos órgãos da AAC e
o uso da palavra por parte da pelos jornais daquele dia, a ilação zara uma “velha aspiração”. “Nunca tros órgãos da imprensa escrita que Assembleias Magnas também não
DG/AAC na sessão solene que se pode tirar é óbvia. Os artigos porventura a Humanidade esperou tenham noticiado o acontecimento, “mereceram atenção” pela imprensa.
17 eram cuidadosamente inspecciona- tanto dos mestres e dos estudantes poderia questionar o leitor se não es- Ter-se-ia que esperar mais cinco
ABR dos pelos organismos encarregues do como nos dias que estamos a viver” taria a ler novamente o mesmo jor- anos pela chegada da liberdade de
Inauguração do edifício das Lápis Azul, sob o signo da censura, destacou o Diário de Notícias, ao re- nal, uma vez que o teor das notícias imprensa com a Revolução dos Cra-
Matemáticas e detenção do evitando, desse modo, relatar quais- ferir a importância do novo edifício mantém-se. vos.
presidente da AAC, Alberto
Martins

18
ABR
AAC faz saber que o presi-
dente foi preso e que tudo se
iria fazer para que fosse liber-
tado. Milhares de estudantes
acorrem ao Pátio da UC
21
ABR
DG/AAC exige representação
no Senado Universitário e
protecção deste face à re-
pressão policial
22
ABR
Decretado o Luto Académico.
Elementos da DG/AAC priva-
dos de actividade na UC
30 6 8 28 2
ABR MAIO MAIO MAIO JUN
Ministro da Educação Nacional, Encerramento da Universidade Cancelamento da Queima das Fitas Seis mil estudantes votam em Primeiro dia de greve aos exa-
Hermano Saraiva, acusa estu- de Coimbra, antes de terminar o por solidariedade aos dirigentes da Assembleia Magna greve aos mes. A Universidade de Coim-
dantes de crime, sediação e ano lectivo normal AAC que tinham sido castigados, em exames. Aprovadas Operação bra está cercada pela GNR, PSP
desrespeito ao Chefe de Estado comunicado dos estudantes grelados Balão e a Operação Flor e polícia de choque
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ABRIL

MEMÓRIA
PEDRO CRISÓSTOMO

22 8 OUT 1970 14 19
JUN AGO JAN FEV
Final da Taça de Portugal entre a AAC é encerrada por ordem do 49 estudantes recebem nota de José Hermano Saraiva é substi- José de Gouveia Monteiro
Académica e o Benfica. o Presi- governo, que demite os corpos incorporação de emergência nas tuído por José Veiga Simão no substitiu Jorge Andrade de
dente da República não compa- gerentes fileiras do Exército Ministério da Educação Nacio- Gouveia como reitor da UC
rece ao jogo, como era habitual nal S.O.
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SONDAGEM
O QUE OS ESTUDANTES (NÃO) SABEM SOBRE A CRISE ACADÉMICA
O começo da movimentação estudantil estudantes. Apesar da maioria ter certeza de stituído por José Veiga Simão. José Lello FICHA TÉCNICA:
Depois de percorrer as aconteceu quando o presidente da Direcção- que o presidente da DG/AAC era Alberto ocupou o cargo de ministro da Juventude e Esta sondagem foi realizada pelo Jornal
faculdades para avaliar Geral da Associação Académica de Coimbra Martins, muitos estudantes pensaram ser Emí- do Desporto entre 1999 e 2002. José Au- Universitário de Coimbra – A CABRA –
o conhecimento dos (DG/AAC), Alberto Martins, foi impedido de dio Guerreiro, que apenas foi presidente em gusto Seabra foi ministro da Educação entre entre os dias 1, 2 e 3 de Abril. O universo
falar na inauguração do Edifício das 1990/91. José Miguel Júdice foi vice-presi- 1983 e 1985.Quanto aos acontecimentos é composto por estudantes da Universi-
estudantes sobre a Matemáticas e foi o único dirigente a ser de- dente da Comissão Administrativa da AAC, propriamente ditos durante a crise, foi dec- dade de Coimbra. A amostra foi estratifi-
crise, aqui ficam as tido. Nem o aumento das propinas, nem o nomeada pelo governo, em 68/69, e Osvaldo retado o luto académico em Assembleia cada em função da proporção de alunos
respostas sobre os fim da Queima das Fitas foram as razões que de Castro o vice-presidente da direcção- Magna. Em Junho, a universidade é ocupada nas oito faculdades da Universidade de
estiveram na origem do protesto. Também o geral de Alberto Martins. Do lado do regime, por destacamentos da GNR. As Repúblicas Coimbra. Foram obtidos 1373 inquéri-
factos e os aconteci- conhecimento de quem foram os protago- José Hermano Saraiva era o Ministro da Edu- não foram encerradas, nem houve manifes- tos válidos. A margem de erro associ-
mentos em questão nistas não está bem definido na cabeça dos cação Nacional. Em Janeiro de 1970, foi sub- tações a nível nacional. ada é de 3,5 por cento, com um nível
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SONDAGEM
HISTORIADORES ALERTAM

de confiança de 95 por cento. Na re-


alização da sondagem participaram
Estudantes têm vaga
Andreia Silva, André Ferreira, Catarina
Domingos, Cláudia Teixeira, Daniel
Almeida, Diana Craveiro, Filipa Faria,
Filipa Magalhães, João Miranda, João
noção sobre os acontecimentos
Ribeiro, Maria Eduarda Eloy, Marta
Pedro, Nuno Agostinho, Patrícia “Desconhecimento geral” e uma ideia vaga sobre os pormenores da Crise
Gonçalves, Pedro Crisóstomo, Rui
Miguel Pereira, Sónia Fernandes e
Académica de 69 abrange maioria dos estudantes da UC. A conclusão é
Vasco Batista. de três historiadores – num comentário alargado da sondagem
desconhecimento geral sobre o que cente luta estudantil contra o au- “Ao dar-se maior relevo à pessoa A
Pedro Crisóstomo se passou em 1969”, responde Mi- mento das propinas”. ou B está-se, em termos de evoca-
guel Cardina, investigador – no Outra das ‘imagens erradas’ da ção da memória, precisamente a
“Isto é um atestado à minha ig- mesmo centro – sobre a resistência crise que Miguel Cardina considera fazer uma coisa para a qual muitos
norância”. “Isto do José Hermano estudantil em Coimbra no Marce- curiosa é a “funda convicção” de ter estudantes são pouco sensíveis”,
Saraiva deve ser a gozar”. “Quem lismo. Rui Bebiano concretiza haver existido uma manifestação nacional justifica.
era o presidente da direcção-geral? 16,24 por cento de alunos a consi- durante esse período. Os estudan- Por isso, a presidente da APH la-
Nem sei quem é o deste ano”. Du- derar que a crise académica foi des- tes “reconhecem que a crise foi um menta que seja frequente ouvir “que
rante três dias choveram comentá- poletada pelo aumento de propinas: momento forte de contestação e isso os jovens portugueses pouco ou
rios não muito diferentes enquanto “é justamente um dos reflexos desse significa, segundo as suas grelhas de nada sabem acerca da sua História
sondávamos os estudantes da Uni- relativo desconhecimento”. leitura, ‘luta contra as propinas’ e recente”. Estudos feitos por investi-
versidade de Coimbra (UC) sobre a Mais, “para muitos alunos é difí- ‘manifestações nacionais’”. gadores em Educação Histórica “de-
crise de 69. Muitos suplicavam para cil conceber um movimento asso- Mas nem tudo é mau. Esta apro- monstram que os jovens não só
que lhes disséssemos as respostas ciativo motivado por razões que priação do passado através do pre- conhecem factos e personagens li-
certas. Houve quem até tentasse gados à História do Estado Novo,
procurar na Internet. Outros argu- como apresentam, a um nível mais
mentavam que nem valia a pena elaborado, uma compreensão clara
preencher o inquérito, porque não TEM HAVIDO UMA PRESSÃO MUITO MAIOR das mudanças profundas provoca-
percebiam “nada do assunto”. PARA QUE OS ESTUDANTES CONCLUAM das pelo 25 de Abril”.
Apurados os resultados, 48,65 Para Miguel Cardina, “os jovens
por cento parece afinal ter um co-
RAPIDAMENTE OS SEUS CURSOS passam em regra meia dúzia de
nhecimento médio sobre os aconte- MIGUEL CARDINA anos nessa condição – a de estu-
cimentos. Um número que dante, no caso de Coimbra – o que
contraria que os estudantes não transcendam a vida estudantil e a sente – como lhe chama Cardina – provoca constantes curto-circuitos
percebem mesmo “nada do as- da própria universidade”. O mesmo “até que permite que o passado seja no processo de transmissão da me-
sunto”? Não, diz Rui Bebiano, pro- diz Miguel Cardina: “a representa- mais do que uma mera evocação mória”. Helena Veríssimo vai mais
fessor da Faculdade de Letras da UC ção que os grupos fazem do seu pas- dos tempos mortos”. longe e justifica que “isto não signi-
e investigador do Centro de Estudos sado é sempre ‘contaminada’ pelo fica que tenham que ter na cabeça
Sociais (CES). A experiência que presente”. A carência da memória um conjunto de factos ou de nomes
tem com os alunos é, aliás, “um Menos alarmista é a presidente Mostra a sondagem que cerca de 60 referentes a assuntos tão específicos
pouco mais negativa”. “Claro que da Associação de Professores de por cento desconhece que Alberto como o que é abordado neste in-
existe a noção generalizada de que História (APH), Helena Veríssimo, Martins era o presidente da Direc- quérito”. “O ideal” – sublinha –
algo de importante aconteceu então que considera este ponto “irrele- ção-Geral da Associação Académica “seria haver uma cadeira de Histó-
em Coimbra e na vida da Academia, vante”. “Provavelmente muitos des- de Coimbra (DG/AAC) em Abril de ria do Mundo Actual aberta a todos
mas a larga maioria tem uma noção tes jovens não seguiram um curso 69. Grave? “Pelo contrário, é de re- os estudantes do secundário”. “Te-
muito vaga dos pormenores”. Al- de Humanidades, pelo que não es- levar que cerca de 40 por cento o ríamos, seguramente, um país mais
guns até confundem “temporal- tudaram História no ensino secun- conheçam”, diz Helena Veríssimo. capaz de se modernizar e de se de-
mente a ‘crise de 69’ em Coimbra dário, não tendo tido oportunidade Também a Rui Bebiano parece senvolver”, propõe.
com o Maio de 68 em França”. de desenvolver a sua consciência “menos grave do que o desconheci- Por outro lado, escreve Cardina,
Insistimos na pergunta a outro histórica”. Acontece que “as causas mento sobre as próprias circuns- “não termos assistido a grandes mo-
historiador. A resposta é idêntica. são explicadas pelo que de mais tâncias, motivações e resultados do vimentações estudantis” nos últi-
“Os dados parecem sinalizar um próximo conhecem, ou seja, a re- movimento que então se gerou”. mos anos “ajuda a explicar esta
‘carência’ de memória”. Mas pode
existir mais uma razão. “Tem ha-
RUI BEBIANO • PROFESSOR DA FLUC • INVESTIGADOR DO CES vido uma pressão muito maior para
que os estudantes concluam rapida-
“O ENSINO DA HISTÓRIA TEM VINDO A RECUAR NOS PROGRAMAS E CURRÍCULOS” mente os seus cursos” e para que
desinvistam “naquilo que anterior-
O que é que faz com que haja destes movimentos, Mark Boren, es- dada nas escolas, a todos os níveis, mente era considerada por muitos
ainda estudantes que desconhecem o creveu mesmo que “o movimento es- de facto. Pior, o próprio ensino da como a ‘verdadeira’ universidade: a
passado recente, neste caso da uni- tudantil é um movimento sem História tem vindo a recuar nos pro- dimensão cívica e relacional que se
versidade que frequentam? memória”. Esta é recolhida mais gramas e currículos. O pouco que se adquiria no exterior das faculda-
Este não é um problema de Coim- tarde, sobretudo por antigos estu- ensina é também, por vezes, mais des”.
bra ou sequer apenas português. dantes e activistas. Por vezes é usada tratado num sentido comemorativo – Assim, continua o historiador,
Tendo trabalhado em termos de in- por estudantes actuais, mas quase o que não motiva, compreensivel- cabe em primeiro lugar aos estu-
vestigação sobre a história dos movi- sempre mais como justificação para mente, as gerações mais recentes – dantes recuperar essa memória,
mentos estudantis universitários, algumas das campanhas do presente, do que num sentido compreensivo, sem tentar inventar “a roda” ou imi-
percebi que é quase inevitável esse o que me parece natural mas ao que é aquele que torna o passado tar os heróis da crise. Nesse campo,
desconhecimento, pois a maioria dos mesmo tempo significativo. mais vivo e interessante. Mas claro diz, o papel compete “à DG/AAC,
estudantes, na fase das suas vidas em que esta situação não é geral nem ir- certamente, mas também aos nú-
que frequentam o ensino superior, Considera que a matéria sobre a reversível, e existem alguns sinais re- cleos, às secções, aos organismos
têm uma preocupação muito maior história recente de Portugal está a ser centes de que a tendência tem vindo culturais, às repúblicas, aos grupos
com o presente e o futuro do que mal leccionada nas escolas? a ser alterada. mais ou menos informais de estu-
com o passado. Um historiador A história recente é pouco abor- P.C. dantes”.
Com João Miranda
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ABRIL

ACTUALIDADE
O 17 de Abril de 2009 JORGE
SERROTE

40 anos depois da crise de 69, a actualidade política não parece cativar os


estudantes. As causas apontadas são o estado da política e da sociedade “Os ideais
BRUNA GUERREIRO

tural, o interesse por determinadas de ontem


Diana Craveiro
actividades e consumos também
mudou muito", explica. No entanto, são ainda os
O mar de pessoas que marcou pre- o docente da FEUC acredita que "re-
sença na Assembleia Magna (AM) de voltas tão intensas e radicais como as nossos ideiais”
28 de Maio, onde foi decretada a abs- que ocorreram nos anos 60 podem
tenção aos exames, nunca mais se voltar a acontecer, embora com ou-

H
á quarenta anos atrás,
voltou a repetir. Cerca de 6 mil estu- tros contornos". José Medeiros Fer- Coimbra era o centro do
dantes encheram os jardins da Asso- reira pensa que as épocas são muito movimento estudantil.
ciação Académica de Coimbra (AAC) diferentes e incomparáveis, mas diz Foi aqui que se criaram as
naquela que é considerada a maior ser concebível que haja "movimenta- vozes mais críticas ao regime Salaza-
AM da história da academia coimbrã. ções estudantis por pessoas relacio- rista, foi aqui que se deram os mo-
Hoje, o número de estudantes que nadas com a vida das universidades e mentos mais marcantes e foi aqui que
participa numa assembleia não chega com as condições de vida dos estu- se tomaram aquelas que foram as
aos 1000, numa altura em que a Uni- dantes". Estanque vai mais longe e grandes decisões que revolucionaram
versidade de Coimbra (UC) tem cerca avança a possibilidade de "o movi- o imaginário da época.
de 20 mil alunos. mento estudantil, à semelhança do O dia 17 de Abril de 1969 foi sem
O sociólogo e professor da Facul- que acontece em países da América dúvida um marco incontornável
dade de Economia da Universidade Latina, se aproximar do movimento desse tempo. Foi nesse dia o culmi-
de Coimbra (FEUC), Elísio Estanque, sindical", levando a que surjam "for- nar de várias acções de relevo para a
não culpa os estudantes do afasta- mas de protesto e resistência conjun- história da Academia, da cidade e do
mento da vida política. O docente tas". "É possível que venham a país. Os estudantes assumiram uma
aponta o distanciamento que há entre ocorrer movimentos de protesto posição clara de intervenção e escre-
os partidos políticos e os cidadãos maiores do que aquilo que aconteceu veram História. Daqui para a frente,
como algo que contribui para este até aqui", reforça. O sociólogo explica tudo mudou.
alheamento. "As pessoas olham com que "se os mecanismos de diálogo e Nos dias que correm, efectiva-
desconfiança para aqueles que estão as estruturas democráticas se virem mente, os motivos que levavam os es-
à frente das lideranças partidárias", cada vez mais restringidas, teremos tudantes a lutar são diferentes dos
explica o sociólogo, "e isso, infeliz- que assistir a explosões sociais", mas que motivam hoje os estudantes.
mente, é um risco que está a aconte- tem esperança que tal não seja ne- Contudo, ao falarmos de gestão de-
cer à democracia em geral". No cessário, "porque se as instituições mocrática ou representação estudan-
entanto, essa desconfiança não se li- funcionam e se a democracia for efi- til, se em 69 isto eram bandeiras, com
mita à classe política e o professor da caz é possível que as autoridades que o Regime Jurídico das Instituições de
FEUC recorre aos resultados de um estão nos órgãos de gestão percebam Ensino Superior voltam novamente
estudo feito pelo Centro de Estudos a importância do diálogo e da repre- em estar a causa estas questões – re-
trocedemos quatro décadas.
Actualmente questões como a
“Há um desfasa- “Os estudantes têm Acção Social, o Financiamento ou a
mento e uma distan- a obrigação de ser Empregabilidade estão na ordem do
dia, assumindo-se como as causas
ciação em relação à politicamente mais que os estudantes de hoje têm vindo a
defender.
vida política” interventivos” A evolução do Movimento Estu-
dantil tem sido marcada por um alar-
Sociais (CES) para o exemplificar: "a sentatividade dos diferentes sectores gamento de horizontes e de áreas de
maioria dos estudantes acredita que dos estudantes". actuação. Para além da participação
os líderes que vão para a frente das Embora a conjuntura política ac- activa dentro da sua instituição, o As-
listas e que têm ambição de chegar à tual seja diferente da de há 40 anos, sociativismo tem vindo a tentar re-
direcção-geral não o fazem por al- hoje em dia o acesso à informação solver as lacunas que os Estudantes
truísmo" mas sim "por protagonismo faz-se sem qualquer problema, ao sentem, seja a nível pedagógico, como
pessoal, por uma ambição individual contrário do que acontecia em 69. a níveis de cultura e lazer, emprega-
e política". Elísio Estanque defende que, "os es- bilidade e informação, acção social e
Também o professor da Faculdade tudantes, em tese, têm a obrigação de formação. O que as instituições de
de Ciências Sociais e Humanas da ser política e socialmente mais cons- Ensino Superior e as instituições pú-
Universidade Nova de Lisboa cientes e interventivos". "Acho que é blicas do local onde vivem e estudam
HÁ CADA vez menos estudantes a participar na vida política da Academia
(FCSH), José Medeiros Ferreira, re- necessário que o movimento estu- não conseguem hoje responder, as
conhece que há "um desfasamento e que mais se impõe é a falta de repre- dade é importante referir o processo dantil, juntamente com aqueles que Associações têm assumido esse papel
uma distanciação em relação à vida sentatividade dos estudantes nestes de crescente feminização das univer- têm intervenção pública crítica nesta de forte intervenção social.
política que tem a ver com o facto de órgãos. Elísio Estanque explica que sidades e o facto de esta não ter a cor- área, estejam activos e presentes na Podemos afirmar que o papel que
se pensar que é muito difícil modifi- isto aconteceu porque na última dé- respondente tradução na presença do denúncia dos riscos que hoje se aba- as Associações têm desempenhado na
car as coisas como elas estão". No en- cada "perante o discurso da paridade, sector feminino na gestão dos órgãos tem sobre as universidades públicas", Sociedade, tem sido fundamental
tanto, o docente não perde a impôs-se o discurso da eficácia, da da universidade", nota. alerta. para a formação da consciência de
esperança e acredita "que nestes mo- necessidade de tomar decisões rápi- A 17 de Abril de 2009 são poucos muitos jovens que se sentem úteis e
mentos de maior dificuldade que es- das". A lógica que "está escondida no Explosões sociais os alunos do ensino superior que par- que podem ter sucesso.
tamos a atravessar" os estudantes novo RJIES" é "uma restrição da li- 40 anos depois da crise académica de ticipam activamente na vida política. Efectivamente 17 de Abril de 69 foi
"venham a ter um papel mais activo". berdade e da democracia na gestão 69, surge uma questão: será possível 40 anos depois da crise académica a de facto uma data histórica. E marca
"Não tenho uma visão pessimista das universidades", acusa. O docente haver um movimento de estudantes acomodação tomou conta dos estu- ainda hoje, quarenta anos depois, a
sobre a actual geração", conclui. acrescenta que "o discurso da pari- igual ou semelhante ao do 17 de dantes, como concluíram Elísio Es- história desta Academia e do movi-
Em 69, os alunos do ensino supe- dade foi completamente posto de Abril? Elísio Estanque defende que tanque e José Medeiros Ferreira. No mento associativo.
rior lutavam também pela paridade lado porque as mentes do 'status quo' não, "porque as condições estrutu- entanto, Estanque não desanima: Os ideais de ontem são ainda os
nos órgãos de gestão. Hoje, com o Re- julgaram que havia um excesso de rais, sociais e económicas são muito "este é um alheamento que pode ser nossos ideais. As lutas que se trava-
gime Jurídico das Instituições do En- igualitarismo e que isso atrapalhava diferentes". "A forma como o estu- temporário... as coisas podem ram são ainda as nossas lutas.
sino Superior (RJIES), o problema as decisões". "Mas em relação à pari- dante se relaciona com o campo cul- mudar". Presidente da DG/AAC
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D.R.
OPINIÃO
EDITORIAL
OS 40 DO 17

uando passam 40 anos verdade esse conhecimento médio

Q sobre o dia que veio a


criar um novo fôlego
não só no movimento
estudantil conimbri-
de refere a uma compreensão vaga
dos factos históricos.
E se aqui o dedo pode ser apontado
aos estudantes e à sua falta de pro-
cense, como também nas estrutu- cura de informação, a verdade é
ras académicas do resto do país. O que deve e tem que ser apontado à
Jornal A CABRA decide publicar conjectura em que estão inseridos.
uma edição especial unicamente A lógica unicamente profissionali-
dedicada ao 17 de Abril e à Crise zante pela qual o ensino superior
Académica de 69. perigosamente envereda possui
O objectivo principal era, claro, um reflexo nisto mesmo. A falta de
não deixar passar a data em preocupação numa educação hu-
branco. Contudo, era mais ambi- manística e individual dos estu-
cioso do que isso. Descobrir novos dantes espelha-se na consecutiva
factos, compreender novas pers- diminuição do espaço temporal das
pectivas e assim aprofundar o co- licenciaturas, que com a redução
nhecimento sobre a crise de tempo reduzem também o ca-
académica rácter humanístico que deveriam
A sondagem realizada pelo Jornal enquadrar.
A CABRA é demonstrativa do que Também a perspectivação do en-
os estudantes conhecem sobre o 17 sino como um negócio, em pouco
de Abril de 1969 e sobre a crise aca- vem ajudar a esta formação dos in-
démica que o procedeu. 48,65 por divíduos. A desresponsabilização
cento dos alunos inquiridos de- governamental para com o ensino


Os mesmos valores que se
denfendiam há 40 anos são hoje
postos em causa por medidas como
o Regime Jurídico das Intituições do
Ensino Superior

monstra ter um conhecimento superior e o empurrar para as fa-


médio sobre os factos e as pessoas mílias dos estudantes o encargo do
que envolveram o momento histó- financiamento da frequência na
rico da universidade e da Acade- universidade demonstra-o racio-
mia. nalmente. Pois, com as despesas
O número poderia ser sossegador, que o estudante tem que suportar
afinal quase metade dos alunos anualmente não possui outra saída
possui um conhecimento médio da se não a da conclusão da licencia-
história que o atinge directamente. tura o mais rápido possível, não
Porém, há dois factores que é ne- podendo nunca desviar-se desse
cessário analisar. O primeiro re- seu percurso em busca de outra in-
fere-se ao facto mais directo de formação e de outro conhecimento.
18,72 por cento possuírem um co- Esta falta de informação é tanto pe-
nhecimento reduzido ou mesmo rigosa, quando os mesmos valores
nulo sobre os factos históricos que que se defendiam há 40 anos são
envolvem a crise académica. O se- hoje postos em causa por medidas
gundo, bem mais grave, refere-se a como o Regime Jurídico das Insti-
uma interpretação que facilmente tuições do Ensino Superior, que
se encontra de metade dos alunos vem criar na representatividade
possuírem um conhecimento paritária nos órgãos um retrocesso
médio dos acontecimentos como de décadas.
uma situação positiva, quando na João Miranda

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ESTUDANTES DA UC

48 %
possui conhecimento vago sobre o 17 de Abril
Sondagem A CABRA mostra que há um desconhecimento geral sobre os pormenores da
Crise Académica de 1969. Historiadores corroboram os resultados e apontam causas P 24 e 25

Palavra de intervenção
Nas crises académicas de 1962 e 1969, Baptista Bastos e Urbano Tavares Rodrigues expressaram o apoio à luta estudantil.
Em 62, estiveram entre os filiados da Sociedade Portuguesa de Autores que assumiram a causa. Sete anos mais tarde, Tavares
Rodrigues ofereceu livros com dedicatórias sobre o movimento. Hoje, escrevem para assinalar os 40 anos da crise de Coimbra

dos dos maiores nomes da cultura


É a tomada de consciência portuguesa. Tanto em 62 como
em 1969 fui cúmplice e colabo-
da juventude que sacode rante dessas inesquecíveis movi-
mentações. Interessava-me,

e acorda o país sobretudo, o acto moral do anti-


fascismo, em que participavam
comunistas, monárquicos, socia-
listas, católicos, anarquistas, etc.
geu no 17 de Abril. Transportei papéis dessa Resis-
URBANO TAVARES É a tomada de consciência da ju- tência tão ingénua como corajosa.
RODRIGUES ventude, é a sua esclarecida mili- Estava com eles, e, na época, estar
tância anti-fascista que sacode e era, já em si, um desafio e um
acorda o país, com denúncias e risco. Um dia, recolhia assinatu-
reivindicações que por vezes lem- ras de apoio aos estudantes, nos
bram o bota-abaixo e a imagina- meios que me eram próprios, um
ção do Maio de 68 francês. dos jornalistas signatários telefo-
Tive papel activo na campanha nou-me. Marcámos encontro na
eleitoral de 1969, apoiei e acom- uitos da minha gera- Cervejaria Ribadouro. Esse indi-
panhei de perto o 17 de Abril dos
estudantes, com muitos dos quais
convivi.
É por tudo isso com alegria que
M ção fizeram o que era
preciso fazer. Não há
nada de heróico nem
de grandioso nesta
víduo ainda é vivo. Ele queria de-
sonrar-se, solicitando-me que
apagasse o seu nome do docu-
mento. A indignidade levou-me a
dizer-lhe: «O papel já foi entre-
ano de 1969 foi em vejo a mocidade coimbrã, através singela afirmação. Apenas decidí-

O Portugal decisivo para


as grandes transfor-
mações do futuro, em
que foram lançadas as sementes
desta iniciativa da CABRA, pres-
tar-lhes homenagem.
Os que nele estiveram na pri-
meira linha seguiram depois vida
A força
da razão
ramos, cada um e de per si, en-
volver-nos no turbilhão da nossa
época. Desde 1962 que o país es-
tava numa crispação insuportá-
gue» - e ele quase se esbulhou em
lágrimas de pânico. Tranquilizei-
o: «Deixe estar que eu risco o seu
nome. Mas nunca mais me es-
da revolução. E, se a campanha fora diferentes caminhos e alguns vel: em greve os pescadores de tenda a mão.»
eleitoral da CDE (Comissão De- até exerceram altas funções políti- Matosinhos, os camponeses do Esta histórinha vale o que vale.
mocrática Eleitoral), muito escu- cas após a revolução libertadora Alentejo, seguindo-se-lhe a con- Porém, serve para relembrar
tada por aqueles que viriam a ser do 25 de Abril. Mas, até quando testação estudantil ao regime. aqueles, estudantes e os seus
os oficiais dos cravos, teve impor- vivem e projectam na história con- BAPTISTA-BASTOS Esta agitação reprimida a golpes companheiros, que rejeitaram a
tância assinalável, não menor tradições profundas, lembram-se de bastonadas, com prisões arbi- baixeza em nome de uma força
foram o impacto e o alcance da re- sempre com orgulho desse já lon- trárias e exílios desamparados era superior a todas as outras: a da
volta estudantil que tem o seu apo- gínquo dia do estudante. acompanhada de abaixo-assina- razão contra o arbítrio.

Alberto Martins Actualidade Memória


Opinião
“Coimbra, na altura, foi O movimento dos A mulher na Crise
uma ilha de liberdade” nossos dias Académica de 69 João Botelho
O actual líder parlamentar do altura. 40 anos depois, Quatro décadas depois da crise aca- O papel social da mulher começou a
lembra os
Partido Socialista foi o protago- Alberto Martins fala démica, ACABRA foi tentar perceber sofrer algumas mudanças nos anos tempos em
nista de um dos episódios mais sobre a noite como estão os movimentos associa- 60. Mesmo com as restrições da que viveu a
marcantes da Crise Académica de que passou tivos de hoje. Numa altura em que as época, começava a ser possível as
1969 ao pedir para falar na inau- na prisão, propinas, o Processo de Bolonha e o estudantes terem um quotidiano crise
guração do edifício das Matemá- a democra- RJIES estão na ordem do dia, um semelhante ao dos seus colegas. P9
ticas, a 17 de Abril. “O que tização no sociólogo e um historiador analisam Uma antiga estudante que viveu
esperava era que me prendessem ensino e o a atitude dos estudantes perante a estes momentos lembra que, “ape-
e espancassem, mas eu tinha de regime ju- política. A conclusão é que os alunos sar do conservadorismo, as mulhe-
pedir a palavra”, conta o presi- rídico do do ensino superior se mostram dis- res não eram tratadas como um ser

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dente da Direcção-Geral da Asso- superior. tanciados da vida política. inferior”.
ciação Académica de Coimbra da P4e5 P 26 P 20 acabra.net

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