Você está na página 1de 6

Resumo do livro digital “Penas Ilícitas – Um desafio à dogmática penal”,

de Eugenio Raúl Zaffaroni.


Dados do resumo:

O livro foi publicado em 2020, contém 35 páginas, divididas entre 5 partes (Poder punitivo
lícito e ilícito; A situação fática na América Latina: os fatos; O desafio sem resposta; Uma
necessária resposta dogmática; Conclusão).

A publicação é integralmente redigida em espanhol, de modo que, para facilitar o


entendimento, realizei a substituição de algumas palavras por sinônimos, porquanto a tradução
literal, por vezes, dificultaria a compreensão.

Ademais, informo que pulei alguns itens (ex. III – 1 para III – 4) para viabilizar maior síntese
do texto.

Feitos os destaques iniciais, vamos ao resumo.

Resumo da obra:

I. Poder Punitivo Lícito e Ilícito

O direito penal é o ramo da ciência jurídica em que a diferença entre o “dever ser” e o
“ser” alcança uma disparidade que muitas vezes chega à dimensão do disparate. Isto
desprestigia a doutrina jurídico penal.

Assim, incumbe-nos eticamente assumirmos a realidade do exercício do poder punitivo


ilícito na nossa região (latino-americana): a ciência jurídica penal deve proporcionar uma
resposta às perguntas que sua prática levanta.

II. A situação fática na América Latinas: os fatos


1. Poder punitivo ilícito exercido por agências administrativas

O poder punitivo exercido de forma ilícita – típica ou não – é um velho problema na região.
Referimo-nos às condutas ilícitas imputáveis a funcionários policiais ou penitenciários, como
também a terceiros, por omissão daqueles.

Em primeiro lugar, não podemos ignorar que na nossa região seguem registrando
Desaparecimentos Forçados, ainda que nem todos eles sejam imputados a funcionários estatais,
mas à violência nos Estados deteriorados, em que se perdeu o relativo monopólio do poder
punitivo.

Fora destes casos, devem ser consideradas - por sua gravidade - as execuções sem
processo, que se trata da pena de morte que efetivamente ocorre na região, onde o direito a
aboliu formalmente, salvo alguns países do Caribe.

Além disso, as cifras de letalidade policial registradas superam em muito as do hemisfério


norte e que parece ser normalizado pelos meios de comunicação de massa (desin)formadores
de opinião.

À margem deste exercício ilícito letal do poder punitivo, são abundantes na região as
denúncias de delitos de torturas, maus-tratos, lesões ou sofrimentos impostos por funcionários
ou não evitados por eles, enfermidades contraídas e lesões sofridas como resultado de
deficientes condições prisionais.
Quase todas estas lesões a bens jurídicos são produtos de condutas típicas (ativas ou
omissivas) de funcionários estatais - ainda que algumas não sejam, bem como do material
deficiente de que estes funcionários dispõem ou das precárias condições em que devem cumprir
suas tarefas.

Em suma, estes eram, em maior medida, os fatos do poder punitivo ilícito até algumas
décadas atrás.

2. O poder punitivo ilícito habilitado por juízes

Contudo, nas últimas décadas, houve uma mudança qualitativa negativa e é o problema
mais agudo e generalizado: a SUPERPOPULAÇÃO penitenciária e do constante aumento do
ENCARCERAMENTO EM MASSA.

Contribui para este aumento um antigo mal da região: o abuso da prisão preventiva ou
cautelar.

Ademais, os recursos processuais pragmáticos (acréscimo tradutora: no Brasil, podemos


citar os benefícios da Lei 9099/95 – transação penal e suspensão condicional do processo, além
do ANPP), não resultaram numa diminuição significativa destes percentuais.

Cabe observar que o crescente encarceramento não guarda relação com o crescimento
populacional geral, nem tampouco com a maior frequência de delitos graves, posto que domina
o encarceramento por fatos que correspondem a chamada Delinquência de Subsistência.

A composição da população penal é substancialmente masculina e jovem (embora não


queira dizer não seja um problema sério o encarceramento das mulheres). São registradas altas
porcentagens de presos (índios, negros ou mulatos) que sobrepõem muito as suas taxas na
população em geral.

A composição da população penal mostra que a seleção criminalizante ocorre conforme


estereótipos configurados midiaticamente no imaginário social com as características
retromencionadas.

Os estados das prisões: o certo é que intensifica na região o número de estabelecimentos


que a superpopulação excede as margens toleráveis conforme os estandartes internacionais.

Ao mesmo tempo, registra-se uma enorme desproporção entre os agentes penitenciários


e o número de presos.

Nestas condições, o Estado perde o controle da ordem interna das prisões, que passa para
as mãos dos próprios presos que, em regra, pertencem ao Crime organizado.

O controle interno, desta forma, se torna mais violento, submetendo aos que pertencem
às organizações rivais a humilhações ou servidões, inclusive sexuais. Tudo isso sem prejuízo das
eventuais disputas pela hegemonia entre as organizações criminosas, com grande número de
vítimas fatais.

Estas condições degradam ao máximo a autoestima dos presos e põem em perigo suas
vidas. Se em todo o mundo, em razão da inevitável deterioração da instituição total, as prisões
produzem mais homicídios e suicídios que na vida livre, esta relação alcança limites muito altos
na nossa região.
O efeito reprodutor de violência: estes jovens são forçados a adotar condutas das
organizações criminosas em razão da necessidade de defender suas vidas, o que prolonga no
tempo e acaba por incorporar os valores violentos da ordem interna e a chamada Internalização
do estereótipo ou assunção da subjetividade delinquente (passa de “eu roubei”, para “eu sou
ladrão”).

A prisão como tortura: a privação de liberdade sob constante ameaça para a vida e saúde,
a submissão a grupos violentos, sem um mínimo de privacidade, maus-tratos a visitantes,
carência de medicamentos, foi considerada pelos tribunais internacionais configuradora de uma
forma de tortura.

O instituto deixa de ser mera privação de liberdade para passar a ser uma pena corporal
com possíveis sequelas irreversíveis ou ainda, por azar, uma pena de morte.

Nas mencionadas condições, as penas de prisão são PENAS ILÍCITAS QUALIFICADAS COMO
PENAS CRUÉIS, DESUMANAS E DEGRADANTES.

III. UM DESAFIO SEM RESPOSTA


1. As penas ilícitas são penas:

Neste sentido, as penas podem ser lícitas ou ilícitas, sendo estas últimas as penas cruéis,
desumanas e degradantes, consideradas tais pelo direito constitucional de todos os países
latino-americanos e também por todos os tratados de direito internacional dos direitos
humanos.

A tortura e, em geral, as penas cruéis se executam por funcionários do Estado sobre


pessoas acusadas ou condenadas por delitos, de modo que é uma forma claríssima de resposta
estatal a um delito cometido ou imputado. Ou seja, fica claro que estas penas ilícitas também
são penas.

O Estado não pode se amparar no argumento de que não se trata de sua responsabilidade,
mas apenas na de seus funcionários, posto que isto resultaria em uma pessoa jurídica dotada de
um muito singular e inadmissível privilégio de irresponsabilidade jurídica absoluta.

Assim, sustentamos que o sofrimento que a vítima experimentou em razão dos delitos ou
ilícitos cometidos por funcionários necessariamente deve ser descontado ou compensado com
uma redução – ou inclusive cancelamento, segundo a gravidade do dano sofrido – da pena lícita
a ela imposta ou que reste a cumprir.

Neste sentido, devemos esclarecer que é óbvio que a prisão preventiva é uma pena. Seria
absurdo restringir a proibição de penas cruéis/desumanas/degradantes ou torturas apenas aos
condenados e excluir a prisão dos processados, beneficiários do princípio da inocência. Os
argumentos de alguns processualistas que sustentam a analogia com as medidas cautelares do
processo civil são inconsistentes: no processo civil é possível exigir contracautela; a medida
cautelar civil só pode produzir um indevido dano patrimonial que eventualmente é suscetível de
reparação da mesma espécie. Ao passo que é impossível repor a liberdade.

4. O silêncio doutrinário ante os juízes como autores mediatos de torturas:

Cada vez que um juiz envia uma pessoa a uma prisão degradada está impondo uma pena
ilícita, vez que conhece o estado da prisão e, por fim, atuaria também com dolo.
Contudo, se a doutrina é pouco sensível às penas ilícitas executadas por funcionários
administrativos, o silêncio perante os juízes que operam como autores mediatos de tortura é
muito mais dramático para o prestígio da ciência jurídica penal.

Os funcionários encarregados de executar as penas impostas pelos juízes em cárceres


deterioradas seriam os autores diretos, quiçá amparados pela necessidade justificante ou
exculpante, inclusive por um inevitável erro de proibição, mas os juízes não podem se beneficiar
de nenhumas dessas justificativas.

5. As perguntas sem respostas: os juízes em contradição e ninguém é responsável pelas


mortes e torturas:

As perguntas dirigidas a doutrina penal: As perguntas que vêm imediatamente a mente são as
seguintes: Se pode admitir que os juízes ordenem torturas ou penas
cruéis/desumanas/degradantes? Pode o direito ordenar que eles assumam o papel de autores
mediatos de torturas? Obedecem os juízes à Constituição que juraram ou se comprometeram a
respeitar e que proíbe essas penas? Seriam responsáveis pelas mortes e lesões que ocorrem nas
prisões? Por acaso estes resultados não são previsíveis?

Estas são perguntas que não dirigidas aos poderes Executivos e Legislativos, mas ao
próprio direito penal, à própria dogmática penal, que deve uma resposta.

Os livros e o juiz preocupado: Aqui é onde se concentra o problema crucial para o saber jurídico
penal, pois quando os juízes conscientes e preocupados abrem os livros doutrinários do direito
penal, não encontram uma só linha que resolva sua contradição jurídica e de consciência.

Em alguns livros, o juiz lerá que as penas devem reforçar o prestígio do Estado como
provedor de segurança jurídica. Em outro, a afirmação de que as penas devem cumprir supostas
tarefas de ressocialização, quando diante de seus olhos é evidente que não só não as cumprem,
senão que produzem exatamente o efeito contrário. Tampouco faltarão livros que digam que a
função da pena deve ser o isolamento (inocuização) do delinquente, para que não volte a
cometer um delito.

O juiz preocupado deixará de lado todos estes livros porque se dará conta que ignoram a
realidade do poder punitivo e resolvem a contradição jurídica e ética que é aplicar penas ilícitas
e proibidas pela própria constituição do seu país. No caso, um direito penal que não responde,
mas, em verdade, que informam aos juízes que eles continuem fazendo o que fazem, quer dizer,
que continuem aplicando privações de liberdade ilícitas.

Estes livros sugerem que os juízes não devem se intrometer, que este é um problema dos
políticos, e não deles.

A compartimentalização do sistema penal: A ausência de uma dogmática penal que ofereças


respostas gera uma mal ainda maior: a compartimentalização do sistema penal de um modo tão
extremo que levam ao desentendimento entre os operadores do Poder Judiciários (juízes,
promotores, defensores...). Desarticula de tal forma que o sistema penal, que induzem os juízes
a omitir toda consideração acerca do resultado real de seus atos “de governo”.

Ao segmentar desta maneira o sistema penal, cada agência deste (juízes, polícia,
legisladores, políticos...) concluirá que em seu respectivo âmbito fazem o que é devido e, por
isso, ninguém será responsável do resultado em conjunto.

IV. UMA NECESSÁRIA RESPOSTA DOGMÁTICA


1. A dogmática penal tem capacidade para proporcionar uma resposta dentro do
positivismo jurídico:

A solução dogmática a que chegamos conforme o método assim entendido, ou seja,


reconstruindo o sistema com sua base assentada nos dogmas resultantes das análises das leis
constitucionais, tem um claro fundamento legal: as Constituições e o direito internacional são
as normas fundamentais e as primeiras a serem consideradas na construção jurídica. A realidade
das prisões faz que com que as penas de prisão sejam ilícitas e, inclusive, configurem tortura.
Estas penas estão proibidas por essas normas fundamentais: portanto, por mandato
constitucional, o juiz deve aplicar somente as penas lícitas ou, ao menos, as penas menos ilícitas
que sejam possíveis, em suas circunstâncias concretas.

2. O princípio da proporcionalidade das penas:

O conteúdo penoso inerente à privação de liberdade é a base sobre a qual o legislador


mede no código penal as penas privativas de liberdade no tempo linear, fixando as respectivas
escalas penais.

Assim, a pena de prisão proporcional implica um determinado tempo de sofrimento


adequado à culpabilidade pelo fato, contudo, em razão das condições degradantes, o
sofrimento acaba sendo muito maior e o período de prisão com um sofrimento superior quebra
a proporcionalidade e viola o correspondente princípio republicano: se está infligindo à pessoa
um sofrimento que não foi calculado pelo legislador no código no momento de estabelecer o
tempo de duração da pena de prisão.

A razão indica que: se (X sofrimento = Z tempo), a (X x 2 sofrimento) deve corresponder


(Z – 2 tempo).

Portanto, nos manda recalcular o tempo adequando-o ao grau de sofrimento, para


restabelecer a vigência e a conformidade à Constituição.

3. O problema das penas de prisão na execução:

Lamentavelmente, as penas privativas de liberdade ilícitas não se limitam a impor um


sofrimento indevido as suas vítimas, mas exercem também um efeito gravemente deteriorante
sobre estas, condicionando-as para condutas violentas, fazendo-as internalizar os caracteres do
estereótipo do que é criminalizado, conduzindo as chamadas Carreiras delinquentes.

Não obstante, apesar de o direito penal do autor ser um caminho proibido, a ciência penal
deve adotar um critério objetivo para tomar decisões no sentido de cessar a aplicação das penas
ilícitas. Este critério é o da natureza do delito. Contudo, este critério objetivo seguido a risca
também resulta inadequado para a paz interior e lesivo à proporcionalidade, porque nem todas
as pessoas condenadas por delitos mais graves apresentam os mesmos sinais ou características.
Assim, esta distinção pode ser averiguada mediante perícia que determine o grau de
AGRESSIVIDADE da pessoa privada de liberdade, para que se possa adotar medidas mais
prudentes a compensar o sofrimento, a exemplo do uso de monitoramento eletrônicos ou
outros meios. Destaca-se: fala-se em Agressividade, de modo algum, em Periculosidade, pois
esta configura um juízo de probabilidade sem maior fundamento.

4. As penas de prisão cuja execução não tenha começado:

O novo cálculo de tempo, apesar observa a proporcionalidade, não resolve a totalidade


dos problemas, visto que uma pena ilícita não deixa de ser ilícita porque teve seu tempo
reduzido, dado que o período que permaneça para ser cumprido seguirá sendo cumprido em
um cárcere deteriorado.

Desta forma, o primeiro passo para solução é ater-se estritamente aos limites fixados pela
jurisprudência internacional para as prisões provisórias ou preventivas, ou seja, limitadas ao
suposto risco de rebeldia ou de interferência na investigação e por prazo curtos.

Um segundo passo consistiria a limitar as prisões provisórias/preventivas às pessoas


processadas por delitos que pelo critério objetivo (natureza mais grave), deixando de impor
detenção preventiva ou pena privativa de liberdade para todas as demais. E tampouco poder-
se-ia aplicar para aqueles cuja perícia não apontasse uma alta agressividade manifesta.

Deste modo, ao não aumentar desnecessariamente o ingresso de pessoas às prisões e,


paralelamente, reduzir proporcionalmente as penas dos presos, se iria provocar uma paulatina
redução de população penal, até lograr, pela mera ação dos juízes, que esta alcance um número
tolerável em relação à capacidade de cada estabelecimento.

A solução conforme a dogmática jurídico-penal não eliminaria a ilicitude de todas as penas


instantaneamente, mas - dinamicamente – daria lugar a uma redução das penas ilícitas
imputadas e menos uma ilicitude às penas imputadas, até que continuidade jurisprudencial
levaria à eliminação do resto da ilicitude.

5. Não se trata de uma isenção de responsabilidade dos juízes:

Não se pode levantar a possibilidade de uma causa de justificação em razão de


necessidade (uma excludente de ilicitude) por parte dos juízes. Senão que, ao recalcular o tempo
ou reduzir as ordens de prisão preventiva, com as devidas precauções antes mencionadas, não
se estaria fazendo outra coisa do que cumprir diretamente o seu dever jurídico, conforme impõe
a Constituição Nacional e o direito internacional dos direitos humanos, ou seja, trata-se de uma
conduta completamente atípica.

Resumo por Fernanda Augusta S. Araújo.

Você também pode gostar